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JOÃO NILSON PEREIRA DE ALENCAR
POLÍTICAS CULTURAIS - ANTOLOGIAS:
A constituição de cânones literários no modernismo tardio
FLORIANÓPOLIS
2007
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João Nilson Pereira de Alencar
POLÍTICAS CULTURAIS – ANTOLOGIAS:
A constituição de cânones literários no modernismo tardio
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em Literatura, do Centro de Comunicação e
Expressão, Universidade Federal de Santa
Catarina, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Literatura, área de
concentração em Teoria Literária.
Orientador: Prof. Dr. Raúl H. Antelo
FLORIANÓPOLIS
2007
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Agradeço a todos, amigos e parentes, que estiveram comigo nessa jornada;
a Raul Antelo, pela orientação e a Adriana Rodríguez Pérsico, pelo apoio;
à CAPES pelo patrocínio do Estágio de Doutorado na Argentina;
à UFSC – Colégio de Aplicação - pela oportunidade;
às Bibliotecas Públicas brasileiras e argentinas, pelo acesso ao material;
à vida, sempre cortando e colando...
Somos o desenrolar de um filme cinematográfico.
Gilles Deleuze
RESUMO
O presente trabalho tem o objetivo de rearmar o debate em torno da literatura, revendo seu
estatuto durante o século XX, no que concerne à imagem sedimentada, canonizada que dela
se formou. Para tanto, realizo uma reflexão a respeito da antologia articulada durante a
primeira metade desse século, sondando a constituição de uma política cultural entre
América Latina e Europa no modernismo tardio, especialmente entre Brasil e países do
Cone Sul. A hipótese do trabalho centra-se na idéia de que a antologia constitui uma
política cultural no alto modernismo, tendo como um de seus eixos principais a
institucionalização do saber modernista. Para dar conta da passagem da modernidade/pós-
modernidade, analiso algumas estratégias através da idéia da “emancipação” e
“espetacularização” da cultura, cujo modelo é fortemente marcado pela noção do intelectual
ora enquanto legislador ora enquanto intérprete. Pretendo evidenciar, mais do que uma
identificação de um objeto particular, uma “estratégia cultural”, destacando a noção de
“passagem”, entendida enquanto ponte, articuladora de modelos culturais diferenciados. As
antologias são periodizadas, fundamentalmente, em dois momentos críticos. O primeiro
focaliza o estabelecimento das relações entre as vanguardas e o modernismo europeu e
latino-americano, entendendo a antologia enquanto operadora das passagens de uma
percepção de um mundo absoluto para um outro em franca fragmentação, ou ainda da
transferência de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do controle, onde ela pode
ser lida tanto quanto força passiva como ativa. O segundo momento trata da captar a ação e
conseqüência da estratégia norte-americana em deslocar o eixo de interesse cultural de
Paris para Nova York, explorando, especialmente através de leitura de periódicos, como é o
caso da revista Anhembi, alguns de seus reflexos. Nesse sentido, essa pesquisa focaliza o
diálogo de diversos intelectuais, Guillaume Apollinaire, Stéphane Mallarmé, Mário de
Andrade, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Oliverio Girondo, entre outros, buscando
configurar uma política cultural que, não raro, tornou-se decisiva para os processos de
engessamento de idéias lidas freqüentemente como autônomas e artisticamente originais.
Portanto, intento elaborar uma crítica menos historicista e mais desafiadora, demarcando
uma política, inclusive no campo educacional, ao mesmo tempo em que circunscrevo o
espaço da crítica ao campo da atribuição errônea, e do anacronismo deliberado, em que
produção artística e produção crítica se equivalem.
ABSTRACT
The following work aims to rearm the debate around literature, reviewing its statute during
the 20th century in what concerns the sediment and canonized image which was formed.
With this purpose I reflect about the anthology that was articulated during the first half of
the century by investigating the establishment of a cultural policy between Latin America
and Europe in the late modernism, especially between Brazil and the countries of Cone Sul.
The hypothesis of the thesis is centered in the idea that the anthology represents a cultural
policy of high modernism. To cover the passage of modernity to post-modernity, I analyze
some strategies through the idea of the “emancipation” and “spectacularization” of culture,
which has a model strongly marked by the concept of the intellectual as whether legislator
or interpreter. More than the mere identification of a particular object, I pretend to
demonstrate a “cultural strategy”, emphasizing the idea of “passage” understood as a
bridge, articulator of distinguished cultural models. The anthologies are classified
fundamentally in two critical moments. The first moment focuses on the establishment of
the relations between the vanguards and the European and Latin American modernisms,
understanding anthology as an operator of the passing of an absolute world to a world in
frank fragmentation, or still the transference of a disciplinary society to a society of control,
in which the anthology can be understood as both passive and active forces. In the second
moment I intend to capture the action and consequences of the North-American strategy
that attempts to shift the axis of cultural interest from Paris to New York, especially
through the study of periodics, which is the case with the magazine Anhembi. Therefore
this research centers on the dialogue between several intellectuals such as Guillaume
Apollinaire, Stéphane Mallarmé, Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Manuel
Bandeira, Oliverio Girondo, among others, which seek to configure a cultural policy which
often becomes crucial for the concretion of ideas frequently considered autonomous and
artistically original. Thus I intend to elaborate a less historicist and more challenging critic,
presenting a policy also in the educational field, at the same time in which I circumscribe
the space of criticism to the field of “erroneous attribution” and the “deliberated
anachronism” that affirms that both artistic and critical production are equivalent.
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................... 04
ABSTRACT ...............................................................................................
05
INTRODUÇÃO .........................................................................................
08
CAPÍTULO I:
14
1.1 - DA MÁSCARA AO FANTASMA .................................................... 14
1.2 – CARTAS ............................................................................................ 27
1.3 – USOS METROPOLITANOS DO MODERNO ................................ 33
CAPÍTULO II:
46
2.1 - ANTOLOGIA/ONTOLOGIA ............................................................ 47
CAPÍTULO III:
97
3.1 - HISPANO-AMÉRICA-LATINA ....................................................... 97
3.1.1 – Pré-histórias .................................................................................... 98
3.1.2 – Políticas da Exposição .................................................................... 106
3.1.3 – Imagens de Si .................................................................................. 115
3.2 - ANTOLÓGICAS EM VERSO E PROSA ......................................... 127
3.3 – TRAMANDO HISTÓRIAS ............................................................... 137
3.3.1 – Estrangeiro/Nacional ........................................................... 143
3.4 – MODERNISMO CULTURAL .......................................................... 149
3.4.1 – Museu Modernista ......................................................................... 149
3.4.1.1 – Política patrimonial ..................................................................... 153
3.4.2 – A BIBLIOTECA ORDENADA ..................................................... 166
3.4.3 - CULTURA (ENTRE) GUERRAS .................................................. 177
3.4.3.1 – Integrar, educar, expandir ........................................................... 183
3.4.3.2 – Américas ...................................................................................... 194
3.5 - POR ELE MESMO ............................................................................ 204
CAPÍTULO IV:
221
4.1 - FÓSSEIS EM REVISTA ................................................................... 221
4.2 - ANHEMBI ......................................................................................... 222
4.3 - O/VÔO DA ÁGUIA .......................................................................... 238
4.4 - AMERICANOBRASIL ..................................................................... 249
4.5 - ÓCIO/FÓSSIL ................................................................................... 253
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................. 270
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 292
- MARCO TEÓRICO ............................................................................. 292
- ANTOLOGIAS, DICIONÁRIOS, CATÁLOGOS .............................. 296
- PERIÓDICOS ...................................................................................... 298
- BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................... 299
INTRODUÇÃO
O debate a respeito da crítica e da atividade literária, ao que se poderia
agregar a atividade docente das últimas décadas, tanto no Brasil quanto na América Latina,
tem se configurado a partir de uma reflexão freqüentemente inspirada na concepção de
literatura enquanto área efetivamente institucionalizada, quando não como espaço em que
raras, e tênues, mudanças ocorrem, vista mais como campo de saber e menos como
experiência, vivência, sensibilidade, ética. Desta forma, creio oportuno, e desejante, buscar
outros caminhos, refazer percursos, instaurar outras paisagens.
O objetivo deste trabalho é o de propor, através da redefinição do campo da
literatura a partir da noção de antologia, entendida, principalmente, enquanto revisão e,
portanto, recriação de textos, uma leitura da constituição de cânones literários no
modernismo tardio. Tratarei inicialmente de algumas definições da antologia, a fim de, em
seguida, postular alguns desdobramentos dessa questão.
Por antologia entendo uma intervenção crítica, em que esta equivale a uma
operação de leitura, um procedimento decisório (um gesto, uma atitude - Mário de
Andrade), evidenciando uma política cultural. Enquanto procedimento, ela é também
acontecimento; uma seleção (coleção, florilégio), que ora estabelece hierarquias, possui
uma assinatura, um fiador; ora é dispersão, anonimato. A antologia é igualmente revista;
reunião e interpretação do arquivo; compósito híbrido, monstruoso, heterogêneo, catálogo
atemporal. Não menos importante é vê-la como cartografia
1
, relato - memória (a rua, a
1
Ao distinguir a concepção cartográfica da concepção arqueológica da psicanálise, Gilles Deleuze, no
instigante ensaio “O que as crianças dizem”, afirma “Os mapas, ao contrário, se superpõem de tal maneira que
cada um encontra no seguinte um remanejamento, em vez de encontrar nos precedentes uma origem: de um
mapa a outro, não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é
uma redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras, que necessariamente vai de baixo para
cima. Não é só uma inversão de sentido, mas uma diferença de natureza: o inconsciente já não lida com
pessoas e objetos, mas com trajetos e devires; já não é um inconsciente de comemoração, porém de
mobilização, cujos objetos, mais do que permanecerem afundados na terra, levantam vôo.” Assim, reivindica
9
viagem, o mundo). Daí que antologizar é traduzir, expor o princípio de correspondência e
equivalências, como uma poética da contenção e do dispêndio (reunir e separar; enxugar e
derramar). Outra definição é percebê-la enquanto um produto cultural, cuja leitura se dá por
relações não pré-estabelecidas, mas por conexões a posteriori, não se configurando,
portanto, como passado, mas permanente devir. A antologia busca pontos de contato com o
leitor – não quer ser erudita, porém “frívola” (Valery Larbaud), sendo o resultado de um
conceito sobre uma história literária (portanto, sempre incompleta, “defeituosa”- Manuel
Bandeira). O reverso é que esta história pressupõe igualmente uma antologia prestes a
emergir. Por fim, antologizar é deixar de fora, calar, fazer ressaltar em seu procedimento o
ato que a constitui, a sua fratura, o seu fora. De onde que este trabalho pode assim ser
recebido, como uma costura do que não estava incluído, este avesso sempre impossível da
literatura.
A hipótese do trabalho centra-se na idéia de que a antologia constitui uma
política cultural no alto modernismo, tendo como um de seus eixos principais a
institucionalização do saber modernista. O primeiro momento entende a antologia enquanto
seleção, portanto, aceita a idéia de uma hierarquização – de onde ela seja letrada e
eurocêntrica. Nesta concepção, assoma a assinatura, a figura do “autor” como centro deste
universo. Já no segundo momento, os fragmentos são mais importantes do que aqueles que
os reúnem, quando a figura do autor dá espaço para a movimentação das peças do jogo, e o
texto, por assim dizer, se autonomiza.
Para dar conta da passagem do padrão da modernidade/pós-modernidade,
analiso algumas estratégias através da idéia da “emancipação da cultura” e de sua
espetacularização, cujo modelo é fortemente marcado pela noção do intelectual ora
enquanto legislador ora enquanto intérprete
2
. Neste cenário do moderno, o intelectual
também os mapas de intensidade, de densidade e uma distribuição de afetos. Este trabalho pode ser assim
lido. In Crítica e clínica. 1ª reimpressão. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo : Editora 34, 2004, p. 75 (Coleção
TRANS).
2
Baseio-me principalmente nos conceitos de Zygmunt Bauman, desenvolvidos em Legisladores e
Intérpretes – Sobre la modernidad, la posmodernid y los intelectuales. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires
: Universidad Nacional de Quilmes, 1997 (Colección Intersecciones). Outros trabalhos são fundamentais para
tal perspectiva. Valeria ressaltar ACHUGAR, Hugo (Compilador). La fundación por la palabra – Letra y
Nación en América Latina en el Siglo XIX. Montevidéo : Faculdad de Humanidad y Ciencias de la
Educación, 1998; RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina – Literatura y
política en el siglo XIX. México : Fondo de Cultura Económica, 1989; MONSIVÁIS, Carlos. Aires de
familia – Cultura y sociedad en América Latina. Barcelona : Editorial Anagrama, 2000; SARLO, Beatriz.
La máquina cultural – Maestras, traductores y vanguardistas. Buenos Aires : Ariel, 1998; GONZÁLEZ-
10
enquanto antologista era visto segundo uma estética kantiana
3
, tornando-se figura central.
As duas visões do intelectual permitem captar as nuances do debate, em que várias
manifestações de poder e conhecimento são travadas, sinalizando o esgotamento de um
modelo e a encenação de outras formas de lidar com a cultura
4
, especialmente a literatura.
O que se pretende é evidenciar uma “estratégia” cultural, mais do que a identificação de um
objeto particular, pondo em destaque a noção de “passagem”, entendida enquanto ponte,
articuladora, de modelos culturais diferenciados.
STEPHAN, Beatriz. Fundaciones : Canon, historia y cultura nacional – La historiografia literaria del
liberalismo hispanoamericano del siglo XIX. 2ª ed., corregida y aumentada. Madrid : Iberoamericana –
Vervuert, 2002; LUDMER, Josefina (comp.). Las culturas de fin de siglo en América Latina. Rosario :
Beatriz Viterbo Editora, 1994 (Estudios Culturales). Para uma perspectiva mais contemporânea, os trabalhos
de MAN, Paul de. La resistencia a la teoria. Trad. de Elena Elorriaga y Oriol Francés. Madrid : Visor
Distribuiciones, 1990 e ULMER, Gregory L. Applied Grammatology – Post(e)-Pedagogy from Jacques
Derrida to Joseph Beuys. Baltimore and London : Johns Hopkins Press Ltd., 1985. No contexto brasileiro, a
respeito da constituição de um olhar narrativo (constituinte e constituído), consultar SUSSEKIND, Flora. Tal
Brasil, qual romance? Rio de Janeiro : Achiamé, 1984 e especialmente O Brasil não é longe daqui – O
narrador, a viagem. São Paulo : Cia. das Letras, 1990.
3
Veja-se, a título de exemplificação, a maneira com que Kant compreende a noção de conhecimento : “Para
que um conhecimento possua realidade objectiva, isto é, se refira a um objecto e nele encontre sentido e
significado, deverá o objecto poder, de qualquer maneira, ser dado. Sem isto os conceitos são vazios e, se é
certo que por seu intermédio se pensou, nada realmente se conheceu mediante este pensamento, apenas se
jogou com representações.” In KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos
Santos e
Alexandre Fradique Morujão. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p.193.
4
Em “Beyond national culture?”, Gregory Jusdanis aponta para a idéia de passagem da modernidade para
outro momento através da noção de uma cultura em declínio. “The demise of culture would certainly signal
the conclusion of modernity. If modernity is understood as a ceaseless differentiation of society, the
progressive separation of human activities into sef-enclosed domains, culture is certainly one of the most
exalted and the one that allows us to comprehend these changes, enabling our very thinking. From another
perspective these questions reveal perhaps our own confusion; culture can mean anything. (...)/ The idea of
culture as a grid of institutions marking off one society from another came to signify not just a belief-system
but the totality of social life. Culture as a way of life (...)”. In Stanford Humanities Review. V.6.1,
California : Stanford, 1998, pp.111 e 114 (Disciplining Literature).
Também Terry Eagleton, em recente artigo, discute os efeitos do predomínio de uma idéia de cultura forjada a
partir de uma “nacionalidade”: “A chamada “cultura” começou a espalhar-se em todas as direções na década
de 1980. Como um endereço da moda ou uma caixa de uísque Glenfiddich. Todo mundo queria um pouco
dela. Onde antes “cultura” significava Bach ou Balzac, ela se ampliou para incluir a cultura da praia, a cultura
policial, a cultura dos surdos, a cultura da Microsoft, a cultura gay, a cultura dos pára-quedistas e assim por
diante. A cultura deixou de ser apenas obras de arte e passou a abarcar um modo de vida específico”. Segundo
o crítico, a institucinalização e ampliação do conceito de cultura deixa por escapar precisamente o “habitual e
o afetivo, o “vivido” e o sensorial, algo ao qual o Banco Mundial não dá importância”, para acusar a cultura
do capital, a cultura de massa, os bens de consumo, concluindo que “Todos os seres humanos nascem
prematuros e, se a cultura (sob a forma de linguagem, parentesco, práticas de cuidar uns dos outros e assim
por diante) não entrar em ação rapidamente para preencher esse vazio, morrem antes do tempo. Assim, se a
cultura é o sinal da dianteira que temos em relação a outros animais, ela é também sinal da nossa fraqueza. É
sobre esse alicerce dessa vulnerabilidade comum, e não das diferenças culturais, que qualquer política decente
precisa ser construída.” In “Balzac encontra Beckham”. Mais! da Folha de São Paulo de 5 de dezembro de
2004. A ilustração do artigo é a do “Cartaz com o rosto do jogador de futebol inglês David Beckham afixado
em ônibus em Xangai (China)”. Esse cartaz está na lateral do ônibus, preenchendo o espaço de alto a baixo.
11
Creio que as antologias podem ser periodizadas, basicamente, em dois
momentos críticos. O primeiro deles, marcado pela atitude rupturista, focaliza o
estabelecimento das relações entre as vanguardas e o modernismo europeu e latino-
americano, verificando, principalmente, como se arma uma antologia, de que forma os
escritores (se) traduzem (n)o processo de estabelecimento das políticas culturais do
continente sul. Para tanto, a antologia funciona como operadora, catalizadora das passagens
de uma percepção de mundo absoluto para um outro, mais fragmentado e diluído. Em
contrapartida, a antologia pode ser lida através da noção do neutro barthesiano
5
. Nela, uma
força aparentemente passiva (a antologia enquanto repositório/depósito de textos
recortados) é, na verdade, ativa (neutralizadora de outras forças).
O segundo momento busca analisar, no tardo modernismo, de que forma a
mutação do eixo Paris-Nova York no campo das artes acaba por interferir no debate latino-
americano, em especial, o brasileiro. Neste caso, creio que uma das melhores estratégias
para analisar as políticas culturais da guerra fria para o nosso continente seja através de
revistas e, em especial, a revista Anhembi
6
, por representar um importante campo de
concentração cultural no Brasil, bem como pela pouca atenção até então recebida pela
crítica.
Todo o debate em torno às mudanças culturais está atravessado pela
problemática de uma “ontologia do presente”, segundo Michel Foucault, em que se revisa
um conceito de modernidade e, ao mesmo tempo, em que se busca verificar como esta
Na parte superior, onte está o “top” do chapéu, a imagem é cortada e substituída pelos ocupantes do veículo.
A fotografia é de Liu Jin de 19 de junho de 2003 /France Presse.
5
Para Roland Barthes, o conceito de neutro é longamente explorado em um curso ministrado no Collège de
France em 1978. Todo seu registro encontra-se em O neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo :
Martins Fontes, 2003 (Coleção Roland Barthes).
6
Debatendo o papel das revistas culturais na América Latina, Mabel Moraña afirma que “Desde el contexto
actual, sería imposible emprender una reflexión productiva sobre la función de la cultura y particularmente
sobre el papel mediador de las revistas literarias y culturales de América Latina sin atender a dos ejes
principales: el primero, tiene que ver con la larga tradición continental, que reserva a la prensa periódica y
luego a las revistas, tanto académicas como independientes, una función principal en el diseño de las culturas
nacionales y transnacionales, y en el asentamiento de las bases ideológicas y culturales que conforman la
noción de ciudadanía y, más ampliamente, regulan el funcionamento de la sociedad civil. En segundo lugar,
sería imposible no reconocer los múltiples y complejos procesos de resignficación cultural que están teniendo
lugar ante nuestro ojos en el contexto de globalización, y que desde hace décadas están modificando
sustancialmente el campo cultural.”, apontando para a necessidade de uma reinserção do local em nível
transnacional, o que obrigaria, ao mesmo tempo, a redefinição das agendas locais, regionais, setoriais, a fim
de enfrentar os efeitos homogeneizantes da “superintegración planetaria”. “Revistas culturales y mediación
letrada en América Latina” In Travessia – Revista de Literatura. n.40/Outra Travessia n.1, Ilha de Santa
12
herança modernista (da máscara) se traduz aos poucos em uma poética da
desmaterialização (fantasma), marcando a passagem de uma percepção estética para um
desafio ético, do pathos. Assim, parece-me válido observar de que forma a
Vanguarda/Modernismo seleciona seu diálogo, organiza sua antologia e reflete sobre ela.
Seja em Guillaume Apollinaire, Stéphane Mallarmé, Mário de Andrade, Ronald de
Carvalho, Manuel Bandeira, Oliverio Girondo, a escolha antológica usa como arma sua
estratégia de diálogo, configurando assim sua política cultural seletiva e letrada. Neste
sentido, o primeiro momento demarca a forte influência francesa, enquanto o segundo
revela a investida americana de maneira contumaz.
O trabalho ainda apresenta a mudança de perspectivas quanto à percepção do
moderno que, segundo Gilles Deleuze, poderia ser marcado por uma imagem-movimento
transladada em imagem-tempo. A estas duas imagens, corresponde a reflexão iniciada com
o que denomino de “Da máscara ao fantasma”. Mas também, este processo estará marcado
em todo o percurso desta pesquisa, na tentativa de sinalizar, através da herança modernista,
como estas estratégias funcionam, por um lado, na tradução do moderno através de uma
pedagogia (oficialização, padronização, escolarização) e, por outro, na necessidade de
delimitar a modernidade como espaço independente, autônomo.
No caso da antologia, pretendo verificar como se acentua uma política para a
América Latina, em que não raro o Brasil surge como parte amputada/ausente do processo,
ou, mesmo quando participante, aparece questionado, subordinado a uma política externa.
Detenho-me, portanto, nas principais antologias que reúnem contos de escritores hispano e
latino-americanos para nelas analisar esse movimento.
O desafio deste trabalho é também o de não elaborar uma crítica tradicional,
historicista, para fazer valer, neste recorte, o procedimento pós-histórico, pós-nacional, pós-
pedagógico. Sendo assim, a reflexão busca delimitar o debate e demarcar uma política, ao
mesmo tempo em que circunscreve o espaço da crítica como espaço da transgressão, da
atribuição errônea, o que poderia fazer deste exercício uma delimitação de uma teorização
da própria operação crítica, em que produção artística e crítica se equivaleriam
7
.
Catarina : Curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, 2º semestre de
2003, pp.67-73.
7
Há diversas posicões, evidentemente. No mesmo número da revista October em que Susan Buck-Morss
publica “The City as Dreamworld and Catastrophe”, o crítico Frazer Ward afirma que as relações entre a neo-
vanguarda e a vanguarda histórica têm negligenciado o principal meio dessas relações, ou seja, a
13
Os dois momentos enfocados, e suas passagens, podem ser vistos,
igualmente, como da transferência de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do
controle, em que as maneiras de percepção/dominação do mundo se alteram, intensificadas
pelo projeto homogeinizador do consumismo, e das leituras educacionais, em que a
estratégia do “esfacelamento” de um projeto cultural encontra respaldo na substituição de
valores até então consagrados.
Daí, a imagem presente de um quadro, uma foto, que se quer repetir, mas
diferindo – a metáfora deste espaço em movimento que insiste em se mostrar tempo, de um
mundo que se desvanece diante de nossos olhos, mas que, ainda, se reconstrói neste
cinematógrafo de letras.
“publicidade”: “Publicity is referred to in this context as the medium, not only for art, bur for all those
practices of intervention in economies of cultural production and reception that go to realize conceptions of
the public sphere. Publicity in this sense includes not only the familiar forms of corporate advertising and
state propaganda, but such apparently diverse cultural practices as, for example: museum exhibitions;
Conceptually basead art, to the extent that it interrogates the intitucional construction of subjects; academic
journals and trade union publications, to the extent that they constitute reading publics(...)”. Para Frazer, as
instituições culturais não podem ser vistas isoladamente, incluindo aí o campo da arte, porém o entendimento
crítico das contradições histórico-sociais não poderiam ter prioridade sobre os trabalhos de arte, e cita, como
exemplo, “critics had always understood better than the Dadaists what their work was dealing with.” O estudo
de Frazer é importante ao mostrar o vínculo institucional da crítica/obra de arte, ao mesmo tempo em que
elabora uma crítica a certos pontos do modelo do debate crítico-racional proposto por Jürgen Habermas.
“The Hautend Museum : Institutional Critique and Publicity”. In October, n.73, Cambridge : MIT Press,
Summer, 1995, p72.
A respeito do papel da crítica nos dias atuais, consultar também a análise de MOREIRAS, Alberto. A
exaustão da diferença – A política dos estudos culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de
Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte : UFMG, 2001.
CAPÍTULO I
Este capítulo tem como objetivo pontuar alguns questionamentos da tese,
problematizando posicionamentos teóricos acerca da literatura e da crítica literária,
especialmente no que tange a transformações sofridas no campo da percepção da própria
literatura, tradicionalmente vista enquanto materialidade duradoura, permanente. Uma das
postulações deste trabalho é o de propor uma leitura da literatura enquanto cartografia, ao
mesmo tempo em que busca pôr em cena o debate sobre o moderno e o modernismo,
preparando espaço para as discussões a respeito da institucionalização desse saber
modernista, bem como para as reflexões em torno da antologia, o que pode ser lido como
visualização de políticas culturais.
1.1 - DA MÁSCARA AO FANTASMA
“- Onde estou? No meio do nada...”
Amarcord - Frederico Fellini
Na época de Homero, a humanidade oferecia-
se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora,
ela se transforma em espetáculo para si
mesma.
Walter Benjamin
A enunciação de Peter Sloterdijk, em um de seus recentes trabalhos, de que
“O que nos restou no lugar dos sábios são seus escritos, com seu brilho áspero e sua
15
crescente obscuridade; [que] ainda poderiam ser lidos, se ao menos os homens soubessem
por que ainda deveriam lê-los”
8
, aponta para algumas questões, objeto deste trabalho.
A primeira delas, mais geral e que atravessa todo o trajeto, é a problemática
do presente e sua relação com a literatura
9
. Esta relação será encarada menos como objeto
em si do debate e mais como estabelecimento de conexões, o que também afeta a própria
noção de literatura. Dessa forma, intento rever alguns de seus conceitos, geralmente
implícitos e implicados em inúmeras operações de leitura, revelando imagens que dela se
construíram, especialmente na primeira metade do século XX.
Decorrente desta, a outra questão que se coloca é a das implicações dessa
construção, ou seja, como a literatura, ao se identificar com uma imagem determinada, se
vincula como meio de um saber. Nesse sentido, pretendo verificar como o vínculo
literatura-imagem-identidade se institucionaliza - vira um fim – e passa a ser o programa
oficial de determinadas agências
10
. Uma delas, talvez a principal, a escola, através da
incorporação de mecanismos de modernização da literatura.
11
8
SLOTERDIKJ, Peter. Regras para o parque humano. Uma resposta à carta de Heidegger sobre o
humanisno. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo : Estação Liberdade, 2000, p. 56.
9
Esta relação do presente com a literatura pode ser lida a partir das idéias desenvolvidas por Paolo Virno em
Il ricordo del presente – saggio sul tempo storico, especialmente as de indiscernibilidade entre presente e
passado, do fenômeno do “déjà vu”, lembrando Henri Bergson, bem como seu estudo sobre “Pré-história
contemporânea”, onde situa a atração exercida pelo passado como um movimento irresistível, identificado
também como símbolo mítico-ritual. Esta pré-história coincide com a situação de “desorientação” e
“indecisão”, o que oportunizaria uma facoltà (competência lingüística, força-trabalho, memória...), necessária
para o desenvolvimento de um trabalho. In Torino : Bollati Boringhieri Editore, 1999, pp.9-41 e 137-141.
Outra forma de visualizar esta problemática é se perguntar, com Gilles Deleuze, a respeito de Foucault, “O
que resta então, senão passar por todas essas mortes [Deleuze está tratando da questão das dobras ou da
“subjetivação”] que precedem o grande limite da própria morte, e que continuam ainda depois? A vida
consiste apenas em tomar seu lugar, todos os seus lugares, no cortejo de um “Morre-se”.” In Foucault. Trad.
Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo : Brasiliense, 1988, p.102.
Na abordagem do presente elaborada por Derrida, a propósito da noção de “out of joint” hamletiano, o crítico
desconstrucionista aponta para uma espécie de “não-contemporaneidade do tempo presente a ele mesmo” a
fim de tratar da questão do “fantasma”, assinalando o caráter disjuntivo que este presente assume. Para
Derrida, “o presente é o que passa, o presente se passa e se demora nessa passagem transitória (Weile), no vai-
e-vem, entre o que vai e o que vem, no meio do que parte e do que chega, na articulação entre o que se
ausenta e o que se apresenta.”. Finalmente, encaminha sua reflexão para uma das perguntas que lhe valeram
um livro todo: “É possível dar o que não se tem?” In Espectros de Marx – O estado da dívida, o trabalho
do luto e a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1994, pp. 43 e
45.
10
Em estudos recentes, William Egginton e Peter Gilgen, ao apresentarem uma introdução ao debate sobre o
ensino de literatura na era da pós-disciplinariedade, apontam um dado em comum, também foco deste
trabalho, o processo de institucionalização da literatura: “The commom assumption of the articles in this
volume is that literature and its study exist as disciplines, and as disciplines they are embedded in a particular
history. To have a grasp of how to face the changes these disciplines, and those of us working within them,
are undergoing, we must take account of these histories, and thereby learn how literature was disciplined, and
at the same time born of its discipline.” In “Disciplining literature in the age of postdisciplinarity: an
16
A segunda noção nos remete à questão da constituição do “objeto”, o qual,
antes mesmo de estar definido, já construído, nos reenvia à própria noção de “resto”,
“rastro”, daquilo que ficou marcado no terreno das ciências humanas, em especial na área
das artes, da palavra. Um rastro que se deixou (se quis deixar) e que se faz. Daí, a questão
implícita de uma abordagem da modernidade como “algo” ainda a ser formulado,
preenchido, decorrente de seu próprio caráter efêmero. Ou seja, a modernidade vista como
um artefato que se constrói no próprio percurso da escrita, no processo da pretensa
“revisão” de conceitos, onde o que importa é a montagem dos planos, a disposição dos
“objetos”, a visão em detrimento do ponto de vista. De outro modo, poderia dizer : o que
ainda não se leu, não se formulou, não se esgotou. É a exploração da própria “falta” como
elemento constitutivo seu. Ou ainda, se a modernidade é um movimento de esgotamento, o
que ainda poderia dela ser retirado?
Um terceiro aspecto, ainda ligado à afirmação de Sloterdijk, é a noção de
“finalidade” da literatura. A questão que se formula é a de como se dá a passagem do
“dever ler”, “o que se ler” para a questão “por que ler”. Para tanto, parece-me necessário
problematizar o modelo de pedagogia que vigorou, em especial no Brasil, no período
proposto. Esta questão, imbricada nas anteriores, também solicita um debate em torno não
só da questão da lei, como também da necessidade de se rever o conceito de “ficção” nela
introduction”. Stanford Humanities Review. Op. cit. p.viii. O diagnóstico inicial aponta não só a tendência
obsessiva dos estudos literários com a idéia de “origem”, como indica o processo de “ossificação” de que
sofreu esta área, quando os estudantes parecem falar de tudo, “já que tudo virou “cultura” ”, mas não de
literatura. Além da propriedade com que o tema de estudo deva ser abordado, a pergunta que também pode
guiar este percurso, e feita pelos críticos, é “How does one acknowledge a history without being enslaved by
it?” (Id. Ibid., p.xiii).
11
A reflexão de Hans Ulrich Gumbrecht é elucidativa desta questão em seu livro Modernização dos
sentidos. No início de “Espaços de tempos pós-modernos”, afirma: “I – Talvez a filosofia e as humanidades
(em total contraposição à possível expectativa de que elas demarquem as linhas de frente do pensamento
precursor) sejam os últimos bastiões dentro dos quais, já no final do século XX, o pensamento pós-moderno
ainda não se tornou auto-evidente – ou precisa se impor contra um acirrado combate de retirada do
pensamento “racional” moderno. Se precisou ser assim para ele, então esse atraso poderia ter sido
condicionado pelo hábito do pensamento acadêmico remunerado de somente refletir sobre o pensamento
cotidiano de maneira reativa.
De qualquer modo, durante as últimas décadas, entraram em cena formas leves e não-dramáticas do
pensamento cotidiano, frente às quais as teorias acadêmico-institucionalizadas sobre o pensamento
geralmente mostram-se perplexas. Somente os filósofos e os humanistas parecem (juntamente com alguns
políticos) ter recuado, assustados, diante dessa mudança no estilo de pensar: é como se eles tivessem fechado
os olhos de repente diante do novo observado apenas por um instante.” Trad. Lawrence Flores Pereira. São
Paulo : 34, 1998, p. 275.
17
presente. A literatura estaria, assim, vinculada a um “dever ser” que necessariamente
carregava um debate implícito de ficção.
Todas as questões anteriores, atravessadas pela questão do intelectual ora
como legislador ora como intérprete, nela se fincam. Daí, não menos importante, a questão
de como um outro modelo, uma outra abordagem é possível no campo da literatura e do
ensino. Como ler a partir de uma perspectiva pós-moderna, pós-pedagógica? Como ler a
partir da antologia?
A idéia de que o século XIX e parte do século XX incorporaram um debate
teórico a partir da noção de uma estética ainda ligada à materialidade do corpus literário,
cujo centro gravitava em torno da figura do intelectual enquanto legislador, poderia ser
encontrada no esboço conceitual de literatura que advém, precisamente, da possibilidade de
sua reprodução e, portanto, de sua continuidade. O debate que Walter Benjamin instaura
com “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”
12
é significativo para o
pensamento modernista, bem como para o impasse por ele mesmo gerado: uma auto-
alienação da humanidade que se torna sua própria destruição, vivida como prazer estético.
É a estetização da política ou a politização da arte, conclui o pensador de Origem do
drama barroco alemão. Este impasse representa o pensamento modernista, na medida em
que, ao ver uma arte que se desmaterializa diante de seus olhos, responde com outro
impasse. Ora, todo o percurso do pensamento do século XIX pressupunha uma arte do
visível, da materialidade, tangível, em última instância. A obra de arte que perde sua aura
torna-se, na medida em que avançam as “soluções” do pensamento artístico, cada vez mais
intangível. A questão pode ser vista por outro ângulo: as propostas para se pensar a obra de
arte já não dão conta da operação que se segue
13
. A obra de arte não mais se sustenta como
objeto único, concreto, palpável; perde seu estatuto ao mudar de posição, ao não mais se
deixar perceber, captar. O pensamento modernista ainda privilegia o debate como o “espaço
do corpo”. Benjamin, falando sobre a experiência surrealista, comenta:
12
BENJAMIN, Walter. In Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1987, pp 165-196. V. I.
13
Para uma leitura da arte em seu processo de reconfiguração entre Europa e América Latina, consultar:
ANTELO, Raúl. María con Marcel – Duchamp en los trópicos. Buenos Aires : Siglo XXI, 2006.
18
Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem,
dentro dela [a physis], tão profundamente que todas as tensões
revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e
todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões
revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-
se(...)
14
.
Benjamin já pressente, na formulação da imagem contra o corpo, ou da imagem enquanto
corpo
15
, que a modernidade não se opera nem por continuidade, muito menos por
materialização : “(...) em toda parte em que uma ação produz a imagem a partir de si
mesma e é essa imagem, extrai para si essa imagem e a devora, em que a própria
proximidade deixa de ser vista, aí se abre espaço de imagens que procuramos, o mundo em
sua atualidade completa e multidimensional” (p.34). Diria então que Benjamin, diante do
“último instantâneo”, vislumbra o clarão, está às voltas com ele. Mas resolve a análise
ainda dentro do âmbito da máscara, está diante de algo que pudesse ser visualizado, ou seja,
a pergunta que volta : é reproduzível ou não? Pode se materializar? Dessa forma, a questão
gira em torno de uma decisão política, a arte tornada um dos meios preferenciais dessa
14
BENJAMIN, Walter. “O surrealismo – o último instantâneo da inteligência européia”. In Magia e técnica,
arte e política – Ensaios sobre literatura e história da cultura. Op. Cit., p.35.
15
Mesmo o livro do crítico cubano Servero Sarduy, de 1969, traz esta metáfora da escritura sobre um corpo
como sugestão de uma materialidade passível de ser localizada/vista/lida. Em Escrito sobre um corpo. Trad.
Lígia Chiappini Moraes Leite e Lúcia Teixeira Wisnik. São Paulo : Ed. Perspectiva, 1979, 152pp. (Coleção
Debates, n.122). Para a perspectiva deste trabalho, é importante salientar a relação entre corpo e instituição, o
corpo enquanto instituição, especialmente no período moderno. Na leitura do historiador e crítico de arte E.
H. Gombrich, em Meditações sobre um cavalinho de pau, a obra de arte não pode ser entendida sem a
mediação (“medi-t-ação”) do seu criador, como se pode notar neste início de reflexão em “A psicanálise e a
história da arte” : “Nós, historiadores, sempre poderíamos provar aos senhores que a informação de que
precisam não é para ser possuída, e os senhores poderão replicar que, sem essa informação essencial, o
melhor que poderíamos fazer era arrumar a mala e partir. Assim, repito a pergunta : isso realmente importa
tanto, se sabemos o que a obra de arte significa para o artista? É claro que importa numa hipótese, e apenas
numa: a de que esse significado particular, pessoal e psicológico da pintura seja o único verdadeiro, o
significado real – o significado, portanto, que ele também transmite, senão ao consciente, pelo menos ao
insconsciente do espectador”. Mais adiante, explicando porque o “insight” psicanalítico é tão valioso para os
historiadores, Gombrich comenta que “A arte madura somente pode crescer dentro da “instituição”, que é
como eu a chamo: no contexto social da atitude estética.”, de onde se pode inferir que a obra de arte possa ser
lida enquanto uma materialidade, neste caso, corporificada, instituída (o crítico, o intelectual, aqui defendido
como um “artista frustrado”, p.40). In Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre a
teoria da arte. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1999, pp.
31 e 36. A noção de arte enquanto instituição é reforçada no ensaio de abertura do livro, quando o crítico
afirma “É que esse estranho recinto que chamamos “arte” lembra uma galeria de espelhos ou uma abóbada
ressonante. Cada forma conjura milhares de lembranças e pós-imagens. Mais rapidamente uma imagem é
apresentada como arte do que, por esse mesmo ato, é criado definitivamente um novo quadro de referência
do qual ela não pode escapar. Torna-se parte de uma instituição tão seguramente quanto o brinquedo no
quarto de criança.” (“Meditações sobre um cavalinho de pau ou as raízes da forma artística”, p.11, grifos
meus).
19
decisão. Importa destacar que o crítico está diante do que será a grande aventura do século
XX: o debate sobre a imagem: inquietude e invenção de lugares para essa inquietude
16
.
Neste ponto, há que diferenciar, na crítica brasileira, praticamente dois
procedimentos aparentemente opostos: o de querer abarcar uma imagem totalizadora,
integradora do conteúdo literário produzido e o de conceber a atividade crítica, e portanto a
literária, como resultado de uma percepção impossível de dar conta da totalidade. À
primeira concepção deve-se uma perspectiva do “olhar”, que estaria sempre restituindo,
incluindo o que é do patrimônio. Tal perspetiva pode ser exemplificada com a do
“crocodilo enfeitiçado”, que Roger Caillois utiliza para debater o modelo de crítica na
França
17
. Conceito desenvolvido a partir de publicações quase simultâneas em periódicos
brasileiros e franceses, como no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1947, e Les
cahiers de la pléiade em 1948, configurando seu futuro livro como latino-americano
18
.
Contrastando com esta perspectiva, poderíamos pensar um outro campo conceitual, o da
“visão”, como contrário (mas não de todo excludente) da primeira. Nesse sentido, a visão
trataria de problematizar a constituição do “olhar” e de que maneira ele nos conforma.
16
Segundo formulação de DIDI-HUBERMAN, Georges. Lo que vemos, lo que nos mira. Trad. Horacio
Pons. Buenos Aires : Manantial, 1997, pp.49-76, em especial p.63. Há tradução brasileira pela Ed. 34 Letras.
17
Caillois refuta a predição oracular: “Mais l’histoire continue si bien à démentir les prévisions des oracles
qualifiés qu’il devient difficile de soutenir qu’elles annonçaient la vérité, même la vérité dissimulée sous le
travesti troumpeur des apparences.” Assim, distingue três tipos de crítica: “Celle-ci, convenablement
employée, conduisait à prévoir les événements exactement comme ils se sont passés. On le démontre sans
peine maintenant que les événements sont en effet passés. (...) Plus tard un second auteur aurait redressé les
erreurs du premier enseignant comment la véritable graphologie conduisait à la bonne prédiction et déduisant
celle-ci sans tarder des documents à sa portée. (...)/ Un troisième théoricien déteste une certaine race
d’hommes. (...) Pourtant il n’arrive pas à distinguer leur intervention dans quelque catastrophe où l’on relève
au contraire l’action de gens dont les narines sont irréprochables et l’epiderme de la bonne nuance.” A
sintonia com a crítica que então se produz no Brasil e América Latina parece seguir passos muitos próximos,
de onde a imagem do crocodilo (o mais destemido dos animais) não pareça ser casual. “Le Crocodile
ensorcelé”. In Les cahiers de la pléiade. Paris : Gallimard, Hiver, 1948, pp.100-101.
18
Caillois desenvolve os textos sobre o esgotamento da literatura, semelhantes ao que Borges escreverá nesta
época. Os textos esparsos serão reunidos sob o nome de Babel em 1948, precedidos de Vocabulário estético,
de 1946. Este último aborda a experiência surrealista de 1938, quando seus integrantes publicam o Dicionário
do Surrealismo, estabelecendo um diálogo que se espraia em terras longínquas. No prefácio de 1978, Caillois
afirma: “Vocabulaire esthétique a été publié em 1946. Les textes qui le composent sont une préfiguration
polémique de Babel, paru deux ans plus tard. Ils morigènent et interpellent plus souvent qu’ils définissent et
analysent. Leur ton est vif, parfois proche de l’invenctive. Celui de Babel n’est plus mesuré qu’un apparence./
(...) Cependant, il ne conviendrait pas de prendre, par rapport à Babel, mês livres récents pour le signe d’une
deception. A l’époque, et même auparavant, l’originalité de l’espèce humaine me paraissait sensiblement plus
limitée que la tribu ne se plaît à l’imaginer. Dans “La mante religieuse”, par exemple, ou dans “Mimétisme et
psychasthénie légendaire”, je m’étais appliqué à rechercher ce qui émerge ou subsiste en elle d’une plus vaste,
secrète et indestructible solidarité.”. In CAILLOIS, Roger. Babel. Paris : Gallimard, 1978, pp.13 e 14.
20
Para tanto, há que se observar a questão da “distância” na literatura brasileira
como elemento constitutivo seu. Como afirma Flora Sussekind, não ser contemporâneo ao
nosso presente, reinventando um passado para a literatura, constituindo seu próprio
objeto
19
. Certamente uma teoria do “estranhamento” é fundamental para captar as nuances
e desacertos da crítica ao longo dos anos. Afinal, sempre se trata, na perspectiva da
constituição de uma visão, de um acerto de contas com esse passado. Ou seja, não
privilegiar o uso(ário) da língua, mas também analisar a sua política, verificando de que
forma a idéia de literatura brasileira foi devedora aos conceitos de nação e de identidade, ao
mesmo tempo em que procurava discriminar, hierarquizando, o escritor e a crítica. Nessa
operação, o procedimento de divisão transparece nos mais diferentes meios: na publicação
periodística, no livro, nas antologias escolares e seus respectivos programas, constituindo,
enfim, suas estratégias culturais.
Tão importante quanto discutir os pontos obscuros, “obtusos”, é perceber
este conjunto atravessado pelo conceito de tempo
20
. À medida que se acredita na literatura
19
A escritora de Literatura e vida literária, ao propor a construção do olhar do narrador na ficção brasileira,
substitui a idéia de “origem” por um “começo histórico”, desenvolvendo argutamente a noção de
“distanciamento”, quando o narrador e o cartógrafo parecem se confundir: “Diferem os perfis, mas o diálogo
persistente com o relato de viagem e o paisagismo (...) parece sugerir, entre outras coisas, que essas figuras de
narrador necessitaram obrigatoriamente de um olhar-de-fora e de uma exibição – consciente ou não – de certa
“sensação de não estar de todo” na sua composição. Necessidade que funciona como uma espécie de
indicador prévio de deslocamento, distância, desenraizamento, marcas registradas (...) da escrita de ficção
brasileira”. In O Brasil não é longe daqui. Op. cit., pp. 20 e 21. Essa distância, para Alain Badiou, é
constituinte do real, (tratando de Mallarmé e de Malevich): (...)en vez de tratar lo real como identidad, se lo
trata desde el principio como distancia. La cuestion real/semblante no se resolverá mediante uma depuración
que aísle lo real, sino comprendiendo que la distancia misma es real.” In BADIOU, Alain. El siglo. Trad.
Horacio Pons. Buenos Aires : Manantial, 2005, p.79.
20
Para uma introdução a este assunto, consultar ALLIEZ, Eric. Tempos capitais – Relatos da conquista do
tempo. Trad. Maria Helena Rouanet. São Paulo : Siciliano, 1991. Gilles Deleuze, ao prefaciar o livro, afirma
que não se trata de concepções do tempo, mas de “condutas” do tempo, como “número do movimento
extensivo do mundo”, chegando a propor uma inversão – partir do tempo derivado para visualizar o
originário, através de outra conduta: a da intencionalidade. “A possibilidade de instaurar uma “intenção” que
restitui o originário depende de novos andamentos que mobilizem as faculdades da alma e lhes inspirem
outros ritmos: não apenas a memória, mas a percepção, a imaginação, o entendimento. Que nova aberração
surgirá daí?”, p.14.
A concepção de tempo é fundamental porque revela, igualmente, um tratamento da história. Uma das grandes
influências do pensamento histórico, literário, foi o trabalho de Gustave Lanson. Um exemplo de seu Manuel
Illustré d’Histoire de la Littérature Française [1895], a propósito de Paul Valéry: “De quoi demain sera-t-
il fait? Il n’est pas au pouvoir de l’historien de le dire. Tout au plus peut-il marquer le sens de l’evolution qui
s’accomplit depuis bientôt deux siècles, et préciser les conditions du présent. Qui voudra essaiera d’en
incluire l’avenir. Mais celui-là devra compter avec l’accident toujours possible du génie qui, sans doute ne
crée rien de rien, mais transforme et multiplie au delà de toute prévision, de toute imagination.” LANSON,
Gustave; TUFFRAU, P. Manuel Illustré d’Histoire de la Littérature Française. Paris-Buenos Aires :
Librairie Hachette, 1943, p.766, grifos meus. Vale lembrar que o modelo de Lanson é o da periodização
literária, indo da Idade Média ao século XIX. Consultar também o “Tableaux chronologiques des écrivains et
21
como patrimônio, um bem meramente acumulativo, faz-se crédito a uma determinada
concepção de tempo, no caso, uma concepção linear e progressiva. De outro modo, poderia
superpor-lhe uma outra, mais complexa, menos acumulativa e mais transversal. Afinal, um
outro modo de conceber a literatura e, portanto, a sua ficção, é o de rever o papel do
escritor e da escrita que dele se fez. Perceber o escritor não como instituição, mas como
errância é reiventá-lo a partir de uma perspectiva híbrida, de uma concepção que rearma o
campo e não apenas o “resgata” de uma determinada situação.
À primeira situação responde uma crítica que monumentaliza o escritor e
seu escrito, ou seja, uma crítica da máscara
21
, no sentido de querer dar a forma, um rosto a
ela (em última instância, que consagra o nome do “autor” e que não raro congela a “obra”);
à segunda, proponho uma figuração fantasmática
22
, em que os contornos não são mais
nítidos, sem reposição “devida” – um semblante que se inventa – pura energia. A essa
des oeuvres”, incluído no final do volume. No verso da capa de rosto, encontra-se a publicidade de vários
livros, de uma série de “Histoire des Littératures” (a francesa, de Lanson, a latina, de René Pichon, a alemã,
de A. Bossert, a inglesa, de E. Legouis e outra de A. Filon, além de anunciar o Manuel bibliographique de
la Littérature française moderne, de G. Lanson). Verificar, igualmente de Lanson, Conseils sur l’art
d’écrire – principles de composition et de style. 15ªed. Paris : Librairie Hachette, s/d, destinado a “l’usage
des éléves des lycées et collèges et de l’enseignement primaire supérieur”, como se lê logo abaixo do título.
21
Roland Barthes, em “La Rochefoucauld: ‘Reflexões ou sentenças e máximas’ ” recorda que “Entre as
irrelia (virtudes) e as realia (paixões, contingências, ações), existe um relacionamento de máscara, uma
mascarando as outras; a máscara, como se sabe, constitui um grande tema clássico (a língua não se referia
então a máscara e sim a véu ou arrebiques); toda a segunda metade do século XVII foi atormentada pela
ambigüidade dos signos. De que maneira ler o homem? A tragédia racineana é repleta desta incerteza: as
fisionomias e as condutas constituem sinais equívocos, e esta duplicidade torna o mundo (o mundano) de tal
forma acabrunhador que renunciar a ele equivale a esquivar-se à intolerável inexatidão do código humano.” In
Novos ensaios críticos e O grau zero da escritura. Trad. Heloysa de Lima Dantas e Anne Arnichand e
Álvaro Lorencini. SP : Cultrix, 1974, p. 20.
22
Em uma crônica datada de 2 de julho de 1939 e publicada no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, lemos
com o escritor e crítico Mário de Andrade uma concepção de arte e de crítica que, apesar do título, “A fábrica
de fantasmas”, procura dar uma feição mais “concreta”, menos irreal, do que tem sido o seu exercício no
Brasil. A crônica parte da discussão da História da literatura brasileira de Bezerra de Freitas para criticar-
lhe a “vagueza de generalização histórica, e também (...)preocupação de descrever os movimentos intelectuais
franceses. Se é certo que em grande parte a história da nossa ficção está ligada às escolas francesas, não vejo
necessidade em que sejam descritas e estudadas numa História da literatura brasileira (...)”. O próprio Mário
de Andrade detecta os problemas gerais da crítica brasileira (“enumerações biográficas e crítica de autores,
quando muito antecedidas, nos livros bem arquitetados, como no de Sílvio Romero, de considerações gerais.
Porém, mesmo estas considerações gerais se confinam demasiadamente ao condicionamento espiritual dos
indivíduos e das escolas, influências sofridas, imitações realizadas, orientação intelectual. Ora, afinal das
contas o que é arte? o que são sensações estéticas? Não é absolutamente uma idéia, não é jamais um
entrecho de romance ou o conceito contido num soneto que são arte e nos dão sensações estéticas, mas a
forma e a técnica em que essas idéias, esses entrechos e conceitos se expressam.” (p.72). Para o escritor de
Macunaíma, a arte estaria menos para uma sensação de leitura/de produção e mais para uma “forma” e uma
“técnica” que poderiam ser lidas ainda como o predomínio de uma tendência para uma crítica da
“materialidade” estética, ou da máscara. In Vida literária. São Paulo : Hucitec : Edusp, 1993, (Coleção
Marioandradiando I), pp.70 e 72, grifos meus.
22
proposta híbrida – fantasmática, a imagem reivindica a morte, e a literatura é encarada não
mais como corpo concreto, mas como malha ficcional
23
, constituída a partir de resíduos,
das relíquias do passado.
A literatura assim entendida, como uma presença de uma ausência, pode ser
captada a partir de uma experiência hiperestética, e não mais apenas estética
24
. De alguma
maneira, aos dois modelos pode-se apor duas linhas pedagógicas. À primeira, responde a
pedagogia do “dever ser”, do Estado, em que o sentido totalizador deve ser transmitido
25
. Já
23
A metáfora não é gratuita. Creio que o trabalho de Silviano Santiago é, para o campo literário, importante
não só por apresentar uma outra possibilidade de abordar o texto, como em Nas malhas das letras, mas por
representar um dos introdutores das idéias de críticos como Jacques Derrida no Brasil. A esse respeito,
destaco a supervisão geral do trabalho realizado pela PUC/RJ no Glossário de Derrida, elaborado na década
de 1970, em cuja leitura podemos encontrar a definição de “Estratégia”, significativa para este percurso: “A
estratégia de Derrida estaria fundada naquilo que ele próprio chamou de “um duplo gesto”, “dupla ciência”,
“duplo registro”: operação de caráter econômico que consiste em, por um lado, tomar os termos da metafísica
ocidental, para, por outro, poder excedê-la. O primeiro trabalho não deve nunca ser inutilizado pelo segundo.
Permitir esse trabalho destrutor seria “filosofar mal”, ato de simplesmente “virar a página da filosofia” ” . Rio
de Janeiro : Francisco Alves, 1976, p.35.
24
Alain Badiou, tratando das relações entre arte e filosofia na época clássica, aponta para a estreita ligação
entre estética e educação: “Didatismo, romantismo, classicismo são os esquemas possíveis do
entrelaçamento entre arte e filosofia, o terceiro termo correspondendo à educação dos sujeitos,
particularmente da juventude. No didatismo, a filosofia entrelaça-se com a arte na modalidade de uma
vigilância educativa de seu destino extrínseco ao verdadeiro. No romantismo, a arte realiza na finitude toda a
educação subjetiva da qual a infinidade filosófica da Idéia é capaz. No classicismo, a arte capta o desejo e
educa sua transferência pela proposta de uma aparência de seu sujeito [poderíamos dizer, da questão da
máscara, portanto devedora da idéia de um contorno, de uma identidade]. Aqui, a filosofia só é convocada
enquanto estética – dá sua opinião sobre as regras do “agradar”.” Poderíamos ver o avanço na investigação de
Badiou através da noção de “configuração”/“acontecimento”, mais suscetível a uma idéia fantasmática : “As
obras compõem uma verdade na dimensão pós-acontecimento, que institui a imposição de uma configuração
artística. Uma verdade é, finalmente, uma configuração artística, iniciada por um acontecimento (um
acontecimento é em geral um grupo de obras, um múltiplo singular de obras), e arriscadamente exposta sob a
forma de obras que são seus pontos-sujeitos. / A unidade pertinente do pensamento da arte como verdade
imanente e singular é, portanto, definitivamente, não a obra, nem o autor, mas a configuração artística iniciada
por uma ruptura relativa ao acontecimento (...). Essa configuração, que é um múltiplo genérico, não tem nome
próprio, nem contorno finito, nem mesmo totalização possível sob um único predicado. Não é possível
esgotá-la, apenas descrevê-la imperfeitamente. É uma verdade artística, e todos sabem que não existe verdade
da verdade.(...)” In Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo : Estação
Liberdade, 2002, pp. 15, 16, 24 e 25.
25
A esse respeito, os trabalhos devedores às noções de “formação”, “identidade”, “nação” podem ser
questionados em favor de uma determinada perspetiva, principalmente quanto às relações com os atos de
instituição. Em “Os ritos de instituição”, Pierre Bourdieu desenvolve a crítica da instituição através das
noções de separação: “Falar em rito de instituição é indicar que qualquer rito tende a consagrar ou a legitimar,
isto é, a fazer conhecer como arbitrário e a reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou
melhor, a operar solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma transgressão dos limites constitutivos da
ordem social e da ordem mental a serem salvaguardadas a qualquer preço (...). Ao marcar solenemente a
passagem de uma linha que instaura uma divisão fundamental da ordem social, o rito chama a atenção do
observador para a passagem (daí a expressão rito de passagem) quando, na verdade, o que importa é a linha.
A rigor, o que esta linha separa? Um antes e um depois, é claro (...)” In A economia das trocas lingüísticas –
O que falar quer dizer. Trad. Sergio Miceli et al. São Paulo : Edusp, 1996 (Clássicos, 4), p. 98. Ao indicar
que existe nesse processo um conjunto oculto em relação ao qual se define um grupo instituído, Bourdieu
23
em relação à segunda, a opção é uma pedagogia entendida como prótese, ou seja, um
artifício potencializando uma função. Para esta pedagogia, a duplicidade vida-morte não se
separa, já que uma idéia de finitude é tão necessária quanto complementária a ela. O texto
pode ser entendido como este “plus” de vida, um excesso que permite à literatura ser o que
ainda “poderia ser”. A literatura é procedimento, mas também, ao mesmo tempo, tempo.
Para ler esta história, há que se criar também uma malha ficcional que dê
conta, de alguma maneira, do debate. À imagem da literatura do século XIX como
semblante, rosto, máscara, proponho a literatura enquanto insinuação, fantasma que se
deixa perceber em sua total ausência – tempo, devir, heterogeneidade radical. É a literatura
do “como se”
26
, da pura virtualidade, a qual, para Octavio Paz, nos distinguiria do
aponta para a problemática da constituição de um saber legitimado, especialmente quando define como mais
importante “a linha”[portanto, um limite, e também uma continuidade] e não necessariamente o antes e o
depois. Continua : “Neste caso, instituir é consagrar, ou seja, sancionar e santificar um estado de coisas, uma
ordem estabelecida, a exemplo precisamente do que faz uma constituição no sentido jurídico-político do
termo.” (p.99) para reafirmar, finalmente, que é uma “diferença” o que se institui neste rito.
26
Pode-se afirmar que esta estrutura se arma, na modernidade, a partir das constribuições fundamentais de
Nietzsche e Freud. O primeiro, pressentindo a força do Estado em relação à cultura, busca sair do impasse
através da suspensão da verdade, aspecto muito devedor ao debate por ele iniciado sobre as questões do
ensino nas escolas, como em “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, incluídos em Escritos
sobre educação. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. RJ : Ed. PUC-Rio; SP : Loyola, 2003. Em relação a
Sigmund Freud, fundamental será a noção do “Unheimlich”, desenvolvido em “O estranho” – História de
uma neurose infantil e outros trabalhos. Trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza, RJ : Imago, 1976, V.17,
bem como a ficcionalização teórica de O futuro de uma ilusão. In : O futuro de uma ilusão, O mal estar da
civilização e outros trabalhos. Obras completas. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro :
Imago, 1974, V. XXI. Este “como se” trata, ainda, de uma literatura da perda, do “extravio”, mas também do
excesso, da “extra-vagância”. A produção contemporânea do crítico e poeta Júlio Castañon Guimarães a ela
responde:
Extravio
tudo aquilo
que era como se
viesse a ocorrer
até a fronteira
(quando luz indecisa
ou fratura do horizonte?)
em que o passo
para nada daquilo
do que era como se
tivesse ocorrido
In Práticas de extravio. Rio de Janeiro : 7Letras, 2003, p.55. Também é de Castañon Matéria e paisagem e
poemas anteriores da mesma editora, publicado em 1998. Consultar, sobre a estrutura do “como se”, um
trabalho meu : “Ficcionalizando... uma leitura da pós-pedagogia” in: Anuário de Literatura 11. Ilha de Santa
Catarina : Curso de Pós-graduação em Literatura/Universidade Federal de Santa Catarina, 2003, pp.117-136.
O teórico Gregory Ulmer vai mais além, ao postular para a estrutura do “como se” o “por que não?”, onde a
invenção, através da idéia de “realização” [poderíamos dizer “acontecimento” com Badiou], substituiria
24
“animal”. Uma série de escritos seus, a partir de 1947, com e contra Sade, iniciam a
trajetória :
O animal não é nem quer ser, simplesmente é o que é. O homem quer
sair de si próprio, está sempre fora de si. O homem quer ser leão,
águia, polvo, pombo, cenzontle. O sentido criador dessa imitação nos
escapa se não percebermos que se trata de uma metáfora: o homem
quer ser leão sem deixar de ser homem. Quer dizer, quer ser um
homem que se comporta como um leão. A palavra como implica
tanto distância entre os termos homem e leão quanto a vontade de
aboli-los. A palavra como é o jogo erótico, a cifra do erotismo.
27
A essa escrita “erótica”, também Roland Barthes, em um texto de 1976,
reivindica ao campo das letras um espaço fundamental para o debate do ensino da literatura
e da escrita. Contra a lei que instaura a forma correta de escrita, a ortografia, Barthes
solicita uma outra escrita. Afirma o escritor:
Inversamente, desde que a ortografia é uniformizada, legalizada,
sancionada por via do Estado, na sua complicação e irracionalidade
mesmas, é a neurose obsessional que se instala: o erro de ortografia
torna-se o Erro. (...) E da mesma maneira que tal dúvida impede o
nosso turista de aproveitar suas férias, a ortografia legalizada impede o
escritor de gozar de sua escrita, esse gesto feliz que permite colocar no
traçado de uma palavra um pouco mais do que a simples intenção de
comunicar
28
.
Poderíamos dizer que Barthes obsessiona”, ao mesmo tempo, várias coisas.
Uma delas, contrária à linha reta, o Barroco, o arabesco, a “liberdade de traçar”. Uma outra,
a de que o erro, visto como ato impuro, seja encarado como um direito, não impuro em seu
sentido negativo, mas impuro enquanto constituição do próprio ato da escrita. A leitura que
o crítico faz deste ato “impuro” desliza para outro campo, o da significância. Ou seja, o erro
“realidade” : “The consequences for the tradicional use of analogy are radical, for against the tradicional
reliance on the familiar or the known as the vehicle of the comparison, Bachelard’s pedagogy locates itself
fully in the realm of the unknown: here even the doctrine of the “as if” of conventional heuristics gives way to
a practice of the “why not”, whose purpose is to submit “reality” to the extremes of human imagination.” In
ULMER, Gregory. Applied grammatology. Op. cit., p.27.
27
PAZ, Octavio. Um mais além erótico : Sade. Trad. Wladir Dupont. São Paulo : Mandarim, 1999, p.33.
Destaque meu.
28
BARTHES, Roland. “Concedamos a liberdade de traçar”. In O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira.
São Paulo : Brasiliense, 1988, p. 61.
25
visto como procedimento, como o próprio ato. No final das contas, Barthes reivindica a
escrita enquanto ética, postulando uma escrita embriagada, de “júbilo barroco que explode
através das “aberrações” ortográficas dos antigos manuscritos, dos textos infantis, das
cartas de estrangeiros...” (p.61). Desta forma, teríamos a equivalência de manuscritos -
texto infantil - carta de estrangeiros, com o que o crítico propõe a derrubada da lei em nome
do prazer da escrita, tornando parceiros o traçado e o desejo. O que se pede aqui é uma
escrita da “travessura”.
A perspectiva adotada pelo escritor de O prazer do texto solicita, então,
uma teoria da transgressão como princípio fundamental de todo ato de escrita. Teríamos
uma operação que conjuga o prazer enquanto ato e o traçado enquanto lei. Por onde, a
literatura barthesiana está mais para uma escrita desejante, uma escrita que ainda não se
formou, cuja força se encontra em seu procedimento mesmo, e daí a sua intensidade, seu
prazer, em detrimento de uma literatura da norma. O que Barthes percebe é que se a
segunda condiciona a primeira, não há como escapar de uma história da escrita “culpável”
e, portanto, de uma história da literatura culpada. Há um duplo efeito que oblitera o prazer :
discriminação e dano psicológico. Certamente, ao tentar mudar o peso da balança, o crítico
nos diz que o que aí está é fruto de um procedimento já instalado na percepção da
sociedade. A “saída” encontra-se na escrita enquanto gesto, para além da comunicação
29
.
Uma literatura que oferece um pouco mais, esse plus que faz da via crucis da escrita um
29
A este respeito, Jacques Derrida afirma: “Ora, a palavra comunicação, que nada nos autoriza a negligenciar
inicialmente como palavra e a empobrecer como palavra polissêmica, abre um campo semântico que,
precisamente, não se limita à semântica, à semiótica e menos ainda à lingüística. Pertence ao campo
semântico da palavra comunicação, que designa também movimentos não-semânticos. Aqui, um recurso pelo
menos provisório à linguagem ordinária e aos equívocos da língua natural ensina que se pode, por exemplo,
comunicar um movimento ou que um abalo, um choque, um deslocamento de força pode ser comunicado –
entendemos: propagado, transmitido.” E mais adiante: “Comunicar, no caso do performativo, se alguma coisa
assim existe com todo o rigor e com toda a pureza (aceito por hora essa hipótese e essa etapa de análise), seria
comunicar uma força pelo impulso de uma marca.”. In DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Trad. Constança
Marcondes César. Campinas : Papirus, 1991, pp.11-12 e 26, respectivamente. Deleuze identifica em Bertold
Brecht a criação da noção de gestus “O que chamamos de gestus em geral é o vínculo ou o enlace das atitudes
entre si, a coordenação de umas com as outras, mas isso na medida em que não depende de uma história
prévia, de uma intriga preexistente ou de uma imagem-ação. Pelo contrário, o gestus é o desenvolvimento das
atitudes nelas próprias, e, nessa qualidade, efetua uma teatralização direta dos corpos, freqüentemente bem
discreta, já que se faz independentemente de qualquer papel.” In DELEUZE, Gilles. “Cinema, corpo e
cérebro, pensamento” In A imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo : Brasiliense, 1990
(Cinema 2), pp.230-231.
26
prazer. Este trabalho busca este gesto – infantil, primeiro, estrangeiro. Uma literatura da
carta.
Os movimentos dessa escrita encontram, desta forma, em diversos
cruzamentos a sua força. Um deles é o da escrita enquanto dobra. Uma modernidade que se
define pelas múltiplas possibilidades de encontros e desencontros. Não há desenho
completo, por isso, uma leitura que dê conta das propostas anteriores pode ser a da
literatura como jogo, de cartas, um permanente jogo de equivocidades. Ou seja, o objeto se
produz enquanto devir, enquanto imagem e não apenas como discurso, ou ainda, do
discurso enquanto produção de imagens
30
. Para dessacralizar o “tabu” e transformá-lo em
algo ordinário, rotineiro, o trabalho é também o do riso
31
. Se a história é um desdobramento
incessante, o riso é uma força que não deixa de se manifestar. É uma potência ali instalada,
sempre pronta a vir à tona. Então, a literatura que privilegia, de certa maneira, esta
perspectiva, reivindica para si este jogo duplo, a literatura enquanto equivocidade.
Certamente uma proposta assim enfrenta como seu antagonista uma literatura do medo, a
lei instaurada, a lei enquanto norma que enfraquece as potencialidades da escrita, da ficção
mesma. Por uma literatura deslizante
32
.
30
Nessa “linha”, Gilles Deleuze e Féliz Guatarri propõem o pensamento nômade contra a fixidez do Estado:
“É pretensão do Estado ser imagem interiorizada de uma ordem do mundo e enraizar o homem. Mas a relação
de uma máquina de guerra [dos nômades] com o fora não é um outro “modelo”, é um agenciamento que torna
o próprio pensamento nômade, que torna o livro uma peça para todas as máquinas móveis, uma haste para um
rizoma (Kleist e Kafka contra Goethe). / (...) faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não
seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o
ponto em linha![nota de “Véhiculaire” de Paul Virilio] Seja rápido, mesmo parado! [poderia dizer, seja
cinema!] Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias
justas, justo uma idéia (Godard). Tenha idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a Pantera
cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e o babuíno.” In Mil platôs –
capitalismo e esquizofrenia. 2ª reimpressão. Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa (Coordenação
da tradução – Ana Lúcia de Oliveira). São Paulo : 34, 2000, p.36. (Coleção TRANS, vol. 1).
31
A esse respeito, consultar BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação da comicidade. Trad.
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo : Martins fontes, 2001 (Coleção Tópicos).
32
Jacques Rancière, em Políticas da escrita, reforça esta idéia em seu estudo sobre “A impropriedade
literária” : “A literatura não é simplesmente essa zona indeterminada de discurso que estaria alojada nos
vazios ou nas margens esquecidas da história da poesia e da eloqüência. A literatura é uma dramática da
escrita, desse trajeto da letra desincorporada que pode tomar qualquer corpo. Ela tem seu lugar nessa
disjunção própria ao conceito de escrita que faz com que a própria oposição do logos vivo e da escrita morta
só se coloque à custa de instituir o mito de outra escrita, de um escrito mais que escrito. (...) O próprio
impróprio da literatura está inscrito nessa disjunção da escrita. A escrita sempre significa mais que o ato
empírico de seu traçado. Ela metaforiza uma relação entre a ordem do discurso e a ordem dos corpos em
comunidade. Toda escrita desenha ao mesmo tempo um mito da escrita que institui linhas de divisão entre os
modos de discurso, linhas de divisão na ordem dos corpos e relações legítimas ou ilegítimas entre umas e
outras : mito de distribuição dos discursos e dos corpos, sempre sujeito a redistribuição. E esse jogo põe em
cena o grande mito de outra escrita, uma escrita mais que escrita, um logos incorporado. Antes de ser
27
1.2 - CARTAS
Qu´est-ce qui me pousse à t´écrire tout les
temps? Avant même que je puisse me
retourner pour voir, depuis l´unique
destination, unique tu m´entends,
innommable et invisible, qui porte ton nom et
n´a pas d´autre visage que le tien, avant meme
que je puisse me retourner pour une question,
l´ordre est donné à chaque instant de t´écrire,
n´importe quoi mais de t´écrire, et j´aime et à
cela je reconnais que j´aime. Non, pas
seulement à ça, aussi
(...)
Ce que j´aime dans la carte postale, c´est que
même sous enveloppe, c´est fait pour circuler
comme une lettre ouverte mais illisible.
Jacques Derrida.
À idéia de um texto que circula livremente, mas não de todo aberto, portador
de um certo segredo, impossível de se ler, nos remeteria à noção de uma literatura ainda por
vir. Com Derrida, este futuro “só se pode antecipar na forma do perigo absoluto. Ele é o
que rompe absolutamente com a normalidade constituída e por isso somente se pode
anunciar, apresentar-se, na espécie de monstruosidade.”
33
. O conjunto da produção da
literatura pode ser visto como essa monstruosidade absurda, hibridismo que, de sua origem
heterogênea e misteriosa, devolve-nos uma imagem sempre estranha de si mesma. De outro
modo, o monstro nos remete ao estado de aproximação e distância; de algo familiar e, ao
polissemia ou disseminação, a escrita é divisão. E é a essa divisão que a literatura dá figura, ao reexpor sem
cessar a questão do pai do discurso e do corpo da letra.”. Trad. Raquel Ramalhete et al. São Paulo : 34, 1995,
p.41, destaques meus.
28
mesmo tempo, outro. O monstro é sinistro porque assusta e fascina, sendo ele a própria
construção imaginária, um ser da natureza da palavra, em que a tentativa de apreensão,
catalogação, entendimento pleno estão sempre em fuga. Uma garatuja em tela. Segundo o
crítico de Como se lê, em uma leitura que associa a enfermidade do século XX à idéia de
cultura, para acentuar o caráter de dissolução do corpo:
Casi habría que decir que, habiendo cesado la posibilidad de toda
alegoría, no convoca [la Enfermedad del siglo XX] ningún tema en
particular, sino más bien una forma. Una forma que no alcanza a
coagular en estilo, en clase, en género: lo que aparece es material –in-
forme (...).
La autofagocitosis es el emblema de la literatura más característica del
siglo XX: el “cáncer” de la autorreferencialidad y el mundo como
texto fuera del control, la semiosis infinita que solo el siglo XX
comprende y asume con todas sus consecuencias, una biopolítica ya no
del contagio fluido sino de la irradiación molecular. Desde dentro el
cuerpo se descompone y se vuelve pura intensidad, puro dolor.
34
Poderíamos pensar, ao lado desse corpo que se fragmenta e se dilui, o
conjunto da produção literária brasileira/latino-americana como uma reunião de cartas,
dispostas ao longo do tempo como textos lançados ao futuro. Em parte, a produção literária
até meados do século passado adquire características de uma grande antologia,
freqüentemente lida a partir de premissas organizacionais, segundo os princípios da
legibilidade (e legitimidade). A esta tendência, este conjunto avulta como um corpo
orgânico, apesar de seus intervalos, de sua diferença. Funciona como um arquivo lacrado,
no qual sabemos, de antemão, que há coisas a serem reveladas, textos ainda, e por causa
desse ainda, ilegíveis. Porém, antes de aguardar o momento de abertura do arquivo, quando
supostamente teríamos “verdades” esclarecidas, poderíamos pensar no tempo da literatura
brasileira enquanto espera. É o desejo de conhecer o conteúdo dessas cartas que nos levaria
a imaginar, a nos integrar no espaço-tempo de sua escritura, como na substituição que faz
33
Id. Ibid. Gramatologia. 2ª ed. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. SP : Perspectiva, p.6
(Coleção Estudos).
34
LINK, Daniel. “Enfermedad y cultura : política del monstruo” in BONGERS, Wolfgang y OLBRICH,
Tanja (comps.). Literatura, cultura, enfermedad. Buenos Aires – Barcelona – México : Paidós, 2006,
p.253. (Espacios del saber, 56). Conclui o crítico : “Hoy lo monstruoso no es un principio de inteligibilidad
(el “sentido de la vida”) sino una ética y una estética de la existencia. Y en esa mutación antropológica
estamos todos implicados.” p.264.
29
Antonine Compagnon, citando o filósofo Nelson Goodman, de “O que é arte?” por
“Quando é arte?”
35
, o que poderia ser lida na formulação de Raymund Williams, “When
was modernism?”. Ainda mais, este movimento de espera da abertura do arquivo pode ser
lido através da noção de “anacronia” abordado por Didi-Huberman:
El anacronismo es necesario, el anacronismo es fecundo, cuando el
pasado se muestra insuficiente, y constituye incluso, un obstáculo para
la compreensión de sí mismo. (...)
Es necesaria, me atreveria a decir, una estrañeza más, en la cual se
confirme la paradójica fecundidad del anacronismo. Para acceder a los
múltiples tiempos estratificados, a las superviviencias, a las largas
duraciones del más-que-pasado mnésico, es necesario el más-que-
presente de un acto: un choque, un desgarramiento del velo, una
irrupción o aparición del tiempo (...).
36
Os textos da literatura funcionariam, então, como esta “apresentação” de que
fala Derrida, lidos a partir da estratégia anacrônica, para a qual o “passado exato” não
existe, sendo possível a leitura deste apenas através de uma “decantação”, já que todo o
passado deve estar implicado em uma “antropologia do tempo”, de acordo com o autor de
Devant le temps. Esta apresentação anacrônica, se assim pode se chamar, faz ganhar força
o desejo da encenação imaginária. Logo, os primeiros escritos no Brasil e sobre o Brasil
vão constituir esta espécie de lança ao futuro de cenas as mais diversas em que o olhar
estranho e estranhado dos narradores vai modular um tom, do pitoresco ao incomum, como
o de Gabriel Soares de Sousa :
Quando entra algum hóspede em casa dos tupinambás, logo o dono do
lanço da casa, onde ele chega, lhe dá a sua rede e a mulher lhe põe de
comer diante, sem lhe perguntarem quem é, nem de onde vem, nem
o que quer; e como o hóspede come, lhe perguntam pela sua língua:
“Vieste já?” e ele responde “Sim”; as quais boas-vindas lhe vêm dar
todos os que o querem fazer, e depois disso praticam muito devagar. E
quando algum hóspede estrangeiro entra em alguma aldeia até quando
dá com a casa do principal, e sem falar a ninguém deita-se numa
qualquer que acha mais à mão, onde lhe põem logo de comer, e como
35
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teorialiteratura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto
Mourão e Consuelo Forte Santiago. 1ª reimpressão. Belo Horizonte : UFMG, 2001, p. 30.
36
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo- Historia del arte y anacronismo de las imágenes. Trad.
Oscar Antonio Oviedo Funes. Buenos Aires : Adriana Hidalgo, 2006 (Filosofia e Historia), pp.22-24.
30
acaba de comer, lhe manda o principal armar uma rede junto da porta
do seu lanço de uma banda, e ele arma a sua da outra banda, ficando a
porta no meio para caminho de quem quiser entrar, e assim os da
aldeia lhe vêm dar as boas vindas, como acima está declarado (...)
37
As cartas redigidas aqui alimentam o imaginário europeu e brasileiro. Dos
primeiros viajantes aos estudiosos, e futuros residentes, o mundo brasileiro lhes surge como
esta generosidade tupinambá, fundando, de certa forma, o imaginário. A outra face (a
mesma, então), não menos imperiosa, é a da antropofagia, que alimentará os estudos de
outros “estrangeiros”, de Hans Staden a Alfred Métraux no início do século XX:
Mal o mísero era massacrado, velhas mulheres precipitavam-se para
recolher-lhe, em uma cuia, o sangue e os miolos; o sangue era então
bebido ainda quente. A mulher dada ao prisioneiro, nessa ocasião
aproximava-se do morto e vertia algumas lágrimas. O choro era
puramente ritual, pois em breve já a mulher não demonstrava nenhum
pesar e era até a primeira a saborear a carne do esposo. O cadáver era
então assado e, como se faz com os porcos, escaldado a ponto de
permitir a raspagem do couro. Em seguida, introduzia-se no ânus um
bastão destinado a impedir a excrão. Em primeiro lugar eram
cortados os quatro membros, que as velhas levavam até as cabanas aos
uivos de alegria; depois, fazia-se uma incisão no estômago e
convidavam-se as crianças a vir devorar os intestinos. Afinal,
procedia-se ao retalhamento, pelo dorso, do tronco.
38
Ora, todo esforço da crítica, do século XVI ao XIX, foi o de reunir os mais
diferentes tipos de textos e escritores numa espécie de catalogação, iniciada com este
37
SOUSA, Gabriel Soares. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 5ª ed. São Paulo : Nacional; Brasília :
INL, 1987, p. 316 (Coleção Brasiliana, Vol. 117), grifos meus.
38
MÉTRAUX, Alfred. A religião dos tupinambás e suas relações com as demais tribos tupi-guaranis. 2ª
ed. SP : Cia. Ed. Nacional/Universidade de São Paulo, pp.134-135 (Coleção Brasiliana, Vol. 267). Vamos
encontrar este e tantos outros relatos no imaginário do século XX, como no texto de Georges Didi-Huberman,
“Disparates sobre a voracidade”, em que o crítico retoma, em quatro etapas, histórias de canibalismo: “O
homem que comia para melhor matar”, “O homem que comia para melhor morrer”, “O homem que comia
para melhor ressuscitar e “O homem que comia para melhor apodrecer”, assim concluindo: “Por que então
comemos tão vorazmente? Por todas as razões boas e por todas as más. Razões de vida, razões de morte.
Razões disparatadas, e mesmo contraditórias, que contudo não podemos dispor em classes seja lá como for.
Comer ajuda-nos a melhor matar (era este o sentido de minha primeira história). Comer ajuda-nos a melhor
morrer (...) Comer ajuda-nos a melhor ressuscitar (é este o próprio sentido do sacramento eucarístico). A
última história nos ensina que comer pode servir também para melhor apodrecer, para melhor prover os outros
dos meios de não morrer. Como se o ato de comer se sustentasse de algo como uma heurística da morte.”. Em
última instância, lemos a história do canibalismo como um desejo de leitura, ou vice-versa. Trad. Claudio
Frederico da Silva Ramos. XXIV Bienal de São Paulo : Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros. Roteiros. V. 2. São Paulo : A Fundação, 1998, pp. 190-195, grifos meus.
31
procedimento “declaratório”, e incisivo, que faz da literatura uma “apresentação” do que se
vê, se vive, se imagina. Nesta encenação, mesmo a escritura de textos os mais recentes vão
retomar igualmente este momento “de origem” para dele fazer ponto de partida para outros
escritos, como é o caso dos escritos de Juan José Saer, especialmente em El entenado,
onde a palavra passa de puro rumor ao balbucio receoso da clareza impossível das palavras:
Y la punta de la pluma que va resgando, despacio, en la noche
silenciosa, mientras sube, por la ventana abierta, un olor de cal y de
madreselva, la hoja áspera, no deja, mientras la mano todavia firme la
sostiene, más que el rastro de ese rumor que me viene, no sé de donde,
a través de años de silencio y de desprecio.
(....)
A los recuerdos de mi memoria que, dia trás dia, mi lucidez contempló
como a imágenes pintadas, se suman, también, esos otros recuerdos
que el cuerpo solo recuerda y que se actualizan en él sin llegar sin
embargo a presentarse a la memoria para que, reteniéndolos con
atención, la razón los examine. Esos recuerdos no se presentan en
forma de imágenes sino más bien como estremecimientos, como nudos
sembrados en el cuerpo, como palpitaciones, como rumores inaudibles,
como temblores.
39
Teríamos, em contraposição à leitura “carnal” de Soares, a outra de Saer, já menos
corpórea, apontando sua escritura para uma desaparição, fantasma. O diferimento
produzido entre as duas escritas indica que não se trata apenas de um tempo de datas, e que
“Ese tiempo que no es exactamente el pasado tiene un nombre: es la memoria” [Didi-
Huberman, 2006, p.40], ou seja, o objeto da história não é mais do que uma “organização
de anacronismos sutis”, o que, para o enfoque desta tese, significa ordenar, montar a
antologia, antologia também da memória
40
.
39
SAER, Juan José. El entenado. Buenos Aires : Booket, 2005 (Seix Barral – Biblioteca Juan José Saer),
pp.192-194.
40
No trabalho ficcional de Saer, em especial em El entenado, toda escritura parece gestar-se a partir de um
nada, de uma névoa, metáfora do processo criador (a história pode se passar simultaneamente na região do
Prata e/ou em algum povoado indígena do Brasil), que se transfigura, se cristaliza na imagem de uma palavra-
pedra: “Ya no se sabe donde está el centro del recuerdo y cuál es su periferia: el centro de cada recuerdo
parece desplazarse en todas direcciones y, como cada detalle va creciendo en el conjunto, y, a medida que ese
detalle crece otros detalles que estaban olvidados aparecen, se multiplican y se agrandan a su vez, muchas
vezes empiezo a sentirme un poco desolado y me digo que no solamente el mundo es infinito sino que cada
una de sus partes, y por ende mis propios recuerdos, también lo es. (...) muchas de esas imágenes se presentan
en un orden apacible, cerradas y claras, persistiendo mucho tiempo, desapariciendo y volviendo a aparecer
gracias a una fuerza constante y misteriosa que no únicamente les
[los indios]
permite conservar sus rasgos
32
Limitada por inúmeros embates, a história tradicional da literatura tem
demonstrado que também ela se inseriu na “amostragem” do desenvolvimento de uma
literatura, acreditando na sua capacidade criadora e “evolutiva”. A esse respeito, toda a
historiografia, em especial a do século XIX, responde com um critério de tempo fincado na
homogeneidade e linearidade
41
. Para tal solicitação, temos a “periodização literária”
concebida nos moldes historicistas. Se aceitamos a hipótese de Zygmunt Bauman de que a
“modernidade” seria decorrência da combinação desses dois acontecimentos, a saber:
la emergencia de un nuevo tipo de poder estatal con los recursos y la
voluntad necesarios para configurar y administrar el sistema social de
acuerdo con un modelo preconcebido de orden; y el establecimiento de
un discurso relativamente autónomo y automanejable capaz de generar
dicho modelo, incluidas las prácticas exigidas por su
implementación.
42
inequívocos, sino que pareciera ir puliéndolos y redondeándolos hasta volverlos firmes y nítidos como piedras
o como huesos.” Id. Ibid., pp. 195-196.
41
Na ânsia de criar um “corpus” para a produção escrita desde o início da colonização dos países hispano-
americanos, Beatriz González-Stephan destaca que este movimento responde a uma necessidade eurocêntrica
intencional . Afirma: “Así pues, por el momento, podemos ubicar el origen de la formación de la historia de la
literatura hispanoamericana durante el período colonial como una respuesta de la naciente cultura criolla.
Catálogos, bibliotecas, epítomes no sólo fueron una memoria que registró, sino que construyeron un
discurso que, cónsono con la episteme de la época, cumplió con los requisitos indispensables que permiten
justificar esta propuesta./ Estas obras fundacionales de una historia de la literatura de Hispanoamérica
operaron sobre una implícita noción de lo literario y, por extensión, de conjuntos literarios, que los ha llevado
al archivo, con una relativa conciencia histórica, de una producción escrita, qué, para aquel entonces, entre
otras razones, significó una contundente réplica a las posiciones que se enseñaban en detractar cualquier
manifestación social y cultural del Nuevo Mundo. / En síntesis, cumplieron con la primigenia función práctica
de ofrecer un saber sobre una materia dada, cubriendo las seguintes exigencias: primero, manejaron un
concepto acotado de “literatura” que logró un corpus relativamente homogéneo de obras escritas y autores,
lo que, por outra parte, fundó y canonizó la tradición culta e ilustrada; y segundo, hicieron el intento de
ordenarlas de acuerdo a unas coordenadas que implicaron un doble esfuerzo; disponerlas en función de un
espacio geográfico de grandes dimensiones (sobre todo en el siglo XVII) o espacios más reducidos, que ya
fueron delineando lo que serían las futuras naciones (...) y darles una clasificación racional (bien fuese
histórica, geográfica, temática o alfabética). In Fundaciones : canon, historia y cultura nacional. Op. cit.,
pp.36 e 37, grifos meus.
42
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes. Op. cit., pp. 10 e 11. A segunda hipótese do livro gira
em torno do fato de que o divórcio entre o estado e o discurso intelectual, juntamente com as transformações
internas dessas esferas, teria conduzido a uma experiência articulada hoje com uma visão de mundo e
estratégias associadas às que em geral se denomina de “pós-modernidade”. Articulando os dois conceitos,
estaria a compreensão do “controle”. Enquanto o modelo moderno procuraria superar-se através de uma teoria
e prática, o outro seria regido por seu próprio sistema, cujos modelos de ordens seriam internos (p.13).
Portanto, a metáfora para o modelo moderno seria a do “legislador”, enquanto a do modelo pós-moderno seria
a do “intérprete”.
33
criando uma experiência que se articulou com uma visão específica de mundo, juntamente
com as estratégias intelectuais, poderíamos percorrer alguns casos em que esta estratégia
assomaria enquanto uma antologia “legislativa”, normativa, lida a partir dos pressupostos
modernos.
1.3 - USOS METROPOLITANOS DO MODERNO
a vanguarda não é mais do que a forma
progressiva, emancipada, da cultura do
passado
Roland Barthes
A fim de balizar algumas discussões que surgirão no percurso deste trabalho,
creio oportuno apresentar algumas posições a respeito do moderno e, conseqüentemente,
alguns de seus usos, como também tratar de algumas mudanças quanto ao tratamento da
literatura enquanto disciplina. Recentemente lançado no Brasil, o livro de Frederic Jameson
discute, em A modernidade singular
43
, questões ligadas ao moderno, à modernidade, ao
modernismo, ao modernismo tardio, ao alto modernismo e à pós-modernidade. Gostaria de
verificar como o crítico faz uso desses conceitos, ampliando o leque teórico do trabalho.
Partindo das categorias do Novo, anunciado por Lyotard, da “modernidade
radicalizada” de Anthony Giddens e da modernidade incompleta de Habermas, Jameson
afirma que:
(...) onde a modernidade constitui um conjunto de questões e de
respostas que caracterizam uma situação de modernização parcial ou
incompleta, a pós-modernidade é a que consegue obter, por baixo, uma
modernização tendenciosa muito mais completa, que se pode resumir
em duas realizações : a industrialização da agricultura, ou seja, a
destruição de todos os campesinatos tradicionais; e a colonização e a
43
JAMESON, Fredric. Modernidade singular – Ensaio sobre a ontologia do presente. Trad. de Roberto
Franco Valente. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2005.
34
comercialização do Inconsciente ou, em outras palavras, a cultura de
massa e a indústria cultural.
44
Avançando o debate, o crítico estabelece para sua análise o critério de que a “modernidade”
só pode ser analisada na sua relação com o capitalismo, incentivando-o a investigar o
“projeto de análise ideológica da palavra” (JAMESON, 2005, p.23), o que nos levaria ao
“modernismo tardio”.
Já o termo “moderno” estaria presente desde o século V da era cristã,
referindo-se ao que é de “agora”, ou “o tempo do agora”. Desta forma, a ruptura
fundamental ocorreria com os escritos de Cassiodoro, introduzindo a sua antítese, a
antiquas”. Teríamos aqui o início de uma “tradição de rupturas”, para recobrar o célebre
conceito em Octavio Paz, em que estariam em permanente confronto o Novo e o Moderno,
história a que se chamou de o nascimento da historicidade em si. Esta novidade de “dupla
face” e a escolha deste começo são fundamentais para entender o que, para Jameson, torna-
se imprescindível, ou seja, a impossibilidade da não periodização, constituindo esta a sua
primeira (de quatro) máximas da modernidade. Ela teria como objetivo a denúncia dos usos
equivocados da “modernidade”, ao mesmo tempo em que procuraria denunciar a
esterilidade do movimento de uma estética oficial, que trouxe como conseqüência óbvia
uma “historiografia da ruptura”. Este método de lidar com o passado equivale à empregada
pela crônica - o da estocagem de informações. Neste ponto, pode-se ler o que viria a ser a
maior parte de nossos livros, manuais, antologias de literatura: livros de estocagem de
dados, em que a figura do autor reina absoluta.
A segunda-máxima da modernidade é a compreensão de que não se tratra de
um conceito, mas sim de uma “categoria narrativa”, e assim sendo, esta não poderia ser
organizada em torno de categorias de subjetividade, as quais seriam impossíveis de
representar – terceira máxima. Oferendo versões da história, cada teoria da modernidade
escolhe, portanto, a sua genealogia (leia-se periodização), ou seja, onde e quando se realiza
o corte, a ruptura. Este movimento é devedor da escolha antológica, como veremos.
Segundo Jameson, o corte de Foucault teria o grande mérito de transformar a sucessão em
problematização, especificamente em um problema historiográfico, apontando nos estudos
“incompletos”, parciais, do segundo uma antitotalização, lidos, entretanto, como dialéticos
44
Id. Ibid., p. 21.
35
para o primeiro, que vê nestes movimentos a tentativa de coordenação conceitual das
“incomensurabilidades” (Id. ibid., p.80).
Para Jameson, haveria, desta forma, uma clara linha que separaria o moderno
e o pós-moderno:
(...) a recusa de conceitos de consciência-de-si, de reflexividade, ironia
e auto-referência na estética pós-moderna, e também os valores pós-
modernos e a filosofia como tal, se é que se pode afirmar a existência
desta. Imagino que isso também coincida com o desaparecimento do
slogan da liberdade, seja no sentido burguês ou no anarquista(...).
45
Esta afirmação aponta para a quarta máxima, a de que “Nenhuma “teoria” da modernidade
tem sentido hoje, se não for capaz de chegar a bons termos com a hipótese de uma ruptura
pós-moderna com o moderno” (Id. ibid., p.113). Entretanto, Jameson não deixa de
considerar que o uso do moderno pela categoria estética, no caso do modernismo artístico,
postula uma experiência da obra no presente, o que leva mais lenha para a fogueira. Neste
sentido, o confronto entre as idéias de Paul de Man e Hugo Friedrich são inevitáveis, e
marcam maneiras diferentes de ler a modernidade, ou modos diversos de narrá-la:
Uma tal narrativa só pode ser definitivamente caracterizada como
modernidade se a própria invenção for fetichizada e se alguma situação
mais antiga for, de algum modo, “revolucionada” pela própria
presença do novo existente. (...) O que é decisivo é antes a
interiorização da narrativa, que agora não apenas dirige-se para o
interior da obra de arte, como se transforma na estrutura fundamental
desta última. O que era diacrônico agora se tornou sincrônico, e a
sucessão de eventos no tempo se transformou inesperadamente na
coexistência de vários elementos, cujo ato de reestruturação é
apanhado e preso, como nalguma “seqüência congelada” (para não
mencionar a “dialética da imobilidade” de Benjamin).
46
Explicando o conceito de alegoria em Paul de Man, o autor de A pós-modernidade e o
capitalismo tardio afirma que cada texto seria “uma alegoria congelada do modernismo
como um todo e como um vasto movimento no tempo que ninguém pode ver ou representar
adequadamente. Cada texto, assim, makes it new, por sua vez.” (JAMESON, Id. ibid.,
45
Id. ibid., p.111.
46
Id. ibid., pp.147, 148.
36
p.148), gerando a permanente contradição entre a exigência de novidade e a repetição
inevitável, e conferindo a esse gesto seu feitiço fascinante e perturbador. O modernismo
estético ou artístico corresponderia, nesta linha, a uma situação de modernização
incompleta, conferindo a ele dois momentos: o do modernismo tardio em contraste com o
modernismo propriamente dito. Para os próprios modernistas tardios, o que se chama de
pós-modernismo ou pós-modernidade refere-se a mais uma ruptura interna, produzindo
outro momento, mesmo mais tarde, essencialmente modernista. (JAMESON, Id. ibid., pp.
177, 178).
Uma das idéias centrais do livro gira em torno da hipótese de que, se a
ideologia do modernismo é a que postula a autonomia da estética, essa ideologia não foi
contemporânea do próprio movimento moderno, ou seja, é um produto tardio, uma
invenção do após II Guerra. Desta forma, os modernistas tardios seriam fruto da guerra fria,
enquanto os “altos modernistas” seriam os clássicos do movimento, sendo a ideologia
modernista uma invenção (norte)americana. Dentro destas divisões, ou classificações,
estaria o objetivo de estabilizar os sistemas existentes:
Por isso a política agora deve ser cuidadosamente monitorada, e os
novos impulsos sociais, reprimidos ou disciplinados. Essas novas
formas de controle são simbolicamente encenadas de novo no
modernismo tardio, que transforma a velha experimentação modernista
num arsenal de técnicas testadas e verdadeiras, e não luta mais pela
totalidade estética ou pela metamorfose sistêmica e utópica das
formas.
47
Nessa esteira, o crítico reforça sua concepção valendo-se das estratégias utilizadas para se
difundir essa ideologia, entrando em cena uma teoria de autonomia estética também nas
artes visuais. Essa autonomia é identificada à alta literatura, ao modernismo e seu cânone,
acarretando uma separação radical entre literatura e arte (alta cultura) versus cultura, no
sentido da vida diária. Portanto, a cultura assoma como um espaço, ambíguo, de mediação
entre a sociedade e a arte enquanto tal, “obscurecendo os limites e o espaço das passagens e
dos movimentos para trás e para diante, o locus da transmutação e da translação, de um
nível ou dimensão para o outro” (JAMESON, Id. ibid., p.207). O assunto interessa na
47
Id. ibid., p. 194.
37
medida em que assinala, igualmente, a luta por manter um cânone, identificado, nos
Estados Unidos, como a enumeração dos grandes livros, “o melhor de tudo o que já foi
pensado e dito”. Para Jameson, esse cânone “revela-se como pouco mais do que o próprio
modernismo” (Id. ibid., p.209). Daí a tarefa de ler esse projeto ideológico nas diferentes
situações nacionais, manifestando a dinâmica não sincrônica dos diversos modernismos
prematuros ou tardios, dinâmica esta que não pode ser reduzida a um modelo ou influência
de imperialismo cultural e poético.
Questionando ainda as noções de burocracia como forma moderna de
organização social, e a eficiência por ela pressuposta, bem como o estereótipo da
“modernidade das nações” centrado no conceito de “alteridade”, Jameson pergunta se ainda
é possível a elaboração e reconstrução das várias ideologias da modernidade, apontando o
desnorteamento pós-moderno que deseja reconstruir essas operações e detectar inovações
em obras que renunciaram explicitamente à originalidade. A saída estaria em um projeto de
uma “ontologia do presente” que não busca simplesmente reinventar um discurso da
modernidade:
Uma verdadeira ontologia não só registraria as forças do passado e do
futuro dentro daquele presente, mas também diagnosticaria o
enfraquecimento e o virtual eclipse daquelas forças dentro do nosso
atual presente. (...) Precisamos realmente é de um deslocamento em
bloco da temática da modernidade pelo desejo chamado Utopia.
Precisamos combinar a missão poundiana de identificar as tendências
utópicas com uma geografia benjaminiana de suas forças, com uma
avaliação da sua pressão sobre o que constituem agora múltiplos níveis
do mar. As ontologias do presente requerem arqueologias do futuro,
não previsões do passado.
48
Pensar as arqueologias do futuro é anacronizar o passado, como vimos na concepção
teórica de Didi-Huberman. Nesse sentido, dimensionar os dilemas da crítica e da literatura
atuais é apontar para o próprio movimento, para o jogo de forças desses encontros. Em
razão disso, dentro das artes em geral, creio que a constituição de um cânone (pedagógico)
encontra fortes raízes no surgimento da literatura enquanto disciplina e, portanto, na deriva
48
Id. ibid., pp.249, 250.
38
que ela acarreta, como, a título de exemplificação, a própria formação da crítica.
Examinemos um pouco mais de perto.
Antoine Compagnon traça, em La Troisième Republique des lettres
49
, uma
história do surgimento da literatura enquanto disciplina, relacionando-a à tendência
historiográfica vigente e, portanto, à figura do crítico:
L’ “être pleinement historique” du critique, c’est aussi, dans une large
mesure, sa détermination par rapport aux historiens ses contemporains;
c’est à travers eux qu’il rencontre les séries historiques générales.
............
(...) Sans contradire, j’insisterai sur la marge, la distance nécessaire
pour se pencher sur ce qui semble aller de soi : les grands écrivains
français, Victor Hugo, Racine et Voltaire, une littérature nationale,
l’evidence pour quiconque a passe le baccalauréaut jusque vers la fin
des années 60.
50
O objetivo de Compagnon é o de apontar para a história literária como incessante
exploração das relações entre a obra e a vida de seu autor, além de verificar a configuração
da história como gênero literário, em uma época em que o estilo impessoal (1900)
vinculava-se à junção da arte e da ciência na história. Entretanto, o desenvolvimento da arte
literária não pode desligar-se do surgimento da instituição universitária. Neste ponto, pode-
se antever o forte vínculo da literatura enquanto pedagogia, ou ainda, da necessidade da
formação de cânones literários para a permanência e estudo (geralmente congelado,
fossilizado) dos escritores e suas obras:
Car en France, les facultes n’ont pas d’outre fonction depuis l’Empire
que la collation des diplômes et la constitution des jurys de
baccalauréat.
............
Chaque faculté des lettres disposait de cinq chaires. Il y en avait onze à
Paris, mais pas devantage d’étudiants vrais. Le Collège de France fait
aujourd’hui figure d’exception, avec ses professeurs sans étudiants:
toute l’Université était alors sur ce modèle. (…) L’éloquence
triomphait, c’était elle qu’on examinait. Seules les grandes écoles
49
COMPAGNON, Antoine. La Troisième Republique des lettres – De Flaubert à Proust. Paris : Éditions
du Seuil, 1983.
50
Id. ibid., pp. 14 e 16.
39
disposaient d’étudiants, et l’École pratique des Hautes Études, fondée
par Duruy en 1868 à défaut de pouvoir réformer les universités, se
livrait à quelque recherche.
51
Neste período, a conjunção entre os historiodores no poder ganhava força através da
publicação de textos, em especial periódicos, como Revue internationale de
l’enseignement (1881), Revue historique (1876), Revue critique d’histoire et de
littérature (1866) entre outras, em cujo modelo o estilo da erudição, principalmente com
Gabriel Monod, era um dos primados dos periódicos, ao mesmo tempo em que a associação
com o ensino intentava conciliar, tanto na revista quanto com seus editores, a vocação
arquivista com a educação de massa. Neste panorama, não escapa o ensino secundário :
“Pas seulement dans l’enseignement supérieur, dans le secondaire également. Même si le
pouvoir historien ne s’en est pas emparé aussi aisément que de l’école primaire et des
facultés. Le primaire, le secondaire, ce sont des enjeux plus décisifs, socialement et
politicament, que les universités ou le nombre des étudiants demeure magré tout assez
faible.” (COMPAGNON, 1983, p.38). Pode-se acrescentar mais um ingrediente nas letras,
e no ensino: a política. Com Ernest Lavisse, um dos responsáveis pelas faculdades de
Letras na França, e fundador da Revue de Paris, assiste-se à tentativa de promoção entre
língua, literatura e história, através da grande Histoire de la langue e de la littérature
française. Nota perceber que neste momento (1900) cai a cadeira de literatura francesa da
Idade Média exatamente para dar lugar ao ensino científico (que no Brasil vigorou com esta
denominação até pouco tempo), lido como histórico, oportunidade em que a língua francesa
substitui a literatura. Diria que a formação de um cânone da língua, através da substituição
do modelo de uma pedagogia que repousava na memória e não mais na mera observação e
na experiência, acarretando o exercício constante da dissertação, mais tarde substituído por
“composição”, e esta por “discurso”, marca a passagem da morte da retórica para a da
história literária:
Les textes officiels sont formels: “Il ne s’agit pas de présenter des
connaissances littéraires prématurées sur des textes que l’on ne connaît
pas encore. L’objet de l’histoire littéraire au lycée est plus modeste
et plus utile; c’est de coordonner historiquement et logiquement les
51
Id. ibid., p.28.
40
notions qui sont présentées d’une manière fragmentaire à
l’occasion des explications et des lectures.” [citando Gustave
Lanson]. Plutôt que de nourrir les dissertations d’arguments d’autorité,
comme par une résurrection sournoise de la vieille rhétorique,
l’histoire littéraire doit permettre l’approuche des œuvres comme de
documents, contribuir à l’explication de textes, le nouvel exercice,
complémentaire de la dissertation, qui se reclame de la méthode
experimentale.
52
O ápice desse pensamento coincide com a Histoire de la littérature française, de Gustave
Lanson, em 1895, sendo precedido pela monumental Revue d’histoire littéraire de la
France, órgão da Sociedade de história literária da França, que consagra, segundo
Compagnon, a história literária como disciplina metódica. Nesse ponto, o projeto de
Lanson era o de unir Literatura e Ciência, portanto, tornar a crítica em uma ciência,
renunciando ao estilo. Não demoraria para Lanson apregoar a separação da crítica e da
história literária, com preferência por esta última, através do critério de distinção entre
“saber” e de “sentir”. Talvez a sua aventura maior tenha sido posicionar-se contra a
assimilação das obras a documentos de arquivos, porém, não escapa de um processo de
disciplinarização das sensações, o que pode ser lido como a tentativa de pedagogizar a
forma de ler:
L’objet de la méthode n’est autre que de discipliner la sensation, de
soumettre le beau au vrai, afin simplement de “réduire au minimum
indispensable et légitime la part du sentiment personnel dans notre
connaissance, en lui donnant toute sa valeur” [citando Lanson de
Méthodes de l’histoire littéraire].
.........
(...) Sacrifiant à l’histoire et se délivrant de la critique, du coup de la
littérature, les études littéraires n’entendent se couper ni de la
sociologie ni de l’esthétique. La sensibilité ou le plaisir du texte,
elles les cultivent en leur donnat um role au départ, au
dénouement de la démarche historique.
53
Disciplinamento das sensações... Estranhamente, no ano em que no Brasil
eclode a Semana de 22, pleiteando, entre outras bandeiras, a liberdade de expressões, André
52
Id. ibid., pp.40-41, destaques meus.
53
Id. ibid., p.54, destaques meus.
