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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DA MEMÓRIA SOCIAL À MEMÓRIA DISCURSIVA:
MARCAS IDENTITÁRIAS NA REVISTA A TURMA DA MÔNICA
ROSEMARY EVARISTO BARBOSA
JOÃO PESSOA
16.03.2009
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ROSEMARY EVARISTO BARBOSA
DA MEMÓRIA SOCIAL À MEMÓRIA DISCURSIVA:
MARCAS IDENTITÁRIAS NA REVISTA A TURMA DA MÔNICA
Tese apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), Campus de João Pessoa,
para a obtenção do título de Doutora
em Linguística.
Orientadora: Profª Drª Ivone Tavares de Lucena
João Pessoa
16.03.2009
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Ficha catalográfica elaborada pela biblioteca da UFPB
B238d Barbosa, Rosemary Evaristo.
Da memória social à memória discursiva:
Marcas identitárias na revista A Turma da Mônica/
Rosemary Evaristo Barbosa. – João Pessoa, 2009.
171 p.: il.
Orientadora: Ivone Tavares de Lucena
Tese (doutorado) – UFPB/CCHLA
1.Comunicação de massa. 2. História em
Quadrinhos – A Turma da Mônica. 3. A Turma da
Mônica – Identidade Cultural. 4. A Turma da
Mônica – Análise Discursiva.
UFPB/BC CDU: 659.3 (043)
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ROSEMARY EVARISTO BARBOSA
DA MEMÓRIA SOCIAL À MEMÓRIA DISCURSIVA:
MARCAS IDENTITÁRIAS NA REVISTA A TURMA DA MÔNICA
Tese aprovada em 12 de março de 2008
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________________________
Profª Drª Ivone Tavares de Lucena
(Orientadora)
________________________________________________________________
Profª Drª Marli Moraes
(Membro)
_________________________________________________________________
Profª Drª Mônica Nóbrega
(Membro)
__________________________________________________________________
Profª Drª Maria Elias Soares
(Membro)
__________________________________________________________________
Profº Giltom Sampaio de Sousa
(Membro)
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, que me deu força interior e discernimento para ultrapassar cada pedra no caminho e
a remover montanhas.
A Ivone Lucena, pelo apoio e incentivo dados, como também pelas cobranças feitas durante
o desenvolvimento desta pesquisa.
Aos professores da banca de qualificação - Wanderley e Mônica – e da defesa de tese –
Mônica, Marli, Maria Elias e Gilton - que acrescentaram ao trabalho sugestões
significativas.
Aos amigos e amigas que trilharam comigo nesta caminhada, desde o mestrado.
Aos vários autores, que subsidiaram a sustentação teórica deste trabalho.
E aos meus familiares que direta ou indiretamente me auxiliaram e incentivaram durante
toda a minha vida escolar.
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Todo o discurso é o índice potencial de uma
agitação nas filiações sócio-históricas de
identificação, na medida em que ele constitui ao
mesmo tempo um efeito dessas filiações e um
trabalho de deslocamento no seu espaço.
Eni Orlandi
7
RESUMO
Esta tese desenvolve considerações sobre as histórias em quadrinhos de A Turma da
Mônica, com o objetivo de traçar os perfis das identidades culturais presentes em seus
textos, inseridas no processo de globalização, identificando que discursos textualizam as
visões de mundo pertencentes às marcas identitárias culturalmente definidas e àquelas em
redefinição. Para tal intento, desenvolvemos a pesquisa a partir de referências teóricas que
subsidiaram este trabalho, fazendo parte de pressupostos epistemológicos concernentes à
Análise do Discurso, à teoria do Discurso, à Ciência Histórica e Social, à Antropologia
cultural e à literatura infantil, de modo geral, e, em especial, às histórias em quadrinhos.
Diante do corpus selecionado – capas, telas e quadrinhos – pudemos analisar como as
identidades globais e nacionais foram caracterizadas, a partir da atualização de discursos
referentes à memória social de diferentes povos e culturas, ressignificadas pelo sujeito-autor
Maurício de Sousa. Desse modo, pretendemos efetuar leituras que nos permitam interpretar
como os quadrinhos trazem, através de sua linguagem característica, referentes culturais
correspondentes ao modo de vida de um povo.
Palavras-chaves:
1. História em quadrinhos. 2. Identidade cultural. 3. Memória histórica.
4. Memória discursiva.
8
SUMMARY
Our work develops considerations about the cartoon
A Turma da Monica, with the
objective of showing the culture identities´ profiles very present in its texts, inside the
globalization process, giving the identification discourse that talk about the world vision
that belong to the identitary cultural symbols defined and the ones in definition. We had
developed the research from the Theoretical concernings that built up this work, making
part of presumed letters concerned to the Discourse Analysis, Social and Historical
Science, Cultural Anthropology and childish literature, in many ways, and, specially, to
the cartoons. From the
corpus selected, covers, screens and cartoons, we could analyse
how national and global identities were characterized, from the discourse updating
concerning about different cultures and people of social memories, resigned by the
author, Mauricio de Sousa. The found results reveal that the speech conditions´making-
of in
A Turma da Monica´s Magazines show the presence of the multi-cultural system
related to the social, familiar and funny structure of its characters, bring signs of the
discussion about building multicultural identities by their own signs, main characters,
inserting Mauricio de Sousa´s texts in a cultural hybridization process, allowing us to
understand what bring the cartoons, by their own language, cultural concerns about the
corresponding way of living of a community.
Hints:
1.
Cartoon. 2. Cultural Identity. 3. Historical Memory. 4. Discoursive Memory
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – HISTÓRIA E MEMÓRIA: CULTURA E IDENTIDADE
NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
1.1 Cultura e prática social: construção de identidades globais e individuais ....................... 15
1.2 Memória e história: representações das práticas culturais ............................................... 28
1.3 A história das histórias em quadrinhos:
retorno à memória e suas representações no tempo............................................................... 36
1.4 Os quadrinhos brasileiros e A Turma da Mônica ............................................................. 47
CAPÍTULO II – DA MEMÓRIA SOCIAL À MEMÓRIA DISCURSIVA:
A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS E DOS SENTIDOS
2.1 A Função enunciativa e o arquivo .................................................................................... 59
2.2 A memória social e a memória discursiva: um a priori histórico da constituição
da identidade do sujeito .......................................................................................................... 71
2.3 Dialogismo e o destino da palavra alheia na textualização dos enunciados ..................... 81
2.4 Entre o arquivo e a formulação: a constituição da paráfrase e da polissemia ................... 87
CAPÍTULO III – A TURMA DA MÔNICA E O JOGO DISCURSIVO
NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES CULTURAIS
3.1 Entre a paráfrase e a polissemia: marcas da heterogeneidade discursiva na
(re)construção de identidades multiculturais ......................................................................... 93
3.2 A Turma da Mônica entre contos e telas: um deslocamento constitutivo de
(re)significação de bens culturais ......................................................................................... 110
3.3 No processo discursivo da cultura nacional:
marcas identitárias de subjetivação ...................................................................................... 126
CONCLUSÃO .................................................................................................................... 161
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 165
10
INTRODUÇÃO
Atrelada a vários fatores de ordem sócio-histórica e cultural, a origem da
literatura infantil advém de um processo evolutivo longo e contínuo, no qual a
criação da escrita assume papel fundamental.
As primeiras obras literárias destinadas ao público infantil surgiram no
mercado nas primeiras décadas de 1700 e, desde o início de sua produção,
assumiram a condição de mercadoria, já que é no século XVIII que o
aprimoramento e a expansão da tipografia propiciaram a proliferação de
gêneros literários. Neste contexto, partindo de uma memória essencialmente
oral, a literatura infantil passa a ser documentada pela escrita.
A partir de então, com a divulgação do livro, o mundo fantástico da
literatura infantil passou a ser um dos primeiros referenciais literários a fazer
parte da vida de crianças por criar uma realidade verossímil através de um
contexto lúdico, imaginativo e sedutor que permeia os discursos, oferecendo a
elas a oportunidade de ouvir, ler, contar, recontar e representar histórias.
O fato de a literatura infantil ser constituída por diversos gêneros, que
podem ser lidos por qualquer sujeito, devido a sua constituição, faz com que
ela seja apreciada por um público bem mais amplo e diverso daquele imaginado
pelos ficcionistas, poetas e desenhistas.
As especificidades de cada gênero e de cada autor trazem para o momento
da leitura, principalmente, a motivação e o prazer responsáveis pela elaboração
do gosto. Assim, personagens transformam-se em heróis, sábios, mágicos,
amigos... Até mesmo espelhos que refletem, ao modo de cada olhar e por
identificação, sujeitos-leitores capazes de constituírem leituras segundo visões
de mundo particulares.
Ao transformar o ato de ler em um ato prazeroso, a paixão pela leitura
envolve cada sujeito-leitor a cada leitura e, assim, pelo encantamento, os
dizeres ali envolvidos passam a tecer um novo significado, modificado pela
11
relação autor/leitor, mediados pelo texto. E uma nova história começa a existir
nos arquivos discursivos do sujeito-leitor.
É dessa história que iremos tratar aqui. Uma história que tece e traça uma
outra, a partir de uma memória que é histórica e social. Nesse percurso, iremos
interagir com o gênero história em quadrinhos, por fazer parte do acervo de
bens culturais e se inscrever no universo da literatura infantil.
A nossa história começa no tempo de quando o contexto social tornou-se
imprescindível para o estudo da linguagem, e, por orientar e legitimar a
produção de textos, as teorias vêm aprofundando sua literatura concernente à
produção dos enunciados e a relação estabelecida por eles.
Essa perspectiva teórica traduz, na verdade, a concepção de que a
linguagem produzida em determinadas condições enunciativas veicula sentidos
e valores os mais variados, correspondendo às visões de mundo absorvidas pelo
sujeito durante a aquisição da linguagem e de seu uso no decorrer da vida. O
que significa dizer que o que falamos, escrevemos, produzimos passa a ser
fruto do meio: a produção de nossos textos decorre de um contexto sócio-
histórico, que nos define como sujeitos históricos dos enunciados e nos
identifica.
Os sujeitos, portanto, pertencem a uma determinada classe social e,
conseqüentemente, a um nível cultural, ocupando um dado espaço na sociedade
que favorece as condições de produção de seus textos, estabelecendo, pois,
relações de sentido com a realidade circundante baseando-se na relação
simbólica da língua com o mundo. Esta relação faz com que os discursos sejam
(re)produzidos e caracterizados de acordo com o tipo de organização política,
econômica e cultural na qual os sujeitos estão inseridos.
Assim, a idealização desse trabalho partiu do pressuposto de que a
materialidade discursiva das histórias em quadrinhos é histórica e, por isto, é
responsável pelo estabelecimento de diversas identidades culturais.
Pretendendo analisar as representações de identidades no discurso,
desenvolvemos um trabalho de pesquisa com textos da revista A Turma da
Mônica, com o propósito de verificar como seus discursos veiculam visões de
mundo associadas a identidades culturalmente definidas e àquelas em processo
12
de redefinição, atrelados a referências multiculturais apresentadas e apreciadas
no contexto nacional e internacional. Assim, a escolha desse tema se justifica
por serem as histórias em quadrinhos de A Turma da Mônica um bem cultural
constituído por determinadas referências sócio-históricas e discursivas.
Deste pressuposto decorrem as seguintes problemáticas: Como as práticas
discursivas, que aparecem nas revistas em quadrinhos de Maurício de Sousa,
são resultado das interferências culturais, inseridas no processo de
globalização? Como ocorre o processo de (re)constituição da memória social, a
partir das identidades culturais representadas nas narrativas dos textos em
quadrinhos?
Compreendendo que os discursos fazem parte de formações discursivas e
ideológicas, associadas a uma memória social e que o processo de globalização
por que passa as sociedades está interferindo na preservação das identidades
culturais, refletimos sobre questões relativas às marcas identitárias presentes
no discurso dos quadrinhos de Maurício de Sousa, mediante o quadro em que se
encontra a nossa realidade no processo de unificação das culturas.
Para tanto, fizemos o levantamento de algumas hipóteses: 1. As histórias
contadas nos quadrinhos recuperam memórias que estão associadas ao presente
e ao passado. 2. Na materialidade discursiva de A Turma da Mônica,
enunciados retomam parodisticamente culturas diversas, agrupando-se em
novos acontecimentos com efeitos polissêmicos. 3. O autor Maurício de Sousa
recupera os valores sociais do ponto de vista do multiculturalismo, construindo
em suas histórias diálogos entre culturas. 4. A infiltração cultural híbrida é
marca identitária do autor Maurício de Sousa.
Para investigarmos as hipóteses, traçamos como objetivo maior a
verificação as identidades culturais presentes nos textos em quadrinhos de
Maurício de Sousa, que foi subsidiada e norteada por objetivos específicos,
através dos quais: 1. Identificamos que marcas culturais são recuperadas nos
textos produzidos pelo sujeito Maurício de Sousa; 2. Analisamos como este
autor representa a memória e a herança cultural em seus textos; 3. Verificamos
como a polissemia se estabelece na relação dos quadrinhos com dizeres já-
13
ditos; 4. Investigamos que tipos de fatos histórico-culturais os quadrinhos de
Maurício de Sousa constroem e/ou recuperam.
Esta pesquisa utilizou o método de abordagem dedutivo, partindo-se das
teorias supracitadas para o estudo do corpus selecionado para análise, o qual é
composto de 15 textos, configurados entre capas, quadrinhos e telas. Como se
trata de uma pesquisa de cunho qualitativo, delimitamos o período de janeiro de
1992 a janeiro de 2008 para tentarmos vislumbrar, na linha do tempo, temas
relacionados a identidades culturais presentes nas histórias em quadrinhos de
Maurício de Sousa. Estes textos foram escolhidos por trazerem referenciais
sócio-culturais diversos, que delimitam características identitárias peculiares
na construção dos efeitos de sentidos por eles produzidos, através de
determinados discursos ou de sua representação por meio da imagem. O recorte
do corpus foi feito a partir da relação interdiscursiva mantida entre as imagens,
os enunciados e as propostas do capítulo destinado às análises, sendo situado e
dividido conforme os tópicos apresentados.
Para desenvolvermos nossa pesquisa dividimos o trabalho em três
capítulos. No primeiro capítulo, intitulado História e memória: cultura e
identidade nas revistas em quadrinhos, fizemos um percurso teórico
dialogando com a Antropologia, a Ciência Social e Histórica sobre a cultura e
seu funcionamento na construção de identidades, buscando compreender a
memória histórica e sua representação por meio de documentos-monumentos
históricos e situando a historiografia das histórias em quadrinhos como parte
componente dos bens culturais e históricos da humanidade.
Na constituição do segundo capítulo – Da memória social à memória
discursiva: a constituição dos sujeitos e dos sentidos - tecemos considerações
sobre a relação sujeito, língua, história, por meio de postulados teóricos da AD
e seus teóricos colaboradores, ressaltando a memória social e memória
discursiva como elementos que determinam o funcionamento discursivo nas
diferentes práticas sociais, (re)construindo identidades.
Ao terceiro capítulo – A Turma da Mônica e o jogo discursivo na
construção das identidades: um retorno à memória social - destinamos as
análises, no qual procuramos ressignificar dizeres que, neste novo
14
acontecimento, possam inscrever seus novos significados, relacionando a
memória social à memória discursiva no estabelecimento de identidades
multiculturais.
Nas considerações finais procuramos reiterar os objetivos traçados e as
problemáticas que nortearam esta pesquisa, fazendo desse já-dito o caminho
para apresentar os resultados alcançados sobre a constituição de identidades
culturais presentes nas HQs
1
de Maurício de Sousa.
Os enunciados que se cruzam e dialogam neste trabalho nos permitem
interpretar a relação entre o sentido e a memória, o discurso e a história, a
cultura e as marcas identitárias que delao dependentes. Abrem possibilidades
de fazermos leituras plurais, atualizando já-ditos, deslocando-os e repetindo-os,
ao abordarmos o nosso objeto de análise. Esperamos, outrossim, que a voz que
ecoa desses dizeres traga contribuições para os estudos sobre o funcionamento
discursivo e que o diálogo estabelecido com as revistas de A Turma da Mônica
possa identificar suas múltiplas faces.
CAPÍTULO I
1
Utilizaremos as siglas - HQ ou HQs - no texto, para modificar o vocabulário sobre o referente “histórias em
quadrinhos”, a fim de evitar muitas repetições.
15
HISTÓRIA E MEMÓRIA: CULTURA E IDENTIDADE
NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
As identidades parecem invocar uma
origem que residiria em um passado
histórico com o qual elas continuariam a
manter uma certa correspondência. Elas
têm a ver, entretanto, com a questão da
utilização dos recursos da história, da
linguagem e da cultura para a produção
não daquilo que nós somos, mas daquilo
no qual nos tornamos.
Stuart Hall
1.1 Cultura e prática social: construção de identidades globais e individuais
Dentre as várias concepções de cultura, há duas que são básicas: uma, de
âmbito geral, está associada a tudo aquilo que caracteriza a socialização de um
povo ou nação, ou de grupos pertencentes a uma sociedade; a outra corresponde
ao conjunto de conhecimentos, idéias e crenças existentes na prática social,
associadas a um determinado domínio social. (SANTOS, 2003, p.24-23).
A formação da identidade de um indivíduo, grupo ou nação deve ser
entendida a partir das características do sistema social no qual estão inseridos:
o contexto histórico e a cultura vão traçar perfis identitários representativos
desse sistema, através das práticas sociais mantenedoras dos valores e crenças
da época e do lugar.
Como a identidade individual e global caracteriza, respectivamente, o
indivíduo e o grupo ou a nação a que ele pertence, temos que analisar o
processo de formação de identidades a partir dos elementos que constituem o
modo de vida de um povo no contexto atual – o da globalização. Embora o
16
processo de globalização ocorra desde o início da história da humanidade, é o
contexto histórico do século XX que melhor demarca e caracteriza essa
integração econômica mundial moderna, conforme especialistas, principalmente
após a segunda guerra mundial. Dados históricos nos explicam que a fim de
evitarem maiores conflitos e uma nova guerra, os países ricos criaram
mecanismos diplomáticos e comerciais para aproximar uns aos outros. Deste
consenso surge a Organização das Nações Unidas e, com ela, os blocos
econômicos. Por conta da necessidade de expansão dos mercados, as nações
começaram a comercializar produtos de outros países, propiciando o
crescimento da ideologia econômica do liberalismo.
As principais características da globalização correspondem à
homogeneização dos centros urbanos, a revolução tecnológica nas
comunicações, a reorganização geopolítica do mundo em blocos comerciais, a
hibridização entre culturas locais e a criação de uma cultura de massa
universal. Essas características compõem as referências da política econômica
dos países desenvolvidos, que afetam todas as áreas da sociedade – o que
acarretou, ao longo do século XX, o mercado mundial conduzir a globalização
da informação dos padrões culturais e de consumo.
Desse modo, a globalização nega a diversidade cultural e as variadas
estruturas sociais, incutindo um pensamento monodisciplinar. Nesse sentido, “o
PIB (Produto Interno Bruto) elimina a PIB (Personalidade Intercultural de
Base) das sociedades humanas e, com ela, os Africanos, os Esquimós, os
Índios.” (ZAOUAL, 2003, p.98).
Zaoual (2003) também nos explica que o homus oeconomicus, categoria
do discurso da globalização, deve ser concebido a partir do seu contexto social,
ou seja, através da análise do homem enquanto sujeito sócio-cultural, já que os
sujeitos não reagem de forma idêntica em diferentes espaços sociais. Por isso, o
modelo econômico globalizador não consegue afetar todas as nações da mesma
maneira, porque o homo situs – sujeito situado em determinado lugar e contexto
histórico - não permite, uma vez que ele analisa, escolhe e assimila as
contribuições oferecidas no mercado global, pois está inserido em sítios
simbólicos de pertencimento que o faz agir assim.
17
Os sítios simbólicos de pertencimento são espaços de crenças e práticas
ajustados às circunstâncias locais. Desse modo, articulam a cultura dos atores
da situação, com a sociedade e o meio ambiente, fazendo com que as
contribuições e influências da globalização sejam assimiladas parcialmente,
uma vez que as escolhas culturais dos indivíduos se ajustam ao seu mundo
social: cada sítio possui sua memória, seus conceitos, seu saber social e seus
modelos de ação mobilizadora. Por isso,
à medida que cresce o global, também amplia-se o sentimento do
local. As razões desse paradoxo são múltiplas, entre as quais
mencionamos a seguinte: a globalização, sinônimo de
mercantilização do mundo, introduz localmente um tipo de incerteza
e de vertigem na mente humana. Uma das maneiras de reagir a isso
consiste na busca da certeza de que somente a proximidade pode
garantir, até certo ponto, o sentimento de pertencer. Esses processos
ocorrem sob formas múltiplas, tocando todos os aspectos da vida
humana. A volta da espiritualidade, a difusão da ecologia, a adesão a
movimentos religiosos e culturais, mais ou menos radicais e, até, em
certos casos, violentos, são aspectos que resultam da falência do
economicismo. (Zaoual, 2003, p.21).
Zaoual (2003), ao teorizar sobre os sítios simbólicos de pertencimento,
parte do pressuposto de que as realidades humanas são bastante complexas para
serem orientadas com base em um modelo único de pensamento e de conduta.
Assim, não é possível se pensar na unicidade cultural quando existem
resistência e critério de escolha do que é oferecido no supermercado cultural
global.
Este posicionamento na identificação e escolha de valores culturais
importantes para determinadas práticas sociais nos leva a refletir sobre a
questão dos sítios simbólicos. Como podemos deduzir, é o processo de
subjetivação que faz com que haja seleção, e por que não dizer, adaptação
daquilo que nos é oferecido pela cultura global, uma vez que cada contexto
histórico possibilita ao sujeito se autoconstituir, a partir do imaginário social,
das suas condições materiais, ideogicas e culturais – o que dificulta,
portanto, a assimilação total do que está disponível no mercado global,
originando os chamados mosaicos culturais.
18
Problematizando também esta questão, Mathews (2002) apresenta-nos a
concepção de cultura associada ao Estado e ao Mercado global. Segundo o
autor, a concepção de cultura como o modo de vida de um povo continua
existindo, mas ela deve ser entendida como resultado da manipulação do Estado
e da interferência do Mercado cultural nas formas de identificação individuais e
coletivas. É através da relação estabelecida entre identidade étnica e identidade
de mercado que seus argumentos vão construindo a sua tese:
Os Estados em toda a sua história recente têm moldado culturalmente
seus cidadãos a fim de acreditarem que Estado e cidadão são uma
coisa só dentro do “modo de vida de um povo”, e os cidadãos, na sua
maior parte, acabam acreditando nisso sem questionar. Entretanto, a
moldagem de seus cidadãos pelos Estados visando a um “modo de
vida” comum está sendo contestada hoje. Esta contestação se dá, em
parte, por causa do ressurgimento do etnicismo e da identidade
étnica. (MATHEWS, 2002, p. 31).
…………………………………………………………………………....
Não é a identidade étnica, mas a identidade tal como oferecida
através do mercado que é, decisivamente, a força maior que corrói a
identidade nacional no mundo de hoje. Identidade étnica pode se
opor ao Estado existente, mas é fundamentalmente da mesma ordem
conceitual que o Estado; da mesma forma que a identidade oferecida
pelo Estado, a identidade étnica é freqüentemente baseada na idéia
de um determinado povo pertencente a um determinado lugar.
Identidade de mercado, por outro lado, está baseada em não
pertencer a nenhum lugar determinado, mas sim, ao mercado tanto
em suas formas materiais como culturais; na identidade baseada em
mercado o lar de um indivíduo é o mundo inteiro. (MATHEWS,
2002, p. 32).
Esta discussão em torno do poder do Estado e do Mercado global está
relacionada ao Multiculturalismo presente numa sociedade, tendo em vista que
tanto a comercialização de produtos como a veiculação de informações estão
cada vez mais acessíveis a diferentes povos no mundo todo, que compram e
apreciam modos de vida diversificados - identidades disponíveis no Mercado
global. E que esta influência mercantilista está associada ao poder de sedução
que os meios de comunicação de massa exercem, diminuindo, assim, o poder do
Estado em estabelecer uma unidade cultural, quando as informações são de
âmbito multicultural.
Assim, a identidade nacional, construída pelo Estado, objetiva o direito
de traçar a fronteira entre o ‘nós’ e o ‘ele’, fazendo com que os elementos
identitários que compõem o quadro social confirmem indiretamente os
19
princípios nacionalistas, assegurando a superioridade da identidade nacional,
endossando, assim, a sua unificação, caso contrário estes elementos não seriam
aceitos, legitimados. Isto ocorre porque:
O Estado-nação não celebra inteiramente sem reservas a idéia de
cultura. Ao contrário, qualquer cultura particular nacional ou étnica
realizará seu potencial somente por meio do princípio unificador do
Estado, e não pela sua própria força. As culturas são intrinsecamente
incompletas, e precisam de complementação do Estado para se tornar
verdadeiramente elas mesmas. Eis por que, ao menos para o
nacionalismo romântico, cada população étnica tem direito ao seu
próprio Estado simplesmente em virtude de ser uma população
distinta, já que o Estado é a forma suprema pela qual a identidade
étnica pode ser realizada. (EAGLETON, 2005, p.90).
Portanto, a idéia de “pertencimento” a qualquer identidade cultural é uma
imposição do Estado – ou seja, uma condição política - e uma necessidade do
indivíduo:
quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer
‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna
cada vez mais importante para os indivíduos que buscam
desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso. (BAUMAN,
2005, p.30).
No entanto, este poder que o Estado tem de manter os laços coesivos que
distingue a identificação e a singularidade de cada nação na modernidade é uma
ilusão, pois não consegue manter distantes os elementos identitários do
processo de Globalização, que os altera. Eagleton (2005, p.92) endossa esta
questão, quando afirma que:
A cultura é em certo sentido mais importante do que a política, mas
é também menos maleável. Homens e mulheres têm maior tendência a
ir para as ruas, numa manifestação, por questões culturais e
materiais do que por questões puramente políticas – sendo o cultural
aquilo que diz respeito à identidade espiritual de alguém, e o
material à sua identidade física. Por meio do Estado-nação fomos
constituídos como cidadãos do mundo; mas foi difícil ver como essa
forma de identidade política podia fornecer motivos tão
profundamente arraigados quanto os culturais.
20
Portanto, o Estado-nação não consegue mais manter a unidade nacional –
o que acarreta na disseminação da hibridez cultural e no fim do mito
nacionalista da unidade político-cultural, uma vez que no mundo atual “não se
pode facilmente pensar em uma cultura como algo em que as pessoas em um
determinado lugar no mundo têm ou são, em comum, em oposição a outros
povos em outros lugares.” (MATHEWS, 2002, p.21).
Assim, o processo de identificação torna-se partícipe da estratificação
social, veiculando pólos distintos relativos à hierarquia global emergente: de
um lado se encontram aqueles que constroem e reconstroem as suas identidades
conforme contexto e “vontade”, mesmo não tendo certeza do seu tempo de
duração; do outro se inserem aqueles que tiveram negado seu direito de escolha
– ou seja, indivíduos excluídos do espaço social em que as identidades são
buscadas, sendo pertencentes à subclasse, de cuja condição não são capazes de
se livrar. Nesse grupo se encontram todos os indivíduos cujas vozes e
reivindicações nunca serão ouvidas e/ou legitimadas por questões político-
sociais e econômicas, além dos refugiados, “os desterritorializados num mundo
de soberania territorialmente assentada” (MATHEWS, 2002, p.46), que buscam
uma nova referência, um novo lugar e um novo rosto para reconhecerem-se.
Nesta discussão, Mathews (2002) assevera que os indivíduos, ao se
considerarem livres para viverem e fazer escolhas de produtos do Mercado
global, acreditam que têm autonomia para tal, no entanto, são coagidos por
“formações culturais do eu”
2
, que se subdividem em três níveis de consciência,
a saber: 1. Nível de informação aceito sem questionamento: está em sua maior
parte, abaixo do nível de consciência. Neste nível não se compreende o porquê
das verdades, ou melhor, não se sente a necessidade de compreensão, de
questionamentos – remete ao que se faz sem pensar. 2. Nível shikata ga nai
3
: é
a informação inserida na cultura que faz os indivíduos sentirem-se parte de uma
mesma sociedade, vivenciando as mesmas práticas sociais e valores através de
regras sócio-culturais, não podendo resisti-las totalmente, pois se encontra no
2
Podemos considerar as formações culturais do eu como processos subjetivos, uma vez que a liberdade de
escolha está atrelada a questões éticas e culturais.
3
Segundo Mathews, shikata ga nai é uma expressão japonesa que significa “não há como evitar”; “não a nada
que posso fazer a respeito”.
21
nível de consciência mediana - remete ao que se faz porque tem que fazer. 3.
Nível do “supermercado cultural”: este nível de consciência faz com que os
indivíduos sintam-se livres para escolher as idéias pelas quais querem viver,
mas essa escolha não é realmente livre, pois inconscientemente há relação com
a classe social, o gênero, a religião, etnia, etc. – remete ao que se faz porque
escolhe fazer.
São, pois, esses três níveis de consciência que constituem, segundo
Mathews, a formação cultural dos indivíduos – sob o respaldo do Estado, sob a
interferência do Mercado global.
A partir dessas colocações, podemos exemplificar o que Hall (2003)
afirma, quando trata de questões relativas às transformações estruturais por que
passam as sociedades modernas no que tange à fragmentação dos elementos que
compõem o cenário identitário de uma nação: não há como centralizar
determinadas características sociais e culturais, que, por conseqüência, não
conseguem mais compor a identidade de um indivíduo. Isto se deve à mudança
de conceitos, valores e comportamentos decorrentes do processo de
Globalização que atravessa a era moderna das civilizações.
É por meio desse processo que envolve a ultrapassagem das fronteiras
nacionais, que Hall (2003) apresenta uma sociedade composta de culturas
híbridas, uma vez que o próprio sujeito pós-moderno não possui uma identidade
fixa, pois há a assunção de diferentes identidades, relacionadas a diferentes
processos de enunciações, o que de fato revela o deslocamento constante das
identidades:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é
uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que (sic.) os sistemas de
significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2003, p.13).
Além disso, é importante frisar que, assim como Mathews (2002), Hall
(2003) também salienta que no jogo e constituição das identidades há
conseqüências políticas, uma vez que por serem contraditórias, as identidades
22
se deslocam tanto entre indivíduos como entre grupos políticos e, em
decorrência, não há como identificar os interesses de classe sem levar em conta
os interesses individuais. Por isso, as identidades políticas são pontuadas por
identificações rivais, que representam a interpelação/representação constitutiva
dos sujeitos – que pode ser ora ganhada, ora perdida – ou seja, diferentes
posturas políticas de classes sociais originam diferentes posturas políticas
dentro de um contexto social determinando, interferindo, assim, em suas
representações culturais e práticas sociais. (HALL, 2003, p.20-21).
Partindo das considerações acima apresentadas, pontuando
principalmente a constituição de uma identidade cultural através da influência
do Estado e do Mercado Global, podemos incluir a posição de Laraia (2004),
quando declara que a cultura condiciona a visão de mundo do homem, pois
estabelece padrões de comportamento e de interação com o mundo, organizados
em um sistema cultural singular. Embora haja a influência de outras culturas, a
singularidade apresentada por Laraia pode ser entendida como a relação
mantida entre a tradição e a renovação, que é vivenciada diversamente entre as
sociedades – fato este que torna esse processo singular.
Este fato vem colaborar com a idéia de que o ponto de vista defendido e
referenciado como o mais correto e natural é sempre de cunho etnocêntrico, ou
seja, a cultura do outro é, de alguma forma, menosprezada. E mesmo havendo
diferentes graus que expressem essa relação entre ‘o que é meu’ e ‘o que é do
outro’ como o melhor ou pior, belo ou feio, certo ou errado, sempre existirá na
humanidade a tendência em conceber o seu grupo social como o melhor – o que
gera, em casos extremos, numerosos conflitos sociais. Constituindo-se, assim,
as visões de mundo vão caracterizar diferentemente os sujeitos, já que eles
interagem conforme grupo social ao qual fazem parte, pois:
a participação do indivíduo em sua cultura é sempre limitada;
nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os elementos de sua
cultura. Este fato é tão verdadeiro nas sociedades complexas com um
alto grau de especialização, quanto nas simples, onde a
especialização refere-se apenas às determinadas pelas diferenças de
sexo e de idade. (LARAIA, 2004, p.80).
