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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
ISAC DE SOUZA GUIMARÃES JÚNIOR
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA FLORESTANIA:
Comunicação, identidade e política no Acre
Niterói-RJ
Dezembro de 2008
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ISAC DE SOUZA GUIMARÃES JÚNIOR
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA FLORESTANIA:
Comunicação, identidade e política no Acre
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da Universidade Federal Fluminense
como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre.
Área de concentração: Comunicação e Mediação.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Dênis Roberto Villas Boas de Moraes - Orientador
Universidade Federal Fluminense - UFF
Prof. Dr. Marildo José Nercolini
Universidade Federal Fluminense - UFF
Prof. Dr. Marco Antônio Roxo da Silva
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Niterói-RJ
Dezembro de 2008
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Agradecimentos
Este trabalho é resultado da concentração e do entrecruzamento de ltiplos esforços,
diálogos, olhares e discursos, carregando consigo um pouco de cada sujeito e de cada
olhar com os quais, de algum modo, interage. Registro, pois, especial agradecimento a
minha mãe, Osita Aragão, pela vida e pelo empenho permanente na educação de sua
prole, superando as dificuldades e o isolamento da vida em alguns dos municípios mais
isolados do país, entre Tarauacá, Feijó e Mâncio Lima.
Ao meu irmão, Atalibas Aragão, sua companheira, Nadir Cordeiro, e suas duas belas crias,
Karen e Hana, pelo apoio logístico de vez quando, mas sobretudo pelas alegrias e boas
energias que sempre souberam transmitir. A lembrança dessa turma toda me fez
companhia por muitas ocasiões, no isolamento que a distância do sudeste muitas vezes
impôs.
À companheira Stephanie Maia, pela compreensão, amor e apoio em todos os momentos,
sobretudo na reta final do curso. Seu apoio e companhia trouxeram o equilíbrio
indispensável à jornada.
Ao professor Dênis de Moraes, pelo acolhimento e competentes contribuições através das
leituras sugeridas e das várias que fez deste trabalho, no decorrer do processo orientação.
Seu olhar de intelectual latino-americano, engajado na produção do necessário debate
sobre a construção de alternativas democráticas para nossos impasses, deixa sua marca
nesta dissertação.
À Universidade Federal do Acre, pela oportunidade e visão de que a liberação para esta
qualificação, em uma área de estudo na qual ainda damos os primeiros passos, consiste
numa boa oportunidade de fortalecimento das ações institucionais.
À Universidade Federal Fluminense, pela acolhida que extrapola a relação instituição-
usuário, ao contribuir para a qualificação e aperfeiçoamento de profissionais daqueles
lugares onde a área de comunicação ainda busca sua estruturação.
Ao programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, pela condução do processo de
formação de seus alunos e pelas excelentes disciplinas ofertadas, sempre pertinentes aos
vários olhares e interesses que motivam os diversos projetos de pesquisa que ali aportam;
com um agradecimento especial aos coordenadores João Luiz Vieira e Marialva Barbosa,
sem esquecer a atenção e presteza de Silvia Campos, a Silvinha, secretária do programa,
e o valoroso apoio de Elson, sempre disponível para orientar e ajudar aqueles que chegam
meio deslocados, oriundos de outras paragens.
Aos professores, pelas aulas instigantes e indispensáveis que ministraram no decorrer
desses dois anos, nomeadamente na figura de Marialva Barbosa, nis de Moraes, Ana
Enne, Marildo Nercolini, Fernando Resende e Ronaldo Helal (este do PPGCO da UERJ).
Aos professores Ana Enne e Fernando Resende, pela leitura e importantes contribuições
feitas no Exame de Qualificação.
Aos professores Marildo Nercolini e Marco Roxo, por aceitarem o convite para integrar a
banca de defesa final deste trabalho, de quem também recebemos ricas contribuições.
Aos colegas e amigos na UFAC e na vida: Eder Paula, Mauro Rocha, Chico Bento, Gerson
Albuquerque, Vicente Cerqueira, Laélia Rodrigues, Socorro Calixto, Clarisse Batista,
Henrique Silvestre e Marineide Silva, pelas sempre agradáveis e importantes discussões e
trocas, em valorosos momentos sérios e outros nem tanto.
Aos colegas e amigos de curso, pelas construtivas, divertidas e instigantes trocas,
estabelecidas num convívio agradável e amistoso: Marcel Vieira, Hadija Chalup, Keiji
Kunigami, Mônica Mourão, Luciana Chagas, Lia Baia, Michele Rixo, Vânia Torres e Sônia
Meneses.
Este é, em suma, o novo descobrimento deste Grande Rio que,
encerrando em si grandes tesouros, a ninguém exclui: ao contrário, a
todos liberalmente convida a que deles se aproveitem. Ao pobre
oferece sustento; ao trabalhador, satisfação pelo seu trabalho; ao
mercador, negócios; ao soldado, ocasiões para mostrar seu valor; ao
rico, maiores riquezas; ao nobre, honrarias; ao poderoso, estados;
e ao próprio rei, um novo império.
(Pé. Cristóbal de Acuña, religioso da Companhia de Jesus, encarregado pela
Coroa Espanhola de percorrer, de uma ponta à outra, o Grande Rio das
Amazonas, com o propósito de produzir um relato que descrevesse as riquezas ali
encontradas, justificando futuros investimentos da Coroa. O relato foi publicado
originariamente em Madri pela Imprensa do Reino, em 1941).
Resumo
O ano de 1998 tornou-se um importante marco na história política do estado do Acre.
Nas eleições estaduais daquele ano, um grupo de jovens políticos integrantes do
Partido dos Trabalhadores conquistava o aparato político-administrativo do Estado,
com um significativo apoio popular, após uma década de repetidas derrotas para as
forças políticas consideradas conservadoras. A chegada ao poder se fez possível
graças a uma ampla coalizão de doze partidos das mais variadas orientações
ideológicas, incluindo o PSDB, à época arqui-rival do PT em âmbito nacional. Ainda no
período de campanha e mesmo depois da eleição o grupo, que reivindicava a herança
política dos movimentos liderados por Chico Mendes, ativa um discurso de forte apelo
ufanista apoiado na promessa de revalorização da identidade e das referencias
culturais locais, sobretudo aquelas associadas aos chamados “povos da floresta”,
representados nas populações indígenas, extrativistas e ribeirinhas em geral. Tal
orientação, em referência aos valores supostamente privilegiados nas políticas oficiais,
passa a ser designada de florestania e a administração estadual se auto-denomina
com o slogan de “Governo da Floresta”. Prometendo contornar a crise do extrativismo e
conter o agravamento da devastação ambiental, materializada principalmente nos altos
índices de desmatamento, o “Governo da Floresta” põe em marcha um conjunto de
medidas que, associadas ao discurso de valorização das tradições, da memória e da
história local, prometem tirar o estado do atraso, elevando, desse modo, a auto-estima
de sua população. Assim, apoiado numa enorme legitimidade política e no conceito
permissivo de “desenvolvimento sustentável”, o governo põe em marcha um polêmico e
controvertido modelo de desenvolvimento embasado na exploração madeireira, por
meio do chamado “manejo sustentável”, no qual são enredadas inclusive as
comunidades tradicionais, e cria as bases, legitimadas e legalizadas, para um avanço
do capital privado sobre os bens públicos naturais. No lugar do debate, da
democratização das políticas públicas e do exercício autônomo dos setores da
sociedade civil, outrora cruciais para a vitória eleitoral, essa gestão constrói sua
legitimidade apoiada sobretudo no controle dos meios de comunicação públicos e
privados, mediante repasses de verbas para os empresários do setor, e a cooptação de
lideranças sindicais e sociais. O controle da informação e das falas na esfera pública
midiática torna-se o principal instrumento de afirmação de um discurso identitário
fortemente legitimador, até o momento em que os sujeitos e vozes interditados
irrompem a partir de outros canais de comunicação, expondo as contradições, as
fissuras e a face autoritária desse discurso.
Palavras-chave: discurso legitimador; identidade e poder; comunicação e política.
Abstract
The year 1998 has become an important milestone for the polical history in the state of
Acre. In state elections that year, a group of young politicians members of the Partido
dos Trabalhadores won the elections state, with a significant popular support, after a
decade of repeated defeats for the political forces considered conservative. The victory
was made possible thanks to a broad coalition of twelve parties politicians of the most
diverse ideological orientations, including the PSDB that was before rival PT’s national
in scope. During the political campaign and even after the election, the group which
claimed the legacy of the political movement led by Chico Mendes, mobilize a discourse
of appeal pride supported on promise restoration of value from identity and from de
cultures sites, overall those associate to called “People of the forest represented by
indigenous, by extractive people and residents of riverfront. This operation, in reference
to the values supposedly privileged in the politics officials, is now designated as
Florestania and the state government is self-designated with the slogan “Government of
the Forest”. Promising overcame the crisis of traditional extractive forest and contain the
deterioration environmental materialized mainly in the high rates of deforestation, the
“Government of the Forest” mobilize a series of measures which associated with
speech highlighting the traditions, memory and local history, promise to withdraw the
state of backwardness and raise self-esteem of its population. Thus, supported by a
huge political legitimacy and the concept permissive of “sustainable development”, the
government puts in place a controversial and contested development model based on
logging, through to so-called “sustainable management”, wich are entangled including
the communities traditional, and breed the bases, legalized for an advance of private
capital on the public goods nature. Instead of debate, of democratization of public
policies and the exercise of the autonomous sectors of civil society, formerly a crucial to
the election victory, the administration builds its legitimacy supported mainly in the
control of a media, public and private, through transfers of founds to business sector,
and cooptation of unions and social leaders. The control of information and media
discourse in the public sphere becomes the main instrument of affirmation of a identity
discourse strongly approved, until the moment when the subjects and voices interdict
return from other channels of communication, exposing the contradictions, the cracks
and authoritarian face of that speech.
Key words: speech legitimacy; identity and power, communication and politics
SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................... 08
1. IDENTIDADE, MÍDIA E PODER NO CONTEXTO ACREANO...................... 14
1.1. Cultura midiática, consumo e identidade ....................................................... 02
1.2. Resistência pela identidade? ......................................................................... 19
1.3. O poder da palavra: o jornalismo como ordenador social ..............................
26
1.4. A palavra do poder: meios de comunicação e representação política ...........
30
1.4.1. O controle governamental da mídia na política acreana ................................
36
2. CULTURA E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: VELHAS E NOVAS
IMAGENS DA ACREANIDADE .....................................................................
52
2.1. Produção cultural no modelo seringalista ...................................................... 52
2.2.
Da ordem seringalista à ocupação d’os “paulistas” ........................................
58
2.2.1.
Os “Empates” e a afirmação da identidade-territorialidade seringueira .........
63
2.2.2.
Varadouro: o romper do silêncio ....................................................................
70
2.2.3.
A Reserva Extrativista como reconhecimento da identidade seringueira.......
78
2.3. Criação do PT e a consolidação política ........................................................ 82
2.4. A Frente Popular do Acre: unificação política e identidade cultural? ............. 86
2.5.
O triunfo da florestania e o “Governo da Floresta”..........................................
96
3. APOGEU E CRISE DO DISCURSO OFICIAL: DA FLORESTANIA
CELEBRADA À FLORESTANIA CONTESTADA .........................................
111
3.1. “Fachos de luz clareando os varadouros da nossa identidade ......................
111
3.2. A concepção de valorização cultural dos povos da floresta e o
“desenvolvimento sustentável”: fissuras entre princípios e práticas ..............
127
3.2.1. De seringueiro a manejador-madeireiro: contradições da concepção de
valorização do extrativismo no Governo da floresta.......................................
143
3.3.
Efeitos da multiplicação dos lugares de fala: a florestania contestada ..........
158
Conclusão ...................................................................................................... 175
Bibliografia ..................................................................................................... 183
Anexos ........................................................................................................... 188
8
Introdução
Simbolicamente, podemos colocar uma porteira à entrada do Acre com os
dizeres: pode entrar, mas saiba que aqui pensamos diferente sobre muitas
coisas.Temos um conceito diferente do que é ser rico e feliz. Nós não
aceitamos destruir o meio ambiente porque só vamos nos sentir bem com
esse meio ambiente inteiro, belo e generoso. Também fizemos a opção por
continuar humanos à moda antiga. Não nos fechamos para a modernidade,
mas preferimos ser seletivos, expurgando o que vem de ruim no seu bojo.
Queremos preservar as boas tradições e dar lições de civilidade ao mundo.
1
Segundo semestre de 1998: campanha eleitoral deflagrada nas eleições para
governo do estado, Senado, Câmara Federal e Assembléia Legislativa. O Acre vivia
uma de suas maiores polarizações políticas. De um lado, o grupo que representava a
política considerada tradicional, patrimonialista e responsável pelos numerosos
escândalos que projetavam o estado no cenário nacional como terra sem lei, onde a
corrupção dos gestores públicos era o traço mais saliente. De outro lado, os “meninos
do PT”, que reivindicavam a herança dos movimentos sociais da floresta e da cidade
que sacudiram o Acre nas cadas de 1970 e 1980. Apresentavam a promessa de
uma política fundada em paradigmas diferentes daqueles vigentes até então, com
ênfase na ética e na moralização da administração pública, que eles preferiam chamar
de “cuidar do Acre”. A promessa de resgatar valores de identificação com o local, com
a história e as tradições acreanas era a tônica do discurso apresentado pelos “moços
petistas”. Em sua visão, a situação de caos e desmandos que imperava “levou a
população ao medo, à desesperança e à baixa auto-estima de ser acreano. Os
símbolos do Estado, como a bandeira e o hino tinham sido esquecidos. Foram jogados
na lama. O povo que lutou para ser brasileiro sentia vergonha de ser acreano”
2
.
Orientada nessa lógica, além de compromissos bastante pragmáticos, como a
geração de quarenta mil empregos, o forte da campanha petista era, decisivamente, o
apelo à reconstrução da acreanidade. Desse modo, o que se via nas passeatas e
mobilizações que reuniam quantidades significativas de pessoas nas ruas da capital e
dos municípios eram não menos que milhares de réplicas da bandeira acreana
agitadas nas mãos de uma profusão popular vestida de vermelho, seguindo uma
enorme bandeira do Acre a encabeçar as marchas, ao som doce e suave de uma voz
feminina a entoar o hino acreano.
1
Elson Martins, “Lições de Florestania”, Revista Outras palavras, Rio Branco, julho de 2002, editada
pelo Governo do Estado do Acre através de trabalhos conjuntos da Fundação Estadual de Cultura
(Fundação Elias Mansour), Assessoria de Imprensa do governo e Secretaria de Estado de Educação.
2
Jornal Página 20, 1 de outubro de 2006.
9
A vitória da coalizão liderada pelo PT, chamada de Frente Popular do Acre (FPA),
nessas eleições e a ascensão da “esquerda” ao poder parecia representar o triunfo dos
valores e princípios de participação democrática tão aspirados pela coletividade. Do
ponto de vista dos direitos individuais, parecia ser o momento de garantir a liberdade
de expressão, fortemente cerceada até então. O ponto mais destacado, entretanto, era
a possibilidade de concretização dos postulados dos movimentos sociais, cujas figuras
mais evocadas eram justamente as de Chico Mendes, Wilson Pinheiro
3
e Marina Silva,
entre outros representantes do movimento extrativista e ambientalista. A tais ideais
associaram-se os novos eleitos, com a promessa de criar condições para a melhoria
da vida na cidade e no campo e implantar um modelo de desenvolvimento que
invertesse os índices elevados de devastação ambiental registrados, valorizando a
tradição extrativista, responsável pela constituição histórica do estado. No imaginário
do conjunto da população ressoava ainda o então famoso refrão do sambista Martinho
da Vila, muito tocado durante a campanha eleitoral, anunciando que “a vida vai
melhorar! / a vida vai melhorar!”.
Na área da comunicação, nutria-se a expectativa de que a tão almejada liberdade
de imprensa seria finalmente uma realidade e que a promiscuidade que caracterizava a
relação entre governo e empresas de comunicação seria, a partir de então, superada.
O sindicato dos jornalistas chega a organizar reuniões, seminários e discussões em
geral com o propósito de criar, juntamente com o novo governo, mecanismos que
assegurassem uma convivência menos arbitrária entre o poder e os meios de
comunicação. Uma relação na qual as empresas receberiam do poder público apenas
os pagamentos pelos serviços efetivamente prestados e os profissionais do jornalismo
não tivessem que, por exemplo, publicar textos integralmente redigidos na assessoria
de comunicação do governo ou submetidos a censura dentro das redações. Esperava-
se, por fim, que os veículos de comunicação não fossem, na sua maioria, pressionados
pelo poder de cooptação do Estado.
Agosto de 2002: campanha eleitoral novamente deflagrada, povo nas ruas,
miniaturas da bandeira acreana nas mãos, estrelas no peito e a trilha sonora do hino
novamente a harmonizar e estimular a sensibilidade de participantes e expectadores.
Porém esse novo episódio traz um componente dramático a mais: a cassação, pelo
Tribunal Regional Eleitoral do Acre, do registro eleitoral de Jorge Viana, candidato
3
Líder seringueiro, companheiro de Chico Mendes, assassinado em 21 de julho de 1980, no município
de Brasiléia, onde era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR).
10
novamente pelo PT à reeleição para o governo do Acre. Acusação: uso dos símbolos
do governo em eventos públicos, inaugurações de obras etc., numa caracterização de
uso da máquina pública para associar a imagem do candidato aos símbolos e ícones
que representavam sua administração, especialmente a imagem estilizada de uma
castanheira, subescrita com a expressão “Governo da Floresta”. A reação à decisão
do tribunal foi imediata: milhares nas ruas; nos jornais, fotos de pessoas como que a
chorar a perda do estimado líder. Organizaram-se vigílias noturnas nas quais centenas
de militantes viravam madrugadas no pátio do Palácio do Governo, fazendo preces sob
a luz de velas. Até missas foram celebradas pedindo a “volta do filho”. Nesse episódio,
a cassação foi desfeita pelo TSE e Jorge Viana pôde ser reeleito ainda no primeiro
turno com mais de 60 por cento dos votos.
As duas situações indicam que algo muito profundo e significativo havia ocorrido
no Acre, e não era apenas a mudança na paisagem urbana dos principais municípios
com as intervenções feitas pelo governo nem a renovada popularização dos símbolos
do estado ou a super difusão das marcas identificadoras do governo. Algo indicava que
as mudanças visíveis eram apenas a expressão tangível de outra mudança, de ordem
simbólica, afetiva, envolvendo identificação, engajamentos, sentido. Sentido expresso
no sentimento de identidade, de encontro, de reconhecimento.
Identidade é, assim, uma questão central que se coloca para o entendimento dos
processos verificados no Acre a partir de 1998. É evidente que tais processos se
articulam com outros eventos sócio-históricos anteriores, recentes ou distantes no
tempo, acontecimentos definidores de marcos para o ordenamento sociocultural e
político dessas populações. A ascensão de um governo cujo slogan oficial é “Governo
da Floresta” e que afirma pôr em prática ações pautadas não em princípios de
cidadania, mas de florestania, conforme difundido na mídia local, parece-nos uma
oportunidade histórica interessante para analisar as articulações entre política,
identidade e comunicação.
De antemão, cabe fazer o importante registro das dificuldades enfrentadas no
trajeto da pesquisa e da escrita, no sentido de separar o pesquisador do cidadão e do
profissional que atuou nessa mesma realidade na condição de repórter televisivo. Os
esforços de externar o olhar para, de fora, encontrar o melhor ângulo de observação
dos processos enfocados, preferencialmente imune aos efeitos arregimentadores
identificados, nem sempre são exitosos. O sujeito que se põe de fora à procura desse
“ponto neutro” recomendável, frequentemente “dá de cara” consigo mesmo naqueles
11
mesmos fenômenos e sujeitos que procura interpretar. São os riscos de lidar com
processos históricos muito recentes, senão em curso, sobretudo quando envolvem
conflitos identitários, quando ainda não é possível se “desinserir” desses objetos tão
traiçoeiros que são os discursos circulantes numa coletividade.
Feita esta ressalva, diríamos que o propósito primeiro desta investigação consiste
em identificar no discurso oficial do Governo da Floresta, manifesto num conjunto de
visões e princípios sintetizados no conceito de florestania, a constituição, para o
conjunto da população acreana, sobretudo através de difusões midiáticas, de um
modelo de identidade capaz de gerar engajamentos e consensos nos vários estratos
sociais, assegurando, assim, a direção moral e cultural indispensável à hegemonia do
bloco político liderado pelo Partido dos Trabalhadores a partir de 1999.
Partindo dessa hipótese central, buscamos localizar os materiais discursivos e de
memória utilizados na construção do conceito de florestania, tentando reconstituir o
caminho discursivo, os percursos que, para tanto, são acionados pelas instâncias
envolvidas. No trabalho de alimentação do imaginário com base no processo de
construção de representações, a mídia figura como peça central na tarefa de produzir e
difundir significados sociais de modo a constituir uma moldura simbólica que forneça os
pontos de identificação para um modelo de acreanidade pretendido, mediante uma
permanente atualização de conteúdos de história e memória social.
A identificação dessas atualizações e os processos interdiscursivos que
encerram serão aqui analisados, fazendo-se necessário, ainda, explicitar a natureza da
relação estabelecida entre governo e mídia no cenário de disputas políticas acreano,
mapeando a lógica e propósitos que regem tanto os movimentos de mandatários dos
cargos públicos quanto dos proprietários de empresas jornalísticas e mesmo dos
profissionais da comunicação.
O mapeamento do processo de construção do discurso da florestania será
desenvolvido através da análise de difusões midiáticas realizadas em jornais, revistas,
mídia eletrônica, material publicitário do governo e do Partido dos Trabalhadores, bem
como na produção acadêmica disponível sobre a temática. Para tanto, lançaremos
mão de certos princípios e procedimentos da Análise do Discurso de linha francesa
que consistem na apreciação dos enunciados, de materiais icônicos e simbólicos em
geral, buscando referi-los às condições históricas de sua produção e buscando
reconstituir possíveis percursos de sentido identificados na formação de determinadas
formações discursivas.
12
Na abordagem do trabalho de seleção e organização da memória social operado
pelas instâncias agenciadoras, valemo-nos da concepção de memória desenvolvida
por Halbwachs
4
enquanto fenômeno coletivo apoiado nas lembranças dos diversos
grupos que compõem o tecido social sendo, por isso mesmo, sujeita a constantes
flutuações, negociações e disputas entre os grupos. Michael Pollack, por sua vez, ao
caracterizar a relação entre memória e identidade, nos fornece conceitos importantes,
como os de marcos de memória e trabalho de enquadramento da memória, que
constituem, de acordo com o autor, elementos centrais na organização de um sentido
de continuidade e coerência (unidade) experimentadas pelos grupos e pelos
indivíduos.
No conjunto dessas reflexões, não poderíamos trabalhar com outra concepção de
identidade senão com aquelas que a compreendem como construções socioculturais e
políticas vinculadas a interesses e disputas de grupos em busca de demarcações que,
dialeticamente, vão incorporando e excluindo traços distintivos. Tomamos como
contribuições relevantes, neste sentido, as produzidas por Stuart Hall, Manuel Castells
e Zygmunt Bauman.
Para a compreensão dos mecanismos de poder sociopolítico e dos embates
travados também no campo da cultura, buscamos suporte nas formulações
gramscianas sobre o conceito de hegemonia, assim como nas complexas relações
entre sociedade política e sociedade civil apontadas pelo filósofo, sem deixar de
atentar para o importante papel exercido pelos chamados aparelhos privados de
hegemonia, dos quais a mídia, em nosso tempo, figura como central. Na abordagem
das questões relacionadas a poder não somente em seus aspectos objetivos e
institucionais, mas também no que diz respeito às técnicas geradoras de subjetivações,
são particularmente importantes as contribuições de Michael Foucault, em especial
naquilo que o autor designa de positividades do poder, tomando-o não apenas em seu
caráter coercitivo, mas enquanto produtor de saberes, engajamentos e compromissos.
Por fim, uma vez reconstituído o percurso discursivo da florestania, abordaremos
como essa noção se relaciona com as diversas narrativas que compõem o cenário
acreano e os interesses divergentes que coexistem. Avaliaremos em que medida o
discurso oficial tenta constituir, discursivamente, uma unidade identitária numa espécie
de alargamento da experiência de comunidade vivida pelos movimentos de índios e
4
Maurice Halbwachs, A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
13
seringueiros no período de intensificação dos conflitos, e como essas representações
se confrontam com outras na sociedade como um todo.
O trabalho que se vai ler está dividido em três capítulos. O primeiro pretende
situar conceitualmente os sentidos de identidade e de memória com os quais
trabalhamos, buscando perceber como essas questões são acessadas pelo poder
instituído e como são representadas nos meios de comunicação, num contexto de
dependência financeira destes em relação ao Estado. Para melhor caracterizar tal
relação, explicitamos alguns dos conflitos que muitas vezes se interpõem entre os
interesses de ambos (governo e empresas), antecedendo alinhamentos subsequentes.
No segundo capítulo, buscamos reconstituir, em suas características gerais, os
cenários e condições de produção das atividades culturais letradas, sobretudo
jornalísticas, desde as primeiras iniciativas ainda no contexto da economia seringalista,
passando pela formação de uma imprensa alternativa, engajada com as causas do
movimento extrativista, a partir da segunda metade dos anos 1970. Daí em diante
concentramos a atenção nas estratégias ativadas por esse movimento no sentido de
afirmar uma identidade política fortemente vinculada a uma territorialidade, e em como
as conquistas oriundas dessa luta foram sendo convertidas em capital político e
simbólico para a obtenção de benefícios eleitorais, até a formação da FPA e
constituição do Governo da Floresta.
Finalmente, no terceiro capítulo, analisamos as estratégias políticas adotadas pelo
governo liderado pelo PT para constituir no imaginário da sociedade acreana as
conformidades e lealdades que permitissem sua legitimação, bem como a do modelo
de desenvolvimento por ele proposto. Para tanto, constitui-se uma grande narrativa
sobre a acreanidade na qual se busca aglutinar as diversas memórias, trajetórias e
interesses numa construção que procura representar a diferença na unidade e o
conflito na harmonia, operação que não deixa de produzir importantes rupturas e de
impor consideráveis fissuras a um discurso que se pretende coeso e enraizado na
tradição: o discurso da florestania.
14
Capítulo I
IDENTIDADE, MÍDIA E PODER NO CONTEXTO ACREANO
1.1. Cultura midiática, consumo e identidade
São inegáveis as implicações sociais, culturais e políticas progressivamente
geradas pelas difusões midiáticas no mundo moderno desde o aperfeiçoamento e
exploração comercial da imprensa, nos séculos XVIII e XIX, até o advento das
possibilidades de armazenamento e transmissão digital de informações,
contemporaneamente, possibilitadas pelas tecnologias da computação e da
comunicação. Mesmo meios bastante estabelecidos como o jornal, o rádio e a TV
passam a ganhar existência digital, alargando ainda mais as formas de acesso e
possibilidades de produção e reprodução de conteúdos.
Esse ritmo de transformações no universo comunicacional, aliado ao avanço da
ideologia do livre mercado e ao incremento do consumo como elemento estruturador
da vida social, não poderia deixar de exercer enorme impacto na dinâmica social,
cultural e política mesmo naquelas sociedades aparentemente distanciadas daqueles
considerados os grandes centros irradiadores dos padrões de vida capitalista. Nas
condições de intensas trocas e fluxos de informações, o contato com outras culturas,
em geral mediado por prioridades de mercado, torna-se praticamente inevitável,
fazendo-se acompanhar de rupturas e fragmentações de valores considerados
tradicionais.
Conforme aponta Castells
5
, as evidências da cultura midiatizada no novo modo de
organização capitalista são perceptíveis nos moderníssimos processos que
possibilitam como fiadores da velocidade e dos fluxos globalizados uma efetiva
mundialização da economia por meio dos suportes de redes a dinamizarem os fluxos
de informações e de capitais, “inclusive em sua forma mais veloz, volátil e voraz de
capital financeiro”.
6
Trata-se, portanto, de uma poderosa infra-estrutura comunicacional
que, entendida fora da dualidade marxista (estrutura/superestrutura), assume a função
de base material e suporte tecnológico para operações de comércio e múltiplas formas
de interação no planeta.
5
Manuel Castells, O poder da identidade (A era da informação: economia, sociedade e cultura), v. 2, S.
Paulo: Paz e Terra, 1999.
6
Antonio Albino Rubim, “A contemporaneidade como idade mídia”. Interface – Comunicação, Saúde,
Educação, v.4, n.7, p. 25-36, 2000, p. 28.
15
Tal condição, associada ao poder de produção e disseminação de significados,
coloca a comunicação, e a respectiva cultura midiática, no fulcro da produção
mercadológica contemporânea, sobretudo no que diz respeito ao lugar assumido por
ela na dinâmica da conversão de produtos em mercadorias. Partilhando da perspectiva
de Jameson
7
, que aponta uma acentuada conversão da cultura em economia e da
economia em cultura no que ele denomina de lógica do capitalismo tardio, ao se referir
à produção cultural considerada pós-moderna, é fundamental ressaltar a função
estratégica assumida pela comunicação não somente em sua versão publicitária,
mas em todo o conjunto de suas manifestações, na maioria eivadas de signos
referenciados em valores de consumo na formação de gostos, na conformação de
valores e significados associados a uma mercadoria, enfim, na promoção de
identificações entre consumidores e mercadorias, sejam elas músicas, imagens,
roupas, automóveis ou até mesmo produtos florestais de origem amazônica,
oportunizando aos sujeitos uma vasta gama de identificações possíveis, porém numa
permanente regulação da relação entre desejo, necessidade e satisfação.
Compreende-se, dessa forma, que seja qual for o produto, do mais imaterial ou
simbólico como imagens midiáticas referenciadas em fórmulas de desenvolvimento
que prometem a conservação da floresta Amazônica – ao mais concreto e material dos
bens – como o parelho celular de última geração –, é pela via da comunicação
midiatizada (e dos sentidos por ela construídos) que se opera a transmutação de
meros produtos em itens a serem consumidos dentro de uma cadeia de significados.
Conforme atesta Rubim, no capitalismo tardio essa transformação é feita
essencialmente com a interveniência da publicidade e da construção de identificações
com marcas. Sem esses dois componentes, assinala o pesquisador, “pode-se afirmar,
sem medo de errar, que sem comunicação, em situações normais de vida capitalista,
um produto não pode ser transformado em mercadoria. Por conseqüência, a realização
do valor e a própria reprodução capitalista encontram-se comprometidas em um
patamar comunicacional”
8
.
Nessa dinâmica, o cultural, o simbólico e a estetização ampliada a diversos
aspectos da vida social passam a mediar quase tudo na contemporaneidade ou, indo
além, as formas culturais tendem a ordenar todo o modo de produção, integrando-se à
economia. Nas palavras de Jameson:
7
Fredric Jameson, Pós-Modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2002.
8
Rubim, op. cit., p. 27.
16
A produção de bens de consumo é agora um fenômeno cultural: compra-se o
produto tanto por sua imagem quanto por sua identidade imediata. Passou a
existir uma indústria voltada especificamente para criar imagens para bens de
consumo e estratégias para a sua venda: a propaganda tornou-se uma
mediadora essencial entre a cultura e a economia, e certamente pode ser
incluída entre as inúmeras formas de produção estética
9
.
A expansão do valor mercadoria não somente em termos geográficos, mas a
um amplo espectro de coisas – passou a englobar as imagens, as representações e as
formas culturais, que se tornam uma área de atuação fundamental do mercado. A
produção e a circulação de informações e estilos tornam-se mercadorias das mais
importantes no capitalismo tardio. Desse modo, os conflitos e as contradições antes
relacionados principalmente à produção material e a uma economia organizada na
forma concorrencial de preços atingem também a produção cultural, agora importante
mediadora num progressivo movimento de estetização da vida, no interior do qual a
mídia se tornou engranagem fundamental. Seguindo essa linha de análise, associamo-
nos a Kellner
10
, quando considera que
Nas sociedades de consumo e de predomínio da mídia, surgidas depois a
Segunda Guerra Mundial, a identidade tem sido cada vez mais vinculada ao
modo de ser, à produção de uma imagem, à aparência pessoal. É como se cada
um tivesse de ter um jeito, um estilo e uma imagem particulares para ter
identidade, embora, paradoxalmente, muitos dos modelos de estilo e aparência
provenham da cultura de consumo.
É na vigência dessa lógica de predomínio do consumo da imagem que buscamos
compreender as articulações entre comunicação, política, ambientalismo e movimentos
sociais, tal como se configuram no Acre nas políticas implementadas pelos governos
do PT a partir de 1999. Entendemos ser possível, assim, apreender a dinâmica cultural
e política com amplas implicações sociais posta em marcha nesses governos
(dinâmica esta manifesta sobretudo no que vem sendo chamado de florestania,
componente central do discurso oficial), como amplamente articulada com a atual fase
de organização da produção capitalista, sobretudo no que diz respeito ao caráter
fortemente expressivo e imagético desse estágio. Isso nos permite avaliar, por
exemplo, como as abordagens e políticas públicas ligadas à relação do homem com a
natureza sejam recobertas por figurações culturais (como de resto sempre o foram)
associadas ao mercado, mesmo quando está em jogo (ou em pauta) a preocupação
tão em voga da preservação ambiental.
9
Fredric Jameson, A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001, p.
138.
10
Douglas Kellner, A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-
moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 297.
17
Assim, afirmar o lugar central da comunicação em nossa época requer enfocá-la
como um movimento incessante de produção e publicização de sentidos por meio de
uma onipresença tentacular capaz de levar as significações associadas à realização
pelo mercado às mais diversas culturas do planeta; do mesmo modo que também se
encarrega de codificar manifestações culturais localizadas para a zona franca das
trocas simbólicas operadas no mercado global. Este movimento nos permite visualizar
a enorme capacidade do mercado de se territorializar e desterritorializar, segundo suas
conveniências e configurações, podendo se manifestar, sobretudo no caso da
Amazônia, inclusive através das “bem-intencionadas” organizações não-
governamentais de origem estrangeira com missão manifesta de “capacitar” produtores
para atuação no mercado.
Num trânsito informacional e imagético de tal magnitude codificado pelos
interesses de mercadológicos, verifica-se uma acentuada tendência à estandardização
das culturas, na medida em que são apropriadas a partir de estereótipos apresentados
como a alteridade em si, tratando-se, no mais das vezes, de apropriações superficias,
folclorizadas e fetichizadas das culturas, objetivadas na superfície das imagens.
Referindo-se à lógica de certas manifestações culturais moderno-tardias, Jameson
sublinha que a elas
(...) devemos reservar a concepção platônica do “simulacro”, a cópia idêntica de
algo cujo original jamais existiu. De forma bastante apropriada, a cultura do
simulacro entrou em circulação em uma sociedade em que o valor de troca se
generalizou a tal ponto que mesmo a lembrança do valor de uso se apagou,
uma sociedade em que, segundo observou Guy Debord, em uma frase
memorável, “a imagem se tornou a forma final da reificação”
11
.
Num cenário como de intensas trocas interculturais e contato com as diferenças,
se torna compreensível, por outro lado, a crescente preocupação com os traços
demarcatórios do que identifica/distingue e a conseqüente atenção de que as
identidades vêm se tornando objeto. Na dinâmica aqui apontada, o sentido construído
nas identidades pode funcionar tanto em articulação com as referências constituídas
pelo mercado na busca de identificação dos consumidores quanto, inversamente,
como proteção e refúgio ao movimento avassalador deste, na medida em que as
barreiras de tempo e espaço que separavam as culturas tendem a se comprimir,
ampliando a disponibilidade de materiais para a constituição de identidades coletivas e
individuais. Refletindo com Kellner,
12
vale observar que “nas sociedades pré-modernas,
11
Fredric Jameson (2002), p. 45.
12
Douglas Kellner (2001), op. cit., p. 295.
18
a identidade não era uma questão problemática e não estava sujeita a reflexão ou
discussão. Os indivíduos não passavam por crises de identidade, e esta não era nunca
radicalmente modificada”.
Essa perspectiva se fortalece, por exemplo, nas análises de estudiosos como
Hall
13
e Giddens
14
, para quem, no contexto da globalização cultural e econômica, “o
que estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a ‘forma
visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza”.
Nessa nova trama intercultural que se desenha nas culturas ocidentais, parece
superficial (ou artificioso) falar em termos de essência identitária, mesmo porque, como
lembra Bauman a respeito das opções oferecidas pelo mercado para a demarcação de
um perfil identitário, “selecionar os meios necessários para conseguir uma identidade
alternativa de sua escolha não é mais um problema (isto é, se você tem dinheiro
suficiente para adquirir a parafernália obrigatória)”. Isto porque, observa ele, “está à
sua espera nas lojas um traje que vai transformá-lo imediatamente no personagem que
você quer ser, quer ser visto sendo e visto como tal”.
15
A natureza dessas considerações nos leva a partilhar a hipótese de que os
chamamentos à assimilação no global se dão de tal modo, portanto, que mesmo
culturas tidas como bastante particulares como sugere o discurso sobre acreanidade
no início deste trabalho e identidades consideradas revolucionárias ou de resistência
tendem a encontrar seu momento e sua forma de incorporação pelo capital, quando
simplesmente não se esforçam para salientar sua diferença como forma de atraí-lo. No
caso acreano, há fortes indícios de que tais identidades estejam sendo apropriadas
como valor de troca na forma de invólucro étnico sobretudo para produtos de origem
florestal
16
, muitas vezes afiançando como sustentáveis práticas altamente
questionáveis do ponto de vista ambiental e social. Ao que tudo indica, é o que ocorre
com o chamado “manejo madeireiro”, que garante a exportação de madeira Amazônica
para EUA e Europa, por exemplo, com o aval da promessa de controle técnico-
científico sobre a natureza, mas sem desprezar as vantagens incorporadas pela
rotulação de produtos como originários de “comunidades tradicionais” da Amazônia,
13
Stuart Hall, Identidade cultural na Pós-modernidade. 9ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
14
Anthony Giddens, The Consequences of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1990, p. 18, apud Hall,
Stuart. Identidade Cultural na Pós-modernidade. 9ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 72.
15
Zygmunt Bauman, Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 91.
16
Entenda-se por este comércio de produtos naturais o predomínio de madeiras nobres com alto valor
comercial no mercado internacional, desenvolvido e incentivado por políticas estatais do Governo do
Acre, em articulação com organismos multilaterais, como prática legalizada a partir de 2001, através de
Manejos Florestais, com incentivo e financiamento de instituições financeiras como BID e BIRD.
19
apresentadas como naturalmente sustentáveis. Percebemos em fenômenos dessa
natureza proximidade com aqueles processos que Barbero enfatiza como sendo
A identidade local conduzida para se transformar em uma representação da
diferença que a faça comercializável, isto é, submetida a maquiagens que
reforçam seu exotismo e a hibridações que neutralizem suas classes mais
conflitivas. Que é a outra face da globalização acelerando as operações de
desenraizamento com as quais tenta inscrever as identidades na lógica dos
fluxos: dispositivo de tradução de todas as diferenças culturais para a linguagem
franca do mundo tecnofinanceiro
17
.
A nosso ver, a descrição desse estudioso situa adequadamente uma das funções
assumidas pela construção imagética da florestania no discurso oficial do Governo da
Floresta, na medida em que desconfiamos tratar-se de uma celebração da diferença
(numa generalização das identidades locais) com o fim de articular – mediante o
reconhecimento e a chancela fornecidos pela imagem “ambientalmente correta” de
certos grupos étnicos o local à economia global. Tal constatação nos leva a
concordar com Harvey
18
, ao salientar que “quanto menos decisivas se tornam as
barreiras espaciais, maior é a sensibilidade do capital para as diferenças do lugar e
maior o incentivo para que os lugares se esforcem para se diferenciar como forma de
atrair o capital”.
No caso do Acre e da política cultural acionada a partir de 1999, a percepção de
um estreitamento dos vínculos entre local e global pode ser dificultada pelos
agenciamentos discursivos que afirmam o “resgate” e a “valorização” de culturas
tradicionais, associado a um rigoroso controle dos meios de comunicação como forma
de assegurar certa conformidade entre as representações sociais e os interesses
dominantes.
1.2. Resistência pela identidade?
Seguindo as pistas contidas na epígrafe que inicia esta análise, nas imagens que
constrói sobre a sociedade acreana, somos convocados a visualizar naquele momento
histórico (2002) a prevalência de uma identidade estável, unificada e em perfeita
coesão social e cultural, o que supostamente a imunizaria das intensas e muitas vezes
desconcertantes transformações decorrentes dos processos de globalização
econômica e aceleração dos fluxos informacionais. O “conceito diferente do que é ser
17
Jesús Martín-Barbero, Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da
comunicação no novo século”. In: Moraes, Denis de (org.) Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro:
Mauad, 2006, p. 61.
18
David Harvey, Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2003, p. 264.
20
rico e feliz”, ali enunciado, sugere a ausência da voracidade capitalista sobre os bens
naturais, como em geral se verifica nos processos desencadeados pela modernização
industrial. Nesse lugar descrito no texto, tal influência parece não se exercer, pois nele
a preocupação ecológica supostamente garante a preservação do meio ambiente, não
como algo exterior ao homem, mas como parte integrante de sua existência e a ela
material e ludicamente vinculado. Somos levados a crer, ainda, tratar-se de um lugar
onde prevalece a solidez dos valores enraizados na tradição e na estabilidade da longa
duração, tradição essa que alimentaria práticas solidárias de cooperação entre os
agentes sociais desse ambiente idílico. Mais ainda, refere-se a um lugar que não
está protegido contra as tumultuosas efervescências experienciadas na modernidade,
como, ao contrário, irradia suas referências e valores, levando “lições de civilidade ao
mundo”.
Tratar-se-ia, seguindo as sugestões das imagens ali construídas, de uma
comunidade, no sentido atribuído ao termo por Castells
19
. De acordo com o sociólogo
espanhol, no sentido oposto ao da globalização e contra as mazelas trazidas por esse
estágio de desenvolvimento do capitalismo multinacional, vem ganhando força um
movimento de resistência e reação aos imperativos econômicos e culturais próprios à
lógica do mercado e das sociedades em rede. Ou seja, no momento em que crescem
as ameaças de nivelamento e uniformização cultural, gerando fortes sinais de
padronização dos estilos de vida, muitas sociedades constroem trincheiras identitárias
fundadas na vida em comunidade e reivindicam o direito de constituir seus próprios
significados culturais e de vida como refúgio à hostilidade e à fragmentação externas.
Conforme propõe o autor:
Quando o mundo se torna grande demais para ser controlado, os atores sociais
passam a ter como objetivo fazê-lo retornar ao tamanho compatível com o que
podem conceber. Quando as redes dissolvem o tempo e o espaço, as pessoas
se agarram a espaços físicos, recorrendo à sua memória histórica
20
.
Isso porque, sublinha o autor, as alusões a uma suposta realização pelo trabalho
e conquista de conforto, segurança e qualidade de vida a serem propiciados pelo
desenvolvimento tecnológico e pelo crescimento econômico, conforme prometia o
discurso moderno, não se tornam uma realidade efetiva, verificando-se, em muitos
casos, um aumento da exclusão e um decréscimo de certas conquistas após o
abandono pelos Estados neoliberais, a partir dos anos 1970, das políticas de bem-
19
Op. cit.
20
Op. cit., p. 85.
21
estar social. Castells em fenômenos tais como o retorno de certos nacionalismos
culturais, o recrudescimento do fundamentalismo religioso (tanto no oriente quanto no
ocidente) e o fortalecimento de comunas territoriais, formas de reação defensiva ao
avanço da globalização, bem como de suas conseqüências, como a individualização
das relações sociais, a dissolução de valores e tradições históricos e a perda de
direitos e conquistas sociais.
A essas reações construídas em torno de referências identitárias mais
localizadas, o autor chama de identidades de resistência, distinguindo-as daquelas que
denomina de identidades de projeto e identidades legitimadoras. A própria
nomenclatura empregada já fornece algumas indicações acerca da constituição desses
mecanismos: primeiramente, se trata de construções socioculturais e, como tal,
ocorrem em contextos marcados por relações de poder, disputa e interesses. Assim,
se a identidade de resistência, como mencionado acima, diz respeito àqueles
processos desencadeados
por atores que se encontram em posições/condições
desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação e exclusão, as identidades
legitimadoras, por outro lado,
consistem naquelas produzidas e alimentadas pelas
instituições da sociedade no intuito de fortalecer o controle sobre os atores sociais e
gerar conformidades em torno de interesses específicos. Para tanto, desenvolvem-se
poderosos sistemas baseados em controles de significação relacionados a atributos
socioculturais, que assumem a tarefa de descrever e explicar a natureza das funções e
a conseqüente legitimidade de ações e projetos de grupos em posição de poder. As
i
dentidades de projeto surgiriam quando os atores, empenhados em processos
revolucionários e utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance,
constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo,
buscam sua reestruturação como um todo.
21
Em sua análise das culturas e das sociedades contemporâneas, Castells aponta
uma tendência de fortalecimento das identidades de resistência, exatamente por causa
das ameaças externas, conforme indicado acima, e da incapacidade de Estados e
instituições modernas de melhorar as condições de vida das pessoas. Este cenário as
estaria levando a buscar formas de organização próprias, baseadas na solidariedade e
cooperação comunitárias que podem se manifestar, por exemplo, através da
identificação com algum tipo de nacionalismo, com um ideário religioso (podendo
21
Castells, op. cit., p. 24.
22
descambar no fundamentalismo) ou produzir identidades com raízes profundas em
valores locais.
Levando em consideração tal tendência na leitura do enunciado do qual partimos
no início deste trabalho, bem como do sistema discursivo que o possibilitou e que ele,
por sua vez, alimenta, poderíamos ser levados a considerar o modelo comunal exposto
como perfeitamente aplicável à política de identidade posta em marcha no estado do
Acre sob a denominação de florestania. O termo, cunhado no final da década de 1990
por intelectuais ideólogos do PT acreano e membros de governos municipais e
estaduais petistas, remete precisamente a um modelo de cidadania e de relações
socioambientais, socioeconômicas e socioculturais adaptadas a uma vida na floresta
amazônica, tendo como fundamentos os modos de vida, as práticas produtivas e os
valores culturais das populações da floresta.
22
O conceito parece assumir, assim, a função de (re)ordenador de uma história e de
uma memória acreana ligadas sobretudo a acontecimentos considerados decisivos da
história do estado, criteriosamente selecionados na composição dos materiais que
integrariam o discurso oficializado. De acordo com a análise aqui proposta, os
momentos/eventos mobilizados na operação discursiva posta em atividade seriam os
seguintes: I) as batalhas pela incorporação do território acreano à Federação
Brasileira, no início do século XX, e os atos apontados como eventos fundadores da
história local, como a assinatura do Tratado de Petrópolis, em novembro de 1903; II) o
movimento pela autonomia político-administrativa, entre 1957 e 1962; III) o movimento
extrativista de seringueiros, nas cadas de 1970 e 1980, como marco da luta pela
terra contra a expansão das atividades agropecuária e pela afirmação da causa
ambientalista.
Não obstante os efeitos positivos resultantes desse tipo de reorganização da
história e da memória em termos de fortalecimento de nculos identitários com o lugar
e com seus símbolos, uma análise cuidadosa das operações simbólicas postas em
marcha a começar pelo tipo de apelo ufanista mobilizado, bem como os interesses
políticos e econômicos legitimados pelas difusões resultantes desse trabalho pode
revelar fortes indícios de que a sistematização constituída no discurso do Governo da
Floresta em torno da noção de florestania seria mais adequadamente classificada
como uma identidade legitimadora do que de resistência. Isto porque, submetida a
intensos efeitos estetizantes, a diferença ou “autenticidade” convocada a alimentar
22
Índios, seringueiros, ribeirinhos, colonos e habitantes das zonas rurais em geral.
23
uma identidade particular é ostentada e espetacularizada de modo a gerar fortes
apelos afetivos, capitalizados na forma de engajamentos políticos. A identificação
coletiva alcançada com esse processo assume a função de emprestar legitimidade a
um novo arranjo de poder, supostamente incorporando as prioridades de grupos até
então excluídos dos processos decisórios, como índios e seringueiros. Ao extrair
legitimidade política e moral das reivindicações e conquistas fundiárias e ambientais
alcançadas por esses grupos, o discurso da florestania postula ainda a formação de
um certo consenso em torno do modelo de desenvolvimento proposto para a região,
calcado nos princípios do “desenvolvimento sustentável”. Apontado por muitos como a
nova metodologia de apropriação privada dos bens naturais pelo capital, esse modelo,
além de assegurar a continuidade na exploração de recursos florestais por grupos
empresariais, traria a conveniência de possibilitar um novo tipo de inserção do local na
lógica mercantil global, agora com uma fachada de sustentabilidade cultural, ambiental,
social e econômica adaptada às “exigências” de um “consumo verde” e “consciente” no
mercado internacional, preocupado com a preservação do meio ambiente e das
práticas laborais das diferentes culturas. Chegamos, assim, à identificação de uma
dupla vantagem produzida por essa construção discursiva em termos políticos e
econômicos, com amplos efeitos internos e externos.
Reconhecemos, assim, a pertinência do esquema elaborado por Castells,
especialmente quando se verifica que, no caso em questão, uma certa identidade de
resistência o movimento social de seringueiros - torna-se o principal capital político e
simbólico mobilizado pelas instâncias agenciadoras, sobretudo pelas rupturas que
estabelece, adquirindo um caráter fortemente propositivo que se converte numa
identidade de projeto, expressa principalmente no modelo das Reservas Extrativistas
propostas pelo grupo de Chico Mendes como forma de assegurar a existência de uma
categoria social capaz de interferir no modelo de produção a ser adotado no estado.
Entretanto, nas apropriações realizadas pelo discurso da florestania, os efeitos
aglutinadores e a eficácia de tais estratégias de comunicação na geração de
engajamentos são postos a serviço da legitimação de uma produtividade econômica e
de uma concentração de poder reveladoras da permanência de velhas alianças,
inicialmente sub-reptícias, com setores das antigas elites econômicas, e em muitos
casos familiares, fazendo valer a preocupante constatação de César Benjamin, a
propósito da nova pauta ambiental e social nas políticas públicas, ao levantar a
suspeita de que “dentro do novo, renova-se o velho, que é a concentração de riqueza e
24
poder, em detrimento da maioria dos homens, mesmo num mundo um pouco mais
limpo”.
23
Esse tipo de construção não se dá, evidentemente, senão dentro de um complexo
processo de disputa de significados socioculturais e relações de poder. Reconhecendo
o caráter conflituoso no qual se insere a constituição das identidades culturais,
procuramos partir de uma concepção de identidade que evite noções apriorísticas ou
essencialistas, a exemplo de uma identidade amazônica ou acreana pré-fixadas ou
rigorosamente estabelecidas. A identidade é tomada, antes, como uma das entradas
possíveis para o exame de uma construção que articula múltiplos aspectos, desde
aqueles de ordem social, política, econômica e ambiental, às questões pertinentes ao
campo da comunicação, em suas articulações com a constituição dos sujeitos e das
subjetividades. Buscamos, desse modo, fugir às conhecidas distinções entre interior e
exterior, ou subjetividade e objetividade, e associamo-nos Hall
24
para melhor definir a
concepção de identidade adotada. Conforme salienta o autor:
A identidade emerge, não tanto de um centro interior, de um “eu verdadeiro e
único”, mas do diálogo entre os conceitos e definições que são representados
para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo (consciente ou
inconsciente) de responder aos apelos feitos por estes significados (...) em
resumo, de investirmos nossas emoções em uma ou outra daquelas imagens,
para nos identificarmos.
Ao referir-se a “imagens para nos identificarmos” e a “conceitos e definições que
são apresentados para nós pelos discursos de uma cultura”, o texto de Hall nos remete
ao caráter de construto das identidades, a um (re)ordenamento tal de elementos
socioculturais encadeados significativamente que nos convidam a com eles nos
identificarmos. É evidente que esse processo não se faz sem levar em conta as
demandas afetivas por reconhecimento, os traumas sociopolíticos e ressentimentos
coletivos, sem esquecermos, sobretudo, do desejo de fazer parte daqueles
momentos/movimentos sublimes que gerem orgulho de pertencimento.
Todo esse trabalho traz consigo o outro par dessa definição de identidade como
construto: o trabalho da memória. Ou seja, para que uma determinada configuração
identitária se insinue socialmente é necessário que a memória (inclusive histórica)
dessa sociedade seja (re)organizada e (re)enquadrada. Para tanto, é acionado um
importante trabalho de definição, seleção e hierarquização dos materiais da memória
23
César Benjamin, “Nossos Verdes amigos”. Teoria e debate 12, São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, novembro de 1990, p. 21.
24
Stuart Hall, A centralidade da cultura. Notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. In: Revista
Educação & Realidade, 22 (2): 15 – 46, jul./dez. de 1997.
25
coletiva ou, como especifica Michael Pollak
25
, dos marcos da memória. Tal seleção
ocorre sempre no interior de disputas e, muitas vezes, em desigualdades de
condições, haja vista que, como é comum a esses processos, muitas experiências e
memórias são excluídas do novo arranjo e, ao menos temporariamente, relegadas ao
esquecimento. Nesse sentido, concordamos com Bauman quando sustenta que “as
batalhas de identidade não podem realizar a sua tarefa de identificação sem dividir
tanto quanto, ou mais do que, unir. Suas intenções includentes se misturam com (ou
melhor, são complementadas por) suas intenções de segregar, isentar e excluir”.
26
Valem aqui os recursos de que os grupos dispõem para socializar representações,
bem como a perícia para construí-las suficientemente sedutoras e aglutinadoras. Sobre
esse trabalho de seleção e disputas que envolve a memória, é esclarecedor o exemplo
fornecido por Pollak
27
no que tange às datas comemorativas. Segundo esse autor:
Todos sabem que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de
vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de
datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, muitas vezes
problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória
nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos
para determinar que datas e que acontecimentos o ser gravados na memória
de um povo.