41
Morize publica Problems and Methods of Literary History, e Gustave Rudler, no ano
seguinte, Techniques de la critique et de l’histoire littérarire, obras que buscavam
introduzir o espírito histórico nos estudos literários, sendo somadas ao pensamento de
Lanson, que preconizava, diante da “desorientação dos estudantes pela diversidade de
doutrinas”, que os estudos literários deveriam se submeter a seu objeto. O objetivo era o de
alcançar o conhecimento. Nesse sentido, a finalidade do método da história literária de
Lanson era a da exigência da Universidade, ou seja, a institucionalização do saber, e das
sensações, com aspirações universalizantes, cujo critério primava pela “exatidão crítica”,
único ponto de vista que permitiria o sentido da diferença. Não sem razão, em 1923
também se cria a nova cadeira da “História Literária” do século XVIII.
Levando-se em conta que Gustave Lanson alcança a glória na França e seu
“produto” passa a ser referência para vários países e culturas, não se pode esquecer que a
especialidade de Lanson na Sorbonne era o ensino secundário, contribuindo para obras
coletivas, já em 1903 e 1905, como Education de la démocratie e Enseigment et
démocratie. As obras estão em meio à grande reforma de 1902, quando se suprime a
retórica do programa secundário. E se a grande pergunta girava em torno de qual a
contribuição dos estudos literários para a aquisição do método, do espírito científico, a
resposta decisiva era dita pelo próprio Lanson: que o futuro dos estudos literários não
poderia residir na retórica e na cultura do gosto. Assiste-se, a partir de então, a sua luta
contra o discurso e a dissertação, incentivando os exercícios de iniciação, que privilegiavam
a observação e a análise, em detrimento “da memória e da imitação” (COMPAGNON,
1983, p.79).
Pode-se inferir, neste recorte, a emergência da figura do intelectual
pedagogo, como a do professor, do mestre, do artista. Imagem que traz, na emergência da
literatura enquanto educação, o papel do mediador. Também Cláudio Guillén
54
, citando o
crítico René Wellek, trata deste assunto, comentando o paradoxo do reconhecimento das
convenções poéticas pelo movimento histórico a que havia começado a separar-se delas:
(...) el artista es un mediador entre el hombre y la naturaleza, entre el
intelecto y los sentidos, entre el Stofftrieb (el ansia de asimilar el
54
GUILLÉN, Claudio. Teorias de la historia literaria – (Ensayos de Teoría). Madrid : Espasa Calpe, 1989
(Colección Austral).
42
mundo de los sentidos) y el Formtrieb (el ansia de subordinar el
mundo a la ley moral).
55
Nesta convenção, leia-se a própria “instituição”, é o conjunto quem constituirá melhor que
o fragmento a eficácia da fruição convencional, segundo Guillén
56
. Na leitura que faz dos
períodos literários, o crítico se questiona até que ponto os usos da idéia de período literário
dão conta das duas dimensões mais importantes dos desenvolvimentos históricos, a saber, a
mudança e a contradição. Se com Lanson temos a formação decisiva dos elos entre
literatura e história, com Guillén não basta crer numa historiografia periodizada:
Lo que llama la atención, entonces, es hasta qué punto los empleos
pasados de la periodización han soslayado o silenciado aquellos
fenómenos que ponen en evidencia el cambio y la contradicción. Los
períodos y las épocas, de intención supuestamente historiográficas, han
sido, descarada o vergonzosamente, las más de las veces, eleáticos.
57
Para ele, a noção de período como conceito que aspira dar conta plenamente de um
segmento de tempo, constituindo-se em uma unidade singular da história literária, está
descartada; daí a necessidade urgente de revisão nestes antigos critérios, devedores, em
grande parte, à junção entre história e literatura, bem como da literatura como dever social,
instituição, pedagogia.
Jonathan Arac, em “What is the history of literature?”
58
, põe em discussão o
objeto da história literária, lembrando que muito do que entra na história não leva em
consideração outros materiais:
The history of literature is part of history “proper” and therefore is
defined by two crucial features. The first is referential falsifiability.
Unlike some other kinds of work, history is not judged exclusively by
internal coherences, such as those of logic, method, or tone. It is
considered legitimate to relate materials textually present within the
55
Id. ibid., p.108.
56
“El concepto de medio de comunicación como convención, supera desde un principio toda dicotomía de
forma y contenido. Es un concepto unificador, estructural. Y conduce al crítico, perplejo ante el caos de
semejanzas y de relaciones que existen entre tantos fenómenos artísticos individuales, a tratar de reconocer no
ya los contactos aislados entre éstos sino las exigencias más vastas de un instrumento, de un cauce, de un
género, considerado como um sistema de premisas convencionales.” Id. ibid., pp.114 e 115.
57
Id. ibid., p.121.
58
ARAC, Jonathan. The uses of literary history. Durham and London : Duke University Press, 1995.
43
history to materials textually absent from it, and there are (contested)
standars of correctness by which such relations are discussed. The
second feature is the fundamental doubleness marked by such
formulations as those of Adam Ferguson (history results from human
action but not from human choice) or Karl Marx (people make their
own history but not under conditions of their own choosing).
59
E acrescenta o debate nesta história da literatura sobre a renegociação do cânone literário,
incluindo a figura do leitor como agente importante no processo, normalmente relegado
apenas aos historiadores.
Igualmente, José Luis Jobim, em “História da Literatura”, põe em suspensão
a própria idéia de literatura, ressalvando que a mesma sofreu variações ao longo dos
tempos. Tanto a literatura quanto a história literária estariam em constante transformação:
Se, ao produzirmos uma História da Literatura, partimos do
pressuposto de que um determinado universo de autores e obras,
consagrados como clássicos pelo cânon que herdamos, constitui
necessária e suficientemente nosso objeto, teremos um resultado
diferente do que se partimos do pressuposto de que a primeira tarefa do
historiador é de determinar seu objeto. Neste caso, a própria definição,
bem como os critérios que a fundamentam, seria parte daquela tarefa.
60
Portanto, é possível, e necessário, redefinir a noção de literatura. E critérios como
“objetividade”, tão apregoadas por Gustave Lanson, podem ser tão relativos como qualquer
outro. No caso de Jobim, seu objetivo é o de enfocar algumas questões ligadas à História da
Literatura: a recepção, a descrição, a origem e a tradição, todas pondo em xeque as noções
tradicionais de periodização literária. Fatalmente, o assunto recai na formação de um
determinado cânone, cuja constituição é devedora à dupla operação de inclusões/exclusões:
Mas devemos sempre ter em mente que o processo da constituição da
tradição” não é aleatório; necessariamente adota determinados
pontos de vista, visões de mundo e normas, em detrimento a outras.
Trata-se de selecionar ou recusar, incluir ou excluir, lembrar ou
esquecer, valorizar ou desvalorizar, aceitar ou rejeitar, condenar
59
Id. ibid., p.23.
60
JOBIM, José Luis. “Historia da Literatura” in JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica – Tendências
e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro : Imago, 1992 (Coleção Pierre Menard), p.127.
44
ou reabilitar, ainda que, em determinado momento, haja dificuldade
de perceber estas operações.
61
Essa operação de seleção, de nomeação, de fundação dos “começos”
relaciona-se com o tema do moderno, de modo que o ato de separação da historiografia
pressupõe um embate entre tradições. Jobim comenta ainda que o novo relaciona-se à
tradição, recobrando “A tradição e o talento individual” de T. S. Eliot.
Outro crítico, Roger Fayolle, em “Bilan de Lanson”, aborda a necessidade
do cruzamento de informações entre a história literária de hoje e as idéias de Gustave
Lanson, de onde se vê que o moderno que se prefigurou na crítica do início do século XX
deixou sua marca indelével na imagem de uma pedagogia museificada, como atesta a
referência ao “Musée pedagogique” (1909) onde Lanson proferira uma conferência
intitulada não menos que “La crise des méthodes dans l’enseigment du français”. Dessa
forma, todas as crises por que passou o sistema educativo da França mantêm relação
também com a literatura:
Ces questions sont au contraire éludées dans les périodes non critiques.
Bien sûr, les réponses sont différentes, mais il serait utile d’etendre les
recherches d’intertextualité, au-delà des textes de fiction, à l’étude des
textes théoriques et critiques. Connaître les débats de la critique, de la
théorie et de la pédagogie littéraires, voici un siècle, permet d’éclair
ceux d’aujourd’hui.
62
É na confluência da nascente literatura enquanto disciplina, e história,
portanto de uma história que se torna também literatura, que encontramos os textos de
brasileiros e latino-americanos, consolidando, de certa forma, um uso do moderno que
61
Id. ibid., p. 144, grifos meus.
62
FAYOLLE, Roger. “Bilan de Lanson” In: L’histoire littéraire aujourd’hui. Paris : Armand Colin, 1990,
pp.12 e 13. O livro foi publicado com o apoio do Ministério da Pesquisa e do Ensino Superior da França.
Escutemos o próprio Lanson: “L’objet des historiens, c’est le passé: un passé dont il ne subsiste que des
indices ou des débris à l’aide desquels on en reconstruit l’idée. Notre objet, c’est le passé aussi, mais un passé
qui demeure: la littérature, c’est à la fois du passé et du présent.” E quanto à literatura: “La littérature peut se
définir par rapport au public. L’ouvrage littéraire est celui qui n’est pas destiné à un lecteur spécialisé, pour
une instruction ou une utilité spéciale (...) Mais l’ouvrage littéraire se définit surtout par son caractere
intrinsèque. Il y a des poèmes reserves par leur technique à un public três restreint, et qui ne seront jamais
goûtés du grand nombre: les mettra-t-on hors la littérature?Le signe de l’œuvre littéraire, c’est l’intention ou
l’effet d’art, c’est la beuté ou la grace de la forme.” In : LANSON, Gustave. “La méthode de l’histoire
littéraire”. Essais de méthode de critique et d’histoire littéraire. Paris : Livrairie Hachette, 1965, pp.33 e
34.
45
atesta, antes de mais nada, um modelo pedagógico, também chamado Modernismo.
Vejamos, antes da exploração desse modelo, a antologia de nós mesmos.
CAPÍTULO II
No embate de tendências, em que o modelo de intelectual legislador tem
marcado sua influência nos começos do século XX, de quem Gustave Lanson tem sido um
dos seus epígonos, poderíamos contrapor outra imagem, figurando novos espaços a partir
do intelectual intérprete, segundo a tese de Zygmunt Bauman. Nas reconfigurações do
século, a “contracara” de Lanson pode ser visualizada em Valery Larbaud, o
colecionador/destruidor, que busca instaurar novas situações e novos desenhos no cenário
cultural.
Nesse sentido, apresento, neste capítulo, uma proposição para discutir a
antologia, a partir de dois procedimentos: um, como montagem intencional de um
organizador (com formato pré-definido); outro, mais contemporâneo, como procedimento
crítico, em que a própria operação de leitura a define (por corte e montagem), portanto
como leitura anacrônica. Nos dois casos, o objetivo é destacar a formulação de uma política
cultural, armando modelos de crítica, sem perder de vista o debate de como o modernismo
processa o legado vanguardista.
47
2.1. ANTOLOGIA/ONTOLOGIA
S.f. 1. Tratado acerca das flores. 2. Coleção
de trechos em prosa e/ou em verso; analecto,
crestomatia, florilégio, espicilégio, seleta,
parnaso.
Aurélio Buarque de H. Ferreira
futuro. “O futuro não é senão um morto que,
estendendo-se, volta” (Forneret).
André Breton
A organização e compilação dos textos ao longo dos tempos deveu-se
sempre a um anseio insuspeitado do homem de que era melhor guardar do que perder.
Dessa forma, a lógica que rege a grande maioria dos tratados, enciclopédias, dicionários,
antologias, livros, é a da memória. Entendida sempre como o grande arquivo, personificado
nas múltiplas e tão semelhantes Instituições, é o arkheîon grego, a morada dos arcontes.
Estes primeiros guardiões eram os responsáveis não só pela segurança física do guardado,
mas também detinham o poder de interpretar os arquivos. Dessa forma, o princípio que rege
o arquivo é um princípio de consignação, de reunião dos signos.
Esta dupla função do arquivo – reunir, interpretar – torna-o, portanto, ao
mesmo tempo, instituidor e conservador, segundo Derrida
63
:
Arkhê, lembremos, designa ao mesmo tempo o começo e o comando.
Este nome coordena aparentemente dois princípios em um : o princípio
da natureza ou da história, ali onde as coisas começam – princípio
físico, histórico ou ontológico -, mas também o princípio da lei ali
onde os homens e os deuses comandam, ali onde se exerce a
autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do qual a ordem é dada
– princípio monológico.
64
63
DERRIDA, Jacques. O mal de arquivo – uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio
de Janeiro : Relume Dumará, 2001.
64
Id. Ibidem. p.11.
48
A crítica, em geral, fez uso dessa dupla característica do arquivo como sinônimo de
acumulação. “Guardar para não perder” poderia ser seu lema. Nada estranha, portanto, que
os últimos 150 anos tenham coincidido com a diretriz capitalista do mundo ocidental. Em
1931, um “latino-americano”, Jorge Luis Borges, reclama para todos uma outra
possibilidade, a de que façamos uma “educação do esquecimento”
65
. Aparentemente
contraditória, ela mostra a outra face da mesma moeda. Revela o que os instituidores da lei
insistem em renegar – para lembrar, há que (se) esquecer. Ou ainda, não há memória sem
esquecimento
66
. Dessa forma, falar em memória relaciona-se a outra força importante, a
pulsão de morte. Derrida afirma:
Como a pulsão de morte é também, segundo as palavras mais
marcantes do próprio Freud, uma pulsão de agressão e de destruição
(Destruktion), ela leva não somente ao esquecimento, à amnésia, à
aniquilação da memória como mneme ou anamnesis, mas comanda
também o apagamento radical, na verdade a erradicação daquilo que
não se reduz jamais à mneme ou à anamnesis; a saber, o arquivo, a
consignação, o dispositivo documental ou monumental como
65
Em um artigo instigante, “A postulação da realidade”, Borges renega a conotação histórica das palavras
“clássico” e “romântico” , encarando-as como dois “arquétipos de escritor” (dois procedimentos). E aposta na
“imprecisão” como característica pertinente, “tolerável ou verossímil” na literatura. E acrescenta: “Toda
atenção, toda fixação de nossa consciência, comporta uma omissão deliberada do não interessante. Vemos e
ouvimos por meio de lembranças, de temores, de previsões. No corporal, a inconsciência é necessidade dos
atos físicos. Nosso corpo sabe articular esse difícil parágrafo, sabe lidar com escadas, com nós, com
passagens de nível, com cidades, com rios correntosos, com cães, sabe atravessar uma rua sem que o trânsito
nos aniquile, sabe engendrar, sabe respirar, sabe dormir, sabe, talvez, matar: nosso corpo, não nossa
inteligência. Nosso viver é uma série de adaptações, vale dizer, uma educação do esquecimento. É admirável
que a primeira notícia que Thomas Moore nos dá sobre Utopia seja sua perplexa ignorância da “verdadeira”
extensão de uma de suas pontes...”. In Jorge Luis Borges - Obras completas I. Vários tradutores. São Paulo
: Globo, 1999, pp.230-235. Grifos meus.
66
Em “O pensamento e a exigência de descontinuidade”, Maurice Blanchot reivindica o interstício como
elemento constituinte do ser humano, ao que poderia ser lido como a fratura da memória, ou o real
impossível: “(...) há um movimento contínuo destinado a facilitar a seqüência da leitura, mas esse movimento
contínuo não pode, entretanto, dar conta de uma continuidade verdadeira. Lembremos que na literatura
moderna, é a preocupação com uma palavra profundamente [a qual, em Manuel Bandeira, adquire sinônimo
de morte] contínua que gerou, em Lautréamont, em Proust, e depois no surrealismo, enfim em Joyce, obras
notoriamente escandalosas. O excesso de continuidade incomoda o leitor e prejudica nela os hábitos da
compreensão normal.” E ao afirmar que o surrealismo não “poderia enfrentar a intrusão imediata da totalidade
do real (real que é precisamente a impossível continuidade do “real” e do “imaginário”), acrescenta em nota,
ao final do artigo, que “Supondo-se (na maioria das vezes implicitamente) que o “real” é contínuo, e que
somente o conhecimento ou a expressão introduziria a descontinuidade, esquece-se que o “contínuo” é apenas
um modelo, uma forma teórica que, por esse esquecimento, dá-se como pura experiência, pura afirmação
empírica. Ora, o “contínuo” é apenas uma ideologia envergonhada de si mesma, assim como o empirismo é
apenas um conhecimento que se repudia a si próprio.” Lembra ainda que, na teoria dos conjuntos, o contínuo
é apenas um caso eminente de infinitude, ou seja, uma “potência de infinito”. In: A conversa infinita – 1 - A
palavra plural. Trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo : Escuta, 2001, pp.37 e 39.
49
hupomnema, suplemento ou representante mnemotécnico, auxiliar ou
memento. Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza
em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese
em sua experiência expontânea, viva e interior. Bem ao contrário, o
arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da
chamada memória.
67
O primeiro desafio que se apresenta é como relacionar memória-
esquecimento, memória e pulsão de morte. Na literatura, este processo se dá através de um
procedimento que pode ser assim apresentado: ler o texto não só pelo que ele apresenta,
mas também por aquilo que ele não diz
68
. É a este “lugar da falta” que devemos dar mais
atenção. Isso exige, de alguma maneira, que a crítica realize uma operação de leitura
“deslendo” o próprio texto, como um levantamento de uma “história do esquecimento” a
que se refere Borges. Pensar uma história assim é pensá-la como dispêndio, como a
impossibilidade de acumulação. Para esta perspectiva, Georges Bataille responde com sua
“noção de despesa”
69
. Podemos pensá-la, ainda, como pura desaparição, fantasma que
ronda e habita o nosso meio, mudando apenas de trajes. A ficção seria, segundo Borges:
Esse personagem [a respeito de O homem invisível de Wells]– um
solitário estudante de química no desesperado inverno londrino –
acaba por reconhecer que os privilégios do estado invisível não
compensam seus inconvenientes. Tem que sair descalço e nu, para que
um casaco apressado e umas botas autônomas não agitem a cidade.
Um revólver, em sua mão transparente, é de impossível ocultação.
Antes de assimilados, também o são os alimentos deglutidos por ele.
Desde o amanhecer suas pálpebras nominais não barram a luz e ele
tem que se acostumar a dormir como se estivesse com os olhos
abertos. Também é inútil colocar o braço fantasmal sobre os olhos. Na
rua os acidentes de trânsito o preferem e ele está sempre com medo de
morrer esmagado. Tem que fugir de Londres. Tem que se refugiar em
perucas, em grandes óculos escuros, em narizes de carnaval, em barbas
67
O mal de arquivo. Op. cit., p.22. Grifo meu.
68
A título de exemplo, José Luis Jobim, apresentando a antologia de textos de Palavras da crítica, já citado,
também afirma: “...publicações desse gênero costumam ser censuradas mais pelo que deixam de fora do que
pelo que incluem. Talvez este tipo de censura se esqueça de que a escolha feita pelo editor não implica negar
a validade de outras escolhas, que possivelmente selecionariam outros, ou até os mesmos termos, mas
analisados sob diferente perspectiva.” In JOBIM, José Luis (Org.). Palavras da crítica - Tendências e
conceitos no estudo da literatura. Op. Cit., pp. 9 e 10.
69
BATAILLE, Georges. A noção de despesa – a parte maldita. Rio de Janeiro : Imago, 1975. A “noção de
despesa” foi publicado primeiramente em janeiro de 1933, em La critique sociale.
50
suspeitas, em luvas, para que não vejam que é invisível. Descoberto,
inicia num vilarejo do interior um miserável Reino do Terror. Para que
o respeitem, fere um homem. Então o delegado faz com que seja
rastreado por cães, cercam-no perto da estação e o matam.”
70
Aqui temos uma abordagem do texto ficcional não só como fantasma,
espectro, mas também como idéia de montagem, maquiagem (a peruca, o óculos, o nariz de
carnaval, luvas) que dá forma ao texto, de onde uma postulação da máscara como a
“contracara” da própria ficção parece estar aqui validada. A ficção mesma se definiria
enquanto espectro, puro fantasma – o invisível – que necessita da prótese
71
para ganhar
visibilidade.
Voltemos à definição de “Antologia”. Diríamos que há nela dois aspectos,
não excludentes, mas complementares, que a definem como “coleção” e “florilégio”
72
.
Para o primeiro aspecto, toda a história da escrita a ela responde. É uma sorte de acúmulo
do visível, da materialização, da impossibilidade da perda. Quanto ao segundo aspecto,
creio que há espaço para aprofundar o campo. É nele que quero entrar.
A virada do 900 marcou decisivamente uma outra possibilidade de ver a
história
73
. No campo das artes, diríamos que ela se acentua com Guillaume Apollinaire,
70
In “A postulação da realidade”, op. cit., p.234. Este comentário apresenta-se como uma nota de rodapé e
ilustra um dos métodos comentados por Borges sobre a referida “postulação clássica da realidade”. Borges
elenca três procedimentos: 1. “notificação geral dos fatos que interessam”; 2. “imaginar uma realidade mais
complexa que a declarada ao leitor e referir suas derivações e efeitos” e 3. O método da “invenção
circunstancial”, para o qual o comentário sobre O homem invisível funciona.
Outra forma de (não) ver esta questão é o conto “O homem do boné cinzento” do escritor Murilo Rubião,
alegoria desse processo de desmaterialização.
71
A respeito da noção de prótese, a abordagem de David Wills pode nos auxiliar a pensar esta questão. Wills
afirma que a prótese surge como sentido de articulação entre questões de duas ordens (sem e contra ela); é
uma decisão, um fantasma, combinando diferentes discursos. Ele reivindica esta idéia da reescritura como
prótese, em que uma subjetividade se pronuncia, ou seja, o próprio exercício narrativo, não excluindo a
produção crítica. “(...) according to prosthesis, relations in general are governed by difference as radical
otherness and a given prosthesis (...). Any relation is a relation to difference ortherness, and prothesis is a
name for that. (...) Prosthesis becomes a staging of the radical reconstextualization that, Derrida has insisted,
is a possibility for every signifying event. (...) And prosthesis adds the emphasis that what therefore governs
recontextualization are forms of contrivance and principles of artificiality.” IN WILLS, David. Prosthesis.
California : Stanford University Press, 1995, pp. 44 e 45.
72
Florilégio que aparece ainda hoje na imprensa como possibilidade de leitura do passado, em que estudo
crítico, consciência do presente convivem como imperativo de novas descobertas e como forma de rearmar a
discussão sobre o mundo (medieval). No ensaio, os manuscritos equivalem a fósseis, assunto que será
explorado nesta tese. Consultar “Dinossauros no monastério – Estudo em que manuscritos antigos são
analisados como se fossem fósseis indica alta sobrevivência da ciência medieval”. In Mais! da Folha de São
Paulo, 13 de março de 2005, p.9.
73
Veja-se a postura de Walter Benjamin em tentar redefinir o olhar para a questão da história, em especial,
seu estudo “Sobre o conceito de história” e “Teses sobre filosofia da história”, respectivamente em Magia e
51
grande incentivador e participante dos movimentos de vanguarda na França. Alcools
74
inaugura uma literatura “embriagada”, não por uma inspiração divinatória, exterior, mas
desregrada e insinuante. Com Apollinaire
75
, escritor estrangeiro e quase um errante pela
Europa do início do século, é a antologia que prepara a vanguarda.
1911 marca a publicação de O bestiário, livro que reúne, com as
xilogravuras de Raoul Dufy, uma série de pequenos poemas, rimados, que interessam
principalmente pelo recorte feito. Os poemas assemelham-se a uma espécie de “pequena
enciclopédia pessoal” do poeta. Na verdade, é a demonstração de como fazer da referência,
da biblioteca, um uso, ou de como ler o mundo. Os poemas têm como característica,
decorrente desse aspecto, a fato de serem de leitura rápida, formados de fragmentos
esparsos em que o conjunto é dado pelo olhar muito apropriado do escritor. Uma espécie de
bestiário-breviário. Ao mesmo tempo, a musicalidade intensifica as impressões de uma
leitura ligeira, bem como o livro composto adquire ares de um “mostruário”. Outra analogia
possível é este compósito híbrido, monstruoso, espécie de catálogo atemporal, em que se
técnica, arte e política – Ensaios sobre literatura e história da cultura, op. cit., pp.222 – 232 e em Walter
Benjamin. Org. e Tradução de KOTHE, Flávio R. São Paulo : Ática, 1985, pp. 153-164 (Coleção Grandes
Cientistas Sociais, n.50).
74
Acompanha o livro de Apollinaire um não menos curioso quadro de Douanier Rousseau, datado de 1909,
intitulado “La muse inspirant le poète (Marie Laurecin et Apollinaire)”. Vejamos rapidamente alguns aspectos
da composição desse quadro. Os elementos escolhidos são figurativos e dentre eles, encontra-se o poeta,
devidamente trajado, segurando em uma das mãos o papel e na outra, a “pena”. Ao seu lado, em uma postura
solidária, a musa, com a mão esquerda sob as costas do poeta (a mão desaparece), enquanto a direita, em
direção ao céu, faz um sinal enigmático. A mão direita do poeta (com a pena branca) aponta para o chão.
Estão num jardim, com árvores ao fundo e vários cravos bem floridos (rosa, vermelho, branco) à frente. A
musa traja um vestido longo azul, todo “plissado”, sugerindo levemente as curvas de seu corpo (mas ao
mesmo tempo, querendo escondê-lo). Ninguém sorri. Seus olhares não se encontram, porém sugerem um leve
movimento. Pode-se dizer que têm suas vistas cruzadas, sem se encontrar. O motivo desse não encontro
parece residir no fato de que a musa é uma duplicação do poeta, com que o pintor sugere, na discussão da
inspiração poética, também uma discussão de gênero, enquanto a ponta da pena quase toca o centro de uma
flor.
A pintura deve ter forte relação com o fato de que, neste ano de 1909, Apollinaire publicada seu poema “La
chanson du mal-aimé”. Também colabora na revista Les marges com crônicas sobre a literatura feminina,
com o pseudônimo de “Louise Lalanne”. É quando inicia a publicação de vários textos considerados
libertinos.
75
Inicialmente, o poeta recebe o nome de Guillaume Albert Dulcigni. Após o batismo, ganha o nome de
Guillelmus Apollinaris Albertus de Kostrowitzky. Toda a questão da errância e do não reconhecimento de seu
pai pelos dois filhos que teve marcam a escritura do “mal-amado”. Decisivo também é o fato de sua
participação na 1ª guerra mundial como voluntário. Daí pode-se tirar um pouco mais da atitude não menos
“combativa” junto aos vanguardistas de seu tempo.
52
juntam animais de lugares e tempos diferentes. O breviário é a enciclopédia, agora no
jardim.
76
Este espaço doméstico, o jardim do escritor, é melhor entendido com o
segundo título do livro, ou ainda o primeiro, dependendo de como se o lê : O bestiário ou
Cortejo de Orfeu
77
. Daí as figuras mitológicas (o cavalo, a serpente, as sereias...)
mescladas a animais aparentemente corriqueiros, banais (a pulga, a mosca, a aranha...). Mas
é através de um dos animais descritos, o dromedário, imagem desse exótico de terras
distantes tão importante à constituição das riquezas e do imaginário europeus, que temos
uma pista para compreender um pouco mais as peças do jogo do início do século XX.
Vejamos inicialmente o poema:
O DROMEDÁRIO
Com seus quatro dromedários
Senhor Pedro d’Alfaroubeira
Mirou o mundo, desceu ladeira.
Seria meu este ideário
Se eu tivesse tais dromedários.
78
Ao final do livro, em uma espécie de adendo, temos o comentário do próprio Apollinaire.
Ele cita apenas os três primeiros versos e afirma:
No célebre relato de viagens intitulado: “História del Infante D. Pedro
de Portugal, en la que se refiere lo que sucedió en el viaje que hizo
cuando anduvo las siete partes del mundo, compuesto por Gómez de
76
É precisamente a metáfora do jardim a escolhida por Zygmund Bauman para enfocar a operação da
modernidade entendida enquanto “cultivo”, instrução, tratada como uma “cruzada cultural” em que a
educação desempenhou papel decisivo, sendo exercida por uma personalidade literária e especializada.
Refere-se à passagem da cultura silvestre para uma cultura do jardim, cuja figura central passa a ser o
intelectual (o jardineiro). Afirma o escritor de Modernidade e ambivalência: “El poder que rige sobre la
modernidad (el poder pastoral del estado) se modela de acuerdo con el papel del jardinero. En cierto sentido,
la clase dirigente premoderna era un guardabosques colectivo. El paso a la modernidad fue el proceso en el
transcurso del cual surgió el primeiro y declinó el segundo, que finalmente fue desplazado. (...)
Intelectualmente, la redefinición del orden social como un producto de la convención humana, como algo que
no era “absoluto” ni estaba más allá del control del hombre, fue con mucho el mojón más importante en el
camino hacia la modernidad. (...) Un “contrato social”, un legislador o un déspota planificador eran los únicos
marcos dentro de los cuales podía considerar-se la cuestión del orden social, una vez convertida en problema
más que en manifestación de la naturaleza de las cosas.” In Legisladores e intérpretes. Op. cit., pp. 77, 79 e
81.
77
APOLLINAIRE, Guillaume. O bestiário ou cortejo de Orfeu. Trad. Álvaro Faleiros. São Paulo :
Iluminuras, 1997.
78
Id. Ibid., p.45.
53
Santistevan, uno de los doce que llevó en su compañia el infante”,
conta que o Infante de Portugal pegou a estrada com doze
companheiros para conhecer os setes cantos do mundo. Estes viajantes
utilizavam quatro dromedários como meio de transporte. Depois de
passar pela Espanha, foram a Noruega e, de lá, para a Babilônia e
Terra Santa. O príncipe de Portugal visitou ainda os Estados do padre
João e voltou ao seu país três anos e quatro meses depois.
79
Ora, o que está em questão é a (in)formação do escritor. De onde se infere que o escritor
vanguardista se alimenta da heterogeneidade de relatos, portanto, de lugares, de culturas
diversos para dar forma ao seu texto. “Seria meu este ideário/Se eu tivesse tais
dromedários.”, conclui o poeta. É sintomático que o suplemento indique a densidade que o
poema reúne, ao mesmo tempo que expande o campo de sentidos. De uma forma sucinta,
temos um escritor estrangeiro que escreve na França, a partir de uma leitura de um texto de
Portugal, escrito em espanhol e comentado em francês. Esta diversidade de “falares”, babel
fervilhante, acentua-se na percepção da vanguarda francesa. Importa ainda destacar o
procedimento do poeta – a incorporação de um texto que viaja, e que aporta na página do
escritor. O texto não é só um bateau ivre, dromedário que viaja por terras estrangeiras, mas
também pavão
80
:
79
Id. Ibid., p.89.
80
Id. Ibid., p.79. Note-se que outro escritor, Leopoldo Lugones, no início do século XX, também dedica a esta
ave, rara, um poema: EL PAVO
Turban su fealdad crasa y glotona
Desanguíneo canónigo, en ficciones
Bravías, sus ineptos espolones
Y su garbo de espléndida persona.
Orna el barbado buche irísea zona;
La alas vibran bruscas inflaciones;
Y la gorguera, finos bermellones
En su lívido sebo congestiona.
La panoplia caudal oscila un poco...
Bajo la obscena flaccidez del moco,
Su ojo en maligna necedad se abruma;
Y el celo en trance de ímpetus lascivos,
Con pequeños espasmos explosivos
Lo riza en un florón de eréctil pluma.
In “Estampas Rurales” de Poemas solariegos. 2
ª
edición. BuenosAires : B.A.B.E.L. (Biblioteca Argentina de
Buenas Ediciones Literarias), 1929, Vol.15, p.45.
54
O PAVÃO
Quando abre sua cauda, este pássaro,
Que arrasta as plumas normalmente
Mostra a beleza de seu lábaro,
Mas deixa o traseiro evidente.
Poderíamos ver na figura deste “exemplar” uma dupla relação de
funcionamento na arte : o que se mostra também esconde, porém o que não se vê (o
traseiro) é a parte mais exposta, potente. Na verdade, teríamos ali o paradoxo da
interioridade. Neste lugar onde o que se arma é o desaparecimento (o ocultamento) do
visível. Os animais de Apollinaire mantêm estreita relação com as imagens evocadas por
Georges Bataille, principalmente em a História do Olho, através do deslizamento
significante entre o “olho” [oeil] e “ovo” [ouef]. Também há nos textos deste
freqüentemente a relação entre sedução (a plumagem) e horror (traseiro evidente) através
da figura de animais. Quero destacar dois exemplos apenas:
Aquele móvel feérico, que parecia carregado de tesouros da Índia por
causa dos ornamentos, das volutas e dos entrançados, evocava, com
suas sombras e o ouro resplandecente, os segredos perfumados de um
corpo. À direita e à esquerda da porta, dois quadros célebres de Valdés
Leal representavam cadáveres em decomposição: pela órbita ocular de
um bispo penetrava um enorme rato...”
81
(...)
A moça teve vontade de contemplar a sua obra e me afastou para se
levantar. Montou outra vez, de cu pelado, em cima do cadáver pelado.
Examinou o rosto, limpou o suor da testa. Uma mosca, zumbindo num
raio de sol, voltava incessantemente para pousar no morto. Ela a
enxotou mas, de repente, soltou um gritinho. Tinha acontecido algo
estranho: pousada no olho do morto, a mosca se deslocava lentamente
sobre o globo vítreo. Segurando a cabeça com as duas mãos, Simone
81
BATAILLE, Georges. História do olho. Trad. Eliane Robert Moraes. São Paulo : Cosaic & Naify, 2003, p.
73. Grifo meu. Não menos importante é perceber a basculação cenográfica desta passagem. É o quadro, na
parede, que vê, interpreta todo o ato. Ou ainda, é o cadáver em decomposição prefigurado no quadro que
prepara o acontecimento. Com a definição de André Breton, citando Forneret, diríamos que “o futuro não é
senão um morto que, estendendo-se, volta.”. Daí que a ficção gire em torno deste acontecimento-retorno, ou
seja, é o futuro que lê o presente.
55
sacudiu-a tremendo. Eu a vi mergulhada num abismo de
pensamentos.
82
Reúne os dois fragmentos de Bataille e Apollinaire esta espécie de zoologia
imaginária com que ambos põem em evidência, estranhando permanentemente a concepção
de uma determinada maneira de encarar a escritura. A relação entre vida/morte volta a ser
encenada, tirando proveito de uma percepção aguda dessa morte em vida.
Portanto, a idéia de uma falsa imagem, o visível “escondendo” uma
pluralidade de sentidos (escondido, mas “em evidência”, latente), incita a escrita para a sua
verdade. Toda uma correlação pode ser feita com o gesto do pavão, nesta amostragem de
penas. Temos, então, uma escritura que aponta para uma visibilidade do invisível
83
, ou
ainda, para o seu aparente contrário, a invisibilidade do visível. Neste jogo o que se encena,
de fato, é a possibilidade do seu próprio desdobramento
84
. Pouco antes da cauda do pavão,
temos em cena outra amostragem, agora na imagem de uma outra duplicação, a do leque.
Com Mallarmé, para ficar só com o poema “Outro leque”
85
, escrito entre 1884-1887, uma
antologia se reúne na vertigem do desejo encenado, puro evento, “éventail”, que desloca e
leva o eu-poético a um estado de delírio, a um puro êxtase:
82
Id. Ibid., p. 83. Grifo meu.
83
Vale notar o comentário de Borges a respeito do sentido do texto cabalístico. Ao tentar definir uma
escritura inspirada num Espírito (Santo), ele primeiro afirma que “A trindade, é claro, supera essas fórmulas.
Imaginada repentinamente, sua concepção de um pai, um filho e um espectro, articulados num só organismo,
parece um caso de teratologia intelectual, uma deformação que só o horror de um pesadelo pode ter parido. É
o que penso, mas tento considerar que todo objeto cujo fim ignoramos é provisoriamente monstruoso. Essa
observação geral se vê agravada aqui pelo mistério profissional do objeto.”. Ao concluir o ensaio com
“Imaginemos agora essa inteligência estelar, dedicada a manifestar-se não em dinastias nem em aniquilações
nem em pássaros, mas em vozes escritas. Imaginemos, também, de acordo com a teoria pré-agostiniana de
inspiração verbal, que Deus dita, palavra por palavra, o que se propõe dizer [aqui entra uma nota]. Essa
premissa (que foi a que os cabalistas assumiram) faz da Escritura um texto absoluto, em que a colaboração do
acaso se reduz a zero. Só a concepção desse documento já é um prodígio superior a todos os registrados em
suas páginas. Um livro impenetrável à contigência, um mecanismo de propósitos infinitos, de variações
infalíveis, de revelações que espreitam, de superposições de luz, como não interrogá-lo até o absurdo, até a
prolixidade numérica, como fez a Cabala?”. Na nota citada, Borges acrescenta que “Orígenes atribuiu três
sentidos às palavras da Escritura: o histórico, o moral e o místico, correspondentes ao corpo, à alma e ao
espírito que integram o homem; João Escoto Erígena, um infinito de sentidos, como as cores cambiantes da
plumagem do pavão.” Id. Ibid., p.223 e 225. Grifos meus. Porém, quero destacar o enfoque para a questão
do jogo entre a questão do visível/invisível, do texto como montagem monstruosa (o horror como dado
constituinte da ficção), a contingência (o acaso) indissociável da produção artística ressaltados na figura do
pavão, com suas cores “cambiantes”.
84
Também Mário de Andrade utilizou esta metáfora. A respeito, consultar “A meditação sobre o Tietê”
incluído em A lira paulistana.
85
MALLARMÉ, Stéphane. In “Poesias (1864-1895)”. MALLARMÉ. Trad. Augusto de Campos et. alii.. São
Paulo : Perspectiva, Universidade de São Paulo, 1974 (Coleção Signos, v.2).
56
OUTRO LEQUE
de Mademoiselle Mallarmé
Ó sonhadora, por quem plano
Num puro gozo sem timão,
Sabe, por um sutil engano,
Guardar minha asa em tua mão.
Uma aragem de entardecer
Te vem a cada movimento
Preso que faz retroceder
O horizonte suavemente.
Vertigem! Eis que se detém
O espaço como um grande beijo
Que por nascer para ninguém
Não soma ou some o seu desejo.
Sente esse paraíso louco
Como um sorriso que soçobra
Do fim da boca escoar um pouco
No fundo da unânime dobra!
O cetro das areias rosas
Quietas nas tardes de ouro é este
Branco vôo fechado que pousas
Contra o fogo de um bracelete.
Parece-me possível ver neste poema toda a condensação da poética
mallarmeana, preparando o terreno para os textos vanguardistas, numa espécie de
vanguarda da vanguarda. A escritura de Mallarmé condensa-se nesta seqüência do poema:
sonho-gozo-engano-asa/aragem-movimento/vertigem-espaço-beijo-desejo/paraíso(louco)-
sorriso-boca-fundo-dobra/cetro-areias-tarde-ouro-branco-vôo-fogo-bracelete. Trata-se de
uma poética que reivindica este espaço imóvil, da página branca, do “éventail”,
“événement”, “éventement”, o que faz acontecer, no coração do furacão – pura vertigem –
o “éventuel”, desvanecimento . Em outras palavras, Mallarmé prefigura toda a modernidade
como desmaterialização. Por outro lado, o escritor vanguardista se vê nessa situação quase
57
demiúrgica – a possibilidade de jogar infinitamente com as palavras, jogo que se configura
como prazer do aleatório
86
. De certa forma, ao deixar que as palavras dancem no espaço
infinito das possibilidades, é também ele mesmo que se encena, o intelectual/pavão. Para
reafirmar esta postura, no mesmo poema, o poeta joga uma vez mais com as palavras. A
sua escrita travessa dá mostras dessa fantasmagoria principalmente na última estrofe, o que
não se percebe com a tradução brasileira. Vejamos:
Le sceptre des rivages roses
Stagnants sur les soirs d’or, ce l’est,
Ce blanc vol fermé que tu poses
Contre le feu d’un bracelet.
O que foi lido como “O cetro das areias rosas” pode ser visto de outra forma: “sceptre” é
um anagrama de “spectre”. Espectro não só de “areias rosas”, mas “rivages” é também
margem, borda, beira. Assim, “Roses” podem ser lidas não como adjetivo, mas como o
próprio substantivo, o que altera significativamente o sentido do poema. Teríamos então o
espectro das rosas abismais, marginais, refletidas nas tardes douradas. Ou seja, puro
reflexo, miragem, espectro da imagem que se espraia, não “neste”, como quis privilegiar o
tradutor, mas “ce l’lest” – “celeste” – o puro vazio
87
, branco da folha que se consome no
fogo
88
.
86
Este será um dos pontos fundamentais para uma orientação da arte e da crítica do século – a possibilidade
do objeto artístico visto como “coisa”, independizando-se do seu produtor/leitor, ou tornando-se “coisa”
graças a eles. Para tanto, consultar o volume 28, n.1, da Critical Inquiry, dedicada ao assunto, em especial o
artigo de Bill Brown, co-editor da revista, “Thing Theory”. Chicago, Illinois : The University of Chicago,
Autumn 2001.
87
Um texto de Georges Bataille, escrito em 1935 e publicado somente em 1957, tem como foco este puro
vazio, ligado ao gozo, ao êxtase e, portanto, à morte. Trata-se de O azul do céu. Trad. Maria Lucia Machado.
São Paulo : Brasiliense, 1986. Bataille apresenta neste enredo o que mais tarde seria chamado de devir-animal
diante de outra guerra, a civil espanhola. Lemos, já no seu final, esta passagem emblemática: “Numa curva do
caminho [Dante,Bilac,Drummond] um vazio abriu-se debaixo de nós. Estranhamente, esse vazio não era
menos ilimitado, aos nossos pés, que um céu estrelado sobre as nossas cabeças. Uma multidão de pequenas
luzes, agitadas pelo vento, traçava na noite uma festa silenciosa, incompreensível. Aquelas estrelas, aquelas
velas, eram centenas, em chamas sobre o solo: o solo onde se alinhava a multidão de tumbas iluminadas.
Tomei Dorothea pelo braço. Estávamos fascinados por aquele abismo de estrelas fúnebres. Dorothea
aproximou-se de mim. Beijou-me longamente na boca. Enlaçou-me, apertando-me violentamente: depois de
muito tempo, era a primeira vez que ela se arrebatava.” (p.162).
88
Há uma abordagem do fogo na poética de Mallarmé que atravessa sua obra. Essa imagem transparece em
seus textos principalmente através da “fumaça”, personificadas nos variados cachimbos. Sobre esta questão
do cachimbo/fumaça na modernidade, pode-se consultar o texto ‘Cacos de cachimbo, fumaças, pipe-
dreams...” de Ana Luíza Andrade, publicado na Revista Grifos, Chapecó : Argos, n.10, jun 2001. Aprofundo
58
Justapondo as duas imagens, o dromedário assoma como sinal da
condensação, da pura economia, da retenção de energia para que a travessia aconteça,
enquanto o pavão surge com a imagem do incontido, na pura amostragem de sua
plumagem. Se o dromedário retém, o pavão desperdiça. Duas metáforas para o processo de
modernidade do século XX.
Outro aspecto a destacar nesta abordagem de Mallarmé e de outros
modernistas, no seu diálogo com escritores latino-americanos, refere-se à maneira como o
movimento cultural da década de 1940/1950 em diante vai lidar com este legado. De certa
forma, o passado é também um “peso” a ser enfrentado, na medida em que
percursos/abordagens como estes se dão, uma vez que a tradição brasileira tem, nesta
época, sua fonte marcadamente na Europa, em especial a francesa
89
.
Decorre daí que este pavão/leque, conformando-se enquanto antologia, reúne
agora uma outra imagem: a da rosa
90
. Este outro, mesmo, florilégio.
esta questão entre a fumaça (desvanecimento) em um outro trabalho: “As câmaras do m-ar”,, mimeo, em que
estabeleço relações entre “La pipe” de Mallarmé e “A canção de amor de J. Alfred Prufrock” de T. S. Eliot.
89
Não é de se estranhar, portanto, que em 1936 Mário de Andrade publique um texto como o “Decadência da
influência francesa no Brasil” para enaltecer a cultura intelectual brasileira : “Não há propriamente
diminuição da influência francesa, e sim engrandecimento do Brasil. Me conservando exclusivamente no
domínio da cultural intelectual: o espírito francês dominou colonialmente o Brasil na segunda metade do
século XIX. Mas o Brasil se engrandeceu, tanto no sentido de se nacionalizar e adquirir consciência e uso dos
caracteres, constâncias, tendências que lhe são próprios, como no sentido de se universalizar e adquirir
consciência e uso das riquezas espirituais do mundo. (...) / Assim, a influência espiritual francesa tem contra
si, em nosso país, duas barreiras que ela não poderá mais vencer. Dum lado, ela dá de encontro ao próprio
espírito nacional brasileiro./ Nós, hoje, não somos apenas um povo nacional com caracteres e tendências
psicológicas já bastante determinados, como já possuímos uma cultura própria. Esta cultura é incipiente,
não tem dúvida, mas existe. (...) no domínio das ciências, já possuímos institutos que são verdadeiros
núcleos de pesquisa e cultura brasileiras, independentes de qualquer influência estrangeira. (...)/ A outra
barreira em que dá de encontro a influência francesa é a universalização do Brasil e conseqüentemente da
nossa cultura.”. Em nota ao texto, Mário explica que o depoimento foi escrito em 1935 e não exige
retificação, acrescentando o seguinte: “Mas nos dias que correm, com a desmedida avançada cultural dos
Estados Unidos sobre nós, eu desejo livremente afirmar que a influência francesa foi benemérita, e ainda é a
melhor, a que mais nos equilibra, a que mais nos permite o exercício da nossa verdade psicológica nacional, a
que menos exige de nós a desistência de nós mesmos. Ao passo que a influência espiritual norteamericana
sobre nós (...) será péssima e prejudicialíssima.” In Vida literária. Op.cit., pp. 3-5, grifos meus. Sobre este
visão de mundo e influência, tratarei em outro capítulo mais longamente, procurando explorar algumas de
suas implicações.
90
Porém, ainda com Mallarmé, um outro poema, de 1890, reitera as imagens trabalhadas anteriormente e
confirma a poética do evanescente na versão que a tradução brasileira deu para “Rire d’enfant qui charme
l’air” como “Teu riso em flor que abraça o ar”. O poema se intitula Folha de Álbum. In Op. cit., pp.52 e 53,
grifos meus.
De repente e como por jogo
Mademoiselle que declaras
Querer despertar um pouco
O som de minhas flautas raras
59
Outro modernista, Ronald de Carvalho, também armou sua antologia com
História da Literatura Brasileira e Toda América, como veremos em outro capítulo, e
boa parte desse trabalho deveu-se a seu permanente diálogo com outros intelectuais de seu
tempo. Através dele, temos outros fios na trama, nos seus desdobramentos (cruzamentos)
com escritores latino-americanos. Contemporâneo à escrita de Macunaíma, Ronald de
Carvalho publica num periódico do Rio, O Jornal, em 1927, dois artigos que merecem
comentário: são “Gente de Martín Fierro”
91
e “Poesia argentina e poesia brasileira”. No
primeiro, Ronald resenha aspectos da literatura argentina contemporânea, detendo-se na
análise dos escritores que participam da revista. Aparecem Evar Méndez, Oliverio Girondo,
Jorge Luis Borges, Ricardo Güiraldes e Francisco Palomar. Na efervescência do anos 20-
30, Ronald procura intensificar as trocas entre o Brasil e outros países da América e
Europa. Sua análise busca, portanto, enfatizar as novidades nos campos sulinos. Destaca
deste grupo o “nacionalismo humano” dos integrantes da revista, a tonicidade, a disciplina
de liberdade, enfim, o “ar livre” que lá se respira, como no Brasil fizeram os participantes
da Klaxon em 1922. Se Evar Méndez era visto como um “animador” cultural, um
“descobridor de imaginações”, Oliverio Girondo é mais pictórico. Destaca seu livro Veinte
poemas para ser leídos en el tranvía
92
, composto com o primor da “ciencia del croquis” e
acentua que o escritor “Juega con la imagen, como un pez con el centelleo del agua”
Este ensaio que já começa
A uma paisagem anteposto
Só se resolve quando cessa
Para te olhar em pleno rosto
Sim o vão sopro que sofreio
Até o último limite
Em meus dedos dormidos sei-o
Escasso para que ele imite
Tão claro e natural a soar
Teu riso em flor que abraça o ar.
91
CARVALHO, Ronald de. O jornal, RJ, 9 de outubro de 1927. Este artigo encontra-se no livro
Confluencia – Literatura argentina por brasileños – literatura brasileña por argentinos. Organizado e
traduzido por Raul Antelo. Buenos Aires : Centro de Estudios Brasileños, 1982 (Colección Iracema), pp. 145-
153.
92
Para uma abordagem crítica de suas obras completas, consultar Antelo, Raúl (org.). Oliverio Girondo -
Obra completa. Ed. Crítica.1ª ed. Madrid; Barcelona; Lisboa; parís; México; Buenos Aires; São Paulo;
Lima; Guatemala; San José; Santiago de Chile : ALLCA XX, 1999. (Colección Archivos, n.38).
60
(p.147). E numa anotação rápida sobre o estilo de Girondo, indica um dos percursos dos
escritores latino-americanos:
Girondo es un hombre deportivo que está por todas partes, en el deck,
de Morand, o en el pullman, de Larbaud. Su ritmo es rápido, sin
cadencias ni cortes solemnes. Ritmo de un poeta que sabe saltar a lo
desconocido, que lanza toda una teoría de la cultura en cada imagen
concentrada. Girondo es el típico humanista moderno. Casi siempre
define las cosas al revés. Hace de la realidad una historia para reírse. Y
pega en el blanco con el primer arma con que dispara.
93
Além da interlocução indicada, ela vem acrescida desta observação: “...lanza
toda una teoría de la cultura en cada imagen concentrada.”. Por certo que Girondo está
longe de querer definir os rumos da modernidade latino-americana, porém, Ronald o lê,
como se desejoso de encontrar em seus escritos os caminhos de uma teoria cultural. Ainda
nesta página, define Girondo a partir de duas observações valiosas. A de que o escritor
argentino, em seu “humorismo sensualista” prefere o “gozo do contato rápido”, “Arte de
polen” e a de que em Veneza “Se respira una brisa de tarjeta postal”. Estamos diante do
texto como carta e florilégio. Se Ronald define a arte como “arte de pólen”, ou seja,
florilégio, Girondo a define como “tarjeta postal”.
Um outro fragmento também chama a atenção de Ronald, a partir de
Girondo, denominado de sketch, a propósito de um dos livros de Valery Larbaud, além de
dois outros fragmentos: um croqui sevillano e um trecho das anotações do Rio de Janeiro.
Deste último, Ronald procura “corrigir” o exagero de Girondo sobre a “línea real” (p.148).
O segundo texto
94
retrata o debate que consumiu muitos dos modernistas no
Brasil, a respeito dos posicionamentos políticos e religiosos. Este texto toma como ponto de
partida exatamente a leitura que um outro brasileiro fez da literatura argentina. Trata-se de
um “paralelo” que Tristão de Athayde elaborou a partir da leitura de uma antologia, a de
Pedro Juan Vignale e César Tiempo, intitulada Exposición de la actual poesía argentina.
Nele, Ronald chama a atenção para o esquematismo com que Tristão de Athayde
abordou a questão entre as duas literaturas. Ele cita algumas conclusões deste último:
93
Confluencia – Literatura argentina por brasileños – literatura brasileña por argentinos. Op. cit., p.
147, grifos meus.
61
a) A poesia moderna argentina é uma poesia de cidade grande,
enquanto a brasileira é de cidadezinha.
b) A poesia argentina dos últimos anos é mais subjetiva e a nossa,
mais objetiva.
c) Os modernos argentinos são essencialmente cerebrais e os nossos,
emotivos.
d) A moderna poesia argentina é cosmopolita e a nossa, nacional.
e) A moderna poesia argentina é arquitetônica e a nossa, musical.
f) Na poesia argentina de hoje predomina o indivíduo, na brasileira, o
grupo.
g) Finalmente, na nova poesia argentina há mais força e na poesia
brasileira, mais caráter
95
.
Ora, na antologia de Tristão de Atayde está em evidência o critério que a
rege: a oposição. O paralelo serve a Tristão para efetuar, por contraste, as características de
ambos países
96
. Simultaneamente ao primeiro artigo, vale lembrar a antologia de outro
94
“Poesía argentina y poesía brasileña”. Festa. a.1, Rio de Janeiro, jul. 1928, p.6 In: Confluencia. Op. cit.,
p.153-155.
95
Op. cit., p.154 (versão minha).
96
Vale lembrar que alguns anos mais tarde, a análise da cultura brasileira ainda era efetuada com este critério.
Por exemplo, os trabalhos de Roger Bastide no país, como Brasil, terra de contrastes, com prefácio de Paulo
Duarte e inserida na coleção “Corpo e Alma do Brasil”*, dirigida por não menos do que o então Prof.
Fernando Henrique Cardoso. O livro foi editado pela Librairie Hachette e traduzido por Maria Isaura Pereira
Queiroz. Utilizei a 9ª edição. SP – RJ : Difel, 1979. Em seu “Prefácio”, Paulo Duarte nos revela o processo
de constituição da primeira universidade brasileira e os critérios adotados para tanto. Foram convidados dois
nomes, que declinaram do pedido, alegando que “necessitariam de um estágio longo no estrangeiro para se
porem completamente em dia com as respectivas especialidades.” (p.5). Os “instituidores da então grande
universidade” decidem trazer professores de fora. Então importam da Itália, Portugal, Alemanha, Inglaterra,
França e “até” dos Estados Unidos os primeiros professores, vindos entre 1934 e 1936 [Já percebemos o
choque de opiniões como as de Mário de Andrade, citadas anteriormente]. O prefaciador comenta que Roger
Bastide, depois de 17 anos no Brasil (o prazo era de 10 anos), regressa a França “tão brasileiro quanto
qualquer de nós dentre os que mais amam este pedação do continente americano, cheio de defeitos e
qualidades, xingador e elogiador, feliz e sofredor, ignorante e generoso, cujos homens lúcidos, dentre eles
Roger Bastide, tudo fazem para que fique melhor.” (p.7), classificando o livro não como uma “análise
sociológica”, mas como “uma divulgação do Brasil”, na qual “Roger Bastide disseca a sua mosca azul mas
para chegar à conclusão diferente. Em vez da sua ilusão disseca a sua realidade...” (p.7). Encerra a sua
apresentação não menos com a dedicatória enviada da França por Bastide a ele: “ce livre qui voudrait faire
mieux connâitre – et mieux aimer encore, si possible – le Brésil des Français”. (p.8). O prefácio é datado de
1959.
Não por acaso, a última palavra do livro é sintomática para a sua fatura, “futuro”. No último capítulo,
intitulado “A unidade dos problemas brasileiros”, Bastide explicita a questão do tempo implicada na sua
análise : “Todos contrastes de terras e vegetação, de raças e de etnias, de costumes e de estilos de vida,
permanecem brasileiros. Todas as oposições de velocidades e lentidão não impedem que o tempo, que ora
parece estagnar preguiçoso, ora se precipita para o futuro, seja sempre o mesmo tempo brasileiro. Até
agora, foi focalizada a harmonização dos contrários, água e fogo, açúcar e café, litoral e sertão, e verificou-
se que as civilizações antagônicas, a do gaúcho no Sul e a do vaqueiro no Norte, a do fazendeiro e a do
industrial, a do negro e a do imigrante, são antes complementares do que antagônicas. Mas há uma unidade
mais profunda do que a da simples complementariedade, entre elas; por todas a parte, são encontrados os
62
modernista, Mário de Andrade, também discutindo, a propósito, a literatura contemporânea
argentina, com uma abordagem bem diferente da perspectiva no esquema de Tristão de
Athayde, conforme artigos publicados no Diário Nacional
97
. A partir da mesma
Exposición de la Actual Poesía Argentina, Mário acaba por nos oferecer alguns dos
critérios para a composição da mesma:
Em geral as antologias são impessoais que nem a Antologia de la
Poesía Argentina Moderna de Julio Noé, saída o ano passado.
Algumas vezes são tendenciosas, o que de nenhum modo quer dizer
personalidade. As antologias tendenciosas podem revelar a paixão dos
compiladores e podem revelar as idéias dominantes duma igreja
literária, duma feição estética universal ou nacional. Porém não
possuem essa complexidade movida, essa expressão irregular bem
trágica que é a psicologia dum criador. Quanto às antologias
mesmos problemas fundamentais, impostos pelo meio geográfico ou herdados da História.” (p.232). O
sociológo realiza, anacronicamente, mas em linha(gem) direta de Tristão de Athayde, uma análise em que as
diferenças se pautam pelos contrastes, tendendo para uma complementariedade unitária. No caso de Tristão,
uma unidade para a América; para Bastide, a integridade dos estados brasileiros. Na “Conclusão”, compara, a
fim de “desfazermos todas as ilusões”, a fragmentação da América Hispânica com as decisões das
“organizações internacionais”, as quais levariam vantagem sobre nós. O que Bastide quer responder é a
pergunta “Qual o lugar do Brasil no mundo de hoje?”. Daí o papel do Brasil, na época com 55 milhões de
habitantes, de possível liderança no continente sul-americano. Citando a rivalidade Argentina-Brasil na
disputa pela liderança e indicando uma vantagem maior para este último, Roger Bastide afirma : “Poder-se-ia
pensar, portanto, que se estaria formando no seio da União Pan-Americana uma associação entre os dois
grandes países, Estados Unidos e Brasil, que mutuamente se apoiariam e procurariam, em conjunto, dirigir
toda a vida, todo o destino do continente americano.” [“Toda a América”, diríamos com Ronald de Carvalho]
(P.278). Enfim, o professor procura, através de remanejamentos geográficos, vislumbrar aproximações com
outros países, já que na América do Sul, apesar de sua separação de “idioma e de cultura” e das longas
extensões de fronteira quase inacessíveis (salvo com o Uruguai), o Brasil desponta como “potência”. Daí um
papel que, comparado ao conceito de “hispanidade” inventado pelo General Franco, o Brasil formaria uma
“federação dos países de língua portuguesa”, o que lhe facilitaria o acesso às ex-colônias portuguesas pelo
critério lingüístico e racial (ele cita o caso de alguns países africanos, por exemplo). E se é verdade que o
último livro de Gilberto Freyre, Aventura e Rotina, constituiu-se “como o primeiro manifesto de um tal
sonho (...) da originalidade de uma civilização portuguesa, onde quer que ela se encontre, como também da
identidade, por assim dizer, carnal, ligando Brasil a Portugal”, resta saber se esta não seria a indicação de um
outro isolamento, a do “mundo português”, pondera Bastide. O futuro que o crítico francês vê para o Brasil,
ainda em forma de pergunta, é o de “grande nação mediadora entre a América, a África e a Europa”. Este
futuro antecipa-se como “missão”, já que a “afirmação de um mundo latino” é fundamental no empenho em
“conservar valores hoje duramente ameaçados.” Os grifos são meus.
* “Corpo e alma do Brasil”. Enquanto a modernidade literária prefigura um movimento de desmaterialização
do objeto estético, a tendência sociológica não só reafirma a sua materialização, como indica a tendência de
unificação, aqui representados pelo “corpo/alma”.
Esta presença francesa e a basculação de influências no Brasil com as políticas culturais da guerra fria serão
analisadas em outro capítulo.
97
ANDRADE, Mário. “Poesia Argentina”, “Literatura Modernista Argentina – I”, “Literatura Modernista
Argentina – II, “Literatura Modernista Argentina – III”, “Literatura Moderna Argentina”, respectivamente,
30/10/1927; 22/04/1928; 29/04/1928; 13/05/1928 e 20/05/1928 IN ANTELO, Raul. Na ilha de Marapa
(Mário de Andrade lê os hispano-americanos). SP : HUCITEC; Brasília : INL, Fundação Nacional Pró-
Memória, 1986, pp.163-185.
63
impessoais, que ajuntaram orientações díspares, que procuram ser
imparciais, além do erro grave de serem sempre fatalizantemente
incompletas, caem sempre no mesmo defeito de não revelarem a
psicologia do compilador. Por isso ainda estão por aparecer as
antologias cuja leitura apaixone, antologias que a gente possa
chamar de vivas.
98
O escritor de Macunaíma ressalta na antologia de “Exposición”
precisamente este quase “milagre”, o de ser um “livro comovido e comovente”, possuindo a
característica de ser vivo, que “palpita na mão da gente”, e que possui o dom mais precioso
de um livro, o “poder de ser detestado...”.
De importância capital será o posicionamento de Mário de Andrade a
respeito da crítica. Em 1939, apresenta imagens que aproximam a figura do crítico como
um lutador, ativo, como aquele que rasga e descortina uma imagem, ou seja, o crítico
associado freqüentemente a figuras bélicas (imagem que não se desprende das produzidas
neste ano com o início da II Guerra Mundial), momento por ele denominado de “Fase do
louva-deus”
99
. Discutindo a questão do posicionamento do intelectual a respeito da religião,
e estando em situação “desterrada”, com sua chegada ao Rio de Janeiro, Mário esclarece
esta busca, juntamente com “uma pessoa com quem me correspondo” (p.14), do que será a
crítica domingueira: “procura do essencial” e a tentativa de não “sintetizar e classificar”.
Exatamente Mário que possui um arquivo imenso, todo classificado a sua maneira, afirma:
“Talvez mesmo jamais eu classifique ninguém. As classificações, a meu ver, são meros
verbalismos; palavras vãs, máscaras ocas com que certa crítica sumária substitui artistas e
obras, na incapacidade de explicá-los. As classificações, enfim, só têm valor bibliográfico
para efeito de fichários. E eu renego fichários mentais.”. O que serviria de material de
verdade, o escritor de A escrava que não é Isaura denomina de “material de utilidade”.
Porém, o avanço do escritor modernista se dá na compreensão de que todo o material
produzido vale como obra-de-arte, entendido aí o trabalho da crítica: “A crítica é uma
obra-de-arte, gente. A crítica é uma invenção sobre um determinado fenômeno artístico,
da mesma forma que a obra-de-arte é uma invenção sobre um determinado fenômeno
98
De “Poesia Argentina”, op. cit., p. 163, grifos meus.
99
“Começo de crítica”, do Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 5 mar. 1939 In ANDRADE, Mário. Vida
Literária. São Paulo : Edusp, 1993, p. 15. (coleção Marioandradiando I).
64
natural.”. Porém, o posicionamento modernista aponta ainda para uma “identidade”, a que
ele chama de “mais perfeita”, entendida não como a verdadeira e única, mas
“intelectualmente fecunda, substancial e contemporânea”, buscando aquela “verdade
transitória, aquela pesquisa das identidades “mais” perfeitas, que ultrapassando as obras,
busque revelar a cultura de uma fase e lhe desenhe a imagem.” (p.14 e 15). Conclui
precisamente com a comparação da “fase do louva-deus” com a incapacidade de uma
crítica que se baseie somente em “malabarismos políticos” e de “fragilidade moral de quase
todos”. Vejamos melhor sua descrição:
O louva-deus é um bichozinho mui feroz (se não me falha a memória,
a fêmea devora o macho), mas no fundo é uma incapacíssima criatura.
O seu tom é bastante verde, mas, desprovido singularmente de boas
armas de combate, o louva-deus é tímido, foge das grandes
responsabilidades belígeras, incapaz de matar mosquito. Mas vem lá o
momento em que lhe surge pela frente uma casca de cigarra
transmudada. Isso, o louva-deus se encrespa todo, faz um enorme
gesto de hostilidade, na iludida intenção de amedrontar o universo.
Mas o gesto de hostilidade do louva-deus é tão ineficaz que o
interpretaram como louvação a Nosso Senhor. A casca de cigarra não
se mexe. E vai, o louva-deus foge assustado. Fase do louva-deus.
Cultura do louva-deus.
100
O escritor modernista demonstra, através de seus textos, que mantém uma
concepção metafísica da crítica (“a procura do essencial”), ético-cristã (veja-se todo o
debate com Tristão de Athayde), além de evolucionista (uma crítica que avança por fases),
cujo modernismo pedagógico serve de modelo. Vale notar que escapa ao escritor a relação
“amorosa” do inseto, enquanto a atitude combativa (bater em retirada) ganha destaque.
Ainda nesta cena, o recuo se dá diante de um fantasma (uma casca), ausência que é vista
pelo modernista como falsa (a ausência como uma negatividade, uma falta a ser
preenchida). Se para Mário esta incompletude é encarada como um elemento falso
(amedronta o louva-deus sem razão), para outro escritor, em voga na década de 30 francesa,
Roger Caillois, um dissidente da Vanguarda, ela servirá de análise, inicialmente nas sessões
do Colégio de Sociologia, entre 1937 e 1938, para explorar a apatia como coerção
vanguardista. Caillois recupera, junto com Georges Bataille, a leitura do Marquês de Sade
100
ANDRADE, Mário. “Começo de crítica”. Op. cit., p.15.
65
para destacar da heroína sadiana seu poder de deixar o homem como mero apêndice
passivo.
Em sua quinta aparição, em maio de 1934, a revista Minotaure traz
efetivamente um estudo de Roger Caillois: “La mante religieuse, de la
biologie à la psycanalyse” [O louva-a-deus, da biologia à psicanálise],
em que o autor fornece aos futuros exegetas do animal as chaves de
sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido
constituirá um capítulo da obra de Caillois Le mythe et l’homme (...).
Com o louva-a-deus, aparece uma figura que condensa erotismo e
morte, êxtase e sacrifício, e que Bataille se põe a renovar esses valores,
a partir das leituras de Nietzsche e de Sade, interpretadas na
perspectiva dos estudos socio-antropológicos de Marcel Mauss.
101
Invertendo os papéis, é precisamente o espectro que constitui a potência das relações, cuja
presença no louva-a-deus é representativa. Didier Ottinger lembra ainda que esse
“canibalismo amoroso da fêmea do louva-a-deus pertence de pleno direito à fantasmática
sadiana”
102
. Assim, Caillois desenvolverá suas idéias em torno dessa relação mútua entre
alimentação e sexualidade: a fêmea do louva-a-deus não só se alimenta durante o coito,
como tira a alimentação do próprio corpo do macho, através de sua devoração ou da
absorção do conteúdo de uma glândula especial
103
. O estudo do louva-a-deus por Caillois é
seminal, precursor do neutro apático em Maurice Blanchot, escritor que reivindicará a
literatura como direito à morte e como silêncio
104
. Este tema estará presente em O grau
zero da escritura de Roland Barthes e, em especial, no curso sobre o neutro, ministrado no
Collège de France em 1978, pleiteando um para além do alto e do baixo, do certo e do
errado, enfim, de todo o binarismo, também desenvolvido em textos como o Bartleby de
101
OTTINGER, Didier. “Retrato da fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana”. XXIV Bienal de São
Paulo : núcleo histórico : antropofagia e histórias de canibalismo, V. 1. São Paulo : A Fundação, 1998,
pp. 247, 248.
102
Id. Ibid., p. 248. À página seguinte, acrescenta: “O canibalismo da fêmea do louva-a-deus pertence, como
numerosas características do animal, ao registro dos fenômenos transgressivos cujas ressonâncias sociais
Georges Bataille estuda. Para ele, o canibalismo constitui um dos sinais mais eloqüentes de comunhão com
uma ordem de forças superiores terríveis e inebriantes. Ritualizado, o canibalismo é para Bataille a marca de
uma sociedade que manifesta, ao mesmo tempo, assentimento e desprezo pela morte. As sociedades pré-
colombianas lhe parecem exprimir tais valores.”
103
CAILLOIS, Roger. O mito e o homem. Trad. portuguesa de José Calisto dos Santos. Lisboa : Edições 70,
1979. (Coleção Perspectivas do homem). A primeira edição data de 1938.
104
Ver, Em O espaço literário, em especial o capítulo IV, intitulado “A obra e o espaço da morte”. Trad.
Álvaro Cabral. Rio de Janeiro : Rocco, 1987, pp.81-160.
66
Herman Melville
105
. Esta linhagem desemboca na apatia como desafio ético para Giorgio
Agamben, que vê o intelectual como intérprete e para quem só haveria versões da verdade.
Utilizando a imagem do conto de Melville, poderíamos dizer que a questão para Agamben
relaciona-se ao “biombo”, o que separa e exclui, incluindo:
Uma das características essenciais da biopolítica moderna (que
chegará, no nosso século [século XX], à exasperação) é a sua
necessidade de redefinir continuamente, na vida, o limiar que articula e
separa aquilo que está dentro daquilo que está fora. Uma vez que a
impolítica vida natural, convertida em fundamento da soberania,
ultrapassa os muros do oîcos e penetra sempre mais profundamente na
cidade, ela se transforma ao mesmo tempo em uma linha em
movimento que deve ser incessantemente redesenhada.
106
Enfrentam-se, neste imaginário, as figuras da máscara e do fantasma. Poderíamos ver, na
linhagem do neutro barthesiano, a figura fantasmática que assoma como a contracara do
peso da máscara modernista, com o que vislumbraríamos na tendência pós-moderna o
momento da passagem como foco, ou ainda, a indiscernibilidade, a inoperância, para não
falar na ubiqüidade do paradoxo.
Mário de Andrade pouco ou nada tem a ver com essa tradição sadeana do
intelectual radical e não comunitário. Ao contrio, como típico iluminista, ainda percebe a
estética como julgamento – ou seja, para ele o intelectual é um legislador, um juiz. Em
função disso, creio que a metáfora do louva-a-deus não é gratuita, como a posição que ele
vem defendendo desde 1928 quando resenhou o texto de Vignale.
Ao debater um tema como o da crítica através da figura do louva-a-deus
(religião-crítica-mito), Mário de Andrade continua simultaneamente demonstrando vigor
nas atualizações intelectuais, ainda com forte influência francesa, articulando este saber a
105
O neutro assoma aqui como uma resistência passiva que afronta toda lei, toda norma. A não opção do
personagem poderia ainda ser lida como a impossibilidade de “di-gerir” as convenções. No conto, Melville
brilhantemente vincula uma compleição dos personagens às imagens digestivas, mormente todo
temperamento está a elas ligado. Bartleby é a crítica a este modelo de modernidade em que a “transparência”
dos órgãos públicos e privados se traduz na tentativa de captura dos sujeitos, através do paradoxo da
separação inclusiva, para cujo modelo a resposta é sempre um “Prefiro não fazê-lo”. No conto, o chefe de
Bartleby declara : “(...)procurei colocar ali um alto biombo verde, dobrável, que inteiramente isolasse
Bartleby da minha vista, sem contudo afastá-lo da minha voz. Assim, pois, uniam-se o isolamento e a
companhia.” In MELVILLE, Herman. Contos de Herman Melville. Trad. Olívia Krähenbühl. São Paulo :
Cultrix, 1969, p. 23, grifos meus.
67
um debate latino-americano. Prova disto é o comentário a respeito da antologia da poesia
argentina. Se observada mais de perto, ela apresenta elementos interessantes para se pensar
a forma de armar a “exposição” (o termo não é gratuito, sugere uma mostra de arte, como
em uma galeria).
107
Mas, conforme aparece na “Justificacion”, vemos que não se intenta
uma “antologia”, por outro não se foge a seu critério normatizador, ainda que em
“mostruário”, agravado com o perfil de cada escritor cujo critério de apresentação se regula
por um “carácter de aproximada totalidad”. Possivelmente, os organizadores desejam fugir
do peso que até então possuem as tradicionais antologias. Basta verificar no final deste
livro a lista apresentada
108
. A diferença reside na seção “Situacion del lector”, em que uma
espécie de manifesto se coloca para diversos escritores (Leopoldo Lugones, Rafael de
Diego, Julio Noe, Ricardo Guiraldes, Tomás Allende Iragorri e Roberto Mariani), bem
106
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo
Horizonte : UFMG, 2002, pp.137 e 138.
107
O livro é logo apresentado com uma “Justificacion”. Vejamos :
“Presentamos aquí, a más de cuarenta poetas aparecidos después de 1922 y que constituyen los diversos
núcleos y aldedaños de la nueva generación literaria.
No es esta una antología crítica. Más aun: no lleva carácter antológico alguno, en la acepción didáctica de
resumen que esta palabra contiene. Una antología siempre clausura una época o cierra una escuela,
desempeñando, en ambos casos, función de balance final, al recoger lo estable y afectivo de una retórica
transitoria.
Por eso una antología – y con menos intensidad un “parnaso” – resulta siempre un libro individual,
personalísimo, con unidad de cancionero o romancero anónimos, no obstante recoger a numerosos poetas.
Y esa homogeneidad se explica, en una literatura : por los elementos profundos, immanentes, que dan
fisionomía a una raza, y en un período literario: por las influencias comunes de ideas, de gustos y hasta de
modas, a que se hallan sometidos todos los artistas que en él actúan. Influencias inevitables, a las que nadie
puede substraerse, y que ofrecen cuando son intensas, el índice o característica que identifica todas las
creaciones de arte de una época.
Acaso en este volumen, el lector avisado desglose varias maneras, modalidades y empaques líricos.
A la facilitación de este propósito crítico responde, en primer lugar. La publicación del libro y dentro de él: su
carácter de exposicion, vale decir, panorámico e imparcial. El orden de los escritores. La omisión de
algunos, que escribiendo hoy, se nutren aún de influencias de períodos precedentes, demasiado notorias. La
inclusión de otros, en cuya débil personalidad se hace posible sondar las influencias en auge. La inserción de
la nota autobiográfica, anectódica, que aumenta al lector el conocimiento que del poeta pueda adquirir a
través de sus versos. Y por último, el esbozo físico, que da a ese conocimiento, un carácter de aproximada
totalidad.” In VIGNALE, Pedro Juan y TIEMPO, Cesar. Exposicion de la actual poesia argentina.
Reedición en facsímil de la edición original de 1927. Buenos Aires : Tres Tiempos, 1977 . (Coleccion de
Poesia “La rosa del sur”), negritos meus.
108
‘ANTOLOGIAS QUE PRECEDIERON A ESTA EXPOSICION : 1. “Antologia de Poetas Argentinos
por Juan de la C. Puig. 10 tomos. Buenos Aires. Editores: M. Biedma e hijo. 1910.” Ao todo, são
apresentadas cinco antologias, com a relação dos poetas que dela fizeram parte. Chama a atenção ainda o
caráter historiográfico que acaba por assumir a exposição. Após esta relação, segue-se o nome das revistas
que “registran los nombres de la presente exposicion”, “Una encuesta”, em que se elegem, na opinião pública,
os poetas mais preferidos, um quadro dos colaboradores gráficos, além de um quadro dos expositores, “(con
sus respectivas profesiones y domicilios)”. Id. Ibid., pp.251-256 e páginas seguintes (não numeradas).
68
como o “Rol de ‘Martin Fierro’ en la renovacion poetica actual”, de Evar Mendez. É bom
frisar que o texto apresenta mescla de prosa e verso, com preponderância deste último
109
.
Se os textos são apresentados antecedidos por uma biobibliografia, sugerem
ainda que o critério histórico é decisivo na mostra. Ou seja, não se lê o texto sem que antes
se saiba a quem pertence. Talvez a seção mais significativa esteja no final, na questão
apresentada em “Asteriscos”. Há dois. O primeiro:
A los problemas tácitos de la poesía, se ha agregado aquí, y podríamos
asegurar que en América, el problema de lo nacional. Nunca se ha
debatido tanto acerca de este punto ni se ha sentido casi con angustia
como en la presente generación la falta de una tradición racial, única y
milenaria. ¿Qué es lo nacional? ¿quién hace lo nacional? Nacional es
“Martin Fierro”, pero no es una aspiración nacional el gaucho.
Nacional es Carriego, pero tampoco será una cardinal el suburbio. Sin
embargo, con estos dos focos se ha iluminado, con vistas a la
eternidad, por una parte, una retórica de espuelas y pampitas, ultimada
a metáforas, como gato con relaciones, y por la otra una retórica
fatalista, sentimental, hecha de espíritu de tango, a ratos bravucona y
atropelladora, pero siempre ingenua como una milonguita. En las dos
corrientes prima la anécdota, la relación, y otro es el camino de la
poesía pura.
110
O texto adianta a problemática do horizonte através do “folk-lore”, por meio de publicações
como “Cancionero Popular Rioplatense” e “Antiguos cantos populares argentinos”
111
, além
de uma verdadeira “invasión” de escritores regionais
112
. Ora, este debate coincide com toda
a questão levantada no Brasil, e que se tornará uma vertente fortíssima, depois engendrada
109
Há uma idéia de mesclar diversos escritores (poetas) com profissões também ecléticas para acentuar o
caráter heterogêneo da exposição, portando certa jocosidade na apresentação. Desta forma, os escritores
aparecem como professor, arquiteto, humorista, advogado, empregado nacional (funcionário público),
periodista, o químico industrial, o ator cinematográfico, maestro e entomólogo, jogador de tênis, ciclista,
espectador (caso de César Tiempo). Para todos os efeitos, o que se encena é a situação do “homem comum”
tornado “intelectual”, ainda que a paródia modernista procure ocultar este fato. Neste sentido, poderia-se rever
toda a produção narrativa cujo foco sejam as “memórias”, em que, freqüentemente, este tema aparecerá: por
exemplo, no Brasil, o romance de Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, cujo título já
indica a passagem do narrador da história do simples funcionário que alcança as “letras” (e duplamente, as
do periódico e as do livro).
110
VIGNALE, Pedro Juan y TIEMPO, Cesar. Exposicion de la actual poesia argentina. Op. cit., p.245,
negritos meus.
111
De Jorge M. Fürt e Alfonso Carrizo, respectivamente.
112
Afirma o texto: “Es el refugio de los escritores impersonales que quieren guardar una individualidad
aparente.”. Neste ponto, a crítica coincide com a de Mário de Andrade, que denomina de “impessoais” as
antologias que têm surgido, como a da “Exposicion”. De outra forma, poderíamos ler na “impessoalidade” da
antologia o desejo de ver retratada a figura do escritor/legislador, a sua marca, a sua “persona”.
69
pelo grupo de literatura regionalista, cujo modelo será a produção de Graciliano Ramos. O
outro extremo existe, a saída com Macunaíma
113
.
Vale ressaltar, então, que acontece, nas décadas de 20 e 30, um diálogo que
busca uma interferência nas políticas artísticas, em especial as literárias, mantendo
escritores atualizados com o que se passa no mundo e, inclusive, com países vizinhos.
Neste sentido, podemos perceber, através da promessa do texto de Ronald de Carvalho,
“Poesia argentina e poesia brasileira”, este “e” intermediário que liga e separa, ao mesmo
tempo, a poesia dos dois países. Após a análise do texto de Tristão de Athayde, partindo da
antologia de Pedro Juan Vignale e César Tiempo, Ronald afirma: “Nós também temos uma
poesia de cidade grande, sacudida por trepidantes ritmos. Para prová-la, poderíamos
organizar toda uma antologia nesse sentido.” (p.154, grifos e versão minhas). Destaco
neste ponto como os modernistas lêem a antologia, ou ainda, como a montam a partir dos
diálogos estabelecidos, para fazerem valer sua estratégia cultural. No caso de Ronald, ele
acaba por nos revelar este desejo pedagógico, um dever ser que atua como espécie de
fantasma entre os escritores de seu tempo, “para prová-la”. Desta forma, interessa-me
perceber como esta antologia armada no início do século interfere em outros modelos, a
saber, os da academia, da escola, uma vez que sua influência é decisiva para os padrões
canônicos estabelecidos depois da década de 50. Se o texto de Tristão de Athayde é um
“notável ensaio de classificação”, segundo Ronald no ensaio citado, o que seria a antologia
de hoje? Para continuar a investigação, poderíamos nos acercar mais, com lentes de
aumento, deste universo.
Temos, então, um diálogo entre Ronald de Carvalho, Mário de Andrade,
Oliverio Girondo, Valery Larbaud e Manuel Bandeira. Diríamos que formam esta espécie
de “quadrilha literária”
114
através da qual muitas influências demarcam esse momento
modernista. Se Ronald de Carvalho prepara, de certa forma, o “futuro” com o sonho de uma
antologia, voltemos ao “passado” para ver como outras antologias se formam.
113
Finaliza esta parte : “Se ha tentado hacer arte guaraní, quechua, incásico, rematando en lo carnavalesco y
anacrónico. Son respectables por el momento y por esta misma crisis, aquellos que ensayen una poesía “en”
popular dentro de cada provincia, pero con cierto sentido consciente de lo puramente artístico, por lo mismo
que preparan y facilitan la tarea del que habrá de construir con ello una obra orgánica y definitiva.”
VIGNALE, Pedro-Juan et. alii. Op. cit., p. 247, grifos meus.
114
Expressão utilizada por Raul Antelo em “A aporia da leitura”. Ipotesi – Revista de estudos literários. n.1,
v.7 jan/jun 2003. Juiz de Fora : Un. Federal de Juiz de Fora, 2003, p.35.
70
Uma das peças desse jogo encontra-se na interferência de Valery Larbaud,
poeta, crítico e tradutor francês, que teve uma vida de fartura e de opinião, proporcionando-
lhe o ócio necessário para gozar o seu tempo e com ele elaborar seus textos, transitando não
só no circuito parisiense do início do século XX, como realizando diversas viagens pela
Europa e América, intensificando as suas relações
115
. É através da antologia “larbaudiana”
que os escritores reforçam seu olhar de estranhamento à própria produção literária. Assim
como Apollinaire encontra no pseudônimo refúgio para publicar textos considerados
“infames”, Larbaud inventa um nome para publicar “intimidades” – roteiros de viagens,
impressões, notas sobre poesia e literatura em geral. Fica conhecido no meio intelectual
com a publicação de Les poésies de A. O. Barnabooth
116
e com o sucesso de A. O.
Barnabooth – son journal intime
117
. As primeiras edições de Poesias saem em 1910 e
1911, inicialmente pela Nouvelle Revue Française, em seguida pela Ed. Fasquelle, sendo
que em 1913 são publicadas pela La Pleiade.
Barnabooth é uma espécie de alter ego do escritor e com ele Larbaud abre
espaço para desenvolver suas notações, como num caderno de rascunhos. Em 1946, publica
uma série de ensaios, intitulados Sob a invocação de São Jerônimo – ensaios sobre a arte
e técnicas de tradução
118
, saídos pela Gallimard. Também publicou De la littérature que
c’est la peine
119
, sendo que atualmente há obras que reúnem a correpondência de Larbaud
com Alfonso Reyes
120
, Sylvia Beach e Adrienne Monnier
121
, a partir da análise dos textos
115
Boa parte da intensa vida cultural de Larbaud com escritores latino-americanos pode ser observada a partir
de cartas e de publicações em periódicos, como na revista Nosotros, onde deixou clara sua intenção de
participar de uma política cultural entre França-América Latina. Com o autor de Don Segundo Sombra,
trocou várias correspondências. Desde sua primeira carta (8 de junho de 1921), Güiraldes procura estreitar os
laços com o escritor francês, manifestando suas preocupações com o posicionamento europeu: “En Europa, el
problema está en ver las cosas bajo el prisma de un temperamento interesante. Muchos se torturan en buscar
una forma de arte novedosa. Aqui todo el secreto estaria en apartarse de normas ajenas y dejar que los sujetos
mismos fueran creando en uno la forma adecuada de expresarlos. ¡Y pensar que en cada una de las formas del
arte hay un alma que está esperando su palabra!” In “Del epistolario”. Güiraldes, Ricardo – Obras
Completas. Buenos Aires : Emecé, 1985, p.743. Até janeiro de 1927, foram várias as cartas trocadas, sendo a
revista Sur uma das primeiras, senão a primeira, a publicá-las (ver número 1, ano I, 1931).
116
LARBAUD, Valery. Les poésies de A. O. Barnabooth. 20ª ed. Paris : Nouvelle Revue Francaise, 1930.
117
23ª ed. Paris : Nouvelle Revue Française, 1932.
118
A tradução brasileira é de Joana Angélica. SP : Mandarim, 2001.
119
Fata Morgana, 1991.
120
In Correspondance 1923-1952. Introduction et notes de Paulette Patout. Paris : CNRS – Librarie Marcel
Didier, 1972.
121
In Lettres à Adrienne Monnier et à Sylvia Beach – 1919 – 1933. Correspondance établie et annotée par
Maurice Saillet. Toulouse : IMEC Éditions, 1991.
71
conservados principalmente no Centro Valery Larbaud, em Vichy, na França e na Capilla
Alfonsina, no México.
A antologia poderia ser concebida sob este princípio de “correpondência”
com que a vida parece estar entremeada. Outro mexicano, Octavio Paz, retomando
Baudelaire, comenta duas idéias que mantêm estreita relação com a “correspondência”.
Uma delas consiste em ver “o universo como uma linguagem
122
e a respeito da segunda,
acrescenta:
Se o universo é uma escrita cifrada, um idioma enigmático, “o que é o
poeta, no sentido mais amplo, senão um tradutor, um decifrador?”
Cada poema é uma leitura da realidade; essa leitura é uma tradução;
essa tradução é uma escrita: um voltar a cifrar a realidade decifrada. O
poema é o doble do universo: uma escrita secreta, um espaço coberto
de hieróglifos. Escrever um poema é decifrar o universo, só para cifrá-
lo novamente. O jogo da analogia é infinito: o leitor repete o gesto do
poeta; a leitura é uma tradução que transforma o poema do poeta em
poema do leitor. A poética da analogia consiste em conceber a criação
literária como uma tradução; essa tradução é múltipla e nos põe diante
deste paradoxo: a pluralidade de autores. Uma pluralidade que dá no
seguinte: o verdadeiro autor de um poema não é nem o poeta nem o
leitor, mas a linguagem.
123
Desta forma, teríamos o desaparecimento do “texto único”, bem como da
noção de “autor”, segundo o escritor mexicano, para quem a analogia constitui-se na
“ciência das correspondências”. A antologia não funciona de maneira diferente, ao tornar-
se linguagem, regida segundo o princípio da tradução, da analogia. Diria que a analogia
permanece em forma latente, porém, ao mesmo tempo, é sua força ativa. O “verdadeiro
autor” não seria nem o poeta nem o leitor, mas a própria linguagem. Estamos diante de
conexões sugestivas e simultaneamente imprevisíveis. Tanto para Octavio Paz quanto para
Georg Simmel, este é o princípio da ponte:
C’est à l’homme seul qu’il est donné, face à la nature, de lier et de
délier, selon ce mode spéciel que l’un suppose toujours l’autre. En
extrayant deux objets naturels de leur site tranquile pour les dire
122
PAZ, Octavio. Os filhos do barro – do romantismo à vanguarda. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1984, p.97.
123
Id. Ibid., p.98-99.
72
“séparés”, nous les référons déjà l’un à l’autre dans notre conscience,
nous les détachons ensemble de ce qui s’intercalait entre eux. Et
inversement, nous sentons raccordé ce que nous avons, d’une
quelconque manière, commencé par isoler respectivement; il faut
d’abord que les choses soient les unes hors des autres pour être ensuite
les unes avec les autres. Il serait absurde, pratiquement et logiquement,
de relier ce qui n’était pas séparé, voire ce qui, en un sens, ne reste pas
séparé. La formule selon laquelle se conjuguent, dans les opérations
humaines, ces deux activités – est-ce l’état de liaison ou l’état de
scission qui est ressenti comme naturellement donné, et leur contraire à
chaque fois comme la tâche qui nous est fixée? – cette formule, donc,
articule tout notre faire. Dans un sens immédiat aussi bien que
symbolique, et corporel aussi bien que spirituel, nous sommes à
chaque instant ceux qui séparent le relié ou qui relient le séparé.
124
No duplo movimento de ligar separando e de separar religando, o texto conforma-se a uma
espécie de passagem intermitente. Ele é a própria passagem. Ele é a paisagem - Valery
Larbaud – a partir da qual muitas das cenas com os modernistas acontecem
125
.
O livro de poesias de A. O. Barnabooth assemelha-se a uma plataforma, a
partir da qual Larbaud desenvolve suas impressões e sua poética, uma poética da viagem,
portanto, do estrangeiro sempre em terras alheias, nesta invenção de um personagem latino-
americano, boliviano, para ver o mundo de outra forma. Ora a viagem se dá através do
navio, ora através da locomotiva, esse movimento que entra nos poemas para dizer o
“indizível”. Vejamos um pouco desse percurso.
124
SIMMEL, Georg. La tragédie de la culture et autres essais. 2ª ed. Paris: Rivagens, 1993, p. 161 e 162,
grifos meus. Nos trabalhos deste pensador, a ponte corresponde à noção de indivíduo como pontos de
cruzamentos. “[...] a individualidade específica é garantida pela combinação dos círculos, que em cada caso
pode ser um outro. Assim, pode-se dizer que a sociedade se origina dos indivíduos, e que o indivíduo origina-
se da sociedade.” In : WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo : USP, Curso de
Pós-Graduação em Sociologia : 34, 2000, p. 489.
125
As influências francesas são decisivas para os latino-americanos, principalmente no século XIX. Assim
como houve um momento em que Mário procura firmar-se perante sua literatura, também na passagem do
XIX para o XX esse desejo estava presente. Neste sentido, poderia-se consultar Decadentismo e Simbolismo
no Brasil – Crítica e poética. Rio de Janeiro : Livros Técnicos e Científicos; Brasília : INL, 1980, vol.1, com
apresentação e seleção de Casssiana Lacerda Carollo. Em uma crônica de 1887, o crítico Ezequiel Freire,
resenhando sobre o poeta Wenceslau de Queirós ( “O Baudelaire Paulistano”), traçava o seguinte paralelo,
que dá uma amostragem de alguns critérios para elaboração de uma crítica, na qual o poeta é figura central:
“Baudelaire e Wenceslau são igualmente feios, com esta diferença: que o primeiro tem algo híspido o lábio
superior, rapada completamente à navalha no outro. / Mas a boca é a mesma em ambos : grande, carnuda,
sensual. / Daí, apesar dessa similitude, esta disparidade: - Baudelaire aparenta um roupeta lúbrico, Wenceslau
um fauno voluptuoso. / A referida afinidade psicológica é documentada em ambos por um prognatismo
característico. / Também em suas obras, nenhum dos dois disfarça ou atenua, antes parece que faz timbre
daquele pendor luxurioso do espírito. / Baudelaire escreveu as Flores do Mal, aquela fermentação poética
73
Um dos destinos preferidos de Barnabooth, este heterônimo, é a Europa.
Itália é sua primeira parada. Larbaud realiza este “détour”, rodeio, desvio permanente do
caminho, que se configura como uma poética da sedução para os escritores do início do
século XX, “Ces chemins tortueux ouverts à tous/ les vents” (p.19) e passando por
Centomani, pergunta-se se o homem que já foi não será mais. Estamos em Corfou , abril de
1904. Assim como uma máquina de lembrança, o texto de Larbaud vai recolhendo,
recompondo os restos que ficaram : “Il y a une maison de paysan, en ruines,/ Inhabitée; sur
un des murs on a écrit / En français, ces mots peut-être iro-/ niques : Grand Hôtel.”
(p.19,20). Temos a paisagem recorrente de Barnabooth – o Grande Hotel, este lugar de
moradas fugidias, sempre provisórias, em que a vida parece realizar seu grande gesto.
Outro lugar recorrente será o seu aparente oposto, o porto, com sua “visage vaporisé”.
Como se percebe, o recurso do deslocamento é permanente neste poética.
Em Portugal, onde “Quelques mois ensoleillés de ma vie/ sont encore là/ (Tels que le
souvenir me les représentait, à Londres)” (p.22,23), a série de lembranças convoca o eu-
lírico : “En attendant je passerai cette nuit/ avec mon passé” (p.24). Com “Le masque”, o
outro tem seu lugar, como um beijo lento e demorado de si mesmo : “J’écris toujours avec
un masque sur/ le visage;/ (...) /Je me contemple dans le miroir en/face” (p.25), deixando
emergir este falso, mas também verdadeiro, da escritura. Há algo de “infantil” e “bestial”
neste perfil, comenta Barnabooth. Importa notar nessas imagens a filiação que o poeta
evoca, uma linhagem que certamente vem de Baudelaire, Rimbaud ou explicitamente de
Edgar Allan Poe com “Nevermore...”, onde a imobilidade num quarto de hotel contrasta
com o esplendor e o enigma da paisagem à frente: “Peut-être que j’ai faim de choses in-
/connnues?” (p.30).
Em “Ocean Indien”, ele elogia, na noite tropical, exatamente o que lhe
escapa, o que se evapora e se perde, enquanto em “L’éterna voluttá”, o perfume de “fleurs
décomposées” invade o espaço e nada parece equiparar-se à eterna voluptuosidade da dor.
De onde este florilégio do “mal”, de uma decomposição
126
que parece minar e predominar
esverdeando-se sobre um belo talento e um’alma corrupta... / Wenceslau, que não chega a ser um satânico, é,
entretanto, caracteristicamente, um erótico.” (pp. 151 e 152).
126
Esta idéia de uma antologia ligada à idéia da decomposição vai aparecer fortemente em outro escritor,
contemporâneo de Larbaud, E. M. Cioran. Um exemplo aparece neste fragmento “O pensador de ocasião” :
74
(em) todo o campo. O poeta chega a identificar-se a ele “Vous voyez en moi un homme/
Que le sentiment de l’injustice sociale/ Et de la misère du monde/ A rendu complètement
fou!/ Ah! Je suis amoureux du mal!” (p.34).
Um dos símbolos da efemeridade desta poética está na estação de trem – esta
outra imagem de um ponto de passagem. Na “gare”, Barnabooth a vê como uma dupla
porta aberta sobre a imensidão da terra, como um jogo de Deus. Um trem que passa por
nós, sem parada, sem contato, a forma pura da efemeridade. E se nos lança uma paz
bucólica, esta estação, através de Blaise Cendrars no ouvido de Oswald de Andrade,
transforma-se na suscetibilidade do destino, na sua reversabilidade. A estação, bem como a
escritura, encena-se como possibilidade, a iminência do acontecimento :
Uma sugestão de Blaise Cendrars: - Tendes as locomotivas cheias, ides
partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O
menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
127
“Vivo na espera da Idéia, a pressinto, a cerco, apodero-me dela e não posso formulá-la, ela me
escapa, não me pertence ainda: a terei em minha ausência? E como, de iminente e confusa, torná-la presente e
luminosa na agonia inteligível da expressão? Que estado devo esperar para que ela floresça e murche?
Antifilósofo, abomino toda idéia indiferente: nem sempre estou triste, logo não penso sempre.
Quando olho as idéias, elas me parecem ainda mais inúteis que as coisas; desse modo, só adorei as
elucubrações dos grandes enfermos, as ruminações da insônia, os relâmpagos de um pavor incurável e as
dúvidas atravessadas de suspiros. (...) Aquele que pensa quando quer não tem nada a dizer-nos; está a cima,
ou melhor, à margem de seu pensamento, não é responsável por ele, nem está em absoluto comprometido
com ele, pois não ganha nem perde ao arriscar-se em um combate em que ele mesmo não é seu próprio
inimigo.(...) Não acontece o mesmo com um espírito para quem o verdadeiro e o falso deixaram de ser
superstições: destruidor de todos os critérios, ele se constata, como os enfermos e os poetas; pensa por
acidente: a glória de um mal-estar ou de um delírio lhe basta. Uma indigestão não é, por acaso, mais rica em
idéias que um desfile de conceitos?”. In Breviário da decomposição. 2ª ed. Trad. de José Thomaz Brum. Rio
de Janeiro : Rocco, 1995, p. 101, negritos meus. Parece-me fundamental destacar, juntamente com este
pensamento da flor que apodrece, o pensamento que acontece “por acidente”, bem como esta idéia da
“indigestão”, fundamental para o pensamento modernista brasileiro. Pretendo desenvolver mais adiante um
pouco mais estas “idéias”. A epígrafe deste ensaio de Cioran intitula-se: “As idéias são os sucedâneos dos
degostos”, recortada de Marcel Proust. A edição do Breviário é de 1949.
127
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. 5ª ed. SP : Globo, 1991, p. 66. (Obras completas de Oswald de
Andrade). Toda a reivindicação antropofágica reside nesta imagem primeira do “estômago” capaz de
transformar o mundo, de engoli-lo e de capitalizá-lo à brasileira. Um verso famoso de Mário de Andrade,
exatamente contra o burguês, também recupera esta imagem que gira em torno de um excesso de alimento
que nada gera: ODE AO BURGUÊS
Eu insulto o burgês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
(...)
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
(...)
Morte à gordura!
75
Se com Oswald temos já manifestado o princípio de uma gestão das idéias
mistas, os textos de Larbaud também vão recobrar esta possibilidade. No caso, a influência
da literatura hispânica, e pouco tempo depois, a hispano-americana, com ecos dessa di-
gestão modernista. Por exemplo, “Voix de servantes”. É através de uma janela aberta que o
poeta respira finalmente um “air vivant” e se aprofunda num mundo em que os paradoxos
afloram à pele: são os momentos de santidades cruéis, onde “(L’estomac est une besace
pleine, les/ yeux/ Sont deux lanternes allumées)”, (p.42). É também o momento em que a
escrita em francês começa a ceder, a se permear das outras influências/ou seu reverso, a
fala “latino-americana” que desinstitucionaliza a língua padrão: “La Paloma et “Llora,
pobre corazon” (...) Ecoutez ces furieuses, criant à grosses/ voix, l’air:/ “Anteayer vi a una
señora...” ” (p.45), na duplicidade de uma lembrança que é ao mesmo tempo “revoir” e
“ravoir”. Vira-se a página e temos outro mundo. A fala hispânica (latina) é quem emerge
Morte às adiposições cerebrais!
(...)
Come! Come-te a ti mesmo, oh! Gelatina pasma!
Oh! Purée de batatas morais!
(...)
ANDRADE, Mário. Paulicéia desvairada. In Poesias completas. Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo :
Universidade de São Paulo, 1987, p.88, 89. Compare-se esta passagem com a de Larbaud, em “Alma
perdida”. Enquanto em Mário este excesso é prejudicial, não cumpre função alguma, em Larbaud este ócio
vira matéria de seu poema, uma perdição que encontra seu êxtase no puro dispêndio dessa digestão banal:
A vous, aspirations vagues; enthou-
siasmes;
Pensers d’après déjeuner; élans du
couer;
Attendrissement qui suit la satis-
faction
Das besoins naturels; éclairs du génie;
agitation
De la digestion qui se fait; apaise-
ment
De la digestion bien faite; joies sans
causes;
(...)
Grande poésie des choses banales :
faits divers; voyages;
(...)
O splendeurs de la vie commune et
du train-train ordinaire,
A vous cette âme perdue.
Les poésies de A. O. Barnabooth. Op. cit., p.48, 49,50.
76
para justapor-se à francesa. Mas poderíamos ver também nesta tentativa o mecanismo de
repressão (da língua e da cultura, portanto), de uma estrutura que insiste em retornar.
Há uma tensão neste sentir moderno que se exacerba em alguns poemas de
Valery Larbaud. Neste caso, essa “dor moderna” está ligada à memória. É sempre uma
lembrança que desencadeia o ritmo do poema: “Oh, prolonger le souvenir de cette/ douleur
moderne,/ Cette douleur qui n’a pas de causes,/ mais/ Qui m’est un don des Cieux.” (p.55).
Essa dor está associada também aos territórios otomanos, ou com olhos a lugares menos
freqüentes na literatura, como “Mers-el-Kebir” na Argélia. Aqui a subjetividade encontra-
se nesta máxima moderna de que “eu sou o Outro”, numa dissipação da materialidade: “Je
suis la paloma meurtrie, je suis les/ orangers,/ Et je suis cet instant qui passe et le/ soir
africain;/ Mon âme et les voix unies des man-/ dolines.” (p.57).
Os poemas vão se configurando sempre como esta dobra, “coude” (p.45),
uma esquina, um espaço da memória que evoca outro lugar, uma rua como um grande
corredor perfurado, de imagens que estão sempre evocando outras imagens, configurando
uma “antología de imágenes”
128
. São versos que trazem um pouco da tradição simbolista,
mas agora, entrecortados por esta explosão de sensações
129
. Se há um Mistério, este
mistério está presente na vida do poeta, num agora que não pode deixar-se para depois.
Diria, então, que este mistério, como em Mallarmé, é um mistério da palavra, um
significante em permanente estado de deslizamento. Em Larbaud, elas ganham a rua, e
permanecem neste eu que se dissemina em tudo, um presente que é passado o tempo todo.
128
A expressão é de Borges, incluída no prólogo do livro La República Argentina de Gustavo Thorlichen. O
texto trata desse plus do olho, desde a “fotografia pictórica” até o microscópio, telescópio, enfocando o olho
como esta “suerte de cámara” e vice-versa. Abordando o território (o pampa) e a memória, Borges arremata:
“la vastedad no esta en cada percepción de la pampa (que es lo que puede registrar la fotografía) sino en la
imaginación del viajero, en su memoria de jornadas de marcha y en su previsión de otras muchas. La pampa
no se da en una imagen, es uma serie de procesos mentales.” In BORGES, Jorge Luis. El círculo secreto
Prólogos y notas. Buenos Aires : Emecé, 2003, pp.17, 18.
129
Creio que a poesia de Larbaud é representativa de um momento em que os poetas e intelectuais procuram
desvencilhar-se de uma estética hegeliana, preparando o terreno para outras experimentações e outras formas
de exprimir a vida. Com Hegel temos o campo ainda estreitamente definido, entendido enquanto uma
tentativa de conceber a vida, e o belo, como elementos detectáveis. Em “II – O ponto de partida da Estética”,
incluído em Estética – A Idéia e o Ideal, ele afirma: “A questão inicial que se nos apresenta é a seguinte: por
onde iremos abordar a nossa ciência, que nos irá servir de introdução na filosofia do belo? Claro que é
impossível abordar uma ciência sem preparação, que é sobretudo necessária quando se tratar de uma ciência
cujo objeto seja de ordem espiritual. / Qualquer que seja o objeto de uma ciência e qualquer que seja a própria
ciência, em dois pontos se deve demorar a nossa atenção: um, o de que tal objeto existe, outro, o de saber
aquilo que ele é.” In Hegel. Trad. Orlando Vitorino et al. 4ª ed. São Paulo : Nova Cultural, 1988, p.4.
(Coleção Os pensadores, vol.1).
77
É o deslizamento de voir/voisin, olho que perscruta, mas que também não fica só atrás da
janela. Em “Musique apres une lecture” explicita-se : “Mais, ma vie, c’est toujours cette
rue/ à la veille”(p.61), atravessada pelos sons dos músicos e de seus instrumentos. E num
contraste formidável, opõe a América, com suas cataratas e florestas, o silêncio dos Andes,
ao que de fato lhe causa uma harmonia indescritível. A esses dois gigantes, há uma “bête
lyrique” que habita e embala o seu coração, quimera também da modernidade, monstro que
engendra o caderno de poesias, que arma a antologia. Uma antologia que oscila entre o
critério nacional/transnacional. Em seu estudo sobre o Novo Mundo e os limites das
literaturas nacionais, Roland Greene aponta para a assimilação das narrativas (de conquista,
em especial), entre as nações:
Seen from the perspective of the several national literatures involved,
most of the works that go into this factitious cannon may seen to tell a
story that can be assimilated into the various narratives of conquest by
Spain, Portugal, England, and so forth, and thus to join available
national canons easily enough. But seen together (...) these works take
on a profoundly different character: that of a tradition with something
of the coherence and urgency of a national literature, but defined in
every instance not by a single shared origin in society or language
but by a relation to a multivalent, transhistorical process occurring
in the settlement and acculturation of the Americas by Europe and
the ensuing exchange of cultural material in both diretions,
continued to the present day in locations as different as contemporary
Spain, Brazil, Mexico, and the United States.