23
Dependendo do sistema cultural de dada sociedade, as interdições
concernentes às relações e práticas sociais irão impor as regras do viver
coletivo. Assim, os pendores, as profissões e as possibilidades de concretizar
este ou aquele ato estão associados à forma como esse sujeito interage com seu
meio, que papel social desempenha, ou se está apto ou não a realizar as tarefas
delimitadas pela sociedade. Por isso, cada sujeito participa diferentemente de
sua cultura.
O sistema cultural de qualquer tipo de sociedade possui uma ordem
própria e é a partir dessa lógica que os sujeitos interagem com o mundo e entre
si. E para se compreender a lógica de cada sistema cultural é preciso
compreender as suas categorias constituídas, ou seja, como o mundo é
concebido e representado por cada grupo. Como também é preciso entender
quando e como esse sistema cria uma outra lógica, outra ordem social. Isto
acontece quando há mudanças decorrentes da dinâmica do próprio sistema
cultural (mudança interna, mais lenta) ou da influência recebida de um outro
sistema (mudança externa, mais brusca) - ambas as mudanças ocorrem dentro
do sistema das categorias culturais de qualquer sociedade. Portanto, é entre o
mesmo e o diferente, que as culturas se constituem e se constroem as
identidades individuais. A título de exemplo, consideremos a questão do nu
artístico. Na sociedade brasileira, em se tratando de entretenimento televisivo,
ocorreu uma mudança de paradigma ao se tratar do tema sexualidade: já é
aceitável como natural, uma vez que é veiculável na tv, cenas amorosas em
filmes, seriados e novelas que, sutil ou explicitamente, tratam do
relacionamento íntimo heterosexual ou homosexual. Isto não era possível há
sessenta anos atrás. No entanto, o nosso sistema cultural sofreu alterações no
tempo, que fizeram com que os grupos sociais quebrassem tabus e, mesmo que
em algumas localidades e em determinadas situações ocorram desaprovações, as
gerações mais jovens interagem melhor com este tipo de valor social.
Desse modo, as representações culturais vão compor o cenário das
identidades híbridas como afirma Hall (2003). É por meio dessas
representações que o sujeito pós-moderno caracteriza-se como ser descentrado
e de identidade fluida. Por meio de referências a diversas bases
24
epistemológicas, Hall (2003) justifica esse descentramento através de enfoques
decorrentes de análises teóricas que romperam com a idéia da unicidade do
indivíduo (questionamentos que são ressignificados pelos estudos
antropológicos quando tratam da influência da Globalização na configuração de
uma nova estrutura cultural no mundo): 1. Como afirmara Marx, os homens
fazem sua história a partir de certas condições – portanto, não escolhem, de
fato, o que querem fazer; apenas delimitam uma dentre as possibilidades
apresentadas pelo próprio sistema social. 2. A descoberta do inconsciente por
Freud destrói o conceito de um sujeito racional, possuidor de uma identidade
fixa, uma vez que funciona através de uma outra lógica, justificando a
formação e a constituição das identidades por meio de um processo contínuo –
uma constante busca da plenitude do eu. 3. Os estudos de Saussure, postulando
a relação entre língua e fala e a impossibilidade de sermos autores do nosso
dizer, pois o que ocorre é nosso posicionamento demarcado pelas regras da
língua e dos sistemas de significação já previamente convencionados pela
própria cultura. 4. O poder disciplinar teorizado por Foucault também é
apresentado como um dos fatores que compõem o conceito de sujeito
descentrado e de identidade móvel, porque explica a idéia de coerção social
como elemento regente do pensamento humano, tanto em suas relações sociais
quanto na própria constituição dos conhecimentos especializados. 5. O
surgimento de movimentos sociais, a começar pelo impacto causado pelo
movimento feminista, traduz questionamento político e mudança na ordem
social, politizando e problematizando as identidades sociais e as
subjetividades, abrindo espaço para as contestações e a formação de novas
identidades individuais e sociais.
Todas essas considerações vêm demarcar a configuração do sujeito pós-
moderno e sua relação com as culturas nacionais, estabelecendo as identidades
culturais, como se delas fizéssemos parte naturalmente. No entanto, fazemos de
fato parte dessa cultura por meio de representações, que ora retratam o velho,
ora retratam o novo. Por isso Hall argumenta que:
Nós só sabemos o que significa ser ‘inglês’ devido ao modo como a
‘inglesidade’ veio a ser representada – como um conjunto de
25
significados – pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação
não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos –
um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas
cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia de nação
tal como representada em sua cultura nacional. (HALL, 2003, p.48-
49).
Dessa forma, a representação da identidade nacional dependerá de um
conjunto de elementos de divulgação de narrativas sobre a nação (estórias,
imagens, cenários, rituais, símbolos, entre outros); da busca pela tradição de
seus elementos essenciais; assim como de seus mitos e características que
constituem o seu povo. No entanto, a participação dos sujeitos nesse sistema
institucional e simbólico de representação de uma identidade cultural está
ameaçada, por causa dos deslocamentos de valores veiculados pelo Mercado
global, do qual derivam três consequências:
As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do
crescimento da homogeneização cultural e do ‘pós-moderno global’.
As identidades nacionais e outras identidades ‘locais’ ou
particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à
globalização.
As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades –
híbridas – estão tomando seu lugar. (HALL, 2003, p.69).
Dessas consequências emergem formas de resistência, por um lado, e de
apropriação parcial ou quase completa dos referenciais de cultura global, que
tentam homogeneizar sociedades a partir da divulgação de seus bens materiais e
culturais, por outro.
Em decorrência dessa mudança de referenciais, Bauman (2005) assevera
que a identidade se tornou um conceito essencial para a compreensão da
natureza humana e de suas práticas sociais, das quais surgem os fatores de
transformação da vida social na era da “modernidade líquida” – que é definida
como o período de mutação de valores inserido num processo de transformação
contínua por que passam as identidades sociais, religiosas, profissionais e
sexuais, ocasionando a constante renovação dos repertórios, parâmetros e
paradigmas utilizados na sociedade.
26
A identidade caracteriza a comunidade por meio de dois paradigmas: um
relacionado à idéia de pertencimento, pela vida e pelo destino, que agrupam
pessoas por viverem em um mesmo espaço geográfico; o outro associado à
própria constituição de traços identitários, que difere os sujeitos pertencentes a
determinadas esferas ou espaços sociais. Para Bauman (2005) é a segunda
categoria que motiva os questionamentos sobre ‘identidade’, uma vez que os
indivíduos se reúnem em uma comunidade em função das idéias que vivenciam
e defendem. Como estas idéias estão sendo sempre atualizadas, a configuração
das identidades passa pela liquidez, fluidez de valores – alterando-se,
movimentando-se constantemente:
Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade”
não têm solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida,
são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o
próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como
age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores
cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Em
outras palavras, a idéia de “ter uma identidade” não vai ocorrer às
pessoas enquanto o “pertencimento” continuar sendo o seu destino,
uma condição sem alternativa. Só começarão a ter essa idéia na
forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem
conta, e não de uma só tacada. (BAUMAN, 2005, p.17-18).
Diante destas considerações, a fluidez das identidades passa pelo contato
(e contágio) de diferentes idéias e princípios defendidos pelas comunidades.
Como as comunidades tendem a ser influenciadas pelo multiculturalismo, não
há mais como conservar o absolutismo étnico, o que provoca tanto o
deslocamento das identidades enquanto destino, quanto das identidades
constituídas ideologicamente.
Então, é a busca incessante por uma identidade que faz com que os
indivíduos insiram-se em determinados grupos sociais e neles possam
compartilhar anseios e desejos alimentados pela sua ideologia: modo de vida,
visão de mundo e bens culturais, que são legitimados pela memória social. É
sobre a constituição desta memória que vamos tratar agora.
27
1.2 Memória e história: representações de práticas culturais
O desenvolvimento da Ciência Histórica fez com ela se renovasse e se
tornasse um elemento essencial para a constituição de identidades individuais e
coletivas, uma vez que estas são reconhecidas no interior de uma realidade
histórica. Como cada época fabrica a sua representação do passado histórico, a
memória e a história estão intimamente relacionadas, uma vez que a memória é
“um de seus objetos e, simultaneamente, um nível elementar de elaboração
histórica.” (LE GOFF, 2003, p.49). Por isso a história da história preocupa-se
com a cultura histórica constituída por determinados fenômenos, situados em
determinado tempo.
28
Sendo o tempo matéria fundamental da história, sua cronologia
desempenha importante função no estabelecimento de pontos de partida
cronológicos e de periodização de práticas sócio-culturais dos povos, cuja
memória passa a ser demarcada pelo tempo histórico.
O estudo da memória social oferece ao pesquisador fundamentos para
abordar os problemas do tempo e da história, que envolvem os grupos sociais
em suas relações de poder. Destas relações emerge a legitimação de
mecanismos que manipulam a memória coletiva, porque é no interior das lutas
sociais pelo poder que determinados fatos históricos tornam-se memória.
Assim, sendo objeto dos estudos realizados pela Ciência Histórica, a memória
social está atrelada à memória histórica (LE GOFF, 2003), pois envolve
práticas, representações e valores sociais que se inscreveram no tempo e foram
cristalizadas, ressignificadas ou extintas conforme a atuação e desenvolvimento
das diferentes sociedades no seu percurso de evolução histórica. O autor ainda
afirma ser necessário observar que sociedades possuem memória
essencialmente oral ou escrita e se transitaram da oralidade para a escrita,
porque esse referencial constitui o princípio norteador do estudo da memória
social.
Nesse sentido, a memória oral compõe as primeiras referências históricas
de modo de vida de um povo, pois cria os mitos de origem, caracterizadores das
etnias ou famílias, ou seja, os narradores orais, denominados de homens-
memória (guardiões dos códices reais, historiadores da corte, chefes de família,
idosos, sacerdotes, entre outros); resgatam a história do início dos tempos;
reforçam o prestígio das famílias detentoras de poder através das genealogias e
transmitem o conhecimento técnico por meio de fórmulas práticas,
principalmente as relacionadas à religiosidade, que são fatores mantenedores da
unidade e coesão do grupo por meio da tradição. (LE GOFF, 2003, p.427).
A história de um povo, sendo resgatada pelas narrativas orais, cria uma
ordem própria de representação, pois, consoante o autor, geralmente não está
associada a “procedimentos mnemotécnicos”, mas à dimensão criativa que o
relato estabelece em relação aos acontecimentos históricos rememorados, ou
29
seja, o relato muda quando aos seus referenciais são acrescentados um modo
singular de dizer e reviver o que é tradicional.
Com a criação e desenvolvimento do sistema verbal escrito, as narrativas
orais passaram a conviver com um novo referencial de comunicação e de
informações da história de um povo. Ao passo que a humanidade evolui, saindo
da pré-história e inserindo-se na era antiga, a memória social se amplia com
seus novos referenciais: a celebração de acontecimentos memoráveis e seu
registro através das inscrições em pedras (“arquivos de pedra” que são bases da
epigrafia, ciência auxiliar da história) e a documentação de informações por
meio da escrita.
A partir de então, a escrita passa a veicular a memória urbana das
cidades-capitais, como também a registrar atos financeiros, dedicatórias,
manifestações religiosas, referências genealógicas e a memória real, ou seja,
todos os acontecimentos importantes proporcionados e vividos por um rei. É
como endossa Le Goff (2003, p. 429-430) ao afirmar que:
Os reis criam instituições-memória: arquivos, bibliotecas, museus.
Zimrilim (cerca de 1782-1759 a.C.) faz do seu palácio de Mari, onde
foram encontradas numerosas tabuletas, um centro arquivístico. Em
Rãs Shamra, na Síria, as escavações do edifício dos arquivos reais de
Ougarit permitiram encontrar três depósitos de arquivos no palácio:
arquivos diplomáticos, financeiros e administrativos. Nesse mesmo
palácio havia uma biblioteca no II milênio antes da nossa era e no
século VII a.C. era célebre a biblioteca de Assurbanipal, em Nínive.
Na época helenística, brilham a grande biblioteca de Pergamo e a
célebre biblioteca de Alexandria, combinada com o famoso museu,
criação dos Ptolomeu.
Como podemos observar, os reis, no intuito de registrarem os seus feitos
heróicos, registraram parte da história antiga, tornando seus monumentos reais
em documentos históricos. Por meio da palavra escrita guardaram também
valores que nortearam seu modo de governar e de ser.
Já na era medieval, a memória coletiva passa a assumir um novo viés
ideológico, distanciando-se das práticas anteriores, por meio da difusão do
cristianismo como religião. Nesse período, é o referencial litúrgico que vai
conduzir a maioria das práticas sociais, cristalizando a memória dos mortos,
30
dos santos e o papel da memória no ensino dos dogmas cristãos através da
articulação oralidade e escrita. Isto acontece porque:
atos divinos de salvação situados no passado formam o conteúdo da
fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por um
lado, a tradição histórica, por outro, insistem em alguns aspectos
essenciais, na necessidade da lembrança como tarefa fundamental.
(LE GOFF, 2003, p. 438).
O ensino cristão passa a instituir memória, e o seu culto resulta na
comemoração de uma memória resgatada e revivida por meio da liturgia
Advento ao Petencostes, Eucaristia – como lembrança de Jesus – assim como,
da exaltação dos santos que passaram a ser cultuados no dia suposto ou
conhecido de seu martírio e a eles era empenhada a devoção, que se cristalizava
por meio dos milagres; e dos mortos, que são lembrados nos libri memoriales
(livros de memória dos mortos, também chamados de necrólogos ou obtuários –
no século XVII), que guardavam referências de pessoas geralmente benfeitoras
da comunidade e a elas direcionavam suas orações.
É também nesse contexto histórico que os relatos orais ainda têm mais
valor social que os documentos escritos, uma vez que a memória escrita deriva
justamente da memória oral, principalmente entre os clérigos e literatos
4
. E, no
que se refere à instituição escolar, a expressão oral de cada aluno passa a ser o
referencial do aprendizado, pois “saber de cor é saber”. No entanto, a
importância da oralidade como recurso mnemônico na Idade Média perde
espaço para um novo referencial histórico de evolução da humanidade – a
Renascença.
No período que envolveu o Renascimento emergiu a revolução
tipográfica, que atuou diferentemente em diversos espaços geográficos,
atingindo principalmente a memória social das classes cultas, que tinham
acesso aos “tratados científicos e técnicos que aceleraram e alargaram a
memorização do saber.” (LE GOFF, 2003, p.452). Este fato vem imprimir, no
contexto mundial, novas formas de documentação dos conhecimentos
sistematizados, associadas a um universo de informações que não são possíveis
4
Nesta época, os literatos utilizam referências da memória coletiva para ressignificar seus escritos e fazer as
canções de gesta.
31
serem “decoradas”, uma vez que a diversidade discursiva, presente no texto
escrito, ultrapassava as referências das práticas orais e das técnicas utilizadas
durante séculos.
Como uma nova ordem social foi criada, a visão de mundo de
coletividades passa por alterações históricas decorrentes de movimentos e das
revoluções que sustentam ideologias e instituem a memória da Idade Moderna,
das quais decorrem os seguintes acontecimentos: 1. A comemoração dos mortos
entra em declínio; os túmulos tornam-se simples e os cemitérios têm pouco
valor. O que interessa é o movimento científico; 2. A memória das revoluções
passa a ser revivida por meio de datas comemorativas; 3. A literatura romântica
institui a sedução pelo passado e traz novamente a apreciação da morte, a
valorização dos cemitérios; 4. A criação de arquivos nacionais e sua
disponibilidade pública; 5. A abertura de museus para visitação pública; 6.
Ocorre a ampliação das bibliotecas; 7. Construção de monumentos aos mortos –
novo referencial após a primeira Guerra – Túmulo do soldado desconhecido –
representação da memória coletiva; 8. O surgimento da fotografia – registro da
memória do tempo; do álbum de família.
Além de todos esses acontecimentos que perpetuam a memória da
própria história e o registro da evolução da humanidade no desenvolvimento
técnico-científico, encontraremos, na contemporaneidade, a “revolução da
memória” por meio da memória eletrônica, que na verdade auxilia a
rememoração e/ou cristalização de informações importantes para toda uma
coletividade, agindo em função dos programas criados pelo próprio homem.
Como também o aprofundamento dos estudos no campo da filosofia, literatura e
ciências sociais que, ao retomarem seus pressupostos, ampliam a memória
científico-social.
Assim, a História da história da humanidade está entrelaçada aos
referenciais da memória coletiva, já que:
Lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus;
lugares monumentais como os cemitérios ou as arquiteturas; lugares
simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários
ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as
autobiografias ou as associações: estes memoriais têm sua história.
32
Mas não podemos esquecer os verdadeiros lugares da história,
aqueles onde se devem procurar não a sua elaboração, não a
produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva:
Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiências
históricas ou de gerações, levadas a construir seus arquivos em
função dos usos diferentes que fazem da memória. (LE GOFF, 2003,
p. 467).
Nesse sentido, tanto a memória coletiva como a história (sua forma
científica) remetem a dois tipos de materiais de rememoração: os documentos,
que traduzem a escolha do historiador, a forma de objetivar-se diante dos
acontecimentos, embora seja o fundamento dos fatos históricos, uma vez que se
trata de prova concreta; e os monumentos, que são representados pela herança
do passado, que perpetuam dados das sociedades históricas. Ambos se
inscrevem como referenciais que se complementam, para o desenvolvimento do
estudo da memória social e a história da humanidade - por isso, são os
documentos-monumentos que resgatam a nossa memória coletiva e a perpetuam
até que outra ordem histórico-social se instale e novos referenciais sejam
criados, pois:
O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é
um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de
forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto
monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador
usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. (LE
GOFF, 2003, p.535-536).
Vale salientar que estes postulados traduzem a reformulação que a
ciência histórica vem instituindo ao modificar a sua posição perante a análise
dos documentos, cujos pioneiros dessa história nova – fundadores da revista
Annales d’Histoire Économique et Sociale (1929) -
ampliaram a noção de documento, fazendo com que a história possa ser
reconstruída tanto pelas análises de fontes escritas, como não escritas. Por isso,
é que “os documentos só passam a ser fontes históricas depois de estar sujeitos
a tratamentos destinados a transformar sua função de mentira em confissão de
verdade” (LE GOFF, 2003, p.110), ou seja, o historiador deverá ser capaz de
interpretar o documento, avaliar sua credibilidade e desmistificá-lo.
33
Esta nova postura do historiador se faz a partir do momento em que se
problematiza o conceito de história e a própria metodologia de pesquisa e
análise de suas fontes, levando-o a narrar eventos na perspectiva de uma
história total, recriando discursos relativos às visões de mundo de seu tempo.
Por isso, para a nova história, toda a atividade humana, por mais simples que
seja, é portadora de uma história.
Filiando-se às discussões realizadas pela Escola dos Annales, Foucault
(2007) tece considerações sobre os fundamentos da concepção positivista da
História tradicional, criticando e questionando o modo de pensar o
acontecimento histórico dentro de uma seqüência temporal, contínua e linear.
Por isso, ao teorizar sobre a história dos saberes, mostra que a assunção dos
conhecimentos científicos não obedece a uma lógica contínua, porque os
saberes constituem-se no tempo a partir de descontinuidades e verdades
instituídas por determinado contexto histórico-social.
Dialogando, assim, com as teses da História Nova, problematiza o
conceito de história, associando o trabalho do historiador a de um arqueólogo,
posicionando-se conforme o novo modo de pensar a ciência histórica. É nesse
sentido que o autor argumenta sobre a inquietude dos historiadores em
reconstruir o passado:
Por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda
não concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela
considera como sua tarefa primordial não interpretá-lo, não
determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas
sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela organiza, recorta,
distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o
que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades,
descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a história,
essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os
homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas
rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades,
conjuntos, séries, relações. É preciso desligar a história da imagem
com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava
a sua justificativa antropológica: a de uma memória milenar e
coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o
frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de uma
materialidade documental (livros, textos, narrações, registros, atas,
edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes,
etc.) que apresenta sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade,
formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O
documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si
34
mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para a sociedade,
uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de
que ela não se separa. (FOUCAULT, 2007a, p.7-8).
Assim, refletindo sobre o modo de registrar a história, Foucault
problematiza a constituição dos documentos e a sua função enquanto
monumento histórico, ressaltando a posição do historiador diante das análises
dos materiais que precisa delimitar, especificar e descrever para conhecer seus
elementos e sistematizar os acontecimentos, uma vez que os documentos-
monumentos resultam “do esforço das sociedades históricas para impor ao
futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias.”
(LE GOFF, 2003, p.538).
Portanto, o conceito de documento histórico foi ampliado, a fim de
garantir a eficácia das análises, partindo da concepção de que todo monumento
histórico também é documento e vice-versa, ou seja, não se pode separar os
documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte e que se inserem
em determinados contextos de produção e registro de memória social.
Assim, os documentos-monumentos correspondem a tudo aquilo que
represente memória histórica, por meio da escrita, da imagem, do som, das
datas comemorativas, os lugares monumentais, etc. É o que estamos
considerando nesta pesquisa, quando tomamos por objeto de análise os
quadrinhos de A Turma da Mônica – documento que registra o modo de vida de
um povo, quando traz discursos que remetem a diversas práticas culturais,
inscritas na história e perpetuadas pelo tempo.
Portanto, para entendermos melhor a relação entre A Turma da Mônica e
a memória histórica, passaremos a tratar de fatores histórico-culturais que
motivaram o surgimento do gênero quadrinhos e a constituição de sua
historiografia.
35
1.3 A história das histórias em quadrinhos: retorno à memória e suas
representações no tempo
Diante do processo histórico de criação e difusão de uma literatura
infantil tanto geral como brasileira, ocorrida no século XVIII, com a expansão
e o aprimoramento da escrita, surgiu, inserido nesse mesmo processo, a criação
de um novo gênero literário: a história em quadrinhos.
Conhecida também como arte seqüencial, os quadrinhos constituem um
gênero textual literário, uma vez que criam uma realidade ficcional; constroem
narrativas dialogadas (ou não), cujo objetivo é relatar uma história em que os
personagens e cenários descritos (desenhados) fazem referência a um contexto
também ficcional, além de brincar com a linguagem, o que vai acontecer com
mais ou menos objetividade, dependendo do público leitor - a exemplo temos os
quadrinhos de Maurício de Sousa que, por serem endereçados a crianças,
utilizam-se de uma linguagem mais acessível a esse tipo de público.
E por fazer o que fazem, os quadrinhos são definidos como Literatura em
estampas – expressão utilizada por Moya (1996) para definir a arte seqüencial
36
como uma literatura escrita com base em desenhos seqüenciados (imagens), ou
seja, estampas.
A literatura em estampas possui características peculiares, que divergem
de outros gêneros literários, porém possui algo similar a todos (ou a quase
todos) os gêneros: a constituição de um mundo ficcional, que se dá por meio de
um conjunto de elementos que compõem a narrativa: composição de um enredo,
constituição de personagens, cenários, planos e ângulos visuais, além do uso de
balões, onomatopéias e legendas. Todos esses elementos são configurados em
quadros seqüenciados, através dos quais as imagens recebem o traço e o toque
artístico de cada desenhista. É a imagem (ilustração) que aparece como objeto
estético na literatura em estampas, já que pode construir uma narrativa
independente de texto escrito. A ilustração é a base da constituição do gênero
quadrinhos, pois desempenha importante função na elaboração do mesmo.
Segundo Camargo (1995, p.16), a “ilustração é toda imagem que
acompanha um texto. Pode ser um desenho, uma pintura, uma fotografia, um
gráfico, etc.” Podemos acrescentar, ainda, que se trata de um texto visual, que
mantém uma relação direta com um texto não visual, num processo dialógico,
de simbiose dos sentidos, através do qual o sentido da palavra se faz no e se
refaz com o texto visual e este se orienta e se molda a partir do texto escrito.
Além disso:
A imagem é um operador de memória social, comportando no interior
dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito
discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repetição e
de reconhecimento que faz da imagem como que a recitação de um
mito. (PÊCHEUX, 1999, p.51)
Portanto, a linguagem icônica dos textos visuais simboliza discursos e
práticas sociais, por meio das remissões e retomadas de temas importantes para
a cultura de um povo.
A ilustração desempenha várias funções, seja no livro ilustrado, seja no
livro de imagem. Camargo (1995, p.33-38) enumera oito tipos:1) Função de
Pontuação: a ilustração destaca o início e o fim do texto escrito; 2) Função
Descritiva: a ilustração descreve cenários e personagens; 3) Função Narrativa:
37
acontece quando o texto visual mostra uma ação (cena) ou conta uma história;
4) Função Simbólica: ocorre quando a ilustração representa uma idéia; 5)
Função Expressiva/Ética: nesse caso, a ilustração além de expressar emoções
das personagens, também salienta valores do ilustrador (sócio-culturais); 6)
Função Estética: a ilustração preocupa-se mais com as várias possibilidades de
representação de um dado “objeto”, do que a descrição do mesmo; 7) Função
Lúdica: ocorre quando a ilustração transforma-se numa espécie de jogo; 8)
Função Metalingüística: ocorre quando uma ilustração refere-se a uma
linguagem verbalizada, como exemplo, temos os sinais de trânsito (desenhos e
setas). Vale salientar que todas essas funções mantêm uma relação de
interdependência, embora sempre haja predominância de uma função
5
, que vai
ser salientada de acordo com o projeto do livro e da necessidade de desenvolver
mais uma função do que outra.
No caso do nosso objeto de estudo, os quadrinhos, vamos enquadrá-lo no
conjunto de textos literários que fazem parte dos livros ilustrados (já que a
grande maioria dos atuais quadrinhos possui diálogos e legendas), além de ser
possuidores de uma linguagem e estrutura textual bastante rica e peculiar.
Vejamos um exemplo:
5
O autor explica que a formulação dessas categorias (funções) resultou de estudos e leituras, principalmente a respeito das
funções da linguagem de Jakobson, que nortearam a criação das nomenclaturas acima especificadas. Segundo ele, há
pontos de contato, porém não há uma correspondência perfeita entre as funções da linguagem e as funções da ilustração.
38
39
40
Como podemos notar, os quadrinhos, em sua estrutura mais usual, são
constituídos por quadros que veiculam o texto verbal e o texto não verbal –
dois meios de comunicação, a princípio distintos, mas que se relacionam
intrinsecamente na composição da história. Essa composição se dá através da
junção de dois ou mais quadros, formando uma seqüência lógica e temporal,
pois indica o movimento das personagens dentro da narrativa, toda a ação
correspondente ao tema proposto, com seu início, desenvolvimento e desfecho
bem delimitados e definidos.
O formato dos quadros é geralmente retangular ou quadrado, quase
sempre delimitado por linhas que funcionam como uma espécie de moldura,
separando também um quadro do outro. Pode acontecer de a “moldura” aparecer
de modo irregular ou interrompida – indicando uma estratégia cênica, cujo
interesse é salientar uma cena ocorrida em outro lugar, fora da seqüência
estabelecida, numa perspectiva imaginária, ligada a um passado ou a um futuro,
ou seja, o relato do que já aconteceu ou do que poderia suceder faz-se
necessário à compreensão do todo, ou se torna importante por salientar algo
particular que influenciará o desenrolar da história.
A constituição do gênero quadrinhos e das suas funções e atuações como
objeto estético e ficcional, característicos de uma cultura, ocorreu atrelada a
vários fatores de ordem sócio-histórica e cultural, cuja origem advém de um
processo evolutivo longo e contínuo: a história das histórias em quadrinhos
compõe um acervo documental que imprime a sua constituição e
desenvolvimento no tempo.
Assim como as idades míticas, que são demarcadas por eras que narram e
descrevem as aspirações, os valores e os acontecimentos das sociedades
humanas, a historiografia do gênero textual quadrinhos traça, na linha do
tempo, uma cronologia estruturada por eras que constituem a sua memória
social.
O registro desta memória em documentos e a influência do contexto
histórico na criação dessas histórias fizeram com que a propagação deste
gênero instituísse, para cada época, um conjunto de fenômenos artístico-
culturais, ideológicos e comerciais, responsáveis pela sua divulgação e
41
cristalização de práticas e representações, que formaram a memória histórica
das revistas em quadrinhos.
Seguindo, então, a nossa reflexão sobre a linha do tempo e a
configuração de memória social, podemos iniciar o trajeto percorrido pelo
gênero quadrinhos, a partir das primeiras referências documentadas sobre a
comunicação entre os homens.
O relato histórico nos afirma que a arte de representar as impressões de
fatos considerados importantes pelo homem e de construir a memória dos
costumes e práticas de uma comunidade tem sua origem nas inscrições
ruprestes, deixadas pelos nossos antepassados, na era pré-histórica. Por
utilizarem o desenho e a pintura como formas criativas de se expressar, as
pinturas ruprestes tornaram-se monumentos e documentos históricos que
simbolizam o modo de vida de um povo. Segundo Iannone e Iannone (1994),
alguns estudiosos apontam este fato como a origem mais remota das histórias
em quadrinhos, por fazerem uso da comunicação visual.
Com o passar do tempo, a arte evoluiu ao longo da história da
humanidade e com ela técnicas de desenho e de pintura foram desenvolvidas –
para registrar, por exemplo, no antigo Egito, as aventuras dos deuses; ou fazer
ilustrações de documentos e livros manuscritos, na Idade Média, associando-se,
assim, à escrita.
Portanto, sendo a necessidade de expressão verbal e não-verbal algo
inerente ao homem, a atividade de criar e recriar significados para os fatos e os
objetos do mundo circundante fez com que reinventasse formas de registrar
suas posições, impressões e visões de mundo. Assim surgiram, a partir do
advento da imprensa, os jornais e, através deles, os quadrinhos.
6
As histórias em quadrinhos, na forma como elas se apresentam hoje, não
existiam. Houve todo um processo de elaboração e reelaboração de técnicas de
criação que resultaram na apreensão de uma arte seqüencial respaldada em
imagens consecutivas e suas relações de causa e efeito, como também no
6 A história das histórias em quadrinhos está associada à evolução do desenho e da pintura como um meio de comunicação
e expressão artística, visto que a base principal desse tipo de texto é o desenho. Além disso, alguns estudiosos da área
acreditam que a origem dos quadrinhos se encontra nas pinturas ruprestes.
42
trabalho com os traços, cores, jogos de luz, movimento e espaço (forma e
tamanho dos quadros).
As histórias pioneiras ou as precursoras dos quadrinhos surgiram no
século XIX. Eram criadas para divertir o leitor de jornais, ajudando no aumento
das vendas. As ilustrações predominavam, podendo ser criadas num único
quadro (conhecido por lâmina ou tablóide) ou em poucos e pequenos quadros
seqüenciados. O uso de palavras, de textos escritos, era muitas vezes deixado
de lado; e, quando apareciam, eram bastante resumidos, pois a ênfase da
expressão artística encontrava-se no desenho. O diálogo praticamente inexistia
entre as personagens, no entanto, havia legendas, cujo uso era determinado pelo
criador do desenho, caso este a exigisse como elemento necessário à
compreensão da história.
Esses textos compostos por imagens sequenciadas receberam várias
denominações, conforme o lugar onde eram comercializados e produzidos:
comics, funnies, comic strip, adventure strips, comic books, tubeos, bandes
dessinées, fumetti, striccia giornaliera, tavola domenicale, história aos
quadrinhos, chiste, monito, muñequito, historieta, gibi, quadrinhos, história em
quadrinhos, e os mangás. (IANNONE e IANNONE, 1994, p.22-26).
Como podemos observar, todos esses nomes destinados aos “comics
advêm da sua comercialização, realizada através dos syndicates
7
, mas também
da origem cultural de personalidades da área do desenho artístico: as histórias
em quadrinhos norte-americanas obtiveram tanto sucesso, que conquistaram o
público internacional, gerando outras possibilidades de criação artística
8
.
Atualmente, essas empresas também são responsáveis pelos direitos autorais
dos artistas e pela venda dos comics, combatendo a concorrência.