A nova organização dos marcos de memória acontecimentos, personagens,
lugares supõe que estes sejam enredados, encadeados e enquadrados numa trama
maior que lhes confira sentido e a percepção de um todo reunido, gerando um
sentimento de unidade mediante articulação narrativa desses elementos. Ou seja, a
identidade precisa ser narrada num tempo e num espaço físicos e simbólicos a fim de
adquirir coerência e plausibilidade.
Assim, é a sistematização operada no trabalho da memória e sua relação
constitutiva com a produção das identidades que fundamentam esta aproximação com
um determinado momento da história acreana, entendendo que, neste caso específico,
a identidade figura como um aspecto capaz de aglutinar, ao menos temporariamente,
os diversos elementos, campos e forças atuantes numa sociedade. Presumimos,
desse modo, que a identidade proposta no discurso da florestania se propõe a
articular: politicamente, a recomposição de um quadro político representativo
dilacerado por sucessivos escândalos de corrupção a exporem nacionalmente os
descaminhos da política acreana; economicamente, veicula a promessa de bem-estar
25
Michael Pollak, “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
26
Zygmunt Bauman (2005), op. cit., p. 85.
27
Ibid.
26
e geração de riquezas mediante a reativação de uma proclamada tradição laboral
fundada no fazer e na cultura extrativista; social e culturalmente, manifesta uma
suposta redenção e reconciliação de conflitos históricos, culminando com a promessa
de um reencontro com uma essência identitária esmaecida no transcurso do tempo.
Assim concebidas, ou seja, como elaborações no interior das culturas, as
identidades estão, portanto, diretamente associadas às representações de mundo e à
auto-representação da própria sociedade, reproduzidas, alimentadas e irradiadas
através dos meios disponíveis. Nesse sentido, reafirma-se a centralidade do papel das
mídias na tarefa de elaborar e amplificar tais representações no interior das disputas
pelo direito de legitimar significados sociais.
1.3. O poder da palavra: o jornalismo como ordenador social
Uma das características bastante enfatizadas a respeito da atuação das mídias,
com especial destaque para o jornalismo, é a tentativa de construir narrativas sobre “o
real” que pareçam tão coerentes e fiéis ao ponto de dar conta de sua totalidade,
buscando criar o efeito de que ali se encontra uma verdade irrefutável. Tal expectativa
em relação ao texto jornalístico decorre da idéia de fidelidade aos fatos, tidos como
lastro inviolável, e de um esforço de naturalização/estabilização dos significados
mobilizados no uso da linguagem. Os processos ocorrem, conforme pontua Eni
Orlandi,
28
como se esta (a linguagem) e aqueles (os significados) fossem sempre
transparentes e dados, e não inseridos em complexas redes de sentidos que, por sua
vez, remetem a disputas sociais e ideológicas envolvendo o poder de significar o
mundo. Eugênio Bucci
29
nos oferece uma contribuição interessante, ao se referir
especificamente ao texto jornalístico. De acordo com ele:
A idéia de que as notícias de jornal “retratam a realidade” o faz sentido. (...)
Os fatos acontecem, no instante em que acontecem, como relatos. Ou, se
quisermos, como elementos discursivos. Não há, portanto, fato jornalístico sem
o relato jornalístico. O que pretendo dizer, enfim, é que o relato jornalístico
ordena e, por definição, constitui a realidade que ele mesmo apresenta como
sendo a realidade feita de fatos.
Deriva-se d que própria idéia de fato, tida como suporte máximo da
objetividade jornalística, revela-se também uma construção constitutiva do próprio
discurso jornalístico, atuando como fator de legitimidade e garantia de poder para esse
campo. Assim, de modo geral, parte-se do suposto de que os relatos reproduzem “a
28
Eni Orlandi, Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 3ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.
29
Eugênio Bucci, “O jornalismo ordenador”. In Gomes, Mayra. Poder no jornalismo, 2003, p. 9.
27
essência” dos acontecimentos e não a sua representação que, conforme destaca
Moraes,
30
“pode amplificar, obscurecer ou silenciar partes da realidade, conforme as
diretivas do sistema enunciador”. Para esse autor, é possível perceber aí uma tentativa
de fazer coincidir o pensamento, o enunciado e os referentes do real, dando margem
“ao mito da objetividade jornalística: atribuir verdade aos fatos, escamoteando o
processo de ordenação dos enunciados pelos agentes emissores. O recorte do real
promovido pelo sistema informativo é, por si só, o primeiro ato de negação da
objetividade”.
31
É elucidativo observar que, no caso do jornalismo impresso, a típica
segmentação dos materiais em seções (por exemplo, nacional, internacional, política,
opinião, policial, ciência, lazer, cotidiano, esporte, debate, cidade etc.) revela um
claro ordenamento das questões (aquelas consideradas noticiáveis) e, portanto, uma
classificação dos fatos e fenômenos em dispersão na sociedade. Vale lembrar ainda
que aqui entram em jogo valores e critérios que definem o que deve e o que não deve
ser repercutido, publicizado ou silenciado, lembrado ou esquecido. A propósito do
papel ordenador do jornalismo na vida social das cidades, consideramos bastante
apropriadas as observações feitas por Canclini a respeito de uma pesquisa realizada
com jornais da Cidade do México. O autor salienta que:
A despeito da ênfase sobre a novidade e, em alguns jornais, sobre o insólito, a
maioria termina por concentrar-se no conhecido. Embora se descrevam como
informadores de fatos atuais e, portanto, como meios que privilegiam o
presente, a maioria dos jornais insiste no habitual, prolongando estereótipos
formados historicamente. Os relatos diários mudam, mas as estruturas
argumentativas que os sustentam demonstram estabilidade e fixidez”. Se esta
fidelidade ao estabelecido se relaciona com o predomínio das vozes oficiais, é
possível concluir que a imprensa tende a imaginar os cidadãos em um lugar
subordinado que reproduz a ordem. Mesmo apresentando um registro da
pluralidade social e dos protestos mais profusos que o rádio e a televisão, os
jornais concebem a cidade como um espaço muito mais homogêneo do que
realmente é, e a vida pública mais como gestão e administração que como lugar
de inovações e mudanças. A ação cidadã que pode chegar a ser blica desde
que difundida pelos meios, fica relegada a um discurso periférico ao estatal.
32
Para além do caráter conservador e sedimentador de estereótipos observado
nessa atuação dos jornais, são importantes para esta análise dois outros aspectos
levantados por Canclini: a prevalência das vozes oficiais e das agendas por elas
colocadas e, de certo modo em conseqüência disso, a forma como a diversidade e a
30
Dênis de Moraes, O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947 –
1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 28.
31
Denis de Moraes (1994), Ibid, p. 28.
32
Néstor García Canclini, “Cidades e cidadãos imaginados pelos meios de comunicação”. Opinião
Pública, Campinas, Vol. VIII, 2002, p. 45.
28
complexidade do social – ou seja, os múltiplos discursos e manifestações que o
integram são articuladas no discurso jornalístico. No caso da imprensa acreana,
como verificaremos, o poder de ocupação dos espaços midiáticos pelo discurso oficial
é fator determinante do esforço de traduzir em unidade do que é diverso, em
harmonização o que é desarmônico, enfim, de estabilizar significados sociais
flutuantes. Seguindo o raciocínio de Barthes
33
, é como se todo e qualquer evento do
cotidiano, tão logo convertido em narrativa, se tornasse imediatamente cúmplice de
uma certa visão interpretativa do mundo e de seus processos. Num quadro de tal modo
agenciado, as diferenças e desarmonias em relação a um núcleo semantizador
precisarão ser aparadas a fim de não pôr em risco as “verdades” legitimadas.
Ao refletirmos sobre o circuito de produção da notícia, podemos pensar que o
trabalho da notícia percorre dois movimentos complementares, em consonância com a
proposição de Luiz Gonzaga Motta
34
: um primeiro movimento de ruptura e quebra da
normalidade quotidiana estabelecida, colidindo com o previsível ao trazer o inusitado e
o insólito. O impacto causado nessa etapa alerta para possíveis riscos de alteração e
subversão da ordem das coisas. Trata-se de uma fala que se dirige a um medo,
constantemente alimentado (sobretudo nas classes médias), de subversão, de quebra
da ordem, do caos. Mas a partir daí entra em ação o segundo movimento, que consiste
na restituição da ordem simbólica e tranquilização do social, ao garantir que tudo
voltará ao seu lugar, que o perigo passou e o precário equilíbrio em que vivemos será
restituído, desde que seguidas (ou obedecidas) as prescrições indicadas. A depender
do contexto sociopolítico, não é rara a identificação de certos agentes, geralmente
personificados, sobre os quais repousa a garantia do equilíbrio e da positividade da
ordem social.
Não se pode ignorar que, ao integrar o campo das disputas sociais e dos
embates ideológicos, as narrativas jornalísticas, além de ordenadoras, são também
ordenadas e atravessadas por rigorosos controles que buscam assegurar um certo
equilíbrio de representações. De acordo com Gregolin
35
, tal efeito é buscado dentro de
um sistema de significação em que a mídia procura produzir sentido
por meio de um insistente retorno de figuras, de sínteses-narrativas, de
representações que constituem o imaginário social. Fazendo circular essas
33
Roland Barthes, Mitologias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
34
Luiz Gonzaga Mota, “O trabalho simbólico da notícia”. Líbero – Ano VIII – N° 15/16 – 2005.
35
Maria do Rosário Gregolin, O acontecimento discursivo na mídia: metáfora de uma breve história do
tempo. In: Gregolin, Maria do Rosário. Discurso e mídia: a cultura do espetáculo (org). São Carlos:
Claraluz, 2003 (coleção Olhares Oblíquos), p. 96.
29
figuras, ela constrói uma “história do presente”, simulando acontecimentos-em-
curso que vêm eivados signos do passado. Se analisarmos o funcionamento
discursivo da mídia, poderemos entrever esses movimentos de resgate da
memória e de estabelecimento do imaginário de uma identidade social.
Desse modo, compreender o poder de construir representações e torná-las
disponíveis para assimilação no interior de uma cultura implica considerar quem tem à
disposição os meios para tanto. Isso porque se os agentes que dispõem desses
recursos tendem a ocupar os lugares de fala socialmente legitimados e legitimadores,
também a eles será facultado o poder controlar, delimitar, classificar e ordenam os
acontecimentos discursivos em dispersão, “permitindo que um texto possa estar em
relação com um domínio de objetos”.
36
O conhecimento desses processos facilita o entendimento de por que, nos
embates sociopolíticos, os espaços midiáticos sejam tão privilegiados e disputados
(vide, por exemplo, as discussões sobre o funcionamento de rádios comunitárias, livres
ou piratas, a de pender de que lado da questão se enfoca). Numa época de predomínio
das redes informacionais e de status privilegiado das imagens, a conquista e a
manutenção do poder nas sociedades tardo-modernas envolvem cada vez mais
processos e estratégias no campo do discurso e a busca de identificações via
exploração de demandas afetivas ligadas ao desejo (inclusive de reconhecimento).
Por essa perspectiva, a questão da identidade torna-se particularmente chave
quando se trata de analisar a formação sócio-histórica acreana, com seus
determinantes socioculturais e políticos, na medida em que desde o final do século XIX
e início do XX, com as lutas pela incorporação desse território ao Brasil, a muito
recentemente, os dilemas entre pertencer ou não pertencer, aceitação e negação, local
e nacional sempre acompanharam o imaginário de parte considerável dessa formação
social. É o caso, por exemplo, da incipiente produção jornalística e literária da primeira
metade do século XX, que se divide entre o anseio de se integrar às tendências
nacionais, mas ao mesmo tempo demarcar traços peculiares do local.
Num contexto marcado pelo afrouxamento dos vínculos identitários, o trabalho da
memória e o investimento na identidade apresentam-se como excelentes estratégias
políticas para a conquista de lealdades e construção de hegemonia no Acre. O manejo
de recursos simbólicos na mídia direcionado ao preenchimento de lacunas identitárias
buscará precisamente a organização de significados sociais dispersos. A observação
desses fenômenos nos leva a perceber a pertinência de ponderações como as de
36
Gregolin, ibid, p. 97.
30
Hall,
37
Bauman
38
e mesmo Castells
39
– com a idéia das identidades comunais de
resistência de que a reivindicação de uma identidade se torna pertinente quando
são constatadas ameaças externas ou mesmo internas ou quando um grande
volume de significados circulando. Ou seja, “perguntar quem é você faz sentido se
você acredita que possa ser outra coisas além de você mesmo”.
40
Em situações assim, a importância da mídia como mecanismo de poder adquire
maior importância, sobretudo na tarefa de legitimar modelos produtivos e arranjos
políticos mediante a normalização de certas identidades que convidam a articular
positivamente tudo que a elas se relacione. A identidade normalizada tende a
naturalizar certas representações, marcando “as outras” como diferentes. Num quadro
como esse, parecem-nos decisivas as questões pontuadas por Castells, ao se
interrogar sobre a construção de certos nacionalismos: “O que realmente importa, tanto
do ponto de vista prático quanto teórico é, como, a partir de quê, por quem e para quê
uma identidade é construída”
41
. Estas representam, a nosso ver, questões centrais
para um trabalho que tenha como propósito pensar o movimento desencadeado pelos
governos do PT no Acre a partir de 1999 no que tange à cultura, à política, ao sentido
da história, sem esquecer o papel central dos movimentos sociais organizados em
torno das questões ambientais e do capital cultural e político por eles fornecido.
1.4. A palavra do poder: meios de comunicação e representação política
Para uma análise do percurso político trilhado pelo grupo que chega ao governo
do estado do Acre em 1999 reivindicando a condição de triunfo do projeto político
iniciado com as lutas dos seringueiros na década de 1970, mediante uma progressiva
incorporação de adesões que vão conferindo visibilidade e legitimidade ao movimento,
o conceito de hegemonia tal como desenvolvido por Antonio Gramsci oferece-nos uma
fértil contribuição. Auxilia-nos a compreender a constituição e a evolução de certos
movimentos da sociedade civil em seu processo de fortalecimento e possível conquista
dos aparelhos de Estado. Além disso, disponibiliza instrumentos que possibilitam a
análise das complexas relações entre sociedade política e sociedade civil, envolvendo
37
Stuart Hall (2004), Op. cit.
38
Zygmunt Bauman (2005), op. cit.
39
Manuel Castells (1999), op. cit.
40
Zygmunt Bauman, op. cit., p, 21.
41
Castells (1999), op. cit., p. 48.
31
os chamados aparelhos privados de hegemonia, dentre os quais, em nossa época, os
meios de comunicação figuram como centrais.
Uma das principais contribuições da acepção apresentada pelo filósofo italiano diz
respeito à abrangência conferida por ele ao conceito de hegemonia, ao considerar que
nos embates sociais são ativadas não apenas estratégias que mobilizam questões
ligadas à estrutura econômica e à organização política mas, em igual medida, valores
culturais, modelos de representação e orientações ideológicas que alimentam
determinados saberes e práticas. Nesse sentido, ação política, valores morais e
reflexão teórica fazem parte de um todo coerente, organizado por uma visão crítica de
uma dada formação social. Em Gramsci, a condição de ser social confere a todo
homem o pertencimento ao universo simbólico-cultural sendo, portanto, portador de
uma cultura, mesmo que atravessada por influências ideológicas as mais diversas e
mesmo contraditórias
42
. É por essa razão que, no projeto político por ele concebido, só
um trabalho de organização política e cultural permitirá alcançar algum tipo de
unificação ideológica, sempre voltada à construção de uma consciência de classe e à
conseqüente transformação social pretendida.
Evidentemente, em seu contexto de escrita e militância, o filósofo está pensando
na emancipação dos trabalhadores e nas classes ou frações de classe que com eles
possam se identificar. Nesse sentido, a organização política e cultural que possa advir
de um possível novo bloco precisará romper com os consensos e valores ideológicos
hegemônicos que conferem unidade e estabilidade à estrutura social dominante. A sua
manutenção ou ruptura dependerá, portanto, da capacidade diretiva dos grupos em
disputa, da unidade que conseguem construir, bem como dos recursos de que dispõem
para engendrar e consolidar representações. Assim, conforme esclarece Gruppi
43
:
Uma classe é hegemônica, dirigente e dominante até o momento em que
através de sua ação política, ideológica, cultural consegue manter articulado
um grupo de forças heterogêneas, consegue impedir que o contraste existente
entre tais forças exploda, provocando assim uma crise na ideologia dominante,
que leve à recusa de tal ideologia, fato que irá coincidir com a crise política das
forças no poder.
É nesse espaço heterogêneo e conflituoso, onde se articulam cultura, política e
ação, que se formam e se negociam as representações e se legitimam ou não os
interesses conflitantes. Para o filósofo comunista, o cenário privilegiado para esses
embates é a sociedade civil, instância relativamente autônoma em relação ao Estado,
42
Luciano Gruppi, O Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 67.
43
Ibid., p. 70.
32
mas que mantém com ele intensas relações, na medida em que é nesse âmbito que a
hegemonia é construída e assegurada pelos setores dominantes de uma sociedade. O
autor observa a existência, no Ocidente, “entre o Estado e a sociedade civil [de] uma
justa relação, em que qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma
poderosa estrutura da sociedade civil. O estado era apenas uma trincheira ameaçada,
por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas
44
”.
Compreende-se, com isso, que as edificações da sociedade política Estado em
sentido estrito com seu conjunto burocrático-administrativo e forças coercitivas ligadas
à aplicação das leis estão, na verdade, sustentadas em estruturas importantes da
sociedade civil, sobre as quais o Estado busca se apoiar e estender seu domínio,
configurando o que o filósofo chama de Estado Ampliado (ou Estado em sentido
ampliado), ou seja, sociedade política articulada às instituições da sociedade civil.
Tais estruturas ou entidades da sociedade civil compreendem organizações como
partidos, sindicatos, igrejas, sistema escolar, ordens corporativas e profissionais, meios
de comunicação, enfim, o conjunto dos aparelhos privados responsáveis pela
mediação política dos interesses de grupos variados.
Esse sistema de representação dos mecanismos implicados nas relações entre
Estado e instituições da chamada sociedade civil lança luz sobre muitos aspectos
pertinentes à relação entre movimentos sociais e poderes institucionais no Acre,
principalmente quando consideramos o movimento extrativista e as conquistas sociais
e políticas por ele alcançadas.
Não obstante a importância de tais entidades num período específico da história
desses movimentos, se faz necessário o registro de que importantes e profundas
transformações nas dinâmicas da produção capitalista, com profundas implicações na
configuração dos Estados, vêm abalando significativamente os espaços de manobra e
o poder de atuação dessas organizações da sociedade civil. Fenômeno que está
relacionado ao desenvolvimento cada vez mais acelerado e estrutural da tecnologia,
criando as condições para que o capitalismo atingisse chamada etapa pós-industrial,
num processo que tende a absolutizar os meios e a eficácia produtiva em detrimento
do social e da mediação política. Também denominada de sociedade da informação, a
nova fase tem como elementos centrais os processos informacionais ligados à
prevalência de saberes especializados (porém flexíveis) necessários à
44
A. Gramsci, Maquiavel e o Estado moderno. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 74,
apud Viana, Luiz Werneck, in. Gruppi, Luciano. O Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro:
Graal, 1978, p. X.
33
operacionalização e gestão do sistema de produção. A informação, conforme observa
Moraes, “tornou-se fonte alimentadora das engrenagens indispensáveis à conservação
da hegemonia do capital”, numa ordenação produtiva em que “os circuitos
informacionais tornam-se molas propulsoras para o planejamento estratégico, para a
geração de produtos e serviços e – sobretudo para a reverberação do novo modo de
organização do espaço social
45
”.
Ainda de acordo com esse autor, com a disseminação das práticas e princípios
vinculados a essa lógica, as grandes corporações financeiras e os complexos
industriais multinacionais passaram a articular-se aos Estados de tal modo que estes,
além de terem sua atuação significativamente reduzida à viabilização dos interesses
dessas corporações, passam a incorporar as mesmas ferramentas de gestão e
administração próprias do setor privado, operando uma significativa privatização do
espaço público. Ou seja, onde antes se abria espaço para a política e a representação
baseada na argumentação e no debate de proposições, tende a se instalar um modelo
tecnoburocrático que transfere para o mercado e suas engrenagens as decisões
referentes à gestão da vida pública, como se tudo pudesse ser regido por uma grande
inteligência maquínica que delega ao humano apenas a escolha entre opções por ela
fornecidas. Entretanto, na base dessa aparente neutralidade tecnocrática é possível
visualizar, mais forte do que nunca, a ideologia do liberalismo de mercado associado
aos princípios de uma mera democracia formal.
A nova ordem, que traz entre suas prioridades a intensificação do consumo, do
individualismo e da competitividade, não atinge somente o poder decisório dos
Estados, afetando profundamente as instâncias coletivas de negociação política
pautadas numa ética pública, como sindicatos, associações e partidos, entre outros.
Além disso, outra ação de efeito altamente deletério sobre essas formas de
organização tem sido o intenso processo de cooptação pelo poder do Estado e a
absorção de lideranças políticas, sindicais etc. para os quadros estatais. Com o
enfraquecimento das fronteiras entre o que é governo e o que é sindicato, partido ou
empresa privada, por exemplo, as questões de interesse público tendem a figurar
quase sempre como problema de gestão, de gerenciamento, e não mais de
negociação ou mesmo de embate político.
Verifica-se, portanto, uma erosão dos canais de participação política e da prática
da “argumentação em público” como representação de interesses coletivos. De acordo
45
Dênis de Moraes(1994), op. cit., p. 30.
34
com Muniz Sodré,
46
no lugar das mediações tradicionais, operadas por instituições
como família, escola, sindicato, partido, igrejas (não as eletrônicas atuais),
associações, órgãos representativos de classe etc., tende-se a uma consolidação das
mediações tecnológicas como o lugar privilegiado das novas interações sociais. Nesse
novo modo de habitação lúdico, dotado de um ordenamento cultural específico, as
imagens ganham proeminência singular, mas o ao modo de mera reprodução de
uma realidade, pois recondicionam os modos de estar no mundo por meio da criação
um novo ethos, o etos midiatizado.
Nesse cenário em que as imagens cada vez mais se legitimam como código
comunicacional, o processo de representação política e as disputas eleitorais vão
incorporando as “regras” do espetáculo midiático, o que, não raro, vem acompanhado
da desmobilização coletiva, do abandono do discurso argumentativo e do
enfraquecimento da política como espaço de reivindicação. No lugar do debate de
programas e propostas, por exemplo, opta-se pela promoção estetizante da imagem
estilizada dos atores políticos, com o intuito de provocar identificações e emoções no
espectador/eleitor, numa dinâmica que atribui ao cidadão o lugar de consumidor e ao
político o estatuto que mais o aproxima de um produto de consumo.
A atividade política torna-se, assim, tarefa de profissionais especialistas,
envolvendo desde o trabalho de jornalistas e atores até o império do marketeiro. Ao
agente político exige-se mais a habilidade de atuar performativamente do que a
consistência e a coerência de idéias e projetos. Este comentário da colunista de O
Globo, a jornalista Teresa Cruvinel, sobre as eleições municipais de 2004, traduzem
com precisão o processo que tentamos aqui descrever. Salienta ela:
A campanha foi cara, uma das mais caras de todos os tempos. O debate nem
sempre elevado, o marketing regeu a cena. Os shows substituíram os comícios;
visitadores profissionais, os velhos cabos eleitorais. Até o botox entrou no
receituário para candidatos. Tudo isso faz parte da mutação democrática
47
.
O que se pode visualizar num cenário como esse, além da “mutação democrática”
a que se refere a colunista, é um progressivo atrofiamento da esfera pública como
espaço de debate e da política como lugar de representação coletiva. Na nova política,
a coincidência entre público e político, que marcou toda uma primeira modernidade,
apresenta fortes sinais de se diluir dramaticamente.
46
Muniz Sodré, Antropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis:
Vozes, 2002, p. 23.
47
Jornal O Globo, 03 de outubro de 2004.
35
Numa arquitetura discursiva assim marcada pelas difusões midiáticas, os meios
de comunicação se tornam, por excelência, o lugar da produção e reprodução do real e
o locus privilegiado de mediação da política. É o reconhecimento do lugar ocupado
pelos media como uma espécie de consciência social que permite aos seus agentes,
em muitos momentos, tomarem o lugar de uma suposta fala do “povo” e se legitimarem
como seus porta-vozes, com se verifica nos trechos abaixo, extraídos de publicações
da imprensa acreana:
O povo já acordou muito tempo e por isto mesmo não admite mais essas
tentativas de manipulação, esses salvadores da pátria de araque. O povo
acreano, que em mais de 80% apóia o governo [Governo da Floresta] e se
sente honrado e representado, não quer a volta dos escândalos, da
roubalheira de dinheiro público, do uso da máquina do estado em proveito
próprio. E não precisa de visionários do passado que lhes chame a atenção,
como se a população não fosse capaz de cuidar de seu próprio destino
48
.
O povo não é bobo. Não se deixará enganar. Historicamente, o desrespeito,
e, pior, a desumanidade com os sonhos alheios sempre foram o preâmbulo para
grandes quedas. O Acre já deu alguns sinais disso. E vem mais por aí
49
.
A Prefeitura nada mais é do que uma verdadeira familiocracia, autênticos feudos
que a população condena e reprova
50
.
Diante de um quadro tão promissor, a expectativa dos mais de 500 mil
acreanos, distribuídos nos 22 municípios, é das melhores. Todos
acreditam que agora será possível oferecer segurança, saúde, educação
51
.
E a população soube reconhecer isso [o trabalho da FPA]. As imagens da
posse da nova safra de deputados mostram uma proximidade difícil de ser vista
entre o povo e o poder
52
. (grifos meus).
Evidencia-se aqui um esforço dos agentes midiáticos de sintetizar uma “fala
pública” como uma voz homogênea e traduzível na forma de generalizações.
“Desejam, assim, eternizar a ilusão de que sintetizam as demandas comunitárias,
abolindo as distinções entre o público e o privado e induzem-nos a crer que são
expoentes de uma dialética integradora de identidades culturais”, conforme acentua
Moraes
53
.
A observação desse processo nos leva a deduzir que diante do esvaziamento
das funções representativas e da desvinculação da política com as demandas sociais,
o espaço esvaziado dos debates coletivos tende a ser ocupado pelos atores midiáticos
na forma de uma permanente simulação de participação e interação com o “homem da
48
Página 20, fevereiro de 2003.
49
Página 20, 10 de jan. de 2003.
50
Página 20, 10 de jan. de 2003.
51
Página 20, 5 de fev. de 2003.
52
Página 20, 05 de jan. de 2003.
53
Dênis de Moraes (1994), Op. cit., p. 28.
36
rua”, na maioria das vezes conjugando discursos competentes, convocados a
chancelar as visões irradiadas.
Num cenário mundial como o que se apresenta, marcado pela crescente
desagregação do social e reconfiguração das identidades socioculturais no âmbito do
consumo de bens e, principalmente, de imagens midiáticas com forte apelo hedonista –
pautado não mais no binômio desejo-realização via consumo, mas na potencialização
da expectativa e permanente adiamento da satisfação como forma de evitar a
frustração são enormes os desafios que se colocam para as antigas instâncias de
negociação de interesses coletivos. Consideramos, nesse sentido, esta reflexão de
Ianni uma das mais pertinentes para definição do quadro político atual em seu
entrelaçamento com os processos midiáticos. Diz ele:
Esse é o novo, imenso, complexo e difícil palco da política, como teoria e
prática. as instituições “clássicas” da política estão sendo desafiadas a
remodelar-se, ou a ser substituídas, como anacronismo, que outras e novas
instituições e técnicas da política estão sendo criadas, praticadas e teorizadas.
Em lugar de O Príncipe de Maquiavel e de O Moderno Príncipe de Gramsci [o
partido político como intelectual coletivo], assim como de outros “príncipes”
pensados e praticados no curso dos tempos pós-modernos, cria-se O Príncipe
Eletrônico, que simultaneamente subordina, recria, absorve ou simplesmente
ultrapassa os outros
54
.
1.4.1. O controle governamental da mídia na política acreana
Face grande poder dos meios de comunicação na produção de representações,
conforme esboçado até aqui, não é difícil compreender as razões que tornam esses
aparatos tão disputados e valorizados pelos grupos hegemônicos ou em busca de
hegemonia. Além dos vínculos orgânicos com a reprodução capitalista, na qual a mídia
se insere como vetor de coesão ideológica, não se pode ignorar a cadeia produtiva
específica a da indústria cultural da qual as empresas de comunicação fazem
parte, condição esta que coloca a necessidade de sobrevivência financeira e geração
de lucro no plano das prioridades. Neste aspecto, a atuação dos meios de
comunicação no estado do Acre se sob condições que merecem atenção particular,
especialmente se compararmos sua produção com a dos grandes centros
industrializados do país, onde a grande imprensa, pelas relações que estabelece com
os demais poderes, chega a ser caracterizada como o quarto poder. Cabe, pois, uma
análise das principais condições em que ocorre a produção jornalística acreana,
54
Octavio Ianni, “O Prinicipe Eletrônico”, in O Príncipe Eletrônico. Petrópolis: Cultura
Vozes, v. 93, n. 5, ano 93, 1999, p. 13.
37
atentando para os vínculos entre essa produção e os poderes político e ecomico, a
fim de avaliar em que medida tais vínculos interferem tanto no trabalho jornalístico
quanto na construção da fisionomia dos governos, especialmente os eleitos a partir de
1998.
Como é comum nas empresas de comunicação do Norte e Nordeste do país, os
grupos de mídia do Acre são, em sua maioria, propriedades de políticos da região ou
de empresários com fortes vínculos com o Estado e com os mandatários de cargos
eleitorais. Em alguns casos, o estabelecimento desses vínculos segue um rito inicial de
hostilidade ao governo até a subseqüente inclusão da empresa na distribuição dos
recursos de publicidade governamental, como aponta o jornalista acreano Altino
Machado
55
:
Sempre foi muito fácil criar um jornal para extorquir o governador, os
mandatários de plantão. O cara faz um jornal, começa a fazer críticas, a
apresentar denúncias levianas ou não, e até o governador se aproximar e
dizer: “Espera aí, quanto você quer para calar?”
Numa tradição assim marcada pela promiscuidade entre governo e mídia e pelas
ingerências oficiais no trabalho dos veículos, a estes acabam assumindo
predominantemente a função de instrumentos nas disputas eleitorais, bem como
suporte de legitimidade e aceitação de governos ou oposições, desde que estejam em
condições de financiá-los. Em tais circunstâncias, a qualidade do trabalho jornalístico e
a própria qualificação dos profissionais tornam-se elementos secundários, conforme
registra o jornalista Antônio Alves:
Tanto TV, quanto rádio e jornal requisitavam cada vez mais profissionais
desqualificados que fossem capazes apenas de seguir a ordem do chefe e latir
para adversários políticos, feito ‘cachorrinhos de guarda’. Não precisava
escrever bem, nem precisa ter idéias próprias, era proibido, bastava apenas
escrever o que o chefe mandava, escrever a favor do governo ‘que nós
apoiamos’ ou contra o governo ‘que nós combatemos’
56
.
55
Entrevista publicada no site http://www.reportersocial.com.br, em 10 de julho de 2006. O jornalista
Altino Machado edita um blog de notícias que se tornou
uma das poucas fontes de informações ainda não
diretamente filtradas pelo poder estatal no Acre. A esse respeito, as alternativas para expressão de opiniões e da
pluralidade de idéias encontradas pelos setores mais críticos no contexto local têm sido as publicações eletrônicas,
tema que retomaremos no terceiro capítulo deste trabalho. Há, no entanto, registro de pelo menos um caso de
interdição de blog cujo autor, um suporto funcionário blico da administração estadual, identificado apenas com o
pseudônimo de Astronauta de Mármore, teve a identidade rastreada e teria sido pressionado a cessar as
publicações. Trata-se do endereço http://cavernadesaturno.zip.net/arch2006-08-27_2006-09-02.html, que durante
aproximadamente três anos atuou na crítica política e social. Embora não haja confirmação de que efetivamente
tenha sido descoberto e pressionado a parar de escrever, o fato é que, em 30 de agosto de 2006, o blogueiro
encerra suas intervenções sobre a política e a vida e a pública acreanas.
56
Entrevista realizada pela jornalista e pesquisadora Michelle Portela e publicada em:
http://www.google.com.br/notebook/public/11191268862387917317/BDRkwSgoQs7j0-aYj?hl=pt-BR.
38
Atualmente são três os maiores grupos de mídia acreanos: Rádio e TV do
Amazonas (TV Acre e Rádio Acre FM); Complexo de Comunicação O Rio Branco (TV
Rio Branco e Jornal O Rio Branco); e Sistema Gazeta de Comunicação (Jornal A
Gazeta e Rádio Gazeta FM). Além destes, que reúnem dois suportes de mídia cada
um, existem isoladamente: TV Gazeta (Record), TV 5 (Band), TV 40 (Rede TV) e os
jornais Página 20 (diário), A Tribuna (diário) e O Estado do Acre (semanal).
Dentre os grupos mais consolidados, destaca-se A Rádio e TV do Amazonas,
integrante da Rede Amazônica de Rádio e Televisão, instalada no Acre em outubro de
1974. Criado no contexto dos anos de chumbo da ditadura militar e das políticas de
integração da Amazônia adotadas por aqueles governos, o grupo assumiu a tarefa de
interligar, por meio de transmissões televisivas, os vários estados da Amazônia e esta
ao restante do Brasil sempre com ampla contrapartida dos governos estaduais e com o
propósito declarado de justificar as ações dos governos militares, conforme se verifica
no discurso de criação da filial acreana, dirigido ao então Ministro de Comunicações
Euclides Quandt de Oliveira, pelo diretor presidente do grupo, Phelippe Daou:
Esse recorde na história da televisão brasileira, embora a modéstia da estação,
não supera a velocidade daquele ato de Vossa Excelência, que consentiu, a
título precário, que transmitíssemos os jogos da COPA DO MUNDO, a princípio
apenas envolvendo Rondônia e Acre e depois estendendo-se a Roraima e
Amapá, a pedido de seus governadores (...) A sua decisão ocorreu também a 18
de junho, minutos antes da lavratura do contrato da TV Acre, em seu gabinete
em Brasília. Mal terminávamos de formular o pleito, e Vossa Excelência o
deferia, numa forte e clara demonstração de que entende: 1) que se impõe
"fazer andar o relógio amazônico, que muito se atrasou ou ficou parado no
passado" - como pregava o Presidente Médici, conclamando a união de todos
os brasileiros para enfrentarem esse desafio; 2) e que também entende Vossa
Excelência que não podemos adotar, - nem o Brasil, nem a Amazônia - "uma
posição de imobilismo em face das angústias políticas e econômicas do mundo
moderno", como recomenda o Presidente Geisel, donde o recente lançamento
do Polamazônia, que objetiva ocupar racional e decididamente o imenso vazio,
através de formas novas de prosperidade, acelerando o desenvolvimento da
nossa região e a sua efetiva integração ao país. Esta emissora, como toda a
Rede, constitui a nossa pequena contribuição, a nossa participação no processo
acionado pelo Governo Federal para arrancar a Amazônia do secular abandono
em que se encontrava mergulhada (...) Seria uma entidade não tão grandiosa
como a que existe na Guanabara (...) O que está na Guanabara, mostraria,
digamos, o Centro-Sul aos amazônidas. O da Amazônia mostraria esta aos
brasileiros de outros rincões e, assim, todos ficariam conhecendo bem o seu
País. Não haveria maior dispêndio para a exibição compulsória dos programas,
porque seriam utilizados os horários que a lei reserva para fins educativos. O
Governo Federal particularmente, através desses programas, poderia
conscientizar toda a nação sobre o que vem fazendo, o porquê vem fazendo
pelo desenvolvimento brasileiro. No que diz respeito à Amazônia, que é o
assunto mais empolgante da atualidade, esses programas valeriam como plena
e eficiente justificativa de suas realizações arrojadas e gigantescas, como a
39
Transamazônia, a Perimetral Norte, as telecomunicações e, agora, o
Polamazônia
57
.
Como se observa, há uma busca de alinhamento entre a visão que orienta a
atuação do grupo de comunicação com a política de integração dos governos militares,
visão essa que procura se legitimar pela da necessidade de levar desenvolvimento e
progresso a uma região cuja marca mais salientada é a do atraso, aliada à idéia de um
vazio ocupacional. Reproduz-se, assim, a imagem de uma Amazônia como um
“deserto verde”, idéia bastante conveniente para justificar a colonização promovida
durante o período de implementação dos grandes projetos de desenvolvimento,
mediante a chamada ocupação racional, inclusive “através de formas novas de
prosperidade”. A profícua articulação que sempre manteve com os vários governos
estaduais e prefeituras municipais garantiu à Rede Amazônica uma relativa
estabilidade financeira, também facilitada por sua condição de retransmissora do sinal
da Rede Globo de Televisão, atualmente detentora de 50% das ações da empresa,
sediada em Manaus.
O segundo grupo
58
a conquistar maior solidez e estabilidade, pelo menos até o
final da década de 1990, foi o Complexo de Comunicação O Rio Branco, inicialmente
com o jornal, criado ainda na cada de 1970 pela família Tourinho, também
proprietária de jornais no estado de Rondônia. Desde 1988 o grupo pertence à família
Mendes, dos ex-deputados federais Narciso e Célia Mendes. Além das empresas de
comunicação, os Mendes atuam na construção civil, tendo se notabilizado no decorrer
dos anos 1990 por meio da empreiteira Mendes Júnior. As empresas da família
prosperaram até o fim da década de 1990, quando o PT assumiu o governo, em 1999.
A partir de então, o grupo de comunicação O Rio Branco, em seu vínculo com a
administração pública, vinha nutrindo-se somente dos recursos de publicidade oriundos
da Prefeitura de Rio Branco, administrada até 2004 pelo PMDB, adversário local do
PT. A partir de 2005, com a vitória do petista também nas eleições municipais do ano
anterior para a prefeitura da capital, o quadro financeiro do grupo se torna ainda mais
crítico, com risco de falência, atraso no pagamento de salários dos funcionários, tendo-
se registrado inclusive falta de papel para as impressões diárias, o que o deixou fora
de circulação em algumas ocasiões. Paralelamente, uma avalanche de ações judiciais
movidas contra o grupo por membros do PT, do governo e pelo próprio governo
57
Publicado no site http://portalamazonia.globo.com/30anos/tvacre2.htm.
58
A ordenação aqui realizada não tem o propósito de classificar os grupos, tratando-se de uma simples
enumeração para efeito de sua apresentação.
40
exigindo compensação financeira por alegados danos morais, ofensa da honra etc.
obrigou tanto o jornal quanto a TV a ficarem fora de atuação em diversas ocasiões,
além de agravar ainda mais o quadro financeiro com o pagamento de indenizações.
Diante de uma conjuntura tão desfavorável, a postura de confronto com o
governo começa a se atenuar, podendo-se encontrar anúncios publicitários do governo
na TV e no jornal a partir de 2005. Entretanto, a rendição total às orientações oriundas
do Palácio Rio Branco se com a derrota eleitoral tanto de Narciso, candidato a
deputado federal pelo PDT, quanto de sua esposa, lia Mendes, candidata a
deputada estadual pelo mesmo partido, nas eleições de primeiro de outubro de 2006.
No dia seguinte às eleições era perceptível nas manchetes do jornal O Rio Branco
uma indisfarçável mudança no tom acusatório precedente. Em resposta a alegações
de que teria aderido ao grupo político liderado pelo PT, o próprio Narciso declara:
Não virei – e nem vou virar – petista com ou sem carteirinha, entretanto, não sou
mais o antipetista que fui antes, enfim, como conscientemente estou afastado da
militância político-partidária, não faria nenhum sentido ser contra este ou aquele
partido sem ser a favor de nenhum deles
59
.
A trajetória política de Narciso e de suas empresas é marcada por acusações de
envolvimento em casos de grande repercussão nacional. No episódio do assassinato
de Chico Mendes, em 1988, o jornal O Rio Branco teria sido o primeiro a anunciar,
através de notas da redação, uma semana antes, que o assassinato de uma
importante liderança ocorreria em breve. Após a consumação do crime, em Xapuri, o
diário foi o primeiro a fazer as fotos do corpo do líder seringueiro cravado de chumbo.
Ainda em 1988, o então deputado integrou o grupo dos parlamentares que ganharam
concessões de rádio e televisão distribuídas pelo presidente José Sarney, em troca de
apoio ao projeto de ampliação do mandato presidencial para cinco anos. Foi nessa
época que, além do jornal, o parlamentar passou a contar também com a concessão
para retransmissão do sinal do SBT em Rio Branco. Em 1996, ainda como deputado
federal, Narciso Mendes esteve no epicentro do escândalo da compra de votos para
aprovação no Congresso da legislação que possibilitava ao Presidente da República
ser reeleito, mudança que permitiu a FHC conquistar o segundo mandato. O
empresário teria participado diretamente das negociações que envolveram o
pagamento aos parlamentares do Acre. Teria gravado parte das conversas com esses
parlamentares, cujas transcrições foram posteriormente publicadas pelo jornal Folha de
59
Publicado em http://altino.blogspot.com/2008/03/o-veneno-do-altino-machado.html, em 4 de março de
2008.
41
S. Paulo, em matéria intitulada “Mercado de Votos Governadores do Acre e
Amazonas negociam pagamento a políticos”
60
. O jornal identifica o autor das
gravações apenas como “Senhor X”.
Atualmente, apesar de seu histórico na política conservadora acreana e de seu
antipetismo, como menciona o próprio empresário, conseguiu fazer com que suas
empresas voltassem a ganhar licitações nas administrações locais. Com isso, o último
dos grandes grupos de comunicação a fazer oposição aos governos petistas, no Acre,
passa a também subordinar a produção de notícias às orientações ideológicas
emanadas dos gabinetes governamentais. Nas palavras do jornalista Altino Machado,
“Narciso Mendes agora é aliado e defensor intransigente do PT. Abriu o jornal e a TV
aos petistas. E as empresas de sua família voltaram a ser contratadas para executar
obras do governo estadual e da prefeitura de Rio Branco”.
61
Dentre os três maiores grupos relacionados acima, o Sistema Gazeta de
Comunicação se destaca no campo editorial e na transmissão radiofônica, estando
atualmente entre os mais consolidados. O jornal A Gazeta, formado a partir de A
Gazeta do Acre, de propriedade do grupo empresarial Guaporé, foi comprado na
segunda metade da década de 1980, numa sociedade entre o então governador
Flaviano Melo (PMDB) e os jornalistas Silvio Martinello e Elson Martins. No período
recente de abertura política no país, o jornal se apresentava como uma alternativa
inovadora na defesa de valores democráticos e da pluralidade de idéias, marcas
trazidas da experiência com o jornal Varadouro, do qual os dois jornalistas foram
criadores e que se tornara instrumento de grande importância nas lutas de seringueiros
contra o processo de pecuarização desencadeado a partir da década de 1970,
conforme abordaremos no próximo capítulo. No decorrer da década de 1990, o Jornal
A Gazeta tornou-se o mais lido no Acre, assim permanecendo nos primeiros anos
deste século. A Rádio Gazeta FM, por sua vez, é uma das que goza de maior
audiência na capital e municípios vizinhos. Os desacertos e posterior realinhamento
entre o Governo da Floresta e o grupo de comunicação administrado pelo jornalista e
empresário Silvio Martinello serão abordados logo adiante.
Os demais grupos, com atuação em apenas um suporte de mídia, também não
têm origem diferente nem estão fora do jogo de relações com o Estado. A TV Gazeta,
atualmente repetidora da Rede Record, cujos jornais e programas locais possuem
60
Folha de São Paulo, 13 de maio de 1997.
61
Altino Machado, “A baixaria mudou de lado”, publicado em http://altino.blogspot.com/2008/03/baixaria-
mudou-de-lado.html, 3 de março de 2008.
42
maior disponibilidade de tempo, é, por isso mesmo, um dos canais bastante
valorizados pelo governo. A emissora também foi criada em sociedade com o ex-
governador, ex-senador e atual deputado federal Flaviano Melo, sendo hoje
administrada pelo empresário Roberto Moura, um dos maiores distribuidores de
medicamentos no estado e um dos principais fornecedores do governo. A TV 5, que
também dispõe de amplo espaço para inserção de programas locais, pertence ao
grupo TAKEDA, também distribuidora de medicamentos e outra fornecedora do
governo do estado. De acordo com Alves, nesses dois casos, “a comunicação é moeda
de troca no negócio principal, que é a venda de remédios. E agora está diversificado,
agora tem venda de veículos [o proprietário da TV Gazeta tornou-se dono da
concessionária de veículos que mais vende no estado, inclusive para o governo]. São
um aglomerado de empresas que começaram como vendedores de remédios e depois,
diversificaram”.
O jornal Página 20 foi criado pelas próprias lideranças petistas, em 1995, em
sua estratégia para chegar ao governo. Após a vitória do PT nas eleições estaduais, o
diário vem sendo chamado de “diário oficial do governo”. O jornal A Tribuna,
pertencente ao empresário de editoração gráfica Ely Assem, foi comprado pelo
governador Edmundo Pinto, cujo governo durou pouco mais de um ano, pois foi
assassinato num hotel de São Paulo, em maio de 1992. A tumultuosa relação dos
ocupantes dos cargos públicos com a propriedade dos meios de comunicação na
região pode muito bem ser traduzida nestas considerações do jornalista Altino
Machado
62
:
Como é praxe para a maioria dos governadores acreanos, Edmundo Pinto se
tornou dono de um jornal, A Tribuna, fundado por Ely Assem de Carvalho, mas
jamais apareceu no contrato social da empresa. Ambos compraram com
dinheiro público, claro, uma máquina com capacidade de imprimir 70 mil jornais
por hora, embora A Tribuna circule, em média, com 300 exemplares.
Como referido acima, a imprensa acreana conta com cinco jornais impressos,
sendo quatro diários e um semanal, todos editados na capital, Rio Branco, um
município com 288.614 habitantes
63
(entre zona rural e urbana), de um total de
653.620 em todo o estado. Como não há volume de atividades comerciais e industriais
que gere demanda de publicidade, nem assinaturas ou vendas capazes de manter
62
Altino Machado, “Para lembrar do Serda”, publicado em http://altino.blogspot.com/2008/04/pra-
lembrar-do-serda.html, em 30 de abril de 2008.
63
Segundo dados obtidos no banco de dados do IBGE, publicado no diário oficial em 5 de out. 2007.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/AC.pdf.
43
todos esses jornais, conforme se deduz do quadro abaixo
64
, os contratos com
governos e/ou prefeituras seguem sendo a tábua de salvação dessas empresas:
Jornal Tiragem diária Assinaturas Venda
O Rio Branco
3.366 1.500 1.866
A Gazeta
3.000 2.000 1.500
Página 20
1.000 (dias úteis) 650 350
A Tribuna
1.000 (dias úteis) Não informado Não informado
O Estado
Não informado Não informado Não informado
Apesar de tais números não merecerem total credibilidade, pois certamente
acréscimos em relação ao que de fato se pratica, é possível afirmar que estão mais
próximos da efetiva tiragem diária de cada um desses jornais, especialmente se os
compararmos com os valores informados à Secretaria de Comunicação Social do
Governo Federal, também pelos próprios jornais, para composição do banco de
dados
65
para fins publicitários daquela secretaria:
LEVANTAMENTO JORNAIS - 2007 – MIDIABRASIL
UF Município/Razão
social
Nome Comercial Tiragem ou
Circulação
(dia útil)
R$
CM/COL
(dia útil)
Representante
AC Rio Branco
J. R. B Bezerra
O Estado
15.000
Serviços Editoriais E.
Dantas Filho
Página 20
7.000 70,40 VISÃO
Repiquetes Serviços
Editoriais LTDA
Jornal A Gazeta
4.000 36,25 ARMAZEM
Serviços Editoriais A
Tribuna LTDA
Jornal A
Tribuna
7.000 36,00 REAL MÍDIA
Empresa O Rio
Branco LTDA
O Rio Branco
8.135 34,62 FTPI
Uma rápida comparação entre a primeira e a segunda consulta permite verificar a
discrepância nos dados fornecidos pelas empresas: o jornal O Rio Branco mais do que
duplica a tiragem na consulta da Secretaria de Comunicação do Governo Federal; A
Gazeta aumenta em 33% os números fornecidos na segunda pesquisa. As diferenças
mais gritantes, entretanto, verificam-se nos jornais gina 20 e A Tribuna, que na
primeira consulta informam uma tiragem de 1.000 exemplares em dia útil e na segunda
64
Informações fornecidas pelos jornais de Rio Branco aos alunos do curso de Jornalismo da Ufac, no
segundo semestre de 2007, como fonte de pesquisa para elaboração de trabalhos acadêmicos.
65
Tabela retirada do site http://www.planalto.gov.br/secom/midia/Jornais_2008/AC.pdf
44
o número sobe para 7.000, num acréscimo de 700%. As baixas tiragens e a escassa
circulação estão, portanto, na base da principal fragilidade das empresas jornalísticas
do Acre: sua capacidade de auto-manutenção. Fragilidade esta que inevitavelmente se
reflete nos posicionamentos político-ideológicos dos órgãos, desvelando outro
problema: a ausência de abordagens críticas nessa produção jornalística. Analisando
as condições de existência dos meios em contextos semelhantes e as implicações de
sua inserção sócio-política, Geraldo Lúcio de Melo aponta o seguinte fenômeno:
Nas grandes cidades, que têm estrutura industrial e comercial mais
diversificada, com ampla gama de anunciantes, é possível se atingir um estágio
de relativa imunidade a influências alheias ocasionais. Mas em regiões com
menor densidade econômica, a regra é a promiscuidade financeira entre os
poderes econômico e político e os meios de comunicação. Sem se falar do que
é muito comum pelos confins do Brasil, e até em capitais: a propriedade dos
meios por políticos – ex ou com mandato eleitoral.
66
Tal promiscuidade entre governos e mídia a que se refere Melo é precisamente o
que vai terminar por imprimir uma das principais características da imprensa do Acre.
Os matizes ideológicos predominantes no conjunto da produção jornalística estarão
diretamente associados às orientações políticas e conveniências de cada governo. A
distorção na relação entre mídias e governos irá incidir diretamente no papel social
assumido por elas, revelando o oportunismo de governos e empresários, por um lado,
e a volubilidade das linhas editoriais dos veículos, por outro, conforme deduz desta fala
de Antônio Alves,
67
assessor especial do governo Jorge Viana, ao narrar o tratamento
dispensado por este aos assuntos de comunicação no Acre:
No início do mandato do Jorge Viana propus que a relação do governo com a
imprensa fosse “técnica e comercial”, pautada na remuneração de serviços
efetivamente prestados, independente da opinião ou alinhamento político de
empresas e jornalistas. Jorge me disse, claramente: “Você quer tratar como se
imprensa fosse comunicação, mas imprensa no Acre é política; vou tratar como
política”.
Em função dessa relação estabelecida com o governo, é difícil perceber
diferenças substanciais no trabalho dos veículos vale dizer que a situação de rádios
e emissoras de TV em quase nada difere dos jornais –, predominando uma quase
completa homogeneidade nas linhas editoriais e nos enfoques adotados, bem como
uma similaridade nas temáticas. A esse respeito, merecem atenção as observações do
66
Geraldo Lúcio de Melo, “Imprensa e poder, impressões éticas”. In: Paiva, Raquel (org). Ética,
cidadania e imprensa. Rio de Janeiro: Mauad, 2002, p. 43.
67
Antônio Alves, “Uma história sem heróis”, publicado em http://altino.blogspot.com/2008/02/uma-histria-
sem-heris.html?showComment=1203522660000, em 19 de fevereiro de 2008.
45
repórter Caio Junqueira,
68
do jornal Valor Econômico, ao avaliar a produção da
imprensa acreana:
Vi no Acre, infelizmente, uma imprensa amarrada e com uma série de
aberrações. Dou exemplos. Na terça-feira em que pela primeira vez amanheci
em Rio Branco, as manchetes dos jornais locais eram a nota do governador
Binho Marques [empossado em 2007 como sucessor de Viana pelo PT] à
matéria da revista Veja que apontava um aumento do desmatamento no Estado.
Ora, “nota à imprensa” elaborada por um governador não pode, na minha
avaliação, ser manchete de jornal nem aqui nem na China. (...) Outra aberração
são matérias semelhantes publicadas nos jornais, feitas provavelmente pelas
assessorias de imprensa da classe política dominante em Rio Branco e em
Brasília.
69
A primeira página do jornal Página 20, de 25 de março de 2008, reproduzida
abaixo, nos fornece uma boa noção dos fenômenos descritos pelo jornalista. Todas as
chamadas da capa se referem a temáticas ligadas seja ao governo do estado, seja à
prefeitura ambos administrados pelo PT – ou mesmo à coligação que sustenta essas
administrações, sem esquecer o destaque concedido ao senador Tião Viana (PT-AC)
no canto superior direito da página, registrando os esforços do parlamentar para a
instalação futura de uma Capitania de Portos no estado.
68
Caio Junqueira esteve no acre em abril de 2007 com o objetivo de verificar o aumento do
desmatamento nas florestas acreanas durante o governo de Jorge Viana, conforme denunciado à época
pela revista Veja, em matéria intitulada E agora, Viana?
69
Caio Junqueira, “O que vi no Acre”, publicado em http://altino.blogspot.com/2007/05/o-que-vi-no-
acre.html, em 1 de maio de 2007.
46
Exatamente por causa das claras e sérias restrições que essa situação revela
sobre o trabalho dos jornalistas, é muito transparente a compreensão, entre
profissionais da imprensa e empresários, de que a simples exclusão das planilhas de
gastos governamentais significa a falência e a perda de empregos, tal a pressão
exercida sobre patrões e empregados tanto na forma da vigilância de assessores do
governo dentro das redações quanto no zelo dos próprios empresários em relação ao
que é divulgado. A mesma percepção é partilhada por membros do próprio governo, a
exemplo desta declaração de Alves a respeito de um debate suscitado em torno da
censura no jornalismo acreano:
O governo não "exerce censura", ele simplesmente edita os jornais dos quais
ele é uma espécie de arrendatário, quase dono. O que o governo poderia (e
na minha opinião, deveria) fazer é simplesmente deixar de ser dono e passar
a ser cliente, simples anunciante. Nesse caso ele teria o direito de "editar"
apenas o anúncio pelo qual pagou. E não daria ordens, nem sequer palpites,
sobre reportagens ou linha editorial. Mas os patrões (donos legais)
deixariam de ganhar uma boa grana. O jogo da chantagem é conveniente
47
para ambos. Só os jornalistas poderiam desatar esse nó, se tivessem vontade
e coragem. Mas aí estariam arriscando seus empregos
70
.