130
Outro poema, “Thalassa”, evoca toda uma cena, em que o elogio a Homero e
Virgílio equiparam-se ao mar flutuante das palavras. Poderia ser definida como uma
epifania dos sentidos, em que o silêncio, o branco, o nada da tela misturam-se à linha do
horizonte, sempre movente. São sons, cores, vozes, visão (o mar) como um grande
brinquedo. É um vapor romano, pintado de “branco”.
Mas todo este trajeto pode condensar-se, enquanto uma poética, no poema
“Ma muse”, em que o canto à Europa se dá atravessado por um outro mundo, agora novo.
Habitado de madeira perfumada, de papagaios (dominó de muitas cores...), com flechas
coloridas, frutas estrangeiras, enfim o mundo de Colombo em Barcelona, com o que
130
GREENE, Roland. “New World studies and the limits of national literatures” In Stanfort Humanities
Review (Disciplining Literature). Op. cit., p. 91, grifos meus.
78
veríamos nesta reivindicação de Larbaud de uma presença latino-americana que oxigena,
refunda a Europa. Ela repõe uma presença seqüestrada, por assim dizer, o rapto que se deu
desta voz tão andina, transformada em imagem majestosa (os Andes, a floresta tropical).
“La muse qui m’inspire est une dame/créole,/ Ou encore la captive ardente que le cavalier
emporte” (p.70). E se os amigos do poeta reconhecem sua voz, suas entonações “Familières
d’après dîner” (p.70), a questão para ele é “saber pôr o acento onde ele falta”, uma falta que
dita o que Barnabooth chama de “borborygme”. Este ritmo encontra também seu ponto
morto, ou ainda, é precisamente o ponto morto da retina en “Le don de soi-meme” que
permite que o poema se estenda. Um grau zero, o neutro, diríamos com Roland Barthes. “Il
y a quelquer chose en moi,/ Au fond de moi, au centre de moi,/ Quelque chose d’infiniment
aride/ Comme le sommet des plus hautes/ montagnes;/ Quelque chose de comparable au/
point mort de la rétine,/ Et sans écho,/ Et qui pourtant voit et entend;” (p.72, 73). Barthes,
explorando precisamente esta categoria do poético (ao lado do monstruoso) de uma certa
imobilidade”, dirá:
Gaba-se sempre o movimento de um desenho. Contudo, devido a um
paradoxo inevitável, a imagem do movimento tem de aparecer parada;
para significar-se a si mesmo, o movimento deve imobilizar-se no
ponto culminante de sua trajetória; é este repouso inaudito,
insustentável, que Baudelaire qualificava de verdade enfática do gesto
e encontrada na pintura demonstrativa, na de Gros por exemplo; a esse
gesto suspenso, supersignificante, poder-se-ia dar o nome de numen,
visto ser realmente o gesto de um deus que cria silenciosamente o
destino do homem, isto é, o sentido.
131
131
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos e O grau zero da escritura. Op.cit., p. 39. Igualmente,
Frederic Jameson cita a “Teoria da imobilidade” de Walter Benjamin ao tratar do processo da “seqüência
congelada” da interiorização da narrativa em A modernidade singular. Op. Cit., pp.147, 148. Segundo
Benjamin : “Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora
de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. (…)
Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a
imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras
palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é
puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética.
Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não-arcaicas. A imagem lida,
quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico,
perigoso, subjacente a toda leitura.” In BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. Irene Aron et al. Belo
Horizonte : UFMG; São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, pp.504 e 505, grifo meu.
79
O escritor de A câmara clara, analisando a Enciclopédia, trata precisamente deste
processo de recorte de que a antologia utiliza como princípio fundamental. Assim como o
poeta, Larbaud, utiliza a palavra para falar da palavra, o mesmo critério orienta o
“dicionário”, numa espécie de “surrealismo desvairado” em que uma certa violência se faz
necessária para aprofundar e desvendar este mundo. Logo, a paisagem de Barnabooth só
pode ser desvendada por este ponto morto, instante em que o Bem e o Mal se identificam
com uma lembrança melancólica (p.75 e 76). O recorte do mundo é o recorte do olho, um
excesso que habita o interstício. Roland Barthes conclui seu ensaio comentando este
processo:
De um modo geral, a Enciclopédia é fascinada, por excesso de razão,
pelo reverso das coisas: ela corta, amputa, esvazia, gira, pretende
passar para o lado de trás da natureza. (...) A Enciclopédia procede
incessantemente a uma ímpia fragmentação do mundo: entretanto, o
que chega a encontrar ao término de todo este quebrar não é o estado
fundamental das causas puras; as mais das vezes, a imagem a obriga a
recompor um objeto que é na verdade um contra-senso; uma vez
dissolvida a primeira natureza, surge uma outra, tão constituída quanto
a primeira. Numa palavra: a fratura do mundo é impossível: basta um
olhar – o nosso – para que o mundo se torne eternamente pleno.
132
Entre “Un être fait de néant, si c’est possible,” se coloca “le sens de / ces poèmes,/ Non ce
qu’on lit, mais ce qui paraît/ à travers malgré moi: Prenez, prenez, vous n’avez rien.”, num
encontro da Vida insatisfeita (sempre faltando, vazia) com o inconquistável Nada (“Rien”)
(p.74).
A paisagem de “Carpe diem...”, “à la fois désespéré et tendre”, complementa
o poema anterior em que o pequeno porto é como o “porto definitivo das existências
(p.78). Ou seja, o ponto neutro é este do silêncio, da Morte, aqui evocados.
A composição do livro ganha, na seqüência dos cortes, este recurso da
filmografia : “Imagens I, II, II”, incorporando a idéia de movimento, mas ao mesmo tempo
de semblantes e sensações desconexas. Ora se está na rússia (Karkow), ora em Rotterdam
(1900), quando o olho recompõe o cenário “J’observais deux jeunes filles” (p.81), captando
no olhar fixo das jovens a suspensão do tempo em seu momento de morte. E se o olhar
132
Id. Ibid., p.41.
80
capta este momento do desejo, também retém, entre Cordoue e Sevilha, para o viajante que
busca uma cidade, as imagens da dança de uma jovem moça pobre, vendendo o seu “dom”.
A inquietação de Barnabooth advém do fato de que elas nunca saberão quem ele é, porém,
reside em seu movimento a certeza de que elas existem. “Hélas, elles ne liront pas ces
poèmes,/ Elles ne sauront ni mon nom, ni la/ tendresse de mon coeur;/ Et pourtant elles
existent, elles vivent/ maintenant. )” (p.84). A escritura como pura perda, que, segundo
Blanchot, “não é acabada nem inacabada: ela é. (...) A solidão da obra tem por primeiro
limite esse ausência de exigência que jamais permite afirmá-la acabada ou inacabada.”
133
.
Outros poemas dão conta deste passeio latino-americano pelos países
europeus, ressaltando sua “realidade interior”: “La mort d’Atahuallpa”, encerra esta parte
com não menos um poema de “L’innommable”, em que o canto do poeta ganha força na
tensão do jogo entre visibilidade e “La Beauté Invisible” (p.94).
A última parte do livro, denominada de “Poésies / II / Europe” é composto
por dez textos, em que Barnabooth reafirma os princípios de composição dos poemas
anteriores, porém canta essa possibilidade de, povos civilizados que podem circular por
outros lugares, e conquistar o mundo, como antecipado em “Imagens”, “Je pourrais
conquérir un monde!” ao abordar as jovens desconhecidas. No “canto” III temos: “Que
nous ne sommes ici que des hôtes/ de passage/ Dont les empreintes marquent à/ peine, san
doute,/ Sur cette boue légère et brillante que/ nous foulons./ Quand nous vondrons, nous
rentre-/ rons aux forêts vierges,/ Le désert, la prairie, les Andes colos-/ saux,/ Le Nil blanc,
Téhéran, Timor, les/ Mers du Sud (...) Je marcherais sans m’arrêter vers/ l’Equateur!”.
Conclui o poeta que, se a Europa é feita de grandes cidades e de prazeres urbanos, o “reste
du monde” é um campo aberto onde ele corre contra o vento possuindo um “cris
sauvages!”. (p.105-107). Arremata o livro o passeio por outras cidades européias, em que
cenas cotidianas, banais, parecem preencher todo o espaço da folha em branco, para se
oferecer a um esquecimento repentino: “jetons du sable et des cailloux à/ l’oublieuse,/ Et
allons-nous-en! 1902-1907” (p.127).
O outro livro de Valery Larbaud, A. O. Barnabooth – son journal intime
reitera, como já indica o título, o personagem-heterônimo, e sendo em prosa, alastra, por
assim dizer, a imaginação do escritor. A poética das poesias encontram aqui espaço para
133
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro : Rocco, 1987, p.12.
81
esse espraiamento, ao contrário da contenção do primeiro livro. O diário “inaugura-se”
com uma data inderminada, 11 de abril de 190..., começando por Florença. Na Itália o
escritor encontra o nome de seu personagem Barnabooth, nome de um cassino muito em
voga. A poética presente nas poesias insiste neste espaço do porto, do hotel, do mar como
um não-lugar, ganhando aqui o reforço do cassino, a representação firme do jogo
134
, de um
ócio que alimenta a escritura. A antologia organiza-se a partir desta discussão: enquanto a
sociedade o acusa de superficialidade, fruto de sua riqueza e de seu dispêndio, ele responde
com mais dispêndio, em que se somam juventude, riqueza e caridade. A América do Sul
aparece representada como espaço filantrópico (hospitais e asilos são por ele fundados),
enquanto a imprensa elabora seu “rito de inveja”. Seu pai, homem ligado aos negócios de
Wall Street, recebe o apelido de “l’Inca”
135
, encenando uma oposição que se estabelece em
todo o livro: bens materiais x imaterialidade das sensações, debate que alimenta a produção
artística moderna.
134
A respeito da noção de jogo, explorarei em outra parte, a propósito da obra de Roger Caillois.
135
LARBAUD, Valery. A. O. Barnabooth – son journal intime. Op. cit., p. 12. Na literatura brasileira, há
que se lembrar a passagem de “O inferno de Wall Street”, canto décimo de O Guesa de Sousândrade
(Joaquim de Sousa Andrade), em que precisamente surge a figura do Inca em meio ao tumulto de Nova York:
“(O GUESA tendo atravessado as ANTILHAS, crê-se livre dos XEQUES e penetra em NEW-YORK-
STOCK-EXCHANGE; a Voz, dos desertos:) / - Orfeu, Dante, Eneas, ao inferno / Desceram; o Inca há de
subir... / = Ogni sp’ranza lasciate,/ Che entrate... / Swedenborg, há mundo porvir?” In CAMPOS, Haroldo e
Augusto. Revisão de Sousândrade. 3ª ed. rev. e ampliada. São Paulo : Perspectiva, 2002, pp.339-386. A
pergunta de Sousândrade ecoa até hoje, e mais do que nunca, a passagem deste latino-americano pela
América do Norte inspira outros textos, como a abertura da famosa tese de Oswald de Andrade “A crise da
filosofia messiânica” : “A antropofagia ritual é assinalada por Homero entre os gregos e, segundo a
documentação do escritor argentino Blanco Villalta, foi encontrada na América entre os povos que haviam
atingido uma elevada cultura – Astecas, Maias, Incas. Na expressão de Colombo, comiam los hombres. Não o
faziam, porém, por gula ou por fome. Tratava-se de um rito que, encontrado também nas outras partes do
globo, dá a idéia de exprimir um modo de pensar, uma visão do mundo, que caracterizou certa fase primitiva
de toda a humanidade.” In A utopia antropofágica. 2ª ed. São Paulo : Globo, 1995 (Obras completas de
Oswald de Andrade), p. 101.
Este tumulto de Wall Street ganha sua vertente crítica mais acirrada em “Aqui foi o sul que venceu”, artigo
que Oswald publica para pôr abaixo a idéia do burguês norte-americano, atacando a “onipresença” e
“tumulto” da vida contemporânea, tomando como imagem central não menos do que a fotomontagem
(antologia, diríamos) : “(...) E um rebanho disciplinado e temeroso luta pelas monstruosidades do fascismo
pensando que luta pelo espaço vital de seu povo, indo acabar sem pão nem terra, com singular agravante de
ainda provocar a inesperada fome de outros sonhos de espaço que dormiam. Ladrão veste de polícia, guarda-
noturno leva galinha e um padre, segundo contou o professor Berardinelli, apareceu com uma icterícia de
recém-casado. Para essa barafunda espetacular, existe uma caixa onde débito e crédito são acareados no fim
da labuta trágica de cada dia mundial. Essa caixa se chama Wall Street, e sobre ela se ergue sólido e
intransigente o burguês americano(...).” In Ponta de lança. 5ª ed. São Paulo : Globo, 2004 (Obras completas
de Oswald de Andrade), p.105.
Este posicionamento é fundamental para o que viria a ser uma mudança radical nas políticas culturais do
século XX, direcionadas especialmente à América Latina, como veremos adiante.
82
O que a antologia procura captar é precisamente o recorte do inapreensível,
em meio deste dispêndio vigoroso, aqui transfigurado na sinestesia intensa das sensações. E
se a matéria aparece na sua forma mais esplendorosa, “Je crois que jamais je ne me lasserai
d’acheter des objets de luxe, c’est chez moi fort comme une vocation.” (p.15), o gesto o
desfigura : uma vocação. Daí o prazer de distribuí-los entre os serventes dos hotéis por
onde passa. E se os vapores do banho em Florença lhe suscitam imagens voluptuosas, este
sentimento deve-se ao fato de que, para Barnabooth, esta é a libertação da “propriedade
imobiliária” : “Mon premier voyage d’homme libre” (p.17). Política do corpo e escritura
política.
O roteiro ensaia, e retoma, este velho hábito das anotações dos viajantes, ao
mesmo tempo que tenta se apropriar de uma interioridade. No caso da Itália, uma fonte de
explosão, nossa latinidade evidente, choca o outro, europeu. Semelhantes a Larbaud, outros
escritores e intelectuais do início do século XX vão também realizar o seu percurso. Toda a
Rua de mão única
136
, de Walter Benjamin, por exemplo, pode ser lida como esta grande
antologia da memória. É como se escutássemos o eco destes textos de Larbaud:
MARINHA. A beleza dos grandes navios veleiros é de espécie única.
Pois não só em seu contorno permaneceram inalterados através dos
séculos, mas aparecem na mais imutável das paisagens: no mar,
destacados contra o horizonte.
FACHADA DE VERSALHES. É como se se tivesse esquecido esse
castelo ali onde há tantos e tantos séculos o erigirampar ordre du
roi” para servir por duas horas somente como cenário de uma
féerie.(...).
137
136
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins
Barbosa. 2ª ed. SP : Brasiliense, s/d. (Obras escolhidas, vol.2). A 1ª edição é de 1987.
137
Id. Ibid., p.46. Em outra passagem, Benjamin, ao contar o sonho em que se encontrava no México, relata
que era um membro de uma expedição de pesquisa. “Após ter percorrido uma espessa floresta virgem, demos
com um sistema de cavernas superficiais na montanha, onde desde o tempo dos primeiros missionários até
agora havia-se mantido uma ordem religiosa, cujos irmãos prosseguiam entre os nativos a obra de conversão.”
(p.17), reafirmando a imagem evocada de Baudelaire, do fetiche mexicano como talvez um verdadeiro Deus.
Por extensão, é todo o imaginário sobre o Brasil e as riquezas da Amazônia.
83
O outro alemão, Georg Simmel, também encontra em Florença matéria
suficiente para expandir a sensação de que arte e corpo, texto e cidade, caminham juntos.
Comenta ele:
Mais quand on regarde le panorama de Florence du haut de San Miniato
et traversée par son Arno comme par une artère vitale; quand, l’âme
remplie par l’art de ses galeries, de ses palais, de ses églises, on
vagabonde l’après-midi dans ses collines avec leurs vignes, leurs olives,
leurs cyprès où chaque pied de longuer, dans les chemins, les villas, les
champs, est saturé de la culture et de grands faits passés, où ils sont
recouverts d’une couches d’esprit comme un corpos astral de cette terre
– alors vous vient le sentiment que l’oppossition de la nature et de
l’esprit se serait ici anéantie. Une unité mystérieuse, qui est pourtant à
voir par les yeux et à saisir par les mains, entrelace le paysage, le
parfum de son sol et la vie de ses lignes avec l’esprit qui est leur fruit,
avec l’histoire de l’homme européen qui atteint ici as form, avec l’art
qui est ici comme un produit du sol. (...) Il y a une richesse tropicale de
l’existence extérieure et intérieure qui n’a donné naissance à aucun
art(...)
138
De uma certa maneira, há um excesso em Florença que não consegue ser captado,
despertando nos viajantes que nela se demoram outras sensações, como a análise que
Benjamin faz do batistério, em que Andrea Pisano, sentada e desvalida, “ergue os braços
em direção a um fruto que lhe permanece inalcançável. Contudo é alada. Nada é mais
verdadeiro.”
139
.
Florença desencadeia uma série de relatos, de impressões, de reflexões. Mas
serve como um ponto, em que cruzamentos, associações, analogias se elaboram. Revela o
que faz a seqüência de palavras numa antologia. Portanto, esta pode ser encarada como um
produto cultural, de onde a leitura se dá por relações não pré-estabelecidas, mas por
conexões a posteriori. De onde, poderíamos definir a antologia como uma “operação de
138
SIMMEL, Georg. “Florence” In Philosophie de la modernité – La femme, la ville, l’individualisme.
Trad. de Jean-Louis Vieillard-Baron. Paris : Payot, 1989, p.265-266, grifos meus. Pouco depois, Simmel
relaciona esta paisagem a um “quadro italiano” (diria o corte como princípio da antologia), anotando, sobre
Michelângelo, a noção de “fatalidade de um passado não resoluto” (p.268), com o que toda a história da
cidade poderia ser assim lida, bem como a idéia de uma unidade, em que a arte [de Michelângelo] concebe a
vida em dois campos irreconciliáveis : a imagem de Florença nos convence de que os campos da realidade se
organizam no sentido de uma consciência da existência. (p.269).
139
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Op. cit., p.48.
84
leitura”, ou ainda, como procedimento
140
. É o procedimento de Larbaud que reúne, e
separa, suas impressões de viagem, sua literatura. Uma viagem “sem comitiva e sem
bagagem” (p.16). A Itália é para o escritor o que a escrita representa, uma força que
irrompe a todo o momento, quase incontrolável. É este possibilidade a que acenam os seus
textos, de quem outros escritores vão se “nutrir”. Afirma Barnabooth :
La plupart de ces jeunes prêtres sont des barbares et de barbares
possédés par un démon respectable. Pour eux, l’art n’est pas au fond
qu’un vestige de la sauvagerie primitive, et le génie est un danger
permanent pour la société.
141
Em outras palavras, Barnabooth estabelece um modelo que alimenta o imaginário literário.
Ele é um “vagabundo”, um “sem-pátria”, desprezível, vil, para finalmente se denominar um
personagem de romance. Daí que Larbaud esteja discutindo toda a problemática da
representação, da máscara. Retira de Richardson e de Rousseau o modelo das confissões,
com preferência por este último, já que Richardson, segundo ele, faria confissões
disfarçadas, enquanto Rousseau produz romance disfarçado. É na possibilidade da dupla
acepção do termo que Larbaud elabora seu modelo ficcional. Vale “a imagem que cada um
faz de si-mesmo” (p.25), a possibilidade de se deixar enganar, para quem este saber
subjetivo, este “eu”, equivaleriam à morte. Logo, destaca-se das impressões florentinas o
“odor dos excrementos”, este morrer que é renascer, “je me suis senti à la fois très jeune et
très vieux” (p.27).
Valery Larbaud, Walter Benjamin, Georg Simmel. Na passagem por
Florença, a impressão que fica é que o modelo cultural é marcado a partir deste “eu”
centralizado do mundo (já entrando em franca diluição), cuja idéia o intelectual modernista
parece permanentemente carregar. Certamente, uma herança direta da tarefa da Ilustração,
cujo objetivo último, segundo Zygmund Bauman, era a conquista e o fortalecimento de
uma sociedade ordenada. As narrativas centram-se todas numa “memória” pessoal, a do
intelectual/personagem, cujo fim é fazer ressaltar o percurso cultural. Nesse sentido, tal
140
Valeria a pena evocar o famoso ensaio de Victor Chklovski “A arte como procedimento” in Teoria da
literatura - formalistas russos. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski et al. 4ª ed. Porto Alegre : Globo, 1978,
pp. 39-56.
141
LARBAUD, Valery. A. O. Barnabooth – son journal intime. Op. cit., p.22, grifos meus.
85
percurso filia-se muito proximamente da proposta civilizatória, cuja idéia central fundava-
se numa rede de relações interhumanas, mais do que em indivíduos separados
142
. Boa parte
dos estudos do sociólogo Norbert Elias focam estas relações entre o surgimento de uma
sociedade de indivíduos. Nos ensaios da década de 1940 e 1950, intitulados “Problemas da
Autoconsciência e da Imagem do Homem”, Elias, tratando das perguntas recorrentes do
lugar do homem no mundo, afirma:
Com muito poucas exceções, tanto uns quanto outros interessam-se
primordialmente por questões do ser humano, como se a existência de
uma pluralidade de pessoas, o problema da coexistência dos seres
humanos, fosse algo acrescentado, acidental e extrinsecamente, aos
problemas da pessoa individual. (...) A imagem não questionada do
homem e a noção de autopercepção subjacente a ela são
essencialmente idênticas em ambos os casos. O filósofo, quando suas
idéias não se perdem em noções nebulosas de uma existência supra-
individual, assume sua posição “no” indivíduo isolado. Pelos olhos
dele, fita o mundo “lá fora” como que através de pequenas janelas; ou
então medita, desse mesmo ponto de vista, sobre o que está
acontecendo “do lado de dentro”.
143
Essa condição de estrangeiro em sua própria terra está presente claramente
em Mário de Andrade, na figura do Turista aprendiz, que percorre o norte e o nordeste do
país a fim de redescobri-lo. Descoberta que é a de si, transformada em diário, como cartas
lançadas a um tempo distante, um futuro, um destino brasileiro, latino-americano. E como
Larbaud, é na concepção da mistura que desponta ainda uma identidade
144
. No prefácio de
142
In Legisladores e intérpretes. Op. cit, p.132. Segundo Bauman, o que unia e diferenciava a civilité era a
obtenção de um padrão desejável de relações interhumanas através da reforma dos indivíduos implicados.
“Civilizar” era uma atividade mediada, uma sociedade pacífica e ordenada (uma sociedade policiada) cujo
objetivo era alcançado mediante um esforço educativo apontado por seus membros (p.133). Daí que a imagem
cara à civilização seja a idéia de um verniz, uma “máscara” comportamental posta à força sobre um corpo
domesticado.
143
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1994, p.
101. Consultar também DUMONT, Louis. O individualismo- Uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro : Rocco, 2000, e ainda PACHET, Pierre. “La politique
d’individualisme”. In Littérature. N.84. Vincennes/St-Dennis : Larrousse, décembre 1991, pp. 3-13.
144
Poderia-se afirmar que esta sociedade “modernista” é ainda devedora à noção de identidade. Muitos dos
estudiosos dessa época, quase meio século depois, em 1977, debatiam o tema em um seminário
interdisciplinar dirigido por Claude Levi-Strauss e organizado por Jean-Marie Benoist (o qual colabora com o
texto “Facetas de la identidad”), dele participando nomes como o de Michel Serres, André Green e Julia
Kristeva. Uma das conclusões parte do escritor de Tristes trópicos: “Haciendo uso de la terminología de
Michel Serres, diré que se han creado mucho mais puentes que pozos entre estos diversos planteamientos.
¿Por que nosotros, siendo etnólogos, nos hemos formulado este problema de la identidad? Los hemos hecho
86
1943 a suas anotações, Mário “confessa” que a viagem lhe serviu mais para escrever um
livro modernista do que viajar mesmo. Ele realiza o que tradicionalmente é o oposto da
leitura, pois em geral permanece parado para as andanças do texto. A viagem é uma
extensão desse desejo:
Agora reúno aqui tudo, como estava nos cadernos e papéis soltos, ora
mais, ora menos escrito. Fiz apenas alguma correção que se impôs, na
cópia. O conjunto cheira a modernismo e envelheceu bem. Mas pro
antiviajante que sou, viajando sempre machucado, alarmado,
incompleto, sempre se inventando malquisto do ambiente estranho que
percorre, a releitura destas notas abre sensações tão próximas e
intensas que não consigo destruir o que preservo aqui. Paciência...
145
É nesta condição ambivalente de Mário que Raul Antelo
146
reivindica uma
releitura de seus textos acerca da grande flor do Amazonas, a vitória-régia, acenando para
esta condição de morte e de vida na sua exuberância
147
. Recuperando as várias escrituras
en razón de los violentos ataques que tienen lugar actualmente contra la etnología en su principio. Nos dicen:
el fin de la etnología es identificar culturas extrañas e irreductibles a nuestros propios modos de pensamiento.
Al hacerlo, prosiguen, anuláis la originalidad específica de las culturas diferentes de la nuestra. Nos
entregaríamos, en suma, a un colonialismo ideológico, al cual se opone la irreductibilidad de esos Otros. Es
una crítica muy singular, pues si prosiguiera hasta su término lógico, se llegaría a decir que hay que renunciar
a todo tipo de comprensión e incluso de diálogo con el outro, puesto que hasta el diálogo supone un mínimo
de identidad. (...) Para responder a estas críticas nos hemos propuesto un doble programa: preguntarnos cómo
planteamos nosotros mismos el problema de la identidad y cómo se lo plantean esas sociedades que estudian
los etnólogos.” In La identidad – Seminario interdisciplinar. Trad. Beatriz Dorriots. Barcelona : Petrel,
1981, p. 367.
145
ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. 2ª ed. SP : Livraria Duas Cidades, 1983. Mário data em 30 de
dezembro de 1943 este prefácio, como uma espécie de aprofundamento do balanço que já havia feito na
conferência de 1942. E se revela que o modernismo envelheceu nestas páginas, reforça a sensação de
estranhamento que o assombrou por todo o percurso (da vida?). E se Mário, agora mais envelhecido, procura
ponderar os movimentos “por todo esse caminho largo de água” (Vide o poema sobre o Tietê), guarda no
arquivo estas imagens que o retornam à vida, guardadas “pra elaborações futuras”, agora para uma releitura
que “abre sensações tão próximas e intensas que não consigo destruir o que preservo aqui.”. Encerra o
prefácio com outras duas recorrências famosas em seus textos, por certo de uma obra que não se fecha, o uso
das reticências, mas também com um dos famosos retornelos de Macunaíma, “Paciência....”.
146
In “A aporia da leitura”, op. cit.
147
O roteiro de viagem persiste no século XX. Outro estrangeiro, naturalizado francês, se lança pelo mundo a
fora, em busca deste “exótico” inacessível que é ainda o oriente, escrito entre 1930 e 1933. Traduzido por
Borges, Un barbaro en Asia de Henri Michaux capta, em uma de suas passagens pela Índia, esta exuberância
das cores e do cheiro da vitória-régia.
“No hay que olvidar que la India se encuentra en el Oriente Medio, como Arabia, Persia y la Turquia
Asiática.
El país del rosa, de las casas rosadas, de los saris de bordes rosados, de las valijas pintadas de rosa, de la
manteca líquida, de los manjares dulzones e insulsos, fríos y asquerosos, y nada más insulso que el poeta
Kalidasa cuando se pone a hacer poesía insulsa.
87
desse texto, Raul se detém na terceira versão para, confrotando-a com o texto de Guilherme
de Almeida sobre a orquídea, destacar em Mário, recuperando Bataille, que o “amor tem o
cheiro de morte” (p.43), propondo uma leitura antimodernista dos modernistas, centrado no
conceito de soberania proposto por Bataille. Neste sentido, para ler a aporia da leitura (e
reler o áporo de Drummond), o crítico recorre à condição do “informe”, do “apático” no
texto de Mário:
Nessa linha de análise, diríamos que o áporo é apático mas, acima de
tudo, ele é informe. É violento predicar dele uma forma, porque isso
pressupõe uma homogeinização normalizadora. O áporo é essa
instância dúplice –razão, mistério – que ultrapassa a mera forma, a
dialética do esclarecimento, e se depara com o infinito do apeiron, que
é o modo não-ideológico de reabrir a condição política. Para
retomarmos as palavras de Alberto Moreiras, diríamos que, num
contexto em que a verdade como representação é vista como
essencialmente falsa, a representação como engano aponta a uma
verdade situada para além da representação. E já que todo ato de
hierarquização – tal como postular uma forma sublime onde só há
abjeção – é um simples ato de dissolução (da norma modernista, por
exemplo), então, tão somente uma força do mal pode dissolver e
(des)ordenar a própria substância do mistério, uma vez que só ela é
capaz de captar o mistério a partir de sua imanência, sem buscar
transcendê-lo com um saber infinito.
148
Na foto que tira das vitórias-régias, e do canoeiro na proa do barco, neste gesto que lembra
o angelus recobrado por Walter Benjamin
149
, Mário registra: “A lagoa de Amanium perto
do igarapé de Barcarena – Manaus – 7-VI-27 – Minha obra-prima” (p.87). De certo que a
obra-prima aqui referida não é a foto, ou melhor, refere-se ao mesmo tempo à foto, a flor-
canoeiro, mas também ao seu trajeto enquanto turista no meio do percurso literário e
artístico. Exatamente Mário que em geral evita elogios ao seu trabalho, anota no adendo de
uma representação o que pensa dessa imagem. Neste jogo metalingüístico, em que uma
representação (a foto) não reafirma necessariamente a outra (a crônica), cujo suporte (a
El árabe, tan violento en su lenguaje eruptado, el árabe duro y fanático, el turco conquistador y cruel, son
también gente de perfumes nauseabundos, dulce de rosas y lukum.”. Utilizei a 2ª ed. Barcelona : Tusquets,
1977, p.40.
148
“A aporia da leitura”. Op. cit., p.44.
149
Desenvolvi a relação entre esta postura do anjo e o conceito de história, e modernidade, em Walter
Benjamin no trabalho de dissertação de mestrado intitulado A exaustão da palavra – um prototexto para
Marina a intangível de Murilo Rubião. Florianópolis : PGLB, UFSC, 1992.
88
legenda) estabelece-se como adendo, mas ao mesmo tempo outro texto, ganhando vida
própria, Mário já parece acenar, nesta discussão etnográfica e antropológica, para um certo
esvaziamento, menos de uma experiência (ele a revivi ainda intensamente no processo de
releitura dos textos para publicação 16 anos depois), e mais de uma arte, de um modelo de
arte. Em razão disto, ganha destaque em seu recorte o aspecto fundamental que é o da
decisão
150
. Quando ele, e vários modernistas, apresentam seus projetos, o que está em
questão é o recorte, a antologia enquanto este procedimento decisório, evidenciando uma
política cultural. Trata-se de um gesto, de uma atitude, mais do que um mero texto
formalizado, publicado em alguma revista ou livro. O que conta na antologia é o percurso
dos textos, montados e remontados a partir de uma determinada seriação. Em última
instância, é esta a responsável pela noção de conjunto dada ao trabalho. É um ponto que
desloca, e reúne, de esquecimento e de memória, que dispara uma série de acontecimentos.
Ela, entendida enquanto procedimento, é o próprio acontecimento.
Também na produção de Valery Larbaud, paralelamente à discussão da
ficção, segue a discussão moral, que Larbaud evita, provocando (ou vice-versa). À medida
que seu “personagem” é visto como uma alma boa para os pobres, mais afirma o seu ódio
por eles, descrevendo-se como uma “alma baixa”, “um tolo, um grotesco sem espírito e
sem talento que compra e publica sob seu nome os livros e as invenções dos outros” (p.29),
150
Mário relata, na crônica de 18 de maio, seu último dia de bordo, dia “feito de nadas, com uma
minuciosidade de chapéu-de-chile. Os discos árabes do sírio de Belém, que afinal acaba oferecendo a casa de
armarinhos que tem lá. Foi ele que me lembrou a comparação com chapéu-de-chile, porque usa um, e vende
muitos, vindos de Iquitos. Não sei, quero resumir minhas impressões desta viagem litorânea por nordeste e
norte do Brasil, não consigo bem, estou um bocado aturdido, maravilhado, mas não sei... Há uma espécie de
sensação ficada da insuficiência, de sarapitação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem-arranjadinho
que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes
lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro-alves. E esta pré-noção invencível, mas
invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as,
enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários,
quitutes... E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não
poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único grande (grande?) país
civilizado tropical... Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins,
gente de Benin, de Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos
seríamos mais nós, tenho certeza.” In O turista aprendiz. Op. cit., p.60-61, grifos meus. Mário, ao tentar
condensar as impressões dessa viagem, não consegue de todo traduzir o que sente. E na relação com outros
países, outros modelos, o Brasil é ainda esta falta, aqui representado pelas reticências e pelo prolongamento
de um assunto que parece não terminar. Em todo o caso, utiliza-se do recurso da máscara, que molda a feição
brasileira, ou, o Brasil dela se utiliza para dar um rosto a si mesmo. Enquanto Larbaud denuncia o
colonianismo (ainda que ambíguo, uma vez que é o rico que dispende seu dinheiro e faz filantropia, mas
também o latino que volta à Europa para “se” gastar), Mário busca também no fora imperialista, Benin, Java...
uma saída.
89
de forma que o diário assoma como um texto íntimo do outro. O texto de Larbaud é
moderno ao deslocar o foco narrativo também, na assunção de suas prerrogativas, ao
mesmo tempo que põe o dedo na ferida colonial: “Les coloniaux, nous outres coloniaux (...)
Je suis un colonial. L’Europe ne vent pas de moi; je n’y serait jamais qu’un touriste. Et
voilà se secret de mês colères.”
151
.
Larbaud percebe que a Europa não pode se manter como vinha se
percebendo. Há uma mudança de ordem social, uma derrubada, um desaparecimento.
“L’antique demeure s’americanise...” (p.31). Há um olhar europeu e latino que não é
convergente, mas que poderia ser considerado estrábico em relação aos processos de
(re)estruturação de suas nacionalidades. Tanto Europa quanto América Latina buscam num
outro lugar espaço para transformação
152
. Nos textos de Larbaud, este fora, a outra máscara,
está na hispano-américa, principalmente: “Ces têtes d’avant 89, si fréquentes à Lima, et
chez les Porteños, et dans le Massachusetts. Les vieux peuple, certes, et il n’y a pas de
place, et pas d’avenir, pour nous en Europe, - dans ces jeunes démocraties à peine formées,
et qui chercheront longtemps encore leur voice.” (p.31). Para ele, o procedimento de dar
voz ao outro – Barnabooth – é que legitima, em seus textos, esta reviravolta do olhar. Mais
uma vez, é a imagem em movimento, a qual, para Deleuze, se condensa na figura do
“transdutor”, dispositivo que converte a energia de uma forma à outra:
Poderíamos conceber uma série de meios de translação (trem, carro,
avião...) e, paralelamente, uma série de meios de expressão (gráfico,
foto, cinema): a câmera surgiria então como um transdutor, ou melhor,
como um equivalente generalizado dos movimentos de translação.
153
Neste debate modernista, evidencia-se que as trocas são freqüentes e a
influência francesa, considerada indispensável. Dentre as atividades, uma que se destaca é a
de tradução e ensaísmo, de que Valery Larbaud participa, dedicando parte delas à análise
das antologias. A idéia de buscar o novo e o inesperado tem, para ele, a necessidade de
151
A. O. Barnabooth – son journal intime. Op. Cit., p. 30.
152
Para uma abordagem das relações entre o Brasil/América e Europa no século XIX, consultar SANTOS,
Luís Cláudio Villafañe G. O Brasil entre a América e a Europa – O Império e o interamericanismo (do
Congresso do Panamá à Conferência de Washington). São Paulo : UNESP, 2004. A lenta mudança de
interesses do Brasil com a Europa e a convergência para interesses Norte-americanos é capital para a
mudança de perspectiva para os assuntos culturais e será tratado mais adiante.
90
limitar, precisar o quadro, na busca do detalhe para justificar a escolha de nomes ou trechos
que normalmente os leitores não gostam de encontrar.
É surpreendente não ver um número maior de antologias nas vitrines
das livrarias. Imagina-se que qualquer antologia deva vender-se
facilmente, desde que seja bem apresentada, contenha muitos textos e
não custe mais caro do que a maioria dos livros do momento. (...)
Uma fábula de La Fontaine, uma tirada do Cid ou de Fedra, transcritas
por causa de algum verso ou alguma expressão que estão ali e que se
relacionam com o tema específico da antologia, seriam relidas com
mais atenção, apareceriam sob uma nova luz.
154
O que caracterizaria, de certa forma, a antologia seria a possibilidade de não enunciar-se
como uma obra de erudição, havendo concessão e certa busca de identidade com a
“frivolidade” de um público mais amplo
155
. Esta necessidade de negociação deve-se ao
caráter político que uma antologia assume, uma vez que seu perfil se estabelece graças ao
recorte efetuado. Larbaud escolhe os três volumes de Roma e o Lácio na Literatura
153
DELEUZE, Gilles. Cinema 1– a imagem-movimento. Trad. Stella Senra. São Paulo : Brasiliense, 1985,
p.13.
154
LARBAUD, Valery. Sob a invocação de São Jerônimo. Op. cit., p. 188.
155
Como se vê, a aparição das antologias está ligada ao surgimento de um mundo capitalista, em que a
condição de “erudição” cede lugar a uma leitura de entretenimento, mais “frívola”, ao gosto do leitor. Este
aspecto adquirirá, aos poucos, largo espaço e será fortemente tematizado com o mundo publicitário em geral,
com as tiras em quadrinhos e, principalmente, com o cinema. Em outro ensaio, intitulado “L.Q.”, Valery
Larbaud afirma: “Ao que parece, quanto menos tempo as pessoas têm para ler, mais se publicam livros. Mas é
provável que, na realidade, o número de leitores cresça com a população dos países produtores de livros e na
proporção em que o número de iletrados completos diminui, e que, dessa forma, a quantidade de novos
leitores faça mais que compensar materialmente, para editores e livreiros, a diminuição do tempo que cada
leitor pode dedicar à sua inclinação./ Quanto à qualidade dos leitores, também é crível que, em todos os
tempos, os bons, ou seja, os ‘discretos’ e os atentos, tenham sido uma minoria, uma elite restrita; e os
escritores de hoje estariam errados em acusar os costumes da época ao constatarem que mesmo aqueles que se
declaram seus leitores assíduos e admiradores os leram distraidamente e que raros são os letrados
suficientemente sensatos para se contentarem com ler pouco e bem.” Id. Ibid., p.125. Larbaud continua,
confessando que, diante das longas explicações dos leitores, sobra a idéia de uma “mortificação” e uma
“lição”: quanto à primeira, praticar a humildade e caridade; já em relação à segunda, “devolve-nos ao nosso
lugar, faz-nos pensar mais uma vez no crescente atravancamento das bibliotecas públicas e no dever que
temos, em nosso próprio interesse, de só pedir um mínimo de tempo aos leitores que se interessam por nossos
trabalhos; o dever de sermos ao mesmo tempo tão generosos, tão agradáveis e tão pouco estorvadores quanto
possível para os nossos contemporâneos e leves para a posteridade, se ela nos retiver. Parece tão descortês
publicar muito quanto falar muito ou fazer visitas demadiado longas; é como se, ignorando as recusas de
nossos convidados, lhes enchêssemos os pratos. Façamos então as coisas de modo a só oferecer ao público,
sob o menor volume possível, aquilo a que mais dermos importância. A Quarta, a Quinta parte de tudo o que
tivermos escrito na vida para nosso prazer” (p.126 e 127). Aqui estão alguns dos princípios da escrita que se
engendra na época: a questão do escritor e seu público (em geral, de massa) – por uma literatura do prazer,
prenunciando Roland Barthes de O prazer do texto e a questão da crítica, que lhe parece muito menos atenta
do que seria pedido.
91
Francesa para ilustrar seu estudo. Sua opinião é a de que a antologia presentifica uma
realidade ausente, como vemos no seguinte comentário:
Roma e o Lácio na Literatura francesa seria uma antologia
incompleta se não incluísse “Villa d’Este”, de Louis Chadourne. É um
poema que suporta a comparação com os melhores de Henri de
Régnier, e não conheço outro que evoque com tanta força a paisagem
que descreve. De resto, poema e paisagem estão, neste caso,
indissoluvelmente ligados(...)
156
Este caráter fantasmático (assombrador e extasiante, muitas vezes) da antologia leva o
escritor francês a ponderar que é este poder de “redescobrimento”, de dupla “evocação”,
uma vez que retoma um lugar, uma sensação e um nome (o de um escritor), transformando-
os em “imortalidade literária”
157
. Para Valery Larbaud, a arte de traduzir está
permanentemente em estado de correspondência, acentuado por uma decisão-política (o
que comporá uma antologia – ou seja, traduzir é antologizar, corresponder). Para tanto,
notemos o que ocorre em uma de suas traduções. Ao falar das “Três belas mendigas”,
Larbaud comenta que deseja introduzir o nome “Iguazú”, entretanto, gostaria de que o
efeito sonoro fosse ampliado em “un silencieux Niagara d’or”:
Ora, alguns meses antes eu havia lido a expressão “un Iguazú de
fuego” nas Cenas da Guerra do Paraguai do romancista argentino
Manuel Gálvez. Assim, muito naturalmente, o nome do Niágara me
sugeriu o nome de seu ‘contrapeso’ do continente meridional.
(...)
Obtido o resultado, pensei que a frase assim constituída poderia tornar-
se a origem de uma espécie de clichê que associaria, primeiro na
escrita literária, depois na escrita corrente e, daí, na linguagem falada
dos Franceses, o Iguaçu ainda mal conhecido ao Niágara famoso há
muito tempo. E, por fim, o Iguaçu seria tão popular quanto o Niágara...
Se isso acontecer, um curioso pesquisador do futuro poderá descobrir
aqui que a primeiríssima origem dessa popularidade terá sido a
expressão de Manuel Gálvez: “un Iguazú de fuego”.
158
156
Id. Ibid., p.194.
157
Esta imortalidade deve ser entendida em seu sentido vicário, porém, é somente através do texto antológico
que se devém ontológico.
158
LARBAUD, Valery. “O Iguazú”. Sob a invocação de São Jerônimo. Op. cit., pp. 223-224. Além de
escolher a palavra para encaixar-se no ritmo, que ficou “...un silencieux Niagara, ou Iguazú, d’or”, a decisão
de opor duas imagens tão significativas como estas dá ao escritor/tradutor esta potência criadora, além de
demarcar o espaço decisório político. No estudo das “origens”, haveria que se reconhecer esta
92
Três anos antes deste livro de Larbaud sair pela Gallimard, Manuel Bandeira
também ensaiava sua “tesoura” e “cola”, num texto que envia a revista Letras Brasileiras,
“Antologia da poesia americana contemporânea
159
. O artigo inicia-se com o depoimento
do escritor modernista confessando que recebera uma carta dos Estados Unidos, com um
cheque – era o pagamento de direitos autorais pela inclusão de alguns versos dele em uma
antologia americana contemporânea
160
. Estranhando o fato de pela primeira vez ganhar
dinheiro com poesia, Bandeira tece uma série de observações interessantes sobre a questão
da antologia. Citando o ensaio “La Experiencia literaria” de Alfonso Reyes, Bandeira
afirma que:
Toda antologia é já, por si, o resultado de um conceito sobre uma
história literária, e acrescenta que pelas suas dimensões mais breves,
pela sua condensação estética, as antologias de poemas permitem
seguir mais facilmente as evoluções do gosto. Divide-as em dois
grupos: aquelas do organizador e as que obedecem ao critério
objetivo.
161
Bem se nota a importância, o peso de uma antologia, ao embutir um conceito de história
literária. O escritor já havia participado da organização de duas outras (Antologia dos
poetas brasileiros da fase romântica e Antologia dos poetas brasileiros da fase
parnasiana, ambas editadas pelo Ministério da Educação), o que certamente o levara a
falar de uma experiência muito próxima. Daí, citando Dudley Fitts, comenta que o critério
da antologia de poesia americana pertencia ao primeiro grupo, a do gosto pessoal, a fim de
evitar controvérsias. Está claro também para ambos que toda antologia é sempre
contribuição latino-americana para o texto europeu, para além de sinalizar uma outra força existente, da
qual não se tem falado tanto.
159
BANDEIRA, Manuel. “Antologia da poesia americana contemporanea” In Revista Letras Brasileiras. a.
I, n.3. Ed. “A noite” : Rio de Janeiro, julho de 1943, pp. 29-30. (A direção é de Heitor Muniz e a orientação
artística de Silvio Freitas). Publicam neste volume Menotti Del Picchia, Josué Montelo, Cassiano Ricardo,
Afrânio Peixoto, Graça Aranha, José Lins do Rego, Guilherme de Almeida, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero
entre outros. A revista tem sua contrapartida na publicidade de livros, pela mesma editora e com anúncios no
periódico “A manhã”, em cujo jornal este artigo parece ter sido publicado, conforme nota de fim de página
(30).
160
Trata-se da antologia organizada por Dudley Fitts e editada pela Editorial New Directions, Norfolk,
Connecticut, 1942. É importante observar esta inclusão de um brasileiro em uma antologia “americana”.
161
BANDEIRA, Manuel. “Antologia...”. Op. cit., p.29.
93
insatisfatória, “defeituosa”, chegando a compará-la às mulheres
162
. Interessa mesmo a
Bandeira o fato de que, nesta vitalidade da poesia americana, fala-se na influência das
“literaturas metropolitanas sobre as letras da América” quando, na verdade, nós também
influenciamos, mais de uma vez, a poesia européia (Whitman/ Poe/ Rubén
Dario/Huidobro/Neruda e Ribeiro Couto
163
(note-se a atualidade do texto de Larbaud, com
quem Alfonso Reyes terá mútua influência, inclusive). Pondera Manuel Bandeira que:
O Brasil não foi esquecido por Fitts, que entregou a seleção e tradução
dos poemas brasileiros ao poeta Dudley Poore, e as notas
biobibliográficas a H. R. Hays. Desde logo se estranha a ausência de
alguns poetas nossos de importância capital entre os nomes de primeira
plana, como Mário de Andrade, o iniciador do movimento moderno
com a sua “Paulicéia Desvairada”, Cecília Meireles, Augusto
Frederico Schmidt, Raul Bopp. Há um excesso de Jorge de Lima
católico, e verso-livrista em detrimento do outro, que me parece mais
interessante e mais genuino(...)
164
Bandeira ainda reivindica mais a presença de Murilo Mendes, assinalando que um poema
apenas não dá conta de sua poesia. Parece-me que se torna evidente o caráter que o “gosto
pessoal” pode adquirir : sempre passa para algo mais, de uma sensibilidade para uma
operação política, ou uma operação assim porque sensível. Pois a sensibilidade do poeta se
maravilha com as traduções que Dudley Poore fez de seus versos: “O “Mozart no Céu” saiu
mesmo superior na tradução, e fiquei verdaderiramente encantado com o seu Mozart
entrando o céu “as a circus performer, turnin marvelous pirouettes on a dazzling white
horse”!” (p.30). Bandeira está encantado com seus poemas em inglês, chegando a afirmar
que “o inglês é que é língua para a poesia...” (p.30). Esta possibilidade de exprimir o ardor
amoroso sem sensualidade o arrebata. Evidente que há defeitos nas traduções, mas o poeta
as releva em favor das peculiaridades de cada língua. E arremata:
Aliás, ao lado da tradução vem o original, e assim nós brasileiros e
hispano-americanos podemos sentir em toda a ingenuidade da sua
inspiração os poemas de uma Gabriela Mistral, por exemplo, muito
162
“(todas têm as sua baldas, mas a verdade é que não podemos passar sem elas)”. Id. Ibid., p.29.
163
Ribeiro Couto dirigiu o suplemento “O pensamento da América”, também uma antologia, durante o Estado
Novo.
164
Id. Ibid., pp. 29-30.
94
grande, diga-se de passagem, para aquí figurar com dois poemas
apenas.
No que me toca, noto que os meus versos ficam melhor em
tradução inglesa do que em castelhana ou francesa, o que me
consola bastante de não ser poeta inglês, como o Jaime Ovalle.
165
Há uma mudança sensível nesta abordagem da antologia e da tradução. O modernista, se
colocando ao lado dos hispano-americanos
166
, mas ao mesmo tempo fora, “nós brasileiros”,
elege a língua inglesa em detrimento da castelhana ou francesa. Ora, este giro não parece
casual. Na verdade, é sintoma mais do que individual. Ele atinge outras esferas, e pode-se
afirmar que faz parte de uma estratégia cultural já em curso. O que Bandeira parece deixar
escapar é este “poder” da antologia, seu uso político. Quem entra, por exemplo, na
antologia norte-americana em plena II Guerra? E por quê?
167
165
Id. Ibid., p.30, grifos meus.
166
Segundo sua biobibliografia, em 1949 publica um volume de Literatura hispano-americana, pela Editora
Pongetti. In BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira (poesias reunidas e poemas traduzidos). 12ª ed.
Rio de Janeiro : José Olympio, 1986, p.xxviii.
167
Podemos observar que na correspondência entre a escritora Elizabeth Bishop e Carlos Drummond de
Andrade, também haverá situações semelhantes, vinte anos depois. Na carta de 25 de junho de 1963, Bishop,
de quem falaremos mais adiante, escreve:
“Eis uma tradução de um de seus poemas: espero que o senhor tenha tempo de examiná-la. Comecei com este
porque a meu ver ele é relativamente fácil de traduzir para o inglês – espero que o senhor confie em mim
quando lhe digo que em inglês o poema é muito comovente, tanto quanto em português. A tradução está
bem literal – fora umas liberdades mínimas referentes à pontuação, omissão do “e” etc.. para conservar a
métrica. (...)
Uma revista (americana) convidou-me para traduzir poemas brasileiros – é uma revista pequena, respeitada e
antiga. Poetry (de Chicago)* - o senhor a conhece, talvez? Gostaria de mandar para ela um grupo de poemas
seus assim que for possível, mas com a sua aprovação. No momento, estou traduzindo “A mesa” – é muito
mais difícil, naturalmente, mas é um dos meus favoritos. Tentei também trabalhar com alguns dos mais
curtos, rimados – são quase impossíveis, é claro, por causa das rimas – mas minha intenção é dar ao leitor
uma visão geral da sua poesia, se possível – e vou redigir uma nota explicando as deficiências das traduções.”.
Na carta de 15 de agosto, Bishop comenta : “ ‘Travelling in the family’ realmente ficou um poema lindo em
inglês, também – espero que o senhor confie em mim! Eu o escolhi justamente porque me deu a impressão de
passar para o inglês espontaneamente, com muito poucas mudanças nos versos. É claro que se perde uma
infinidade de coisas em termos de musicalidade, conotações etc. – mas assim mesmo saiu um bom poema em
inglês.
(...)
e vou pedir também que publiquem “Mundo mundo vasto mundo” em português, como nota de rodapé
para se ver como eu mutilei o original...(...) “Não se mate” saiu melhor. O “verso livre”, como certamente o
senhor sabe tão bem quanto eu, ou melhor, tem que sofrer várias mudanças para funcionar direito – quer
dizer, em termos sonoros – ou em termos de sensibilidade – em outro idioma. De modo que os poemas em
verso livre são traduzidos de modo muito mais livre do que os de forma fixa.” In BISHOP, Elizabeth. Uma
arte – As cartas de Elizabeth Bishop. (seleção e organização (edição americana) Robert Giroux: seleção (a
partir da edição americana) Carlos Eduardo Lins da Silva; João Moreira Salles. Trad. Paulo Henriques Britto.
São Paulo : Cia. das Letras, 1995, pp.732-733, grifos meus. A carta ainda sinaliza para uma provável edição
do poema “A mesa” no New York Review [of Books]. A possível dedicatória do livro deverá ser para o
Rodrigo Melo Franco de Andrade. Poderíamos pensar que, entre o verso livre e a forma fixa, há um modo de
95
Para encerrar este capítulo, uma última teorização sobre a antologia, a de
Alfonso Reyes. Citado por Manuel Bandeira, este mexicano tem um forte influência em
diversos escritores, graças a sua vasta experiência literária e política. Reyes foi Cônsul do
México também no Brasil, nos inícios do século XX, além de ter passado alguns anos na
França, onde travou fortes laços com Larbaud e outros escritores, e morado na Espanha. O
que Bandeira traduziu como duas correntes, a do gosto pessoal e a objetiva, poderia ser
“corrigida” agora. Na verdade, este critério objetivo refere-se ao critério histórico, com que
o escritor vislumbra não apenas um horizonte de datas, mas, igualmente, dizer de onde se
deve estudar. Reyes aborda a possibilidade, neste caso, da escrita de uma história da
literatura espanhola, através de uma meta-bibliografía”, dando ênfase, no processo de
evolução histórica, à matéria literária mesma, por um lado; e por outro, à cultura literária
168
.
Para o escritor, uma história literária pressupõe uma antologia prestes a vir à tona,
considerada como coleção de textos:
Además de que toda antologia es ya, de suyo, el resultado de un
concepto sobre una historia literaria; de suerte que antologías y
manuales se enlazan por relaciones de mutua causación, se ajustan y
machihembran como el cóncavo y el convexo, como el molde hueco y
la medalla en relieve. Al punto que, a veces, las antologías marcan
hitos de las grandes controversias críticas, sea que las provoquen o que
aparezcan como su consecuencia.
169
Creio ser este um dos pontos altos das antologias: poder gerar conseqüências, provocá-las,
interferir no presente. Alfonso Reyes acredita que as antologias de critério histórico são as
que interessam mais, chegando a organizar uma antologia breve, a partir de sua “Panal de
América” ou “Antología de la gota de miel”, em que lembra um escritor e imediatamente
traduzir que define toda a política, bem como toda uma política da tradução, decisiva para determinados fins.
Ou seja, nem todo o verso livre será tão livre como se imagina ser.
168
Também para o escritor mexicano a questão da cultura é emblemática, como o será para todos os
modernistas do período: “¡Esta entidad abstracta, la cultura, que, según Fronebius, vive por sí sola, encima de
las cabezas de los hombres a modo de una atmósfera en marcha!” In REYES, Alfonso. “Teoría de la
antología”. La experiencia literaria. Primera reimpresión. México : Letras mexicanas; Fondo de Cultura
Económica, 1983, p.137. (Obras Completas de Alfonso Reyes, Vol. XIV).
169
Id. Ibid., p. 138. Reyes aconselha a começar, dentro das coleções de textos, o estudo pelas antologias
breves, ou seja, por textos curtos e, em especial, pelos poemas (cápsulas breves...), para aproximar-se de
Larbaud, ao considerar “más fácil” gostar da Antologia de Quintana do que da “Nueva Biblioteca de Autores
Españoles” ou os “Clásicos de ‘La Lectura’ ”. A respeito das polêmicas, cita Le Parnasse Contemporains,
de Paris; a Revista Azul, do México e o Martín Fierro, de Buenos Aires.
96
um verso seu, a partir de lampejos que iluminam a cena de cada um, como em Benjamin.
Porém, antes que a lista se torne demasiado longa, o escritor afirma:
Hay versos que sirven para reconstruir épocas y culturas – o inculturas
– como el diente del animal desaparecido permite rehacer, en
hipótesis, otra edad de la fauna. (...) Seguir este pulso, [do verso de
Díaz Mirón : “con los delirios de tu mente loca”] en una antología,
sería una sutil operación crítica. Hay, en este orden, muchas
antologías americanas por hacer(...)
170
O escritor, então, passa a organizar possíveis, hipotéticas antologias, agrupando-as por
temas: o desterro, a volta à pátria; os murmúrios do bosque; a dos rios; a dos condores e das
águias; a dos cisnes; a do Amor à França; a do outono. A proposta de Reyes vai adiante de
seu tempo, apesar de que ainda esteja ligado a um ideal positivista, cujo disciplinamento
historicista e classificatório representa a noção da reconstrução total do animal
desaparecido. Ao propor antologias temáticas, na sua grande maioria de escritores hispano-
americanos, ele avança no sentido de sair da relação dos manuais, dos catálogos, a fim de
que elas sejam, também, estudos histórico-críticos, com o que a imagem do dente fóssil
adianta o que será o forte dos estudos antropológicos e etnológicos, bem como metáfora
para outros estudiosos da literatura e das ciências humanas em geral
171
. Por outro lado, esse
tipo de antologia também procura sair do impasse de uma literatura apenas “de autores”,
cuja figura central tem sido o escritor/intelectual.
170
Id. Ibid., p. 140. Esta operação crítica não se desassocia de uma prática da tradução, para quem o escritor
dedicou um ensaio específico: “De la traducción”, o que poderia ser entendido também como uma teoria da
leitura. Afirma Reyes em “Apolo o de la literatura” : “Y concluimos que hoy la literatura se ofrece en forma
de lectura. En suma, que el conocimiento de la literatura comienza por la bibliografía: (...) Para la literatura, el
hombre es un lector. (...) Lo mejor que puede hacer el lector común es partir desde su propia casa; levantar su
lista de la literatura mundial de conformidad con su prejuicio.” In La experiencia literaria. Op. cit., p. 94.
Quanto ao ensaio a respeito da tradução, ver pp. 142-156.
171
Este tema será abordado mais especificamente em outra parte deste trabalho. Vale lembrar que esta
“Teoria da Antologia” é datada em 1930 e foi publicada, inicialmente, em La Prensa, Buenos Aires, em 23
de fevereiro de 1938.
CAPÍTULO III
3.1 - HISPANO-AMÉRICA-LATINA
Desde a segunda metade do século passado
[XIX] pujante tem sido nos países hispano-
americanos o florecimento da prosa erudita
em seus diferentes setores – a historiografia, o
ensaio, a crítica etc. (...) todos êles convergem
no mesmo propósito de compreender a
América, de interpretá-la, de estudar-lhe os
problemas sociais, políticos, econômicos, de
concorrer para que cheguemos a encontrar a
nossa expressão própria e original.
Manuel Bandeira
Se aceitarmos a proposição de Frederic Jameson, de que as “ontologias do
presente requerem arqueologias do futuro, não previsões do passado”
172
e de que a
modernidade constitui-se uma “categoria narrativa”, portanto, estaria longe de esgotar-se,
poderíamos inventar(iar) para a literatura um mapa, em que entra em cena o diálogo da
literatura brasileira, notadamente a modernista, com outros interlocutores, e visualizar sua
relação com as (im)possíveis antologias e histórias literárias latino-americanas.
Desta forma, neste capítulo pretendo discutir as relações entre Europa e
América, com acento na imagem que se conforma em torno da América Latina, através de
uma literatura modernista, cujas fontes repousam também no viés dos estudos etno-
antropológicos. De Alfred Métraux a Lehman-Nischte, de Monteiro Lobato a Mário de
172
Jameson, Frederic. Modernidade singular. Op. Cit., p. 250.
98
Andrade, de Valery Larbaud a Paul Rivet, de Jorge Luis Borges a Roberto Giusti, o estudo
visa, no jogo das estratégias culturais, conformar as imagens do intelectual modernista, ora
em sua versão mais arrojada, ora em seu intento normativo.
A conformação dessa literatura em trânsito toma como parâmetro o
movimento de sua própria cristalização, cujo eixo gira em torno da espetacularização da
cultura, aqui encenada através das comemorações dos centenários, dos congressos, da
ordenação da biblioteca, da escritura da história literária, ou ainda na constituição das
próprias antologias latino-americanas e das correspondências. Assim entendida, a
publicação e celebração dessa literatura gravitam em torno da exibição e da pedagogia.
O processo de formação de cânones literários no modernismo tardio mantém
estreito vínculo com o início da investida norte-americana em tomar da Europa,
notadamente da França, a unanimidade então reinante no campo das artes e da cultura. Tal
iniciativa repercute na conformação da própria noção de América Latina, pondo em xeque
várias vertentes artísticas, políticas e educacionais, revelando uma política e, por sua vez,
uma poética.
Nesse sentido, busco aprofundar alguns temas explorados no capítulo
anterior. Portanto, estão em jogo as diversas representações que a discussão latino-
americana tem suscitado em seus olhares “nacionais”/“estrangeiros”
173
. Postulando a idéia
da literatura como cartografia, é possível inferir que há diversos imaginários sobre a
América Latina e sobre o próprio conceito de literatura, que se modifica aliás a cada novo
desenho. É em torno dele, desse movimento, que este trabalho procura o seu traço.
3.1.1 – PRÉ-HISTÓRIAS
Assim como a modernidade de Apollinaire e Larbaud instaura uma nova
maneira de perceber a arte, poderíamos dizer o que a antologia latino-americana do século
XX tem seu traço principal “decidido” em 1899. Na imagem que se espelha na revista
173
Seguindo as pistas de Zygmund Bauman, citando Georg Simmel, o intelectual é também um estrangeiro,
num mundo saturado de ciência, tecnologia e arte. “En esse mundo, el intelectual, en su papel tradicional de
legislador cultural, deve ser un vagabundo trágico y sin hogar.(...) Nadie nacesita ya su guía, excepto unos
pocos extranjeros como él mismo.” In Legisladores e intérpretes. Op. cit., p.223, grifos meus.
99
Resurgimiento
174
, lê-se uma política cultural que contempla uma visão da América Latina,
especialmente através do diálogo com o Brasil. Com a visita do Presidente Rocca ao
“colega” Campos Salles, e tendo como pano de fundo a “política imperial” que desenvolvia
a América do Norte, o prefácio da revista, “Visitas Internacionales”, nos alerta dos perigos
e desafios do jogo de forças que se encenam para a América Latina, em especial a suspeita
de que o bloco sul-americano poderia se opor ao do norte. Entremeada de manobras
políticas e econômicas, esta introdução deixa claro que existem muitas diferenças entre os
países, sendo que o Brasil ocupa um espaço que precisaria ser melhor percebido.
Inaugura este periódico o polêmico artigo do então diretor da Biblioteca de
Santiago do Chile, o Sr. Gabriel René Moreno
175
, com o ensaio “La unión americana”.
Afirma o escritor e professor:
Desde fines de 1899, en que el Brasil ingresó a la comunidad
republicana de la democracia del Nuevo Mundo, es obvio que ya no se
podrá decir, cual se solia a veces de la union que nos ocupa, “union
latino-americana”. Porque los fuertes lazos de la Union Americana
jamas abarcaron en su haz uniforme i estrechísimo al Brasil, i porque
hasta aqui no hai motivo que autorice a creer que alguna vez aten aquel
pais latino al haz formado por nuestras repúblicas [especialmente
Colômbia, Peru, Chile e Bolívia]. Dicha espresion partió de Méjico i
de Centro América. Con sobrados motivos óbvios la palabra
“americana” se halló desde el primer momento inexacta en aquellos
paises.
176
O debate fica acalorado, abordando as resistências à inclusão do novo membro, citando,
entre outros motivos, que a “antipatia de raza contra portugueses (...) salta instintiva por
boca de la muchedumbre a repeler de nuevo sin mirar.” (p.97). Segundo Moreno, a
expressão dessa união teria origem no México em 1884, através de don Francisco de
Lafuente Ruiz, com um caderno quinzenal intitulado “Union Latino-Americana”. Essa
discussão se insere na empresa “Pan-Americana”, em geral com interesses meramente
174
Resurgimiento – Revista política y literaria. A.I, n. II, Tomo I. Buenos Aires : Galileo, noviembre de
1899.
175
A nota de rodapé que apresenta o colaborador da revista revela a imagem do intelectual: “Es um talento
fuerte, nutrido, con erudición de buena ley y sólidamente educado. Es de aquellos escritores que diríamos
poliédricos por enseñarse en múltiples faces y con igual intensidad en el pensar y decir. Su estilo original,
correcto y lleno de un fino humour, salva sus producciones didácticas de aquella natural monotonia y pesadez
del tema.” (p.89).
176
Id. Ibid., pp.96 e 97.
100
comerciais. Porém, o crítico insiste em outro encontro, o do I Congresso Ibero-Americano
de Lisboa em 1889, que então contava com pouquíssimos representantes. Simultaneamente,
Cuando toda España celebrava el cuarto centenario del descubrimiento
del Nuevo Mundo, con asistencia casi unánime de delegados hispano-
americanos a todos los festejos oficiales, se reunió en Madrid un
Congreso Ibero-Americano de Juristas. Allí se trajeron a exámen temas
de estúdio i proyectos de arreglos que acreditaban un notabilísimo
espírito de progreso en la ciencia del derecho, no menos que un gran
sentimiento de raza en pro de la confraternidad i de la union. No
ocurrió en los debates ninguna diverjencia calificable.
177
Em outro encontro, em uma antologia de textos críticos, Giorgio Agamben, tratando das
políticas do exílio, portanto, da questão do paradoxo fundamental da inclusão excludente,
nos fala da tese que o move: se o exílio parece se desmerecer em relação aos propalados
direitos humanos, isto se deve menos a uma ambigüidade inerente a ele, e mais a uma
situação originária, que precederia à divisão com o poder jurídico-político: a esfera da
soberania, do poder soberano. Logo, pensar a configuração das representações das nações
vizinhas neste momento é pensar a exceção, aqui destacada na imagem do exílio, em uma
relação de permanente estranhamento
178
. Recuperando o pensador Plotino e o conceito de
phigé [exílio], Agamben demonstra como o filósofo trata desse assunto, relacionando-o
precisamente a um termo jurídico-político, a idéia da uma vida divina através do paradoxo
da “separação na intimidade”:
Al definir la condición humana como phigé, la filosofia no está
afirmando su propia impoliticidad, sino, al contrario, reivindica
paradójicamente el exílio como la condición política más auténtica.
(...) la verdadera esencia política del hombre ya no consiste en la
simple adscripción a una comunidad determinada, sino que coincide
más bien con aquel elemento inquietante que Sófocles había definido
como “superpolítico-apátrida”.
179
177
Id. Ibid., p.99.
178
Ou, como chamou Paolo Virno a esse sentimento de não sentir-se na própria casa, de “exposição absoluta
ao mundo”. VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud – para una análisis de las formas de vida
contemporáneas. Trad. Adriana Gómez. 1ª. Reimpresión. Buenos Aires : Colihue, 2003, p.24.
179
AGAMBEN, Giorgio. “Política del exilio” in GORSKI, Hector C. Silveira (ed.). Identidades
comunitarias y democracia. Madrid : Ed. Trotta, 2000, p. 92. No prefácio do libro, o editor comenta: “Como
creo que los temas que se recogen en esta antología seguirán estando presentes en la opinión pública y en las
investigaciones futuras de los especialistas, he considerado que podia contribuir con estos análisis y debates
101
Moreno percebe que a inclusão dos povos latino-americanos acontece através de uma
tentativa de unificação jurídica por parte dos intelectuais europeus e norte-americanos, com
vistas a uma “aplicación universal”. O ensaio ataca ainda a virulência com que os Estados
Unidos do Norte se envolveram no debate sobre a União Pan-Americana através de seus
interesses mercantis, quando do Congresso Pan-Americano em Washington em 1889-1890.
Afirma Gabriel René Moreno:
Lo que descaradamente se quiere es someter a naciones débiles que
han sabido pelear i pelean por su santa independencia; lo que se quiere,
sin miramientos de justicia, es convertir en jornaleros adscritos al suelo
i en vasallos consumidores (....)
Todo por ambicion de riquezas i para asumir afuera la vida de gran
potencia entre grandes potencias, mas tambien para así señorearlo todo
en el interior desde el centro de la vida nacional.
180
No mesmo número da revista, lemos o quase contraponto das posições deste crítico, na
apresentação que se faz de José Veríssimo, que assina a seção “Revista Literaria (Libros
nuevos)”. Definido como um dos mais excelentes críticos brasileiros (Moreno era
considerado intelectual “poliédrico”), o brasileiro é incluído na categoria dos escritores
novos, segundo a classificação de Silvio Romero: “El Brasil tiene en la actualidad, lo que
nos falta en Hispano-américa, maestros sinceros que estudian cuidadosamente la
producción literaria y señalan al arte regional los veneros fecundos.”(p.105). Veríssimo
aborda o livro de Machado de Assis, “Páginas recolhidas”, onde figuram “Missa do galo”
e “O Velho Senado”. Não passa despercebida a resenha que Veríssimo faz para o livro de
Barbosa Rodrigues, a respeito dos estudos etnológicos e arquelógicos, onde desponta o
rentável Muyrakitã, com a tese de que este amuleto amazônico teria origem asiática,
provindo de uma civilização pré-histórica, o que parece absurdo ao autor de Cenas da vida
amazônica.
Poderíamos dizer que o texto de Veríssimo assinala uma tendência também
na Argentina. Segundo o estudioso Gustavo Sorá, discutindo o imenso projeto de
publicando en forma de libro textos que en su dia aparecieron en revistas o en libros, algunos de ellos de
difícil acceso al lector en lengua española.” p.9. A antología reúne, assim, o que pode se tornar raro, atuando
como uma política da “preservação”, da memória dispersa, agindo em função de um pretenso esquecimento.
102
publicação da Biblioteca La Nación, a literatura brasileira teve grande importância nesta
empreitada “universalizante”, uma vez que o referido projeto tratava de abarcar textos
universais e nacionais:
En 1900 (...) al producirse el inédito contexto de la visita del
presidente Campos Salles a la Argentina, uno de los principales
políticos de la comitiva era Quintino Bocayuva, por entonces
gobernador del Estado de Río de Janeiro. En 1860, cuando era redactor
jefe del Diário do Rio de Janeiro, Bocayuva apadrinó el ingreso de
Machado de Assis al mundo de la cultura. (...) Pero más allá de la
fuerza social acumulada sobre estas obras [Dom Casmurro e Canaã],
atentos a los intereses propios de los ámbitos sociales y políticos
argentinos su edición en Buenos Aires no podía dejar de representar
apuestas de riesgo. Un indicio dello es que ninguno de los titulos de
autores brasileños fue reeditado, a pesar de que gran cantidad de títulos
de la colección debían ser reeditados año a año.
181
Neste caso, vemos como as representações do Brasil aparecem divididas, ou seja, a
antologia nasce cindida
182
. Quanto aos estudos de viés etnográficos e arqueológicos,
merecem alguns comentários os pioneiros estudos de Alfred Métraux e Lehmann-Nitsche,
antecipadores da forte tendência que vigorará durante vários anos da primeira metade do
século XX.
Um dos projetos pode ser visualizado quando Métraux, analisando peças
arqueológicas pertencentes ao Museu etnográfico Trocadero, em Paris, detém-se na análise
180
Resurgimiento. Op. Cit., p.103.
181
SORÁ, Gustavo. Traducir el Brasil – Una antropología de la circulación internacional de ideas.
Buenos Aires : Libros del Zorzal, 2003, p.74. Continua Sorá : “Aún cuando la presencia literaria del Brasil
apenas encontraba condiciones de materialización en la Argentina, su lugar ya era pensado desde mediados
del siglo XIX como capítulo del propio proceso de invención de una cultura nacional argentina.”, p.74.
Segundo o pesquisador, esse processo estava sendo pensado por Echeverría, quem, numa carta a Juan María
Gutiérrez, este exilado no Rio de Janeiro, o estimula: “expresa la eficacia legitimadora que podría generar el
conocimiento mutuo de la historia literaria argentina y brasileña, para alcanzar la “emancipación del espíritu
americano” ”, p.74.
182
Veja-se o comentário de Sorá a respeito do trabalho de outro pesquisador, Fernández Bravo, que “resalta
esta particularidad [a de que a singularidade brasileira foi muito apagada, vista sob os esquemas de
classificação hispanófilos] al comparar el “entre-lugar” del Brasil en la Antología de la poesia hispano-
americana (Madrid, 1911) de Marcelino Menéndez y Pelayo, en El Brazil intelectual de García Mérou y en
dos libros de Pedro Henríquez Ureña: uno de tendencia “hispanófila” donde el Brasil es excluído de una
tradición continental Seis Ensayos en busca de nuestra expresión – Buenos Aires – 1928-) y otro inclusivo
del Brasil en la totalidad latinoamericana (Las corrientes literarias en la América Hispánica – conferencia
pronunciada en Harvard en 1941-). A pesar de los diferentes lugares y tiempos de publicación de los libros
que toma como referencia, Fernández Bravo deja entrever el carácter arbitrario de las formas de clasificación
103
de objetos de cerâmicas encontrados em sua maioria na Ilha de Marajó
183
. O objetivo de
Métraux é perceber a mudança de concepção do grau de cultura das antigas tribos
ribeirinhas do Amazonas. Haveria, então, o problema da origem dessas civilizações,
problema que também está sendo formulado por Barbosa Rodrigues, como vimos, e a
questão da sua extensão. O ensaio é uma espécie de plataforma arqueológica para o século
XX, onde se lê uma teorização da modernidade através dos fragmentos, do resíduo, de
vestígios, portanto, pleiteando uma forma de ler o passado muito em sintonia com as
definições de Walter Benjamin, escritas pouco tempo depois. Além dessas, chamam a
atenção de Métraux a irregularidade das formas, as depressões, a circularidade, certo
caráter que, em Bataille, se chamaria monstruoso
184
; ou ainda, a leitura dos desenhos de um
vaso proveniente de Manaus (antigo cemitério Baré): “Autrefois cette zone était peinte en
rouge. Ces motifs on été traces un peu au hasard par une main on dirait inhabile ou
pressée. Preuve en est l’irregularité des lignes et leur flottement.” (MÉTRAUX, 1930,
p.156, grifos meus). Diria que Métraux lê nestas ruínas uma história ainda não contada,
imagem que se assemelha ao processo de construção antológica, onde o residual importa na
montagem do texto. A lista dos objetos analisados é imensa, porém, o estudo tinha um
objetivo outro: buscar uma ligação entre os índios do norte aos do sul do continente
americano:
J’ai déjà eu l’occasion de signaler l’étroite affinité qui existe entre
notre pièce et certains vases anthropomorphes de la Guyane
britannique(...) Nous avons à Teffé, en Guyane et à Marajó, un style à
peu près uniforme et qui devait constituer le patrimoine de tribus d’une
même origine ethnique.
185
literarias, es decir, su producción en luchas simbólicas generadas bajo intereses intelectuales y políticos muy
diversos y cambiantes.” Id. Ibid., p.85 (nota 34).
183
MÉTRAUX, Alfred. “Contribution à l’étude de l’archéologie du cours supérieur et moyen de l’Amazone”
in Revista del Museo de la Plata. Buenos Aires : Imprenta y Casa Editora “Coni”, 1930, pp.145-191.Tomo
XXXII (Tercera Serie, Tomo VIII). Conferir também “Un mundo perdido – La tribu de los Chipayas de
Carangas” in Sur – a.1, n.1, San Antonio de Areco y Buenos Aires : Francisco A. Colombo Talleres Gráficos,
noviembre de 1931, pp.98-131.
184
“Le deuxième tesson porte à une extrémité une tête qui devait être semblable à la précédente et, à l’autre
bout, une seconde tête dont on ne distingue que les dents et la mandibule. Entre les deux têtes on voit, à doite
et à gauche, une disque saillant avec une cavité au centre qui ressemble au cercle figurant les oreilles.”. A
descrição é uma citação de R. Verneau (1921). p.150.
185
Id. Ibid., p.175.
104
Assim, uma peça encontrada no meio Amazonas poderia estar vinculada a trabalhos
artesanais da região andina ou a outras regiões da América, como significativamente os
machados analisados, além das pedras (como o Muyrakitã, representando, para Métraux, o
índice de uma civilização brilhante do baixo Amazonas). Em suas conclusões, o
antropólogo ressalta a possibilidade de ligação entre diversas civilizações, nas busca de
“unité de culture des anciennes populations” (p.181). Neste caso, ressalta a influência dos
índios Arawak, os quais, não possuindo uma civilização muito desenvolvida, teriam
exercido uma profunda influência civilizatória, como se faz notar por sua cerâmica. E na
busca de elos entre as tribos do continente, Métraux rastreia a influência dos Arawak no
delta do Paraná, na região de “Paraná-guazú”, além de possíveis contatos com os Kaduveo,
ou ainda com os Guaykurú na região de Buenos Aires. Afirma:
Je terminerai ces considérations en formulant le vœu que le plutôt
possible soient entreprises des fouilles archéologiques au sud et au
nord de l’Amazone. Elles nous permettrons de suivre l’avance de cette
grande civilization arawak qui a répandu en Amérique du sud des
techniques et un style qu’elle même recue de l’Amérique centrale.
186
Como se vê, o fio que nos uniria é antes de mais nada uma ligação de água : Anhembi.
Em outro caminho, não díspare, mas coetâneo, lemos o trabalho do famoso
etnólogo Lehmann-Nitsche, diretor por muitos anos da seção de Etnografia do Museu de La
Plata, que também se interessava por encontrar, neste desenho fragmentado, linhas de
sentido. A metáfora que se une ao trabalho de Métraux é, paradoxalmente, um elemento do
“corte”, o machado, que reaparece entre o mito de “El viejo tatrapai de los araucanos”
187
. O
antropólogo realiza o trabalho comparativo a respeito de versões dos relatos sobre o “viejo
Latrapai” entre os aborígenes da cordilheira, com as variações chilenas e argentina. Uma
delas, consegue-a diretamente pelo filho mais velho e legítimo do cacique Cipriano Catriel,
um representante final do poder indígena na pampa argentina. Com este, transformado
então em varredor de ruas e vivendo em Azul, província de Buenos Aires, Lehman-Nitsche
186
Id. Ibid., p.183.
187
LEUHMANN-NITSCHE, Robert. “El viejo tatrapai de los araucanos”. In Revista de la Plata. Id. Ibid.,
pp.41-56.
105
descobre a causa de uma das corruptelas do mito euroasiático
188
. Onde se lê “Latrapai”, o
etnólogo adverte: deve-se ver “Tatrapai”:
La voz Tatrapái, a nuestro entender, se compone de tatra y pai. El
primer elemento es voz sudamericana, bastante difundida en ciertas
variantes, y significa: padre, señor; quiere decir también: jefe, cacique.
En el idioma quíchua, p.ej., tayta es “padre”, y corresponde a los
dialectos de Cuzco, Ayacucho y Junín; en Sucre “dicen tata, que es
aymará”, lo que confirma el diccionario de esta lengua: “tata, vel
auqui: padre, o señor”.
Pai, el segundo componente, también es muy difundido en Sud
América, presentándose en diferentes variantes, y significa: curandero,
sacerdote, etc.
189
Raul Antelo destaca do antropólogo esta tentativa de ler no espaço fragmentado das
narrativas, pela via comparatista, a possibilidade de “reconstruir la memoria”
190
. O que os
estudos de Lehmann-Nitsche buscam é, como em Métraux, encontrar uma “conexión
común” (p.56), ou seja, encontrar uma definição de América que dê conta de sua
singularidade, em meio à colcha de retalhos das narrativas. Na versão contemporânea, este
índio, componente decisivo e ao mesmo tempo ambíguo nas repúblicas americanas, é o
elemento que, como nas antologias, compõe o cenário, mas tem valido pelo que ficou fora,
em ressonância com o texto que se nos apresenta, a figuração de um mapa que insiste em
mostrar o seu desenho silencioso, subterrâneo:
Me llamo Curapil. Soy huiliche. Lo fueron mis padres y los padres de
mis padres. Pertenecemos todos a la tribu de Curruhuinca, de Quila-
Quina. Los cristianos me dicen araucano. Pero somos huiliches. Para
baldón de la tribu, un machi extranjero convenció a un loco Tren-Pan
188
O desafio é comparar as diferentes versões, no caso, o papel do duplo (em geral se trata de um desafio nas
américas para dois irmãos, gêmeos) no tentativa de vencer algumas barreiras para casar-se com duas irmãs.
Entre as provas, destaca-se a necessidade de cortar, de uma só vez, um carvalho antigo. Durante a empreitada,
o machado sempre se quebra.
189
Id., ibid., p.51. Esta última observação, a de “Pai”, Lehmann-Nitsche a retira dos Annaes do XXº
Congresso Internacional de Americanistas – Rio de Janeiro-Brasil 1922, pp.289-308, Rio de Janeireo, 1924,
segundo Morales de los Rios, “O paié (generalidades)”.
190
ANTELO. Raul. Maria con Marcel – Duchamp en los trópicos. Op. Cit., p. 74. Em Mitologia
sudamericana, lendo o vazio do céu, na reconstrução anacrônica dos relatos, o etnólogo “comprende que,
cuando algo se simula, es porque algo se asemeja o, en otras palabras, allí donde existe el similis, aquello que
expresa la semejanza, existe también el simul, aquello que remite a la coexistência entre diferentes.” p.94.
106
de recibir el agua. Desde entonces llevamos el apelativo de
Curruhuinca. Pero sigo creyendo em Nguenechén, en Antü y Cüyen.
191
3.1.2 – POLÍTICAS DA EXPOSIÇÃO
Voltando ao aspecto político do debate sobre a antologia latino-americana,
pode-se antever, no jogo de aproximações/distanciamentos com a América do Norte, o
embate do século passado. Não seria desproporcinado pensar que boa parte desta tendência
assoma com a política Monroe. O mapa que se configura é, eminentemente, um mapa das
concentrações de interesses, representados no papel que assume o documento, como nas
diversas instâncias da academia, dos congressos, conferências, associações e
comemorações, como veremos adiante.
No ano de 1923, se publicam em Washington, pela imprensa do governo, as
“Observaciones acerca de la doctrina de Monroe”, conferência proferida pelo senhor
Charles E. Hughes, Secretário de Estado dos Estados Unidos, para a Associação do Foro
Americano, na cidade de Minneapolis, em 30 de agosto do mesmo ano. O texto é uma
declaração dos princípios que regem a política norte-americana há muitos anos, porém
ganha destaque ao realizar um certo mapeamento (hoje marcado pelos muitos
recenseamentos) da América Latina, e de países da América Central, numa relação de
aproximação e, ao mesmo tempo, de distanciamento.
Historicizando o apoio dado aos países do sul do continente durante o
processo de suas independências, o discurso busca convencer que o país do norte sempre
buscou manter-se “imparcial” nestes movimentos
192
. O conflito com a Europa, e o pretenso
191
CURRUHUINCA-ROUX [CURRUHUINCA, Curapil; ROUX, Luis]. Las matanzas del Neuquén –
Crónicas mapuches. Buenos Aires : Plus Ultra, 1993, p. 11. O fruto desta edição representa muito bem o
espírito antológico: “Las historias y probanzas que ofrecemos figuran en manuscritos de archivos argentinos y
extranjeros, oficiales o privados, en documentos éditos: folletos, libros o periódicos, en mudos testimonios
arqueológicos y de representación lineal o fotográfica, en confesiones de criollos y afincados en el Neuquén,
y en las tradiciones y experiencias de los mapuches de ayer y de hoy.”, p.13.
192
HUGHES, Charles E. “Observaciones acerca de la doctrina de Monroe” in Academia Nacional de la
Historia. Washington : Imprenta del Gobierno, 1923, p.4 : “ “La Europa entera espera”, dijo el Presidente
Monroe en 1820, “que los ciudadanos de los Estados Unidos deseen el triunfo de las colonias, y todo lo que
107
desejo desta em efetuar uma “colonización futura”, segundo Hughes, levou seu país a
elaborar princípios e documentos que garantissem a tranqüilidade e a impossibilidade da
extensão européia. Desta forma, a doutrina Monroe era por eles considerada não como uma
declaração legislativa, nem de agressão, mas uma declaração de defesa. Daí o sentimento
de estranhamento dos países do sul em relação ao vizinho do norte, uma vez que não
víamos ameaça na Europa (segundo os norte-americanos). Nesse espírito, o Rio de Janeiro
também foi palco de semelhantes afirmações:
Hablando el año pasado en Rio de Janeiro en la fecha de la roturación
del terreno para el monumento del centenario Americano, procuré
reafirmar lo que yo consideraba como el sentimiento verdadero del
pueblo Americano, en estas palavras: “... Tenemos nuestros problemas
internos, nacidos del desarollo de la vida de un pueblo libre, pero no
existen entre nosotros sentimientos imperialistas que proyecten una
sombra en la senda de nuestro progreso. (...) Sinceramente deseamos
ver en todo este continente una paz duradera, el reinado de la justicia,
y la difusión de las ventajas de una cooperación benéfica. Este anhelo
es el que constituye la base del sentimiento Panamericano.”.
193
Poderíamos ver nesta postulação o desenho do auto-protecionismo norte-americano, usando
a idéia do domínio territorial interno e externo, neste último caso justificado pelo
“eventualmente”
194
. Teríamos aqui configurado o estado de exceção em plena república
para as potências livres. É o momento em que Carl Schmitt (1922) está discutindo em
Politische Theologie a contigüidade essencial entre estado de exceção e soberania, segundo
Giorgio Agamben
195
:
Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao
ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um
patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se
excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa
ella puede exigir, aún la misma Espana, es que mantegamos una neutralidad imparcial entre las partes
contendientes.”, grifo meu.
193
Id.ibid., p.11.
194
“Todo esto ejecutado por la otra potencia lo sería dentro de su propio territorio. Sin embargo el país
amenazado por este estado de cosas está justificado protegiéndose por la declaración inmediata de guerra. (...)
La doctrina de Monroe se funda “sobre el derecho de toda nación soberana de protegerse a si misma,
impidiendo un estado de cosas declarado el cual sería demasiado tarde para defenderse sola.”. Id. Ibid., p.13.
195
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo : Boitempo, 2004,
p.11(Coleção Estado de Sítio).
108
sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo
menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.
Donde o interesse das teorias que, como a de Schmitt, transformam a
oposição topográfica em uma relação topológica mais complexa, em
que está em questão o próprio limite do ordenamento jurídico.
196
Desta forma, a lei que rege o movimento de exibição e resguardo poderia ser lida na
comemoração. É nela que a ordenação de uma política se explicita. Se no texto de Charles
Hughes a questão da proteção dos Estados Unidos passa pela relação de solidariedade,
proteção e amizade em oposição a uma possível hostilidade, o ponto recai numa
“desconfiança”, o que ele traduz na má interpretação feita dos postulados de Monroe
197
.
A comemoração pode ser pensada a partir de dois princípios: o da
rememoração (leia-se institucionalização) e o da exibição. No primeiro caso, a literatura é
entendida enquanto procedimento de canonização, onde a memória é retomada para
reafirmar um caráter canônico, quase documental. Se pensarmos em Modernismo, este é
lido enquanto nacionalismo. Para o segundo caso, a imagem que o simboliza pode ser o da
vitrine, ou seja, as exposições. Tratemos um pouco mais deste caso.
Raul Antelo, em “Modernismo repurificação e lembrança do presente”
198
,
partindo do conceito de Modernariato
199
defendido por Paolo Virno bem como de uma
teoria do presente entendida como déjà vu, revê e reivindica uma leitura crítica do
movimento modernista, assinalando que:
196
Id. Ibid.,p.39.
197
Hughes explicita que as interferências na América Central se deveram ao não cumprimento de acordos
recíprocos, ou seja, quebra da amizade. “Reiterando el deseo de mantener instituiciones libres y de promover
la estabilidad, el tratado estipula que los Gobiernos de las Repúblicas de Centro América no reconocerán
ningún gobierno que surja en cualquiera de aquellas Repúblicas por medio de un golpe de estado o de una
revolución contra un gobierno reconocido, mientras los representantes del pueblo libremente elegidos no
hayan reorganizado constitucionalmente el país. Este tratado y las convenciones tienden no solamente a
estrechar la amistad, sino también a construir sobre esas bases, en cada una de las Repúblicas, una estructura
cívica más perfecta.”. In “Observaciones acerca de la doctrina de Monroe”, Op. Cit., p.19. O conferencista
aponta ainda para as dificuldades sofridas, tais como falta de desenvolvimento, de riquezas e ausência de
facilidades para intercâmbios. Residiria na educação, nos métodos aperfeiçoados da agricultura e indústria a
facilitação das oportunidades para o bem estar econômico. E acrescenta que não se pode alcançar o progresso
sem investimento de capital (vindo do exterior, obviamente), através de empréstimos e de capitais privados,
sintomáticos para o que viria a ser a atuação norteamericana nos continentes do centro e do sul durante todo o
século XX.
198
ANTELO, Raul. “Modernismo, repurificação e lembrança do presente” In Literatura e sociedade. n.7,
São Paulo, 2003-4, p.146-165.
199
Para Virno, segundo Antelo, modernariato seria “(...)o interesse sentimental, estético e comercial por
objetos pertencentes ao passado próximo (...) Mais radicalmente, modernariato significa o desenvolvimento
sistemático de uma sensibilidade antiquária no confronto com o aqui e agora em que vive.” Id. Ibid., p.146.
109
(...) o modernismo brasileiro, em particular, tentou, por muitas vias,
montar uma exposição universal específica, onde Oriente e Ocidente se
tornassem, finalmente, contíguos e contemporâneos. Mas essa
exposição confundiu-se, no correr dos anos, com a própria sociedade
do espetáculo, uma sociedade em que o sujeito moderno cinde-se em
dois: um sujeito que se oferece à exposição e outro sujeito que se
anestesia diante do espetáculo. Diríamos, então, que a forma que
assume o déjà vu na nossa sociedade é, precisamente, o espetáculo,
uma vez que o espetáculo nos oferece puras potências.
200
Para o autor de Algaravia, a Exposição Universal erguida no Rio de Janeiro em
comemoração do centenário da Independência “encena e dramatiza à perfeição esse
movimento basculante entre realidade e ilusão, natureza e técnica, início e fim, felicidade e
infortúnio, nacional e universal, primitivismo e abundância”, oferencendo à vista o que o
crítico Araripe Jr. definiu como “obnubilação”
201
.
Outros críticos também refletem sobre o assunto. Em texto recente, Jens
Andermann, abordando a Exposição Antropológica Brasileira de 1882
202
, comenta a
linhagem a que pertence o referido intento, que se coadunava com os objetivos de
institucionalização do patrimônio histórico:
A Exposição Antropológica Brasileira (...) foi, antes de mais nada,
uma tentativa do Museu Nacional em recuperar sua antes exclusiva
autoridade para expor os objetos representantes do patrimônio
nacional, frente a um número crescente de rivais (...). Se, segundo
Walter Benjamin (...), a luta contra a dispersão é a força secreta que
motiva o colecionador, a Exposição Antropológica ocupava um lugar
crucial neste “complexo expositório” do segundo reinado, já que a sua
maior preocupação era a de resgatar e revalorizar a iconografia
200
Id. Ibid., p.165.
201
“ ‘Consiste este fenômeno na transformação por que passavam os colonos atravessando o oceano
Atlântico, e na sua posterior adaptação ao meio primitivo. Basta percorrer as páginas dos cronistas para
reconhecer esta verdade. Portugueses, franceses, espanhóis, apenas saltavam no Brasil e internavam-se,
perdendo de vista as suas pinaças e caravelas, esqueciam as origens respectivas. Dominados pela rudez do
meio, entontecidos pela natureza tropical, abraçados com a terra, todos eles se transformavam quase em
selvagens; e se um núcleo forte de colono renovado por contínuas viagens, não os sustinha na luta, raro era
que não acabassem pintando o corpo de genipapo e urucum e adotando idéias, costumes e até as brutalidades
dos indígenas. (...)’ ”. Id. Ibid. A citação do fragmento é do livro Gregório de Matos, 2ª. Ed. Paris, Garnier,
1910, p.37-8.
202
ANDERMANN, Jens. “Espetáculos da diferença: a Exposição antropológica Brasileira de 1882” in
STEPHAN, Beatriz González y ANDERMANN, Jens (eds.). Galerías del progreso – Museos, exposiciones
y cultura visual en América Latina. Buenos Aires : Beatriz Viterbo, 2006, pp.151-193.
110
indianista do Império que na época parecia ter se tornado redundante.
Porém, (...) o evento se destinava à “celebração popular da ciência”,
conforme havia afirmado o fisiologista e futuro diretor do museu, João
Baptista de Lacerda.
203
O objetivo do estudioso é também demonstrar como “a evidência material da ‘realidade’ da
vida indígena exigia uma reavaliação da utilidade do índio como representante da nação
moderna” (p.153). Ou seja, a antropologia, em oposição à imagem do indianismo visto
como variação de uma temática do sacrifício, apresentava uma nova alternativa de
reformulação deste vínculo em termos de “proscrição soberana na qual a ordem política é
fundamentada na inclusão da vida nua do nativo em relação à sua exclusão da nação.”
(p.53).
Segundo Andermann, que utiliza para sua análise o conceito de “vida nua”
de Giorgio Agamben, a idéia da exposição nasceu em 1880, quando o projeto de Landislau
Netto para a criação de um museu não seria realizado. Netto, em viagem de seis meses ao
norte, parando na Ilha de Marajó, “escavando utensílios de barro e argila dos túmulos
funerários” (p.170), deteve-se em seguida somente por dois dias a fim de pesquisar a vida
de três tribos indígenas “cujos costumes quero estudar ao vivo, e de perto, e cujos
cemitérios vou revolver para deles exhumar os ossos destes filhos das nossas selvas” ”
(p.170). Claro está que a exposição serve aos objetivos da ilustração, do colecionismo.
Porém, ela é reveladora porque torna evidente uma suspeita de Netto, a de que haveria entre
os “primitivos brasileiros” e outros ameríndios, bem como entre outras civilizações
(européias e asiáticas) parentesco. E por falar em primitivo, é bom lembrar que a exposição
seria, segundo os organizadores do volume em que se inclui o ensaio de Andermann,
(...) la miniatura o sinécdoque espacial de un país literalmente
domesticado, donde provincias, plantas y animales harían su propia
“representación” ordenada: separados, clasificados y mantenidos a una
cómoda distancia por el alambre electrificado que impedia el
acercamiento en exceso entre observadores y objetos y aseguraba la
especularidad de la escena como destinada a un consumo
exclusivamente visual.
204
203
Id. Ibid., pp.152-153.
111
A coleção, exposta ao olhar curioso dos visitantes, instiga por seu caráter de “instantes
congelados” da vida nua. O caso da fotografia (com fotos de Marc Ferrez) seria uma forma,
segundo o crítico, de apropriação e transformação dos objetos em um novo objeto visual.
Importa, nela, tanto quanto o elemento mostrado, a sua disposição, o que, na perspectiva
deste trabalho, assemelha-se ao plano da organização antológica. Na amostra, a colocação
dos objetos em determinada posição imprime uma sensação de poder, o que, em sentido
oposto (através de sua justaposição) põe-se em relevo o que nos escapa “até se parecer a
despojos, objetos feridos que, amputados da sua utilidade prática apontam apenas para a
sua ausência, em luto pela perda de sentido precisamente ao serem reduzidos à pura
significação” (pp.179-180)
205
.
Esta redução teria como pressuposto os trabalhos cômicos de Ângelo
Agostini, com a transformação do material em história em quadrinhos, utilizando o que
Andermann denomina de “potencial cômico do anacronismo”, semelhante ao que os
modernistas brasileiros fariam alguns anos depois. Já para a ensaísta e crítica Lilia Moritz
Scharcz, em “Os trópicos como espetáculo
206
, a imagem que se queria passar nessas
exibições era a de uma espécie de “parque de diversão” cujas lógicas eram diferentes: do
“simples camponês” ao “evoluído cidadão”, a exposição deveria agradar e reproduzir as
diferenças e as contribuições para a noção de evolução da humanidade. Ou seja, as
exposições, as feiras universais funcionavam como “orgias da modernidade”, já que eram
levantadas cidades monumentais para tais fins e, logo em seguida, eram destruídas
207
. O
204
STEPHAN, Beatriz González y ANDERMANN, Jens. “Introducción”. Id. Ibid., p.8. Esta é a metáfora
preferencial para Zigmunt Bauman, como vimos.
205
Jens Andermann acrescenta: “A fotografia, neste sentido, cumpre implicitamente uma forma de “vingança
do objeto”. Desta forma, ela restabelece um sentido de contingência histórica, ao tempo congelado da
exibição do museu, justamente por revelar a instantaneidade das suas manifestações.” Id. Ibid., p.180. Havia
também nesta exposição a presença de “quadros vivos”, com famílias de índios como em molduras nos
estandes (nas estantes...). Roland Barthes, perguntando-se a quem pertence a foto, afirma: “A Fotografia
transformava o sujeito em objeto, e até mesmo, se é possível falar assim, em objeto de museu.” In
BARTHES, Roland. A câmara clara – Notas sobre a fotografia. 9ª impressão. Trad. Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2004, p.26, grifos meus.
206
SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Os trópicos como espetáculo: a participação brasileira nas exposições
universais de finais do século XIX”. Id. Ibid., p.199.
207
Note-se que havia toda uma concepção para os estandes, já que a organização e patrocínio vinham
diretamente do Imperador, que normalmente distribuía “prêmios” nas categorias de medalhas de prata, cobre,
menção honrosa e “prêmio extraordinário e fora do comum”. (p.205). As exposições universais, de 1851-
1915, nunca passaram pelo Brasil. Em compensação, o Brasil ganhou o prêmio na Exposição de 1862
(Londres) exatamente com o café e cerâmicas marajoara, portanto pelo lado exótico, “fora do comum”,
marcando, assim, uma identidade, retomada nas pesquisas antropológicas e etnográficas pelo próprio Métraux
alguns anos depois.
112
Brasil, configurado como “fornecedor de matérias primas” e como “um exótico reino
tropical”, marca seu espaço nessas exposições a partir de uma decisão interna, ao contrário
do que normalmente se acredita. Ao tentar demonstrar que tentava superar-se de sua
situação colonial, o país se colocava como espetáculo “exótico”
208
.
É nessa perspectiva das exposições que podemos conceber as comemorações
do século XX, especialmente as das primeiras décadas. Elas reafirmam um caráter
extremamente difundido no XIX, ao mesmo tempo em que buscam novos caminhos para o
século “tecnologizado”
209
.
Roberto Doberti lê as comemorações dos centenários de independência
como “forma”, apontando para os bicentenários como um projeto de construção, em que
memória traduz-se em recordação e reatualização crítica. Entretanto, estas formas
associam-se a outro movimento, o da produção da imagem:
La conmemoración será el proceso de generación de formas que se
desplegarán en los registros fundamentales del hablar y del habitar,
teniendo en cuenta que el nexo entre ellos – y hasta el engranaje que
los pone en funcionamiento – es la producción de la imagen. Imagen
que se manifiesta tanto en concreto objeto de experiencia sensible
como en sutil imaginario personal y social.
210
Assim, simultaneamente ao momento em que Victor Chklovski articula a arte,
especialmente a poesia, à produção de imagens, texto de 1917
211
, podemos pensar a
comemoração como um produtor e sedimentador de símbolos, portador de imagens
carregadas de significados. De uma forma não menos complexa, o crítico mexicano
Enrique Florescano associa a comemoração à fixação de símbolos pátrios, caso do México,
quando o museu passa a ressignificar-se:
208
Não raro, o próprio imperador se apresentava com sua “murça de papos de tucano: uma grande gola feita
de penas e que representava uma homenagem do soberano brasileiro aos nativos da terra”. Id. Ibid., pp.209-
210.
209
Neste mesmo volume de ensaios, Beatriz González-Stephan explora a temática com o texto “Invenciones
tecnológicas. Mirada postcolonial y nuevas pedagogias: José Martí en las Exposiciones Universales”, pp.221-
259.
210
DOBERTI, Roberto. “Morfología de la conmemoración” in GUTMAN, Margarita (Editora). Construir
bicentenarios : Argentina. Buenos Aires : Observatorio Argentina : Fundación Octubre. Caras y Caretas,
2005, p.185.
211
“A arte como procedimento” in Teoria da literatura - formalistas russos. Op. Cit.
113
En esta nueva concepción del museo la recuperación del pasado se
convertió en un instrumento poderoso de identidad nacional, y el
museo en un santuario de la historia patria. A su vez, la historia patria
vino a ser el eje de un programa escolar que transmitió la idea de una
memoria nacional asentada en un pasado compartido por los diversos
componentes de la población.
212
A comemoração associa-se, desta forma, a uma dupla função pedagógica: a de reforçar os
conceitos pátrios, ao mesmo tempo em que finca seus preceitos em programas escolares, o
que se traduz no projeto de modernidade do iniciante século XX em engessamento de
propostas, ou, se quisermos pensar na comemoração pela produção de imagens, teríamos
uma concepção em que e equação revela-se mais por meio de repetições do que por
inesperadas articulações. Estas repetições, em meio à cultura de massa, teria como função
assegurar a permanência da tradição, ainda na forte vertente legislativa. É o que lê Susan
Buck-Morss nas “fantasmagorias” como recurso narcótico, presentes desde o século XIX,
com sua explosão nos espaços públicos do princípio do séxulo XX:
No Passagen-Werk (O livro das passagens), Benjamin documenta o
alastramento de formas fantasmagóricas para o espaço público: as
arcadas parisienses de centros comerciais, onde as carreiras de vitrines
criavam uma fantasmagoria de artigos em exibição; panoramas e
dioramas que engolfavam o observador numa simulação de um
ambiente total em miniatura, e as Feiras Mundiais, que expandiram
este princípio fantasmagórico para áreas do tamanho de pequenas
cidades.
213
Radicalizando um pouco mais, poderíamos ver a produção da comemoração, bem como a
dos congressos, conferências etc., como uma normatização que anestesia as massas de seu
poder crítico e criador. Retomando igualmente a idéia dos encontros “regulamentados”,
veríamos na organização das leis esse desejo de pedagogia, um dever ser. Um desses
exemplos pode ser notado no “Programa y Reglamento de la Quinta Conferencia
Internacional Americana”
214
que esmiúça com detalhes o encontro que se realizaria em
212
Florescano, Enrique. “Imágenes del centenario mexicano”. Id. Ibid., p.164.
213
BUCK-MORSS, Susan. “Estética e anestética: o “Ensaio sobre a obra de arte” de Walter Benjamin
reconsiderado” In Travessia – revista de literatura. n.33. UFSC – Curso de Pós-Graduação em Literautra –
Ilha de Santa Catarina : UFSC, ago-dez. 1996, p.27 (A estética do fragmento).
214
Programa y Reglamento de la Quinta Conferencia Internacional Americana. Washington : Imprenta
del Gobierno, 1923.
114
Santiago do Chile em 25 de março de 1923, distribuindo as áreas de debates entre as
proposições da Mesa, da Política, da Higiene, Comunicações, Comércio, Agricultura,
Intercâmbio, entre outras. Dois anos depois, as Atas da V Conferência demonstram o
esforço desprendido para normatizar todas as áreas da cultura e comércio, incluídas as áreas
militares. Recobrando, na sessão dos anexos, a breve história da organização da União
Panamericana: toda a discussão teria como base a “Primera Conferencia reunida em
Whashington, en 1889”, resultando na “Cuarta Conferencia Internacional Americana
celebrada en Buenos Aires en 1910”. E desta última, surgiu a necessidade de redigir uma
Resolução:
La Conferencia de Buenos Aires decidió, por esto, que convenía
adoptar una Resolución redactada en términos análogos a los de la
Convención, a fin de que a ella se amoldase la organización y siguiese
las actividades de la Unión Panamericana, mientras se obtenía la
ratificación de la Convención por todos los gobiernos que son
miembros de la Unión [21 Estados soberanos].
215
Para divulgar sua ação, o setor de comunicações é fortíssimo e prevê, para a eficácia das
decisões tomadas, ampla divulgação, bem como um centro de informação através de
intercâmbios, nacionais e internacionais. Assim, “los más importante [sic] por sus
trascendentales efectos, la Unión Panamericana debe ser el factor fundamental para
promover el desarrollo de relaciones culturales más estrechas entre las Repúblicas de
América” [Actas, 1925, p.72], com fins à mútua compreensão e entendimento entre os
países envolvidos, cuja essência o Panamericanismo representa o avatar deste
empreendimento. Igualmente, cabe destacar o desejo de constituir, nesta rede de
informaçãos (e formações), as “Bibliotecas panamericanas”, propostas pela Comissão de
Mesa e Iniciativas, com sentimentos de estreitamento dos vínculos e de “celebración
(p.61). É o que preconiza o artigo 4º e último desta Comissão:
Recomendar a los Gobiernos de la Unión Panamericana la formación,
en cuanto sea posible, en sus bibliotecas, de un departamento destinado
215
Actas de las Sesiones de las Comisiones de la Conferencia [Quinta Conferencia Internacional
Americana]. Santiago de Chile : Imprenta Universitaria, 2005, p.71.