Portanto, toda a produção e comercialização foram determinadas pela
evolução da arte seqüencial, que distribuiu para o mundo e para os leitores
7
Eles eram uma espécie de agência distribuidora de notícias e entretenimento, surgida por
volta de 1840 para abastecer jornais rurais norte-americanos e, com o sucesso dos
quadrinhos, tornaram-se grandes empresas que comercializavam a arte seqüencial para todo
o mundo.
8
A produção e venda de quadrinhos, nessa época, não se restringiram aos EUA. No entanto, foi na América do
Norte que se estabeleceu uma estrutura empresarial gigantesca e poderosa, influenciando a propagação do
produto americano na Europa, América Latina e Japão.
43
histórias diversas, criadas com base nas próprias transformações sociais,
culturais e estéticas que definiram cada fase da história dos quadrinhos.
A partir de 1929, os quadrinhos passam por alterações provocadas pelo
contexto da época. Como a realidade tornara-se muito difícil e desestimuladora,
os quadrinhos resgataram o sonho de um futuro promissor e de uma vida mais
digna através de novas personagens, para amenizar a angústia vivenciada
principalmente pelos jovens leitores e, até mesmo, “camuflar” a profundidade
da crise econômica instalada. Assim, nasce, em 1929, o primeiro herói dos
quadrinhos – Tarzan – cujo perfil é baseado na obra de Edgar Rice Burroughs.
Após o sucesso de Tarzan, muitos heróis surgiram para transmitir
segurança e proteção aos leitores. Eis alguns deles: O Príncipe Valente, herói
da época das cavalarias medievais, de Hal Foster; Buck Rogers, piloto militar
da 1
a
Guerra Mundial, que se torna o defensor da Terra no século XXV, de Phil
Nowlan; Flash Gordon, um terráqueo enviado ao planeta Mongo, de Alex
Raymond; além do “herói dos heróis” - Superman – maior fenômeno das
histórias em quadrinhos, sendo introjetado em outros meios de comunicação,
como filmes e séries televisivas, até hoje.
É também nessa época que as revistas em quadrinhos se consolidaram. As
tiras e as páginas dominicais (tablóides) continuaram existindo, mas as revistas
passaram a ser o veículo principal das “histórias em estampas”. A primeira
revista a publicar histórias completas foi brasileira
9
. Chamava-se O tico-tico
(1905). No Japão, na década de 20, surgiram Os mangás – revistas
exclusivamente de quadrinhos. Nos EUA o modelo de revista surgiu em 1929,
mas só se popularizou em meados da década de 30. A partir de então, os comics
de ação e de aventura, principalmente, passaram a ser confeccionados e
impressos nessas revistas, transformando os syndicates americanos em
grandiosas indústrias que expandiam os quadrinhos para o mundo, na sua
melhor atuação – a Era de Ouro.
A Era de Ouro dos quadrinhos transformou-os, também, num veículo
transmissor de mensagens políticas, visto que no período da 2ª Guerra Mundial
“os super-heróis serviram como armas ideológicas junto à juventude norte-
9
Antes os jornais apresentavam as histórias em capítulos.
44
americana e à dos países aliados”. (FEIJÓ, 1997, p.41). Heróis como Capitão
América (1941), de Joe Simon e Jack Kirby, foram criados e/ou engajados no
contexto da guerra, lutando contra “as forças do Eixo (Alemanha, Itália e
Japão). Na prática, os vilões passaram a ser ou a lembrar alemães e japoneses.”
(FEIJÓ, 1997, p.41).
Também é na Era de Ouro, mais especificadamente a partir de 1929, que
a empresa de Walt Disney inicia a sua existência. Ao lado dos super-heróis,
surgem personagens que vão enaltecer o modo de vida americano.
Após essa fase da segunda guerra mundial e da constituição do novo
império americano de merchandise da Walt Disney Produções, ocorre uma
renovação na arte seqüencial, originando, assim, uma nova era dos quadrinhos:
chegamos então à Era de prata.
Essa nova era começou em 1956 por meio de transformações de
personagens bastante conhecidas. Todos os heróis foram reelaborados, pois
precisavam inserir-se no contexto atual e desvincular-se do sentimento do pós-
guerra.
A nova geração de personagens fez surgir a renovação dos quadrinhos de
aventuras ressiginificando idéias dos anos 40, por meio da editora DC (dona do
Superman). Desse modo, nos EUA, versões de personagens clássicas foram
lançadas como Flash (herói inaugural da nova fase), Lanterna Verde, Hawkman
e Liga da Justiça (antiga Sociedade da Justiça).
Na Europa e no Japão também reiniciaram a produção da arte seqüencial
com muitas novidades. Em 1959, na França, nasceu a personagem Asterix com
toda a sua aldeia, por meio da arte de Goscinny e Uderzo. Esse herói gaulês
representava a resistência européia contra os Estados Unidos e a União
Soviética, já que era tempo da Guerra fria, através de quadrinhos que
retratavam a história do Império Romano, com humor e sátira sofisticada. No
Japão vamos encontrar a produção dos mangás com várias séries de ação e
aventura. Astroboy e outras personagens de Osamu Tesuka passaram do papel
para a TV – devido ao grande sucesso, elas transformaram-se em desenhos
animados. Fato até hoje registrado, tendo em vista que foram esses mangás os
45
precursores dos “desenhos ousados e carregados de ação”. (FEIJÓ, 1997, p.60-
61).
As aventuras dos heróis continuaram, mas com o passar do tempo eles
não poderiam ser mais os mesmos. Foi então constituída uma nova concepção
dessas personagens – é chegada a Era Marvel.
A Era Marvel foi implantada nos Estados Unidos pelo roteirista Stan
Lee, criador da revista Quarteto Fantástico (1961). Nessa revista “ele
inaugurou o chamado Universo Marvel, apresentando novos conceitos de heróis
e heroínas”, transformando a editora Marvel na maior distribuidora de
quadrinhos do mundo. (FEIJÓ, 1997, p.63).
Stan Lee inovou a arte seqüencial justamente por enfatizar mais o lado
humano do que o heróico de suas personagens, abordando tramas que
mostravam os problemas cotidianos delas, suas angústias, seus desejos e até
mesmo suas fraquezas e defeitos. Criou então Hulk, X-Men, Thor, Homem de
Ferro, Os Vingadores, Demolidor, além da nova versão de Tocha Humana,
Namor e Capitão América. No entanto, foram as personagens Homem-Aranha e
o Surfista Prateado que deram a esse artista o reconhecimento total de seu
trabalho, tendo em vista que elas melhor expressavam os sentimentos, valores e
conflitos da juventude dos anos 60.
Trabalhando com temas polêmicos, o criador dos Mutantes explorou bem
a sua criatividade e pôs em evidência os conflitos sociais através das
personagens que eram vítimas de preconceitos. São os X-Men os melhores
representantes dessas situações. Essa posição política e ideológica de Stan Lee
fez com que surgissem, no mundo das revistas em quadrinhos, os primeiros
super-heróis negros: Falcão e Pantera Negra, uma revolução na constituição dos
perfis desse tipo de personagem, que vai de encontro ao arquétipo já
cristalizado dos heróis e heroínas.
Após a Era Marvel, os quadrinhos, de um modo geral, vão girar em torno
do futuro tecnológico que envolve o planeta. Desse modo, os heróis serão
metamorfoseados pela modernidade cibernética e representarão o futuro da
humanidade, numa sociedade ainda mais injusta e violenta, porque vão
desenvolver-se com base no inconsciente coletivo a partir de meados dos anos
46
80. Essa influência do inconsciente coletivo é o que sempre aconteceu durante
a evolução dos quadrinhos:
Os quadrinhos de aventura, desde Tarzan, têm como regra jogar com
o inconsciente coletivo dos leitores. Quando vão ao encontro desse
inconsciente coletivo, as histórias ou os personagens costumam fazer
sucesso nas bancas. Na década de 30, os gibis captaram e refletiram
esperança e confiança; nos anos 50, medo, desconfiança e
intolerância; nos anos 60, o desejo de grandes mudanças políticas e
sociais; nos anos 90, desilusão quanto ao presente e pessimismo
quanto ao futuro. (FEIJÓ, 1997, p.72).
É o contexto sócio-histórico, principalmente dos anos 90, que vai nortear
a criação das histórias em quadrinhos contemporâneas, as quais refletirão os
problemas econômicos como também a omissão e a corrupção do Estado perante
as sociedades. Segundo o autor supracitado, os heróis são transformados em
ciberpunks, que são rebeldes cibernéticos desafiadores do sistema social e
econômico. Esses heróis do futuro vão lutar contra a injustiça social
protegendo os pobres e a classe média das perseguições de gangues e da falta
de cidadania. É o que salienta a série 2099, da editora Marvel:
as várias séries de Universo 2099 mostram um futuro nessa linha, em
que os Estados são mera formalidade e os direitos de cidadania
existem para quem pode pagar. Tudo foi privatizado, inclusive a
polícia. Quem não pode pagar um plano de segurança está entregue à
própria sorte. Gangues de rua (como se fossem hordas de bárbaros)
vagam pelas ruas matando, estuprando e roubando os pobres e o que
sobrou da classe média. Há até gangues de “mauricinhos” e
“patricinhas” (filhos e filhas da elite) que organizam safáris de caça
aos pobres por pura diversão. (FEIJÓ, 1997, p.73-74).
Diante do exposto, torna-se evidente a influência que o contexto sócio-
histórico exerceu e continua exercendo na produção dos quadrinhos, moldando
as histórias de aventura e de ação, por meio da interpretação dos anseios que
move a sociedade nesses últimos anos.
Se a produção americana, européia e japonesa respondeu dessa forma a
essas questões durante a evolução dessa arte, como se deu a origem e a
evolução da arte seqüencial brasileira? As respostas virão em seguida.
47
1.4 Os quadrinhos brasileiros e a Turma da Mônica
No Brasil, o pioneiro dos quadrinhos é o piemontês Angelo Agostini
(1843-1910). As suas primeiras histórias ilustradas começaram a surgir a partir
de 1867
10
. Foi colaborador da revista Dom Quixote (1895) e da editora O
Malho, que lançou no dia 11 de outubro de 1905 a primeira revista brasileira
destinada aos quadrinhos: O Tico-tico. Angelo Agostini, um “ítalo-brasileiro
pioneiro dos quadrinhos”, abriu as portas ao mundo dos quadrinhos para os
brasileiros, além de ser um dos primeiros caricaturistas do mundo a trabalhar
com os quadrinhos.
É a partir da publicação da revista O Tico-tico, que se iniciam as
publicações dedicadas às crianças brasileiras, embora já tivesse surgido a
primeira revista do gênero (O Jornal da Infância, em 05.02.1898), que não fez
sucesso de público, sendo editada até o mês de junho do mesmo ano. Em 1907,
surgiram os Almanaques d’O tico-tico e, com eles, os primeiros desenhistas
brasileiros publicavam as suas criações
11
: As melindrosas, de J. Carlos; História
do Brasil ilustrada (versão), de Leônidas Freire; Reco-Reco, Bolão e Azeitona,
de Luís Sá; Chico Muque e Barão de Rapapé, de Max Yantok são alguns
exemplos.
Com o passar do tempo e o sucesso que os quadrinhos faziam no exterior,
influenciando os donos de editoras e jornais brasileiros, surge a Gazeta infantil
(ou Gazetinha,1929), suplemento do jornal paulista A Gazeta. Circulando até
1950, publicou as Aventuras do Gato Félix; Carlinhos (Nemo) e o Fantasma,
que após algum tempo ganhou uma revista exclusiva.
Mas é o editor Adolfo Aizem o principal incentivador da proliferação dos
quadrinhos em nosso país. Lançou, em 1934, o Suplemento Juvenil, veiculado
pelo jornal A Nação. Publicava exclusivamente “os heróis do Kings Features
Syndicate, como Flash Gordon, Jim das Selvas, Mandrake e Tarzan, que
ocuparam suas páginas por um bom período”. (IANNONE e IANNONE, 1994,
10
Antes de se publicarem as histórias em quadrinhos pioneiras no Brasil, já se publicavam (nos jornais) ilustrações. A
primeira ilustração brasileira publicada foi datada oficialmente em 14.12.1837.
11
Até então a produção brasileira não tinha expressividade e só se publicava textos traduzidos dos EUA.
48
p.49). E através de concurso revelou desenhistas nacionais, como Monteiro
Filho.
Em 1938, Adolfo Aizem lança o suplemento O Mirim; depois a Editora
Brasil-América (EBAL); e em 1947 publica a sua primeira revista – O Herói,
uma líder dos quadrinhos brasileiros durante anos.
Outra revista surge, em 1939, tornando-se, com o passar do tempo,
sinônima de revista em quadrinhos – o nosso tão conhecido Gibi:
Em 1939, o King Features cancelou o contrato com Aizem,
transferindo seus personagens para O Globo Juvenil, que fora criado
em 1937. Ainda em 1939, Roberto Marinho, dono do jornal O Globo,
lançou a revista infantil Gibi, que rapidamente se tornou bastante
popular (IANNONE e IANNONE, 1994, p.50).
O Gibi surge, portanto, em concorrência com as revistas da época,
tornando-se, através de seu sucesso, uma referência de leitura para crianças e
jovens. E editoras foram surgindo, criando novas revistas, como O Gury (1940-
1962) e Era uma vez (1940-1954).
A partir de 1940, algumas editoras começaram a publicar romances
brasileiros em quadrinhos
12
. Temos o exemplo de O Guarani, de José de
Alencar, editado pelo Correio Universal em 1947, com o auxílio do ilustrador
F. Acquarone. Em 1951, o interesse das editoras e gráficas de São Paulo
voltou-se às revistas de terror, “aproveitando-se da censura ao gênero nos
EUA” (MOYA, 1996, p.192).
Como observamos, a criação de revistas e o investimento realizado pelas
editoras empregando desenhistas e roteiristas estiveram sempre relacionados ao
mercado internacional dos quadrinhos e sua influência no mercado brasileiro.
Assim, aconteceram com as adaptações das histórias da Walt Disney Produções:
A Abril, de Victor Civita, desde 1950, como na Itália, usou artistas
nativos para fazer a Disney. Destuet veio do estrangeiro treinar
12
Atualmente algumas editoras, a exemplo da Escala, têm publicado no formato de quadrinhos alguns
clássicos da literatura brasileira, para serem trabalhados como livros paradidáticos.
49
Álvaro de Moya, J. Batista Queiroz. Depois Kato, Primaggio, Igayara
e os escritores Cláudio de Souza e Alberto Maduar. A tradição
continua até hoje. (MOYA, 1996, p.193).
Embora os quadrinhos brasileiros ainda não tivessem tanta importância e
status como os quadrinhos estrangeiros, principalmente os americanos, é nosso
o legado da Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, que se
fundamentou na necessidade de se criar um espaço para debates e exposição de
trabalhos do mundo inteiro, com o intuito de valorizar a “literatura em
estampas” diante de problemas causados pela campanha antiquadrinhos,
realizada pelo Senado dos EUA que associou o crescimento da delinqüência
juvenil entre adolescentes à leitura de gibis.
Como a relação dos quadrinhos com o preconceito e a censura vem de
longa data, é no auge dessas discussões que um grupo de jovens artistas resolve
organizar em 1951, na cidade de São Paulo, a Primeira Exposição Internacional
de Histórias em Quadrinhos, em defesa de seus trabalhos e da liberdade de
expressão artística. A esse evento estão vinculadas análises e comparações de
histórias, como também debates sobre técnicas, estética, comunicação de massa
e o problema da censura. Além disso, “a exposição também foi um espaço de
reivindicação para aquela geração de profissionais que, em sua maioria,
ganhava a vida traduzindo e adaptando material estrangeiro.” (MOYA, 1996,
p.58). Portanto, através dessa exposição, os artistas organizadores passaram
também a criticar as editoras que não investiam o suficiente no artista nacional,
sendo considerados, geralmente, como tradutores e não como artistas. A
reivindicação dos seus direitos e a necessidade de valorizar mais o trabalho dos
ilustradores brasileiros custou muito caro aos artistas
13
. É como endossa Feijó
(1997, p.58):
Se por um lado Álvaro de Moya, Jaime Cortez e seus corajosos
companheiros acabaram acusados de comunistas pelos donos de
editoras que não gostaram de ser criticados por não apoiarem o
desenvolvimento de uma indústria de quadrinhos que fosse realmente
brasileira, por outro lado foram acusados de representantes do
imperialismo cultural norte-americano pelos intelectuais que eram
contra os gibis.
13
Segundo o próprio Moya (1996, p.167), todos os profissionais envolvidos nessa exposição perderam o emprego, indo
para outras áreas como TV, imprensa, gráficas, editoras e publicidade.
50
E, apesar dessas atribulações, com o tempo, a perseguição contra os
quadrinhos minimizou
14
e o Brasil finalmente ganhou uma “indústria”
direcionada à produção de quadrinhos. Foi justamente em 1959, que os gérmens
dessa “indústria” começaram a se constituir. É nessa época que artistas se
reúnem para formar uma gráfica só com desenhistas brasileiros. A gráfica foi
batizada com o nome de Continental, depois foi modificada para Outubro e por
fim tornou-se Gep, publicando material brasileiro como Capitão 7, Contos de
Terror, Histórias Macabras, Combate, etc. Maurício de Sousa também
participou desse projeto lançando o seu primeiro gibi: Bidu (1960), mas sem
sucesso. Tentando inserir-se no mercado, criou, então, “um sistema de
distribuição, que tentou impor não só suas criações, mas também as de Colin,
Delphin, Ziraldo. Parou. Ficou só com as suas e construiu um mini-império.”
(MOYA, 1996, p.194).
A construção desse mini-império de Maurício deve-se ao trabalho
artístico, à comercialização autorizada e também à sorte, tendo em vista que as
suas primeiras personagens não afetavam o contexto sócio-histórico da época.
O que não aconteceu, por exemplo, com Ziraldo e Henfil.
Na mesma época em que a personagem Bidu foi apresentada ao público
leitor, Ziraldo lançava “a mais brasileira das nossas séries: A Turma do Pererê,
publicada originalmente de 1960 a 1964.” (Feijó, 1997, p.62). Como A Turma
do Pererê foi criada com o propósito de nacionalizar as histórias em quadrinhos
brasileiras, atendendo a uma estratégia de marketing da editora O Cruzeiro, iria
concorrer com os quadrinhos importados dos EUA. E, para isso acontecer, o
governo da época deveria investir nesse mercado, apoiando a produção
brasileira. Porém, o contexto social era de radicalismo político. Resultado:
após o golpe militar não haveria condições de nacionalizar os quadrinhos e a
revista A Turma do Pererê foi cancelada, porque sua circulação no mercado
custava muito caro e enfrentava a concorrência desleal do comércio das revistas
estrangeiras, aqui no Brasil. Particularmente, no caso de Henfil, seu trabalho
14
Com o advento do rock in roll a campanha antiquadrinhos arranja um outro objeto para direcionar as suas ações. Essa
nova manifestação cultural passa a ser rotulada negativamente, porque influenciava o comportamento dos jovens.
51
foi censurado pelo contexto da época, porque os seus heróis criticavam a
violência do regime militar instaurado em 1964.
Diferentemente de Ziraldo e Henfil, Maurício de Sousa teve a liberdade
de continuar o seu trabalho e investir na comercialização de suas personagens,
uma vez que não enfrentava a censura e tinha como divulgador inicial de seu
trabalho os jornais. Com o tempo, tornou-se mais experiente e com mais
contatos comerciais, então começou a publicar as suas revistas, tornando-se a
chave da porta de entrada ao mercado dos comics brasileiros.
O universo de A Turma da Mônica começou a ser criado no início dos
anos 60, quando Maurício de Sousa tentou realizar um projeto seu, dentro do
mercado de histórias em quadrinhos que, nessa época, estava abrindo espaço
para os profissionais brasileiros, dando-lhes mais crédito e apoio.
Apesar de nenhuma personagem brasileira de histórias em quadrinhos
permanecer durante muito tempo na mídia, o retorno financeiro ser mínimo,
tendo em vista a concorrência das histórias em quadrinhos estrangeiras, que
tinham custo bem menor do que as brasileiras, Maurício de Souza enfrentou
todos os obstáculos e logo arranjou um meio de comercializar o produto de seu
trabalho.
Suas primeiras histórias foram impressas em jornais, sob a forma de
tiras. E, como precisava aumentar o lucro, montou um sistema de redistribuição
das tiras, através da adaptação do sistema dos syndicates. Ultrapassados os
principais desafios (descrédito de uma personagem de quadrinhos nacional e
problemas de manutenção de sua produção), Maurício de Sousa começou a
investir nos seus projetos com base no conhecimento de fatores determinantes
da comercialização dessas histórias. Desse modo, passou a pesquisar a
tendência do jornal, influenciando a sua criação. É como salienta em suas
crônicas:
Para jornais nacionalistas, eu tinha que apresentar meu material
genuinamente nacional, totalmente verde-amarelo, tão bom ou
melhor do que o material estrangeiro. Para jornais de tendências
mais conservadoras ou de direita, eu tinha que me apresentar como
autor de histórias tão boas e nos moldes das histórias norte-
americanas. E assim ia conseguindo, aos poucos, quebrar as barreiras
52
e penetrar nos preciosos espaços dos jornais. (MAURÍCIO DE
SOUSA, 1999, p.13).
Abrindo espaço para seu trabalho, distribuindo as tiras pelos principais
jornais de São Paulo, a sua produção começa a se firmar, ultrapassando os
limites estaduais: a partir da propaganda de suas histórias, a Tribuna da
Imprensa (RJ) solicita a sua participação.
Sendo as suas histórias apreciadas tanto pelo público consumidor como
também pelos donos dos jornais, não havia mais problema de mercado. No
entanto, surgiram problemas no tocante à produção das histórias, pois muitos
eram os pedidos e o autor de A Turma da Mônica não dava conta de tanto
trabalho. Foi a partir daí que se montou uma equipe de desenhistas e roteiristas,
treinados pelo próprio Maurício de Sousa, para agilizar a produção – o que
ocasionou a expansão nacional de sua obra. Após dez anos, as personagens
criadas tornaram-se conhecidas em todo o país, abrindo caminho para as
revistas, a partir da década de 70; os desenhos animados, nos anos 80 e os
parques temáticos, que foram implantados nos meados da década de 90.
Como se vê, o merchandise dessas histórias em quadrinhos se expandiu
por vários setores, transformando o autor em empresário. Há alguns anos estas
HQs estão vinculadas a produtos como alimento (salsichas, frutas, iogurte,
biscoito, extrato de tomate, etc.), roupas infantis, jogos, brinquedos, álbuns,
papéis de presente, estojos, mealheiros, mochilas escolares, cartões, guarda-
chuvas infantis, etc., produtos comercializados, em grande maioria, pelas
crianças. Devido a essa propaganda e, mais especificamente, às revistinhas e
aos desenhos consagrados pelo público brasileiro, torna-se internacional –
desejo realizado por Maurício de Sousa e sua equipe.
Foi através do intermédio do presidente e fundador da Editora Abril,
Victor Civita, que Maurício de Sousa pôde exportar as traquinagens e peraltices
de suas personagens. Após contatos na Europa, as portas estavam abertas para
suas HQs. A responsável por tudo isso foi a Editora Ehapa Verlag, da
Alemanha, que expandiria o novo produto para a grande maioria dos países
europeus. Nascia, então, a revista Fratz und Freunde (Cebolinha e seus
amigos), que foi editada também em sueco, filandês, inglês e norueguês. As
53
revistinhas foram um sucesso, mas um sucesso que durou pouco (4 anos), pois
havia grupos multinacionais entrando no mercado, cujas influências políticas
retiraram das bancas as revistas de Fratz und Freunde, como assevera Maurício
de Sousa (2000, p.56-57):
Em passagem pela Europa rumo ao Congresso de Histórias em
Quadrinhos De Lucca, na Itália, procurei minhas revistas nas bancas
do aeroporto de Frankfurt e não encontrei. Procurei em outras bancas
e nada. Estranhei bastante, fui para a Itália e na volta, num
quiosque na Suíça, recebi uma informação preocupante: o jornaleiro
me disse que tinha “ordens” para, assim que recebesse as revistas,
escondê-las sob os jornais. Depois deveria devolvê-las como encalhe
(não vendidas).
............................................................................................
Minhas revistas estavam atrapalhando a “invasão japonesa”, ou seja,
publicações que davam apoio aos desenhos animados nipônicos
(...).Fora isso, outro grupo multinacional se preocupava com nossa
presença. Representantes dessa empresa chamaram nossos editores e
ofereceram-lhes a representação européia de seus produtos. Com
tudo o que tinham para ofertar junto: filmes, revistas, livros,
merchandising.
............................................................................................
Desde que não houvesse concorrente por perto (eu).
Desse modo, acaba, nos fins dos anos 70 e/ou início dos anos 80, a
participação internacional de A Turma da Mônica. Como aqui no Brasil não
havia uma empresa forte, relacionada aos quadrinhos, que pudesse investir no
mercado internacional e competir em condições igualitárias com as empresas
japonesas e americanas, Maurício de Sousa é impelido a desistir de sua
representação internacional e volta ao seu país de origem a fim de preparar os
seus estúdios para a competição mercadológica. Atualmente, seus contatos
internacionais foram restabelecidos e as suas personagens voltaram ao mercado
europeu.
A maior parte do sucesso de A Turma da Mônica é conseqüência das
influências que Maurício de Sousa recebeu quando criança: “a turma da Mônica
começou a nascer muito antes de se mostrar nas páginas dos jornais. Penso que
o ‘toque’ da vida veio com a primeira revista de quadrinhos que me caiu às
mãos” – assim começa o relato de Maurício de Sousa (2000, p.31) ao escrever a
54
crônica O que estava no gibi (I), fazendo-nos afirmar que seu gosto pelo
desenho além de ser inato, foi estimulado pelas leituras das revistas em
quadrinhos de aventuras e de humor.
Tendo sido alfabetizado lendo os quadrinhos, ampliou o gosto pela
leitura colecionando o Globo Juvenil (tablóide) e depois o Gibi. Por meio
dessas publicações é que ele construiu a sua base artística para no futuro criar a
sua turminha. Não havia, para ele, uma personagem melhor do que a outra,
todas tinham a sua importância e singularidade.
Recebeu, pois, influências de autores estrangeiros que faziam sucesso na
época, a exemplo de O Príncipe Valente (Prince Valiant), de Hal Foster; Jim
Gordon (Buz Sawyer) e o Capitão César (Captain Easy), de Roy Crayne; Flash
Gordon e Jim das Selvas (Jungle Jin), de Alex Raymond e O Espírito (The
Spirit), de Will Einer.
O gosto pela leitura (não só de quadrinhos) veio entrelaçado ao gosto
pelo desenho. Desde a mais tenra idade, o autor rabiscava o papel. E de tanto
rabiscar, começa a descobrir técnicas (a princípio, intuitivamente, depois por
meio de estudo) e a adaptá-las e melhorá-las, até se tornar profissional. A sua
experiência como repórter policial, na Folha da Manhã (atual Folha de São
Paulo), também fez com que adquirisse técnicas para escrever uma narrativa
concisa e objetiva – o que veio facilitar a criação de histórias em quadrinhos,
porém de forma não muito rígida.
Sua primeira personagem profissional (já havia criado outras personagens
quando criança) foi o cãozinho Bidu. Depois vieram Franjinha, Cebolinha,
Cascão, Mônica, Magali, Maria Cebolinha, Marina, Chico Bento, Penadinho,
Papa-Capim, Piteco, Tina, Pipa, Rolo, Astronauta, Anjinho, Horácio, elefante
Jotalhão, Nimbus, Do Contra e vários outros.
Muitas das personagens foram inspiradas em figuras de pessoas e de
animais que fizeram parte da história de vida de Maurício de Sousa. Assim,
Bidu foi inspirado em seu cachorro Cuíca; Cebolinha a partir da figura de um
menino de cabelo espetado da vizinhança, que tinha dislexia; Cascão na figura
de um garoto que só andava sujo (decorrente das brincadeiras de rua); Mônica,
Magali, Marina e Maria Cebolinha foram inspiradas nas próprias filhas do
55
autor; Chico Bento em um agricultor; Tina numa amiga de colégio; Rolo
baseado em seu irmão; Do Contra e Nimbus nos seus filhos. Os nomes das
personagens também têm relação com os ambientes e as pessoas com quem
Maurício de Sousa mantinha contato, como também com as características
físicas atribuídas a cada uma delas.
Conforme Maurício de Sousa (2000, p.174), a criação dessas personagens
segue uma linha de trabalho de pesquisa e enriquecimento constante para que
continuem dinâmicos e atuantes, vivenciando situações semelhantes às dos
leitores infantis:
Guardo, através de toda a minha vida, os resíduos doces e saudáveis
da infância cercada de atenções e carinho. E, quando resolvi contar
histórias para crianças, tentei passar esses valores. (p.59).
Meus primeiros personagens nasceram de observações que eu fazia,
de tudo e de todos que viviam, andavam, pulavam, me rodeavam. O
Bidu, por exemplo, é muito do que foi meu cachorrinho Cuíca,
companheiro de infância. (p.158).
A Turma da Mônica e as novas personagens criadas traduzem as
inquietações e expectativas de crianças, por meio dos textos produzidos. Todo
trabalho é monitorizado por ele, que avalia o material, fazendo alguns ajustes
quando necessário e aprovando o roteiro (ou não) para a publicação. É
inspirando-se na própria vida que os roteiristas, orientados por Maurício de
Sousa, constroem as histórias.
Para Maurício de Sousa não existe personagem de maior ou menor valor.
Todas são importantes, pois participam de sua história, de sua vida. São como
seus filhos. Às vezes são projetados naqueles que lhe são conhecidos ou
bastante próximos (filhos e amigos), outras vezes são reflexo daquilo que o
autor um dia foi – uma criança alegre, versátil e cheia de sonhos a realizar.
Entre esses muitos sonhos, vamos encontrar A Turma da Mônica
abraçando projetos sociais, ao participar das campanhas: Educação no trânsito
não tem idade Pare de fumar perto de mim; Pornografia infantil, não (campanha
pública veiculada pela internet); Segurança no trânsito; carinho por você; Pare,
olhe, passe e Campanha coração bate feliz. Todos esses projetos dirigidos
56
principalmente ao público infantil, tratam de direitos e deveres que devem ser
cumpridos, a fim de valorizar a vida e o respeito entre os indivíduos. Assim, a
Maurício de Sousa produções vêm desenvolvendo programas institucionais
voltados para a comunidade há mais de uma década, por meio do Instituto
Cultural Maurício de Sousa, que pretende uma participação mais efetiva e
sistemática na execução de projetos de ação social que apóiam programas de
saúde, educação, meio ambiente e cultura.
Há um outro projeto, intitulado História em Quadrões que foi bastante
divulgado pela Maurício de Sousa produções. A idéia de retomar ícones das
artes plásticas e trazê-los para o mundo de suas HQs surgiu depois que o
sujeito-autor Maurício de Sousa visitou o Museu de Arte em São Paulo
(MASP), no final dos anos 80 e o Louvre, na França, onde observou crianças
copiando a Mona Lisa. Desde então, passou a pesquisar a obra de vários
pintores, a fim de desenvolver releituras – paródias – conforme comentário do
próprio autor
15
, utilizando-se de seus personagens para figurar o contexto das
artes plásticas.
Desse modo, passou doze anos pesquisando estilos, detalhes, molduras e
técnicas utilizadas por pintores, para se aproximar ao máximo do texto original.
As primeiras telas pintadas, a princípio, ficaram expostas no estúdio do
cartunista e viraram atração para os visitantes – o que resultou na idéia de fazer
uma exposição e um livro, destinado a crianças entre seis e doze anos, com os
quarenta e sete quadros baseados nas obras de Leonardo da Vinci, Édoard
Manet, Miquelângelo, Van Gogh, Pedro Américo, Cândido Portinari, entre
outros.
15
SOUSA, Maurício de. Apresentação. In: História em quadrões – pinturas de Maurício de Sousa. São Paulo:
Globo, 2002.
57
Maurício de Sousa e a releitura da tela
“Independência ou Morte!”, de Pedro Américo.