Este modelo de relacionamento da imprensa acreana com o poder nos remete a
pelo menos dois dos vários dispositivos de controle da produção e circulação dos
discursos para os quais nos alerta Foucault,
71
como recorrentes nas sociedades
ocidentais:
a) a interdição dos discursos que não estejam em conformidade com as idéias
autorizadas ou referendadas. o são raros, nesse contexto, os casos de retaliações,
assédio moral ou mesmo demissão de jornalistas que ousaram romper o controle e
restrições sobre certos temas e enfoque, desafiando a vigilância estabelecida; b)
diretamente relacionado ao primeiro, na medida em que fornece o quadro referencial
para que a interdição se exerça ou não, destaca-se o dispositivo definido por Foucault
como a vontade de verdade, que consiste na afirmação de certos critérios destinados a
orientar a produção dos discursos e a constituir chaves de produção-leitura daquilo que
pode ser considerado aceitável ou verdadeiro. Os paradigmas do “desenvolvimento
sustentável”, da preservação ambiental e da valorização cultural dos “povos da
floresta” parecem se afirmar como parâmetros de produção e leitura das notícias,
segundo os agenciamentos discursivos interpostos pelo Governo da Floresta por meio
da noção de florestania.
Há, certamente, momentos em que a harmonia é rompida tornando o processo de
alinhamento mais delicado, o que pode ter motivações diversas. Pode ocorrer, por
exemplo, quando os grupos ocupantes da administração municipal da capital e do
governo estadual sejam de partidos diferentes e divergentes. Nesse caso, os órgãos
de mídia que fazem oposição ao governo geralmente são alimentados com verbas
municipais. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o jornal O Rio Branco até o ano de
2004, quando o grupo de oposição ao governo perdeu a prefeitura da capital para o
candidato do PT, Raimundo Angelim, levando seus administradores a reconsiderar
uma aproximação com a administração Viana.
Retornando ainda um pouco mais no tempo, é possível visualizar uma segunda
motivação que, articula à primeira, determina a ocorrência de conflitos entre mídia e
governo. Um caso peculiar registrado em 2001, com o jornal A Gazeta, ilustra bem o
70
Publicado por Antônio Alves, assessor do governo Jorge Viana, inicialmente no blog do Astronauta de Mármore,
já mencionado, e posteriormente reproduzido pelo jornalista Altino Machado em seu blog noticioso:
http://altino.blogspot.com/2004/10/censura-em-debate.html
, em 29 de out. de 2004.
71
M. Foucault. A ordem do
discurso. 7ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
48
fenômeno: nesse período, o jornal desencadeia uma agressiva campanha contra o
governo, com o intuito presumido de elevar a margem de participação nas verbas
publicitárias do estado. Com volume de vendas maior e contratos também com a
prefeitura da capital administrada por aliança de oposição ao governo –, o jornal
adquire certa margem de autonomia que lhe permite correr riscos. Como represália,
além de atrasar os pagamentos destinados ao jornal, as manobras do governo
assumem caráter mais agressivo, de acordo com o relato de quem delas participou,
direta ou indiretamente, como o revelam as declarações do jornalista Altino Machado,
ao narrar a mobilização de aliados e membros da assessoria de comunicação do
governo na ação contra o proprietário do jornal, Silvio Martinello:
Prestando serviços ao governo, recebi telefonemas do Oli Duarte e do Aníbal
Diniz, secretário de Comunicação, para comparecer com urgência à redação do
Página 20. Estavam lá os diretores Antônio Stélio e Elson Dantas, Oli Duarte e o
repórter Leonildo Rosas. Disseram-me que tenho um texto venenoso, que sou
bom titulador e por isso deveria finalizar o texto da reportagem, de
responsabilidade do jornal, que seria publicado expondo a vida de nababo do
jornalista Sílvio Martinello. Fiz títulos e quase nenhuma correção ao texto.
Apenas acrescentei que Martinello costumava triturar biscoitos finos para
alimentar sua criação de pássaros e aves. Causei espanto ao dizer que o texto
estava muito envenenado, mas não teria impacto algum sem uma boa foto.
Responderam quase em coro que havia muitas fotos do diretor da Gazeta. Foi
quando expliquei que era necessário uma foto aérea para mostrar a mansão.
Por causa disso, a publicação do material foi adiada. O arquiteto Wolvenar
Camargo Filho levou a planta de uma das mansões projetada por ele para a
ante-sala do governador e lá foi decidido como seriam as fotos. No dia seguinte,
o fotógrafo Marcos Vicentti, atual presidente do Sindicato dos Jornalistas do
Acre, sobrevoou duas mansões e um terceiro imóvel de Martinello na
companhia de outro Sílvio, piloto de um bimotor de uma empresa aérea que
servia ao governo.
72
.
Quatro dias após a publicação desse material, o proprietário de A Gazeta revida
em seu jornal, com a matéria de capa intitulada “Carta aberta ao Governador”, na qual,
em meio a uma série de acusações, revela a manobra do governo contra ele,
declarando que o governador,
Tão zeloso com os recursos públicos que se diz, não teve o escrúpulo de pagar
avião, para sobrevoar minha casa, tirar fotos, plantar espiões em volta da casa,
atemorizando minhas filhas, numa flagrante invasão de privacidade. Não
satisfeito, depois usou carros e funcionários públicos para distribuir seu jornal de
graça.
73
A respeito da relação do governo com a mídia, Martinello apresenta
considerações não menos reveladoras acerca da vigilância exercida sobre empresas e
jornalistas:
72
Publicado em http://altino.blogspot.com/2008_03_01_archive.html, em 1 de março de 2008.
73
Publicado no jornal A Gazeta de 1° de abril de 2001.
49
A propósito, o relacionamento do senhor e seu governo com a imprensa merece
um capítulo à parte. Em meus 25 anos de jornalismo no Acre, nunca tivemos um
governo tão contencioso, tão difícil, tão repressor e policialesco quanto o seu.
No começo, pensava-se que era excesso de zelo seu e de seus assessores em
construir e preservar uma boa imagem de governo. Redações de jornais,
estúdios de televisão eram, diariamente e várias vezes por dia, visitados pelos
seus assessores, para saber o que iria ser publicado no dia seguinte ou iria para
o ar. Houve um tempo em que seu assessor de comunicação chegou a pedir
uma cópia da primeira página dos jornais, antes de ir às bancas. Com o passar
do tempo, porém, donos dos veículos de comunicação, seus editores e
jornalistas se deram conta de que não era exatamente excesso de zelo. Era
uma tentativa clara de controlar, de pautar, de editar e de impor uma verdadeira
censura prévia aos veículos.
Apesar da gravidade das acusações de lado a lado, a reconciliação, porém, não
tardou. O Governo da Floresta e o jornal mais lido do estado recompõem a harmonia e
os laços (interesses) amistosos. A revisão dos termos de “prestação de serviços”
ocorreria logo em seguida, recompondo a “parceria” entre o executivo e a empresa de
comunicação. Tal processo se torna evidente numa clara reorientação da linha
editorial, observada especialmente nas pautas de interesse do executivo, como
observado pelo blogueiro Astronauta de Mármore:
74
Todo mundo sabe que no atual momento há uma relação positiva entre A
Gazeta e o Governo Estadual o que não tem impedido de que esse jornal
continue fazendo um dos melhores jornalismos do nosso estado. Mas também
não podemos ser ingênuos achando que não houve mudança na linha editorial
para poder viabilizar esta nova realidade. Sou um leitor diário dos nossos jornais
e percebo claramente que os temas que incomodam o governo estadual não
são abordados com a profundidade ou o destaque merecido na maioria deles,
inclusive na "Gazeta”. Às vezes até ficam esquecidos das pautas.
O próprio Martinello, em editorial de 5 de junho de 2005, não deixa dúvidas
quanto à prevalência de boas relações entre seu jornal e o poder estadual. No texto, o
empresário se manifesta contrario a uma pequena movimentação de jornalistas contra
o que chamavam de censura imposta pelo governo ao trabalho dos profissionais do
jornalismo. No editorial, o jornalista-empresário argumenta que “na atual conjuntura,
suas relações com o governo e outras instituições são absolutamente normais. Por se
fazer respeitar, o governo e instituições nada impõem a este jornal. O governo, por
exemplo, pede, sugere,compra espaços publicitários dentro das normas que regem as
relações entre as instituições e os veículos de comunicação civilizados deste país.”
75
Como se observa, essa postura difere completamente daquela expressa na “Carta
Aberta ao Governador”, publicada em primeira página poucos anos antes.
74
Publicado no blog
http://cavernadesaturno.zip.net/arch2005-06-05_2005-06-11.html, em 5 de junho de 2005.
75
Jornal A Gazeta, 5 de junho de 2005.
50
A tímida movimentação dos jornalistas entre o final de 2004 e o primeiro semestre
de 2005, na busca de maior liberdade editorial, apesar de não ter produzido mudanças
significativas na relação com o poder político, teve o mérito de expressar publicamente
os problemas e restrições que todos da área conheciam, mas se resignavam a
queixas veladas no interior de determinados grupos da categoria, que muitos eram
militantes diretos do partido do governo.
É importante registrar que além das empresas privadas, o governo dispõe de todo
um complexo blico de comunicação que inclui rádios AM e FM em todos os
municípios do estado e uma TV estatal, um complexo denominado Sistema Aldeia de
Comunicação. Paralelamente, desde 1999 vêm sendo realizadas publicações de
revistas, livros, manuais, edições comemorativas, entre outros, na maioria recontando
e re-significando eventos da história local, na busca de estabelecer nexos, muitas
vezes sutis, entre os atores e acontecimentos do passado com eventos e agentes do
presente.
A propósito desse modelo de relacionamento do Estado com organizações da
sociedade civil, consideramos oportunas as reflexões desenvolvidas por Carlos Nelson
Coutinho
76
ao examinar práticas como as apresentadas aqui as referindo a uma longa
tradição autoritária e ausência de espírito democrático que tem marcado a formação
sociopolítica brasileira. Na base dessa tradição, o autor identifica a forma como
ocorreram os vários processos de mudança política que, segundo ele, teriam seguido o
modelo “prussiano” de “transformação pelo alto” em que eventos históricos com
potencial para promover alterações profundas na estrutura sociopolítica brasileira,
limitaram-se a novos arranjos e alianças entre as classes dominantes, preservando
interesses e privilégios antigos sem, porém, deixar de simular uma participação de
setores das camadas populares.
Nessa dinâmica, os processos de “transformação” são operados “através de uma
conciliação entre representantes dos interesses de grupos opositores dominantes”,
77
mobilizando estratégias que, muitas vezes utilizando-se de posições ideológicas
aparentemente progressistas, até propõem mudanças, mas aquelas que se tornaram
necessárias e convenientes. Tais estratégias são bem representadas, segundo
Coutinho, neste pensamento do liberal Hipólito da Costa, expresso às vésperas da
76
Carlos Nelson Coutinho. Cultura e Sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. Rio de Janeiro:
DP&A, 2ª ed., 2000.
77
Carlos Nelson Coutinho (2000), ibid., p. 50.
51
Independência: “Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas a ninguém
aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo”.
78
Com uma sociedade civil enfraquecida ou cooptada, os interesses dominantes
representados no Estado tendem a ganhar ascendência sobre amplos setores sociais
e políticos, exercendo controle sobre as entidades representativas e mesmo sobre as
produções culturais geradoras de representações simbólicas. No caso de muitos
jornalistas acreanos, tomando emprestado uma expressão que Coutinho utiliza em
relação a certos romancistas do século XIX, pode se dizer que predomina uma espécie
de “intimismo à sombra do poder”, situação que, se não os transforma completamente
em apologetas do ideário dominante, os coloca numa situação de não incomodar os
fundamentos do poder e da autoridade em questão.
No contexto do Governo da Floresta, verificam-se pelo menos duas atitudes dos
profissionais no trato com o ideário oficial: aqueles que voluntariamente põem sua
escrita a serviço do poder a fim de “pegar carona” na popularidade que passaram a
gozar as idéias dominantes, mesmo porque muitos desses profissionais mantêm
vínculos duplos, atuando concomitantemente nos veículos privados e nas assessorias
de comunicação de órgãos públicos ou de mandatários. E os que procuram
minimizar, em seu trabalho, as influências das coerções do poder, às vezes até
esboçando críticas superficiais ou veladas, mas sem questionar os fundamentos do
autoritarismo e do modelo de gestão empregados.
De forma análoga à tradição sociopolítica identificada na análise de Coutinho, é
possível perceber no atual ordenamento político-cultural dos meios de comunicação no
Acre, em suas relações com os poderes políticos e econômicos, fortes conexões com a
formação sociopolítica e econômica desse território. No capítulo seguinte buscaremos
destacar os principais elementos que caracterizam essa evolução na economia da
borracha, marcada pela centralidade do poder dos “coronéis de barranco”,
79
além de
esquematizar de modo geral a constituição do movimento extrativista e a marcha de
suas principais lideranças rumo à política eleitoral, passando pela atuação do PT e
culminando com a constituição do Governo da Floresta.
78
Citado por Carlos Nelson Coutinho, op. cit., p. 57.
79
No modelo de produção seringalista estabelecido na Amazônia, os coronéis de barranco eram os
seringalistas, proprietários dos seringais, que representavam a figura máxima de autoridade em suas
propriedades.
52
CAPÍTULO II
CULTURA E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: VELHAS E NOVAS IMAGENS DA
ACREANIDADE
O que se encontra no começo histórico das
Coisas não é a identidade ainda preservada da origem
– é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A História
ensina também a rir das solenidades da origem
80
.
Michel Foucault
2.1. Produção cultural no modelo seringalista
Um olhar sobre a produção cultural letrada da Amazônia acreana não pode
prescindir de aspectos socioeconômicos peculiares à vida produtiva na região, que
teve na produção da borracha e na primazia da empresa seringalista, desde a última
quadra do século XIX até meados do século XX, seus componentes estruturais.
Fundada na lei do coronelismo, personificado na figura autoritária do seringalista,
a sociedade que ali se desenvolve tem como principal marca identificadora o rigor da
hierarquia e o engessamento das perspectivas de mobilidade social. Apesar disso, no
imaginário do migrante nordestino que serve como mão-de-obra na condição de
seringueiro, o sonho de enriquecer e voltar para a terra natal é o alimento para
enfrentar as adversidades. A trajetória desse personagem da história acreana se
inscreve na submissão a um sistema de semi-escravidão baseado na troca da
borracha, por ele produzida no interior da floresta, por mercadorias industrializadas,
distribuídas no barracão do patrão a preços aviltantes, numa economia de escambo
que seguia uma equação na qual se fazia praticamente impossível ao seringueiro
passar da condão de devedor à de credor. Contra o poder escriturário do caderno de
anotações do patrão o havia protesto (quando verbalizado) que fizesse frente,
mesmo porque a vida e o trabalho do seringueiro incorporavam melhor a ordem do
fazer do que a do falar, condição que levou Carlos Walter
81
a considerar que “talvez
tenhamos aqui no Acre a demonstração do paroxismo de uma formação social que se
fez/faz sem reconhecer aos de baixo o direito à voz, primeira condição para que se
seja conhecido/reconhecido enquanto portador de direitos”.
80
Michel Foucault. Microfísica do Poder. 20ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 18.
81
Carlos Walter Porto Gonçalves, “Territorialidade Seringueira: geografia e movimento social, Revista
GEOgraphia – Ano 1 – N° 2 – 1999, p. 72.
53
O seringueiro ficava, desse modo, submetido às malhas do poder do patrão e
confinado ao espaço que lhe era destinado para a produção do látex. Tais condições
de trabalho revelam a complexa inserção econômica dessa região na modernidade da
economia capitalista e no intenso processo de industrialização vigente no período. Se,
por um lado, a região desenvolve importantes relações econômicas com o mundo
industrial no plano internacional, onde predomina o ideário liberal burguês,
materializado em relações de trabalho baseadas na livre contração; por outro lado, no
plano interno, a produção é sustentada numa rigorosa exploração que remete a um
regime de semi-escravidão, se considerarmos a impossibilidade desses sujeitos de
deliberar sobre sua permanência ou não no espaço a ele reservado, ou a ausência de
remuneração pelo produto de seu trabalho. Numa rápida analogia, não é à toa a
reprodução, nesse contexto, da expressão “seringueiro fujão” senão como referência à
restrição de natureza física que incidia sobre esse agente, com especial rigor durante o
primeiro ciclo da borracha na Amazônia, entre a década de 1870 e por volta de 1912.
Em tal estrutura social, as frágeis instituições e a atuação dos agentes públicos
têm como finalidade primeira assegurar a reprodutibilidade da ordem vigente e o
poderio dos coronéis como garantia de continuidade da produção. A incipiente,
fragmentada e descontínua produção cultural letrada que circulava nos espaços
minimamente urbanizados era resultante de esforços dos quadros administrativos
ligados a uma precária burocracia estatal, representada principalmente por
profissionais liberais ligados ao direito, à medicina e posteriormente ao ensino. Os
únicos suportes materiais para a circulação dessa produção foram, durante muito
tempo, jornais improvisados, financiados pelo poder econômico dos seringalistas e,
portanto, com total perfilamento ideológico em relação ao sistema dominante, conforme
observa Laélia Silva:
A dependência financeira dos jornais implicava quase sempre dependência
ideológica. O jornal, nos primeiros quarenta anos [de incorporação do território
acreano ao Brasil, que ocorre em 1903, com a assinatura do Tratado de
Petrópolis], serve basicamente à causa política, de interesse dos patrocinadores
que, assim, mantinham sob controle ou divulgavam o que lhes interessava na
administração de cada Departamento.
82
Essa função esvaía-se quase sempre
no debate entre facções do poder estabelecido de cujas ideologias o jornal era
porta-voz, e garantia espaço para a divulgação de ambições político-
partidárias.
83
82
O Território Federal foi dividido em três Departamentos administrativos, obedecendo à distribuição
espacial dos três grandes rios navegáveis: rio Juruá, rio Acre e rio Purus, que deram nome a cada uma
dessas regionais.
83
Laélia Rodrigues da Silva. Procura-se uma Pátria: a literatura no Acre (1900 1990). Porto Alegre:
PUCRS, 1996 (Tese de doutoramento), p. 67.
54
O gigantesco abismo existente entre as classes dominantes e a condição de
exploração direta e naturalizada a que estavam submetidos os seringueiros
dispensavam qualquer tipo de legitimação mais elaborada ou a busca de consenso que
precisasse ser viabilizado por meio da atividade cultural, por exemplo.
Desse modo, as temáticas predominantes nos jornais da primeira metade do
século XX eram aquelas relacionadas aos interesses mercantis do comércio
internacional da borracha, como cotação internacional, tabela de preços e reclames de
seringalistas ou casas aviadoras em relação a alguma medida indesejada. Dada a
fragilidade de uma sociedade civil que dinamizasse a circulação de idéias e colocasse
em pauta questões que expusessem as contradições e perversidades do modelo
produtivo
84
, a produção literária do período tende a ganhar traços predominantemente
“ornamentais”,
85
não refletindo, portanto, a complexidade da vida nesses espaços.
Consoante aos interesses imediatamente ligados aos negócios, o material de natureza
literária publicado consistia de produções que contemplavam duas preocupações
básicas, conforme aponta Laélia Silva: “uma, que manifesta, através da poesia, a
intenção de definir a nova terra, fixando traços característicos da paisagem, da história,
da conquista e do povoamento do território e, outra, que buscava através da imitação
da lírica nacional um sentido universalizante”.
86
A descrição da paisagem, acompanhada da busca de definição do homem que
nela habita constitui o núcleo identificador das criações culturais na Amazônia acreana,
numa intensa jornada à procura de uma identidade cultural representada na luta
humana pela sobrevivência no seio da grande selva. A construção de uma imagem do
homem amazônida se faz de modo inseparável da paisagem natural, surgindo daí as
freqüentes reatualizações imagéticas da Amazônia ora como paraíso ora como inferno
verde, num cenário de grandiosidade e misterioso a desafiar a ação humana. A busca
de afirmação dessa estética regional, permeada por mitos e narrativas de origem
indígena, não abandona, entretanto, a preocupação de estabelecer articulações com
uma produção nacional, o que não raro resvala para a valorização superficial de um
84
Conforme assinala o pesquisador Elder Paula (Desenvolvimento insustentável na Amazônia Ocidental:
dos missionários do progresso aos mercadores da natureza. Rio Branco: EDUFAC, 2005), até meados
da década de 1970, praticamente existiam no Acre somente associações patronais.
85
Conceito empregado por Carlos Nelson Coutinho (2000), op. cit., em referência a produções culturais
brasileiras que, num período de forte escassez de valores democráticos, tendem a voltar-se para
padrões de elaboração intelectual desarticulados dos dramas e conflitos vivenciados nas relações
sociais, numa espécie de escapismo intelectual cujas produções destinar-se-iam mais à fruição e deleite
que à reflexão da complexidade e contradições dos processos sociais.
86
Laélia Silva (1996), Ibid. p. 89.
55
exotismo folclorizado presente numa imagem inventada por um olhar quase
“estrangeiro”. Tal processo decorre, conforme assinala Silva,
87
do fato de o escritor
colocar-se sempre como exterior à realidade representada, o que muitas vezes se
evidencia no deslumbramento diante da exuberância da natureza.
Os recursos descritivos da paisagem natural e da atividade humana se ampliam a
partir de uma maior freqüência de textos literários escritos em prosa, a partir de 1942 –
momento em que a atividade da borracha toma novo fôlego graças às demandas
geradas pela Segunda Guerra , o que possibilita a construção mais detalhada dos
cenários (seringais e primeiras cidades), bem como uma melhor caracterização de
personagens (nativos, imigrantes, indígenas, políticos etc.). Entretanto, quando
parecem dar sinais de mergulhar nas contradições dessa formação social, as
narrativas tendem a colocar o conflito entre os homens no mesmo nível da luta entre
homem e natureza. Os confrontos de caráter social ganham a forma, em última
instância, do conflito entre o homem e a floresta, numa espécie de manutenção de um
estado de natureza em que prevalecem leis e relações primitivas. Conforme observa
Coutinho
88
, em casos como esse o traço naturalista tende a conferir à tragédia humana
contornos fatalistas, pintando como imutável aquilo que é produto de configurações
sócio-históricas específicas.
Esta polarização homem x natureza possibilitará o surgimento e desenvolvimento
de duas visões distintas no imaginário sobre a Amazônia, dois discursos antagônicos
que se intensificarão no contexto das políticas dos governos militares: o discurso
preservacionista da chamada “razão ambiental” e o discurso desenvolvimentista do
progresso. No primeiro caso, defende-se a eliminação de toda e qualquer forma de
intervenção humana a fim de preservar a diversidade ecológica do meio. No segundo,
representado pela ideologia do progresso e do desenvolvimento a todo custo, a floresta
representa um obstáculo à modernização e à produção de riquezas, devendo ser
eliminada para dar lugar ao crescimento, visão que se fortalecerá a partir da década de
1970 com as políticas desenvolvimentistas.
O fim da Segunda Guerra traz um novo declínio do comércio internacional da
borracha, levando à ruína o modelo de produção seringalista. Sem abandonar a busca
de uma articulação com a produção nacional e definição de um perfil identitário local, a
produção cultural passa a registrar a decadência do modelo produtivo e começa a
87
Laélia Silva (1996), Ibid.
88
Carlos Nelson Coutinho (2000), Op. cit.
56
também valorizar a paisagem urbana, para onde convergem parcelas das populações
oriundas dos seringais, à busca de melhores condições de vida na cidade.
89
O principal suporte material para a difusão cultural continua sendo o jornal,
embora se registre a circulação de romances e livros de poesia. Na produção
jornalística permanecem as polêmicas em torno das disputas entre frações das classes
dominantes, porém agora motivadas pelo desejo de ocupar os quadros administrativos
da burocracia estatal, sobretudo entre 1957 e 1962, quando do tardio processo de
autonomia político-administrativa do estado, que passa da condição de Território
Federal a Estado da Federação, em 15 de junho de 1962. A partir de então, podem ser
eleitos pelo voto direto, os ocupantes dos cargos de Governador, três Senadores, sete
Deputados Federais, além dos quinze Deputados Estaduais que compuseram a
Assembléia Legislativa
90
. A efetivação desse processo, entretanto, não foi tarefa das
mais fáceis, tendo em vista grandes divergências entre as oligarquias locais em torno
das implicações de uma eventual emancipação. Conforme salienta Elder Paula,
“enquanto um segmento percebia nessa mudança a conquista de maior autonomia
política diante do governo central, um elemento indispensável para o exercício pleno
do poder político na região, outro temia pelo seu reverso, o de sujeitarem-se a um
controle mais efetivo do aparato estatal, precisamente nos aspectos relacionados com
arrecadação tributária e legislação trabalhista”. É bastante representativo desse
embate, como aponta o pesquisador, o discurso do presidente da Associação
Comercial do Acre, Abraim Isper Júnior, em assembléia da categoria à época:
Meus Senhores, ao dar por aberta esta reunião da assembléia geral, sob os
auspícios das classes conservadoras Associação Comercial do Acre e
Associação dos Seringalistas para um debate sobre o palpitante tema do
projeto que visa a transformação do Acre em Estado (...) Em verdade, meus
senhores, o grande mêdo, o grande assombro, o bicho papão, no caso, são os
impostos que fatalmente surgirão com a transformação do nosso Território em
Estado. Mais 3, 4, 5 ou 6% serão acrescidos no nosso custo de vida ou, talvez,
mais até. Mêdo também da burocracia de uma máquina estatal que nos trará
para aqui Alfândega, Ministério do Trabalho, Delegacia do Imposto de Renda,
Capitania dos Portos, Instituto da Previdência Social, Sindicatos e quanta coisa
mais que as mais das vezes dificulta, embaraça e por demais aperreia os
homens que querem liberdade de trabalho, liberdade de ação (...) o pensamento
das classes conservadoras seria que o Acre continuasse Território, se assim
89
Informações mais completas sobre autores, obras e a dinâmica da produção literária no período
podem ser encontradas na tese de doutoramente da pesquisadora Laélia Rodriges, reiteradamente
referenciada nesta sessão, posteriormente publicada sob o título Acre: prosa & poesia 1900 – 1990. Rio
Branco: Edufac, 1998.
90
Conforme registra Elder Paula, (Desenvolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos
missionários do progresso aos mercadores da natureza. Rio Branco: EDUFAC, 2005, p. 47.), em função
das elevadas taxas de analfabetismo e pobreza de enormes parcelas da população, somente 12% das
pessoas estavam aptas a votar, visto ser vetado direito de voto aos analfabetos.
57
pudesse ser por mais 30, 40 ou 50 anos, sem que novos tributos viessem a
incidir em sua economia que, em verdade é a economia do povo, que
sentimos as dificuldades e os sacrifícios tremendos dos que lutam nessa terra,
os homens do comércio, da indústria, da produção, da lavoura (...)
91
Como evidencia o pronunciamento, além das disputas entre frações das classes
dominantes em torno da autonomia, fica manifesta a preferência por um tipo de
organização político-administrativo avesso à criação de condições para a manifestação
de interesses que colidissem com a manutenção daquele estado de coisas. Rejeitava-
se, assim, tanto o surgimento de novos setores representativos na sociedade civil
quanto serviços da sociedade política que implicassem maiores obrigações dessas
classes seja com o Estado seja com direitos de trabalhadores. Conforme aponta ainda
Elder Paula, trata-se do núcleo hegemônico do pensamento liberal na “formação
republicana brasileira, sob a batuta dos ‘senhores da terra’: usufruto do ‘lado bom’ do
Estado coerção da força de trabalho via manutenção da ordem institucional e
disponibilização de recursos materiais para acumulação de capital e aversão a seu
‘lado ruim’, como cumprimento de legislação trabalhista, tributária e outras obrigações
constitucionais”.
92
Apesar dessa aversão à autonomia, ela termina por ser aprovada no Congresso
Nacional, de modo que em outubro do mesmo ano ocorriam eleições estaduais, das
quais sai vitorioso o acreano José Augusto de Araújo, eleito pelo PTB com o slogan “o
Acre para os acreanos”, numa referência à prática de nomeação de interventores
externos pelo governo federal vigente até então. O governo eleito, entretanto, dura
pouco mais de um ano, sendo deposto nos primeiros dias após o golpe de 1964.
Ainda como expressão do ordenamento sociopolítico autoritário que marcava esse
contexto, vale registrar que além da atmosfera de mobilizações e resistência que
começava a ganhar vulto no país como um todo, tanto no campo quanto na cidade, foi
determinante para esse desfecho a criação de um programa de alfabetização inspirado
no método Paulo Freire, bastante difundido no país à época, e gerido pelo recém
criado (no Acre) Movimento de Cultura Popular (MCP). De acordo com Paula
93
, a
reação das oligarquias acreanas e das autoridades eclesiásticas, em uníssono com as
forças conservadoras do país, impôs uma enorme reação ao programa e à Secretaria
de Educação do Estado que, além de ser acusada de “antro de comunistas”, ainda
91
Dossiê-Acervo Guiomard Santos (UFAC, 1995: 289-293), apud Paula, Elder (2005). Ibid., p. 45.
92
Elser Paula (2004), Ibid., p. 46.
93
Ibid.
58
tinha o demérito de ser conduzida por um secretário “de fora do Acre”. No âmbito da
comunicação, com a censura oficial estabelecida a partir de 64, os jornais se tornam
ainda mais impenetráveis à expressão das idéias mais críticas, reforçando seu papel
de defensores da ordem dos de cima, apesar das profundas transformações que logo
acirrarão a crise do ordenamento em vigor.
2.2. Da ordem seringalista à ocupação “dos paulistas”
Os anos 1970 reservavam novidades impactantes para a vida na Amazônia,
com as políticas de integração nacional adotadas pelo governo dici, que acabam
por colocar a região no centro de um processo desenvolvimentista materializado na
expansão da fronteira agropecuária rumo à floresta amazônica, processo que trouxe
como conseqüência inevitável a desestabilização social e a mudança na correlação de
forças políticas e sociais no cenário local. Sob o lema de “integrar para não entregar”,
o governo federal desencadeia um novo fluxo migratório para o norte, desta vez não
mais visando incrementar a produção de borracha, mas estabelecendo um novo tipo
de “ocupação” baseada na derrubada de extensas áreas de floresta para a instalação
de fazendas de gado, com o apoio de generosos subsídios financeiros e incentivos
fiscais. Era o predomínio da visão desenvolvimentista em detrimento de qualquer
preocupação sócio-ambiental, como indicam Alves e Viana:
Durante muito tempo sustentou-se, no Brasil, a visão de um “deserto
amazônico” que precisava ser ocupado. Esse mito justificou a nova ocupação,
nos anos 70, e o transporte para a região de milhares de famílias sem terra do
sul do país. Uma concepção de desenvolvimento baseada na expansão da
pecuária extensiva, da exploração madeireira e da chamada “fronteira agrícola”
se impôs com a força de uma poderosa ideologia.
94
A nova forma de ocupação, entretanto, coloca em linha de colisão os interesses
de pecuaristas e madeireiros com os de seringueiros ainda residentes nos seringais,
criando atrito inclusive com povos indígenas, cujas terras também se tornavam objeto
das investidas do “progresso”. Com a falência do modelo seringalista e o rompimento
da cadeia nacional e internacional de exportação de borracha, os donos de seringais,
endividados, fazem da venda das terras uma saída para a crise, o que implicava a
retirada do contingente de trabalhadores que nelas permaneciam.
94
Antônio Alves e Jorge Viana, A República do Acre, In: Alves, Antônio. Artigos em geral. Rio Branco:
Fundação de Cultura do Acre, 2004, p. 20.
59
Entretanto, o geógrafo Carlos Walter identifica um dado relevante que aponta
para um processo diferenciado de ocupação estabelecido pelos seringueiros ao longo
de uma vida de trabalho que viria a se constituir em forte obstáculo à implementação
de um novo ordenamento territorial baseado na propriedade privada de grandes áreas
para formação de pastagem. De acordo com o autor:
O que não se via no Acre é que uma mudança de donos vinha se dando
décadas onde os de baixo”, enquanto ocupantes, mais do que se apossar das
condições naturais de produção, estavam se tornando, rigorosamente,
trabalhadores livres, seringueiros autônomos. É isso mesmo: desde os anos 20
vinha aumentando significativamente no Acre aquilo que o IBGE, a partir dos
anos 40, passa a designar como ocupantes, ou seja, aqueles que comandam
um estabelecimento de produção sem que sejam proprietários da terra e sem
estar subordinados a ninguém. Em suma, sem Estado (não pagam impostos) e
sem Patrão (são autônomos).
95
Não obstante serem vistos como empecilho para o “desenvolvimento” e para o
novo projeto colonizador, os seringueiros passam a ser pressionados e ameaçados
muitas vezes na mira de jagunços armados - a deixar as terras, com o empenho dos
governos federal e estadual. “Em 1970, o governo do Acre promoveu reuniões para
empresários no sul do país onde anunciava o maior negócio do século, propiciado pelo
baixíssimo preço da terra e pelas condições excepcionais oferecidas pela natureza”.
96
De acordo com Alves, de 1970 a 1974, um terço do território do estado tinha sido
vendido para empresas e pessoas do centro-sul, seja para instalação de fazendas seja
para mera especulação imobiliária. Dado o grande fluxo de fazendeiros procedentes
do estado de São Paulo, essa categoria dos de foram ficou conhecida como “os
paulistas”, apesar procederem também de outros estados, como Paraná e Mato
Grosso. O termo teria sido cunhado nas seguintes circunstâncias, conforme relata
Elson Martins, à época correspondente do Estadão em Rio Branco:
A palavra “paulista” foi assim: quando a gente ia levantar a informação para
fazer a matéria, o seringueiro dizia: “os caras foram lá, ameaçaram minha
mulher, meus filhos ficaram chorando, eles disseram que vão entupir o
varadouro e tocar fogo em volta da colocação”. a gente perguntava: quem é
esse cara? Ele não sabia o nome e dizia: é um paulista. Era sempre assim. A
gente queria dar o nome do agressor, mas ele não sabia, era o “paulista”.
97
Para as comunidades locais, esse personagem passou a significar a
desapropriação, a violência e a destruição da floresta como valor de uso para quem
dela precisava para subsistência, ao passo que para os de fora, interessados em fazer
95
Carlos Walter Gonçalves (1999), op. cit., p. 72.
96
Antônio Alves e Jorge Viana, Ibid. p. 22.
97
Entrevista coletiva com a equipe do jornal Varadouro, realizada em 1997 por ocasião do vigésimo
aniversário de criação do jornal. Publicada em www.ac.gov.br/bibliotecadafloresta.
60
pastagens, a ela não possuía valor de uso algum, precisando, portanto, ser derrubada
e queimada.
Evidenciam-se, assim, duas lógicas frontalmente opostas no que tange à relação
com o território. De um lado, um estilo de vida que se faz na e com a floresta; de outro,
um modelo produtivo que precisa se lançar contra a floresta. Naquele momento
histórico, a categoria dos “paulistas” demarca uma acentuada diferença entre o “nós” e
o “outro” para as comunidades extrativistas, na medida em que punha em risco uma
identidade fortemente vinculada ao território.
98
No ordenamento social, territorial e
laboral anterior (seringalista/seringueiro), apesar das contradições e desigualdades, as
comunidades haviam desenvolvido táticas de sobrevivência e adaptação ao lugar
(social e físico) por elas ocupado. Nesse ordenamento que se impunha, os
seringueiros viam seu destino tomar caminhos cada vez mais desconhecidos. Quatro
opções foram se desenhando para o futuro dessas populações, algumas de imediato e
outras à medida que os confrontos começaram a ganhar contornos mais violentos.
Foram elas: a) migrar para as cidades e viver nas periferias, em aglomerações
relativamente deslocadas da vida urbana, não pertencendo, portanto, nem mais ao
campo nem se integrando à vida na cidade, como bem indica esta descrição do jornal
Varadouro:
Essa gente, ao mudar do campo para a cidade, não melhorou de situação,
apenas trocou de problema, perdendo na troca. O que a cidade tinha para
oferecer-lhe era quase nada, talvez apenas a tolerância pra construir na sua
periferia um miserável barraco. Ali, a administração custará a chegar, a
promiscuidade reinará e a vida social crescerá desordenada e caótica (...) Para
muitos, a saída é deixar a mulher e os filhos na cidade e voltar a trabalhar no
campo, agora como peão: “Eu não posso viver na cidade porque não tenho
profissão”, diz um morador. Esse o primeiro grande drama de todos (...) Mas
apesar dos pesares, a vida continua a se multiplicar ali. A cada dia chegam
novas famílias, “corridas” dos seringais transformados em pastos ou que
passaram para as mãos de especuladores ou grupos econômicos
“progressistas” que não incluem nesse “progresso” o homem.
99
b) como sinaliza o texto do jornal, outro caminho era se tornarem peões de
fazendas, embora estas não apresentassem demanda que absorvesse a grande
maioria de trabalhadores; c) aceitar negociar a saída em troca de lotes menores e com
características, na maioria das vezes, completamente diferentes das antigas
98
Não se pode negar, contudo, que para amplas parcelas da sociedade acreana o ideal do progresso
associado às mudanças em curso seduziu e ganhou a adesão de muitos setores da sociedade local.
Afinal, conforme enfatizado por Antônio Alves, o pensamento que se impunha como uma poderosa
ideologia do desenvolvimento também se encarregava de associar a atividade extrativista, a figura do
seringueiro e a floresta à idéia de atraso e primitivismo.
99
Jornal Varadouro, número 1, maio de 1977, p. 17.
61
colocações
100
; d) mudar-se para seringais abandonados, na Bolívia, como fizeram
muitas famílias que, quase trinta anos depois, em 2006, foram expostas a novo risco
de despejo, mediante exigência de desocupação feita pelo governo boliviano, após a
posse de Evo Morales na presidência daquele país).
101
De todo modo, os antes importantes e necessários “soldados da borracha”, como
ficaram conhecidos os nordestinos estimulados a empreender nova migração para os
seringais da Amazônia durante a Segunda Guerra Mundial, viam sua existência tornar-
se um estorvo histórico. Os governos que outrora os levaram com promessas de
fartura, agora tinham a oferecer a presença ameaçadora da polícia como garantia
de desocupação das terras. De heróis da “batalha da borracha”, de acordo com o
slogan oficial da “borracha para a vitória” adotado pelo governo brasileiro durante a
guerra, esse personagem da história acreana vai se convertendo em símbolo de atraso
e de um mundo decadente. Abaixo, reproduzimos cartazes da campanha do governo
federal visando recrutar trabalhadores para a reativação da produção de borracha nos
seringais, na operação que ficou conhecida como “Acordo de Washington”, celebrado
em 1942, entre os governos brasileiro e norte-americano.
102
100
Área de floresta onde vivem e trabalham os seringueiros, portadora de uma determinada quantidade
de árvores de seringa destinadas ao corte. Na ordenação do seringal, colocação forma par com o
barracão ou sede, onde funcionava a administração da empresa seringalista.
101
A questão foi objeto de Medida Provisória editada pelo governo brasileiro, em março de 2007,
prevendo, mediante negociação com o governo boliviano, o repasse de 20 milhões de reais, através de
verba extraordinária para Ministério das Relações Exteriores, para regularização da situação migratória
dos acreanos e investimento na criação de projetos de extrativismo e agricultura que beneficiem
brasileiros e bolivianos pobres que moram na mesma região de fronteira.
102
Conforme aponta Elder Paula (2005), (op. cit., p. 57), com a ocupação, pelos japoneses, dos
seringais de cultivo do Sudeste Asiático, responsável pelo abastecimento de borracha natural para a
indústria mundial, os países aliados viram-se na necessidade de recorrer à Amazônia como fornecedora
desse produto, especialmente para suprir as necessidades da indústria bélica, num acordo celebrado
entre o governo brasileiro e o norte-americano, em que o novo comércio seria monopolizado e regulado
pelo Estado brasileiro.
62
Propaganda oficial de 1943 destinada a recrutar nordestinos para os seringais de borracha nativa
na Amazônia, durante a Segunda Guerra Mundial – Acervo digital CDIH/UFAC.
Além dos dramas vividos por esses trabalhadores quando de sua partida para o
norte e das incertezas quanto ao futuro, ignorava-se completamente o papel histórico
por eles assumido no contexto da Segunda Guerra. Interessava agora retira-los, na
condição de entulho histórico, em nome do “progresso” e dos interesses do capital
nacional e internacional. Afinal, no contexto nacional, esse foi um dos período em que
empresas americanas ampliaram a venda de máquinas e implementos agropecuários.
No Acre, “a UDR
103
realizou leilões públicos, elegeu deputados, subornou a classe
média e comprou a imprensa”.
104
Os impactos pareciam irreversíveis: a) socialmente,
os trabalhadores expulsos ou que haviam vendido as terras formavam imensos
cinturões de pobreza no entorno dos municípios e principalmente da capital, fazendo
surgirem problemas como desemprego, déficit habitacional e violência urbana – a outra
face do problema ambiental trazido por esse processo; b) ecologicamente, dados mais
específicos sobre a devastação indicam que, até o início da década de 1990, 750 mil
103
União Democrática Ruralista (UDR), entidade de classe que reúne o setor da chamada produção
rural e tem como objetivo principal a defesa dos interesses do agronegócio, o direito de propriedade e a
manutenção da ordem e respeito no país, materializada na chamada segurança jurídica.
104
Antônio Alves (2004), op. cit. p. 23.
63
hectares de floresta haviam sido derrubados, possivelmente dizimando espécies
animais e vegetais ainda não conhecidos e catalogados pela ciência. Mas o fracasso
econômico não era menos expressivo: 20 anos após a implementação do modelo, “a
arrecadação própria do estado ainda era de 20% do total de seus gastos, prosseguindo
em sua dependência crônica dos repasses da União”,
105
sem mencionar que a
atividade agropecuária gera poucos e precários empregos.
Na área da comunicação, a imprensa mantém seu alinhamento com os grandes
interesses econômicos na região, na maioria das vezes ignorando as intensas disputas
travadas na floresta ou se limitando a reproduzir as versões oficiais de políticos,
fazendeiros e da polícia, num nítido esforço de legitimação de uma ordem oficializada
como “a melhor para o Acre”. Conforme observa Elson Martins, “no começo dos anos
70 a imprensa aqui era O Rio Branco’ feito com noticias que eram mandadas pela
elite, não tinha repórter. Não havia preocupação de ver o que acontecia no Estado”.
106
2.2.1. Os “empates” e a afirmação da identidade-territorialidade seringueira
Com o avanço dos empreendimentos agropecuários, a expulsão das famílias, a
ameaça e destruição de moradias pelos jagunços, muitas vezes com o apoio da polícia
garantindo a tomada de posse pelos “novos donos” da terra, aos seringueiros, além
das alternativas apresentadas acima, uma outra começa a se constituir: o
desenvolvimento de estratégias de luta e o enfrentamento da ordem imposta, o que
implicava se organizar como movimento e forjar uma identidade de grupo, uma
identidade de resistência.
A relativa inércia a que estavam conformados a vida, o trabalho e as
representações de mundo dessas populações, antes sem a necessidade de
organização enquanto grupo, é rompida com o colapso do ordenamento social anterior,
gerando a necessidade de se colocar em movimento. Neste novo cenário, fazer a
pergunta sobre quem se é passa a fazer todo sentido, sobretudo para fins de
mobilização. O primeiro passo nessa direção é, portanto, a busca de construção de
uma identidade coletiva para o grupo, permitindo a definição daquilo que une/distingue
mediante a afirmação dos atributos considerados comuns. Não foi, entretanto, uma
tarefa fácil, na medida em que as representações associadas à figura do seringueiro
105
Ibid. p. 23.
106
Entrevista com equipe do jornal Varadouro, realizada em 1997, disponível em
http://www.bibliotecadafloresta.ac.gov.br/biblioteca.
64
poderiam variar desde o herói da “borracha para a vitória”, ou o seringueiro vítima”,
até o “seringueiro malandro e preguiçoso”, como observa Gonçalves
107
.
A considerar pelo contexto sócio-histórico de crise do extrativismo da borracha e
predomínio da ideologia desenvolvimentista referenciada em padrões exógenos, é
possível imaginar que, além dessas representações, outra bem mais comum associada
à figura do seringueiro fosse a de atraso e descompasso com a dinâmica do progresso.
Esse, ao que parece, seria o mais forte dos estigmas com/contra os quais essa
categoria teria que lidar para construir uma identidade social que fizesse frente ao lugar
inferiorizado que outra categoria social lhe reservava. Importava, assim recorrendo à
noção de estigma
108
enquanto atributo social, neste caso específico uma marca
relacionada à própria trajetória do grupo –, minimizar, por meio da construção de uma
coesão interna, os efeitos deletérios do processo de estigamatização, resultando no
fortalecimento coletivo.
Essa parece ter sido precisamente a estratégia adotada, pois um primeiro
elemento que surge como algo comum aos membros da categoria, conforme sublinha
Gonçalves, é a recusa do lugar social (e simbólico) que naquele momento e lugar
“outros segmentos sociais melhor situados no espaço social pelos capitais de que
dispõem tenta lhe impor”. Ou seja, complementa o geógrafo, “o movimento (social) é,
rigorosamente, mudança de lugar (social) sempre indicando que aqueles que se
movimentam estão recusando o lugar que lhes estava reservado numa determinada
ordem de significações”.
109
Isso implica, inevitavelmente, colocar-se em posição de
confronto com a ordem social hegemônica, mediante a constituição de uma outra
ordem de valores (e de interesses), correndo-se o risco quase certo de nova
estigmatização, desta vez como desordeiros que ameaçam a ordem vigente o que,
como sabemos, é suficiente para legitimar o uso da força e da violência como meio de
restauração da ordem e da lei.
Foi precisamente o que aconteceu nos anos de 1975 e 1976, quando da
realização das primeiras reuniões de seringueiros para criação do sindicato,
inicialmente em Brasiléia (1975) e posteriormente em Xapuri (1976). De acordo com
Chico Mendes, que atuou na criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) nos
dois municípios, quando das reuniões com representantes da Confederação Nacional
107
Carlos Walter Porto Gonçalves (1999), op. cit.
108
Erving Goffman, Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1982.
109
Carlos Walter Porto Gonçalves (1999), op. cit., p. 69.
65
dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) enviados para assessorar a criação das
entidades, “os fazendeiros começaram a espalhar pela cidade que um grupo de
comunistas tinha chegado em Brasiléia para começar a tumultuar e agitar os
trabalhadores, principalmente os seringueiros”. Em Xapuri, as dificuldades teriam sido
maiores, isso porque, diferentemente de Brasiléia, a paróquia daquele município ainda
era ocupada por um padre contrário aos princípios da Teologia da Libertação postos
em prática nas Comunidades Eclessiais de Base (CEBs), conforme destaca o líder
seringueiro:
O padre local, José Carneiro de Lima, se opunha frontalmente ao sindicado.
Logo ao chegar fiz algumas reuniões nos seringais. No entanto, ao passar na
sede do município, fui detido pela polícia. Na cidade o padre já havia me
denunciado aos órgãos de segurança como seringueiro agitador e subversivo.
Passei mais de suas horas depondo na delegacia de polícia, sem saber do que
se tratava. A aliança da igreja local com os fazendeiros e seringalistas criou
muitos obstáculos ao movimento dos seringueiros em Xapuri (...) [Somente] no
ano de 1977, o bispo Dom Moacir Grechi, informado que a paróquia de Xapuri
estava contrariando as linhas do trabalho pastoral da Igreja, com relação à
situação do campo, mandou para o município outros dois padres [alinhados com
o trabalho mais progressista da Igreja Católica]
110
.
A constituição do movimento social dos seringueiros acreanos se faz, portanto,
nesse encontro com/contra o outro, “os paulistas”, contra a ameaça concreta da lógica
trazida por eles a um estilo de vida que agora precisa se perceber como tal, em sua
identidade/diferença, a fim de ser atualizado em estratégia de luta. O desafio colocado
era, a partir daquele momento, fazer ver, dar a conhecer que o universo da floresta
amazônica, ao contrário da idéia generalizada pela visão hegemônica, não era um
vazio demográfico. Mais ainda: não era simplesmente um lugar ocupado e não um
lugar de produção da borracha. Tratava-se, além disso, de um lugar habitado por
sujeitos capazes de significar sua própria existência e por ela se organizar política,
social e culturalmente. Enfim, importava perceber-se como uma comunidade portadora
de um habitus fortemente vinculado a um habitat específico, como destaca Gonçalves,
operando com as categorias de Bourdieu
111
.
110
Pedro Vicente Sobrinho, Chico Mendes: a trajetória de uma liderança (entrevista realizada em
novembro de 1988, um mês antes do assassinato do líder sindicalista). In. Paula, Elder; Silva, Silvio
Simione da. Trajetórias da Luta camponesa na Amazônia-Acreana. Rio Branco: Edufac, 2006, p. 33.
111
O conceito de habitus é definido por Bourdieu como um sistema de disposições socialmente
instituídas que constituem um princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias de
determinados grupos sociais. São aqueles modos e disposições para sentir, pensar e fazer (agir) que
aglutinam e identificam certos grupos e agentes, mesmo existindo diferenças e nuanças entre seus
integrantes. Tais disposições podem ser identificadas com certos habitus de classe sem que se
constituam, no entanto, em regras objetivamente definidas ou deterministas, uma vez que representam
mais um conjunto de princípios que podem ser reconhecidos como unificadores de certas visões de
mundo e formas de agir. (Pierre Bourdieu, O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992).
66
Para se contrapor à visão dominante fortemente amparada nas políticas de
governo, urgia tornar legítimo um nculo com o território fundado no valor de uso da
floresta e nos significados culturais constituídos no decorrer de um longo processo de
ocupação que ensejou estilos de vida próprios. Aqui, o conceito de habitus articulado
ao de habitat ganha pertinência singular, na medida em que permite visualizar aquilo
que Bourdieu concebe como a história objetivada, ou seja, a história que se acumulou
nas coisas, nos objetos, técnicas, ambientes de trabalho, nas moradias, e a história
incorporada nos costumes, práticas e modos de vida. Nesse sentido, a categoria
“ocupante”, que vinha sendo identificada nos levantamentos do IBGE algum tempo
e que impingia ao Acre a imagem de “um verdadeiro caos fundiário é, assim, indicativa
de quadros de referência socioculturais e espaciais diferenciados e de um processo
onde os de baixo’ empreendem uma organização socioespacial prática sem
correspondência nos estatutos legais”.
112
Na busca de legitimar esse modelo de ocupação, foi fundamental a constituição
de lideranças entre os próprios seringueiros, pessoas que, além das habilidades do
fazer, que lhes era peculiar, desenvolvessem habilidade no domínio da linguagem (da
fala elaborada, da leitura e da escrita) a fim de promover a unificação e a mediação
tanto entre os membros do grupo quanto na interlocução com outros agentes. Tais
figuras podem ser identificadas com o intelectual orgânico de Gramsci, por sua atuação
na unificação de visões de mundo, contribuindo para a formação/definição de
identidades coletivas ao serem reconhecidos por membros dos grupos ou
comunidades, que passam a se reconhecer em suas falas e ações. No caso do
movimento social dos seringueiros, tal função passa a ser exercida por trabalhadores
como Wilson Pinheiro, Chico Mendes (ambos assassinados, respectivamente, em
1980 e 1988), Osmarino Amâncio, Raimundo Barros e Marina Silva.
Sob a orientação dessas e de outras lideranças locais, os seringueiros
perceberam a necessidade de instituir mecanismos de representação política que
pudessem fazer frente ao aparato legal de que dispunham os pecuaristas. Um dos
fatores que contribuiu nesse trabalho de organização foi a criação da delegacia
regional da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag),
conforme explica Elson Martins:
No segundo semestre de 75 surgiram pessoas e entidades que se juntaram
para se opor ao plano de bovinizar o Acre. O economista e sociólogo João Maia
da Silva Filho assumiu a delegacia regional da Contag (Confederação Nacional
112
Ibid, p. 72.
67
dos Trabalhadores da Agricultura) em julho, começando a encaminhar
denúncias e planejar uma resistência aos abusos e descumprimentos do
Estatuto da Terra.
113
Inicialmente na condição de correspondente do jornal O Estado de São Paulo,
Martins foi dos poucos jornalistas a cobrir os conflitos, tendo acompanhado de perto o
processo de organização do movimento. A esse respeito, observa que
O crescimento dos sindicatos foi uma coisa estrondosa. Em menos de dois anos
o João Maia criou oito sindicatos com quase 40 mil associados. E por que tanta
facilidade de mobilização? Para se defender. Porque a empresa agropecuária
entrou botando para fora mesmo. Eles compraram o seringal a preço de banana
com o seringueiro dentro. E a recomendação de quem vendia a terra era de que
o seringueiro não valia nada, era chegar e botar para fora, ele não tinha
direito.
114
Mesmo com a visibilidade que o conflito começava a ganhar, os confrontos físicos
e armados se tornaram inevitáveis. Através de mobilizações que ficaram conhecidas
como “empates”
115
, famílias inteiras de seringueiros, a partir de 1976, se colocavam no
caminho de peões e jagunços a fim de impedir a derrubada da floresta, que incluía a
destruição de seringueiras e castanheiras. Contrariamente ao mito que se criou em
torno desses movimentos como ações pacíficas e desarmadas, em muitos casos havia
a disposição ao enfrentamento armado e ao confronto físico, mediante o uso de foices,
terçados e espingardas, como é possível se verificar nas imagens de organização de
“empates” reproduzidas abaixo.