115
especialmente a la producción intelectual del Continente, sin perjuicio
de la clasificación científica de las bibliotecas.
216
Desta forma, esta iniciativa não poderia estar disassociada da Comissão de Educação, que
vê na não aprovação dos postulados sobre “propiedad literaria y artística”, formulados em
1910, a “extraordinaria pluralidad de legislaciones, convenios internacionales y aún de
preceptos constitucionales, contracditorios muchos dellos” (pp.65 e 66) como dificuldades
a serem superadas em favor da “deseada unanimidad” dos proponentes. O que se vê na
resolução proposta reafirma o caráter legislativo com que a idéia de intelectual americano é
configurada, aqui representada na figura do autor (“Que se haga efectiva la protección
acordada a los propietarios de derechos de autor (...) por medio de la legislación (...) para
evitar la introducción y venta de edicciones no autorizadas”) (p.66).
3.1.3 - IMAGENS DE SI
Toda esta demasiada preocupação com as leis, a normatização, o
disciplinamento dos intelectuais, culmina em uma concepção de América Latina que,
controlada, erige como ápice, e não apêndice, uma imagem legislativa, bem comportada, de
seus agentes culturais. A esse respeito, tomemos como exemplo a apresentação que faz
Juan Mas y Pi, colaborador da revista argentina Nosotros
217
, sobre as letras brasileiras, ao
216
Id. Ibid., p. 63. Vale notar que a publicação das Atas é bilíngüe: espanhol e inglês. Na seqüência deste
artigo, registra-se um voto de reconhecimento à Fundação Rockefeller, por seus esforços em prol da “sanidad
internacional”, voto seguido de uma “Homenaje a la Instituición Rockefeller”. (p.64). Um dos projetos mais
arrojados, com ecos dessa iniciativa, foi a criação da Biblioteca Ayacucho, cuja fundação foi criada em 1984.
Prevê-se a edição de 500 tomos, com a média de 400 páginas cada, a fim de se “mantenga la vigencia del
legado civilizador de América Latina.”. A sua criação foi realizada pelo Decreto Presidencial 2.673 de 9 de
maio e a Fundação Biblioteca Ayacucho, pelo decreto 407, sob a presidência de Carlso Andrés Pérez (1974),
na Venezuela, dentro do marco das comemorações do sesquicentenário da batalha de Ayacucho. Segundo um
dos apresentadores do projeto, Gunther W. Lorenz, trata-se de uma “missão cultural da América”, através da
qual esta se daria a conhecer ao mundo, a fim de demonstrar a “nova consciência latinoamericana” (p.24).
Entre a publicação de obras brasileiras, são previstos escritores como Sílvio Romero, Gilberto Freyre,
Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Euclides da Cunha, bem como obra de arte e arquitetura
do modernismo brasileiro. A proposta está editada em três línguas (espanhol, inglês e francês) e pode ser
conferida através de seu catálogo: Fundación Biblioteca Ayacucho – Catálogo. Caracas : Fundación
Biblioteca Ayacucho, 1984.
217
A
revista possui duas etapas em sua trajetória: a primeira girou entre 1907 e 1934, sendo retomada, em seu
segundo momento, de 1936-1943. Era dirigida por dois intelectuais muito influentes na cultura argentina da
primeira metade do século passado, Roberto F. Giusti e Alfredo A. Bianchi. Giusti também colaborou com a
116
enfocar a produção de Elysio de Carvalho, de cuja imagem intelectual se destaca certa
honradez, dignidade, nobreza que nos leva a pensar neste modelo legislativo, exemplar
218
.
importante revista de esquerda Expresión, tendo circulado entre dezembro de 1946 e maio de 1947. Para uma
abordagem destas e de outras revistas, consultar LAFLEUR, Hector René; PROVENZANO, Sergio D.;
ALONSO, Fernando P. Las revistas literarias argentinas 1893-1967 (edición corregida y aumentada).
Buenos Aires : Ediciones Culturales Argentinas, 1962 (Biblioteca de Literatura).
218
O texto integral de Juan Mas y Pi é o seguinte:
LETRAS BRASILEÑAS – Juan Mas y Pi
“AS MODERNAS CORRENTES ESTHÉTICAS NA LITERATURA BRAZILEIRA” por Elysio de
Carvalho. (Garnier, editor, Rio de Janeiro-Paris 1907 – 284 – XII páginas).
Para aquellos de nuestros intelectuales desconecedores del actual movimiento brasileño (y son los
más) la obra recientemente aparecida en Rio de Janeiro, original de Elysio de Carvalho, merece toda la
atención destinada á las obras importantes y mucha más de la que generosamente se conoce á exotismos
falsos, cuando no ridículos, á japonerías grotescas y á superficiales sajonismos.
Como buenos latinos solemos echar en olvido lo que de más cerca nos interesa, para ocuparnos de
las cosas más vagas y lejanas. No haría tanto un microbiologista que se sintiera atraído por los estudios
astronómicos.
En cuestiones de letras, quizás con mayor intensidad que en otra esfera del vivir contemporáneo,
atraídos por la novedad y por el encanto de lo desconocido, lógico es que las multitudes vayan á lo más
opuesto de todo lo que constituye su vida habitual. La misma falta de razonamiento, característica de la
multitud, hacen que no puedan ver las bellezas suaves de las medias tintas próximas y á su vista, cansada por
su lucha têrre-à-têrre de la vida diaria, solamente llamen la atención los colores fuertes y las formas
novedosas de los exotismos chocantes. Que eso ocurra entre la multitud está muy puesto en la razón ilógica de
la vida; pero, es del todo impropio que lo mismo suceda con los intelectuales, con aquellos cuya razón, cuyo
sentimiento los elevan á cien codos sobre la insustancial vulgaridad del señor Todo-el-mundo.
Por esto no será nunca bastante combatido ese mal oculto desdén con que nuestros tan escasos
hombres de letras refiérense á la producción artística y literaria del Brasil, olvidando que, tanto por su
situación privilegiada, como por el número de sus habitantes debe de tener notables obras cuya existencia,
desconocida aquí, puede afirmar la escasa buena voluntad de nuestros intelectuales.
Desconocer el Brasil y conocer en cambio lo ruso y lo japonés, por obra y gracia de la tiránica ley de
la importación, es algo absurdo que muy poco dice en favor del espíritu de crítica y de investigación de
nuestro medio.
La obra de Elysio de Carvalho es, por esta principalísima razón, muy digna de ser tenida en cuenta y
bien merecería que se propagara entre los que en este país dedican su actividad á la tan hermosa cuanto
ingrata labor de las letras, porque gracias á ese volúmen de críticas y ayudados por el estado de simpatia que
ha dirigido su confección, los lectores que desconozcan la vitalidad literaria brasileña verán abrírseles nuevos
horizontes y se regocijarán en el supremo goce intelectual de conocer nuevos talentos, cuya existencia quizás
ni presentían.
La obra de Carvalho es utilísima para todos que, desde lejos y sin elementeo de prueba, quieran
conocer esa literatura brasileña, tan pródiga en talentos, y conocerla especialmente en sus modalidades más
recientes, apartándose de los maestros ya consagrados por el tiempo para atenerse con preferencia al estudio
de las nuevas generaciones, tan fuertes como las anteriores, aunque, talvez, más originales.
Elysio de Carvalho estudia á Graça Aranha, el genial autor de “Canáan”, que en la traducción de
Payró fué leído por el público argentino; á José Verissimo, crítico, del tipo de los Sainte-Beuve, hombre de
conciencia, cuya arte no se ha convertido jamás en un oficio; á Juan Ribeiro, el filólogo, y á Emilio de
Menezes, el poeta. Después de estos, que perteneciendo á la generación ya impuesta no desdeñan formar parte
de los “nuevos”, vienen los estudios sobre Juan do Rio, Gustavo Santiago, Goulard d’Andrade, Oscar Lopez,
Fabio Luz, Curvello de Mendonça, Pereira da Libra y Pedro do Coutto, poetas, novelistas, críticos, además de
una serie de estudios sobre temas de crítica elevada y noble como sabe escribirla Elysio de Carvalho, quien
puede presentar á la consideración de los sud-americanos, como una digna respuesta á la ignorancia que de
117
Também outro intelectual, Roberto F. Giusti, em suas memórias, recobra um perfil da
época e de um modelo de crítica que valeria lembrar:
A la tarea del crítico, que ha sido la preferida por mi, llevé siempre,
junto con aquella dosis de penetración que se me quiera conceder
benévolamente, la más estricta ecuanimidad. Comprender ha sido mi
ambición; no lisonjear ni cobrarme agravios reales o presuntos. No
juzgo sin utilidad la actividad del crítico, a pesar de ciertas
apreciaciones frívolas que de vez en cuando corren por ahí. El crítico
no es un animal dañino, con gorro y palmeta, ojos llameantes de
rabiosa impotencia y dientes verdes de invidia. Es el hombre a la
ventana, impedido, quiçás, en ciertos casos, de caminar, pero que se
complace con el espectáculo de la gente que pasa. Aun en países como
el nuestro, de literatura con escaso arraigo en el tiempo, la crítica ha
sido cultivada anteayer y ayer y lo es hoy, por escritores inteligentes,
de buena fe, curiosos de toda lectura, capaces ellos mismos de crear,
poco o mucho, afanados por comunicar a los demás, con esa tendencia
irresistible que nace del sentimiento estético, su amor a los bellos
libros, cuando no su legítima indignación contra los torpes o estúpidos.
219
los brasileros se tiene entre nosotros, uno de los más hermosos estudios críticos que sobre Rubén Darío y su
obra se han escrito.
Mucho sería de desear que el libro de Carvalho se leyera entre nuestros intelectuales, realizando la
verdadera y la más digna obra de confraternización americana.
JUAN MAS Y PI.” In Nosotros – a.I, n.1 – agosto de 1907. Buenos Aires : Arnoldo Moen y
Hermando, p.112-114.
219
GIUSTI, Roberto F. Visto y vivido. Buenos Aires : Losada S.A., 1965, p.27. Igualmente importante é o
fato de o próprio nome da revista vir de uma sugestão de um outro intelectual, cuja influência foi enorme para
os escritores dos anos iniciais do século XX, Rubén Darío. Antes de mostrar a transcrição, valeria ainda
ressaltar esse desejo de amplitude latinoamericana do periódico:
Presentación : La revista ya lleva en su
título una rotunda afirmación de sí misma. Acaso ese título, como toda altivez juvenil, aun pueda parecer
algo petulante. Porque es en efecto NOSOTROS una revista de jóvenes, y como tal se presenta armada de
aquel ardimiento que una esperanza todavía no decepcionada presupone.
No sabemos si ella viene ó no á llevar un vacío. El éxito que obtenga lo dirá. (...)
...........................
Esta revista no será excluyente. No desdeñará las firmas desconocidas. Si lo hiciere, renegaría de este
su origen, humilde como el lector vé. Todo aquello que bien pensado y galanamente escrito á sus puertas se
presentare, recibirá una afable acogida.(...) Y si estas aspiraciones pudiesen salvar las fronteras de la patria y
extenderse á toda la Américalatina, mejor aún. Nada de más urgente necesidad que la creación de sólidos
vínculos entre los aislados centros intelectuales sudamericanos.
Sonríanlos descreídos. Salmodien una vez más su repetida pregunta.” ¿para qué sirve eso?” El arte,
en toda su aparente inutilidad, pasa sencillo, sonriente, en marcha hacia el cumplimiento de los altos fines que
persigue, sin cuidarse de aquellos que desde las tinieblas le arrojan piedras.
LA DIRECCIÓN”
Em uma nota assinada pela Direção da Revista ao texto de apresentação de Ruben Darío ao livro Nosotros de
Roberto J. Payró, lemos : “Conocidos son en cierto círculo intelectual varios fragmentos de una novela que
anunciara Roberto Payró hace ya muchos años, con el mismo título de esta revista. Este título alguien nos lo
sugirió; pero cuando conocimos su procedencia no dudosa, tuvimos justos escrúpulos de adoptarlo, no
118
Na concepção presente, Roberto Giusti reforça o caráter do crítico combativo, benévolo,
inteligente, honorável. Ainda que retome imagens da modernidade baudelairiana (o
contingente e o eterno), na imagem do flaneur que vê da janela o movimento da rua (para
também recobrar Edgar Allan Poe de “O homem da multidão”), persiste a imagem de uma
crítica ainda com desejo de glamour : “Se ha dicho que el gran crítico es más raro y
singular que el gran poeta (...) En ese culto de la verdad y la belleza en el cual oficiaban en
el gran siglo de la crítica, del que me siento devoto, Sainte-Beuve y Taine, de Sanctis y
Carducci, Mateo Arnold y Brandes...” (p.28).
Este discípulo da crítica essencialista teve suas primeiras leituras inspiradas
precisamente em uma antologia
220
, a da história de santos, pertencente ao irmão mais velho.
Entretanto, também com Giusti, uma das funções elementares da crítica encontra-se na sua
vertente pedagógica, quando não escancaradamente docente.
Além de lecionar por muitos anos, Giusti publicou vários livros, cuja função
não perdia de vista o caráter pedagógico da literatura. Entre eles, destaca-se Siglos,
escuelas, autores; Momentos y aspectos de la cultura argentina e Lecciones de
literatura española, argentina y hispano-americana (acompanhada de uma Antologia
habiendo aun sido lanzada á la publicidad esa novela. Consultamos el caso con el mismo Payró. Le
propusimos una transación, que –dicho sea con toda sinceridad – nos convenía. “Dénos usted el primer
capítulo de la novela, le dijimos, y nosotros explicaremos la procedencia del título de esta revista.” Era justo.
Payró, benévolo como siempre, sonrió con indulgencia y cedió.
La novela de la cual publicamos en este número una parte del primer capítulo, Payró la viene
acariciando en su mente desde muchos años atrás, (...) Por eso, por lo que ha de representar en nuestras letras
esta novela en cuanto aparezca, no hemos titubeado (...) de hacer preceder el fragmento que de ella
insertamos, por un artículo que á su respecto escribiera Darío en 1896 en La Nación. Es una página que,
desconocida para los más y olvidada seguramente por los que tuvieron ocasión de leerla, bien merece, como
todo lo de Darío, retener por un instante la atención del lector. Además, contiene enseñanzas que si bien ya
dichas en 1896, nadie negará que es conveniente repetirlas en 1907.N. de la D.” In Nosotros, a.I, n.1 – agosto
de 1907. Op. cit., pp.7-8.
220
“Cuando comienza esta historia, salvo que él pueda apoderarse de la entretenida antología que su hermano
mayor trae del Gimnasio, las vidas de santos son su solo pasto espiritual. Ante sus ojos atónitos, desfilan los
milagros. Son ciegos que recobran la vista, paralíticos que arrojan sus muletas, leprosos que sanan,
empedernidos criminales que se salvan de la horca y del infierno... Es un mundo de dolor, de llagas, de podre,
de miseria, en el cual no hay otra luz que la auréola del santo, otro perfume que su divino olor de nardo y
jazmín.”. Esta descrição, que lembra a definição de Deleuze, retomando Foucault, de uma “antologia de
existências”, agrega, além de um valor quase sobrenatural, a belíssima cena da alfabetização involuntária,
quando imagens e letras formam um só corpo : “...éste [Roberto] aprendió el juego maravilloso de crear
imágenes combinando letras, el cual habría de servirle pocos años después para leer el Caín de Byron y los
cuentos de Voltaire.” Id. Ibid., p.37.
119
anotada y comentada)
221
. Há nestas obras um caráter eminentemente histórico, seguido de
uma linha de pensamento que se expressa através do desejo de manter-se. Ou, como disse
em suas memórias, a despeito do projeto de manutenção por longo tempo de revista
Nosotros, “Durar, contra todo y contra todos, durar con decoro y utilidad, ¿es acaso
pequena hazaña?” (p.326). Nas palavras do Editorial Problemas, do livro Siglos, escuelas e
autores, Giusti representou “el ejercicio de la alta cultura”(p.11). A imagem que bem
exemplifica o pensamento deste crítico é a do “Panorama”, entendida como sintoma de
países que nutriam o ideal da visão cultural em conjunto, imagem que serve de abertura
desse livro, “Panorama del siglo XIX”, centrando-se nas escolas e autores franceses e
espanhóis, para chegar à “Literatura y vida de América”
222
.
Na versão de Walter Benjamin, em seu quebra-cabeça de textos, espécie de
enciclopédia temática e fragmentária, Passagens, já citada, o verbete “Panorama” apresenta
a seguinte anotação:
“Panorama” – a mais conhecida das palavras gregas que surgiram
durante a Revolução Francesa. “Em 7 de floréal do ano VII, Robert
Fretton obteve uma licença ‘para expor quadros circulares chamados
panoramas’. Dessa primeira tentativa viria a idéia de um
‘peripanorama’, depois de um ‘cosmorama’ (1813).” Ferdinand
Brunot, Histoire de la Langue Française dês Origines Jusqu’à 1900,
vol. IX, La Révolution et l’Empire, tomo II: Lês Événements, lês
221
GIUSTI, Roberto F. Siglos, escuelas, autores. Buenos Aires : Editorial Problemas, S.A, 1946 (Biblioteca
de ensayistas); Momento y aspectos de la cultura argentina. Buenos Aires : Editorial Raigal, 1954
(Problemas de la cultura en América); Lecciones de literatura española, argentina y hispano-americana y
ANTOLOGÍA anotada y comentada – Adaptadas al programa de las Escuelas Nacionales de Comercio.
Buenos Aires : Angel Estrada y Cia. S.A., 1958. Giusti foi professor de ensino secundário, presidiu a
Sociedade Argentina de Escritores (S.A.D.E.), pertencendo à Comissão Nacional de Cultura, além do
primeiro Congresso de escritores argentinos, chegando a ocupar, em 1936, um assento permanente na
Academia Argentina de Letras.
222
Consultar igualmente a antologia de ensaios de GIUSTI, Roberto F; ARRIETA, R.A. y otros. La
profesionalización de la crítica literaria – antología. Buenos Aires : Centro Editor de América Latina, 1980
(Capítulo – Biblioteca argentina fundamental, n.62). O ensaio de Giusti também intitula-se “Panorama de la
literatura argentina contemporanea” . O mote para o desenvolvimento do texto é a pergunta formulada por
uma “doutora” da Faculdade de Filosofia de Letras, portanto, da academia, que se pergunta(m) se existe uma
literatura americana (p.85). Giusti critica o modelo vigente, os manuais de literatura, chegando a afirmar que
“Aparecen muchos libros; pero los de real significación son escasos. El crítico ideal – desde el punto de vista
de los autores – debería leérselos todos.” (p.98). Vários dos ensaios desta antologia foram publicados
inicialmente na revista Nosotros. Também a escritora Victoria Ocampo inicia o primeiro volume de seus
testemunhos a partir do comentário do Panorama de la literatura Hispano-Americana, de Max Daireaux.
In Testimonios. Primera serie – 1920-1934. Buenos Aires : Sur, 1981, p.17.
120
Institutions et la Langue, Paris, 1937, p.1212 (“Les nomenclatures
sous la Révolution”).
223
Panorama também será o nome de uma revista brasileira, publicada em
Minas Gerais, que opera como uma verdadeira antologia, de “crítica” e da “ficção”, em
verso e prosa. Nela estão os já mestres da literatura brasileira, funcionando como
homenageadores de Carlos Drummond de Andrade, o escritor canonizado nos meios
acadêmicos brasileiros e fora dele. Endossam a opinião a respeito do poeta de A rosa
do povo José Lins do Rego, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Tristão
de Ataíde, Agripino Grieco, Álvaro Lins, Abgar Renault. A novidade mesmo fica por conta
da apresentação de Elisa Lispector, irmã de Clarice, com o conto “Tormenta”. Diríamos,
então, que Panorama articula o passado e o presente literário, quiçás com menos
intensidade, por vir afiançada por escritores “modernistas” em sua bagagem
224
.
223
BENJAMIN, Walter. Passagens, Op. Cit., pp. 577, 578. Em nota de rodapé, explica-se que “A palavra foi
criada e patenteada em 1789 por Robert Barker (1739-1806), pintor escocês de retratos. A licença mencionada
nesta passagem é de 1800 (floréal era o oitavo mês do calendário revolucionário estabelecido em
1793).(E/M)”, p. 577. Outra nota afirma que os panoramas foram introduzidos na França em 1799, pelo
engenheiro americano Robert Fulton : “Esses vastos quadros, circulares, pintados em trompe-l’œil e
destinados a serem olhados a partir do centro da rotunda, representavam cenas de batalhas e vistas de cidades
(...)”, p. 569.
224
Panorama – Arte e literatura. (Dir. João Calazans). a.1, n.1. Belo Horizonte, agosto de 1947. Na abertura
da revista, intitulada “Presença” (nome que, aliás, servirá de título-série para livros sobre literatura brasileira
algum tempo depois): “Aqui estão, leitor amigo, as clássicas duas palavras de apresentação: - PANORAMA
tem um programa simples demais. É uma seleção dos valores mais representativos e mais legítimos da
intelectualidade brasileira. Uma espécie de homenagem aos nossos grandes homens do passado e do
presente. Poetas, escritores, cooperam para o mais desenvolvimento da nossa cultura [repete a frase] terão
em nossas páginas um espelho de suas emoções. (...) O critério que adotamos na escolha desses nomes [estão
também Érico Veríssimo, Jorge de Lima, Sérgio Milliet, Jorge Amado, João Adonias Filho, Euclides da
Cunha, Lima Barreto, além de escultores/pintores como Aleijadinho, Portinari, Guignard, Santa Rosa, e, “A
semana de arte moderna”, bem como compositores] foi o de colher no conjunto do moderno pensamento
brasileiro os valores mais expressivos. É claro que há omissões, grandes e inúmeras. Mas isso é perdoável.
Seria uma tarefa acima das nossas forças organizar impecavelmente uma relação dos verdadeiros guias do
nosso pensamento. No entanto, o que representamos aqui é bastante representativo. Se conseguirmos realizar
grande parte desse programa teremos cumprido um dever.”. Os grifos são meus. Já o número três da revista é
mais significativo dessa tendência pedagógica ao dedicar a maior parte do espaço a notícias do II Congresso
Brasileiro de Escritores, realizado de 12 a 16 de outubro em Belo Horizonte. Anuncia, porém, nas primeiras
páginas uma literal “legislação”: são as leis de criação da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, baseadas
nos moldes da Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro. Então, na revista em que cultura, literatura,
filosofia e legislação se juntam, a impressão que se tem é que vive-se em estado legal. A título de
exemplificação, sobre as finalidades de Faculdade, lê-se: “a) preparar trabalhadores intelectuais para o
exercício das altas atividades culturais de ordem desinteressada ou técnica; b) preparar professores; c) realizar
pesquisas nos vários domínios da cultura.”. O detalhe desta revista reside na “presença” de outro mineiro,
Murilo Rubião, com o conto “A lua”. Vale notar que se trata do ano de estréia de Murilo em livro, com O ex-
mágico e outros contos. Entretanto, além dos muitos contos espalhados nos periódicos brasileiros, Murilo
“estréia”, no ano de 1946, com uma antologia, publicada em Buenos Aires, com o incentivo de Marques
Rebelo. Trata-se da Pequeña Antologia de Cuentos Brasileños. Trad. Raúl Navarro. Buenos Aires :
121
No balanço que elabora a crítica Maria Teresa Gramuglio, as décadas de
trinta marcaram-se, na Argentina e, podemos incluir, outros países como o Brasil, pela
necessidade de encontrar formas de periodização específicas (lembremos a tese da primeira
máxima da modernidade, segundo Jameson, de que é “impossível não periodizar”),
buscando sustentação em critérios ligados às mudanças sofridas na área literária. Uma delas
gira em torno desse processo de engessamento das instituições:
Banquetes, congresos internacionales de escritores, conferencias de
visitantes extranjeros, fundaciones de revistas e de editoriales, creación
de instituiciones académicas y artísticas, polémicas y otras
manifestaciones culturales se sucedían, al menos en Buenos Aires.
Desde mediados de la década, junto con una cierta recuperación
económica, los sucesos de la escena internacional contribuyeron a
intensificar ese dinamismo: los avances del fascismo y del nazismo, el
giro de los partidos comunistas hacia los frentes populares, la política
del panamericanismo, los sucesivos impactos de la guerra civil
española y de la Segunda Guerra repercutieron con intensidad entre los
escritores, y en ese clima se insertaron los debates nacionales sobre el
filofascismo de los sectores gobernantes, la represión, el fraude y los
avances del clericalismo. Todo esto confirió a ese período un sesgo
muy característico, en el que cobraron especial relieve dos temas
cruciales: la responsabilidad de los intelectuales y el lugar de la cultura
en las modernas sociedades de masas.
225
Nesse contexto, e com o agravamento dos enfrentamentos de posições (liberais e católicos,
por exemplo), os anos trinta assistiram aos embates que, no processo de consolidação e de
redistribuição de posições culturais, expuseram as opiniões mais frontais, como as
antisemistas. No caso de Buenos Aires, segundo a pesquisadora, essa foi a causa principal
dos enfrentamentos ocorridos no XIV Congresso Internacional dos Pen Clubs, em setembro
de 1936. Na versão de Nosotros, foi elaborada uma pesquisa de opinião da sessão de Artes
Imprenta López, 1946. (Seleção de Marques Rebelo e notas de Luis M. Baudizzone, diretor da “Colección
Mar Dulce”). Entre os brasileiros “selecionados” estão Machado de Assis, Artur de Azevedo, Alfonso Arinos,
Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Ribeiro Couto, Rodrigo Melo Franco de Andrade, João
Alfonsus, Antônio de Alcântara Machado, o próprio Marques Rebelo, Francisco Inácio Peixoto, Newton
Freitas e Murilo, com o “El ex-mago”. Ou seja, esta presença põe de manifesto a ausência da maioria dos
modernistas canônicos, privilegiando os novos e outros mais tradicionais.
225
GRAMUGLIO, Maria Teresa. “Las imágenes sedimentadas: una discusión necesaria” in “Posiciones,
transformaciones y debates en la literatura”. Nueva historia argentina – Crisis económica, avance del
Estado e incertidumbre política (1930-1943). Buenos Aires : Sudamericana, 2001, p. 340, Tomo 7 (Director
de tomo: Alejandro Cattaruzza).
122
e Letras do Instituto Internacional de Cooperacão Intelectual, através da qual se percebe a
necessidade de discussão e re-definição do campo cultural na América-latina (entre si e em
relação à Europa), ou seja, a ação do panamericanismo é ainda fortemente sentida.
Observemos alguns questionamentos surgidos desse debate:
1)Acción de América sobre Europa y su mentalidad.2) Acción cultural
de Europa sobre América. 3) Panorama actual de la cultura latino-
americana. Estos tres puntos fueron de mera constatación preliminar,
para abordar enseguida el fondo del tema: ¿La civilización Latino-
americana constituye, o puede constituir una cultura autárquica frente a
Europa, o bien es un sector, con matices interiores, de la gran cultura
occidental? ¿Qué esperar de Europa los latino-americanos? ¿Qué es la
América latina para los latino-europeus? ¿Qué ideales les unem o les
separan? ¿Cómo concíben unos y otros, conjunto o separado, su futuro
común o respectivo?
226
O ponto central da enquete gira em torno de uma pretensa originalidade das literaturas
nacionais, ainda no dilema de sua autonomização das influências européias. Esta discussão
acompanha todo o século XX, especialmente no que tange à idéia da união ou não dos
países que “compõem” a América Latina e a sempre urgente necessidade de sua definição.
226
Nosotros. a.I, n.6. Buenos Aires, setiembre de 1936, p.66. No calor da discussão, acabam deixando de lado
a questão da originalidade indígena, considerando que o precolombiano pertence melhor à arqueologia. Entra
no debate o conceito de “transplantação” e “enxerto”, utilizados por Sarmiento, vislumbrando uma tendência
“autóctono”, além do fato de que ainda gravitaríamos na cultura ocidental, sob influência do Império
Romano. E concluem: “Tampoco puede decirse que las diferencias existentes entre los diversos paises de
América Latina nos impidan hablar de la unidad de la cultura latino-americana. Se ha fortificado más bien que
debilitado elemento unificador que representan los lenguajes comunes castellano y portugués y nadie piensa
ya en triturar esos instrumentos de civilización sustituyéndolos por balbuceos de tribu. La expresión original
que buscan los escritores de cada uno de los pueblos de la América Latina no puede consistir en
diferenciaciones lingüísticas.(...)
Puede, pues, hablarse en cierta manera, de una cultura hispano-americana que es, eso sí, muy variada, que
ofrece matices y coloraciones distintas y hasta aspectos originales; pero, como sea que esos paises hispano-
americanos no poseen en ellos mismos un meridiano común, no puede considerarse esta cultura ibero-
americana como conjunto coherente y separado de lo europeo occidental”- p.69. Participam do debate: Díez
Canedo, Alfonso Reyes, Ibarguren, Romeno y Sarún Cano/Jules Romains, com muitas interferências a
respeito das diferenciações. Contudo, contestam, entre outros, Alfonso Reyes y Henríquez Ureña. Este último,
também responsável por diversos projetos pedagógicos, em Plenitud de América, afirma, a propósito do
Congresso Internacional de Estudantes celebrado no México em 1921, que este país é “el único país del
Nuevo Mundo donde hay tradición, larga, perdurable, nunca rota, para todas las cosas, para toda especie de
actividades”, que “cultura” e “nacionalismo” são dois instrumentos importantes para o projeto de civilização
mexicana, não se eximindo o ensino e política: “La unidad de su historia, la unidad de propósito en la vida
política y en la intelectual, hacen de nuestra América una entidad, una magna patria, una agrupación de
123
Ou seja, esta é, ainda, uma questão aberta, ou um corpo sem órgãos, segundo Gilles
Deleuze
227
.
Na esteira dos encontros oficiais, também o Primeiro Congresso Gremial de
Escritores Argentinos demarca o caráter de celebração e institucionalização das letras e da
cultura. Nele, destaca-se Roberto Giusti, inaugurando o evento. Em seu discurso,
transparece o desejo da profissionalização do escritor, como o demonstra o fragmento a
seguir:
Los aspectos económicos de la vida del escritor, sus obligaciones de
hombre que por ejercer un oficio debe y necesita en nuestra sociedad
agremiarse para salvaguardar sus derechos materiales, y por natural
consecuencia, espirituales, dieron asunto a las deliberaciones durante
las tres biens empleadas sesiones que siguieron a la de instalación,
salvo las dos horas que en la de clausura fueron dedicadas a las ya
dichas afirmaciones de orden general. Si a esta parte última de los
debates, la más resonante, quiere llamársela política por comodidad de
la definición, la otra, la gremial, aunque menos brillante, no ha sido de
menor interés. Sus indudables beneficios se apreciarán mejor cuando el
año próximo la Sociedad Argentina de Escritores ejecute las
resoluciones aprobadas y procure crear los instrumentos de defensa o
protección del que vive de su pluma, aconsejados por el congreso.
Carecería de objeto que yo entrara a examinar en este comentario esa
parte técnica de las deliberaciones, además difundida ampliamente por
la crónica diaria, porque con ser la que había motivado la reunión, ella
tiene un carácter particular que solamente al profesional interesa.
228
O discurso de Giusti é revelador, na medida em que explicita uma política para a vida
intelectual, agora formando parte de uma sorte de “especialidade da escritura”. Desenha-se
nesse discurso a profissionalização do escritor enquanto intelectual da vida cultural, ou seja,
o modelo de intelectual legislador de que fala Zygmunt Bauman.
pueblos destinados a unirse cada día más y más.” In UREÑA, Pedro Henríquez. Plenitud de América –
Ensayos escogidos. Buenos Aires : Peña, Del Giudice, 1964, pp.11, 13 e 14 respectivamente.
227
“O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação,
de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e
hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. Os estratos são liames, pinças.(...)
Nós não paramos de ser estratificados.” In DELEUZE, Gilles. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia.
1ª reimpressão. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro : 34, 1999, p.21. (Coleção TRANS, vol. 3),
grifos meus.
124
Neste cenário, outras posições são percebidas, mas com uma visão de
América Latina ainda incipiente, e notadamente recrudescente, provavelmente devido às
incertezas ainda dominantes quanto ao mapeamento, já não tanto geográfico, mas
simbólico, dos países. Uma dessas posições é reveladora da noção “primordial” que ocupa
a América Latina. Na versão do Conde Herman de Keyserling, assemelhamo-nos a uma
espécie de massa ainda in-forme, dominada pela imaginação europeizante. A crônica, um
pouco longa, vale pelos detalhes dessa visão “outra” de nós mesmos
229
.
228
Nosotros. a.I, n.8. Buenos Aires : Editorial Pan-America, noviembre de 1936 (segunda época), pp.309,
310, destaques meus. Um artigo do número 11, de fevereiro do ano seguinte, assinado por Enrique Anderson
Imbert é emblamático desse momento, intitulado “Defensa de la cultura”, pp.197-200.
229
“En mis Meditaciones Sudamericanas que estarán listas, según espero, para enero de 1922, estudiaré
detenidamente el aspecto primordial de este continente. Me ha enseñado más que ningún otro. El interesés
que me ofrecieron las Indias, la China, el Japón, no es nada comparable con el de la América del Sur. Por
solamente allí es donde se encuentra todavía en los humanos esa vida primordial que existió, sin duda durante
millones de años, antes de que descendiese el espíritu. Antes del día de la creación hubo la noche de la
creación; antes de la luz hubo las tinieblas fecundas. El espíritu se manifiesta por la “imagen”: la imaginación
es su primera característica. Pero la mayor parte de los procesos vitales son ciegos.Todas las emociones lo
son. Todos los sentimientos, por no hablar de los procesos corporales. Ahora bien : la vida comenzó en todas
partes por impulsos ciegos. La palabra española argentina, especialmente en su acepción argentina, conserva
aquella modalidad original.
La improvisación argentina, el santo horror que todos los argentinos típicos tienen a toda previsión,
son otros síntomas. Lo mismo ocurre con la generosidad típicamente sudamericana, la generosidad en el
sentido del vocablo español antiguo desprendimiento. No se trata aquí en modo alguno – salvo excepciones
– de amplitud de miras, sino de un sentimiento exhuberante e irradiante, ciego en sí mismo.
Para aclarar, en pocas palabras, lo que quiero decir, véase un ejemplo brasileño: Se cuenta que en ese
país una mujer mató al hombre que había querido con un amor fulminante porque él le llevó flores. Ella veía
en esto un signo de voluntad de retribuición. Esto es menos absurdo de lo que parece y, a decir verdad, resulta
infinitamente profundo. Un sentimiento puro, en el sentido de que no está mezclado con otras funciones
psíquicas, es ciego, no se ve más allá de sí mismo. Por esta razón no podría ser interesado, pues todo interés
presume una visión. Por otra parte, toda amalgama con una “mira” cualquiera que represente siempre una
“imagen” y por conseguiente un interesés, por espiritual que sea, desnaturaliza ese sentimiento. Por ello la
generosidad argentina, en lo que posee de más sublime, tiene empero la misma raiz profunda que el derroche
de dinero insensato – especie de vicio nacional – y que la imprevisión argentina en general.
En este sentido puede decirse que América del Sur es un ciego equiparado como país a todos los
demás países de cultura comparable que conocemos. No nos engañemos con la superficie cabrilleante que a
veces presenta un remedo de Francia – el país menos ciego de occidente. La falta de iniciativa, de capacidad
inventiva, la ausencia absoluta de espíritu de perseverancia, la discontinuidad general de esta vida prueban por
sí solas que la diferencia verdadera y profunda de América del Sur con Francia es más grande que la existente
entre Francia y cualquier otro país cultivado. Pero si yo digo que América do Sur, tal como aparece
actualmente, es el continente más ciego, no digo, sin embargo nada peyorativo. Ya lo escribí más arriba: antes
que el día de la Creación hubo la noche de la Creación. Y todos los elementos más creadores, los más
poderosos y fecundos, comenzando por las funciones del cuerpo y acabando por las emociones y los
sentimientos más elevados, son propios de la noche y no del día.
De ahí la riqueza emocional, que yo creo única en el mundo, de la humanidad sudamericana. Me
parece imposible no querer a ese continente una vez que se le ha comprendido. El ejemplo de Francia nos
servirá una vez más para precisar las ideas. ¿Por qué se ama tanto a Francia? Claro que no es a causa de su
intelectualidad. Nunca el intelecto ha inspirado el menor amor. Pero Francia no es esencialmente intelectual.
Es, ante todo y sobre todo, el país de la cultura del “sentimiento”, y de ahí derivan el tacto francés, la cortesía
125
Este texto de Keyserling, considerado por alguns críticos como extremamente “cego” em
seu duplo sentido, ou ainda, “mudo”, da perspectiva sulamericana (Mallea, José Luis
Romero, segundo Maria Tereza Gramuglio
230
) poderia representar o papel de agenciador de
um imaginário não raro muito comum entre povos europeus, para não dizer dos nossos
próprios. Ele revela, de maneira clara e direta, que nossa cegueira é alimentada por uma não
imagem. Ou seja, a potência de nosso continente residiria menos numa “falta” constitutiva
e mais no seu aspecto inexplorado, não germinado. Estaríamos, para Keyserling, numa pré-
história dos povos civilizados, configurando-nos como puro futuro, espera constante. A
resposta a esta proposição pode vir de outra formulação, também imaginada, a de Borges,
francesa, el desinterés generoso del francés que me explico por las mismas razones ya explicadas a propósito
de la Argentina.
Pero América del Sur está, no obstante, más lejos de Francia que cualquier otro país del mundo
actual porque carece casi en absoluto del elemento “imagen”. Toda su fuerza reside en las emociones y en los
sentimientos tales como son. En este sentido, América del Sur, es verdaderamente el continente más nuevo
del mundo, pues en todas partes el orden emocional y ciego fué anterior al orden espiritual. Y sólo por esto es
el continente más rico de porvenir. Es el único habitado todavía por una humanidad que está allí donde
acabaron nuestros antepasados hace treinta mil años. Todo existe allí en germen; nada ha sido gastado. Nadie
puede prever qué civilizaciones originales florecerán un día en ese continente. Pero si de los primitivos de
Asia y de Europa llegó a salvo un día el edificio cultural que hoy admiramos, es que justamente esos países
fueron también en su día primitivos en el mismo sentido que los sudamericanos actuales: no en el sentido de
una “falta”, sino de una riqueza germinal. Sólo se puede desarrolar aquello que se tiene.
Conde Herman de Keyserling
In : La obra- Revista de Educación, Ciencias y Letras. n.216, julio de 1932, Tomo XII, n.9, p.422
(Também apareceu em Sur, n.2, 1931). La obra representa uma das fusões mais marcantes entre literatura e
educação. Publicada desde 1921, em 1928 figura como órgão da revista Nueva Era - Seccion Argentina de la
Liga Internacional de la Nueva Educacion. Desta forma, mantinha contato com as orientações de outras
seções, como Alemanha, Bulgária, Chile, Espanha, Hungria, Inglaterra, Itália, Suíça-França e Bélgica. Em La
obra há textos de José Ortega y Gasset, Ramos Mejía, Machado de Assis, Victoria Ocampo, Pedro Juan
Viagnale, Giovanni Gentile, Ricardo Rojas e muitos outros. Em seu número 152, de 31 de julho de 1928, a
publicação de “La nueva escuela y los puntos de vista do legislador” é representativa do pensamento
dominante neste periódico. Trata-se de uma carta do deputado nacional Victor J. Guillot. A redação aponta
para a nova política que exige o momento, chegando a afirmar que “el tipo de legislador que los nuevos
tiempos reclaman, constituyen el mejor estímulo para los maestros (...) que trabajan desinteresada y
patrióticamente por la renovación de nuestra escuela primaria y la incitación más digna de ser atendida para
desistir en el esfuerzo.” – n.152, A VIII, 31 de julho de 1928 – Tomo VIII – N.10, p.437. A revista representa
a tentativa de, mesmo através de uma certa diversidade de textos, engessar o pensamento com uma pedagogia
diretiva quando não totalizante. Os textos vão desde as indicações de livros para as crianças (na escola e em
casa) como para os professores, em um momento em que o “novo” se reordenada em consonância
nacionalista. Um número antes, de 30 de junho de 1928, Giovanni Gentile publicou “Defensa de la
pedagogia”, onde reafirma a necessidade de “formar la consciencia pedagógica de los docentes”, neste caso,
pleiteando a união entre filosofia e pedagogia.
230
GRAMUGLIO, Maria Teresa. “Las imágenes sedimentadas: una discusión necesaria” in “Posiciones,
transformaciones y debates en la literatura”. Nueva historia argentina – Crisis económica, avance del
Estado e incertidumbre política (1930-1943). Op. Cit., p.358.
126
que, suspeitoso da idéia da existência de uma América Latina
231
, publica doze anos antes
um texto “germinal” para a compreensão da dimensão do debate sobre a imagem. Trata-se
de “Despues de las imágenes”, publicado na revista Proa, em dezembro de 1924. Nele,
Borges “descobre” a força das metáforas, para fugir da mazorca e desestabilizar o “universo
rígido”:
La imagen es hechicería. Transformar una hoguera en tempestad,
según hizo Milton, es operación de hechicero. Transtocar la luna en un
pez, en una burbuja, en un cometa – como Rossetti lo hizo,
equivoncándose antes que Lugones – es menor travesura. Hay alguien
superior al travieso y al hechicero. Hablo del semidios, del angel, por
cuyas obras cambia el mundo. Añadir províncias al ser, alucinar
ciudades y espacios de la conjunta realidad, es aventura heróica. (...)
Nada pasa en Buenos Aires. En la pampa, un gaucho y el diablo
payaron juntos (...). Quiero memorar dos intentos de fabulización: uno
el poema que entrelazan los tangos (...), otro el genial y soslaya do
Reciénvenido de Macedonio Fernández.
232
Este para além de Borges é, mais que sugestivo, sutil. Preanuncia a teorização de uma
fabulização – aí onde ninguém nada vê, ele cria o impossível. Se o pampa não é o nada
(Keyserling), este arrebalde imenso significa para Borges, mais do que a “Continuación de
la Nada”, uma intransitividade. A resposta borgeana desloca, assim, o olhar para longe,
231
Igualmente para Octavio Paz, anos depois e em artigo publicado no London Times Literary Supplement
(1967), precisamente “Poesia Latino-americana”, tece as seguintes considerações a respeito do tema: “Estou
certo da existência de alguns poemas escritos nos últimos cinqüenta anos por alguns poetas latino-americanos,
mas não estou certo da existência da poesia latino-americana. /(...)Na América Latina se falam diversos
idiomas: o português, o espanhol, o francês e as línguas indígenas. Estas últimas são as únicas realmente
americanas – mas não são latinas. (...) A verdade é que a América Latina é um conceito histórico,
sociológico e político: designa um conjunto de povos, não uma literatura./As relações entre a literatura
brasileira e a hispano-americana são de outra ordem. (...) a literatura brasileira não é parte da literatura
hispano-americana: tem independência, caráter e fisionomia inconfundíveis. O Brasil é algo mais que uma
nação: é um universo lingüístico irredutível ao espanhol
.”
In PAZ, Octavio. Convergências – ensaios sobre
arte e literatura. Trad. Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro : Rocco, 1991, pp. 161, 162, grifos meus.
232
BORGES, Jorge Luis. “Despues de las imágenes” in Proa. A.I, n.5. Buenos Aires, diciembre de 1924. Em
carta de 2 de setembro de 1923, desde Paris e em trânsito para Genebra, Borges envia a Macedônio um texto
acompanhado de um desenho de Norah, um anjo: “(...)Perdóname esta carta estúpida: no la consideres frase
por frase; considérala como una comprobación de nuestra amistad, como una atestiguación, que yo me debo a
mi mismo, de que mi alma puede palpar otras almas./ Puedes llenar el espacio es espacio en blanco al
reverso con cuantas suposiciones quieras../ Georgie [Al dorso:] ¿Está contento? Le escribo desde Paris.
Ahora estará tocando en su guitarra del otro lado de mar. Aqui vá este ángel [Dibujo] Norah” (grifos meus)
In FERNÁNDEZ, Macedonio; BORGES, Jorge Luis. Correspondencia 1922 – 1939 – Crónica de una
amistad. Edición y notas de Carlos García. Buenos Aires : Corregidor, 2003, p.4.
127
alucinando os espaços e o tempo. Alguns anos depois, em outras páginas, as de João
Guimarães Rosa, essa imagem pertencerá ao redemoinho.
3.2 - ANTOLÓGICAS EM VERSO E PROSA
Quiçás um olhar mais próximo, quase “genealógico”, para não dizer
primordial, das produções poéticas e narrativas que apresentam o recorte de uma literatura
hispano ou latino-americana pudesse dar conta da ansiedade do próprio século XX em
buscar uma definição para ela. Nessa tentativa, o objetivo é o de enfocar a antologia em
suas diversas composições, ou, nos diversos modos de narrar a modernidade. E se houve
tanta investida da presença norte-americana para tomar para si o foco das artes, como
veremos mais adiante, talvez pudéssemos começar por uma espécie de antologia das
antologias, publicada nos Estados Unidos, assim como as Passagens de Benjamin
funcionam como um arquivo do arquivo, biblioteca que, ao se desempacotar, desdobra-se,
prolifera.
Principiemos pela produção narrativa. A partir do livro organizado por
Daniel Balderston, em seu extenso e rico trabalho de compilação dos contos latino-
americanos, The Latin American Short Story – An annotated guide to anthologies and
criticism
233
, gostaria de mapear as primeiras publicações do gênero. Balderston aponta
como a mais antiga reunião de textos a publicação de Francisco Ibáñez, Cuentos de mi
tierra : Colección dedicada a los chicos y chicas, y a los que no lo son, en cuya lectura
se quedarán más de una vez boquiabertos y con un palmo de narices. A primeira
edição é de 1864, tratando-se de uma compilação peruana. Aqui temos os relatos locais,
colhidos para um público infantil, configurando, num primeiro momento, a necessidade a
que se destina a reunião de textos do gênero. Vale lembrar, entretanto, que o primeiro
gênero das antologias são as poesias, denominadas de “Florilégios” ou “Parnasos”. A
primeira é América Poética de José María Gutierrez, de 1846, publicada em Santiago do
Chile pela Imprenta del Mercúrio, onde a literatura brasileira é incluída pela primeira vez
no marco de uma literatura “americana”.
233
Editado pela Greenwood Press : New York, Westport, London, 1992.
128
Em uma perspectiva cronológica, há outras compilações que revelam um
outro dado importante. Na seção de “Antologias Gerais” sobre a América Latina, Novelas
americanas, de 1877
234
, aparece publicada por uma editora de Buenos Aires,
configurando-se como a mais antiga do conto. Nela, ao contrário da anterior que só
indicava os títulos das narrativas, temos os autores e seus respectivos contos. Quanto aos
locais de publicações (Peru, Argentina), o que indicaria uma tendência, esta logo se desfaz.
O crítico Hugo Achugar, analisando precisamente a origem das primeiras
antologias, chamadas de parnasos, trata de verificar como elas, além de afirmarem o
princípio de uma “presença”, contra o esquecimento, assinalam a construção de um
imaginário nacional:
Junto con la cosecha, junto con la publicación, junto con ese afirmar
“aqui estamos, existimos, somos y sobreviviremos”, los primeros de
estos libros realizaron un gesto, pretendieron darle cuerpo de letra a un
sentimiento, intentaron construir un imaginario, una nación. Se trata de
antologias nacionales, de una escritura fundacional similar, en cierto
modo a la de los próceres escritores. Más aún, se trata de una escritura
monumental.
235
Esse imaginário pode ser pensado ao lado do local das publicações. Além das que ocorriam
nos países da América do Sul, segundo Balderston, a tradição de publicações do gênero
firma-se conjuntamente, e não raro preponderantemente, na Europa e Estados Unidos (o
que torna este eixo significativo para o enfoque deste trabalho). Assim, em 1893 surgem as
Narrações americanas
236
, em Barcelona, agrupadas de acordo com o critério de “épocas”:
“indígena”, “colonial”, “moderna”. Exceção se deve a uma outra história semelhante ao
primeiro trabalho, em que não aparecem os nomes de seus escritores, somente os títulos.
234
Pelliza de Sagasta, Josefina, et. al. Novelas americanas. Buenos Aires : La Ondina del Plata, 1877.
pp.116.
235
Hugo Achugar comenta o trabalho de Rosalba Campra, para quem, no início dos estados nacionais, a idéia
de nacional se via rebaixada pelo conceito de “americanidade”, entre 1846-47 e 1893-95. “Parnasos
fundacionales, letra nación y estado en el siglo XIX” in ACHUGAR, Hugo (Comp.). La fundación por la
palabra. Op. cit., p.39-42.
236
Argüelles, Tomás, et. al. Narraciones americanas. Intro. A. R. Ll. Barcelona : Durán y C. Editores, 1893.
Nela publicam: Tomás Argüelles, Angel o la hidalgo heroína de Tzintzuntzan. Ricardo Fernández Guardia,
Tapaligui.Ricardo Palma, Una vida por una hora. José Caicedo Rojas, El fiscal (tradición bogotana).
Honorato Vásquez, Constancia filial. E. Posada, Natalia. B. Fernández Medina, Una china presumida.
129
Vêm pela editora “Imprenta Europa”, no Chile. Trata-se da Selecta colección de historias
y cuentos
237
, de 1895.
Fortalecem-se, em seguida, as publicações estrangeiras. Desta forma, em
1920 temos a compilação de Alfred Coester, Cuentos de la América Española
238
, em
Boston; a Antología de cuentos mexicanos e hispanoamericanos
239
, em 1923, México,
editada pelo poeta Salvador Novo, seguida da Antología de cuentos americanos
240
, em
1924, Boston; Tres Cuentos sudamericanos, em 1935, Nova York
241
e Cuentos
hispánicos
242
, em 1939. No mesmo ano, sai, em Santiago do Chile, uma extensa antologia
do conto hispanoamericano
243
.
237
Historia de un ladrón. Las brujas. El amigo. El hijo de la outra. La Pava. Una conversación agradable.
Donde hai para uno hai para dos. El caballero de la escudilla. Tontos i listos. Un susto de muerte. Así paga
el Diablo a quien bien le sirve. La fuente de hermosura. “Este era un rei”. Estratajema celestial. Un buen rei.
El hombre tímido. Los tres ladrones.
238
Coester, Alfred, ed. Cuentos de la América Española. Boston : Ginn, 1920, 236 pp. Publicam Lucio V.
Mansilla. Manuel Fernández Juncos. Francisco de Sales Pérez. Luis Orrego Luco. Gonzalo Picón Febres.
Javier de Viana. Federico Gana. Martín Gil. Jesús Castellanos. Eufemio Romero. Ricardo Palma. Clorinda
Matto de Turner. Rufino Blanco Fombona. Rubén Darío. Baldomero Lillo.
239
Novo, Salvador, ed. Antología de cuentos mexicanos e hispanoamericanos. Biblioteca Universo, 1.2.
Mexico City : Editorial Cultura, 1923. 176 pp. Este irreverente escritor mexicano (1904-1974), participante
do “Ultraismo”, também escreverá sobre o Brasil. Escreveu, entre outros, Nuevo Amor, Espejo (1933) e
Poemas Proletários (1934). Muitos anos depois, outro irreverente, Glauco Mattoso, traduzirá seus poemas
de Sonetos Eróticos, editados pelo Memorial da América Latina sediado em São Paulo.
240
Wilkins, Laurence A., ed. Antología de cuentos americanos. Intro. Federico de Onís. Boston : Health,
1924. 287pp.
241
Leavitt, Sturgis E., ed., intro. and notes. Tres cuentos sud-americanos. New York : F. S. Crofts, 1935,
163 pp.
242
Crow, John A., ed. Cuentos hispánicos. New York : Henry Holt, 1939. 204 pp.
243
Manzor, Antonio R., ed. Antología del cuento hispanoamericano. Intro. Víctor Domingo Silva. Santiago
de Chile : Zig-Zag, 1939. 413 pp. Figuram neste exemplar os seguintes escritores e contos: José S. Alvarez,
La caza del cóndor. Roberto J. Payró, El diablo en Pago Chico. Mateo Booz, El milagro. Hugo Wast, La
yegua mora. Alberto Gerchunoff, La lechuza. Ricardo Güiraldes, Al rescoldo. Víctor Juan Guillot, Bajo la
tormenta. Juan Carlos Dávalos, Noche campestre. Benito Lynch, El potrillo roano. Enrique Méndez Calzada,
Jesús en Buenos Aires. Fermín Estrella Gutiérrez, La viajera. Eduardo Mallea, El capitán. Juan Francisco
Bedegral, La madre de Satanás. Augusto Céspedes, El pozo. Ricardo Fernández Guardia, Un santo
milagroso. María Isabel Carvajal, El tonto de las adivinanzas. Alfonso Hernández-Catá, La galleguita. Luis
Felipe Rodríguez, El despojo. Juan Bosch, La mujer. Máximo Soto Hall, La Tzehua. Carlos Wyld Ospina,
Juan Barrabás. Francisco Barnoya Gálvez, La mariposa negra. Arturo Mejía Nieto, La culebra. Salarrué, La
brusquita. Clímaco Soto Borda, El judío errante. Enrique Otero D’Costa, El tesoro de Buzagá. Antonio
García, Porvenir. Federico Gana, La Maiga. Baldomero Lillo, Cañuela y Petaca. Augusto D’Halmar, La
última noche de bodas. Víctor Domingo Silva, Empampado. Rafael Maluenda, La Pachacha. Mariano
Latorre, Sangre de cristiano. Luis Durand, Vino tinto. Manuel Rojas, El vaso de leche. Salvador Reyes, El
matador de tiburones. Marta Brunet, Don Florisondo. José de la Cuadra, Calor de yunca. Joaquín Gallegos
Lara, ¡Era la mamá! Enrique Gil Gilbert, Juan del Diablo. Demetrio Aguilera Malta, El cholo que se vengó.
Rafael Delgado,
El desertor. Angel de Campo, El Pinto. José Vasconcelos, La cacería trágica. Alfonso
Reyes, Primera confesión. Julio Torri, El celoso. Eloy Fariña Núñez, Bucles de oro. Teresa Lamas Carísimo
de Rodríguez Alcalá, Apuro-pe mané. Enrique López Albújar, Los tres jircas. Clemente Palma, Los ojos de
Lina. Ventura García Calderón, El alfiler. Abraham Valdelomar, El Hipocampo de oro. Javier de Viana, La
última campaña. Horacio Quiroga, Los mensú. Antonio Soto, El timbre del ascensor. Adolfo Montiel
130
No Brasil, uma das primeiras traduções de antologias hispano-americanas
aparece em 1958. Trata-se do livro Maravilhas do conto hispano-americano
244
, quando o
público brasileiro tem contato, em sua língua, com tais escritores. Seu editor, Edgard
Cavalheiro, é quem lança no Brasil a “Plataforma da nova geração”. Estando ligado à
Editora Brasiliense, vinculada a Monteiro Lobato através da antiga Companhia Editora
Nacional, Cavalheiro vislumbra um projeto de ampliação de publicações com caráter
pedagógico, do qual esta antologia deve ser já representativa
245
.
Outra exceção, com tradução portuguesa, mas publicado simultaneamente
em espanhol, será a Antología contemporánea del cuento hispanoamericano
246
.
Finalmente, surge também em 1964 outra reunião, publicada no México, El
cuento hispanoamericano : antología crítico-histórica
247
, figurando como a antologia
mais consultada na América Hispânica, e periodizada: “O romantismo”, “O realismo”, “O
naturalismo”, “O modernismo”, “O criolismo”, “O cosmopolitismo : surrealismo, cubismo,
realismo mágico, existencialismo”, “O neorealismo”, “A década do ‘Boom’ : 1960-1970” e
“O feminismo e a violência : 1970-1985”. Como se vê, há uma tentativa de mesclar alguns
aspectos temáticos com o critério cronológico tradicional.
Ballesteros, El botín. Francisco Espínola, María de Carmen. Manuel Díaz Rodríguez, Cuento blanco. Pedro
Emilio Coll, El diente roto. Alejandro Fernández García, La bandera.
244
Vendrell y López, Juan S., and Diaulas Riedel, eds. Maravilhas do conto hispano-americano. Intro. and.
Notes. Edgard Cavalheiro. S P : Cultrix, 1958, 299 pp.
245
Manuel Ugarte, Os cavaleiros selvagens. Eduardo Mallea, O capitão. Alfredo Flores, Hurtado, O
bandoleiro. Mariano Latorre, A desconhecida. Baldomero Lillo, O caldeiro do diabo. Eduardo Caballero
Calderón, Assombrações. Fabián Dobles, O homem de pernas cruzadas. Alfonso Hernández Catá, O
confessor de Monstros. Lydia Cabrera, O Morro de Mambiala. Arturo Ambrogi, A caça da serpente. José
Joaquim da Silva, A caçada. Miguel Angel Asturias, Torotumbo. Marcos Carías Reyes, Vidas quebradas.
Amado Nervo, O formigão. Manuel Gutiérrez Nájera, História de uma moeda falsa. Rubén Darío, Sóror
Filomena. Emilio Serta, Magia. Natalicio González, O touro de Tarumá. Ciro Alegría, A desconhecida.
Ricardo Palma, O encontro. Cayetano Coll y Toste, O valentão de Bermejales. Fabio Fiallo, O castigo.
Horacio Quiroga, Em declive. Francisco Espínola Filho, O homem pálido. Rómulo Gallegos, O escultor
invisível. Rufino Blanco-Fombona, Véspera de Eleições.
246
Juan Rulfo, El llano en llamas. Alejo Carpentier, Viaje a la semilla. Juan Bosch, Maravilla. René
Marqués, Dos vueltas de llave y un arcángel. Miguel Angel Asturias, Ocelotle 33. Carmen Lyra, Los diez
“viejitos” de Pastor. José María Sánchez, Lalú; Arturo Uslar-Pietri, El conuco del Tío Conejo. Gabriel García
Márquez, Lons funerales de la Mamá Grande. Pedro Jorge Vera, Luto eterno. Enrique Congrains Martín.
Domingo en la jaula de estera. Manuel Rojas, El delincuente. Augusto Céspedes, El pozo. Augusto Roa
Bastos, La excavación. Mario Benedetti, Corazonada. Jorge Luis Borges, El muerto, Las ruinas circulares. In
Gómez Benoit, Abelardo, ed., intro. and notes. Antología contemporánea del cuento hispanoamericano.
Lima : Instituto Latino-Americano de vinculación cultural, 1964. 253 pp.
247
Menton, Seymour, ed., intro. and notes. El cuento hispanoamericano : antología crítico-histórica. 1
st
ed., 1964, 3
rd
ed.: Mexico City : Fondo de Cultura Económica, 1986, 734 pp.
131
Conforme listado, a única edição no Brasil apresenta escritores de diversos
países. Entretanto, ele não se encontra aí incluído. Não apenas neste, como em outros
trabalhos. As poucas exceções ocorrem com a publicação de dois livros. O primeiro, em
1942, surge em Barcelona, Narradores hispanoamericanos
248
, incluindo o escritor
brasileiro Humberto de Campos e seu conto “La vida por un beso”
249
. O outro é publicado
em 1946, no México, pela Secretaria de Educação Pública, sob o título de Cuentos
americanos
250
, em que figura o escritor Monteiro Lobato [José Benito de] com “Negrita”.
É significativo que esta inclusão se dê em meio a dois momentos emblemáticos – o
primeiro coincide com o início da II Grande Guerra Mundial e o segundo, com seu final.
Neste percurso, o conto se vê “amarrado”, com utilidade pedagógica. Inclusive Contos
hispano-americanos
251
, editado na década de 50 com o apoio do Instituto Latino-
americano de Vinculação Cultural, e com a previsão de publição simultânea de outra
antologia em Buenos Aires e na cidade do México, representa em sua introdução esse
anseio de união, amparado num desejo de apreensão total da realidade, com ecos
panamericanistas:
Pretendemos criar uma corrente de experiências humanas que, partindo
da atual realidade latino-americana, chegue à consciência e à realidade
do homem brasileiro. Procuramos uma interpenetração profunda,
visando a uma reunião em tôrno de sentimentos e ideais comuns, mas
antes de tudo, é necessário extinguir o isolamento que separa nossos
povos.
252
248
Sanz y Díaz, José, ed. and intro. Narradores hispanoamericanos. Barcelona: Hymsa, 1942. 493 pp.
249
Mantenho o título em espanhol a fim de resguardar a tradução feita. Humberto de Campos, que pertenceu à
Academia Brasileira de Letras, em seu prefácio a Crítica (primeira série), afirma: “No Brasil, onde o
espírito coletivo é ainda uma hipótese, a função desse secretário tem de ser diferente: em vez de interpretar o
juízo do público sôbre o livro que êste leu, a sua missão consiste no julgamento sincero e individual da obra
literária, para esclarecimento do público, e conseqüente orientação das suas leituras.” p.7, grifos meus.
Abordando variados temas, o ensaio que abre o livro refere-se, precisamente, à questão da relação do Brasil e
da América, ao discutir as idéias dos livros O Brasil na América e A América Latina de Manuel
Bonfim.Também Mário de Andrade discutirá as idéias de outro crítico, também da Academia (Francesa) de
Letras, André Siegfried, cuja obra apresenta igual título, L’Amérique Latine, como veremos mais adiante.
CAMPOS, Humberto de. Crítica (Primeira série). Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre : W. M. Jackson
Inc., 1951.
250
Millán, María del Carmen, ed., intro., and notes. Cuentos americanos. Biblioteca Enciclipédica Popular,
94. Mexico City : Secretaría de Educación Pública, 1946, 95 pp.
251
Contos hispano-americanos. 3ª ed. São Paulo : São Paulo, 1960 (Instituto Latino-americano de
vinculação cultural). Esta seleta não é apresentada pelo livro de Balderston.
252
Id. Ibid., p.VIII. Esse tipo de antologia está ancorado ainda no critério realista de representação, como se a
reunião das partes formasse um todo ideal : “Se buscarmos um denominador comum para esta antologia,
132
As duas primeiras aparições do Brasil acontecem caracterizadas como
“americano” ou “hispanoamericano”. Apesar de ser uma aparição pequena, é significativa
para a época em que surgem. Igualmente a estas duas obras, a menção a escritores
brasileiros acontece em duas outras antologias, ambas editadas em inglês, conservando, no
entanto, período similar de aparição: a primeira em 1942 e a segunda, em 1947. São,
respectivamente, Fiesta in November : Stories from Latin America
253
, incluindo Jorge
Amado, “Sea of the Dead” e A World of Great Stories
254
, com Monteiro Lobato (sem
indicação de título). Estas datas coincidem, no Brasil, com o início de funcionamento do
“Clube do Livro”, daí um possível caminho para entender a inclusão do Brasil nestas
antologias.
O Clube do Livro começou a funcionar em 1943, sob a ditadura do Estado
Novo de Getúlio Vargas. Seja como for, o nacionalismo de Vargas atraiu um
grande número de intelectuais brasileiros. Carlos Drummond de Andrade,
secretário do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, os
arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, o pintor Cândido Portinari e o
poeta e crítico Augusto Meyer, naquela época, na chefia do Instituto
Nacional do Livro.
255
teremos de reconhecer, com referência a estilo, que nela prima o realismo e que o angustioso problema da
terra emerge em quase todos os contos..”, p. IX. A edição do livro deve muito à Universidade Autônoma do
México e à Universidade Católica do Chile “pelo apoio múltiplo e desvanecedor prestado a esta tarefa de
aproximação cultural e humana, indispensável para solidificar a unidade latente entre os países latinos e
mestiços da nossa América.” p. 10. A introdução é assinada por “A.G.B".
253
Flores, Angel, and Dudley Poore, eds. Fiesta in November : Stories from Latin America. Intro.
Katherine Anne Porter. Boston : Houghton Mifflin, 1942. Vi + 608 pp.
254
Hayden, Hiram, and Cournos, John, eds. A World of Great Stories. New York : Crown Publishers, 1947.
950 pp. Poderia-se pensar também a antologia de contos humorísticos como contracara dos textos
pedagógicos, tal como em NABUCO, Araújo e CAVALHEIRO, Edgard. Antologia dos grandes contos
humorísticos. Introdução de Monteiro Lobato. São Paulo : Brasiliense, 1944, segundo sugestão de Maria
Augusta Fonseca.
255
MILTON, John. O Clube do Livro e a Tradução. Bauru : EDUSC, 2002, p. 28. A questão da
inclusão/exclusão está diretamente ligada, no Brasil, à questão da censura. Neste momento, ela começou a
funcionar em 1931, com o Departamento Oficial de Propaganda, transformando-se, em 1934, no
Departamento Nacional de Propaganda e Difusão Cultural, sendo substituído pelo DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda) em 1939, controlando a produção cultural no Brasil. Este órgão sobreviveu até a
queda do Estado Novo, segundo John Milton, portanto, 1945. O professor e crítico acrescenta que “Nos seus
primeiros anos, os objetivos do Clube do Livro eram, de certa maneira, mais sérios. Utilizando reedições das
editoras Martins, Antônio Tisi ou Cultrix, publicava obras mais longas como, por exemplo, Madame Bovary
(1944), 317 páginas; Salam(1944), 216 páginas; Eugênia Grandet (1944), 222 páginas; O castelo de
Lourps, de J. K. Huyssmans (1944), 204 páginas; O romance de um pobre professor, de Joseph Roth
(1950), 203 páginas; A casa das sete torres, de Nathaniel Hawthorne (1950), 222 páginas. A introdução a
Um homem acabado, de Giovanni Papini (1945), com 207 páginas impressas em corpo pequeno, chegou a
conter uma longa citação de Barbey D’Autrevilly sobre sua família, em francês, sem tradução(...) Um
133
Neste caso, temos uma primeira visão de um grupo de intelectuais “cooptados” pelo
Estado, através do qual podemos ler o projeto de “esclarecimento” em sua vertente oficial
e, portanto, pedagógica, reafirmando um princípio do recorte da antologia: o que ler e como
ler, já que, sob o Estado Novo, este procedimento destaca o intelectual para nele fazer-se
ressaltar – típico caso do intelectual legislado(r).
Outra antologia, a de crônicas publicadas entre setembro de 1944 e junho de
1946, de Agenor Soares de Moura, reflete a influência da língua inglesa no país, como
demonstram seus textos reunidos em livro. Já em sua primeira análise, o crítico tece
comentários a respeito de Monteiro Lobato, responsável por grande parte das publicações
de livros estrangeiros no país:
O sr. Monteiro Lobato, tradutor de tantas obras, passou para o
português O homem invisível, de H. G. Wells. Tem-se quase a
impressão de que o grande escritor paulista lia um capítulo, apanhava-
lhe o conteúdo e depois exprimia, com maior ou menos exação, o
assunto do mesmo. Adaptações destas, quase paráfrases, mal se
prestam ao cotejo a que dão azo outras traduções menos livres. Coisa
parecida foi a tradução que do livro de Kipling, The light that failed,
fez o sr. Azevedo Amaral.
256
A lista de escritores traduzidos demonstra um pouco da dimensão desta “invasão” e da
política cultural que vigorou no período: Elizabeth Barrett Browning, H. G. Wells, Will
Durant, Jane Austen, Emily Brontë, Edgar Allan Poe, W. H. Hudson, Aldous Huxley, John
Steinbeck, W. Somerset Maugham, Alexandre Dumas, Thomas Mann, Oscar Wilde, André
Maurois, Theodore Roosevelt, José Ortega Y Gasset. Voltaremos a este assunto em outro
capítulo.
romance antigo, do escritor brasileiro Cláudio de Souza (1954), que se passa em Paris, contém várias frases
em francês, sem tradução.” (p.33). Além dessas leituras (em filigrana com o conto hispano-latino-americano),
a informação decisiva para este trabalho é a seguinte : “O Clube do Livro foi fundado na mesma época em
que o inglês começou a desbancar o francês como língua estrangeira de maior importância no Brasil.
No começo, havia um predomínio de romances traduzidos do francês que logo depois, nos anos 50, abriu
caminho para os romances do inglês.” (p.33, grifos meus), sendo que a influência dos Estados Unidos na
economia corre paralela à do cinema, o que leva as editoras a publicarem especialmente as “novelas
policiais” a partir de 1965 (portanto, um ano após o golpe militar no Brasil).
256
MOURA, Agenor Soares de. À margem das traduções. São Paulo : Arx, 2003, pp. 21e 22. As crônicas
foram publicadas no suplemento literário O Diário de Notícias (Minas Gerais) e apontam para os problemas
134
No Brasil, a tradição de reunião de contos se dá a partir de 1897, com a
seleção de Galdino Fernandes Pinheiro, que se apresenta como “Galpi”. Por se se tratar de
uma segunda edição, a data de seu lançamento deve ter ocorrido pouco tempo anterior a
esta. O livro intitula-se Narrativas brazileiras
257
, publicado pela Tipografia Leuzinger, do
Rio de Janeiro. Nele não há nomes de escritores, semelhante à primeira antologia peruana.
Já em 1920, Alberto de Oliveira e Jorge Jobim reúnem, num vasto volume de 404 páginas,
diversos escritores, evidentemente muitos “parnasianos”, alguns “realistas”, também
Machado de Assis, João do Rio e outros menos conhecidos na época, sob o título de
Contos brasileiros
258
.
Outros trabalhos agrupam escritores brasileiros publicados fora do país.
Brazilian Tales
259
, de 1921, Boston; Contos do Brasil
260
, sem data, publicado em Lisboa e
Nuevos cuentistas brasileños
261
, também não datado, editado em Caracas. Há pouco mais
de trinta anos, editava-se em Buenos Aires uma outra reunião de textos: Antologia del
joven relato americano
262
. Dos vinte e quatro escritores, apenas um é brasileiro :
Guimarães Rosa, com o conto “El emperador”.
Temos, então, três modelos de antologia: o primeiro, em que não há presença
de escritores brasileiros; o segundo, com uma tímida aparição dos mesmos e no terceiro, a
seleção pura, e exclusivamente, dos brasileiros, o que, de alguma maneira, reforça o
gerais das traduções para o português. Agenor assinava uma coluna semanal no periódico, com o pseudônimo
de C.T. (crítico de traduções).
257
Galpi [Galdino Fernandes Pinheiro]. Narrativas brazileiras. 2
nd
ed. Rio de janeiro : Typ. Leuzinger,
1897, 247 pp.
258
São eles: Olavo Bilac, O crime. Artur Azevedo, Sabina. José Veríssimo, O crime de tapuio. João Ribeiro,
S. Boemundo. Júlia Lopes de Almeida, A caolha. Coelho Neto, Mau sangue. Medeiros e Albuquerque, As
calças do Raposo. João do Rio, Dentro da noite. Carvalho Ramos, Caminho das tropas. Graça Aranha, A
ciganinha. Magalhães de Azeredo, O samba. Roque Calage, Herói. Felício Terra, História de uma dor.
Xavier Marques, Mariquinha. Tomás Lopes, O defunto. Virgílio Várzea, Flor do mar. Afonso Arinos, Pedro
Barqueiro. Machado de Assis, A cartomante. Lúcio de Mendonça, Coração de caipira. Garcia Redondo, O
testamento de tio Pedro. Vicente de Carvalho, Selvagem. Oscar Lopes, Os dois frutos verdes. Alcides Maia,
Velho conto. Afrânio Peixoto, Fruta brava. Alberto Rangel, Os três mineirinhos. Gastão Cruls, G. C. P. A.
Gustavo Barroso, A Salomé do sertão. Aluísio Azevedo, O madereiro. Veiga Miranda, Romão da Januária.
Rodrigo Otávio, Congo-velho. Valentim Magalhães, Cara a cara. Domício da Gama, Moloch. Alcides Flávio,
Mísero Amor In: Oliveira, Alberto de, and Jorge Jobim, eds. Contos brasileiros. Rio de Janeiro : Garnier,
1920. 404 pp.
259
Goldberg, Isaac, ed., intro. and trans. Brazilian Tales. Boston : Four Seas, 1921. 149 pp.
260
Oliveira, José Osório de, ed., intro. and notes. Contos do Brasil. Antologias Universais : Conto 12.
Lisbon : Portugália, n. d. 285 pp.
261
Soares, Flavio Macedo, ed. and intro. Nuevos cuentistas brasileños. Trans. Rosa Moreno Roger. Caracas
: Monte Avila, n.d. 239 pp.
262
ANTOLOGÍA DEL JOVEN RELATO LATINOAMERICANO. Buenos Aires : Compañia General
Fabril Editora S.A., 1972. Essa antologia igualmente não figura no livro de Balderston.
135
primeiro modelo, ao enunciá-lo como diverso. De toda forma, continuaria excluído do
cenário, como aponta Balderston,
With regard to the question of antologies of translated works, it should
be noted that very few Spanish-language anthologies of Brazilian
stories are listed; others may exist but are not represented in the
libraries I consulted in the United States
263
.
No processo de consolidação das representações de países nas antologias,
pode-se inferir que, tanto o mercado editorial quanto a articulação de uma crítica (ou a sua
ausência) no debate intelectual é fator decisivo. A crítica Sylvia Saítta, recobrando a
história de publicações na América Latina no século XX, especialmente na Argentina,
comenta a esse respeito:
En el marco de un mercado editorial que publica libros todo el tiempo,
la figura del crítico literario como mediador cultural es crucial, ya que
es el crítico quien diseña los mapas de lectura en el caos de las mesas
de novedades; es el crítico quien establece el diálogo entre un nuevo
libro y la tradición literaria, entre un nuevo libro y los debates en los
que se inscribe, entre un nuevo libro y su presente.
264
Ao lado da figura do crítico, que, segundo Saítta, funciona como um letrado ponderado que
articula os extremos da sociedade, igualmente o processo de nomeação que deflagra uma
antologia lança outro facho de luz sobre a questão temática, e portanto política, do
procedimento editorial. Procedimento que também é válido para os periódicos:
La conformación de la red latinoamericana de revistas corroboró hasta
qué punto los sujetos políticos se constituyen en el plano discursivo:
ellas fueron uno de los escenarios donde los escritores se ratificaron
como intelectuales, además de servir a la difusión de los autores y
textos latinoamericanos de la época. (...) En las revistas puede
rastrearse el proceso constante de reevaluación de la producción
existente y el intento por construir una tradición partiendo de criterios
estéticamente modernos, que acercaban el horizonte del modernismo y
263
The Latin American Short Story – An annotated guide to anthologies and criticism Op. cit., p. xiv.
264
SAÍTTA, Sylvia. “4 de marzo de 2004” in Lo que sobra y lo que falta en los últimos veinte años de la
literatura argentina. Buenos Aires : Libros del Rojas, 2004, p.23. (Ciclo de mesas redondas del Centro
Cultural Rector Ricardo Rojas).
136
las vanguardias y rechazaban los telurismos, folklorismos y nativismos
requeridos para América Latina por una suerte de división
internacional del trabajo artístico que entonces se impugnó”.
265
São os mais diversos e heterogêneos temas. Assim como o conceito de Alfonso Reyes, as
antologias temáticas refletem uma concepção ainda idealista. Aparecem, desde o final do
século XIX e durante o XX, como “Latino-Americano”, “Hispano-Americano”,
“Americanas”, ‘Indoamericano”, “América Hispânica”, “Continente”, “América” (aqui, o
termo assume o sentido de uma Toda a América), “Iberoamericana”, “Mundo hispânico”,
passando para um enfoque regionalista: “Antologia gaúcha” ou nacional : “Antologia
brasileira”, “argentina”, “uruguaia”. Acontece também o enfoque histórico ou periodístico
(no sentido literário): “História e Antologia”, “Modernista”, “Vanguardista”,
“Panoramas...” ou um vago “Aqui e lá” [Acá y allá], “Contos do interior”, chegando a uma
verdadeira disseminação de temas, que orientam o leitor para aspectos específicos, ou
gerais, dos assuntos tratados, indicando também tendências de época : “Fantásticos e
inquietantes”, “Breves e extraordinários”, “Policiais”, “Realismo mágico”, “Antologia de
narradoras”, “Judeus latinoamericanos”, “Contos do exílio”, “Justiça em dia”, “Ritos de
iniciação”, “Contos infantis”, “Psicológico”.
Além destes, existem as antologias que buscam a promoção através da
própria arte de escrever : “Novo/jovem relato”, “Os grandes contistas”, “Cinco mestres do
conto”, “Assim escrevem” ou ainda o apelativo de “Verdadeiro Conto” , “Isto a história
não conta”. A lista ainda recorre a “Narrativas orais”, contos “Folclóricos”, sem falar nos
estudos introdutórios das antologias, constituindo verdadeiras plataformas de posturas
críticas a respeito da literatura em geral, quando não, com estudos teóricos da área: “Teoria
do conto”, “Texto ausente”, “Sobre o conceito de conto moderno”...
Há muitos outros, de que não tratarei aqui. Entretanto, os títulos da reunião
de contos revelam uma orientação, geralmente motivada não só por questões editoriais, mas
também por questões políticas, mormente mediadas pela figura do crítico. De todas as
formas, enuncia-se nesta listagem, para além do jogo de inclusões e exclusões, o desejo de
demarcação de uma literatura, em sua proliferação incessante, ao mesmo tempo em que se
265
GILMAN, Claudia. grifos meus, In “ Uma constelação : revistas entre vistas”. Travessia – Revista de
Literatura. n.40/Outra Travessia n.1, Ilha de Santa Catarina : Curso de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade Federal de Santa Catarina, 2º semestre de 2003, p. 15.
137
acena para o processo de diluição dos grandes relatos. Essa proliferação mantém, todavia,
estreito vínculo com uma ideologia de cunho iluminista, cuja a imagem do “panorama”,
analisada, é exemplar. Na constituição de um perfil para a produção latino-americana,
configura-se uma imagem em que, ancorada nas características anteriores, cultura e
literatura parecem se equivaler.
Esta poderia ser a literatura da produção de um intelectual exemplar como
Ronald de Carvalho, um panorama. Vejamos.
3.3 - TRAMANDO HISTÓRIAS
Como ponta de lance deste panorama, para desentranhar do passado algum
futuro, selecionei o livro intitulado Pequena História da Literatura Brasileira, de Ronald
de Carvalho
266
, com prefácio de Medeiros e Albuquerque, publicado no Brasil em 1919
(em 1935, encontrava-se já em sua quinta edição, revista e aumentada). A escolha deste
exemplar deveu-se a vários motivos. Primeiramente, porque Ronald também participou do
movimento da Semana de Arte Moderna
267
. Outro motivo se deve ao fato de que os
escritores do Rio de Janeiro têm sido menos abordados, de maneira geral
268
, além do que
266
CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. 5ª ed. revista e augmentada. RJ : F.
Briguiet & Cia., Editores, 1935. A primeira edição do livro acontece em 1919, com a segunda já em 1922.
Creio que é significativo o fato de a produção desse escritor estar na emergência do Movimento Modernista,
sendo, de certa forma, canonizado pelos meios intelectuais. Ao mesmo tempo, é de se notar a vertente carioca
(geralmente menos focada), no desejo de historicizar a literatura. Quase cem anos após o surgimento dos seus
principais escritos, César Aira, em seu Diccionario de autores latinoamericanos, assim inicia a referência a
Ronald de Carvalho: “(Brasil) Río de Janeiro, 1893-1935. Poeta, ensayista y crítico. Estudió en Europa, fue
diplomático, y al morir en un accidente automovilístico era secretario de la Presidencia de la Nación. Sus
comienzos como poeta fueron parnasiano-simbolistas: Luz glorioso (1913) fue su primer libro. En Europa,
entró en contacto con los futuristas portugueses, y fundó en Lisboa la importante revista Orfeu; su libro
Poemas e sonetos (1919) es todavía clásico, pero Epigramas irónicos e sentimentais (1922) ya adhiere a la
nueva estética. Participó en la Semana de Arte Moderno de 1922. Incursionó en el “cubismo” en Jogos pueris
(1926), y siguió la huella de Whitman en su libro más famoso, Tôda a América (1926). Fue muy apreciado
prosista; en 1931 se le dio el título de “Príncipe dos prosadores brasileiros”. Su obra más conocida es la
Pequena história da literatura brasileira (1919). (...).”. 1ª ed. Buenos Aires : Emecé, 2001, pp.132-133,
(Obras Notables), grifos meus.
267
Para uma consulta mais apurada da recepção dos modernistas por seus contemporâneos, através de
publicações de periódicos, consultar a antologia organizada por Maria Eugenia Boaventura, 22 por 22 – A
Semana de Arte Modernista vista por seus contemporâneos. São Paulo : Edusp, 2000.
268
Alguns anos após, temos o famosíssimo estudo de Antonio Candido, com sua Formação da Literatura
Brasileira, redigida entre 1945 e 1951. No prefácio da 1ª edição, lemos: “Estamos fadados, pois, a depender
da experiência de outras letras, o que pode levar ao desinteresse e até menoscabo das nossas. Este livro
procura apresentá-las, nas fases formativas, de modo a combater semelhante erro, que importa em limitação
138
serve como meio de diálogo entre diversos escritores da época, fundamentais para
explicitar melhor a trama que se teceu (e que por agora se tece), com vistas a uma discussão
de “América”. Finalmente, porque representa o procedimento marcadamente
historiográfico nas origens (ou antecedentes) da Semana de Arte Moderna, procedimento
que, na interlocução com outros escritores, revela-se, através desta Pequena História, uma
política cultural.
O livro é publicado postumamente, devido ao desastre sofrido por seu
escritor. Certamente na esteira de José Martí, que cunhou a expressão “nuestra América”,
segundo Manuel Bandeira
269
, a obra é exemplar da noção de “América” que se constrói e
circula, ao mesmo tempo que nos revela alguns critérios de como se arma uma antologia.
Nota perceber, inicialmente, alguns fragmentos do prefácio
270
:
Si há um livro que não precize aprezentação é este. Êle se aprezenta
por si mesmo.
A Pequena Historia da Literatura Brazileira só é pequena no nome.
De fato, é um grande livro.
Ronald de Carvalho tem a vantagem dos que, chegando mais tarde,
acham o caminho preparado. Diante dêle, havia sobretudo dois
autores: Sylvio Romero e José Veríssimo. Outras histórias de
literatura, como as de Coelho Netto e João Ribeiro, foram feitas com
simples intuitos pedagogicos.
(...)
Ao contrario dos seus predecessores, êle procura mais aprezentar em
conjunto os grandes movimentos sociaes de que rezultaram as
correntes literarias. E tudo isso é feito sem solenidade nem
pedantismo.
(...)
Sem duvida é possivel discordar de muitos dos seus juizos. Basta
comparar algumas de suas apreciações com as de Sylvio e Verissimo,
essencial da experiência literária. Por isso, embora fiel ao espírito crítico, é cheio de carinho e apreço por elas,
procurando despertar o desejo de penetrar nas obras como em algo vivo, indispensável para formar a nossa
sensibilidade e visão do mundo.”/ (...)Primeiro, a História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero (...)
Li também muito a Pequena História, de Ronald de Carvalho, pelos tempos do ginásio, reproduzindo-a
abundantemente em provas e exames, de tal modo estava impregnado das suas páginas.”. A vinculação do
modernismo e a escola, parece-me, então, um dos caminhos possíveis de investigação. CANDIDO, Antonio.
Formação da Literatura Brasileira (Momentos decisivos). 6ª ed. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia, 1981, vol. I
(1750-1836), pp. 10 e 12 (Biblioteca Brasileira de Literatura – Vol. I), grifos meus.
269
BANDEIRA, Manuel. Literatura Hispano-americana. 2ª ed. Rio de Janeiro : Fundo de Cultura, 1960,
p.148. A primeira edição deste livro é de 1949.
270
Preferi manter a ortografia original, a fim de não mascarar o debate que na época se trava em torno deste
tema, assumidamente por Mário de Andrade.
139
já entre si discordantes, para sentir que a critica literaria está ainda
muito longe de ser uma ciencia, com criterio fizos.
271
Medeiros e Albuquerque chama a atenção para o fato de que o livro dispensa
apresentação. No entanto, o faz, ocupando-lhe quase quatro páginas, e ressalta mais uma
vez, no final da apresentação, através de uma antítese, o fato de que não se trata de uma
Pequena História da Literatura Brazileira”, mas de “uma grande obra”. Para o crítico do
crítico, a novidade recai numa dupla característica : o escritor não analisa os autores
isoladamente, porém, utilizando um critério de “ordem mais geral”, procura vê-los no “seu
meio”, “filiando-os a esse meio”. A segunda característica é a de que Albuquerque confia
no critério da seqüencialidade como ponto favorável a uma melhor produção crítica. Desta
forma, Ronald de Carvalho teria a vantagem de, “chegando mais tarde”, encontrar o
caminho preparado. Ou seja, o critério de Medeiros e Albuquerque repousa na equação de
que o tempo é depurador de critérios, qualificando o trabalho crítico, uma vez que o terreno
já estaria preparado, portanto, pronto, bastando simplesmente reordená-lo.
Um outro aspecto relevante do comentário do prefaciador do livro é o fato de
que outras histórias da literatura brasileira foram feitas com o intuito meramente
“pedagógico”. Uma primeira pergunta então se faz: a antologia de Ronald de Carvalho
serve a que propósito? E se não possui fim pedagógico, ganha cinco publicações em
dezesseis anos graças a que elementos? Vale destacar, ainda sobre este escritor, a
publicação, sete anos depois de sua antologia, de um volume de versos intitulado Toda a
América
272
, com edição bilíngüe Português-Espanhol, ganhando uma terceira publicação
em 1935, logo após a sua morte. Na nota do editor e do apresentador da obra, Eurico de
Góes, talvez consigamos um pouco das respostas formuladas anteriormente. Diz o editor, P.
Núñez Arca, após lamentar sua morte:
271
Op. Cit. pp. 5, 7, destaques meus.
272
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Trad. de Francisco Villaespesa. São Paulo-Rio de Janeiro :
Hispano-Brasileña, 1935 (a primeira edição é de 1926). A publicação bilíngue faz parte da coleção
“Biblioteca Brasileña”, já tendo sido publicados Olavo Bilac, Castro Alves, uma antologia dos poetas
parnasianos, teatro brasileiro (diversos autores), a História da Literatura Brasileira de Ronald de Carvalho,
Culto e amor ao livro de Eurico de Góes, A ama hispânica de Cervantes, também de Eurico Góes, A
psicologia social do Quixote de José Pérez, Epigramas irônicos e sentimentais também de Ronald de
Carvalho e A retirada de Laguna de A de Tonnay . Uma nota adverte que várias dessas obras encontravam-
se em publicação.
140
Cuando inicié, en 1930, la edición de la “Biblioteca Brasileña, - que yo
habia sugerido al gran poeta Villaespesa, contando con sus traducciones
de los poetas, - no esperaba el éxito que alcanzó en el mundo hispano.
Recibí múltiples cartas pidiéndome esos libros, de casi todos los países
de América, especial y repetidamente de México, Chile y Argentina,
motivando ésto una segunda edición de “Toda la América”, así como de
las primeras, también agotadas, de Castro Alves y Olavo Bilac,
conjuntamente con "Luz Mediterránea” de Raul de Leoni y dos
volúmenes mas: “Los Parnasianos” y “Teatro Brasileño”. Estaba
procediéndose a la encuadernación de este libro y a impressión de los
demás, cuando estalló la revolución del 30, transtornando los planes de
divulgación, en esta forma, del pensamiento brasileño, perdiendose
inclusive todo el trabajo realizado en la imprenta. Salieron algunos
ejemplares de la segunda edición de “Toda la América”, lo que motiva y
justifica el que la presente sea la tercera.
Pretendo continuar, confiante en el éxito y en la solicitud de
Hispanoamérica, la “Biblioteca Brasileña” tan auspiciosamente iniciada,
atendiendo principalmente al requerimiento de esse “caracter
continental”, tan brasileño, que se llamó Ronald de Carvalho.
P. Núñes Arca. / S. Paulo, Febrero de 1935.”
273
O que Medeiros e Albuquerque não diz, Francisco Villaespesa afirma,
exatamente no “Prólogo” à edição de Toda a América. Villaespesa reforça as
características da produção de Ronald de Carvalho, enunciadas pelo primeiro, como “uma
visão mais clara, mais forte e mais sintética, dos múltiplos e caóticos panoramas físicos e
psicológicos do Novo Continente” (p.7) para, mais adiante, exaltar o “supremo milagre
artístico : disciplinar a juventude, sem perder, com isto, seus ímpetos generosos, mas
encaminhando-os e dirigindo-os aos mais altos fins...” (p.8, grifos meus)
274
. De alguma
273
Id. Ibid., p.6, grifo meu.
274
Esse conceito de disciplinamento da juventude pode ser examinado ao longo da história da literatura. O
ensaio de Stephen Greenblatt, “What Is the History of Literature?” rastreia as razões e as possíveis “origens”
dessa história, perguntando-se, inicialmente, “how are we now to understand the history of literature, the
textual traces that our profession has taken upon the history of literature, institutionalize, interpret, and
teach?”. Greenblatt busca, nas relações entre o clero da Idade Média e as pessoas comuns, o conceito de
litteratus”, para fazer ressaltar o momento em que literatura adquiria sentido de vida e morte. Saber ler
ligava-se, então, a um “exame”, em que os condenados viam-se obrigados a prestar a fim de alcançar a
libertação: “With the status of litteratus indelibly inscribed on the flesh, we have located the zero degree of
the history of literature.” A proposta do crítico recai numa outra história: “The stakes of literary history lie
always in relation between the contingencies that made the work of literature possible for those who created it
and the contingencies that make it posible four ourselves. In this case, literary history is always the history
of the possibility of literature”, acenando um para além das histórias nacionais. In Critical Inquiry. n.3,
vol. 23. Op. cit., pp. 462, 465 e 470, grifos meus. Consultar igualmente o texto de READINGS, Bill. “The
University without Culture”. In: New Literary History. n .1, vol.22. Virginia : The University of Virginia,
Charlottesville/Sheridan Press, Winter, 1991, pp. 01-21, bem como, neste mesmo número, STIRLE,
Karlheinz. “Studium : Perspectives on Institutionalizes Modes of Reading”, pp.115-127.
141
maneira, Francisco Villaespesa enuncia o atravessamento da personalidade e da cultura de
Ronald de Carvalho, porém está impregnado do mesmo sentimento e percepção que os
europeus têm diante do Brasil:
Las mismas modernísimas corrientes literarias, que en todas partes tienen
un caracter marcadamente cosmopolita, aquí en el Brasil, se intensifican,
se arraigan a la tierra, nacionalizándose en todos sus más altos
representantes.
“Toda la América”, el libro más característico de este movimiento y el
que más ha influido en los jóvenes poetas, es al final de cuentas, y a pesar
de su caracter continental, es sencillamente “Toda la América” vista por
un brasileño.
Ronald de Carvalho posee una cultura europea, un corazón americano,
pero sus ojos son brasileños, están impregnados de esta luz única, que
ninguna paleta, hasta ahora ha conseguido descomponer en colores.”
275
Temos, então, o caráter marcardamente disciplinatório, o deslumbramento
por um escritor-continental, constituído por um cosmopolitismo universalizante (cultura
européia), por um coração americano (o sentimento deslocado), a partir dos olhos de um
brasileiro. É esta “luz única” que não se decompõe a que marca os escritos de Ronald de
Carvalho, na versão de Villaespesa. Ora, a “Advertência” do escritor brasileiro é dirigida
ao “Europeu”, não alimentando uma visão apenas interna, mas reforçando uma perspectiva
para este outro formador de nossa própria consciência letrada. Assim, temos:
Europeu!
Nos taboleiros de xadrez da tua aldeia,
na tua casa de madeira, pequenina, coberta de hera,
na tua casa de pinhões e beiraes, vigiada por filas de cercas
parallelas, com trepadeiras molles balançando e florindo;
Na tua sala de jantar, junto do fogão de azulejos, cheirando a resina de
pinheiros e faia,
(...)
Europeu! filho da obediencia, da economia e do bom-senso,
275
Toda a América. Op. cit., p.9.
142
tu não sabes o que é ser Americano!
(...)
Alegria de inventar, de descobrir, de correr!
(...)
Europeu!
Nessa maré de massas informes, onde as raças e as linguas
se dissolvem,
o nosso espirito áspero e ingenuo fluctua sobre as cousas,
sobre todas as cousas divinamente rudes, onde boia a luz sel-
vagem do dia americano!
276
Poderia-se ver na longa descrição das paisagens, no cenário antitético, um
antivalor da cultura européia e o peso destinado à rudeza da vida selvagem americana, a la
Keyserling. Ronald de Carvalho ainda está enfatizando a paisagem descrita por Gabriel
Soares de Sousa, de onde o valor da paisagem em si parece merecer todo o louvor em
detrimento dos bens culturais de então. É mais um reflexo da velha discussão civilização x
barbárie, que dominou o cenário das literaturas nacionais do século XIX e parte do século
XX.
Cada poema do livro também pode ler lido como epístolas, comumente
dedicadas a alguém, um destinatário primeiro e privilegiado a quem o poeta quer agraciar.
O livro configura-se, então, enquanto reunião das cartas escritas pelo poeta “modernista”. O
movimento delas pode dar conta um pouco da imagem que este trabalho quer construir:
todas são escritas de lugares diferentes, porém com uma heterotopia utópica, com o olhar
fixo em um ponto – construir um modelo de América. O poeta passa por: Ilha de Trinidad,
Bordo do “Vandyck”, Ilha de Barbados, New-York, Tonalá, Punte del Inca, Antofogasta...
Na seção do “Jornal dos Planaltos”, vemos as datas apenas: Junho.1923; Junho. 1923;
Julho.1923; Agosto. 1923; Julho.1923; 1 de Agosto de 1923 e assim por diante, de modo
que o que muda, paralelamente, são os lugares: Querétaro, Mexico (D.F.), Guadalajara;
Puebla de los Angeles; Cholula. Assim temos, por um lado, as cartas e o periódico; por
outro, os lugares e o tempo. A reunião desses elementos constituiriam a obra “Toda a
América”, resumida na imagem que aparece no poema “Broadway”, dedicado a Mário de
276
Id. Ibid., pp. 9 - 11.
143
Andrade, “Aquelle chão é uma paisagem em marcha”. Ronald de Carvalho ensaia ainda a
possibilidade de fundir uma totalidade. Para tanto, sua percepção de tempo não difere muito
de seus prefaciadores.
(...)
Eu vivo aqui, nesta hora, a tranquillidade de todas essas hervas
atlanticas.
e esse vento silvestre que passa pelos meus cabelos,
e esse gorgolejo de onda que se parte nos meus ouvidos,
e essa humidade salina do deck vasio,
tudo isso é primitivo como um descobrimento...
(...)
277
Ora, a observação não é gratuita e certamente para esta geração o olhar é de
novidade. Porém, esta invenção está cravada da percepção ideológica não só do século
XIX, mas da tradição deixada e vivida pelos escritores, historiadores e críticos de literatura
até então. Esta experiência é ainda a extensão, o resto, o rastro, do olhar viajante sobre nós.
3.3.1 – ESTRANGEIRO/NACIONAL
Para sondar um pouco mais como este olhar modernista se constrói a partir
da idéia de uma antologia, em sua vertente pedagógica, do intelectual visto como figura
central neste processo, o olhar “estrangeiro” é de muita importância. Um outro viajante
modernista, Blaise Cendrars, aporta no Brasil para uma série de conferências, visitas,
exposições, vindo através de seus amigos brasileiros, em especial do contato com Oswald
de Andrade na França. Por meio de Paulo Prado, Cendrars conhece o trabalho de Ronald de
Carvalho, Toda a América, e se encanta por ele. O olhar de Blaise Cendrars reconhece na
composição de Ronald o processo de composição de um outro trabalho seu, a Anthologie
Nègre, cujo nome para a sua segunda conferência brasileira foi alterada para “Conférence
de São Paulo: comment j’ai fait mon Anthologie”. Interessa-me destacar, além das pontes
estabelecidas com os brasileiros, o procedimento de constituição de uma Antologia; neste
277
Id. Ibid., p.19, grifos meus.
144
caso, a partir dos relatos dos povos periféricos, os da África, assim como ocorreu com as
informações colhidas sobre a vida no Brasil.
Relembra o escritor francês:
Fiz minha Anthologie Nègre compulsando 1180 volumes na
Biblioteca Nacional e me apoiando em gramáticas, dicionários, contos
compostos pelos missionários e por eles trazidos da África desde 1815.
Missionários ingleses, franceses, alemães, dos pequenos povos
protestantes do norte da Europa, mais tarde americanos, todos
sofreram influência do ambiente negro a ponto de aprender as
línguas da África, de traduzir, apesar de seus rudes trabalhos de
proselitismo, os contos que os negros se contam à noite em torno dos
fogos das suas aldeias, de trazer à Europa, de imprimi-los às próprias
custas. Quer dizer todas as virtudes da literatura negra. O que
caracteriza o conjunto da literatura negra é o seu lirismo. O lirismo é
uma maneira de ser e de sentir. Sabemos que a língua é o reflexo da
consciência humana. A literatura dá a conhecer a imagem do espírito
que a concebe.
278
É importante salientar essa forte presença dos escritos de cunho
antropológico que se firma entre os vanguardistas, indicando um saída possível para os
impasses estéticos de então. Contemporâneo a Macunaíma, é publicado na França um
romance de outro avant-garde, Philippe Soupault, com as características e preocupações
semelhantes ao texto de Cendrars, Le Nègre
279
. Nos dois casos, o olhar europeu registra a
contribuição decisiva dos povos periféricos para os trabalhos que ali vão sendo
desenvolvidos. A antologia recebe, assim, contribuição das fontes as mais diversas,
modelando o livro, a biblioteca “pessoal” do francês (veremos a de outro modernista, em
seguida). Em meio a fortes discussões nacionais, Cendrars reconhece essa fonte como
fundamental para o desenvolvimento dos trabalhos, bem como percebe a heterogeneidade
necessária para a composição de um texto. Destaca no conjunto dos relatos a noção de
lirismo como uma maneira de ser e de sentir, o que lhe garante a mão dupla : quebra o
278
CENDRARS, Blaise. “A literatura negra” In: EULALIO, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise
Cendrars : ensaio, cronologia, filme, depoimentos, antologia, desenhos, conferência, traduções /
Alexandre Eulalio. 2ª ed. revista e ampliada por Carlos Augusto Calil. São Paulo : Universidade de São Paulo
: FAPESP, 2001, p. 131. Destaques meus.
279
SOUPAULT, Philippe. Le Nègre. Paris : Simon Kra, 1927 (Collection Européenne, n.29). Soupault já
havia publicado outro romance, A la dérive, e, juntamente com Andre Breton, Les champs magnetiques, em
1919. Entre este e Le Nègre, a mutação de ritmo (menos automatismo e mais detenção) indicam a tendência
assumida nas artes modernas, com ênfase nos estudos etno-antropológicos.
145
senso comum, abrindo caminho para uma abordagem mais livre da escrita literária. Outro
crítico, Sérgio Milliet, comenta o livro de viagem de Cendrars ao Brasil, intitulado Feuilles
de Route:
Em literatura a grande novidade é o livro de Blaise Cendrars dedicado
aos amigos brasileiros e que versa toda sua viagem ao Brasil. Feuilles
de Route são notações rápidas e cinematográficas, recheadas de raras
imagens e apimentadas, às vezes, com o mesmo lirismo dos poemas de
Du Monde Entier. A técnica do livro lembra Kodak. A mesma
ausência total da literatura, a mesma maneira direta e quase seca de
apresentar a emoção. Nenhum desenvolvimento, nenhum ornamento.
Nem flores, nem rendas, nem perfumes de barbeiro barato. É a síntese
absoluta, a simplicidade corajosa, a vontade firme de não ceder à
tentação da melodia, da serpente estética.
280
Há um contraste evidente entre a composição do escritor brasileiro Ronald
de Carvalho e Blaise Cendrars, este agora percebido por outro brasileiro. Há como que um
“choque” do crítico diante da maneira sintética do escritor francês, quase sem emoção
alguma, o estilo enxuto, seco, sem “ornamento”. O comentário é emblemático, na medida
em que a crítica pode se ver, de alguma forma, como diante de um espelho
281
. É a partir do
280
MILLIET, Sérgio. “Crônica Parisiense”. Id. Ibid., p. 409. Para lembrar Didi-Huberman, é necessário um
choque, uma irrupção do tempo. Esse estranhamento de Milliet parece não se dar conta da extensão dessa
distância. Para Mário de Andrade, comparando este livro com o outro de Cendrars, L’Or, atribui ao primeiro
vantagem na fatura e na sensibilidade. Comenta: “Com as minhas absorventes preocupações brasileiras de
agora e Deus sabe como são sinceras! ando meio xenófobo. Todos esses orientais da Europa só me interessam
pelo bem que tiro deles. Tiro e depois deixo de lado os tais, mulambos rápidos que ficaram. (…) Cendrars
veio para cá e de alma rica armou seu trombombó. Pescou um dilúvio de sensações gostosas, fotografou-as
em poemas curtos. Saiu um livro calmo e puro. Meio exótico até para nós. (…) o exotismo do livro está na
sua naturalidade sem espanto.” ANDRADE, Mário. “Blaise Cendrars – Feuilles de Route (I. Le Formose) –
desenhos de Tarsila – Paris, 1924/ L’Or – Romance – Grasset, Paris, 1925” in EULALIO, Alexandre. A
aventura brasileira de Blaise Cendrars : ensaio, cronologia, filme, depoimentos, antologia, desenhos,
conferência, traduções. Op. cit., p.413.
281
E um espelho sem fundo, freqüentemente. Veja-se o texto do próprio Breton e Soupault, “El espejo sin
alinde”. In Los campos magneticos. 2ª ed. Trad. Francesc Parcerisas. Barcelona : Tusquets, 1982, pp.11 e
16-17 (Cuadernos Marginales, 47) ou ainda o antológico “O espelho” de Machado de Assis e outros contos
que tratam da discussão da conformação de uma imagem brasileira. Vale um exame cuidadoso em “A parasita
azul” quando o personagem
[Camilo Seabra],
“exilado” para os estudos em Medicina nas terras de França, e
relutando em voltar ao Brasil, escreve ao pai “uma carta cheia de reflexões filosóficas” : “(...)Em suma, meu
pai, (...) deixe-me ficar até que eu possa regressar ao meu país como um cidadão esclarecido e apto para o
servir, como é do meu dever.” Em um “post-scriptum”, não reluta em pedir dinheiro ao pai...que envia
diversas messivas solicitando a volta do filho. “(...) mas o filho, parisiense até à medula dos ossos, não
compreendia que um homem pudesse sair cérebro da França para vir internar-se em Goiás.” Histórias da
meia noite. São Paulo : Catania Editora, s/d, pp. 11, 12 e 13, respectivamente. Vale lembrar ainda que o pai
de Camilo, o comendador Seabra, entrega o único filho aos cuidados de um padrinho, um naturalista francês
que viera ao país em 1828...
146
olhar de Cendrars sobre o Brasil, comentando sobre a África e sua influência sobre os
trabalhos europeus, que o Brasil toma consciência de si. Entre os dois, há uma nítida
separação. A distância é também de tempo.