A exposição e o lançamento do livro História em Quadrões aconteceram
na Pinacoteca de São Paulo, no dia seis de outubro de 2001, concomitante à
exposição das esculturas de Rodin. Após essa temporada, os “quadrões”
seguiram para outras capitais brasileiras – Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba e
Brasília, ultrapassando a marca de quinhentos mil visitantes – como também
para a Europa e nos EUA.
No final do ano de 2006, a Maurício de Sousa produções finaliza o
contrato com a Editora Globo, após décadas a ela associada, passando a
publicar, a partir de janeiro de 2007, as suas historinhas na Editora Panini,
prosseguindo o seu trabalho.
Por conta da memória de suas HQs, o autor Maurício de Sousa foi tema
de enredo da escola de samba paulista Unidos do Perouche, no Carnaval de
2007: “Com Maurício de Sousa, a Unidos do Perouche abre-alas, abre-
58
livros, abre-mentes e faz sonhar." Este tema traduz toda a trajetória de vida
dedicada à literatura em estampas, às fantasias e ao universo infantil – que
diverte, instrui e tematiza práticas sociais presentes em nosso contexto. Assim,
como diz um trecho da letra do samba:
Sonhador, com seus personagens tão brilhantes/ navegador, das
letras nos conduz a viagens fascinantes/ desenhando sonhos e as
nossas realidades/ hoje nós contamos sua história, nesta linda
trajetória, alegria pede bis/ vai encantar o mundo inteiro/ coração
altaneiro do meu país/ A Perouche vem aí/ abram ala pra esta mente
abençoada/ que faz da folha em branco/ um universo colorido/ e
deixa a passarela iluminada.
Portanto, a história de A Turma da Mônica fez memória. Uma memória
que a cada novo acontecimento atualiza valores sócio-culturais. É, pois, sobre
ela que vamos tratar em seguida.
59
CAPÍTULO II
DA MEMÓRIA SOCIAL À MEMÓRIA DISCURSIVA:
A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS E DOS SENTIDOS
Enxergar o sujeito pelas lentes
da Análise do Dscurso é colocá-lo
comprometido com seu contexto
sócio histórico, onde sua linguage é
produzida sob condições ideológicas
determinadas. (...) Assim, pensar
numa identificação do sujeito é
pensar numa identidade resultante
de processos historicamente
determinados por FD. A noção de
identidade do sujeito surge,
então, com a noção de interseção
ideológica representada na
linguagem pela FD a que o sujeito
encontra-se constituído, afetado.
Ivone Lucena
2.1 A função enunciativa e o arquivo
Ao tratar sobre a Arqueologia do Saber, Foucault (2007a) traça
referências e formula conceitos a respeito da continuidade, da ruptura, dos
limites e da transformação da unidade do discurso - o enunciado - com base na
história dos dizeres, e a sua circulação conforme as coerções sócio-históricas
da Ordem do discurso (1999) e das micro-relações de poder (2007b) que
constituem as práticas discursivas. Por estas temáticas estarem articuladas,
subsidiarão a base de reflexão sobre a relação do discurso com a história aqui
desenvolvida.
60
Para Foucault (2007a), é o enunciado a unidade elementar do discurso,
que tem como função tornar uma frase, uma proposição ou um ato de fala em
um dizer “produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por
regras sócio-históricas”. (GREGOLIN, 2004, p.89). O enunciado faz parte do
discurso e sua análise vai além do estruturalismo lingüístico: sujeito, história e
a língua delimitam a materialização e o modo de ser do enunciado.
Assim, as formações das modalidades enunciativas traduzem a relação
estabelecida entre o sujeito, o lugar social que ocupa, a legitimação dos dizeres
e o contexto no qual se insere e nele se posiciona. Por isso, Foucault (2007a)
declara que é necessário identificar quem é esse sujeito que fala, de que lugar
institucional faz parte, como pode garantir que seu discurso é verdadeiro, para
frisar justamente que o tempo e lugar, o discurso proferido e, principalmente, o
modo como esse discurso foi veiculado é que vai definir a dispersão do sujeito,
assim como a dos sentidos. Isto ocorre porque os conhecimentos produzidos
pelos sujeitos não seguem uma regularidade: eles são descontínuos, cheios de
fissuras e meandros decorrentes de um conjunto de regras próprias das práticas
discursivas, determinadas pelo contexto histórico ao qual estão inseridos.
Assim, todo enunciado se institui a partir de determinadas condições que
o singularizam, tornando-o raro, como também atestam a sua repetição,
delimitando seus limites e sua aparição. Este antagonismo – raridade e
repetição – é considerado como elemento dialético constitutivo do processo de
formulação dos enunciados.
A lei de raridade que rege os enunciados, segundo Foucault (2007a),
parte do princípio de que mesmo havendo inúmeras possibilidades de
formulação, nem tudo é sempre dito por qualquer sujeito; além disso, os
enunciados possuem um sistema de limite de presença, ou seja, dentro das
opções de formulação, apenas dada estrutura lingüística é enunciada.
Já a materialidade repetível do enunciado corresponde aos fenômenos de
recorrência que são “um campo de elementos antecedentes em relação aos quais
se situa, mas que tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações
novas.” (Idem, p. 141). Todo enunciado está situado em um lugar e um tempo,
inserido em um gênero textual, alicerçado a determinadas instituições que
61
fomentam os discursos – jurídico, médico, religioso, pedagógico, etc. Por esses
elementos fazerem parte de um saber partilhado, os enunciados repetem-se e se
articulam a outros enunciados, com os quais estabelece limites: entre o que não
está dito e o que não pode ser dito.
Desse modo, tanto a raridade quanto a materialidade dos enunciados
estão relacionadas ao acontecimento discursivo, já que eles são produzidos em
determinadas condições, as quais os singularizam, e à formação discursiva,
pois, a partir dela, os enunciados se articulam, promovendo a dispersão e a
regularidade dos sentidos. É como explicita Foucault (2007a, p. 43):
se puder descrever, entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos,
os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder
definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se
trata de uma formação discursiva. (...) Chamaremos de regras de
formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa
repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas
temáticas). As regras de formação são condições de existência (mas
também de coexistência, de manutenção, de modificação e de
desaparecimento) em uma dada repartição discursiva.
Assim, os discursos se apresentam como elementos constituintes de
formações discursivas, configurando-se materialmente conforme as regras de
suas condições de produção. Por isso Foucault (1999) traz a concepção de
discurso que se articula com a noção de poder e a coerção sócio-institucional,
apresentando questões baseadas naquilo que o faz estar inserido na ordem das
leis, possuir transitoriedade e veicular poder e perigo ao ser utilizado. Por isso
declara que:
em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada
temível materialidade. (p.8-9).
Então, a formulação do discurso e sua veiculação estão associadas a
determinadas regras que o legitimam, ou seja, não é permitido dizer certas
coisas que estejam fora dessas normas. Sendo assim, a própria sociedade
62
delimita as condições possíveis de o discurso circular, autorizando a sua
legitimidade, como também faz com que alguns dizeres sejam proibidos.
Refletindo sobre essa delimitação do dizer, Foucault estabelece alguns
procedimentos externos e internos que controlam a atividade discursiva.
Dentre os fatores de ordem externa, o autor apresenta a interdição, a
loucura e a consciência da verdade como elementos que proíbem certos sujeitos
de produzirem determinados discursos.
A interdição, que é a exclusão mais concreta do sujeito, por ser bastante
usual e evidente nas relações humanas, marca os papéis sociais justamente por
definir quem diz e o que pode ser dito em dadas circunstâncias. Desse modo, a
interdição na sociedade passa a representar uma hierarquia sócio-cultural,
estabelecendo direitos exclusivos àqueles que detêm o poder, pois “o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”
(FOUCAULT, 1999, p.10).
Já o elemento loucura traz um dado novo: o discurso do louco circula
pela sociedade, porém não se constitui dentro dos valores e posicionamentos
que a sociedade prega como verdadeiros e corretos. Por isso, ao louco é
“permitido” dizer o que pensa (mesmo porque é muito difícil calá-lo), mas não
é permitido à sociedade aceitar esse dizer como uma verdade, por não está
inserido na ordem do discurso autorizado. Também, aqui, são considerados
loucos os sujeitos que transgridem as normas, assim como os doentes mentais:
eles se apresentam como contestadores e revolucionários que desejam construir
uma nova ordem das coisas. Por isso, há tanta resistência em se aceitar o não-
padrão, o diferente, o novo, tendo em vista que a palavra do louco é concebida
como desprovida de verdade.
Foucault (1999) nos explica que a força da verdade está associada ao
contexto sócio-histórico e, que, por isso, os dizeres que ora são tidos como
verdadeiros, com o passar do tempo assumem uma conotação falsa, errada, ou
vice-versa, pois a apreciação de uma verdade é constituída na relação espaço-
tempo, por isso, o fator consciência da verdade aparece dentro de um sistema
de exclusão histórica. Além disso, a verdade:
63
apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada
e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a
pedagogia. (...) Mas ela é também reconduzida, mais profundamente
sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade,
como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.
(IFOUCAULT, 1999, p. 17).
O discurso para se tornar verdadeiro precisa, então, inscrever-se nas
condições de produção e valoração de uma sociedade, numa determinada época
– isto é, precisa estar de acordo com a aplicação e valoração do saber – algo
determinado pela história e pela própria estrutura social que sustenta o
desenvolvimento técnico-científico.
Estabelecendo um diálogo com as reflexões de Foucault (1999), Ruiz
(2004), ao se reportar à relação existente entre verdade e vontade de verdade,
afirma que:
Devemos fazer uma distinção pertinente entre a verdade e a vontade
de verdade. A primeira aparece perante nós como algo diáfano,
inquestionável, fecundo e sempre com caráter universal. Ela não faz
concessões espaço-temporais, tem pretensões de universalidade,
legitimando, desse modo, as pretensões universalistas da vontade de
verdade, a qual é mais suspicaz e se introduz imperceptivelmente nos
interstícios da própria verdade. Ela se esconde atrás da
argumentação, se dilui nos significados, se inocula entre os sentidos.
No entanto é a vontade de verdade que constitui a verdade. (p.28).
Isto significa dizer que a legitimação de um discurso passa pelo clivo da
vontade de verdade, a qual constitui “as verdades” como algo inquestionável,
imutável e generalizado. E mesmo que a verdade imprima essa idéia sobre sua
constituição, ela só existe porque foi elaborada pelo “interesse da pessoa, da
classe, da instituição, da sociedade” – o que a faz ser respaldada pela história e
pela cultura de um povo, pois se inscreve num certo tempo e lugar,
pertencendo, desse modo, à memória social desse povo, já que se materializa
em práticas sócio-discursivas.
Para Foucault (1999), tanto na interdição quanto na loucura, os discursos
que são silenciados buscam por uma verdade, o que faz com que os
procedimentos de exclusão sejam conduzidos pela “vontade de verdade”, de um
modo geral. Esta mesma “vontade de verdade” se tivesse voz, questionaria as
64
convenções, os valores sociais e o próprio discurso tomado como verdadeiro, já
que ele não reconhece “a vontade de verdade que o atravessa”, pois a verdade
que ele sustenta se respalda no desejo de saber e no poder que esse mesmo
saber constrói. Desse modo, as verdades formuladas e convencionadas são
formas de exclusão de um outro discurso, que poderia questioná-las,
formulando outras verdades.
Além da vontade de verdade conduzida pelos elementos externos, vamos
encontrar também, segundo Foucault (1999, p.21), procedimentos internos que
delimitam, classificam e ordenam os discursos: “são os discursos eles mesmos
que exercem seu próprio controle”, ou seja, a própria formulação do dizer vai
identificar os discursos como fruto de um acontecimento ou de um acaso.
Assim, por meio da retomada dos dizeres é possível estabelecer diferenças no
discurso a partir de um desnivelamento originado entre o dizer que se “apaga” e
o dizer que sugere e sustenta novos atos de discursivização.
Esse desnivelamento dos dizeres vai separar grupos de discursos de
acordo com a sua constituição. Assim, são discursos fundadores (frutos do
acaso) aqueles que estabelecem uma verdade e essa verdade é reproduzida de
várias formas – ou seja, temos um dizer estabelecido por um autor, retomado
por outros sujeitos, que veiculam o seu dizer, a partir de um acontecimento
qualquer. Assim, é criado o comentário, o qual:
conjura o acaso do discurso fazendo-lhe a sua parte: permite-lhe
dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto
mesmo seja dito e de certo modo realizado. (...) O novo não está no
que é dito, mas no acontecimento de sua volta. (FOUCAULT, 1999,
p.25-26).
Ainda tratando dessa questão, o autor afirma que a organização das
disciplinas (tomadas aqui como ciências), de um modo geral, não se assemelha
ao princípio do comentário nem do autor, porque as disciplinas se definem a
partir de determinados objetos, técnicas e métodos, além de estarem sempre
formulando proposições novas, porque:
tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de
quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua
65
validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor.
(FOUCAULT, 1999, p.30).
Porém, são as disciplinas que instituem o controle da formulação
discursiva, por meio de limites demarcados por regras do dizer e pelas
proposições verdadeiras que elas estabelecem. Portanto, se as disciplinas são
responsáveis pela construção de proposições a partir de um referencial teórico,
os discursos, para assumirem tal verdade, precisam estar de acordo com tudo
aquilo que elas propõem
16
.
Há mais um grupo de procedimentos que controlam a formulação e
veiculação dos discursos: são as condições de seu funcionamento. Para
Foucault (1999), só aqueles que têm acesso a certos dizeres e saibam utilizá-los
estarão dentro da ordem do discurso. Isto acontece porque:
nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e
penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e
diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os
ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito
que fala. (p.37).
Assim, o acesso a um determinado tipo de discurso está restrito a certas
exigências que sua própria ordem estabelece – o que envolve questões sociais,
culturais e ideológicas. Como os sujeitos ocupam espaços funcionais diferentes
na sociedade, que os identificam, cada qual terá acesso diferenciado ao
discurso, devido a sua própria condição de exclusão social. O que vai garantir a
inserção de um sujeito nas regras do dizer é justamente o ritual, como postula
Foucault, pois ele determina papéis preestabelecidos, que definem formas de
comportamento, vocabulário, circunstâncias, formas de persuasão, etc., que
devem ser assumidos e praticados sempre que um discurso específico for
proferido – já que ele está associado à prática social e à instituição que as
origina.
Então, se o discurso é inerente a uma prática social e seu uso e
funcionamento estão relacionados ao modo como o sujeito se apropria desse
mesmo discurso, temos aqui demarcadas as oposições sociais, que trazem
16
Esta condição relaciona-se ao que Foucault diz sobre a vontade de verdade associada à forma como o saber é
aplicado e valorizado numa sociedade.
66
consigo referenciais de exclusão do dizer, uma vez que o discurso é um
instrumento político que distribui diferentemente os saberes e seus respectivos
poderes: nem todos terão acesso ao mesmo conhecimento, muito menos ao
mesmo exercício do poder.
Diante dessas considerações, Foucault (1999) diz que para se analisar o
discurso e sua relação com a verdade e seu acontecimento é necessário observar
alguns princípios que nortearão a compreensão do dizer. São eles: 1. Princípio
de inversão: o que nos leva a perceber que por trás da origem do dizer há “um
jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso” (p.52); 2.
Princípio de descontinuidade: mostra-nos que os discursos devem ser
concebidos como uma prática descontínua, que ora se somam, ora se ignoram;
3. Princípio da especificidade: revela-nos que o discurso não possui
significação prévia, já que ele é “uma violência que fazemos às coisas” (p.53);
4. Princípio da exterioridade: apresenta-nos o sentido do dizer inerente ao seu
acontecimento e a partir do próprio discurso, delimitando suas fronteiras.
Esses princípios nos conduzem a uma reflexão sobre o que é o discurso e
como ele funciona. Sendo assim, o discurso é rarefeito porque, mesmo tendo
uma marca de autoria e fazendo parte de uma vontade de verdade, ele se
transforma, modificando-se ao ser textualizado, ou seja, o sentido primeiro
recebe outras conotações e é usado em diferentes situações. Este dado resulta
em sua dispersão, a qual gera a descontinuidade, uma vez que todo dizer traduz
um valor e este reflete as lutas e conflitos sociais, por isso nem sempre os
discursos circulam no (com) mesmo sentido. Portanto, são específicos e
reguladores dos acontecimentos, pois o sujeito cogita sobre o mundo a partir de
suas condições sócio-históricas, gerando um saber a respeito dele que
estabelecerá determinados sentidos a serem veiculados nos discursos que,
diante das condições exteriores de seu acontecimento, será alterado à medida
que outros discursos fundadores são originados no tempo e conduzidos a uma
delimitação de novos sentidos, estruturação e funcionamento.
Cada enunciado vai ser regido por todas essas coerções e regras de
funcionamento, cuja legitimação também estará vinculada às relações de poder,
uma vez que o discurso manifestará reflexos das relações sociais.
67
Foucault (2007a), ao afirmar que em qualquer sociedade existem relações
de poder múltiplas atravessando o corpo social, explica ser o discurso o lugar
de exercício do poder, uma vez que não existe a possibilidade de o exercício do
poder ser excluído da prática discursiva: o que nos obriga a desempenhar certas
tarefas e “seguir” regras de convivência “em função dos discursos verdadeiros
que trazem consigo efeitos específicos de poder.” (FOUCAULT, 2007a, p.179).
Nesse sentido o poder é exercido por diferentes camadas sociais, em
qualquer tempo e espaço, articulando-se e transitando entre os sujeitos. Em seu
exercício, o sujeito ora desempenha papel de dominador, ora de dominado. Este
fato vem, portanto, caracterizar o exercício do poder como uma atitude
transitória, já que todo e qualquer sujeito estabelece e mantém uma relação de
poder com outros sujeitos com quem se relaciona – o sujeito ora vigia, ora é
vigiado.
A dominação aqui é, pois, concebida como uma dominação de múltiplas
formas, a qual pode ser exercida na sociedade, de modo variado, já que cada
sujeito ora manda, ora obedece, de acordo com os papéis que desempenha. Isto
ocorre porque os sujeitos não são detentores do poder, mas o efetuam em
micro-relações sociais, que os constituem.
Embora ocorra a impressão de que o poder é uma espécie de “objeto” que
utilizamos para vários fins, ele se constitui e se legitima de acordo com a
junção dos aspectos sociais, ideológicos, culturais e econômicos de cada
sociedade em que ele é exercido. Por isso ser considerado por Foucault dentro
de uma cadeia de relações: “na realidade, o poder é um feixe de relações, mais
ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos
coordenado.” (FOUCAULT, 2007b, p.248).
Essas relações piramidalizadas juntamente com as micro-relações sociais
vão definir o poder dentro do espaço circunscrito da jurisdição e do contrato,
tendo em vista que ele ocorre por meio tanto do aspecto repressivo quanto do
produtivo. Isto acontece porque o exercício do poder está vinculado às relações
mais ou menos organizadas de convivência social, que nem sempre obedecem às
normas sociais prescritas pelo Estado. Daí se pensar o poder não da forma que
é comumente concebido – idéia de força que pune, que proíbe – mas como
68
função social, cujo exercício é determinado pelas condições e pelo papel que
desempenham os sujeitos, por meio da autoridade coercitiva e legitimada, como
também por meio dos contratos sociais estabelecidos pelas ideologias, que
introduzem na memória coletiva as necessidades de se efetivarem as relações de
força produtiva. Por isso, “o que faz com que o poder se mantenha e que seja
aceito é simplesmente que ele não pesa só como força que diz não, mas que de
fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discursos.”
(FOUCAULT, 2007b, p.8).
Desse modo, a produção discursiva é regulada por uma ordem do
discurso, cujos enunciados passam a ser considerados finitos, limitados e úteis.
Por conta dessa regularidade característica de cada acontecimento discursivo,
Foucault (2007a) passa a explorar a positividade discursiva, ao fazer a
descrição dos enunciados.
Para ele “a positividade de um discurso - como o da história natural, da
economia política, ou da medicina clínica – caracteriza-lhe a unidade através
do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos.”
(FOUCAULT, 2007a, p.143). Ela é quem define os limites do dizer, porque
determina como
podem ser desenvolvidos identidades formais, continuidades
temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos. Assim a
positividade desempenha o papel do que se poderia chamar de um a
priori histórico. (FOUCAULT, 2007a, p.144).
Este a priori histórico é responsável pelos enunciados em sua dispersão,
uma vez que cada acontecimento discursivo tem uma história e um sentido
específico. Portanto, o a priori histórico é o conjunto das regras que
caracterizam uma prática discursiva em um determinado espaço e tempo, pois
está vinculado ao processo enunciativo.
69
Diante da articulação dos enunciados conforme a priori históricos,
Foucault percebe a necessidade de tratar as formações discursivas de um modo
mais complexo, daí afirmar que:
Ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história,
palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos
constituídos antes e em outro lugar, temos na densidade das práticas
discursivas sistemas que instauram os enunciados como
acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de
aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu
campo de utilização). São todos esses temas enunciados
(acontecimentos de um lado, coisas de ouro) que proponho chamar de
arquivo. (FOUCAULT, 2007a, p.146).
Para Foucault (2007a), o arquivo é o lugar onde os discursos são
descritos como práticas especificadas, cujas condições de produção fazem parte
de um a priori histórico que regulam as formações discursivas. Ou seja, existem
determinadas condições prévias que determinam a estruturação e o
funcionamento discursivo, através de sistemas que instauram os enunciados
como acontecimentos e coisas.
Portanto, operar com a positividade do discurso é inserir as práticas
discursivas em seus respectivos arquivos, pois:
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege
o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas
o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se
acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam,
tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao
simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem a figuras
distintas, se componham umas com as outras segundo relações
múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades
específicas. [...] É o que, na própria raiz do enunciado-
acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o
sistema de sua enunciabilidade. [...] É o que define o modo de
atualidade do enunciado-coisa: é o sistema de seu funcionamento.
[...] É o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os
especifica em sua duração própria. (FOUCAULT, 2007a, p.147).
Assim, a constituição dos arquivos discursivos está ligada ao processo
de enunciação dos discursos e ao modo de sua atualização – o que distingue,
especifica e determina cada discurso e seu tempo de circulação. Portanto, os
arquivos criam as regras que estabelecem tanto o surgimento dos enunciados, a
70
sua permanência e seu apagamento quanto os deslocamentos, retomadas,
polêmicas, contratos e conflitos que seus sentidos podem suscitar.
É através desse jogo de regras que os arquivos determinam, em relação
ao sujeito e a sua cultura, que elementos evocar de sua memória social e como
atualizá-lo, uma vez que tudo aquilo que é assimilado enquanto valor histórico
passa a ter uma dimensão social e de significação – o que resulta na ativação de
informações que serão reguladas conforme regras do dizer, estabelecendo,
assim, o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados
relacionado às práticas, representações e valores sociais.
2.2 A memória social e a memória discursiva: um a priori histórico na
constituição da identidade do sujeito
Continuando a tecer a teia sobre as relações enunciativas e o sujeito do
discurso, passaremos agora a tratar mais precisamente da relação que o sujeito
71
mantém com a memória social e a memória discursiva, alicerçando ao nosso
dizer vozes que, na dispersão desse novo acontecimento, inscrevem-se e nos
autorizam com elas dialogar.
As posições teóricas que abarcam os arquivos da Análise do Discurso
tomam a questão do descentramento do sujeito como ponto central na
constituição dos sentidos, uma vez que a prática discursiva é regida por um a
priori histórico, que ordena e legitima o que o sujeito pode dizer. Porém, cada
sujeito concebe a linguagem como algo individual, concebendo também a sua
consciência de modo idêntico, tendo em vista a crença de uma memória
individual, de um discurso original, singular, só seu.
O sujeito descentrado é interpelado pela ideologia, através do seu
discurso. Desse modo, o sentido dado às palavras pelo sujeito-falante passa a
ter um caráter material, visto que ele (o sentido) só existirá dentro de uma
formação discursiva, no processo discursivo, como afirma Pêcheux (1997,
p.161):
uma mesma palavra, uma mesma expressão e uma mesma proposição
podem receber sentidos diferentes – todos igualmente “evidentes”-
conforme se refiram a esta ou aquela formação discursiva, é porque –
vamos repetir – uma palavra, uma expressão ou uma proposição não
tem um sentido que lhe seria “próprio”, vinculado a sua literalidade.
Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva,
nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm
com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação
discursiva. (...) É necessário também admitir que palavras,
expressões e proposições literalmente diferentes podem, no interior
de uma formação discursiva dada, “ter o mesmo sentido”, o que (...)
representa, na verdade, a condição para que cada elemento (...) seja
dotado de sentido.
O autor ainda explica que é na formação discursiva que se constitui a
ilusão necessária de uma ‘intersubjetividade-falante’ e que essa
intersubjetividade ocorre por meio de dois esquecimentos inerentes ao discurso:
o esquecimento nº 2 e o esquecimento nº 1. O primeiro esquecimento,
denominado de nº 2, refere-se à enunciação. Através dela fazemos escolhas de
seqüências lingüísticas parafrásticas de uma formação discursiva dada, isto é,
quando falamos selecionamos certas estruturas e não outras para dizer o que
72
desejamos, “lembramos” de uma forma de dizer e “esquecemos” as outras que
não nos convém. Vale ressaltar que essa escolha depende do contexto
enunciativo e das posições que ocupam os sujeitos quando discursivizam.
Já o outro esquecimento refere-se ao caráter ideológico, pois cada um de
nós é concebido e inserido em uma formação discursiva, que por sua vez é
perpassada pela ideologia, a qual nos é apresentada de modo recalcado. Somos
afetados pela ideologia, mas não temos consciência desse processo.
Esquecemos que somos moldados e comandados pela ideologia e passamos a
crer na ilusão de sermos donos de nossos discursos e dos sentidos que deles
derivam - externos a qualquer formação discursiva. É por isso que os discursos
passam a ter um caráter contraditório, visto que ao mesmo tempo em que
pertence a um sujeito pertence também a outros sujeitos: o discurso de um
reproduz o discurso do outro, ou seja, cada um é o espelho dos outros
(PÊCHEUX, 1997, p.172).
Por nos considerarmos donos do nosso discurso, assumimos uma postura
individual-discursiva, por meio da qual advém a concepção de sujeito que o ser
humano possui: a interpelação ideológica permite que o indivíduo se considere
como um sujeito singular, dono de seu discurso e de seus atos, como também
garante que os sujeitos se reconheçam e se comportem como “bons sujeitos”.
Temos aqui o que a AD chama de ambigüidade constitutiva do sujeito,
cuja definição e lógica se originaram das reflexões feitas por Althusser a
respeito do modo como a ideologia se manifestava sob os sujeitos, como os
influenciava. Daí este teórico concluir que o sujeito é caracterizado
paradoxalmente, porque possui:
Uma subjetividade livre: um centro de iniciativas, autor e
responsável pelos seus atos; um ser submetido, sujeito a uma
autoridade superior, portanto desprovido de toda liberdade, salvo da
de aceitar livremente a sua submissão (Althusser, 1970, p.113).
Se o sujeito, na AD, é posição entre outras, à medida que se posiciona em
seu discurso, passa a subjetivar-se diante do contexto em que está inserido.
Mas essa subjetivação é regulada pela língua, levando ao equívoco da
impressão idealista da origem em si mesmo do sujeito:
73
A subjetivação é uma questão de qualidade, de natureza: não se é
mais ou menos sujeito, não se é pouco ou muito subjetivado. Não se
quantifica o assujeitamento. Com isto estou dizendo que quando se
afirma que o sujeito é assujeitado, não se está dizendo totalmente,
parcialmente, muito, pouco ou mais ou menos. O assujeitamento não
é quantificável. Ele diz respeito à natureza da subjetividade, à
qualificação do sujeito pela sua relação constitutiva com o
simbólico: se é sujeito pelo assujeitamento à língua, na história. Não
se pode dizer senão afetado pelo simbólico, pelo sistema
significante. Não há nem sentido nem sujeito se não houver
assujeitamento à língua. Em outras palavras, para dizer, o sujeito
submete-se à língua. Sem isto, não tem como subjetivar-se.
(ORLANDI, 2001, p.100).
A subjetividade é estruturada no acontecimento discursivo e regulada
pela língua. Nessa formulação o equívoco se instala e o sujeito se centraliza,
constituindo-se pela e na linguagem. A partir de uma dada posição-sujeito, a
subjetividade assume uma forma material específica, constituída pela
determinação histórica. Daí ser possível observar e analisar os sentidos, através
dos mecanismos e estratégias empregados pelas diversas práticas discursivas
para instituir e legitimar processos de subjetivação. O sentido das palavras e o
modo como elas são colocadas no discurso vão ser definidos pelo processo
discursivo, com base na formação discursiva em que esse discurso se insere e
em conformidade com a forma de organização dos dizeres.
Esta organização dos dizeres é apresentada por Foucault (1992) a partir
de uma nova função dada ao sujeito do discurso - a de autor. Foucault traça
referências e relações sobre o processo de autoria através do nome e da escrita
da obra, estabelecendo o paralelo entre a seleção e ordenação dos enunciados e
as características do sujeito-autor. Assim, o próprio termo – autor – sugere, por
um lado, o conhecimento de métodos e técnicas que validam o texto e
legitimam o sujeito enquanto escritor, e, por outro, a condição de reorientar um
campo epistemológico por meio de sua obra. Portanto, só existe autor quando
se sai do anonimato, porque se orientam os campos epistemológicos, porque se
cria um novo campo discursivo que modifica, que transforma radicalmente o
precedente. (FOUCAULT, 1992, p.87).
74
Por isso Foucault faculta ao nome de autor além das referências do nome
próprio, uma espécie de identidade daquele sujeito que escreveu a obra, já que
“o nome próprio e o nome do autor encontram-se situados entre os pólos da
descrição e da designação.” (FOUCAULT, 1992, p.42). O nome do autor
assegura a classificação da obra, a partir da seleção e organização de um
conjunto de textos relacionados entre si. Por ser a função-autor uma posição em
que ocorre o agrupamento e a unidade do discurso, a dimensão discursiva desse
sujeito também estará determinada pelo meio social e suas coerções, pois:
perseguir a subjetivação da pessoa, a interação da verdade e o poder
estimulam o surgimento de sujeitos autônimos. Ao pretender a
sujeição dos indivíduos, essa cumplicidade transforma-se numa
tecnologia de dominação que visa sujeição da pessoa através da
modelação de sua subjetividade. (RUIZ, 2004, p.31).
Se o sujeito se constitui pelo discurso, a posição-autoria só é validada
quando estiver associada ao sistema institucional que representa, às suas
respectivas formações discursivas; à diversidade de produção, estilo e gênero
que determina o exercício da autoria, no tempo e no espaço. Portanto, a função-
autor caracteriza “o modo de existência, de circulação e de funcionamento dos
discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 1992, p.46), o que se
constitui como um conjunto de regras que regula a ordem do discurso, uma vez
que:
A função-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que
encerra, determina, articula o universo dos discursos; não se exerce
uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em
todas as épocas e em todas as formas de civilização; não se define
pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas
através de uma série de operações específicas e complexas; não
reenvia pura simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar
a vários ‘eus’, em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes
diferentes de indivíduos podem ocupar. (FOUCAULT, 1992, p.56-
57
).
Por ser a produção de discursos legitimados pelo contexto histórico, a
função-autor está determinada igualmente pela posição que o sujeito ocupar no
meio social. Assim, a marca de autoria será fundada de acordo as condições
75
apresentadas acima, para poder circular na sociedade conforme status que a
própria cultura lhe conferir.
Diante dessas discussões, compreendemos que o sujeito é marcado pela
historicidade, pois incorpora vozes sociais diversas e que sua prática discursiva
estará veiculando verdades e valores pertencentes à determinada memória
social, as quais se manifestarão por meio de posições enunciativas que ocupa
em determinados contextos.
Logo, são as formações discursivas que determinam, numa conjuntura
sócio-histórica, o que deve e pode ser dito e como deve ser dito. O sujeito só
diz o que diz porque lhe são dadas as condições necessárias para produzir o seu
discurso. Isto quer dizer que o discurso do sujeito deriva de um conjunto de
discursos variados, já existentes e cristalizados na sociedade, cujas referências
fazem parte das ideologias que dominam àquele que fala. Além disso, seus
sentidos estão intrinsecamente ligados na relação que os textos mantêm com a
exterioridade, nas condições em que são produzidos, ou seja, atrelados à
legitimação de determinada ordem discursiva.
