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Universidade Federal de Santa Catarina
Programa de Pós-Graduação em Literatura
CONDIÇÕES PARA A PRODUÇÃO DE CIBERNARRATIVAS A
PARTIR DO CONCEITO DE IMERSÃO
Carlos Henrique Rezende Falci
Florianópolis
2007
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Carlos Henrique Rezende Falci
CONDIÇÕES PARA A PRODUÇÃO DE CIBERNARRATIVAS A
PARTIR DO CONCEITO DE IMERSÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina,
como requisito para obtenção do título de Doutor em
Literatura – Teoria Literária.
Orientador: Alckmar Luiz dos Santos
Florianópolis
2007
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Carlos Henrique Rezende Falci
Condições para a produção de cibernarrativas a partir do conceito de imersão
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa
Catarina como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Literatura – Teoria
Literária, em 22 de novembro 2007.
Alckmar Luiz dos Santos
__________________________________________________________
Alckmar Luiz dos Santos – Doutor em Literatura (orientador) – (UFSC)
Maria Lucia Santaella Braga
__________________________________________________________
Maria Lucia Santaella Braga – Doutora em Literatura - (PUC SP)
Gilbertto dos Santos Prado
__________________________________________________________
Gilbertto dos Santos Prado – Doutor em Artes e Ciências da Arte – (USP)
Marcos José Muller
__________________________________________________________
Marcos José Muller – Doutor em Filosofia – (UFSC)
Walter Carlos Costa
__________________________________________________________
Walter Carlos Costa – Doutor em Inglês – (UFSC)
Susana Célia Leandro Scramim
Susana Célia Leandro Scramim – Doutora em Letras – (UFSC) (suplente)
Para meus pais e minha filha,
distensões da minha alma.
AGRADECIMENTOS
Essa tese surgiu em conversas várias, mas quero aqui lembrar de uma muito especial, que
simboliza todos os encontros que me trouxeram até esse momento. Estive um dia na casa de Vera
Casa Nova, num feriado em Belo Horizonte, e conversamos (ela falou mais que eu, o que é uma
proeza) durante toda a tarde sobre idéias ainda muito desconexas que eu tinha para uma tese. Nesse
dia a Vera me fez perceber que eu tinha uma inquietação boa, e que aquilo podia virar uma tese.
Depois, em 2002, ela me convidou para integrar uma mesa na Abralic, e lá encontrei o Alckmar. Fica
aqui, assim, meu carinho para com a Vera, sempre.
Antes de agradecer ao Alckmar, fica aqui meu agradecimento à moça que o convidou para
assistir a minha mesa. Se não me engano, o nome dela era Janaína, do Rio de Janeiro. Ela esteve
numa mesa da Abralic no dia anterior, onde todos aqueles que pesquisavam a relação entre literatura
e meios digitais estavam presentes. Não fosse por esse convite também sem quê nem porquê, não
teria sido interrogado duramente pelo Alckmar após a minha apresentação. Afinal, achava então que
ninguém da mesa anterior apareceria naquele outro dia.
Assim, chego ao Alckmar, que tem um estilo muito próprio de ser. Esse estilo se revela, penso
eu, na vontade de produzir e na vontade do risco. Risco que assumiu ao me convidar para
estendermos a conversa da mesa, e que se traduziu depois na orientação dessa tese. Desde o início
me fez perceber que caminharia ao meu lado, evitando definir caminhos. Antes, preferiu apostar
naqueles que sugeri, sem descuidar de discutir rotas, atalhos, caminhos mais longos, desvios.
Orientou-me não no sentido de me levar pelo caminho, mas de apoiar-me em todos os meus passos,
mesmo quando incertos.
Deixo aqui também para Taís e Alckmar, e para os seus filhos, o meu muito, muitíssimo
obrigado pelo acolhimento em sua casa, quando comecei a tese e não sabia direito nem como
começar a andar em Florianópolis. Eles não me hospedaram simplesmente: me receberam como um
amigo de muito tempo, com quem se compartilha uma amizade sem reservas. Assim, sem reservas,
paro aqui também sem palavras para dizer de uma gratidão que deixa o coração sempre cheio.
Na caminhada toda nem sempre escolhi os melhores caminhos, nem sempre escolhi os piores.
E assim, cheguei até aqui o conseguindo preservar todos os encontros da minha vida. Mas fica
aqui registrado o encontro com a Patrícia, que um dia me fez entender melhor a literatura e a vida, e
me fez perceber que eu podia caminhar por ali. Ainda que a gente não se encontre mais, no meu
caminho tem a presença dela, e isso é bom de saber e de ter.