A abertura das partes que compõem a Pequena Historia da Literatura
Brasileira lembra o procedimento da grande obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, onde
cada capítulo é antecipado por apontamentos resumidos dos assuntos principais. A
semelhança também ocorre através da temática dos capítulos. A própria introdução traz
seções como “O meio physico”, “O homem – o meio social”, cuja conclusão destaca:
(...) o Brasil representa, sem duvida, uma força nova da humanidade, e
é logico que possua, como de facto possue, uma civilização mais ou
menos definida, onde predominam, é certo, as influencias européas,
mas onde já se vislumbram varios indicios de uma proxima autonomia
intelectual, de que a sua literatura, já consideravel e brilhante,
constitue a melhor e mais decisiva prova (1).
282
A Introdução ainda apresenta dois capítulos, tratando das escolas literárias e as influências
europeáis na literatura brasileira (o primeiro), enquanto o segundo aborda, em tendência
etno-antropológica, a poesia e as lendas populares no Brasil. Se o restante dos capítulos
estão calcados em grandes divisões: “Periodo de formação (1500-1750)”, “Periodo de
transformação (1750-1830)”, e “Periodo autonomico (1830-1925)”, subdividido em fases,
modelo que serve à grande maioria da periodização tradicional brasileira, por outro a
inclusão das lendas e mitos parece indicar a busca de uma saída menos histórica e mais
mítica, ao mesmo tempo em que revela que a inclusão de tais temas problematizariam anos
depois o modelo de uma “alta cultura” x “baixa cultura” no debate da crítica brasileira.
Assim, em consonância com textos publicados também na Argentina, Ronald antecipa em
“As lendas e os mythos” o poder fabulizante com que Mário se inspirará poucos anos
depois para sua rapsódia. Afirma Ronald :
282
Em nota, “(1)”, Ronald comenta: “O interesse crescente, no estrangeiro, pelo nosso desenvolvimento
intelectual, manifesta-se por varios modos. Basta mencionar a creação de cadeiras de estudos brasileiros na
França e em Portugal, assim como a excellente obra do professor Isaac Goldberg, Brazilian Litterature,
publicada em N. York, no anno de 1922. Merece registro particular, nesse passo, a obra de Luc Durtain,
intitulada “Imagens do Brasil e do Pampa”, onde, pela primeira vez depois dos estudos de St-Hilaire e F.
Denis, o nosso paiz e as nossas raças, nossos costumes e peculiaridades são objecto de investigações subtis,
147
Nosso povo não se recreia sómente com os encantos de verso alado e
sonoro; é tambem um grande creador de fabulas e historias, geralmente
de tendencias moraes e correctivas. A imaginação popular não tem, no
Brasil, aquelle fausto nem aquella pompa do genio oriental.
Em nossos contos indigenas não ha palacios magnificos, nem castellos
sumptuosos, forrados de pedraria custosa, como nas Mil e uma Noites.
A Sheherazada brasileira é mais conceituosa que opulenta, educa mais
que deslumbra.
283
O escritor seleciona a história do cágado e da fruta, destacando na fábula indígena a
esperteza mais do que a força, portanto, a relação do olhar, da visibilidade e da voracidade
para comer, com que o próprio modernismo brasileiro vai lidar. Entretanto, a
“Sheherazada” é conceituosa, portadora da missão de educar... Aqui, o cágado vence a onça
pela estratégia, já que é “menor”, mais lento e não pode subir em árvores. O desafio
envolve o desejo dos animais de comerem uma fruta, proibida para quem não soubesse o
seu nome. É uma mulher, que vivia “nas paragens onde estava o pé da fruta”, a responsável
por inventar nomes difíceis de serem guardados. Portanto, o desafio consistia em vencer o
esquecimento, antes que ela modificasse o nome da planta. O cágado sai vitorioso por
contar com a música (leva sua viola, a de Ricardo Coração dos Outros do Lima Barreto?),
por atravessar o rio com todas as frutas no saco, e, principalmente, porque se aloja em um
buraco. Ao ser procurada pela onça, lhe responde sem ser vista. A onça, não vendo
ninguém, é enganada pela segunda vez:
de ordem rigorosamente scientifica.”. CARVALHO, Ronald de. Pequena Historia da Literatura Brasileira.
Op. Cit., pp.35-36.
283
Id. Ibid., p. 55, grifos meus.
148
Ficou muito espantada, e pensou que era o seu trazeiro que respondia.
Pôz-se, de novo, a gritar, e sempre o kágado respondendo: “Oi”, e ella:
“Cala a bocca, oveiro!” e sempre a cousa para diante. Amigo macaco
veio passando, e a onça lhe contou o caso da desobediencia de seu
trazeiro e lhe pediu que a açoitasse. O macaco tanto executou a obra
que a matou.
284
O cuidado da abordagem certamente reside em não apresentar os textos como puro folclore
e o autor parece não escapar ainda dessa armadilha. Por outro lado, a recuperação da lenda
e sua inclusão em um livro da história literária, ao procurar não distinguir apenas os textos
“cultos”, não só valoriza a oralidade na composição do imaginário social, bem como, neste
caso, reconhece nas fontes indígenas a importância de sua presença na vida cultural.
De maneira geral, o livro se atém aos quadros de “autores”. Complementa a
parte escrita a seleção de imagens, sempre com retratos de escritores, o que reafirma o
caráter do “nome” do escritor, bem como a tendência utópica da obra. Em suas conclusões,
Ronald afirma:
Vencer a natureza pela disciplina da intelligencia, eis a primeira lei que
a realidade brasileira impõe ao homem moderno. Elle está farto do
artificio da nossa existencia social. Elle vem de um povo pobre, que
vive frugalmente, as mais das vezes, sem cultura elementar. O homem
moderno do Brasil vê que não temos escolas, nem universidades, nem
sequer o apparelho rudimentar de mediocre instrucção primaria e
profissional. Tudo, entre nós, tem sido uma romantica improvisação.
285
284
Id. Ibid., p.57. Uma versão dessa história é apresentada por Alejandro Schulz [Xul Solar] no diário Crítica
– Revista multicolor de los sábados, em 19 de agosto de 1933, editado em Buenos Aires, dirigida por
Borges e Ulyses Petit de Murat. A história se passa entre um caranguejo que mandou seu olhos para o mar
(“la orilla del lago mar”) e um jaguar, o qual, invejoso da ação do caranguejo, lhe pede o mesmo, o que
acontece com sucesso. Porém, o “tata tararira” está por perto e nas indas e vindas dos olhos do jaguar, estes
são tragados pelo primeiro. O jaguar ainda tenta pegar o esperto caranguejo, que se esconde sob uma folha de
bacaba. O resultado é que as folhas se grudaram no animal e de lá não saíram. A solução do animal foi
encontrada pelo condor, que lhe traz leite de uma planta, “el árbol caicusashimpipo”, devolvendo-lhe os
olhos, agora transfigurados em limpos e claros. Em troca, pede ao felino que lhe cace um tapir, assim
acontecendo até hoje: “El jaguar caza para que coma el condor./ El jaguar se fue con ojos claros.”. In
SCHULZ, Alejandro (Versión). “Cuentos del amazonas, de los mosetenes y guarayús. Primeras historias que
se oyeron en este continente” in “Antologia” de Crítica – Revista multicolor de los sábados (1933-1934).
Edición fac-similar a cargo de Nicolás Helft. Buenos Aires : Fondo Nacional de las Artes, 1999, p.39. Uma
outra edição destes relatos pode ser encontrada em ARTUNDO, Patricia M. (Org.) Alejandro Xul Solar –
Entrevistas, artículos y textos inéditos. Buenos Aires : Corregidor, 2005, pp.116-118.
285
CARVALHO, Ronald de. Pequena Historia da Literatura Brasileira. Op. Cit., p. 369.
149
A crença de Ronald está na disciplina da inteligência, a fim de vencer a saúva da
improvisação e da preguiça. Disciplina, como sabemos, que pertence ao mundo do
esclarecimento, do jardim, da legislação. Mundos que também estão no modernismo
286
.
3.4. MODERNISMO CULTURAL
Como se vê, todos os movimentos se
processam da mesma maneira, confusos,
heteróclitos, desiguais.
Oswald de Andrade
3.4.1- MUSEU MODERNISTA
Na base da variação de uma literatura ora “hispana”, ora “latina”, ou ainda
“americana”, está o debate em torno do conceito de “cultura”, muito em voga nos anos
trinta e quarenta. É através dele que alguns fios se encontram, apresentando formas, pontos
de resistências, disseminando figuras. No caso do Brasil, a questão pode ser colocada a
partir do que se evidenciou como um declínio do modernismo, ou ainda, com as formas de
subsistência/continuidade de linhas de pensamento, implodidas com o movimento da
Semana de Arte Moderna. Como temos visto, o modernismo é revisitado sob diferentes
ângulos, associando-se, não raro, à comemoração, portanto a formas celebrativas que
canonizam, além dos escritores, sua própria escrita.
286
O último parágrafo do livro ratifica estas idéias : “O homem moderno do Brasil deve, para crear uma
literatura propria, evitar toda especie de preconceitos. Elle tem deante dos olhos um grande mundo
virgem, cheio de promessas excitantes. Organizar esse material, dar-lhe estabilidade, reduzil-o a sua
verdadeira expressão humana, deve ser a sua preocupação fundamental. Uma arte directa, pura,
enraizada profundamente na estructura nacional, uma arte que fixe todo o nosso tumulto do povo em
gestação, eis o que deve procurar o homem moderno do Brasil. Para isso, é mister que elle estude não
sómente os problemas brasileiros, mas o grande problema americano. O erro primordial das nossas elites,
até agora, foi applicar ao Brasil, artificialmente, a lição européa. Estamos no momento da lição americana.
Chegamos afinal, ao nosso momento.” Id. ibid., p.274. Ronald, citando a obra Peinture Moderne de
Ozenfant e Jeanneret, de 1925, deixa claro que a conclusão foi revista no mesmo ano da quinta edição, pelo
menos.
150
A leitura que faz o crítico Alfredo Bosi da Semana de 22 no Brasil leva em
consideração que o Modernismo aconteceu graças a um processo em andamento e não
como obra do acaso, chegando a afirmar que, a partir desta data, os modernistas passaram a
se constituir “um ponto de vista dentro da história da cultura nacional”
287
. Na perspectiva
do crítico, os modernistas acreditaram no Brasil enquanto “mito”, uma vez que este
procuraria conciliar as contradições, sem lhes dar a possibilidade de pensar: o Brasil era
uma “lenda sempre se fazendo”. Crê o autor da História concisa da Literatura Brasileira
que o rompimento efetuado pelos modernistas serve de modelo para a operação do
presente, numa equação em que passado e presente parecem (e deveriam) se equivaler:
Passados cinqüenta e tantos anos, feitos os reconhecimentos devidos,
estamos de novo preocupados com a modernidade de 22. Os
fragmentos futuristas de Miramar e a rapsódia lúdica de Macunaíma
são apontados como altos modelos de vanguarda ficcional. A quebra,
que neles se operou em relação à prosa tradicional, é encarecida como
estímulo para outras rupturas que hoje se deveriam empreender.
288
Segundo o crítico, a razão desse reconhecimento se deveria a vários fatores: Os modernistas
tendiam à fusão de técnica e instinto e resolviam o impasse fugindo à escolha, ou seja,
através da mencionada fusão mítica, localizando no período entre 1930 e o pós-guerra não
mais um período modernista, mas moderno, cujo modelo o romance Angústia de
Graciliano Ramos preconizava a imagem do intelectual de então : a do impotente. Ao
mesmo tempo, atribui a Oswald e Mário, entre 30 e 40, um “desejo agônico de assumir uma
outra perspectiva, pós-modernista” (BOSI, 2003, p.222, grifo meu). Ao crítico de hoje,
passados os anos das multinacionais e da tecnologia de ponta, restaria, segundo ele, a
releitura da “montagem”, ou seja, do que se deve dizer e de como se deve dizer
289
.
287
BOSI, Alfredo. “Moderno e modernista na literatura brasileira” In Céu, Inferno – Ensaios de crítica
literária e ideológica. São Paulo : 2 Cidades/34, 2003 (Coleção Espírito Crítico), p. 215.
288
Id. ibid., p. 218.
289
A esse respeito, consultar o instigante livro de Daniel Link Como se lê e outras intervenções críticas –
Trad. Jorge Wollf. Chapecó : Argos, 2002. O crítico indica que os três tempos (ou movimentos) da arte
(totalidade, especificidade, fragmentação) corresponderiam ao realismo, ao alto modernismo e ao pop,
acrescentando que “Nosso erro, o erro da pedagogia e o erro da teoria, foi pensar, evolutivamente, que cada
um dos tempos da arte correspondia a cada um dos tempos da teoria...)”( p.35), e aponta como saída que “a
literatura deveria funcionar também de maneira crítica. A pedagogia da literatura deveria justamente
potencializar os pontos de inflexão que introduzem os estudos culturais, de uma parte, e as literaturas
comparadas, de outra. (...) Este é, pois, o desafio ante o qual nos encontramos: re-construir novas totalidades
151
Se a posição do que seja moderno e pós-moderno assomam aqui como um
certo movimento de “impotência” (Graciliano) e de “agonia” (Mário e Oswald), que me
parecem exagerados e não de todo congruente com a perspectiva apresentada por Jameson,
por outro lado o escritor de O céu e o inferno parece acertar mais quando aponta para os
sentidos de hoje: identificar o que virou “esquema e norma” no movimento modernista, ou
seja, “saber descobrir o sentido ora especular, ora resistente dessa literatura moderna sem
modernismo” (BOSI, Id. ibid., p.226).
Na leitura que proponho do período pós-semana de 22, vislumbro a leitura
do moderno também enquanto pedagogia, modelo que se procurará fazer vingar através dos
mais diferentes meios. Como abordado anteriormente, nesse modelo estão os intelectuais
enquanto legisladores, transformando-se, ao longo dos anos, em intérpretes (Bosi fala em
“releitura”, palavra que poderia ser a metáfora para a segunda definição do intelectual). Na
intenção de pedagogizar, o modernismo pode ser lido enquanto museu – fossilização,
normatização – em cujo modelo a “cultura” se espetaculariza. A tarefa modernista passa a
ser homogeneizar procedimentos, ideológicos e/ou culturais. Raymund Williams, ao tentar
definir “hegemonia”, em Marxismo e literatura
290
, apresenta nele o capítulo “Tradições,
instituições e formações”, o que ele chamou de “senso de continuidade predisposta”:
Nessa relação fundamental entre as instituições e formações de uma
cultura há uma grande variabilidade histórica, embora seja uma
característica das sociedades complexas e desenvolvidas que as
formações, em contraposições às instituições, desempenham um papel
cada vez mais importante. Além disso, como essas formações se
relacionam, inevitavelmente, com estruturas sociais reais, e ainda
assim têm relações altamente variáveis e com freqüência oblíquas com
instituições sociais formalmente discerníveis, qualquer análise social e
cultural delas exige procedimentos radicalmente diferentes dos que são
desenvolvidos para as instituições.
291
A hegemonia da cultura aqui entendida como uma hegemonia do arquivo, do museu, está
longe de assemelhar-se ao arquivo foucaultiano. Segundo Gilles Deleuze, é preciso pegar as
coisas para extrair delas as visibilidades, feitas de regime de luz, cintilações, reflexos,
que, ainda que seja sob a forma da série, permitam encontrar sentido precisamente aí onde – parece-nos – uma
intervenção política pode encontrar-se com uma intervenção estética.” (p.41).
290
WILLIAMS, Raymund. Marxismo e literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de janeiro : Zahar, 1979.
152
clarões : “É como se o arquivo fosse atravessado por uma grande falha, que põe, de um
lado, a forma do visível, de outro, a forma do enunciável, ambas irredutíveis.” (DELEUZE,
2004, p.121). Com Didi-Huberman, esta questão está formulada através da necessidade de
invenção de uma imagem (a propósito da Caixa negra de Tony Smith):
Como si la invención de una imagen, por más simple que sea,
correspondiera en primer lugar al acto de construir, fijar mentalmente
un objeto-pregunta, si puedo decirlo así. Algo así como esos
cofrecillos de plomo, oro o plata que, en las fábulas de nuestra infancia
o nuestra literatura, encerraban los destinos o los anhelos
insconscientes de sus héroes.
292
Este outro lugar, fora das formas, e esta invenção da imagem de que falam Deleuze e Didi-
Huberman, necessários para a costura entre o visível e o enunciável, é preferencialmente o
espaço da leitura, da crítica, portanto, de sua fabulação. Poderia chamá-lo de arquivo-
crítico.
Pretendo visualizar como este arquivo, no modernismo, ganha forma, se
institucionaliza, através da figura do próprio museu. Este arquivo assemelha-se ao que
Foucault, preparando a introdução do que seria uma antologia, denominou não menos do
que uma “antologia de existências
293
. “A vida dos homens infames”, prevendo um livro de
“convenção e jogo”, alista, examina a vida ordinária que foi sugada, e subjugada, por um
“agenciamento administrativo”. Esta espécie de “herbário”, de “compilação”, como
denomina Foucault, traz à luz o que ficaria (ou deveria ficar) esquecido, escondido. Este
retorno do reprimido cria novas realidades, como o deseja este trabalho de escavação.
291
Id. ibid., p.122.
292
DIDI-HUBERMAN, Georges. Lo que vemos, lo que nos mira. Op. Cit. p.69.
293
FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames” In Michel Foucault – Estratégia, Poder-Saber.
Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2003,
p. 203 (Coleção Ditos & Escritos - IV).
153
3.4.1.1 - POLÍTICA PATRIMONIAL
Um dos projetos pedagógicos que mais chama a atenção na trajetória de
escritores modernistas brasileiros refere-se à formação do Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, em 1937. Elaborado a partir da cooptação de Mário de Andrade
durante o governo de Getúlio Vargas, sob os cuidados de Rodrigo Mello Franco de
Andrade, o projeto do “SPAN
294
” nasce com a forte característica da (auto)preservação do
patrimônio cultural da nação, representando, desta forma, um dos ápices da concepção
gregária e pedagógica do modernismo brasileiro. Além do que, simboliza o encontro entre
história e as artes em geral, ao mesmo tempo em que aponta para a figura do intelectual
enquanto “legislador”.
O Anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional é
dividido em três capítulos. No primeiro, define-se sua finalidade e competência:
Finalidade: O Serviço do Patrimônio Artístico Nacional tem por
objetivo determinar, organizar, defender, e propagar o patrimônio
artístico nacional.
Ao SPAN compete:
I. determinar e organizar o tombamento geral do patrimônio
artístico nacional;
II. sugerir a quem de direito as medidas necessárias para
conservação, defesa e enriquecimento do patrimônio artístico
nacional;
III. determinar e superintender o serviço de conservação e de
restauração de obras pertencentes ao patrimônio artístico
nacional;
IV. sugerir a quem de direito, bem como determinar dentro de sua
alçada, a aquisição de obras para enriquecimento do
patrimônio artístico nacional;
V. fazer os serviços de publicidades necessários para propagação
e conhecimento do patrimônio artístico nacional.
295
294
O anteprojeto para a criação deste órgão denominava-se originalmente “Serviço do Patrimônio Artístico
Nacional” (SPAN), posteriormente incluindo o termo “Histórico” a sua nomenclatura, “SPHAN”, como até
hoje é denominado.
295
ANDRADE, Mário de : Cartas de trabalho – Correspondência com Rodrigo Mello Franco de
Andrade (1936-1945). Brasília : Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional : Fundação Pró-
Memória, 1981, p.39. Note-se que a publicação na década de 80 conta com a participação do Ministério da
Educação e Cultura e a Fundação Nacional Pró-Memória. Consultar, igualmente, o interessante volume
Modernistas na repartição, organizado por Lauro Cavalcanti, que reúne textos de Mário de Andrade,
Rodrigo Melo Franco de Andrade, Manuel Bandeira, Joaquim Cardoso, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de
154
Não estranha, portanto, que todos os parágrafos se encerram com a mesma expressão:
“patrimônio artístico nacional”, agravados pela concepção de empalhamento,
“tombamento”, “conservação”, “enriquecimento”, “restauração”, “aquisição” e, finalmente,
“propagação”. A seqüência nos dá o mote da política cultural adotada desde então, assim
como “divulgação” compõe a política dos congressos e associações.
No segundo capítulo surgem as “Determinações preliminares”, que se
distribuem, ou se propagam..., em “Patrimônio Artístico Nacional”, “Obra e arte
patrimonial”, “Livros de tombamento e museus”, “Discussões” e “Publicidade”. Em cada
parte, a lei prevê uma discussão que envolve diferentes focos, cujo eixo gira em função do
capítulo anterior. Aparecem questões ligadas à necessidade de caracterizar o que é uma
obra de arte e o que possui valor histórico; a necessidade de se classificar o que é arte pura
(portanto, por exclusão, verificar as que não merecem atenção); como dimensionar (leia-se
periodizar) o tempo; qual a concepção de arte erudita nacional; quais as condições do artista
(se pertence à História de Arte Universal, a um Museu Oficial); estabelecimento de
Prêmios; critérios de votação; criação de livros de Tombamento e sua relação com os
Museus; criação de um Museu de Artes Aplicadas e de Técnica Industrial; a criação de uma
Revista como “meio permanente de propaganda, e força cultural” (ANDRADE, 1983,
p.45). A preocupação de Mário está toda concentrada na questão pedagógica, como
exemplifica a tentativa de definição para as “Artes Aplicadas e Técnica Industrial”:
Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a
habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas
e dos fatos. Isso foi aproveitado para preencher uma feia lacuna do
sistema educativo nacional, a meu ver, que é a pouca preocupação com
a educação pela imagem, o sistema talvez mais percuciente de
educação. (...) Chama-se [os museus técnicos] hoje mais ou menos
universalmente assim os museus que expõem os progressos de
construção e execução das grandes indústrias (...) São museus de
caráter essencialmente pedagógico.
296
Holanda, Carlos Drummond de Andrade, Lúcio costa e Antonio Candido. 2 ed. rev. Rio de Janeiro : Editora
da UFRJ : Minc – IPHAN, 2000.
296
Id. ibid., p.44.
155
Finalmente, o projeto, em seu capítulo III, prevê como se arquiteta o “Organismo do
SPAN”, distribuído em “Diretoria”, “Conselho Consultivo”, “Chefia do Tombamento”,
“Conselho Fiscal” e “Seção de Publicidades”. Existe, ainda, um “Plano qüinqüenal de
montagem e funcionamento do SPAN”, bem como uma parte final do projeto, intitulado
“Sugestões”, onde Mário trata de questões ligadas a impostos; problemas quanto ao
tombamento estadual, comissões dos Estados (nomeação não via “medalhões”, mas através
de indicações da própria Diretoria do SPAN); prevenções contra a fuga das obras de arte;
filmotecas e discotecas (Mário prevê simplesmente o luxo: “Não é possível conceber senão
o bom e o melhor. O luxo. Chamam, no caso, de “luxo” o que é simplesmente buscar
perfeição” (ANDRADE, Id.ibid., p.52) ) e, por fim, o Museu Nacional.
A versatilidade poética do Mário de Macunaíma e dos Contos de
Belazarte, aos poucos burocratizada, parece converter-se em um longo rol de catalogação
de edifícios, notas, leis, como bem o demonstram o relatório por ele enviado ao SPHAN em
outubro de 1937, onde constam, além de uma carta formalíssima ao Diretor do Serviço,
Rodrigo M. F. de Andrade, nomes das construções religiosas situadas em São Paulo e seus
arredores, de puro caráter histórico. Já o segundo relatório vem acompanhado de
documentação fotográfica e trata de melhor explorar a pintura religiosa (de Itu). E mesmo
na correspondência trocada com seu então diretor, Mário sempre está a dar explicações de
suas atividades “legislativas”, inclusive quando prepara um trabalho para o Handbook of
Brazilian Studies, ocasião em que redige um ensaio a respeito da situação atual dos
estudos de Folclore no Brasil, o que, se por um lado reafirma o desejo de consolidar-se nos
estudos de campo, e introduzir a vida “ordinária” nas compilações, por outro se preocupa
com o olhar agora estrangeiro:
Consideraram os organizadores do Handbook que mostrar nossas
deficiências, com lealdade, seria prejudicial e que, pra exemplo, a
alegação de que tal obra raríssima não pôde ser consultada por não
existir em São Paulo, não era justificável. (...) mas parece que na
América do Norte como agora está em uso o regime de tapar o sol com
a peneira.
297
297
Id. ibid., p.163. A carta a Rodrigo M. F. de Andrade é de 4 de novembro de 1942.
156
Meses antes desta carta, às vésperas de embarcar ao Rio de Janeiro para a famosa
Conferência de 1942, Mário declara ao Diário da Noite que, ao lado de tudo o que os
modernistas quiseram destruir, existiam também “grupos fortemente construtores, que
tinham em mira alguma cousa”, ainda que afirme que “somente os destruidores, os
verdadeiros arrazadores é que realmente realizaram o movimento, obtendo a simpatia dos
novos, sendo procurados e admirados.”
298
.
Também não deixaria de chamar a atenção a própria biblioteca do escritor.
Este Mário, o da Silva Brito, ao entrevistá-lo em 1943, registra da seguinte maneira o
encontro: “Uma excursão pelo fichário de Macunaíma – reedições, novas obras e planos
de futuros trabalhos de Mário de Andrade – o mais organizado intelectual do Brasil
299
.
Na conversa “desordenada”, cheia de interrupções, no burburinho sobressaltado do assuntos
trocados, destacam-se “um fichário em que se trancam tantas horas de estudo e paciência” e
“envelopes”, a partir dos quais toda a conversa transcorre. É o arquivo, o fichário, a
munição que promove o debate, instiga a inteligência dos novos (e dos antigos). A
entrevista, percorrendo a possibilidade de livros novos de Mário, acaba mesmo no assunto
da biblioteca, com a mística de que existiria uma “porão” em sua casa: “Meus livros sempre
estiveram no primeiro andar...” (ANDRADE, 1983, p.98), declaração que soa
ambiguamente, já que Mário acabara de afirmar que detestava seu livro de mesmo nome
300
.
Este mundo reunido em torno da burocratização das letras, da organização
da biblioteca, coincide com uma espécie de “fossilização” do modernismo, tendência
manifestada inclusive entre os próprios modernistas. Já na leitura que Mário de Andrade faz
da poesia de 1930, aponta, a propósito do livro Libertinagem de Manuel Bandeira, que se
trata de “um livro de cristalização”, considerando o poeta como o “mais civilizado do
Brasil”
301
, cuja poesia destina-se, em sua maioria, à leitura. O poeta da “cristalização mais
perfeita” também se referirá a Mário como um “sistematizador justamente do uso geral
298
BRITO, Mário da Silva “Uma excursão pelo fichário de Macunaíma – reedições, novas obras e planos de
futuros trabalhos de Mário de Andrade – o mais organizado intelectual do Brasil” In rio de Andrade -
Entrevistas e depoimentos. Org. Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo : T. A. Queiroz, 1983, p.86.
299
Id. ibid., p.93, grifos meus.
300
A organizadora deste volume de entrevistas conclui em nota que “O porão da casa de Mário na R. Lopes
Chaves era a sala G de sua vasta biblioteca. (...) Depois de sua morte e até à aquisição do Acervo pelo IEB
da Universidade de São Paulo, em 1968, a família do escritor manteve com fidelidade a organização original
de sua biblioteca: 6 salas, designadas pelas letras do alfabeto e tomando praticamente toda a casa.” (Id.
ibid., p.98, destaque meu). Voltaremos à questão da biblioteca de Mário e seu caráter “enciclopédico”.
157
brasileiro”, ou ainda como “o sistematizador, o revolucionou[sic], se moderou bastante, nos
últimos anos”
302
, abordando o abrandamento da força do choque dos escritos do autor de A
escrava que não é Isaura. Bandeira concentra seu argumento no que ele denomina de
“desejo de sistematizar o jogo”, o que nos revela esta tendência ao trabalho do que aqui
denomino de museu modernista. E junto a ele, todo um imaginário da atividade do escritor,
bem como sua própria imagem, são modelados ao redor da idéia de intelectual.
Em carta trocada entre estes dois escritores, um comentário, a propósito de
um outro modernista, também desperta interesse: trata-se de Ronald de Carvalho, chamado
de “camélia branca” por Bandeira, denominação que se liga, diretamente, à imagem do
intelectual. Marcos Antonio de Moraes, organizador da correspondência entre Mário e
Bandeira, comenta, a esse respeito, que a primeira menção à camélia branca surge na
Revista Nova, n.7, (1932) em um texto que Mário de Andrade comenta, evocando o
espírito desassombrado e virginal da Semana de Arte Moderna,
‘falta de malandragem intelectual, [...] inocência grande que nos
identifica com a vida, tornando esta um viver-se esportivamente, e não
um meio que nos dará a vitória no fim do jogo. (...)o malandro
economiza e quer ganhar o jogo; o virgem desperdiça e o que quer é
jogar. As figuras de Ronald de Carvalho e de Graça Aranha ilustram
perfeitamente esses dois tipos. Ronald de Carvalho [...] é o tipo do que
joga no certo; talvez mesmo ele seja um protótipo exageradamente
perfeito do malandro intelectual.[...] Ronald de Carvalho é uma
camélia branca.’ (Aspectos da literatura brasileira, p.47-8).
303
Alguns anos depois, Mário e Bandeira estão trocando impressões de suas
vidas, mas já envoltos em compromissos, Congressos, com atividades intensas de trabalho
que, de certa forma, confluem para características históricas de suas obras (e sociais, para
lembrar Mário). Em carta datada de 26 de julho de 1937, Manuel comenta: “Agora vou me
301
ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. 5ª ed. São Paulo : Martins, 1974, pp. 28 e 29,
respectivamente.
302
BANDEIRA, Manuel . “Mário de Andrade e a questão da Língua” In Anhembi, a.II, n.23, vol.VIII. São
Paulo : outubro de 1952, pp.291 a 301.
303
CORRESPONDÊNCIA Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org. Marcos Antonio de Moraes. 2ª
ed. São Paulo : Edusp; IEB, 2001 (Coleção Correspondência de Mário de Andrade; 1), p. 540, grifos meus. A
imagem do escritor, configurado como um intelectual-malandro, mantém relação com a questão do próprio
jogo, concepção que explorarei mais adiante como também a propósito de alguns textos do próprio Ronald de
Carvalho.
158
atirar ao Guia de Ouro Preto
304
. Estou com preguiça e com medo. Mas com amor também.
Amor e medo...” (CORRESPONDÊNCIA, Op. cit., 638). Este trabalho pode ser lido de
várias formas, porém, gostaria de destacar a semelhança de apuro textual e temático com os
textos que o próprio Mário desenvolve nesta época como subordinado de Rodrigo de M. F.
de Andrade, a respeito das igrejas e monumentos do interior paulista. Por outro lado, serve
como re-visitação modernista, agora na etapa das “cristalizações”, passando de simples
impressões a estatus de guia. E de certa forma surpreso, Bandeira reconhece (e divide
responsabiliades) com outras pessoas :
Este Guia de Ouro Preto leva o meu nome de autor. Manda, porém, a
verdade dizer que tive colaboradores valiosos. Em primeiro lugar, a
Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, na pessoa do
seu devotado diretor, Rodrigo M. F. de Andrade (...)
Esta quarta edição (houve uma segunda em francês, na tradução do
escritor Michel Simon) leva numerosas correções e novidades
redigidas por Carlos Drummond de Andrade, sobre dados fronecidos à
Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional por Sylvio de
Vasconcellos e outros de seus especialistas.
305
É de se notar a reviravolta na aceitação de elaboração de uma obra desse vulto. O Guia é de
caráter prático, como lembra Michel Simon, comparando o trabalho aos guias de Recife e
Olinda (Gilberto Freyre) e Bahia (Afrânio Peixoto e Jorge Amado).
O maior empreendimento de Manuel Bandeira, nesta nova esteira,
provavelmente esteja na elaboração de um livro essencialmente historiográfico, como o da
Literatura hispano-americana
306
. De pretensões muito abrangentes, a reunião de textos
aborda desde as “Culturas indígenas pré-colombianas” a “Ensaístas e críticos
contemporâneos”. Se Bandeira abre espaço para a sistematização de dados para uma
discussão acerca da literatura hispano-latino-americana, preenchendo o vazio de obras em
português a esse respeito, por outro realiza uma certa redução, ao dispensar um tratamento
tão “didático” a ela, adjetivo que vem na orelha da própria obra, indicando também que se
trata de um complemento de outra história, Noções de História das Literaturas. É
304
A primeira edição contou com a chancela do Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1938, cujo
convite partiu de Rodrigo M. F. de Andrade.
305
BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Op. cit., p.9.
306
BANDEIRA, Manuel. Literatura hispano-americana. 2ª ed. Rio de Janeiro : Fundo de Cultura, 1960.
159
provável que, em razão disso, Mário de Andrade tenha receado colaborar na História da
Literatura Brasileira
307
, que a Editora A noite então preparava em 1943.
A tendência de nossos modernistas pode ser comparada ao que Maurice
Blanchot chamou de “O mal do museu”, este espaço que lembra uma “ilusão de presença”,
ligada à experiência de nosso tempo:
El Museo expresa de una cierta manera esta privación, desamparo y
admirable indigencia que es la verdad del arte sin refugio (...) Pues es
precisamente en el museo donde las obras de arte, retiradas del
movimiento de la vida y sustraidas al peligro del tiempo, se presentan
en el confort encerado de su permanencia protegida. ¿ Privadas del
mundo, las obras del Museo? ¿Entregadas a la inseguridad de una
ausencia pura y sin certeza?, aun cuando la palabra museo significa
esencialmente conservación, tradición, seguridad, (...) No es por azar
que lo que se da por “pura presencia”, se inmoviliza en seguida y se
estabiliza en una permanencia sin vida y en la eternidad putrefacta de
un vacío solemne e indiferente.
308
Dois críticos latino-americanos também tecem seus trabalhos estabelecendo
certa semelhança quanto ao movimento de congelamento do modelo modernista : Maria
Cecília França Lourenço
309
e Gonzalo Aguilar
310
.
Maria Cecília lê os museus a partir de sua crise, para quem o museu
significa, ao mesmo tempo, um espaço portador de valores negativos, na linguagem
corrente, como os de “cemitério”, “estorvo”, “decrépito”, “passadiço”, como também
“instituição permanente, sem finalidade lucrativa, a serviço da sociedade e de seu
desenvolvimento, aberta ao público, voltada à pesquisa dos testemunhos materiais do
homem e do seu entorno, que os adquire, conserva, comunica e, notadamente, expõe,
visando estudos, educação e lazer”, na definição do Conselho Internacional de Museus
(ICOM) (LOURENÇO, 1999, p.11). Para esta crítica, há uma diferenciação necessária
quando se trata de abordar o tema ligado ao museu, a coleção e o acervo. Se “juntar peças
307
BRITO, Mário da Silva. “Uma excursão pelo fichário de Macunaíma – reedições, novas obras e planos de
futuros trabalhos de Mário de Andrade – o mais organizado intelectual do Brasil”. Mário de Andrade -
Entrevistas e depoimentos. Op. cit., p.96.
308
BLANCHOT, Maurice. La risa de los dioses. Trad. J. A. Doval Liz. Madrid : Taurus, 1976, p.47
(Ensayistas – 141).
309
LOURENÇO, Maria Cecília França. Museus acolhem moderno. São Paulo : USP, 1999 (Acadêmica, 26).
310
AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira – as vanguardas na encruzilhada modernista. São
Paulo : USP, 2005.
160
não faz um museu”, a ação da coleção pressupõe um certo voluntarismo para este guardar
(da memória), enquanto o acervo se caracteriza por segmentos conectados, havendo um
processo de reconhecimento e formulação de sentidos, de debate e de critérios. A
fragilidade dos acervos estaria ligada à ação dos governantes, que ora vêem (ou não)
sentido nos guardados, tornando os achados novamente em perdidos. Submetido às ações
políticas efêmeras de cada governante, o museu atravessa os anos com seus jargões, como
se fez notar o próprio Museu de Arte Moderna (MAM) no pós-guerra: “museu vivo”,
“quarta dimensão”, “museu escola”, “museu comunitário”, “museu espetáculo”, “museu
shopping”... Segundo ela,
Pensar o museu é definir o que queremos legar como princípios às
próximas gerações, tratando-o como um bem comum e para diferentes
públicos, estando em sua própria raiz a continuidade e a permanência.
A sociedade, em que se insere e que o sustenta, precisa assumi-lo,
cabendo-lhe relacionar-se com a diversidade e devolver-lhe produtos
qualificados.
311
Localizando o motor do museu na engrenagem da “continuidade e a permanência”, a
escritora sugere um dever da sociedade em mantê-lo, a fim de garantir um futuro
“qualificado” às pessoas. Pode-se ver nesta passagem boa parte do pensamento que norteou
as escolhas modernistas: pensar a literatura enquanto um corpus que necessita ser
(res)guardado para a posteridade, longe do que parecia supor algumas estéticas do puro
efêmero. Não sem razão, o fortalecimento da idéia de museu ocorre no pós-guerra, cujo
modelo ideal passa a ser o norte-americano. É neste cenário político que o Museu de Arte
de São Paulo, o MASP, foi concebido e criado, no momento em que o presidente dos
Estados Unidos vem ao Brasil (1947), em plena guerra fria, para firmar a “Doutrina
Truman”. A partir desta data, o Brasil assiste ao surgimento de uma série de museus e
galerias
312
, consolidando o modelo americano.
311
LOURENCO, Maria Cecília França. Museus acolhem moderno. Op. cit., p. 15.
312
“Importante lembrar que, além dos MAMs de São Paulo e do Rio de Janeiro, aparecem, por iniciativa do
escritor Marques Rebelo, pseudônimo de Eddy Dias da Cruz, em 1949, o Museu de Arte Popular de
Cataguazes e também o MAM de Florianópolis (SC); em 1950, o MAM de Resende (RJ), sendo que este
hiberna entre 1952 e 1974. A partir de 1950 começam-se a reunir obras modernas para o colégio de
Cataguases (MG), tendo a colaboração do autor de Oscarina, como nos demais, associado a grupos e
escritores locais, conferido [sic] peculiaridade a tais entidades. Trata-se do grupo Sul em Florianópolis, o
Verde de Cataguases e, em Resende, Rebelo trava contatos com o escritor José Carlos Macedo Mirand.
161
O moderno, que fora modernista nos anos 20, uma causa entre 30 e
50, agora direciona-se para as instituições, acreditando poder
funcionar como um êmulo para uma sociedade mais justa, fraterna,
universal e com menos preconceitos – daí sua grandeza e interesse.
(...) Igualmente, a Bienal será um competente canal difusor e
ativador de modas, para a classe artística mais do que para o povo,
embora este lá esteja presente. (...) O mais significativo, no âmbito
deste estudo, será sua capacidade de impor nomes para a formação
dos acervos e preparar o público para o desafio da novidade
artística.
313
Vale notar que a crítica lê o museu através do moderno institucionalizado, fortalecido a
partir das décadas de 40 e 50, quando, na visão desta tese, este museu já existe, de alguma
forma, principalmente a partir da década de 30. Contemporâneas ao surgimento da TV
Tupi, que de alguma forma não só prepara o público mas também o impacta com as
novidades do dia-a-dia, as Bienais mudam a história das instituições precedentes, ao
representar o “moderno nacional” para as massas, instituindo concursos, prêmios e eventos,
de olho em ser o “farol das Américas”. E não muito depois, na era JK, o Brasil queria
realizar o concerto das grandes nações, aliado ao esforço de “desenhar uma nação e um
homem brasileiro” (LOURENÇO, id. ibid., p.23). Segundo Maria Cecília, Juscelino não
aceita seu nome vinculado aos museus, excluindo de seu governo a cultura, de forma a
valorizar unicamente a energia, a educação, os transportes, os alimentos e a indústria de
base (os 50 anos em 5).
Recobrando o projeto do SPHAN, também eco de um processo de
institucionalização, já em 1923 surge a Inspetoria dos Monumentos, cujo objetivo era a
“materialização do que deva ser relembrado, cultuado e reverenciado, incluindo-se feitos,
datas e fatos pátrios” (LOURENÇO, Id. ibid., p.78). E se em 1925, no esboço de
Anteprojeto Federal, aparece a expressão “proteção do patrimônio”, sentimento certamente
advindo das comemorações da independência pátria, nos anos 30 e 40 :
O papel do artista assume funções públicas, paralelas ao interesse pelas
inovações estéticas. O moderno, agora, deseja fornecer subsídios
Museu pouco mais é do que improviso, ação entre amigos e vôo cego quanto à sua permanência e
continuidade.” (LOURENÇO, Id. ibid., p. 21).
313
Id. ibid., p.22, grifos meus.
162
capazes de transformar uma época e alguns de seus protagonistas –
como Lúcio Costa, Portinari, Malfatti e Mário de Andrade entenderão
a tarefa pública institucional inserida em sua atuação profissional.
314
Agrega-se a este sentimento a necessidade de formar técnicos específicos para entidades,
como o Curso de Museus, em 1932, em que se delineia um perfil eminentemente
“superior”, hierárquico, notadamente de seu diretor. Na trajetória do museu encena-se o
desejo de pôr em destaque as noções de uma cultura de um povo, lida como necessidade de
“plasmar uma identidade cultural”. A crítica comenta o caso de alguns nomes e lugares,
como Paulo Duarte, Ouro Preto (repositório de símbolo pátrio), Mário de Andrade
315
e seu
acervo, Marques Rebelo e outros mais.
No caso do MAM/SP, Maria Cecília assinala o papel “formador” do museu
através de dois eixos da instituição : educação e exposições. Em poucos anos (1948-1958),
há em torno de cem conferências, cursos sistemáticos de história da arte, acrescidos de
cursos de Introdução Histórica à Filosofia (1950 e 1951), além de Iniciação à Estética
(1950). E nessa tendência, alimentados pelo modelo norte-americano (MuMA),
“organizam-se quadros genealógicos do moderno, estabelecem-se cronologias, levam-se os
alunos ao levantamento de dados e críticas, para subsidiá-los” (LOURENÇO, id. ibid.,
p.111).
O outro teórico, Gonzalo Aguilar, que inicia suas pesquisas exatamente a
partir de duas antologias: Poemas de Augusto de Campos (1994) e Galáxia concreta
(1999), entra no terreno divergente da poesia concreta para analisá-la em direção às
“práticas culturais”. Buscando as ressonâncias da resistência e rejeições às produções
concretistas no campo intelectual e literário brasileiro, Aguilar tenta montar o quebra-
cabeças que visualiza diante de si, quando a presença dos poetas concretos parece evocar a
“persistência do ciclo modernista que a crítica acadêmica tenta encerrar” (AGUILAR,
314
Id. ibid., p.79. Comenta Lauro Cavalcanti, o organizador de Modernistas na repartição, a propósito da
cooptação dos intelectuais pelo Estado Novo: “A ida para a repartição deixou transparecer a crença
“modernista” de que era o Estado o lugar da renovação e da vanguarda naquele momento, assim como o
vislumbre da possibilidade de aplicar na realidade idéias de reinterpretação ou reinvenção de um país que
estava sendo praticado nas páginas de seus livros. Na implantação do “modernismo” como dominante de
uma política cultural, conseguiram realizar o sonho de todo revolucionário: deter as rédeas da edificação do
futuro e da reconstrução do passado ou, em outras palavras, escrever simultanemaente o mapa astral e a
árvore genealógica do País.” Op. Cit., p. 23, negrito meu.
315
Consultar também o artigo intitulado “Mário : enfim na universidade”, de Maria Cecília F. Lourenço, id.
ibid., pp.198-201.
163
Poesia concreta brasileira, Op. cit., 2005, p.17). Observando que a crítica mantém uma
atitude que oscila entre rejeição e admiração, o escritor analisa o quadro buscando,
fundamentalmente na noção de “continuidade” de um estilo de intervenção cultural, parte
da resposta:
Uma das razões poderia estar na relativa estabilidade das instituições
culturais que, no Brasil, comparativamente a outros países da América
Latina, assume um caráter de garantia de continuidade que ultrapassa
as oscilações políticas. (....) o gênero lírico (...) o crescimento de um
setor de leitores cosmopolitas (...) a atitude de intransigência dos
próprios poetas e sua dedicação total à poesia (...) E, finalmente, as
forças que a explosão modernista que se produziu no Brasil durante os
anos 1950 ainda conserva, cujos resultados mais importantes foram as
Bienais Internacionais de São Paulo, a criação dos museus de arte
moderna, o surgimento da bossa-nova e a construção de Brasília.
316
Transitando entre a forma literária, as práticas de vanguarda e as transformações históricas,
Aguilar recorre exatamente aos conceitos de museu, arquivo, repertório, design e moda
para realizar o que chama de “transição” entre instâncias heterogêneas. Desta forma,
entendendo o museu como espaço histórico, o crítico visualiza a ação dos poetas
concretistas, atualizando os “arquivos”, através de seleções, ampliações e hierarquizações,
o que lhes oportunizaria, assim, a construção de seu próprio repertório. A diferença entre
arquivo e repertório residiria na transição entre a quantidade de informação e as práticas
dos atores culturais, além da seleção que estes realizam, dando-lhes condições para se
posicionarem. A passagem entre os dois estaria precisamente nos “critérios modernistas:
autonomia, evolução e homogeneidade” (AGUILAR, Id. ibid., p.21), periodizando o
movimento entre 1956-1960 (imposição do modernismo), 1960-1966 (ideologema da
“revolução” e questionamento ou ampliação dos critérios modernistas) e finalmente 1967-
1969 (crescimento dos meios de comunicação de massa como linguagem instalada no
espaço social)
317
.
316
GONZALO, Poesia concreta brasileira, Op. cit., 2005, p.17, grifos meus.
317
Para ler o moderno da vanguarda, Gonzalo defende, criticando o critério único (“a superação da instituição
arte”) utilizado em a Teoria da vanguarda, de Peter Bürger, que “somente uma análise das práticas
historicamente situadas pode ajudar a compreender esse fenômeno [vanguardas como movimentos
deslocadores e de não-conciliação]. A não-conciliação como uma atitude variável segundo o estado de campo
é o elemento a partir do qual se pode articular uma identidade das vanguardas. Daí que, em minha leitura
desses movimentos, o valor do novo esteja subordinado ao da o-conciliação e não o contrário(...) Minha
164
Haveria, segundo Aguilar, um alto grau de organicidade propiciado pela
perspectiva modernista, além do fortalecimento dos critérios mencionados anteriormente.
Assim, o elemento vanguardista desta poesia concreta residiria no fato de levar aos
extremos tais critérios, colocando-os em uma posição diferenciada no cenário brasileiro dos
meados do século XX. Também considerando o conceito de “forma” como um “processo
de experimentação, desgaste e renovação”, uma de suas radicalizações pode ser observada
quando da exposição de seus poemas em museus e galerias, ao contrário da opção dadaísta,
culminando no que ele denominou de :
Evolução homogênea da forma : nessa linha podem ser lidas a
dinâmica e as limitações do programa concreto. Quando a vinculam a
uma mudança social inevitável, a evolução perde seu caráter dinâmico
para se converter em uma essencialização do progresso. Esse tema, que
percorre várias vezes os escritos do grupo, configura a tensão central
de toda prática de vanguarda.
318
Gonzalo Aguilar avança no “museu imaginário” idealizado por Malraux,
contrapondo-o à perda da aura benjaminiana, para fazer ressaltar como a idéia tradicional
de que as vanguardas só podem existir fora do museu não faz sentido nos anos do pós-
guerra, analisando a mudança na função do próprio museu, em torno do qual gira uma das
questões centrais : a reprodução e a institucionalização das práticas vanguardistas, uma vez
que, através das reproduções em massa das obras de arte, os museus adquirem
interioridade”.
Tentando dar conta do contexto histórico em que os concretistas aparecerem,
o crítico busca a principal orientação do museu: a didática, uma vez que funcionava como
uma “escola”, como vimos no caso da análise de Maria Cecília F. Lourenço. Entretanto, o
crítico dos concretos insiste, no sentido de demonstrar que as atividades do MAM
caracterizavam-no com o gesto de “atualização : resgatar o modernismo de 1922 e,
também, dar conta das correntes internacionais contemporâneas” (AGUILAR, Id. ibid.,
hipótese principal é que as vanguardas questionam o estatuto tradicional da obra de um modo integral e que
esse traço implica modificações na circulação, produção e recepção dos produtos artísticos.” Id. ibid., p. 24.
Para ele, há que considerar as relações contingentes de poder e não tentar unificar, simplificar e isolar um
corpus complexo como o das vanguardas. É a partir dessas relações que se poderia chegar à formação de cada
movimento, em que a categoria de “atualidade” tornou-se fundamental.
318
Id. ibid., p.45, grifos meus.
165
p.58), estabelecendo, portanto, laços de continuidade e de evolução, através de critérios de
mediação do “alto modernismo”, o que levaria também os espectadores, dentro de suas
salas, a experimentarem a transformação das vanguardas e, de certa forma, a interiorizarem
o paradigma modernista. Tal modelo será reforçado, a partir de 1951, pelas Bienais, como
já visto, reiterando o “espaço evolutivo do museu”, apoiado pela “temporalidade das
exibições periódicas” (AGUILAR, Id. ibid., p.59). De outro modo, as práticas de vanguarda
nas Bienais viram arquivo”, culminando, nestas repetições, na atividade de periodizar:
trata-se, a título de exemplo, do famoso paideuma, definido como “elenco de autores cujas
idéias servem para renovar a tradição”
319
(Id. ibid., p.65). Já que é impossível não
periodizar, lembrando mais uma vez Fredric Jameson, o corte adquire novos contornos com
os poetas concretos, que não fogem ao próprio ato, ou seja, realizam um “deslocamento”,
alterando as diretrizes tradicionais pelas quais as vanguardas se orientavam. Este
deslocamento serve, ao final das contas, para “renovar a tradição”:
O paideuma, que age por contraste e diferenciação, recusa a valoração
da tradição literária segundo suas linhas dominantes, representativas
ou estabilizadoras: busca, à maneira modernista, as linhas de evolução,
mas não as encontra na “atmosfera” de um período, nem nos “hábitos”
de uma época, e sim nas margens, no não-representativo, no trauma do
inorgânico e instável (o representativo e estável aparece, em todo caso,
não na tradição e sim no contexto, na cultura visual).
320
Para finalizar esta etapa, Gonzalo Aguilar assinala que o arquivo concretista não se
alimentava do escândalo, mas de uma “crítica sistematizadora”, ou seja, do “rigor teórico”
de que fala Hal Foster em Por uma vanguarda revolucionária, cujo deslocamento vai,
lembrando Sanguinetti, do “manifesto incendiárioao “regulamento burocrático”, ou seja, a
necessidade de se construir também aqui um sistema. Ou seja, o processo de cristalização
do modernismo associa-se à necessidade de sistematizar uma experiência, tornada um saber
transmitível, portanto, pedagógico do ponto de vista das massas.
319
A nota de rodapé de Gonzalo lembra que “em grego, “paideuma” significa ensino, aprendizagem, aquele
que se educou. Na terminologia dos poetas concretos, tomada diretamente da proposta poundiana, significa
aqueles poetas com os quais se pode aprender.” AGUILAR, Id. ibid., p. 65 (nota 31).
166
3.4.2 - A BIBLIOTECA ORDENADA
A visualização do processo de cristalização do modernismo pode ser
encontrado em um dos espaços privilegiados do intelectual enquanto legislador : a
biblioteca. É nele que o intelectual ordena, sistematiza, compila o pensamento de uma ou
de muitas épocas. O acervo deixado por Mário de Andrade é uma clara demonstração do
empenho de um escritor em tentar criar um sistema para a sua “loucura disciplinada”.
Atualmente concentrado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo,
o material lá guardado é revelador desta política cultural do alto modernismo. Gostaria de
me deter, para tanto, no acervo dos periódicos de Mário de Andrade
321
.
Neste espaço do vazio e do mundo todo, mas não de todo o mundo, Mário
encontrou matéria prima para elaborar e aprimorar seu pensamento. Os periódicos de sua
biblioteca sugerem um escritor atualizadíssimo e, ao mesmo tempo, preocupado com
diferentes áreas do conhecimento. Em seu fichário, cabem revistas as mais diversas. No
total, são mais de quatrocentos títulos, das mais distintas áreas e lugares. Do Almanach
alemão (1923) à cubana América (1946), revista da associação de escritores e artistas
americanos; da Antologia (1944)
322
argentina à Vita Musicale Italiana (1925 a 1927); ou
ainda, da Vanguardia (1928) uruguaia ao The Studio (1920-1921) londrino; do Le
Monde Musical (1920-1940) à Iberica germânica (1927), além de muitas outras regionais,
Terra Roxa (1926), Revista Acadêmica (1933-1945), Publicações do Arquivo Nacional,
Panorama paulista (1936), Nossa Revista (1935) recifense, A Novella (dirigida por José
Américo de Almeida – 1922)... Entretanto, chama a atenção no corpus heterogêneo das
revistas uma tendência legislativa e pedagógica, com fortes características desse processo
320
Id. ibid., p.66.
321
Para efeitos de consulta, o sistema, apesar estar à disposição na homepage da instituição, não apresenta, até
a realização desta pesquisa, o número total de revistas e, portanto, não se é possível ter uma noção do
conjunto. Para tanto, vali-me do fichário tradicional do IEB, ainda em pequenos recortes de papel,
enumerados alfabeticamente.
322
Mário guarda o número um desta revista, publicada em novembro de 1944. Nela publicam Carlos
Ibarguren, Ballester Peña, Carlos Astrada, Bruno Jacovella, Leopoldo Marechal, Santiago Montero Díaz. Há
seção de livros, pintura, música e teatro. ANTOLOGIA – Revista mensual de literatura, artes y ciencias.
a.1, n.1, Buenos Aires : Librerías Martín Fierro, noviembre de 1944.
167
de institucionalização, à que a crítica até hoje tem dado pouca atenção. É dessa tendência
que gostaria de tratar um pouco mais.
Mário coleciona periódicos como os Anais do Senado Federal (1935);
Annuario de Estatística do Estado do Pará (1925-1926); boletins os mais diversos, como
Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore (1937-1938), do qual é um dos
fundadores; Boletim da União Panamericana (Whashington-1938-1943); Coopération
Intellectuelle (publicado pelo Instituto Internacional de Cooperação Intelectual da
Sociedade das Nações – 1936); Educando (da Associação de Professores Primários de
Minas Gerais -1944); a emblemática Educational Screen (Chicago – 1934), Film -
Einseignement et vulgarisation par l’image et par le son ( Paris – 1936); Hierarquia
(RJ – 1931-1933); Les Musées Scientifiques (1936) e outras mais relacionadas ao ensino,
como a Leitura para Educadores (do Departamento de Cooperação Intelectual da União
Panamericana); El libro y el pueblo (do Departamento de Bibliotecas da Secretaria de
Educação Pública do México – 1941); Onza, Tigre y Leon (editada pela Direção da
Cultura do Ministério da Educação Nacional – Caracas); Music Educators Journal
Chicago (1941-1944); The Musician – Devoted to the Educational Interests of Music
(New York – 1929); Nuevos Rumbros (Chile – 1926); Pontos de Vista (do Departamento
de Cooperação Intelectual da União Panamericana – Whashington – 1940-1945);
Renovação (Ação Educacional Proletária) – Recife – 1939-1944); Répertoire
Bibliographique des Éditions G. Van Oest (Paris -1930-1931); Revista do Cinema
Educativo (Órgão Oficial da Sociedade do Cine Educativo do Brasil – Rio de Janeiro –
1932); Revista Internacional del Cinema Educativo (Roma – 1933); Revista do Ensino
da Secretaria da Educação e Saúde Pública (Belo Horizonte – 1937); Série sobre
Educação (Seção da Cooperação Intelectual da União Panamericana -1925-1935); Vamos
Ler (Rio de Janeiro – 1936-1944); A vida de SPAM (São Paulo – 1933) e Revista
Nacional de Educação (Rio de Janeiro – 1932-1934).
Creio que esta relação nos revela o forte interesse do escritor paulista a
respeito da tendência marcadamente pedagógica com que desejara conduzir sua vida
privada e pública (desnecessário falar da correspondência de Mário, toda ela eivada de
vigor, mas também de pedagogia – um vigor pedagógico...). A listagem inclui revistas
também voltadas para a questão da América Latina, assunto por que Mário nutria forte
168
interesse
323
. De modo geral, os periódicos marioandradinos funcionam como uma
enciclopédia, de onde o recorte por assuntos, nacionalidades, e a própria questão da série, a
exemplo de A Novela Semanal, periódico que teve como diretor Brenno Ferraz e editado
pela Sociedade Editora Olegário Ribeiro e pelas edições da Revista do Brasil, es
presente.
Tratemos de analisar um pouco da política destas duas revistas, uma vez que
compõem e reforçam uma característica da época: a de vincular intelectuais aos valores
culturais, especialmente nacionais. Segundo os autores de Furacão na Botocúndia,
[Lobato] não abandona o jornalismo. Ao contrário, intensifica seu
trabalho na Revista do Brasil, onde desde o terceiro número vinha
colaborando com contos e artigos, burilados na paz da fazenda.
“Já viste a Revista do Brasil?”, indaga a Rangel. “É o caso de tomares
uma assinatura. Nasceu de boa estirpe, está bem aleitada pelo Estado,
é a única nesse gênero em todo o país – e é nossa”, festeja, animado
com o periódico que surgiria disposto a resgatar os valores da cultura
nacional, até então soterrados pelo europeísmo vigente em quase todas
as esferas.
324
Há um desejo, pelos patrocinadores da revista, de “construir um núcleo de propaganda
nacionalista” (AZEVEDO et al., p.53), que fermentou a cultura intelectual da época,
influenciando um tipo de crítica com que Mário de alguma forma compactuou
325
.
No caso d’A Novela Semanal, seu primeiro número é de 2 de maio de 1921,
sendo que Mário a colecionou até o número quinze. Datada de 6 de agosto do mesmo ano,
era sempre publicada aos sábados, dia significativo para a fatura da própria revista, que se
acenava como espaço de leitura, diversão, passatempo de fim de semana. Contemporânea
de muitas outros periódicos de vanguarda (Klaxon, Contemporânea (Lisboa), Terra
Roxa, Rivista d’arte futurista, La cruz del sur (Montevideo), Commerce, Cahiers
d’Art) A novela revela uma tendência que corre paralela às outras revistas: uma literatura
323
A esse respeito, consultar ANTELO, Raúl. Na ilha de Marapatá (Mário de Andrade lê os hispano-
americanos). São Paulo : HUCITEC; INL, Fundação Pró-Memória, 1986, especialmente “Revistas e
periódicos”, pp.270 a 275.
324
AZEVEDO, Carmen Lucia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato,
furacão na Botocúndia : edição compacta. São Paulo : SENAC São Paulo, 2000, p.53.
325
O primeiro número da revista é de janeiro de 1916.
169
que não se compromete com grandes experimentalismos, mas que deseja investir no gosto
médio do leitor, para quem o corte é feito para “amaciar”, não para chocar.
Nada estranharia que o século conhecido como o do espetáculo e das
disputas inaugura-se não menos com um texto de Monteiro Lobato, intitulado : “O 22 da
“Marajó” ”. O autor de Reinações de Narizinho realiza uma operação em que faz
equivaler a noção de jogo (especialmente de futebol), massa e língua. O primeiro e o
segundo estariam em posição semelhante, porque encenam uma atividade que busca, da
versão “importada”, uma apropriação. Pode-se ler nesta abertura da revista um princípio
desse processo de especularização cujo núcleo já se pode visualizar neste ponto: uma
concepção de crítica e de jogo (veremos outras) que dribla a situação local com uma
incorporação, quase insólita, do anglicismo, quando ainda vigia a profunda influência
francesa.
A crônica de Lobato apresenta estrutura diversa: uma descritiva (reflexiva)
no início e uma outra em que predominam diálogos. O problema é central para o debate
brasileiro, uma vez que trata da questão da “nacionalização” do futebol e, com ele, das
expressões inglesas, portanto, dos costumes que farão parte da vida dos brasileiros:
Esse delírio que por ahi vae pelo futebol tem seus fundamentos na
própria natureza humana. O espectaculo da luta sempre foi o maior
encanto do homem; e o prazer da vitória, pessoal ou do partido, foi, é e
será a ambrosia dos deuses manipulada na terra. (...) Para os gregos,
para a massa popular grega, seria inconcebível a idéia de que o mestre
pudesse um dia offuscar a gloria do lutador.
326
De alguma forma, Lobato, discutindo o espetáculo do jogo, o jogo como espetáculo,
percebe uma diferença de influência crucial para o desenvolvimento posterior das políticas
culturais para o país, e para o continente sul americano, no embate entre influência francesa
e norte-americana. Às vésperas da Semana de 22, discute a questão da ilusão das massas :
na França, com o “mestre em soccos de primeira classe”, George Carpentier:
326
LOBATO, Monteiro. “O 22 da “marajó” ” In A Novella Semanal. n.1, a.1, São Paulo : Soc. Olegário
Ribeiro, 2 de maio de 1921, p.1. Preservo, nas citações, a forma original da escrita, sem atualizações
ortográficas.
170
Se derem nas massas um balanço sincero, verão que elle sobrepuja em
prestigio aos próprios chefes supremos vencedores da guerra.
Nos Estados Unidos há sempre um campeão de boxe tão entranhado na
idolatria do povo, que está em suas mãos subverter o regimen político.
Entre nós há o exemplo recente de Friedenreich, um pé de boa pontaria
pelo qual milhares de creaturas, sobretudo creanças, são capazes de
sacrificar a vida.
(...)
O jogo de futebol teve as honras de despertar o nosso povo do
marasmo de nervos em que vivia. Antes delle só nas classes medias a
luta política tinha prestigio necessário para uma exaltaçãosinha
periódica.
E isso porque de todos os esportes tentados no Brasil só o futebol
conseguiu acclimar-se, como o café. Hoje, alastrado de norte a sul,
transformou-se quase em praga, conseguindo só elle, interessar
vivamente, exaltadamente, delirantemente, ao nosso povo.
327
A questão das massas parece importar sobremaneira a Lobato, pois é ela que parece
realizar, ou ainda processar, de maneira decisiva, as influências sofridas. Somente no
excerto anterior as referências a: “popular/ massas/campeão/idolatria do
povo/subverter/milhares de creaturas/sacrificar/aclimar-se/delirantemente” sugerem a
evocação de questões centrais no debate contemporâneo, advindos, principalmente, com as
mídias atuais e o rompimento/alterações dos desenhos geográficos nacionais,
fundamentalmente lingüísticos. Este ponto é de relevância porque ressalta, por contraste, a
nossa realidade, uma verdade da língua, incorporada pelos modernistas de outra maneira:
Já assistimos um match em certa fazenda. (...) Ao nosso lado um
fazendeiro explicava:
- Aquelle goal-keeper é carreiro; amanhã de madrugada está de pé no
chão puxando lenha. O center-half é madeireiro; está me lavrando
umas perobas na roça velha. Os full-backs são tropeiros e os forwards,
simples puxadores de enxada.
Era assombroso! Estavamos deante da maior revolução de costumes
operada em terras de Santa cruz desde o dia de Cabral. E tudo por arte
e obra de uma simples esphera de couro estufada de ar!...
328
Comparado ao futebol, o narrador menciona nossa capoeira, alcançando um “cultozinho”
entre nós, “nas classes mais baixas”, para, logo em seguida, ser perseguida pela polícia,
327
Id. ibid., pp.1 e 2.
328
Id. ibid., p.2.
171
ferindo uns poucos “tradicionalistas” que viam nela uma das poucas coisas de criação
indígena. A narrativa serve, portanto, para salvar, de forma escrita, o costume do olvido “na
memória dos velhos contemporâneos”. O objetivo, segundo o narrador, é tirar da margem
um belo tema que nossa literatura não percebeu, “victima que é da eterna fascinação
franceza!” (LOBATO, 1921, p.2). Portanto, essa mutação de interesses da França para a
língua inglesa é “pré-sentida” neste momento. E mais como um sintoma da língua do que
propriamente uma política cultural explícita, o que ocorreria alguns anos mais tarde.
O personagem 22 da “Marajó” se constrói a partir desses referenciais.
Apesar de ser imperial marinheiro, bonito, esguio, branco, gozando de plena saúde, era
também capaz de excepcional proeza na capoeira, além de mestre em desordens, um
legítimo “quebra barraco” nas palavras de Lobato. Processa-se, então, uma aparente
reviravolta na vida do rapaz, que se vê obrigado a ir para o Alto-Amazonas, a mando do
governo. Se a mudança de clima “regenerou-o”, logo torna a investir sua energia numa
relação amorosa perigosa, vindo a ser amante da mulher de um “schipchandler”. Com a
morte recente deste, casa-se com a viúva, herda seus quatrocentos contos, e vai à Europa de
núpcias,
(...) onde permaneceu dois annos. Ao cabo, regressou á patria,
elegendo o Rio de Janeiro para residência definitiva.
Mas quanto mudara! Transformado num perfeito gentleman,
embasbacava a rua do Ouvidor com seu apuro de trajes, suas polainas,
suas luvas, sua cartola clara.
- Quem é? Quem é? Ninguém sabia.
- Algum fidalgo, certamente, cochichavam. Não vêem que modos
distinctos?
329
A inveja dos modos refinados do galante senhor, Petrônio era seu nome, provoca, nos
capoeiristas do bairro, o desejo de surrá-lo, levando-os a arquitetarem um plano. Porém, na
segunda vez em que há o confronto, agora com o “Dente de Ouro”, o encontro não poderia
ser mais irônico. Duplamente irônico. Primeiro porque o refinado senhor é reconhecido
pelo antigo amigo de capoeira; segundo, porque Petrônio o suborna: “- Cala o bico
moleque, e toma lá para o cigarro. Mas afasta-te, que hoje sou gente e não ando em más
companhias (...)” (LOBATO, id. ibid., p.3). Diante da impossibilidade de fugir da situação,
172
da condição de brasileiro oriundo da classe média/baixa, a atitude do protagonista nos
revela este dilema do brasileiro/latino-americano: muitas das mudanças que ocorrem são
superficiais. No caso do texto, o impasse se mantém. Apesar das infiltrações da outra língua
(inglesa), da outra cultura no nosso cotidiano através do futebol, é o sotaque da
malandragem que dá o tom: “ -’cês ’tão bestas! Pois aquelle é o 22 da “Marajó”, corpo
fechado para sardinha e pé que nunca malou saque. Estrompar o 22? ’cês ’tão
bestas!...”(LOBATO, 1921, p.3).
Se o predomínio do tom informal parece reger a crônica de Lobato, esta soa
mesclada a uma sorte de formalismo exemplar, como, a propósito, será dominante no
restante da revista. Acompanha este primeiro número uma parábola, “O filho pródigo”, de
Léo Vaz; um conto de Aluízio Azevedo, “O toiro negro”
330
, abordando igualmente a
questão da multidão, através das cenas de uma tourada na cidade de Galissa, não sem tomar
partido do touro e revelar a crueldade humana; “A matta maldicta” - texto de Baptista
Junior que apresenta, na figura de seu protagonista, Rosendo, um dos nomes com que
futuramente Murilo Rubião assinará, bem anonimamente, alguns de seus textos, e “O natal
de Frei Guido” de Magalhães de Azeredo.
Junto à revista segue um “Supplemento”, onde aparecem algumas seções,
também reveladoras das práticas literárias de então: “A vida anecdotica e pittoresca dos
grandes escriptores”, neste número dedicada a Olavo Bilac; “Curiosidades literárias” : aqui
uma “Autobiographia de MONTEIRO LOBATO”; “Os nossos poetas” : “Os sonetos de
ADOLPHO ARAUJO”, acompanhado de uma análise crítica do primeiro deles, “Coração
329
Id. ibid., p.2
330
O texto é datado de Agosto de 1910, Nápoles. As cenas são de uma crueza ao estilo Azevedo. “A praça
esvaziou-se inda uma vez, e o toiro, bem senho della, como para completar a sal victoria, arremeteu contra o
cavallo já ferido de morte, unico sopro de vida que alli respirava. (...) O toiro acommetteu-o de novo,
engolfando-lhe no ventre os cornos por inteiro e revolvendo-lhe as entranhas que arrancou afinal de todo para
fora./ O desviscerado escorjava-se, ululando, num tremor de todo o corpo, e o toiro, a saciar nelle a sua
tremenda colera, só recolhia as armas para as cravar de novo com mais furia. Depois, não conseguindo nella
levantar a victima e arrojá-la, como um despojo vil, por cima da trincheira, se desforrava em mergulhar de
todo a cabeça no arrombado ventre do agonizante, esfocinhando lá dentro na sangrenta lameira dos
intestinos.” AZEVEDO, Aluizio. “O toiro negro” in A Novella Semanal. Op. cit., p.9. Interessa perceber
ainda o final melancólico com que o autor de O cortiço narra esta crônica: “Da boca escorria-lhe sangue,
mugiu soturnamente, e nesse mugido ia toda a lamentação de sua alma simples pelos campos verdes e
amigos, que elle tivera de deixar para vir morrer alli tão cruamente nas mãos de barbaros./ E por fim,
deixando pender a cabeça sobre o flanco do companheiro de sorte, suspirou muito repousadamente como
um ente humano quando adormece.” (grifos meus). Sobre essa relação “intestina” entre touro e sociedade,
consultar El matadero de Esteban Echeverría, como também Espelho da tauromaquia de Michel Leiris,
tradução de Samuel Titan Jr., editado em São Paulo pela Cosac & Naify em 2001.
173
exilado”; finalmente, “LEITURAS”, onde estão as indicações de livros, seguidas de
pequenas resenhas. Ao lado de Dialecto Caipira de Amadeu Amaral, há Negrinha, de
Monteiro Lobato, além de Coiva’ra de Gastão Cruls. Interessa perceber, no uso do nome
(do autor), a condição do texto, o que faz ressaltar a condição do primeiro. Em geral, o
Suplemento indica, na chamada dos nomes, o autor em caixa alta, marcando a presença do
intelectual e menos de seu escrito, tendência que deixará marcas profundas ao longo do
século XX. Na leitura geral dos textos, poderia-se dizer que ainda é o tom melancólico
(quase romântico
331
) que inaugura e marca, de certa maneira, a revista. Desse aspecto,
tratarei um pouco mais adiante.
Além do texto inaugural de Lobato, há que se notar a sua constante presença
no periódico, especialmente em forma de anúncios de suas obras, evidenciando uma
espécie de “política do nome”. Esta política, analisada quase cem anos depois, apresenta a
estrutura de uma “homonímia”, segundo o crítico Jean-Claude Milner, com que o processo
de constituição de cânone poderia ser pensado:
Equívoco y declinación: tales son las necesidades de la matéria con
que se tejen los nombres; o sea, la lengua, sin la cual nada podría
decirse. Por depurada y distintiva que se la quiera, llega siempre un
tiempo en que determinada muesca practicada sobre un redondel
distinto. (..) cada vez que se haya planteado un nombre se evidenciará
que, al tener efecto de verdad, no puede estar constituído sino como un
ponto borromeo: un punto en el que los tres redondeles se sostienen
juntos y se tocan, a menos que se disyunten.
332
Para o pensador francês, esta política do nome está associada a uma visão política mais
ampla. Ou seja, somente se poderia adotar uma visão política do mundo quem,
primeiramente, autoriza-se a usar a palavra “política” (MILNER, 1999, p.80). De onde se
331
A título de exemplo, o número quatro da revista traz, na seção “Os nossos poetas”, um texto intitulado “O
primeiro soneto de BILAC”, que teria sido publicado em 19 de setembro de 1883. O soneto, marcadamente de
estilo romântico, chama-se “Manhã de maio”. Vejamos uma de suas estrofes: “Lá fora a Natureza alegre e
verdejante/ Expande-se ao calor do sol da primavera.../ Gorgeia patativa um canto enebriante/ E como que
sorri, contente, o azul da esphera.”, p.72. Para uma tradição que se acostumou a ler um Bilac demasiadamente
formal, o poema parece reivindicar o direito, não só à multiplicidade de leituras do texto, mas também, ao
mesmo tempo, o direito a variadas abordagens temáticas. A respeito do vínculo do século XX com as poéticas
românticas, consultar BADIOU, Alain. El siglo. Op. cit., pp.192-201.
332
MILNER, Jean-Claude. Los nombres indistintos. Trad. Irene Agoff. Buenos Aires : Manantial, 1999, p.
51.
174
infere que os textos de Lobato, dentro da biblioteca de Mário, se justificam enquanto uma
política (em nome dos interesses nacionais).
Retornando à revista, e a suas políticas, ou ao que Frazer Ward chamou de
“Publicity”, vimos que há Negrinha na seção de resenhas (página 20). Entretanto,
centralizado no meio da página sete, cortando as duas colunas de texto, lemos outra
publicidade: “Monteiro Lobato – A Onda Verde”, com os preços e endereço de pedidos,
feito só repetido com O Dialecto Caipira de Amadeu Amaral (“Da Academia Brasileira”)
à página quinze (ou seja, os dois anúncios preparam o leitor para a resenha ao final da
revista). No caso de Amadeu Amaral, vale lembrar que é o autor da Academia, ou seja, o
intelectual letrado, e consagrado, que fala o texto de Lobato. A editora do primeiro se
chama não menos que “O livro”, e o subtítulo de sua obra deixa clara a influência filológica
“(Phonetica, Lexicologia, Morphologia, Syntaxe, Vocabulário)” sobre a produção da época.
Não passaria igualmente despercebida a capa escolhida para a revista. Trata-
se, em geral, de cenas do cotidiano da vida simples. O primeiro número, cuja estampa é
assinada por um “R”, mostra três mulheres conversando diante de uma bica d’água. Ao
fundo, e ocupando a maior parte do desenho, um muro alto, com portão de grade de ferro,
quase encobre uma casa típica colonial. Se a cena da primeira se passa na rua, o último
número do fascículo apresenta o inverso: o primeiro plano se passa no interior de um
recinto (um paiol?), onde duas mulheres, trajadas à caipira, revezam-se na socagem de
algum grão em um pilão. A senhora da esquerda é acompanhada de um menino, postado
hirtamente ao seu lado e com a mesma expressão séria, juntamente com um cão. A pequena
abertura para o exterior só registra a sombra de um homem, também em atitude de trabalho.
A novidade fica por conta do aumento do desenho, a mudança do ilustrador, J. Prado, bem
como a dedicação da primeira página somente para a capa da revista, o que não acontecia
no primeiro número, quando a ilustração e os créditos vinham na parte superior da página,
ocupando menos de sua metade. Ainda na parte inferior do número quinze, um outro
anúncio ganha espaço, a nova coleção “A Nova Pleiade”, dirigida por Amadeu Amaral
333
.
333
O anúncio é significativo: COLLECÇÃO de pequenos livros de versos a se publicar sob a direcção de
Amadeu Amaral (da Academia Brasileira) é destinada a vulgarizar as obras dos poetas novos de grande
merecimento, ainda pouco conhecidos do publico. / CADA volume, caprichosamente confeccionado,
impresso a duas cores em excellente papel, com artisticos ornatos e solidamente encadernado, será vendido a
2$500./ Na NOVA PLEIADE somente serão publicadas obras de verdadeiro valor./ Iniciaremos a collecção
com o primoroso livro MANHA do poeta paulista Graccho Silveira/ SOCIEDADE EDITORA OLEGARIO
175
Mário colecionou a revista até o número quinze, quando o periódico encerra
a série para formar o primeiro volume. O resumo, ao final deste número, indica o perfil dos
escritores colaboradores e a tendência do periódico. Lobato é figura presente, seja nos
anúncios, como vimos, seja como objeto da crítica (aparece no fascículo n.2, exatamente na
seção “A vida anecdotica e pittoresca dos grandes escriptores”). No terceiro fascículo,
contribui com um texto “A morte do Camicêgo”, além do sugestivo “Visão geral da
literatura brasileira” na seção “Vida literaria”, fascículo doze, aparecendo, no fascículo
quinze, mesma seção, com a notícia da resenha de Urupês na Argentina
334
. Euclides da
Cunha está igualmente muito presente nos números deste periódico, ocupando diferentes
espaços : ora nas curiosidades literárias com sua ida ao Peru, ora como resenhado em “A
vida anecdotica” (aparece três vezes!, apontando para as especulações que sua morte
produzia). Ao lado de Euclides, Lima Barreto figura ainda discretamente com “O homem
que sabia javanez”. Porém a cena ainda é dos clássicos de então, Olavo Bilac, Raul
Pompéia, José Veríssimo, Affonso Arinos e outros menos conhecidos
335
.
O modelo que se estabelece no Brasil em meados da década de 20, e que, de
alguma maneira, serve de fonte de discussão entre o meio intelectual
336
, sofre de múltiplas
influências. Se no caso do Modernismo a regra geral é estar em contato com os movimentos
de vanguarda, mas reter apenas o que convém, com A Novela tem-se o modelo retirado
diretamente da versão argentina, a qual apresenta, em 4 de dezembro de 1922, a edição de
RIBEIRO – Rua Dr. Abranches, 43 – caixa 1172 – S. Paulo”, grifos meus. O contraste que se forma aqui
refere-se a uma reprodução de uma moeda de 400 réis (1919) simulando o carimbo na parte direita do
anúncio.
334
A notícia é dada pela revista argentina Nosotros. Destaca-se na sua apresentação o seguinte fragmento:
“Soube disciplinar sua acção literaria com um pensamento de patriotismo civil e de profissão esthetica,
pensando com razão que a originalidade de alguns sentimentos artisticos está em revelar as bellezas,
mysterios e lendas da propria terra.”. A nota aponta, além do destaque de Lobato nas letras brasileiras, as
possíveis influências desse escritor de um “realismo impressionista”, de “dialogos constructivos”, como Guy
de Maupassant, Paulo Heyse e Christiano [sic] Andersen. “ “Urupês “ na Argentina”. A Novella Semanal.
n.15, a. I, S. Paulo, 6 de agosto de 1921, pp.246 e 246. Este anúncio é precedido por outro, em dois fascículos
anteriores: “Geca Tatú na Argentina”.
335
É de se notar a forte presença da imagem feminina nos temas abordados, apesar de que a crítica feita por
mulheres ocupe espaço restritíssimo, como é o caso de Júlia Lopes de Almeida (“Os vícios delles” e “A cara
do meu visinho”). Em geral, a mulher é aqui objeto de admiração, de crítica e, principalmente, de idealização.
Veja-se o caso de: “A feiticeira” (Inglez de Souza), “Uma Santa Brasileira – Santa Diana” (Lima Campos),
“Clarinha das rendas” (Mario Sette), “Mãe Maria” (Olavo Bilac), “A lavadeira” (José Veríssimo), “A Virgem
das esmeraldas” (Castro Menezes), “Tia Elisa” (Julio Scheibel), “A velhinha” ( Afonso Arinos), “O poder de
D. Domitilla” (Viriato Correia).
336
Basta lembrar os acontecimento de 1917, com o conhecido texto de Monteiro Lobato, a propósito da
exposição de Anita Malfatti em São Paulo, “Paranóia ou mistificação”, que funciona como um divisor de
águas entre os escritores de tendência modernista e os mais resistentes a ela.
176
número de 264. Portanto, a referência da publicação de Lobato na Argentina não é gratuita,
uma vez que já havia um diálogo iniciado com intelectuais vizinhos. Beatriz Sarlo,
analisando o período de circulação periódica na Argentina entre 1917-1927, em El imperio
de los sentimientos
337
, a propósito da constituição de um novo público leitor, bem como da
publicação de La novela semanal, detecta que
(...) el mundo de la librería presenta un desorden que solo puede ser
entendido por la mirada adiestrada capaz de orientarse y elegir en la
acumulación, guiándose por el nombre de autor, por el sello
editorial, por los índices o los prólogos. Por su organización
inaccesible al no entendido, por su escenario que simula el de la
biblioteca (otro ámbito sagrado), a la librería se va para adquirir
fragmentos de una cultura, a condición de que otros fragmentos ya
hayan sido adquiridos antes.
338
De sorte que o acesso das pessoas a uma literatura mais “popular” acena para um tendência
da literatura de massas do século XX, o que, num primeiro momento, entraria em choque
com a literatura modernista brasileira, por exemplo, que exigia, de maneira geral, um leitor
mais “especializado”. La novela semanal, apresentando capas assinadas por Aristides
Rechain, entabula um diálogo com a versão brasileira (ou seu contrário), em desenhos
como os de número 387 (a.VIII, 24 de novembro), “Dinner concert”, em que um homem
saboreia uma salsicha assada, em cenário miserável, enquanto lê o La Nación, observado
por um cão magro e aprisionado; ou ainda em “Suerte negra”, do n.372 (a. VIII, 29 de
dezembro) em que duas crianças negras e magras recolhem-se em torno de uma melancia
partida (apenas uma a come, sendo observada avidamente pela outra, como o cão da capa
anterior). Entretanto, no geral destacam-se imagens que, se cotidianas, são mais estilizadas,
apresentando figuras femininas em “modos distintos”, como diria o narrador de Lobato,
337
SARLO, Beatriz. El imperio de los sentimientos – Narraciones de circulación periódica en la
Argentina (1917-1927). Buenos Aires : Catálogos Editora, 1985.
338
Id. Ibid., p.21. Esses fragmentos de cultura são lidos, por exemplo, a partir do modelo dos “magazines”,
como foi o caso de “Caras y caretas”. Sarlo anota em rodapé que o “sistema misceláneo del magazine
consiste en la yuxtaposición de textos que respondem a retóricas, poéticas y objeticos diferentes. (...) Esta
variedad de textos tiene en común su brevedad y su mera yuxtaposición es pontuada mediante el intercalado
de material gráfico, viñetas, dibujos, fotografias, anúncios.” p.22. De onde leríamos a miscelânea como
princípio antológico por excelência, atendendo a esse novo tipo de leitor. Também a propósito de periódicos
voltados para as “massas”, consultar SAÍTTA, Sylvia. Regueros de tinta – El diario CRÍTICA en la
década de 1920. Buenos Aires : Sudamericana, 1998.
177
acenando para o refinamento das classes médias através da franca influência da Belle
Époque. Segundo a autora de Paisagens imaginadas:
Las librerías de viejo, los repertorios de los coleccionistas, los ficheros
de algunas bibliotecas prueban, con su abundancia que, cuando
hablamos de literatura, realizamos, por lo general en silencio, una
selección en la masa enorme de los textos. Afuera caen las miles de
páginas que la historia, las modas, el gusto y sus instituiciones no han
incorporado a sus sistemas. Sucede, sin embargo, que esos libros,
folletos y revistas crearon uma peculiar densidad del campo literario.
Se trata de la misma atmósfera poblada en la que hoy discutimos con
intensidad una novela que dentro de treinta años pertencerá quizás a
ese depósito enorme y desordenado de las bibliotecas. Si la literatura
pasada puede contemplarse como uma antología de las grandes
obras, es sabido que la literatura presente se parece más a un flujo
donde no se han realizado todavía cortes.
339
A biblioteca, assim como a livraria, organiza e reordena a vida social. Nelas,
o leitor ávido encontra amparo para idealizações, mas também, no caso dos intelectuais,
para elaboração de uma política, como esta pedagogia da biblioteca e a publicação em série
da revista parecem indicar.
3.4.3 - CULTURAS (ENTRE) GUERRAS
Uma outra abordagem dessa política pode ser feita, além das comemorações,
do museu, da biblioteca, da edição de revistas, a partir da correspondência com que Mário
de Andrade manteve com outros escritores e intelectuais de seu tempo. Ela revela o desejo
de marcar o campo do debate intelectual com o atravessamento do conceito de “cultura”,
conceito implicado e implicante. Gostaria de me deter no diálogo que Mário manteve com
Paulo Duarte, durante o final dos anos 30 até o início dos 50, interlocução fundamental para
a percepção do que se passava com grande parte dos intelectuais brasileiros, a fim de
339
SARLO, Beatriz. El imperio de los sentimientos – Narraciones de circulación periódica en la
Argentina (1917-1927). Op. Cit., p.9, grifos meus.
178
pontuar outros aspectos sobre as antologias e sobre essa América Hispânica, ao mesmo
tempo em que procuro vislumbrar o imaginário que se vai desenhando nestas inter-relações.
Ele evidencia, de maneira densa e explícita, a centralidade da figura do escritor/intelectual
no cenário artístico, político e cultural de então.
Em dois movimentos simultâneos, mas não totalmente gratuitos, vimos que
Brasil e Estados Unidos
340
intensificam o debate em torno do conceito de cultura. No
primeiro, um grupo de intelectuais discute a formação de um espaço possível para
congregar as mais diferentes manifestações culturais. No segundo, postula-se a primazia e a
excelência em várias áreas, inclusive a artística. Segundo as posições de Serge Guilbaut,
El nuevo entusiasmo por las artes no sólo satisfacia las necesidades
culturales de la nación, sino también una necesidad política, sin
implicar a las tropas norteamericanas en el campo de batalla.
Norteamérica participaba como defensora de las artes en el esfuerzo de
guerra contra el oscurantismo fascista. Ayudar a los artistas
norteamericanos y contribuir a la victoria de la vida (la creación
artística) sobre la muerte (la barbarie nazi) se consideraba un deber
nacional. (...) Norteamérica necesitaba una identidad cultural, y los
norteamericanos necesitaban encontrar en el arte norteamericano “algo
por lo que luchar”.
341
Esta necessidade de uma “identidade cultural”
342
, aliada à urgência de nacionalidade, dever
patriótico, reflete-se também em outros países, em especial o Brasil. Aqui o projeto
destina-se a São Paulo, porém com os olhos voltados para sua ampliação (América Latina),
ganhando corpo com a criação do Departamento de Cultura da Prefeitura.
340
A propósito, consultar o artigo de Jean-François Lyotard, “L’invasion française dans la critique américaine
des lettres”. In Critique. n.491, Tomo XLIV, avril 1988, pp. 262-279.
341
GUILBAUT, Serge. How New York Stole the Idea of Modern Art. Com a tradução para o espanhol De
cómo Nueva York robó la idea de arte moderno. Trad. María Rosa López González. Madrid : Biblioteca
Mondadori, 1990, grifos meus. A outra estratégia é promover o país – internacionalizá-lo: “Políticamente, los
años comprendidos entre 1941 y 1943 contemplaron cómo los Estados Unidos abandonaban su aislamiento.
Fue un periodo durante el cual, muy gradualmente, Roosevelt implicó a la nación de forma directa en los
asuntos mundiales y superó su tradicional aislamiento. En estos pocos años hubo dos preocupaciones
esenciales, aunque a primera vista puedan parecer contradictorias: el nacionalismo y el internacionalismo.
Había que impulsar el nacionalismo, bajo la forma de patriotismo, com objeto de crear un público
ideológicamente unificado dispuesto a librar una guerra mundial (...) Al mismo tiempo, había que preparar
mentalmente a la nación para asumir el liderazgo que Norteamérica sería llamada a ocupar en todas las áreas
después de la guerra.” (Id. Ibid., p.81).
342
Uma identidade que esteve a serviço de uma idéia de utilidade durante muitos anos e que em muitos
lugares ainda vigora. Para um debate sobre alguns dos efeitos da “civilização cultural” e processo de
179
Paulo Duarte, em Mário de Andrade por ele mesmo
343
, defende a tese de
que a morte de Mário foi ocasionada, ou apressada, pela aceitação de envolver-se
institucionalmente com o Departamento de Cultura, minando as suas forças, até ver seu (e
de um grupo de amigos) projeto “cortado” e sua decorrente demissão. Interessa,
particularmente no livro, através da correspondência trocada entre ambos, ler de que forma
há uma proposta “moderna” para o Brasil e América Latina, além de evidenciar o
intelectual modernista leitor/mentor da antologia (pedagógica):
A ambigüidade do relacionamento entre o ministério e os intelectuais
modernistas se estendia, na realidade, a toda a área de ação cultural do
ministério [da educação], e mais particularmente às formas de ação
orientadas para o grande público, ou seja, o rádio, o cinema e a música.
A dificuldade, aqui, era estabelecer a tênue linha divisória que
separasse a ação cultural, eminentemente educativa e formativa, da
mobilização político-social e da propaganda propriamente dita. Era
uma dificuldade tanto conceitual quanto institucional.
344
A cultura representava, para ambos os países, uma questão (dificuldade) “conceitual” e
“institucional”. E nesta relação em que educação e cultura se vêem entrelaçadas, numa
perspectiva de “internacionalização”, a estratégia deste diálogo deve ser percebida mais de
perto.
Para iniciar este percurso, não passa desapercebido o comentário de Paulo
Duarte, a respeito da trajetória de Mário de Andrade, de que as publicações de contos de
Belazarte, escritos a partir de 1924, tiveram como um dos espaços de aparição uma Revista
denominada América Brasileira
345
, título que não aparece na lista das antologias
mencionadas. Além desta revista, os contos saem também na Revista Nova e no jornal
Diário Nacional, fundado em 1927, em torno do qual reuniam-se colaboradores como
Antonio Carlos Couto de Barros, Sérgio Milliet, Tácito de Almeida, Rubens Borba de
Morais, Paulo Nogueira, Paulo Duarte e o próprio Mário de Andrade, entre outros. Estes
burocratização da arte, consultar BENNETT, Tony. “The multiplication of culture’s utility”. In Critical
Inquiry. n.4, vol.21. Summer, 1995. Op. cit., pp.861-889.
343
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo : HUCITEC, Secretaria da Cultura,
Ciência e Tecnologia, 1977.
344
SCHWARTZMAN, Simon et al. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro : Paz e Terra; São Paulo :
Universidade de São Paulo, 1984, p.86 (Coleção Estudos Brasileiros, v.81).
345
Mário de Andrade por ele mesmo. Op. cit., p.31.
180
nomes nos interessam na medida em que formam o núcleo das pessoas que tocaram o
projeto idealizado por Paulo Duarte e outros intelectuais para a fundação do Departamento
Municipal de Cultura
346
. Este fora idealizado para ter três grandes subdivisões: a Divisão de
Expansão Cultural, cabendo-lhe a direção de Mário de Andrade; a de Documentação
Histórica e Social, dirigida por Sérgio Milliet (então bibliotecário da Faculdade de Direito)
e a Divisão de Bibliotecas, dirigida por Rubens Borba de Morais. O que se presencia neste
momento é, de alguma forma, a institucionalização de um saber e de uma experiência
modernistas que teria conseqüências as mais diversas para o debate nacional.
No caso de Mário de Andrade, esta “institucionalização” não foi tão simples,
uma vez que veio acompanhada de permanentes dúvidas e embates. Porém, o fato de Mário
tentar levar adiante os projetos provara, cada vez mais fortemente, o desejo de fazer vingar
um saber modernista, agora ligado ao Estado. Vários são os seus projetos e realizações.
Vejamos os mais importantes.
Junto a Paulo Duarte, Mário colabora no primeiro relatório das atividades do
Departamento, com fotografias e sugestões para o “futuro”. Realizam viagens para o
interior, cujo fotógrafo e cronista é Paulo Duarte, visitando ruínas e espaços históricos
abandonados. Mário, ainda professor do Conservatório de Música, oferece um curso em
1935 intitulado “Cultura Musical”. Outro, em 1939, “A música e a canção popular no
Brasil”, publicado no ano seguinte pelo Institut de Coopération Intellectuale. Como vimos,
em 1936 Mário redige o ante-projeto do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, tornando-se lei no ano seguinte, sendo Rodrigo Mello Franco de Andrade seu
primeiro diretor.
Ainda em 1937, Mário de Andrade funda, com a colaboração de Dinah
Dreyfus, mulher de Levi-Strauss, uma “Sociedade de Etnologia e Folclore”, da qual se
torna presidente, ano em que publica “O samba rural paulista”. A culminação desse
346
Este Departamento foi aprovado durante o governo de Armando Salles Oliveira e do Prefeito de São Paulo
Fábio Prado, em início de 1935. O Departamento oferecia altos cargos, indicados pelos dirigentes (Chefes de
Divisão e de Seção) e os especializados (ingressados através de Concurso Público). Os cargos burocráticos
eram indicados pelo Partido Constitucionalista ou pelo Prefeito e/ou Governador. O Departamento foi
estruturado em cinco divisões : Expansão Cultural; Bibliotecas; Educação e Recreio; Documentação Histórica
e Social e Turismo e Divertimentos Públicos. Zigmunt Bauman afirma que “La cultura, el producto colectivo
y posesión atesorada de los intelectuales, se veía como la única posibilidad que tenía la humanidad de evitar
los peligros combinados de la anarquía social” In Legisladores e intérpretes, op. cit., p.218.
181
trabalho chega com a organização do inédito Congresso de Língua Nacional Cantada em
julho de 1937, no Teatro Municipal de São Paulo. Segundo Paulo Duarte:
O objetivo era reunir estudiosos da língua nacional, foneticistas, atôres
e autores, cantores, professôres de canto e musicistas, a fim de, bem
estudado o assunto, estabelecerem-se as normas de como se deve
cantar na língua do país. Evidentemente, não pretendia a iniciativa
do Departamento de Cultura fixar desde logo as regras inflexíveis e a
tradição de como deve ser o canto artístico e a dicção em língua
nacional.
347
Aqui já encontramos os dois elementos que fazem parte do projeto de
institucionalização modernista, via “cooptação” do Estado : normatização e cultura, ou
ainda normatização da cultura
348
. Haveria, na verdade, uma dupla cooptação. Esta
primeira, interna, nacional, e uma segunda, externa, “internacional”. Interessa
particularmente a percepção desse movimento, pois ele é revelador de uma estratégia
cultural, que se refletirá nos procedimentos da antologia. Ou seja, a antologia, na sua
política de ‘inclusão” e “exclusão”, trabalha com uma exemplaridade que dota seu gênero
de um caráter “educativo”. Ao reunir excluindo, ela expõe sua fratura. Diríamos que a
guerra cultural nacional e internacional funda-se em um princípio similar ao da
inclusão/exclusão, assemelhando-se ao que Giorgio Agamben denomina de “sacer”, ao
atribuir ao conceito de “povo” este duplo movimento em que via nua (povo) e existência
política (Povo), zoé e bíos, se imbricam (muito semelhante ao tratar do “biombo”, do
“exílio” e do “estado de exceção”):
O “povo” carrega, assim, desde sempre, em si, a fratura biopolítica
fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual
faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está sempre
347
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Op cit., p.34, grifos meus.
348
Régis Debray, abordando o assunto da cultura sobre a educação na França, se pergunta, afirmando : “mas
não é verdade que a nova economia catódica dos signos de Estado implicava a primazia do vivenciado sobre
o concebido, do atual sobre o antigo, ou do consumidor de imagens sobre o decifrador de textos? A passagem
da fase Malraux (1958-1969) para a fase Lang (1981-1993) de nossa cultura de Estado não levou
simplesmente a substituir o romantismo pelo modernismo, uma certa mística superficial da “missão” pela
língua cifrada da “objetiva”. Acabou substituindo a pilotagem pelo ícone –característica da mitologia da arte –
pela pilotagem pelo índice – característica das mitologias da cultura.” In O estado sedutor – as revoluções
midiológicas do poder. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Vozes : Petrópolis, 1994, p.99. Em nosso
caso, não haveria este desejo premente de estabelecer “índices” pela institucionalização da cultura, ordenando
o arquivo nacional, aqui representado pela “língua cantada”?
182
incluído. Daí as contradições e as aporias às quais ele dá lugar toda vez
que é evocado e posto em jogo na cena política.
349
Diferentemente, neste período assistimos a uma disputa por um espaço
fundamentalmente corporativo (a do patrimônio) e um conceito de cultura que vai oscilar
entre as propostas ainda dicotômicas, em que certa vertente modernista quis fazer vingar.
Tal perspectiva não acontece sem “respaldo”. Este aspecto será analisado mais à frente. Por
ora, quero destacar outros projetos de Mário no Departamento de Cultura de São Paulo.
Contrariamente ao que Sérgio Miceli afirma a seu respeito, de que
Sendo autodidata, Mário teve que fazer investimentos intelectuais de
tal monta que acabou cobrindo quase todos os domínios literários,
artísticos e científicos da época (da literatura às belas-artes e à música,
do folclore à etnografia e à história), ao preço de permanecer solteiro
e misógino toda sua vida, em companhia da mãe, da madrinha, da
irmã mais moça e da preta Sebastiana que trabalhava para a família.
350
parece-me que a sua opção não foi fazer cultura a preço de sua solteirice, mas quem sabe
evidenciar esta condição “celibatária” da arte. Em todo o caso, Mário envolve-se em várias
áreas, publicando numerosos trabalhos sobre folclore, artes plásticas, música, destacando
essa “evasão” do campo literário, ao contrário de Oswald, na mesma época
351
.
349
In AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit., p. 184. Um outro italiano, o “maldito” Pasolini, em janeiro
de 1975 escreve um artigo intitulado “Pasolini replica sull’aborto”, texto que depois reunido em livro com o
subtítulo de “Antologia de ensaios corsários”, apresenta o conceito “Sacer”, discutindo a condição do
intelectual excluído, acusado de ser “católico”. Afirma o crítico: “Em todos os italianos existem alguns traços
fascistas e católicos. Mas chamarmo-nos reciprocamente de fascistas ou de católicos – privilegiando aqueles
traços, freqüentemente irrelevantes – se tornaria um jogo desagradável e obsessivo.”, para explorar, citando
Himmler, a vida “indigna de ser vivida”, ou seja, sua condição/opção sexual e realizar um estudo da
sociedade consumista: “É dessa experiência existencial, direta, concreta, dramática, corpórea, que nascem em
conclusão todos os meus discursos ideológicos. Enquanto transformação (por ora degradação) antropológica
das “pessoas”, o consumismo é para mim uma tragédia, que se manifesta como desilusão, ira, taedium vitae,
preguiça e, finalmente, como revolta idealista, como recusa do status quo. Não vejo como é que um amigo
pode zombar de tudo isso.” Ao defender o aborto, dá sua definição de sacer: “Está em jogo aqui a vida
humana. E não digo isso porque a vida humana é sagrada. Já o foi – e sua sacralidade foi sinceramente sentida
no mundo antropológico da pobreza, porque cada nascimento era uma garantia da continuidade do homem.
Agora ela não é mais sagrada, a não ser no sentido de “maldita” (sacer tem esses dois sentidos), porque cada
nascimento constitui uma ameaça à sobrevivência da humanidade. Portanto, ao dizer que “está em jogo a vida
humana”, falo desta vida humana – esta vida humana particular, concreta – que neste momento se encontra
dentro do ventre desta mãe.” In PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes – antologia de ensaios
corsários. Trad. Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso. São Paulo : Editora Brasiliense, 1990, pp.186-191.
350
MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo, Rio de Janeiro : Difel,
1979, p.25, grifos meus.
351
Id. Ibid., nota “30”, p.25.
183
3.4.3.1 - INTEGRAR, EDUCAR, EXPANDIR
A intenção dos integrantes do Departamento de Cultura era a de expandir a
experiência de São Paulo para os principais estados do país. Dessa forma, os projetos eram
norteados por uma concepção de cultura e folclore que os atravessa permanentemente,
passíveis de serem “recolhidos”, arquivados
352
. Foi assim com a idealização dos parques
infantis, em que deveria haver nas suas festas representação de canções populares; a
biblioteca circulante, a biblioteca infantil e uma biblioteca ambulante de automóvel; a
proposta de restauração de documentos antigos; a seção de iconografia; a criação da
Biblioteca Musical e a Discoteca, bem como o início do laboratório de fonética,
coordenados por Oneida Alvarenga. O espírito de “capitalização” cultural reflete-se
também em uma das atividades do Laboratório de Fonética, propondo gravações das mais
diferentes regiões do Brasil, em duas versões: uma forma culta, normalmente gravada por
alguma eminente personalidade literária, e uma forma inculta. Este caráter patrimonialista
evidencia-se também com a solicitação de “doações” aos municípios, estados e governo
federal para a constituição e manutenção do idealizado Instituto Brasileiro de Cultura, além
de renda de “dez por cento da arrecadação em favor da manutenção e desenvolvimento dos
sistemas educativos
353
.
Outras atividades de Mário convergiam para uma concepção de dinamização
dos elementos nacionais, ao mesmo tempo em que sofria de certo “engessamento” pelo
próprio andamento das instituições burocráticas. O melhor, neste sentido, já havia sido
apresentado com Macunaíma, no qual, em um de seus prefácios inéditos, menciona a
352
Serge Guilbaut comenta a ação comunista nos Estados Unidos na década de 1930, através da Frente
Nacional : “De especial interés para nuestros propósitos fue la rehabilitación que el Frente Nacional hizo de
la noción de cultura defendida por los burgueses contra anteriores ataques comunistas. El valor de la cultura
fue reafirmado por el partido comunista, que vio una oportunidad de reforzar su implantación en ciertas
organizaciones políticas nacionales al mismo tiempo que incrementaba la unidad de las masas.” In De
cómo Nueva York robó la idea de arte moderno. Op. cit., p.31, grifos meus.
353
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Op. cit., p.61 e 62, grifos meus.
184
questão da antologia
354
. Assim, o início da era Vargas, em 1937, tolhe muitos dos projetos,
levando Mário a ocupar outras funções no Rio de Janeiro, sob os cuidados do Ministro da
Educação, Gustavo Capanema. À época, organizando o Congresso da Língua Nacional
Cantada (pelo Departamento de Cultura), escreve a Rodrigo M. F. de Andrade:
E há o problema geral de S. Paulo. Você entenderá comigo que não é
possível entre nós descobrir maravilhas espantosas, do valor das
mineiras, baianas, pernambucanas e paraibanas em principal. A
orientação paulista tem de se adaptar ao meio: primando a
preocupação histórica à estética. Recensear e futuramente tombar
o pouco que nos resta seiscentista e setecentista, os monumentos
onde se passaram grandes fatos históricos. Sob o ponto de vista
estético, mais que a beleza propriamente (esta quase não existe)
tombar os problemas, as soluções arquitetônicas mais
características ou originais. Acha bom assim?
355
Ao lado das aulas de Estética na Universidade do Distrito Federal, também chefia a seção
do Instituto do Livro, em 1939, chegando a elaborar um anteprojeto da Enciclopédia
Brasileira. Este projeto vale por toda uma percepção de mundo, em que o crítico utiliza
seus conhecimentos para transformá-lo em uma obra de referência no Brasil, concomitante
a outro trabalho monumental que se tornava referência em muitos países: trata-se da
Enciclopédia Italiana, projeto de Benito Mussolini. No verbete “Enciclopedia”,
encontramos uma lista de países e suas respectivas enciclopédias e/ou obras de referência.
Do Brasil, é citada a Enciclopédia e dicionário internacinal, volume 20, publicado em
Lisboa (1919), enquanto de Portugal é mencionada A Grande enciclopédia portuguesa e
brasileira, de 1935, com 14 volumes. A enciclopédia italiana tem seu primeiro tomo, que
354
O Prefácio data 19 de dezembro de 1926. Nele, Mário procura esmiuçar alguns dos critérios de que se
utilizou para a elaboração do livro, em especial para a problemática do “caracter” (e) do “brasileiro”,
reconhecendo que “(O brasileiro não tem caracter porquê não possui nem civilização propria nem consciencia
tradicional. Os francêses têm caracter e assim os Jarubas e os mexicanos. Seja porquê civilização própria,
perigo iminente ou consciencia de seculos tenha auxiliado, o certo é que êsses uns têm caracter. Brasileiro
(não).” Reivindica, desta forma, uma arte livre dos moralismos tradicionais (debate a noção de pornografia
em alguns povos e seu caráter “etnico”), para, livrando o livro de alguns possíveis mal-entendidos, afirmar
Não sei se sou brasileiro”. Esta afirmação vem após a datação do primeiro prefácio e nela aparece o
comentário: “(Este livro afinal não pâssa
[?]
duma antologia do folclore brasileiro)”. In ANDRADE, Mário.