Para Orlandi (1999), as condições de produção dos discursos são o
contexto imediato da enunciação. É esse contexto que envolve os sujeitos, a
situação e a memória discursiva desses sujeitos numa relação dialógica com a
realidade circundante, com a história. Por isso, é a memória discursiva, o pré-
construído, que viabiliza os sentidos, já que é através desse saber discursivo
que o sujeito significa as suas palavras, por filiação a redes de memória, ou
seja,
O interdiscurso é o conjunto de dizeres já-ditos e esquecidos que
determinam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do
dizer. Para que nossas palavras tenham sentido é preciso que já
tenham sentido. Esse efeito é produzido pela relação com o
interdiscurso, a memória discursiva: algo fala antes, em outro lugar,
independentemente. (ORLANDI, 2001, p.59)
O interdiscurso, portanto, é definido como um conjunto de formulações
discursivas já existentes e esquecidas; formulações recorrentes que pertencem a
discursos anteriores, determinantes do que dizemos, pois é através da
76
interdiscursividade que as formações discursivas são compostas e conduzidas.
Isto acontece porque o discurso remete sempre a outros discursos, ele se
fundamenta na relação com outros dizeres, incorporando elementos outros,
redefinindo-os, repetindo-os e/ou modificando-os. O interdiscurso é estruturado
pelo esquecimento, o qual faz parte da constituição dos sujeitos e dos sentidos,
pois, para que o discurso seja dado e entendido como meu, é preciso que o que
foi dito por alguém, em uma certa situação, se apague da sua memória e passe a
existir no complexo lingüístico, sem determinação de autoria – o que vem
colaborar com a assimilação desse mesmo já-dito como algo singular, original e
subjetivo, por aquele que se apropria do discurso. Portanto, a formação
discursiva é o lugar da identificação do sujeito.
É por meio do interdiscurso que a memória discursiva é constituída,
cristalizada e transformada, tendo em vista que para ela surgir é preciso que a
linguagem evoque lembranças de fatos importantes, que essas lembranças sejam
cada vez mais vivenciadas (ou seja, os fatos se repitam) e que a transformação
dessa memória esteja associada ao desaparecimento de indivíduos que
mantiveram vivas as lembranças, uma vez que esta memória é afetada pelo
acontecimento discursivo, podendo ser modificada, porque:
Uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena,
cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria
um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um
espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos.
(PÊCHEUX, 1999, p.56)
Por ser um espaço de desdobramentos e de regularização, efeitos de
paráfrases e polêmicas dos discursos, a memória discursiva corresponde ao que
foi dito por Foucault (2007a) sobre o Arquivo.
Assim, a memória discursiva - arquivo - está relacionada a textos
fundadores de mitos, relatos de fatos, enunciados que se apóiam em outros em
uma relação intertextual, como também interdiscursiva. Ela está em permanente
atuação já que as informações, os conhecimentos e os valores são passados e
77
repassados de geração a geração. Porém, a sua manutenção estará atrelada a
determinados operadores de memória social como os objetos culturais (livros,
imagens, filmes, arquitetura, tv, música, etc.) que são cada vez mais variados,
correspondendo à evolução da sociedade de um modo geral.
Portanto, a relação estabelecida entre a memória discursiva e a memória
social se dá no entrecruzamento da materialidade lingüística e os valores
histórico-culturais que os discursos veiculam: entre o real da língua e o real da
história.
Se a memória social está atrelada à memória histórica e corresponde a
práticas, representações e valores que se inscreveram no tempo, a memória
discursiva com ela dialoga ao se relacionar com o acontecimento discursivo –
que é histórico – e com a (re)atualização dos enunciados em conformidade a
determinados temas recorrentes no meio social.
Assim, ao enunciar diferenciados temas, os enunciados vão textualizar
discursos, cujas formulações trarão enfoques, pistas, caracteres do referencial
abordado, correspondentes aos valores históricos e suas representações,
conforme modo de atualização do arquivo. Portanto, a recorrência de
determinados discursos e temas, monitorado pelas regras de circulação e
funcionamento dos dizeres, vai cristalizando vontades de verdades que são
legitimadas pelo contexto sócio-histórico, reativando a memória social.
Quando o sujeito, ao subjetivar-se, se posiciona enquanto autor, faz com
que a linguagem adquira dimensões precisas e o seu texto apresente um formato
e um sentido limitado em sua representação. Desse modo, cada conjunto de
enunciados materializados será manipulado e manobrado conforme vontade do
autor – o que faz com que a regularidade das práticas discursivas tenha um
novo corpo, uma nova forma de apresentação, gerando, assim, “os
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos” (PÊCHEUX, 1999,
p.56) no interior da memória discursiva que, por sua vez, particulariza e
singulariza as referências feitas aos elementos componentes da memória social.
Como o sujeito-autor se subjetiva por conta da interpelação ideológica,
essas referências feitas aos elementos componentes da memória social passam a
perpetuar ideologias (idéias preconcebidas, estereótipos, noção de certo e
78
errado, formas de comportamento, constituição de modelos culturais, etc.),
porque há uma reprodução tanto nas relações sociais quanto nos objetos
culturais dos fatos importantes de uma comunidade, em dado contexto
histórico, por meio dos comportamentos dos sujeitos que produzem e consomem
certos objetos culturais.
As práticas de subjetivação, além de demarcar as posições-autoria,
também produzem identidades. Como o sujeito pode desempenhar vários papéis
sociais, a constituição da subjetivação é um processo que está em constante
mutação:
o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma
identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque
construímos a cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora
“narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia. (HALL, 2003, p.13).
Portanto, a identidade é constituída a partir de um referencial sócio-
histórico, cultural e ideológico determinado, fazendo com que o sujeito
direcione o seu dizer com base no processo que envolve o enunciado na
legitimação do “discurso verdadeiro”, que motiva estas práticas, uma vez que é
pelo discurso da moral e da ética que as verdades se originam e se mantêm.
Este fato corrobora, pois, a relação que há entre essas verdades e o processo de
identificação do sujeito, visto que ele se constitui e ocupa lugares sociais a
partir de modos de sujeição. É por meio deles que o sujeito produz a sua
subjetividade e modela a sua identidade, porque:
o sujeito existe à medida que se insere num tipo de identidade social,
e esta inserção social da subjetividade é o que denominamos de
subjetivação, a qual é condição de necessidade para a existência da
pessoa, ou seja, a pessoa existe enquanto que se subjetiva
socialmente com uma identidade definida. (RUIZ, 2004, p.30)
79
Portanto, se os dizeres estão intimamente relacionados às práticas
sociais, a ordem em que os discursos se apresentam é reflexo da sociedade na
qual eles são (re)produzidos. Então, temos, para cada discurso, um referencial
sociocultural que o caracteriza e o constitui, isto porque:
cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual devemos
procurar conhecer para que faça, sentido as suas práticas, costumes,
concepções e as transformações pelas quais estas passam. É preciso
relacionar a variedade de procedimentos culturais com contextos em
que são produzidos. As variações nas formas de família, por
exemplo, ou maneiras de habitar, de se vestir ou de distribuir os
produtos do trabalho não são gratuitas. Fazem sentido para os
agrupamentos humanos que as vivem, são resultado de sua história,
relacionam-se com as condições materiais de sua existência.
(SANTOS, 2003, p.8).
Os dizeres circularão reproduzindo as referências culturais delimitadas
pela história. Por isso, seu sentido vincula-se a uma formação discursivo-
ideológica correspondente à memória social de cada comunidade de falantes.
Cabe, pois, a essa memória estabelecer os valores, as crenças, os
comportamentos e as visões de mundo que serão assimilados pelos sujeitos e
colocados em prática no momento da interlocução. E por serem inscritos em um
determinado tempo e lugar e serem perpassados pela ideologia, os dizeres vão
justamente resgatar manifestações culturais e visões de mundo capazes de
defini-lo como marca identitária de uma dada sociedade, um grupo social ou de
um sujeito.
80
2.3 Dialogismo e o destino da palavra alheia na textualização dos
enunciados
Ao antecipar muitas das orientações epistemológicas da lingüística
moderna, as reflexões de Bakhtin (1986) sobre as práticas discursivas
tornaram-se referências centrais na discussão do funcionamento da linguagem.
Assumindo, então, caráter atemporal, as suas contribuições trazem,
especificadamente para a Análise do Discurso, os fundamentos básicos da
constituição do discurso e de seu sentido: o dialogismo e o descentramento do
sujeito.
Partindo de uma abordagem lingüístico-discursiva das formas de
construção e instauração dos sentidos, Bakhtin (1986) desenvolve um aparato
81
teórico sobre os modos de representação da heterogeneidade constitutiva da
linguagem, a partir da análise de natureza interdiscursiva e social da palavra e
sua relação com a ideologia. Desse modo, o dialogismo bakhtiniano se
fundamenta na negação da possibilidade de conhecer o sujeito fora do discurso
que ele produz, já que é através do que ele enuncia que podemos verificar os
vários discursos que compõem o seu enunciado.
Segundo Bakhtin (1986), a linguagem é dialógica, pois suas idéias a
respeito do homem e da vida são caracterizadas pelas relações intersubjetivas
existentes entre os locutores, concebendo, assim, a “expressão do eu” num
espaço dialógico e polifônico, determinado pelas relações sociais e por uma
consciência criada pela lógica da ideologia, já que:
a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um
grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o
alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento,
e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica
da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social.
Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico,
não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc.
constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples
ato psicológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do
sentido que os signos lhe conferem (BAKHTIN, 1986, p.36).
Baseado nessas colocações, Bakhtin (1986) assegura que o discurso não é
individual porque é formado a partir de uma interlocução entre seres sociais,
clivados pela ideologia e, também, pelo fato de um discurso dialogar com
outros discursos. Esse posicionamento vai considerar a subjetividade daquele
que fala em dado contexto como um produto da prática social – local onde a
atividade mental é constituída.
Portanto, na materialização dos discursos, os textos vão constituir-se por
meio dos diversos fenômenos discursivos formados pela capacidade
interdiscursiva dos enunciados. Segundo a AD, há, pois, dois tipos de
heterogeneidade discursiva: a constitutiva, que não se encontra marcada na
superfície da estrutura lingüística; e a mostrada, que se manifesta no plano da
enunciação. Ambas são solidárias e manifestam-se juntas, num mesmo discurso.
82
A heterogeneidade constitutiva, denominada de interdiscurso, é
característica essencial a todo discurso. É ela quem vai constituir a formação
discursiva, visto que o diálogo que ocorre entre os discursos não é definido,
não é mostrado, embora faça parte do processo de produção dos enunciados.
Já a heterogeneidade mostrada, conhecida por intertextualidade, ocorre
através das formas marcadas (explicitadas) e não marcadas (implicitadas). As
primeiras caracterizam-se por deixar claras as “vozes” do enunciador no ato da
interlocução. São representadas pelos discursos direto e indireto, pelas glosas
metadiscursivas, pelas citações, provérbios, slogans, etc., elementos
responsáveis pelo processo de definição dos papéis e espaços discursivos
capazes de demarcar as falas do “eu” e do “outro”, que, conseqüentemente, vão
delimitar a identidade e a alteridade do sujeito, mostrando “o seu desejo de
dominância”, a sua ilusão de possuir um discurso só seu, único, singular. As
segundas são detectadas por meio do discurso indireto livre, das paráfrases e da
ironia, formas de relatar uma alocução fazendo ouvir outras vozes diferentes
misturadas num único ato de fala, sem delimitação dos sujeitos. Dessa forma, a
heterogeneidade mostrada relaciona-se aos fatos polifônicos do discurso,
veiculando um enunciado objetivado pelo processo da dialogicidade discursiva,
condicionado ideologicamente.
Diante dessas considerações acerca da heterogeneidade discursiva, Fiorin
(2003) distingue interdiscursividade de intertextualidade, apontando para a
constituição de textos, que materializam determinados discursos, a partir do
uso de idéias e estruturas enunciativas decorrentes tanto do contexto
enunciativo como histórico, ora delimitados por vozes conhecidas, ora fazendo
referências a vozes sem determinação de autoria. Desse modo, apresenta
processos que distinguem a forma como os discursos se constituíram. Assim,
para a intertextualidade temos: Citação – transcrição total de trechos de textos,
por meio da qual pode-se confirmar ou modificar o sentido do texto citado.
Alusão – faz-se a referência mas não totalmente das partes do texto original,
como acontece na citação; conservam-se algumas estruturas sintáticas,
modificando as figuras que representam o mesmo tema do texto original, pode
ser usada para estabelecer o mesmo sentido ou modificá-lo. Estilização –
83
reproduz o estilo de um outro sujeito, através de recorrências tanto da forma
quanto do conteúdo do texto original, particularizando a atividade discursiva e
estabelecendo discursos polêmicos ou contratuais.
Com relação à interdiscursividade, Fiorin (2003) apresenta-nos os
seguintes processos: Citação – este procedimento ocorrerá quando o discurso
materializado repetir idéias e suas representações de um outro discurso, sem
definição de autoria. Alusão – retomada de algumas informações conceituais ou
representativas desses conceitos, para constituir o novo discurso, ou seja, os
enunciados resgatam sentidos produzidos em contextos anteriores, servindo de
base para a compreensão do que se diz.
Ainda encontramos, na AD, a distinção feita por alguns teóricos, a
exemplo de Orlandi (2001), entre interdiscurso e intradiscurso. Como já vimos,
interdiscurso é a relação constitutiva de todo discurso, situando-se em uma
dimensão verticalizada no sistema de linguagem, enquanto que o intradiscurso
corresponde à linearização do dizer, ao produto da formulação do sujeito.
Assim podemos compartilhar o dizer de Orlandi (2001) quando afirma que o
interdiscurso determina o intradiscurso e este, diante da dispersão dos
enunciados, atualizam a memória, por meio de sua textualização.
A relação estabelecida entre o interdiscurso e a materialização de uma
das suas possíveis formulações traz a ligação entre texto e discurso,
subjetividade e função autoria, a partir do momento em que:
O texto mostra como se organiza a discursividade, isto é, como o
sujeito está posto, como ele está significando sua posição, como a
partir de suas condições (circunstâncias da enunciação e memória)
ele está praticando a relação do mundo com o simbólico,
materializando sentidos, textualizando, formulando. (ORLANDI,
2001, p.67).
Assim, entre o nível de constituição do discurso e o nível da sua
formulação, ocorre a seleção de palavras, de relações de sentidos e de
enunciados que são transformados, limitados diante da dispersão dos discursos,
para então poderem fazer parte do novo acontecimento discursivo: “como os
significantes não estão soltos, eles se realizam na historicidade e se
84
especializam na medida em que se coloca o discurso em texto.” (ORLANDI,
2001, p.94).
A materialização dessa especialização dos enunciados ocorre, segundo a
autora, com falhas – o que faz com que o discurso se apresente como uma
versão, ou seja, cada texto representa um modo de ser do discurso.
Todos esses processos fazem parte da constituição de sentidos dos
dizeres, pois é na recorrência contratual ou polêmica do já-dito que podemos
entender os discursos, já que eles nascem de um processo enunciativo e
significa conforme contextualização: tanto os dizeres como os sentidos serão
determinados por normas que os orientam, conforme a realidade social em que
os sujeitos se inserem.
Baseando-se em determinados contextos sociais que orientam, conduzem
certas práticas discursivas, os textos produzidos trazem peculiaridades que os
caracterizaram enquanto gêneros textuais.
Na perspectiva bakhtiniana, o estudo do gênero está relacionado ao
discurso. Por esta razão Bakhtin (2003) associa o uso da linguagem aos
enunciados e as suas condições de produção referentes às diferentes esferas da
comunicação:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só
por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua
mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses
três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado
particular é individual, mas cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso. (Bakhtin, 2003, p.262).
Por ser o gênero discursivo caracterizado conforme estabilidade de
enunciado presentes em cada esfera de comunicação, ele passa a pertencer a
uma composição específica, que aborda um determinado conteúdo temático a
partir de um estilo de produção discursiva. Podemos então dizer que estes
85
elementos são escolhidos pelo sujeito-autor, tornando-se, assim, responsável
pela veiculação de seus enunciados – portanto, ele é consciente de seu papel e
livre para fazer as suas escolhas, ao mesmo tempo em que é coagido pela ordem
do discurso e pelas relações de poder, que influenciam as suas escolhas e modo
de formulação dos enunciados. Assim, Bakhtin antecipa considerações sobre as
atividades discursivas, que seriam realizadas futuramente. É como explica
Faraco (2006, p.114):
A idéia da relativa estabilidade coloca Bakhtin antecipando toda uma
discussão que se fará posteriormente na teoria social de que as
atividades humanas não são nem totalmente previsíveis por modelos
pré-dados, nem totalmente casuais. As atividades conhecem
recorrência, mas também têm dimensões novas a cada contigência.
Para compreendê-los (e para envolver-se nelas de modo
significativo), é fundamental estabelecer contínuas interrelações
entre o que recorre e a singularidade; entre o dado e o novo; entre o
arquivo e o acontecimento (evento); entre a memória e o momento.
Como as formas de utilização da linguagem são incontáveis, os gêneros
assumem uma diversidade correspondente às práticas discursivas que se
desenvolvem e se complexificam conforme contexto social, em função de
eventos textuais que satisfazem às necessidades comunicacionais de
determinadas sociedades, a partir da própria dinâmica da esfera social. Por isso
os gêneros discursivos são concebidos como fenômenos históricos, intimamente
vinculados à vida cultural e social, que estabilizam as atividades comunicativas
em um determinado período, uma vez que seguem a dinâmica própria da ação
criativa da linguagem.
Os quadrinhos, por exemplo, assumem seu papel enquanto gênero, uma
vez que seu poder organizador de discursividade, no seu intradiscurso, demarca
lugares sociais, sujeitos, verdades, memória social e cultural. Assim, o
intradiscurso traz discursos que se materializam e dialogam com um a priori
histórico, responsável pelo estabelecimento de efeitos de sentidos parafrásticos
e polissêmicos. É o que passaremos a abordar, em seguida.
86
2.4 Entre o arquivo e a formulação: a constituição da paráfrase e da
polissemia
A Análise do Discurso propõe descrever as articulações entre a
materialidade dos enunciados e seu agrupamento em discursos, a partir da
noção de arquivo, uma vez que ele determina e regula as regras de uma prática
que permite a circulação dos enunciados, conforme contextos históricos
específicos. Assim, por serem produtos de práticas social e historicamente
determinadas, as formas de se utilizarem as possibilidades do discurso são
reguladas por princípios, técnicas de formulação.
É a partir da análise da função-enunciativa que o analista pode
delimitar as propriedades dos enunciados, a partir das referências sobre o
sujeito que produziu o discurso, a sua posição institucional, bem como as
regras sócio-históricas que definem as condições de formulação dos discursos.
Como os discursos se inserem em meio a outros tantos já ditos, estabelecem,
conforme o acontecimento discursivo, retomadas ou deslocamentos de
elementos discursivos inseridos numa formação discursiva. É por isso que a
87
constituição dos sentidos passa necessariamente pela relação mantida entre a
memória – arquivo – e a materialização dos discursos.
A constituição dos sentidos, portanto, faz parte de processos histórico-
sociais que envolvem o sujeito, o discurso e a sua materialização. Como a
sedimentação desses processos de significação se faz historicamente, ocorre a
institucionalização do sentido dominante que, por sua vez, viabiliza a
legitimidade: “o sentido legitimado fixa-se então como centro: o sentido
oficial, literal.” (ORLANDI, 2000, p.21). Por isso, “a história dos sentidos
cristalizados é a história do jogo de poder da/na linguagem.” (p.21).
Sendo o discurso um objeto histórico-social, cuja singularidade está em
sua materialidade, os sentidos vão reproduzir características, particularidades e
implicações pertencentes ao seu acontecimento. Assim, as relações de poder, as
coerções sociais, os valores sócio-culturais, as identidades irão compor o
processo de sua formulação. Neste processo, os discursos antes dispersos
passam a ser textualizados com limites e completude.
A ordem do discurso a que o sujeito está vinculado fará com que
determinado sentido e não outro seja veiculado. Por isso, ao serem
determinadas por uma dada formação discursiva, as palavras especificam o
sentido, trazendo para o texto a unidade que lhe é constitutiva. No entanto, por
ser a linguagem caracterizada pela incompletude, esta suposta unidade passa a
ser considerada como uma das possibilidades materializadas dos inúmeros
sentidos existentes. Isto ocorre por conta da interdiscursividade, através da
qual os discursos se deslocam, atraem-se, distanciam-se e se assemelham,
conforme a posição que o sujeito ocupar no momento da enunciação do seu
dizer.
A unidade textual é um efeito discursivo provocado pela função-autor,
uma vez que centraliza, ordena e dá coerência ao discurso. Nesse sentido,
limita a descontinuidade dos enunciados ao controlar o seu aparecimento. Isto
ocorre porque nem tudo pode ser dito, de qualquer modo, em qualquer lugar,
por um sujeito qualquer e para qualquer sujeito.
Por não existir um sentido dado a priori, mas sentidos que são
construídos nas práticas discursivas (Foucault, 2007), é a materialidade do
88
enunciado que remete às condições de produção dos sentidos: o discurso, então,
passa a fundamentar a interpretação, pois constrói uma verdade através da
ordem que rege seu acontecimento.
A noção de acontecimento possibilita considerar o enunciado no campo
de uma memória, a qual disponibiliza para o sujeito um saber discursivo que
torna possível todo dizer. Desse modo, sujeito e sentidos são afetados pela
ordem da língua e a ordem da história: a constituição determina a formulação,
ou seja, a relação memória-discurso estabelece o jogo dos sentidos. É através
do jogo entre ativação da memória e estratégias de formulação que os
enunciados são atualizados, por meio da repetição e da modificação, da
paráfrase e da polissemia.
Portanto, no processo de materialização dos discursos, a organização
dos sentidos no texto se dá por meio de determinadas condições de produção
que modelam o conteúdo temático dos gêneros textuais. Assim, Foucault (2002,
p.169), ao declarar - “se a linguagem existe é que sob identidades e diferenças,
há o fundo das continuidades, das semelhanças, das repetições, dos
entrecruzamentos naturais” – expõe que o sistema simbólico da língua funciona
a partir dos deslocamentos de sentido, que são naturais, ou seja, são inerentes à
interdiscursividade. Logo, a relação entre o interdiscurso e o intradiscurso
produz a realidade do discurso: o que é repetível instaura-se através da
formação discursiva e do domínio do saber do sujeito; enquanto o que é
enunciável recorre a elementos referenciais, no momento da formulação,
regularizando os discursos.
A formulação de um texto articula as várias linguagens que constituem
o universo simbólico, e nele o sujeito imprime o que não é igual ao já-dito, uma
vez que o reinterpreta de modo diferente do já-dito nos textos, atribuindo,
enquanto individualidade, novos sentidos ao texto por ele produzido. A seleção
que o sujeito faz entre o que diz e o que não diz também é significativa - ao
longo do dizer vão-se formando famílias parafrásticas que significam.
Maingueneau (1997) sobre esta questão declara que:
A parafrasagem aparece em AD como uma tentativa para controlar
em pontos nevrálgicos a polissemia aberta pela língua e pelo
89
interdiscurso. Fingindo dizer diferentemente a ‘mesma coisa’ para
restituir uma equivalência preexistente, a paráfrase abre, na
realidade, o bem-estar que pretende absorver, ela define uma rede de
desvios cuja figura desenha a identidade de uma formação
discursiva. (p.96).
A parafrasagem para Maingueneau corresponde ao processo de
formulação do texto, pois trata das condições de sua produção. Já a paráfrase se
refere ao texto pronto, concluído. Tanto uma quanto a outra se estabelecem na
configuração das semelhanças entre os dizeres.
Assim, o sujeito-leitor recorre à memória discursiva no processo de
leitura e análise, reconstrói o texto lido num movimento entre o legível e a sua
interpretação, numa dialética entre a repetição e a regularização. Portanto, os
mecanismos e as estratégias empregadas pelo sujeito a fim de instituir os
efeitos de paráfrase decorrem do estabelecimento da regularidade de dizeres
inseridos em um mesmo espaço de significação, advindos de uma memória
mantida pela atualização.
Com relação à polissemia, ocorre o deslocamento de sentido pelo
equívoco – a memória é a mesma, no entanto, a textualização é estruturada com
base em regras que provocam a falha, a ruptura, para construir um sentido
diferente no mesmo objeto simbólico. Assim, a relação que o texto e seus
enunciados realizados mantêm com outros não-ditos e outros textos diz respeito
ao recorte que é feito em determinadas formações discursivas: o sentido
polissêmico é estabelecido a partir da transformação daquilo que é repetível.
Sobre a relação paráfrase e polissemia, Orlandi acrescenta que:
Esta tensão entre o mesmo e o diferente é que constitui as várias
instâncias da linguagem. Aí se situa a relação entre a variação, a
multiplicidade inerente à linguagem e a sua contenção
(institucional). Expressa-se assim o conflito entre o garantido, o
institucionalizado, o legitimado, e aquilo que, no domínio do
múltiplo, tem de se garantir, se legitimar, se institucionalizar. A
polissemia é o conceito que permite a tematização do deslocamento
daquilo que na linguagem representa o garantido, o sedimentado.
Esta tensão básica, vista na perspectiva do discurso, é a que existe
entre o texto e o contexto histórico-social: porque a linguagem é
sócio-historicamente constituída, ela muda; pela mesma razão, ela se
mantém a mesma. Essa é a sua ambigüidade. (ORLANDI, 2000,
p.20).
90
Se é na materialidade do discurso que podemos observar a relação entre
paráfrase e polissemia, as marcas, pistas que o texto oferece, traduz o modo
pelo qual o sujeito se subjetiva, indicando a articulação que ele faz da língua
com a história. Por isso, cada texto traz no seu interior a inscrição da memória
– numa formulação entre outras possíveis.
Portanto, o jogo entre paráfrase e polissemia é condição de existência
dos sujeitos e dos sentidos, uma vez que há um movimento constante da língua
e da história - os discursos se entrecruzam, assemelham-se ou se diferenciam
para constituir determinados sentidos, por meio da produtividade e criatividade
do sujeito:
A ‘criação’ em sua dimensão técnica é produtividade, reiteração de
processos já cristalizados. Regida pelo processo parafrástico, a
produtividade mantém o homem num retorno constante ao mesmo
espaço dizível: produz a variedade do mesmo. [...] Já a criatividade
implica na ruptura do processo de produção da linguagem, pelo
deslocamento das regras, fazendo intervir o diferente, produzindo
movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com
a história e com a língua. Irrompem assim sentidos diferentes.
(ORLANDI, 1999, p.37).
É no plano de formulação que o sujeito define que relação os discursos
irão manter no jogo de sua dispersão – se vai ser dada a ênfase à repetição
parafrástica ou aos desdobramentos polêmicos da polissemia na configuração
dos sentidos, nesse novo acontecimento discursivo. Desse modo, a análise dos
enunciados supõe que:
Os enunciados sejam considerados na remanência que lhes é própria
e que não é a do retorno sempre possível ao acontecimento passado
da formulação. Dizer que os enunciados são remanentes não é dizer
que eles permanecem no campo da memória ou que se pode
reencontrar o que queriam dizer, mas sim que se conservaram graças
a um certo número de suportes e técnicas (...), segundo certos tipos
de instituições (...) e com certas modalidades estatuárias. (...)
Embora a conservação através do tempo seja o prolongamento
acidental ou bem-sucedido de uma existência feita para passar com o
momento, a remanência pertence, de pleno direito, ao enunciado; o
esquecimento e a destruição são apenas, de certa forma, o grau zero
da remanência. E sobre o fundo por ela constituído, os jogos de
memória e da lembrança podem-se desenrolar. (FOUCAULT, 2007a,
p.140).
91
Além de apresentar o que mantém a regularidade dos enunciados,
Foucault (2007) salienta, ainda, que associado à idéia de remanência, temos a
aditividade, que corresponde ao modo como se dá o agrupamento de
enunciados, a partir da sua configuração singular – composição e
complementariedade -, e a recorrência, fenômeno responsável pela delimitação
de enunciados a partir de um campo de significação que funciona como
referência na (re)organização e (re)distribuição dos discursos, em sua nova
aparição. Desse modo, a configuração da paráfrase e da polissemia nos textos
se dá por conta de um trabalho de seleção e de organização de enunciados, que
são determinadas pelas formas específicas de seu acúmulo, de sua relação com
a exterioridade, cuja interpretação, conforme o autor, é estabelecida pelo tipo
de positividade do discurso – seu a priori histórico.
92
CAPÍTULO III
A TURMA DA MÔNICA E O JOGO DISCURSIVO
NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES CULTURAIS
_ GRRR!! Cadê esse elevador que não
vem?!
_ Si o elevador num chega, pru que que
nóis num vai pela iscada, primo?
_ O quê?! E descer vinte andares a pé!
_ E daí? Lá no Sítio eu vô andando di
casa inté a vila Pururuca!
_ É porque vocês, do interior, têm todo o
tempo do mundo! Aqui, na cidade, não
temos tempo a perder!
(Chico Bento e o primo da cidade)
3.1 Entre a paráfrase e a polissemia: marcas da heterogeneidade discursiva
na (re)construção de identidades multiculturais
93
A identidade cultural de um povo, como já foi dito, é regulada por dois
princípios contraditórios – o do Estado e o do Mercado. É por meio de suas
normas que nos subjetivamos e nos identificamos como pertencentes à dada
cultura, ajustando as nossas escolhas às coerções que nos são impostas,
inconscientemente: se identidades culturais são vendidas através de produtos
variados, mídia e tecnologias, nem todas poderão ser compradas, uma vez que a
sociedade não está totalmente aberta em aceitar todo e qualquer valor.
Nestes termos, os discursos globalizadores vão se adaptando aos
acontecimentos históricos, reguladores dos dizeres, para interagir com os
discursos nacionalistas. Desse modo, a identidade cultural passa a ser
negociada interdiscursivamente e sua validade corresponderá à apropriação de
idéias que restringem escolhas e rotulam as identificações conforme ideologia
do mundo social.
Diante do mosaico cultural a que o mundo está submetido pelas leis da
globalização, as escolhas realizadas passam pelo clivo da legitimação dos
valores e de sua veiculação – o que se reflete, obviamente, nas produções
artísticas. À medida que o modo de vida de um povo transforma-se em bem
cultural, os conceitos e as visões de mundo importantes à determinada
sociedade ou nação passam a ser vendidos como qualquer produto do mercado
material. Desse modo, práticas culturais diversas são retomadas nas revistas em
quadrinhos, tornando informações antes particularizadas e singulares em dados
comuns, cuja significação ultrapassa as fronteiras territoriais para pertencer a
quem tiver acesso, instituindo assim os níveis de formação cultural e as
identidades fluidas.
Partindo dessas considerações, vamos tratar neste tópico da
ressignificação de sentidos presentes nas revistas de A Turma da Mônica, no
intuito de analisar o resgate das referências culturais a partir da ótica da
heterogeneidade discursiva, para delimitar os traços identitários que compõem
o universo discursivo dos personagens do sujeito-autor Maurício de Sousa.
94
A Turma da Mônica oferece ao leitor textos que tecem um novo olhar em
relação a um dizer já tecido e internalizado como verdadeiro, recriando, através
de retomadas intertextuais, os sentidos que se inscreveram na história e agora
são reconduzidos a um outro lugar, a um novo efeito de sentido, que retoma o
mesmo, para fundamentar o diferente, por meio da interdiscursividade e
intertextualidade, regulando e respaldando os discursos inseridos no texto.
Para analisarmos o dialogismo discursivo e o multiculturalismo presentes
nas revistinhas, iremos analisar três capas na revistas da Turma da Mônica.
Nelas determinados temas são retomados por imagens, provocando efeitos de
sentido relacionados a um a priori histórico. Temas estes que em seu novo
acontecimento (re)constroem sentidos na informação nova, mantendo a
memória social viva e renovada através de leituras polissêmicas.