113
Publicado em www.chicomendes.org/chicomendes14.php, em 30 de março de 2005.
114
Disponível em www.bibliotecadafloresta.ac.gov.br/biblioteca.
115
Os “empates” foram revestidos de nuances diversas de significados. Inicialmente foram a primeira
forma de impedir os desmatamentos, “empatando”, ou seja, obstruindo o caminho dos peões de fazenda
encarregados de derrubar a mata; a partir daí passaram a significar uma resistência dos acreanos contra
o usurpador do seu território, os paulistas” e, numa etapa seguinte, indicam a oposição entre
seringueiros e fazendeiros, forjando uma identidade política daqueles. Ver Elder Paula, Trajetórias da
Luta Camponesa na Amazônia Acreana. Rio Branco: Edufac, 2006, p. 112.
68
Movimento de seringueiros nos chamados “empates”, forma de resistência encontrada para
impedir a derrubada da floresta por grupos pecuaristasacervo digital CDIH/UFAC.
O primeiro “empate” aconteceu no município de Brasiléia, em março de 1976, no
Seringal Carmem. Os seringueiros a essa altura buscando associar-se juridicamente
à figura do “posseiro”, pelas possibilidades de benefício oferecidas no Estatuto da
Terra com o enquadramento por tempo de ocupação decidem resistir à ocupação
dos pecuaristas, que iriam começar o desflorestamento. Conforme relata Mendes:
A situação era crítica. Pensamos um pouco e analisamos algumas alternativas.
A justiça não merecia confiança, sempre ficava do lado do patrão. Contratar
advogado não era fácil. Mesmo que o advogado fizesse alguma coisa pra
impedir o desmatamento, a questão ia rolar na Justiça, enquanto isso a mata ia
desaparecer, com ela as seringueiras e castanheiras. Decidimos usar nossa
própria força. Mobilizamos imediatamente 60 seringueiros, armados de
espingardas e terçados, e cercamos o acampamento dos peões por três dias.
Foi um acorreria muito grande. As autoridades se movimentaram. Exército e
69
polícia foram acionados. Naquele momento houve a primeira reunião entre
fazendeiros e seringueiros pra resolver a situação (...) o empate estava
consagrado como forma de luta.
116
Embora no decorrer dos confrontos a Contag tenha passado a orientar sua
atuação por uma postura de negociação e desocupação das terras mediante o
fornecimento de outras áreas aos seringueiros o que motivou o racha com o STR de
Xapuri liderado por Mendes foi na atuação de um advogado da entidade que se
encontrou respaldo jurídico para os “empates”, ao fundamentar sua motivação na
proibição em vigor, de acordo com o Código Florestal, do corte de castanheiras e
seringueiras. Adicionalmente, recorrendo ao Art. 502 do Código Civil, que previa o
direito à defesa de posse da propriedade, se necessário com uso de armas, o
advogado Pedro Marques acabou fornecendo mais confiança aos seringueiros.
Conforme observa Elder Paula,
117
a descoberta da existência de direitos foi importante
para o fortalecimento dessa confiança. Em entrevista a esse pesquisador, o jornalista
Elson Martins observa que “o seringueiro tem pavor de leis, ele respeita muito a
palavra escrita”, condição que teria sido bastante usada pelos advogados de
seringalistas e fazendeiros para “provar” aos seringueiros, mediante a demonstração
das escrituras, que eles tinham que sair, estava escrito. De acordo com Martins, o
advogado da Contag passou a usar essa relação de respeito dos trabalhadores pela
escrita a favor do movimento:
Pedro Marques invertia essa situação, ele chegava na área reunia o pessoal e
dizia: olha, você está dizendo que chegou o jagunço lá na sua casa, mexeu com
a tua mulher, ela desmaiou, teus filhos ficaram chorando (...) pois, olhe, tem um
artigo na constituição que diz o seguinte: se isto acontecer você pode pegar
uma arma e dar um tiro, você pode matar, isso é invasão domiciliar. Agora eu
não vou defender tua mulher não, a minha eu defendo, em casa ninguém
entra, porque se entrar eu dou um tiro.
118
Com esse tipo de incentivo inspirado na “Lei”, a categoria sentiu-se encorajada a
intensificar a resistência. Paralelamente, entretanto, o movimento vinha constituindo
toda uma rede de relações com entidades da sociedade civil que, além dos sindicatos,
incluía associações, entidades populares urbanas, ONGs e organismos internacionais,
o que muito contribuiu para pôr em relevo a violência contra seringueiros e índios e o
problema ecológico implicado nesse processo.
116
Pedro Vicente Costa Sobrinho (2006), op. cit., p. 38 – 39.
117
Elder Paula (2005), op. cit., p. 175.
118
Elder Paula (2005), Ibid., p. 175-176.
70
Outro aliado importante do movimento foi a Igreja Católica, representada pelas
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), orientadas pelas idéias da Teologia da
Libertação. As reuniões realizadas pelos religiosos tornaram-se, ao mesmo tempo,
encontros de evangelização, debate político e momentos de organização das
estratégias de enfrentamento. De acordo com Elson Martins, “o trabalho das
comunidades de base da igreja estava em tudo que era seringal”
119
.
Em se tratando de
intervenção no espaço público, além dos debates e discussões realizados nas
comunidades e dos manifestos em repúdio à posição das autoridades no tocante à
violência, a Igreja editou, a partir de 1971, um boletim chamado Nós Irmãos que
articulava orientação cristã e defesa de direitos dos trabalhadores.
A luta, inicialmente motivada pelo direito de posse da terra dos seringueiros,
começa a ganhar contornos de movimento ambientalista em defesa da floresta. A
ampliação de objetivos revela-se uma estratégia eficaz para a conquista de novos e
importantes aliados, como parcela do movimento ambientalista mundial, por exemplo,
e setores da imprensa nacional e internacional. Essa estratégia de agregar ao
movimento a causa ambiental, que posteriormente viria a conferir aos seringueiros a
alcunha de “guardiões da floresta”, evidencia mais um daqueles traços típicos das
identidades estigmatizadas definidos por Erving Goffman
120
, ao se referir às
identidades mobilizáveis, acionadas de acordo com a especificidade de situações
concretas.
Apesar da repercussão nacional e internacional do movimento, a imprensa local
permanece indiferente aos conflitos e, quando se manifesta, é para expressar a versão
dos fazendeiros e da polícia. De acordo com Sobrinho
121
, apesar do clima tenso
instalado em todo o Acre e da importância do assunto, uma espécie de acordo reinava
entre a imprensa local e as autoridades estaduais. Nada poderia ser divulgado.
Prevalecia o silêncio.
2.2.2. Varadouro: o romper do silêncio
Foi num dos períodos mais críticos de acirramento dos conflitos que, em maio de
1977, um grupo de jornalistas e intelectuais de vários setores se dispôs a criar um
jornal que desse visibilidade aos problemas locais, aos conflitos no campo e, em
119
Entrevista com equipe do Varadouro, disponível no site da Biblioteca da Floresta, op. cit.
120
Erving Goffman (1978), op. cit.
121
Pedro Vicente Sobrinho, Comunicação Alternativa e Movimentos Sociais na Amazônia Ocidental.
João Pessoa: Editora da UFPB, 2001.
71
particular, que amplificasse as vozes de resistência ao modelo de desenvolvimento em
curso na região. O jornal recebeu o nome de Varadouro e foi apelidado de Um jornal
das selvas, numa referência aos caminhos abertos no meio da floresta que serviam de
comunicação entre as várias colocações de um seringal e destas com a sede. O grupo
recebeu apoio direto, inclusive financeiro, de várias instituições locais, dentre as quais
se destacam a Igreja Católica, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura (Contag), os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e setores progressistas
da Universidade Federal do Acre, além de entidades populares urbanas.
Na liderança do projeto de criação do jornal estavam os jornalistas Elson Martins
e Silvio Martinello, este atual proprietário do diário A Gazeta, referido anteriormente. A
condição de então correspondente do jornal O Estado de São Paulo muito contribuiu
para que Martins levasse os problemas locais para a arena nacional, mas
regionalmente havia uma grande lacuna.
Assim, o novo jornal, além de marcar uma aposição de defesa das populações
extrativistas, discutindo a crise e a violência vivenciadas no campo, passa a constituir-
se num importante espaço de reflexão sobre os problemas regionais. Para tanto, adota
uma linguagem e formato que privilegia a complexidade das relações socioculturais do
momento, sem enveredar, por exemplo, na concepção de uma objetividade jornalística
em que a mera noção de fidelidade aos fatos representasse garantia de uma
abordagem “completa”
122
. Na primeira edição, em maio de 1977, o editorial do
Varadouro assim define seu lugar e sua missão naquele cenário de transformações:
Varadouro, como o nome sugere, propõe-se a contar o momento histórico atual
do Acre e de sua gente. No auge das “folias do látex”, que aconteceram nesta
parte da Amazônia Ocidental, existiram dezenas de jornais. O Acre, atualmente,
restringindo uma expressão do nosso amigo entrevistado, Márcio Souza, recebe
uma segunda “patada” histórica e reclama da consciência do jornalista o registro
dos fatos, mas principalmente das conseqüências desse processo. Varadouro é,
pois, um dever de consciência de quem acredita no papel do jornalista. É
propositadamente feito aqui, na “terra”. Sai, portanto, de uma forma rude,
cabocla, sem técnica, cheio de limitações e gerado pela necessidade de colocar
em discussão os problemas de nossa região, do nosso tempo e principalmente
de nossa gente. É um desafio, até certo ponto, incômodo. Sabemos que
seremos amados e mal-amados. Mas ainda achamos que vale a pena assumi-
122
Além do material produzido pelos membros da equipe do jornal, o Varadouro publicava artigos e
entrevistas de intelectuais de outros lugares do país, como Márcio Souza, Alfredo Wagner, Henfil, entre
outros. A carta a seguir foi enviada à redação do Varadouro em novembro de 1977:
“Povo do Varadouro! Recebi finalmente os 3 jornais. Achei uma coisa que muito me emocionou: não tem
cheiro de Rio de Janeiro nem de São Paulo. Tem cheiro de ACRE! A paginação, a leitura, tudo tem a
cara do Acre! Como é que vocês conseguiram? Um apelo: aprofundem mais isto. Quero receber o
número 4 impresso em folha de seringueira. Não façam um jornal para o Rio e São Paulo!
Viva o ACRE!
Henfil” (Carta publicada por Pedro Vicente Sobrinho (2001), Op. cit. 137.)
72
lo, porque acreditamos que o homem acreano e o da Amazônia em geral
merecem muito mais do que simplesmente o “berro do boi”. Como se vê,
estaremos em nosso trabalho mais preocupados em entender e mostrar as
razões, os bastidores dos fatos do que propriamente os fatos em si. Faremos
isto com fidelidade e respeito aos relatos simples e profundos que brotam da
alma do povo.
O jornal passa então, mensalmente, a veicular informações detalhadas sobre os
conflitos no interior, os dramas das famílias expulsas e as conseqüências desse
processo nos espaços urbanos. No trecho abaixo, publicado na edição de outubro de
1979, Martins apresenta ao leitor a atmosfera que envolvia os confrontos:
Eram sete horas da manhã de domingo, dia 2 de setembro passado, quando foi
dado o sinal de partida. O acampamento dos jagunços ficava a pouco mais de
um quilômetro do local do mutirão, que reunia mais de trezentos trabalhadores
rurais. Havia também o acampamento dos peões, mais próximo. Os
trabalhadores se dividiram em dois grupos e marcharam decididos enchendo o
estirão da BR-317, à altura do quilômetro 38, no município de Boca do Acre.
Contra as armas modernas dos jagunços, portavam apenas terçados e foices.
“Não somos bandidos diziam, como uma palavra de ordem queremos
apenas paz e justiça. Queremos fazer valer nossos direitos”
123
.
Esta foi a abertura da matéria de capa, intitulada “O grande mutirão contra a
jagunçada”, evento do qual Martins foi o único jornalista a fazer cobertura. A respeito
de sua atuação, confessa: “Foi muito forte. Eu não sabia se era um jornalista, um
militante ou um guerrilheiro. Estava muito emocionado.”
124
Entretanto, como era de
praxe no regime ditatorial em que estava afundado o país e no clima de violência
reinante no Acre, as represálias não tardaram a chegar:
Logo no primeiro número fui intimado, como diretor-geral do jornal, a
comparecer à Superintendência da Polícia Federal, em Rio Branco. O
superintendente, Geraldo, olhou-me de forma ameaçadora e indagou, com um
exemplar na mão: “Você sabe o que vai lhe acontecer se continuar produzindo
esse jornal?”. Respondi que não sabia, mas expliquei que continuaríamos
com o nosso trabalho, reconhecido pela sociedade. A partir daí, muitas vezes
fui avisado para esconder-me, pois os agentes da PF estariam me procurando
pela cidade. (...) Fui ameaçado de morte e passei um mês dormindo com um
revólver 38 sob o travesseiro. Em 1979, juntamente com o delegado regional
da Contag, João Maia da Silva Filho, sofri uma emboscada preparada por um
fazendeiro na estrada de Boca do Acre (BR-317)
125
.
Todavia, o passo significativo havia sido dado na busca de abordar os graves
problemas enfrentados na região. Questões relacionadas às condições de vida de
123
Jornal Varadouro, 16 de out. de 1979.
124
Entrevista com Elson Martins, revista Outras Palavras, ano II, n° 14. Rio Branco: Fundação de Cultura
do Estado do Acre, outubro de 2001, p. 22.
125
Vozes da Democracia: histórias da comunicação na redemocratização do Brasil. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, 2006, p.
292 – 293.
73
índios, seringueiros e ex-seringueiros que se amontoavam nas periferias, a prostituição
e o abandono desses espaços pelo poder público tornaram-se constantes.
Jornal Varadouro, maio de 1977.
O fragmento acima, assim como as quatro capas reproduzidas abaixo permitem
uma boa noção da linha editorial adotada por esse jornal em sua disposição de debater
os aspectos mais incômodos da realidade regional, silenciados nos demais veículos.
74
Acima, capas das edições de maio e setembro de 1977; abaixo, agosto de 1977 e março de 1978.
A partir de então, os conflitos não eram mais desconhecido das classes médias
urbanas, conforme afirma Martins: “a Igreja, a Contag com os sindicatos, a Funai e a
75
imprensa (Nós Irmãos, Varadouro, depois a Gazeta do Acre e outros) contribuíram
para mudar a situação. E lideranças como Wilson Pinheiro e Chico Mendes, entre
outros, colocaram o conflito no café da manhã das famílias da cidade”
126
. De acordo
com os integrantes da equipo do Varadouro, criou-se no espaço urbano uma enorme
expectativa em torno da distribuição do jornal, tanto pelas identificações que gerava,
quanto pela polêmica certa gerada pelas discussões postas na pauta da sociedade:
Alberto Furtado Quando eu anunciava o jornal, fazia um comentário sobre as
matérias. a turma começou a discutir o jornal, dando sugestões de pauta.
Senti nesse momento que havia uma corrente forte que se identificava com a
proposta.
Suede Chaves – O jornal gerava polêmica. Senti isso quando fui à casa de uma
amiga. Era gente de fora. Eu estava na sala conversando com ela e veio a mãe
de dentro. ela me chama num canto e diz: se manda que o papai está aí.
Se ele te vir, vai botar pra correr. O “papai” era um fazendeiro. Eu tomei um
susto e fui embora. Nesse dia senti que o jornal afetava tudo, até nossos
relacionamentos. Quando o jornal saía, era pauta de discussão na cidade.
Arquilau de Castro – Era impressionante. Criava-se uma expectativa na cidade
de que o jornal ia sair naquele dia. Era uma repercussão grande quando o jornal
saía. Era nota de protesto nos outros jornais, os jornais ganhavam muito
dinheiro com os desagravos. Passava o mês inteiro saindo nota contra as
matérias do Varadouro, que só ia sair novamente um mês depois ou até mais.
Sílvio Martinello Como a gente estava conversando no inicio: índio, terra,
meio ambiente eram temas que não entravam absolutamente nos jornais locais,
não se discutia isso
127
.
Tendo circulado entre 1977 e 1981, num total de 24 edições, o jornal chegava a
todos os sindicatos do estado por meio da rede montada pela estrutura das CEBs,
chegando a tiragens de 7.000 exemplares por edição – um número considerável para a
população da época e para os recursos técnicos e financeiros disponíveis. Além de dar
publicidade ao conflito, o Varadouro teve grande impacto no próprio movimento, na
medida em que contribuiu para a unificação de uma identidade de classe e de
interesses comuns, elaborando uma crítica coesa, além de colocar em relevo
elementos da cultura e dos estilos de vida locais.
Elson Martins - Para a Contag, o Varadouro era um apoio muito grande. E o
João Maia, em contrapartida, disse que os sindicatos iriam distribuir o jornal. A
primeira remessa que ficava pronta era para a Contag que mandava para os
sindicatos. E era muito jornal. Acho que eram uns dois mil jornais.
Sílvio Martinello Uma vez eu fui a Xapuri com o Arquilau. O Chico Mendes
levava o jornal, lia pros seringueiros. Dali eles levavam pros altos rios.
Abrahim Farhat Eles pediam pra gente colocar letras maiores porque os
seringueiros liam sob a luz de lamparinas.
128
126
http://www.chicomendes.org/chicomendes14.php, 30 de março de 2005.
127
Entrevista coletiva com a equipe do jornal Varadouro, realizada em 1997, por ocasião do vigésimo
aniversário de criação do jornal. Disponível em www.ac.gov.br/bibliotecadafloresta.
128
Ibid.
76
Destaca-se, assim, no contexto sociopolítico de repressão e violência e com o
crescente envolvimento dos movimentos culturais urbanos com a crise instalada no
Acre, uma importante atuação de intelectuais mediadores, cuja articulação com outros
intelectuais ligados à categoria do falar e do fazer permitiu que sujeitos
historicamente alijados de direitos elementares, dentre eles o de expressão,
manifestassem seus dramas, suas opções de vida e a disposição de por elas lutar. O
papel social assumido pelo jornalismo feito no Varadouro nesse momento histórico
vem ao encontro desta importante observação de Luiz Gonzaga Mota, quando destaca
que:
Da mesma forma que a imprensa é uma instituição historicamente vinculada à
vigilância pública pelo poder em exercício, para a manutenção e a reprodução
da ordem instituída, ela é um instrumento do exercício da democracia. É por
meio da imprensa seja ela burguesa ou popular alternativa - que as queixas e
as reivindicações populares se expressam, ainda que muitas vezes sem a
consistência e a permanência das visões dominantes
129
.
Conferindo publicidade aos conflitos até então restritos às entranhas da floresta e
dando visibilidade e voz a uma categoria que o poder público preferia ocultar, o
Varadouro inscreve sua marca na história do jornalismo e da política acreana. A
disputa desigual que favorecia a estigmatização das comunidades extrativistas como
ultrapassadas e atrasadas, negando-lhes o direito à existência, começa a tomar forma
do debate de idéias e da busca de saídas políticas que reconhecessem legitimidade e
legalidade a um modo particular de relacionamento com o meio, expresso num habitus
igualmente específico.
Vale ressaltar que é também nesse período que outras formas de manifestação
cultural e artística começam a também retratar os dramas regionais, repercutindo nos
espaços e nas linguagens específicos de cada manifestação a preocupação com as
transformações em curso. Num momento em que a onda modernizadora se empenha
em firmar padrões estéticos e modos de vida externos, um grupo de músicos início,
também em 1977, a um importante festival, batizado de Flora Sonora, que procura
afirmar a memória e os valores referenciados na cultura do lugar, rearticulando
vínculos lúdicos com o universo da floresta. A propósito da dinâmica que marcou uma
intensificação e diversificação das manifestações culturais no período, consideramos
bastante significativo o texto “Mil novecentos e setenta e sete”, publicado pela
historiadora e escritora acreana Fátima Almeida, reproduzido no box abaixo, o qual
129
Luiz Gonzaga Mota, Imprensa e poder. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 14.
77
fornece uma variada e detalhada gama de informações sobre agentes, agências,
eventos, bem como sobre o espírito libertário que caracterizou aquele momento
particular:
Mil novecentos e setenta e sete...
Fátima Almeida* (Página 20, 17.09.2003)
Meados dos anos 70 assinalam um período conhecido por quase todos como de efervescência
cultural, em âmbito urbano, que coincide com uma fase de conflitos no campo - um barril de pólvora
com estopim curto. Chegavam os paulistas, adquiriam os seringais mais próximos às urbes e botavam
abaixo as florestas para fazer pasto de boi (...) As perdas no âmbito da biodiversidade foram
incalculáveis. Os custos sociais foram e têm sido pagos pela sociedade: o desemprego, a violência, a
perda progressiva na qualidade da educação, a impossibilidade da saúde pública de resolver problemas
que têm sua origem na falta de saneamento e na baixa escolaridade.
Na cidade de Rio Branco, por um feliz acaso, deu-se a confluência de pessoas que aliaram sua
criatividade artística a uma tendência para promover a reflexão crítica e com isso mobilizar a opinião
pública. A par, é claro, com o movimento nacional de mobilização pela restauração do Estado de Direito
violado pelos Atos Institucionais da Ditadura Militar. Na imprensa, entrou em ação o jornal O Varadouro,
com Silvio Martinello, Elson Martins, Arquilau Melo e uma série de colaboradores. No tocante às artes,
Gregório Filho retorna ao Acre, como filho pródigo, e início a uma serie de ações, com apoio de
pessoas que ocupavam cargos no Governo, como a professora Maria José Bezerra dos Reis, por
exemplo, quando surgiu o DAC (Departamento de Ação Cultural), com Gregório Filho e Laélia
Rodrigues, que passaram a traçar políticas como um programa na rádio veiculando MPB, cursos de
artes, num dos quais, ministrado por Genésio Fernandes, artista plástico, despontou Hélio Melo [pintor
acreano da tela usada na capa deste trabalho]; projeção de filmes de arte, em 16 milímetros, que o
eram exibidos nos cinemas locais, tais como Vidas Secas, Tenda dos Milagres, Joana a Francesa e
outros do cinema nacional, todas as realizações do neo-realismo italiano, Bergmann, Charles Chaplin e
outros. O cineclube Aquiry, como os demais cineclubes no país, foi uma escola de ciência política no
Acre de então, onde existia uma Universidade refratária e ao mesmo tempo com uma porta aberta,
que o Cineclube instalou-se de início nas dependências dela e com total apoio do Departamento de
Assuntos Comunitários.
E ainda tivemos início ao teatro de vanguarda no Acre, com o grupo Ensaio, dirigido pelo próprio
Gregório. Tudo isso acompanhado de perto pelo primeiro repórter das artes no Acre, Chico Pop, que
aliás foi quem trouxe o Gregório para uma apresentação no Juventus, bastante decisiva para os novos
rumos que a Cultura iria tomar no Acre.
Na música, Antonio Manoel, Mário Sérgio e outros criaram o Grupo Raízes, equipado, que
realizava shows de MPB no Acre, quando se ouvia muitas vezes Geraldo Vandré e Chico Buarque.
Aconteceu ainda, o primeiro show que inaugurou a tendência geral nas artes de tomar como temática a
problemática do campo: Flora Sonora, com os compositores intérpretes Pia Vila, Felipe Jardim e Beto
Brasiliense. A composição dele, “1877”, é um clássico: “Mil oitocentos e setenta e sete, tudo seco no
Nordeste; foi o tempo que eu saí de lá, à procura de um lugar (...) agora cem anos depois, a mata pega
fogo e eu sei que sou dois, sou ainda quem ficou lá, sou também quem veio pra cá (...)”.
Márcia Cabral, atriz goiana, Cleber Barros, Carlitinho, Naylor e outros montam o espetáculo
“Agonia de um Sonho”, na Praça dos Tocos. O tema era bem a propósito: a Inconfidência. E d
começaram a surgir grupos de teatro por toda parte, em especial aqueles ligados às Comunidades
Eclesiais de Base. A senadora Marina começou sua vida política ensaiando Morte e Vida Severina, na
Paróquia da Santa Inês, segundo Naylor George, que fez parte do grupo. O historiador Carlos Alberto, o
delegado José Alves, o professor Henrique Silvestre, o jornalista Altino Machado, o diretor de teatro
Betho Rocha, o vice-governador Arnóbio Marques e muitos outros fizeram teatro amador nesse
período.
De forma singular, a capital do Acre não tinha um Teatro, como Belém e Manaus, onde a
prosperidade do ouro negro doou para os moradores dois magníficos espaços.
Em 1977, aportam ainda em Rio Branco, oriundos do Rio de Janeiro, dois intelectuais com as
barbas da esquerda brasileira, um loiro e um moreno, ambos nordestinos, Jayme Ariston e seu parceiro
Álvaro Salmito.
Jayme havia sofrido perseguições políticas em Natal. Exonerado sumariamente, foi para o Rio,
recém-casado, onde ingressou no SESC e veio fundar a delegacia do Acre. Empreendedor, sociólogo,
fez de imediato uma apreensão da realidade, das forças políticas locais, articulou-se com a Igreja, (...)
78
aos realizadores culturais do front, os que estavam em linha de coalizão com as forças hostis dos
poderes constituídos, com as forças do capital desenfreado que transtornou o Acre (...) Fátima Ariston,
artista plástica, conhecedora de filmes de arte, logo articulou-se com as pessoas do Cineclube Aquiry.
Naquele momento, eu, Chico Pop, Antonio Manoel, Abdel, Afonso e Jalva passamos a ilustrar os
boletins que traziam as sinopses dos filmes e filmografias dos diretores. Junto com Silene e Ana
Brancher, publicamos uma revista literária ilustrada, intitulada O Pior é a Espera, com apoio do Jayme,
é claro.
A casa de Jayme e Fátima passou a figurar na rota dos espaços para reuniões de intelectuais e
artistas, verdadeiras assembléias de Atenas: filosofia, política e arte. Fazíamos serões, além do café,
almoço e jantar, muitas vezes. Em sua casa almocei com Márcio de Souza. Participei de reuniões para
produção de espetáculos com Silene Farias, Keilah Diniz, Eurenice Ribeiro, que por sua vez arrebentou
a boca do balão, junto com Álvaro Salmito, nas eleições para o DCE, na campanha para a chapa
Seringueira contra a chapa do reitor. Eram reuniões longas, muita discussão e debate. Muitas mulheres
em cena querendo erguer os chifres para fora e acima da manada. Fátima Ariston me apresentou
Simone de Beauvoir e Sartre, me emprestou livros de William Reich, Jung e sobre a macrobiótica.
Embarcamos na utopia do arroz integral ouvindo Tigresa e Odara de Caetano Veloso e poemas de
Cecília Meireles na voz de Fagner. Terry Aquino e Luis Carvalho que estruturavam a Comissão Pró-
Índio do Acre, também freqüentavam a casa; Concita Maia, pioneira em educação indígena; Jalva e
Élson, Márcia Cabral e Nedir Falqueiro, Eleonora Farias, Cleber Barros que havia largado o Seminário
na Itália e chegara com a cabeça cheia de Píer Paolo Pasolini. E outros que a memória falha.
Afora essas relações pessoais, não menos significativas, Jayme Ariston atendeu as expectativas
de todos quanto a um espaço para espetáculos. Fez construir o Teatro de Arena do SESC, cuja
apresentação inaugural foi Apareceu a Margarida, com Márcia Cabral e o pequeno Cícero Farias.
Durante uma década o Teatro de Arena foi o carro-chefe das apresentações teatrais em Rio Branco,
participando da formação de muitos jovens da época. Além disso, ele contratou uma pessoa com
experiência em teatro no Rio de Janeiro, Vera Froes, que, municiada da obra de Augusto Boal, o Teatro
do Oprimido, realizou inúmeros espetáculos, em parceria com todas essas pessoas citadas, na base da
pesquisa tanto teatral quanto dirigida para as questões sociais no campo e na cidade.
Jayme Ariston fez parceria também com o Cineclube que ganhou asas, as projeções passaram a
acontecer também nos centros comunitários da Igreja. Muitas vezes íamos com projetor e latas de
filmes, por tábuas estendidas na lama, projetar filmes em bairros como Cidade Nova, Aeroporto Velho,
na antiga estrada da Dias Martins, de barro pegajoso e vermelho. Lembro-me de uma projeção do filme
“Assalto ao Trem Pagador”, quando um seringueiro recém-chegado me chamou num canto para
perguntar pelo trem. Ele queria ver um trem. Às vezes Jayme extrapolava, como quando projetou
“Outubro”, de Eisenstein, no Aeroporto Velho. Jamais poderemos mensurar o alcance de todas essas
ações. Mas podemos afirmar que contribuíram e muito para todas as mudanças que aconteceram.
*Escritora e historiadora
2.2.3. A Reserva Extrativista como reconhecimento da identidade seringueira
Com o apoio de diversos setores da sociedade civil, repercussão nacional e
internacional e agora dispondo de um canal de comunicação com parcela da
sociedade, o que ampliava a disputa no campo ideológico, a causa das comunidades
da floresta contra as forças colonizadoras deixa de ser apenas de seringueiros e índios
pela posse da terra. Expande-se do confronto físico e armado para o campo dos
embates socioculturais e políticos, demarcando o fortalecimento de uma identidade
política.
As representações ora romantizadas, ora fatalistas-deterministas sobre a relação
homem - natureza que marcavam as produções culturais até o início dos anos 1970
ganham um chão social cujo traço não é mais o do amesquinhamento diante da
79
imensidão da floresta nem a necessidade de subjugá-la ou destruí-la, mas o
reconhecimento dos vínculos orgânicos estabelecidos com ela enquanto ambiente
físico e imaginário no qual se desdobra a vida. Nas palavras de Antônio Alves,
podemos notar bem esse direcionamento: “A floresta não nos pertence, nós é que
pertencemos a ela. Esse sentimento nos induz a estabelecer não apenas um novo
pacto social, mas um novo pacto natural baseado no equilíbrio de nossas ações e
relações com o ambiente em que vivemos”.
130
O discurso dos movimentos sociais de resistência à ideologia do progresso a
qualquer custo, baseado na pecuária e na exploração madeireira, constitui o núcleo de
uma formação ideológica que fundamentará as disputas por uma nova hegemonia
sociopolítica no Acre a partir do final dos anos 1970 e início dos 1980. Incidirá sobre as
políticas, estratégias e ações propostas para um modelo de desenvolvimento
alternativo na Amazônia, para o qual a criação do PT, no início da década, se
apresentou como um novo vetor de aglutinação de forças.
Tal visão começa a produzir efeitos nas alternativas propostas para a solução
dos conflitos no campo que, graças à repercussão alcançada, acabam pressionando
os governos a adotar medidas no sentido de superá-los. Entretanto, enquanto o Incra
e a própria Contag convergiam quanto à distribuição de lotes padronizados para os
seringueiros – o que implicava a desocupação das colocações –, o movimento liderado
por Chico Mendes nessa proposta de solução os mesmos riscos de
descaracterização sociocultural e desaparecimento de uma categoria de trabalhadores,
sem ignorar que os desmatamentos estariam livres para continuar, com a saída dos
seringueiros de suas áreas. De acordo com a avaliação de Chico Mendes, aceitar essa
proposta inicial já permitiu entrever alguns de seus desdobramentos:
Nós não tínhamos ainda um rumo definido, a saída foi aceitar um acordo e
garantir pelo menos um lote de terá. Em troca de suas colocações os
seringueiros receberam alguns pedaços de terra. Não foi bom negócio.
Seringueiros transformados em agricultores da noite para o dia não deu certo.
Pouco tempo depois venderam ou abandonaram os lotes e muitos deles foram
cortar seringa na Bolívia.
131
Diante dessa constatação e inspirado na demarcação das reservas indígenas, o
movimento passa a conceber e propor o modelo das Reservas Extrativistas. O novo
modelo é apresentado pelo movimento em outubro de 1985, durante o I Encontro
Nacional dos Seringueiros, em Brasília. Por meio dele se procura superar a
130
Antonio Alves (2004), Op. Cit., p. 129.
131
Pedro Vicente Sobrinho (2006), Op. cit., p. 39.
80
metodologia da reforma agrária tradicional, buscando incorporar práticas consolidadas
pelos seringueiros em sua relação com o território. De acordo com a proposta, os
ocupantes não seriam proprietários da terra nem esta seria demarcada de acordo com
os parâmetros usuais de distribuição adotados pelo Incra. Conforme assinala Antônio
Alves: “O Incra distribuiu, durante anos, lotes quadrados de reforma agrária até que os
seringueiros exigissem a criação de Reservas Extrativistas e mostrassem que a
natureza não distribui as árvores e cursos d’água de forma regular e geométrica (...) o
movimento seringueiro tem que beber na fonte da cultura indígena para isso
acontecer”.
132
A criação das reservas representa, portanto, a chancela formal e o
reconhecimento de direito fundado em práticas históricas de ocupação afirmadas nos
confrontos com os fazendeiros e com a própria legislação reclamada por estes. Na
acepção defendida por Gonçalves:
A Reserva Extrativista expressa a Territorialidade Seringueira com os recursos
materiais, políticos e simbólicos de que o movimento dos seringueiros dispunha
no momento que vai de 1985, quando a idéia é, pela primeira vez formulada
como tal, a 1990 quando é con-sagrada e sancionada formalmente, tendo
grafado a terra, construído seus varadouros não com os memoriais com suas
descrições e seus mapas necessários para a decretação legal mas, tamm,
deixando rastros de sangue pela floresta.
133
Essa conquista se torna um dos passos mais importantes do movimento e se
torna fornecedora de sentidos e legitimidade a discursos que se vão formar
posteriormente em torno da acreanidade. Grupos políticos inicialmente alinhados com
a causa extrativista passam a recorrer à experiência e êxito do movimento dos
seringueiros como fonte de legitimidade para qualificar outros movimentos e projetos
políticos, numa espécie de transferência do prestígio conquistado. Nos discursos
identificados com idéias mais progressistas, índios e seringueiros vão sendo tomados
como tipos ideais na constituição das referências para projetos de uma identidade
acreana, fenômeno expresso, por exemplo, nesta exaltação das habilidades e do ser
do homem da floresta:
O olho treinado do caboclo consegue distinguir cobras de infinitos tipos, cores
e venenos. Sapos também, entre ele o Kampu, que produz um líquido capaz
de curar doenças e tirar panema
134
. Dizem que o líquido das costas do sapo é
vacina, o da barriga é veneno. E tem pássaros, profusão de cores e sons. E
os macacos. E os encantados [seres encantados da floresta]. (...) Quem
conhece esse mundo? quem saiba distinguir o remédio do veneno.
132
Antônio Alves (2004), op. cit., p. 132.
133
Carlos Walter Gonçalvez (1999), op. cit., p. 77.
134
Azar, insucesso na caça que pode ou não ser vítima de feitiço ou da inveja de outrem.
81
Alguém conhece os sinais do tempo, sabe se vai chover ou estiar, se chega
friagem ou a enchente. Um velho arrodeia a árvore examinando a terra e as
folhas caídas; passa a mão nas grossas raízes e depois leva ao nariz; cheira
a casca do velho tronco; e anuncia o resultado de sua pesquisa: por aqui
passou um bando de porcos grande, uns cinqüenta, faz uns dois dias
135
.
Na disputa pela legitimidade de representações e significados socioculturais,
vemos os referentes associados a índios e seringueiros se converterem de símbolos
de atraso, estagnação, preguiça, malandragem, em pontos de ancoragem para a
criação de novas identidades políticas que, em busca de qualificação, vão operando a
conversão de um capital social em busca de expressão eleitoral.
É esse o movimento que se vai processando a partir do final da década de 1970.
Com o enfraquecimento da ditadura, o movimento inicia uma marcha rumo à conquista
de espaços institucionais via política eleitoral, o que se através de uma
aproximando com lideranças do MDB. É por esse partido, por exemplo, que, em 1978,
Chico Mendes se torna vereador do município de Xapuri. Mas a aproximação começa
a dar sinais de não trazer ganhos significativos no sentido de consolidar pontos
importantes do movimento. Esboçando uma avaliação desse momento, Martins
observa:
É, nós erramos ao apostar no PMDB, mas na época ainda o tinha opção
melhor. Saímos de um estado de exceção com alguns elementos que eram
ícones da oposição, pareciam pessoas de vanguarda, mas que não eram
realmente. (...) Porque vimos como eles eram realmente depois que
chegaram ao poder. Na realidade, o segmento político que chegou ao governo
depois do regime militar era a cara do regime militar, possuía os mesmos
vícios. Apenas tinha assumido um papel teórico de oposição que se
beneficiava de ser oposição a um regime que caía, decadente... (...) Hoje a
gente vê claramente que o que houve de revolucionário nos anos 70 e 80 foi a
organização dos seringueiros e segmentos da imprensa como o Varadouro.
Foi esse movimento que levou o PMDB ao poder. Mas o PMDB traiu isso, não
estava sintonizado com a luta dos povos da floresta. Pelo contrário, assim que
chegou a poder procurou cooptar as lideranças para esvaziar esse
movimento.
136
Como se verifica, a aliança não se revelou produtiva para os propósitos da
resistência, tendo constituído, antes, um perigoso fortalecimento de lideranças
externas ao movimento que, sub-repticiamente, estavam compromissadas com as
linhas centrais dos interesses desenvolvimentistas, mas se revestiam de um caráter
popular e democrático, para o qual a própria aproximação com os movimentos sociais
contribuía.
135
Antônio Alves (2004), op. cit., p. 15.
136
Entrevista com Elson Martins, revista Outras Palavras (2001), op. cit. p. 24.
82
O equívoco nas estratégias não deixou de trazer conseqüências negativas para
o avanço político do movimento, tendo em vista que algumas lideranças importantes
foram cooptadas para os quadros do PMDB, como o próprio presidente da Contag,
João Maia, o que implicou certa desmobilização, fazendo-se acompanhar de um
avanço dos interesses vinculados à concepção de desenvolvimento predominante,
como assinala o próprio Chico Mendes: “Se em Xapuri eles encontravam resistência,
no resto do Acre não acontecia o mesmo. O governo do PMDB, instalado no Acre a
partir de 1983, conseguiu cooptar a maioria das lideranças sindicais. Lideranças antes
combativas se atrelaram ao esquema do PMDB. Esvaziaram o movimento. O sindicato
de Xapuri não fez acordos espúrios, não traiu os seus compromissos com os
trabalhadores e ficou isolado
137
.
Entretanto, se as elites econômicas mais uma vez conseguem impor seus
interesses, a saída encontrada pela resistência, além de ampliar o arco das alianças ao
conquistar a adesão de grupos indígenas, levou a questão para além das fronteiras do
Acre, com a realização de um encontro nacional:
Para romper o isolamento, tornou-se preciso ampliar o movimento (...) A gente
tinha uma tradição de resistência contra o desmatamento, mas era necessário
esclarecer melhor porque a gente queria defender a floresta. Dessa
necessidade de ampliar o movimento, surgiu a idéia do Encontro Nacional dos
Seringueiros. A adesão da antropóloga Mary Alegreti foi decisiva. Através dela
foram feitos muitos contatos, daí resultando os recursos financeiros para
patrocinar o evento (...) No mês de janeiro [de 1986, no ano seguinte ao do
encontro] uma comissão, de índios e seringueiros, foi a Brasília para levar suas
reivindicações. Estava selada a união dos povos da floresta. Tornava-se
indispensável definir melhor o que seria reserva extrativista e demonstrar a sua
viabilidade econômica.
138
2.3. Criação do PT e a busca de consolidação política
O início da década de 1980, com o lento processo de abertura política
sinalizado a partir de 1974, traz novas possibilidades para a expressão cultural. A
reforma partidária ocorrida em 1979 supera a situação de bipartidarismo, permitindo a
formalização de outras siglas. É nesse momento que surge o Partido dos
Trabalhadores, dividindo com o PMDB grande parte das correntes de oposição ao
regime militar e os segmentos mais críticos no campo da produção cultural e do debate
social. A mesma tendência se repete com a criação do PT no Acre, em 12 de março
de 1980. O conjunto do movimento dos trabalhadores extrativistas passa a também ter
137
Pedro Vicente Sobrinho (2006), op. cit., p. 42.
138
Ibid., p. 42 – 43.
83
representação nos quadros do partido, que abriga grande parte das lideranças ligadas
aos diversos organismos de luta criados até então. Além disso, acompanhando uma
das marcas do PT nacional, a participação da Igreja Católica foi determinante para o
surgimento e fortalecimento da sigla no Acre, como aponta Fernandes:
139
É a partir dos sindicatos rurais e das comunidades de base, tanto da área rural
como da urbana, que se começa a tecer o encaminhamento para a formação do
PT no Estado... Era comum, no período, um grupo de pessoas num mesmo
espaço físico realizarem, sucessivamente, uma reunião de evangelização, outra
para tratar dos assuntos do sindicalismo e, logo em seguida, uma outra para
discutir a organização do PT.
Também como marca mais geral do partido, sua configuração no Acre é
caracterizada pela coexistência de várias tendências internas, dentre as quais se
destacam: a) a corrente majoritária ligada ao movimento das CEBs, articulando
discurso político e evangelização; b) a corrente formada pelos integrantes do PRC
140
,
que manteve uma linha mais à esquerda, abrigando os principais nomes do
sindicalismo acreano, como Chico Mendes, Marina Silva, Arnóbio Marques (atual
governador), Elder Andrade de Paula (professor e pesquisador da UFAC aqui
referenciado), entre outros; c) corrente alinhada com a Organização Internacionalista,
Fração da Quarta Internacional, composta principalmente pelo movimento estudantil,
também denominado Libelu, de orientação trotskista; d) por fim, a linha dos
“independentes”, que não se vinculavam a nenhuma das outras correntes internas. É
neste grupo que, somente a partir da década de 1990, entram em cena Jorge Viana e
Sebastião Viana (Tião Viana), tendo o primeiro ocupado o importante cargo de Diretor
da Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac) no governo do peemedebista Flaviano
Melo (1987 – 1989).
A história da criação e consolidação do PT no Acre traz na sua gênese o vínculo
com os movimentos sociais, à época em plena atuação tanto nos espaços rurais
quanto urbanos. De acordo com Sant’Ana Júnior
141
, neste contexto surge uma
sociedade acreana cada vez mais complexa, na qual “movimentos sociais e sindicais
urbanos, bem como grupos de pessoas mais intelectualizadas, advindas da
universidade, buscam interferir nas várias instâncias que, inter-relacionadas, vão
definindo e redefinindo os rumos do estado e da Amazônia como um todo”. Uma vez
139
Marcos Inácio Fernandes, O PT no Acre: a construção de uma terceira via. Natal: UFRN, 1999,
(Dissertação de Mestrado), p. 62.
140
Partido Revolucionário Comunista.
141
Horário Sant’Ana Júnior, Florestania a saga acreana e os povos da floresta. Rio Branco: Edufac,
2004, p. 208.
84
formadas as alianças capazes de constituir um bloco político, o direcionamento dado
ao conjunto dessas forças age no sentido de atribuir expressão eleitoral a visões e
projetos considerados progressistas no âmbito das organizações da sociedade civil. Os
anos 1980 marcarão, pois, a busca de afirmação do PT nas disputas eleitorais.
Como referenciado acima, a produção cultural do período torna-se mais
diversificada, seja na música, na literatura ou no teatro, com a busca de novas formas
de expressão artística. A preocupação com a definição de uma identidade cultural do
homem amazônida vai ganhando tonalidades cada vez mais sintonizadas com o
debate das problemáticas sociais. Essa articulação com referenciais da cultura e da
luta extrativista pode ser percebida, por exemplo, nestes versos, de 1982, do poeta
Naylor George
142
:
Linguajar matuto, mas puro e forte
Caminhar arisco, ligeiro e veloz
Gestos precisos no talho e no corte
O passar do tempo não lhe cala a voz
.
Nessa etapa da organização de um pensamento mais crítico acerca das questões
regionais, os jornalistas Elson Martins, Antônio Alves – que passara a integrar a equipe
do Varadouro e os demais membros da equipe seguem, de um lado, sua atuação na
imprensa, assegurando expressão às vozes do movimento e o combate ao modelo de
desenvolvimento baseado na pecuária, mas agora com participação em outros
veículos de comunicação, além do Varadouro, que encerra sua trajetória em 1981.
Segundo relatam os integrantes da equipe do jornal, com a abertura política os demais
jornais aventuram-se em temáticas consideradas tabus, que até então tinham sido
especialidade do Varadouro. Por outro lado, esses jornalistas atuam também como
intelectuais orgânicos do PT, não no trabalho de unificação ideológica, mas na
estrutura partidária e na militância, função desempenhada mais diretamente por Alves.
Tornou-se conhecido o episódio em que esse jornalista foi demitido de suas funções de
cronista no jornal O Rio Branco, em 1988, após publicar que considerava psicopata
quem derrubava e queimava dois mil hectares de floresta para formar pastagens. O
jornal havia sido recém comprado pelo empresário Narciso Mendes e era administrado
por seu irmão, Naildo Mendes, um dos maiores pecuaristas da região, que havia
desmatado a mesma área de floresta à época. De acordo com o jornalista, embora não
142
Naylor George, A décima quinta lembrança, apud Silva, Laélia, op. cit., p. 197.
85
tenha se referido diretamente este caso, ao saber da publicação Narciso Mendes teria
se dirigido a Alves nos seguintes termos, conforme publicado por Altino Machado
143
:
- Vou mostrar para você como sei mandar no que é meu. Tire a sua bunda de
cima da mesa e vá embora daqui, agora - ordenou, dedo em riste.
Ao que o jornalista teria respondido:
- O senhor deve conhecer a seguinte frase de Victor Hugo: "O valor de uma
pessoa não se mede pelos ambientes que ela freqüenta, mas pelos ambientes
que ela se recusa a freqüentar". Saiba que enquanto o senhor for dono deste
jornal, minha bunda não sentará mais sobre suas mesas - rebateu Toínho que,
enquanto se levantava, batia as mãos nos fundilhos e se retirava da redação.
A seqüência teria sido uma avalanche de impropérios e tentativa de agressão física
contra o jornalista. Como Alves também era cronista da estatal TV Aldeia, subordinada
ao governo de Flaviano Melo, minutos após a discussão o empresário estava no
gabinete do governador, exigindo a demissão Alves também da estatal. O pedido, no
entanto, teria sido negado pelo então diretor da emissora, o jornalista Elson Martins,
que assim narra o fato a Alves:
- estou sabendo o que aconteceu, Toínho. O Flaviano está reunido com o
Narciso Mendes. Telefonou e já falei que não vou censurá-lo. Ele sugere apenas
para você maneirar na crônica
144
.
Durante a década de 1980, mesmo dispondo de relativos espaços de divulgação
de suas idéias, nos embates eleitorais o PT não conquistou posições importantes:
elegeu uns poucos vereadores e um deputado estadual, em 1982, que abandona o
partido em 1985. A década é marcada pela hegemonia política do PMDB, que ocupa o
governo estadual em 1982 e 1986. Em 1988, com a abertura para eleições diretas
também na esfera municipal, o PDS conquista a prefeitura da capital. Além da situação
eleitoral desfavorável, o PT e o movimento como um todo perdem muitas lideranças,
cooptadas pelos governos do PMDB.
Contudo, o fortalecimento do movimento no campo é um fato e sua atuação
consegue interferir nas políticas de governo (estadual e federal) e no modelo de
desenvolvimento em curso, na proporção em que passa a denunciar nas organizações
multilaterais de financiamento como, BIRD e BID, as conseqüências ambientais e
sociais de seus investimentos na Amazônia, conforme narra Chico Mendes:
143
Altino Machado, “É preciso resistir”, publicado em 27 de agosto de 2006,
http://altino.blogspot.com/2006/08/preciso-resistir.html.
144
Altino Machado, Ibid.
86
Na primeira viagem ao exterior aproveitei para denunciar as políticas ditas de
desenvolvimento na Amazônia (...) Essas denúncias eu fiz em Miami e na
Flórida e depois no Congresso Americano em Washington. A repercussão foi
muito grande, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. No Brasil também se
falou muito. A força de minha denúncia me levou a receber o prêmio Global 500,
da ONU, no dia 6 de julho [de 1987] em Londres. No dia 21 de setembro recebi
em Nova York a medalha da Sociedade para um Mundo Melhor. No dia 22 de
setembro, tive minha primeira audiência com os diretores do Branco
Internacional de Desenvolvimento. Falei da ruína que haviam causado com a
aprovação de determinados projetos, sem que as pessoas envouvidas fossem
escutadas (...) Falei que se a intenção era levar o desenvolvimento para os
povos daquela região, o que aconteceu foi exatamente o contrário. A partir daí,
me parece, nasceu a idéia de se criar uma comissão de ambientalistas para
opinar sobre projetos destinados à Amazônia.
145
A repercussão internacional das denúncias feitas por Chico Mendes foi
acompanhada, de início, pela suspensão temporária dos financiamentos para diversos
empreendimentos na região. De maneira correlata, a prudência adotada pelos
governos federal e estaduais em relação à questão ambiental não deixaram de frustrar
muitos e grandes interesses. A ação de fazendeiros e madeireiros nas disputas contra
o movimento extrativista agora associado nacional e internacionalmente aos valores
do ambientalismo muda claramente de estratégia. No lugar da pressão e ameaça a
famílias de seringueiro, prioriza a identificação e eliminação das principais lideranças
do movimento. É essa estratégia que norteia o assassinato de Chico Mendes, no
quintal de sua casa, em 22 de dezembro de 1988, há exatos 20 anos.
2.4. Frente Popular do Acre: unificação política e identidade cultural?
O assassinato de Chico Mendes causa enorme impacto nos movimentos sociais
tanto no campo quanto na cidade, uma vez que havia se tornado uma referência
central na concepção e organização da resistência. Sua morte, no entanto, pela
repercussão nacional e internacional e pela imediata mitificação de sua imagem, foi
habilmente convertida em força política e elemento gerador de novas adesões. Nas
eleições de 1990, o PT liderou a formação de uma aliança que ficou conhecida como
Frente Popular do Acre (FPA), integrada pelo PT, PCB, PC do B, PDT e PV, que
lançam Jorge Viana como candidato a governador. Vale registrar que nesse momento
o partido representa, tanto no âmbito da disputa política quanto da expressão cultural,
o ponto de convergência de uma identidade apoiada nas lutas e nas conquistas em
curso, atuando como uma espécie de catalisador das demandas do campo e da
cidade.
145
Pedro Vicente Sobrinho (2006), op. cit., p. 44 - 45.
87
A escolha de Viana para concorrer ao cargo de governador do estado não foi das
mais pacíficas dentro do movimento, tendo em vista o fato de não ter integrado o
movimento contra os fazendeiros durante a década de 1980, como grande parte dos
demais envolvidos, o que gerava certa desconfiança. Além disso, Jorge Viana era
originário de uma família de tradição conservadora com vínculos diretos com o regime
militar, tendo o pai, Wildi Viana, sido deputado estadual pela Arena nos “anos de
chumbo” da ditadura e o tio, Joaqui Macedo, ocupado o último mandato de governador
nomeado pelo regime no estado, entre 1979 e 1983. De acordo com artigo publicado
por Altino Machado em que aborda a polêmica sobre a abertura dos arquivos secretos
da ditadura:
O nome do ex-deputado Wilde Viana das Neves, pai do governador Jorge Viana
e do senador Tião Viana, está na lista de 28.555 nomes citados nos documentos
dos extintos Serviço Nacional de Informação (SNI), Conselho de Segurança
Nacional (CSN) e Comissão Geral de Investigação (CGI). Na lista aparecem
ainda os nomes dos ex-governadores José Augusto de Araújo (falecido), Jorge
Kalume e Joaquim Falcão Macedo, tio de Jorge e Tião Viana, além do ex-
deputado Nosser Almeida Tobu. Jorge Kalume, Wilde Viana, Joaquim Macedo e
Nosser Almeida foram aliados do regime militar no Acre
146
.
Somando-se a isso o fato de Jorge Viana ter integrado o governo de Flaviano
Melo, PMDB, numa administração marcada por escândalos de repercussão nacional e
suspeitas de corrupção, o nome de Viana figurava como algo estranho ao contexto das
mobilizações de então. De acordo com Arnóbio Marques
147
, atual governador do Acre,
“a candidatura [de Jorge Viana] nasceu de um pequeno grupo de militantes egressos
do PCR e da LIBELU, que conseguiram convencer a direção do PT a aceitar sua
filiação e lançar sua candidatura ao governo”. Pelos vínculos até então manifestos, não
seria absurdo imaginar nessa composição com os Viana o início de uma tentativa de
conciliação de duas visões até o momento antagônicas, a desenvolvimentista e a
preservacionista.
Vale registrar que, ainda em 1986, Flaviano Melo apresentara a proposta de um
modelo de produção baseado em sistemas agroflorestais, numa espécie de consorcio
de diferentes culturas com a permanência da floresta, incorporando o discurso da
sustentabilidade, numa evidente tentativa de demonstrar preocupação com questões
da pauta ambiental. Como sustenta o próprio Flaviano,
148
146
Altino Machado, “Arquivo Secreto”, publicado em 19 de novembro de 2005:
http://altino.blogspot.com/2005/11/arquivos-secretos.html
.
147
Horácio Sant’Ana Júnior (2006), op. cit., p. 236.
148
Mensagem Legislativa n° 3, de 15 de fev. de 1990.
88
Uma das bandeiras do meu governo foi o desenvolvimento com preservação
ambiental, preocupamo-nos desde o primeiro instante em definir para o Acre um
modelo de desenvolvimento que levasse em conta suas aptidões e sua vocação
agro-florestal, para que suas riquezas venham a ser exploradas de forma
ordenada e racional.