Macunaíma – o herói sem nenhum caráter. Ed. Crítica - Telê Porto Ancona Lopez (Coord.). Paris :
Association Archives de la Littérature Latino-américaine, des Caraïbes ef Africaine du XXe siècle; Brasília,
DF: CNPq, 1988. (Coleção arquivos, v.6), p. 349 a 359. Vale a leitura do prefácio, pois nele há todo o
trabalho de rasuras que evidenciam a escritura mais do que a apagam.
185
vai de 1928 a 1939, com interrupções nas publicações, como as de 1943 a 1947, data em
que as atividades voltam a sua normalidade
356
. No seu volume XIV, o verbete
“FASCISMO” ocupa 39 páginas cheias. Um verdadeiro livro, em forma de doutrina
357
.
Mário de Andrade não desconhecia o antecedente da Enciclopédia Italiana.
Não se pode esquecer, aliás, que a experiência de Mário com o Departamento de Cultura
tinha como um dos seus objetivos a criação de um “Instituto Brasileiro de Cultura”,
apoiado no modelo paulista
358
, e uma obra como a Enciclopédia representava um dos
ápices de uma cultura letrada e normativa, como as afirmações em “Economia e Cultura” :
As enciclopédias, em qualquer terra e tempo, são fecundos
instrumentos de cultura. Mas à medida que o conhecimento humano
mais se enriquece, obrigando a especializações cada vez mais
limitadas, o valor de cultura das enciclopédias ainda mais se eleva.
Para o Brasil a necessidade de uma enciclopédia se torna cada vez
mais premente, tanto mais que dentre as grandes línguas vivas, talvez
seja o vernáculo a única ainda não dotada de uma enciclopédia
excelente. As tentativas já feitas ou se deixaram dominar por um
espírito comercial muito ambicioso ou claudicam muito como utilidade
cultural.
359
A Enciclopédia explicita, talvez mais do que os outros trabalhos, este caráter
de “recorte” com que a antologia também lida. O escritor de Losango Cáqui revela, a cada
355
ANDRADE, Mário. Carta de 23 de maio de 1937 In Mário de Andrade: cartas de trabalho –
correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945). Op. Cit., p. 69, grifos meus.
356
Na seção “Idee Fondamentali”, encontramos: “La nazione come stato è uma realtà etica che esiste e vive in
quanto si sviluppa. Il suo arresto è la sua morte. Perciò lo stato non solo è autorità che governa e dà forma di
legge e valore di vita spirituale alle volontà individuali, ma è anche potenza che fa valere la sua volontà
all’esterno, facendola riconoscere e rispettare, ossia dimostrandone col fatto l’universalità in tutte le
determinazioni necessarie del suo svolgimento. È perciò organizzazione ed espansione, almeno virtuale. Così
può adeguarsi alla natura dell’umana volontà, che nel suo sviluppo non conosce barriere, e che si realizza
provando la propria infinità.
Lo stato fascista, forma più alta e potente della personalità, è forza, ma spirituale. La quale riassume
tutte le forme della vita morale e intelletuale dell’uomo. Non si può quindi limitare a semplici funzioni di
ordine e tutela, como voleva il liberalismo. Non è um semplice meccanismo che limiti la sfera delle presunte
libertà individuali. È forma e norma interiore, e disciplina di tutta la persona; penetra la volontà come
l’intelligenza. Il suo principio, ispirazione centrale dell’umana personalità vivente nella comunità civile,
scende nel profondo e si annida nel cuore dell’uomo d’azione come del pensattore, dell’artista come dello
scienziato: anima dell’anima. (...) La sua insegna perciò è il fascio littorio, simbolo dell’unità, della forza e
della giustizia.” In: Enciclopedia Italiana di scienze, lettere ed arti – 1938-1948. Roma : Istituto della
Enciclopedia Italiana, 1948, p. 853.
357
Id. Ibid., 1951, p.848, vol.XIV.
358
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Op. cit., p.53.
186
passo da proposta, a preocupação com os diferentes aspectos de sua empreitada, inclusive
com as fotografias que poderão acompanhar uma possível edição da obra. Não sem acaso,
as fotos são cuidadosamente escolhidas, indicando igualmente as intenções de seu
idealizador. A apresentação inicia-se com uma foto da “Flora amazônica: folhas da Vitória
Régia”
360
, “Templo japonês no Triângulo Mineiro”, um “Cetro imperial”, “Macumba no
Rio de Janeiro”, “Frevo no Carnaval de Recife”, “Febre amarela: injeção em rato para a
vacina”, “Anjo do Aleijadinho”, “Mobiliário de estilo”, ‘Flora do Nordeste” [um
mandacaru com a figura de um nordestino], “Aerofotogrametria – Detalhe do Rio S.
Francisco”
361
. Outra seqüência chama a atenção por evidenciar o ‘empalhamento’ da
cultura nacional: “Cabeça preparada pelos índios (Museu Nacional)”, “Cabeça de Rui
Barbosa (Máscara mortuária)”, “Cemitério. Ossuário antigo em Minas Gerais”, “Fóssil –
Reconstituição no Museu Nacional”. Há apenas uma “Pintura mural : Garimpo
(Portinari)”, uma paisagem, “Forças naturais : Cachoeira”, algumas fotos de trabalho
colonial: um chafariz, uma casa em Sabará, mas também a “Coroa Imperial (Brasil)”,
finalizando com três fotogramas retratando o Exército Brasileiro e suas respectivas fardas,
sendo que a última dá destaque para o traje dos “Dragões da Independência”.
O que a Enciclopédia evidencia é seu peso na/da cultura nacional. Os
fotogramas já o dizem. A fala de Mário o confirma:
359
ANDRADE, Mário. A enciclopédia brasileira. São Paulo : Edusp, 1993. Coleção Memória Brasileira, 16,
p.4.
360
Uma das primeiras manifestações artísticas do autor de A visão do paraíso será a composição de uma
música intitulada precisamente “A vitória-régia”, em 1911, segundo informações contidas no documentário
Raízes do Brasil, de Nelson Pereira do Santos, Brasil, 2003 (Roteiro de Miucha e Nelson; imagens Reynaldo
Zangrandi; pesquisa Antônio Venâncio; idéia original Ana de Hollanda. Duração: 2h32).
361
Na década de 1920 torna-se popular a divulgação de fotos desse gênero, em especial com recorte urbano,
como as que a Revista da Semana publica em 19 de abril de 1926 sobre áreas do Rio de Janeiro. Lê-se
abaixo do nome do periódico: “A decana das revistas nacionais – Premiada com medalha de ouro na
Exposição de Tourin de 1911./ Propriedade da Cia. Editora Americana/ Praça Olavo Bilac 12 e 14 – Rua
Buenos Aires, 109 – Rio de Janeiro./ Diretor – Aureliano Machado. Agente de França : Davignon, Boudet @
Cie./ Agente dos Estados Unidos da América – SS. Koppe & Co. Inc. – times Building, New York – Rio de
Janeiro – 17 de abril de 1926 – n.17 – ano XXVII.” (A Revista da Semana consultada faz parte do acervo da
Biblioteca Pública de Curitiba). Todo um cenário e implicações podem ser lidos neste “aposto” da Revista.
Na mesma década, uma fotografia de Man Ray e Marcel Duchamp revelam certas similariedades com a foto
aérea. Trata-se de “Elevage de poussière”, recentemente exposta no Museu Oscar Niemeyer / Instituto Tomie
Ohtake – Curitiba – Paraná (agosto/2004), cuja exposição intitula-se “Sonhando de olhos abertos”.
A foto/arte de Man Ray e Duchamp (e menos a Revista) capta um olhar “ultra-moderno”, não mais a partir da
mimese, da representação do objeto retratado, mas a partir da concepção de que a distância é constitutiva do
objeto. Tal noção marcará a percepção contemporânea, uma vez que o “visto” é entendido enquanto atividade
em que o sujeito (e o objeto) é olhado, construído, a partir dela (e por ela). Maximizar a distância para “ver”
melhor poderia ser a regra geral.
187
O problema do peso nacional a dar-se à Enciclopédia Brasileira,
embora não seja de grande complexidade, é por certo dos mais
importantes.
Não parece legítimo, na situação presente do país, ter-se a ambição de
criar uma enciclopédia brasileira da importância cultural universal das
grandes enciclopédias existentes nos países mais favorecidos por uma
cultura mais tradicional. Há, porém, um lado por onde a Enciclopédia
Brasileira pode adquirir uma validade incomparável: é quanto ao que
ela contiver de conhecimentos a respeito da coisa brasileira.
362
A proposta é dar “peso nacional” às questões em evidência. No caso das comparações com
outras referências, principalmente estrangeiras, Mário quer priorizar aspectos da cultural
brasileira, dando acessibilidade e uma certa “imediatez” da informação ao leitor, uma vez
que o leitor brasileiro lhe figura impaciente, meio preguiçoso, dispersivo (p.51), daí
advindo a necessidade de criar no volume de “Índice um “valor prático” (note-se a
oposição à concepção benjaminiana). O acento no índice deve-se ao que o escritor antevê
na proposta como algo “educativo”: “Mas o Índice tem um defeito, de ordem psicológica,
nada desprezível numa enciclopédia como a que se arquiteta neste estudo, de função
educativa também para indivíduos de mediana cultura. O Índice fatiga, dispersa a atenção e
dificulta a procura.”(p.49). Segundo ele, o índice aponta indiferentemente todas as palavras
da enciclopédia, o que representa tempo de procura para o leitor sempre apressado. O que
Mário discute é precisamente o critério de seleção da antologia : o que incluir? Através da
palavra “libido”, exercita seu raciocínio, preocupado com a questão de como sair de uma
procura exaustiva: “Minha larga prática de ensino extra-escolar me autoriza a garantir que
esta aparente pequenez psicológica é um óbice muito sério” (p.51). Conclui com a
362
A enciclopédia brasileira. Op. cit., p.26, grifos meus. Se ela não se valida por um critério de
“universalidade”, destacaria-se por seu tom próprio, sua especificidade, como se Mário recortasse do cenário
a “coisa brasileira”. Apesar de ser pensada como uma articulação coerente da cultura nacional enquanto
patrimônio, o projeto da enciclopédia marioandradina assemelha-se, em certo sentido, ao projeto das
Passagens de Walter Benjamin. Boa parte da diferença fica por conta de que este último pensa sua
“enciclopédia” como compêndio anacrônico e fragmentário, com que o fichamento base para sua elaboração o
demonstra. Entretanto, poderia-se dizer que, para Benjamin, as passagens se dariam não por acumulação de
capital cultural, mas exatamente por seu oposto, ou seja, por sua tentativa de desestabilizar a concepção
capitalista da obra de arte e, portanto, da cultura, como exemplifica a figura do colecionador : “O interior é o
asilo onde se refugia a arte. O colecionador se torna o verdadeiro ocupante do interior. Seu ofício é a
idealização dos objetos. A ele cabe esta tarefa de Sísifo de retirar das coisas, já que as possui, seu caráter de
mercadoria. Mas não poderia lhes conferir senão o valor que têm para o amador, em vez do seu valor de uso.”
“C. Luís Filipe ou o intérieur” In Passagens. Op. Cit., p.59.
188
necessidade de uma permanente atualização da obra, bem como o estabelecimento de
algumas determinações, em que se destaca a concepção de um sistema de “reenvio”, pondo
as palavras em relação, em correspondência, hoje tão comum nos meios de comunicação
virtual, mas extraordinário para a época. Poderíamos ler nesta afirmação a tentativa
alarmada do escritor cooptado explicitando seus juízos. Em nome de sua liberdade, o que
ainda o autoriza é uma “prática de ensino extra-escolar”. Zygmunt Bauman aponta para esta
estreita relação que o papel do intelectual modernista acaba assumindo em relação à ação
pedagógica:
La educación se había convertido entonces en un componente
inerradicable del poder. Los poseedores de éste debían saber ahora qué
era el bien común (de la humanidad, de toda la sociedad o del sector
confiado a su gobierno) y qué patrón de la conducta humana mejor se
adaptaba a él. Debían saber cómo inducir esa conducta y cómo
asegurar su permanencia. (...) El poder necesita el conocimiento; el
conocimiento presta legitimidad y eficiencia (no necesariamente
desconectadas) al poder. La posesión de conocimiento es poder.
363
À medida que o escritor modernista intensifica o diálogo com projetos
culturais de vulto nacional, outro movimento também ocorre: o dos intercâmbios
estrangeiros. Ele é importante para este trabalho na medida em que evidencia as relações
entre artistas brasileiros e de outros países, mas agora apoiados, de certa forma, por esta
“institucionalização” dos saberes, capital para a compreensão de uma forma de pensamento
em relação aos intelectuais latino-americanos e decisiva para o recorte antológico.
Em relação aos projetos do Departamento de Cultura de São Paulo, um dos
trabalhos que ganhou destaque internacional foi o levantamento demográfico da capital,
feito de quarteirão em quarteirão, coordenado por Sérgio Milliet e que teve sua
apresentação na Exposição de Paris em 1937, durante o “Congresso de População”. A
repercussão foi enorme e logo Paris e Praga solicitam ao Brasil informações sobre o
funcionamento do Departamento, criando em seus países um semelhante. Paulo Duarte
comenta, entusiasmado, tais repercussões:
363
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes. Op. cit., p. 74.
189
As realizações de São Paulo não tiveram eco sòmente nestas duas
cidades. Outras acorreram solicitando dados e informações, desejosas
de imitar São Paulo na iniciativa considerada verdadeira trouvaille por
outros centros cultos do mundo. Assim se pronunciaram as cidades de
Haia, Nova York, Buenos Aires, sem contar personalidades de renome
universal como, Mauss, o grande discípulo de Durkheim, Rivet, dentre
os maiores antropologistas vivos, André Siegfried, um dos grandes
sociólogos europeus. Um professor norte-americano [Paul Yanasdem
Shaw], referindo-se à Universidade e ao Departamento de Cultura,
chegou a escrever alí por volta de 1936, que ‘se fôsse brasileiro, seria
brasileiro de verdade, porque essas duas instituições justificariam a sua
brasilidade’. E, no entanto, o Departamento de Cultura era apenas um
início.
364
Os estudos antropológios e literários tiveram nestes nomes citados grande valor, como fiz
notar nos estudos já citados, contribuindo decisivamente para o debate instaurado no século
XX. Basta lembrar que Marcel Mauss, com sua teoria etnográfica sobre o dom, gerará, por
assim dizer, seu contra-dom na leitura que alguns anos mais tarde Jacques Derrida o fará.
Não sem razão, este partirá de uma “carta”, dedicatória, para sondar o percurso tautológio
dessa entrega e desse percurso, o da moeda falsa, até reconhecer na força dessa literatura
baudelairiana o valor do “pode ser”. Propondo anular a oposição entre natureza e
instituição, physis e thesis, physis e nomos, crê poder sair de um impasse dicotômico entre
natureza e cultura, concluindo que
No hay naturaleza, sólo efectos de naturaleza: desnaturalización o
naturalización. La naturaleza, la significación de naturaleza, se vuelve
a constituir, después, a partir de un simulacro (por ejemplo, la
literatura) cuya causa nosotros creemos que ella es. Porque la
naturaleza que el narrador [de A falsa moeda] representa aquí y cuyas
cuentas, por consiguiente, detalla y relata también, es una naturaleza
que no da tanto como presta. Que presta más que da. Concede crédito.
365
A esta idéia de “efeitos da natureza” lê-se também outro pensamento, decisivo para Roland
Barthes, a de que não há o “real” na literatura, mas apenas “efeitos de real”. Sua análise
parte dos trabalhos de um outro antropólogo, von Frisch, para entender o processo
364
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Op. cit., p.60.
365
DERRIDA, Jacques. Dar (el) tiempo. I. La moneda falsa. Trad. de Cristina de Peretti. Barcelona, Buenos
Aires, México : Ediciones Paidós, 1995, p. 164, grifos meus.
190
descritivo, debatendo o papel da “representação” em nossa tradição ocidental e apontando
para sua desintegração “- que parece ser a grande causa da modernidade – (...) se trata, ao
contrário, hoje, de esvaziar o signo e afastar infinitamente o seu objeto até colocar em
causa, de maneira radical, a estética secular da ‘representação’ ”
366
.
Paul Rivet, etnólogo francês, tornou-se famoso por seus estudos em torno da
questão da origem do homem americano, cujo livro Les origines del’homme américain
tem sua primeira publicação em 1943. Dedica-o a dois amigos, Lucien Lévy-Bruhl e
Marcel Mauss, que também presidiram o Instituto de Etnologia da Universidade de Paris,
fundado em 1925. Desempenhou papel decisivo nas culturas entre Europa, Ásia e América
Latina. Sua influência será estudada mais adiante, mas gostaria de destacar um fragmento
do prefácio de seu livro:
¿No fue acaso en Francia donde el Nuevo Mundo recibió su nombre y
donde se fundó el CONGRESO INTERNACIONAL DE
AMERICANISTAS y Nancy el lugar donde se celebraron sus primeras
sesiones en 1875? No tenemos un Museo de Etnografía, el Museo del
Hombre, que, gracias a nuestros exploradores, posee una de las más
valiosas colecciones americanas del mundo; y no es París sede de la
más antigua y más viva Sociedad de Americanistas de Europa y de
América?
367
Quanto a André Siegfried, um texto de Mário de Andrade de 1934 comenta
o livro recém-lançado do francês, intitulado, precisamente, Amérique Latine (Paris : Ed.
Colin, 1934). Siegfried abre o livro perguntando-se em que medida há uma América Latina,
pergunta que toma como ponto de partida a comparação com a expressão “North America”,
buscando, assim como Lehman Nischte, um possível traço comum entre México, Cuba,
Venezuela, Panamá, Peru, Chile, Argentina, Uruguai, Brasil...
368
. Mário critica a maneira
simplista com que Siegfried analisa as complexas relações culturais em nossa América, não
366
BARTHES, Roland. “O efeito de real” In O rumor da língua. Trad. de Mario Laranjeira. São Paulo :
Brasiliense, 1988, p. 158 a 165.
367
RIVET, Paul. Los orígenes del hombre americano. Trad. de José Recasens e Carlos Villegas. 2ª
reimpresión. Mexico, Chile : Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 10 (Colección Popular, n.20). Paul Rivet
concede um peso às instituições franceses na legitimação de seu trabalho que vale notar, bem como o papel
que a França se assume perante o mundo e, mais diretamente, diante dos latino-americanos.
368
“j’en ai rapporté l’impression que tous ces pays offrent des traits communs qui permettent de les grouper
dans une atmosphère Amérique latine commune, et c’est la justification du titre de cette étude.”. Utilizei a
191
distinguindo as três Sulamericanas, “indiática, branca e afronegra”, atendendo apenas à
noção de “América Latina”, que não corresponde, para o autor de O banquete, a nenhuma
identidade sulamericana, tornando-se ácido inclusive em relação às influências entre as
culturas:
A Sulamérica tem realmente muito de primitiva, de selvagem. Mas
nada existe mais complicado que esse primitivismo. Nada existe de
mais caótico e insolúvel que o primitivo. As civilizações trocam-se
influências sem desaparecer. A troca histórica de influência entre
Inglaterra e França, França e Alemanha, também se processou entre as
civilizações incaica, ibérica e até conguesa. Mas o ameríndio
primitivíssimo, complicadíssimo e caótico, não influenciou
propriamente: desapareceu amalgamado. Não somos nós os simples, e
muito menos os simplistas. É antes a França que nos parece clara,
simples, redutível a fórmulas, que nem visão antediluviana. Muito
antiga. O mal de que sofrerá um André Siegfried, é que ele fala que
nem fantasma, ressurgindo duma civilização que já passou...
369
publicação de 1944. SIEGFRIED, André. L’Amérique Latine. Buenos Aires : Editions du Trident, 1944,
pp.9 e 10 (Collection “Documents”, Vol.3).
369
ANDRADE, Mário. “Amerique Latine” in Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, a.4, n.1, outubro de 1934 In
ANTELO, Raúl. Na ilha de marapatá – Mário de Andrade lê os hispano-americanos, Op, cit., pp. 191 a
193. Mário adianta-se a Paul Rivet, afirmando que, na verdade, não há uma civilização a ser “descoberta”,
mas um descompasso temporal entre povos, o que demonstra que não haveria centro e periferia para uma
noção (construção) de uma modernidade para o século XX. Mário inverte a lógica “européia”, devolvendo-lhe
o aspecto assombroso com que nos colonizou, ao mesmo tempo em que procura nos descolar da imagem já
vinculada dos países sulamericanos ao standard dos americanos do norte. É significativo também o fato de
que percebe que a “síntese” é insuficiente e já não serve como modelo, sinalizando na “análise” a possível
saída de povos que são/estão (em) processo, e não são o produto utilitarista como muitos já o desejam. Esse
debate não distoa das concepções expressas pelo Conde Herman Keyserling, como vimos.
O texto integral de Mário é o seguinte: “Talvez haja uma receita de fazer livros prudenciais sobre paisagens
alheias à nossa vida pessoal, e me parece que este livro de André Siegfried (Amérique Latine, ed. Colin, Paris,
1934) não escapa muito dessa receita. Esta se resume em viajar realmente pelo... assunto do livro, escutar
muito e tomar muitas notas. Não será preciso olhar muito nem se esforçar por sentir e compreender muito,
mas escutar demais e tomar notas por demais. Em seguida sintetiza-se o muito escutado, somam-se as notas
numa estatística geral, um bocado simplista, que não só despreza as variantes, mas, pela necessidade de
generalização, não penetra jamais a profundeza. Macaqueando no entanto a profundeza por ser esquemática e
por isso um tanto mística, um tanto cabalística... Pronto isso, a gente esfrega as mãos, e se quiser pronunciará
o “heureaux qui, comme Ulysse”...
Não pretendo minimamente diminuir quem escreveu o Tableaux des Partis en France. Nem ignoro que para
certos americanos que vivem só de leitura extra-americana, o Amérique Latine terá a sua utilidade grave,
pelas verdades que encerra. Porém essas verdades são simples reedições de coisas já muito afirmadas por
homens de nossa América. Houve certamente na maneira com que André Siegfried procurou nos ver e , sim,
nos amar, uma dose vasta de boa-vontade, e de gratidão para com os que contaram para ele coisa muita e o
hospedaram de braços abertos. Houve mesmo entusiasmo, creio, sangrando de patriótico amor próprio latino.
Porém, não seria mesmo tudo isso que fez a tal ou qual pressa com que o sociólogo reduziu a sínteses e
esquemas simplistas?
É mesmo incrível que André Siegfried, embora fazendo tão essencial distinção das três Sulamericas, indiática,
branca e afronegra, ainda conservasse a noção de “América Latina” que não corresponde a nenhuma
identidade sulamericana. É também incrível que, tendo designado o natural espírito americano o
192
Anos mais tarde, vimos que Jorge Luis Borges continuou questionando-se
sobre a existência de uma identidade latino-americana, pondo em destaque as noções de
mistura, contaminação, não-originalidade do que propriamente as noções de um
primitivismo ou exclusivismo localizado. Ao receber o prêmio da Bienal do Livro, em
“americanismo” que já nos distingue tanto do latinismo mediterrâneo: conceba esse americanismo nosso
apenas e facilmente no sentido de yankismo, o americanismo da América do Norte. E quando nos percebe
diferente do americanismo (dos yankees) é para nos reverter ao latinismo de Portugal e Espanha – quando
justamente o que nos converte ainda como psicologia, moral, religião, como entidade enfim, a Portugal e
Espanha, é o que estes países tem de propriamente ibérico e não latino. E até mesmo do que eles têm de
árabe... Mesmo na síntese, se não quisesse distinguir os traços que separam tão profundamente um boliviano
dum peruano, um gaúcho dum carioca, um mineiro dum nordestino, mesmo dentro do esquema, seria
porventura fácil a André Siegfried notar que outros “americanismos” existem na América do Sul, diferentes
do yankismo utilitarista, outros otimismos diferentes do de Babbitt, que são originais, específicos, ou nos
aproximam mais da Ásia e da África do Norte. Na nossa economia, que só pode ser maljulgada por quem se
coloque sob o ponto-de-vista econômico-psicológico europeu, mais que o otimismo, não seria possível ver o
fatalismo?... E sobretudo uma irresponsabilidade muito mística e desbragadamente sensual?... E em nossa
moral, que aliás ele procura desculpar no caso das vergonheiras políticas sulamericanas não seria possível
distinguir o em que ela se diferencia já profundamente da moral cristã, numa aparência de desleixo de falta de
vergonha, de valorização da inconsciência, de heroismo aos arrancos, de deslealdade envaidecida de si, que
designam um tropicalismo úmido e fatigado?...
De resto: a senvergonhice política das nações sulamericanas, será possível ainda compreendê-la como traço
específico duma entidade nossa? O cinema dos Estados Unidos está cansado de nos mostrar o que de baixeza
vai pela política e pela justiça de lá. O que está se dando agora no mundo é apenas uma gradação de disfarces
ou, meu Deus! de... pureza de costumes, com que a França apenas de longe em longe deixa escapar um
“negócio” Stavisky, os Estados Unidos se disfarçam menos, ainda menos Argentina e Uruguai, ainda menos,
bem menos o Brasil, e quase nada certas outras repúblicas. É engraçado, mas a tal de “pureza de costumes”
neste caso, creio que está com estas últimas repúblicas! O tempo que corre já não permite mais diferenciar
baixeza política de política baixeza, nem liberdade falsa, de falsa liberdade. Hoje Venezuela e Alemanha,
Itália e Cuba se equiparam. Ou a síntese atingirá esse espírito mais abusivo de contemporaneidade, e será útil,
expressiva, ou terá que distinguir. Mas não será mais síntese, será análise. O meio-termo em que André
Siegfried pretendeu ficar, a criação duma entidade sintética latino-americana, é que não me parece mais
possível. Os fenômenos são mais vastos. Ou então são regionais.
As qualidades do livro e de André Siegfried, sua clareza extrema, sua força de sintetização, que já agora, e
tratando de problemas tão inexperimentados e complexos, só puderam se tornar dum dogmatismo ditatorial
(hélas!...), não são propriamente qualidades de Siegfried nem do livro. São qualidades francesas. A gente é
tentado sempre a verificar a França, no seu equilíbrio aparente, é agora o derradeiro reduto da civilização
burguesa. Não é o derradeiro não, mas será talvez o mais perfeito, o mais bonito. A França está simples.
Daquela mesma perfeição um bocado simplória dum livro de Maurois... André Siegfried reconhece em nós a
permanência dum quid que ele chama de “selvagem” com razão. A Sulamérica tem realmente muito de
primitiva, de selvagem. Mas nada existe mais complicado que esse primitivismo. Nada existe de mais caótico
e insolúvel que o primitivo. As civilizações trocam-se influências sem desaparecer. A troca histórica de
influência entre Inglaterra e França, França e Alemanha, também se processou entre as civilizações incaica,
ibérica e até conguesa. Mas o ameríndio primitivíssimo, complicadíssimo e caótico, não influenciou
propriamente: desapareceu amalgamado. Não somos nós os simples, e muito menos os simplistas. É antes a
França que nos parece clara, simples, redutível a fórmulas, que nem visão antediluviana. Muito antiga. O mal
de que sofrerá um André Siegfried, é que ele fala que nem fantasma, ressurgindo duma civilização que já
passou...
Mário de Andrade”.
193
1970, afirmou, após ser perguntado se as “diversas Américas começam a conhecer seus
escritores ou os Andes e a selva nos separam ainda”:
A América Latina é uma unidade duvidosa, não sabemos se não é
só um termo porte-manteau, conveniente, que não reflete as diferenças
reais e profundas entre países, por exemplo, de forte tradição e de raças
ancestralmente índias e outros que se esforçam tanto para ser um
fragmento da Europa, como a Argentina. (...) A Argentina desencoraja
essas epopéias : quando os espanhóis chegaram, não sabiam o que
estavam conquistando, as batalhas eram todas casuais; nem os índios
sabiam que perdiam alguma coisa. Nós mesmos só soubemos que
podíamos prescindir dos espanhóis e declarar nossa independência
depois que nos chegaram os livros, a Revolução Francesa, a
democracia trazida pelos ingleses. Meu bisavô, que participou das
últimas batalhas, Ayacucho, Junín, podia afirmar: pensou-se muito
pouco, quase tudo foi obra do acaso.
370
O entusiasmo brasileiro se justifica por esta premência de reconhecimento
internacional, ao mesmo tempo em que vê alguns elementos de sua cultura expostos e bem
recebidos, projetando o debate que se instaura entre produção local (nacional) x
reconhecimento estrangeiro (internacional)
371
. É sintomático que Paulo Duarte cite, a partir
do evento ocorrido na França, o depoimento de um norte-americano querendo abrasileirar-
se, “se eu fôsse brasileiro, seria brasileiro de verdade...”, o que parece soar também como
ironia, sugerindo que não se o é verdadeiramente, ou ainda não se é brasileiro de verdade.
Além do que, o reconhecimento acontece mediado pela “instituição”. Como apontado por
Serge Guilbaut em seu livro How New York Stole the Idea of Modern Art
372
, há
370
BORGES, Jorge Luis. “Sou premiado, existo”. In SCHWARTZ, Jorge (org.) Borges no Brasil. São Paulo
: UNESP; Imprensa Oficial do Estado, 2001, p.491, destaques meus.
371
O tema é tão presente que há pouco a imprensa noticiou o perigo que a idéia de uma cultura
supervalorizada pode representar para todo o mundo. Na opinião de Sergio Paulo Rouanet, este tipo de
“nacionalismo cultural” esconde o verdadeiro problema : as imensas deficiências do sistema educacional
brasileiro. Em seu texto, após explorar algumas das “origens” desse sentimento, passando por George Bush e
puristas da língua portuguesa, conclui: “O famoso caráter “inautêntico” da cultura brasileira, provocado pela
vocação mimética de nossas elites, é um falso problema. O verdadeiro problema é a estrutura de poder da
sociedade brasileira. O que está em jogo não é saber se o Brasil copia ou não a cultura estrangeira, e sim
examinar por que as relações sociais internas dificultam o acesso das classes populares à grande cultura, seja
ela nacional ou estrangeira. A inimiga não é a cultura estrangeira, e sim a incultura, que condena suas vítimas
a uma ignorância imparcial, impedindo-as de conhecer tanto Proust quanto Guimarães Rosa.” “O nacional-
burrismo”. Revista Veja. São Paulo : Abril, 5 de janeiro de 2005, pp.78 e 79.
372
Traduzido para o espanhol como De cómo Nueva York robó la idea de arte moderno. Op. cit. O livro é
de 1983.
194
tentativa (e realização) quase desesperada das estratégicas norteamericanas de se tornarem
um centro cultural.
3.4.3.2 - AMÉRICAS
A pesquisa de Serge Guilbaut centraliza-se na análise do expressionismo
abstrato, entretanto, abre um leque de referências ao mundo novaiorquino e às relações com
outros países, pondo em evidência este período importante para o estabelecimento de uma
interface com artistas e instituições latino-americanos.
Sendo assim, assistimos a uma intensa batalha e troca cultural. No caso
brasileiro, o fortalecimento de instituições como bibliotecas atendia a diversos objetivos.
Em São Paulo, ela estaria articulada com a Discoteca, a Rádio Escola e serviços de
Documentação Social:
O plano das bibliotecas populares achava-se já estudado, bem como
decidida a localização de outra entre o Brás e a Moóca e outra na Lapa.
Nestas bibliotecas (...) se instalaria um serviço cultural destinado a
promover cursos de vulgarização e conferências e a formar associações
de caráter educativo.
373
Como decorrência desse intento, o Brasil recebe imediatamente, através de um dos
diretores da Rockefeller Foundation, verbas necessárias à instalação do curso de
Biblioteconomia, fornecimento que se repetiu por mais dois anos. Esta fundação terá um
papel peculiar na divulgação dos propósitos norteamericanos para os latino-americanos,
como explicitado em uma das páginas virtuais da Embaixada Brasileira em Washington:
A finalidade (...) era influenciar os governos então neutros da América
Latina para suportar os aliados na II Guerra Mundial promovendo a
troca cultural. Os artistas, os escritores, os cantores, os fotógrafos, e os
“filmmakers” reconhecidos foram recrutados para ir [sic] em missões
373
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Op. cit., p.75.
195
por toda a América Latina (...) Walt Disney, Orson Wells, e a fotógrafa
Genevieve Naylor.
374
Esta intervenção não acontece isoladamente. Na tentativa de aproximar as
Américas e transformar os Estados Unidos no centro da produção (ou expressão) artística,
são estabelecidas diversas estratégias. Várias delas vão girar em torno da criação de
Congressos, Associações, como em 1935, quando do 1º Congresso de Escritores
Norteamericanos, acompanhando o evento que ocorre em Paris no mesmo ano, o 1º
Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura, do qual se origina a
Associação Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura; em 1936, acontece
também o 1º Congresso de Artistas Norteamericanos, fato também sucedido na Argentina,
como vimos, presidido por Roberto Giusti. No Brasil, entre 22 e 26 de janeiro de 1945,
ocorre o I Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo. Em nosso caso, os temas do
debate giram em torno de cinco comissões : assuntos políticos, de direitos autorais, de
cultura e assuntos gerais, de teatro, cinema e rádio, e de redação e coordenação
375
. A
origem de tais encontros encontra-se, de certa forma, na organização, em Moscou, do 7º
Congresso do “Komintern”, evento que tinha como objetivo estabelecer as táticas
necessárias para a derrota final das forças fascistas no mundo, nascendo daí uma aliança
denominada “Estratégia da Frente Popular”:
374
O endereço é www.brasilemb.org/profile_brazil/_brazil_usa-worldwar. O comentário refere-se à influência
de Nelson Rockefeller como coordenador de um dos órgãos de relações Internacionais Americanos.
375
Este encontro marca, certamente, não só o processo de organização da entidade, como também é um claro
sinalizador dos procedimentos de institucionalização da literatura. “O I Congresso Brasileiro de Escritores
não só representou uma das primeiras manifestações do processo de redemocratização do país, que então se
iniciava, como constituiu um momento significativo da história da cultura brasileira, permitindo o confronto
entre as diversas tendências e posições da intelectualidade. A partir da discussão sobre a função social do
escritor e seu dever moral perante a sociedade, foi-lhe atribuído um papel importante na luta contra o
fascismo, em prol da democracia. Para muitos dos escritores participantes, como Guilherme Figueiredo,
Odilo Costa Filho e Mário deAndrade, o papel do escritor era o de “voz de consciência social” e de
“captador das aspirações populares”. “Congresso Brasileiro de Escritores, I”. In: Dicionário Histórico-
Biográfico Brasileiro – 1930-1983. Coordenação BELOCH, Israel e ABREU, Alzira Alves de. Rio de
Janeiro : Ed. Forense Universitária : FGV/CPDOC:FINEP, 1984, Vol.2, pp.891. Esta vertente se fortalece
mais ainda por ocasião do II Congresso, dois anos depois, realizado em Belo Horizonte. Tanto o discurso do
Milton Campos (Governador do Estado), que instalou os trabalhos (“estamos em clima de legalidade”),
quanto o discurso do Prof. Orlando M. Carvalho (Presidente da ABDE de Minas Gerais), intitulado “Arte e
ação social”, indicam o rumo dos trabalhos. Para outros, o encontro foi frustrante, “magro” (Otto Maria
Carpeaux), enquanto há os que viram neste momento a oportunidade de “brilho coroado de pleno exito”
(Edson Costa – repórter – “Diário da Tarde”), “toda ocasição para reunirem-se os escritores é de importância
decisiva”(Antonio Candido, grifo meu). O Congresso elabora também uma “Declaração de Princípios”, em
que não raro o escritor ocupa uma “posição de vigilância” democrática, emanados pelas diretrizes da Nações
Unidas. Uma ampla cobertura deste Congresso encontra-se em Panorama – arte e literatura. Op.cit.
196
Entre otras cosas, intentaba dar credibilidad al mito de que las
organizaciones antifascistas de todo el mundo estaban de acuerdo en la
línea que había que seguir, mito de una idílica alianza de hombres de
buena voluntad unidos por su oposición al fascismo. Teóricamente, la
organización del Frente Popular debía eliminar todas las diferencias
de opinión y todas las fuentes de conflicto entre los distintos grupos
antifascistas. En cualquier caso, en lo sucesivo, tales diferencias serían
mantenidas en silencio o barridas debajo de la alfombra por el bien de
la causa común.
376
Nos Estados Unidos, um grupo de escritores, usando a revista Partisan Review como
espaço para debate, discorda do apoio dado à Frente Popular. As primeiras críticas
aparecem através de George Novack e James T. Farrell. A resposta vem logo com “O que é
o americanismo” de William Carlos Williams, afirmando que não havia aliança possível
entre marxismo e a tradição norteamericana. O debate estava instalado e durante vários
anos, segundo Guilbaut, principalmente entre os anos de 1935 a 1941, os norteamericanos
tentaram “desmarxizar” a “intelligentsia” norteamericana
377
. De certa maneira, os
enfrentamentos nos congressos vão ter como alvo de debate esse assunto, ao mesmo tempo
em que se procurava maneiras de centralizar a arte nos Estados Unidos. Além de artístico, o
plano é político, e vem acompanhado de uma estratégia educacional, também denominada
de cultural. Assim, há uma forte atração dos norteamericanos por países fora do eixo EUA-
Europa (em especial Paris). O Brasil é um deles.
Esta interferência ocorrerá por vários anos, culminando, inclusive, em
diversas invasões militares na América Latina. A esse respeito, a crítica Jean Franco
comenta, em The Decline & Fall of the Lettered City:
Nelson Rockefeller’s views on the hemisphere, on the surface at least,
were more constructive. Believing that the United States had more to
gain from economic prosperity than from immiseration, he used his
immense business interests in order to pursue a policy of reformed
capitalism, urgind that “if the United States is to maintain its security
and its political and economic hemisphere position it must take
economic measures at once to secure economic prosperity in Central
376
GUILBAUT, Serge. De cómo Nueva York robó la idea de arte moderno. Op. cit., p.31.
377
A este respeito, consultar “Nueva York, 1935-1941 : La desmarxización de la “intelligentsia”. Op. cit., pp
31 a 68.
197
and South America, and to establish this prosperity in the frame of
hemispheric cooperation and dependence.”
378
No Brasil, o ano de 1937 é decisivo com o golpe fascista de dez de
novembro, o que representará perseguição a vários intelectuais, muitos dos quais seguindo
para o exílio. Um dos destinos será os Estados Unidos, como foi o caso de Paulo Duarte,
além de passar pela Argentina, Uruguai, Portugal, Espanha, França e Alemanha. Lemos, no
discurso pronunciado por Getúlio Vargas, em a “Proclamação ao povo brasileiro”, as
emblemáticas palavras:
Colocada entre as ameaças caudilhescas e o perigo das formações
partidárias sistemàticamente agressivas, a Nação, embora tenha por si
o patriotismo da maioria absoluta dos brasileiros e o amparo decisivo e
vigilante das fôrças armadas, não dispõe de meios defensivos eficazes
dentro dos quadros legais, vendo-se obrigada a lançar mão, de modo
normal, das medidas excepcionais que caracterizariam o estado de
risco iminente da soberania nacional e da agressão externa. Essa é
a verdade, que precisa ser proclamada, acima de temores e
subterfúgios.
379
O debate cultural avança. Aqui, os progressos do grupo paulista
intensificam-se com a criação da Revista do Arquivo e o Boletim Bibliográfico. No caso
dos projetos dos parques infantis, estes se associavam à área higiênica, em que educação e
378
FRANCO Jean. The Decline & Fall of the Lettered City – Latin America in the Cold War. Cambridge,
Massachusetts, London (England) : Harvard University Press, 2002.
379
VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil V - O Estado Novo – 10 de novembro de 1937 a 25 de
julho de 1938. Rio de Janeiro : Livr. José Olympio Ed., novembro de 1938, p.23, destaques meus. Em janeiro
de 1938, por ocasião de um banquete oferecido pelo presidente Agustin Justo, em Uruguaiana, Getúlio
pronuncia-se sobre as fronteiras Brasil-Argentina: “Felizmente, a recíproca simpatia pessoal e a nossa perfeita
identidade de sentimentos, manifestada em ocasiões diversas e a propósito de problemas comuns, encontram a
mais ampla ressonância nas disposições sempre amistosas dos nossos povos./ A obra material de que se
lançam os fundamentos neste momento, resultou do esfôrco de cooperação que nos tem levado a empreender,
em vários sentidos, outras iniciativas de igual finalidade construtiva. Não se faz mister encarecer-lhe o mérito
em todos os seus aspectos. Toma fórma, na união de Passo de Los Libres e Uruguaiana, uma permanente
realidade espiritual, sobrelevando, em importância, às evidentes vantagens de intercâmbio que deverá
seguramente produzir./ Em nenhuma outra época da nossa história, a necessidade de incentivar e estreitar as
relações inter-americanas se impôs de forma mais decisiva.”, In: “A política de cooperação argentino-
brasileira”, p.151. Desta forma, os discursos vão dando conta do projeto instalado no país, indo da
“Orientação nacional do ensino” a “O Estado Novo e as fôrças armadas”. Pode-se ler a presença do Estado
Novo como o engessador/institucionalizador dos movimentos culturais no país. Para uma leitura das relações
entre Brasil-Argentina na área educacional, consultar DIAS, Maria de Fátima Sabino (org.). História da
América – ensino, poder e identidade. Florianópolis : Letras Contemporâneas, 2004.
198
sanitarismo se vêem aproximados. Um dos relatórios enviados à Assembléia Legislativa do
Estado, em 1937, registra, no comentário de Paulo Duarte:
(...) benefícios dêsses recantos de felicidade infantil demonstrando,
graças a êsses elementos coligidos e estudados por especialistas da
Divisão de Documentação Social, que tais observações desprezadas até
tempo recente pela escola tradicional e ainda hoje completamente
esquecidas da família, se apresentavam sob múltiplos aspectos: um
dizendo respeito à saúde física e mental, estimulando a liberdade e a
alegria ao ar livre; outro, interessando a coordenação neuro-muscular e
as funções normais do organismo infantil; outro ainda, a educação da
criança, de modo insensível, incutindo-lhe o sentimento da
camaradagem, da sociabilidade, da lealdade e da amizade, por meio de
atividades lúdicas, como os brinquedos tradicionais do folclore
nacional. Dos mais importantes, o fim de cultivar as boas e analisar e
observar as más tendências, para serem combatidas.
380
Aqui temos uma clara explicitação da relação de atividades culturais e educação na década
de 30. Bem se vê que as diretrizes educacionais estavam ainda muito apoiadas em uma
psicologia comportamental que aliava imaginário, realidade social e saúde pública, cuja
saída era vista como uma “erradicação”, um “combate”, como um mal que devesse ser
extirpado da população. É elucidativo desta concepção o critério para seleção de
“educadora” e sua atividade. Era-lhe exigido o curso de Escola Normal e de Educadora
Sanitária:
De junho de 1936 a julho de 1937, o serviço de documentação revelou,
além das observações psicológicas, quase dois mil exames feitos com
o intuíto de isolar as crianças portadoras de moléstias
transmissíveis, encaminhar aos serviços especializados as que
necessitassem de exames, análises e tratamentos; indicar a prática de
esportes que mais se coadunassem com as condições de cada caso,
ministrar conhecimentos de ordem higiênica nem só às crianças mas
ainda às pessoas que com estas convivessem, etc. Todos os pequenos
frequentadores foram assistidos pelos médicos do parque, tendo sido
feitas, só naquele período, mais de mil fichas de antecedentes
hereditários, familiares e pessoais. As educadoras sanitárias entraram
em contato com os pais, estendendo-se até a casa a ação esclarecedora,
pois não valia nada tirar piolhos de uma criança no parque para que
esta se parasitasse novamente ao contato com a mãe e irmãos maiores.
380
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Op. cit., pp.82-83. Grifos meus.
199
Uma das observações versava sôbre o banho, o cuidado com o
vestuário, os cabelos e as unhas, a higiene alimentar, os hábitos
nocivos e anti-higiênicos, uns ensinados, outros reprimidos com
inteligência, tudo isso, depois de exercida sua função pedagógica da
educadora para a criança, retransferia aquela por uma curiosa
influência antropogógica, da criança para a família.
381
Além do apoio da Rockfeller Foundation para a criação do curso de
Biblioteconomia, iniciam-se os convites para intercâmbios e palestras. Mário escreve um
ensaio intitulado “A expressão musical nos Estados Unidos”, com grande repercussão por
lá, quando recebe o primeiro convite para dar uma conferência, com todos os custos pagos,
a que ele negou. Tratava-se de uma proposta para escrever um livro sobre formas musicais
“iberoamericanas”, com viagem por toda a América Espanhola. Recusa igualmente os
convites feitos em 1941 e 1945, no auge da II Guerra. Neste momento, Paulo Duarte
trabalhava no Museum of American Modern Art, exilado do Brasil pelo Estado Novo,
coincidindo com a ida para lá, em março de 1943, de Sérgio Milliet. É uma época difícil,
em que a censura atua fortemente em todas as áreas, abrindo cartas, cortando cargos,
remodelando e/ou extinguindo órgãos, exilando, enfim, escritores e artistas.
Se no Brasil a concepção dos “Museus Municipais” deveriam ser vistos
como móveis, vivos, diversificados, Mário está preocupado em diminuir as desigualdades
culturais entre a elite e o povo:
Cumpre organizar os serviços, forçar a vitalidade dos museus e a
criação de institutos culturais que ajam pelos processos educativos
extrapedagógicos que cada vez mais estão se tornando os mais capazes
de ensinar. O que há talvez de admirável na pedagogia
contemporânea é o seu caráter, por assim dizer, antipedagógico;
justamente o engurgitamento da massa mais oculta dos estudantes,
nivelando-a à dantes melancólica elite profissional, pelo respeito às
suas qualidades e tendências próprias, de massa e de sombra.
382
Para o então Diretor da Divisão de Expansão Cultural, a concepção de um processo
educativo extrapedagógico, com seu caráter “antipedagógico”, parece esbarrar nas
dificuldades do próprio aparato estatal para realizar seu intento. Em sua análise, os museus,
381
Id. Ibid., p. 83, grifos meus.
382
ANDRADE, Mário In DUARTE, Paulo. Id. Ibid., p.153, grifos meus.
200
as instituições culturais, devem estar ligados às escolas primárias e, portanto, à
alfabetização, o que não significa um nivelamento automático, mas uma “organização
intelectual” de um povo que não se processa em ordem cronológica. Alfabetização, para
Mário, não se referia apenas à capacidade de aprendizagem de leitura, mas à possibilidade
de dar ao povo “o elemento em que possa exercer a faculdade nova que adquiriu”
(p.153/154). E radicaliza: “Defender o nosso patrimônio histórico e artístico é
alfabetização.”
383
(p.154). Semelhante a Mário, o próprio Paulo Duarte, em 1940, divulga
em Buenos Aires posições a este respeito. Em “La protección del patrimonio histórico y
artístico nacional”, Duarte historiciza as leis que protegem o patrimônio cultural, bem como
analisa as necessidades e qualidades da situação em Buenos Aires, demonstrando a herança
iluminista sobre o assunto (a lei precursora da proteção do patrimônio é francesa e data de
1810):
Los pueblos jóvenes, por lo general, no dan a los monumentos
antiguos, ni a las relíquias del pasado, ni a los archivos que se
destruyen por la humedad o los insectos, el valor inmenso que en
realidad poseen. Unicamente los pueblos de gran sedimentación
cultural, la que solo se alcanza con el correr de los siglos (...) pueden
otorgar a ese patrimonio precioso el debido valor.
384
383
Exatamente esta é uma das frases escolhidas para compor a legenda de fotografias do Pratrimônio
Histórico e Artístico Nacional, contidas em uma exposição que ocorre em instituições públicas de ensino. Na
Universidade Federal de Santa Catarina, ela esteve presente no hall do prédio da Reitoria, em fevereiro de
2005.
384
DUARTE, Paulo. “La protección del patrimonio histórico y artístico nacional” In BOLETIN de la
Comision Nacional de Museos y de Monumentos y Lugares Historicos. a.II, n.2, Buenos Aires, 1940,
p.25. Paulo está deslumbrado com os Museus espalhados pela cidade, as coleções particulares. Porém, ao
encontrar uma preciosa lâmpara de 10 kilos provinda de uma igreja de Minas Gerais no Museu Fernández
Blanco, aponta a dificuldade de normatizar o trânsito de bens culturais entre países, sugerindo a urgente
necessidade de declaração de “utilidade pública” para tais bens. Cita como exemplo a criação do SPHAN no
Brasil, cujo tombamento assoma como saída legal para a conservação e normatização de possíveis
intercâmbios do patrimônio: “Es el tombamento (ley de registro o inventario) que inicia sus primeros pasos.
Sería de desear que figure el proyecto de ley en la memoria correspondiente a 1939, antes que las primeras
providencias para erección del Panteón Nacional, antes que los catálogos y guias que hacen tanta falta en los
museos argentinos.(...)defender los que se halla amenazado, resguardar del ultraje del tiempo y de los
hombres lo que es una parte del alma nacional, esa es la providencia impostergable, la que no admite
indecisiones ni prórrogas de plazo. Buenos Aires, enero de 1940”, pp. 32 e 33. No final do Boletim, que reúne
textos de toda a ordem ligados ao patrimônio artístico, há resenhas dos livros novos. Entre eles, está a de
Paulo Duarte, Contra o vandalismo e o extermínio, o Guia de Ouro Preto, de Manuel Bandeira, além da
Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (n.2, 1938), onde figuram trabalhos
variados, com destaque para texto de Rodrigo M. de Andrade sobre o Aleijadinho. (pp.410-415).
201
A presença de Paulo Duarte antecipa outra publicação na Argentina.
Também Rodrigo Mello Franco de Andrade, diretor do SPHAN, divulga “El sistema de
protección del patrimonio de arte y de historia en el Brasil”
385
, demonstrando o processo de
construção das leis de proteção ao patrimônio, a declaração de espaços como monumentos
nacionais (caso de Ouro Preto), além de como foram incorporados ao patrimônio diversos
bens móveis e imóveis, culminando na idéia de tombamento, fato que, se por um ladoo
constitui “aquisição”, por outro “aliena” tais bens. O texto alonga-se, mesmo, no
desenvolvimento das atividades do SPHAN, com o orgulho do setor de publicações e
exposições. A essa época, a revista da entidade recebe colaborações de Gilberto Freyre,
Manuel Bandeira, Heloísa Alberto Torres, além de publicar catálogos de diversas
exposições.
Percebidos assim, alguns acontecimentos são sintomáticos para a
compreensão das trocas culturais entre o Brasil e outros países. Quando da vinda de Lévi-
Strauss ao Brasil em 1938
386
, Mário de Andrade já se encontra no Rio de Janeiro. Outras
atividades e pedidos dão mostras do intenso trabalho e preocupação culturais. Paulo, então,
lhe solicita um exemplar de uma edição holandesa do Barleus, edição de 1923, para outro
projeto seu, a publicação da Bibliographia Brasiliensis, destacando-se desse pedido a
questão das imagens. Através de fotocópias, Paulo deseja nove gravuras (numeradas de 59
a 64). Tratava-se, na verdade, de um pedido de Afrânio Peixoto para uma edição da Editora
Lisboa de uma “Enciclopédia pela Imagem” do Brasil. Há também o trabalho de Sousa
Leão sobre Franz Post, que Paulo lhe solicita de Paris, pois o Museu do Louvre o havia
exposto como sendo obra de um artista africano. Como se vê, o imaginário brasileiro (e
latino-americano) encontrava-se em pleno estágio de (de)formação.
385
ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. “El sistema de protección del patrimonio de arte y de historia en el
Brasil” in BOLETIN de la Comision Nacional de Museos y de Monumentos y Lugares Históricos. a IV,
n.4, Buenos Aires, 1942.
386
Silviano Santiago, em “A viagem de Lévi-Strauss aos trópicos”, traça uma dura crítica ao percurso do
etnólogo ao continente, tomando como base o relato de Tristes Trópicos, onde o francês confessa que sua
vinda para cá e seu posterior contato com os índios do país foram “produtos do acaso”. Vindo “participar da
cosmopolita missão universitária francesa, cujo fim era o de desprovincializar a fundação e implantação da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”, em pleno momento de “rotinização do Modernismo” [a expressão
é de Antonio Candido], Lévi-Strauss anota as discrepâncias culturais, destacando-se, segundo Silviano, a
questão da curiosidade intelectual dos cidadãos cultos, que devoravam os manuais e as obras de vulgarização,
deixando claro que havia um prestígio francês “inigualável” entre os brasileiros que precisava ser repensado.
In Ora (direis) puxar conversa! – Ensaios literários. Belo Horizonte : UFMG, 2006, pp.293-336. O próprio
Lévi-strauss o reafirma em entrevista a Didier Eribon. In LÉVI-STRAUSS; ERIBON, Didier. De perto e de
longe. Trad. Léa Mello e Julieta Leite. São Paulo : Cosac Naify, 2005, pp.46-47.
202
Também o projeto de instalar no Brasil uma escola de restauração é animada
pela presença de Renè Huyghe, então Diretor do Departamento de Pintura no Louvre, que
pretendia vir a Buenos Aires e Rio de Janeiro em 1939. Dois anos antes, enquanto dirigia a
revista L’amour de l’art, no número de fevereiro, a matéria que abre o periódico intitula-
se “Dialogue sur la Politique et la Culture”, assinada por Gabriel Boissy e Jean Cassou
387
.
Enquanto Boissy aposta nas diferenças dos indivíduos de uma sociedade para não
contradizer a cultura e o humanismo (portanto, não valorizar as identidades), Cassou
procura se distanciar de uma concepção que valorize o patrimônio:
La culture ne consiste pas dans l’exploitation d’un capital donné. Il ne
s’agit pas de dispenser des reproductions, en grand ou en petit, de
certains modèles inépuisables, de même que l’argent produit de
l’argent. (...) Les ouvrages, témoins, expressions et signes de ces luttes,
et qui, de celles-ci nous demeurent, nous les rangeons dans nos
bibliothèques, nos musées, nos mémoires; ils son à la disposition de
notre vie quotidienne, si bien que quand nous en retrouvons le
contact, une émotion nous fait vibrer.(...)
Quels sont le porteurs de la culture? D’où viennent et quels sont les
hommes capables de garder à la culture cette énergie, d’en faire encore
et toujours le signe de cette tension entre ce qui est et ce qui peut être,
le témoignage des plus vastes chances humaines? A mesure que le
temps s’écoule, les classes silencieuses et souffrantes accumulent leur
effort et leur espoir, rompent la coûte du fixe, de l’immobile, du
déjà vu et du déjà dit, du religieux, du sacré. L’humanité prend
alors um nouveau visage, une expression nouvelle. C’est une
perpétuelle nouveauté qui fait la culture.
388
O que move os diferentes intelectuais e escritores é o desejo de
completar/criar uma imagem que dê conta de um projeto, seja através do imaginário a
respeito do Brasil ou aquela de outros países da América Latina. Após o sucesso de
Portinari em 1939, Paulo Duarte, de Buenos Aires, pede a Mário um texto sobre pintura
moderna e alguma sobre a antiga no Brasil. No ano seguinte, Paulo ganha presença na
publicação em Le temps e pouco depois tem de sair de Paris, onde atuava no “Museu do
Homem”. Em Nova York, faz uma análise do povo americano, que nos interessa perceber:
387
L’amour de l’art - II. Paris : Les Éditions Denoël, février 1937, pp.37-39.
388
Id. Ibid., p.39, grifos meus. Para Cassou, longe de congelar, imobilizar, canonizar a cultura, há que vê-la
nesta emoção, sempre inesperada, com que o homem se depara, após abafar, sufocar, sentimentos, esperanças.
203
Aquí, nos Estados Unidos é outra coisa: é um caso típico de
psicanalise. O norte-americano considera-se o povo maior do mundo.
Trás [sic] isso no consciente. Mas no sub-consciente sente, sem saber,
a necessidade que tem de melhoria e começa a comprar civilizações
estrangeiras. Tudo que lhe passa ao alcance da mão, vai para o papo. É
um cientista, é um quadro, é um artista, desde que leu no jornal que
vale a pena, bota dinheiro em cima, seja lá o que fôr. O diabo é que o
rádio, o automóvel, o ar condicionado, a gente compra com dinheiro o
que lhes não falta, mas civilização só com pátina e com séculos, não há
outra moeda para adquirí-la. Mas, de qualquer forma, estão fazendo
patrimônio e uma base esplêndida para o futuro. Vale a pena vir ver
esta curiosa experiência sociológica.
389
Como aponta Serge Guilbaut, os norteamericanos buscavam independência no ramo das
artes, acentuando este desejo principalmente após a frustrada exposição em Paris, durante o
verão de 1938, intitulada “Three Centuries of American Art”. Os franceses não perdoaram,
tecendo duras críticas aos artistas norteamericanos. O Museu de Arte Moderna do Nova
York (MuMA
390
) data desta época, cuja política, a de Paul Sachs, era a da elite educar o
público em geral através do museu. Enquanto isso, a criação da Federation of American
Painters and Sculptors, decorrente da desintegração do American Artists’Congress, marcou
uma política de forte campanha publicitária, de tom agressivo, a fim de conquistar a opinião
pública intelectual.
El interés de los pintores e intelectuales de primera fila no estaba
centrado ya, como lo había estado durante la década de los treinta, en
Haveria nesta “nova visão/paisagem”, no movimento, na energia que se desloca, o encontro com a cultura, de
onde a concepção de Cassou distingui-se significativamente da corrente do patrimonialismo.
389
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. Op. Cit., p. 192. Carta de 13 de maio de 1941.
390
Cabe lembrar que, no interessantíssimo final do “Inferno” do Guesa de Sousandrade, aparecem os versos:
- Bear... Bear...é ber’beri, Bear... Bear.../ = Mammumma, mammumma, Mammão!/ - Bear... Bear... ber’...
Pegàsus.../ parnasus.../ = Mammumma, mammumma, Mammão.” Aqui, o beriberi produzido, a confusão de
línguas, quase murmúrio, sugerem, emblematicamente, a mistura destes dois povos. Em nota, Augusto e
Haroldo de Campos comentam que : “Mantivemos a duplicação dos mm, tal como na ortografia original,
porque contribui para a fixação visual do jôgo aliterativo e suas conexões com Mammumma, montagem com
as palavras Mamma (mamãe, em alemão) e Mumma, ursa-mãe, personagem do poema Atta Troll de Heine;
Mumma, brincando com seu filhote caçula, arrancou-lhe uma orelha e devorou-a amorosamente. Ao som
dêsse côro fantástico de louvação ao deus do Stock Exchange, o poeta (...) é condenado à pena capital por um
círculo de ursos (ring d’ursos), que substitui o círculo dos sacerdotes-Xeques, dos quais o Guesa deveria
receber a morte ritual. Bear (ing.) urso; no jargão da Bôlsa, por volta de 1840, era sinônimo de especulador;
Sousândrade usa a palavra, também, como designativo do Ianque.” In SOUSÂNDRADE – Poesia. Rio de
Janeiro : Agir, 1966, p.76.
204
el tema de la relación del artista con las masas. El centro de atención se
había trasladado de las preocupaciones sociales a las preocupaciones
individuales, debido a la desaparición de toda estructura institucional
dedicada a la acción política.
391
3.5 - POR ELE MESMO
No centro da discussão sobre conceito de cultura e arte, está o intercâmbio
dos brasileiros com outros estrangeiros. Buscando centralizar o máximo possível das
tendências artísticas durante a metade do século, os Estados Unidos insistem em não perder
de vista os países latino-americanos. Em meio a essa disputa, resta a França, em franco
“descentramento”. Para melhor visualizar este debate, busco em um outro livro de Paulo
Duarte o olhar de um brasileiro em trânsito permamente, servindo como um termômetro
das inquietudes “mundiais” dessa época e como registro de um momento delicado para as
artes, cultura e educação na América Latina. O modelo que serve a Paulo para publicar seu
livro sobre Mário de Andrade, “por ele mesmo”, tem seu espelho em uma outra publicação
na década de 60. Trata-se de Paul Rivet, por ele mesmo
392
, que Paulo edita no Brasil três
anos após a morte do famoso etnólogo, através da editora Anhambi(sic). Se o livro com o
escritor modernista de Balança, Trombeta e Battleship guarda e revela a intensa vida
cultural e os anseios de, entre outros projetos, institucionalizar a cultura nacional, o
segundo nos mostra apaixonada e persistentemente o intuito de Paulo Duarte e Paul Rivet
de estabelecerem uma ponte entre a Europa e a América Latina. É um período de
aproximações, de sonhos, de descompassos, de um jogo de/entre imagens, em que o outro é
sempre desejado perto, e neste movimento, há incorporações e cortes, como o
procedimento da antologia
393
.
391
GUILBAUT, Serge. De cómo Nueva York robó la idea de arte moderno. Op. cit., p. 68.
392
DUARTE, Paulo. Paul Rivet, por êle mesmo. SP : Anhambi [sic], 1960. (A editora chama-se Anhembi).
393
Nesta operação em que o futuro já estaria no passado, poderíamos lê-lo como a história crítica de todo
movimento cultural, amparado por uma teoria prototextual. A esse respeito, e lembrando o importante ensaio
de Freud “Recordar, repetir, elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)”, poderíamos
dizer, conforme abordagem desenvolvida em outro trabalho: “Considerar que o prototexto não pode ser lido
como a origem do texto coloca-nos na problemática do insconsciente, ou seja, sobre a questão da significação
do texto. Numa de suas primeiras teorizações, Jean Bellemin-Nöel argumenta que “o prototexto é o texto
criança, o texto não é a infância do prototexto”. Essa relação do “texto-criança” com o “texto-adulto” supõe
sua autonomia e a construção de uma origem:
205
A aproximação entre estes dois intelectuais só foi possível graças a uma
decisão norteamericana. Trata-se de um decreto que exigiu que estrangeiros saíssem do país
o mais rápido possível. Paulo Duarte, então funcionário do MuMA, fica à disposição do
Departamento de Guerra, sendo enviado a Portugal e Espanha em missão cultural do
Museu e do “Metropolitam Museum”. Pouco tempo depois, Rivet realiza uma série de
viagens pela África e anuncia sua ida à América, via Natal. Em sua carta de 31/05/1944,
avisa que vai abrir um Salão-Livraria na capital do México, com livros só em francês,
vindos dos Estados Unidos, Canadá, Brasil, Argentina, Chile, porém todos com impressão
no próprio México. Lévi-Strauss, recobrando o período de refúgio de Rivet na Colômbia,
comenta:
Sim, era [Rivet] professor no Museu desde 1928 e tinha reformado o
Museu de Etnografia do Trocadero para fazer dele o Museu do
Homem, no Palácio de Chaillot, construído para a Exposição Universal
de 1937. Ele teve que fugir depois que os alemães desmantelaram a
rede de resistência do Museu do Homem. Muitos de seus
colaboradores foram executados ou deportados. Ele próprio escapou
por pouco.
394
Outros projetos os acompanham. Ao lado dos livros, há um desejo de
instalar, em Paris, um instituto de estudos brasileiros, projeto também sabido por Lévi-
Strauss. Dessa forma, no dia 28 de julho de 1945 é inaugurado na França o Institut
Français des Hautes Etudes Brésiliennes, que será “o paradigma de outros ligados aos
principais países da América Latina com os quais a França tem que estreitar contactos.
Eu posso dizer que meu “eu” do passado é meu outro, cuja alteridade mergulha as
raízes no primeiro Outro que, sem me dar conta, eu encontrei: minha mãe.
A relação entre um texto e os outros marca a alteridade que neles se afirma.”. Haveria neste retorno do título
(o autor “por ele mesmo”)e do modelo de livro, a correspondência (ativa e passiva), acompanhada de
comentários do amigo confidente, a insistência em marcar um campo de debate em que a cultura não só pode
ser vista como um debate intra-familiar (ainda que e porque estranhado), mas também como o retorno de algo
“reprimido” e que não se quis mostrar de todo. Diria que o modelo para o livro do intelectual modernista tem
seu antecedente primeiro na publicação do outro amigo, o estrangeiro (quase) totalmente familiarizado.
A citação do texto de Sigmund Freud encontra-se em Obras completas. Rio de Janeiro : Imago Editora,
1969, vol.12. O fragmento de Jean Bellemin-Nöel está no ensaio “Avant-texte et lecture psychanalytique” in
HAY, Louis et NAGY, Péter. Avant-texte, texte, aprés-texte (Colloque International de Textologie à
Mátrafured (Hongrie) 13-16 octobre 1978). Budapest : Akadémiai Kiadó, 1982, p.163. Finalmente, esta
abordagem está desenvolvida no trabalho A exaustão da palavra – um prototexto para Marina a intangível
de Murilo Rubião. Florianópolis : PGLB, UFSC, 1992, p. 44.
394
LÉVI-STRAUSS, Claude; ERIBON, Didier. De perto e de longe. Op. Cit., p. 61.
206
Mas vamos fundá-lo como um departamento do Museu.”
395
. Percebemos, aos poucos, que
a pressão americana se faz sentir nesta necessidade explicitada nas cartas e nos projetos que
vão se desenvolvendo, coincidindo exatamente com a ofensiva de investir “culturalmente”
na América Latina.
Ao lado da organizações dessas instituições, o projeto de ambos
pesquisadores é o de publicar textos. Cria-se, então, outra variação das trocas culturais,
como acontece com o “Testamento Político” que Rivet pede, na carta de 19 de agosto de
1950, para que o publique no Estado de São Paulo, já tendo aparecido no Temps
Modernes
396
e com a promessa de sair no The Nation. Este poderia ser o modelo das
relações aqui encenadas, uma vez que justifica seu pedido com o argumento: “pois a minha
Europa neutralista desejava apoiar-se, um dia, numa América Latina neutralista”
397
.
Algum tempo depois, Paulo Duarte, anunciando que deseja fundar a Revista
Anhembi, como “uma nova revista de alta cultura sob a minha direção” (p.56, grifos
meus), sugere a Rivet que venha dar uma conferência em São Paulo, o que vira um projeto
de um curso na USP, para o qual o etnólogo propõe três temas possíveis: 1. O racismo
perante a Ciência; 2. A América Latina vista por um amigo de sempre e 3. A História
cultural da humanidade. Além da preparação do tema para o curso, Rivet busca, a pedido
do Brasil, via Roger Bastide, crânios de antropóides que faltavam à coleção brasileira. O
que não demora, como anuncia na carta de 4 de agosto de 1952, ao mesmo tempo em que
confirma o tema do curso:
Confirmo que propus um curso sôbre a Origem do Homem, à razão de
duas ou três conferências semanais, e que serei obrigado a partir a 20
de outubro para o Chile, mas isto não é certo ainda.
Encontrei finalmente: um crânio de gorila macho, um belo crânio de
gorila fêmea, um belo crânio de chimpanzé. Mandei procurar o gibão e
o orangotango mas tornaram-se muito raros.
398
395
DUARTE, Paulo, Paul Rivet, por êle mesmo. Op. cit., p. 37, grifos meus.
396
RIVET, Paul. “Testamento político” in Temps Modernes, n.55, maio de 1950.
397
DUARTE, Paulo. Paul Rivet, por ele mesmo. Op. cit., p. 56. Quanto à tradução dos textos de Paul Rivet,
todos foram feitos por Paulo Duarte. O livro apresenta as cartas sempre escritas em francês, inclusive as de
Paulo Duarte, mas com tradução em nota de rodapé.
398
Id. Ibid., p.67.
207
Neste encontro entre antropologia, etnologia e literatura, parecem ganhar destaque
precisamente os estudos com as materialidades
399
: os cursos sobre a origem do homem, os
crânios, ao lado de outro patrimônio, os sambaquis
400
, cuja preocupação de proteção revela-
se no Decreto 21.935 de 19 de dezembro de 1952 e no Decreto 22.550 de 04 de agosto de
1953, por iniciativa do então governador de São Paulo Lucas Nogueira Garcez, a favor
dessas “jazidas pré-históricas”. Podemos perceber que vigora ainda uma percepção do
mundo americano enquanto matéria-prima, espaço de infindáveis riquezas, tão comuns
desde o século XVI
401
. Numa relação de desequilíbrio, pode-se perceber que, se para os
399
Em uma vertente contemporânea, lemos, através do curador do renomado Tate Modern de Londres,
Vicente Todolí, a firmação de que “hay que explorar todos los confines, y uno de los confines importantes y
esenciales es Latinoamérica (...) Si nosotros ahora, en cada bienal por ejemplo, dedicamos bastante espacio a
artistas latinoamericanos, es en respuesta a una constatación de la realidad que aunque ya existía antes,
ahora se hace patente por la complejidad que adquiere la instituición.”. A constantação de Vicente Todolí
reforça a idéia de uma América Latina povoada de um imaginário europeu (ele é espanhol), que adquire suas
obras como que para “comprovar”, “institucionalizar” um modelo cultural. Em sua afirmação de que o museu
possue toda a literatura, de Julio Cortázar até García Márquez, Carlos Fuentes, Mario Benedetti e Juan Rulfo,
não cita nenhum brasileiro, como a confirmar a tendência de exclusão do Brasil deste panorama, em especial
literário. De todas as formas, a América Latina assemelha-se ainda a um “celeiro” de potencialidade,
portadora de certa “materialidade” para os povos do mundo. “Tate Modern y el arte latinoamericano” In:
Margens/Márgenes – Revista de cultura. n.4. Belo Horizonte, Buenos Aires, Mar del Plata, Salvador :
Univ. Federal de Minas Gerais, Univ. Nacional de Mar del Plata, Univ. de Buenos Aires e Univ. Federal da
Bahia, dezembro de 2003, p. 40, grifos meus. Também o atual diretor do MoMA, Jay Levenson, afirmou
recentemente: "A“cena artística brasileira tem despertado muito interesse internacional. A tendência é que
haja mais exposições de brasileiro em Nova York. E a relação do MoMA com o Brasil é cada vez mais forte”.
(...)Visitando o MAM, o Museu Nacional de Belas Artes e o CCBB, ela declarou: “O problema em toda a
América Latina é que a maioria dos museus é pública, depende de governos, e a competição com outros
serviços sociais [por verbas] é particularmente difícil. Acredito que os museus são tão ligados à identidade
nacional que deveriam ter um suporte especial”, defendendo um modelo que proporcionasse estabilidade às
instituições. VIANNA, Luis Fernando. “Diretor do MoMA quer mais Brasil em NY”. In Ilustrada da Folha
de São Paulo. Sexta-feira, 4 de março de 2005, p.E-3. Sintomático que na mesma página, mas em segunda
mão, apareça a reportagem “Entidades buscam patrocínios para o Ano do Brasil na França”, tornando-a
emblemática para a fatura deste trabalho.
400
As pesquisas tornam-se animadoras e neste momento concentram-se no canal da Bertioga, cujos estudos
indicavam que já vivia “um homem paleo-americano há cerca de sete mil anos!” (op. cit., p.78). Havia pressa
em alguns resultados, já que um dos eventos que São Paulo comemoraria em 1954 seria o XXXI Congresso
de Americanistas. Em abril deste ano chega ao Brasil o francês Joseph Emperaire, para trabalhar no sambaqui
à margem do rio Maratuã, no canal da Bertioga, na ilha de Santo Amaro (p.96).
401
Outros europeus, franceses, também pensavam assim. Vejamos um pouco deste imaginário. Um registro
do século VXI e outro contemporâneo a Rivet: André Thevet comenta, em 1555: "Além dos cristãos, que
depois de Américo Vespúcio a habitam, esta terra foi e é ainda hoje habitada por gente prodigiosamente
estranha e selvagem, sem fé, sem lei, sem religião, como a natureza a fez, comendo raízes, andando sempre
nua (tanto homens quanto mulheres), e isso talvez até que, convivendo com os cristãos, aos poucos se despoje
dessa brutalidade, passando a vestir-se de modo mais civilizado e humano. No que devemos efetivamente
louvar o Criador, que nos esclareceu, não permitindo que fôssemos assim brutais, como estes pobres
americanos." (p.60) In "As singularidades da França Antártica" citado por OLIVIERI, Antonio Carlos e
VILLA, Marco Antonio (organizadores) . Cronistas do século XVI : O Brasil na visão dos descobridores.
SP : Ed. Ática, 1999, grifos meus. Albert Camus, que nos deu O estrangeiro, registra em seu diário de bordo
em 1949, ao passar por aqui e por outros países da América do Sul: "O Brasil é uma terra sem homens. Tudo
é criado aqui às custas de esforços desmedidos. A natureza sufoca o homem. O espaço basta para criar a
208
crânios havia verbas disponíveis e à disposição prontamente, já para a Biblioteca de Paul
Rivet, colocada à venda pelo episódio de sua desocupação do “Palais de Chaillot”, e
avaliada em 17 milhões de francos pela parte etnológica e 3 milhões pela de literatura e
política,
[...]que representaria para o Brasil um magnífico passo à frente no
desenvolvimento dos estudos etnológicos com que sonhamos, eu daria,
sem dúvida alguma, a prioridade ao seu país. Caso a minha biblioteca
passasse para S. Paulo, eu gostaria de seguí-la, isto é, iria de boa
vontade terminar meus dias no Brasil como professor, se me quiserem,
a fim de organizar o Centro de Etnologia e Linguística cujo projeto
fizemos.
402
fica o impasse e a demora, ao lado do desenlace da questão para Rivet na França, tornando-
a um sonho distante
403
. Porém, outros se agregam neste diálogo, do qual saem outros
projetos. Um deles refere-se à criação do Instituto do Homem Americano, que abrigaria
vários departamentos: Pré-História, Geologia, Paleontologia, Fotografia e Cinema,
Antropologia, Etnologia e Lingüística.
Paulo Duarte, de olho em outros eventos que aconteceriam em São Paulo em
1954, por conta do IV Centenário da cidade, como o Congresso Internacional de Escritores,
o Encontro de Intelectuais e o XXXI Congresso de Americanistas no mês de agosto,
cultura? Indaga-me um professor brasileiro. É uma pergunta sem sentido (p.94 e 95). Ainda "O Brasil
com sua fina armadura moderna, como uma chapa metálica sobre esse imenso continente fervilhante de forças
naturais e primitivas, me faz pensar num edifício, corroído cada vez mais de baixo para cima por traças
invisíveis. Um dia, o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-
se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória." (p. 112 e 113). Em
uma procissão, comenta: "... é efetivamente o agrupamento mais estranho que se possa encontrar. As
idades, as raças, a cor das roupas, as classes, as doenças, tudo fica misturado numa massa oscilante e
colorida, estreladas vezes pelos círios, acima dos quais explodem incansavelmente os fogos, passando
também, vez por outra, um avião, insólito neste mundo intemporal. (p.131). E finalmente: "(...) durante horas
e horas, olho para esta natureza monótona e estes espaços imensos; não se pode dizer que sejam belos, mas
colam-se à alma de uma forma insistente. País em que as estações se confundem umas com as outras; onde a
vegetação inextricável torna-se disforme; onde os sangues misturam-se a tal ponto que a alma perdeu seus
limites. Um marulhar pesado, a luz esverdeada das florestas, o verniz de poeira vermelha que cobre todas as
coisas, o tempo que se derrete, a lentidão da vida rural, a excitação breve e insensata das grandes cidades - é o
país da indiferença e da exaltação. Não adianta o arranha-céu, ele ainda não conseguiu vencer o
espírito da floresta, a imensidão, a melancolia. São os sambas, os verdadeiros, que exprimem melhor o que
quero dizer."(p.132 e 133) in Diário de viagem. 2ª ed. Trad. Valerie Rumjanek Chaves. RJ : Ed. Record,
1978, grifos meus.
402
DUARTE, Paulo. Paul Rivet, por êle mesmo. Op. cit., p.80.
403
Há outros casos de “desperdício” cultural. Trata-se da biblioteca de Yan de Almeida Prado oferecida como
doação à Prefeitura de São Paulo e por esta negada.
209
portanto, em razão da comemoração, da celebração, como ocorrera em outros países da
América Latina, afina alguns interesses com Paul Rivet, o qual propõe a fundação de um
Instituto de Pré-História de São Paulo
404
. Revelador é o que está por trás deste desejo. Ou
seja, a presença da França nestas instituições teria como um dos objetivos enfrentar a
investida norteamericana após-guerra, conforme a hipótese desenvolvida por Serge
Guilbaut. A guerra é cultural, como fica muito evidente na carta de 02 de agosto de 1953 a
Paulo Duarte:
A ocasião é magnífica para a França firmar-se de novo, graças a você.
Não aproveitá-la seria loucura. Fique certo de que não perderei a
queso de vista.
(...)
A UNESCO, com a nomeação do dr. Evans para diretor, vai tornar-se
cada vez mais um instrumento político nas mãos dos Estados Unidos.
Penso que você leu em “Esprit” (abril de 1953), minhas impressões
sôbre a América Latina. Desejaria muito que uma tradução fôsse
publicada em ANHEMBI. O Quai d’Orsay compreenderá, enfim, o
papel que pode ser desempenhado pela França?
405
De forma que, à medida que a América Latina vai ganhando corpo como espaço possível de
refúgio, cópia e colonização, a França ainda mantém estatus de uma segunda-pátria para
muitos brasileiros e outros povos do mundo. Não sem acaso, as intervenções de Rivet no
Congresso de Escritores e no Encontro de Intelectuais tratarão com especial cuidado dos
escritores exilados presentes nos eventos. De certa forma, o acompanhamento da vida
política no Brasil, como demonstrado na carta de 19 de outubro de 1954 ou na de 08 de
junho do ano seguinte, evidencia a condição periférica brasileira (e da América Latina) ao
equivaler-se à situação de precariedade no Vietnã e Argélia. Neste situação, a revista
Anhembi ganha papel relevante, ao constituir-se num dos principais veículos de diálogo
para as idéias de intelectuais e escritores brasileiros, bem como espaço para publicação de
artigos franceses:
404
A questão dos modelos é fundamental para a organização cultural dessa metade do século XX. Paulo
Duarte revela seu desejo de prorrogar a estada de Joseph Emperaire e sua mulher no Brasil até o primeiro
impulso do Instituto de Pré-História, idealizado para ser o núcleo do futuro Instituto do Homem Americano,
criado “à imagem e semelhança do ‘Musée de l’Homme’”. Id. Ibid., p.96.
405
Id. Ibid., p.88.
210
O que mais me inquieta neste momento é a grande ofensiva da direita,
na América Latina. O caso da Guatemala é uma ilustração, o caso
brasileiro outra e a revolução antiperonista na Argentina constitui o
exemplo mais frisante. Nós, os homens da esquerda, fomos quase
obrigados a apoiar Perón, porque se êle fôsse esmagado agora pelo
elero [clero] e pelo militarismo “catolicón” que se levantaram contra
êle, veríamos, em seu lugar, uma situação mais reacionária do que
nunca. Chamo a sua atenção para o artigo de fundo de ANHEMBI do
mês de agôsto próximo, e peço mandar a sua opinião com tôda a
franqueza.
406
Este desejo é também manifestado pelo grande interesse em conseguir artigos para a revista
brasileira, como é o caso do Padre Teilhard de Chardin, abafado pela ordem jesuíta da qual
fazia parte, com idéias importantes que interessavam a Paulo Duarte.
Aos poucos, configura-se um campo cultural que poderia ser entendido
também como um desenho, uma carta, que não tem origem e destino fixos. É o caso da
carta de 26 de outubro de 1955, iniciada na Costa Rica, continuada num avião e terminada
em Paris para chegar a São Paulo... Esta escritura literalmente em suspensão é a própria
condição cultural a que se submetem os diversos artistas e intelectuais, condição esta que
amplia os destinatários, nem Paulo nem Rivet, com um itinerário que passa por novos
cruzamentos, neste outro ponto de encontro do futuro.
Mas o tom ácido da crítica da nossa condição ganha mais corpo com a
missiva de 10 de novembro de 1955. Nela, Paulo Duarte demonstra certa clareza da
situação dos povos explorados:
Os velhos países da Europa pagam caro a cegueira do século XIX –
êste século em que a ciência conheceu uma expansão prodigiosa,
precursora das belas conquistas de hoje e que, no entanto, permaneceu
tão indiferente, cruel mesmo, com relação à condição humana, ao
ponto de admitir que a grandeza das nações chamadas civilizadas se
alicerçasse na escravização e no embrutecimento dos povos fracos.
406
Id. Ibid., p.115. Alguns escritores/intelectuais envolvidos no debate aparecem nesta mesma carta, como
Sartre e Elèna de la Souchère, sem falar do papel decisivo que o periodismo exerce para o posicionamento do
mundo ocidental. Paulo Duarte comenta com Rivet: “No número de setembro, pretendo reafirmar a linha
política e social de ANHEMBI por um comentário sôbre o incidente Bourdet-Camus. A propósito quais são,
neste momento, as suas relações com o grupo de “Observateur”? Tenho interêsse em tomar contacto com êle.
Seria uma aproximação útil e eu poderia enviar-lhes periòdicamente pormenores sôbre a situação brasileira, o
que não os deixaria cair em mais erros muitas vêzes grosseiros. Elèna de la Souchère, cuja colaboração é
geralmente excelente, de vez em quando demonstra uma profunda ignorância sôbre a verdadeira situação da
América Latina.”.
211
(...)
Muito mais sombrio do que o futuro da França é, a meu ver, o futuro
do Brasil, imenso depósito de matéria-prima, quase despovoado,
riquíssimo potencialmente, mas miserável pela sua manifesta
incapacidade de governar-se.
Minha única esperança está num organismo internacional bastante
sólido para impor-se às nações reduzidas já à condição de províncias
de uma só pátria terrestre. No dia em que esse parlamento mundial
existir, deverá resolver, primeiro, os problemas da Europa e da Asia
que não podem mais esperar; mas, em seguida, terá que intervir na
vida interna de nossos países incapazes da América Latina, a fim de
lhes impor a ordem e a dignidade que êles não sabem manter.
Enquanto os velhos países organizados poderão conservar a sua
autonomia provincial, nós outros, os países jovens precocemente
envelhecidos, estaremos reduzidos a simples territórios submetidos
à autoridade de um curador.
407
A crítica de Paulo parece reter uma imagem que não deixou de existir: nós, povos latino-
americanos, somos a carta lida pelo explorador, como há 500 anos atrás, ou seja, mesmo
com a esperança de uma saída internacional, tal saída fará o mesmo que fizeram conosco:
também partiram de um esboço cartográfico, para aqui ler o que quisessem. O percurso
continua, na medida em que essa carta centraliza-se em um único organismo. Precisamente,
este é o objetivo da criação da Organização das Nações Unidas que, para além de seu
papel político, ou exatamente por ele, atua no campo cultural como estratégia de
interferência nos diferentes países. Uma de suas ramificações, a UNESCO, patrocinará nos
anos 1970 um longo estudo da América Latina. Na “Introdução” de América Latina em
sua literatura
408
, após a pergunta “O que é a América Latina”, César Fernández,
abordando a “cadeia de explosões” na América Latina (política, econômica), anuncia a
outra, a cultural, para, finalmente, apresentar o estudo encomendado da UNESCO.
Pois bem: este mundo totalmente humano é precisamente o que uma
organização como a Unesco se empenha em suscitar. No caso
particular da América Latina, é evidente o impacto atual desta grande
região cultural sobre a cultura universal, assim como a concreta
indeterminação dos fatores que a configuram como tal. A Unesco não
407
Id. Ibid., p.121, 122, grifos meus.
408
FERNÁNDEZ MORENO, César (org.). América Latina em sua literatura. Trad. Luiz João Gaio. São
Paulo : Perspectiva, 1979 (Coleção Estudos, n.52).
212
poderia deixar de registrar este paradoxo e prestar-lhe a devida
atenção, procurando captá-lo, para defini-lo e dá-lo a conhecer.
(...)
a) considerar a América Latina como um todo, integrado pelas atuais
formações políticas nacionais. Esta exigência levou os colaboradores
do projeto a sentir e expressar sua região como uma unidade cultural,
o que veio a favorecer neles um processo de autoconsciência que o
projeto pretende estimular, já que forma chamados exclusivamente
intelectuais latino-americanos para participar dele.
(...)
A consideração da América Latina como um todo, obriga a deixar
de lado, ou pelo menos olhar com menos atenção as características
mais localizadas. O enfoque preferencial do contemporâneo [o
segundo critério] leva quiçá a esquecer outros valores realizados na
região, ao longo de sua história.
409
A pressão acontece com os dois interlocutores. Paul Rivet, desolado com a
situação na França, recorre aos amigos do México, Honduras e Costa Rica. Inclusive com
uma viagem ao Haiti, São Domingos e Cuba como sinônimo de fuga e remorsos. Porém,
não esconde a preocupação com a situação política dos “americanos”, com o crescimento
da figura de Juscelino Kubistchek, receando, inclusive, um golpe militar! Paulo Duarte, por
sua vez, procura mantê-lo informado, dando crédito ao governo de Juscelino, ao passo que
classifica-o, juntamente a Adhemar Barros, como “filhos de Getúlio”, temendo o golpe e o
futuro do país
410
. O alento parece estar precisamente no caráter institucional da cultura, na
medida em que ambos alimentam o desejo de fortalecer o “Museu” e criar outro no Brasil
(com molde francês, como vimos)
411
.
Uma imagem que percorre a carta, elucidativa da dimensão de representação
do caráter simbólico da cultura, encontra-se no prefácio de Izoulet ao livro Os heróis, de
Carlyle:
409
Id. Ibid., pp.XXIII eXXIV, grifos meus. Ou seja, os critérios não diferem em muito da cartilha estado
novista brasileiro e das ditaduras latino-americanas: integridade, nacionalismo, unidade cultural. A meu ver, o
mais grave reside em justificar tais critérios em função exatamente do enfoque “contemporâneo”. Segundo o
organizador, toda a estrutura do livro serve para responder a pergunta “O que é a América Latina”, mesmo
sabendo que não sabemos o que ela é, com a única certeza de que ela é “nossa”!!. (p.XXIV).
410
Conclui nesta carta de 10 de novembro de 1955 dizendo: “Numerosos são os filhos de Getúlio, tôda a
política brasileira está infestada dêles. Mas já que tive a desgraça de nascer num país assim e a felicidade de
formar o meu espírito sob o guia de homens como o sr., o meu dever parece-me muito claro: ficar aqui e lutar!
O espírito do “Musée de l’Homme” – o seu espírito eterno e não âquele que impera hoje e que é transitório –
o espírito do “Musée de l”Homme” continua me conduzindo”. Id. Ibid., pp. 122-123.
213
O grande humanista francês aí se refere aos eclipses do sol e do pânico
que causam entre os selvagens, desesperados, pensando que não mais
poderão rever a luz. Pois quando há eclipses do Ideal, os homens
civilizados ficam também com mêdo de o pensamento estar ameaçado
de morte. Os eclipses do sol, todavia, não duram mais do que segundos
ao passo que os do ideal podem durar séculos, mas sempre a luz acaba
ressurgindo. Atravessamos, neste momento, um período sombrio, mas
não duvidemos do reaparecimento da luz.
412
Diria que é precisamente esta imagem assombrada que traduz boa parte
desse imaginário latino-americano, de uma identidade eclipsada, em que a busca dessa luz
só se encontra na imagem produzida por este encontro/confronto. O resultado, ou o efeito,
será uma imagem que não se deixa captar – uma imagem em fuga, desencontrada, em que o
contato com sua espectralidade assusta ainda mais por não achar uma simetria perfeita entre
a luz e sua sombra, entre a imagem procurada e a refletida. Para tanto, responde a esta
busca a crescente fundação de instituições culturais, assim como a crescente demanda de
museus e galerias nos Estados Unidos :“La galería se presentaba así como un instrumento
de educación cultural, a la vez desinteresado, patriótico e internacional”, afirma Serge
Guilbaut
413
. Uma outra leitura certamente veria neste ponto o princípio fílmico que
moveria, no campo artístico, a noção de tempo e de movimento: os efeitos de representação
enquanto este encontro da intermitência dos segundos (do sol) e uma permanência-
persistência de um outro tempo (o Ideal). Gilles Deleuze, trabalhando algumas categorias
do movimento a partir de Bergson, afirma que
1. Não há apenas imagens instantâneas, isto é, cortes imóveis do
movimento; 2. há imagens-movimento que são cortes móveis da
duração, imagens-mudança, imagens-relação, imagens-volume, para
além do próprio movimento....
414
411
Id. Ibid., p. 122.
412
Id. Ibid., p. 122.
413
In De cómo Nueva York robó la idea de arte moderno. Op. cit., p. 159.
414
DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – A imagem-movimento. Op. cit., p. 21. Em outro livro, Deleuze propõe a
intuição como método. Afirma o crítico da dobra: “Em resumen, la intuición se ha convertido en método, o
mejor, el método se ha reconciliado con lo inmediato. La intuición no es la duración misma. La intuición es
más bien el movimiento por el que salimos de nuestra propia duración, por el que nos servimos de nuestra
duración para afirmar y reconocer inmediatamente la existencia de otras duraciones por encima o por
debajo de nosotros.” In El bergsonismo. 2ª ed. Trad. Luis Ferrero Carracedo. Madrid : Ed. Cátedra, 1996,
p.31 (Colección Teorema), grifos meus. Mais adiante, encontramos uma definição que resume e amplia o
leque de percepção a respeito do tempo (e do percurso deste trabalho): El pasado y el presente no designan
dos momentos sucesivos, sino dos elementos que coexisten: uno, que es el presente que no cesa de pasar; el
214
Este é o momento em que o projeto editorial se fortalece entre ambos. Rivet
envia a Gallimard a nova edição de As origens do homem americano e o IV tomo da
Bibliografia Aimará e Kicua. Pouco tempo depois, desejoso de terminar seus dias no
Brasil, e temendo pelo destino do centro de “Hautes Études Brésiliennes”, Rivet contacta
Roger Caillois, leitor e Conselheiro da Gallimard, para auxiliar Paulo Duarte na edição
portuguesa do livro. Em janeiro de 1956, vários intelectuais brasileiros estão discutindo os
textos de Rivet, incluindo Alceu Amoroso Lima que envia uma carta à Anhembi sobre o
Manifesto Espiritual do francês. Dois outros franceses recebem cópia da carta que propõe a
instalação de um “verdadeiro centro de estudos brasileiros” - Jean Sarrailh e Roger Bastide
- no momento em que o Reitor da Universidade de Paris deseja transferir a biblioteca do
“Institut Français des Hautes Études Brésiliennes” para outra organização. Há também na
capital francesa uma outra instituição, situada à rua Guillomin, o “Institut des Hautes
Études Hispano-Americaines”
415
. O clima fervilha com a publicação dos Anais do
Congresso dos Americanistas de São Paulo e dos “Rencontres Internacionales” (por
Genebra) saídos em “Le Nouveau Monde et l’Europe”. Destes, Rivet solicita a Paulo a
tradução de sua conferência para o português e a conseqüente publicação em Anhembi.
Nesse sentido, a proporção de engessamento das artes, da literatura, dos estudos etno-
antropológicos corresponde à demanda do intelectual enquanto legislador, similitude que
não vê outra saída, eleger a cultura como o corolário da humanidade.
Consciente da tensão de que aquilo que se passa em uma distante e pequena
cidade do Brasil depende dos acontecimentos na Europa ou na Ásia, Paulo Duarte,
alarmado com o que seria a globalização de hoje, com os dados do Brasil quanto aos
outro, que es el pasado y que no cesa de ser, pero mediante el cual todos los presentes pasan. (...) En otras
palabras, cada presente remite a sí mismo como pasado.”, pp.59-60.
415
Paul Rivet tem urgência em editar suas obras, temendo sua morte, o que o leva a “esvaziar as gavetas”. Ao
lado disso, a constante preocupação com o destino dos povos periféricos, como os países da África, estão em
suas preocupações: “Sei que esfôrco é preciso fazer para dar a todos os povos a sua independência e aprovo
tudo quanto se faça nesse sentido, mas pergunto: se formos muito depressa não acabaremos por transformar a
África numa série de “Libérias”. Mas choco-me de encontro a contradições de todos os lados. Meus
sentimentos democráticos me obrigam a reconhecer a cada povo o direito de um lugar igual nas organizações
internacionais (ONU, Unesco, BIT etc.), mas, ao mesmo tempo, não posso deixar de achar absurdo que o voto
da Líbia tenha o mesmo pêso do da Rússia, e o da Nicarágua o mesmo pêso que o do México ou o do Brasil.”
Paul Rivet pôr ele mesmo. Op. cit., p.130.
215
analfabetos e semiletrados
416
, das cartas marcadas para os cargos da ONU
417
, além de
considerar as repúblicas da América do Sul como precárias e “ ‘desertos de homens e
idéias’, expostas pela própria riqueza de seus imensos territórios cheios de matéria-prima, à
cobiça insaciável do capitalismo apátrida” (p.135), vê-se desanimado, mas não vencido, na
luta pela cultura:
É isto que torna tão trágica a nossa luta pela cultura! Aqueles que
teimam em lutar devem armar-se da alma de um missionário ou
mesmo de apóstolo e certos de que serão a qualquer momento
devorados pelos tupinambás. Enquanto os tupinambás aí são em
número pequeno e quase perderam já a prática da antropofagia...
418
Noção importante esta, uma vez que reafirma a posição do intelectual/escritor frente à
cultura como “missão”, e mais, como missão que admite um objetivo “elevado” (“Hautes”)
e esclarecedor (“missionário”), pedindo dele uma entrega total (apostólica e celibatária),
pronto para o sacrifício (tupinambá-antropófago), mesmo que não haja razão para tanto – a
cultura como algo em vão, inútil (selvagens em número pequeno e sem a prática da
antropofagia). Talvez daí a necessidade de continuar investindo nas instituições. Se o social
não responde às expectativas, a própria comunidade se alimentaria de sua produção (não
mais antropo mas autofágica). Ironicamente, o “Institut des Hautes Études Brésiliennes” é
transferido para o 2º andar da casa Augusto Comte, no momento em que o rival de Rivet,
Henry Vallois, publica a história do “Museu do Homem”, voltando ao século XVII, quando
Luiz XIII cria o “Jardin Royal des Plantas Médicinales”, daí surgindo o “Museum
d’Histoire Naturalle”. É nesta casa então que o Brasil e os hispano-americanos estão
instalados, o que nos fornece uma certa dimensão da tradição em que estão inseridos na
Europa, ao mesmo tempo em que reforça o caráter institucional da cultura. Quando Paulo
Duarte é convidado a ir a Londres pelo governo inglês, graças aos seus esforços para a
criação do Museu de Ciências de São Paulo e do Museu do Homem Americano, decide-se
416
Na carta de 25 de abril de 1956, o escritor paulista afirma que há no Brasil “70 por cento de analfabetos e
seus 15 ou 20 por cento de semiletrados que lêem mas não entendem o que lêem!”. Id. Ibid., p.135.
417
Cargos estes ocupados por “velhos medalhões incapazes, ou pelos restolhos de antes de 1914 e 1939, de
mentalidade rococó, arrasados pelos preconceitos e a encarniçarem-se na guarda de posições por causa
exclusivamente das vantagens que elas oferecem e não para servir a Humanidade.” Id. Ibid., p.135.
418
Id. Ibid., p.135.
216
que o “Encontro de Intelectuais” será bianual, com despesas custeadas por duas outras
instituições: Fundação Matarazzo e UNESCO
419
.
Desta forma, cultivar/conservar os valores europeus (franceses...) aparece
como um valor em risco. É o caso do retorno do adido cultural da França no Brasil, Paul
Silvestre, que se despede, com “seu discurso de agradecimento (em português)”, deixando a
impressão de que foi um dos únicos que conservou entre os brasileiros a flama do espírito
francês, numa época em que o espírito comercial tomava conta de todos os espaços:
Todos os homens de letras, os artistas e cientistas de S. Paulo desejam
ardentemente a volta de Silvestre. E ficaríamos reconhecidíssimos se
pudesse ajudar-nos nisso, pois a propaganda cultural francesa vai
sendo cada vez mais sufocada pelo espírito comercial. Os
representantes da França aqui parece que se interessam apenas pelas
máquinas de tôda espécie, locomotivas, centrais elétricas. O professor,
o livro, o vinho francês foram relegados a um plano secundário pelos
diplomatas do Quai d’Orsay. (...) Eis por que desejamos a sua volta,
nós que continuamos fiéis ao que nos trouxeram de França os
cientistas, os intelectuais, os artistas e também, por que não? Certas
jovens alegres, muitas das quais até ajudaram a civilizar alguns
bárbaros da terra...
420
Aos poucos, firmou-se um forte intercâmbio cultural e periodístico entre o
Brasil e a França que fomentou todo um debate em torno de questões que, de alguma
maneira, interessavam à política de ambos lugares. Esta relação se mantém até os últimos
dias de Paul Rivet, o qual, “esvaziando as gavetas”, crê preencher o seu papel de defensor
da cultura francesa e de pesquisador/humanizador da América Latina. Vale recobrar que,
419
A atuação desses intelectuais chega ao ponto de envolverem-se tão profundamente com a vida política que
Paul Rivet, também deputado em seu país, será convidado a tentar reatar as relações de amizade da Indochina
com a França, uma vez que é um velho amigo de Ho-Chi-Minh, líder comunista daquele país. Em uma
entrevista concedida a Gilles Martinet do France Observateur, Rivet revelará que este convite foi
bruscamente interrompido: “Afirmaram-me que, após a ONU, eu poderia ir a Hanoi anunciar ao meu amigo
Ho-Chi-Minh o reinício das relações diplomáticas entre a França e o Vietnã do Norte. Fui até Tóquio. Porém
lá recebi um telegrama de Joxe comunicando-me que devia renunciar à minha viagem". Também confessa
que agarrou “os delegados nos corredores da ONU como as meretrizes agarram seus clientes pelas ruas” para
convencê-los sobre o problema argelino, ao mesmo tempo que afirma “Você precisa saber a razão por que
aceitei, a pedido de Guy Mollet e Christian Pineau, a tarefa de advogar, em tôdas as repúblicas sul-americanas
e depois nos corredores da ONU, a causa do govêrno francês.”. A entrevista está transcrita em Paul Rivet por
ele mesmo, Op. cit., pp-163 a 165. Logo, fica bem explícito o projeto cultural que os países “civilizados”
terão para com os “latino-americanos”, tornando-se um dos motivos da disputa dos Estados Unidos em
controlar este “legado” cultural.
420
Id. Ibid., p.152, destaques meus.
217
neste momento, Paulo Duarte firma o objetivo de lançar a edição atualizada de A origem
do homem americano em português
421
, ao mesmo tempo em que é lançada pela
Gallimard. Em abril de 1957, Paulo convida Rivet a vir ao Brasil mais uma vez, agora para
a fundação do “Instituto do Homem Americano”. O dado curioso, e não menos importante,
quanto à criação desse Instituto deve-se primeiramente ao dinheiro oferecido. A Condessa
Périgny, cujo marido trabalhou como arqueólogo na África e na América Central,
disponibiliza 1.500.000 cruzeiros, porém, é de Paulo Duarte o conselho de vincular esta
quantia a uma bolsa de estudos a um pré-historiador, “obrigatoriamente francês”, para
pesquisar sobre a pré-história brasileira. Tal medida, concretizada em escritura pública para
afastar a concorrência de outros países, tinha como objetivo “dar ao Instituto um cunho
científico bem francês, pois não é a Pré-história uma ciência de origem francesa?” (p.155).
Esta história tem como primeiro plano uma relação de amizade que soube
tratar os nacionalismos não como obstáculos, nem mera diferença, mas como
peculiaridades de partes que se atraíam, de filtrar pontos que interessavam a ambos. Ainda
em sua última carta, Rivet escrevia ao brasileiro, após reafirmar um convite para voltar à
França pela “Relations Culturalles” ou pelo “Institut des Hautes Études de l’Amérique
Latine” e confirmando, agradecido, sua grande amizade, que “A Colômbia, o Peru, como
até certo ponto o Brasil e a Argentina, tomaram o bom caminho. Infelizmente os Estados
Unidos conservam a mesma tendência de apoiar os ditadores.” (p.155).
As questões políticas e culturais estão presentes o tempo todo. Porém, surge
um dado novo, ou melhor, uma questão antiga, agora nomeada. Respondendo a carta de
Paulo Duarte, a irmã de Rivet afirma que ele está incomodado com as “ilustrações do seu
livro” a que Paulo Duarte comenta com a mesma inquietação:
A edição brasileira de “As Origens do Homem Americano” está no
prelo. Tenho pois necessidade urgente das ilustrações, sobretudo do
material fotográfico para que a apresentação do volume seja digna do
seu conteúdo. As fotografias reproduzidas são forçosamente
reticuladas, de modo que será correr um grande risco de imperfeição
usar para a edição brasileira gravuras obtidas diretamente da edição
421
Consta em português uma publicação pela Editora Ypê. Na carta de 17 de setembro de 1957, Paulo Duarte
comenta que esta edição será acompanhada de dados do Professor Antonio de Almeida Prado, com a
suposição de que a “Talassemia”, espécie de anemia hemolítica, poderia ter dizimado os Maias. A hipótese do
professor seria de que a Talassemia teria origem asiática, entrando primeiro pela Europa Oriental, depois pela
Ásia Menor. Id. Ibid., p.158.
218
francesa. Para a tradução da obra de Lévi-Strauss a aparecer dentro em
pouco [trata-se de Tristes Trópicos], o editor Plon me mandou tôda a
documentação fotográfica utilizada na edição francesa.
422
A seqüência de fotos da edição em espanhol traz inicialmente a parte “fóssil”
423
(a primeira
apresenta dois ossos de Missouri com inscrições; a segunda, um fragmento de pele de
Glossotherium ou Ncomylodon; a terceira, cinco fotos de quartzo talhado de Trenton –
Nova Jersey; várias fotos, em diferentes posições, de crânios humanóides - da Bahia de
Baffin, da Terra do Fogo, da Austrália, de Lagoa Santa no Brasil, da Melanésia – para
enfim, numa página inteira, larçar-nos em uma panorâmica de nativos, divididos em dois
barcos típicos, da Ilha Paama, seguida de uma foto de um índio barbado do rio Tukutú, da
Serra de Perijá – Venezuela. Na parte inferior da página, pesquisadores posam com índios
marakás. No número quatorze e quinze, aparecem índios pigmeus, do rio Top-Ti-Muitsha,
da Serra de Perijá, em geral mulheres jovens e adultas, finalizando com uma foto de uma
“maquete do barco de Oseberg, segundo Sjoevold (Thorleif)”. Chama a atenção o olhar dos
índios, todos sérios, como que completamente indiferentes ao fotógrafo. Ora estão de frente
para a câmera ora de perfil, como a do índio barbado da Venezuela, fotografo em meio
plano, em que o olhar distante e aparentemente indiferente lembra muitos dos personagens
de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na terra do sol
424
. São reproduções em preto e
branco e procuram registrar os índios em seu habitat natural.
422
Id. Ibid., p.160. A edição em espanhol de As origens do homem americano aparece ao mesmo tempo em
que o lançamento francês, 1943, pelos Cuadernos Americanos. Em 1960, há uma segunda edição pela
Coleção Popular, seguida de muitas outras, inclusive pelo Fundo de Cultura Econômica. No Brasil,
desconheço outras publicações, além da já citada pela editora Ypê, em 1947.
423
Este tema começa a ganhar espaço com a primeira edição em 1921 de Les Hommes Fossiles, de Marcelin
Boule, seguida de uma segunda em 1923; a terceira é de 1946 e a quarta, de 1952, podendo ter servido como
base para a conturbada atualização de Henri Vallois, por quem Rivet e Duarte nutrirão grandes mágoas, entre
elas pelo fato de Vallois não incluir o nome de Rivet como um de seus fundadores. Possivelmente Mário de
Andrade conheceu o livro de Marcelin Boule, uma vez que, ao organizar o projeto da Enciclopédia, nela
inclui algumas fotos de cabeças, inclusive com a de um “Fóssil” reconstituído no Museu Nacional.