Para minha família de Santa Tereza, que me acolheu numa hora difícil, em que não havia muito
rumo em nada, e em que essa tese parecia não querer existir mais. Vocês todos, Cássia, Jardel, Malu,
Augusto, Matilde, Gustavo, Levindo, Gustavo (é outro, é outro) e outros que habitam essa “casa” me
lembram sempre de ser um pouco mais leve, de buscar mais o encontro, de me fazer no meio das
gentes todas, das coisas inteiras. Vocês me lembram um adesivo de carro “Olhe bem as montanhas”,
e o me deixam esquecer que, quando a gente se sente muito pequeno, é bom olhar pro horizonte,
porque a gente sabe olhar grande, é só desejar.
Quando comecei a tese, minha vida mudou muito, em função de muitas outras coisas. Em
2003 havia muita confusão à minha volta, e não conseguia organizar uma linha de ação clara.
Quando convidei a Daniela Serra para me auxiliar em um trabalho mais que árduo na PUC, não
imaginava que isso seria o mínimo que ela faria no meio da minha caminhada. E isso não é pouco,
definitivamente. Dividir com ela esse trabalho me fez perceber como é fundamental buscar um
pouco de equilíbrio, como é necessário comemorar as conquistas e viver as realizações, porque isso
não é se acomodar, é se preparar para viver feliz, todo dia. Para a Dani, para o Edu e para o Artur
que são uma família muito bacana, fica aqui meu carinho também.
Tive a alegria de poder dividir com a Elisa angústias de trabalho, de filhos, de orçamentos, de
decisões ruins e boas, de grandes acertos, de projetos muito bacanas, mesmo que não sejam
exatamente frutos para essa tese ou dessa tese. Há nela uma calma e um cuidado que fazem entender
que a pressa é realmente inimiga da perfeição. E que é possível andar rápido, sabendo dar os passos
na hora certa. Assim faço presente essa figura de riso fácil, de amizade leve e intensa.
Edu, Geane e André, vocês dividem comigo conversas muitas, textos longos, caminhos nem
sempre prontos. Para cada um um jeito de falar, um jeito de encontrar. Do Edu tiro aqui uma
“orientação” conjunta num quarto de hospital, uma conversa em que falei muito, mas o pouco que
ouvi foi da intensidade que o Edu sabe dar para as coisas. Geane, fazemos parcerias muito boas,
mesmo sem planejar. Isso é a marca dos nossos encontros para mim: o caminho conceitual não
precisa ser o mesmo, ele se cruza porque é caminho de andar junto mesmo. Do André deixo aqui o
jeito sossegado e tranqüilo de quem sabe lidar com as palavras, com a fluidez, com a rapidez sem se
deixar levar. Deixo o jeito franco de conversar, sempre se investigando quando fala com a gente,
pessoa sempre em estado de construção.
Para a moçada do Nupill com quem, infelizmente, convivo muito menos que gostaria, mas que
está sempre por perto. Quando estive aí pela primeira vez senti um jeito bom de ficar em casa; afinal,
tinha acafé de tarde no Nupill. Vocês me receberam de um jeito muito mineiro de ser, e isso pra
gente daqui conta muito mesmo. muitas pessoas, muito bom humor e não vou lembrar de todos
os nomes. Deixo aqui registrada a risada da Verônica, o olhar sempre perscrutador do Rico, o jeito
“bon vivant” do Cristiano, a risada grave do Otávio, o meu espanto de descobrir que o Rodrigo era
irmão gêmeo isso mesmo?) do Cristiano, a ansiedade do Victor. E deixo também o desejo de
parcerias conceituais mais intensas.
Saulo, deixo aqui dois registros. O primeiro, de quando estivemos no Recife e você nos
acolheu na “sua” cidade, e na sua casa. E me acolheu de uma maneira muito especial, em um
momento muito difícil da minha vida e da tese também. Ao me apresentar para sua família fez
questão de dizer que eu era o Cacá, de quem você tanto falava. E fui, assim, recebido com glórias e
alvíssaras por toda a família. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir o nome do meu pai
compartilhado pelo seu pai e também pelo seu filho. Me senti irmão, filho e companheiro. E um
segundo registro, quando você viu a minha apresentação na Abralic em 2006 e, ao final, fez um
comentário fundamental para que essa tese viesse a um termo. Disse-me você, então, palavras
parecidas com essas: hoje entendo o que você está discutindo e sinto que houve um progresso
enorme em relação ao que apresentou em Recife. Sua tese é porreta e você não tem algo a
discutir como está sabendo discutir muito bem. Dito isso, compartilho também com você o mérito
de estar aqui hoje, escrevendo essas linhas. Os deméritos deixa que eu resolvo.