Embora a proposta de Flaviano não tenha saído do papel, Viana trazia a
experiência de sua elaboração, como membro do governo, e buscaria atualizá-la no
seu esforço de conciliação das duas visões, embora o discurso de conservação,
associado à valorização da identidade e da cultura extrativista, tenha recebido enorme
ênfase, sobretudo para efeito de capitalização eleitoral do prestígio alcançado pelo
movimento de seringueiros. O acionamento de estratégias de identificação foi
essencial nessa fase da disputa, marcando a preocupação de associar politicamente
os valores de pertencimento ao lugar e suas peculiaridades ao grupo político que se
apresentava como seu defensor. De acordo com Fernandes,
A Frente Popular, com Jorge Viana, apresentou um Plano de Ação de Governo,
mostrando alternativas econômicas para a crise do extrativismo e, como slogan
de campanha, cunhou a frase: “O Acre tem jeito”. O PT e a Frente resgataram o
verde-amarelo da bandeira acreana, bem como o seu hino, onde o trecho
falava: “Mas se audaz estrangeiro algum dia/ Nossos brios de novo
ofender/ Lutaremos com a mesma energia/ Sem recuar, sem cair, sem
temer...” era entoado com mais ênfase, fazendo-se uma analogia com o
“estrangeiro” Rubem Branquinho [candidato da UDR opositor de Viana]. A
estrela vermelha da bandeira acreana, que simboliza o sangue dos heróis da
“Revolução Acreana”, era confundida com a estrela, também vermelha, do PT
que, naquela campanha, não perdia a oportunidade de reverenciar os seus
mártires, como Chico Mendes e Wilson Pinheiro, símbolos da resistência aos
pecuaristas forâneos que se instalaram no Acre com suas fazendas e que
naquela oportunidade ousavam disputar, através de um de seus candidatos, o
poder político local.
149
A campanha mobilizou intensamente os símbolos de identificação local, como
sublinha Fernandes, aliando-os ao discurso ambientalista, sem deixar de atualizar a
ameaça representada pelos “de fora”, no caso do candidato não acreano da UDR.
Apesar de ter levado a eleição para o segundo turno, o candidato do PT perde
para Edmundo Pinto, do PDS, que também adotara um discurso ufanista em sua
campanha. Entretanto, no legislativo, a FPA consegue eleger três deputados
estaduais, sendo dois do PT, entre eles Marina Silva, e um do PC do B. É significativo
registrar que, no segundo turno, a coalizão liderada pelo PT contatava com o apoio
do PSDB e de parte do PMDB.
Após esse pleito, os ideólogos do partido passam a operar uma sistematização
maior das temáticas sócio-ambientais, que ganham a forma de um conjunto de
149
Marco Fernandes (1999), op. cit., p. 129.
89
propostas para ações políticas nos embates eleitorais. As questões ligadas à temática
ambiental e às populações tradicionais recebem tratamento mais objetivo e
esquemático. Fica manifesto o papel que certos intelectuais orgânicos
desempenharam enquanto elaboradores de estratégias de unificação dos discursos e
valores escolhidos como pilares do projeto em construção. O jornalista Antônio Alves
reconhece a mudança na orientação de seu trabalho no decorrer da cada de 1990,
quando registra:
Permaneci jornalista por algum tempo, no telejornal da TV Educativa, mas o
trabalho sócio-ambiental nas ONGs e a luta política me absorveram cada vez
mais. Na década de 90 falei muito e escrevi pouco. Dizendo melhor: reduziu-se
minha produção pessoal, porque passei a redigir o texto coletivo da política.
Manifestos, programas, discursos, projetos, análises... não faltaram motivos
para virar noites diante de computadores
150
.
Ilustra bem essa fase de engajamento o texto que escreveu em co-autoria com
Jorge Viana, ainda em 1991, com o objetivo de chamar a atenção da direção nacional
do PT para a realidade acreana e as possibilidades geradas pelo grau de articulação
dos movimentos sociais ali verificadas. À época publicado na revista Teoria & Debate,
o texto alerta para o crescimento eleitoral do PT acreano, com sua participação no
segundo turno das eleições estaduais, procurando colocar as experiências daquela
realidade como referenciais a serem considerados pela direção nacional na
reformulação das diretrizes do partido:
As eleições estaduais de 90 mostraram a necessidade de entrar em
particularidades regionais. No necessário estudo de cada caso, podemos expor
aquele que conhecemos, o do Acre. Um lugar que a maioria das pessoas tem
dificuldade para localizar no mapa (...) pode ter alguma importância na definição
da estratégia e dos referenciais teóricos do PT? O Acre é um caso internacional.
O que acontece em Xapuri pode ser notícia em Nova Iorque, afetando relações
diplomáticas e financeiras. (...) Finalmente, interessa ao PT a temática básica
que o caso do Acre revela e releva: a relação entre desenvolvimento econômico
e meio ambiente
151
.
O texto segue expondo as peculiaridades dos movimentos sociais e a intervenção da
sociedade civil nas questões políticas e sócio-econômicas, com um histórico da crise
do extrativismo, das políticas desastrosas dos governos militares para Amazônia e o
surgimento da questão ambiental vinculada à luta de índios e seringueiros. Mas é
importante observar nesse trecho o apelo à projeção externa como uma forma de
vincular o reconhecimento e a articulação positiva do Acre à política nacional.
Seguindo a estratégia de valorização sociocultural, merece atenção a explicitação dos
150
Antônio Alves (2004), op. cit., p13.
151
Antônio Alves e Jorge Viana, A república do Acre, in. Alves, Antonio (2004), Op. cit., p. 19.
90
procedimentos apontados como responsáveis pelo crescimento eleitoral nas eleições
do ano anterior:
No caso do Acre, as particularidades locais, além de tudo, deram origem a um
forte sentimento regionalista. Ele foi um dos elementos centrais da campanha do
PT no ano passado. Reconhecê-lo como um legítimo sentimento de defesa, de
afirmação da identidade cultural, não foi tarefa difícil por um motivo simples: ele
está na base da resistência que o povo acreano opôs à UDR e ao modelo
baseado na pecuária.
152
A estratégia adotada para a construção de uma identidade política do grupo,
bem como a constituição de quadros referenciais para a alimentação do imaginário
social, parece ir se delineando progressivamente. Aquela busca constante de
valorização de traços locais associada ao desejo de reconhecimento externo, iniciada
ainda em 1903 com a incorporação territorial ao Brasil, é reatualizada com todo vigor e
sistematicamente canalizada para fins eleitorais. Não deixa de ser curioso notar que a
invocação do olhar externo – neste caso atenção do PT nacional – figura como
mecanismo de reconhecimento dessa experiência apontada como singular. É como se
a identidade (em sua diferença) precisasse ser validada e reconhecida pelo outro, por
meio do contraste, reclamando valorização. É evidente que em termos eleitorais tal
valorização representa benefícios consideráveis, na medida em que vem ao encontro
de uma demanda histórica por esse reconhecimento. E, além disso, consagra
internamente os agentes apontados como os responsáveis por essa projeção externa
mediante a sedução do olhar dos “de fora” (os também “paulistas” da direção nacional
do PT).
As formulações parecem ter encontrado solo rtil no imaginário dos rio-
branquenses, pois, nas eleições municipais de 1992, uma reedição da FPA,
novamente liderada pelo PT, elege Jorge Viana para prefeito da capital, desta vez com
o PSDB integrando formalmente a coligação.
A conquista da Prefeitura Municipal de Rio Branco possibilita maior acesso aos
meios de comunicação blicos e privados, o que facilita a difusão do ideário e da
“estética petista” nos demais municípios acreanos a partir da capital. Da condição de
intelectual orgânico do PT, Antônio Alves passa a ocupar o cargo de presidente da
Fundação Municipal de Cultura, mas sem abandonar sua função de organizador e
articulador político junto ao núcleo ligado à tradição dos movimentos sociais rurais e
urbanos das décadas anteriores. Não é por acaso que sobre Alves recai a
152
Ibid., p. 28.
91
responsabilidade de organizar e sistematizar a primeira reunião de trabalho da nova
equipe da administração municipal. No texto “Hoje vamos ter uma conversa” ele expõe
as principais preocupações que devem orientar o trabalho da equipe:
Ganhamos. Derrotamos a pressão contínua do PDS e o susto que o PMDB nos
deu na última hora, atravessamos o período de campanha como quem percorre
um corredor polonês e chegamos ao final vitoriosos. Comemoramos, recebemos
mil abraços e cumprimentos e festas. Foi ótimo. Mas e agora? Agora temos a
responsabilidade de administrar a vida de um município, capital do Acre, no qual se
concentra a metade da população do estado. Existem vários tipos de expectativa em
torno de s. Uma parte da população quer que façamos "uma boa administração"
protegendo seus bens, sua segurança, melhorando a cidade e o atrapalhando seus
negócios. É o pessoal que acha o Jorge Viana um bom rapaz mas tem medo do PT,
porque adquiriu certas facilidades e não quer perder. Sente-se ameaçada pela
violência urbana e acha que "alguém tem que dar um jeito nisso". Esse alguém
somos nós. outra parte da população quer que façamos uma administração
não apenas boa, mas milagrosa. Quer que alguém a salve da miséria e do desespero
em que vive. Há outras atitudes: a indiferente, que espera pelo momento de dizer "eu não
disse? são todos iguais"; a oportunista, que acha que o PT não pode ser tão honesto
assim e não vê a hora de conseguir uma boquinha; e a inimiga, que vai trabalhar por
nosso fracasso aberta ou veladamente, dependendo da situação. (...) Durante a
campanha dizíamos que era proibido usar o slogan "agora é a nossa vez", porque poderia ser
entendido dessa forma: o PMDB roubou, o PDS roubou, agora é a vez do PT. Mas estar
ocupando cargos e obtendo facilidades, ter gente nos abrindo a porta em todos os lugares,
trocar o frango do Casarão pelo filé do Aeroporto, comprar finalmente um carro e, enfim, ser
uma grande e barulhenta família que daqui a quatro anos vai lutar para não perder "a vez",
tudo isso é também uma forma de roubar. Temos que ter a consciência de que a nossa pior
derrota seria fazer uma "boa administração" sem mudar a realidade social que nos cerca (...)
A honestidade é obrigação básica, não é programa de governo. E nós precisamos de um
programa, um norte, um rumo que possa ser seguido, uma déia para tornar real.
Precisamos ser muito práticos para dar respostas concretas a problemas
concretos. Mas justamente por isso, precisaremos mais do que nunca da utopia. Não
podemos nos esquecer do nosso sonho, não podemos desistir de batalhar para realizá-lo.
Nosso sonho dura mil anos e envolve todos os habitantes da Terra.
153
O texto expõe, no seu conjunto, os diversos problemas pelos quais passa a
cidade de Rio Branco, item a item, e encerra afirmando a necessidade de ampliar as
parcerias com as demais prefeituras, reconhecendo a exigüidade de quatro anos para
tratar de tantos problemas. Não deixamos de perceber, ainda, aquele traço que
passará a integrar o discurso desse grupo político doravante, vindo a ser largamente
incorporado por alguns setores da mídia local: a construção de uma imagem do Acre, a
partir das experiências extrativistas, como uma “comunidadeamplamente qualificada
a se colocar para “os de fora” como referência de sociabilidade e equilíbrio ecológico,
tal como se verificou, por exemplo, na epígrafe que dá início a este trabalho. Essa
tendência pode ser lida como uma constante no quadro de demanda por
reconhecimento que alimentará essa formação discursiva.
153
Antônio Alves (2004), op. cit., p. 37-38.
92
Dois anos depois das eleições municipais que elegeram Jorge Viana, ocorrem,
em 1994, eleições para governador, deputado estadual e federal, senador e presidente
da República. Apesar dos esforços, a FPA o consegue eleger Tião Viana, irmão de
Jorge Viana (então prefeito) para o governo do Acre, mas obtém uma enorme
vantagem elegendo Marina Silva para o Senado Federal e levando para a esfera
nacional a imagem da primeira seringueira a ocupar uma cadeira de senadora, de
prometendo dar voz e visibilidade à causa dos trabalhadores da floresta e da
preservação do meio ambiente.
Mais uma vez, durante o período eleitoral, coube a Alves a tarefa de refletir sobre
a conjuntura sociopolítica do Acre, procurando identificar os impasses e os elementos
favoráveis, os recursos de que o grupo dispunha. O PT encontrava-se aturdido pela
esmagadora vitória de Orleir Cameli para o governo do estado, eleito pelo PPR, um
partido considerado pequeno dentre os consolidados nas disputas locais. Chegava
ao governo um ex-seringalista, latifundiário, pecuarista e um dos controladores do
transporte hidroviário no município de Cruzeiro do Sul, segundo mais populoso do
Acre, porém sem qualquer ligação com o resto do mundo por via terrestre, a não ser
durante três meses por ano, no chamado verão amazônico, entre os meses de junho e
setembro. Cameli vence a eleição sem muito esforço, apenas com a promessa de
construir definitivamente a estrada que liga a capital a Cruzeiro do Sul, livrando o
município, assim como os demais que o circundam, do isolamento a que sempre foi
submetido. A vitória é vista pelo PT como um inequívoco avanço dos ruralistas no
Acre, com o risco, apontado por Alves, de “desempatar o jogo político-econômico-
social em favor da UDR”.
154
Ciente da reação conservadora, em texto intitulado “A Defesa Siciliana”, Alves
salienta a necessidade de intensificação da luta política e ideológica que deveria
marcar a atuação da FPA nos próximos quatro anos do governo de Cameli. Em sua
intervenção, não deixa de enfatizar os aspectos da identidade cultural como
instrumento poderoso na disputa, salientando ainda que a prevalência de um modelo
de desenvolvimento estranho a essa cultura implicaria violência não somente social,
mas sobretudo cultural. E acrescenta:
Aqui é necessária uma explicação: ao caracterizar o projeto adversário como
sendo da UDR e pecuário-madeireiro, ao mesmo tempo em que caracterizo o nosso
projeto como agroextrativista, não estou querendo fazer nenhuma redução
economicista. (...) Devemos ter sempre em mente que cada um desses projetos
154
Antônio Alves (2004), A defesa Siciliana. In: Alves, Antônio. Op. cit., p. 49.
93
provoca mudanças culturais, ou seja, modifica estilos de vida, hábitos, vies do mundo,
destinos. Nossa história mostra que as mudanças sócio-ecomicas dos últimos
25 anos apoiaram e foram apoiadas em mudanças culturais. O poder da televisão
é vivel. Existe uma ética e uma estética próprias em cada um desses projetos. Em
resumo, a batalha o é apenas ecomica ou política. A formação da consciência e
do inconsciente popular é, na verdade, o terreno onde ela acontece.
155
A consciência militante de Alves põe em relevo que a disputa travada no âmbito
sociopolítico é, antes de tudo, uma disputa entre formas de representação e, portanto,
por legitimidade de significados e visões de mundo. Por isso mesmo, a imperiosa
necessidade de alimentar o imaginário social com valores culturais associados ao
grupo que disputa contra a visão aentão hegemônica. Nos trechos seguintes essa
preocupação se torna bastante evidente, quando sustenta:
Nosso objetivo geral deve ser a criação de uma mentalidade coletiva favorável ao nosso
projeto. Não uso a palavracidadania porque, como o nome mesmo diz, é coisa de gente da
cidade. Cidadania é um objetivo restrito, no nosso caso. Ela depende dos direitos garantidos
pelo arcabouço institucional e é, portanto, apenas uma parte de nosso projeto. Nosso trabalho
deve visar uma mudança na ética e na linguagem, ou seja, nos elementos centrais do padrão
civilizatório. (...) Devemos ter um manejo adequados dos símbolos da democracia e da
conservação ambiental, para fugir da armadilha que é a falsa oposição entre progresso e
floresta, na qual temos frequentemente caído.
Trata-se de um texto de outubro de 1994, portanto quatro anos antes da conquista do
governo do estado pelo PT. No entanto, se vêem ali delineados, de forma bastante
sistematizada, os elementos estruturais do conceito de florestania. Percebe-se a
consciência de que a proposição e a fixação de novos significados passam pelo
domínio da linguagem, pela capacidade de (re)nomear o mundo e de legitimar esses
significados mediante sua incorporação pela coletividade. A importância dessa
capacidade de nomeação será retomada adiante quando analisarmos as
denominações adotadas para práticas apresentadas com sustentáveis pelo Governo
da Floresta.
O esboço do conceito de florestania no manejo dos recursos simbólicos aponta
para a tentativa de conciliação entre conservação e geração de riquezas, que virá a
ganhar formas mais precisas com a chegada do PT ao governo. A conquista do
governo é a finalidade premente no avanço do projeto de hegemonia do PT acreano,
como reconhece Alves
156
: “Objetivamente, não há como negar que a conquista do poder de
Estado é a medida imediata do avanço, nosso ou deles. (...) Nosso horizonte visível é a eleição
estadual de 1998. Todos os nossos movimentos devem ser nessa direção.
155
Antônio Alves (2004), Ibid., p. 50.
156
Ibid. p. 51.
94
O intelectual observa que apesar de todo o acúmulo de experiências e do reconhecimento
da tradição de luta que o grupo, no seu conjunto, representa, a linguagem empregada no
tratamento dos problemas e das propostas não tem sido eficaz na tarefa necessária de converter
tal reconhecimento em expressão eleitoral. Nesse ponto, chama a atenção para o poder da
comunicação de massa e o uso adequado de uma linguagem que mobilize os símbolos e signos
da cultura local:
É essencial compreender a importância que tem a resistência cultural,
especialmente a comunicação. A eleição da qual acabamos de participar
mostrou que nem mesmo o reconhecido bom desempenho na administração de Rio
Branco foi capaz de nos dar os votos que precisávamos. Por quê? Porque não há
associação adequada entre a imagem do prefeito e da prefeitura, entre a prefeitura e
o partido, entre a rua pavimentada e o candidato, entre a honestidade e a
administração. (...) é importante perceber que elas [as associações ou dissociações]
são produzidas pelas várias agências ideológicas que atuam em nossa cultura:
estado, igrejas, associações, partidos, falia, bar, sindicato, arte, corcio e muitas
outras, mas principalmente, pelos meios de comunicação.
A análise manifesta plena ciência do papel das várias “agências ideológicas” que
podem concorrer para a geração de identificações entre os membros de uma
coletividade, resultando em adesões e, principalmente, em votos. O destacado papel
conferido aos meios de comunicação nos processos de construção e socialização de
significados sociopolíticos e, sobretudo, nas disputas eleitorais condiz precisamente
com a tendência, apontada no capítulo anterior, de convergência, para a mídia,
daqueles processos tradicionais de mediação lembrados por Alves no trecho acima.
Tal observação reveste-se de enorme pertinência quando verificamos que, apesar do
papel de liderança do PT dentro da FPA, sem as alianças ele não consegue se impor
eleitoralmente, o que demonstra, de uma certa forma, a perda de força agregadora do
partido, gerando a necessidade de acordos muitas vezes imprevisíveis, como é ocaso
de PT e PSDB no contexto local, mas sobretudo nacional. Além disso o que reforça
ainda mais a tendência apontada –, quanto mais partidos agrupados numa mesma
coligação, maior o tempo de exibição dos candidatos nos espaços da mídia. Esta
parece ser a percepção de Alves ao colocar a importância da comunicação:
Entre as coisas importantes que devem ser organizadas urgentemente: o escritório local
da senadora, um instituto de estudos e pesquisas e uma central de comunicações. Essas
estruturas seo instâncias de coordenação, referências centrais para as outras
instâncias e geradoras de informação pública. (...) Podemos pensar num tablóide
semanal, com noticiário geral, mas voltado principalmente para a política e com
uma linha editorial fortemente opinativa. Potencial? Em 1977 o Varadouro
chegou a vender 5 mil exemplares. Um programa semanal de televisão será
necessário para veicular nossa estética, paisagem, opinião, valores, música.
Qualquer 5% de audiência representa hoje um público que nenhum comício
95
pode reunir. Um programa de rádio poderia falar para o interior e a periferia da
capital, alcançando um público do qual temos estado distantes.
157
O texto apresenta um verdadeiro programa de comunicação que leva em
consideração as novas fórmulas do marketing político adaptado às transformações da
esfera blica e da política, com a inserção das tecnologias de comunicação. Sem
deixar de reconhecer a importância dos microterritórios do cotidiano, parece estar claro
para esses agentes que os antigos debates face-a-face e as velhas formas de
argumentação em público agora só ganham abrangência nos espaços midiáticos.
Seguindo sua análise da conjuntura, num rápido levantamento dos recursos
disponíveis para os enfrentamentos eleitorais futuros 1996 e 1998 –, Alves lista
aqueles com que o grupo pode efetivamente contar:
A prefeitura de Rio Branco, a estrutura do PT, as organizações civis (sindicatos,
cooperativas, associações, entidades), dois deputados estaduais, vereadores na
capital e no interior, mandato [de Marina Silva] no Senado. Se tudo isso funcionar
coordenadamente, com o atrito interno reduzido ao nimo, teremos uma chance.
158
Entretanto, apesar de toda essa estratégia política e comunicacional, além dos
altos índices de popularidade, as expectativas não se confirmam e, nas eleições
municipais de 1996, Jorge Viana não consegue eleger seu sucessor na prefeitura da
capital. O PT conquista três prefeituras no interior, dentre elas a de Xapuri, com o ex-
seringueiro Júlio Barbosa. A derrota na capital, entretanto, representa um abalo
gigantesco nos planos de conquista do governo do estado dali a dois anos, tendo em
vista que a vitória, além de fortalecer politicamente a aliança liderada pelo PT,
colocaria a máquina administrativa a serviço do embate maior ainda por vir.
O candidato do PT à prefeitura da capital era o então vereador Marcos Afonso,
egresso dos quadros do PC do B, e disputava com Mauri Sérgio, do PMDB. Pesquisas
eleitorais apontavam uma margem de doze pontos de diferença do petista sobre seu
adversário, mas a contagem efetiva dos votos não confirmou essa tendência, dando a
vitória a Mauri por sete pontos de diferença. A explicação apontada pelo PT para uma
derrota tão inesperada era a de fraude eleitoral. Acusava o PMDB e seus aliados de
terem gasto algo em torno de R$ 900 mil em compra de votos no dia da eleição.
Entretanto, outras versões apontam para a falta de coesão na própria FPA, causada
pela concentração de cargos importantes no PT durante a administração de Jorge
Viana, assim como possíveis atitudes de autoritarismo e arrogância na relação com os
157
Ibid., p. 51-52.
158
Ibid., p. 52.
96
demais partidos da aliança e com os funcionários públicos municipais. É fato, por
exemplo, que nessa eleição PSDB, PDT e até PC do B rompem com o PT, tendo os
comunistas, inclusive, lançado candidatura própria. De acordo com algumas análises,
com a intenção clara de prejudicar a candidatura de Marcos Afonso, egresso do PC do
B e, por isso, considerado “traidor” pelos comunistas.
É com esse quadro fragmentário e enfraquecido que o PT de Jorge Viana ruma
para as eleições estaduais de 1998, com seus adversários políticos o acusando de ter
somente maquiado os problemas estruturais da capital acreana.
2.5. O Triunfo da florestania e o Governo da Floresta
Após a surpresa na eleição municipal de 1996, que politicamente figurava mais
como uma derrota de Jorge Viana do que propriamente do candidato Marcos Afonso, o
grupo, no entanto, preservou a rmula de representar para o conjunto da população a
condição de herdeiro e continuador da tradição de luta e de porta-voz de uma cultura
genuinamente acreana, tributária das chamadas “populações tradicionais” e dos
movimentos sociais por elas constituídos.
Todavia, como a disputa anterior havia demonstrado, a composição sociocultural
da população do estado era bastante diversificada e, a depender da região, certos
apelos discursivos tinham boa receptividade, outros não. A relação com a tradição
extrativista e com o movimento de seringueiros, por exemplo, fazia mais sentido nas
comunidades onde se desenrolaram os confrontos, ou seja, no Vale do Acre, naqueles
municípios do entorno da capital, como Brasiléia, Xapuri, Sena Madureira etc. Na
região do Vale do Juruá (municípios que orbitam a cidade de Cruzeiro do Sul, segundo
maior colégio eleitoral do estado), onde o isolamento é uma das principais dificuldades
para melhoria da qualidade de vida condição que alimenta a formação de cartéis
pelas oligarquias locais, detentoras dos sistemas de transporte hidroviário e aéreo, o
que também facilita o monopólio na distribuição e comercialização de produtos
industrializados e hortifrutigranjeiros a tônica de qualquer candidato ao governo não
poderia passar ao largo da promessa de construção definitiva da rodovia, no trecho de
672 km da BR-364 que liga Cruzeiro do Sul à capital. Assim, para fins estritamente
eleitorais, não se pode ignorar a necessidade da constituição de alianças com as elites
econômicas dessas várias regiões, o que garantiria apoio político (diretamente
traduzível em votos) e financeiro.
97
Foi exatamente a isso que se dedicou o candidato da FPA ao governo, Jorge
Viana. Percorreu todos os municípios do estado, articulou alianças com os mais
diversos setores e comunidades, o que resultou, em termos formais, numa coalizão de
doze partidos, aglutinados na Frente Popular do Acre, tendo como vice da chapa o ex-
governador pelo PMDB, Edison Cadaxo, que fora vice no governo de Flaviano Melo,
assumindo o cargo quando este se afastou para concorrer a uma vaga do Senado nas
eleições de 1990. Em 1998, entretanto, Cadaxo pertencia ao PSDB, o que causou
espanto e certos embaraços em esfera nacional, dada a grande rivalidade que
vigorava entre PT e PSDB. De acordo com o próprio Jorge Viana
159
: "Não tinha como
governar o Acre se não houvesse uma aliança com setores até mesmo conservadores,
mas que têm dignidade e não estavam ligados ao crime organizado. Fizemos uma
opção de, sem abrir mão dos princípios, fazermos uma aliança ampla. Não
descaracterizamos a administração do PT”.
Nos dois anos que precederam a eleição após a perda da prefeitura da capital,
durante a campanha eleitoral, o esforço de associação do candidato do PT a valores
ufanistas e uma certa memória histórica oficializada torna-se claro. O Hino Acreano
transforma-se praticamente no hino de campanha dos candidatos da coligação e a
bandeira do estado ganha equivalência à bandeira do PT, tal a associação com os
símbolos oficiais. As principais figuras e lideranças da FPA são apresentadas como
herdeiras da luta de um povo em busca de sua tradição, de seus direitos, enfim, de sua
identidade, tão insistentemente perseguida ao longo do século e, ao mesmo tempo, tão
depreciada por sucessivos desgastes governamentais.
Nessa estratégia, o comandante Plácido de Castro líder militar que conduziu o
exército de seringueiros nas batalhas contra os Bolivianos – e o picaresco Luiz Galvez
que chegara a decretar o Estado Independente do Acre, em julho de 1899 –, ambos
tidos como heróis acreanos, juntamente com os “mártires” que lutaram pelo direito a
terra e pela preservação ambiental nas décadas de 1970 e 1980 são (re)postos como
marcos da luta que só agora se completa, de acordo com as sugestões e significações
construídas. Associativamente, era como se o combate (eleitoral) do presente
irmanasse “os novos heróis” aos antigos, colocando-os numa mesma linhagem.
No dia 4 de outubro de 1998, quando se realizam as eleições para o Governo do
Estado, Presidência da República, Câmara Federal, parte das vagas do Senado e
159
Ricardo de Azevedo, “Acre – um estado ímpar”. In: Teoria e Debate. Fundação Perseu Abramo,
publicado em 1 de maio de 2001 em:
http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=1515.
98
Assembléia Legislativa, Rio Branco e alguns municípios do interior amanhecem
tomados pelo vermelho. Milhares de pessoas com trajes nessa cor, portando bonés e
bandeiras, ocupavam ruas e praças das cidades, especialmente da capital. O
engenheiro florestal Jorge Viana é apontado como líder nas pesquisas. Em segundo
lugar vinha Alércio Dias, do PFL, seguido pelo candidato do PMDB, Chicão Brígido,
que não parecia constituir ameaça à liderança da FPA.
Graças à enorme coalizão de partidos (PT, PSDB, PC do B, PMN, PL, PDT, PPS,
PV, PTB, PT do B, PSB e PSL), com matrizes ideológicas as mais diferentes (e
divergentes, em alguns casos), Viana consegue vencer a eleição no primeiro turno,
com 57,7% dos votos. Junto com ele também é eleito para uma vaga do Senado seu
irmão, Sebastião Viana (Tião Viana), elevando para dois o número de senadores do PT
acreano. Na Assembléia Legislativa, dos 24 lugares a FPA ocupa 12, 50% do total, o
que confere um certo equilíbrio entre as bancadas de oposição e situação.
Discursivamente, o “novo momento” é significado como a afirmação política da
identidade simbolizada na figura das populações tradicionais: índios, seringueiros,
ribeirinhos, colonos, ao mesmo tempo em que se propunha restituir às camadas
urbanas um certo orgulho de pertencimento à história do lugar.
O discurso da florestania, a partir desse momento tornado oficial, se instala sobre
uma espécie de vazio identitário, um sentimento de rejeição que parece ter
atravessado o século. Ressentido de sua pátria – que inicialmente se recusa a assumir
sua luta, no início do século XX, e que mesmo após a incorporação do território ao
Brasil, na vitória contra os bolivianos, não lhe reconhece a condição de federado, o que
vem a ocorrer em 1962 –, é como se o acreano estivesse permanentemente à
espera do reconhecimento negado. De acordo com Alves, esse tratamento não deixa
de acarretar seqüelas profundas na percepção de uma unidade com a federação:
O Brasil é a união dos estados da federação. Mas cria-se um território que não é
estado. Ele pertence e é administrado pelo conjunto dos outros estados e passa
a ser governado por interventores federais. Isso cria na população um
sentimento de revolta. Este longo período sem autonomia o Acre se torna
estado em 1962 – criou um sentimento oposicionista, que às vezes ganhava até
um tom meio separatista
160
.
Associam-se a isso os infortúnios de sucessivos governos marcados por
acusações de corrupção e por escândalos políticos que, não raro, tornavam-se
manchetes na mídia nacional, como foi o caso do governador detido pela polícia do Rio
de Janeiro por dirigir embriagado; de outro governador assassinado em um hotel de
160
Ricardo de Azevedo, ibid.
99
São Paulo, supostamente por contrariar interesses na apropriação de vultosas verbas
públicas destinadas à canalização de um córrego no centro de Rio Branco, conhecido
como Canal da Maternidade. À época, aventou-se a suspeita de que, por sua
abrangência, o caso possuísse articulações com o caso PC Farias. Por fim, o caso do
governador acusado pela Polícia Federal de possuir quatro CPFs para fins de
contrabando e sonegação, de ser proprietário de um Boeing carregado de mercadoria
contrabandeada, apreendido pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos e, como
se não bastasse, suspeito de envolvimento com o narcotráfico na região fronteiriça do
Vale do Juruá. Vale mencionar, ainda, os casos de deputados que invadiam redações
de jornais para agredir jornalistas, ou aqueles acusados de integrar grupos de
extermínio, como ocorrido com Hildebrando Pascoal. Tratava-se, como se vê, de uma
representação política que não fornecia muitos motivos para que os representados
dela se orgulhassem.
Tornaram-se comuns os relatos de acreanos que, quando fora do estado, não
assumiam suas origens ou procedência. É bem verdade que isso não se devia
somente aos escândalos: para muitas parcelas das populações urbanas influenciava
significativamente a imagem de atraso atribuída ao estado, como se estivesse em
permanente desconexão com os núcleos modernizados do país. O discurso da
florestania, assim, vem ao encontro desse vácuo, oferecendo a promessa de
reconstrução identitária mediante o reordenamento dos elementos culturais e políticos
que assegurassem a superação de tão baixa auto-estima. Isso não ocorre,
evidentemente, sem o pleiteado benefício eleitoral. A assertiva contida no enunciado
abaixo traduz bem o esforço de significar coletivamente o novo momento:
Na verdade, somente agora o Acre encontra sua voz, seu rumo, sua posição
no Brasil também em transformação. Mais que nunca, a vocação florestal, o
compromisso com a natureza, com as tradições arraigadas em seu povo, são
um lume para o futuro. Cem anos depois de Petrópolis, o Acre se reencontra
consigo mesmo, em paz com seu destino
161
.
O enunciado nos fornece uma visão clara da relação que se estabelece entre
memória, identidade e projeto, tal como proposta por Gilberto Velho
162
. Primeiramente,
conforme desenvolvido no capítulo anterior, e em conformidade com outros autores
como Michael Pollak
163
, por exemplo, percebe-se que a memória afirmada em um
161
Jornal Página 20, 16 de nov. de 2003.
162
Gilberto Velho, Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro,
Zahar, 1994.
163
Op. cit.
100
determinado momento é produto de um esforço de organização de sujeitos que se
empenham não sem interesses ou disputas em sistematizar uma memória que se
pretenda coletiva. Tal ordenamento, uma vez reconhecido o caráter conflitivo e de
disputa, não se faz sem uma seleção criteriosa dos elementos que comporão a
narrativa em construção. Do mesmo modo como se organiza, do presente, o passado
conveniente, também se arquiteta um futuro, manifesto na forma de um projeto a ser
assumido pelos indivíduos e pela coletividade. Percebemos entre a proposta de Velho
e os processos socioculturais e políticos objeto de nossa atenção uma convergência no
que diz respeito ao grau de consciência que rege a atuação dos agentes sociais no
trabalho de articular memória e projeto. Para esse autor, “a consistência do projeto
depende, fundamentalmente, da memória que fornece os indicadores básicos de um
passado que produziu as circunstâncias do presente, sem a consciência das quais
seria impossível ter ou elaborar projetos”
164
. Apesar de esse autor enfatizar, no
esquema por ele proposto, os processos de construção identitária de cunho mais
individual, uma ampliação para identidades coletivas se faz viável no contexto acreano,
especialmente quando consideramos a natureza dos acontecimentos e os
personagens implicados nos recortes do passado escolhidos para integrar a nova
trama narrativa, preparada de modo a poder incorporar não antigos, mas também
os “novos heróis” do estado. Assim, na linha evolutiva reconstituída pelo discurso da
florestania, teríamos os seguintes eventos-atores: Revolução Acreana Luiz Galvez e
Plácido de Castro (1889 - 1903); Movimento dos Autonomistas – Guiomard dos Santos
(1957 1962); Movimento dos seringueiros, “empates” – Chico Mendes e grupo
(décadas de 1970 e 1980) e, por fim, Governo da Floresta e florestania Jorge Viana,
Tião Viana, Marina Silva e demais membros do grupo (a partir de 1999). Essa parece
ser a linha traçada pelo próprio Jorge Viana, ainda no primeiro ano de seu governo, ao
escrever a apresentação da edição comemorativa da revista Galvez e a República do
Acre, na passagem do primeiro centenário de criação do Estado Independente do
Acre, pelo espanhol Luiz Galvez, em 1899:
Hoje, quando viramos mais um século e também o milênio, temos plena
consciência de que somos uma geração privilegiada, com a missão de refazer
aquela unidade não apenas no território mas também no tempo, estabelecendo
uma continuidade histórica. (...) Somos um povo, temos um destino, um projeto
a realizar. Nosso projeto é mostrar que é possível viver na floresta sem destruí-
la, aproveitando seus recursos com sabedoria, apontando o caminho do novo
tipo de desenvolvimento que a humanidade procura. Uma sociedade da floresta,
juntando a tradição e a modernidade, o passado e o futuro, eis o que podemos
164
Gilberto Velho (1994), ibid, p. 101.
101
ser. (...) Mas todo esse investimento no futuro não será possível se for apenas
um objetivo do governo, ele tem que ser um objetivo do povo. É o povo acreano
que tem que viver esse projeto. E um povo pode afirmar um ideal coletivo se
tiver consciência de sua identidade, se souber valorizar sua cultura e afirmar seu
modo próprio de viver, seus costumes, suas tradições. (...) Galvez e o Estado
Independente o são simplesmente histórias do passado. Eles são, ainda, o
objetivo do nosso trabalho presente, o projeto que temos que reafirmar
165
.
Quando se evoca e se comemora um acontecimento situado no passado, através
de sua reconstituição nos textos da mídia, ou nos discursos dos agentes políticos,
como transcrito acima, uma certa ambigüidade permeia os enunciados, sugerindo não
que se pense o presente como uma conseqüência daquele passado, mas como
uma continuidade dos mesmos processos. Seguindo essa tendência, teremos os
tipos de reverberação midiática reproduzidos abaixo:
1) Revolução Acreana ainda não terminou
166
Elos do passado
As correntes da história não se romperam em Porto Acre
2) Acre Estado: início da revolução que mudou o mapa do Brasil
167
3) Cem anos de utopia
168
Forjado na disputa pela Amazônia, o Acre revive as origens
4) Dois movimentos autonomistas marcaram a luta após a revolução
169
5) Acre Autônomo: 41 anos de História
170
Com o povo nas ruas, autonomistas são lembrados por uma mudança nos
rumos da história recente do Acre
171
6) Nós devemos valorizar a nossa história, o passado de luta de muitas pessoas
que estava sendo esquecido”, disse o governador Jorge Viana. “O prestígio da
população por este evento evidencia como o povo, mesmo fazendo parte da
construção de uma nova história, mostra maturidade em olhar para o passado
de uma maneira construtiva.
172
Mesmo uma leitura rápida dos enunciados transcritos acima possibilitaria aos
sujeitos inseridos no processo sócio-histórico que originou tais produções perceber
sentidos como: nos itens 1, 2 e 3 que a revolução aludida acontece também no tempo
presente de produção daqueles enunciados, que ela teve “início”, mas ainda não
“terminou”, estando, portanto, sendo “revivida” no presente; no item 3, os sentidos são
165
Jorge Viana, Apresentação à Galvez e a República do Acre. Rio Branco: Fundação de Cultura Elias
Mansour, 1999, p.1.
166
Página 20, 12 de jan. de 2003.
167
Página 20, 17 de jun. de 2003.
168
Página 20, 25 de nov. de 2003.
169
Página 20, 25 de nov. de 2003.
170
Página 20, 25 de nov. de 2003.
171
Página 20, 17 de jun. de 2003.
172
Página 20, 17 de jun de 2003.
102
construídos como se a utopia que motivou os revolucionários do início do século fosse
a mesma que move as ações dos atuais governantes; nos itens 4 e 5, a autonomia
referenciada nos dois títulos também seriam produto de esforços dos agentes do
presente; e no item 6, a idéia de fazer parte de “uma nova história” pode sugerir, ao
mesmo tempo, uma ruptura com um passado contíguo, ao qual o novo se opõe e do
qual busca se diferenciar, ao mesmo tempo que implicaria uma etapa seguinte do
processo mais distante evocado e comemorado.
Nessa seqüência de eventos, os fatos e personagens do presente passam a
integrar o mesmo rito de “sacralização” na composição com a memória evocada.
Juntamente com os nomes lembrados, celebra-se, da mesma forma, a atuação destes
“novos heróis” contemporâneos: Vejamos as manchetes:
Jorge Viana reverencia homens e mulheres que
lutaram pela incorporação do Acre ao Brasil
173
[...] “ninguém pode ser um bom administrador ou gerente do interesse blico
se não tiver amor pela terra, por sua história e por seus heróis”
Walter Suiter:
“Jorge vai deixar um marco na história”
Jorge Viana: “O Acre era o assunto do dia
em todos os países do mundo”
174
Jorge Viana diz que Acre será referência na medicina
175
Novo mapa do Acre é entregue a chefes dos poderes
176
Jorge Viana classifica a data como “histórica
Tião Viana tem a maior ascensão nacional entre os políticos acreanos
177
Conversas com presidente, ministros, embaixadores, jornalistas, artistas e
representantes da sociedade civil brasileira lotam a agenda do senador
acreano.
Marina: “Uma nova relação do brasileiro com a natureza
178
Marina: A guerreira da floresta
179
Deputados da FPA lideram desempenho da bancada federal do Acre
180
Os acreanos do século
181
O país ainda tem um grande débito com o Acre, mas ele será cobrado com a
união de povo e governo, com propostas possíveis e viáveis de um
desenvolvimento que respeite as tradições e seja sentido como "um canto
173
Página 20, 25 de jan. de 2003.
174
Página 20, 13 de nov. de 2003.
175
Página 20, 01 de fev. de 2003.
176
Página 20, 03 de dez. de 2003.
177
Página 20, 21 de dez. de 2003.
178
Página 20, 29 de nov. de 2003.
179
Página 20, 29 de jul. de 2003.
180
Página 20, 31 de dez. de 2003.
181
Página 20, 19 de nov. de 2003.
103
vibrante e viril, que será como a voz do Amazonas, ecoando por todo o
Brasil".
O estabelecimento de uma relação entre passado e presente demonstra-se
extremamente fértil, a ponto de os elementos do passado se converterem numa
espécie de significantes à disposição de novos significados engendrados a partir do
presente. Vemos configurado um processo de mitificação segundo a acepção
proposta por Barthes
182
, para quem “o ponto capital em tudo isso é que a forma [o
significante esvaziado que dará início a uma segunda cadeira semiológica] o
suprime o sentido [do signo na sua significação anterior], empobrece-o apenas, afasta-
o, conservando-o à sua disposição”
183
. Ou seja, o discurso do mito, na iminência de ser
desmascarado, naturaliza-se, refugiando-se no significado de uma primeira cadeia
significativa, neste caso a fala de uma certa história, que se torna um álibi permanente.
Ou seja, diante de uma possível acusação de auto-promoção, por exemplo, haverá
sempre a defesa da necessidade de reavivamento e fortalecimento do passado e das
tradições de um povo.
Esse reordenamento, operado nos textos e imagens da mídia, em seus elementos
considerados memoráveis “de Galvez a Chico Mendes” irá culminar com a
sugestão de que finalmente o Acre encontra sua “verdadeira identidade”, até então
perdida nos descaminhos e desventuras que marcaram a vida política, social e cultural
desse território. É o que se pode ler no texto abaixo, ao tratar da comemoração do
centenário de assinatura do Tratado de Petrópolis, ato formal celebrado entre Brasil e
Bolívia, em novembro de 1903, que assegura a anexação do território do Acre ao
Brasil:
Respeito ao Acre
O Acre esteve presente em Petrópolis ontem, com o governador Jorge Viana
(...) O Acre que foi a Petrópolis ontem é um Estado viável, com um projeto
político, administrativo e de desenvolvimento claro, debatido com a população e
implantado de uma forma límpida e democrática.
O Acre que o governador Jorge Viana representou na serra fluminense, na
vetusta Cidade Imperial, é uma terra que se orgulha de seu passado, de seus
182
De acordo com a teoria dos mitos modernos de Roland Barthes, o discurso burguês produz sentidos
por meio de uma operação semiológica que consiste na apropriação, enfraquecimento e reenchimento
dos signos partilhados socialmente, criando uma segunda cadeia significativa, o mito. Para esse autor,
“o mito é uma fala roubada e restituída. Simplesmente, a fala que se restitui não é a mesma que foi
roubada: trazida de volta, não foi colocada no lugar exato”. (Barthes, 1978, p. 146). O próprio autor,
posteriormente ao lançamento do livro Mitologias, reconhece que a primeira cadeia significativa sobre a
qual se constituiria o mito – o material lingüístico, por exemplo – já se constitui sob fortes agenciamentos
ideológicos. Entretanto, o modelo semiológico do mito, mesmo reconhecendo-se os processos
anteriores a essa apropriação, parece-nos interessante para chamar atenção para uma tendência dos
discursos da mídia de produzir significados mediante a utilização de estruturas significativas
amplamente sedimentadas nos usos sociais da linguagem.
183
Roland Barthes, Mitologias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 1978, p. 140.
104
heróis revolucionários e autonomistas, mas também um Estado com os olhos
postos no futuro de harmonia e de integração com o ambiente que o cerca, que
será sempre a inspiração para suas ações. Jorge Viana mostrou um Acre
maduro, altivo e do qual o Brasil pode se orgulhar.
184
A construção e a percepção dessa “nova história”, que se vai insinuando na
constituição de um novo imaginário, implicam um corte, uma ruptura política em
relação aos governos anteriores, dos quais a administração petista vai busca se
diferenciar radicalmente em termos de imagem pública. Na comparação com os
desastres que foram essas administrações marcadas pela precariedade e abandono
dos serviços públicos, pela corrupção e violência do crime organizado no interior das
instituições e no meio político, atrasos no pagamento de salários do funcionalismo e
até pelo estado de ruína dos prédios públicos , o Governo da Floresta efetivamente
impõe um diferencial.
Entre as medidas emergenciais, são adotadas a compra de medicamentos para
as unidades de saúde e a regularização do pagamento de servidores públicos, com
salários atrasados quase três meses. Na área de segurança blica, o principal
desafio foi a desarticulação de organizações criminosas, estruturadas dentro das
instâncias de Estado, com envolvimento de oficiais de altas patentes da política militar,
delegados de polícia e até a participação de deputados, cujo caso mais conhecido
ficou sendo o do ex-deputado estadual e federal Hildebrando Pascoal. À época, era
comum serem encontradas partes do corpo de uma mesma pessoa espalhadas em
diferentes pontos da cidade, sem que a autoria fosse identificada pela polícia, embora
um murmúrio generalizado atribuísse as ações a um suposto grupo de policiais que se
encarregava de “fazer a limpeza” na eliminação do banditismo.
No setor de urbanismo foi empreendida uma intensa transformação paisagística,
com reforma de praças, patrimônios, monumentos, recuperação de ruas, arborização
de vias e praças. Porém a obra de maior impacto na paisagem urbana da capital foi a
construção do Canal da Maternidade, obra essencial de saneamento de um córrego
que corta vários bairros e o centro de Rio Branco. O projeto se arrastava mais de
uma cada e, dado o grande volume de recursos envolvidos e acusações de
superfaturamento, havia provocado a queda do ministro Rogério Magri no governo
Collor e estaria relacionado, como referido acima, ao assassinato do ex-governador
Edmundo Pinto, em maio de1992, no hotel Della Volpe, em São Paulo. Entre a
184
Página 20, 20 de nov. de 2003.
105
população de Rio Branco vigorava a crença de que a obra dificilmente sairia da
condição de projeto.
No tocante às populações rurais e questões relacionadas à produção, a tônica foi
a elaboração de políticas que articulassem desenvolvimento econômico, conservação
ambiental e valorização sociocultural das atividades produtivas tradicionais ligadas ao
extrativismo. Nesse sentido, na reforma administrativa realizada, a criação da
Secretaria de Floresta e Extrativismo parecia sinalizar o propósito de aproximar as
políticas públicas dos interesses de seringueiros e demais trabalhadores do campo,
especialmente ao se considerar que o núcleo do grupo que chegava ao governo
afirmava precisamente a identificação com esse segmento, como se depreende desta
afirmação de Alves: “Nós temos uma coligação muito grande no Governo do Estado na
qual este setor com interesse na floresta, que vem dessa luta dos povos da floresta,
constitui o núcleo de maior densidade no interior do governo, não de maioria física,
mas de maior densidade na elaboração do projeto do governo”.
185
Entre as primeiras medidas voltadas para o extrativismo, o governo aprova na
Assembléia Legislativa, ainda em 1999, um Projeto de Lei, chamada de Lei Chico
Mendes, que previa o pagamento de subsídio para a produção de borracha
diretamente aos seringueiros, organizados através de associações e cooperativas. A
chamada opção pela floresta, expressa no slogan do governo e em seu símbolo oficial,
a imagem de uma castanheira publicitariamente estilizada, conforme figura abaixo,
pretende significar a noção de um desenvolvimento econômico com preocupação
ambiental e garantia de manutenção dos modos de vida e da cultura extrativista.
185
Entrevista realizada por Horácio Sant’Ana Júnior, em 12 de dezembro de 2000, e publicada em Sant’
Ana Júnior, Horário. Desenvolvimento e Conservação Ambiental: Políticas Sócio-Ambientais do Governo
do Acre. III Encontro da ANPPAS, Brasília – DF, maio de 2006, p. 4.
106
Essa leitura se confirma, ainda, nesta declaração do Secretário de Planejamento
e Coordenação do governo, Gilberto Siqueira, quando enfatiza que:
A alma do Governo é a questão ambiental. A questão ambiental no Acre é muito
importante porque é a questão da vida dessa cultura e dessa civilização do
Ocidente da Amazônia ... Na Amazônia a economia está no próprio ambiente.
Quando os seringueiros falavam de reforma agrária, o que eles queriam era o
direito de uso de bem coletivo que é a natureza. Esse uso é o uso econômico,
numa relação de troca com a sociedade. Este é o ponto da questão ambiental
no Acre... O Governo orienta, governa e normatiza toda essa coisa... Todas as
ações do Governo partem do pressuposto ambiental.
186
Com esse conjunto de medidas de reestruturação administrativa, que confere
agilidade ao funcionamento dos serviços públicos, aliada à reforma urbana, à
recuperação de estradas e à regularização dos salários numa unidade da federação
em que o maior empregador é o próprio Estado não foi difícil ao Governo da Floresta
se diferenciar dos governos precedentes e se destacar como um modelo de gestão
moderna e arrojada, que tiraria o estado da estagnação em que se encontrava,
desfazendo a imagem negativa de terra sem lei e atrasada.
O contraste se tornou ainda mais evidente com a contingência de a prefeitura da
capital ser administrada, até 2004, por um prefeito do PMDB que além do desafio de
ter que abrigar boa parte da oposição que perdera os privilégios a partir da vitória da
FPA para o governo do estado em 1998 não conseguia dar solução para problemas
estruturais, como as freqüentes interrupções no abastecimento de água e as péssimas
condições de pavimentação das ruas da capital.
Tal polarização e diferenciação até mesmo no plano estético, intensificada após a
constituição do Governo da Floresta, chama atenção para um fenômeno curioso do
186
Horário Sant’Ana Júnior, ibid, p. 6.
107
mundo da política, manifesto nas eleições municipais de 2000. Com a derrota na
disputa estadual de 1998, a oposição se organiza numa coligação denominada
Movimento Democrático Acreano (MDA), detentor do poder político-administrativo na
prefeitura da capital e, evidentemente, desejoso de sua renovação nas eleições de
2000. O curioso a se verificar nessa disputa é que, apesar de todo o novo movimento
desencadeado pelo dinamismo da administração petista no governo do estado e da
vantagem de contar com o “apoio” de vastos setores da mídia (e da máquina
administrativa estatal), a oposição acaba renovando seu domínio no poder municipal,
resgatando o ex-governador Flaviano Melo, para perplexidade dos petistas e do próprio
governador, que davam a eleição como vencida. Flaviano acaba não cumprindo o
mandato na íntegra e se afasta para concorrer contra Jorge Viana ao governo do
estado, em 2002, deixando a prefeitura sob o comando de seu vice, Isnard Leite.
A vitória do MDA nas eleições municipais de 2000 acaba gerando o
prolongamento não de uma intensa polarização política, mas de uma disputa entre
modelos estéticos do fazer político, uma dicotomia entre o “velho” e o “novo” que nos
oferece um excelente exemplo das “mutações democráticas” a que se referia a
jornalista Trereza Cruvinel, mencionada anteriormente. Tal oposição é muito bem
flagrada, por exemplo, nesta foto que retrata uma situação em que Viana,
“compadecidamente”, convida o prefeito Isnard Leite ao novíssimo e reformado Palácio
do Governo a fim de oferecer apoio logístico e financeiro para a recuperação da cidade
de Rio Branco. A jovialidade, disposição e alinhamento do petista, por um lado, e a
aparência de cansaço, fraqueza e desalinho do peemedebista, por outro, são captados
pela lente do fotógrafo, que o deixa de colocar nessa moldura a estrela símbolo da
força petista a dar suporte àquele que se compadece da inoperância do “velho”.
108
Governador Jorge Viana recebe prefeito da capital, Isnard Leite, no Palácio do Governo.
Foto publicada no jornal Página 20, de autoria do fotógrafo Marcus Vicenti.
Além das diferenças que efetivamente caracterizavam as duas gestões, a
percepção do contraste torna-se mais intensa com as freqüentes avaliações realizadas
na mídia, consagrando sempre um dos lados e desqualificando ou mesmo satanizando
o outro, como se pode observar nestes fragmentos:
Enquanto Jorge Viana trabalha em várias direções para inserir o Acre na República
como de fato um estado membro da Federação e a partir daí resgatar a enorme
dívida social que o país tem para com a população acreana, a Prefeitura de Rio
109
Branco abandona a cidade à própria sorte e o prefeito, que deveria limitar-se a tapar
buracos, recolher o lixo, abrir e conservar ruas, torna-se refém de grupelhos políticos
e deixa de cumprir as funções mais simples da municipalidade
187
.
Com o acirramento da hostilidade entre as facções, os esforços da mídia
governista de desqualificar a oposição alcançam significações que remetem mesmo à
polaridade entre sagrado e profano ou, em última instância, ao velho maniqueísmo
bem x mal, tal como expresso nos dois blocos de títulos reproduzidos abaixo, que
introduzem matérias respectivamente favoráveis ao governo e depreciativas da
oposição:
Uma luz para os acreanos
188
Ética com data marcada
189
Senador Guiomard
190
merece ser iluminada
191
[com apoio do governo]
Herança maldita
192
Reminiscências de um passado caótico
193
Memórias do desagradável
194
As duas faces do Acre
195
A besta do apocalipse
196
A polarização entre FPA e MDA como signos respectivos de progresso, mudança,
mobilidade, lisura, honestidade e autenticidade, por um lado, e de atraso, imobilidade,
corrupção e (possível) desonestidade, por outro, se intensifica progressivamente até as
eleições estaduais de 2002. Na ocasião, o PT lança Jorge Viana como candidato à
reeleição, tendo desta vez como vice o também petista Arnóbio Marques. Pelo MDA,
os grupos ligados a essa política considerada mais conservadora apresentam a
candidatura do ex-governador Flaviano Melo. A candidatura de Melo, no entanto, não
encontra boa resposta nas pesquisas eleitorais, ao passo que Viana passa da marca
dos 60 pontos nas intenções de votos.
Mas a tranqüilidade da FPA é interrompida com a formalização pelo MDA de um
pedido de impugnação da candidatura de Viana, no TRE do Acre, alegando abuso de
poder econômico e da estrutura administrativa do Estado. Para tanto apresenta como
187
Página 20, 20 de janeiro de 2003.
188
Página 20, 25 de fevereiro de 2003.
189
Ibid, 9 de janeiro de 2003.
190
Município situado a 30 km da capital.
191
Ibid, 14 de novembro de 2003.
192
Ibid, 9 de novembro de 2003.