Como o sentido está sujeito às ordens do icônico e da simbolização, as
imagens inscritas nas capas passam a reconstruir traços, caracteres, perfis
identitários de culturas, cuja memória social é reconhecida através da
representação de práticas e valores sociais cristalizados no tempo, na história
de um povo. Assim, quando o sujeito-autor Maurício de Sousa retorna a
determinados temas e figuras do passado para serem atualizados no presente, a
memória social passa a dialogar com a memória discursiva de suas HQs. É o
que passaremos a tratar agora.
95
TEXTO 1
96
Revista Mônica, editora Globo, n. 196, ano 2002
A imagem remete a um evento da cultura americana – o Halloween
17
-
data comemorada em 31 de outubro, para festejar o dia das bruxas. Esta prática
cultural tem origem entre os povos celtas e druidas, que habitavam a Irlanda e
Grã-Bretanha a 2.500 A.C. e cultuavam deuses e bruxas. Seguidores da religião
Wicca, acreditavam que espíritos vagavam sobre a terra e voltavam para seus
lares para pedir comida na noite correspondente ao dia 31 de outubro, visto que
em seu calendário esta data coincidia com o início do inverno. Como era
comemorado o festival da colheita em homenagem ao deus conhecido como
Samhain – “O Senhor dos mortos” – faziam grandes fogueiras para assustar os
espíritos que o acompanhavam e saíam nas ruas vestidos de modo assustador,
carregando velas acesas e nabos esculpidos na forma de rostos humanos para
afugentá-los e se protegerem dos poderes sobrenaturais.
Por conta do processo de colonização, o Halloween foi introduzido nos
EUA no século XIX pelos Irlandeses, havendo adaptação em sua caracterização:
o nabo foi substituído pela abóbora, fruto mais comum no continente. Com o
passar do tempo, a tradição religiosa tomou um novo conceito, tornando-se uma
brincadeira popular, na qual crianças saem fantasiadas pelas ruas, batendo nas
portas das casas e dizendo “trick or treat” (travessuras ou bons tratos), para
ganharem doces. Esta contextualização histórica retoma o que Le Goff (2003)
afirma sobre a memória de datas comemorativas, que fazem parte do referencial
da memória étnica nas sociedades sem escrita e de sua transição no tempo – o
17
A palavra Halloween tem origem em Hallowed, do inglês arcaico, que significa “hallow” = “santo” e “e, em”
= “noite” – o que pode ser traduzido como “noite santa” ou “noite de todos os santos”.
97
que remete aos mitos de origem da história dos povos antigos e a sua
transmissão de geração a geração, ocasionando uma nova versão desse mito.
Neste caso, o Halloween passou a ter um outro sentido daquilo que ele
significou por conta da memória coletiva criadora, influenciada pelo contexto
sócio-histórico-ideológico da sociedade moderna.
Ao retomar uma data comemorativa da cultura americana, o sujeito-autor
construiu a capa desta revista utilizando-se de figuras que compõem a memória
social sobre a história do Halloween. Nessa retomada de valores, práticas e
representações sociais, encontramos seus personagens utilizando em suas
brincadeiras elementos que fazem parte do imaginário misterioso, assustador e
“macabro” desse evento cultural: vassoura “voadora”, chapéu de feiticeira(o) e
a abóbora, associados à figura de morcegos e da noite de lua cheia –
representações dos mitos de origem modificados pelo tempo: a imagem remete
à brincadeira que festeja o dia das bruxas.
Desse modo, o texto não-verbal funciona aqui como operador da memória
social da cultura americana presente em práticas de algumas coletividades
brasileiras, por assumir dimensão social e de significação. Por isso os sentidos
aqui retomados fazem parte de um acontecimento partilhado entre grupos que
mantêm vivos os valores do passado. Abre-se, então, espaço para a
reconstrução de uma origem mítica, por meio de noções comuns que fazem
parte das regras de formação discursiva do leitor e do autor. Assim, o sujeito-
autor Maurício de Sousa ao trazer referências da cultura americana, a faz por
meio de condições históricas que inscrevem o objeto de discurso no domínio
das relações de semelhança entre a cultura brasileira e a cultura americana,
quando apresenta seus personagens vivenciando datas comemorativas de origem
estrangeira.
A imagem aqui descrita simboliza uma prática social, que é histórica,
dialogando com representações do imaginário materializadas nesta capa de
revista – reproduzindo temas pertencentes a discursos que foram instituídos em
outros lugares, mas que são retomados pelo interdiscurso – quando o
significado remete ao tema abordado: comemoração do dia das bruxas - e pelo
intertexto – através do uso de elementos típicos desta festividade associados
98
aos seus personagens, redimensionando a interpretação do Halloween como um
acontecimento histórico presente na memória social de nosso país.
A memória desta comemoração foi constituída no Brasil devido à
veiculação na Tv de filmes americanos que tematizavam referências culturais e
às instituições de educação de língua inglesa, que passaram a comemorar
determinadas datas festivas do povo americano – surgindo, assim, um comércio
que vende produtos a serem utilizados nesta prática social. Além disso, muitas
outras escolas, de ensino fundamental, passaram a vivenciar tal prática,
fazendo com que os valores do Halloween passassem a ser cultivados por
crianças e jovens de várias regiões e cidades brasileiras. Por conta desta
“invasão” do modo de vida americano em práticas culturais brasileiras, foi
instituído O dia do Saci em alguns estados e cidades brasileiros
18
, para garantir
o cultivo das tradições folclóricas do nosso país.
Este fato traduz a resistência de alguns agrupamentos sociais em cultivar
a comemoração pertencente à cultura americana. No entanto, como estamos
vivenciando a modernidade fluida e a configuração de identidades múltiplas, o
modo de vida americano, por questões políticas e ideológicas, ainda é
considerado um referente cultural bastante influente.
Podemos então perceber, com base nesse valor social, que a
heterogeneidade constitutiva – interdiscurso – circunscreve, portanto, os
enunciados possíveis de ser recuperados pela imagem. É ela quem vai delimitar
a formação discursiva indicada no texto, por meio da heterogeneidade
mostrada: as referências histórico-culturais são atualizadas por meio do
conteúdo temático abordado - a comemoração do Halloween - direcionada à
brincadeira dos personagens. Este fato, então, imprime na história em
quadrinhos a influência do multiculturalismo no que tange à cultura americana
que, ao ser atualizada pelo sujeito-autor, assume características brasileiras e
traços identitários dos personagens. Tais traços são responsáveis pelo
18
O Dia do Saci consta do projeto de lei federal nº 2.762, de 2003, elaborado por Aldo Rebelo (PCdoB-SP) e
Ângela Guadagnin (PT-SP) com o objetivo de resgatar figuras do folclore brasileiro. Embora este projeto ainda
não seja aprovado pelo Congresso Naciocial, as Câmaras Municipais de São Luiz do Paraitinga, São José do Rio
Preto, São Paulo, Vitória, Uberaba e Fortaleza instituíram leis para favorecer o cultivo dos mitos, lendas e
brincadeiras tipicamente brasileiras, celebradas no dia 31 de outubro.
99
deslocamento de sentido atribuído ao elemento abóbora, provocando, assim, a
polissemia.
Desse modo, como estratégia discursiva para produzir este efeito de
sentido, o sujeito-autor retoma a característica central da personagem Magali e
constrói uma outra referência para a abóbora, a qual deixa de ser símbolo
místico-religioso, passando a significar comida, por conta da sua gula – marca
identitária da Magali, construída pelas histórias em quadrinhos. Assim, é
preciso conhecer tais marcas para que os sentidos aqui sejam constituídos.
A relação entre o real da língua e o real da história é estabelecida, aqui,
pela discursividade do sujeito-autor, instituindo sentido diferente ao já-dito
sobre o Halloween. Como o arquivo é a lei do que pode ser dito (Foucault,
2007), a constituição deste sentido e não outro se justifica pela própria
característica das HQs de Maurício de Sousa – especificando os seus discursos
em referência às identidades de seus personagens. Assim, por conta da própria
constituição discursiva, a constituição de sentidos e a sua legibilidade se fazem
por meio dos vínculos estabelecidos entre as condições de produção e a
memória discursiva, fazendo com que os gestos de interpretação possam
identificar os referentes culturais tematizados e recorrentes na materialização
discursiva desta HQ. É o trajeto temático apresentado no texto que faz com que
os enunciados sigam determinado percurso de significação, delimitando o que
pode ser lido, em decorrência das estratégias utilizadas pelo Maurício de Sousa
em sua função-autoria.
Portanto, podemos afirmar que, nesta capa, os símbolos icônicos ativam a
memória social de uma cultura estrangeira, remetendo à prática sócio-
discursiva das festividades do dia das bruxas e retoma os significados
concernentes às características das personagens de Maurício de Sousa. Ocorre
uma apropriação de objetos culturais norte-americanos em sua circularidade,
adaptados ao contexto de produção dos quadrinhos de A Turma da Mônica. –
revista que se constitui objeto cultural brasileiro.
100
TEXTO 2
101
Revista Magali, editora Globo, n. 269, ano 1999
Neste texto, o encantador de serpente aparece como representante da
cultura indiana – uma das mais antigas no mundo. A imagem veiculada pela
revista simboliza uma prática antiqüíssima que sobrevive às influências da
102
globalização. Trata-se então da retomada de uma memória social externa –
focalizada em objetos culturais pertencentes ao mundo oriental.
Segundo informações de biólogos, as serpentes que participam como co-
adjuvantes dessa prática não são enfeitiçadas – o que acontece é que elas, ao
saírem do cesto em que se encontram, assumem a postura de autodefesa,
mantendo o corpo ereto direcionado para o “flautista” e, por não enxergarem
bem, seguem o movimento da flauta, como se observasse o inimigo. Alguns
“encantadores de serpente” põem urina de rato na parte inferior da flauta para
garantir que o animal fixe-se no lugar ou acompanhe o movimento através do
olfato. Desse modo, conseguem impressionar turistas do mundo inteiro.
Enquanto plano de fundo, a imagem do encantador de serpente legitima a
referência cultural, apagando, assim, o discurso científico que está à margem
desse dizer. Este fato é confirmado pela imagem central que apresenta algo
realmente pertencente ao universo místico: a flauta consegue encantar tanto
seres animados como inanimados
19
.
A instauração de sentido do texto se dá por meio da retomada de uma
prática cultural, através de uma releitura polissêmica dos sentidos. A imagem
reconstrói o já-dito, através de estratégias discursivas do sujeito na sua função-
autoria. Aqui a retomada das informações de um acontecimento cultural que é
ressignificada – sustentando o que evoca a memória discursiva: o interdiscurso
sobre os “encantadores de serpente” através de uma rede figurativa que
recupera valores da cultura indiana.
O texto apresenta a repetição de símbolos significativos que remetem a
outros dizeres, pertencentes a uma outra esfera discursiva a partir da
perspectiva da transgressão: ao transportar o “encantador de serpente” para o
mundo de A Turma da Mônica, o sujeito-autor apresenta uma imagem invertida
daquela associada à memória social relativa à cultura indiana, memória esta
formadora de arquivos dos leitores.
A Magali encantando o espaguete, no mesmo dizer simbólico-imagético,
faz a interdiscursividade – o encantador de serpente e a encantadora de
19
O poder de encantamento da flauta está presente em contos infantis como O flautista de Hamelin e no filme
Barbie e o castelo de diamante – o que remete ao universo mágico da literatura e aos bens culturais destinados
ao público infanto-juvenil.
103
espaguete. O humor provocado pelo re-dizer é efeito de sentido decorrente do
entrecruzamento de dois dizeres culturais. O que o texto recupera do outro
dizer pelas imagens são remissões de um diálogo atravessado por culturas
diferentes. A função, o impacto desse discurso, está na sua capacidade de
provocar o riso, tornando, assim, o leitor participante da constituição desse
novo dizer, desse novo olhar sobre a cultura indiana. A presença da comicidade
no texto, além de ser um estilo característico da função-autoria de Maurício de
Sousa, é resultante da relação entre formações discursivas distintas, que
envolve já-ditos: entre operadores de memória social como livros, filmes e
fotografias e a ativação da memória discursiva, com discursos que se situam no
campo científico da História e da Antropologia Cultural – sobre o encantador
de serpente.
Assim, encontramos objetos culturais de sentidos deslocados a partir da
representação e de significação da imagem. A memória social é retomada aqui
pelo arquivo que instaura um percurso escrito em outro lugar – ou seja, o
desenho do “encantador de serpente” remete à cultura indiana, lugar onde esta
prática é marca de identidade cultural e que, neste novo acontecimento,
significa discursivamente, pois está inserida no interior de campos
institucionalmente constituídos: um novo lugar social com significados
culturais deste espaço sócio-histórico.
Ao apresentar a personagem Magali como “a encantadora de espaguete”,
o sujeito-autor Maurício de Sousa remete a um dizer instituído pelas
características da Magali. Quando brinca com os significados icônicos –
serpente/espaguete - faz alusão ao discurso que caracteriza a personagem como
“comilona” ou “de bom apetite” e que “vê” em cada situação, em cada objeto, a
possibilidade de saciar a sua gula.
O sentido materializado remete às condições de produção do texto: o
discurso nesta HQ constrói uma verdade que rege seu acontecimento. Este
acontecimento possibilita localizar o enunciado no campo de uma memória
histórica atrelada à memória discursiva de A Turma da Mônica, constituindo
uma nova significação. Assim, a eficácia simbólica da imagem faz com que a
cena representada na capa conserve traços e características capazes de ativar
104
referentes dessa memória social milenar, associada às ordens do discurso das
HQs de Maurício de Sousa. Por isso, a heterogeneidade do discurso traz para o
texto o jogo de sentido permeado pela ativação da memória e estratégias de sua
formulação: os enunciados atualizados reconstituem a memória social – através
da relação estabelecida entre a paráfrase – identificação do tema – e da
polissemia – constituição do tema, ou seja, as retomadas de símbolos e
representações culturais inserem-se na formação discursiva desta HQ,
determinado assim os modos de dizer e aquilo que se pode dizer. Gregolin
(2007, p.59) corrobora este fato, quando diz que:
Este movimento de paráfrases e polissemias faz que exista, sempre,
um jogo de força da memória, entre a repetição e a desregulação:
visando manter uma regularização pré-existente, a estabilização
parafrástica absorve e dissolve o acontecimento novo; e ao contrário,
o jogo de força de uma desregulação vem perturbar a rede dos
implícitos. Por isso, o processo de inscrição do acontecimento no
espaço da memória traz tensões e pode criar diferentes efeitos de
sentidos, numa relação dialética entre o ‘mesmo’ e o ‘outro’.
Como o trajeto de leitura do texto não-verbal não é o mesmo daquele de
materialidade verbal, temos que conceber o texto formado por imagem como um
lugar em que a heterogeneidade discursiva também situe implícitos e entrecruze
vozes que vislumbrem mensagens e sinais enraizados no passado: memórias,
sentidos e história de um povo ou de um grupo social.
Desse modo, podemos inferir que as estratégias discursivas utilizadas
neste processo de discursivização, no momento da formulação, deslocam
sentidos dos objetos e acontecimentos que compõem a memória social, ao
mesmo tempo em que evoca arquivos de uma prática antiga por meio das
noções que são comuns a determinados leitores. Institui, portanto, um novo
modo de rememorar um traço milenar da cultura indiana, por meio da
heterogeneidade discursiva. Podemos dizer, então, que o enunciador produz seu
discurso em uma rede de memória, construindo seu sentido a partir de sua
constituição histórica enquanto sujeito do discurso dessas HQs.
TEXTO 3
105
Revista Chico Bento, editora globo, n. 36, ano 1996
Pensamos a escola como uma instituição com seus valores ideológicos
importantes a uma sociedade, cujo modelo escolar é, na maioria dos casos,
homogeneizador, por se inscrever nas regras de funcionamento do discurso
pedagógico em determinado contexto histórico. Em decorrência deste fato, todo
106
aquele que não se enquadrar nesta ordem discursiva é marginalizado e
considerado “inculto”, uma vez que a escola concebe a cultura na perspectiva
dos conhecimentos legitimados.
Esta ordem discursiva, ao ser inserida nos contextos escolares das HQs
de Maurício de Sousa, trazem para o texto a concepção de ensino centrada em
temas relacionados ao fracasso e ao sucesso escolar e, com eles, são
simbolizados e veiculados valores ora conotados positivamente, ora
negativamente, relacionados ao ensino e à aprendizagem escolar. Estas
referências são passadas para o leitor de A Turma da Mônica, a partir da leitura
das revistinhas Chico Bento, uma vez que a vivência escolar só aparece situada
no contexto rural: os demais personagens, principalmente os que intitulam os
gibis – Mônica, Magali, Cascão e Cebolinha não aparecem estudando
20
. Por que
será que só o personagem Chico Bento frequenta a escola?
Podemos fazer duas leituras a este respeito: a primeira está relacionada
ao fato de a escola ser um aparelho ideológico do Estado, onde ocorre a
aprendizagem de conteúdos formais, a começar pelo uso, na fala e na escrita, da
linguagem formal, sendo problematizada, pelo autor, a questão do ensino e o
papel da professora na zona rural. A segunda leitura, que está atrelada à
primeira, decorre do fato de Chico Bento ser representado na escola como um
aluno que não se enquadra ao contexto de aprendizado formal, seja porque
trabalha no campo, seja porque tem dificuldades de aprendizado – o que lhe
confere o estereótipo do “caipira burro”.
Esta identidade criada para o Chico Bento se inscreve em um discurso
preconceituoso e estereotipado, que resulta de uma espécie de simulacro, “uma
identidade pelo avesso – digamos, uma identidade que um grupo em princípio
não assume, mas lhe é atribuída em outro lugar, eventualmente, pelo seu
Outro.” (POSSENTI, 2002, p.156). É a partir da constituição do simulacro do
“caipira burro” que fazem, das várias referências atribuídas a este personagem
como aluno distraído, bagunceiro, que não faz a maioria das atividades, chega
atrasado nas aulas, características identitárias peculiares à vida escolar. São
20
As únicas referências que apresentam estes personagens indo à escola ou usando objetos escolares dizem
respeito à publicidade de produtos escolares com a marca A Turma da Mônica.
107
inúmeras as histórias em que Chico Bento assume tal identidade, com
raríssimas exceções
21
. Fora da escola, este personagem assume outra identidade,
cujos valores são positivamente demarcados através do gosto pelo trabalho, da
religiosidade e da consciência ecológica, por exemplo.
Por mais que possua atributos positivos fora da escola, é o discurso
estereotipado que impera nas HQs de Maurício de Sousa ao situar Chico Bento
na escola. Por isso, a representação de uma aula, na qual este personagem
manuseia um computador, faz com que o texto apresente um modelo de escola
que se globaliza pelas tecnologias. Ao mostrar este personagem, que vive na
zona rural, identificado nas HQs de Maurício de Sousa como “caipira-burro”,
agricultor, operando um aparelho moderno, urbano, o texto ressignifica o
contexto histórico da escola como também os valores históricos relacionados ao
homem do campo. Os rostos dos demais personagens surpresos são
constitutivos de sentidos porque retratam valores que se escondem nas
formações ideológicas entre o ser urbano e do ser caipira, o ser moderno e o ser
“atrasado”.
Essas formações imaginárias instauram sentido à medida que aludem a
determinadas identidades culturais cristalizadas – como a concepção de escola
pública em cidades do interior e a identidade estereotipada associada à imagem
do agricultor – identidades consideradas de modo pejorativo, mesmo sabendo
que, ao lado desta memória discursiva, convive um outro referencial
relacionado à modernização das escolas e ao desenvolvimento das cidades do
interior. Elas identificam Chico Bento como possuidor de conhecimentos
suficientes que o fazem utilizar o computador, meio de comunicação de última
geração e como “incapaz” de ter um bom desempenho escolar, conforme
discursos que materializam os contextos escolares, na maioria das vezes,
pertencentes às formações discursivo-ideológicas desta revista. Então, como
interpretar a figura de Chico Bento na tela do computador?
Se a interpretação para a Análise do Discurso é um modo de ler conforme
condições de produção e a ordem constitutiva do discurso, podemos cogitar
21
A relação de Chico Bento e o contexto escolar foi tema de discussão em minha dissertação de mestrado, na qual
foi evidenciada a predominância de determinados discursos, como o religioso e o ecológico, além dos
estereotipados, entre os quais se encontra o do caipira.
108
sobre duas possibilidades: uma associada aos valores sociais de Chico Bento,
relacionados à sua identidade por pertencimento (BAUMAN, 2005), que ali são
retomados sob uma forma de resistência(?); ou a correlação de interesses
sociais, através da qual convivem valores da identidade local e da identidade
global. Ambas são significativas, porém, em nossa concepção, é a segunda
interpretação a mais condizente com os elementos contextuais e extratextuais,
uma vez que há, por conseqüência do desenvolvimento tecnológico, a inserção
de grupos sociais pertencentes a diferentes culturas ao mundo digital. No
entanto, devemos levar em consideração como este discurso da revolução
digital se insere em meios sociais tão distintos em suas estruturas político-
econômicas. Por isso, mesmo sabendo utilizar um computador, Chico Bento
será sempre Chico Bento, porque as suas condições econômicas não se alterarão
por conta deste aprendizado. Trata-se de uma ambigüidade social, que nega a
relação direta entre nível cultural e nível econômico – é o que na prática social
ocorre.
Desse modo, as formações discursivas que originam a disseminação de
valores do mercado global, existentes em nossa cultura, são configuradas pelo
sujeito-autor através da imagem do Chico Bento utilizando o computador, ou
seja, Chico Bento pode ser concebido como representação da influência e
dominação da cultura global sobre a local; e o computador como referencial de
status social e poder econômico.
É mister afirmar, conforme a perspectiva das identidades múltiplas e
fluidas, que a configuração dessa identidade para Chico Bento reflete a
construção do mundo globalizado por meio das novas tecnologias, que oferecem
o saber e com ele o poder de gerar mais conhecimento. No contexto em que
Chico Bento se encontra, há uma cultura “homogeneizadora” que faz emergir a
capacidade desse personagem ser um “internauta”. Portanto, a imagem de Chico
Bento, associado ao ambiente multicultural da internet, possibilita a este
acontecimento discursivo ressaltar a interpretação do modelo de identidade
global.
Desse modo, o discurso globalizador aqui se apresenta, de certa forma,
reforçando as estruturas sociais de dominação, uma vez que recupera a
109
ideologia da revolução tecnológica, a hibridização entre culturas locais e a
criação de uma cultura de massa universal, através do processo de inclusão
digital: o mercado global conduz a mundialização da informação, modificando
padrões culturais e de consumo, conforme modos de pertencimento e resistência
da cultura local.
Portanto, os discursos produzidos pelo sujeito-autor recuperam a vontade
de verdade instituída pelo sistema econômico globalizador, por meio do efeito
de paráfrase, quando estabelece referências do mercado global ao inserir as
personagens no contexto da educação digital. O processo de formulação do
texto singulariza discursos dispersos que tratam da configuração de identidades
culturais não-fixas, uma vez que trazem à tona conteúdos que revelam a
necessidade da coexistência de várias culturas, redimensionando a condição de
ser moderno, uma vez que “o indivíduo moderno é o paradigma de uma
subjetividade flexibilizada que se integra funcionalmente nos modelos
institucionais propostos” (RUIZ, 2004, p.31), ou seja, neste texto, ocorre a
representação de um modelo de sujeição cultural voluntário e de acordo com a
ordem do contexto social vigente.
3.2 A Turma da Mônica entre contos e telas: um deslocamento
constitutivo de (re)significação de bens culturais.
As histórias em quadrinhos de A Turma da Mônica dialogam com o
gênero Contos infantis, através de um a priori histórico que retoma sujeitos-
autores como Charles Perrault, os irmãos Grimm, Hans Christian, Lewis Carroll
110
e Carlo Colollodi, que criaram bens culturais, inscrevendo novos dizeres desses
contos, inaugurando um novo arquivo, portanto, uma outra memória desse
gênero literário.
Os contos infantis, ao se inscreverem na memória social como referentes
importantes do universo sócio-cultural de crianças, estabelecem discursos de
valorização da fantasia, do sonho, da emoção, quando baseados na função
poética; ou discursos morais e pedagógicos, advindos de arquivos que atrelam a
literatura infantil à função utilitário-pedagógica.
É a partir da memória social e memória discursiva desses contos que o
sujeito-autor Maurício de Sousa cria algumas de suas histórias e capas de
revistas, atualizando os arquivos das HQs e dos contos infantis. Assim, por
meio de estratégias usadas em sua função autoria, o intradiscurso é constituído,
na maioria dos casos, a partir de enunciados formulados parodisticamente:
marca de autoria característica do jogo interdiscursiva em questão.
Para observarmos melhor este entrecruzamento de personagens desses
dois gêneros discursivos, analisamos uma capa e uma história que entrecruzam
seus discursos com os dos contos Pinóquio e Cachinhos de Ouro,
respectivamente.
TEXTO 4
111
Revista Chico Bento, editora Globo, n. 315, ano 1999
Neste texto, o interdiscurso e o intertexto retomados reconstroem o já-
dito e nele inscrevem um novo dizer, um outro acontecimento discursivo, a
partir da memória discursiva do clássico infantil – Pinóquio.
112
A circulação desse novo dizer depende dos arquivos sobre o conto
Pinóquio e a revista Chico Bento, ou, mais precisamente, o personagem Chico
Bento. Os procedimentos externos e internos de circulação desses discursos
delimitam, classificam e ordenam novos sentidos, trazidos pelo sujeito-autor
para a constituição desta capa. Assim, por meio da retomada dos dizeres é
possível estabelecer diferenças no discurso a partir de um desnivelamento
originado entre o dizer que se “apaga” e o dizer que sugere e sustenta novos
atos de discursivização.
Como a imagem textualiza discursos que remetem a determinados
enunciados e estes se relacionam a outros, de uma mesma formação discursiva
(FOUCAULT, 2007a) cada traço, cor, remissões a temas e suas representações
estabelecem na capa a difusão de significados condizentes a esta cadeia
enunciativa que aqui se forma.
Assim, a intertextualidade traz para o texto o boneco de madeira –
Pinóquio – inserido no contexto rural do personagem Chico Bento. Aqui o nariz
de Pinóquio não significa indicação de mentira, mas instrumento utilitário de
coleta de frutas – no caso, goiabas, as frutas prediletas de Chico Bento. Isto
ocorre porque o discurso aqui retomado pela imagem apresenta formas
específicas de um acúmulo discursivo, redimensionado pela positividade deste
dizer: é através dela que se estabelece uma nova continuidade temática sobre
conto e a HQ Chico Bento – uma vez que se instituiu uma nova identidade
formal para ambos os personagens – Pinóquio passa a vivenciar os costumes
rurais, assim como Chico Bento passa a ser um dos amigos de Pinóquio,
fazendo-lhe “roubar goiabas”.
Ao inserir o personagem do conto em um novo acontecimento discursivo,
o autor traz, pela operação da memória discursiva, as características do menino
de madeira e do nariz que cresce a cada mentira contada. Aqui, tais
características assumem uma outra significação, por conta do novo contexto da
revista: ambos os personagens se deslocam de seus lugares instituídos pela
formação discursiva do conto e da HQ para fazerem o novo sentido acontecer.
Desse modo, a leitura do texto evidencia a interdiscursividade dos dois objetos
culturais – conto e revista em quadrinho – que fazem parte do universo cultural
113
da criança-leitora. Este novo sentido traz, para o leitor, outras referências
semânticas, por conta do campo de utilização da memória social desse conto: o
efeito de sentido formulado pelo autor é regulado pelo gênero quadrinho e pelo
seu estilo. Além disso:
Os textos individualizam – como unidade – um conjunto de relações
significativas. Eles são assim unidades complexas, constituem um
todo que resulta de uma articulação de natureza lingüístico-histórica.
Todo o texto é heterogêneo: quanto à natureza dos diferentes
materiais simbólicos (imagem, som, grafia etc.); quanto à natureza
das linguagens (oral, escrita, científica, literária, narrativa,
descrição etc.); quanto às posições do sujeito. (ORLANDI, 1999,
p.70).
É com base na concepção de que o discurso é uma dispersão de textos e o
texto é uma dispersão de sujeitos que a leitura aqui deve ser compreendida.
Assim, as formações discursivas que atravessam a capa desta HQ favorecem o
processo de produção de sentidos que o sujeito-leitor, ao se deparar com as
pistas textuais que o autor expõe no texto, é levado a realizar. Logo, por
intermédio do jogo de vozes presente na materialidade discursiva – a voz do
conto e a voz da HQ de Chico Bento - o projeto totalizante do autor faz com
que o processo de produção de sentido acione um arquivo, sobre o qual se
constrói este dispositivo analítico: a relação autor/texto/leitor na retomada
deste arquivo, moldando-se à configuração do texto em quadrinhos na
formulação de uma nova história. Isto ocorre porque “o interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma
situação discursiva dada.” (ORLANDI, 1999, p.31).
Esta relação do texto com seu acontecimento faz com que o sentido
anterior seja desautorizado, instalando-se um outro sentido que segue a
proposta de textualização objetivada pelo autor. A ruptura ocorrida se dá pelo
viés humorístico que, por meio da projeção do conto, sustenta-se a relação
entre a paráfrase (o já-dito) e a polissemia (o novo acontecimento desse já-
dito).
Portanto, o trajeto do sentido, que o texto aqui assume, só poderá ser
reconhecido e interpretado quando o sujeito-leitor desvendar os sentidos
exteriores ao texto, recuperando-lhe a historicidade. Isto ocorre porque a
114
interpretação depende tanto da percepção da rede de discursos que envolvem os
sentidos quanto das possibilidades de leitura, capazes de situar os sentidos dos
dizeres no espaço do deslocamento e da polêmica. É o que ocorre nesta capa,
quando a consideramos expressão de uma individualidade que fundamenta a
representação estética de um estilo, de uma obra.
Vamos perceber, através dos arquivos, que tanto a rarefação quanto a
dispersão dos dizeres e, conseqüentemente, dos sentidos, seguem uma ordem
que podemos considerar inerente às práticas discursivas das histórias em
quadrinhos de Maurício de Sousa e que aqui vão delimitar e determinar formas
de articulação material e simbólica do já-dito. Assim, pelos movimentos do
retorno e do acontecimento, a sinalização das diferenças – Pinóquio é
configurado em um molde bastante peculiar às HQs de Maurício de Sousa – e
da regularidade – a relação de seus personagens com algum operador de
memória social ou referente cultural, fazem com que este processo de figuração
temática realizada pelo autor construa uma outra cena enunciativa, ao
apropriar-se dos referentes do conto infantil Pinóquio.
TEXTO 5
115
116
Revista Magali, editora Globo, n. 289, ano 2000
117
Como sabemos, a unidade textual é um efeito discursivo provocado pela
função-autor, uma vez que centraliza, ordena e dá coerência ao discurso: “o
autor é o lugar em que realiza esse projeto totalizante, o lugar em que constrói
a unidade do sujeito.” (ORLANDI, 1999, p.73). Nesse sentido, as
possibilidades de aparecimento de determinados enunciados e a circulação de
certos dizeres com seus respectivos sentidos limitam a descontinuidade do já-
dito. Portanto, para compreendermos como o texto funciona é preciso
compreendê-lo em sua dimensão lingüístico-histórica, é entender como se dá a
constituição de sua discursividade.
Por não existir um sentido dado a priori, mas sentidos que são
construídos nas práticas discursivas (Foucault, 2007), podemos perceber que a
materialidade dos enunciados presentes na história protagonizada pela família
de ursos remete ao conto Cachinhos Dourados ou Cachinhos de Ouro, cujo
movimento de construção dos sentidos realizado pelo sujeito-autor situa o
discurso e o seu acontecimento às margens do arquivo desse conto e da
constituição identitária de sua personagem Magali.
A produção dos dizeres aqui é regulada por formações discursivas que
advêm do discurso do conto infantil, que traz a história de uma menina loira,
que se perde na mata e encontra a casa da família de ursos, na qual entra e
come da sopa que estava esfriando na mesa. Esta referência ao conto é trazida
para o texto na forma de alusão, cujos referenciais temáticos só são
mencionados superficialmente. Para Fiorin (2003) a alusão funciona no texto
como um procedimento de citação do discurso alheio, ou seja, o já-dito, a partir
da retomada de algumas informações conceituais ou representativas desses
conceitos, em termos da interdiscursividade; no sentido da intertextualidade, a
alusão ocorre quando se faz a referência de algumas partes do texto original,
podendo ser usada para estabelecer o mesmo sentido ou modificá-lo.