424
Em “A arte antes da vida – Glauber Rocha, a estética da fome e a estética do sonho”, José Carlos Avellar
analisa as tensões provocadas pelas “visões” do percurso fílmico de Glauber : “A fome. Sintoma alarmante,
nervo da sociedade, trágica originalidade do subdesenvolvimento: “nossa originalidade é nossa fome e nossa
maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida”. O sonho. A linguagem por excelência do
homem oprimido, que liberta pela imaginação o que é proibido pela razão: “O que o inconsciente comunica
ao consciente em termos de símbolos na experiência individual do sonho pode ser comentado pelo cinema
como experiência coletiva”. / (...) o tempo todo em movimento, tensão entre o que é sentido e o que faz
sentido: sentir a fome (vergonha nacional: o brasileiro “não come mas tem vergonha de dizer isto”),
compreender a fome, e devolver na imagem não a compreensão, não o entendimento, não um discurso
racional que “encare o homem pobre como um objeto que deve ser alimentado”. Devolver a reação
desesperada que explode da compreensão de que a compreensão é impossível: que explode do que
219
As fotos solicitadas chegam de avião ao Brasil quando o livro de Rivet está
prestes a sair, bem como O espírito das catedrais
425
, de Paulo Duarte, sobre a experiência
do exílio. A morte do francês ocorre em 21 de março de 1958, mas os jornais só sabem da
notícia três dias depois, a seu pedido, quando o jornal France Observateur publica uma de
suas últimas entrevistas. Como a tensão ainda é grande com a Argélia, Rivet revela, entre
outros muitos assuntos, que assinou, juntamente com os professores primários da França,
uma moção que condena a política de força, que preconiza a negociação
426
, considerando o
processo de independência como conclusão inevitável dessa negociação. É em razão desse
cuidado de Rivet que Paulo Duarte recusará o convite para ir à Argélia, para não
comprometer a imagem da França no exterior diante das cenas de violência e tortura dos
militares que lá ocorrem.
Resta, portanto, elaborar a máscara mortuária de Rivet. Paulo Duarte o faz,
não só com o lançamento do livro que trata da correspondência, esta intimidade agora
pública, também através dos textos que publica em Anhembi, em maio de 1958, toda
dedicada à memória do etnólogo, bem como enviando correspondência a periódicos que
nem comentaram a sua morte. No “Retrato Moral”, última parte do livro Paul Rivet, pôr
ele mesmo, Paulo Duarte busca recuperar uma imagem de um homem a quem o Brasil e a
América Latina devem muito, recuperando alguns fatos importantes de sua vida: A
fundação da “Comissão de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas”, juntamente com León
Blum e Alain; a sua eleição para deputado (o mais votado) pela “Front Populaire” em 1935;
a fundação da primeira rede de resistência na França através do jornal clandestino “La
Résistance”, em 1940; ou através dos diversos textos que publicou, como “Testamento
Político”, “A tristeza dos velhos” ou ainda “Independência e liberdade”. Paulo Duarte
recorda o cenário mundial, os esforços de Rivet em atuar com valores humanísticos, mesmo
fundamentalmente agride a razão: a fome, a miséria, o subdesenvolvimento. O cinema como um meio de
devolver a “anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a
pobreza”.” Avellar tira duas conclusões : A primeira, a de que nossa originalidade é a fome e a segunda, a de
que a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência, de onde poderia-se ler a violência benjaminiana
a partir da estética da fome de Glauber. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García
Espinosa, Sanjinés, Alea – Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro / São Paulo : Editora 34 /
Edusp, 1995, pp. 77, 84 e 85. A outra violência, a da guerra, e suas relações com o cinema pode ser
encontrada em Guerra e cinema de Paul Virilio. Trad. Paulo Roberto Pires. São Paulo : Scritta Editorial,
1993.
425
Hoje, corresponde ao volume de número 10 das memórias de Paulo Duarte, editadas pela Paz e Terra.
426
Observe-se que estes são um dos critérios que a ONU e a UNESCO, bem como a OEA, assumirão como
princípios norteadores de suas ações. Para tanto, consultar páginas virtuais.
220
quando a UNESCO estava infiltrada pelo fascismo e a América Latina lutava (?) para
livrar-se do caudilhismo e do analfabetismo. Se o Brasil e a América Latina perdiam seu
“maior amigo europeu!” (p.179), a memória que o brasileiro quer que perdure do francês
está neste testamento que seu texto nos dá. Entre alguns tópicos, valeria destacar o seguinte:
A sua morte deixa-nos, a nós, dessas gerações, mais ou menos órfãos.
Cada dia, os modernos guias da França mais se desinteressam dêsses
laços culturais que a imortalizaram em nossos países. Rivet foi fiel até
a morte a esta tradição. O “Institut Français des Hautes Études
Brésiliennes”, que êle e Henri Laugier fundaram em Paris, em 1945,
êste último então diretor de “Relations Culturalles”, do Quai d’Orsey,
são o documento decisivo, aliás a última manifestação do interêsse
dos governos franceses por êsses laços que fizeram de tantos
brasileiros, argentinos, mexicanos, colombianos – sem que deixassem
de permanecer profundamente brasileiros, argentinos, mexicanos,
colombianos – franceses de cérebro e coração, tão devotados e
amantes quanto todos êsses que, hoje, em Paris, em tôdas as cidades
francesas, constituem ainda os “maquis” de uma França espiritual, da
qual, mercê das misérias modernas, uma França política e uma França
econômica, parece, não mais quererem tomar conhecimento.
427
Paulo Duarte percebe que morre com Rivet um modelo do moderno. E se
hoje muitos não querem tomar mais conhecimento desse mundo “espiritual” francês, é
porque ele já mudou de lugar: o espaço é o da indústria: da locomotiva, das rotativas
impressoras, dos automóveis, dos aviões, dos geradores enormes, enfim, de “tôda a
maquinaria gigantesca” que, se não apenas francêsa, caminha para a sua dissolução para se
tornar os novos bens “culturais” da humanidade. A França já não é tão longe daqui... A
França já está em Nova York.
427
DUARTE, Paulo. Paul Rivet, por êle mesmo. Op.cit., pp. 181-182, grifos meus. Não se pode esquecer
que outra influência institucional ocorreu com a fundação do Instituto Oceanográfico de São Paulo, precedido
pelo modelo do Museu de Ultramar, criado em 1937 na França.
CAPÍTULO IV
4.1 – FÓSSEIS EM REVISTA
A mudança que se opera no eixo Paris-Nova York representa um processo
dinâmico das alterações (e percepções) das políticas culturais no alto modernismo em
relação à América Latina, especialmente o Brasil. Desta forma, reatando alguns temas
abordados anteriormente, este capítulo visa perceber alguns aspectos histórico-culturais e
literários da manifestação da imagem do intelectual legislador modernista.
Na conformação de uma rede de diálogos, portanto, de cartas, um dos
legados modernistas pode ser encontrado nas revistas, nomeadamente a revista paulista
Anhembi. A meu ver, este periódico representa, de maneira pontual, parte significativa dos
projetos vistos anteriormente, ao mesmo tempo que consolida um saber, político e literário,
predominantemente doutrinário, portanto exemplar.
Não seria descabido afirmar, então, que o conceito de moderno na revista
Anhembi está vinculado a um saber modernista normalizador, pedagógico, que busca a
disciplina do olhar do seu leitor. A esse saber corresponde um projeto de institucionalização
cultural em que freqüentemente “cultura” vincula-se à “pedagogia”, encontrando sua
vertente mais consistente nos estudos antropo-sociológicos.
Há outros desdobramentos importantes. Um deles reside na percepção de
como a revista promove os escritores modernistas e/ou “pós-modernistas”. A herança
modernista estaria, desta forma, debatendo de que forma reorganizar o passado e o presente
cultural, o que poderia ser lido como organizar a atual biblioteca diante do iminente
modernariato. Para tanto, busco apreender algum critério utilizado na seleção dos textos,
encenando, pelo que mostram e pelo que excluem, uma concepção de mundo tratado
222
enquanto antologia. Teríamos, nesta vertente, a organização da antologia não apenas como
remontagem das peças (herança), mas como a tentativa de cristalização de conceitos da
cultura letrada.
Neste processo de redefinição do moderno, antologia e revista, ou a revista
enquanto antologia, deixam transparecer o que foi, e o que poderia ter sido, uma proposta
de avanço no debate cultural. Uma das fortes correntes da revista percebe o texto enquanto
ponto de apoio para um projeto pedagógico em que literatura e ensino se vêem
aproximados. A revisão da literatura estaria, assim, encenando um caráter “formativo”,
enquanto novos espaços são reivindicados no campo cultural, também acentuados com as
mudanças ocorridas a partir da II Guerra Mundial, momento em que os Estados Unidos
reorganizam os laços comerciais e culturais com o mundo, persistindo na idéia de
transformar Nova York no novo centro artístico global. Daí toda a estratégia que move as
relações culturais no continente.
Dada a importância da publicação de Anhembi, especialmente no cenário
sul-americano, e a necessidade de sondar o imaginário que se constitui no processo de
edição/leitura do periódico, busco re(a)ver a revista, a fim de contribuir e rearmar o debate
sobre cultura, literatura, política e educação.
4.2 - ANHEMBI
Assim como os dois livros de Paulo Duarte a respeito de Mário de Andrade e
de Paul Rivet, poderíamos afirmar que Anhembi, com Paulo Duarte sempre à frente, nasce
também como carta, encena correspondências, lança polêmicas, institui um perfil, demarca
novas territorialidades para o debate intelectual entre a América Latina e Europa,
representando, enfim, um modelo da alta cultura.
A revista surgiu em dezembro de 1950, tendo circulado mensalmente
durante doze anos, sem interrupções. Sempre o terceiro número trazia, ao final do volume,
um “Índice”, dividido por letras em ordem alfabética, reunindo nomes de escritores e
223
personalidades do mundo cultural, artístico e político, bem como mesclado com os títulos
dos artigos e resenhas. Este índice trimestral tinha como objetivo a encadernação dos
volumes
428
. Este detalhe da encadernação, aparentemente supérfluo, é significativo, ao
revelar um costume que vem de séculos de publicações, em que os volumes densos e de
capas duras constituíram todo um imaginário do que era uma biblioteca, certamente
inspirados nos volumosos tomos das Enciclopédias. Um bom acervo, que exemplifica um
pouco deste imaginário, pode ser visualizado nos volumes da biblioteca do escritor mineiro
Murilo Rubião, atualmente sob a guarda da Universidade Federal de Minas Gerais.
Praticamente todas as obras eram encadernadas, com capa dura, devidamente identificadas,
geralmente com letras douradas. O livro assim configurado ganha estatus de
“permanência”, de “durabilidade”, certamente com ecos do ideal iluminista de
esclarecimento. Representa, finalmente, o endeusamento da OBRA
429
, quando o autor
detinha a autoridade, e notoriedade, sobre sua produção, e cuja prática de leitura constituía
todo um ritual, consagrando o hábito e seus praticantes
430
. Tanto a biblioteca de Murilo
quanto a constituição da revista são contemporâneos, uma vez que o primeiro livro do
428
A coleção praticamente completa da Revista a que tive acesso encontra-se no acervo do NELIC – Núcleo
de Estudos Literários e Culturais – da UFSC, onde se podem ver alguns volumes encadernados.
429
Para uma revisão da abordagem de obra/autor, consultar o clássico “O que é um autor” de Michel
Foucault. In Michel Foucault – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Autran
Dourado Barbosa. Organizador : Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2001.
(Coleção Ditos & Escritos III), pp.264-298.
430
Tratando de estabelecer algumas relações entre a etnologia e a escrita, Daniel Fabre, em “O livro e sua
magia”, após reproduzir um fragmento do relato de um leitor com as suas lembranças sobre a cena de leitura,
comum no século XIX, comenta : “A tonalidade edificante do quadro tem valor de denegação: a vigília não
era o lugar e o momento dessa confusão de sexos, de idades e de discursos que a Igreja denuncia, desde o fim
do século XVII? Ora, ao fundo, a personagem do pai lendo os grande autores da República focaliza toda a
cena. Ele tomou, perto do fogo, o lugar do narrador. Mulheres e homens continuam a trocar, ao redor dele,
conversas “abracadrantes” que as crianças escutam. Mas a fala dos vigilantes está contida pela presença do
mestre que lê. Este afirma plenamente sua autoridade de pai de família, de pequeno patrão – ele dirige uma
serraria -, e de notável local, por sua leitura. Mas sobretudo, esta, sempre repetida, idêntica de si mesma,
adquire, no seio da família, a regularidade de um costume.
Outros traços precisam este caráter de ritual. Como o livro vem da escola, toma-se um cuidado extremo com
ele; é coberto com papel, “fechado” no aparador ou no armário, enquanto o almanaque, menos prestigioso, é
simplesmente “posto na borda da chaminé”. O lugar do leitor é sempre o mais iluminado; contra o fogo, à
noite, ou no vão da janela, quando há sol, senta-se na cadeira que lhe é reservada.
(...)
O conteúdo da leitura, portanto, importa menos que a confrontação pessoal e pública com o livro. Além disso,
esta opera a transformação instantânea do leitor e de seus próximos; modifica o comportamento deles, a
linguagem, a conversação, eleva-os acima da “grosseria”.” In Práticas da Leitura. Trad. de Cristiane
Nascimento. São Paulo : Estação Liberdade, 1996, p.205. Valeria a pena observar que a maioria dos escritores
que publicam nesta antologia das práticas da leitura são ligados às ciências sociais e/ou à educação na França,
cuja Embaixada em Brasília apoiou a sua publicação no Brasil. Estão entre os participante Pierre Bourdieu,
224
escritor mineiro foi lançado apenas três anos antes de Anhembi. De certa forma, a revista
vinha acompanhada deste imaginário : ser encadernada, ou seja, durar, como em Nosotros,
o que a princípio revela o paradoxo de uma publicação que se propõe periódica.
431
As edições possuem o formato de 14 x 22 cm, apresentando cores variadas
em cada número. O nome da revista vem em letras garrafais, devidamente centralizada no
alto da capa, sempre da cor branca, seguida do nome de “DIRETOR” e logo abaixo
“PAULO DUARTE”. Descendo o olhar no sentido da vertical para baixo, encontram-se os
principais nomes dos colaboradores. Um desenho com faixa branca corta o colorido da
página. Nele, vê-se estampado um desenho de uma cena bucólica, em que um trecho de
mata com um vilarejo ao fundo é “mediado” por um rio, no qual um pequeno barco, com
cinco homens, procuram afastá-lo da margem com seus remos. Enquanto o barco dirige-se
para a esquerda (há também um outro, bem menor, ao fundo, já nesta direção), um homem
solitário, a cavalo, encaminha-se para a direita entre buritis, coqueiros e embaúbas
432
.
O título vem logo justificado na primeira página. Anhembi “quiere dezir Rio
de umas aves añumas”, rio que penetra – atravessa espaços, amplia – em uma época que
não havia regionalismo, explica a nota. Exatamente cinco anos atrás, Mário de Andrade
realizava uma espécie de balanço existencial a partir do rio que agora serve como
François Bresson, Roger Chartier, que dirige a reunião de textos, Robert Darnton, Daniel Fabre, Jean Marie
Goulemot, Jean Hébrard, Louis Marin e Daniel Roche.
431
Também este procedimento poderia ser visto como a dupla face do moderno, segundo Baudelaire, em O
pintor da vida moderna, e muito bem observado por Michel Leiris em Espelho da tauromaquia, que o
analisa a partir da relação que ele mantém com a noção de beleza, de “sagrado”, de erotismo, e, portanto, de
morte, de sacrifício. Leiris reivindica a definição de “infortúnio” reconhecida por Baudelaire como “condição
fundamental da beleza”. E conclui : “Banir a morte ou mascará-la por trás de sabe-se lá qual arquitetura de
perfeição intemporal: tal é a preocupação senil da maioria dos filósofos e inventores de religiões. Incorporar
a morte à vida, torná-la de certa maneira voluptuosa (como o gesto do torero conduzindo suavemente o touro
nas dobras de sua capa ou de sua muleta), tal deve ser a atividade desses construtores de espelhos, quero
dizer: de todos aqueles que têm por propósito mais urgente agenciar alguns desses fatos que podemos tomar
por lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo, que portanto nos alçam ao nível de uma
plenitude portadora de sua própria tortura e de sua própria derrisão.
Não terão chance de êxito se não misturarem à liga com que comporão o aço de seu espelho (espetáculo,
encenação erótica, poema, obra de arte) um elemento suscetível de fazer repontar através da beleza mais
rígida ou mais suave algo de desvairado, de miserável até o fim e de irredutivelmente vicioso. Pitada de
veneno sem a qual nenhum álcool seria concebível, pois a ebriedade – por eufórica que seja – não pode jamais
ser algo além de uma imagem mais ou menos aproximada de nossa comunhão futura com o mundo da morte.”
A instigante análise de Leiris deixa a nu o procedimento de constituição/congelamento da biblioteca, em que
morte e vida tensionam com o efêmero, o passageiro; luta em que a vida busca escapar da morte
incorporando-a, sabendo-a inseparável de seu destino, ou melhor, sabendo-a “ser” seu próprio fim. In
LEIRIS, Michel. Espelho da tauromaquia. Op. Cit., p.74 e 75.
432
O desenho não deixa claro a espécie. A embaúba parece confundir-se com o formato de araucárias.
225
inspiração para o nome da revista. “A meditação sobre o Tietê” é uma espécie de
testamento, em que Mário expõe suas fraturas, procurando sobrepujar a morte que o ronda,
“Transfigurado além das profecias”, utilizando o rio como espécie de ur-metáfora
433
, sem
fim nem começo:
É noite... Rio! Meu rio! Meu Tietê!
É noite muito... As formas... Eu busco em vão as formas
Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens.
É noite e tudo é noite. O rio tristemente
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
Água noturna, noite líquida... Angúrios mornos afogam
As altas torres do meu exausto coração.
Me sinto esvair no apagado murmulho das águas.
Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito
Quereria sofrer, talvez (sem metáfora) uma dor irritada...
Mas tudo se desfaz num choro de agonia
Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio
Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,
E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.
434
433
Esta idéia relaciona-se ao que Susan Buck-Morss denomina de “ur-história” em O livro das passagens de
Walter Benjamin, comentando que este livro “tratas as origens históricas do presente: a história natural se
torna ur-história. Seu alvo não é só polemizar contra o nível ainda bárbaro da idade moderna, mas elevando a
polêmica à teoria histórico-filosófica, desvelar a essência da “nova natureza” como algo ainda mais efêmero,
mais fugaz que a idade antiga. A história natural como ur-história significa sublinhar o caráter pré-histórico da
pré-história burguesa. Esta era uma imagem central no Passagen-Werk.”. Vale destacar que é o próprio Mário
quem procura, nessa arqueologia de si mesmo, a possibilidade de sair vitorioso, apesar da sua “diluição”, ou
exatamente por sua causa:
Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.
No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,
Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela, maior que os adjetivos,
Sou homem! Vencedor das mortes, bem-nascido além dos dias,
Transfigurado além das profecias!
Em : ANDRADE, Mário. Lira Paulistana IN: Poesias Completas – Edição crítica de Diléa Zanotto
Manfio. Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo : Ed. da Universidade de São Paulo, 1987, p.395 e 396. A
referência a Benjamin está contido em BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar – Walter Benjamin e o
projeto das Passagens. Trad. de Ana Luiza de Andrade. Belo Horizonte : UFMG; Chapecó : Universitária
Argos, 2002, p. 94.
434
ANDRADE, Mário. Id. Ibid., p. 391, 392.
226
Se o rio em Mário (se) desfaz, (se) dissolve, nessa mistura de água doce e salgada (uma
única gota), o rio para Paulo Duarte ganha o estatuto constituinte da forma, mas com o ideal
marioandradiano de sobrepujar os regionalismos, atravessar fronteiras, diluir nós, criar
sumidouros, encenar praias. O que entra em questão é, finalmente: Que conceito de cultura
veicular? Como articular saber e experiência estética? Para onde mover as águas? Tanto
para Benjamin quanto para Mário de Andrade, o fragmento, o retalho é fundamental na
construção de suas antologias. O desafio da revista passa a ser, também para o outro
paulista, como organizar a biblioteca, como armar sua antologia. O filósofo Michel Serres,
reivindicando o mundo como texto e a literatura como recorte e simultaneidade de tempo e
espaço, em “Le grand récit”
435
utiliza a imagem não só do rio, mas da torrente,
transformando seu caminho em um “Grand Canyon”, de onde a imagem da água se forma a
partir da co-existência dos elementos erosivos da paisagem. Não haveria, assim,
diferenciação entre os elementos que a compõem, porém o escritor visualiza, nessa
possibilidade de percebermos a multiplicidade de tempos no espaço, o que também valeria
para o princípio da composição da revista, um entre-lugar:
Devant son courant furieux qui entraîne avec lui roches, cailloux et
sables, nous disons aussi sottement que le courant arrache ces
alluvions à des montagnes qui nos paraissent stables dans l’espace;
nous parlons d’érosion, comme si un flux actif usait un socle passif
toujours déjà là, comme une rigole rare dans le massif. Non, l’cau
coule, mais la falaise coule aussi bien, puisqu’elle s’écroule en blocs et
sablons, comme l’eau et comme l’histoire des hommes, en autant et
plus encore de stades ou d’échelons. Les solides coulent tout autant
que les fluides; un peu plus durs, plus résistants, ils y mettent plus de
temps.(...) Derrière les quelques centaines d’étages de l’histoire à
brèves manigances, des millions d’échelons se déploient où l’univers
entier entre le temps.
436
435
SERRES, Michel. Le grand récit. Conferência de abertura do VIII Congresso Internacional da
ABRALIC, realizado em Belo Horizonte, em julho de 2002 (CD ROOM). Esta imagem também surge com
Deleuze e Guattari: “... é a literatura americana, e já inglesa, que manifestaram este sentido rizomático,
souberam mover-se entre as coisas, instaurar uma lógica do E, reverter a ontologia, destituir o fundamento,
anular o fim e começo. Elas souberam fazer uma pragmática. É que o meio não é uma média; mas ao
contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação
localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói duas margens e adquire velocidade
no meio.” In: Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Op. cit., p. 37.
436
SERRES, Michel. Le grand récit. Op.cit., p.4.
227
Parte de sua posição refere-se a uma leitura da história que rechaça a segmentariedade em
função de uma hierarquia de tempo, propondo uma paisagem-espaço como “mosaico de
tempo”, o que alteraria significativamente nossa percepção convencional a esse respeito.
Voltemos à revista em questão.
Anhembi, entretanto, ainda parece segmentar o tempo e o espaço, possuindo
uma linha estrutural que pouco se alterou durante os anos que circulou. A primeira parte é
aberta, espécie de “editorial”, cujo primeiro número é assinado por seu diretor,
desaparecendo em outras edições. O corpus principal da revista é assinado por
personalidades de reconhecimento nacional e internacional, com textos mais densos e, em
geral, problematizadores de questões ligadas a diferentes áreas (cultura, política, artes,
literatura, ciência, esportes, educação), com destaque para assuntos sociais, variando de seis
a oito artigos nesta seção.
Na seqüência, a revista apresenta uma divisão mais clara: “Livros de 30
dias”, “Teatro de 30 dias”, “Artes de 30 dias”, “Cinema de 30 dias”. O primeiro número
traz, ao final, “Páginas imortais” (a la Monteiro Lobato em A novela semanal), que
desaparece em outras edições. Porém, esta é substituída por “Esporte de 30 dias” e, tempos
depois, acrescida de “Ciência de 30 dias”.
A linha geral da revista prima pelo desenho, seja como o da capa (que não se
modificará), como nas pequenas litogravuras acrescidas com o tempo no final das seções
e/ou artigos: são pequenos anjos barrocos, desenhos de insetos, ora uma folha/flor
brasileira, um beija-flor, ou ainda uma pequena cena folclórica (uma folia de reis?). Outro
recurso será a utilização de letras com caixa alta, iniciando o artigo, em que o desenho fica
em segundo plano, mesclando-se, em uma mesma cena, letra e imagem, a letra como
imagem. Este recurso é típico das enciclopédias e obras literárias, também aqui recuperado.
No campo da publicidade, surgem pequenos anúncios, e em geral muito
discretos. Apenas um, mais ousado, traz escancarado o sinal do progresso de São Paulo.
Trata-se de uma foto do “Jardim América”, investimento da Companhia City de São Paulo,
em que se nota uma cidade com bairros muito verdes, casas e sobrados baixos, ruas se
cruzando, um horizonte que o município respira para o seu futuro. Este tipo de publicidade
se firma ao longo das edições e ganha mais espaço, à medida que as “Companhias
Melhoramentos” (também uma denominação de editora da época) invadem outras terras.
228
Nada estranha, portanto, que sua inauguração se dê com o patrocínio emblemático de
empresas que simbolizam, na junção de letra e território, a expansão e a exemplaridade
437
.
Neste primeiro número, a revista apresenta o texto “Justiça Social, por que
preço” de Paulo Duarte. O artigo escolhido para abrir a seção principal de Anhembi é um
texto “estrangeiro”, o de Jean Rostand, intitulado “A genética da URSS contra a genética
clássica”
438
. É significativo o fato de que se inaugure, a partir do texto sobre justiça social
de Paulo Duarte, um sobre genética, da então União Soviética. O contraponto está no artigo
seguinte, de Donald Davidson, “Faulkner e Warren”, versando sobre a contribuição do sul
437
Valeria comparar, nesse sentido, com as propostas da revista Obra – Revista mensual ilustrada, editada
quinze anos antes em Buenos Aires (de novembro de 1935 a dezembro de 1936), e presidida por Celestino I.
Marcó. Aparentemente dedicada a discutir apenas projetos urbanísticos, ela acolhe, em seu corpo, não menos
que Jorge Luis Borges como secretário de redação a partir do número 4 (março de 1936). Na verdade, Borges
está presente desde o primeiro número, quando é resenhado o seu livro Historia universal de la infamia e
depois como comentarista dessa seção de lançamentos. Primeiramente, diria que a revista tem o formato de
Borges. Suas edições primam por abordar temas em que o futuro, um futuro utópico, mas possível, está em
cena. Seguindo essa linha, as capas, e muito da pauta, primam pela jogo da imaginação : são construções
gigantescas, ligação de mundos impossíveis. Ora se trata da criação do metrô de Buenos Aires (como no
primeiro número), ora a apresentação de um olho eletrônico, ou ainda máquinas e construções de toda a
ordem (hidro-avião, as primeiras construções com as fachadas de vidro, zepelins). As edições lançam o leitor
a imaginar o futuro do planeta.: no subterrâneo, no ar, em terra ou no espaço. As últimas edições apresentam o
zepelim com a suástica nazista, seguida de Nova York (o edifício Rockefeller) e por fim um navio (alemão?)
em que se anuncia, no sumário da revista, títulos como O primeiro submarino, Os dramáticos trabalhos do
Golden Gate, A casa de metal, Duas pontes sobre o Eufrates, Lentes invisíveis, A droga que faz falar, A mão
artificial... De onde se vê que a discussão da potencialização do texto, ou do texto enquanto prótese, segundo
David Wills, poderia se aplicar perfeitamente à leitura das capas e sumários. Emblemática se torna a matéria
sobre a droga que conduz à fala, porque se trata de uma matéria a respeito do uso feito pela polícia
norteamericana, com a administração de “scopolamina”, para que as defesas do acusado se abram e ele possa
falar “a verdade”. Na comparação com Anhembi, diria que esta ainda prima pela propriedade territorial,
enquanto Obra aposta na invenção de outros mundos, ainda que descontado certo deslumbramento ingênuo,
de ressonância positivista (a aposta acirrada na ciência como libertadora do homem).
Quanto às capas de Obra, estas são sempre coloridas. Vejamos o exemplo do primeiro número: o título vem
ao alto da página, centralizado “OBRA” –letras garrafais –cor branca. Subtítulo em amarelo terra. A cor da
ilustraçao abaixo é mesclada com marron. Trata-se da imagem de uma grande avenida, prédios ao lado e ao
fundo, possivelmente o Congresso Nacional.. Sob a avenida circulam autos, ônibus, enquanto abaixo,
circulam os trens do metrô. Os túneis estão cortados a fim de darem visibilidade aos trens que entram e saem
(são vários os níveis, formando, em justaposição, paralelismos e cruzamentos). Esses trens dão ao impressão
que vão em direção ao leitor... enquanto outros voltam para a cidade adentro. Em uma tira vertical, à
esquerda, de fundo branco e letras em negro, surgem os nomes dos colaborados, preço (20ctvs) e no final o
número, ano, mês e local.
438
Vale notar que o suplemento Mais! da Folha de São Paulo dedica uma seção à Ciência (+ Ciência,
Micro/Macro e Ciência em Dia) neste espaço que, mormente, publica assuntos de cultura em geral, e em
especial, literatura, como podemos observar no número de 29 de agosto de 2004: “Natureza via criação : Matt
Ridley, zoólogo e jornalista britânico, retoma debate sobre a essência humana ao desafiar o suposto
antagonismo entre a influência dos genes e a do ambiente”. O livro de Ridley intitula-se O que nos faz
humanos, em que relata: “Não há um “eu” dentro de meu cérebro; há somente um conjunto de estados
cerebrais em eterna transformação, uma destilação da história, emoção, instinto, experiência e influência de
outras pessoas – para não falar no acaso”, pp.16-18.
229
dos Estados Unidos para a literatura norte-americana contemporânea. Temos, então, um
pano, nem sempre de fundo, como se vê, que vai perseguir a revista, o debate da guerra fria.
Segue-se o texto de Carmine Starace, “Um precioso cimélio bibliográfico
sobre o Brasil” e um ensaio sobre a questão da proibição do incesto de Roger Bastide, “As
estruturas elementares do parentesco”. Este será um colaborador freqüente e, mesmo depois
de sua volta a França, enviará textos e resenhas no campo artístico. André Lhote comenta
em “Prefácio de um livro próximo” o livro Traité de la Figure. Sérgio Milliet publica
“Dados para uma história da poesia modernista (1922-1928)”, o que se constituirá em
presença constante e seriada, marcando em etapas.
Este recurso é freqüente e, neste sentido, Anhembi desempenha um papel
relevante, e não raro contundente, ao apontar idéias e promover um debate, convertendo-os
em livro. Caso similar ocorrerá com Mário da Silva Brito, que também publicará ensaios
que comporão o livro História do Modernismo Brasileiro
439
. Tanto nos textos de Sérgio
Milliet quanto nos de Mário da Silva Brito, temos o movimento de balanço, ajuntamento,
na tentativa de sistematizar o que foi o Modernismo brasileiro. Para o primeiro, sua
intenção demonstra que será ousada, propondo-se a escrever “a história” do modernismo. A
troca do artigo é reveladora, demonstrando o que foi um modo de compreensão dos
movimentos, ou seja, representam um modelo de história, e o fim de outra.
Com o poema “Defesa” do pouco conhecido Raposo Denis, temos a
constituição de uma das linhas da revista: apresentação esporádica de pequenos poemas,
cortando a linearidade dos textos longos, da prosa em franca densidade, ao mesmo tempo
em que delimita conceitualmente o periódico como espaço diversificado. É o que se nota
com “Os devaneios do general” de Érico Veríssimo e a peça de teatro “Raquel” de Lourival
Machado. Louis Romero Sanson encerra esta seção com “Contribuição para o estudo do
aproveitamento da zona dos lagos de São Paulo”, sendo este um “estrangeiro que veio e
ficou”, há pelo menos trinta anos. Assim conformada, a revista recebe e assimila diferentes
nacionalidades, decisivas para constituição de uma concepção cultural “multinacional”.
439
Em 1997, o livro encontrava-se em sua sexta edição, publicado pela Civilização Brasileira (320p), em cuja
dedicatória lemos “Aos meus amigos/Paulo Duarte/ e Cassiano Nunes” “À memória de/ Mário de Andrade,
Oswald de Andrade/ e Manuel Cebrian Ferrer”. História do modernismo brasileiro, 1 : Antecedentes da
Semana de Arte Moderna.
230
Em “Jornal de 30 dias”, valem as notícias circuladas durante o mês, como o
próprio título já o indica, mas há que se destacar a menção ao “Centro de Pesquisa e
Documentação Artísticas de Paris” (p.147), o anúncio da Conferência Interamericana de
Imprensa (p.148), a Associação de Escritores de são Paulo (p.149), o Instituto Internacional
da Hiléia Amazônica (p.153), tratando do debate entre comunistas versus os que desejam a
internacionalização da Amazônia, preanunciando o peso que se dará aos eventos
institucionais. Há, também, notas sobre “A grande enciclopédia”, “Os negros e o
preconceito de cor” (p.158), “Ódio às árvores” e uma de “Anhembi”.
A tentativa de abordar o cinema nacional em consonância com a crítica
estrangeira, ainda marcadamente européia, sobre arte, literatura, dança e cinema ganha
corpo na destacada seção “Cinema de 30 dias”, onde se lê um comentário do filme
“Caiçara” de Adolfo Celli e “Ladrões de bicicleta” de Vitorio de Sica. Um dos exemplos
desse espaço fica por conta do crítico de teatro Anton Giulio Bragaglia, um dos principais
teóricos do futurismo italiano, que terá presença constante com sua análise dos espetáculos
encenados principalmente na Itália. Encerra o primeiro número um texto de Roberto
Simonsen, “As regiões econômicas do Brasil colonial”, este um excerto da História
econômica do Brasil, de 1937.
A revista assoma, então, no cenário nacional como um periódico que busca
estabelecer novos parâmetros de noções artísticas, com um pendor para certo tom de
esclarecimento e de valorização do saber humanístico como bem universal. O setor de
“Teatro” será englobado, posteriormente, às “Artes de 30 dias”, envolvendo outras
subseções, como a da “Música”, “Plásticas” e “Cinema”. Desta forma, em sua média de
duzentas a duzentas e cinqüenta páginas por edição, a revista primará por ver, no debate
nacional e internacional, as mais diferentes opiniões e posicionamentos sobre a cultura,
indo da literatura aos textos antropológicos, do teatro à ciência, da política ao cinema, da
economia à dança.
Este primeiro número representa a tendência para a institucionalização de
um saber modernista, através de sua ação pedagógica. Ela será sentida claramente em dois
aspectos: no forte destaque aos assuntos sociais e na ênfase aos programas institucionais (as
associações, as conferências, as instituições). Assim, o critério de seleção da antologia
Anhembi atravessa o imaginário “clássico”, ao mesmo tempo em que procura instituir um
231
outro, “moderno”. Um dos projetos sociais refere-se à criação do Instituto de Criminologia
em São Paulo, elaborado por Paulo Duarte e José de Moraes Melo, onde se encontram,
entre o planejamento:
Duas missões importantíssimas: a de reeducar o indivíduo de maneira
a torná-lo capaz de novamente viver, sem ser a ele nocivo, no meio
social; a de segrega-lo quando inadaptável. A missão portanto da
escola ou do hospital é a missão de isolar um incurável para que não
perturbe a situação normal do ambiente coletivo.
440
Este projeto indica que os valores cultivados são os de uma sociedade que pode andar
livremente, a culta, enquanto a outra, criminosa, deve, uma vez inadaptável ao meio, ser
isolada.
Vejamos outras contribuições da revista e alguns de seus desdobramentos.
É sintomático que o Brasil busque formar a sua “história” do modernismo,
no meio da disputa que também ocorre entre a União Soviética e os Estados Unidos. Como
vimos, a história do modernismo proposta por Ronald de Carvalho pode ser lida enquanto
legistativa, normativa, homogeneizante, enquanto a de Paulo Duarte busca, muitas vezes
sem sucesso, um modelo em que o intelectual figure enquanto intérprete. Em razão disto, a
revista faz circular nomes, propõe discussões, cria dentro de si mesma um movimento de
diálogo, em que os ecos repercutem nela e fora dela.
Simultaneamente, atravessado pelo embate entre as duas grandes potências,
temos a contribuição francesa, mediada por outros europeus. De acordo com o diálogo
estabelecido com Paul Rivet, Paulo Duarte buscará fortalecer os laços com a tendência
francesa, ao mesmo tempo em que não quer perder o compasso com as novidades mundiais.
A vertente etnográfica/antropológica marca-se a partir do segundo número, janeiro de 1951,
440
DUARTE, Paulo e MELO, José de Moraes. “V – Projeto do Instituto de Criminologia” In Anhembi, n.14,
a. II, vol. V. São Paulo, janeiro de 1952. Em seu trabalho sobre as prisões, Michel Foucault lembra que “A
prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos. A forma-prisão
preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se
elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los
espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos,
codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um
aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se
centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho
preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência.”
232
com o artigo de Herbert Baldus, “Entre índios norte-americanos” (p.224). Uma outra
tendência será a relação da psicanálise, a psiquiatria e a psicoterapia, em que não raro
surgem análises aplicando as técnicas de Freud às obras de arte. É de janeiro o texto “De
Freud a Sartre”, “A aventura da arte” de Giannino Carta, bem como a “Introdução à
psicoterapia”.
Reforçando o caráter de revisão do modernismo, outro crítico de arte que
publica em Anhembi é Tristão de Athayde, com “Retrospecto”, tentando dar conta do
movimento, categorizando-o em “vida política”, “econômica”, “cultural” e “espiritual”.
Dentro da vida cultural, Athayde divide o modernismo em três aspectos: 1. O modernismo
polêmico; 2. O modernismo criador e 3. O neo-modernismo, a partir da morte de Mário de
Andrade. Seu estudo é seguido do capítulo de Sérgio Milliet, parte II, cuja história reforça a
de Athayde no sentido revisionista da crítica. Assistimos, portanto, já nos primeiros
números da revista ao processo de “empalhamento” do animal modernista. Precisamente
nesta época, dezembro de 1950, Tristão de Athayde encontra-se na América do Norte,
reelaborando conceitos, como se notará nas memórias publicadas cinco anos depois. Em A
realidade Americana há sete capítulos, indo de “A Paisagem”, “O Homem”, “A
Educação”, “A Economia”, até “A Política”, “A Cultura”, “A Religião”, com o que o texto
de Anhembi parece ecoar. No mesmo volume, o autor decide incorporar, em um
“APÊNDICE”, artigos publicados entre 14 de setembro e 12 de outubro de 1941 em O
Jornal do Rio de Janeiro:
Há três Américas e não uma: a anglo-americana, a hispano-americana e a
luso-brasileira (pois o Brasil é o único bloco que não se partiu, na travessia
do Atlântico). Essa tríplice divisão da América é uma realidade muitas vezes
desconsiderada, particularmente pelos norte-americanos, para quem a Latin
American é uma unidade que consideram em bloco. Não há êrro maior, no
estudo da civilização continental, do que desconhecer essa dicotomia luso-
espanhola. Ela marcou toda a formação da América Latina, desde os seus
primórdios e com isso levou a diferenciações de ordem psicológica e
histórica que atuam fortemente, até hoje, na caracterização de nossos
respectivos destinos.
441
FOUCAULT, Michel. “Instituições completas e austeras” In Vigiar e punir – História da violência nas
prisões. 25ª. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis : Vozes, 2002, p.195.
441
LIMA, Alceu Amoroso. A realidade americana – Ensaio de interpretação dos Estados Unidos. 2ª. ed.
Rio de Janeiro : Agir, 1955, pp.247-248 (Obras Completas, vol. XXXV). Após abordar a divisão geográfica
entre as três Américas, e deixando de citar a quarta América, de origem francesa (nota 1), o autor comenta:
233
A novidade deste número recai sobre o texto de B. J. Duarte, “Fotografia e
Cinema” (p.312), em que se encontram assemelhados o cinema europeu e latino-americano
com a fotografia norte-americana, sendo o cinema deste último visto como síntese da
fotografia européia. O valor do artigo reside em precisamente incluir a América Latina no
debate das artes. A outra boa nova fica por conta do anúncio da 1ª Bienal do Museu de Arte
Moderna de São Paulo, o primeiro em “todo o continente”, ao passo que São Paulo é
apontada como “grande centro urbano e maior centro industrial da América do Sul”,
imaginário que perdura(rá) por muitos anos, mesclando as noções de desenvolvimento
econômico & artístico. O evento, que contará com a “exposição de arquitetura” e um
“festival cinematográfico”, indica o caráter diversificado com que se quer marcar a Bienal,
espelho, de certa forma, da própria revista. Na seção de “Artes de 30 dias”, em seu número
11, lê-se:
A primeira Bienal de São Paulo significa, pois, que nossa cultura e nossa arte
especialmente, pretendem integrar-se no grande movimento mundial da
inteligência e da estética. Tanto mais que o caráter principal da arte moderna
é precisamente o da universalidade.
442
Seguindo esse pensamento, no terceiro número a revista ganha
reconhecimento e também, terreno. Paulo Duarte apresenta o poeta italiano “Trilussa”,
anagrama de Carlo Alberto Salustri, com o poema “La pelle” (p.422). Gilberto Freyre
estréia com o interessantíssimo “Aspectos da higiene pública e doméstica no Rio de Janeiro
do meado do século XIX”, analisando a prostituição carioca do período, o onanismo, a
“Temos, finalmente, os nacionalismos transamericanos que seccionam tôdas as demais divisões e são muitas
vêzes tanto mais exacerbados quanto menor o país. É a América múltipla, variada, particularista, que se
manifesta nas lutas periódicas entre nações, separadas entre si por questões que se perpetuam e nunca se
resolvem. É o espírito de fronteira, tão exacerbado, no Novo Mundo como no velho continente.” Em seguida,
aponta, na linha deste trabalho, para o jogo de forças que se encenam pelo “predomínio na Nova Ordem do
século”. pp.247-248. Valeria lembrar, ainda, que, entre suas obras, Tristão de Athayde publicou Pela
América do Norte (em dois volumes), pelo Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura,
à época em que dirigia o Departamento Cultural da União Pan-Americana em Washington, e tendo lecionado,
entre 1958-1959, como professor visitante, no Brazilian Institute da New York University.
442
Anhembi, a.I, n.11, São Paulo, outubro de 1951, pp. 360-364. No mesmo número, um artigo de Giuseppe
Ricciotti (da Universidade de Bari) ataca o movimento modernista de ter sido “essencialmente intelectual,
promovido mais por estudiosos de gabinete (...) ” e não um movimento de massas. (p.205-212). Ou seja, a
Bienal, almejando entrar no movimento universal de inteligência, nada mais faria que seguir os passos já
trilhados pelos primeiros modernistas, como vimos no 3º. capítulo.
234
pederastia e o lesbianismo, contextualizados no período, assuntos que, ainda para a década
de 50, causavam pudores e receios. É Drummond quem corta a seqüência da prosa de
Anhembi, com o poema “Os bens e o sangue”, inventariando uma gênese para o poema,
tarefa da própria crítica: o inventário de seu passado. Assim, Sérgio Milliet continua a
apresentar seus “Dados para uma história da poesia modernista – III”, como também um
artigo sobre Tarsila reforça a revisão: “Confissão Geral de Tarsila” (p.558).
Se as instituições ganham destaque no cenário da revista, é a ONU uma das
principais enfocadas
443
. Esta figurará permanentemente nos números, representativa da vida
política mundial e das relações ainda muito instáveis para com a América Latina. E por nela
falar, os artigos comparativos entre os países dela componentes aparecem, como o que
analisa as diferenças entre o bailado do Teatro Colón, Argentina, e o do Brasil, enfocando
as diferenças de nível e qualidade entre ambos, com grande vantagem do primeiro, em
função de sua tradição. Daí a necessidade de “contratar professores estrangeiros de
nomeada para as escolas oficiais...” (p.561). O Brasil figura, na leitura de Anhembi, como
este espaço em que não raro há uma carência permanente, uma falta que só pode ser
preenchida por um fora, quadro “estrangeiro”, sempre mais qualificado e mais versátil.
Na esteira da institucionalização cultural, e baseado no “Cercle International
du Cinéma” de Paris, 1947, é anunciado o “III Festival Internacional da Fita de Curta
Metragem” no Brasil. Destaca-se, neste artigo, a idéia comum e recorrente da
internacionalização da cultura como entrada na modernidade. Sendo o III Festival, ele se
inicia praticamente como “cópia”, ao ser adotado quase que simultaneamente do modelo
443
Michael Hardt e Antonio Negri propõem, em “Globalização e Democracia”, um conceito de Império que
mantém estreitas relações com a criação e expansão de instituições norte-americanas: “O Império do nosso
tempo é, de fato, monárquico, e isso é particularmente evidente sobretudo em tempos de conflito militar,
quando podemos observar em que medida efetiva o Pentágono domina o mundo com suas armas atômicas e
sua tecnologia militar superior. Também algumas instituições econômicas supranacionais, como a OMC, o
Banco Mundial e o FMI, exercem, por vezes, um governo monárquico dos negócio globais. Nosso Império,
todavia, também é aristocrático, isto é, governado por um grupo limitado, elitizado de intérpretes. Aqui o
poder dos Estados-nação é central (...) Esta aristocracia de nações se mostra claramente, por exemplo, nos
encontros das nações do G-8, ou quando o conselho de segurança da ONU exerce sua autoridade. (...) Por
fim, o Império é também democrático, no sentido de que ele pretende representar o povo global, embora,
como veremos, essa pretensão de representação seja amplamente ilusória. (...) A assembléia geral da ONU é
talvez o símbolo mais relevante desta democracia de nações.” In NEGRI, Antonio. 5 lições sobre o Império.
Trad. de Alba Olmi. Rio de Janeiro : DP&A, 2003, pp. 116 e 117 (Coleção Política das Multidões)., grifos
meus. Esta definição de que o Império se constitua numa aristocracia n(a) qual funciona uma “elite de
intérpretes” assemelha-se à definição de Zygmunt Bauman a respeito dos tempos pós-modernos, mas dele se
distancia porque esta elite estaria usando apenas uma máscara, ou seja, seria, na verdade, o legislador em sua
campanha multipluralista.
235
francês. Há diversas categorizações para os curtas: concorrem as fitas experimentais, sobre
arte, poéticas, de reportagens, documentários sociais, dramáticas e biográficas, desenhos
animados, científicas e latino-americanas, cujo Prêmio denomina-se “Cavalcanti” e em cuja
categoria concorre uma única fita brasileira: “Nordeste”, de Pedro Lima.
É neste terceiro número ainda que se introduz uma seção especial para o
“Esporte”, com o emblemático “Amadorismo e profissionalismo”, aqui tratado como um
imperativo econômico, lembrando inclusive Mário de Andrade como um dos exemplos de
profissionalismo, memória que explicita a filiação da revista. Esta seção materializa, por
assim dizer, o corpo do periódico, a revista enquanto corpo, em que não raro estabelecerá
diferentes fundamentações para a sua manutenção.
Assim, o perfil de Anhembi vai-se definindo. Com a edição número 4,
março de 1951, assistimos a outra estréia, a de Luis da Câmara Cascudo, com “Leges et
consuetudines Medievais”, em que o estudioso da cultura brasileira estabelece laços,
analisa a “risca”, a “fronteira”, o “círculo” entre as expressões populares e passado
medieval. O crítico já havia publicado Informação de história e etnografia em 1940,
como também uma Antologia do folclore brasileiro, em 1944. Este percurso
histórico/etnográfico encontra seu auge com Civilização e cultura, em 1973.
Coincidentemente, ou não, é neste mesmo número da revista que também se encontra o
“Socorro às artes populares”, promovido pela UNESCO (p.119), bem como o incentivo à
fundação e desenvolvimento das bibliotecas infantil e juvenil, através de “A missão social
das bibliotecas públicas”.
No caso da UNESCO, esta instituição ampliará seu leque de atuação em
vários países do mundo. A sua carta, a “Declaração Universal sobre a Diversidade
Cultural”, a título de exemplo, assinala a tendência de abranger aspectos culturais das
sociedades, atuando como verdadeira escola. Tanto a instituição quanto a revista partem do
pressuposto de que a sociedade é um espaço carente de significação, sendo necessário,
portanto, dotá-la de experiência cultural. A institucionalização da cultura e de um
profissional dessa área pode ser dimensionado na criação, há poucos anos, de
“Organizações Profissionais da Cultura”, como a ocorrida em Seul, em junho de 2004. Em
artigo de 2005, “Cultura vive guerra entre protecionistas e liberais”, o jornalista Alan
236
Riding constata que, por detrás das discussões acerca da promoção da diversidade cultural
no mundo, está o embate da França e outros países:
A história começou com a última liberação global do comércio, há
quase uma década, quando a França obteve uma exceção cultural, que
efetivamente autorizou a proteção da sua cultura. Hoje, a França e o
Canadá querem mais e esperam deixar a cultura de fora das regras da
Organização Mundial de Comércio, inserindo a diversidade cultural
em uma convenção da Unesco./ Por que a França e o Canadá? Ambos
vêem a independência cultural como parte essencial de sua identidade
política. Há muito resistem ao alcance imperial da cultural popular
americana, especialmente de Hollywood.
444
Em relação à questão do papel das biblitoecas, ocorrido em Nova Delli, há
uma demonstração de como se processa a política para com os países subdesenvolvidos.
Esta política tem suas raízes bem plantadas nas Conferências Americanas e em outra
instituição, a CIA, cujos planos são bem delimitados por seus criadores. No caso do
primeiro, como já mencionado nesta tese, os planos se alastram e Anhembi, ao publicá-los,
reforça uma atuação política já explicitada entre os países. Assim, circulava entre os
intelectuais um suplemento, devidamente traduzido, do CORREIO, intitulado “A
propósito da PRIMEIRA CONFERÊNCIA AMERICANA DE COMISSÕES NACIONAIS
DE COOPERAÇÃO INTELECTUAL”
445
, verdadeira pedagogia, bem como o “Leituras
para educadores”, também do Departamento de Cooperação Intelectual. Este último traz
como modelo Pablo A. Pizzurno da Argentina, um dos mais importantes pedagogos da
Argentina, em cuja biografia ressaltam-se suas iniciativas docentes de caráter experimental
e prático
446
. O ensaio “Para estimular o estudo de nossos paizes” não foge à regra,
444
RIDING, Alan. “Cultura vive guerra entre protecionistas e liberais” (mimeo). O texto foi publicado
originalmente no The New York Times, em 07/02/2005, com tradução de Deborah Weinberg, sendo
distribuído no Seminário Internacional “Diversidade Cultural e a Convenção da Unesco”, realizado em
Florianópolis, durante o 9º. FAM (Florianópolis Audiovisual Mercosul) – junho de 2005.
445
Patrocinada pelo Departamento de Cooperação Intelectual da União Panamericana – Washington – março
de 1939.
446
Foi o criador e diretor do Instituto Nacional de Enseñanza Primaria y Secundaria em 1890; criou e dirigiu,
juntamente com Alfredo Ferreira, a revista Nueva Escuela; desempenhou atividades junto a escolas de nível
médio e superior, além de ter participado de distintos cargos relativos à área educativa em nível nacional e
local. Foi conferencista e ensaísta, destacando-se trabalhos como Pininos, um texto de leitura para escolas
primárias (1922); três tomos de Textos de lectura corriente; Consejos a los maestros (1906); La educación
común en Buenos Aires (1910); El Instituto Superior Nacional de Educación Física (1914); El profesor
secundario (1915); Vacíos de la educación primaria (1916); La escuela y el progreso social (1928);
Educación General (1938), entre outras.
237
chegando a dar a receita. Outros ensaios e pequenas notas seguem a mesma diretriz,
destacando-se a matéria “A escola secundaria norte-americana”, onde o sucesso do norte
faz ressoar as limitações dos outros países ... Há por todas as linhas diretrizes,
políticas, que ressoam no texto de Anhembi. A política minada transfigura-se, enfim, em
candura ou, como nos filmes hollywoodianos atuais, em apoteótico desenlace. Em “O que
dizem os educadores”, um fragmento de Horace Mann o representa muito bem:
‘Reparai na criança quando uma idéia clara, bem definida e intensa se
apodera do seu espírito. Vibra todo o tecido se [sic] seus nervos;
ressaltam-lhe os músculos; e relaxam-se suas articulações em alegre
antecipação. O seu rosto se converte em uma aurora. O entusiasmo
cintila-lhe por todo o corpo, qual descarga eléctrica através de uma
nuvem. Contai á criança a história mais simples, e se estiver
perfeitamente adaptada ao seu desenvolvimento mental e lhe for, por
tanto, inteligível, o sono lhe desaparecerá como que por encanto,
não se lembrará de comer, e nada lhe distrairá a atenção, ainda
mesmo que seja um brinquedo tão brilhante como o sol.’
447
Esse tom aparentemente ingênuo, porém carregado de desejo de pedagogia, permeia boa
parte das produções acadêmicas e artísticas da época
448
. Essa pedagogia, política que mina
447
“O que dizem os educadores” in Leitura para educadores. N.1, Departamento de Cooperação Intelectual
– União Panamericana : Washington, maio de 1938, p.15, grifos meus.
448
Também em La Obra podem-se encontrar cartas nesse tom. Incentivados por um dos pontos dos acordos
interamericanos, o de trocar correspondência entre crianças, a sessão platense publica um texto vindo do
Brasil. Diria que não só causa espanto o teor do texto, como não parece ser escrito por crianças, cumprindo
apenas uma exigência, um dever ser:
“ ‘Día de la Buena Voluntad – Saludo de los niños del Brasil’
Agrega carta da Señorita Laura L. J. Lacombe que, tendo participado da Segunda Conferência Nacional de
Educação e sendo membro do Bureau International d’Education en Río de Janeiro, envia a carta:
“Mensaje de las criaturas brasileñas a las criaturas de los otros países de América, según el ejemplo de lo que
hacen, desde 1922, las criaturas del País de Gales.”
!Hermanos! Nosotras, las criaturas brasileñas, os enviamos desde debajo de este cielo profundo
donde fulgura esplendorosamente la imagen del Crucero del Sud, nuestro grito de paz, nuestro deseo de
fraternidad universal!
Ya que todos dicen que el futuro del mundo está entre las manos de la infancia, nosotros, sabedores
de eso, queremos que todos los niños de todos los países se esfuercen por alcanzar un mismo y determinado
fin, que es de la consolidación de la paz.
Y cada criatura deve tener un pedazo de su corazón reservado para guardar la luminaria de ese ideal
tan noble.
Y cuando todos seamos hombres, que la patria se enorgullezca de poseer una generación que
combate por la felicidad universal!
Las respuestas provenientes de las escuelas y sociedades de la infancia, centros de scoutismo, etc.,
deben ser dirigidos a la Prof. Laura Lacombe – Curso Jacobina – Rua Guanabara 69 – Río de Janeiro –
238
as produções locais e estrangeiras, tem suas raízes bem plantadas em outra instituição, a
CIA, cujos planos são bem delimitados por seus criadores.
4.3 - O/VÔO DA ÁGUIA
Os Estados Unidos acreditavam que podiam, através do sistema capitalista,
“proteger liberdades” e aumentar as vidas da América do Norte e do Sul, deixando a
América Latina aberta aos investimentos americanos. O “Marshall Plan”, voltado para todo
o hemisfério sul, contava com grandes corporações e impérios privados, entre eles os
Rockefeller e a United Fruit Company. No caso de Nelson Rockefeller, cujos investimentos
na América Central e Sul configuram todo um projeto para o continente, possuía, na visão
de Jean Franco, uma “Política da boa vizinhança”, constituindo uma forma “benevolente”
de imperialismo.
The founding of the CIA in 1947 added a powerful institution for
gathering information, counterinsurgency, and fighting a war “with
ideas instead of bombs”, a policy that embraced covert propaganda,
covertly funded university research, subsidized publications, and even
the defense of particular cultural values, especially an abstract
universalism that disqualified the “provincial” (which is to say cultures
rooted in heterogeneous local traditions).
449
Daí o fato de ter desenvolvido uma máquina de propaganda, iniciando a
guerra fria antes mesmo que ela fosse declarada, procurando uma unidade do hemisfério já
na Conferência Pan-Americana em 1945 (como vimos, essa ação teve início há vários anos
Brasil.” La obra, a. IX, n.166 –junio de 1929 –Tomo IX- n.7 p.305. Vale ressaltar que Laura Lacombe tem
papel importante na atuação da vida intelectual e educacional do Rio de Janeiro. Mãe de Américo Jacobina
Lacombe, da Casa Rui Barbosa, formavam um grupo de intelectuais que se encontravam com freqüência,
como Plínio Salgado, Carlos Drummond de Andrade. Além disso, teve participação na instalação, em 1945,
da primeira sede da Associação de Ensino Católico-AEC no Brasil, cedendo uma das salas de seu Colégio, o
Jacobina, para essa instituição, que se “consolida em torno da figura de seus presidentes. A estrutura da
presidência vai evoluindo de uma forma bem piramidal e centralizada, embora sempre colegiada, até uma
operacionalização participada e regionalizada.”, segundo informa a própria página virtual da AEC.
449
FRANCO, Jean. The decline & fall of lettered city. Op. cit., p.22.
239
atrás) e fundando, no mesmo ano, a Conferência das Nações Unidas. Seu papel é tão
decisivo e, hoje, muitas vezes contundente, como o texto de Alain Caillé, em Paix et
démocratie, especialmente “Le pròbleme de l’ONU et des organisations internacionales”:
Il est donc nécessaire et urgent de redefinir les voies d’une nouvelle
articulation entre force et justice. Dans l’etat actuel des choses, les
organisations internacionales ne peuvent pas envisager grand-chose
d’autre que de tenter de reconquérir, en en redéfinissant profondément
le contenu, une légitimité morale internationale qu’elles ont largement
perdue.
450
Este repensar não se disassocia, portanto, da idéia de que o âmbito da cultura no Brasil
acontece desvinculado de outras partes do mundo. Ao mesmo tempo que Anhembi publica
seus artigos sobre os mais diversos temas, há que se notar o esforço norte-americano de
aproximar os países, a partir de seu plano, tentando, como vimos, tirar da França seu
domínio cultural. Este embate terá reflexos na revista. À medida que crescem as
organizações americanas, proliferam aqui Fundações, Instituições, Congressos, embasados
na noção desse “universalismo abstrato” de que fala a crítica inglesa.
Os planos americanos se concretizam com o pacto militar regional para a
Organization of American States (OAS) e para o North Atlantic Treaty Organization
(NATO), além da Southeast Asia Treaty Organization (SEATO). Neste momento, enquanto
a divisão de Humanidades da Fundação Rockefeller defendia uma “alta cultura”, o
escritório dos Hemispheric Affairs preocupava-se com a produção de filmes como Down
Argentine Way e That Night in Rio
451
. Assim, vemos nascer o pacto que alia uma política
econômica à cultural durante a guerra fria e que vai incentivar a cultura e o folclore, as
manifestações locais, a partir de um olho centralizador. Alguns anos antes, Nelson
Rockefeller havia sido eleito para o quadro do Museum of Modern Art em 1932, quando
deu apoio aos muralistas mexicanos, antes do escândalo do quadro de Lênin feito por Diego
Rivera para o Rockefeller Center.
450
CAILLÉ, Alain. Paix et démocratie – Une prise de repères. Paris : UNESCO, 2004, p.96. Este livro fez
parte de um conjunto de textos entregues aos participantes do “Foro Internacional sobre el Nexo entre
Políticas y Ciencias Sociales”, ocorrido entre Argentina-Uruguay, 20-24 de fevereiro de 2006.
451
Outras relações entre cultura, cinema e política podem ser encontradas no artigo de Jerome Christensen :
“The Time Warner Conspiracy : JFK, Batman, and the Manager Theory of Hollywood Film” In Critical
Inquiry, n., vol. 28. Op. cit., pp. 591-617.
240
The Museum of Modern Art – his “mother’s museum” – was
instrumental in sending many exhibitions of contemporary American
painting to Latin America. But perhaps Nelson Rockefeller’s most
innovative move was his use of Disney as informal ambassador to the
countries south of the border, and the use of cartoons and documentary
filmes to get across the U.S. program of modernization.
452
A encenação de uma política explicita-se na composição do quadro de instituições para os
latino-americanos, bem como para os países que se encontram nas margens do mundo.
Desta forma, quando Anhembi apresenta a organização de seus textos, muito do seu
recorte revela uma tendência que já estava posta na mesa. As cartas do baralho americano
eram jogadas para garantir uma maior probabilidade de acertos. A junção Rockefeller e
Disney tinha como alvo ganhar os corações e as mentes dos latino-americanos para a causa
aliada, fortalecendo a noção de um “Espírito Pan-Americano” através das animações, ao
passo que, durante o Congresso para a Liberdade Cultural, ocorrido na Índia, acontece a
fundação dos seus respectivos comitês da América Latina (surgem, inclusive, os dias
comemorativos “Pan”). É o momento em que Hollywood idealiza a “unidade Inter-
Americana”, reforçado pelo pensamento do seu chefe de divisão, John Hay Whitney.
Assistimos, neste jogo, à cooptação do grupo de Hollywood pelos interesses de
Rockefeller, dele surgindo a investida “cultural” de massa. A reunião de atores como Orson
Welles, Daryl Zanuck, Carmen Miranda e Walt Disney, bem como a vinda de alguns deles
ao Brasil, revelam este projeto americano da “boa vizinhança”. Surgem os filmes South of
the border, Saludos amigos e The three caballeros, onde vemos encenada nossa
caricatura. A América Latina configura-se, então, como espaço turístico, perfeito para o não
desenvolvimento de pesquisas, mas, novamente, como o ludus ideal para o mundo. Não
sem razão, quando o Presidente Eisenhower envia um telegrama a Disney considerando-o
“genius as a creator of folklore
453
, a definição deste termo ganha outra dimensão. Cultura
adquire contornos persuasivos, de acordo com a guerra publicitária bancada pelos
americanos do norte, numa espécie de “guerra psicológica”, segundo Frances Stonor
Saunders:
452
FRANCO, Jean. “Killing them softly” in The decline & fall of lettered city. Op. Cit., p.24.
241
But the official documents relating to the cultural Cold War
systematically undermine this myth of altruism. The individuals and
institutions subsidized by the CIA were expected to a perform as part
of a broad campaign of persuasion, of a propaganda war in which
‘propaganda’ was defined as ‘any organized effort or movement to
disseminate information or a particular doctrine by means of news,
special arguments or appeals designed to influence the thoughts and
actions of any given group’ (...) ‘The planned use by a nation of
propaganda and activities other than combat which comunicate ideas
and information intended to influence the opinions, attitudes, emotions
and behavior of foreign groups in ways that will support the
achievement of national aims.’ Further, thethe subject moves in the
direction you desire for reasons which he believes to be his own’.
454
Para Franco, na esteira de Saunders, a linha entre crítica cultural e propaganda foi
decisivamente atravessada com a fundação do Comitê Americano para Liberdade Cultural e
com a realização, em Berlim Oriental, 1950, do Congresso para Liberdade Cultural,
simultânea ao surgimento de Anhembi. Outros movimentos e instituições contribuem para
o debate, em torno do lema da “PAZ”. Em 1947, a fundação do Boletim de Informação
Comunista incluía também o “World Peace Council”, as “World Federation of Trade
Unions” e a “International Union of Students”, com a presença de alguns brasileiros e
latino-americanos, como Jorge Amado, Pablo Neruda e Nicolás Guillén. Ainda haveria em
Paris, em 1949, o Encontro Internacional dos Partidários da Paz. Por estas instituições,
percebe-se a reorganização de grandes encontros, com laços de âmbito sempre mundiais,
cuja conotação os termos “internacional” e “mundial” acenavam para o efeito de
globalização. Abordando os efeitos dessa tendência nas últimas décadas do século, García
Canclini afirma:
(...) si en América Latina hay integración y posibilidades de que las
culturas dialoguen es gracias al proceso modernizador. Pero a la vez, la
manera en que se ha realizado esta modernización obstruye
empecinadamente que el diálogo entre nuestras culturas sea
productivo. (...) una contradicción decisiva de este fin de siglo es que
453
Id. Ibid., p.28, grifo meu.
454
SAUNDERS, Frances Stonor. The cultural cold war – The CIA and the world of arts and letters. The
New Press : New York, 2000, p. 4. Originalmente, este livro foi publicado no Reino Unido com o título de
Who Paid the Piper? em 1999. A citação de Saunders refere-se ao “National Security Council Directive, 10
July 1950, quoted in Final Report of the Select Committee to Study Governmental Operations with Respect to
Intelligence Activities (Whashington : United States Government Printing Office, 1976).”, p. 430.
242
en el momento en que los avances tecnológicos y los pactos de libre
comercio facilitan la comunicación entre las naciones, las políticas
neoliberales desmantelan lo que en las sociedades latinoamericanas
había hecho posible una inserción competitiva en el mercado mundial
y nos colocan en condiciones cada vez más desventajosas.
455
Se o esforço passa por mobilizar uma integração em prol de um processo de
modernização, mesmo com interesse de promover as culturas específicas, portanto de
acordo com a idelogia de uma “folclorização” do mundo, a CIA funda, em 1952, o “Paris
Festival” e atua “veladamente” no Congresso para a Liberdade Cultural, recrutando
intelectuais. Em relação aos periódicos, fruto das atividades deste congresso, no início de
1953 a CIA lança os Journals, sendo Encounter o de mais prestígio, publicado em
Londres. Para a América Latina e Espanha, serão criados os Cuadernos por la libertad de
la cultura, editados por Julián Gorkin
456
. A escolha de um hispânico como editor deveu-se
à relação da Guerra Fria frente a Europa, segundo Franco. Com o crescimento do anti-
americanismo e as intervenções políticas e militares dos norte-americanos, o editor havia
inicialmente dado atenção a escritores como Rómulo Gallegos, Jorge Mañach e Gilberto
Freyre, preparando-se para incluir Juan Bosch, Raúl Haya de la Torre e Fidel Castro.
In Latin America, any cultural policy promoted by the United States
was bound to be received with suspicion that the essays published in
Cuadernos did little to allay. Windy disquisitions on pseudo-problems,
an emphasis on the hegemony of Spanish culture, and attempts to
canonize the older generation (...)were scarcely likely to influence a
younger generation (...) Not surprisingly few younger writers could be
found to contribute to Cuadernos or to support the branches of the
Congress for Cultural Freedom in Argentina, Chile, Mexico, Peru,
Uruguay, Colombia, and Brazil, although there were contributions
from Jorge Luis Borges, Octavio Paz, and Alejandra Pizarnik.
457
455
CANCLINI, Nestor García. Imaginarios urbanos. 3ª. ed. Buenos Aires : Eudeba, 2005, p. 21
(pensamiento contemporáneo). Para o autor, a modernidade do século XX gira em torno de quatro processos :
emancipação, renovação, democratização e expansão.
456
A crítica comenta que o nome original de Julián era, na verdade, Gómez, “a former member of the Spanish
Communist Party and of Comintern, and later a member of the Partido Obrero de Unificación Marxista
(POUM) during the Spanish Civil War before becoming an equally convinced anti-communist.”. In The
decline & fall of the lettered city, op. cit., p.32.
457
FRANCO, Jean. Id. ibid., p.33, grifo meu.
243
Portanto, a canonização de escritores conhecidos serve fundamentalmente a interesses
políticos.
Em torno desses interesses, a discussão sobre “Liberdade” ganha terreno e
será encenada pelos diversos meios de comunicação, em especial os periódicos. A
desconfiança dos novos escritores fica mais explícita a partir do “Continental Congress of
Culture”, realizado em Santiago, Chile, quando a delegação soviética foi barrada pelo
governo chileno. As noções de “liberdade” e “cultura” adquirem, assim, outros contornos,
canalizados para serem percebidos (captados) a partir das realidades locais
458
. É o momento
em que Anhembi recebe contribuições de escritores como Gilberto Freyre, e de muitas
personalidades com influência política. No caso de Cuadernos, este passa por
instabilidades quando Cuba entra em crise, em 1958, sendo seu editor substituído por
Germán Arciniegas, em 1963, atravessando fronteiras regionais e nacionais. Arciniegas
compilou uma antologia sobre a América Latina, The Green Continent
459
, e foi membro
fundador do Congresso para Liberdade Cultural.
A investida norte-americana continuou na área fílmica, colaborando na
organização da “Veracruz”, no México, cujo objetivo era a de “Modernizar a indústria
fílmica mexicana”. Os filmes eram produzidos e distribuídos pela United States
Information Agency (USIA). Em termos de publicação, Franco comenta, a partir de Warren
Dean, que, durante 25 anos de operação, a USIA tinha sido responsável pela publicação
aproximada de 22.000 edições, com um total de 175.000.000 de cópias, inclusive para a
América Latina.
‘[T]he intent of the book publishing program is to make influential
foreigners more receptive to the assumptions of U. S. foreign policy,
and to do so in ways that will not be reconized as originating with the
U. S. government.’ Yet other publications, for instance Reader’s
Digest, or Selecciones as it was known in Spanish, sought to justify in
458
Para um debate sobre as relações do Brasil e dos países da América Latina com o governo norte-
americano, consultar SODRÉ, Nelson Werneck. O governo militar secreto. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil,
1987.
459
Em 1949, o autor publica pela Sudamericana de Buenos Aires o romance En medio del camino de la
vida, cuja epígrafe rocobra o já canônico Rubén Darío: “ ‘En medio del camino de la vida’ dijo Dante. Su
verso se convierte en medio del camino de la muerte.”. A dedicatória, feita “A Gabriela”, parte de “Nueva
York, 1948”.
244
a more straightforward fashion U.S. interventions and carried on its
own anticommmunist crusade.
460
Configura-se, desta forma, um plano estratégico, “cultural”, político, não só para os países
do sul da América como para os do centro, com o objetivo claro de influenciá-los a aceitar
a política norte-americana, preferencialmente sem reconhecer a sua procedência, o que foi
denominado de um programa “furtivo” (segundo Warren Dean). Este plano de
familiarização do que é estranho (e desconhecido), segundo um princípio de convivência
pacífica das massas, possui todos os ingredientes para o que viria a ser a transformação do
conceito de cultura “universal” para a sua “internacionalização”.
Anhembi parece situar-se nesta fronteira, ao articular conteúdos de ordem
externa com uma demanda baseada nos critérios “nacionais”, a fim de formular e expressar
uma cultura de alto valor. É ainda no quarto número da revista que lemos o texto intitulado
“União Cultural Brasil-Estados Unidos”, análise que nos revela a não existência, de fato, no
Brasil de uma união cultural entre os dois países, apontando-se para a necessidade de servir
de modelo (p.147), assim como já teríamos estreitado as relações culturais com a França,
Inglaterra e Itália. A revista cita como exemplo bem sucedido o caso do professor e
pesquisador André Dreyfus, diretor do Laboratório de Genética da Universidade de São
Paulo, e que já presidira a “União Cultural”, a realização de intercâmbio e contratação de
dois norte-americanos (Otto Klineberg e Madow), além da organização do segundo volume
de Vida Intelectual nos Estados Unidos, publicado em 1945.
Mas se a ordem é não explicitar a política, por outro lado ela não se faz
sempre às escondidas. Contemporânea a Anhembi, valeria a pena examinar uma outra
revista, com circulação no Brasil entre 1948 e 1954, a Revista Branca, cujo diretor,
Saldanha Coelho, foi responsável pela publicação em 1960 e 1962 de duas antologias (A
nova poesia brasileira e Poesia concreta, respectivamente). O tema de um de seus
números trata de A literatura dos Estados Unidos, do escritor britânico Marcus
Cunliffe
461
, responsável pelo estudo do constitucionalismo e da identidade nacional, tendo
o “Centro Sussex Cunliffe” funcionado de 1965 a 1980 na Inglaterra. Em sua introdução, o
460
FRANCO, Jean. The decline & fall of the lettered city. Op. cit., p. 30. A citação feita pela escritora é de
Warren Dean.
245
crítico afirma, explicitando seu critério de seleção de estudo, que não quer fazer uma obra
como a Oxford Companion to American Literature, lançando uma de suas premissas
“implícitas”:
A primeira de tais premissas é a de que é possível distinguir, sem êrro,
a literatura inglêsa da americana. Matthew Arnold pensava de outra
forma:
“Vejo anunciado o livro Cartilha da Literatura Americana. Imagine-
se a cara de Felipe ou Alexandre ao ouvirem falar de uma Cartilha da
Literatura Macedônia!... Somos todos contribuidores para uma grande
literatura – a inglêsa.”
Mas Arnold escrevia há setenta anos atrás, e mesmo na época sua
comparação não era das mais corretas. No sentido mais amplo, sem
dúvida, há só a literatura, um reino universal em que o escritor luta
contra seu meio universalmente teimoso de comunicação, a linguagem.
Mas (...) a linguagem é constituída de línguas; as línguas
correspondem, de modo geral, aos grupos nacionais; e aquêles grupos
nacionais que não têm língua própria tentam ressuscitar ou inventar a
sua. (...) É impossível compreender plenamente a literatura dos
Estados Unidos sem que êste problema seja inicialmente entendido.
Uma das razões pelas quais os irlandeses se sentem à vontade com os
americanos (...) é que ambas as nacionalidades souberam o que é ser
governado culturalmente, bem como polìticamente, por Londres.
462
Para o crítico, a questão da independência literária, ou seja, a constituição de uma literatura
nacional, acontece segundo o critério de uma literatura que participe do reino “universal”,
461
O exemplar consultado possui um carimbo com “Oferta do Serviço Informativo do Consulado
Americano”, com que inferimos a política não só de publicação, mas de distribuição, gratuita, como é o caso,
do material.
462
CUNLIFFE, Marcus. A literatura dos Estados Unidos. In Revista Branca. Trad. A. Cadaxa. S/d, grifos
meus. Estranha o fato de não haver data nem local de publicação. Sabe-se que a revista foi publicada no Rio
de Janeiro, por Saldanha Coelho, tendo este exercido a carreira diplomática e participado, em 1958,
Washington, de um curso na Organização dos Estados Americanos. Presume-se, portanto, que este número
seja da década de 50. A orelha informa que “A Literatura dos Estados Unidos, de Marcus Cunliffe, é uma
nova obra que REVISTA BRANCA oferece aos leitores brasileiros, em sua coleção de autores traduzidos./
Êste livro, que é uma introdução aos principais temas e nomes do movimento literário norte-americano, desde
a época colonial aos nossos dias, não constitui apenas um panorama geral das letras dos Estados Unidos em
tôda a sua história cultural, mas representa um depoimento opinativo de um renomado crítico inglês sôbre os
escritores norte-americanos que representam a literatura ianque de ontem e de hoje. (...)/ Nesta tradução
cuidada de A. Cadaxa, que traduziu para REVISTA BRANCA O mundo de Washington Irving, de Van
Wyck Brooks, os leitores tomarão contato com estudos subordinados aos seguintes títulos;/ A América
Colonial, América e Europa – Os Problemas da Independência, A independência – Primeiros Frutos, A
Era da Nova Inglaterra, Melville e Whitman, Mais Escritores da Nova Inglaterra, O Humor Americano
e o Crescimento do Oeste, Em Tom Menor, O Realismo na Prosa Americana, Os Expatriados, A Nova
Poesia, A Ficção Após a Primeira Guerra Mundial, O Teatro Americano, Poesia e Crítica Depois da
Primeira Guerra Mundial”.
246
constituída a partir da legitimação da língua de uma nação. Desta forma, temos a
identificação entre língua e nação, da mesma forma que literatura e universalismo, a partir
de um processo de independência, aqui correspondente à noção de “formação”. A esse
respeito, o crítico Benedict Anderson detecta três fatores que contribuíram para a formação
de uma “consciência nacional”, a saber, mudanças no caráter da própria língua latina; o
impacto da Reforma, com ecos do sucesso do capitalismo editorial; e finalmente “a
disseminação, lenta e geograficamente desigual, de línguas vulgares específicas como
instrumento de centralização administrativa por determinados pseudomonarcas absolutos
presuntivos bem posicionados”
463
. A formação da nação estaria, nesse raciocínio, ligada
indissoluvelmente à questão da articulação entre língua oficial (língua impressa) e língua
falada, competente, que, na versão do crítico, não prescinde da qualidade da mistura, como
ato impuro.
No caso da Revista Branca, é significativo, também, o fato de que se
publique a tradução de todo um livro, em que o caráter historiográfico, típico das literaturas
do século XIX, ganhe o primeiro plano (ver nota a respeito da orelha da revista).
Igualmente a idéia de que “É impossível compreender plenamente a literatura dos Estados
Unidos sem que êste problema seja inicialmente entendido”, pressupõe ainda a noção de
que é possível compreender “plenamente” uma literatura, bastando, para tanto, entender o
problema colocado, o que reforça a idéia de que a literatura se explicaria através da
composição historiográfica
464
.
Quanto ao fato deste periódico ser uma oferta do “Serviço Informativo do
Consulado Americano”, ganha destaque, na política da boa vizinhança, a Inglaterra, seu
antigo aliado. Ou seja, o fato de a literatura americana ser analisada por seu “colonizador”
cultural e político, parece indicar que o outro dos ingleses agora estabelece-se, e já pode
falar por si. Por outro lado, também poderia indicar a insuficiência da própria crítica norte-
463
ANDERSON, Benedict. “As origens da consciência nacional” In: Nação e consciência nacional. Trad.
Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo : Ática, 1989, pp.47-50. Para Raul Antelo, “O nacional, em suma, não
possui vários sentidos. Ele realiza o plural do sentido. Não é significado controverso mas signo plural e
polimorfo. A dupla contingência da instituição identitária introduz, assim, a marca da incompletude e da
insatisfação nessa construção, de modo que as disposições de sentimento que convencionamos chamar
instintivas, assinalam, de fato, carências e vazios que passarão a ser elaborados pelo imaginário social.” In
Algaravia – Discursos de nação. Florianópolis : UFSC, 1998, p. 106.
464
Para uma consulta sobre a relação entre tempo-narratividade, consultar Jakobson, Roman. “O fator tempo
na fala e na literatura” In JAKOBSON, Roman; POMORSKA, Krystyna. Diálogos. Trad. Elisa Angotti
Kossovitch. São Paulo : Cultrix, 1985, pp.61-79.
247
americana. Certamente há trabalho de publicidade de si mesmo, utilizando o “outro” para
falar de si, na estratégia cultural “furtiva”. É o próprio Cunliffe quem afirma:
Em outras palavras, a literatura americana surge aos nossos olhos
como uma curiosa amálgama do familiar e do estranho. A América
é, evidentemente, uma extensão da Europa na fase expansionista dêsse
continente. Foi povoada principalmente por europeus. Os imigrantes
involuntários (escravos negros) vindos da África são uma exceção, e
sua presença tem modificado a sociedade americana. Mas, de um
modo geral, os Estados Unidos da América foram fundados sôbre
precedentes europeus, especialmente os britânicos. Culturalmente
falando, a América poderia ser chamada de uma colônia européia. (...)
Como americano, o escritor tem desconfiado da Europa; como artista,
invejado os tesouros à disposição de seu colega europeu.
465
Baseado em princípios tradicionais, o crítico reconhece, no amálgama americano, que a
exceção modifica a regra, mas não abre mão da preferencialidade na formação cultural,
considerando os Estados Unidos ainda uma “colônia européia”. E reafirma “a
vulnerabilidade do escritor americano (apesar de seu desprendimento aparente) às
mudanças de clima intelectual; durante o último meio século, o escritor americano mudou
de pele mental com a passagem de cada década.” (CUNFLIFFE, p.9). O eco do escritor
passa a ser a grande maioria (ou sua ausência). Ou seja, as modificações da literatura norte-
americana devem-se, em muita parte, à interferência do público, para não falar em sua
tirania, como na solução do romance White-Jacket de Herman Melville, em que um dos
personagens (precisamente o não poeta, o marujo Jack) compara o público a um “monstro,
como o ídolo que vimos em Owhyhee, com a cabeça de burro, o corpo de macaco e a cauda
de escorpião” (p.9).
Entretanto, o escritor de A literatura dos Estados Unidos põe em marcha
sua análise para enfatizar o didatismo, especialmente americano, quando os países
necessitavam de grandes vilões (no caso americano, a Europa era o seu oposto), já que a
Rússia e a América aguardavam que o “futuro” preenchesse as esperanças de um “paraíso
terrestre”. Daí a necessidade de o escritor apressar o “triunfo da idelogia”, detendo-se em
noções como a da “imperfeição da natureza humana” ou da “pátria”, e que este paraíso
sonhado pudesse não chegar.
248
Tal foi o didatismo especialmente americano, pois, na medida em que
afetou a literatura. O que se tem chamado de a visão “oficial” dos
Estados Unidos tem pesado sôbre o escritor, não como tirania aberta,
mas sob a forma de sutil obrigação, modalidade mais elevada do
“slogan” comercial: “Não reclame, exalte.” A palavra Americano, com
tôdas as suas conotações, põe-se no caminho, como a Palavra Negro se
põe no caminho do escritor de côr. (...) Em têrmos literários, êsse
didaticismo americano tem sido uma combinação instável do deve ser
com o é.
466
Para Cunliffe, a percepção desta discrepância entre como as coisas são/como deveriam ser
acarreta um peso ao escritor, e ao mesmo tempo lhe indica uma saída: o humor, através do
qual conseguiria conquistar o público, aproveitando-se da herança da prosa britânica, como
também de uma “poesia popular da canção americana, que muito deve ao negro”, o que
criaria um Mark Twain. Cabe destacar esta relação entre didatismo e “slogan” comercial,
entre “deve ser” e o “é”, razão possível para a formulação de uma imagem, vital para a
campanha que se sucederá pouco tempo depois. É neste descompasso, neste hiato, que os
americanos se vêem, em que forjam, incessantemente, um perfil para si mesmos. O crítico
britânico ainda aponta que
Se a Europa tem tido uma função mitológica complexa para a
América, a América também – com menos complicação – tem tido sua
função para a Europa, no papel de terra da novidade, da aspereza, da
riqueza, violência e improbabilidade. Os próprios americanos têm
ficado fascinados com essa descrição de seu caráter.
467
O que conta para os norte-americanos também valeria para nós, sul-americanos. Esta
relação com a Europa tem como motor este “mito” – um é o ídolo, outro funciona como o
diferente, o improvável. No caso do europeu, ele mesmo se denuncia, ao pedir desculpas se
ainda compara os norte-americanos a alguma “tribu sul-africana que trabalha metade do
ano em um campo de trabalho europeu" (p.12). Mas se não quisera comparar de fato, não
haveria porque pedir desculpas a respeito. Na verdade, o pedido funciona como revelação
do próprio (in)consciente europeu – é assim que eles nos vêem. É assim que vêm.
465
CUNLIFFE, Marcus. A literatura dos Estados Unidos. Op. cit., p. 7 e 8.
466
Id. Ibid., p.10.
249
4.4 - AMERICANOBRASIL
O interesse norte-americano sobre a América Latina e, em especial, sobre o
Brasil pode ser percebido de diversas formas. Como fruto de um imaginário já instalado no
país do norte, muitos decidem vir, aparentemente por sua própria vontade. A imprensa,
livros e revistas marcam a presença política e intelectual americana, através de artigos e,
inclusive, dos nomes em inglês de grandes empreendimentos : a América Latina reforça sua
imagem de espaço aberto, enigmático, porém ligado à idéia de prazer, de ócio, resultando
em uma equação em que mistério (aventura) e desejo parecem constituir-se nos principais
ingredientes desta empreitada.
Em 1957, o número 78 de Anhembi traz um artigo de Frank Goldman
468
,
intitulado “Três educadores norte-americanos no Brasil: 1860-1917”
469
. Tratando de
abordar a história da educação protestante no país, o ensaio recupera a imagem de Miss
Mary Parker Dascomb e Miss Elmira (Ella) Kuhl, principalmente, e do Dr. Horace Manley
Lane (“o Educador, Médico, Fazendeiro, negociante, o ‘capitão do Exército de Deus’ ”
470
)
(p.454), cuja presença no país seria de fundamental importância, menos como missionários
e mais como educadores, segundo o crítico. O texto procura enfocar a presença de
imigrantes norte-americanos ao longo de diversas regiões, concentrando-se, na área
467
Id. Ibid., p.11. Grifo meu.
468
Goldamn publicou um artigo em O Estado de São Paulo, “Norte-americanos no Brasil”, em 30 de março
de 1952, também saído em Paulistania, n.54 (1955), p.38.
469
Anhembi, a. VII, n.78, maio de 1957, Vol. XXVI, p. 450 a 458.
470
Boa parte do artigo se detém sobre a presença dele no Brasil e o desenvolvimento de suas atividades.
Maçon, quando a maçonaria era fortemente combatida no Brasil, o Correio Paulistano de 22 de novembro de
1889 publica uma declaração sua:
“Durante os 19 anos de sua existência, esta Escola [Mackenzie] tem sido, repetidas vêzes, acusada de ser um
foco de democracia: NUNCA O NEGAMOS”. Êle declarou pùclicamente em 1889”. Temo-nos esforçado
sempre por incutir, nos ânimos dos alunos, certa independência de caráter e sentimentos da mais ampla
liberdade moral, intelectual e política, liberdade cujo corolário é uma responsabilidade correspondente;
portanto, julgamo-nos dispensados de dar uma expressão mais formal de nossa adesão cordial à nova ordem
de cousas.
Viva a República Brasileira!”. Id. Ibid., p.456 e 457, negritos meus.
250
educacional, no Rio de Janeiro e São Paulo. Tratavam-se de imigrantes do sul dos Estados
Unidos e de alguns nortistas (em geral anti-escravagistas), além de outros norte-americanos
naturalizados.
O fato de serem um grupo heterogêneo, não facilitou sua aculturação e
assimilação no Brasil. Ao contrário, como defesa cultural – tentando
manter a cultura, a língua e a religião que traziam, os primeiros
imigrantes utilizaram seus próprios professores para ensinar na Little
Red School Houses de acôrdo com os métodos usados na “velha
pátria”. Também se fundaram aqui as Mission Schools (escolas
protestantes missionárias) tanto segundo o modêlo das do norte dos
Estados Unidos (New York Board) como das do sul (Nashville
Committee). Precisando de instituições de educação superior, criaram
as “Escolas Americanas” e fundaram escolas agrícolas, algumas das
quais se tornaram depois estaduais, tendo-se mantido seus métodos de
ensino mais ou menos intactos.
471
Percebe-se que a concepção americana de cultura vincula-se estreitamente a
uma questão de ensino, de onde a aprendizagem, e os temores de um “desvirtuamento” de
seus princípios, acarretam a formação de núcleos de ensino no país, como ocorrerá também
com o “Mackenzie College”
472
pouco tempo depois. A fundação de diversas instituições
educacionais revela a insegurança com que viam o ensino no Brasil, ligado ao receio de
uma mescla mais profunda por parte dos filhos dos imigrantes, ao passo que, em algumas
instituições, havia diferentes nacionalidades e brasileiros de quase todos os estados do país.
A presença das escolas americanas é decisiva para um modelo pedagógico
que se firma no Brasil. É o caso da Escola Americana, cujo “êxito de seus métodos” anima
o governo do estado a pedir mais professores dos Estados Unidos, organizando a “primeira
escola moderna na pequena cidade de S. Paulo”
473
(p.456). Daí, inferimos a força que o
471
GOLDMAN, Frank. Id. Ibid., p.451.
472
O artigo enfoca o crescimento vertiginoso da pequena escolinha, transformando-se numa escola “graduada,
intermediária e secundária, e dez anos depois lhe foi acrescentado um ginásio e um colégio universitário, com
cursos clássicos, científicos e de engenharia civil. Também foi introduzido o Jardim de Infância, e deu-se
relêvo ao treino manual, à co-educação em todos os departamentos, à ginástica, aos esportes, adotou-se o
regime de internato e publicaram-se vários livros de textos, segundo o método americano.”. Id. Ibid., p.451.
Goldman cita o artigo de Horace M. Lane, M. D. e L. L. D, “Protestant Education in Latin America”, em The
Missionary Review of the World (Outubro de 1902), o que demonstra uma divulgação da ação missionária-
educacional na América Latina e no mundo. A indicação da América Latina encontra-se às páginas 753-8.
473
A declaração parte de um dos antigos diretores do Mackenzie, Dr. Benjamin H. Hunnicutt, também
publicada em Brasil Looks Foward, Rio de Janeiro : Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
251
adjetivo “moderna” adquirirá no país e no mundo, tornando-se símbolo do que é bom,
saudável, instaurando, ao mesmo tempo, na imaginação latino-americana o valor “new”,
com que se lê, freqüentemente, o melhor. Na literatura, não poderia resultar em outra
expressão senão a do “best seller”, prenúncio da poderosa presença e influência no
imaginário coletivos, inclusive determinando um padrão lingüístico comumente aceito
como o “melhor”
474
, questão que se acentuou nos últimos anos com as “máquinas virtuais”.
Félix Guattari, discorrendo a respeito da produção da subjetividade numa era virtual e
maquínima, posiciona-se da seguinte maneira:
Mas ao invés de se associar às cruzadas tão em voga contra os
malefícios do modernismo, ao invés de pregar a reabilitação dos
valores transcendentais em ruína ou de entregar-se como o pós-
modernismo às delícias da desilusão, pode-se tentar recusar o dilema
de ter que optar entre uma rejeição crispada ou uma aceitação cínica da
situação.
475
Na perspectiva de uma vinda em série, ou da vida como série, vem ao Brasil
outra norte-americana, a escritora Elizabeth Bishop que, entre suas atividades corriqueiras,
mantinha contato freqüente com os periódicos de seu país. Trazida ao Brasil graças a uma
bolsa de 2500 dólares, Bishop decide realizar “uma viagem maluca” pela América do Sul,
chegando em Santos em novembro de 1951
476
. Sua estada no Brasil abrange todo o período
de publicação de Anhembi, dando conta de um perfil norte-americano a nosso respeito,
agora vivenciado em terras sulamericanas
477
. O que era para ser uma visita de quinze dias
Estatística, 1945, pp.440-1 In GOLDMAN, “Três educadores norte-americanos no Brasil: 1860-1917, Op.
Cit., p.456.
474
A presença de Hollywood e a instauração do padrão fílmico, bem como a investida massiva nos programas
televisivos determinam esta “colonização do imaginário”.
475
“Da produção de subjetividade” In : PARENTE, André (org.). A Imagem-máquina - A era das
tecnologias do virtual. 1ª reimpressão. Trad. Rogério Luz et al. Rio de Janeiro : 34, 2001, p. 177 (Coleção
TRANS). Para Deleuze, há que tentar uma dupla ponte entre homem-máquina, a fim de que haja novos
“Agenciamentos de enunciação” entre eles a de que todos os sistemas maquínicos sejam o suporte dos
processos proto-subjetivos, por ele chamados de “subjetividade modular”, renunciando ao projeto
universalista, mas concorrendo para uma “cartografia de Territórios existenciais” (pp.178-179).
476
As informações são do estudo de Robert Giroux na “Introdução” ao livro de cartas da escritora, Uma arte
– As cartas de Elizabeth Bishop. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo : Cia. das Letras, 1995, p.13.
477
O período principal de sua estada no Brasil vai de 1951 a 1967. Em uma de suas cartas a um dos famosos
críticos da “literatura americana”, Alfred Kazin, Elizabeth comenta, de Samambaia, Petrópolis, em 10, 11 ou
12 de dezembro de 1951 : “Acho que também não estou gostando muito, mas é difícil dizer – é tanta
bagunça – uma mistura de Cidade do México com Miami, mais ou menos; tem homens de calção chutando
bolas de futebol por toda parte. Começam na praia às sete da manhã – e pelo visto continuam o dia todo nos
252
torna-se uma estada de quinze anos, em que vida pessoal e literária confundem-se com vida
periódica, editorial e política. Alguns meses aqui, ela conta à poetisa e amiga Marianne
Moore
478
:
Quando desci ao Rio ontem por dois dias, para tratar da prorrogação
do meu visto, encontrei esse recortes [referentes à premiação de
Selected poems de M.M., que recebeu o Prêmio Nacional do Livro]
numa carta de minha tia, e vou mandá-los a você, pois talvez você não
os tenha visto. (...) Não sei se já contei a você que antes de vir para cá
tive que abrir mão de participar do júri do prêmio por estar indo para
tão longe (...).
Aqui tem muitas coisas que você ia adorar (...) Além de uma profusão
de montanhas nada práticas, e nuvens que entram e saem pela janela
do quarto da gente, tem cascatas, orquídeas, todas as flores que eu
conheci lá em Key West, e mais frutas de clima temperado como
maçãs e peras. (...) O polonês [“um famoso administrador de jardim
zoológico” a quem Lota [sua companheira] vendera um terreno] me
deu de aniversário um TUCANO no outro dia. Ele – o tucano (ou ela, a
tucana?) – é mansinho e levado da breca. (...) Foi o melhor presente
que já ganhei, e o nome dele é Tio Sam.
Espero que você esteja bem – pelo que dizem Time, Newsweek, The
New Yorker e a edição internacional do New York Times – todos
atrasadíssimos e na ordem errada (...).
Vou mandar umas fotos do Sammy. E acho que nada me daria mais
prazer do que você vir ao Brasil. Acho que sou “literalista” mesmo
preciso de um tucano de verdade, e depois não consigo descrevê-lo
direito.
479
A correspondência mescla as impressões gerais sobre o Brasil, mas também revela o
envolvimento da escritora com um aspecto “institucional”, como quase membro de júri de
um concurso. A questão dos concursos torna-se fundamental para perceber a relação que se
dá entre Estado-escritores, normatizando uma determinada vertente, ao revelá-los. Porém,
lugares do trabalho. É uma cidade debilitante, totalmente relaxada (apesar do café excepcional), corrupta –
passei uns três dias numa depressão horrível, mas depois me recuperei – graças à Pearl, principalmente. Acho
que eles pretendem ficar mais um pouco, depois viajar pela América do Sul antes de voltar para Nova York.
Estamos planejando uma viagem a Ouro Preto juntos (...) O apartamento deles [Victor e Pearl] não é nada
mau
meus padrões aqui estão confusos, por causa do luxo em que estou vivendo -, mas a cama é
desconfortável, o gás tão lento quanto tudo o mais aqui, e a Pearl tem que ter muita paciência... Mas chega
por agora. Preciso trabalhar. Gostaria muito de receber carta sua – alguma notícia do mundo das letras?” (os
negritos são meus). Id. Ibid., p. 231.
478
É Marianne quem “apresenta” Elizabeth na publicação de seus primeiros poemas, em 1935, em uma
antologia denominada Trial balances. Id. Ibid., p.9.
479
Id. Ibid., p. 241 e 242. A carta é de 14 de fevereiro de 1952, negritos meus.
253
revela-os à custa de um critério, ou de muitos. São os “recortes” dos poemas que Elizabeth
decide enviar. Poderia dizer que o Brasil, para a escritora, assim como para muitos
intelectuais estrangeiros, é este “Tucano”, bonito, vistoso, mas “mansinho e levado da
breca”, Tio Sam, o “Sammy”.
480
4.5 - ÓCIO/FÓSSIL
Neste processo de constituição de um olhar moderno para o empreendimento
das revistas, dos livros e do mundo da “cultura”, temos percebido que a maleabilidade dos
movimentos da vida e da arte foram, aos poucos, sendo “engessados”, numa tentativa de
garantir continuidade às descobertas e aos percursos feitos, contrariando muitos princípios
da vanguarda do século XX, entre os quais a idéia de experimento, de efemeridade e de
liberdade. Pretendo traçar um pouco do princípio desse processo de seleção e agrupamento
de idéias, no qual vivenciamos constantemente, e com o qual a instituição, a
escola/universidade, mantém fortes vínculos.
As edições de revistas priorizariam, como vimos, a “desmontagem”, o corte,
para daí, então, remontar, antologizar os textos. A revista, enquanto antologia,
assemelharia-se a uma coleção: da mesma forma que o colecionador monta seu acervo, sua
biblioteca
481
, a revista (Anhembi/ o livro didático/a organização/compilação de materiais, a
montagem de programas de ensino) compõe-se de uma coleção de textos. Walter
Benjamin, ao trabalhar com o colecionador e a biblioteca, compara o ato de colecionar às
480
Em 3 de março de 1952, a escritora conta que “pôr uma carta no correio aqui é uma aventura e tanto,
motivo pelo qual na maioria das vezes o que eu faço é entregar minhas cartas uma vez por semana a uma
pessoa amiga que vai para o Rio (...) Não é minha intenção queixar-me do correio – ele faz parte desta
atmosfera vaga e majestosa do Brasil [...] onde uma nuvem está entrando pela janela do meu quarto neste
exato instante.” Id. Ibid., p. 243, negrito meu. Assim como o tucano, o correio (metáfora das relações, das
correspondências) também toma parte da paisagem “vaga e majestosa” do país, acenando não apenas para a
exuberância com que marcou todo o olhar estrangeiro sobre nós mesmos e que, portanto, também nos
constituiu, como ainda indica este caráter quase insustentável, fantástico, de nossa realidade (nuvens entrando
pela janela do quarto, montanhas sem praticidade...).
254
lembranças, pondo em equivalência o procedimento de ordenar e desordenar. Nesta versão,
caos e ordenação trabalham juntos na composição da lembrança, da biblioteca. A revista
possui, de certa forma, este princípio, ordenando o caos do mundo, colocando em foco as
questões mais diversas. “Na prática, se há uma contrapartida da desordem de uma
biblioteca, seria a ordenação de seu catálogo” (BENJAMIN, p.228, destaque meu).
Michel Foucault, em As palavras e as coisas, partindo da biblioteca
impossível de Borges, analisa a questão da ordenação do mundo e sua relação com a
linguagem, através da biblioteca chinesa citada pelo segundo, abolindo as diferenças entre
os animais “monstruosos” e os comuns. Se para Foucault Borges procura arruinar o “espaço
comum dos encontros”:
Onde poderiam eles se justapor, senão no não-lugar da linguagem?
Mas esta, ao desdobrá-los, não abre mais que um espaço impensável.
A categoria central dos animais “excluídos na presente classificação”
indica bem, pela explícita referência a paradoxos conhecidos, que
jamais se chegará a definir, entre cada um desses conjuntos e aquele
que os reúne a todos, uma relação estável de conteúdo e continente(...)
Esse texto de Borges fez-me rir durante muito tempo, não sem um
mal-estar evidente e difícil de vencer. Talvez porque no seu rastro
nascia a suspeita de que há desordem pior que aquela do incongruente
e da aproximação do que não convém; seria a desordem que faz
cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis
na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito.
482
A seguir, o autor de A ordem do discurso busca demonstrar, nesta “tábua de trabalho”, em
que as coisas estão “deitadas”, “colocadas”, dispostas” em lugares os mais diferentes, a
impossibilidade de encontrar um espaço comum de “acolhimento”. Se as utopias consolam,
as heterotopias inquietam precisamente por arruinarem a possibilidade de uma “sintaxe”, o
que permitiria às primeiras as “fábulas e os discursos”, enquanto as segundas dissecariam o
“propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade
de gramática; desfazem os mitos e imprimem esterilidade ao lirismo das frases”
(FOUCAULT, p.8). Foucault nos chama a atenção para o caráter arbitrário com que se
481
BENJAMIN, Walter. “Desembalo minha biblioteca” IN Rua de mão única – Obras escolhidas, vol.2.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. SP : Brasiliense, 1987, (p.227 a 235).
482
FOUCAULT, Michel. “Prefácio” In As palavras e as coisas. 4ª ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São
Paulo : Martins Fontes, 1987, p. 7, grifos meus.
255
constitui uma “classificação”, o que responde, em última instância, a uma demanda
cultural: “Assim, em toda cultura, entre o uso do que se poderia chamar os códigos
ordenadores e as reflexões sobre a ordem, há essa experiência nua da ordem e de seus
modos de ser.” (p.11)
483
.
O catálogo põe então em disposição, e à disposição, os textos, remontando-
os, recriando-os, porque, afinal, a ordenação dos mesmos em uma revista cria uma
possibilidade de leitura, o que não impediria que fossem lidos à revelia de sua ordenação
primeira. O fato de Anhembi apresentar outra ordenação, a de três em três números,
demonstra este desejo de classificação, de ordenação do catálogo, desvirtuando sua
apresentação inicial. Este princípio, a que Benjamin denomina de “tensão dialética entre os
pólos da ordem e da desordem”, poderia ser comparado ao princípio do procedimento de
leitura e composição de um texto, segundo o qual o mesmo ora se cristaliza, semelhante ao
processo de fossilização, ora se desmaterializa, se desmonta, de acordo com o olhar do
crítico, olhar que se constitui metáfora da própria dinâmica da leitura. Tal concepção
aparece já em Mário de Andrade, com seu O empalhador de passarinho, exatamente um
livro de crítica literária, em que o procedimento crítico assemelha-se ao ato de
congelamento do objeto trabalhado.
483
Um dos objetivos de Foucault neste estudo é pôr em crise a noção de uma teoria da representação e as da
linguagem na cultura ocidental, apontando para sua pura precariedade, uma vez que se constitui a partir de
uma determinada visão. “Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não
passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber, e
que desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova” (Id. ibid., p.9). Mais adiante, em “O
sono antropológico”, afirma: “Se a descoberta do Retorno é, realmente, o fim da filosofia, então o fim do
homem é o retorno do começo da filosofia. Em nossos dias não se pode mais pensar senão no vazio do
homem desaparecido. Pois esse vazio não escava uma carência; não prescreve uma lacuna a ser preenchida.
Não é mais nem menos que o desdobrar de um espaço onde, enfim, é de novo possível pensar.” (p. 358). De
alguma forma, parte da leitura de Peter Sloterdijk é uma resposta a Foucault, porém, invertando a questão, ao
postular a idéia de que o homem é um animal que não deu certo, já que teríamos assistido durante todo o
período do Humanismo a tentativa de “desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é: as boas
leituras conduzem à domesticação” (p.17); “O ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatura
que fracassou em seu ser animal (Tiersein) e em seu permacener-animal (Tierbleiben). Ao fracassar como
animal, esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha o mundo no sentido
ontológico” (p.34). Sloterdijk anuncia a falência de um modelo de cultura, uma vez que a onda de violência
dos alunos contra professores ocorrida recentemente nos Estados Unidos seriam um dos fortes indícios de sua
tese. In Regras para o parque humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad.
José Oscar de Almeida Marques. São Paulo : Estação Liberdade, 2000. De alguma forma, “ganharia” o
debate o texto borgeano, ao não discriminar as espécies em questão. Também a revista operaria de forma
análoga, ao estabelecer, em sua linha de publicação, uma não diferenciação entre os textos, o que, em última
análise, a caracterizaria como um constructo monstruoso.
256
Haveria nesta tentativa não só o movimento de reversabilidade da crítica,
como também a saída moderna para a questão da leitura/texto. Estendendo seu sentido,
veríamos na revista a dupla intenção de fragmentar e juntar, como também reunir para
separar, de modo que a operação de petrificação/movimento trabalharia de maneira
simultânea, e não mais como movimentos alternados e com espaços previamente definidos.
Trata-se da proposta do texto enquanto arquivo, do processo de sua autonomização,
incluído num contexto de mercados pós-nacionais. Daí que o importante seja
aproveitar/visualizar o que ficou de fora da agenda. Zygmunt Bauman discute este assunto
em “A agenda política pós-moderna”
484
, apontando para uma presença exacerbada, e já
parcialmente inoperante, do Estado diante das velozes transformações ocorridas:
Em outras palavras, a tolerância promovida pelo mercado não leva à
solidariedade: ela fragmenta, em vez de unir. Serve bem à separação
comunitária e à redução dos laços sociais a um verniz superficial. Ela
sobrevive enquanto continua a ser vivida no mundo aéreo do jogo
simbólico da representação e não transborda para o reino da
coexistência diária graças ao expediente da segregação territorial e
funcional. Mais importante, essa tolerância é plenamente compatível
com a prática da dominação social. (...) Com os laços mútuos
reduzidos à tolerância, a diferença significa uma perpétua distância, a
permanente não-cooperação e hierarquia. A “fusão dos horizontes”
mal ultrapassa os limites ampliados dos arrebatamentos étnicos.