193
Ibid, 10 de janeiro de 2003.
194
Ibid, 17 de janeiro de 2003.
195
Ibid, 12 de janeiro de 2003.
196
Ibid, 7 de dezembro de 2003.
110
prova o uso da logomarca do governo, a árvore com a expressão "Governo da
Floresta", em placas de obras inauguradas durante o período de campanha. O TRE
não acolhe a denúncia como aprova a impugnação por cinco votos a um, acirrando
ânimos de militantes e de parcela da população, que vai às ruas em manifestações
contra o ato do tribunal. Um recurso ao TSE, todavia, anula a decisão do tribunal
acreano garantindo a Viana a validade de sua candidatura. As previsões indicadas nas
pesquisas se confirmam, dando a vitória a Jorge Viana ainda no primeiro turno, com
mais de 60 por cento dos votos. A estratégia da oposição revela-se prejudicial aos
seus próprios interesses, visto que a dramatização pública realizada pela FPA, com
ampla repercussão na mídia, e a vinculação da impugnação a represálias do crime
organizado incrustado nas instituições ainda não “purificadas” pela “ética renovadora”
da “nova política” terminam por conferir uma visibilidade midiática positiva à FPA,
conquistando o apoio daquelas parcelas da população que inicialmente apenas
observam a movimentação política rotineira de ano eleitoral.
A oposição sai da disputa ainda mais enfraquecida e claramente sem nomes que
façam frente ao prestígio conquistado pelas principais lideranças da FPA nos primeiros
quatro anos de administração petista. O Governo da Floresta, por sua vez, ganha mais
quatro anos para consolidar os projetos e ações arquitetados durante o primeiro
governo, utilizado basicamente para organizar contas públicas e reorganizar a máquina
administrativa. O segundo mandato, entretanto, herda importantes e polêmicos
encaminhamentos que se desdobrarão em rupturas as mais diversas e que colocarão
à prova a coerência, a unidade e a validade do discurso da florestania naquilo que lhe
é mais caro: a preservação ambiental e a valorização da cultura e do fazer extrativista.
No capítulo seguinte, exploramos as representações daquilo que podemos
chamar de momento áureo da florestania, no peodo subseqüente à eleição para o
segundo mandato, quando o governo alcança seu pico de credibilidade e aprovação,
de acordo com pesquisas divulgadas na mídia. É também o momento em que algumas
medidas efetivadas, por seu caráter controvertido, porão à prova a legitimidade até
então conquistada. Buscaremos abordar, assim, as contradições entre os princípios e
valores enunciados pelo discurso da florestania, em seus elementos constitutivos, e as
práticas e políticas efetivamente implementadas no decorrer do segundo mandato.
Recolhemos as fissuras e rupturas manifestas publicamente, em especial nas falas
daquelas comunidades apresentadas por esse discurso como a fonte dos significados
expressos na florestania e as maiores beneficiárias de suas políticas.
111
CAPÍTULO III
APOGEU E CRISE DO DISCURSO OFICIAL: DA FLORESTANIA CELEBRADA À
FLORESTANIA CONTESTADA
Foi no tempo em que a estrada não havia sido aberta. A viagem à Vila Plácido
fazia-se no lombo de burro. Três dias de sofrimentos. Pois bem, um tal de
Ruivaldo Lima foi nomeado subprefeito. (...) Recebeu a verba, dinheiro
polpudo na época, e se mandou para o Abunã. Chegou lá, espiou a Vila: meia
dúzia de barracas em ruína, uns trapos de gente torrada pelo paludismo,
esquentando-se ao sol, o carapanã transmitindo febre até em pau de
seringueira. Viu aquela miséria toda e achou que não pagava pena gastar o
dinheiro. Embolsou... Mas Ruivaldo era um ladrão no início de venturosa
carreira. Ainda não estava calejado. Sabem como é, marinheiro de primeira
viagem... O hábito vem depois. Pois bem, o homem foi assaltado de receios.
Medo de ser descoberto. E para justificar-se teve uma idéia luminosa. Mandou
abater um paud’arco e com ele fez um mastro que plantou frente às barracas.
No dia 6 de agosto, cercado da caboclada entusiasmada, hasteou a bandeira
acreana. Foi um Deus no acuda. A fama dele correu o sertão e chegou a Rio
Branco. O fato passado de boca em boca, foi tomando proporções, multiplicou-
se, desdobrou-se. O pau de bandeira transmudou-se em realizações sem conta,
notáveis empreendimentos. O jornal oficial do governo estampou um artigo
exaltando suas qualidades de cidadão e administrador. Era a consagração
197
.
3.1. “Fachos de luz clareando os varadouros da nossa identidade”
198
O estabelecimento do Governo da Floresta, especialmente no início do segundo
mandato de Jorge Viana, parece instaurar um certo consenso entre muitos dos
diversos setores da sociedade acreana, mesmo entre aqueles que, num futuro
próximo, colocariam em xeque os seus mais caros fundamentos. Nos anos de 2002 e
2003, quando ocorrem as comemorações referentes ao Primeiro Centenário da
Revolução Acreana com intensa celebração na programação oficial e ampla difusão
midiática uma percepção sinais de se cristalizar no imaginário coletivo: o Acre e
as referências de acreanidade não seriam os mesmos depois da ascensão do grupo
político liderado pelos “meninos do PT”.
Como demonstrado no capítulo anterior, a reestruturação administrativa do
aparelho estatal, a regularização de pagamentos e a reforma dos espaços urbanos
mais centrais foram percebidas como feitos distintivos daquela administração, que
afirmava uma nova ética e uma nova estética de governo. Isso sem ignorar os
consideráveis interesses perniciosos que conseguiu desarticular se pensarmos, por
197
Miguel Gerônimo Ferrante, Seringal. Rio Branco: Fundação Estadual de Cultura, 2003, p. 114.
198
Élson Martins, “Amazônia, pacto de fé, faca amolada”. Outras Palavras, edição de abril de 2000,
Fundação de Cultura do Estado do Acre.
112
exemplo, no desmonte do crime organizado e grupos de extermínio estruturados
dentro dos aparatos institucionais. Contudo, foi nesse mesmo momento de grande
legitimidade política que outros tantos interesses, não menos controvertidos, também
foram contemplados, como buscaremos expor no decorrer deste capítulo,
evidenciando rupturas e questionamentos que começaram a também disputar espaço
no cenário blico e no imaginário coletivo, expondo os conflitos e divergências em
torno das prioridades do governo, de sua concepção de valorização cultural mas,
sobretudo, do seu projeto de desenvolvimento e alegada preocupação ambiental.
De todas as transformações e processos engendrados ainda no primeiro governo,
talvez um dos que mais encontrou eco no imaginário de parcelas significativas das
populações foi a mudança na percepção dos vínculos identitários com o território e
com as referências culturais e históricas postas em relevo na rearticulação narrativa
operada no discurso da florestania em tudo quanto era espaço midiático disponível,
do outdoor à internet. Conforme define o próprio Jorge Viana, a mudança passa a
figurar no imaginário coletivo na forma de “um reencontro do Acre e do nosso povo
com sua história, sua identidade, sua auto-estima
199
”. Isso não somente pelo que o
próprio discurso do poder continuaria a afirmar no conjunto dos recursos expressivos
de que dispunha, conforme indicado acima e que certamente foi e continuou sendo
determinante –, mas pelo que certamente existe de fragmento de memória, seja na
vivência dos mais velhos que acompanharam muitos dos processos sócio-históricos
reativados pela narrativa oficial, seja na experiência de parcelas significativas das
novas gerações que, “por tabela”
200
, de alguma forma se vinculam às memórias “dos
antigos”, estabelecendo algum nexo, até mesmo entre certos grupos mais urbanos, às
representações ligadas ao universo da floresta. Para usar as palavras de Caio
Junqueira:
O melhor retrato disso, para mim, foi quando perguntei a uma mulher: “Você é
daqui?”. “Sim, sou acreaníssima”. Evidentemente, o acreaníssimo dela embute
mais que um “ser daqui”. Acopla um “sou e amo aqui”, algo incomum nos outros
Estados. Eu, por exemplo, nunca respondi a semelhante pergunta com um “sim,
sou paulistíssimo”. Talvez porque há sim muito mais de que se orgulhar estando
na ponta oeste do país do que aqui no “centro”. Mais do que isso, talvez porque
ser do centro” possa contabilizar muito mais desvantagens do que quem es
na ponta, a começar pela própria existência de uma magnífica floresta que
habita dentro de seu povo
201
.
199
Jornal A Tribuna, novembro de 2007.
200
Conforme concepção de Memória Coletiva apresentada por Maurice Halbwachs (2006)., op. cit.
201
Publicado no endereço http://altino.blogspot.com/2007/05/o-que-vi-no-acre.html, 1 de maio de 2007.
113
É interessante perceber que no reordenamento cultural proposto, as referências
negativas associadas à imagem de índios e populações extrativistas tendem a se
inverter. Identificados com uma atividade primitiva, por seu caráter extrativo e de coleta
numa relação direta homem/natureza, cuja reprodução socioeconômica insere-se
numa crise cada vez mais aguda desde o fim da II Guerra Mundial, os seringueiros
precisamente pelo tipo de relação mantido com a floresta passam, a partir de então,
a ser identificados como os “guardiões da floresta”
202
, pelo grau de imbricação
estabelecida entre seus modos de sobrevivência e o ambiente circundante. O mesmo
valendo para os povos indígenas, com o detalhe importante de que estes
representariam a própria personificação da natureza, manifesta na cultura dessas
populações. Desse modo, no arcabouço instituído pela noção de desenvolvimento
sustentável presente no discurso da florestania, os modelos produtivo e tecnológico
demandados por colonos e pecuaristas dos centros sul e sudeste, cuja expansão
implica a substituição da floresta por pastagens ou produtos agrícolas, convertem-se,
conforme percebe Elder Paula
203
, em símbolos do “atraso”, ao passo que as chamadas
“populações tradicionais” da floresta se tornam referência de “modernidade”, sobretudo
se colocados na contraluz dos debates contemporâneos sobre os efeitos deletérios das
ações humanas sobre o meio ambiente.
Nesse novo ordenamento, a atuação de intelectuais ideólogos e de todo um
conjunto de especialistas do marketing, da historiografia, da comunicação e mesmo
das artes tem papel essencial. O ideário que vem se constituindo no decorrer dos anos
anteriores, para se consolidar no imaginário social com a abrangência de uma
poderosa representação, precisa alcançar os espaços da rua, do cotidiano, dos atos de
governo e da paisagem urbana de modo geral, materializando-se nos mais diversos
símbolos. É nesse movimento e contexto que uma variedade de signos lingüísticos,
icônicos e simbólicos – se insinua ao olhar das populações urbanas com o propósito de
significar (ou simular), nesses espaços, uma identificação com referenciais ligados aos
“povos da floresta”, como é o caso dos mbolos e das identificações de vias
reproduzidos nas imagens abaixo.
202
Maiores informações sobre o processo de transformação social pelo qual passa essa categoria de
trabalhadores, ver Benedita Maria Gomes Esteves. Do “Manso” ao Guardião da Floresta: estudo do
processo de transformação social do sistema seringal a partir do caso da Reserva Extrativista Chico
Mendes. Rio de Janeiro: UFRRJ, 1999, Tese de Doutorado.
203
Elder Paula (2005), op. cit.
114
À esq., placa no entroncamento que dá acesso a Xapuri; à dir., placas de trânsito em Rio Branco.
Placas de identificação de vias na cidade de Rio Branco.
Nestas imagens, além da logomarca oficial do governo (a árvore símbolo da
florestania), presente em quase todas, destaca-se a presença de formas quadriculares
em espiral, inclusive em placas de trânsito, atribuídas à simbologia indígena, num
esforço de afirmar a proximidade da vida urbana com a cultura dessas populações. As
várias referências a Chico Mendes (assim como ao extrativismo da borracha) e ao
“Verde” como nomes de duas das principais avenidas de Rio Branco Via Chico
Mendes e Via Verde –, recuperadas (e renomeadas) pelo governo, completam o
115
quadro referencial de inserção, no ambiente urbano, de signos ligados à floresta, às
suas populações e à luta do movimento social dos seringueiros.
Nessa dinâmica, a bandeira acreana torna-se outra presença obrigatória nos mais
diferentes recantos das cidades acreanas conforme se observa nas imagens abaixo
–, especialmente naqueles lugares públicos (praças, parques, ruas e avenidas)
construídos pelo Governo da Floresta ou que por ele sofreram algum tipo de
intervenção.
Bandeira Acreana em diferentes pontos da cidade de Rio Branco.
Na capital (Rio Branco) foi inaugurado, em 2003, um mastro central – reproduzido
nas três primeiras fotos do quadro acima denominado Monumento ao Centenário da
116
Revolução Acreana
204
, medindo 62 metros de altura, do qual pende um pavilhão de
várias dezenas de metros quadrados, no mesmo lugar de excelente visibilidade a
partir de vários pontos da cidade em que teria sido fundada a primeira prefeitura de
Rio Branco, em 1904.
Fotograma de vídeo institucional em comemoração ao Centenário da Revolução Acreana.
Nesta outra imagem, acima, reproduzimos um fotograma de um vídeo institucional
veiculado em 2003
205
, por ocasião também das comemorações do Centenário da
Revolução Acreana, em que se enfatizavam os três momentos-chave referidos no
capítulo II apontados no recorte do discurso oficial como a síntese dos atos
memoráveis da acreanidade. Apesar da ênfase nos eventos da revolução, objeto da
comemoração, ali representada nos processos implicados tanto na luta armada
(espada) quanto na saída diplomática firmada através do Tratado de Petrópolis
204
O primeiro Centenário da Revolução Acreana foi comemorado em 24 de janeiro de 2003, um século,
portanto, após a vitória do exército de seringueiros liderados por Plácido de Castro sobre os bolivianos,
pondo fim ao litígio internacional que resultou na incorporação do território do Acre ao Brasil, formalizado
com a assinatura do Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903.
205
Disponível no site: http://www.bibliotecadafloresta.ac.gov.br/biblioteca/MEDIA/movie.html.
117
(caneta), é crucial atentar para o enunciado que sobrescreve a imagem. Não se trata
de uma comemoração dos “Cem anos DA Revolução”, mas de “Cem anos EM
Revolução”, o que muda completamente a perspectiva, convidando o espectador a
encará-la não como um evento situado no passado e rememorado no presente, mas
como um processo em andamento, abrangendo desdobramentos contemporâneos. Tal
abertura possibilita, certamente, que fatos, acontecimentos, processos e, sobretudo,
atores do presente figurem como integrantes desse “processo revolucionário”. Isso se
evidencia, por exemplo, na divulgação de elevados índices de aprovação do governo
ou nas freqüentes associações das principais lideranças políticas da FPA aos heróis e
vencedores consagrados na história oficial. Os recortes de jornal abaixo nos fornecem
excelentes indicadores desse processo, bem como o grau de participação da mídia na
construção desse imaginário.
No alto, posse do 2º mandato (A Tribuna, 02.01.03); à dir., homenagem ao Movimento dos
Autonomistas (A Tribuna 25.01.03); à esq., divulgação de pesquisa sobre permanência no cargo,
uma vez que seu vice foi candidato à sucessão (J. eletrônico Notícias da hora, 17.03.2006).
118
A propósito dessa relação ambígua do presente com um passado, ou de um
passado presentificado, é importante atentar para observações como esta de Le
Goff
206
, para quem a “ausência de um passado conhecido e reconhecido, ou a míngua
de um passado, pode ser fonte de grandes problemas de mentalidade ou de
identidades coletivas”, o que, de certo modo, converge com a visão de Pollak
207
sobre
a necessidade de organização de uma memória para fins de construção de uma
identidade social, implicada, evidentemente, a interferência de processos seletivos
sobre o que será lembrado ou esquecido. Contudo, é o mesmo autor, Le Goff, quem
alerta, remetendo-se a Hobsbawm, para a função social atribuída ao passado, quando
este sofre reelaborações, reinterpretações, atualizações e, não raro, distorções em
benefício de interesses e necessidades ligadas ao presente. Nessa mesma direção,
partindo do estudo de um recorte temporal e espacial diferente a Europa Medieval –,
é bastante tentadora uma aproximação com Bakhtin, quando considera que as festas
oficiais do período por ele analisado “apenas contribuíam para consagrar, sancionar o
regime em vigor, para fortificá-lo. O elo com o tempo tornava-se puramente formal, as
sucessões e crises ficavam totalmente relegados ao passado. Na prática, a festa oficial
olhava apenas para trás, para o passado de que se servia para consagrar a ordem
social presente”
208
. Embora percebamos no discurso da florestania uma forte
inclinação também à projeção de um futuro, como indicado, sabemos que esta
requer, evidentemente, um reordenamento narrativo do passado e a consagração do
presente.
Isso ajuda a entender o motivo pelo qual, mesmo após a reeleição para o
segundo mandato de Jorge Viana, as campanhas publicitárias oficiais tenham
continuado com enorme intensidade nos mais diversos meios disponíveis, pom
massivamente no rádio e na televisão, levando as referências para identificação com
os elementos constitutivos do discurso da florestania aos diversos estratos sociais.
Após as comemorações do Centenário, foi o momento de um trabalho mais intensivo e
direto voltado para o presente, para a formação de um imaginário que o percebesse
como o momento de realização das potencialidades até então adormecidas.
Esse investimento acentuado em publicidade se reflete tanto na dotação de
recursos para a área de comunicação no orçamento do estado quanto na execução do
206
Jacques Le Goff, História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 208.
207
Michel Pollak (1992), op. cit.
208
Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: Hucitec, Brasília: Editora da Universidade de Braília, 1999, p. 175.
119
contrato com a empresa encarregada pela publicidade oficial. Conforme denunciado
por empresas concorrentes da contratada pelo governo, bem como por setores de
oposição a este, os constantes aditamentos do contrato com a mesma empresa
possibilitaram o acréscimo, entre 2001 e 2004, de mais de 500% em relação ao valor
inicial do mesmo contrato. De acordo com publicação do jornal Folha de São Paulo
209
,
os maiores acréscimos são percebidos nos anos de 2002 e 2004, quando ocorrem
eleições estaduais e municipais, respectivamente. No box abaixo reproduzimos parte
do texto publicado na Folha de S. Paul, contendo maiores detalhes sobre o contrato
entre o Governo da Floresta e a empresa Asa Comunicação:
209
Folha de São Paulo, caderno Brasil, 4 de julho de 2005.
PUBLICIDADE
Acre reajusta contrato em 585% Folha de São Paulo 04/07/2005
Aditivos iniciais e mais elevados coincidem com vitórias eleitorais do PT
Nos últimos quatro anos, o governo do Acre, administrado pelo petista Jorge Viana,
aumentou o valor de um contrato de publicidade de R$ 4 milhões para R$ 27,4 milhões,
com 13 termos aditivos. Fez isso contrariando alguns pontos da Lei de Licitações e
postergando por meses a publicação dos relatórios dos aditivos no Diário Oficial do Estado.
No total, os 13 aditivos aumentaram em 585% a verba de publicidade em relação ao
contrato original. Os primeiros aditivos ocorreram em 2002, ano da campanha que reelegeu
Viana governador do Acre, e os maiores em 2004, quando o petista Raimundo Angelim
conquistou a capital do Estado, Rio Branco.
Ao longo das últimas três semanas, o governo Acre se recusou terminantemente a fornecer
à Folha os valores dos aditivos. A reportagem obteve cópias dos documentos de outras
fontes. A empresa diretamente beneficiada pelo contrato e por seus aditivos é a Asa
Comunicação, com sede em Belo Horizonte. O contrato foi assinado em abril de 2001 entre
o atual secretário de Comunicação do Acre, Aníbal Diniz, e o então sócio da Asa, Paulo
Vasconcelos do Rosário Neto.
A Lei de Licitações (8.666) veta tanto a extensão desse tipo de contrato por um período
superior a 12 meses quanto qualquer acréscimo maior do que 25% sobre o valor do
documento original.
Eleições
Os aditivos iniciais e mais elevados ao contrato de 2001 com a Asa Comunicação coincidem
com períodos eleitorais em que o PT saiu vitorioso no Acre. Suas publicações tamm
incorrem em mais uma infração à Lei de Licitações. Um dos aditivos de 2004, o 11º (R$ 1,5
milhão), por exemplo, foi publicado no Diário Oficial do Estado 164 dias após a sua
assinatura. O 12º (R$ 1,6 milhão), depois de 91 dias. Segundo a Lei 8.666, a publicação
dos resumos de contratos aditivados na imprensa oficial deve ocorrer, no máximo, até o
dia útil do mês seguinte ao de sua assinatura.
Segundo especialistas da área de licitações públicas, a prática de postergar por meses a
publicação de resumos contratuais em Diários Oficiais geralmente visa esconder do público
eventuais irregularidades e criar "fatos consumados" quando elas vêm à tona.
120
Tal volume de recursos mobilizados num estado pequeno, onde a maioria das
iniciativas gira em torno das verbas estatais, permite ao governo não o monopólio
dos meios de comunicação comerciais como a instalação de um regime de
univocidade difícil de contrapor. É nessas condições que o “Agora”, repetido nas peças
publicitárias reproduzidas a seguir, sugere não apenas a figuração dos agentes e
ações contemporâneos como o apogeu de um ciclo de glórias passadas, mas a
possibilidade de sua superação e promessa de reconhecimentos e glórias futuros,
desde que condicionados à permanência desses agentes.
Material de publicidade do governo, publicado nos sites dos
jornais, na página do próprio governo, em outdoors,
veiculados nas TVs e com áudios nas rádios.
Nessas três peças publicitárias, mediante a articulação da imagem com o
enunciado lingüístico, verifica-se a síntese de todo um trabalho de “resgate” e
revalorização da cultura extrativista, figurada na idéia de valorização das gerações
mais velhas, associada ao trabalho da borracha e ao universo da floresta, no primeiro
quadro. No segundo, trabalha-se com a noção de consolidação de bases materiais, no
presente, para a construção de um futuro promissor, é como se a partir de agora a
121
esperança de melhores condições de vida para as novas gerações fosse um dado. Na
terceira peça, por sua vez, joga-se com a imagem de reconhecimento externo, de uma
identidade confrontada com a alteridade, produzindo um suposto fascínio sobre o outro
como resultado dessa valorização das diferenças do lugar. O turista, simbolizado na
criança de traços orientais, nos permite entrever nessa representação, não um
fechamento, como se poderia supor daquela idéia de comunidade como trincheira, mas
uma abertura e um convite ao olhar desse outro, seduzido pelo exotismo do lugar.
Trata-se do mesmo tipo de chamamento contido na imagem abaixo, em que o menino,
do interior de seu tapiri
210
, ostenta sua identidade (sua diferença), seu universo
extrativista da produção da borracha e convida o observador a conhecê-lo.
Material de divulgação turística do estado, produzido e distribuído pela Secretaria de Turismo do
Acre, em parceria com Sebrae e Ministério do Turismo.
A leitura proposta para os sentidos construídos nessa imagem se confirma
quando observamos tratar-se de material de divulgação turística, elaborado e
distribuído pela Secretaria de Turismo em parceria com outras entidades de incentivo à
iniciativa privada, como é o caso do Sebrae.
210
Espécie de cabana ou barraco rústico, muito comum no interior das comunidades da Amazônia.
122
Isso marca uma diferença importante em relação à idéia de comunidade,
conforme demarcação proposta por Castells, na medida em que se percebe que o
exotismo realçado assume mais a função de inserir o local no global, via sedução pela
imagem, do que constituir barreiras às possíveis ameaças do universo externo.
Com a intensidade do investimento em publicidade oficial e a super disseminação
das referências constituídas pelo discurso do Governo da Floresta, tornou-se tão na
moda ser acreano que o setor empresarial identificou a possibilidade de pegar carona
na elevação da auto-estima acreana. Seguindo a estratégia do governo, as empresas
passam a também buscar a identificação de suas marcas com o sentimento em voga e
com as referências irradiadas pelo discurso da florestania. Empresas de artesanato, de
transporte coletivo, do setor de confecções e de medicamentos, para citar alguns
exemplos, passam a também investir no fortalecimento dos valores de pertencimento,
operando a adaptação de suas marcas e campanhas.
Referências à natureza e à valorização da acreanidade na publicidade do setor empresarial.
É no auge da “revalorização” da acreanidade que surge um curioso duelo
publicitário entre os dois maiores supermercados da capital, numa competição para
123
demonstrar qual deles seria mais acreano: o Araújo Supermercados ataca com o
slogan “Orgulho de ser acreano”, como se verifica na peça abaixo, em que a imagem
do Palácio Rio Branco, reformado, ao fundo, alude à idéia de reconstrução, de
renovação, articulando-se ao ideal de grandeza trabalhado no discurso oficial.
Material publicitário da rede de supermercados Araújo.
Do outro lado, a rede de supermercados rondoniense Gonçalves, para superar o
estigma de ser “de fora”, adota o slogan “Mais acreano impossível”, cujo esforço é
satirizado nesta nota do jornal Página 20, que não perde a oportunidade de,
associativamente ao drama do supermercado, desqualificar opositores políticos da
FPA originários de outros estados:
Gonçalves
A possibilidade de ser formada uma chapa pelos ex-deputados federais Márcio
Bittar (PPS) e Sérgio Barros (PSDB) já ganhou um apelido: Supermercado
Gonçalves, a rede rondoniense que tem como slogan “Mais acreano
impossível”. Bittar é sul-matogrossense e Barros é paulista, mesmo assim dizem
que “têm orgulho de serem acreanos”
211
.
O fenômeno é registrado ainda em artigo do mesmo jornal em que o articulista,
referindo-se às duas administrações de Jorge Viana, defende que a atenção dos
acreanos “passou a ser despertada para uma espécie de civismo coletivo traduzido
nas bandeirinhas com as cores do Estado orgulhosamente afixadas em carros
particulares ou mesmo nas propagandas do comércio em que havia uma verdadeira
concorrência entre o ‘orgulho de ser acreanocom o ‘mais acreano impossível”
212
.
Tais fenômenos, além de nos fornecerem uma noção aproximada do grau de
disseminação social desses valores, permitem visualizar um contexto político
amplamente favorável, articulado a um considerável índice de legitimidade do projeto e
das lideranças da FPA, numa conjuntura completamente desprovida da concorrência
de uma oposição qualificada. Com a força difusora de praticamente toda a mídia à
211
Página 20, 6 de março de 2004.
212
Página 20, 25 de maio de 2006.
124
disposição, a florestania se impõe como uma síntese de valores culturais associados à
idéia de um merecido reecontro dos acreanos com uma essência de acreanidade,
também expressa numa “reconquistada” harmonia entre homem e natureza, fundada
nos fazeres e valores de uma “existência” na floresta.
Em seu momento áureo, de incontestável hegemonia cultural e política no cenário
acreano, o ideário da florestania contou com formulações das mais elaboradas e
certamente romantizadas, expressas na voz de importantes figuras do jornalismo
acreano. Tido como o criador da expressão florestania e sistematizados dos valores
nela evocados, Antônio Alves, certamente em momentos de maior crença na sintonia
entre princípios e práticas, nos apresenta ao que, para ele, constitui o sentido profundo
de sua formulação:
Mas o que é, afinal, essa tal Florestania? "A cidadania na floresta" costuma
ser a resposta simples e apressada. É isso, sim, mas é algo mais. Além de um
conjunto de relações sociais, direitos, deveres, leis e conquistas, a florestania
é um sentimento que pode ser expresso da seguinte forma: a floresta não nos
pertence, nós é que pertencemos a ela. Esse sentimento nos induz a
estabelecer não apenas um novo pacto social, mas um novo pacto natural
baseado no equilíbrio de nossas ações e relações no ambiente em que
vivemos. É um sentimento orientador para nossas escolhas econômicas,
políticas e sociais – e por isso inclui a cidadania – mas orienta também nossas
escolhas ambientais e culturais – e por isso a transcende
213
.
Na mesma direção, porém numa linguagem marcada por uma carga maior de
emotividade e até de poesia, Elson Martins, o conhecido jornalista dos tempos do
Varadouro, dá a sua interpretação do que sejam esses valores:
As expressões "Governo da Floresta" e "Florestania" ampliam nossas
esperanças de construir uma sociedade amazônica original inspirada na
história, na cultura e na vocação lúdica dos nossos espaços. Eu as percebo
como fachos de luz clareando os varadouros da nossa identidade. (...)
Devemos juntar as sabedorias, as descobertas tecnológicas com as reflexões
acadêmicas e a vivência dos povos da floresta, agitar e servir. É dessa
mistura, bem dosada, que vamos obter o pacto de fé, faca amolada, para
esculpir o homem "florestino"
214
. (grifos meus)
Em ambas as definições é forte o sentido de busca identitária nas práticas e
modos de vida das chamadas “populações tradicionais”, representadas nesse discurso
como as “guardiãs naturais” do ambiente e da cultura amazônida, vistos como
indissociáveis. O “pacto” a que se refere Alves estrutura de forma sistemática aquilo
que, em sua concepção, deve orientar as decisões e ações nas esferas social,
213
Antônio Alves (2004), op. cit., p. 129.
214
Élson Martins, “Amazônia, pacto de fé, faca amolada”. Revista Outras Palavras. Fundação Estadual
de Cultura do Acre, edição de abril de 2000, p. 15.
125
ecológica e econômica, num tempo e num ritmo definidos pela lógica da natureza,
supondo-se, portanto, que o tempo e a urgência típicos do mercado e do capital não
devam se sobrepor à lógica da natureza, pois “nós é que pertencemos a ela”.
Martins, por sua vez, fala de “mistura bem dosada” entre ciência e tradição, mas
enfatiza a idéia de um homem esculpido” segundo um conjunto de tradições culturais
e uma memória específica. Mantendo essa ênfase, é num outro texto que o jornalista
complementa os contornos desse homem, da sociedade e das práticas produtivas
encerradas no (a partir de então) conceito de florestania. Diz ele: “para mim, a palavra
florestania é prima-irmã de acreanidade. E entram conceitos e sentimentos de uma
sociedade singular, extrativista por excelência, que tem uma identidade construída em
contato íntimo com a natureza e com relações humanas muito fortes”
215
.
A idéia de reencontro com um “sentimento” de identidade, ao qual se referem os
dois jornalistas, foi o cerne do trabalho intensamente trabalhado na mídia local, em
alguns casos com fortes alusões à recuperação de uma essência identitária, como se
verifica em títulos de notícias e artigos como “Acre verdadeiro” ou “Paraíso recuperado”
(abaixo). No segundo exemplo, a alusão a uma idéia de autenticidade vem colada com
a imagem de harmonia e integração com o ambiente natural que esse discurso logra
construir. Como se poderá depreender de outros títulos e manchetes bastante
significativos, reproduzidos na lista abaixo, o trabalho de organização e alimentação de
uma memória vinculada à acreanidade e ao fortalecimento dos vínculos com o lugar foi
a tônica das difusões midiáticas do período. Entretanto, em nossa leitura destes
enunciados, o título que melhor define esse momento cultural vivenciado no Acre, sob
o agenciamento ideológico do discurso da florestania e a construção da imagem de um
estado modelo, com seus conflitos sociais e ambientais supostamente harmonizados e
uma natureza “generosamente” provedora de riquezas e qualidade de vida para sua
população, é a última ocorrência da lista abaixo
216
, ao avaliar que “O Acre hoje é uma
grife”.
Rio Branco, 19 de novembro de 2003
ACRE VERDADEIRO
Resgate Histórico
Rio branco, 1 de junho de 2003
O PARAÍSO RECUPERADO
Rio Branco, 13 de julho de 2003
Rubens Balestro
215
Elson Martins, “Lições de Florestania”, Revista Outras Palavras, julho de 2002, p. 10.
216
Textos publicados no jornal Página 20.
126
“NO ACRE, CHEGUEI NA VERTENTE DAS COISAS DO BRASIL”
Rio Branco - Acre, quinta-feira, 3 de julho de 2003
SAUDADE, TEU NOME É ACRE
No Acre o verde é mais verde que em outros lugares; a chuva; o ar; o cheiro é
único. Saudade, teu nome é Acre, terra amada e jamais esquecida
Rio Branco, 1 de maio de 2003
Maqueson Silva
“O CENTRO DO MUNDO É AQUI TAMBÉM
Rio Branco, 30 de julho de 2003
Carol Freitas
“O ACRE HOJE É UMA GRIFE”
Se concordarmos com Jameson
217
no que diz respeito à importância do cultural e
das marcas para a transmutação de um produto em mercadoria em tempos dominados
pela imagem e pela cultura de consumo predominantes na mídia, somos levados a
concordar com a definição de Carol Freitas no tocante a um dos papéis assumidos por
essa construção discursiva como alimentadora de um imaginário em que as culturas
são incentivadas a se ornamentar para o olhar do outro, sobretudo para os detentores
do capital. Nesse sentido, a melhor expressão da imagem construída por esse
discurso sobre a relação homem/natureza/identidade no Acre é, certamente, esta: a de
uma grife. Uma grife que assume múltiplas funções na reestruturação das relações de
poder tanto internamente, mediante a legitimação de um projeto e de um grupo político,
mas também como uma imagem cultural, um invólucro étnico destinado a atrair a
atenção dos capitais para o comércio dos bens naturais especialmente madeira,
como se revelará o núcleo desse projeto –, atuando externamente como um
apaziguador da “consciência ecológica” de consumidores de produtos florestais mundo
afora, numa época em que a preocupação ambiental tornou-se o premente. Vale
recuperar aqui a reflexão proposta por Barbero
218
, quando avalia que na lógica que
rege a relação entre as culturas na globalização, “a identidade local é conduzida para
se transformar em uma representação da diferença que a faça comercializável, isto é,
submetida a maquiagens que reforçam seu exotismo e a hibridações que neutralizem
suas classes mais conflitivas”.
De todo modo, refletindo sobre a abrangência alcançada pela irradiação desse
“estado de espírito” suscitado pelos agenciamentos de sentido advindos da noção de
florestania, bem como sobre a receptividade demonstrada em relação a essa
construção, como vimos logo acima no caso da assimilação pelo setor empresarial,
parecem-nos bastante apropriadas as observações de Foucault sobre as
217
Fredric Jameson (2002), op. cit.
218
Jesús Martín-Barbero (2006), op. cit., p. 61.
127
configurações do poder e a positividade que ele assume e na qual muitas vezes se
apóia em certos contextos. Conforme esse autor:
a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe
justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela
repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder;
identifica-se o poder a uma lei que diz o. O fundamental seria a força da
proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do
poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente
repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que
seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é
simplesmente que ele o pesa só como uma força que diz não, mas que de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir
219
.
3.2. A concepção de valorização cultural dos povos da floresta e o
desenvolvimento sustentável: fissuras entre princípios e práticas
Com a grande ênfase nos valores e no fazer da cultura extrativista em sua
configuração “tradicional”
220
, como exposto acima, era de se supor que numa
administração com o slogan Governo da Floresta, as práticas e hábitos do universo de
produção dos seringueiros saíssem fortalecidos, estabelecendo uma conformidade
com o novo arranjo cultural suscitado pelos agenciamentos do discurso irradiado.
Afinal, como asseguravam lideranças do próprio governo, “Governo da Floresta é
símbolo de que esse núcleo dos herdeiros da luta dos povos da floresta é o cleo de
maior densidade no interior desse governo”.
221
Conforme mencionado no capítulo anterior, dentre as primeiras medidas práticas
implementadas logo no início do primeiro mandato estava a criação chamada Lei Chico
Mendes, destinada a incentivar a produção da borracha através do pagamento, pelo
Estado, de um subsídio que elevaria artificialmente o preço do produto. Com esse
estímulo, esperava-se não aumentar a produção, mas diminuir a pressão urbana
por habitação e serviços sicos, uma vez que o retorno das famílias às unidades
produtivas era um dos resultados esperados. Na mesma direção, com o objetivo
alegado de valorizar a atividade extrativista tradicional, supostamente no lastro da
219
Michel Foucault, Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 7-8.
220
Conjunto das práticas extrativistas, especialmente a produção de borracha e coleta de castanha, que
apesar de não serem originariamente desenvolvidas por populações nativas (os indígenas), tornaram-se
a tradição laboral e produtiva que possibilitou a formação histórica do estado, após mais de um século
de atividades.
221
Entrevista de Antônio Alves concedida a Horácio Sant’Ana Jr., em 05.02.2000, publicada em
“Desenvolvimento e Conservação Ambiental: Políticas sócio-ambientais do Governo do Acre”, III
Encontro da Anppas, 23 a 26 de maio de 2006, Brasília-DF.
128
experiência das Resex, o governo cria em sua estrutura administrativa, também nos
primeiros meses de governo, a Secretaria Executiva de Floresta e Extrativismo, como
garantia de efetivação na mudança do modelo de desenvolvimento. Nas palavras de
Raimundo Angelim, então Chefe do Gabinete institucional do governo e atual prefeito
de Rio Branco pelo PT
222
, “a Secretaria de Extrativismo não é a mais importante, mas
tem a função de resgatar o extrativismo, que faz parte da história do Acre, implantando
a florestania”.
223
Essa implantação, no entanto, com todas as supostas implicações e sentidos
enfatizados até aqui, ocorre de forma associada a um outro conceito bastante difundido
no mundo da produção capitalista e das estratégias de mercado, a partir do final da
década de 1980: o de “desenvolvimento sustentável”
224
. Uma noção pouco precisa e
cada vez mais generalizada nos discursos do mercado, de governos, de instituições
financeiras e do próprio movimento ambientalista mundial, o termo se apresenta,
genericamente, com a finalidade de estabelecer matrizes mundiais de desenvolvimento
e práticas produtivas fundadas em critérios de justiça social, viabilidade econômica e
conservação ambiental. Entretanto, conforme sinaliza a pesquisadora Berta Becker,
trata-se de uma estratégia muito bem elaborada pelos agentes do mercado na busca
de superar as evidências de esgotamento da lógica expansionista do capital nas
relações sociais e ambientais por ele instituídas. Nesse sentido, a incorporação do
discurso ambientalista aos interesses de mercado, particularmente em torno da idéia
de “defesa do patrimônio amazônico”, estabelece uma pretensa convergência de
objetivos entre “povos da floresta, ambientalistas nacionais e mundiais, governos
estrangeiros e firmas detentoras da tecnologia moderna”
225
.
Tal articulação manifesta sempre na forma de grandes parcerias entre
organismos multilaterais, empresas multinacionais, governos estaduais e prefeituras,
ONGs e comunidades locais – marca, portanto, nessa nova fase de acumulação
capitalista caracterizada pela incorporação de algumas demandas de cunho sócio-
ambiental, uma busca de legitimidade, em âmbito local e global, para um modelo
produtivo fortemente questionado desde o final dos anos 1960, inclusive com boicotes
222
Eleito para o segundo mandato nas eleições municipais de outubro de 2008.
223
Publicado por Horácio Sant’Ana Jr. (2006), op. cit.
224
A expressão desenvolvimento sustentável foi definida e formulada pela Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), realizada pela ONU, em 1983, como o tipo de desenvolvimento
que atende às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das futuras gerações
atenderem às suas próprias necessidades. O conceito de desenvolvimento sustentável está presente no
documento “Nosso futuro comum”, mais conhecido como Relatório Brundtland, publicado em 1987.
225
Bertha Becker, Amazônia. São Paulo: Ática, 1990, p.7.
129
ao consumo de produtos madeireiros oriundos de florestas tropicais. Com a
intensificação das reformas neoliberais, a descentralização administrativa do Estado e
o avanço da ideologia do livre mercado por meio da presença cada vez mais intensa
de capitais e empresas multinacionais, o “radicalismo” que marcara o confronto pela
via política vai, progressivamente, a partir do final dos anos 1980, cedendo lugar ao
pragmatismo das oportunidades de mercado e originando fórmulas como a do
desenvolvimento aliado à conservação do meio ambiente, ou o “uso racional” dos
recursos naturais
226
.
Se no primeiro momento, nos EUA e em países ricos da Europa, o boicote ao
consumo de produtos de origem florestal amazônica constituía a principal estratégia de
questionamento político contra a degradação ambiental e a exploração do trabalho
pelo capital, nos anos 1990, inversamente, o chamado “consumo consciente” ou
“ecologicamente correto” transforma-se em estratégia de defesa do meio ambiente,
com a alegada vantagem de ainda gerar riquezas e qualidade de vida em
“comunidades tradicionais” ligadas à vida na floresta. Ou seja, o lema torna-se algo do
tipo: consumir para conservar. De acordo com as reflexões apresentadas pelo
sociólogo alemão Robert Kurz sobre essa mudança de orientação tanto no sentido
atribuído ao consumo quanto no reconhecimento da finitude dos recursos, antes vistos
como ilimitados, é possível identificar
(...) uma crise do próprio capital, que, sob as condições da terceira revolução
industrial, esbarra nos limites absolutos do processo real de valorização.
Embora ele deva, segundo sua lógica, expandir-se eternamente, em seu próprio
chão ele escada vez menos em condições para tal. Dresulta um duplo ato
de desespero, uma fuga para a frente: de um lado, surge uma pressão
assustadora para ocupar ainda os últimos recursos gratuitos da natureza, de
fazer até mesmo da "natureza interna" do ser humano, de sua alma, de sua
sexualidade, de seu sono o terreno direto da valorização do capital e, com isso,
da propriedade privada. De outro, as infra-estruturas públicas administradas
pelo Estado devem ser administradas, também no vai ou racha, por setores do
capitalismo privado
.
227
Nessa lógica privatista, o discurso do desenvolvimento sustentável, além de
solucionar um problema de ordem política e econômica, constitui um fator de
demarcação e legitimação, via chancela do conhecimento técnico-científico, dos
agentes que dispõem das condições tecnológicas e, portanto, de legitimidade para
explorar os recursos, constituindo assim um mecanismo eficaz de reserva de capital
226
Nicole Freris and Klemens Laschefski, “Saving the wood from the trees”. The Ecologist. Vol. 31, Nº 6,
July/August 2001.
227
Folha de São Paulo, 14 de junho de 2002, Caderno Mais!
130
natural em benefício dos interesses dos capitais privados. A questão ética e política do
uso dos recursos naturais como bens públicos, neste contexto, transforma-se num
mero problema de aplicação da técnica. Assim, associado ao poder econômico de
quem dispõe de tecnologia para exploração, visualiza-se aí uma competente
mobilização de estruturas de saber na produção de poder. Nesse sentido, como
observa Mészáros
228
a propósito da função estratégica da ciência e tecnologia na
lógica do mercado, elas “sempre tiveram de ser utilizadas com enorme seletividade,
conforme o único princípio de seletividade à disposição do capital (...) A ciência e a
tecnologia poderão ser utilizadas a serviço do desenvolvimento produtivo se
contribuírem diretamente para a expansão do capital e ajudarem a empurrar para mais
longe os antagonismos internos do sistema”.
Embora no novo discurso do mercado o fator ambiental seja apresentado como
uma variável “importante”, a crença depositada nas potencialidades da ciência e da
técnica parece reproduzir a velha fórmula baseada na necessidade de gerar
desenvolvimento para que seus frutos, no plano das inovações tecnológicas, possam
apresentar soluções técnicas para eventuais efeitos colaterais do próprio processo de
desenvolvimento, ou seja, a conservação depende do desenvolvimento. Seguindo
esta percepção nos associamos a Sachs
229
, quando interpreta a articulação entre
“desenvolvimento” e “sustentabilidade” de acordo com a seguinte síntese: “‘Não
desenvolvimento sem sustentabilidade; não sustentabilidade sem desenvolvimento’
(...) Desenvolvimento emerge rejuvenescido dessa ligação, o conceito agonizante
recebe outro sopro de vida”. Isto porque, continua ele, “sempre que, nos últimos 30
anos, os efeitos destrutivos do desenvolvimento eram reconhecidos, o conceito era
esticado de maneira que englobasse a lesão e a terapia (...) O Relatório Brundtland
incorporou a preocupação com o meio ambiente para dentro do conceito de
desenvolvimento, erigindo ‘desenvolvimento sustentável’ como abrigo conceitual tanto
para agredir como para sanar o meio ambiente”.
Dialogando com esse autor, Elder Paula sublinha que os significados de
“desenvolvimento sustentável” que passam a orientar os interesses privados sobre a
Amazônia a partir da década de 1990 são aqueles predominantemente referenciados
nas diretrizes do Banco Mundial (BIRD) e do Banco Interamericano de
228
Istivan Mészáros, Para além do Capital. Campinas: Ed Unicamp/Boitempo, 2002, p, 254, apud Elder
Paula (2005), op. cit., p. 272.
229
Wolfang Sachs, A crise da política e sua recriação democrática. Democracia Viva (Rio de Janeiro:
IBASE), (1), 1997, apud Elder Paula (2005) op. cit., p. 280.
131
Desenvolvimento (BID). Isso porque, de acordo com a reflexão proposta por Sachs,
não obstante a incorporação do discurso da conservação ambiental e de justiça social,
ao definir sinteticamente “desenvolvimento sustentável” como “aquele que dura”, essas
agências operam sucintamente uma submissão da conservação ambiental ao
crescimento econômico. O conceito daí resultante, diz ele, “mudou sutilmente o locus
da sustentabilidade da natureza para o desenvolvimento. Antes, ‘sustentável’ se referia
à produção da natureza, agora se refere ao desenvolvimento” (...) Por isso, acrescenta,
“como ‘desenvolvimento é conceitualmente uma casca vazia, que pode envolver
qualquer coisa, todos os tipos de atores políticos, mesmo fervorosos protagonistas do
crescimento econômico podem hoje expressar suas intenções em termos de
‘desenvolvimento sustentável’”
230
.
Esse significado torna-se particularmente perceptível nos termos do documento
apresentado pelo Banco Mundial, ao definir a Matriz da Estratégia de Assistência ao
Brasil (1998 2000)
231
que, de acordo com Paula
232
, contempla quatro eixos, três dos
quais vinculados ao desenvolvimento e sustentabilidade ambiental, quais sejam:
“reforma do setor público; infra-estrutura e desenvolvimento do setor privado;
sustentabilidade ambiental”. O quarto eixo refere-se à preocupação com a “pobreza
rural e urbana”, conformado no conceito de “desenvolvimento social”.
No caso específico da Amazônia, além das recomendações referentes à
“conservação de ecossistemas prioritários”, gerenciamento eficiente e sustentável de
recursos de importância estratégica, como biodiversidade, água, florestas, terra e
minimização de problemas relacionados à poluição, além da ênfase na gestão
participativa do desenvolvimento sustentável, a assistência finalmente condiciona tudo
isso à “utilização de uma abordagem econômica na determinação das prioridades
ambientais e estratégicas de gerenciamento do custo/benefício”.
233
Essas são, pois, as
matrizes e os significados de “desenvolvimento sustentável” que chegam à Amazônia
e, particularmente, ao Acre, nos anos 1990, intensificando-se na vigência do Governo
da Floresta, sob o manto da florestania em sua política de valorização do fazer
extrativista.
As facilidades oferecidas pela imprecisão do conceito de “desenvolvimento
sustentável” possibilitaram que essa nova configuração da investida do capital sobre a
230
Wolfang Sachs (1997), ibid, p. 278.
231
Documento intitulado “Memorando do presidente do BIRD e CFI aos Diretores Executivos sobre uma
Estratégia de Assistência do Grupo Banco Mundial para a República Federativa do Brasil”.
232
Elder Paula (2005), op. cit., p. 280 – 281.
233
Elder Paula (2005), Ibid, p. 282.
132
natureza adquirisse, assim, a forma de valorização das práticas e da cultura
extrativista. Num trabalho articulado com a operação discursiva de valorização
identitária através das referências ligadas ao universo da floresta e do extrativismo, o
discurso da florestania, no uso do lugar e dos recursos privilegiados de fala de que
dispunha e mediante um intenso manejo de símbolos, passa a hospedar no interior da
cultura e do fazer extrativista significados e práticas referenciadas nos interesses do
capital, operacionados conceitual e discursivamente pela noção de “desenvolvimento
sustentável”.
Assim, ao enfatizar o sentido de “opção pela floresta”, como destacado na fala
das lideranças do governo, a viabilização dos interesses do capital na exploração das
riquezas naturais é percebida publicamente como a contemplação, no plano
econômico e ambiental, via políticas governamentais, das conquistas alcançadas pelos
movimentos sociais. Desse modo, por mais que as iniciativas implementadas
apresentem um caráter eminentemente econômico e mercantilista no tocante ao
fornecimento de matéria-prima para a produção industrial, com destaque especial para
madeira, no discurso difundido na mídia as ações tendem a ser sempre caracterizadas
como desdobramentos fortalecidos do trabalho e luta dos “povos da floresta”. Essa
estratégia discursiva pode ser observada com bastante clareza na primeira
entrevista concedida por Jorge Viana a um jornal local após a eleição para seu
segundo mandato, em 1 de janeiro de 2003. Diz ele, ao avaliar o primeiro mandato,
fazer prognósticos quanto aos próximos cem anos e apontar as medidas necessárias
ao desenvolvimento:
Nós trabalhamos duro neste primeiro mandato para reconstruir o Acre. Agora
vamos construir. Temos uma oportunidade única de iniciarmos os próximos 100
anos da nossa história de maneira certa (...) Nosso segundo mandato passa,
principalmente, por uma economia forte, consolidada e baseada na florestania,
com indústrias sendo implantadas (...) Será o momento em que o Acre passa
verdadeiramente a ter um setor privado. temos um governo e agora
precisamos ter uma economia sustentável. Vamos atacar forte a economia da
nossa floresta. Temos a maior e mais rica floresta do mundo e precisamos usar
os nossos talentos, nossos conhecimentos para consolidar esse novo momento
que o estado vive. Nós criamos as condições no primeiro mandato com boas
leis que foram aprovadas na Assembléia, e os deputados nos ajudaram muito
nisso, para ter uma boa lei de incentivos fiscais, temos um novo distrito industrial
sendo construído (...) sabemos qual o rumo que norteará nossa economia nos
próximos 100 anos, baseada na sustentabilidade da floresta
234
.
Neste trecho fica bastante evidente a adesão do governo às “orientações”
colocadas pelas agências multilaterais no tocante à “modernização” do Estado para a
234
Entrevista publicada no Jornal A Tribuna, 01 de janeiro de 2003.
133
entrada dos capitais privados, modernização esta materializada na aprovação de
legislação que desfaz os embaraços para o domínio dos capitais, principalmente no
setor madeireiro. Apesar disso, o processo é representado como uma ação articulada
de dentro para fora, como uma ação baseada nos “talentos” e “conhecimentos” das
culturas tradicionais e na expressão de seus anseios.
Em outro ponto da entrevista, perguntado sobre como viabilizar um projeto de
fortalecimento econômico de orientação capitalista com as experiências de “um estado
com fortes bases socialistas” (na expressão usada pelo jornalista), o governador não
esconde a opção pelo mercado, mas sem abandonar a idéia de um mercado domado e
reconfigurado pelas experiências locais, que se tornam influenciadoras dos processos
experimentados mundo afora:
Jorge Viana - É o que chamo de choque do capitalismo da sustentabilidade,
como uma forte visão social. Nós buscamos na base da relação
homem/natureza um governo social dentro da nova realidade que o capitalismo
e o mundo vivem. Nosso projeto está baseado na educação. Vamos investir
ainda mais na ideologia do desenvolvimento sustentável aliando teoria e prática.
Nós temos a nossa ideologia rabiscada, que é a florestania. O Acre é vitrine e
precisa continuar sendo vitrine, principalmente agora que o Lula foi eleito, a
Marina está no Ministério do Meio Ambiente. É uma grande honra para o Acre,
mas nós precisamos ser os melhores no meio ambiente. Precisamos ser ainda
mais transparentes. Precisamos continuar sendo exemplo. Se o Lula estiver
numa reunião com governadores e alguém reclamar que o meio ambiente é
ruim em São Paulo, em Minas, onde os governadores são do PSDB, nós
precisamos dar condições para que ele diga “olha, no Acre é bom”. É uma
grande responsabilidade, claro, e vamos trabalhar cada vez mais para que
sejamos dignos do respeito do nosso povo e do país.
A Tribuna – Inserindo definitivamente o Acre no mapa do País?
Jorge Viana Com certeza. Nós temos a possibilidade de tornar o Acre uma
marca importante para o país e para o mundo.
Seja nas intervenções do jornalista ou na fala do administrador, é visível um
retorno permanente de aspectos ligados à identidade, a uma integração malfeita com
restante do país e à necessidade de aceitação pelos “outros”. Os constantes
chamados a “dar exemplo”, a conquistar o “respeito do povo e do país” e a “tornar o
Acre uma marca importante para o país e o mundo” o traços característicos desse
discurso, como se o reconhecimento externo pelas conquista políticas, econômicas e
ambientais atuais tivessem um efeito balsâmico para profundas e antigas feridas.
Feridas estas que o próprio discurso legitimador, entretanto, não cessa de magoar.
Nesse jogo em que, sistematicamente, se resgata a “enfermidade” e se apresenta o
alívio, a sociedade como um todo é conclamada a participar da construção de um novo
estado e se tornar merecedora, pela via do desenvolvimento econômico e do “cuidado
com o ambiente”, do reconhecimento tão esperado. Os enunciados e imagens
134
reproduzidos abaixo dão uma boa noção desse esforço de aglutinação de forças, bem
como da disposição de irradiar “para o mundo” as conquistas ali realizadas.
Jornal A Tribuna: acima esq., 01.01.03; acima dir., 01.02.03; abaixo esq., 07.01.03, posse dos
secretários de governo; abaixo dir., 6.02.03, governador e Secretário dos Povos Indígenas
recebem presidente da Fundação Roberto Marinho, José Irineu Roberto Marinho.