No caso do texto em questão, temos o estabelecimento de um novo
discurso ao se constituir em um outro dizer por meio da modificação,
deslocamento dos sentidos do texto com o qual os quadrinhos discursivizam.
Assim, encontramos no texto dados que demarcam a relação interdiscursiva que
traz a personagem Magali, identificada pela turma como “gulosa” e “comilona”,
118
assumindo o papel da menina dos Cachinhos dourados. Do mesmo modo que
acontece no conto, Magali surge inesperadamente na casa da família de ursos.
Esta comparação se torna possível e legítima já que os sentidos se tornam
enunciáveis pela ação da memória discursiva, trazendo para este gesto de
interpretação os enunciados pré-construídos e os elementos citados – condição
para haver o jogo das regularidades e desregularidades - ou seja, a tensão
dialética que provoca diferentes efeitos de sentidos.
No deslocamento do discurso do conto para o discurso da HQ percebemos
que este redimensiona aquele. Assim, à medida que o sujeito-autor traz para a
materialidade discursiva recursos polissêmicos responsáveis pelo sentido da
HQ, passamos a considerar o humor como uma estratégia discursiva capaz de
motivar o princípio dialógico estabelecido entre as formações discursivas
desses gêneros textuais aqui pontuados.
Sabemos que o sistema de enunciabilidade de um discurso está atrelado
ao sistema de seu funcionamento. Desse modo, considerando o contexto de
produção desta HQ, a lei do que pode ser dito, aqui, diferencia os discursos
presentes nos contos infantis, especificando, assim, os enunciados típicos dos
quadrinhos de Maurício de Sousa, situados no campo de elementos recorrentes
dos arquivos do conto Cachinhos de Ouro. Por isso:
Dizer que a interdiscursividade é constitutiva é também dizer que um
discurso não nasce, como geralmente é pretendido, de algum retorno
às próprias coisas, ao bom senso, etc. mas de um trabalho sobre
outros discursos.” (MAINGUENEAU, 1997, p.120).
Por materializar discursos que promovem a dispersão dos sentidos no
conto, o sujeito-autor ao reconstruir e reconduzir estes dizeres, segue “a ordem
do discurso” de suas HQs: as características da Magali novamente aparecem
para estruturar a base polissêmica dos enunciados. Assim, a relação com o já-
dito se faz por meio das formações discursivas das HQs de A Turma da Mônica
com as do conto infantil, cuja regularização se dá a partir de elementos que
deslocam sentidos no processo de formulação da paródia.
As vozes demarcadas, na construção desse texto, materializam
determinados discursos responsáveis pelo humor, ao fazer com que a
119
personagem Magali não concretize ações que ocorrem no conto, principalmente
no que se refere ao ato de comer. Os enunciados – “Rápido!Rápido!Rápido!”,
“Comam rápido!” e “É melhor na vacilar com esta menina rondando a nossa
casa!!”, ditos pelo pai urso, - estabelecem o deslocamento do sentido do conto,
no último quadrinho, fazendo com que a unidade textual seja estruturada a
partir de determinadas regras de formação, que promoveram a paródia nesta
HQ.
Portanto, a relação entre o interdiscurso e o intradiscurso produz a
realidade do discurso: o que é repetível instaura-se através da formação
discursiva e do domínio do saber do sujeito-autor. É a memória discursiva
atrelada à memória social dos contos infantis que constitui o universo
simbólico apresentado nesta história. Por isso, ao formular um texto
articulando as várias linguagens, o autor imprime no já-dito a criatividade e o
humor responsáveis pela atribuição de novos sentidos ao texto: é o processo de
recorrência, aditividade e rarefação, analisados por Foucault (2007) que faz
com que este sentido e não outro seja veiculado na história.
Ao instituir a unidade textual que lhe é constitutiva, o sujeito-autor
elabora estratégias discursivas que trazem para o texto a presença marcada da
polissemia quando, ao recuperar, por meio da intertextualidade e da
interdiscursividade, uma parte dos referenciais principais do conto Cachinhos
Dourados, estabelece a relação entre o mesmo e o diferente através da alusão e
da textualização dos quadrinhos.
Por ser a linguagem caracterizada pela incompletude, esta suposta
unidade passa a ser considerada como uma das possibilidades materializadas
dos inúmeros sentidos existentes. Assim, entre identidades e diferenças se faz o
jogo entre a paráfrase e a polissemia: é a relação entre o interdiscurso e o
intradiscurso que produz a realidade do novo acontecimento discursivo.
Desse modo, os elementos que restringem ou ampliam as possibilidades
de leituras polissêmicas decorrem da articulação da língua com a história, dos
símbolos icônicos com os arquivos do conto infantil, fazendo com que se
estabeleça a relação entre o sentido e a memória e a delimitação dos modos de
interpretação conforme lugares destinados ao leitor e ao autor. Por isso, o texto
120
em questão, enquanto estrutura enunciativa e dialógica deve ser entendido na
perspectiva da construção de um novo saber por meio de um saber comum, ou
seja, enquanto retomada e deslocamento do já-dito, provocada pelo efeito
polissêmico.
Esta mesma relação dialógica estabelecida entre os discursos é retomada
pelo sujeito-autor ao desenvolver o projeto História em Quadrões, por meio do
qual trabalha com duas memórias sociais: uma atrelada aos ícones das artes
plásticas; a outra associada aos perfis identitários de seus personagens. Assim,
viajando pelas mais diferentes paisagens culturais, em diferentes épocas, o
sujeito-autor Maurício de Sousa seleciona referências artísticas, recriando telas
que dialogam com a história e a memória das artes plásticas. Estas são trazidas
para as crianças leitoras, que passam a interagir com o trabalho de pintores
clássicos e modernos, por meio do livro ou da visitação à pinacoteca da
Maurício de Sousa produções, de cujo acervo selecionamos duas telas para
serem analisadas.
TEXTO 6
121
A Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, criada entre 1503 e 1506, faz parte
do acervo do museu do Louvre, em Paris, e aqui é retomada a partir das
relações de semelhança estabelecida com a personagem Mônica. O
funcionamento discursivo do texto define, dentro do campo da representação,
um efeito de indicações que ligam por meio de atualizações a Mônica à Mona
Lisa. São cores, gestos, semblante, ambiente, roupas que a identificam e a
aproximam da obra de Leonardo da Vinci.
122
O enunciado “Mônica Lisa” é marca textual que indica o modo como o
diálogo intertextual se estabelece: o vínculo entre a memória discursiva e a
atualização deste tema converge para a construção de sentidos que retomam
uma figura do passado, através do efeito de repetição de símbolos importantes à
memória social dos grandes pintores.
Essa inscrição, que nomeia o novo texto, sinaliza o entrecruzar de valores
culturais de duas memórias sociais distintas: a das telas e a das HQs de
Maurício de Sousa.
Como a proposta do projeto História em Quadrões é fazer os sujeitos-
leitores conhecerem os ícones das artes plásticas por meio do traço do sujeito-
autor Maurício de Sousa, a própria reprodução das telas associadas às imagens
dos personagens de A Turma da Mônica evidencia a presença do Outro no
discurso, situando as imagens entre a heterogeneidade constitutiva e a marcada.
Este fato auxilia o leitor a perceber o arquivo a que faz referência à tela
“Mônica Lisa”, possibilitando leituras legitimadas pela função-autoria. Nesse
sentido, ao ser reconhecida a marca de autoria, reconhece-se, também, as
marcas que fazem de cada tela um índice de identidade cultural: os nomes das
personagens, dos autores e o contexto histórico de sua constituição delimitam
informações importantes, que atribuem valores histórico-culturais importantes
ao projeto.
É o que acontece também com a tela denominada O Lavrador de Café, de
Cândido Portinari:
TEXTO 7
123
O Lavrador de Café, criado em 1934, faz parte da exposição permanente
de telas do MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Ele é
interpretado e atualizado pelo sujeito-autor por meio das características de seu
personagem Chico Bento. Por ambas as telas tematizarem a questão do trabalho
braçal, no campo, a releitura de O Lavrador de Café só poderia ser
representada por Chico Bento – por ser nas HQs de Maurício de Sousa
identificado como agricultor.
Novamente a estratégia discursiva utilizada pelo sujeito-autor recupera
traços característicos e definidores do espaço social ocupado pelas personagens
em questão, criando o liame entre eles, através de semelhanças. Este
124
procedimento aqui se faz pelo gesto, olhar, vestimenta e paisagem, além da
relação mantida entre os temas das telas, com o deslocamento do personagem
desta HQ para o contexto retratado por Portinari: Chico Lavrador de Café.
A interdiscursividade e a intertextualidade, atribuída ao nome da tela, faz
o liame entre os dois personagens e a relação de sentido estabelecido pelo
sujeito-autor. Isto ocorre por meio de um discurso lúdico que, ao provocar o
novo sentido, estabelece a ponte entre o dito e o já-dito, quando se utiliza
também de determinados referenciais icônicos que possibilitam a retomada de
uma memória histórica, decorrente desse acontecimento discursivo, através de
regras que define o regime dos objetos:
Analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços
aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se
um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas regras
definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico
de um vocabulário, mas o regime dos objetos. (FOUCAULT, 2007a,
p.55)
Este regime dos objetos, atestado por Foucault, é o modo como os
discursos se materializam e como são constituídos os sentidos dos objetos de
que tratam.
No caso da análise discursiva dos textos em pauta, o processo de
construção de sentidos retomam uma memória histórica de personagens, temas e
pintores das artes plásticas do mundo. Ao fazer releituras das telas e inserir
seus personagens em contextos semelhantes, de várias épocas, estilos e lugares
diferentes, o sujeito-autor articula discursos que se entrecruzam, fazendo com
que se especifiquem determinadas características identitárias. Por isso, ao
desenvolver seu projeto de reconstrução de identidades sócio-culturais, o
sujeito-autor se insere em um tipo de identidade social que o aproxima das
referências, por exemplo, de Leonardo da Vinci, Cândido Portinari, Van Gog,
Michelângelo, entre outros, fazendo com que seus personagens também se
identifiquem enquanto símbolos culturais da pintura universal. Desse modo, ao
criar novas identidades para Mônica e Chico Bento, o autor traz para as telas a
relação descontínua entre o discurso e a história, sedimenta a identidade de
125
seus personagens em um diálogo sócio-histórico e polissêmico, produzindo uma
leitura que insere seus leitores-crianças no multiculturalismo.
O jogo que há entre a paráfrase e a polissemia aqui se estabelece porque
o sujeito-autor desloca as marcas identitárias de seus personagens das HQs para
as telas de pintores culturalmente reconhecidos. Assim, ao recuperar as
semelhanças por meio da aproximação das cores, tons, formatos e expressões
dos personagens envolvidos se estabelece a paráfrase, situando o sentido em
relação à voz da memória social aqui retratada; ao promover os deslocamentos
de sentidos na formulação do texto, neste outro acontecimento, se instaura a
polissemia, demarcando um novo rosto e uma nova identidade para Mônica e
Mona Lisa, Chico Bento e o Lavrador de Café. Portanto, a memória histórica
vinculada às imagens e aos enunciados verbais possibilita o sujeito-leitor
compreender a maneira como as telas de Leonardo da Vinci e de Cândido
Portinari foram ressignificadas por Maurício de Sousa ao colocar, ao lado de
suas pinturas, os textos fundadores com os quais pôde dialogar. São duas
memórias que apresentam discursos singulares, já que Mona Lisa e o Lavrador
de Café possuem as suas especificidades, assim como Mônica Lisa e Chico
Lavrador de Café possuem a sua identidade. No entanto, por conta do jogo
estabelecido entre as semelhanças e as diferenças desses ícones culturais,
estabelece-se um novo referencial discursivo constituído pela heterogeneidade
de enunciados que retomam o já-dito, ampliando a dimensão de sua
significação.
3.3 No processo discursivo da cultura nacional: marcas identitárias de
subjetivação
Por serem sedimentadas pela história, as práticas sociais e culturais
compartilham anseios e desejos passados de geração a geração, alimentados
126
pela memória social, cujas coerções e legitimação de valores históricos criam
categorias de representação identitária decorrente da organização e
funcionamento do próprio sistema cultural. Desse modo, através da
representação de elementos importantes à memória social, a cultura nacional é
(re)vista nas HQs de Maurício de Souza em contextos do cotidiano que
simbolizam o modo de vida de nosso povo.
O apropriar-se de determinados discursos que refletem e refratam a nossa
realidade cultural e a nossa memória história, faz com que o sujeito-autor se
subjetive, uma vez que ele “existe à medida que se insere num tipo de
identidade social” (RUIZ, 2004, p.30). Portanto, os conteúdos temáticos
abordados em suas HQs fazem com que sejam delimitados crenças, valores,
comportamentos cristalizados em nossas práticas sociais e atualizados em cada
capa ou história, segundo rede simbólica de representações assumidas pelo
sujeito-autor como verdadeiras, uma vez que tais referências são recorrentes em
suas HQs.
Para fins de análise, fizemos um recorte dos inúmeros textos que
tematizam a identidade da nação brasileira, selecionando os temas mais
recorrentes: cultura religiosa, patriarcal e representação folclórica. Iremos
focalizar a análise a partir do conteúdo imagético e de enunciados utilizados
por personagens que, por meio de seu discurso e do contexto em que se
inserem, manifestam práticas culturais decorrentes do processo histórico de
formação do povo brasileiro. Desse modo, utilizaremos capas, tiras e histórias,
para compor um quadro de amostragem desses referentes culturais e, a partir
deles, desenvolveremos o nosso estudo.
O primeiro recorte feito diz respeito às práticas religiosas. As referências
religiosas aparecem, basicamente, em quatro contextos narrativos: 1. Nas
histórias do personagem Papa-capim (contexto indígena); 2. Nas histórias da
Turma do Penadinho; 3. Nas histórias do personagem Anjinho e 4. Nas histórias
do personagem Chico Bento. Além disso, é importante frisar que a religiosidade
ou, melhor dizendo, a prática religiosa é trazida para estes contextos de modo
diverso. Para entendermos melhor este fato, faz-se necessário levarmos em
127
consideração os referentes culturais e históricos que estão atrelados a estes
contextos, como também a constituição eclética da nossa cultura religiosa
enquanto resultado da formação da nação brasileira.
Como conceitos, dogmas e doutrinas de diferentes cultos religiosos são
tematizados nestas HQs, é possível afirmar que temas sobre espíritos que
vagam pela mata, reencarnação, vidência, vida após a morte, paraíso celeste,
pecado, anjos e demônios, entre outros, sejam legitimados, ou tomados por
verdadeiros, em contextos específicos, porque: 1. A história da formação do
povo brasileiro apresenta-nos como os aborígenes praticam a sua religiosidade
– algo que é concebido e aceito enquanto discurso verdadeiro, pois faz parte da
cultura indígena; 2. A idéia de espírito que vagueia depois de morto, remete ao
que se conhece popularmente por “alma penada”, focalizando, assim, a
existência da vida após da morte, em sentido amplo, e a existência de um
mundo paralelo ao nosso – o espiritual; 3. O cultivo religioso de determinados
agrupamentos sociais demonstra a necessidade de haver ligação com o plano
espiritual, por meio de determinados comportamentos legitimados pela
instituição religiosa: rituais, celebrações e adoração a anjos e santos. Assim,
nas histórias de Papa-capim e da Turma do Penadinho, falar em espírito, em
morte, em vida além-túmulo é natural; como também é natural tratar de
catecismo, pecado, anjos da guarda e tentações nas histórias de Chico Bento e
do Anjinho, uma vez que tais narrativas promovem, por meio de um discurso
lúdico, a reafirmação de valores religiosos existentes em nossa cultura.
Diante disto, ateremo-nos, portanto, a temas que traduzem o
reconhecimento do mundo espiritual e como este discurso religioso vem
materializado em histórias de “assombração”, ambientalizadas em cemitérios,
velórios, na mata, na rua e até em casa dos personagens supracitados, fato
bastante conhecido pelos leitores destas HQs. Vejamos:
TEXTO 8
128
129
130
131
132
133
Almanaque Magali, editora Globo, n. 41, ano 2004
O Culto aos mortos aparece nos quadrinhos por meio dos contextos e
cortejos fúnebres das histórias que tratam de velório e cemitério ou daquelas
em que aparece a figura da morte. Geralmente encontramos este tema
desenvolvido nos quadrinhos de A Turma do Penadinho, cujo nome já remete à
134
idéia de “alma penada”, ou seja, ao discurso da crença da vida após a morte, da
existência de espíritos que vagam pela Terra e do plano espiritual.
Nesta história, intitulada de “A Carpideira, encontramos, pois,
vinculado à imagem da personagem central, um discurso que recupera uma
memória histórica presente, hoje, em alguns lugarejos do interior do Brasil
22
.
A imagem da Carpideira atualiza discursos referentes a uma prática
cultural milenar. Desde a antiguidade diferentes povos cultuam seus mortos,
dando enorme importância às cerimônias fúnebres. Assim, as Carpideiras foram
conhecidas em quase toda a Europa pela função que exerciam nos funerais:
eram contratadas inicialmente para chorar, cantar, dançar e homenagear o
morto. Havia uma tabela de preço para cada tipo de choro, por isso, coletavam
as lágrimas em pequenos tubos, para depois receber o pagamento da família
conforme a quantidade de líquido armazenado. Geralmente eram contratadas
por famílias de destaque, dando status ao funeral: quanto mais Carpideiras,
mais elevada era a posição do morto. A civilização romana conheceu dois
grupos de Carpideiras: as Prefica – pagas para cantar e as Bustuária – pagas
para acompanhar o cadáver e pranteá-lo. Com o passar do tempo, as Prefica
passaram a iniciar o canto da missa, entoando louvores com voz apavorante,
impressionando os familiares do morto.
Esta memória histórica vem representada por elementos estéticos
característicos do gênero quadrinhos, que ressaltam o choro teatral da
Carpideira, por meio do enquadramento da personagem na descrição de cada
cena e a mudança repentina de seu comportamento, quando diz: “Sinto muito!
Estou só fazendo o meu trabalho”, “Não, Carpideira. Daquelas que choram nos
funerais para incentivar os outros!”, Não é possível, preciso achar um freguês
decente!” e “Oh, não! E agora? Como faço pra pagar minhas contas? BUÁÁÁ!
BUÁÁÁ!”; assim como os elementos lingüísticos que denotam a dor e o
desespero de quem perdeu um ente querido: “POR QUE VOCÊ FOI MORRER?!
POR QUÊÊÊ?!”, “BUÁÁÁ! PENADINHO!”, “AI, ZÉ VAMPIR, ZÉ VAMPIIIIIR.
22
Embora as Carpideiras brasileiras sejam pouco conhecidas nos grandes centros, elas se encontram presentes
na zona rural e em subúrbios das cidades. São conhecidas também como “cantadeiras de inselências”.
135
POR QUE VOCÊ MORREU?! ERA TÃO BOM, TÃO BOM, TÃO BOOOOOM” e
AI, MUMINHO, MUMINHO, MUMINHO...”
O tom histérico dado ao choro dessa personagem aparece por meio da
representação da extensão do som, das onomatopéias e das letras maiúsculas,
relacionado ao enunciado de Penadinho – “Ei! Quer parar com esse barulho?
Tô tentando descansar em paz.”, trazem para o texto o humor, ao deslocar
sentidos vinculados à Carpideira e às cerimônias fúnebres na textualização de
enunciados que fixam seus limites, em uma unidade de significação que trata de
uma prática social antiquíssima, sob o olhar de um autor que faz da raridade
discursiva o meio de se estabelecer a positividade dos discursos de suas HQs. O
enunciado “Tô tentando descansar em paz”, portanto, recupera o discurso
religioso que prega a crença do descanso eterno, após a morte. Este discurso,
atrelado ao contexto enunciativo, salienta também a existência da última
morada.
Um outro elemento importante é o estabelecimento do diálogo, fazendo-
nos remeter este fato às comunicações mediúnicas – ou melhor, entre espíritos
encarnados e desencarnados. Conforme referentes doutrinários relativos ao
Espiritismo, temos aqui estabelecida a comunicação entre a Carpideira (que
está viva) e o Penadinho (que está morto), através da figurativização da
mediunidade da vidência e da audiência
23
. A comunicação se dá de modo tão
natural, que podemos associá-la ao que prega o discurso filosófico-religioso
kardecista sobre os fenômenos mediúnicos. Em contrapartida, o Penadinho
dialoga em seu túmulo, o que evidencia, entre o dito e o não-dito, um discurso
religioso que profetiza sobre o julgamento final – ou seja, “o juízo final”; até
isto ocorrer, as almas “descansam em paz” nos seus túmulos.
Nesta teia interdiscursiva, traçada pelos discursos religiosos em questão,
existe um ponto de convergência aqui evidenciado: a crença na vida após a
morte – o que vai mudar é o ponto de vista, o valor, o modo de conceber o
mundo espiritual, isto é, a vontade de verdade estabelecida por estas
instituições religiosas.
23
Sobre esta questão há uma vasta literatura espírita. A título de exemplo temos O livro dos espíritos e O livro
dos médios, ambos de Allan Kardec.
136
Esses pontos de convergência existentes entre as religiões supracitadas
correspondem ao que Foucault (2007a) afirma sobre o feixe de relações que
constitui um sistema de formação conceitual das formações discursivas. Assim,
o sujeito-autor ao se utilizar dessa estratégia interdiscursiva, para narrar esta
história, traz dizeres recorrentes na nossa prática social, delimitando conceitos
e apagando suas discordâncias, recompondo discursos que fazem do texto desta
HQ um operador de memória social de referentes ideológicos de nossa cultura
religiosa.
Sendo a enunciação um acontecimento irrepetível, os discursos do
descanso eterno e da vida após a morte nesta HQ produzem efeitos de sentido
capazes de atualizar e caracterizar este já-dito em relação ao que o condiciona:
o humor típico de suas HQs. Os enunciados finais - “Essa não! Onde já se viu
uma carpideira assim? Não se sabe se chora... Ou se ri? e “Buááá´... Ah, Ah,
Ah, Ah! Buááá´... Ah, Ah, Ah, Ah! Buááá´... Ah, Ah, Ah, Ah!” – demonstram a
instauração de uma nova ordem dos sentidos, que está filiada às formações
discursivas características das HQs do sujeito-autor Maurício de Sousa. No
caso do tema “morte” e do sub-tema “vida após a morte”, do texto em questão,
percebemos que a condução dada a esses conteúdos pelo sujeito-autor
determinará leituras e sentidos que nos fazem perceber que as materialidades
discursivas repetíveis, nesta história, fazem juz ao nosso ecletismo religioso.
Em se tratando de práticas realizadas pelos vivos e para os vivos,
encontramos o ritual litúrgico da igreja católica ou a menção a um de seus
sacramentos, a prática da caridade e histórias bíblicas. Geralmente, nas HQs de
A Turma da Mônica, a figura da igreja está associada ao personagem Chico
Bento, por ser caracterizado como uma criança religiosa. Observemos as
seguintes tiras:
TEXTO 9
137
A tira 1 materializa valores do catolicismo que dizem respeito à retidão,
ao bom caráter, à prática do bem condicionadas pela crença na vida eterna. A
descrição do contexto enunciativo nos remete a aulas de catecismo, legitimadas
pela figura do padre – representante de Deus na Terra. O elemento lingüístico
do texto – céu - aborda a existência do paraíso celeste, assumindo o sentido
utilizado nos discursos religiosos que apregoam e disseminam a palavra de
Deus por meio do evangelho – informação que está inserida apenas no único
dado linguístico da narrativa sequencial. Este acontecimento discursivo
corresponde ao que Le Goff (2003) afirmara sobre o ritual litúrgico de
celebração eucarística, como sendo a manifestação da memória cristã.
24
. Em
decorrência da prática dos rituais litúrgicos, podemos ainda considerar que,
aqui, a verdade oficializada pela igreja católica sobre a última morada, após a
morte, “circula como um hábito natural que deve ser cumprido para que os
mecanismos institucionais se articulem eficientemente” (RUIZ, 2004, p.25),
tendo em vista que o aprendizado eucarístico é interiorizado como um valor
inquestionável que deve ser assumido no dia a dia de cada indivíduo – é o que
acontece com Chico Bento.
TEXTO 10
24
De acordo com os preceitos da Igreja Católica, são sete os sacramentos: o batismo, a confirmação ou crisma,
a eucaristia, a penitência ou confissão, a ordem, o matrimônio e a extrema-unção.
138
Revista Chico Bento, editora Globo, n. 315, ano 1999
Com relação à segunda tira, verificamos o valor do sacramento católico –
confissão. Essa atitude de Chico Bento representa, aqui, as visões de mundo do
sujeito-autor, que assumiu um discurso religioso que trata da crença da
existência de Deus e do paraíso celestial, concebendo o homem como pecador,
por meio de uma formação ideológico-discursiva, que recupera a memória
social sobre o papel dos representantes da igreja católica. Como podemos
verificar nos enunciados “Padre! Num cometi ninhum pecado nesta semana!” e
“Drumi o tempo todo”, o personagem não considera a preguiça um pecado, por
139
isso o padre se espanta com a ingenuidade e a ignorância de Chico Bento, no
último quadrinho.
A relação de poder é nesta tira representada pelo lugar social ocupado
pelos personagens, e o sentido nela construído apresenta a verdade religiosa e o
poder institucional entrelaçados e simbolizados pela figura do padre –
representante de Deus na Terra, segundo ideologia da igreja católica, uma vez
que:
a verdade é constituída como uma forma eficiente de poder que
concomitantemente legitima aqueles mecanismos de poder que
instituem a formação da verdade. O poder institui a verdade e a
verdade legitima o poder.” (RUIZ, 2004, p.22)
Daí se destacar que a verdade só assume a sua legitimidade se estiver
respaldada em relações sociais de poder. No caso dos quadrinhos destacados, a
verdade social é gerenciada pelo suporte institucional enquanto valor ético e
moral, tecendo, assim, o consenso social discursivamente.
Desse modo, por ser o enunciado uma função, que possui existência
material lingüística ou não (FOUCAULT, 2002) ou estar associado a uma
estrutura verbal (BAKHTIN, 2003), inserida em um determinado gênero que
circula conforme especificidades do contexto de enunciação, podemos
confirmar que na nossa leitura, de acordo com as perspectivas de ambos os
autores, o texto não verbal, simbolizado pela figura do padre, espantado e em
silêncio, traz para o contexto do diálogo o discurso da desaprovação da igreja,
salientando que Chico Bento, apesar de possuir a fé como uma de suas marcas
identitárias, peca. Embora a simbolização remeta ao ato confessional, por conta
do próprio contexto de enunciação, é o suporte, o gênero quadrinhos e a
função-autoria que transformam este ato de fé em humor, quando às
características do gênero - tira - são acrescentados enunciados decorrentes das
escolhas enunciativas realizadas. É o que acontece entre o segundo e o terceiro
quadrinhos da tira, quando ocorre a mudança no percurso da significação por
140
conta da representação de uma má conduta humana, considerada pela igreja
católica como pecado capital
25
– a preguiça.
TEXTO 11
Revista Chico Bento, editora Panini, n. 11, ano 2007
Como podemos perceber, o tema do pecado novamente aparece no
terceiro texto. A autoridade da igreja – representada pela figura do padre
25
As primeiras referências ao tema dos pecados capitais datam do século IV antes de Cristo. Porém, é com Tomás
de Aquino que a doutrina dos sete pecados capitais atinge a máxima profundidade, por volta do ano de 1250.
Tomás de Aquino ensina que os vícios capitais comandariam outros a eles subordinados. É a partir dessas
referências que a Igreja Católica, na idade média, estabelece que os pecados capitais são a soberba, ira, gula,
inveja, cobiça, luxúria e preguiça.
141
punindo a personagem Rosinha por ter namorado, através do enunciado “Cinco
Ave-Marias e cinco pais-nossos!” materializa as práticas coercitivas do
aparelho ideológico Igreja que induz seus adeptos a seguirem as determinações
de vigilância e de oração, evitando pensamentos, atitudes e palavras
pecaminosos.
Como partilhamos de valores, saberes sociais, sabemos que as questões
relacionadas à sexualidade são retratadas pela igreja católica como um tabu,
como o “pecado da carne”, estando, assim, associado à luxúria quando não
legitimada pelo sacramento do matrimônio. É evidente que a tira não trata
concretamente do pecado capital luxúria, mas, por alusão à sexualidade,
podemos remeter este dizer, que não está nos quadrinhos, mas atrelado ao
conjunto de enunciados que pertencem ao mesmo campo de significação, às
mesmas formações-ideológicas desta instituição religiosa.
Por isso, a penitência a ser cumprida pela personagem Rosinha resulta
aqui de referentes de uma memória social que disciplina, ensina, pune, por
meio de arquivos que veiculam verdades sócio-históricas que controlam a
aparição de dizeres: não se pode pensar e falar sobre assuntos não autorizados,
tampouco pôr em prática esses pensamentos, uma vez que os princípios de
vigilância do dizer resultam das verdades internalizadas em práticas sociais e
institucionalizadas. Estas últimas interferem as práticas discursivas do
cotidiano: é o que acontece na tira. Um valor religioso não está sendo
cultivado, respeitado, vivenciado no dia-a-dia da personagem Rosinha, assim
ela precisa orar e vigiar e o padre precisa vigiar e punir, enquanto pastor, as
suas ovelhas, para que não se percam, não se distanciem do caminho do bem,
conforme memória social e discursiva do catolicismo. Este fato corrobora,
portanto, a formulação do discurso e sua veiculação associada a determinadas
regras que o legitimam. Sendo assim, a própria sociedade delimita as condições
possíveis de o discurso circular, como também faz com que alguns dizeres
sejam proibidos.
Os discursos do pecado mortal, da existência do paraíso celeste e do
inferno também se fazem presentes através das imagens dos Anjos, Santos e do
Diabo. Vejamos a seguinte história, protagonizada pelo personagem Anjinho:
142
TEXTO 12
143
Revista Cebolinha, editora Globo, n. 150, ano 1999
Nos quadrinhos apresentados, as figuras do Anjinho e do Diabo
representam os arquétipos criados pela própria igreja. Ambas as figuras
salientam duas forças antagônicas, o bem e o mal, relacionadas ao tema da
“proteção divina” e ao “pecado mortal”, visto que é essa concepção religiosa
enaltecida por essas representações, respectivamente, que reforçam dogmas que
fazem parte da memória discursiva das pessoas que crêem na existência de
Deus e a ele são tementes. Assim, o discurso da existência do céu e do inferno
aparece, pois, resultante do processo de formação discursivo-ideológica da
144
igreja católica atrelando as imagens do Anjo e do Diabo a verdades
cristalizadas por práticas sociais resultantes do modo de vida de um povo.
Essas verdades, relacionadas às instituições religiosas, ao serem
veiculadas nesta HQ “induzem os modos de comportamento, inibem condutas
consideradas reprováveis, estimulam valores tidos como essenciais, reprimem
atitudes vistas como nefastas” (RUIZ, 2004, p.29), uma vez que o discurso
lúdico associado ao discurso pedagógico apresenta - e, por que não dizer,
reforça - o modelo comportamental a que todo indivíduo deve seguir segundo
ditames sócio-culturais.
Partindo desta condição, o diálogo mantido entre os personagens traz
discursos que circulam no meio social, monitorados pelas regras de circulação e
funcionamento dos dizeres, uma vez que particulariza e singulariza as
referências feitas aos elementos componentes da memória social. Desse modo,
os enunciados “Eu tenho muitos nomes! Mas isto não interessa! Vamos logo
para os negócios!”, “Vamos direto ao assunto! Estou dando uma chance de
você não precisar mais proteger esse bando de moleques.” “Passe para o nosso
lado que as suas preocupações vão acabar!” “Pense bem! Estando do nosso
lado, aquela garota dentuça não vai mais bater em você.” e “Largue esta vida
de Anjo da Guarda” simbolizam a tentação do diabo, que apresenta ao
personagem Anjinho as benfeitorias, os “presentes” que poderá ganhar se
deixar de cumprir a sua função: proteger as crianças que fazem parte do círculo
de amizade da personagem Mônica.