485
Bauman diferencia esta “pós”-modernidade pelo “ponto de observação”, o que nos
proporcionaria melhores condições de avaliar o projeto da modernidade. Sua avaliação
parte da contribuição do Michael Phillipson, em Modernity’s Wake, cuja imagem o
sociológo aproveita para discorrer sobre a idéia de “rastro”, sugerindo uma visualização da
passagem desse imenso barco (Ivre), que por nós passou, podendo avaliar as “sérias falhas
no projeto do navio que os [passageiros] levaram ao ponto em que se encontram
486
e
484
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro : Jorge Zahar,
1999, p.288.
485
Id. Ibid., p.292.
486
Id. Ibid., p.288. Mais adiante, Zygmunt Bauman comenta que os riscos gerados pela tecnologia são
limitados com mais tecnologia (para aplauso de todos), pondo em foco a produção automobilística européia (e
mundial) em xeque. “É também difícil imaginar a Europa com os carros se multiplicando ao ritmo atual, uma
vez que a Acrópole sofreu mais desgaste nos últimos vinte anos do que 24 séculos anteriores e as florestas
alpinas protegidas por especialistas estão tendo o mesmo destino das florestas tropicais do alto Amazonas que
são, ao contrário, destruídas por especialistas.” (p.293).
257
buscar nesta agenda o que ficou à margem da passagem do barco. Imagem que tem seu eco
em Guimarães Rosa, com a “Terceira margem do rio”, reunindo no paradoxo de um querer
estar sem estar sendo, ou ainda na imagem terceira, a própria existência, que se nutre da
imagem dessas hipotéticas margens.
Daí que esta idéia da reversabilidade (da crítica, inclusive) encontra nos
pressupostos vanguardistas grande força, espaço que se amplia com a concepção
mallarmaica de texto. Toda uma configuração nova se projeta no campo das artes para
deixar encenar esta outra coreografia. E a propósito de Mallarmé, quando Un Coup de Dés
Jamais N’Abolira le Hasard surge em 1897
487
, participamos da grande des-montagem do
texto, considerado à época tradicionalmente como obra, substituído pelo projeto do
“Livro”. Toda a crítica e toda a ficção, se se quer separá-las, do século XX, manteve
diálogo com esta obra e toda a aparição de livros novos tinha como pano de fundo, senão
como primeiro plano, a tentativa de superar, ou de dialogar, com este lance de dados
488
.
Portanto, a idéia deste lance consagra a concepção do texto reversível, da leitura mobile, da
multiplicidade de espaço, além de nos lançar, irremediavelmente, na vertigem e na questão
do duplo. Ora, o corte do texto em Mallarmé assemelha-se, precisamente, ao corte da
antologia, texto que se modula, se recorta, para apresentar outra configuração, aqui
representada pela idéia da revista. Porém, também o Lance de Dados, como praticamente
toda a vanguarda européia do início do século XX, incorpora princípios da revista, seja na
concepção de um tempo fragmentado e, portanto, finito, seja na utilização da letra impressa
nos jornais, folhetins da época, dinamizando-a, e, ao mesmo tempo, exibindo o princípio da
indissociabilidade entre vida literária e via nua, entre o lido e o vivido, entre a letra e o
branco do papel.
Nesta leitura, a figura do intelectual enquanto juiz/legislador se faz
impotente, não sendo mais a força movente do texto, tornando-se obsoleta diante de uma
possibilidade do “resto”, se comparada à imagem do estado segundo Bauman. A saber, esta
é a categoria com que a sociedade pós-moderna reabre o debate (na literatura, na escola):
ler o que a antologia deixou de fora; rearmar, rearranjar as peças do jogo. É o intelectual-
487
MALLARMÉ, Stéphane. Un Coup de Dés Jamais N’Abolira le Hasard, Cosmopolis, maio de 1897
(fotocópia) In CAMPOS, Augusto et al. Mallarmé. São Paulo : Perspectiva; Univ. de São Paulo, 1975, p.145.
488
Poderíamos evocar aqui os ensaios de Maurice Blanchot, como “Uma primeira versão de Mallarmé” in O
livro por vir. Trad. de Maria Regina Louro. Lisboa : Relógios d’água, 1984 (série “À volta da literatura”),
bem como boa parte da literatura por ele produzida, com forte influência malarmaica.
258
intérprete que “opera” o jogo. Desta forma, o texto pode ser visto como “ludus”, jogo de
cartas, correspondências que se lançam ao futuro, ao acaso, como promessa de felicidade ao
leitor/jogador.
Anhembi publica, em outubro de 1957, precisamente um texto de Roger
Caillois, “Jogos e civilizações”
489
, em que o escritor francês dá continuidade a seu texto
“Estrutura e classificação dos jogos”, também por ela editado em novembro de 1956. Neste,
Caillois estabelece a diferenciação entre AGON e ALEA, concebendo o primeiro como
competição, combate que cria artificialmente a igualdade das possibilidades. A ele
corresponderia a responsabilidade pessoal (uma rivalidade que põe em evidência qualidade,
rapidez, resistência, vigor, memória, habilidade, engenho....), ligados à noção de simulacro
(“Mimicry”) e de vertigem (“Ilinx”). De outro lado, teríamos a ALEA, o jogo de dados, a
sorte, o acaso.
A “alea” aparece assim de novo como a compensação necessária e o
complemento natural do “agôn”, particularmente do “agôn”
imperfeito, isto é, da competição insuficiente, falseada ou demasiado
rude. Os reformadores políticos tentam sem dúvida criar as condições
de uma concorrência mais equitativa. Mas os resultados de sua ação
continuam magros e decepcionantes. Além disso, são distantes,
improváveis. De onde nasce a nostalgia de múltiplos caminhos de
travessia, que oferecem a cada qual a perspectiva de um êxito, mesmo
relativo, mas que, súbito e outorgado pela sorte, não lhe parecerá
menos reluzente e deslumbrante. De onde a atração das loterias
oficiais, dos jogos de azar. De onde os concursos de beleza, os jogos
de “deixe ou dobre” e tôdas as competições dêsse gênero, cuja função
é trazer em alguns instantes a um vencedor estupefato o que êle
desesperava de obter numa vida inteira de trabalho regular.
490
489
CAILLOIS, Roger. “Jogos e civilizações”. Anhembi, a. VII, n.83, outubro de 1953, vol. XXVIII, p.p. 229-
243.
490
Id. Ibid., p.241. Na leitura de Wolfgang Iser, a propósito da teoria do jogo em Caillois, “O significante
fraturado e os esquemas invertidos abrem o espaço do jogo do texto. O movimento para trás e para diante é
dirigido por quatro estratégias básicas do jogo: agon, alea, mimicry e ilinx. Essas, de sua parte, podem ser
submetidas a inúmeras combinações, que, daí, se convertem em papéis. Os papéis são bifaces, com uma
representação inevitavelmente escapando por sombreamentos incontroláveis. Os jogos resultantes de papéis
podem ser produzidos de acordo com regras reguladoras, que fazem o jogo basicamente conservador, ou de
acordo com regras aleatórias, que o fazem basicamente inovador.” In : ISER, Wolfgang. “O jogo do texto” In
A leitura e o leitor – Textos de estética da recepção. 2ª ed. revista e ampliada. Trad. Luiz Costa Lima. Rio
de Janeiro : Paz e Terra, 2002, pp. 114 e 115. Iser aponta o texto como jogo enquanto forma de encenação,
capaz de encenar uma transformação, e, ao mesmo tempo, de revelar como se faz a encenação. Essa
transformação, segundo ele, é um caminho de acesso para o inacessível, tornando-se seu alcance prazenteiro:
torna aquilo que é inacessível tanto presente como ausente. (pp. 117 e 118). A propósito do conceito de jogo,
consultar igualmente o ensaio “VII. La gran seriedad del juego – Reflexiones sobre “Homo Ludens” de Johan
259
O risco, para o escritor, é, de um lado, a vertigem e o simulacro contribuírem para a
alienação da personalidade. Por outro, a “sorte” nunca é estatística, porém a marca da
presença dos deuses, um excesso, também visto como acesso, em que povos se entregam,
fugindo do tempo, sem memória nem futuro. O desafio consistiria, então, em como entrar
“na história”, quando a obsessão torna-se “patrimônio” (p.243). A saída, para Caillois,
parece estar no desafio da convivência dos dois.
Saída que o escritor francês encontra publicando escritores latino-
americanos, outro lance de dados, através da coleção Croix du Sud pela Gallimard nos
anos 50. Ao entrar para a Academia Francesa de Letras, o crítico de arte René Huyghe
comenta a passagem de Caillois pela Arica Latina:
Esa larga estadía permitió recíprocamente descubrir los más grandes
escritores iberoamericanos que luego en Francia, a sua regreso, usted
revelo a los franceses traduciéndolos, por ser director, en la N.R.F., de
la colección “Cruz del Sur”. Pienso en Gabriela Mistral, en Jorge Luis
Borges, en Pablo Neruda, en Antonio Porchia... Seguramente no le
disgustará que mencione el enriquecimiento que debe su pensamiento
a esos contactos. Profundamente latinos, pero dotados, sin duda por la
inmensidad del suelo en que han nacido, de un sentido cósmico, muy
raro en Europa, los poetas sudamericanos son reveladores de los
poderes secretos de la naturaleza. Permítame que a ellos agregue los
músicos, a los que es usted menos sensible, y que oiga en mi memoria
al gran Villa Lobos cuando hace pasar por su teclado las fuerzas
telúricas de los Andes.
491
Huizinga (1872-1945)” In GOMBRICHT, E. H. Tributos – Versión cultural de nuestras tradiciones. Trad.
Alfonso Montelongo. México : Fondo de Cultura Económica, 1991, pp.139-161.
491
HUYGUE, René. “Contestación de René Huygue” in Roger Caillois y la Cruz del Sur en la Academia
Francesa. Trad. Victoria Ocampo. Buenos Aires : Sur, 1972, p. 79. Victoria Ocampo destaca na introdução
do livro o tema do “intercâmbio cultural”, enquanto Caillois, confessando seu ódio pela literatura na
adolescência, agora se vê desassossegado tomando posse dessa cadeira (não lhe escapa que está sendo
institucionalizado): “No ceso de inquietarme por la rareza, peor aún, por la rarefacción en el mundo de las
corporaciones a la vez constituidas y autónomas, oficiales e independientes semejantes a la que continúa
siendo, para su honor, la de ustedes.” p.23. Precede ao discurso de Caillois um mapa. Nele, a parte sul do
continente americano é desenhado (desde Peru e metade do Brasil), assinalando o percurso feito. A rota em
vermelho distingue três códigos: _____ BARCO; +++++ AUTO-TREM-MULA; ........ AVIÃO. O mapa
reafirmaria, no jogo das trocas culturais, esse caráter cartográfico da própria literatura, onde o texto assomaria
enquanto percurso, passagem, ou ainda, traçado. O texto de Victoria Ocampo também se encontra em
Testimonios. Novena serie – 1971/1974. 6ª. ed. Buenos Aires : Sur, 1979, onde a escritora antecipa seus
textos por um “testamento”, a propósito da doação de suas duas casas à UNESCO.
260
Beatriz Sarlo, discutindo as relações de Victoria Ocampo com os intelectuais franceses, e a
relação íntima desta com Caillois, procura iluminar este período através de um pedido de
Simone de Beauvoir para publicação de textos em Les temps modernes, causando
estranheza o fato do primeiro nada lhe solicitar. O episódio é significativo por revelar
outros lances no jogo/trânsito da América Latina/Europa
492
, acenando para as recepções e
contribuições “periféricas” na produção de ambos continentes.
Na idéia do livro como “aventura”, o imperativo é sempre a possibilidade, a
interação, e não mais o “dever ser” entendido enquanto império do autor. Este
492
O texto é o seguinte : “El pedido de Simone de Beauvoir, para publicar algunos textos en Les temps
modernes, no sorprende a Ocampo, pero, en cambio, le da ocasión de subrayar que otros no actúan con ella
del mismo modo. Probablemente estuviera pensando en Roger Caillois que, en ese comienzo de los años
cincuenta, ya era funcionario de la UNESCO y editor de la colección Croix du Sud en Gallimard. Caillois,
que recibió la protección de Ocampo durante los cinco años en que vivieron él y su mujer en Buenos Aires,
em 1951 ya había traducido a Gabriela Mistral, a Antonio Porchia, a Neruda y a Borges. Pero los avatares de
la fortuna literaria de Ocampo, con fundadas razones, le interesan menos. (...) Caillois le escribe: “En cuanto a
ti, se te piensa como candidata para el premio Rivarol, adjudicado cada año a un escritor extranjero que
escriba en francês. El año pasado, fue Cioran. Sería una dicha dártelo: la objeción es que no has publicado
libros en francés estos últimos dos años. (...)”. In SARLO, Beatriz. La máquina cultural – maestras,
traductores y vanguardistas. Op. Cit., pp. 158-160. Sarlo, em “Victoria Ocampo o el amor de la cita”,
aprofunda com agudeza este papel dos trânsitos culturais (dos intelectuais), fundamentalmente através da
figura da “tradução”. Uma das cenas centrais ocorre quando Victoria pede ao poeta Rabindranath Tagore,
hospedado em sua casa, na Argentina, para que traduzisse um poema seu para o inglês. Ocampo, a
fundadadora de Sur, que em 1924 não sabia escrever em espanhol, já que o francês era sua primeira língua,
questiona o poeta sobre uma “supressão” significativa do texto, a que Tagore responde que “eso no podía
interesar a los occidentales”. O impasse que se cria em torno da tradução de um texto, afinal, uma tradução
marcadamente cultural, gera uma crise na relação. Comenta Beatriz: “La escena pone de manifiesto los
conflictos típicos del mecenazgo moderno. Pero, además, desafía la creencia de que es posible traducir todo:
Tadore tradujo todo a la tarde, pero luego a esa traducción le aplicó um criterio cultural y llegó a la conclusion
humillante de que todo no podía ser traducido. Es decir que la traducción lingüística no deve avanzar sobre
um poema cuando es imposible la traducción completa entre culturas.”, p. 115.
Apesar de Victoria Ocampo ser trilíngüe (inglês, francês, castelhano), os problemas gerados por seu texto são
de outra natureza. Segundo Sarlo, a questão residia na aprendizagem da primeira língua, o francês. Menos
pela língua em si, mais pela “maneira” que se aprendia, como uma “transladação”. Daí, que a antologia de
Victoria recorra a uma saída: menos versos (seu primeiro livro foi escrito em francês), e mais prosa: no relato
de viagens, reais e imaginárias. O que a crítica Beatriz põe em evidência em seu livro é que tanto para as
professoras “primárias” de “Cabezas raspadas o cintas argentinas”, a questão do recorte (o que lecionar), do
trânsito (traduções, intercâmbios, línguas) ou para a editora de Sur em “Victoria Ocampo o el amor de la cita”
e mesmo na reconstrução de um filme perdido, em “La noche de las camaras despiertas”, (de cuja totalidade a
palavra simultaneamente não dá conta, embora, ao mesmo tempo, o reconstitua), essas três questões que
estruturam a sua reflexão são todas elas questões da antologia, entendidas enquanto construções retrospectivas
de uma cultura. Na trama da montagem do livro, como diz a própria Sarlo:”Escribiéndolo, aprendí más de lo
que ya sabía sobre el funcionamiento de la máquina cultural, aunque este libro no tiene la pretensión de dar
um esquema completo de sus mecanismos. Quisiera que los lectores hayan podido percibir, como yo, la
presencia contradictoria del pasado como algo que no se ha terminado de cerrar, y que al mismo tiempo es
irrepetible. El pasado como napa de sentidos que se transfieren al presente, y como roca de tiempo que no
volverá a emerger a la superficie.”, p.291-292.
261
procedimento também pode ser observado nos trabalhos do outro vanguardista, Guillaume
Apollinaire. Se com Mallarmé o texto se configura enquanto leque, com Apollinaire temos
o pavão, duas energias que movimentam o mundo intelectual, como tratado em outro
capítulo. Em ambos, uma figura comum, a da dobra.
Ora, precisamente na obra compilada por Augusto, Décio Pignatari e
Haroldo de Campos, este último chamará de “Um relance de dados” o estudo preliminar
que antecede a apresentação do texto de Mallarmé, para pleitear o espaço da crítica também
como ficção, ao mesmo tempo em que parece demonstrar a necessidade de in-verter os
papéis: o que antecede é o “re-lance”, ou seja, estaremos lendo o Mallarmé através do
primeiro, ou ainda, só o lemos porque há “Um relance de dados”, postulando não apenas
esta idéia da crítica-ficção enquanto lados de uma mesma carta, mas também o texto
enquanto antologia, enquanto taxionomia, posição que coincide com os princípios da
revista, do texto enquanto catálogo, em situação de dicionário:
INDÍCIO VIRGEM (VIERGE INDICE): O indício (índice) pode ser
entendido aqui no sentido semiótico de Peirce: signo que tem uma
relação real, causal, existencial com seu objeto, como um sinal natural,
um sintoma físico ou um dedo que aponta (ficam assim englobadas as
acepções cumulativas de “indício”, “índice”, indicador”, “indigitar”).
A pluma solitária da página seguinte, aposto de insinuação simples, é
este índex virgem (branco). A imagem é entretecida, ainda, por alusões
à “pena branca” do artista e ao papel sobre o qual ela escreve (se
embalança). GD interpreta: “o rodopio da pluma resume a
incapacidade do Abismo de dar qualquer indicação sobre o desfecho
do drama” (cf., mais adiante, neutralidade idêntica do abismo). Lhe
(en) refere-se a gouffre, de que a pluma esvoaçante, embalançada pela
insinuação simples, é um indício perplexo, angustioso.
493
Para reivindicar a “constelação”, esse “topázion-flor”, segundo Sousândrade, citado pelo
próprio Haroldo como ante-câmara do outro texto, também “anterior”, o crítico brasileiro
anuncia em seu “1.Exórdio” que “traduzir o Coup de Dés de Mallarmé é, antes de tudo,
uma “operação de leitura”, no sentido mallarmeano da expressão: dobragem, dobra,
493
CAMPOS, Haroldo. Mallarmé. Op. cit., p. 133. Obviamente que o “Relance” de Haroldo prepara o leitor,
o que poderia também ser lido como um esclarecimento, uma ação pedagógica, com que toda apresentação,
introdução, ou seja, ação crítica, o faz. Porém, o que distinguiria esta ação de uma tentativa disciplinadora
seria, precisamente, a percepção polivalente, ambígua, aberta, do texto/leitura.
262
dobro, duplo, duplicação, dado em dois, doação – dados (texte en deuxi).
494
Assim
postulado, Haroldo a reivindica como uma cumplicidade, o que daria vida ao texto,
estabelecendo uma condição fundamental para sua empreitada, a própria “operação” de
leitura. Em sua duplicação infinita, podemos pensar, juntamente com Deleuze, que
Em resumo, há sempre uma inflexão que faz da variação uma dobra e
que leva a dobra ou a variação ao infinito. A dobra é a potência como
condição da variação, como se vê no número irracional que passa por
uma extração de raiz e no quociente diferencial que passa pela relação
de uma grandeza e de uma potência. A própria potência é ato, é o ato
da dobra.
495
Aqui estariam representados as noções do texto enquanto jogo, da crítica configurada como
texto “ficcional” e do texto como potencialidade que se exprime na/através da duplicação.
No caso da revista/antologia, a questão se coloca na seriação, realizando uma economia
paradoxal: ao mesmo tempo em que dissemina, dispersa trabalhos, de naturezas diversas,
de escritores, anônimos e reconhecidos, ela também efetua o seu contrário, congregando, na
colagem subreptícia com que suas páginas, devidamente seriadas, nos apresenta. Por outro
lado, ela pode ser vista também na sua duplicidade de função: criada para ser menos
onerosa, a revista prima, a princípio, por um aspecto menos “pesado”, lidando com o
presente de maneira mais fortuita, ao acaso... Ao realizá-lo, precisamente por seu perfil
fragmentário e fugidio, ela tenta captar, condensar, consumir o leitor em uma leitura atenta
e aprofundada, seguindo a linha de princípios como solução/dissolução, líqüido/sólido,
corte e montagem, transgressão/conservação.
A revista funcionaria de modo semelhante à operação de um filme – ela
projeta, sob um espaço teoricamente neutro, potencialidades, virtualidades, movimentando
o que, teoricamente, é parado, sem força. Para Alain Badiou, a vida, o texto, o sujeito,
operam por subtração, equivalendo-se à antologia:
Este sujeto, como cualquier otro, debe pensarse primero como
operación sustractiva. Un filme opera por lo que retira. En él la
imagen, en primer lugar, está cortada, y el movimiento está trabado,
494
Os negritos são meus.
495
DELEUZE, Gilles. A dobra – Leibniz e o Barroco. 2ª ed. Trad. Luiz B. L. Orlandi. Campinas, SP:
Papirus, 1991, p.37.
263
suspendido, retornado, detenido. Más esencial que la presencia es el
corte, no solo por el efecto del montaje sino ya de entrada, por el corte
del encuadre y de la depuración dominada de lo visible. (...)
Así el movimiento, en el cine, debe pensarse de tres modos diferentes.
Por un lado, remite la idea a la eternidad paradójica de un pasaje, de
una visitación.(...) Por otro lado el movimiento, por medio de
operaciones complejas, es lo que sustrae la imagen a si misma, lo que
hace que, aunque inscripta, esté impresentada. Porque es en el
movimiento donde se encarnan los efectos de corte. (...) Y por último,
el movimiento es circulación impura en la totalidad de las otras
actividades artísticas (...).
496
Igualmente, poderia ser estabelecida a comparação entre fotografia e a sua
projeção em movimento, que não deixa de ser o princípio vanguardista do “abismo”
encontrar um ponto, neutro, sem movimento, para fazer girar ao seu redor todas as letras,
todas as imagens – “Le gouffre
497
. Quanto à fotografia, é Roland Barthes quem, em
“Saindo do cinema”, nos conta:
Neste cubo opaco, uma luz : o filme, a tela? Sim, é claro. Mas também
(mas sobretudo?), visível e desapercebido, esse cone dançante que
perfura o escuro, à maneira de um raio laser. Este raio se converte,
segundo a rotação de suas partículas, em figuras móveis; nós voltamos
nossas faces à conversão de uma vibração brilhante, cujo jato
imperioso passa rente ao nosso crânio e roça, de costas, de viés, uma
cabeleira, um rosto. Como nas velhas experiências de hipnotismo,
496
BADIOU, Alain. “El cine como falso movimiento” In Imágenes y palabras – escritos sobre cine y
teatro. Trad. Maria del Carmen Rodríguez. Buenos Aires : Manantial, 2005, pp.19-20.
497
Precede Mallarmé em alguns anos Une Saison en Enfer, de Arthur Rimbaud, em que a experiência
humana parece encontrar o seu limite no insuportável mundo do abismo infernal, experiência do abismo de si
mesmo, preparando o terreno para as experiências vanguardistas, em que o relato é posto em xeque com uma
primeira dúvida: “Se bem me lembro...” “(Jadis, si je me souviens bien...)”. Uma estadia no inferno. Edição
bilíngüe. 2ª ed. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1983, p.48 e 49. Além de
Rimbaud, o próprio Le gouffre de Charles Baudelaire :
“Pascal tinha um abismo sempre em movimento/ Com ele, ah, tudo é abismo: ação, palavra, zelo,/ Querer!
Pela extensão do eriçado cabelo/ Do Medo muita vez sinto passar o vento./
No alto/ em baixo, por tudo, o precipício, o apelo/ Do silêncio e o terror do vasto firmamento,/ E as unhas
deste Deus todo discernimento/ Desenha um multiforme e eterno pesadelo./
Tenho medo do sono e medo da caverna,/ Que não sabe ninguém por que mundos se interna:/ Da vidraça eu
só vejo o infinito a crescer,/
E a minha alma que sempre a vertigem invade,/ Só inveja no Nada a insensibilidade./ - Ah! Não sair jamais
do Número e do Ser!” in BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Jamil Almansur Haddad. São
Paulo : Abril Cultural, 1984, p. 324.
264
ficamos fascinados – sem vê-lo de frente – por este meio brilhante,
imóvel e dançante.
498
Barthes, fascinado com esta arte, como um hipnótico, percebe essa dupla existência
ficcional do cinema, composto de uma aparente realidade material e uma quase
inapreensível realidade, interior, com que o cinema adquire definição, também aqui para
reivindicar uma arte do erotismo (note-se que o jato imperioso, ao passar rente ao crânio,
toca, “roça”, de várias maneiras, o corpo, até ganhar uma fisionomia, “um rosto”). No
mesmo número em que sai a publicação deste ensaio de Barthes no Brasil, Christian Metz
tenta também analisar, em “O significante imaginário”, este desejo:
a vontade de ir ao cinema é um espécie de reflexo talhado pela
indústria do filme, mas é igualmente um elo real no mecanismo de
conjunto desta indústria. Ela ocupa um dos lugares essenciais no
circuito de dinheiro, no giro, dos capitais, sem o qual não se poderia
“rodar” mais filmes : lugar privilegiado, uma vez que intervém logo
após o trajeto de “ida” (...) e que inaugura o circuito-retorno que traz o
dinheiro, se possível acrescido, do orçamento individual dos
espectadores até o das casas produtoras ou de seus sustentáculos
bancários, autorizando assim a recomeçar a produção de novos
filmes.
499
Metz destaca a relação entre uma “economia libidinal” e a “economia política” como
elementos constituintes da “motivação”. Haveria, assim, um cruzamento entre a
“psicologia do espectador” e os “mecanismos financeiros do cinema” e um terceiro
elemento, por ele denominado de “terceira máquina”, caracterizado pelo “escritor do
cinema” (o crítico, o historiador, o teórico), cujo papel é decisivo na preservação de uma
noção do objeto com o maior número possível de filmes, enfim, da idéia de “cinema”
enquanto tal. Diríamos que os estudos de cinema em Anhembi terão este papel de
construção e de desmontagem da engrenagem cinematográfica, à medida que procurará,
498
BARTHES, Roland. “Saindo do Cinema” In METZ, Christian et al. Psicanálise e cinema. Trad. de Pierre
André Ruprecht. São Paulo : Global, s/d, p.123. O texto de Barthes é de 1975. No Brasil, deve ter sido
publicado no início dos anos 80, já que a edição de O rumor da língua, no qual se inseriu também este
ensaio, é de 1988. Nas muitas imagens e conceitos que desenvolveu sobre o neutro, Barthes encontrou na
postura do “sentar-se” a relação com o espírito livre, com um estado de perda da consciência. No Zen,
explica, “Sentar-se está ligado à idéia de não-proveito (...) sentar-se é ativo = ato, antonímico a “deixar-se cair
onde está”: Beckett (Todos os que caem) (...) Pois o sentado pensa, vigia (viget animus - corpus sentit), goza
na preguiça.” In O neutro. Op. cit., pp.379 e 380.
265
ainda de forma incipiente, mas firme, entrar no mundo ficcional. Christian Metz postulará
uma “semiologia do cinema”, que remeteria, “a uma só vez
a fatos de super-estrutura e a outros que não o são, sem por isto
constituirem a infra-estrutura. Nestes dois aspectos ao mesmo tempo,
esta ciência do cinema estará em relação com os verdadeiros estudos
infra-estruturais (cinematográficos e gerais). É nestes três níveis que o
simbolismo é social (ele o é, portanto, inteiramente). Mas ele também
tem, como a sociedade que o cria e que ele cria, uma materialidade,
uma espécie de corpo: é sob este estado quase físico que ele interessa
à semiologia, e que o semiólogo o deseja.
500
A essa idéia de uma materialidade a partir dos elementos descontínuos (a coexistência de
tempos) e impossíveis (a realidade como pura virtualidade), destaca-se a dimensão
temporal para uma compreensão e demarcação de um campo de saber.
Discutindo alguns dos princípios do “tipo evolucionista”, Michel Foucault
comenta que esse “evolucionismo” não reconhece o aparecimento dos seres uns a partir dos
outros, mas que se trata de “generalizar o princípio de continuidade e a lei segundo a qual
os seres formam uma superfície sem interrupção”
501
, o que suporia que “o tempo, longe de
ser um princípio da taxionomia, não seja mais que um de seus fatores” (p.167), criticando o
pensamento de Charles Bonnet. Foucault indica uma outra forma de “evolucionismo”, em
que não há mais deslocamento do conjunto do quadro classificador, mas cuja função é a de
fazer aparecer “todas as porções que, juntas, formarão a rede contínua das espécies”
(p.168). Neste caso, teríamos as semelhanças ou as identidades parciais que sustentam uma
taxionomia como marcas próprias num presente de um único e mesmo ser vivo. Ao longo
de um quadro de tempo, teríamos, então, apenas as variações de um modo de ser. Para este
projeto, a natureza, por exemplo, só tem uma história na medida em que é suscetível de
uma continuidade, o que seria garantido pela atividade e memória das partículas da matéria.
Ora, Foucault reivindica a presença de uma “monstruosidade” neste caráter
da taxionomia humana, como necessária, já que nas variações da natureza, muitas devam
ter sido atravessadas e, em seguida, suprimidas, estabelecendo uma relação fundamental
com o “fóssil”:
499
METZ, Christian. “O significante imaginário” In Psicanálise e cinema. Op. cit., p.21 e 22
500
Id. Ibid., p. 34.
266
Como se pode reconhecer, por exemplo, que a natureza não cessou de
esboçar, a partir do protótipo primitivo, a figura, provisoriamente
terminal, do homem? No fato de ter ela abandonado em seu percurso
mil formas que dele desenham o modelo rudimentar. Quantos fósseis
não são, em relação à orelha, ao crânio ou às partes sexuais do homem,
como que estátuas de gesso moldadas um dia e abandonadas por uma
forma mais aperfeiçoada? (...) O fóssil, com sua natureza mista de
animal e de mineral, é o lugar privilegiado de uma semelhança que o
historiador do contínuo exige, ao passo que o espaço da taxionomia a
descompunha rigorosamente.”
502
De alguma forma, o monstro e o fóssil configuram este espaço em que a “diferença”
aparece: “É que o monstro e o fóssil nada mais são que a projeção em retrospectiva
dessas diferenças e dessas identidades que definem, para a taxionomia, a estrutura e
depois o caráter.”
503
.
O fóssil de Anhembi encontra seu espaço na canonização dos escritores, e
na entronização do educador. Se, por um lado, a revista destaca as antologias no sentido
tradicional do termo: Antologia, (publicada no Uruguai, com escritores brasileiros, como
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirales); a de então inéditos
escritores portugueses contemporâneos; a de poesia brasileira moderna; a Antologia do
essencial (a propósito da exposição do MAM); Anthologie de la poesie brasilienne
contemporaine; Antologia da língua portuguesa; Antologia da poesia ibero-americana,
Piccola antologia poética brasiliana, além de muitas outras, por outro, veicula e
501
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Op. cit., p.167.
502
Id. Ibid., p.171 e 172. E Caillois, recobrando o aspecto monstruoso da fidelidade da língua (francesa), em
seu discruso de posse na Academia Francesa, posiciona-se mais além, afirmando que “(...) además de las
palabras de los maestros violentos y solemnes que yo había adoptado, no contradecían un apego último y
necesario que surgía de tantas rupturas. Después, he llegado hasta a ensayar, por un nuevo desafio, esa
anticuada prosa llamada “d’apparat”, que parece tan fuera de lugar en un siglo en que se exige que el estilo
sea rápido, brutal o pedante, y en que la misma poesia rechaza deliberadamente toda prosódia, es decir, uno
de sus dos recursos distintivos.” Roger Caillois y la Cruz del Sur en la Academia Francesa. Op. cit., p.23.
503
Id. Ibid., p.172, negritos meus. Conclui Foucault: “e assim, sobre o fundo do contínuo, o monstro narra,
como em caricatura, a gênese das diferenças e o fóssil lembra, na incerteza de suas semelhanças, as primeiras
obstinações da identidade.”. Em dezembro de 1953, Anhembi publica um poema de Paulo Vanzolini que põe
em destaque esta questão fóssil:
“Estância dos Peixes Fósseis”:
Na Serra do Araripe, mar extinto,/ há peixes presos nos calhaus redondos./ Ó pacientes/ por martelos
geológicos libertos/ ao capricho dos planos de clivagem./ Ó pétreos/ impassíveis expostos em vitrinas (...)/ do
mar sem esperança nem memória/ que dignidade insólita mantendes/ peixes, irmãos das palavras,
silenciosos.”, p.280.
267
sedimenta a imagem do educador como saída avant-garde
504
para os problemas do país.
Assim, a sociologia, a etnografia, a crítica cultural, a educação se unem para formarem uma
imagem da “alta cultura” que se quer florescer. Além de nomes como os de Florestan
Fernandes (com “Formação de um padrão intelectual de trabalho científico”), Roger
Bastide, Alceu Amoroso Lima, Gilberto Freyre, há também os de Euryalo Cannabrava
(“Introdução ao Plano da Enciclopédia Brasileira”) e Anísio Teixeira. A propósito deste
último, valeria destacar um de seus ensaios, “A Administração Pública Brasileira e a
Educação”, veiculado no número 67, em junho de 1956, incorporado no mesmo ano ao
livro Educação no Brasil
505
.
Este ensaio exerce um papel intermediário entre uma das imagens que se
procurou desenhar neste trabalho: a mediação entre o intelectual enquanto legislador para o
intérprete. Teixeira busca discutir a necessidade, a partir do modelo controlador do Estado,
de descentralizar as ações, especialmente as voltadas para a educação.
Ocorre, porém, que o Estado, independente da tendência moderna de
centralização e concentração do poder da organização da indústria,
possuía a tendência à centralização.
O Estado, como organização, busca a centralização como forma de
exercício de seu domínio – não para produzir, mas para controlar. A
sua eficácia consiste em conter e subordinar, sendo, assim,
centralizador por essência e natureza. As técnicas modernas de
comunicação e transportes, portanto, se fizeram logo instrumentos
preciosos de sua ação fiscal, policial e militar, tornando possíveis,
afinal, os grandes maciços políticos, entre os quais tende o mundo,
hoje, a dividir-se.
506
O educador critica o modelo totalitário do Estado, no momento que a democracia
recomenda o “pluralismo institucional”. Certamente, se trata de uma leitura das ações
504
A revista articula, certamente, muitos escritores e artistas considerados de vanguarda, ou modernos: Pierre
Verger, Philippe Soupault, Paul Eluard, Alfred Métraux, Caillois, Dinah Dreyfus, René Clair, André Breton,
Bernard Shaw, Jean Cocteau, Paul Claudel, Benjamin Péret entre outros. Essas vozes, muitas vezes
dissidentes ou dissonantes, acabam se diluindo no forte teor pedagógico da revista.
505
TEIXEIRA, Anísio S. Educação no Brasil. 2ª. ed. São Paulo : Nacional; Brasília : INL, 1976 (Atualidades
pedagógicas, vol.132). O livro constitue-se, como uma antologia, de variados pronunciamentos do educador.
Divide-se em três grandes partes, “Educação no Brasil”, “Educação e sociedade” e “Reflexões sobre os
nossos tempos”. Consultar, também, “Duplicidade da aventura colonizadora na América Latina e sua
repercussão nas instituições escolares”, artigo que abre a segunda parte.
506
TEIXEIRA, Anísio S. “A Administração pública brasileira e a educação” In Anhembi. n.67, a.VI, vol.
XXIII, junho de 1956, p.23.
268
desenvolvidas pela “racionalização” dos serviços empreendida no Estado Novo
507
. Ao
buscar uma saída para os impasses gerados pelo modelo governamental, Teixeira traça um
perfil do ensino no país, como a perda do espírito profissional na direção das escolas, a
criação “de certa irresponsabilidade no centro e certa impotência na periferia” (p.35), a
desintegração da escola, o que transforma o ensino em “cartório da educação nacional”,
culminando no reproche da falta de autonomia das unidades de ensino. Nessa linha de
atuação,
A educação e a escola, entre nós, são vítimas, assim: 1) da organização
monolítica do Estado, que não reconheceu que os serviços de educação
precisavam de organização própria e autônoma; 2) da conseqüente
centralização (...); 3) da concepção errônea de que o próprio processo
educativo podia ser objeto de estrito controle legal; 4) de sua
conseqüente organização em serviço como qualquer outro serviço
fiscal do Estado; 5) de uma concepção de “ciência da administração”,
como algo de autônomo e geral, que se pode aplicar a todos os
campos, constituindo-se, por isto, o administrador em um especialista
em tudo, capaz de organizar seja lá o que lhe der na telha organizar,
resultando daí um tipo de organização divorciado do verdadeiro
conhecimento do conteúdo da administração, com a hipertrofia
inevitável de meios e processos puramente formais e, na realidade,
formalísticos, que desatendem e desprezam os fins.
508
507
A ação estadonovista ganha destaque também na publicação de vários textos em Buenos Aires, pelo La
Nación, em 3 de maio de 1940, por ocasião do aniversário do descobrimento do Brasil. São várias
reportagens sobre o país, com destaque para o setor de turismo, “Rio de janeiro, cosmopolis 1940”; economia
(“El Brasil en la economia mundial”; indústria, “La revolucion industrial y las naciones de América”; artes,
texto de Mário de Andrade, “Artes plásticas en el Brasil”; intercâmbio argentino-brasileiro; história, “La
colonización del oeste brasileño”; literatura, “La literatura brasileña en 1940”, texto de Múcio Leão, da
Academia Brasileira de Letras, e ações educativas, como “El Brasil y el Panamericanismo” e “La obra
educativa en el nuevo Brasil”. A respeito desta última matéria, afirma o texto: “El Brasil es hoy, en materia
de instrucción pública, una nación perfectamente unificada, cosa que, por otra parte, ocurre en todas las otras
expresiones de su vida colectiva. El Ministério de Educación tiene amplos poderes y dispone de maquinaria
adecuada para ejercer la más perfecta fiscalización sobre la instrucción pública en todos sus grados. Los
abusos que motivaran una perversión del concepto de la libertad de enseñanza que a su vez acarreó la
multiplicación de establecimientos educativos sin edoneidad y apenas animados por propósitos mercantilistas,
se ven rigurosamente reprimidos.” La Nación, n. 24.715, a.LXXI, Buenos Aires, 3 de maio de 1940, p.3
(encarte especial). Consta neste texto, como na maioria, apenas “Para La nación”, sem autoria definida.
508
TEIXEIRA, Anísio. “A Administração pública brasileira e a educação”, Op. cit., p.40. Consultar,
igualmente, o texto “A missão social das bibliotecas públicas” no n.4, V.II, março de 1951; “A crise do
ensino” de Abgar Renault, em n.32, a.II, julho de 1953. A revista aposta na relação das diversas áreas com a
educação. Assim, há esportes e educação, disco e educação, o direito e a educação... reforçando esta linha da
revista.
269
A autonomia almejada por Anísio Teixeira é a possibilidade de sair do problema
509
.
Problema que, para ele, reside no fato de que o Estado controla e vigia não apenas os
serviços administrativos e de fiscalização, mas áreas como saúde e educação. “Autonomia e
independência” resumem a proposta do educador, com o que vislumbramos a passagem do
modelo do legislador ao intérprete, na figura do Estado que, via de regra, não mais legisla,
tudo controla.
509
Hannah Arendt, ao analisar a crise na educação na América precisamente nesta época, aponta, no desejo de
autonomia para o mundo da criança, as falhas no sistema educacional americano. Entre elas, o domínio do
Pragmatismo como procedimento que isola a criança do mundo dos adultos, tirando-a da tirania destes, porém
ingendrando-a na tirania da maioria (aqui, na figura do “grupo”). Em sua análise, Arendt, interessada em
mostrar “como o saber é produzido”, destaca o desejo que a sociedade tem de inculcar habilidades no lugar
dos pré-requisitos normais de um currículo padrão, substituindo a aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo
brincar. Em sua leitura, há uma inversão de valores, com a intromissão de juízos e preconceitos acerca da
natureza da vida privada e do mundo público, além de uma sociedade que, sob o lema de criar uma nova
ordem no mundo, confunde autoridade e qualificação profissionais. Para a crítica, assim como analisamos a
propósito dos usos do moderno, “Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada
criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo
novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de
vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição.” (p.243). Divorciados os processos de
qualificação/autoridade, as conseqüências seriam : 1. “uma compreensão bem mais clara de que a função da
escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver.” (...)2. “a linha traçada entre
crianças e adultos deveria significar que não se pode nem educar adultos nem tratar crianças como se elas
fossem maduras”. A conclusão do ensaio, não sem criticar a segmentação e particulariedade das áreas do
mundo contemporâneo, recai na instância última (e primordial) da educação enquanto decisão e
responsabilidade, o que, para uma leitura da “autonomia e independência” desejadas para o ensino
sulamericano, poderia também ser levado em conta. ARENDT, Hannah. “A crise na educação” In Entre
passado e futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo : Perspectiva, 2005, pp.221-247 (Debates, n.64).
Consultar, igualmente, a propósito do papel do educador/artista, bem como de uma pedagogia dionisíaca, o
ensaio de GARCIA, Wladimir. “Osman Lins educador” in Outra Travessia – Revista de Literatura : Arte
e Literatura – Osman Lins, 80 anos. Ilha de Santa Catarina : Curso de Pós-graduação em
Literatura/Universidade Federal de Santa Catarina, n.4, 1º semestre de 2005, pp.63-68.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O adulto pedófilo mundial tem agora suas
sólidas convicções: a família universal, a
ciência, o progresso, o esporte, a segurança,
os ossários logo cobertos, a rotina da
corrupção, a justiça adiada indefinidamente,
o nada sorridente, a publicidade humanista, a
reprodução controlada por computador, as
epidemias devastadoras, o terrorismo, o
sincretismo religioso, a exploração genética.
O romance da época será, portanto, policial:
preto e branco, integração edificante do
negro, pornografia e violência educativas,
cinema se autofilmando, justificação
mecanizada dos sofrimentos: encontrou-se a
solução.
Philippe Sollers
Retomando o trajeto deste trabalho, vimos no primeiro capítulo que a
literatura tem passado por transformações distintas. Dentre elas, a percepção de que a
modernidade é vista menos enquanto materialidade duradoura, permanente, e mais
enquanto diluição, virtualidade, fantasma. Nesse processo, busquei destacar como há uma
concepção de moderno e de modernismo que, através de determinados agenciamentos, se
institucionaliza. Nesta primeira parte, ao pontuar as questões a serem vistas, almejava
igualmente lançar um outro horizonte possível, especialmente no campo da literatura.
A busca de uma modernidade que não está pronta, mas que se formula no
processo, ou ainda que se narra na reconstrução das ruínas, constitui-se em um dos pontos
centrais do trabalho. Ao rever o estatuto ficcional dos textos, procurei um outro modelo,
menos homogeneizante e mais oblíquo e, quiçás, mais proliferante. Questões como a
271
constituição de um campo de visão, em detrimento do olhar; a problemática da distância e
do tempo; a pedagogia enquanto prótese e a arte enquanto procedimento e acontecimento,
ao mesmo tempo pleiteando uma literatura do “como se”, da fabulação, da liberdade de
traçar, ou seja, da escrita enquanto “travessura”, do texto-gesto, estiveram presentes nesse
horizonte. Assim colocada, a literatura identifica-se, ao sair do modelo tradicional,
enquanto dobra, jogo, equivocidade; objeto que se produz enquanto devir, potência,
imagem. Trata-se da literatura enquanto cartografia. Enquanto carta, por vir, esta literatura
apresenta-se em forma de perigo, monstruosidade, portanto deve ser lida enquanto
estranhamento permanente.
Para ler esta malha ficcional, utilizei-me da estratégia do “anacronismo”
(Borges, Didi-Huberman), lendo a modernidade proposta por Zygmunt Baumman, na
passagem da imagem do intelectual legislador para o intérprete, um caminho possível.
Igualmente, o trabalho buscou nas categorias teóricas de Frederic Jameson, a propósito das
maneiras de ler a modernidade, um modo de pensar as “arqueologias do futuro”, que, para o
crítico, pode ser feito pela anacronização do passado. Uma dessas iniciativas tratou de
problematizar o modelo de literatura, enfocando sua configuração (e conformação)
enquanto disciplina nos inícios do século XX, de onde emergiu fortemente o intelectual
pedagogo, o professor, o mestre, o artista enquanto mediador, de cuja figura destacou-se
Gustave Lanson. Nesse sentido, tanto a periodização literária quanto a própria noção de
literatura estariam em xeque, mas, ao mesmo tempo, acenariam de maneira decisiva para
formação de cânones literários.
O segundo capítulo propôs um outro modelo de intelectual. Não mais
Lanson, mas Larbaud, o intelectual-intérprete. Para teorizar e fazer outra antologia,
enfoquei, via Valery Larbaud, a constituição de uma política cultural entre Europa-América
do Sul, onde destacaram-se, fundamentalmente, Oliverio Girondo, Ronald de Carvalho,
Mário de Andrade, Tristão de Athayde, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade,
Alfonso Reyes e até mesmo Elisabeth Bishop, através dos quais desenhou-se um modelo de
crítica literária. Junto a Larbaud, Apollinaire reforçou a influência vanguardista, ao mesmo
tempo em que o modernismo tentava lidar com este legado. De uma forma específica, o
foco esteve na formulação de uma crítica agônica, a do “louva-deus”, face a outro modelo,
como a de Roger Caillois, em que noções como apatia, indiscernibilidade, inoperância
272
ganharam destaque, resultando em uma linhagem que influenciou, para citar alguns nomes,
Georges Bataille, Roland Barthes, Giorgio Agamben.
Nesse trajeto, a antologia, sempre in-forme, buscou uma imagem: passagem,
viagem, percurso, operação de leitura, procedimento, tradução, decisão política. Nessa
metamorfose, funcionando como via de mão dupla, também alimentou e (se) reorientou
enquanto imaginário (o europeu e o da própria América do Sul).
No processo de constituição dos cânones modernistas, o terceiro capítulo
dedicou-se ao debate da conformação de uma imagem latino-americana, seja através da
influência norte-americana, seja nos estudos de origem etno-antropológicas. O estudo
analisou, através dos processos de institucionalização, como os congressos, as
comemorações dos centenários, possuíam uma dupla função pedagógica, sendo vistos ora
como rememoração, ora como exposição, vitrine, em cuja imagem a leitura do
modernariato proposto por Paolo Virno é elucidativo. Buscando as primeiras antologias
latino-americanas, utilizei, para sondar nelas a presença (e ausência) do Brasil, o princípio
da inclusão excludente, sintoma do estado de exceção postulado por Giorgio Agamben.
Em todo o trajeto, ressaltei o conceito de cultura, ao mesmo tempo em que
procurei analisar, em alguns arquivos modernistas, como essa cultura se identificou com
um saber legislador, tornando procedimento cristalizado, canônico, ou seja,
institucionalizou-se. O capítulo tratou de visualizar nesse arquivo (biblioteca) a
correspondência elucidativa dos processos de institucionalização e do diálogo intercultural,
fundamentalmente entre Mário de Andrade e Paulo Duarte, sinalizando um modelo que
teve suas fontes na interlocução com Paul Rivet. O estudo visou, ainda, apontar como a
interferência dos Estados Unidos na política sul-americana (em relação à Europa) esteve
atravessada pelo desejo de centralização do domínio cultural, em especial em relação à
França.
Como herança modernista, o capítulo IV afunilou a leitura nas relações que a
revista Anhembi, fundada por Paulo Duarte, estabeleceu. Dentre elas, o enfoque para a
imagem de congelamento, de cristalização de intelectuais de renome nacional e
internacional, consolidando um saber político e literário exemplar, cujas influências
ecoaram nas mais diferentes áreas, inclusive na educação. O pano de fundo do debate
focalizou, com mais detalhes, a investida norte-americana nessa política cultural,
273
encerrando-se com o modelo educacional problematizado por Anísio Teixeira no periódico,
além de encenar a mudança de paradigma de uma sociedade disciplinar para outra, a do
controle
510
. Gostaria de tratar, nessas considerações “finais”, de alguns desdobramentos das
concepções da literatura interligados com a mudança do paradigma mencionado.
Entre correntes que interpretam a literatura ora como jogo tenso, agonístico,
ora como arbitrariedade, possibilidade, aleatório, ou ainda, entre a passagem de um
modernismo legislativo para um outro, mais interpretativo, representado pelo modernismo
de cunho fundamentalmente etnográfico, poderíamos verificar alguns ecos da organização
da antologia a partir dos anos 50, em um contexto de uma sociedade do controle em
detrimento de um padrão disciplinar, o que se configura, ao final, em uma mudança na
maneira de ver o museu
511
.
A presença residual da literatura e da crítica francesa entre os modernistas
tardios assinalaria uma tendência na década de 50 no Brasil, principalmente com a política
norte-americana
512
, consolidando um modelo de leitura fortemente marcado pela mudança
na maneira de lidar com a biblioteca, com o museu, como atestaram os textos de Roger
Caillois publicados em Anhembi, notadamente através da idéia de jogo. Anhembi estaria
precisamente nesta encruzilhada, uma vez que responderia ainda ao modelo modernista, já
exaurido, porém disciplinador, e a um outro, encetado pelas novas descobertas científicas e
pela emergência do poder midiático.
A presença de Caillois suscitou opiniões diferentes no Brasil. Anhembi
publicou uma série de artigos de e sobre escritores e artistas modernistas, inclusive Oswald
de Andrade, que abordou o escritor francês com certa disciplicência e desprezo, por este
510
Segundo Gilles Deleuze, a propósito de Foucault, “entramos em sociedades de “controle”, que já não são
exatamente disciplinares. Foucault é com freqüência considerado como o pensador das sociedades de
disciplina, e de sua técnica principal, o confinamento (não só o hospital e a prisão, mas a escola, a fábrica, a
caserna). Porém, de fato, ele é um dos primeiros a dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que
estamos deixando para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam
não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea.” In DELEUZE, Gilles.
Conversações. 4ª. reimpressão. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro : 34, 2004 (Coleção TRANS), pp. 215-
216.
511
Consultar o texto de FOSTER, Hall. “Archives of Modern Art”. In October. n.99. Cambridge : MIT
Press, Winter, 2002, pp. 81-95, e deste mesmo periódico, o artigo de NIXON, Mignon. “After Images”. n.83,
pp.115-130.
512
Fredric Jameson debate a questão da cutura e a relação com o mercado (já internacionalizado) em “Culture
and finance capital”. In: Critical Inquiry. n.1, vol.24. Op. cit., Autumn, 1997, pp. 246-265. O artigo pode ser
encontrado também no capítulo 7 de A virada cultural : Reflexões sobre o pós-moderno. Trad. Carolina
Araújo. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006, pp. 217-254.
274
condenar o romance como forma burguesa. É o que vamos encontrar nos artigos publicados
em 1943 e 1944, agrupados em Ponta de Lança
513
. Nesse conjunto de textos esparsos,
publicados em periódicos, podemos ler, antes do texto sobre Caillois, um “Sobre o
romance”
514
, em que Oswald, plagiando o estilo de Freud de O futuro de uma ilusão, de
1927, resumiu de forma ambígua a contribuição da América para este gênero literário: “A
cidade de amanhã tem ainda uma retaguarda agrária”, que tanto funciona para a Energia
de Gladkov quanto para Vinhas da ira. Esta noção de futuro que contém o passado, que
poderia ser lida ainda como a cidade devedora do campo, revela a preocupação do escritor
de Serafim Ponte Grande para com a contribuição européia ao romance e, além do mais,
anuncia uma certa indecibilidade constitutiva de nossa modernidade, impossível de ser
exata, precisa, apesar das evidências. O texto é construído como plataforma do impossível:
ser preciso e impreciso ao mesmo tempo, através de um alter ego narrativo, finalizado na
coloquial expressão : “Ora! Você só fala piada...”, sugerindo que a saída é ainda a aposta
modernista da corrosão.
A meu ver, haveria na opinião de Oswald uma mistura entre o que Roger
Caillois afirmou e o que representa enquanto certo imaginário europeu/colonizador:
Há, na experiência e no contato desses europeus com os descendentes
vestidos dos tupiniquins, os testamenteiros de João Ramalho e os
paulistas de Luanda, uma verdadeira festa, como foi a de Rouen,
quando os nossos índios autenticaram as suas qualidades de homens
naturais, fornecendo a Montaigne aquele famoso capítulo do
canibalismo letrado.
(...)
No desenvolver de seu curioso caminho, Caillois imprime ao romance
burguês um caráter definitivo que não tem. [cita Ulisses e A
Montanha Mágica]. Esses afrescos são suficientes para mostrar que o
caminho do romance está mais que aberto na direção do futuro e o
romance, retomando sua função pedagógica, está longe de se estiolar
e perecer.
515
513
ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lança. Op. Cit, pp.85-90.
514
Id. Ibid., pp. 85-90.
515
Id. Ibid., pp.114-115, grifos meus. A respeito de Montaigne, consultar capítulo XXXI, “Dos canibais”, em
Ensaios-I, de onde extraí uma pequena amostra: “O homem que tinha a meu serviço, e que voltava do Novo
Mundo, era simples e grosseiro de espírito, o que dá mais valor a seu testemunho. As pessoas dotadas de
finura observam melhor e com mais cuidado as coisas, mas comentam o que vêem e, a fim de valorizar sua
interpretação e persuadir, não podem deixar de alterar um pouco a verdade. Nunca relatam pura e
simplesmente o que viram, e para dar crédito à sua maneira de apreciar, deformam e ampliam os fatos. A
informação objetiva nós a temos das pessoas muito escrupulosas ou muito simples, que não tenham
275
Incomodado com os resultados do livro de Caillois, Sociología de la novela, então
recentemente publicado por Sur, de Buenos Aires, Oswald cria que a missão do romance
não estava ainda cumprida, depositando créditos na saída coletiva, contra uma
individualista do francês. E retomou o exemplo do romance de Gladkov, Energia, para
assinalar que o romance tem o seu lugar assegurado no mundo de hoje, desprezando a
“célula desse amável imperialismo humanístico que representam os professores franceses
na América”
516
. A acusação do brasileiro foi acarretada pela análise que Caillois fez do
papel do intelectual no mundo que se anunciava. Para Oswald, o intelectual não deve se
isolar do mundo (Gilberto Freyre, Carlos Lacerda, Vinícius de Moraes não devem entrar
para o convento...) nem se absorver pelo “gigantismo social”. A saída criticada por Caillois,
a solução dos técnicos, foi para Oswald motivo de esperança, “Que venham agora servir os
que trabalham!”.
Ora, Roger Caillois teve uma larga compreensão do mundo e do homem, e
tentou, através de O mito e o homem
517
, entender como acontece a passagem de um evento
comum ao mito. Valeria destacar, inclusive, que boa parte do trabalho deste escritor teve a
preocupação de retomar alguns princípios de Freud, em especial os que analisam o instinto
de morte, para indicar como se dá, a partir do mundo animal/vegetal, o mimetismo, que
poderia ser lido como uma tendência à petrificação/fossilização do mundo, indispensável à
sua sobrevivência. Esta tendência encontrou relação direta entre a vocação à imobilidade da
vida (movimento de paralisação que leva à morte, a morte como componente da vida) e o
prazer (o coito, o prazer como prefiguração da morte), a propósito da leitura do “louva-
deus” de Mário de Andrade
518
. Dentre os aspectos analisados entre o instinto e o
invenções e igualmente que não sejam sectárias.”. In MONTAIGNE – Vol. I. 4ª ed. Trad. de Sérgio Milliet.
São Paulo : Nova Cultural, 1987, p.101 (Coleção Os Pensadores), grifos meus.
516
ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lança. Op. Cit , p.117, grifos meus.
517
CAILLOIS, Roger. O mito e o homem. Op. cit.
518
Como vimos, Caillois toma como ponto de partida para seus estudos a figura do Louva-a-deus, a sua
representação em diversos povos do mundo, indicando em muitos casos a sua condição ambivalente : é visto
tanto com sagrado quanto diabólico, demonstrando como se dá um pouco de sua incorporação nessas culturas
e, ao mesmo tempo, como ele as vivifica. Na leitura do crítico francês, será decisivo o caráter das
representações antropomórficas e sexuais que este inseto assume, sugerindo que “seria até interessante fazer
uma antologia destas descrições” (Id. Ibid., p.41, grifo meu), para em seguida destacar o papel que a
imaginação desempenha no seio dessas culturas, de grande relevância na ligação que terá no desenvolvimento
da idéia do mito e do folclore. É importante observar como Caillois explora toda uma economia do espectro
através deste inseto, cuja fantasmagorização é fundamental para o cultivo e perpetuamento de sua influência.
276
automatismo do inseto e a inteligência, as representações e as ações do homem, convém
destacar, a partir da leitura de Henri Bergson, “a origem da função fabulatória”:
Segundo ele, esta ocupa o lugar que o instinto tem nos insectos, não
sendo a ficção possível senão para os seres inteligentes: as acções
encontram-se pré-formadas, diz ele, na natureza do insecto e, no
homem, apenas o está na função. Aliás, a ficção, neste último, “quando
é eficaz, é como uma alucinação nascente”. As imagens fantásticas
surgem no lugar do acto desencadeado. “Desempenham um papel que
poderia ter sido entregue ao instinto, e que sem dúvida o seria num ser
desprovido de inteligência.” [Caillois cita Bergson a partir de Las deux
sources de la morale et de la religion]. De um lado, instinto real, de
outro, instinto virtual : é assim que M. Bergson diferencia a condição
do insecto que age e a do homem que cria mitos. (...) Há a diferença do
acto à representação, mas a mesma orientação biológica organiza o
paralelismo e determina a convergência.
519
Trinta anos depois, leríamos em Foucault esta importância da fabulação de que fala
Caillois, ampliando a noção e estabelecendo outros sentidos em “Por trás da fábula”, de
1966
520
, onde se efetua a distinção entre ficção (“regime da narrativa”; “trama das relações
estabelecidas, através do próprio discurso, entre aquele que fala e aquele do qual ele fala”; “
‘aspecto’ da fábula”) e fábula (“o que é contado”, “elementos colocados em uma certa
ordem”). Nesta distinção, Foucault põe em relevo a própria trama que se arma, abrindo uma
“outra” fenda:
O que restitui ao rumor da linguagem o desequilíbrio dos seus poderes
soberanos não é o saber (sempre cada vez mais provável), não é a
fábula (que tem suas formas obrigatórias), são entre os dois, e como
em uma invisibilidade de limbos, os jogos ardentes da ficção.
(...)
Graças a essa sutil fissura, os personagens atravessam um mundo de
verdade que permanece indiferente, e que se fecha sobre si logo após
eles passarem. Quando retornam, eles certamente viram e aprenderam,
mas nada mudou, nem sobre a face do mundo nem na profundidade do
seu ser.
521
519
Id. Ibid., pp.54-55.
520
FOUCAULT, Michel. “Por trás da fábula” In Michel Foucault – Estética: Literatura e Pintura, Música
e Cinema. Op. cit., pp. 210-218.
521
Id. Ibid., pp.217-218, grifos meus.
277
Na conclusão de Caillois, o mito representaria uma imagem de uma composição de que era
o pedido insistente, numa equação em que o próprio mito seria o equivalente de um ato, de
onde se destaca o “motivo afectivo” que daria ao mito esse poder de influência. No caso de
Foucault, o herói das narrativas, ao ser encenado por meio de uma fabulação, assinala uma
transfiguração irreversível, porém invisível (poderíamos pensar numa espécie de estatuto da
própria literatura). Trata-se da noção de jogo, fundamental para Caillois, tanto quanto certa
teorização do olhar. Nesta “vaga analogia de tonalidade” que parece constituir o primeiro
grau de mimetismo, em que uma ação automática seria despertada a partir da retina,
constituindo o que ele denominou de “telefotografia da imagem retiniana”
522
, ou seja, uma
transposição da retina para a pele, poderíamos lê-la como a constituição da trama ficcional
e sua relação com o leitor (vestir sem deixar vestígios), em que o processo de
“transfiguração”, segundo Foucault, acontece.
A ação seria acrescentada por outra estratégia, a que se poderia denominar
de “a potência do apêndice”, através da qual certas espécies estariam tentando inserir-se no
mundo vegetal. Ou seja, o que garantiria sobrevivência, longevidade, seria o caráter
mimético alcançado através de uma transfiguração – ser vegetal quando inseto, ser o outro,
através do suplemento. Para esta categorização, Callois reportou-se a vários pesquisadores
(E. L. Bouvier, Cuénot) que atribuíram ao acaso
523
o motivo das transformações, para quem
522
CAILLOIS, Roger. O mito e o homem. Op. cit., p. 68. O autor expande-se em uma outra modalidade de
mimetismo, o defensivo, através de cores obliterantes, citando a pesquisa do Paul Vignon, em que o Brasil
aparece mencionado através da borboleta Caligo: “ “Tem uma mancha brilhante envolvida por um círculo
palpebral, depois filas circulares e imbricadas de pequenas penas radicais de aspecto variegado imitando na
perfeição a plumagem de uma coruja, enquanto o corpo da borboleta corresponde ao bico do mesmo pássaro.”
A semelhança é tão flagrante que os indígenas do Brasil pregam-na à porta das suas quintas em substituição
do animal que mimetiza. Certos pássaros, assustados normalmente pelos ocelos da Caligo, devoram-na sem
hesitar se se lhes cortar as asas.” Id. Ibid., p.71. A análise é interessante porque leva o pesquisador aos casos
de antropomorfismo, e a uma conclusão de relevo: “a semelhança só existe aos olhos daquele que observa”.
Utiliza o caso do comportametno de indígenas do Brasil, em que os “olhos” da borboleta desempenham papel
semelhante ao “oculus invidiosus apotropaico, o mau-olhado capaz de proteger assim como de prejudicar, se
se o vira contra as forças más a que, órgão fascinante por excelência, pertence naturalmente”. Caillois tenta
aqui desenvolver o conceito de “fascinação”, atingido através do olhar. Se a este agregarmos o fato de que a
semelhança existe apenas para aquele que observa, poderíamos derivar daqui toda uma teoria, em que o
mundo moderno se baseou para afirmar a pluralidade de sentidos a partir do olhar, na relação
fascinado/fascinante, o que poderia também dar mais densidade aos “jogos ardentes da ficção”.
523
Caillois, abordando nesta questão o aspecto da comodidade das espécies em se adaptarem, e do acaso,
solicita ao leitor que se reporte às fotografias que ilustram a primeira fase desse estudo no nº 7 da revista
Minotaure. O que está em jogo é um posicionamento alternativo, e contrário, a toda a tendência
naturalista/positivista que dominou o cenário mundial do início do século XX. O que o crítico tenta pôr em
cena é a idéia de “ALEA” como elemento fundamental na composição natural do mundo e, por extensão, do
homem.
278
a presença simultânea de elementos é menos perturbante do que a “organização mútua” e
sua “topografia recíproca”. Nesta perspectiva, haveria uma simulação das imperfeições,
utilizando-se de uma técnica semelhante a uma fotografia, mas com forma e relevo, sobre o
plano do objeto e não sobre a imagem, constituindo, desta forma, uma “fotografia-
escultura”, uma “teleplastia
524
, com que se postula uma teoria da plasticidade do
organismo, cuja morfologia teria sido modelada segundo “influências inoperantes”. O
debate que Roger Caillois nos trouxe é instigante por sintonizar questões que seriam
aprofundadas durante todo o século XX. A questão do mimetismo está em torno da
discussão da idéia de arte como mimese ou não (por exemplo o debate sobre o Realismo,
para ficar só neste exemplo). Além disso, o paralelismo entre o mundo animal/vegetal e a
condição humana/artística parece provocadora. A outra questão levantada por Caillois diz
524
O debate que subsiste a essa discussão diz respeito à questão que a fotografia suscitou no início do século
XX. Para tanto, lembremo-nos do famoso ensaio de Walter Benjamin, de 1931, “Pequena história da
fotografia”, em que o escritor alemão levanta a questão de como sair da vanguarda na visão de Tzara, em
1922: “Quanto tudo o que se chamava arte se paralisou, o fotógrafo acendeu sua lâmpada de mil velas e
gradualmente o papel sensível à luz absorveu o negrume de alguns objetos de consumo. Ele tinha descoberto
o poder de um relampejar terno e imaculado, mais importante que todas as constelações oferecidas para o
prazer dos nossos olhos”. Os fotógrafos que passaram das artes plásticas à fotografia, não por razões
oportunísticas, não acidentalmente, não por comodismo, constituem hoje a vanguarda dos especialistas
contemporâneos, porque de algum modo estão imunizados por esse itinerário contra o maior perigo da
fotografia contemporânea, a comercialização. ‘A fotografia como arte’, diz Sasha Stone, ‘é um terreno muito
perigoso’.” In BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre literatura e história
da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo : Brasiliense, 1987, p. 105. O temor que pairava sobre
muitos, inclusive Baudelaire, por Benjamin comentado, era a de que a fotografia suplantasse a obra de arte.
Além de evidenciar a reprodutibilidade técnica, (notemos que Tzara denomina de “vanguarda dos
especialistas contemporâneos” os que passaram das artes plásticas à fotografia), a fotografia põe a nu a
questão da multidão/massa (Baudelaire), bem como o da estesia: “A câmara se torna cada vez menor, cada
vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do
espectador.”. (p.107). Para visualizar melhor a questão de como a fotografia está associada aos vanguardistas,
consultar o livro de Billy Klüver, Um dia com Picasso – 29 fotografias de Jean Cocteau. Trad. Sonia
Coutinho. Rio de Janeiro : José Olympio, 2003. A experiência fotográfica para Picasso, Max Jacob, Jean
Cocteau, Manuel Ortiz de Zarate e amigos em torno de 1916/1917 revela que para o grupo interessava a
maneira “artificial”, a “pose” da fotografia, com que leríamos, num primeiro momento, a preferência do
congelamento do instante preparado, e não mais do mero acaso, com que o futuro um dia leria este
movimento. Não é sem razão que uma das preferências de Picasso será a pintura de quadros em que a pose
ganha destaque, como por exemplo a série de mulheres pintadas. Significativa também será a reflexão de
Roland Barthes em A câmara clara, op. cit., a respeito da pose e do espectro. “Ora, a partir do momento que
me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente num outro
corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. (...) Pois a Fotografia é o advento de mim mesmo
como outro: uma dissociação astuciosa da consciêncioa de identidade.” (p.22 e 23). Ao comentar os “Quatro
imaginários” do auto-retrato, e suas imposturas, afirma : “vivo então uma microexperiência da morte (do
parêntese) : torno-me verdadeiramente espectro. (p.27). Finalmente, poderíamos associar esse estranhamento
do ser fotografo com a questão da distância como elemento constituinte da trama ficcional, como defende
Flora Sussekind, especialmente em O Brasil não é longe daqui.
279
respeito à invisibilidade
525
e ao espaço. O fim de algumas espécies não seria o de mimetizar
como forma de defesa, mas de representar o espaço, com o que há inversão total da lógica
tradicional:
Em suma, desde o momento em que já não pode ser um processo de
defesa, o mimetismo só pode ser aquilo. De resto, a percepção do
espaço é, sem dúvida, um fenómeno complexo: o espaço é
indissoluvelmente percebido e representado. Deste ponto de vista, é
um duplo diedro mudando a cada instante de grandeza e de situação.
(...) É com o espaço representado que o drama se precisa, pois o ser
vivo, o organismo, já não é a origem das coordenadas, mas um ponto
entre outros; é despojado do seu privilégio e, no sentido pleno da
expressão, já não sabe onde se meter.
526
Esta relação entre eu e espaço levou Caillois a ligar o segundo a uma “potência
devoradora”, como no caso dos esquizofrênicos, da vida que recuaria um grau, quando da
mimetização do vegetal, da questão da imobilidade e a relação com os tiques da histeria, da
matéria decomposta como motivo de assimilação, de toda uma problemática do “falso”, do
inútil/luxo, do acessório, inoperante, questões estas relevantes para o debate cultural do
século, chegando a definir o ser vivo como “estranho espaço a que o além-espaço confere
existência”. Esta questão diz respeito ainda ao neutro barthesiano
527
, tendo Blanchot como
precursor. Concluiu o escritor que o mimetismo é um movimento que une a necessidade
fisiológica, que age como força eficiente, à imagem que lhe anuncia o apaziguamento,
como força final. Este desejo de identificação com o espaço, com a matéria, também estaria
525
Citando E. Rabaud: “A invisibilidade tem, no entanto, um limite, que é o de se confundir inteiramente,
para um dado olho, com o meio ambiente; a partir deste limite, a invisibilidade só muda se deixar de existir, o
que nos conduz aos confins do absurdo.” CAILLOIS, Roger. O mito e o homem. Op. cit., p. 77.
526
Id. Ibid., p. 81. Pouco antes, Caillois assinalava, a partir da idéia de que “o semelhante produz o
semelhante”, que “O essencial é que se mantém no “primitivo” uma tendência imperiosa a imitar, juntamente
com a crença na eficácia desta imitação, tendência ainda com bastante força no “civilizado”, para se manter
uma das condições de evolução do seu pensamento entregue a si próprio, sendo posta de lado, para não
complicar o problema, a questão geral da semelhança, que está longe de estar elucidada e que desempenha um
papel por vezes decisivo na afectividade e, sob a designação de correspondência, na estética.” (p.79).
527
Para ilustrar uma de suas inquietações, na aula de 18 de março de 1978, “Suplemento III”, Barthes
pergunta-se: “como viver as aporias como uma criação, quer dizer, pela prática de um texto-discurso que não
rompa a aporia, mas a derive numa fala que se sobreponha à outra (pública) amorosamente (para retomar
ainda uma expressão de Nietzsche)?”. Em seguida, comenta que “Salvo em alguns filósofos e em Blanchot,
ou seja, em toda a dóxa, o Neutro é mal visto: as imagens do Neutro são depreciativas.”, o que leva a citar o
escritor de O livro por vir, demonstrando clara influência sobre suas reflexões. In O neutro. Op. cit., pp.142-
143.
280
presente na literatura lírica, como o tema panteísta da fusão do indivíduo no todo : idéia de
que o ser não está apenas no “meio”, mas de que ele “é” esse “meio”.
Discussão também suscitada por Georges Bataille que tomou em conta esta
noção de “luxo” de que fala Caillois, o que contribuiu para uma conceituação e abordagem
do excesso, na sua teorização sobre a noção de despesa, levando-o a reivindicar um espaço
do ócio, e não apenas do negócio:
Partirei de um fato elementar: o organismo vivo, na situação
determinada pelos jogos da energia na superfície do globo, recebe em
princípio mais energia do que é necessário para a manutenção da vida:
a energia (riqueza) excedente pode ser utilizada para o crescimento de
um sistema (de um organismo, por exemplo); se o sistema não pode
mais crescer, ou se o excedente não pode ser inteiramente absorvido
em seu crescimento, há necessariamente que perdê-lo sem lucro,
despendê-lo, de boa vontade ou não, gloriosamente ou de modo
catastrófico.
528
Mais adiante, Bataille reiterou esta idéia do jogo, da “matéria viva em geral”, a partir do
movimento da luz, enquanto Caillois pensou o jogo mimético também em sua parte
“maldita”, ou seja, a partir da escuridão
529
.
528
BATAILLE, Georges. A noção de despesa – a parte maldita. Op. cit., pp.69-60, negrito meu.
529
Caillois aborda, a partir dos casos dos esquizofrênicos de Minkowski, em que há uma despersonalização
pela identificação com o espaço, que o “medo no escuro” teria suas raízes na idéia de oposição entre o
organismo e o meio: “No momento em que o espaço claro se apaga ante a materialidade dos objectos, a
obscuridade é “repleta”, toca directamente o indivíduo, envolve-o, penetra-o e atravessa-o mesmo: assim, “o
eu é permeável para a obscuridade ao passo que para a luz não o é”; a sensação de mistério que a noite faz
sentir vem daí.”. Em O mito e o homem. Op. cit., p.82. Na conclusão de seu livro, o escritor afirma : “Existe
no homem toda uma zona de sombra que estende o seu império nocturno à maior parte das reações da sua
afectividade assim como das diligências da sua imaginação, e com a qual o seu poder não pode deixar de
contar e de se debater.” pp.132-1333.
Precisamente esta escuridão ocupará largo espaço na literatura de Bataille. É bom lembrar que ele publica, em
1933, “La notion de dépense”, de onde, certamente, boa parte das reflexões de Caillois se desenvolvem: “ 2º.
– Fuera de las cosas sagradas propiamente dichas, que constituyen el dominio común de la religión o de la
magia, el mundo heterogéneo incluye el conjunto de resultados del gasto improductivo.(las cosas sagradas
forman ellas mismas una parte de este conjunto). Lo cual significa : todo lo que la sociedad homogénea
expulsa, ya sea como desperdicio, ya sea como valor superior trascendente. Son los productos de excreción
del cuerpo humano y ciertas materias análogas (basuras, parásitos, etcétera); son las partes del cuerpo, las
personas, las palabras o los actos que tienen un valor erótico de sugestión; son los diversos procesos
inconscientes tales como los sueños y las neurosis, los numerosos elementos o formas sociales que la parte
homogénea no puede asimilar: las muchedumbres, las castas guerreras, aristocráticas y miserábles, los
diferentes tipos de individuos violentos o, al menos, que rechazan las reglas (locos, agitadores, poetas,
etcétera). Em BATAILLE, Georges. El estado y el problema del fascismo. Trad. Pilar Guillem Gilabert.
Valencia : Universidad de Murcia, 1993, p. 17. (Coleccion HESTIA-DIKE, PRE-TEXTOS), negritos meus.
Também Hannah Arendt, em seu ensaio sobre a crise da educação, abordando a relação das crianças com o
281
Em ambos os escritores franceses, interessou a sociedade disciplinar, a
questão do sagrado enquanto força que regula as disposições sociais. Caillois desenvolveu
em “Paris, mito moderno” a relação do mito e a coletividade e de como o mito se torna
literatura e objeto do prazer estético. O ensaio tocou num dos pontos comuns da crítica dos
anos 50 e a certa tendência que vinha já dos anos trinta no Brasil, a questão da
sociologização dos assuntos intelectuais e literários, através de uma crítica denominada de
luciferiana
530
. Através dela, o escritor desenvolveu a transformação de Paris em mito, em
que o ambiente urbano é promovido à qualidade de épico, quando o romance de aventuras
transforma-se em policial. É o momento, segundo ele, em que a cidade vira personagem e,
através do romance policial, assiste-se à poetização da civilização moderna. A modernidade
estaria ressaltada já através de Baudelaire, com a teoria do caráter épico, de onde, tanto para
este quanto para Balzac, o gosto pela moda, pelo vestuário são as expressões deste
sentimento
531
.
Entretanto, é com a noção de jogo que Roger Caillois parece ceder mais
espaço à palavra. Em “Jogos de sombra sobre a Hélade”, o escritor de Les jeux et les
hommes, livro de 1958, ensaiou a possibilidade de ver na Grécia uma imagem e as leis
psicológicas que comandavam a formação de idéias simples. Desta forma, tentou perceber
a relação entre o Rei de Minos e o touro divino, para atribuir ambigüidade ao sagrado,
através da circulação da imagem do “labrys”, duplo machado reservado aos sacrifícios e
que ganhou as mais diversas versões : protege o morto dos perigos do outro mundo; dupla
lança; feitiço bissexual; símbolo do raio que fende as árvores da floresta; engenho de morte;
vetor de passagem da energia viril do deus ao homem. Aqui se encena o jogo de Teseu e
Ariadne e as tauromaquias. Nessa idéia do jogo, através das corridas acrobáticas e dos
jogos gregos em geral, havia a idéia da comunhão com Deus, um duplo que se expressava
mundo interior e exterior, afirma: “Tudo que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge das trevas, e, por
mais forte que seja sua tendência natural a orientar-se para a luz, mesmo assim precisa da segurança da
escuridão para poder crescer.” “A crise na educação” In Entre o passado e o futuro. Op. cit., p. 236.
530
“Em resumo, esta atitude face à crítica estética assemelha-se à da sociologia face às éticas, a priori, e da
psicologia dita científica face às regras do silogismo. Ela será, portanto, se insistirmos em atribuir-lhe um
nome, numa espécie de sociologia literária.” In CAILLOIS, Roger. O mito e o homem. Op. cit., p. 114.
531
“Em suma, nem o herói romântico nem o moderno estão satisfeitos com o estado que a sociedade lhes
criou. Porém, um afasta-se dela enquanto o outro decide conquistá-la e, conseqüentemente, o romantismo
tende para uma teoria do tédio, enquanto o sentimento moderno da vida tende para uma teoria do poder
ou, pelo menos, de energia.” Id. Ibid., p. 124, negritos meus. Aqui, o folhetim desempenha papel fundamental,
quando o mito é elaborado e pertence à imaginação de uma imensa cidade.
282
enquanto manifestação de alegria e de risco, aproximando a vida minóica à das tribos
primitivas, em que o monstruoso não era exceção, mas constituinte da ordenação cósmica.
O jogo instituiu o prestígio, ao mesmo tempo em que instalou o medo e a
prudência. A partir das ruínas do palácio de Cnosso, Caillois percebeu este ritual como um
jogo contra a agressão dos espectros, até tornar-se pura estética. As sombras, o mistério,
estavam presentes o tempo todo. No silêncio, na calma aparente desses deuses, havia um
vazio, uma “ordem” que fazia “reinar” depois das repressões e dos massacres. Esta
placidez conquistada era também conquistadora:
A calma clássica terá sido, portanto, um cume efémero, a prova de
força da disciplina sobre os instintos ardentes que exigiam essa calma
como comandante de guerra, e sem os quais aquele cume nunca teria
sido o que foi. Um cenário de ópera cómica, um perfil de templo sob
um luar de postal ilustrado.
Entre o Labirinto e a Acrópole realizou-se o nascimento patético dos
heróis. O que justifica Teseu é menos o facto de ter vencido o
Minotauro do que o facto de ter sido obrigado a combatê-los, e os
monstros predestinam os semideuses.
532
Assim, Caillois pretendeu estabelecer uma relação entre os jogos e as sociedades
disciplinares. Na base do princípio do prazer estariam a morte, o medo, controlados pelo
atleta e pelos deuses. Teríamos aqui a idéia que conjugou a sociedade do espetáculo e a
tragédia, o nascimento do ócio enquanto purificação, rito, e pressão, sacrifício
533
.
Na encruzilhada dessa passagem, o mito desempenhou um papel imperativo
e exemplar, segundo o escritor francês. E não sem razão, o mito moderno estaria ligado,
indissoluvelmente, ao ensino, à instituição da instrução primária obrigatória, como ocorreu
em Paris
534
, em São Paulo (vide Anhembi), cujo mito se fortaleceu através das inúmeras
532
Id. Ibid., p.111, grifos meus.
533
A esse respeito, consultar a leitura que faz Raul Antelo, partindo das Profanações de Giorgio Agamben
lidas por Bernardo de Carvalho. In “Visão e pensamento. Poesia da voz” In ANTELO, Raul (org). Crítica e
ficção, ainda. Florianópolis : Pallotti, 2006, pp.84-85.
534
Caillois associa a criação e manutenção do mito de Paris graças a esta instituição. E reforça a necessidade
de ler o acontecimento dissociado do ponto de vista estético, ao mesmo tempo em que chama a atenção para o
fato de que Baudelaire reivindica a “tradução lendária da vida exterior” em O pintor da vida moderna,
tomando a literatura como algo sério. Sobre a questão da instrução primária, comenta: “Esta obra pretende ser
só uma espécie de prova pelo exemplo de que existem vantagens substanciais em estudar a literatura
independentemente de qualquer ponto de vista estético e em considerar mais o seu papel de empreendimento,
o seu condicionamento social, a sua função de mito em relação a novas fases da história das ideias e da
283
investidas na área cultural e, principalmente, através da área educacional. Também
Zygmunt Bauman reforçou esta relação, desde o século XVI:
Había numerosas publicaciones que argumentaban en favor de la
educación institucionalizada y esbozaban planes y programas para la
escuela ideal. Las academias (...) iban a ser écoles de la vertu. En sí
mesma, la vertu se analizaba en su sentido modernizador: el propósito
manifiesto de las academias era capacitar a la progenie de los nobles
para ocupar cargos públicos y sumarles la gracia y el refinamiento
necesarios para sobrevivir y progresar en la vida de la corte (...).
535
As conclusões de Caillois convergiram para a idéia de um conhecimento elevado à
categoria de “ortodoxia”, na direção de uma “atracção imperativa” capaz de mobilizar, já
não indiferente à sensibilidade humana. A tradução viria através de um “empreendimento
unitário ideal”. Aqui, força e certeza aliam-se à experiência vivida e compreendida,
traduzindo-se ainda num imperativo moral, cuja influência deva se dar no plano da
afetividade. Neste sentido, a aproximação com as propostas das revistas da década de 50
parecem conduzir o leitor a esta experiência
536
.
A mudança de uma sociedade agônica para outra de caráter mais “aleatório”,
ou da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, foi mediada pelos estudos do
fenômeno do consumismo, através da cultura de massa, como bem observa Edgar Morin
que publicou no início dos anos sessenta na França uma de suas análises sobre a questão.
Em L’esprit du temps, percebeu que a colonização não é mais da África e da Ásia, mas a
da alma, através do cinema e da cultura do lazer, movimento que assistimos em relação à
América Latina:
evolução do meio.” Id. Ibid., p.127 (nota de rodapé). A literatura por “ricochete” solicita Caillois, ao mesmo
tempo que indica a necessidade de exploração/aprofundamento de várias questões.
535
Legisladores e intérpretes. Op. cit., p.50. Acrescenta em outra passagem que os projetos de uma “boa
sociedade” visavam a representação do papel e o florecimento do modo de vida intelectual: “una sociedad que
admitiera en la práctica el lugar central de los dominios específicamente intelectuales (como la cultura y la
educación) e el papel crucial de las ideas en la reproducción de la vida comunitaria.” p.209.
536
Caillois finaliza a última nota de rodapé relevando o caráter agressivo de toda ortodoxia, caráter que, como
temos visto, as potências políticas e econômicas têm tirado seu proveito: “É, com efeito, a única diferença
entre o conhecimento científico comum e o tipo particular de conhecimento que aqui é descrito: por definição,
todo o resultado deste último, situando-se igualmente no plano do valor, exerce, por esse mesmo facto, uma
influência sobre a afectividade. Daí o carácter agressivo de toda a ortodoxia.” In O mito e o homem. Op. cit.,
p.137.
284
C’est essencialment ce loisir que concerne la culture de masse; elle
ignore les problèmes du travail, elle s’interesse beaucoup plus au bien-
être du foyer qu’à la cohésion familiale, elle se tient à l’écart (bien
qu’ils puissent peser sur elle) des problèmes politiques ou religioux.
Elle s’adresse aux besoins de la vie de loisir, aux besoins de la vie
privée, à la consommation et au bien-être, d’une part, à l’amour et au
bonheur, d’autre part. Le loisir est le jardin des nouvelles nourritures
terrestres.
537
Parte deste debate pode ser acompanhado pelos estudos que as décadas
seguintes encamparam, com as políticas educacionais e culturais no país através da
adaptação de livros e autores para o cinema, na visão de Ana Cristina César, em Crítica e
tradução. Uma das partes principais, “Literatura não é documento”, encarou o problema do
empalhamento cultural no país. O “embalsamento” aconteceria ainda nos anos 60, quando
da criação do Instituto Nacional do Cinema:
Voltar-se para os “problemas da cultura nacional” [discurso de
Castello Branco] ainda significa preservar um patrimônio, sustentar
um velho, embalsamar um morto. (...)
No entanto, há uma tendência a enfatizar essa área antes obscura para
o poder público, a separar educação e cultura, a começar a falar de
cultura. Começa a esboçar-se a transição do discreto auxílio para a
ação cultural decidida. Essa passagem porém exige a entrada em cena
de um “novo conceito” de cultura, que só consegue ser articulado no
governo Geisel.
538
Ao buscar uma “definição de literatura”, uma “visão do autor literário” posta em circulação
pelos filmes nacionais, Ana Cristina interessou-se pelo fenômeno de controle do poder
especialmente estatal no agenciamento deste imaginário. Em razão deste desejo, a escritora
evitou a leitura seriada, a partir de sistema de padrões, interessando-se pelo estabelecimento
de um “sistema de diferenças”. E se esta preocupação em deslocar o foco da densidade da
cultura nacional através dos diversos tipos de cinema feitos no país recaiu na tentativa de
tirar também a literatura de uma leitura canônica, o mesmo se passou com a suspeita das
novas antologias que surgiam (“Os perigos das antologias”), menos disciplinadoras e mais
537
MORIN, Edgar. L’esprit du temps. Paris : Grasset Fasquelle, 1966, p.77.
538
CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo : Ática, 1999, p.35.
285
controladoras. Em um artigo para o jornal Opinião, de 27 de fevereiro de 1976, Ana
Cristina, em “Quatro posições para ler”, suspeitou a fragmentação exacerbada dos textos
contidos em uma antologia de Antônio Houais, Gente boa. Misturando Jorge Amado, José
Cândido de Carvalho, J.J.Veiga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga
aos ensaios de Lêdo Ivo; o depoimento de Hélio Pólvora ; juntamente com o “No meio do
caminho” de Drummond e outros de João Cabral e Murilo Mendes, a escritora de A teus
pés desconfiou da contemporaneidade da antologia e das palavras de seu introdutor (não
indicação do(s) organizador(es) ), que anunciou o livro como “um conjunto aliciante para
que seus leitores valsem com os autores nos muitos outros universos que cada um deles
criou” (p.154). Para Ana Cristina, os escritores eram nomes consagrados e legitimados pela
cultura dominante, pelos meios de comunicação, pelo mercado editorial, autores de
vestibular, que vendem, e de escritores que, publicando em periódicos, já “passaram para a
história” literária. O curioso é que o livro de Houaiss começa sua introdução afirmando
exatamente que “Não é, rigorosamente, uma antologia, ou florilégio, ou uma crestomatia,
ou uma analecta, ou um especilégio, ou mesmo uma seleta – no sentido escolar
tradicional.” (p.154), o que levou a crítica a questionar-se sobre os critérios e os juízos de
seleção quando se organiza uma antologia qualquer, com os riscos de “transformá-los [os
nomes e textos] numa reunião absolutamente arbitrária de retalhos.” (p.155):
Que me desculpe o ilustre apresentador, mas nunca vi maior falta de
propósito numa seleta, maior salada de temas, gêneros, estilos e
ideologias (já que foi, sensatamente, afastado seu propósito didático).
Ou melhor, percebo sim o propósito de “prestigiar” os já prestigiados,
o que redunda em investimento seguro para a editora, que dá por certa
a venda de tal especilégio. Na avalancha de antologias do nosso
mercado editorial, com todas as suas vantagens e desvantagens (...),
essa é sem dúvida uma das mais sem sentido que já vi pintarem por
aí.
539
Certamente a reflexão de Ana Cristina foi motivada pelo artigo de Marco
Aurélio Nogueira, “Os perigos da antologia”, publicado no mesmo periódico em 30 de
janeiro de 1976
540
. O texto, abordando a questão dos “melhores” na literatura, assunto,
como vimos, intensificado pela política americanista de ser o melhor (e vender mais),
539
Id. Ibid., p.155.
286
enfocou a problemática de se elaborar um recorte que desse conta do panorama. Trata-se de
Os melhores contos brasileiros de 1974, publicado pela editora Globo. Recebendo
colaboração de diversos setores da sociedade (escritores, críticos, professores e jornalistas),
esta antologia serviria para sinalizar as tendências da ficção contista no Brasil, ao mesmo
tempo em que colocaria as diversas tendências literárias lado a lado, além de servir de
“instrumento de trabalho” para os estudantes de literatura brasileira. Nisto residiria sua
“utilidade”. A pergunta do título retorna: afinal, qual é o grande perigo da antologia?
Mas não se deve esquecer que a antologia pode também facilitar o mau
entendimento (e, por extensão, a má avaliação) deste setor da literatura
brasileira, pois - ao colocar o estudante ou o crítico frente a uma
seleção de contos – corre o risco de incentivar o desprezo pelo
conhecimento da obra de cada contista. Isto é: a antologia pode
transformar-se num sutil convite para que o leitor se contente com os
fragmentos selecionados de um escritor, e chegue assim a apreciações
apressadas ou superficiais.
541
Bem se vê a presença na crítica de uma postura ainda preocupada com os sentidos
(absolutos) do texto, imaginando que ainda poderia controlar os seus significados (e dar
conta do perfil de seu escritor).
Bem distante desta perspectiva parece estar a posição de outro organizador
de antologias, Ítalo Moriconi, o qual, aceitando a proposta da editora Objetiva, elaborou
duas seleções (a primeira de contos e a segunda, de poemas) para marcar a virada do
século. Imprimindo a marca dos anos, “cem”, à questão do expoente mais significativo,
“melhor”, uma onda das “melhores antologias” parece tomar conta do mercado editorial
brasileiro
542
. Para figurar como uma antologia contemporânea, Moriconi utilizou o critério
540
NOGUEIRA, Marco Aurélio. “Os perigos da antologia”. In Opinião. 30 de janeiro de 1976, p.22.
541
Id. Ibid.
542
MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro : Objetiva, 2001.
Também organizou Os cem melhores poemas brasileiros do século. Muitas outras antologias têm surgido
nos últimos anos, como as de “Terror” (pela Ediouro); as por nacionalidades (pela Companhia das Letras);
melhores contos (pela Ed. Globo) etc. Há uma notável diferença, em alguns casos, entre as antologias de uma
mesma editora. No caso da Cultrix, sai em 1958 Maravilhas do conto moderno brasileiro, de cuja lista (26
escritores), sete retornam na edição de 1977 através de O conto brasileiro contemporâneo, com estudo de
Alfredo Bosi. Na edição de 1958, encontramos na introdução : “Esta antologia é um prolongamento natural de
“Maravilhas do Conto Brasileiro”, volume lançado há algum tempo pela Editôra Cultrix e lisongeiramente
recebido pelo público ledor do país. Se naquela primeira coleção figuravam apenas autores já falecidos, desta
constam sòmente autores ainda vivos. E mais: todos os contistas aqui representados são, de certo modo,
“profissionais” da história curta, já que têm pelo menos um livro de contos publicado.” (José Paulo Paes).
287
da validade do gosto público (confirmando a premissa de Valery Larbaud), evidenciando,
simultanemente, o oposto com a Academia (sem gosto e sem qualidade):
Por outro lado, havia o desafio colocado pela editora de que a seleção
dos contos se pautasse não em critérios acadêmicos e sim em critério
de gosto e qualidade. (...) Na Academia estamos sempre relativizando
todo e qualquer conceito de qualidade. Mas, como leitores “normais”
que simultaneamente somos, pois também curtimos a literatura para
além das polêmicas doutrinárias, sabemos muito bem que existem o
bom e o ruim, o perfeito e o ridículo, o eterno e o anacrônico. Sabemos
bem que sempre é possível separar joio de trigo. Caberá ao leitor desta
coletânea julgar como me saí na tarefa e avaliar se os contos aqui
apresentados são realmente excelentes, como acredito que todos são.
543
Há várias questões que o texto de Moriconi levanta. Mas para além da maximização do
gosto público (e acadêmico, agora tornado “comum”, a fim de realizar “uma leitura com
olhos livres, uma leitura desprovida de pré-conceitos doutrinários ou teóricos”
544
), o centro
da problemática detectada por Ana Cristina Cesar e abordada por Ítalo Moriconi está na
passagem do modelo cultural de sociedade. Estamos diante da saída de cena de um projeto
cultural definido em função de uma sociedade previamente pensada e organizada (o
intelectual enquanto legislador do acervo) para a configuração da cultura de massa, agora
determinada pelo risco de um uso político (e menos ideológico) da antologia – o mercado.
À lógica da indústria cultural, seguiu-se a noção de autonomização da cultura, representada
pela exacerbação do “fragmento” (leia o que quiser e como quiser – as várias posições de
leitura, os olhos livres), cujo modelo teve seu ponto de partida marcado, no Brasil, pela
intervenção e incentivo de um modelo de leitura da arte e da sociedade a partir do modelo
etno-antropológico e do modelo “abstracionista”, com a instalação das Bienais em São
Mais adiante, o crítico aponta para a questão da fragmentação, aqui lida como geográfica: “3. Um dos
fenômenos mais alviçareiros da vida literária do Brasil, nos últimos anos, é aquilo que os entendidos
costumam chamar de “descentralização”. (...)/ 4. Todo antologista sofre de um complexo a que eu chamaria
“complexo do asno de Buridan”. Assim como o herói asino de Zevaco, que morreu de fome e sêde entre o
bebedouro e a mangedoura por não poder decidir-se a qual das necessidades biológicas safistazer primeiro,
assim também o antologista, dividido entre a abundância do material e o espaço disponível, sente-se tentado a
a desistir da tarefa de conciliar o infinito e o racionado.” (p.12) Acompanha uma lista dos que ficaram de
“fora”, entre eles Drummond, Clarisse [ sic ] Lispector, Fernando Sabino, Oto Lara Rezende, Murilo Rubião...
O poeta/crítico encerra seu texto delegando aos 25 contistas selecionados o título, provisório, de
“embaixadores do moderno conto brasileiro”.
543
Os cem melhores contos brasileiros do século. Op. Cit., p.11.
544
Id. Ibid., p.16.
288
Paulo. Desde então, arte e educação (“arte-educadores”) caminharam estreitamente juntas,
mais próximas e mais cúmplices do que podemos imaginar.
Poderíamos dizer, diante do cenário “pós tudo”, que o procedimento que
deixa de fora o que não foi requerido, lembrado, e portanto, deliberadamente ou não,
esquecido, assim como a vida dos homens infames de Foucault, é a parte substancial de
toda operação crítica. Para Giorgio Agamben, esta operação, eminentemente antológica,
encontrou respaldo na figura do ajudante, representante do que se perde, ou ainda, que
mantém relação com o perdido:
Se refiere a todo aquello que, tanto en la vida colectiva como en la
individual, se olvida a cada instante; se refiere a la masa infinita de lo
que de por sí se pierde irremediablemente. A cada instante, la medida
del olvido y de la ruina, el derroche ontológico que llevamos con
nosotros, excede en mucho la piedad de nuestros recuerdos y de
nuestra conciencia. Pero este caos informe de lo olvidado, que nos
acompaña como un golem silencioso, no es inerte ni es eficaz. Por el
contrario, actúa en nosotros con no menos fuerza que los recuerdos
conscientes, si bien de una manera distinta. Constituye una fuerza y
casi una invectiva de lo olvidado que no puede medirse en términos de
conciencia ni ser acumulado como un patrimonio, pero cuya
insistencia determina el rango de todo saber y de toda conciencia.(...)
En todo esto, el ayudante cumple un papel importante. Él es quien
concluye el texto de lo inolvidable y lo traduce a la lengua de los
sordomudos. De allí su gesticular obstinado, de allí su impasible rostro
de mimo. De allí, incluso, su irremediable ambigüidad. Porque de lo
inolvidable sólo se pueda hacer parodia.
545
Diante do silêncio do ajudante, e não de sua ausência, a literatura pode caminhar para uma
encenação do desejo. Em outra leitura crítica, tratando de discutir precisamente o que
geralmente nunca entra nas antologias, como é o caso da literatura de cunho erótico ou
homoerótico, Daniel Balderston sustenta, baseado em Beatriz González Stephan e Hugo
Achugar, que toda antologia, e portanto toda história literária, é uma intervenção cultural.
Nesse sentido, diante da reafirmação das sociedades multiculturais, a antologia
desempenharia papel decisivo, juntamente com as editoras, livrarias, disciplinas
acadêmicas, dentre outras manifestações culturais. E a propósito da antologia A corazón
545
AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Trad. Flavia Costa y Edgardo Castro. Buenos Aires : Adriana
Hidalgo, 2005, pp.43-44.
289
abierto, organizada por Juan Pablo Sutherland, teceu elogios pelos avanços no tratamento
do livro, encarado como uma geografia ou panorama. Enfrentando a historiografia da
literatura nacional, este último organizou uma antologia de textos e não de autores,
buscando afinidades eletivas entre autores de diversas épocas, pondo de lado o debate entre
canônico e não canônico. O resultado foi uma espécie de “arquipélago de fragmentos” e
não uma “história literária”:
De este modo, rompe con el modelo evolutivo que subyace el esquema
generacional y las periodizaciones de los historiadores literarios. Hay
una fuerte apuesta por nuevas lecturas: [citação de Southerland].
Ese lector posible - ¿el “lector cómplice” que queria Cortázar (...)? es
quien relee y mantiene la vitalidad de la tradicion. Sueño o utopia, la
tradición depende siempre de lecturas que son, a un mismo tiempo,
secretas e compartidas. La organización híbrida de la antología es una
decisión feliz. Mediante nexos tácitos entre los textos, Sutherland crea
uma contrahistoria de la literatura nacional.
546
O esvaziamento proposto por Balderston (do Estado, da história literária nacional, do
canônico) constituiu-se no processo que Gilles Deleuze, ao analisar a heroína de Europa
51, com a inevitável condição de uma imagem virar cliclê (portanto, em nosso caso, da
institucionalização da experiência, do texto, da canonização) tratou como necessário.
Afirma o escritor da Diferença e repetição:
Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que
não se vê na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torná-la
“interessante”. Mas às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos,
suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer
crer que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o
inteiro.
547
O inteiro, para Deleuze, certamente não é o completo. Outra posição, contrária desta, a de
Jorge Latour, defendeu em “Documentação” a idéia de que o museu, enquanto antologia de
tudo, ainda se sustentaria como testemunhos materiais das civilizações que nascem,
crescem e morrem, vendo nele um todo único, perfeitamente homogêneo, e sob uma só
546
BALDERSTON, Daniel. “Corazones abiertos” In El deseo, enorme cicatriz luminosa – Ensayos sobre
homosexualidades latinoamericanas. Rosario : Beatriz Viterbo, 2004 - (Ensayos críticos), pp.169-170.
547
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Op. cit., p. 32.
290
orientação e chefia (a do Estado) que, sob os cuidados dos “estudos dirigidos”, conseguiria
articular as partes separadas em função de uma totalidade
548
. Idéia que Agamben refutou e
para quem o museu, em época de espetacularização, abarca a idéia, e a urgência, da
profanação:
La museificación del mundo es hoy un hecho consumado. (...) Museo
no designa aquí un lugar o un espacio físico determinado, sino la
dimensión separada en la cual se transfiere aquello que en un momento
era percibido como verdadero y decisivo, pero ya no lo es más. El
Museo pode coincidir, en este sentido, con una ciudad entera (...), con
una región (...) y hasta con un grupo de individuos (...) Pero, mas en
general, todo puede convertirse hoy en Museo, porque este término
nombra simplemente la exposición de una imposibilidad de usar, de
habitar, de hacer experiencia.
549
Finalmente, para sair da perspectiva disciplinada, em meio ao mundo da mídia e do
intelectual-intérprete, poderíamos agregar a reflexão de Gregory Ulmer
550
. Para ele, o novo
objeto (e modo) de estudo e comunicação da mídia acena, na ausência da crítica, para a
representação e o espetáculo. Diante da exaustão da escritura, portanto da morte da
civilização do livro, para lembrar as considerações iniciais de Sloterdijk, Ulmer reitera que,
a propósito da “gramatologia” de Derridá, ela aceita os limites do livro, entendendo a
548
O texto de Latour é elucidativo da passagem de uma sociedade disciplinar para a do controle, na mudança
que se faz do documentarista. Os estudos dirigidos funcionariam como uma espécie de site de busca, em que
os dados são cruzados: “Se se trata de uma federação ou centro de industriais de um determinado país, uma
associação de entidades dedicados, v.g. ás indústrias químicas ou à eletricidade, a documentação desses
órgãos é organizada no sentido de orientar, informar, sugerir e encaminhar os estudiosos ocupados nas
pesquisas sobre tais matérias (...) O proletário intelectual concebido na Alemanha (...) era um precursor do
documentalista, que, neste meado do século, se substitue em parte ao verdadeiro autor de uma obra,
preparando e joeirando a matéria prima por este aproveitada.” p.163. Para o crítico, o mundo do museu é o
mundo da alta cultura, perdendo espaço para as novas influências, ou seja, para as massas anônimas: “A
massa dos semi-analfabetos encontrou seu caminho e dominará o mundo, abolindo as elites. A documentação,
produto racionalizado pela modernidade, (...) é a erudição classificada e dirigida, ao alcance do maior número.
Por isso mesmo, deixa de ser a ciência ou a arte de registrar para recordar, a tinta indelével de todos os
tempos, o testemunho multiforme do homem (...) Torna-se um monstro que repugna à lucidez da inteligência
autêntica, aquela que é sôfrega da linfa que corre puríssima da fonte original (...). p.214. A revista Rio
Magazine (“A revista das elites”) contou como diretor-chefe Jorge Amado. De alta qualidade editorial,
mescla textos, gravuras, ilustrações, reproduções de quadros, fotografias. No mesmo número que publica
Latour, há textos de Dalcídio Jurandir, Dinah Silveira de Queiroz, Jorge de Lima (a propósito de Lasar
Segall), Guilherme de Almeida, sobre Portinari (o mural no Ministério da Educação), desenho de Poty, além
de matérias sobre a vida cultural do Rio e de São Paulo. LATOUR, Jorge. “Documentação” In Rio
Magazine. Dir. Roberto Marinho. n.66, dezembro de 1944, p. 161-163 e 213-214.
549
AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Op. cit., pp. 109-110.
550
ULMER, Gregory L. Post(e)-Pedagogy from Jacques Derrida to Joseph Beuys. Op. cit. pp.15-29.
291
produção enquanto “enframing”, ensaio, diante da urgência da aproximação entre escrita e
ensino. Uma produção que identifica-se com a idéia de disseminação - vegetação
parasitária e sem memória, onde ensinar é lançar sementes, espalhar flores, fecundar, e para
quem o documento está longe de significar univocidade, mas alegoria.
Alain Badiou, que releu o século XX enquanto identificação e paixão pelo
real
551
, buscando criar algo indestrutível e resumindo seu intento de perseguir uma
intensidade desconhecida, mediante uma intersecção sempre improvável de uma fórmula e
um instante, concluiu que, exatamente por isso, há que destruir o mito, já que o real é o
impossível de se destruir, aquilo que resiste, sempre e para sempre. Em outras palavras,
trata-se da operação de leitura, que, na irreconciliação das imagens proliferantes, portanto,
na sua não univocidade, deixa entrever, na reunião das partes da antologia, a encenação do
desejo. Aí onde a história ou a literatura, com Gilles Deleuze
552
, podem ser vistas como
uma tela branca, um gesto, uma potência.
551
BADIOU, Alain. El siglo. Op. cit. Vale o balanço efetuado por ele, em todo o percurso desse instigante
livro, especialmente “Lo irreconciliado”, “Pasión de lo real y montaje del semblante” e “Vanguardias”. A
respeito da questão da univocidade do século, consultar “Univocidad”, pp.201-206, onde Badiou nos convoca
a refazermos a aposta da univocidade do real, investindo mais no equívoco do semblante “entre los
sobresaltos del soplo de lo no dicho” (p.206). Ou, diria, do que ficou de fora e não entrou na antologia. O que,
respondando à epígrafe de Philippe Sollers nessas considerações finais, mas sempre parciais, essa “solução”
do presente é uma guerra da “Idea contra la realidad. La liberdad contra la naturaleza. El acontecimiento
contra el estado de las cosas. La verdad contra las opiniones. La intensidad de la vida contra la insignificancia
de la superviviencia. La igualdad contra la historia. La ciencia contra la técnica. El arte contra la cultura. La
política contra la gestión de los asuntos. El amor contra la familia.” (p.206).
552
DELEUZE, Gilles. “Cinema, corpo e cérebro, pensamento” In A imagem-tempo. Op. cit., pp.227-266.
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