Deixo aqui os méritos de um texto bem cuidado, bem revisado e com as filigranas que o
Mário sabe encontrar e resolver. Obrigado, Mário, você que está aí para me lembrar sempre dos
momentos da Fafich, está para ser lembrança e presença. Sem você não haveria normas, e não
haveria transgressões.
falei dela e deles (meus pais) na dedicatória, mas fecho aqui os agradecimentos dizendo
principalmente da Luiza, minha filha. Você sabe me perceber de um jeito que não vou aprender
nunca, e é por isso que quero ser pai e companheiro para o resto da vida, porque é bom encontrar e
ser encontrado por quem a gente ama, todo dia.
Essa tese foi realizada com recursos do programa Rumos Pesquisa do Itaú Cultural, de cuja
instituição recebi uma bolsa durante o segundo semestre de 2003 para desenvolver minha pesquisa.
“Em vez de rivalizar com a espessura do mundo,
a de meu corpo é, ao contrário, o único meio que
possuo para chegar ao âmago das coisas,
fazendo-me mundo e fazendo-as carne”.
(Merleau-Ponty)
RESUMO
Essa tese tem como objetivo investigar de que forma a imersão pode ser considerada condição
para a produção de cibernarrativas. Nesse sentido, utilizam-se aqui, como conceitos-chave para
discutir a imersão, aqueles trabalhados por Iser na teoria do efeito estético; as relações
estabelecidas por Paul Ricoeur entre tempo e narrativa; as discussões sobre imersão na arte
virtual; a relação entre imersão e interatividade, conforme Marie-Laure Ryan e o conceito de
cibertexto, em Espen Aarseth. A fenomenologia do ato de leitura permite discutir o texto como
acontecimento e essa questão é interligada à visão de Ricoeur para pensar a narrativa, uma vez
que o autor francês compreende que toda narrativa é relação entre três mimeses e que não
encontra um término em si mesma, mas um termo com a participação do leitor. A partir desses
referenciais, propõe-se discutir a imersão, primeiramente vista como a entrada em um ambiente já
definido, para depois ampliar essa definição e apresentar a imersão como condição para a própria
criação do ambiente imersivo. É a partir dessa última visada sobre o conceito de imersão que a
tese propõe uma tipologia para os processos cibernarrativos, compreendendo como fundamentais,
nesses processos: o acesso ao tempo pré-figurado da narrativa; a possibilidade de interferência
física no código de programação e nas regras das cibernarrativas, por parte dos receptores-
participantes e, por fim, a possibilidade de acessar e modificar as leituras” feitas por outros
receptores-participantes, quando se acessa uma cibernarrativa.
Palavras-chave: cibernarrativas; imersão; produção colaborativa; tempo
ABSTRACT
This thesis has as aim investigate how immersion can be considered a condition to produce
cybernarratives. In this sense, this work uses as key concepts to discuss immersion: concepts used
by Wolfgang Iser in the aesthetics effect theory; relationships established by Paul Ricoeur
between time and narrative; discussions about immersion on virtual art, relationship between
immersion and interactivity, as used by Marie-Laure Ryan, and the concept of cybertext, by
Espen Aarseth. The phenomenology of reading act lets discuss text as event and this question is
interconnected to Ricoeur’s vision of narrative, since the french author understands that all
narrative is a relationship between three mimesis, and it doesn’t encounter an end by itself, but a
term with reader’s participation. From these benchmarks, we propose discuss immersion, first, as
an entry into an environment already constructed, and enlarge this definition presenting
immersion as a condition for the creation of immersive environment itself. From this last
perspective about immersion this thesis proposes a tipology for cybernarratives processes,
understanding as fundamental concepts about these processes: access to a pre-narrated time;
possibility to modify fisically programmation code and cybernarratives rules, by participant-
readers and, at last, possibility to access and modify “readings” done by others participant-
readers, when accessing a cybernarrative.