Esse discurso “diabólico”, vinculado ao final da história e ao enunciado
atribuído aos chefes dos demônios “E desde quando a gente precisa contratar
anjo da guarda?” traduz a referência religiosa cristã de que é preciso “Amar o
próximo como a si mesmo” e “É dando que se recebe” atrelado ao ditado
popular “Fazei o bem sem olhar a quem”. São interdiscursos que
implicitamente salientam a importância da prática do bem e a importância do
cumprimento dos mandamentos cristãos. Desse modo, mesmo o Anjinho sendo
tentado pelo diabo, ele o auxilia, pondo em prática os ensinamentos do amor e
da caridade, que são figurativizados no texto pela representação de sentimentos
145
divinos em contraposição ao sentimento da ira – outro pecado capital -
simbolizado no contexto pela força bruta da Mônica.
A circulação desses valores cristãos no texto e o modo como eles são
repassados para os leitores, de forma lúdica e humorística, faz dessa história
uma espécie de recitação de mitos, ao articular uma memória social sobre a
existência de anjos e demônios a discursos que são interpretados, através da
reprodução de formas simbólicas da representação dessas figuras e sua relação
com outros operadores de memória social e a realidade concreta. Assim, é
possível trazer para o texto a memória discursiva das redes dos sentidos
construídos, a partir da trama intertextual estabelecida entre a história e o texto
e o texto e a história (GREGOLIN, 2000), ou seja, entre o acontecimento de sua
produção – criação do texto – e da sua reprodução – leitura, interpretação.
Como pudemos verificar, todos os exemplos estão associados a uma
memória social responsável pela categorização das referências adquiridas nas
práticas sócio-culturais. Assim, encontramos a presença de vários arquivos
correspondentes a universos religiosos que dizem respeito à existência de Deus
e do Diabo; céu e inferno; vida após a morte; à existência de espíritos de
mortos que vagam pela terra; bem e mal; presença de anjos da guarda, santos,
entre outros. Estas referências refletem-se nas imagens e práticas que há
séculos foram criadas para a difusão do cristianismo como religião. Nesse
sentido, com o passar do tempo foi se cristalizando a memória dos mortos, dos
santos e dos dogmas cristãos através de práticas sociais que cultuam até hoje
atos divinos de salvação, de fé e de amor a Deus.
As formações-discursivas que originaram tais temas trazem conceitos que
remetem à importância de se combater o mal com a prática do bem, ao poder
divino e à existência de um mundo paralelo – presentes nos arquivos religiosos
da cultura brasileira. Desse modo, as referências religiosas aqui apresentadas
fazem parte de uma memória social, ressignificada pelo sujeito-autor, através
dos papéis sócio-culturais dados aos seus personagens, simbolizando práticas
(re)vividas pela sociedade.
Estas práticas são justificadas em seu livro de crônicas, quando o autor
Maurício de Sousa deixa bastante clara a influência religiosa que recebeu de
146
sua própria família, já que seus parentes faziam parte de instituições religiosas
diversas – o que reforça a presença de práticas religiosas distintas, as quais se
mantêm vivas na memória histórica de nossa sociedade:
Não sou místico. E venho da clássica família brasileira onde pais e
avós seguem ou frequentam religiões diferentes. Meu pai, por
exemplo, era espiritualista, enquanto mamãe era católica de igreja e
missa. Vovó era espírita com direito a sessões de “mesa branca” duas
vezes por semana, ao passo que no vovô, de vez em quando,
“baixavam entidades” bem próximas do que eu vejo hoje no
candomblé. (Maurício de Sousa, 2000, p.11)
São justamente as experiências desse sincretismo religioso que fez com
que o sujeito-autor, ao subjetivar-se, autorizasse a presença de discursos
religiosos diversos em suas revistas em quadrinhos, transmitindo para nós seu
posicionamento diante desses fatos. Assim, selecionou os temas, inserindo-os
em determinados contextos por conta dos valores que permeiam certas práticas
religiosas, divulgando rituais cristãos legitimados e aceitos pela sociedade,
porque possuem uma memória social e formações discursivas que salientam a
crença em Deus e no Diabo, no paraíso e no fogo do inferno – elementos que
caracterizam nossa identidade religiosa.
Como a identidade se tornou um conceito essencial para a compreensão
da natureza humana e de suas práticas sociais, e a modernidade líquida na qual
nos encontramos constitui um fator de constante renovação dos repertórios e
paradigmas cultivados no meio social, entendemos que as interferências
religiosas multiculturais existem, porém há resistências conforme valores
ideológicos introjetados por práticas sociais e institucionais legitimadas pela
memória social. Assim, a condição eclética da religião brasileira faz com que
as identidades religiosas sejam demarcadas nas HQs de A Turma da Mônica a
partir da idéia de pertencimento ao grupo social ou de identificação ideológica
(BAUMAN, 2005).
Podemos, então, relacionar este posicionamento de Bauman aos
enunciados apresentados nos textos quando associamos os sentidos veiculados
pelos quadrinhos às vontades de verdade expressas nos discursos legitimados,
problematizando os conceitos de identidade formada pelo pertencimento e pela
147
ideologia. Por conta dessa fluidez identitária, característica do contexto da
modernidade, podemos dizer que as estratégias discursivas utilizadas pelo
sujeito-autor, ao tratar de temas vinculados a variadas denominações religiosas,
derivam de escolhas que remetem ao ecletismo religioso e que, por motivações
ideológicas, principalmente atribuídas a sua identidade de pertencimento,
fazem-se presentes nas revistinhas por conta de sua historicidade, enquanto
sujeito social e partícipe de um contexto religioso diverso. Assim, as suas HQs
contemplam diferentes práticas religiosas, principalmente com relação ao
conteúdo temático, a partir de seus pontos de convergência.
Portanto, por fazer parte da constituição da cultura de nosso povo, esse
sincretismo religioso que coaduna com a própria mistura de raças e com o
processo de aculturação no Brasil, é descrito e simbolizado nas HQs de A
Turma da Mônica por elementos e práticas discursivo-sociais que fomentam
valores histórico-culturais, na busca pela memória social que constitui a
identidade religiosa do povo brasileiro.
Passaremos agora a observar como as HQs de Maurício de Sousa
reproduzem valores e práticas condizentes com a ideologia patriarcal, uma das
características de nossa cultura.
De origem latina, as palavras patriachale e patriarchatu,
correspondentes a patriarcal e a patriarcado nos trazem sentidos que explicam o
modo de vida de um povo influenciado pelo patriarcalismo, que deriva de um
regime social em que o pai exerce autoridade preponderante em casa e, na
sociedade, detém a concentração de poder e de prestígio, característico de
certas épocas e povos.
Como a cultura patriarcal é milenar, os discursos que sedimentam a
prática do patriarcalismo também o são e ainda influenciam sociedades, tribos
e grupos familiares a enaltecerem a figura do homem como o chefe de família,
o Estadista, o político, o pai austero e autoritário. Desse modo, as crenças de
origem patriarcal reproduzirão valores e concepções que foram instituídas e
legitimadas pela história da humanidade, fazendo, assim, parte da formação de
uma memória discursiva o poder do homem em relação à figura feminina.
148
É evidente que, na conjuntura social da contemporaneidade, a mulher
assumiu diversas funções, ou poderá assumir, além daquelas historicamente a
elas atribuídas: lavar, passar, cozinhar, limpar, cuidar dos filhos, da casa e do
marido. É fato que, na maioria dos contextos, não seja mais considerada “sexo
frágil” ou a “Amélia”, porque assumiu papéis sociais antes legitimados e
destinados apenas aos homens – o que faz com que muitas mulheres deixem em
segundo plano ou não queiram exercer a função de dona de casa, esposa e mãe.
Estas considerações sintetizam, pois, a concepção de mulher do nosso século,
embora, por questões culturais e ideológicas, ainda existem mulheres que são
educadas para constituírem e cuidarem da sua família, ou são forçadas pelos
cônjuges a abandonarem os estudos e o emprego. Portanto, são diferentes
realidades sócio-culturais e históricas que fazem com que a mulher assuma a
função de doméstica ou de profissional, ou as duas.
No caso da representação feminina nos quadrinhos de Maurício de Sousa,
encontramos alguns referenciais sócio-culturais construídos historicamente,
refletindo práticas discursivas respaldadas pela ideologia patriarcal – são
referenciais atribuídos à instituição família – inseridos no contexto de
personagens adultos. Temos vários exemplos, ocorridos principalmente nos
núcleos familiares dos personagens infantis, como acontece na casa da Mônica,
Magali, Cebolinha, Cascão, Chico Bento, entre outros, nos quais presenciamos
a figura das mães atrelada ao trabalho doméstico e à educação dos filhos e
destituída de quaisquer atributos intelectuais ou culturais. Esta representação
ainda se faz presente nos dias atuais, de modo preponderante. Aliás, desde a
origem dos personagens centrais e de seus respectivos núcleos familiares – há
mais de sessenta anos – este valor cultural é veiculado nestes quadrinhos.
O discurso patriarcal também pode aparecer em contextos mais sutis. É o
que podemos verificar no texto seguinte:
TEXTO 13
149
150
Revista Mônica, editora Globo, n.150, ano 1999
A instituição família – Aparelho Ideológico do Estado – é simbolizada
nesta história tomando como referência a imagem do futuro patriarca. O intuito
de casar gera no personagem os anseios que foram ditados e legitimados pela
própria cultura, pela história de um povo, salientando práticas morais e de
responsabilidade do pai de família, porque “a vida é dura para os machos!”.
151
Assim, as posições sociais são evidenciadas e as funções delimitadas pelos
valores assumidos como verdadeiros: cabe ao homem “cuidar de sua manada”,
protegendo-a da fome e dos perigos que o mundo pode oferecer, trabalhando
incansavelmente para sustentá-la.
É este discurso cristalizado pelo “modo de vida de um povo” que instaura
o sentido do texto, porque veicula a memória social da estrutura familiar
tradicional – verdade construída e solidificada pela própria história de
configuração das sociedades patriarcais que, nas práticas sócio-discursivas
contemporâneas, convive com vontades de verdades associadas às composições
familiares diversas, que tendem a dividir o mesmo espaço social.
Assim, as imagens apresentadas trazem noções que são comuns à
memória histórica do sistema patriarcal, já que comportam referenciais de
mundo governado pelo homem, constituindo-se em um efeito de repetição de
símbolos que remetem aos diálogos interdiscursivos sobre temas e figuras do
passado, aqui selecionados e reatualizados pelo olhar do sujeito-autor. Por
isso, os discursos que se apresentam nos quadrinhos fazem parte de um
trabalho simbólico, exibindo a articulação da língua com a história: o sentido
dos enunciados é recuperado a partir das filiações discursivo-ideológicas feitas
pelo enunciador em relação à ativação de temas pertencentes à memória social,
sob a ótica do patriarcalismo.
Ao atualizar o discurso patriarcal, o sujeito-autor se insere em um lugar
social em que ocorrem tais práticas. Por isso, as regras do modo de dizer,
nestes quadrinhos, produzem efeitos de sentido correspondentes aos já
cristalizados na sociedade. Este fato corresponde ao que Foucault (1999) diz
sobre a vontade de verdade: é ela que determina modos de comportamento,
reprime certas atitudes, elabora conceitos – enfim, estabelece por meio de
instituições e disciplinas as coerções sociais instituídas pelo contexto
histórico, pela ordem do discurso, porque quando a ocultação dos mecanismos
constitutivos da verdade é processada “o indivíduo se insere na trama
significativa do verdadeiro e a interioriza como uma rede natural ou
sobrenatural incontestável.” (RUIZ, 2004, p.29).
152
Esta vontade de verdade presente no texto é sustentada por práticas
sociais ainda vigentes, pois seu discurso inscreve-se no sistema de valor de
nossa sociedade. É a estrutura social, é a história do modo de vida do povo
brasileiro que sustenta e vivifica a ideologia patriarcal. Assim os
procedimentos de formulação dos enunciados - “E chega um dia em que a gente
pensa em casar!”, “constituir família... ter filhos... viver pra eles! e “Daí pra
frente é a busca incessante à comida! À proteção à manada! Dormir de olhos
abertos à espreita do perigo!” - traçam um perfil de marido e de pai
concebidos culturalmente como o chefe de família.
Portanto, a formulação deste discurso e a sua veiculação neste texto
estão associadas a regras sociais que o legitimam, fazendo com que seus
enunciados estabeleçam limites com aquilo que não está dito e com o que não
pode ser dito. Sendo assim, os valores patriarcais aqui expostos retomam um a
priori histórico, que regula este dizer, inserindo esta HQ na positividade
discursiva das sociedades patriarcais.
É a partir desta ordem do discurso patriarcal que o sujeito-autor insere os
contextos familiares seguindo a dinâmica do que é enunciável, do que pode ser
legível, interpretável conforme a articulação dialética entre a repetição e a
desregulação – ou seja, o dado e o novo, mostrando para nós a
indissociabilidade entre o intradiscurso e o interdiscurso na materialidade dos
símbolos verbais e não-verbais, em conformidade com o projeto de escrita do
autor e de seu estilo.
A relação do discurso com a história, com a memória social também faz
de A Turma da Mônica um lugar de representação de valores folclóricos,
componentes de nossa cultura.
Os mitos e as lendas compõem o repertório histórico-cultural de povos
desde a antiguidade, transmitidos oralmente através dos tempos. As lendas
procuram explicar acontecimentos sobrenaturais, por meio da fantasia; os
mitos, através do seu forte componente simbólico, explicam fenômenos da
natureza. Desse modo, mitos e lendas estão associados a uma necessidade
humana de interpretar a realidade conforme sentido que lhe é atribuído, uma
vez que “a dimensão mítica abrange toda a forma explicativa da realidade, pois
153
os sentidos que nós damos para as coisas (...) são, simplesmente, criações
interpretativas que instituímos.” (RUIZ, 2004, p.93). Por isso, a simbolização,
as imagens e os argumentos sobre os mitos de nosso folclore correspondem ao
modo brasileiro de explicar tal realidade.
Como sabemos, a formulação de um texto passa pela ordem da língua e
da história e tudo que nele está representado faz parte de processos de
subjetivação que se constituem na relação estabelecida entre a linguagem
verbal e a imagem.
Para apresentar estes valores, trouxemos o registro dessas referências em
duas capas que simbolizam mitos brasileiros. Por veicularem temas que
dialogam e se interseccionam, faremos uma análise comparativa entre eles e os
referenciais histórico-culturais neles referidos. Novamente, aqui, os textos
apresentados produzem efeitos de sentido pelas articulações entre o
intradiscurso e o interdiscurso, revelando-nos a associação de marcas
identitárias relativas à Turma da Mônica com símbolos que identificam
determinados mitos e lendas como componentes do folclore brasileiro e
representantes da nossa memória social.
Vejamos como a representação do nosso folclore aparece nos seguintes
textos:
TEXTO 14
154
Almanaque Chico Bento, editora Globo, n. 80, ano 2004
Os discursos aqui reatualizados pela função-autoria fazem parte,
portanto, dos arquivos sobre temas folclóricos. Assim, a primeira capa
simboliza os contadores de história e a divulgação da literatura oral. A imagem
da velha senhora, pertencente ao contexto rural do personagem Chico Bento,
155
pode ser interpretada como uma metáfora da meria social, referente à
herança deixada pelos povos sem escrita há vários séculos, que faz com que a
literatura oral seja repassada de geração a geração e a cultura dos mitos de
origem esteja atrelada a esta prática. Podemos considerar, então, que a função
desta contadora de história remete à função dos homens-memória (LE GOFF,
2003): atualiza saberes, conhecimentos e informações acerca dos nossos mitos.
Ao trazer de volta a representação de contadores de história nesta HQ, o
autor recupera saberes sobre o nosso folclore e práticas sociais que remetem ao
hábito de contar e ouvir histórias. Ele traz para o texto referências culturais de
uma época em que as crianças se reuniam para deleitarem-se e divertirem-se
com as histórias contadas, geralmente, pelas avós – o texto é tão heterogêneo
quanto o discurso por serem constituídos por vozes que estão à margem do
dizer, avivando e recuperando, neste contexto, a memória histórica da literatura
oral dos mitos e lendas brasileiros.
A configuração desta capa contextualiza o modo de produção de
discursos sobre a mula-sem-cabeça: a história é contada à noite, trazendo mais
suspense para os ouvintes, uma vez que a mula-sem-cabeça só aparece nas
matas e à noite, de acordo com a sua lenda; as crianças se mantêm absortas
diante da velha senhora, estabelecendo uma relação de afinidade e intimidade
entre a contadora de história e Chico Bento, Rosinha, Zé Lelé e Zé da Roça. A
descrição da cena pode ser vista como um efeito de sentido no texto, que passa
para o leitor o valor de uma prática cultural cada vez mais rara no contexto da
modernidade, principalmente nos grandes centros urbanos. É a voz do autor que
provoca a emergência de um discurso que valoriza a cultura popular e o
folclore brasileiro.
Um outro dado bastante significante, que devemos salientar, é o lugar
ocupado pelo grupo. Segundo Halbwarchs (1990, p.133):
O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre o
qual escrevemos, depois apagamos os números e as figuras. Como a
imagem do quadro evocaria aquilo que nele traçamos, já que o
quadro é indiferente aos signos, e como, sobre um mesmo quadro,
poderemos reproduzir todas as figuras que se quiser? Não. Todavia o
lugar recebeu a marca do grupo, e vice-versa. (...) Cada aspecto,
cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é
inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas as partes
do espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspectos
156
diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, ao menos naquilo
que havia nela de mais estável.
É nesse espaço social, cuja representação reforça valores culturais, que
as coordenadas oferecidas pelo texto e contexto salientam as inter-relações
entre discurso, história e memória, trazendo a reconfiguração do pré-construído
a partir da significação contextual – o contexto que envolve os personagens
propicia ao leitor a interpretação de uma prática, que é histórica, valorizada e
legitimada pelo saber discursivo do autor, por meio de seu “trabalho sobre
outros discursos” (MAINGUENEAU, 1997, p.120).
É, portanto, por meio desse refazimento do dizer, que a memória
histórica é temporalizada, uma vez que se torna legítima ao ser retomada por
meio de marcas identitárias – representação simbólica – de nossa cultura. Isto
ocorre porque o autor a ela está filiado, tornando possível este gesto de
interpretação: construindo limites, desenvolvendo domínios e proporcionando
sítios de significância. (ORLANDI, 2003, p.15).
Ao legitimar tal discurso, atualizando verdades inscritas na memória
social, o sujeito-autor institui um diálogo interdiscursivo e intertextual ao
retomar mitos folclóricos também na segunda capa. Como todo enunciado está
na ordem do repetível e traz elementos que comportam um campo de
referências antecedentes, aos quais se situa (FOUCAULT, 2002), vamos
encontrar os enunciados situando-se entre o limite do já-dito e a reorganização
dos sentidos segundo uma nova relação – Chico Bento não mais ouve história,
não é mais expectador: ele passa, nesse outro dizer, a viver, de fato, o folclore
dos mitos e lendas brasileiros:
TEXTO 15
157
Revista Chico Bento, editora Panini, n.13, ano 2007
Dialogando, assim, com o primeiro texto, a segunda capa traz o
personagem Chico Bento e três figuras representativas do nosso folclore: a Iara
ou mãe-d´água, o Saci e a Mula-sem-cabeça, por meio de um percurso temático
que entrecruza referenciais folclóricos em uma mesma unidade textual. Assim,
158
a imagem veiculada age como suporte de significados culturais ao apresentar
tais figuras juntamente com o enunciado: Haja sarna pra se coçar. Este
enuncidado dialoga com dois ditados populares, também objetos de nosso
folclore – Quem procura acha e Está procurando sarna pra se coçar,
corroborado os referenciais identitários dos personagens da capa.
De acordo com os arquivos sobre estes personagens folclóricos, vamos
encontrar discursos que os situam enquanto seres mágicos que provocam medo,
assustam e fazem encantamentos. Logo, o enunciado expresso na capa marca o
tipo de relação estabelecida entre Chico Bento e estes mitos folclóricos, através
de uma função-autoria que delimita o sentido do texto ao salientar, também por
meio das fisionomias da Iara e do Saci, que Chico Bento será perturbado por
estes seres mitológicos, ou seja, encontrará sarna pra se coçar.
As imagens e os sentidos atribuídos a estes mitos fazem parte das
formações imaginárias que temos sobre o nosso folclore – a sua realidade
significante está associada à representação imaginária construída
culturalmente. Este fato ocorre porque:
não temos acesso a uma essência natural dos objetos, estes se nos
apresentam sempre sob a forma de imagens significativas. Não existe
um sentido natural do mundo, todo sentido é sempre uma construção
cultural. (RUIZ, 2004, p.97)
É, pois esta construção cultural, legitimada pela sua historicidade, que
faz com que a aparição desses três mitos no ambiente em que vive o
personagem Chico Bento seja significativa, porque é no contexto rural que
essas figuras folclóricas são identificadas e atreladas. Por meio das suas
características identitárias, assume papel fundamental por legitimar tais mitos,
já que este personagem participa de sua cultura diferentemente do restante da
turma. Assim, por nascer e morar na zona rural e trabalhar na roça, o tema do
folclore se encaixa melhor neste contexto, por conta da memória discursiva
envolvendo os mitos aqui representados: todos eles pertencem a ambientes
naturais – matas e rios. Por isso, a forma como Chico Bento interage com seu
meio, o papel social que desempenha serve de estratégia utilizada pelo sujeito-
159
autor para materializar esses valores culturais inscritos na memória social
brasileira.
Estes valores, por sua vez, são captados pelo sujeito-leitor a partir da
relação estabelecida entre estas formas de representação folclórica e a sua
realidade concreta, fazendo com que os sentidos sejam percebidos por meio de
sua constituição heterogênea. Assim, “os textos verbais e não verbais,
compondo o movimento da história presente por meio da resignificação de
mensagens e sinais enraizados no passado” (GREGOLIN, 2000, p.25) fornecem
dados, coordenadas históricas para a sua interpretação. Portanto, o sujeito-autor
ao estabelecer o modo de ligação entre a memória social e a memória
discursiva, nestes dois textos, faz com que as possibilidades de leitura sejam
delimitadas por gestos de interpretação sobre o contexto rural de Chico Bento,
cuja singularidade é responsável por caracterizar a veiculação de determinados
discursos que identificam este personagem como conhecedor dos mitos e lendas
folclóricos.
Constatamos, então, que a sobreposição de dizeres nos textos em análise
faz o processo de enunciabilidade instaurado pelo sujeito-autor atualizar o
arquivo dos mitos e lendas brasileiras, buscando na prática de contação de
história e no reconhecimento da Iara, do Saci e da Mula-sem-cabeça a
regularidade de dizeres, as retomadas de temas que compõem os diálogos
interdiscursivos nelas simbolizados. Assim, os textos trazem discursos
responsáveis pela manutenção de fatos e elementos componentes da memória
social, já que resulta da crença posta em prática e legitimada pela cultura de
um povo: os relatos, os valores e vivências folclóricas passam a influenciar a
materialização de discursos que na revista assumem valor de verdade. Por esses
elementos fazerem parte de um saber partilhado, os enunciados repetem-se e se
articulam a outros enunciados correspondentes às formações discursivas da
revista Chico Bento, com os quais estabelece os limites de sua aparição.
A (re)construção dessas marcas identitárias do folclore brasileiro se faz
no movimento de constituição de sentidos realizada pela função-autoria,
responsável pela demarcação de referentes culturais através das estratégias do
dizer. Assim, os temas e os objetos aqui abordados retomam determinadas
160
formações discursivo-ideológicas que definem o lugar de quem fala, situando
os textos no processo interdiscursivo e de atualização de referentes da memória
social, através do qual o autor se coloca no discurso, assumindo posições e
buscando na sua memória discursiva valores e elementos que possam
caracterizar os mitos e as lendas, nestas HQs.
Diante do que foi apresentado, podemos afirmar que nas revistas A Turma
da Mônica são retomados temas importantes à memória social, que retratam
valores históricos-culturais por meio das relações interdiscursivas que são
materializadas em textos icônicos e escritos. Neste processo enunciativo, os
sentidos buscam um lugar para se inscreverem em um efeito do discurso, que
ressignificam, a partir da visão do autor desta HQ, práticas culturais que são
históricas. Portanto, a subjetividade aqui instaurada revela um sujeito-autor
mantenedor de práticas folclóricas importantes na caracterização identitária da
cultura do país.
CONCLUSÃO
161
Ler, escrever e analisar as materialidades do sentido do discurso de dado
objeto é fazer com que se articule o lingüístico às condições sócio-históricas. É
reconhecer que os processos de produção, circulação e interpretação dos
sentidos dependem da relação mantida entre o já-dito e o não-dito, a
intertextualidade e a interdicursividade, a dispersão e a regularidade, quem diz
e como diz. Como para a AD não há relação direta entre língua/mundo/sujeito,
o que vai ocorrer é a construção discursiva dos sujeitos e dos sentidos por meio
de processos enunciativos determinados historicamente.
Assim, a relação entre língua e história faz com que os dizeres sejam
demarcados por uma ordem discursiva que estabelece os limites do discurso. É
por meio do discurso, lugar de enfrentamento teórico, que sujeitos e sentidos se
constituem: é o real da língua e o real da história imbrincados na produção de
determinados enunciados e de sua significação.
Como sabemos, para a compreensão do sujeito discursivo é necessário
analisar seus discursos, delimitando o lugar social que sua voz ocupa,
entrecruzada por vozes integrantes de dada realidade social, no processo
enunciativo. Por isso, o trabalho de pesquisa, aqui apresentado, traz enunciados
que explicitam discursos historicamente marcados, materializados em uma
unidade discursiva que possibilita o já-dito ser inscrito em um outro
acontecimento, promovendo interpretações e reflexões sobre o nosso objeto de
análise – as HQs da Turma da Mônica.
Nesta pesquisa, foram recuperadas vozes sociais, constituintes de
epistemologias teóricas diversas, dialogando com as vozes de personagens
infantis de histórias em quadrinhos, que atuaram juntas no mesmo palco: no
processo discursivo de formação de identidades culturais.
Ao percorrermos o trajeto que o sujeito-autor Maurício de Sousa traçou
ao ressignificar vozes culturais, por meio da relação mantida entre símbolos
icônicos e linguísticos, desvendamos como os discursos foram atualizados,
manipulados, deslocados. As leituras realizadas desse jogo entre a imagem e a
palavra revelaram um sujeito-autor que se utiliza de estratégias discursivas
para imprimir em seus textos referências multiculturais, redimensionadas e
adaptadas às formações discursivas de suas HQs.
162
Tomando por base a relação mantida entre a memória social e a memória
discursiva, foi possível observar como o verbal e o não-verbal enquanto
discursos materializados nos textos produziam seus efeitos de sentidos. Dessa
forma, buscamos demarcar as identidades correspondentes a práticas sociais
inscritas na história da humanidade, referentes a diversas épocas e lugares.
Como pudemos verificar, os textos analisados trouxeram arquivos
pertencentes a culturas diversas, e a sua atualização permitiu que os discursos
neles inseridos estabelecessem aproximações, limites e fronteiras com vozes
culturais, responsáveis pela interdiscursividade mantida com as HQs de A
Turma da Mônica. Assim, a adaptação de valores sócio-históricos feita pelo
sujeito-autor Maurício de Sousa traz o elo que envolve dados culturais os seus
quadrinhos, por meio da dispersão, deslocamentos e repetições ocasionadas
pela instauração dos sentidos.
As condições de produção do discurso nas revistas de A Turma da Mônica
que retratam a presença do multiculturalismo estão relacionadas ao contexto
social, familiar e lúdico que envolve seus personagens infantis. É reproduzindo
determinadas práticas, que o discurso presente veiculado pelo mundo
globalizado se configura nos quadrinhos, estabelecendo sua influência por meio
da retomada e releitura de valores sócio-culturais, proporcionando ao seu
público leitor o contato com diversas referências culturais.
As marcas da heterogeneidade discursiva na construção das identidades
multiculturais são constitutivas de sentido por recuperar uma memória social
que é atrelada às características identitárias dos personagens centrais – Mônica,
Magali, Cebolinha, Cascão e Chico Bento – reconhecidas pelos leitores destas
HQs. Tais marcas fazem parte da sua memória discursiva, bem como das
condições de produção do discurso nestas HQs.
Por funcionarem como operadores de memória, as imagens atualizaram
sentidos porque são arquivos de uma memória histórica. Este retorno a temas e
a figuras do passado ocorre porque são saberes armazenados – o que Foucault
(2007) chama de Arqueologia do Saber. Os sentidos atualizados no novo
acontecimento são realizações de remissões, repetições, provocando
semelhanças e identidades: as imagens trouxeram discursos que circulam no
163
meio sócio-cultural de diferentes localidades. Fizeram-se presentes no nosso
recorte a cultura americana, a indiana, a brasileira – com suas respectivas
singularidades, como também o discurso do mercado global e, com ele, a
constituição das identidades fluidas.
As imagens e os enunciados também recuperaram elementos da cultura
universal, cuja memória ressignificou contos de fadas e telas, fazendo
retomadas do já-dito, através de efeitos de paráfrases e provocando um novo
dizer na constituição da polissemia. A reconfiguração desse já-dito assume, nas
releituras desses acontecimentos, papel essencial na divulgação dos trabalhos
de pintores renomados, como recria o universo fantástico de alguns contos de
fadas e clássicos da literatura universal, desenhos e práticas culturais diversas
ao se reportar às capas das revistas, ao enredo e aos personagens em um
intradiscurso singular. Com isso, Maurício de Sousa em sua função-autoria
promove determinadas condições de leitura que fazem seus sujeitos-leitores
interagir com a diversidade cultural, com a memória histórica, tornando-os
leitores plurais.
Com relação às características identitárias da cultura brasileira,
ressaltamos a presença de arquivos sobre sincretismo religioso, cultura
patriarcal e mitos folclóricos que revelaram práticas sociais antigas como
acontece com os discursos materializados pelas imagens de anjos, demônios,
padres e carpideiras, do chefe de família, da Iara, da Mula-sem-cabeça e do
Saci.
Podemos, então, compreender que os objetivos traçados na realização
desta pesquisa foram alcançados, uma vez que as práticas discursivas que
aparecem nas revistas em quadrinhos são resultado das interferências culturais,
cujo processo discursivo de (re)constituição da memória social retomou valores
presentes nos EUA, na Índia e no Brasil. Partindo deste resultado, reiteramos
que as identidades culturais presentes nos textos em quadrinhos de Maurício de
Sousa representam a memória e a herança cultural do Brasil e do mundo, por
meio dos processos parafrásticos e polissêmicos de significação, estando
também atrelados a determinados arquivos, no que tange às retomadas das
imagens do Pinóquio e da Mona Lisa, por exemplo.
164
Por meio dos textos analisados, identificamos que tipos de fatos
histórico-culturais os quadrinhos de Maurício de Sousa constroem e/ou
recuperam, salientando a recorrência da memória social da comemoração do
Halloween, dos referenciais artísticos de Leonardo da Vinci e Cândido
Portinari, como fazendo parte do discurso globalizador de valores culturais –
responsável, pois, pela constituição de identidades híbridas, provocando, assim,
o reforço ou a mudança dos referenciais sociais dos leitores destas HQs.
Mediante o processo de hibridização cultural em que se encontra a nossa
realidade, podemos inserir os textos do sujeito Maurício de Sousa no processo
interdiscursivo de valorização do multiculturalismo, relacionados a memórias
que estão associadas ao presente e ao passado – o que faz com que esta
infiltração cultural híbrida seja marca identitária de sua função-autor.
Pensamos que ao lançar nosso olhar sobre a discursivização dos textos de
A Turma da Mônica, podemos contribuir com leituras capazes de enriquecer o
rol de pesquisas já realizadas na área da Análise do Discurso. Se a emergência
desse novo dizer ampliar significados sobre a função do gênero quadrinhos e
sua relação com a memória social, no que se refere à atualização de marcas
identitárias, características do modo de vida de um povo, compreendemos que
nosso objetivo maior tenha sido atingido. Caso este nosso olhar possa trazer
questionamentos e novas compreensões sobre o discurso, a história, a memória,
os sentidos e os quadrinhos, entendemos que esta pesquisa possa juntar-se às
demais pesquisas de Análise do Discurso.
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