Diante da clara opção pela economia e pela conformação de um mercado de
produtos florestais, é possível perceber evidências significativas de que a chamada
“opção pela floresta” (numa referência contrária às políticas de pecuarização
implantadas anos 1970 e 1980), bem como a “valorização” das culturas e práticas
atribuídas às “comunidades tradicionais” constituíram um invólucro importante para a
viabilização de um novo tipo de colonização pelos capitais privados, desta vez figurada
como algo gestado no interior das práticas extrativistas e “exportado” como exemplos a
serem seguidos, como se verifica nos dois recortes da coluna direita, acima, em que a
narrativa jornalística apresenta representantes de conhecidas instituições de fora do
estado indo “aprender” com as experiências ali desenvolvidas. O potencial gerador de
identificações e engajamentos coletivos presente nesse tipo de abordagem, pelo
135
processo de negação/reconhecimento ao qual se remete constantemente, produz, ao
que parece, resultados significativos em termos de legitimidade política para o núcleo
do grupo ocupante do poder estatal, com especial destaque para sua liderança mais
destacada, conforme atesta a edição do jornal A Tribuna, de 12 de janeiro de 2003.
Divulgação de pesquisa encomendada pelo jornal A Tribuna,
publicada em 12 de janeiro de 2003.
136
A análise desse tipo de abordagem realizada pela mídia local nos permite
verificar que o investimento na elevação da auto-estima, o estímulo à percepção de
uma melhora acentuada nas condições de vida e o fortalecimento dos laços de
pertencimento repercutiram diretamente na boa imagem e aceitação do governo e de
suas ações. Esse estado de coisas e a receptividade da população, reforçada
diariamente pelo trabalho jornalístico a fornecer “Boas notícias da aldeia” (como indica
o nome do jornal da TV estatal), foram essenciais para a viabilização dos projetos de
governo no setor produtivo. O elevado poder de alimentação do imaginário coletivo
alcançado pelos agenciamentos do discurso oficial possibilitou que a maioria das
ações desenvolvidas pelo governo logo fossem significadas publicamente com
medidas de fortalecimento da florestania, profundamente enraizadas na cultura local.
Num quadro assim favorável, não foi difícil ao governo levar a cabo as medidas
destinadas a inserir o Acre na “modernidade” de uma economia internacional, via
fornecimento de produtos florestais, num processo naturalizado por meio de uma
competente associação com a idéia de uma “vocação florestal”. Desse modo, a adesão
ao receituário dos organismos multilaterais envolvidos nessa virada do
desenvolvimento sustentável, revestida de uma roupagem “verde” e da suposta
“gestão comunitária” dos projetos nas comunidades extrativistas ou indígenas, vai
sendo significada como a mais genuína revalorização das culturas locais, tal como
propõem as referências contidas nas imagens abaixo.
Imagem publicada na página do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre, contrato
BID, no endereço http://www.ac.gov.br/contratobid.
137
Imagem publicada do site do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre.
As duas imagens parecem indicar a função de reforçar os princípios de
“sustentabilidade cultural” que regem a execução do contrato (1399/OC-BR) firmado
entre o governo do estado e a agência financeira, valorização esta que, entretanto, de
acordo com as diretrizes referidas anteriormente, deve subordinar os aspectos
ambientais, sociais e culturais às contingências econômicas. Por esta razão, para que
se efetive a chamada “gestão comunitária” do projeto, aponta-se a necessidade de
capacitação dos produtores e suas entidades representativas para uma competente
atuação no mercado, estratégia que nos fornece uma boa noção da grande capacidade
do capital de territorializar e capilarizar seus interesses.
É a observação de cenários como esse que nos permite interrogar sobre certos
procedimentos adotados tanto pelo Governo da Floresta, em articulação com setores
empresariais, quanto por alguns de seus agentes mais destacados quando o assunto é
a anunciada valorização cultural. Neste quesito, alguns aspectos chamam atenção. O
primeiro diz respeito à forma como se esse processo que, em alguns momentos,
gera a forte impressão de uma estratégia concebida fora dessas comunidades para
138
que elas executem, tendo sempre como horizonte as possibilidades de mercado. É o
que se lê, por exemplo, em notícias como esta:
Arte nativa no Kupixawa
Índios investem na tecnologia e no mercado para garantir a sustentabilidade da
arte e da cultura de seus povos
Ponto de encontro de todas as tribos, o Kupixawa (casa grande na língua huni
kuin) es reativado oferecendo o autêntico artesanato indígena na forma de
colares, alianças, cerâmica, tecelagem feita à mão e enfeitadas com os
desenhos sagrados (Kenês) dos kaxinawá, imagens também impressas em
camisetas de malha e bolsas de algodão cru.
235
Deve-se esclarecer que não se trata de, em essência, as comunidades indígenas
não deverem ou poderem vender seus produtos, coisa que, aliás, já o fazem há
bastante tempo. O que se procura observar com mais cuidado aqui é a natureza dessa
valorização da cultura, sempre subordinada à lógica mercantilista. O comércio das
imagens indígenas em roupas, referido no texto acima, é fruto de uma parceria entre
uma cooperativa da etnia Yawanawas e uma rede de lojas de grife acreana, Íris
Tavares, que se tornou a representante comercial de uma grife que leva o mesmo
nome da etnia. Nossa análise aponta, neste caso, para um processo de
espetacularização dessa cultura na forma de um apelo ao exotismo como atrativo
comercial. Trata-se de um processo que alerta para uma espécie de cosmética
aplicada pelo marketing comercial à imagem indígena a fim de que esta se torne o
mais adaptada possível aos olhos e ao gosto do consumidor branco. Essa forma de
apropriação articula-se convenientemente com o tipo legitimidade que essas culturas
particulares vêm emprestando ao projeto de desenvolvimento sustentável em curso no
estado. O mesmo processo de apropriação imagética pode ser visualizado nas figuras
reproduzidas abaixo, que registram o lançamento da grife Yawanawa em evento
organizado pela referida rede de lojas.
235
Jornal Página 20, 21 de dezembro de 2006, coluna ESPECIAL.
139
Lançamento da grife yawanawa pelas loja Íris Tavares, fotos publicadas em
www.iristavares.com/yawanawa.
Quando consideramos a natureza mercadológica desse tipo de apropriação,
aliada à organização de outras atividades realizadas nas próprias aldeias indígenas,
nossa leitura dessa forma de interação cultural parece se fortalecer. O evento
anunciado no folder abaixo, viabilizado por um planejamento conjunto entre governo,
iniciativa privada e a entidade representativa da etnia parece indicar uma
espetacularização mais ampla dessa cultura. O fenômeno não se limita a certos
produtos originários dessas populações, mas atinge o conjunto de suas manifestações
culturais, apontando para uma dependência das comunidades, em seu direito de ser e
de expressar, aos interesses de agentes externos.
140
Imagem publicada do blog de Altino Machado, http://www.altino.blogspot.com/, no site do
Senador Tião Viana, http://www.tiaoviana.com/, entre outros.
A imagem foi publicada no site do senador acreano, Tião Viana, um dos
apoiadores do Festival de Cultura Yawanawa, referenciado no folder, evento que
passou a acontecer anualmente após a constituição do Governo da Floresta. A
celebração é referida na mídia como a festa de celebração do “Paraíso reencontrado”.
De acordo com o texto do encarte especial do jornal Página 20, de 16 de setembro de
2007, “depois de cem anos do contato que massacrou, humilhou e escravizou o povo
Yawanawa, ele agora resgata sua identidade”. A evidente sugestão aí presente de que
esse grupo indígena só retoma o curso de sua história, com o “resgate de suas
tradições”, mediante as condições viabilizadas por uma articulação entre agentes
empresariais e governamentais é reforçada ainda pela reiterada associação desses
eventos a figuras do grupo político ocupante do poder, quando de sua divulgação na
mídia. O referido encarte destaca, por exemplo, do conjunto de outras fotos da
festividade, a seguinte, com a participação do senador como um de seus
colaboradores.
141
Participação do Senador Tião Viana no Festival de Cultura Yawanawa, em foto publicada em
encarte do jornal Página 20, 16 de setembro de 2007, dentre outros espaços,
inclusive no site próprio senador.
A idéia de que a mencionada revalorização acontece num movimento
impulsionado de fora para dentro, com uma “contribuição” significativa das instâncias
de governo, inclusive no planejamento de ações, torna-se ainda mais consistente à
medida que se tem acesso a informações como a da contração, pelo governo, de
empresas de engenharia para executar projetos de construção de kupixawa (espécie
de casa grande, salão) dentro das aldeias indígenas. O fato é noticiado por Altino
Machado como “Aberração na Florestania”, ao reproduzir o questionamento de um
deputado de oposição, que se refere ao fato nos seguintes termos:
Ao contratar uma empresa de engenharia para construir um kupixawa numa
aldeia o governo está contribuindo com a cultura indígena? Este tipo de “ajuda”,
por mais simpática que seja e renda os votos esperados, atua no sentido de
acelerar o processo de destruição da cultura indígena. Mais acertado seria dar
os recursos para que eles mesmos fizessem. Isso faz com que uma história
milenar seja substituída pelos traços de um arquiteto. É o mesmo que distribuir
telas de serigrafia aos caxinauás para que eles reproduzam suas artes ou um
maquiador para pintar seus rostos. Esse tipo de investimento não é próprio de
um governo que diz preservar os valores das culturas tradicionais. várias
outras maneiras do governo atuar dentro das aldeias visando à perpetuação da
142
vida e da cultura dos povos indígenas. Não deixá-los morrer por falta de
assistência à saúde é uma delas.
236
De acordo com a análise aqui proposta, esse tipo de medida parece não deixar
muitas dúvidas quanto à natureza da “valorização” implicada no projeto da florestania,
ao dar sinais de buscar traduzir para a zona franca das trocas de mercado as culturas
que afirma valorizar. A divulgação das ações mais recentes do programa de
desenvolvimento sustentável do Acre ações que embora extrapolem o recorte
temporal 1999 - 2006 relativo aos dois primeiros governos do PT revelam uma
continuidade dos projetos formulados nesses dois primeiros mandatos. As últimas
iniciativas anunciadas referentes ao trabalho de valorização das culturas indígenas no
Acre foram noticiadas pelo jornal O Globo, em 31 de outubro de 2008, dando conta de
que:
Acre quer levar brasileiros para conhecer tribos na Amazônia
O governo do Acre quer que os brasileiros conheçam as tribos da Amazônia.
Roteiro lançado recentemente na feira e Congresso da Abav inclui hospedagem
em aldeia indígena, compartilhando de atividades diárias como caça e pesca,
conhecendo também a culinária das tribos. O passeio inclui as aldeias dos
Poyanawa, Ashaninka e Yanawa, as mais estruturadas entre as 14 etnias locais.
(...)
O turismo diferenciado foi o nicho escolhido pelo Acre para desenvolver suas
atrações turísticas. A convivência nas aldeias é o produto mais recente. Os
Caminhos de Chico Mendes, da Revolução, do Pacífico e da Biodiversidade são
outras atrações disponíveis em que os turistas também podem conhecer o modo
de vida local, a história do estado e a trajetória do ambientalista Chico Mendes,
possibilitando experiências como entrar na floresta com um seringueiro para ver
ou participar da coleta do látex e ter uma aula sobre as espécies locais e a
importância da preservação ambiental.
Tal instrumentalização da cultura (travestida de revalorização do saber e do fazer
das comunidades da floresta) e das entidades representativas desses grupos na
consolidação de relações de mercado
237
, conforme também se verificará com as
associações, cooperativas e sindicatos de seringueiros, nos leva a partilhar
inteiramente da reflexão proposta por Canclini, ao ponderar que
Hoje se usa sociedade civil para legitimar as mais heterogêneas manifestações
de grupos, organismos não-governamentais, empresas privadas e até
indivíduos. Apesar dos vários interesses e estratégias que animam estes
setores, todos concordam em acusar o Estado pelas desgraças sociais e
236
Publicado no Blog do Altino, http://altino.blogspot.com/2008/04/aberrao-na-florestania.html, em 29 de
abril de 2008.
237
Alguns trabalhos recente vêm apontando a ação de ONGs internacionais, financiadas por capitais
privados, como o principal braço operacional do capital em comunidades extrativistas da Amazônia. Seu
campo de atuação estaria identificado principalmente com a avaliação de potencial de mercado para os
produtos florestais, bem como com a capacitação e treinamento de produtores diretos dentro das
estratégias mercadológicas.
143
supõem que a situação melhoraria se este cedesse iniciativas e poder à
sociedade civil. Mas como cada um entende de forma diferente este nome, esta
entidade amorfa aparece como uma típica comunidade imaginária.
238
3.2.1. De seringueiro a manejador-madeireiro: contradições da concepção de
valorização do extrativismo no Governo da Floresta
Tal como enunciado nas definições de florestania apresentadas no item 3.1
deste capítulo, seguindo as formulações delineadas por dois de seus principais
sistematizadores no plano intelectual – Antônio Alves e Élson Martins –, bem como nas
metas comumente anunciadas nas estratégias do desenvolvimento sustentável, a
preservação ambiental, a promoção de equidade social e a geração de riquezas e
bem-estar das populações figuram como finalidade última das políticas de
desenvolvimento concebidas para a região. A isso devem ser acrescentadas as
promessas de resgate e valorização cultural dos modos de vida e tradições dos
chamados “povos da floresta”.
Assim estruturado, esse discurso parece sinalizar para o fortalecimento de
atividades laborais e para um ordenamento territorial harmonizados com a concepção
das Reserva Extrativista, tal como apresentada no Encontro Nacional dos
Seringueiros, em outubro de 1985, e aprovada por Decreto-lei em 1990, atendendo,
segundo as palavras do próprio Chico Mendes, à
necessidade urgente de se evitar o desmatamento na Amazônia. Pensamos em
criar uma alternativa de preservação sem tornar a Amazônia um santuário
intocável, mas garantindo a sobrevivência com dignidade dos que vivem na
floresta. As reservas extrativistas seriam terras da União com direitos de
usufruto para os que nelas habitam e trabalham. Os vários tipos de
trabalhadores extrativistas, da juta, do babaçu, da borracha, castanha e outros
produtos. Nessas reservas o trabalhador continuaria a explorar os recursos que
antes explorava. Outros produtos, da infinidade de riquezas naturais que se
encontra na mata, passariam a ser utilizados de maneira não predatória,
tornando viável economicamente as reservas
239
.
Pelo que se pode depreender da estratégia de confronto político construída pelo
movimento, a incorporação de parte significativa do território acreano ao patrimônio da
União para regularização jurídica, via Contrato de Concessão de Uso, articulada ao
direito de permanência dos extrativistas nas áreas em disputa representou uma
conquista importante contra o avanço do capital privado, materializado, naquele
238
Nestor Garcia Canclini, Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ, 2001, p. 57.
239
Pedro Vicente Sobrinho, Chico Mendes: trajetória de uma liderança. In: Paula, Elder; Silva, Silvio
Simione. Trajetórias da Luta Camponesa na Amazônia Acreana. Rio Branco: Edufac, 2006, p. 43 – 44.
144
momento, na implantação da pecuária e na extração madeireira. Ficavam garantidas,
assim, as condições para reprodução sociocultural das práticas extrativistas, para as
quais a integridade da floresta figurava como ponto essencial.
Adicionalmente, no conjunto das propostas concebidas para as reservas,
conforme esclarece Elder Paula, constava a necessidade de investimento público em
pesquisas que, articuladas aos conhecimentos tradicionais dessas populações,
potencializassem formas de uso múltiplo da biodiversidade florestal ainda
desconhecidas sem, no entanto, deixar de fornecer investimentos e subsídios
necessários ao fortalecimento imediato das atividades consagradas. Outro dado
importante a ser sublinhado nessa configuração original das reservas diz respeito ao
seguinte aspecto enfatizado por Paula, ao assegurar que “a exploração de madeira
para fins comerciais é absolutamente descartada nesse esboço da proposta de
Reserva Extrativista”
240
.
Por fim, outro avanço esperado no conjunto das conquistas políticas e sociais
implicadas na configuração das reservas refere-se ao fortalecimento das organizações
representativas, especialmente do cooperativismo e do sindicalismo, orientados,
respectivamente, para a organização, no plano econômico, de um sistema que
aumentasse os níveis de renda das populações mediante a eliminação das cadeias de
atravessadores envolvidos nas operações mercantis e, no plano político,
assegurassem o máximo de autonomia política a esses agentes. Ou seja, completa
Paula, “procurava-se construir ‘por baixo’ a sustentabilidade econômica, sociocultural e
política da Resex”
241
.
Diante desse arcabouço sociocultural e político-econômico construído pelo
movimento em articulação com setores da intelectualidade e instituições ambientalistas
internas e externas ao Acre, resultando num conjuntural fortalecimento de setores da
sociedade civil, era de se supor que ao se legitimar politicamente como tributário
desses embates (empates) e conquistas do movimento extrativista, o núcleo do grupo
político que embasa o projeto da florestania, via programas de governo, respeitasse os
princípios orientadores definidos pelo movimento na defesa de uma identidade laboral
e das bases materiais necessárias ao seu exercício.
Assim, caberia criar as condições para a viabilidade financeira das atividades
consideradas tradicionais (após mais de um século de prática), como a produção da
240
Elder Paula (2006), op. cit., p. 120.
241
Elder Paula (2006), Ibid, p. 120.
145
borracha e da castanha, e implementar outras alternativas de base florestal que, como
enfatiza a fala do próprio líder seringueiro, não transformassem a Amazônia num
“santuário intocado”, mas garantissem a sua manutenção. Dessa forma, segundo a
lógica que orientou o movimento até o final da década de 1980, estariam asseguradas
as condições de permanência da floresta enquanto habitat, o fortalecimento do valor de
uso presente nas práticas de trabalho e modos de vida conformados num habitus e,
por conseguinte, o reconhecimento e valorização efetiva das referências culturais
construídas nessa relação de equilíbrio com o meio.
Entretanto, apesar de o discurso oficial enfatizar a idéia de incorporação e
valorização das práticas tradicionais, ao ampliar o elenco dos produtos explorados para
fins comerciais, inclui a madeira, cuja extração em áreas públicas passa a ser
regulamentada pelo governo a partir de 2001. Desde então, a tríade que dá suporte ao
“desenvolvimento sustentável” definido como ecologicamente correto, socialmente
justo e economicamente viável apresentará distorções essenciais, alterando
fundamentalmente a concepção original do modelo proposto pelo grupo de trabalho de
Chico Mendes para as RESEX. Nas adaptações operadas pelo Governo da Floresta
em seu modelo de desenvolvimento, os aspectos socioculturais e ambientais
precisarão recuar significativamente para dar lugar aos imperativos do mercado, pondo
em curso um intenso processo de mercantilização da natureza, segundo a lógica do
mercado global, processo este em que as próprias populações da floresta são
enredadas ao serem convocadas a integrar a cadeia do comércio madeireiro.
Nesse novo quadro, seguindo as constatações apresentadas por Paula
242
, “os
seringueiros têm sido incentivados a substituir as atividades ligadas à extração do látex
por outras mais rentáveis, como a exploração madeireira, via projetos de ‘manejo
comunitário’ e incremento da pecuária” dentro das áreas de demarcação das reservas.
Essa mudança no gerenciamento das áreas de conservação e produção extrativista
vem demonstrar que a estratégia de estatização do território adotada à época pelo
movimento para barrar o avanço do capital privado na região, e a conseqüente
destruição da floresta nele implicada, torna-se, nesse segundo momento marcado
por uma ocupação mais intensa do Estado pelos valores e interesses de mercado –,
um elemento facilitador para a realização das operações de comércio de produtos
florestais, desta vez legitimadas por supostas preocupações ambientais e pela
participação dos próprios “seringueiros”.
242
Elder Paula (2006), Ibid, p. 126.
146
A ampliação da investida sobre a floresta passa a ser amparada, dentre outros
mecanismos, na desregulamentação do uso das áreas, conforme indica o pesquisador
da UFAC: primeiro, na esfera Federal, em mudanças no Sistema nacional de Unidades
de Conservação (SNUC), que no Art. 17 retira a autonomia das comunidades
extrativistas para decidir sobre o plano de uso dessas áreas, facilitando as pressões
sobre as comunidades para adesão aos “planos de manejo madeireiro comunitário”;
segundo, numa ação mais arrojada, na aprovação estadual da Lei 1.426, de 27 de
dezembro de 2001, “que institui a concessão de florestas públicas para exploração de
madeira por empresas privadas”. Seguindo o exemplo acreano, o Ministério do Meio
Ambiente aprovou, em 2005, um Projeto de Lei similar (PL 4.776/2005) que institui o
mesmo tipo de concessão, porém com uma abrangência territorial bastante ampliada.
Tais medidas, além de aumentarem o acesso dos capitais sobre os recursos florestais
públicos, possibilitam um aumento significativo das margens de lucro, na medida em
que os agentes do mercado podem agora explorar o máximo com o mínimo de
investimentos, visto não haver mais a necessidade de imobilizar ativos financeiros na
aquisição de terras
243
. Assim sendo, a insustentabilidade do modelo expansionista
barrado na década 1980 graças ao nível de organização e mobilização política
alcançado pelo movimento retorna com todo vigor e legitimidade, reforçado ainda pelas
promessas de segurança do “manejo” fornecias pela tecnologia e pelos sistemas de
certificação adotados pelo mercado como garantia de “sustentabilidade”, tal como
catalisado no discurso da florestania, conforme se pode avaliar das abordagens
realizadas na mídia acreana, ao fazer apologia desse modelo, sobretudo no que diz
respeito às populações tradicionais:
243
Elder Paula (2006), ibid, p. 129.
147
1) Rio Branco – Acre, 28 de fevereiro de 2003
Floresta do Macauã
Acre deve iniciar este ano produção de madeira
certificada oriunda de plano de manejo sustentável
2) Rio Branco – Acre, 24 de janeiro de 2003
Acre tem sua segunda área florestal
certificada com selo verde do FSC
Seringueiros de Porto Rico vão poder vender
madeira dentro da legalidade e vão ajudar a
combater exploração predatória
3) Rio Branco – Acre, 30 de dezembro de 2003
Seringueiros assumem manejo florestal
Projeto também vai capacitar jovens a administrar
a exploração de madeira certificada
4) Rio Branco - Acre, terça-feira, 1 de abril de 2003
Cidade de Porto Dias começa a realizar o
sonho da certificação madeireira
Seringueiros se preparam para vender madeira de
áreas manejadas, uma proposta de “ongueiros”
como Jorge Viana
5) Rio Branco - Acre, quarta-feira, 5 de fevereiro de 2003
Reservas extrativistas terão manejo
sustentável
Ibama estuda liberar madeira, abate de animais
silvestres e ecoturismo
6) Rio Branco – Acre, quarta-feira, 28 de maio de 2003
Reserva Extrativista Chico Mendes terá
plano de manejo
7) Rio Branco – Acre, sexta-feira, 24 de janeiro de 2003
Floresta comunitária recebe certificação
Selo Verde: comunidade de Porto Dias é a segunda no
Brasil, a primeira é de Xapuri, a receber certificação FSC
para sua floresta
8) Rio Branco - Acre, quinta-feira, 24 de julho de 2003
Desenvolvimento sustentável e pragmático
9) Rio Branco - Acre, sábado, 8 de fevereiro de 2003
Sustentabilidade: um projeto mundial
10) Rio Branco – Acre, 25 de março de 2007
Empresários apostam em madeira
manejada e exportam mais
11)Rio Branco – Acre, 6 de julho de 2003
Acre inspira decreto de Lula para [exploração de]
mogno
Jorge Viana e Marina Silva prestigiam atos do Palácio do
Planalto em favor da preservação ambiental
12) Rio Branco - Acre, quarta-feira, 8 de janeiro de 2003
Manejo florestal: Possibilidade de reconciliação
com a natureza
Recurso permite perpetuação da vida nos ecossistemas,
exploração de recursos milionários e qualidade de vida
Ao analisarmos o material transcrito acima
244
, uma série de significados relativos
ao universo da floresta e da produção extrativista podem ser identificados de pronto,
enquanto que outros se vão insinuando mediante o exercício de identificação de
determinadas formações discursivas e dos lugares sociais e ideológicos a situares
essa falas. Assim, teríamos as seguintes possibilidades de leitura: a) é possível
verificar que, de acordo com a maioria do conjunto de notícias veiculadas, a exploração
madeireira nas áreas de proteção é uma realidade, não se trata de um projeto de
viabilidade ou em estudo, ou seja, os processos estão em curso; b) a exploração é feita
dentro das áreas destinadas inicialmente ao extrativismo tradicional e pela categoria de
trabalhadores antes identificada com o corte da seringa e coleta de castanha, mas que
atualmente se ocupa da retirada de madeira para comercialização, atuando inclusive
sob a chancela do selo internacional de certificação florestal, o FSC; c) a prática do
manejo madeireiro com certificação internacional é apresentada como um “sonho” a
ser alcançado pelas comunidades, o que leva a crer que tais procedimentos faziam
244
Enunciados 1,2,3,4,5,6,8,9,11,12, publicados no jornal Página 20; enunciado 7, publicado no jornal A
Tribuna e enunciado 10, publicado no jornal O Rio Branco.
148
parte das proposições iniciais do movimento de seringueiros, representando algo difícil
de ser conquistado no primeiro momento, mas que no presente se torna viável graças
à interferência de “ongueiros como Jorge Viana”; d) os processos ali implementados,
apesar de fazerem parte de um movimento mundial pela “sustentabilidade”, seriam
pioneiramente iniciados no estado do Acre, que “inspira” sua disseminação no restante
do país e do mundo, com a criação da lei do mogno, por exemplo. É revelador da
lógica vigente nesse discurso, no que tange ao sentido de preservação, perceber que,
neste caso (conforme item 10), a proposição da lei federal de exploração madeireira
em terras públicas, “inspirada” na experiência do Acre, é considerada uma medida “em
favor da preservação ambiental”, ou seja, a salvação via lógica do mercado; e) ao
caracterizar o modelo de desenvolvimento como “pragmático”, o faz estabelecendo
uma oposição a possíveis resquícios de outros modelos considerados “utópicos” que,
por o colocam em primeiro plano os imperativos do mercado e as metas de
acumulação, estariam impossibilitados de atender às demandas existentes; f) por fim,
uma vez tendo esse projeto sido gestado na luta política dos movimentos sociais
liderados por Chico Mendes, cujos “companheiros”, no presente, ocupam as estruturas
de poder político administrativo em âmbito estadual e federal, seus ideais políticos e
ambientais estariam representados no Governo da Floresta e nos valores da
florestania. Sob essa perspectiva, não mais haveria necessidade de embates no
âmbito da política. Tratar-se-ia, doravante, de viabilizar as condições técnicas
necessárias ao desenvolvimento, uma vez que os herdeiros da luta chegaram ao
poder, conforme propõem as mensagens abaixo:
149
No alto, entrevista concedida ao jornal A Tribuna, em 01 de janeiro de 2003; abaixo, charge
publicada no mesmo jornal, em 04 de janeiro do mesmo ano.
150
A simulação torna-se tanto mais perfeita quando se vê o próprio agente tido com o
“guardião da floresta” e da cultura desse lugar se tornar o executor das atividades
pouco combatidas pelo movimento dos seringueiros. O capital político acumulado pelo
movimento extrativista, assim como os nomes de suas lideranças passam a ser
mobilizados em favor de um projeto que inverte completamente, como demonstrado
acima, os princípios construídos nas mobilizações que resultaram na proposta das
reservas. O discurso é montado como se o próprio Chico Mendes estivesse
empenhado na defesa do manejo madeireiro:
As idéias do Chico venceram e estão cada vez mais presentes no nosso meio.
Sua luta representa os interesses do coletivo
245
.
O legado
O desafio agora é tornar viável economicamente o conceito de desenvolvimento
sustentável. Para torná-lo realidade, o governo acreano incentiva a exploração
de baixo impacto na floresta, com a extração de produtos não-madeireiros,
madeira certificada ecologicamente
246
.
É na construção desse quadro de um contexto favorável ao desenvolvimento, com
a suposta harmonização dos interesses de todos os segmentos sociais, desde as
populações extrativistas e indígenas aos pecuaristas e madeireiros, que se opera a
estratégia de despolitização do que restara da organização do movimento extrativista.
Aos sindicatos, associações e entidades de modo geral caberia a função de viabilizar,
nas comunidades extrativistas, as condições necessárias à sua articulação na cadeia
produtiva interessada no comércio da madeira, atuando conjuntamente com o governo,
ONGs e empresas de exportação em escala nacional e internacional.
Ao governo interessava, portanto, conquistar o apoio das lideranças e neutralizar
o máximo possível a atuação dos agentes contrários a esse projeto. A cooptação de
lideranças através do oferecimento de cargos no governo, nas prefeituras ou a
disponibilização de vantagens via cooperativas, assim como a forte interferência nas
eleições das entidades foi o caminho adotado para desmobilizar possíveis reações
contrárias ao modelo imposto. Refletindo sobre esse cenário, Elder Paula observa que
tendo sido
Motivo de divisão do sindicalismo nos anos 80 [quando do racha das lideranças
com o PMDB motivado pelas divergências em torno do modelo de reforma
agrária proposto pelos governos federal e estadual e aceito pela Contag], o PT,
na década seguinte, acaba se constituindo em fator de reunificação desse
movimento (...) Enquanto nos anos 80, o PT afirmava como princípio a liberdade
245
Página 20, 23 de dez. de 2003.
246
Página 20, 2 de dez. de 2003.
151
e autonomia sindical, nos anos 90, já capturado pelo poder oligárquico no Acre,o
partido submete as direções sindicais a uma férrea subordinação à estrutura
partidária e, posteriormente, às instituições governamentais. Enfim, nada
diferente dos procedimentos adotados pelo governo Lula em relação ao
sindicalismo e aos movimentos sociais em geral, no Brasil, a partir de 2003
247
.
A propósito dessa guinada no posicionamento do partido nesses dois momentos
da política acreana, é elucidativo atentar para o fato de que, apesar de toda a operação
destinada a gerar a percepção de que o grupo que chegara ao poder representava a
extensão, no âmbito da sociedade política, de todos os movimentos de emancipação e
afirmação política e sociocultural engendrados na sociedade civil, a própria
composição partidária e os acordos que viabilizaram a vitória do PT nas eleições de
1998 já levantavam incertezas quanto às prioridades do governo.
Justificando a aliança com figuras tão estranhas ao círculo dos aliados do PT à
época, o assessor político do governo Viana, Francisco Nepomuceno
248
, reconhece:
No processo eleitoral, tinha-se o diagnóstico de que sem alianças não se
ganharia a eleição, sendo necessário flexibilizar a visão de quais deveriam ser
os aliados. (...) O grande problema no arco de alianças composto por 12
partidos era a presença do PSDB, pelo que simbolizava na disputa de
governo e que poderia interferir na política nacional de alianças do PT
249
.
É ainda o próprio assessor a admitir que o grupo buscou o apoio de setores
sociais que historicamente não se alinhavam com as propostas do PT, como
fazendeiros e madeireiros, mas com os quais era necessário buscar entendimento a
fim de estabelecer condições de elegibilidade. Segundo ele, “além dos partidos, a
aliança foi apoiada por parte dos pecuaristas, convencidos que o governo poderia
contribuir para a modernização da pecuária sem depredação ambiental, ou
madeireiros, que aceitaram a idéia do manejo florestal”
250
. Ora, como bem reconhece
Nepomuceno, os setores madeireiros e pecuaristas, historicamente sempre foram
identificados como os maiores adversários da causa extrativista e dos movimentos
sociais a ela relacionados. De sorte que, sendo o Governo da Floresta, conforme
propõe seu discurso, a continuidade da luta dos movimentos sociais no âmbito da
sociedade política, não seria tão “natural” o apoio de fazendeiros e madeireiros, senão
por meio de uma solução segundo os efeitos das alianças operadas pelo alto.
247
Elder Paula (2006), ibid, p. 131 – 132.
248
Conhecido popularmente como “Carioca”, é professor do Departamento de História da Universidade
Federal do Acre.
249
Horácio Sant’Ana Júnior (2004), op. cit., p. 251.
250
Ibid, p. 252.
152
No entanto, apesar do evidente caráter conciliatório das alianças petistas, e das
prioridades economicistas terem se tornado bastante evidentes, especialmente a partir
do segundo mandato, ainda uma percepção de setores de dentro do governo que
afirmam acreditar na centralidade dos princípios e objetivos do movimento na definição
das políticas, conforme observa Antônio Alves:
251
“Nós temos uma coligação muito
grande no Governo do Estado, nas qual este setor com interesse na floresta, que vem
dessa luta dos povos da floresta, constitui o núcleo de maior densidade no interior do
governo”. Entretanto, o próprio Alves, em outro trecho da mesma entrevista, admite
existir uma espécie de esquizofrenia nas orientações internas do governo, um
fenômeno que Célia Pedrina
252
, então Chefe de Gabinete do Instituto de Meio
Ambiente do Acre (IMAC), descreve como uma cisão entre o que chama de
“sustentabilistas” e “desenvolvimentistas”. Para ela
Não unanimidade com relação à questão ambiental. Existem secretários que
acham que a ação do Governo deveria passar somente pelo desenvolvimento.
Até quando defendem o desenvolvimento sustentável, é com relação à
questão econômica. Hoje, desenvolvimento sustentável não significa mais
desenvolvimento ambiental, privilegiando a ecologia, a preservação, o manejo.
Para os desenvolvimentistas, a sustentabilidade do desenvolvimento tem uma
conotação mais forte, com criação de indústrias, empresas (...) Existem os
sustentabilistas (que submetem a produção de riqueza ao manejo sustentável e
preservação) e os desenvolvimentistas (que partem do capital pelo capital e vêm
a Amazônia como uma grande riqueza de cifrões, as águas e os produtos
florestais são transformados em cifrões), que brigam para ver qual grupo é o
dono do domínio da melhor definição de sustentável. O grande embate que se
dá, hoje, é o que quer dizer esse sustentável.
O depoimento de Pedrina reveste-se de grande para nosso propósito de mapear
os posicionamentos tanto dos agentes que integram os quadros institucionais quanto
daqueles com nculos mais próximos ao universo das práticas e do cotidiano dos
trabalhadores extrativistas. Ignorando, temporariamente, os posicionamentos mais
alinhados com “o capital pelo capital”, como define a entrevistada, mesmo na fala dos
agentes que ainda se consideram comprometidos com a causa ambiental é possível
perceber um certo consenso quanto à prática do manejo madeireiro como uma
alternativa viável do ponto de vista dos interesses das populações extrativistas e da
sua “importância” para a conservação da floresta. Esse alinhamento pode ser
depreendido tanto da fala de Alves e de Pedrina quanto de lideranças sindicais e
comunitárias como é o caso de Raimundo Barros, primo de Chico Mendes, com quem
251
Antônio Alves (2004), op. cit. p. 264.
252
Entrevista também concedida a Horácio Sant’Ana Jr. (2006), op. cit.
153
atuou nos empates e confrontos desde o começo do movimento. Apesar disso,
defende a prática e assume:
Estamos desenvolvendo dentro de nossas reservas algumas experiências como
o projeto de manejo madeireiro que temos aqui no Cachoeira.
253
É uma
experiência que qualquer pessoa que chegar aqui para conhecer e ver que é
uma coisa que vai dar certo (...) Nós podemos aceitar aqui dentro de nossa área
este (manejo) onde você seleciona as árvores a partir do número de árvores
daquele tipo que tem ali dentro. Se ali naquela região só tem um mogno, dois ou
três, não vamos tirar de forma nenhuma, pois essas árvores irão servir para
trazer outros mognos (...) as árvores mais velhas é que vão ser mexidas,
porque há outros já em condições de produzir novas arvorezinhas
254
.
Tal posicionamento de Barros e o conhecimento técnico sobre o manejo por ele
apresentado demonstram a importância de sua atuação, no contexto das entidades
representativas e das comunidades de modo geral, na tarefa a ele designada de
convencer as comunidades a aderirem à prática do comércio madeireiro. Nem todas as
lideranças, no entanto, deixaram-se seduzir pelas vantagens de se incorporar aos
mecanismos do poder e pelos benefícios financeiros, resistindo às tentativas de
cooptação realizadas por agentes do governo ou por qualquer dos outros “parceiros”
do manejo mais próximos dos trabalhadores. É o caso de Osmarino Amâncio, um dos
fundadores do PT no Acre, companheiro de Chico Mendes nos “empates” e importante
organizador do movimento nos anos 1970 e 1980, que atuou e atua na condição de
líder sindical, homem de ão e intelectual orgânico nos confrontos políticos contra as
investidas do capital tanto naqueles anos como no presente, contrariando o relativo
consenso quanto à ausência de conflitos sociopolíticos. Foi Amâncio um dos primeiros
a identificar o significado desmobilizador das estratégias do governo na sua relação
com o movimento, e reconhece:
A gente não tava prevendo que o movimento social ia ser cooptado para o
aparelho do Estado. Porque o que a gente discutia era o seguinte: num
governo popular, um governo dos trabalhadores, ele vai simplesmente
estruturar as entidades de reivindicação, as entidades de classe. (...) Hoje eu to
convicto, muito consciente, de que o movimento social, sindicato, associações, tá tudo
que é pessoal esperando que o governo faça tudo sabe, essas entidades ficaram tão
dependentes que elas hoje o sabem fazer nada, o fazem uma assembleia se
253
Seringal Cachoeira, área onde ocorreu um dos mais intensos conflitos entre seringueiros e as
iniciativas de desmatamento por parte de pecuaristas, em março de 1988. Os seringueiros ocuparam a
área por um período de 30 dias, com participação de aproximadamente 400 homens. Com o
reconhecimento pelo governo federal do direito dos seringueiros, o local tornou-se a primeira área
destinada a Projeto de Assentamento Extrativista (PAE), que precedeu o modelo das reservas. A
desapropriação desse seringal é frequentemente apontada como a motivação para o assassinato de
Chico Mendes pela família Alves, embora muitos acreditem que Darly Alves foi apenas o fazendeiro
designado pelo setor pecuarista para barrar a ação de Chico Mendes.
254
Silvio Simione, O sentido da luta na fala de Raimundo Barros. In: Paula, Elder e Silva, Silvio Simione
(2006), op. cit., p. 58 – 59.
154
não for com o governo presente, não discutem mais as suas políticas. Hoje você vê o
secretário dirigindo a assembleia no sindicato, secretário de Governo do Estado
fazendo a pauta do movimento sindical e o sócio lá, muitas vezes assistindo. (...)
No começo da declinagem eu disse: “olha pessoal, declinando, isso não
é legal!” Eles [agentes do governo] não querem, eles têm toda uma tática para
as pessoas não se levantar. Esse é o pior inimigo (sic).
255
A exemplo de Amâncio, as poucas vozes que destoam do discurso e das
diretrizes oficiais passam a ser alvo de fortes represálias, conforme narra o seringueiro
e sindicalista: “O governo [estadual] me proibiu de eu falar na rádio [do Complexo
Aldeia de comunicação] aqui em Brasiléia, eu só tinha visto isso na ditadura, fui
proibido de falar na rádio aqui no tempo da ditadura, sabe. E aí veio agora o Carioca
256
e ordena o diretor da rádio e não deixa eu me expressar na rádio
257
”.
Tal controle do sistema de comunicação local, conforme demonstrado no
capítulo I, se deve não ao fato (previsível) de se querer evitar embaraços à
implantação do projeto, mas à identificação dos riscos que, especificamente, a fala
dessa liderança representam. Ao comunicar Amâncio sobre a proibição do acesso à
rádio, o diretor teria reproduzido a ordem do assessor nos seguintes termos: “Olha, o
Osmarino está proibido de falar nessa rádio, você sabe o que ele faz quando ele fala
em um meio de comunicação”.
258
Ou seja, os agentes do poder têm ciência de que as
críticas de Amâncio atingem diretamente os fundamentos do projeto de
desenvolvimento e do discurso que o sustenta, quais sejam: a valorização dos fazeres
e saberes tradicionais, progressivamente secundarizados em favor das determinações
do mercado, e as garantias de conservação da floresta, mediante o emprego de
tecnologias. A propósito da primeira questão, Amâncio é contundente: “o que o pessoal
não tem em mente é o seguinte: o nosso governo, o negócio deles é tá exportando. E o
que exporta o Acre? A pecuária, a madeira, isso lucro imediato. A borracha não
lucro imediato, grande, a castanha é um período, a pecuária é sempre, e a madeira vai
ser sempre, enquanto existir”.
259
Quanto ao segundo ponto, a segurança ambiental dos
procedimentos de exploração de madeira manejada, de acordo com os quais as
árvores mais velhas seriam retiradas, supostamente obedecendo a todo um conjunto
de práticas seletivas visando garantir a sua reprodução e posterior renovação num
prazo médio de 30 anos, Amâncio também é enfático:
255
Elder Paula (2006), op. cit., p. 69-72.
256
Assessor político do governo Viana, Francisco Nepomuceno, citado anteriormente.
257
Ibid., p. 72.
258
Ibid., p. 73.
259
Ibid., p. 74.
155
Foram várias políticas que eles [os governos] diziam que iam tirar o pessoal
da pobreza. O pessoal aceitou tudo isso e nunca saíram da pobreza, esse
filme eu vi. A madeira é a mesma coisa, é a única coisa que falta pra eles,
pró capitalismo realmente chegar e causar o pior desastre. Agora é o
marketing da questão ecológica. Eles tão destruindo árvores de 500, 600, 800
anos e tão dizendo que as outras vão se recompor em trinta anos, isso
também não é verdade, porque em nenhum lugar do mundo onde foi feito o
manejo que eles tão fazendo, deu certo. Os mexicanos vieram aqui e eu levei
eles na floresta e mostrei árvores frondosas, eles disseram que no México
em 40, 50 anos já se acabou onde eles tão fazendo manejo. nos países
asiáticos a mesma coisa, onde estão fazendo está com 70 anos que se
acabou.
O mais irônico (mas sem vida trágico) a se observar nessa Saga acreana e os
povos da floresta para usar a expressão que deu título ao livro do sociólogo Horário
Sant’Ana é verificar que o mesmo modelo de desenvolvimento expansivo, apoiado
na pecuária e na exploração madeireira, interrompido pela atuação do movimento
extrativista, retorna agora com todo vigor e legitimidade. Isso porque agora
resguardado na imagem de defesa do ambiente e na “participação” das populações
tradicionais, ambas convocadas a fornecer um rótulo de “sustentável” a um modelo que
sequer admite o benefício da dúvida.
Porém o mais cruel desse retorno reside no fato de que as atividades antes
identificadas com a destruição da floresta, agora não são obras somente de “paulistas”
ou “exploradores” do centro sul do país: são os próprios “seringueiros”, tornados
madeireiros, que, respaldados em políticas públicas, vão colocando a floresta abaixo e
investindo o capital obtido com a venda de madeira na criação de gado dentro das
reservas. Na avaliação de Amâncio, isso se deve à desconfiança das comunidades de
que a madeira não durará muito revelando a insustentabilidade ambiental dessa
atividade. Assim, as famílias procuram redirecionar os recursos para outra atividade
mais duradoura, neste caso a pecuária. Partilhando da avaliação do líder seringueiro, o
economista Georgheton Nogueira, do Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA)
uma das ONGs emprenhadas em viabilizar o manejo madeireiro nas comunidades
extrativistas também afirma sua descrença na sustentabilidade ambiental, lembrando
que a árvore abatida encerra os serviços ambientais que prestava. Alerta ainda para as
transformações dos fazeres tradicionais implicadas no manejo madeireiro, ao
manifestar os seguintes questionamentos:
A identidade de “manejador” é construída como? Vem de onde? Seria uma
identidade imposta? Particularmente, suspeito que esta construção esteja se
dando paralelamente à desconstrução das racionalidades historicamente
firmadas pelas comunidades humanas que se reproduzem historicamente na
floresta. E, mais precisamente, a construção desta identidade estaria se dando
156
num movimento de homogeneização das racionalidades, ou seja, das formas de
conceber o mundo, dos valores etc. Ao contrário do que sugere um dos
pressupostos do pensamento hegemônico, a humanidade não é portadora de
uma única racionalidade (...) O movimento da expansão do capital é que
imperativamente subordina tudo aos seus ditames expansionistas e reduz estas
formas variadas de mediação com a realidade e de concepção de mundo às
relações de trocas no mercado e aos seus critérios de viabilidade. Entendo que
a mercantilização da natureza e dos povos que nela vivem é parte deste
movimento. É o mundo e toda a sua diversidade reduzido à realidade do
mercado.
260
Além desta reflexão relativa à perda de uma identidade laboral, o mais
interessante de sua argumentação reside no fato de demonstrar a insustentabilidade
do manejo madeireiro naquilo que lhe seria mais sagrado: a sustentabilidade
econômica. Recorrendo aos princípios clássicos da economia keynesiana, o
economista demonstra que é impossível ao manejador comunitário realizar uma das
regras básicas da economia para a reprodução de uma atividade produtiva: a
reinversão (ou reinvestimento) naquela atividade.
A partir do momento em que o manejador extrai e vende sua madeira ele
apropriou de certa quantia de dinheiro; dinheiro que estava em forma de riqueza
imobilizada na madeira, agora disponível. Para pô-lo em movimento, torná-lo
capital, deve, portanto, realizar uma re-inversão [reinvestimento]. Neste
momento, o tempo de retorno, os riscos e a remuneração do capital a ser
empatado são critérios importantes para a tomada de decisão. Então temos uma
pergunta: como seria a re-inversão no manejo comunitário madeireiro? Seria
plantando mais árvores? E se fosse, quem, individualmente, em sã consciência,
investiria capital para ter retorno 30, 50, 100 anos depois, quando da árvore
crescida para ser extraída?
261
O problema implicado nesse modelo, além das incertezas e inseguranças quanto
ao tempo de retorno (regeneração da floresta)
262
, ou “da assustadora evidência de que
não nenhum país dos que adotaram o caminho de conceder florestas públicas para
‘manejo sustentável’ que não tenha ficado sem as florestas”, conforme destaca
Washington Novaes
263
, reside fundamentalmente na constatação de que essa prática
põe em marcha exatamente aquilo a que se propunha conter, ou seja, a destruição da
floresta, haja vista que não tendo mais como investir em exploração madeireira, o
260
Georgheton Nogueira, “Manejo comunitário madeireiro: uma falha de concepção”. Jornal Página 20,
12 de março de 2007, coluna Papo de Índio.
261
Georgheton Nogueira, ibid.
262
Cabe registrar que mesmo essa regeneração é objeto de fortes questionamentos por estudiosos da
área, na medida em que a eliminação das árvores mais volumosas, e da sombra que produziam na
floresta, abre caminho para outras espécies oportunistas de crescimento mais rápido, o que alteraria
significativamente a composição inicial desses ecossistemas. Além disso, está cada vez mais
disseminada a utilização de técnicas silviculturais que consistem na eliminação das espécies
concorrentes das árvores de valor comercial, o que vai paulatinamente tornando as florestas nativas em
as áreas de cultivo via seleção artificial, o que também implicaria perda da biodiversidade.
263
Washington Novaes, “O clima, a economia e o futuro da Amazônia”. Estado de S. Paulo, 10.11.2006.
157
produtor praticamente como única opção redirecionar seu capital para a pecuária.
Para isso, tem que retirar mais floresta para inserir pastagem o que, por sua vez,
agrava o problema da devastação.
Não são raras as atitudes de crítica por parte de ambientalistas e até de órgãos
dos governos federal e estadual sobre as opções feitas pelas famílias extrativistas
quanto ao investimento do capital auferido com a venda de madeira, especialmente
quando é noticiado em algum meio de comunicação não controlado pelo governo
estadual que as reservas estão progressivamente sendo ocupadas por criação de gado
bovino, conforme publicado na Folha de São Paulo de 21 de setembro de 2007:
Gado avança em reserva Chico Mendes
20 anos depois do assassinato do líder seringueiro,
o desmatamento alcança 6,3% da área total de conservação federal
Em suas críticas públicas às comunidades, sobre quem, nestas circunstâncias, recaem
todos os reveses, os agentes governamentais, ambientalistas ou de ONGs envolvidos
no que era para ser a solução salvadora do manejo, se esquecem de que ao defender
e implantarem esse modelo como alternativa à devastação, dentro dos termos do
mercado, forneceram a esses mesmos produtores, via capacitação para esse
mercado, o princípio mais elementar do modo de produção capitalista: a acumulação.
Para usar a expressão de Nogueira, “é como brincar de Deus nos termos do diabo:
‘olhe, mas não pegue; pegue, mas não coma’ como dizer, ganhe dinheiro, mas não
acumule)”.
264
Além disso, não se pode esquecer que dentro das prioridades eleitas nas políticas
de governo, os incentivos e subsídios inicialmente disponibilizados pela Lei Chico
Mendes para o incentivo da produção de borracha e coleta de castanha não
perduraram nem no tempo nem no espaço, tendo vigorado por um período curto
apenas na região do Vale do Rio Acre, nos municípios circunvizinhos à capital. Ao ser
questionado sobre o futuro das reservas e os caminhos/descaminhos dos projetos e
conquistas dos movimentos sociais e políticos dos trabalhadores extrativistas 20 anos
após a morte de um de seus mais destacados organizadores, Osmarino é ao mesmo
tempo pessimista e otimista (o pessimismo gerado pela constatação e o otimismo da
vontade do novo):
Eu acho que a Reserva vai ser destruída. Talvez ficar a minha colocação,
mais alguma. Mas se não tiver um levante. É um sonho que virou um pesadelo,
nós sonhamos uma coisa bonita. O Chico Mendes, aquele sonho que ele teve,
264
Georgheton Nogueira, op. cit.
158
que deixou um recado para os jovens do futuro, quando ele diz: “atenção jovens
do futuro no ano de 2120 vai acontecer o primeiro aniversário da revolução
socialista mundial, vai ser uma sociedade onde não vai ter explorado nem
explorador”. Faz um relato bonito do sonho que ele sonhava, no final ele diz:
“vocês me desculpem, eu estava sonhando quando eu escrevi estes
acontecimentos que eu mesmo não verei, mas tenho o prazer de ter sonhado”.
Então eu acho que os sonhos, quando a gente sonha só, diz o ditado, é um
sonho. Mas eu não sonhando sozinho, eu acho que o movimento vai se
levantar, essa é a esperança, porque eu ainda tenho energia. Então eu tenho
sempre uma esperança, ela é infinita, eu acredito que o movimento pode até
não se levantar rápido, mas até que eles causem essas destruições todas nós
vamos ter tempo de se organizar
265
.
3.3. Efeitos da multiplicação dos lugares de fala: a florestania contestada
Diante de uma realidade midiática e política tão hostil à manifestação da
diversidade de valores e idéias, resultando numa atmosfera política onde a democracia
corre o risco de torna-se intensamente rarefeita, cabe interrogarmo-nos sobre a
possibilidade de uma articulação mais ampla do local – para além da mera condição de
fornecedor de matéria-prima para os países industrialmente desenvolvidos com as
transformações operadas no mundo moderno pelos processos globalizantes. Ou seja,
parece-nos bastante produtivo buscar identificar possíveis efeitos de tal articulação nas
configurações da cultura e da política local com eventuais implicações na percepção
das identidades coletivas. Merecem atenção, nesse sentido, os efeitos da
disseminação no uso das novas tecnologias de comunicação e informação, com a
potencial multiplicação dos lugares de disseminação da fala e dos discursos
implicados.
Conforme sinalizam alguns autores atentos às dinâmicas dos processos
culturais contemporâneos, dentre os quais destacamos as contribuições de Hall
266
,
Castells
267
, Jameson
268
e Bauman
269
, é possível verificar uma significativa
transformação entre o que teria sido uma primeira modernidade (também chamada por
alguns de modernidade sólida), calcada nos processos de industrialização, com
intensa produção fabril, e na consolidação de economias nacionais; e uma
modernidade tardia (ou modernidade líquida), cujas bases tecnológicas, como observa
265
Elder Paula (2006), op. cit., p. 73.
266
Stuart Hall (2004), op. cit.
267
Manuel Castells (1999), op. cit.
268
Fredric Jameson (2001) e (2002), op. cit.
269
Zygmut Bauman (2005), op. cit.
159
Jameson
270
, já se fazem notar no fim da Segunda Guerra, mas que se manifesta como
fenômeno cultural somente a partir dos anos 1960, com uma atuação estruturante da
comunicação em sua forma midiatizada e uma economia suprancional caracterizada
pela atuação de corporações multinacionais.
No que diz respeito à produção do social e aos modos de subjetivação nos
padrões de sociabilidade, essas duas etapas da modernidade teriam sido
caracterizadas, por um lado, pelo predomínio de processos disciplinares baseados na
coerção e na exclusão das diferenças, com um importante papel de regulador da vida
social atribuído ao Estado, no primeiro caso. No segundo, por um lado, prevaleceriam
os processos de controle social via poder libidinal
271
em que a disciplina e a coerção do
primeiro estágio tenderiam a abrir espaço a um controle apoiado mais na sedução pelo
consumo do que no emprego da “violência”. Em tal ordenamento social, o Estado
precisaria ceder lugar às instâncias reguladoras do mercado, que “libera” toda e
qualquer iniciativa, desde que dentro das demarcações por ele fornecidas. Num
contexto como esse, o exercício das “liberdades” deveria ser percebido como um valor
inalienável, incidindo com especialmente ênfase sobre o campo da comunicação e da
liberdade de expressão e de imprensa. Isto porque, com a relevância adquirida pelo
cultural, inclusive na atribuição de valor e sentido ao consumo, a informação e a cultura
tendem a se tornar mercadorias das mais importantes.
Este poder atribuído à informação e ao cultural, sobretudo através da
comunicação social, nos fornece elementos importantes para compreender o papel
estratégico da comunicação no projeto de poder da florestania, tanto em sua
viabilização política quanto no revestimento cultural construído para a atividade
produtiva por ela engendrada. Até este ponto, nada que diferencie radicalmente a
situação acreana dos processos e dinâmicas em curso no mundo tardo-moderno,
inclusive com a incorporação do discurso ambiental como fator de legitimação do
modelo de produção. É quando se enfoca o modo como o universo comunicacional é
submetido às diretrizes e necessidades do Estado, no entanto, que salta à vista um
enorme descompasso com as liberdades prometidas e defendidas no âmbito do
mercado. Desse modo, mesmo conhecendo as conseqüências, inclusive para as
270
Fredric Jameson (2002), op, cit.
271
Conforme conceituação adotada por Santiago Castro-Gómez, Ciencias sociales, violencia epistémica
y el problema de la "invención del otro". In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo
y ciencias sociales: pespectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, p. 145-161, 2000.
160
culturas tradicionais, de uma adesão acentuada aos imperativos do mercado, verifica-
se que em realidades como essa onde sobrevivem práticas autoritárias fortemente
enraizadas no tecido social e nos hábitos políticos, os interesses do capital, para
viabilizar seus interesses, não dispensam o importante poder que ainda pode ser
fornecido pelo Estado, num contexto em que a atividade econômica praticamente gira
em torno das verbas públicas. Assim, é possível constatar que em certas realidades
mais distantes dos grandes centros urbanos industrializados embora não
exclusivamente –, o poder ainda se exerce a partir de lugares que transitam entre a
coerção e a sedução, num jogo que envolve performatividade discursiva, efeitos de
imagem, efeito de verdade e apelos identitários; mas sem abir mão, quando
necessário, da violência física e simbólica, do assédio moral e de atos de repressão e
censura calcados na ameaça e no poder daqueles sujeitos e instituições capazes de
“fazer acontecer”.
Em tais configurações, o controle exercido sobre os meios de comunicação
constituiu um fator importante para a (re)construção narrativa da acreanidade, e o
regime de visibilidade midiática instituído, um alimentador poderoso do imaginário
coletivo, permitindo a simulação, numa única narrativa, de um pluralismo aglutinador
das diferenças, porém ignorando os contrastes existentes entre grupos historicamente
conflitivos, como é o caso de seringueiros, indígenas, fazendeiros e madeireiros,
categorias que trazem ainda as marcas de confrontos recentes.
Em vez de garantir as condições para que cada cultura e cada grupo tivessem a
possibilidade de elaborar e contar seus relatos, instituindo um regime efetivo de trocas
baseado no reconhecimento e no direito a ser ouvido em sua diferença, predomina
nessa esfera pública midiatizada uma confusão entre o público e o governamental,
num ordenamento em que o discurso oficial tende a ocupar os lugares de fala, falando
pelo outro, do outro, para o outro. Em vez de terem sua voz disseminada em sistemas
e discursividades próprios, para encontrar legitimidade os grupos precisam remeter
seus discursos a um cleo semantizador que enredada as falas numa grande
narrativa totalizante. Nesse movimento, privilegiam-se o exótico e o folclorizado,
deixando os conflitos à margem. Recolhe-se a diferença conveniente, mas os dramas
e as contradições que marcam as trajetórias dos diversos grupos são expurgados.
Mostra-se apenas o que convém à lógica sedutora dos interesses de mercado. Nessa
lógica, os fenômenos que não se ajustam à moldura pretendida, quando se torna
inevitável a sua publicização, são categorizados como anomalias ou inadequações que
161
devem ser percebidas como externas ao desenho traçado no imaginário de
positividade. É assim que são significadas, por exemplo, notícias de conflitos no interior
da própria aliança que compõe o governo, quando, por exemplo, o prefeito de um
município do interior do estado demite funcionários contratados em administrações
passadas:
Jornal A Tribuna, 16 de janeiro de 2003.
Ou ainda quando da divulgação de pesquisas cujos resultados não confirmam o
quadro de crescimento e melhora nas condições de vida de parcelas da população,
como na divulgação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) referente ao censo
de 2000, publicado pelo IBGE. Nos resultados da pesquisa o Acre aparece com o pior
Índice de Desenvolvimento Humano Médio (IDH-M) entre os estados da região Norte.
O descompasso com a imagem irradiada e a mancha na reputação de cuidado social
levam o governo a questionar os parâmetros utilizados na pesquisa, negando os
números apresentados, como noticiado no recorte abaixo:
162
Jornal A Tribuna, 05 de janeiro de 2003.
Diante da sufocante “vontade de verdade” que atravessa o discurso da florestania
na mídia oficial, em sua ânsia por legitimidade, ou das denúncias pontuais e
oportunistas de uma oposição política desqualificada, representante dos interesses de
frações das velhas oligarquias já sequiosas de poder e dos recursos do Estado, somos
levados a nos interrogar sobre o lugar da própria verdade, desconfiando,
evidentemente, dos lugares e dos agentes que enunciam nesses espaços. Conforme
observa Fernando Resende
272
, se tudo é “vontade de verdade” e se em ambos os
lados fica evidente o interesse de desqualificação do outro em benefício da
autolegitimação, “a verdade, ou não-verdade, pode estar em vários lugares e falas”,
especialmente naquelas não oficializadas.
É a partir de 2004 que a interdição vigente no jornalismo oficial começa a ser
contornada mediante uso de publicações eletrônicas, inicialmente no formato de
weblogs noticiosos, seguidos depois pela criação de jornais com publicações
eletrônicas. Atualmente, além dos quatro diários impressos, cujo conteúdo é
integralmente disponibilizado na web, existem outras dez publicações eletrônicas, a
272
Fernando Resende, “O discurso Jornalístico no contemporâneo: entre o velamento e a produção das
diferenças”. Revista Galáxia, n° 14. Dez/2007, PUC-SP.
163
maioria sem um trabalho efetivo de jornalismo, alimentadas tão somente com material
reproduzido de outras fontes ou por um precário trabalho de assessorias de imprensa
de parlamentares, o que nos revela grande parte da motivação para a existência de
muitos desses espaços. Apresentamos abaixo uma lista atual com as chamadas de
capa para todos eles, fornecida por um provedor local de internet.
Links para todos os jornais eletrônicos editados no Acre em outubro de 2008,
organizados pelo provedor de internet www.contilnet.com.br.
164
Outra prática que tem se tornado bastante comum é a edição de blogs por
parlamentares tanto de situação quanto de oposição, por jornalista que atuam nas
mídias convencionais ou por pessoas que de alguma forma buscam intervir na esfera
pública local e regional.
Entretanto, como sabemos, nem todas as iniciativas nesse sentido se tornam
exitosas, isso porque além de dominar minimamente os gêneros jornalísticos, é
necessário habilidade de escrita, acesso a informações privilegiadas e aos agentes
sociais produtores de informações, o que demonstra não ser suficiente dispor de
espaços ou canais para disseminação de outras vozes além daquelas instituídas.
São necessárias também uma certa competência discursiva e a mobilização de uma
certa bagagem de capital simbólico e político a fim de que se possa concorrer com os
canais estabelecidos e legitimados.
Nesse sentido, a partir de 2004, surgem na cena pública acreana duas iniciativas
– já citadas neste trabalho – que não passam despercebidas: trata-se do blog intitulado
Caverna da Lua de Saturno, cujo editor se autodenominava com o pseudônimo de
Astronauta de Mármore, um suposto funcionário de elevado escalão no governo do
estado, que acaba trazendo para a arena pública numerosas questões e discussões
que, por estarem restritas a pequenos grupos políticos ou círculos de jornalistas sem
autonomia para suscitar o debate, não chegavam a um público mais amplo. É nesse
blog que se inicia, por exemplo, em outubro de 2004, um acalorado debate entre
jornalistas e assessores do governo em torno da liberdade de imprensa, tal a
capacidade de pautar os debates atingida por esse espaço, que permaneceu em
atividade entre maio de 2004 e abril de 2007, quando seu editor supostamente teria
sido identificado por técnicos do governo e pressionado a parar de escrever.
A outra iniciativa foi a criação do blog noticioso do jornalista Altino Machado,
profissional da imprensa acreana que atuou em diversos jornais de circulação nacional.
O blog tornou-se um importante estimulador do debate político, social e cultural,
canalizando uma enorme demanda por participação nas questões de interesse público.
no mês de sua criação, em setembro de 2004, o jornalista aborda questões
delicadas para o Governo da Floresta, como o questionamento do modelo de
desenvolvimento ancorado no manejo madeireiro. Em 23 de setembro desse ano,
publica uma entrevista com Padre Paulino, religioso italiano bastante conhecido no
contexto regional por sua atuação em defesa das populações nativas e da preservação
165
da floresta. Ao agendar a problemática, o jornalista introduz a fala do religioso,
registrando que:
Paulino Baldassari está mais preocupado mesmo é com a situação dos índios,
seringueiros e com o perigo de destruição das matas do Acre e não acredita em
manejo florestal.
"Eu o concordo com o manejo porque é uma manipulação. Eles dizem que é
assim, mas depois manipulam. Não acredito no manejo mesmo, não. Eles não
respeitam nada. Eles derrubam tudo. Depois, fica a capoeira, que será vendida
aos fazendeiros, que tocam fogo para fazer pasto para os bois. Eu te digo: é
uma tristeza! Eu falo, grito, denuncio. O Anselmo Forneck, chefe do Ibama no
Acre, é muito meu amigo. Eu chamo ele até meia-noite e digo: um jeito
porque não é possível continuar como está."
Em 31 de outubro do mês seguinte, publica a seguinte foto, acompanhada o texto
intitulado “Horizonte sombrio”, no qual chama atenção para a ininterrupta retirada de
madeira, cujo transporte pelas vias urbanas já se tornou sena comum na região:
Blog do Altino Machado, disponível no endereço http://altino.blogspot.com/2004/10/horizonte-
sombrio.html.
“A foto foi tirada às 14h42 de domingo, a partir da varanda de minha casa, na
estrada Custódio Freire. É por aqui, dia e noite, que passa uma parte da madeira
roubada das florestas do Acre”. Num outro post, mais recente, o jornalista alerta
166
novamente para a cena banalizada ao olhar da população, inclusive neste caso,
quando o caminhão circula carregado de toras ao lado do Palácio do Governo, numa
alusão à conivência do Estado com a exploração impudente das florestas públicas.
Caminhão transporta toras em via lateral ao Palácio do Governo. Blog de Altino Machado,
setembro de 2006.
Desde então, este blog de notícias e opinião vem mantendo uma atuação
importante no debate sobre as políticas de desenvolvimento e conservação ambiental
no Acre e na Amazônia, além de representar um espaço plural de disseminação das
vozes interditadas na mídia oficial.
Ainda em 2004 surge um outro “Espaço de debates de idéias políticas e
culturais”, cujo nome remete à força política desempenhada pelo movimento de
seringueiros o jornal. Trata-se do jornal Empate, editado no âmbito acadêmico por
alunos e professores da Universidade Federal do Acre. A publicação saiu inicialmente
em mídia impressa, passando posteriormente a ser disponibilizada na Interne. Foi sua
edição eletrônica que possibilitou, por exemplo, a divulgação da importante entrevista
de Osmarino Amâncio diversas vezes referenciada neste trabalho –, posteriormente
167
reproduzida pelo Centro de Mídia Independente e, por fim, publicada em livro. Apesar
de ter circulado em poucas edições e permanecido pouco tempo disponível na web, o
jornal foi pioneiro ao abordar criticamente, com artigos assinados, a temática do
desenvolvimento e suas implicações para o meio ambiente e suas populações. Nos
recortes abaixo trazemos a capa do seu segundo número, com chamada para o artigo
intitulado “O medo da política e a política do medo”, numa referência ao autoritarismo
predominante na gestão das instituições públicas no estado e, logo abaixo, uma charge
que satiriza a política do então governador Jorge Viana para o setor florestal.
168
Jornal EMPATE, fevereiro/março de 2004.
A partir de então as críticas e os espaços de questionamento se multiplicam, em
geral privilegiando três eixos de abordagem: a condução autoritária e avessa à
participação da sociedade na gestão e no debate das questões públicas, a política de
169
“valorização” cultural e os efeitos ambientais e socioculturais do modelo de
desenvolvimento ancorado na atividade madeireira. Seguindo essa linha de discussão,
sobretudo no que tange aos dois primeiros aspectos, são dignos de registro dois textos
que trazem críticas contundentes às administrações petistas. O primeiro, de 27 de
março de 2006, publicado no jornal eletrônico AC 24 Horas
273
, trata-se de um
manifesto de artistas da Federação de Teatro do Acre, que acusa o Estado de
desenvolver uma política cultural
(...) populista em que as manifestações artísticas têm por tendência valorizar os
grandes eventos em que o estadista aparece nos momentos oportunos de
aglomeração para ganhar louvores da população. O povo comparece nestes
espetáculos montados apenas para se desestressar e se divertir em festas
como carnaval e Festivais de Quadrilhas Juninas (circo para o povo), modo
encontrado pelo Estado para se apropriar da cultura popular, uma espécie de
“Estatização da Cultura” positivista, oficialesca e especialmente eleitoreira. (...) A
FEM Fundação Estadual de Cultura e Comunicação Elias Mansour tem sido
um engodo no que diz respeito à Gestão Pública de Cultura. (...) Queremos
políticas públicas definidas, assim como acontece em outros setores do
governo. (...) Se o Governo do PT cumprir com as suas obrigações no campo da
cultura como tem cumprido no campo dos eventos de propaganda, através de
seu Gabinete de Eventos, quem sabe a comunidade cultural possa apostar na
sua manutenção.
Esta manifestação torna-se particularmente importante, em primeiro lugar, por se
tratar de uma entidade representativa, agregando, portanto, um conjunto considerável
de pessoas, mas, sobretudo, por partir de agentes que supostamente estariam mais
próximos ao universo cultural amazônida e acreano, contrapondo a tônica do discurso
de valorização cultural presente nas políticas de governo. No segundo questionamento,
apresentado pela historiadora Fátima Almeida no blog de Altino Machado, a autora
chama atenção para as contradições de produções culturais referenciadas em
temáticas da floresta e valorização do meio ambiente num estado de economia
madeireira. Diz ela:
Assisti na semana passada a um show de artistas locais, patrocinado pelo
BASA, no qual várias composições aludiam à natureza. Temas como
“Amazônia”, “Chico Mendes” são constantes. No entanto, ficava a lembrar dos
vários caminhões que vi trafegar acelerados em direção a Rondônia portando
toras imensas. Dias depois vi a mesma cena numa manhã de domingo. São
incansáveis. Para a população são apenas caminhões trafegando com madeira
(...) não consegue relacionar aqueles caminhões com a seca, o calor excessivo
e a própria miséria. (...) O apelo à natureza em composições é apenas uma
apropriação do discurso demagógico. Os artistas de hoje não querem mais estar
onde o povo está e sim na área de influência das benesses do Estado. (...) O
clímax do citado show aconteceu no encerramento, com a banda “Menina dos
Olhos” (do Governo), da vocalista Carol, que apresentou carinhosamente os
seus músicos, entre eles o Daniel Zen, que se contorcia com sua guitarra e
273
Publicado no endereço eletrônico http://www.ac24horas.com, 27 de março de 2006.
170
caminhava depois pelo estacionamento como se pisasse no céu, feliz e
realizado. O Zen é o atual Secretário de cultura do governador. Como
contraponto, o Pia Vila, chamado de “velho doido” na música interpretada pela
vocalista, ajoelhou-se para beijar, no palco, a mão da moça. Desmemoriado, o
Pia Vila nem lembra mais que participou do show Flora Sonora”, em 76, a
primeira bandeira de resistência cultural à barbárie dos pioneiros sulistas que
chegavam para devastar o Acre
274
.
As observações da historiadora nos parecem relevantes não apenas pela crítica
que formula, mas pelo modo como, ao fazê-la, estabelece uma relação histórica com
os movimentos culturais iniciados trinta anos antes, no contexto de uma urgente e
necessária definição identitária, confrontando, de certa forma, as motivações das
produções da época com as de então. Nesse sentido, aponta o caráter de apropriação
cultural, pela ideologia dominante, não no âmbito da cultura como habitus e modos
de vida das populações da floresta, mas numa espécie de identificação imaginária (e
conveniente) de artistas urbanos com a temática da natureza, porém sem os vínculos
históricos com os problemas reais que assolam esses grupos sociais.
Ainda sobre este aspecto das produções artísticas de grupos urbanos e sua
relação com as referências simbólicas do universo rural, começam também a surgir
manifestações contrárias a um predomínio das temáticas regionalistas nas
composições, sinalizando para uma espécie de saturação desses referenciais. São
também as páginas de uma publicação alternativa ao círculo dos veículos oficiais que
irão fortalecer esta percepção. Ao serem entrevistados por estudantes de jornalismo da
Universidade Federal do Acre, na produção do jornal A Catraia, que circula na
instituição e nas demais faculdades de jornalismo da cidade, as declarações dos
membros de uma banda de rock da capital, comentando os motivos que inspiram suas
composições, estabelecem uma clara ruptura com o imaginário alimentado pelo
discurso do poder
275
. O texto faz a seguinte apresentação da banda:
Outro ponto interessante do grupo é o anti-regionalismo. Os artistas locais
geralmente são valorizados por fazer música que fale sobre a floresta, seringais
ou qualquer outra coisa que se refira à florestania. E no que se refere a esse
aspecto, eles são sucintos: “nunca morei num seringal, como posso falar sobre
isso?”
Os elementos de crítica presentes, tanto na abordagem do jornal quanto na
postura dos músicos, nos permitem verificar que apesar dos intensos agenciamentos
constituídos sobre os meios de comunicação e não obstante a tônica das políticas
274
Publicado em no endereço, http://altino.blogspot.com/2007/08/carta-de-crdito-do-pt.html, 28 de
agosto de 2007.
275
Jornal A Catraia, jornal laboratório do curso de jornalismo da UFAC, edição de maio de 2005.
171
oficiais de cultura, em seus critérios de financiamento, por exemplo, as rupturas são
inegáveis.
Entretanto, as fissuras não se fazem notar apenas nas vozes de atores dos
espaços intelectuais e culturais urbanos. Como a interdição atingira também as vozes
de muitas lideranças indígenas e extrativistas, como se pôde notar na fala do líder
seringueiro Osmarino Amâncio, as restrições impostas nos meios controlados pelo
Estado acabam impulsionando o surgimento de outros canais de escape,
especialmente nos novos espaços proporcionados pela tecnologia. Além da fala de
Amâncio, referenciada acima, o desabafo de uma liderança indígena publicizado
através de mídia eletrônica, traz um registro bastante representativo não da forma
de relacionamento desse fazer político com a diversidade cultural, quanto da
dificuldade encontrada pelo Governo da Floresta, nesta segunda etapa de sua gestão,
para manter o consenso em torno de suas propostas e ações. A carta abaixo foi
publicada no site do Centro de Mídia Independente-Brasil (CMI), sob o título
Florestania Lesada”, e aponta as contradições e incoerências da propaganda oficial no
que se refere ao lugar destinado aos povos indígenas no projeto do governo. Diz ele:
Cadê a qualidade de vida para os povos indígenas?... “Florestania e Essa
Floresta é minha” são os principais slogans do governo do Estado do Acre, “o
Governo da Floresta”. Essa incoerência transparece para nós povos indígenas.
São nossas imagens usadas, nossas culturas sendo massificadas, nossos
desenhos sagrados sendo utilizados por empresas privadas como: São Roque
e Floresta” [empresas de transporte coletivo cujo desenho mostramos
anteriormente], sem o consentimento ou autorização de nossas lideranças.
Pelas ruas de Rio Branco, o que nos dá vista o desenhos indígenas em
carros, bunners e em muitas agências de viagens, entre outras empresas que
massificam nossa cultura. Um dos principais aproveitadores da cultura indígena
é o “Governo da Floresta”, que usa e abusa de nossas imagens e ainda criou
uma Secretaria [dos Povos Indígenas] para amenizar sua mentira, pois a
mesma não nos ouvidos, já que seu trabalho e facilitar a exploração de
riquezas e recursos de nossas terras. Não vemos o trabalho deles dentro das
aldeias e muitos menos usufruirmos dos recursos que dizem ser para nós. (...)
Na semana do índio, por exemplo, não se indígenas festejando, e sim atores
que vêm de outros estados para encenar como índio e ainda ganham por essa
farsa
276
.
Em nosso propósito de reconstituir as estratégias empregadas na construção do
discurso da florestania, bem como de explicitar não o que esse discurso diz, mas
principalmente o que ele faz em se tratando da legitimação de certos interesses, este
depoimento, juntamente com o de Amâncio e o de Raimundo Barros – liderança
sindical que defende o manejo madeireiro, conforme citado –, nos parece o conjunto
276
Publicado no site http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/12/341542.shtml em 26de
dezembro de 2005.
172
de falas mais representativo da abrangência alcançada por essa ideologia de
valorização mercadológica da identidade. Possibilita, por outro lado, dimensionar o
elevado grau de disputas (políticas, sociais, culturais e econômicas) que atravessam
categorias como identidade. No caso específico da carta, a ênfase no uso das imagens
da cultura indígena pela propaganda oficial para fins mercadológicos expressa
precisamente o espírito dos fenômenos para os quais vimos chamando atenção no
decorrer desta análise.
Conforme indicado logo acima, as disputas sociais, políticas e econômicas
implicadas na demarcação de significados coletivos, muitas vezes, devido aos fortes
controles que incidem sobre a produção de discursos, podem passar a ilusão de
estarem apaziguadas quando, na verdade, aguardam o contexto apropriado para
irromperem. É o que nos têm demonstrado o os posicionamentos preocupados
com a conservação da floresta em relação ao modelo produtivo introduzido pela
administração petista, mas o tipo de manifestação, apresentado a seguir, de um
“descendente” da quase esquecida categoria dos “paulistas”: os pecuaristas. O texto
do fazendeiro vem nos lembrar da brutal distância de visões que ainda afeta as formas
de relacionamento com as questões ambientais no Acre, apesar da pretensa harmonia
social e ambiental reclamada no discurso da florestania, cuja unidade vai se
demonstrando cada vez mais insustentável. Disputando o espaço de visibilidade
alcançado pelo blog de Altino Machado, o fazendeiro questiona a viabilidade
econômica anunciada no projeto da florestania:
Maldita floresta que tanto traz o atraso do Acre
Porque todos vocês, que defendem tanto essa maldita floresta que tanto traz o
atraso do Acre, não mostram como ganhar dinheiro com esta porcaria? Em vez
de ganhar dinheiro com boi, por favor, eu peço que me mostrem como progredir
com a ajuda desta tal florestania
277
.
Temos, portanto, manifestações de três das principais categorias que compõem
a trama social no Acre nos últimos trinta anos, cada uma rompendo um ponto da sutura
quase bem sucedida construída pelo discurso reconciliador da florestania sob o manto
supostamente inclusivo do mercado. É evidente que mesmo dentro de cada uma
dessas categorias (seringueiros, indígenas, madeireiros e pecuaristas) coexistem
disputas e diferentes alinhamentos, o que revela quão ambiciosa foi a tentativa de
reunir todos num mesmo projeto de desenvolvimento e numa mesma narrativa
277
Publicado no endereço http://altino.blogspot.com/2007/08/leandrius-boco.html, em 4 de agosto de
2007.
173
aglutinadora, suturada pela liga da identidade na composição de uma nova
acreanidade.
Fica evidente, entretanto, do ponto de vista da comunicação social, que mesmo
os espaços alternativos e inicialmente de menor visibilidade são capazes de expor
publicamente as contradições e incoerências de uma poderosa ideologia,
desestabilizando os significados massificados e os convites ao consenso, graças ao
estabelecimento de importantes redes colaborativas de trocas de informações que,
inicialmente virtuais, podem se materializar em mobilizações reais e ocupar o espo
das ruas, como nos têm demonstrado sucessivas experiências, em especial as
manifestações contra as práticas autoritárias do Governo da Floresta e em defesa de
melhores condições inclusive ambientais – de vida. É o que nos indicam estas
imagens de protestos nas ruas de Rio Branco, em setembro de 2005, quando a cidade
ficou completamente tomada, durante semanas, por uma densa nuvem de fumaça
decorrente da queima da floresta.
Fotos da cidade de Rio Branco publicadas em diferentes meios, integrando de textos de notícia
sobre queimadas, fumaça e manifestações contra a poluição atmosférica, em setembro de 2005.
174
Os diferentes discursos e visões aqui apresentados, certamente remetendo a
formações ideológicas diversas, nos permitem compreender que as tentativas de
constituição de uma identidade genérica por meio da instrumentalização das
referências culturais associadas aos “povos da floresta” como dispositivos
instauradores da acreanidade, mediante o controle de significados irradiados
socialmente, podem revelar-se equivocadas e ineficazes a médio e logo prazo. Isso
graças a um importante fator: as tecnologias de comunicação hoje disponíveis no
mercado, o mesmo que rege a apropriação dos bens naturais pelo capital e a sujeição
das culturas, são as que possibilitaram romper o silêncio, a interdição e o
monologismo, fenômeno que nos leva a concordar com Bhabha
278
, quando sustenta
que:
O povo não mais estará contido naquele discurso nacional da teleologia do
progresso, do anonimato de indivíduos, da horizontalidade espacial da
comunidade, do tempo homogêneo das narrativas sociais, da visibilidade
historicista da modernidade, em que o presente de cada nível [do social]
coincide com o presente de todos os outros, de forma que presente é uma parte
essencial que torna a essência visível.
As reflexões conduzidas até aqui nos permitem a crença de que as identidades e
cidadanias da atual etapa da modernidade, em função das possibilidades de
disseminação das vozes propiciadas pelos novos canais de comunicação, desde que
usados em seu potencial emancipatório, podem encontrar importantes condições de
realização e rompimento das interdições. Para tanto, é essencial o estabelecimento de
relações em que a negociação de significados culturais possa se efetivar, permitindo
que as identidades se construam livremente na relação com o outro e no
reconhecimento das diferenças; e que, por fim, as fronteiras por elas delineadas o
sejam vistas como pontos de separação, mas, ao contrário, como lugares de encontro.
278
Homi Bhabha, O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 213.
175
Conclusão
Apesar do esforço assumido de empreender uma abordagem multidisciplinar, não
foi nosso propósito esgotar as possibilidades de abordagem dos processos aqui
examinados, sobretudo quando se considera a multiplicidade de aspectos envolvidos e
de entradas possíveis para a apreciação das conexões entre comunicação, identidade,
política e meio ambiente. Esta iniciativa representa mais um esforço, dentre os muitos
existentes e outros ainda por vir, de melhor compreender os processos envolvidos
na construção identitária de um estado que, em suas conquistas e dramas, possui
apenas um século de existência na condição de integrante do território brasileiro e
apenas 46 anos como unidade federativa.
Não obstante este retardamento em sua autonomia político-administrativa e a
subordinação a que esteve condicionado tanto política quanto economicamente no
decorrer do século XX, um certo consenso entre os estudiosos do caso acreano de
que suas primeiras comunidades nascem sob o signo da modernidade, ainda na
segunda metade do século XIX. Na condição de fornecedor de matéria prima
(borracha) para o crescente processo de industrialização do ocidente, o Acre sempre
esteve, nas diversas etapas de sua formação sócio-histórica, articulado ao mundo
moderno na maior parte das vezes de maneira subordinada. Em certa medida como
decorrência dessa condição, também é que surgem importantes movimentos de
resistência aos efeitos nefastos da expansão modernizadora: o movimento organizado
de trabalhadores extrativistas.
Ameaçada pelo avanço “modernizante” de atividades altamente devastadoras,
materializadas na pecuária e na exploração madeireira, a identidade/territorialidade
seringueira se vê, nos anos 1970 e 1980, forçada a constituir resistência política,
sociocultural e mesmo física, que encontra nos “empates” sua expressão mais
contundente. É no empenho de um segmento da imprensa acreana e no importante
engajamento de um grupo de jornalistas que os conflitos se tornam blicos,
pressionando o poder constituído a buscar alternativas que garantissem a permanência
das comunidades extrativistas nas áreas historicamente ocupadas por elas. A solução
política construída para o impasse materializa-se no formato das Reservas
Extrativistas, concebidas pelo movimento com inspiração na demarcação das reservas
indígenas. Além da própria constituição do movimento em si, esta representou a
primeira conquista importante como marco formal para a afirmação e principalmente
176
para o reconhecimento de uma identidade fortemente vinculada às características
morfológicas do território, na medida em que o trabalho extrativista tradicional, além de
depender da cobertura vegetal para sua reprodução social, não podia prescindir dos
demais recursos, também importantes, implicados na constituição histórica das
unidades produtivas, como a presença de rios ou igarapés, disponibilidade de caça e
outros itens florestais usados, por exemplo, na medicina alternativa. As reservas
significaram, assim, na segunda metade dos anos 1980, o coroamento de um modo de
vida e formas de subsistência integradas ao ambiente circundante, numa relação de
dependência, mas, ao mesmo tempo, de proteção desse ambiente pelos dos sujeitos
que dele precisavam. Esse processo não se fez sem grandes perdas e baixas que, no
entanto, acabaram por fortalecer ainda mais as causas, celebrizada como a saga dos
povos da floresta.
Precisamente dez anos após o assassinato do líder seringueiro, Chico Mendes,
em 1988, morto em nome dos interesses do latifúndio e da pecuarização, chegava ao
poder no governo do Acre um grupo de jovens políticos abrigados no Partido dos
Trabalhadores, reclamando a herança da luta desses povos e manifestando a seguinte
missão: resgatar a atividade produtiva que possibilitara a formação histórica do estado,
fortalecer a cultura e os modos de vida extrativista e interromper a destruição da
floresta. Ao assumir o governo, o grupo ativa um forte discurso de afirmação identitária
e fortalecimento cultural construído sobre os referenciais das chamadas populações da
floresta. Mediante o controle governamental dos meios de comunicação, esse discurso
é disseminado no conjunto da sociedade, em seus mais diferentes segmentos.
Entretanto, no primeiro mandato do petista Jorge Viana à frente do governo, a
alegada revalorização da cultura e da identidade apoiada no fazer e nos valores
extrativistas começa a se revelar uma fachada destinada a mascarar o fortalecimento
dos interesses do grande capital, especialmente na viabilização da exploração
madeireira, a partir de então legalizada, via aprovação da lei do manejo, e legitimada
pela noção de um “desenvolvimento sustentável”. Economicamente, opera-se a
intensificação do comércio de bens naturais apoiada na imagem de valorização sócio-
cultural na qual os próprios seringueiros são recrutados e treinados para extrair
madeireira, que chega aos mercados internacionais como produto originário de
“comunidades tradicionais”. Por esse motivo, na estratégia de marketing do discurso
legitimador, é crucial que esses sujeitos continuem a ser chamados de seringueiros.
Ambientalmente, intensifica-se a pressão sobre a floresta, na medida em aumenta o a
177
demanda e o consumo internacional de madeireira, agora certificada com o selo do
Conselho de Manejo Florestal (FSC, na siga em inglês), e cada vez mais comunidades
extrativistas ocupantes do que resta da idéia de Reservas vão aderindo à prática do
manejo como forma de capitalização para, posteriormente, investir na criação de gado
dentro das unidades de conservação.
Como se observa nesse processo, a viabilização do projeto de rentabilizar de
forma privatista o patrimônio público natural exigiu um enorme trabalho simbólico de
legitimação por meio da alimentação do imaginário social, de modo que tal apropriação
fosse significada publicamente como a única opção capaz de gerar riquezas, conservar
o meio ambiente e valorizar a cultura extrativista. Como os referenciais dessa cultura
dos povos da floresta (seringueiros, índios, ribeirinhos, coletores de castanha etc.)
foram as matrizes manipuladas na produção de uma identidade mais geral (e do
próprio governo em particular) e os estilos de vida dessas populações eram
considerados, por si, sustentáveis, tem-se como efeito final de sentido que tanto o
Governo da Floresta quanto qualquer iniciativa que dele proviesse seriam
imediatamente considerados sustentáveis tanto sob o aspecto social quanto ambiental.
É por meio dessa operação semiológica que a exploração madeireira é inserida e
ressignificada no conjunto das práticas extrativista e, portanto, reclassificada como
atividade sustentável. Tudo se torna, a partir de então, uma questão de denominação.
Para citar alguns exemplos: madeireiros tradicionais se tornam produtores florestais;
seringueiros que vivem de manejo madeireiro, para todos os efeitos, continuam a ser
“seringueiros”; as pastagens, fator de desmatamento para inserção da pecuária,
também ganham o adjetivo indulgente da palavra “manejado”, tornando-se “pastagens
manejadas” que, portanto, não trazem mais impacto ambiental; até o boi passa a ser
chamado de “boi verde”, pois a partir de então também deixa de ser fator de destruição
da floresta, além de se beneficiar da classificação de natural por ser alimentado
somente de pastagens, nos campos, em oposição às criações em confinamento.
Em 2007, a título de continuidade das políticas de preservação ambiental e
“fortalecimento das políticas da florestania”, arriscaram-se tentativas de incluir nesse
conjunto de atividades sustentáveis a instalação de uma unidade de processamento de
um dos maiores abatedouros da América Latina, conhecido como grupo Bertin. No
mesmo ano, o Senador petista Tião Viana, usando de sua influência na Agência
Nacional de Petróleo, criou as condições para que se iniciassem testes de prospecção
de gás e petróleo dentro de reservas indígenas, apesar da frontal oposição dessas
178
populações e de parte dos setores ambientalistas. Como se nota, a instrumentalização
dos referenciais extrativistas como invólucro para o conjunto das práticas de governo e
para a reconfiguraçao da acreanidade de modo geral foi o caminho largamente trilhado
pelas administrações do PT acreano, a partir da década de 1990, como estratégia de
legitimação política de seu grupo e de seu projeto. Nessa estratégia, o papel da mídia
foi essencial e chegou a conferir a esse construto uma considerável ressonância
regional, nacional e até internacional.
Em razão disso, em nossa concepção, não é difícil qualificar as configurações
identitárias resultantes desse manejo dos símbolos e da memória local como um
processo de construção de uma identidade fortemente legitimadora – para usar a
expressão de Castells –, na medida em que mobiliza o imaginário social e a
ressentimentos coletivos para fins de legitimação de um projeto político-econômico
supostamente sustentável, porém amplamente referenciado na lógica de apropriação
do mercado. Inversamente à constituição de resistências e proteções contra as
ameaças externas geradas pela dinâmica do processo modernizador, conforme se
poderia supor dos fundamentos ideológicos desse discurso ao propor o fortalecimento
de matrizes culturais locais, a reconstrução narrativa da acreanidade pelo discurso da
florestania se prestará mais a legitimar, interna e externamente, um intenso processo
de sujeição do local às necessidades do capital, porém com uma fachada de proteção
ambiental e valorização cultural das populações nativas.
Assim, quando pensamos na interação desse discurso com a questão das
identidades e das diferenças culturais em sua relação com o Estado e com os meios
de comunicação, fica evidente que algumas das características estruturais que
marcavam uma primeira modernidade tendem a adquirir outras configurações na
passagem para o que alguns autores vêm chamando de modernidade tardia. As
políticas de velamento/nivelamento das diferenças em relação a um padrão de
cidadania instituído, por exemplo, tendem a incorporar outras variáveis, especialmente
quando consideramos a natureza multinacional (e porque não multicultural?) das
atividades econômicas globalizadas, dando forma a sociedades de consumo como as
nossas. Além disso, quando se considera que a atribuição de valor mercadológico a
qualquer produto torna-se, em nossa época, amplamente mediada por fatores de
natureza cultural e identitária e pela estilização das diferenças em sua face
comercializável, percebemos, então, o valor mercadológico de exacerbações étnicas
como as empreendidas pelo discurso da florestania.
179
Num contexto marcado pela dominância do mercado como instância reguladora
e o enfraquecimento do poder ordenador dos Estados, é compreensível que no lugar
da repressão e velamento das diferenças, estas sejam estimuladas em seu exotismo e
até folclorizadas, mediante ativação de mecanismos de sedução e apelo estético.
Entretanto, é necessário ponderar que apesar da aceleração das trocas e dos fluxos de
imagens e informações implicadas, essas transformações não chegam
uniformemente e com as mesmas configurações aos diferentes territórios.
Quando enfocamos a construção discursiva da florestania sob a perspectiva da
comunicação social, nas condições sócio-históricas, político-culturais e econômicas do
contexto acreano, é possível considerar, pensando com Foucault, que tal construção
se fez (e se reproduz) na combinação de duas lógicas. Por um lado, está calcada
numa lógica disciplinar e coercitiva que busca interditar os dizeres e discursos que
escapem aos agenciamentos e controles dos cleos semantizadores presentes nos
aparatos de poder. Isso se torna evidente, sobretudo, quando focalizamos o tipo de
“vigilância” e “punição” exercidos sobre jornalistas e empresas de comunicação,
reproduzidos no microcosmo de cada veículo pela ação dos patrões sobre seus
funcionários (repórteres, produtores, editores etc.). Precisamente graças à ciência da
inteira dependência financeira das empresas em relação aos recursos do estado, como
demonstrado, tal situação não configura, para a maioria dos jornalistas, o que se possa
chamar de condições confortáveis de exercício profissional, o que se evidencia nas
raras e frustradas tentativas de suscitar debates sobre liberdade de imprensa, censura
e controle dos meios de comunicação pelo Estado. Ainda dentro dos liames
específicos do fazer jornalístico, embora de maneira mais indireta, a interdição, a
coerção e a punição também representaram (representam) dispositivos importantes
para bloquear a disponibilização de informações onde elas poderiam se originar, ou
seja, nos próprios espaços institucionais, o que, evidentemente, desencoraja possíveis
iniciativas de tornar públicas informações que não aquelas de interesse dos quadros de
comando.
Podemos considerar ainda que esses mecanismos de vigilância e coerção,
articulados com/como estratégias de cooptação, de certo modo, são os mesmos que
se exercem sobre os quadros partidários, sindicais e lideranças dos movimentos
sociais em geral, pelo mesmo princípio que garante o controle dos meios de
comunicação, ou seja, o poder de decidir quem tem acesso aos recursos públicos ou
onde eles serão invesidos, em um estado onde quase toda iniciativa se nutre de
180
repasses governamentais ou de financiamentos e doações de organismos financeiros
internacionais, mas com algum tipo de mediação, portanto de poder de decisão, das
instâncias de governo.
Evidentemente que em ambos os casos seja o da mídia, seja o das demais
entidades da sociedade civil, como sindicatos, associações de produtores etc. – não se
pode ignorar os interesses de empresários da comunicação, assim como os de
lideranças sindicais e sociais, amplamente contemplados pelas benesses do poder,
seja por benefícios financeiros, para os dois casos, seja nas influências políticas e
distribuição de vantagens de toda ordem, para o segundo. Não se pode negar,
portanto, uma reciprocidade de interesses contemplados, tendencialmente no topo das
cadeias de comando ou de representação.
Com efeito, é a identificação da existência e do emprego desses dispositivos que
nos permite visualizar as estratégias adotas pelos grupos ocupantes das instâncias
burocrático-administrativas da sociedade política (em sentido estrito) para estender sua
influência sobre as estruturas de organização da sociedade civil, conformando
claramente aquele processo descrito por Gramsci como Estado Ampliado, ao
incorporar em suas estratégias de controle os chamados aparelhos privados de
hegemonia.
O outro aspecto da combinação mencionada acima que viabiliza a eficácia inicial
na construção discursiva da florestania diz respeito precisamente ao que esse discurso
traz de propositivo, de afirmativo e de positividade. É neste ponto que se tornam
particularmente importantes as questões relacionadas à identidade, à percepção, pelos
agentes do poder, de uma lacuna de reconhecimento e valorização coletiva. A
“vontade de verdade” que atravessa a fala dos agentes públicos e, de modo geral, as
vozes autorizadas na mídia oficial, por mais que, na sua ânsia de legitimidade, implique
a desqualificação e a interdição de outras vozes, a parte do dispositivo de controle que
apare na cena pública é aquela que diz sim e, como tal, é afirmativa. Ou seja,
recobrando a importante reflexão de Foucault, esse discurso, para se afirmar, se apóia
simultaneamente na negação e na repressão, mas fundamentalmente no que traz de
construtivo, uma identidade. Assim, ele se afirma dizendo sim e não ao mesmo tempo.
É considerando esses aspectos, especialmente o afirmativo, que dizemos que o
discurso da florestania se constrói sobre a falta, sobre uma precariedade identitária
estrategicamente percebida pelas instâncias de poder. É nesse ponto que a
generalização das experiências e das conquistas das populações extrativistas, aliadas
181
ao resgate simbólico dos fatos fundadores e das batalhas vencidas no passado ganha
importância central, pois são valores que mobilizam, possibilitando uma reunificação,
temporária que seja, das representações coletivas. O discurso da florestania ofereceu
ao povo acreano uma história grandiosa, com heróis, guerreiros e rtires,
aparentemente preenchendo uma lacuna e uma abaixa auto-estima. Mas ao
reconstituir essa narrativa, a deixou suficientemente em aberta a fim de reservar um
lugar para os heróis da hora, ou mesmo abrigar novos feitos em velhas causas
quando, por exemplo, atribui à luta de Chico Mendes as “conquistas” do manejo
madeireiro. O que não se levou em consideração, ao centralizar o uso dos meios e das
técnicas de produção de narrativas, foi a inventividade e a criatividade no uso de outras
técnicas e outros instrumentos de narrar pelos agentes inicialmente privados do direito
de expressar seus relatos e posições.
Pode-se argumentar, todavia, que a diversidade tem lugar na narrativa oficial, e
sem dúvida o tem, mas é convidada a fazer parte de um discurso integrador em que
não há interação efetiva entre as culturas, na medida em que são convocadas a
compor esse quadro somente com aquilo que possuem de exótico, de preferência com
aqueles aspectos que exerçam fascínio e sedução animadores do consumo. Neste
caso fica explicado o tratamento cosmético aplicado aos aspectos étnicos de certas
culturas regionais.
Esta apropriação folclorizada das diferenças nos conduziu a pensar nos antigos e
em possíveis novos modos de lidar com a diversidade, levando ao surgimento de
alguns questionamentos: se numa primeira modernidade, marcada pela prevalência de
ofensivas civilizadoras, as diferenças eram tratadas como algo a ser nivelado ou
velado, mediante padrões civilizadores europeizados, não estaria ocorrendo, no que
muitos vêm chamando de modernidade tardia, uma proliferação dos discursos sobre a
diferença que, no outro extremo (mas não menos segregadores), buscam estabilizar as
representações e definir o lugar de cada grupo e de cada sujeito numa hierarquia
social? Estaria a explosão dos discursos sobre identidade a serviço de uma operação
que simula a inclusão e a polifonia, mas que não realiza o diálogo, fragmentando ainda
mais a precária comunicação e possibilidade de trocas entre os segmentos
socioculturais?
Diante dessas interrogações, uma certeza se faz presente, a da necessidade de
recompor importantes espaços de debate, de questionamento e diálogo que já
marcaram as configurações da esfera pública e da política como locus de negociação
182
coletiva e da argumentação em público. Se a esfera pública e a política foram
deslocadas do terreno das velhas mediações para os novos espaços da mídia,
democratizar e politizar os debates midiáticos, ao modo da “grande política”, como diria
Gramsci, torna-se um passo necessário.
183
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Jornal A Tribuna
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Jornal O Estado de São Paulo
Jornal O Globo
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http://altino.blogspot.com
188
ANEXOS
- Expedição de grupo de teatro chega ao Acre
Folha de S. Paulo - 19.7.2004
- Grupo de teatro conhece reserva extrativista Chico Mendes
Folha de S. Paulo - 24.7.2004
- E Agora Viana?
Veja 11.4.2003
- Mapa de limites e municípios do Acre
189
Expedição de grupo de teatro chega ao Acre
IVAN DELMANTO
Especial para a Folha Online – 19.7.2004
Depois de passar por Rondônia, a expedição do Teatro da Vertigem chegou ao Acre. Para o
grupo, a capital Rio Branco é a imagem do projeto urbano da modernidade. Acompanhe:
Quinta-feira, 15/7/2004 e sexta-feira, 16/7/2004: Rio Branco
Enfim, chegada ao Acre. Caminhando por Rio Branco, as impressões são as de uma cidade
moderna, com largas avenidas de asfalto perfeito, com praças bonitas cheias de árvores bem
verdes, com monumentos e museus preservando sua memória.
Para quem caminha um pouco mais, há, no limite da região central, um portal. Este portal é
formado pela praça da Bandeira, um aglomerado de pequenas lojinhas amontoadas em
galerias à beira do mau cheiro do rio. Para quem caminha por estas galerias são passagens
para uma outra cidade, a cidade verdadeira, que habita para além das fachadas bem cuidadas.
A cidade sem escolas e com péssimos postos de saúde, a cidade das casas de madeira
capenga, sem saneamento básico, com esgoto à céu aberto.
Rio Branco é, mais do que a utopia sofisticada de Brasília, imagem perfeita do projeto urbano
da modernidade que, desde as modificações que Haussman empreendeu em Paris, insiste na
beleza das superfícies, adequação do tecido da cidade aos padrões de sedução da
mercadoria.
As fachadas de Rio Branco
A avenida mais antiga da cidade foi restaurada e seus prédios antigos tiveram suas fachadas
rejuvenescidas. A luz noturna permite transpor suas fachadas: nas bonitas casinhas,
carcomidas por dentro, funcionam botecos sem higiene e um decadente prostíbulo.
Esse transpor das fachadas é o caminho de nossa pesquisa em Rio Branco. Depois da morte
de Chico Mendes, o Acre se tornou um importante ponto de turismo social, cercado por
inúmeros projetos de organismos internacionais sedentos por lavar seu dinheiro. Para atrair
estes investimentos, o governo de Jorge Viana se autodenominou "governo da floresta",
cunhando diversas estratégias de marketing para divulgar (ou vender) a imagem do Estado.
O mbolo do "governo da floresta" é a castanheira, árvore que marcou o movimento dos
seringueiros por representar a união popular (a castanheira sobrevive quando cercada por
outras inúmeras espécies). A castanheira, esvaziada do seu antigo sentido subversivo,
simboliza agora o projeto de desenvolvimento, conduzido por latifundiários e empresas
nacionais e multinacionais, que têm como carro chefe a consolidação da indústria madeireira
no Estado.
O mesmo processo de apropriação indébita conduz as iniciativas de preservação da memória
acreana. Os monumentos, museus e homenagens infinitas estão fincados sobre uma visão
oficialesca e deturpada da história. Frases como "o povo acreano lutou para ser brasileiro" ou o
culto à personalidade do general Plácido de Castro (líder do Exército brasileiro na guerra
contra a Bolívia), escondem a luta sanguinária, levada a cabo pelos interesses dos
seringalistas e donos de terra, que terminou com a tomada de antigos territórios bolivianos, que
hoje formam o Acre.
Tal processo de engodo nacionalista, esconde que a chamada Revolução Acreana não existiu,
que, ao final da guerra com a Bolívia, não houve nenhuma modificação na estrutura de
dominação presente na região. O marketing histórico esconde que o que houve foi apenas uma
guerra imperialista de conquista. Perceber, ao transpor passagens escondidas e esquecidas, o
que vive além das fachadas, mais do que interesse histórico, é perceber o que é o Acre hoje.
Ivan Delmanto é pesquisador e coordenador teórico e de dramaturgismo do projeto Vertigem BR3, do Teatro da
Vertigem. Escreve periodicamente um 'Diário de Viagem' para a Folha Online, narrando a experiência do grupo
pelo interior do Brasil.
190
Grupo de teatro conhece reserva extrativista Chico Mendes
IVAN DELMANTO
Especial para a Folha Online – 24.7.2004
Após visitar uma reserva extrativista no Acre, o grupo de teatro questiona o que existe de
sustentável nas terras antes ocupadas pelos seringueiros: a floresta ou o faroeste do lucro fácil?
Leia:
Terça-feira, 20/7/2004 e quarta-feira, 21/7/2004: Reserva Extrativista Chico Mendes - Seringal Dois
Irmãos
Com a morte de Chico Mendes, um enorme fluxo de mocinhos internacionais, com boas ou
impublicáveis intenções, povoou o Acre. Organismos internacionais, comovidos diante do massacre
da floresta (exposto pelo assassinato do líder sindical) ou emocionados diante da possibilidade de
lavar seus milhões de dólares, formularam infinitos projetos de desenvolvimento sustentável.
formulamos em um destes textos o casamento conflituoso, mas eterno, entre desenvolvimento e
barbárie, quando celebrado nestas era de capital globalizado. Para aqueles interessados no
assunto, conversemos um pouco mais, para verificar se o que existe de sustentável por estas
bandas é a floresta ou o faroeste do lucro fácil.
A Reserva Extrativista Chico Mendes é realização de décadas de sangrentas lutas sindicais dos
seringueiros, que buscaram, com a queda do ouro negro da borracha, impedir a transformação dos
seringais em pasto puro. Este conflito com os latifundiários vitimou Chico Mendes e centenas de
outros militantes, até que a Constituição de 88 veio transformar as terras antes ocupadas pelos
seringueiros em reservas, em um específico processo de reforma agrária. Grande parte dos
seringueiros hoje não sofre mais a exploração direta dos patrões (suas vidas mudaram de dono,
veremos a seguir), e está situada em áreas de reserva, onde leis que restringem a utilização da
terra, buscando racionalizá-la.
Desde o holocausto, alguns filósofos espíritos-de-porco já questionaram o conceito de razão
ocidental, surgido com o Iluminismo e consolidado nas seguidas revoluções industriais. O
desenvolvimento sustentável, ou a utilização racional da floresta, é exemplo típico de que a razão
serve a quem paga mais.
A iniciativa começa bem, aparentemente. Busca-se oferecer ao seringueiro capacitação para que
ele possa diversificar sua renda, por meio de variados produtos da floresta: madeira, açaí, gado,
castanha, artesanato em couro vegetal (os leitores mais atentos observaram que o gado não é
um produto da floresta, mas por aqui poucas pessoas notaram essa incompatibilidade).
No seringal Dois Irmãos, o discurso oficial do famigerado Governo da Floresta é repetido por todos,
alunos nota dez em decoreba. O problema é que as propostas não convencem ninguém:
independentemente da diversificação das atividades, o seringueiro continua miserável, vendendo
os produtos a um preço irrisório para os grandes comerciantes das capitais ou para empresas
multinacionais, estes sim favorecidos pela extração executada por mão-de-obra barata e
desarticulada.
O manejo florestal, método me-engana-que-eu-gosto de extrair madeira, procura nos convencer de
que a retirada de árvores centenárias, mesmo que se efetuada em intervalos de tempo maiores,
será reposta pela floresta. Como repor árvores de 500 anos, retiradas a cada trinta anos? E as
centenas de madeireiras ilegais, por que não são fiscalizadas? Ao contrário, uma estrada para o
Pacífico é construída, com apoio de empresas japonesas, interessadas em facilitar a exploração da
madeira. Crescem, nos diversos seringais, as áreas desmatadas para a criação do gado, atividade
mais lucrativa para o seringueiro, mas que exige grandes extensões de terra desmatada. Este
projeto de desenvolvimento é insustentável.
É claro que os argumentos das populações da floresta são irrefutáveis: eles simplesmente precisam
trabalhar para sobreviver. Mas profundezas: estas populações apenas sobrevivem porque é
impossível que pequenas propriedades, baseadas em uma rudimentar economia extrativista,
possam competir ou negociar com as grandes empresas que formatam os produtos finais ou com
os grandes comerciantes internacionais. O que se vive aqui não é culpa do atual governo, como
pensa a esquerda burra, é mais um triste exemplo do capitalismo predatório subdesenvolvendo um
país periférico, paraíso da exploração da mão-de-obra doente, sofrida e perdida, como baratas em
caixotes de vidro verde.
Ivan Delmanto é pesquisador e coordenador teórico e de dramaturgismo do projeto Vertigem BR3, do
Teatro da Vertigem. Escreve periodicamente um "Diário de Viagem" para a Folha Online, narrando a
experiência do grupo pelo interior do Brasil.
191
E agora, Viana?
VEJA Brasil, Edição 11 de abril de 2007
A devastação no Acre, durante a gestão
de Jorge Viana, foi maior do que se pensava
Leonardo Coutinho
Antonio Milena
Queimada em Rio Branco: os petistas fingem que não há risco ao ambiente
O petista Jorge Viana governou o Acre por oito anos, de 1999 a 2006. Logo que chegou ao poder, percebeu que o discurso
ambiental poderia lhe render projeção nacional e batizou sua gestão de "governo da floresta". No segundo ano de
mandato, passou a alardear que havia contido o desmatamento em seu estado. Tornou-se um dos astros do petismo e
aproximou-se do presidente Lula. Seu peso político aumentou tanto que, agora, mesmo sem mandato, disputa com José
Sarney e Jader Barbalho quem apadrinhará o próximo superintendente da Sudam, a Superintendência para o
Desenvolvimento da Amazônia. A imagem de Viana como protetor da natureza, no entanto, está tão ameaçada quanto a
mata que ele diz defender. VEJA teve acesso a um estudo encomendado pelo próprio petista que mostra que, nos seis
primeiros anos de sua gestão, a velocidade do desmatamento no Acre triplicou e chegou à marca de 995 quilômetros
quadrados em 2004. É como se uma área de floresta do tamanho de catorze campos de futebol fosse derrubada por hora.
Pior: o estudo, feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), revela ainda que, de todo o
desmatamento do Acre, cerca de um terço ocorreu durante a administração de Viana. O então governador recebeu as
conclusões do estudo em agosto do ano passado – e as escondeu.
André Dusek/AE
Viana: bom de conversa, mas ruim de serviço
Em setembro de 2003, VEJA havia informado que a devastação no estado aumentara no governo do PT. Viana se
esforçou para desqualificar a reportagem. Alegou que os números apresentados estavam errados e escalou jornalistas
pagos com dinheiro público para replicar sua defesa pelo país. Em seu estado, usou dinheiro do Erário para atacar VEJA
nos jornais e TV locais. "No meu governo, o desmatamento só cai", jurava ele. Poderia ter-se poupado. O estudo do
Imazon, feito com base em imagens de satélite, tem um grau de precisão inédito no país e confirma o diagnóstico da
destruição. No Acre, entretanto, Viana mantém sua boa imagem, principalmente entre os onguistas. Sintomático. Lá, nem
os "povos da floresta" andam preocupados em manter as árvores em pé. No seringal Nova Esperança, em Xapuri, 36% da
floresta dentro de sua área foi destruída. A Reserva Extrativista Chico Mendes está salpicada de pastagens. Fatos assim
mostram que a falta de avaliações isentas e sem romantismo ameaça tanto a preservação ambiental quanto o crescimento
econômico em um estado que já perdeu 11% de suas florestas e continua a ostentar alguns dos piores indicadores sociais
do país.
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