Key-words: cybernarratives; immersion; collaborative production; time;
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: uma das obras derivadas de PiazzaVirtuale ............................................. 105
Figura 2: snapshot da tela principal de Oulipoems .................................................. 180
Figura 3: snapshot da tela principal de Sundays in the park .................................. 181
Figura 4: snapshot da tela principal de Morningside Vector Space ........................ 183
Figura 5: snapshot da tela principal de The Electronic Muse.................................. 185
Figura 6: snapshot da tela principal de Trace ........................................................... 189
Figura 7: um snapshot de uma das páginas de kollabor8 ........................................ 191
Figura 8: snapshot da tela principal de Code_UP .................................................... 195
Figura 9: snapshot de uma das telas em movimento em Zoom_RGB_UP .............. 198
Figura 10: tela principal de Circ_lular, captada em um snapshot .......................... 199
Figura 11:snapshot de uma das telas principais de Pianographique ...................... 204
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13
2 ESCRITA E LEITURA: ENTRELAÇAMENTOS POSSÍVEIS .................................... 18
2.1 O ato da escrita ................................................................................................................... 18
2.2 O ato da leitura ................................................................................................................... 27
3 TEMPO, ESPAÇO E NARRATIVA ................................................................................. 50
3.1 A experiência com o tempo e com o espaço ...................................................................... 50
3.2 A relação entre tempo e narrativa ....................................................................................... 58
3.3 Os elementos do jogo temporal na narrativa ...................................................................... 67
4 DO HIPERTEXTO AO CIBERTEXTO: UMA PROPOSTA PARA A
CIBERNARRATIVA ............................................................................................................. 86
4.1 O texto como produtividade ............................................................................................... 86
4.2 A materialidade do objeto artístico em meio digital........................................................... 93
4.3 O cibertexto: processos de comunicação em textos dinâmicos ........................................ 107
5 IMERSÃO: UM CONCEITO RELACIONAL .............................................................. 121
5.1 Ilusão e imersão na arte virtual ......................................................................................... 121
5.2 Primeiras aproximações entre fenomenologia da leitura e imersão ................................. 131
5.3 Uma poética da imersão ................................................................................................... 138
6 DAS RELAÇÕES ENTRE CIBERNARRATIVAS E IMERSÃO ............................... 160
6.1 Uma tipologia para cibertextos ......................................................................................... 160
6.2 Uma tipologia para narrativas interativas ......................................................................... 166
6.3 A imersão como condição para a produção de cibernarrativas ........................................ 171
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 212
13
1 INTRODUÇÃO
A literatura em meio eletrônico é um campo tão instável quanto o próprio campo da
literatura. diversas definições para tentar caracterizar o que sejam hipertextos, cibertextos,
textos em meio eletrônico, hiperficções e tantos outros conceitos que não cabe aqui enumerá-los à
exaustão. As abordagens conceituais parecem procurar nas obras o que poderia fazer surgir um
conceito minimamente estruturado, ao mesmo tempo em que apontam para a necessidade de se
olhar para o processo de construção dessas obras como o objeto a ser prioritariamente
investigado.
As obras em meio eletrônico são instáveis em função de o seu próprio suporte ser baseado
no fluxo de informações e não na apresentação em algum tipo de material pronto e contido pelo
suporte que as apresenta. E aqui se está falando de obras que trazem imagens, sons, por exemplo,
e não em obras cujo conteúdo é somente verbal. O meio eletrônico é um suporte que
desmaterializa o conteúdo, no sentido físico desse termo, porque o transforma em sinais
eletrônicos a serem transmitidos. A característica central desse suporte é justamente o fato de ser
um mecanismo de transmissão, mas também poder ser utilizado como um mecanismo de
comunicação efetiva, de diálogo, de participação colaborativa em processos artísticos a distância,
por exemplo. De certa maneira, o suporte eletrônico prepara o surgimento das obras em formato
digital, meio no qual uma extrema flexibilidade do material, que pode ser transformado de
palavras em imagens, de sons em cores e vice-versa.
A flexibilidade do suporte, característica tanto dos meios eletrônicos quanto dos meios
digitais, é como uma intensificação de processos de criação experimentados em outros meios ou
em outras áreas de criação, notadamente na literatura, objeto de discussão nessa tese. Afinal, a
criação literária seria uma forma de perceber a “carne”, o Ser no qual tanto obra quanto autor se
entrelaçam. Através da produção de uma obra, aquele que a escreve experimenta a
reversibilidade, o quiasma, que é a idéia de que toda percepção é forrada por uma
contrapercepção (oposição real de Kant), é ato de duas faces, não mais se sabe quem fala e
quem escuta”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 238). A obra é capaz de modificar a percepção do
autor, uma vez que este enxerga a existência de uma relação entre si mesmo e a obra, nas
palavras que deposita no papel. A criação não é mero ato reflexivo, mas movimento entre
consciência e coisa, ambos fundantes e fundados na relação intersubjetiva. Nesse momento de
14
troca, o autor percebe que algo está a acontecer e utiliza as palavras para se aproximar dessa
troca, sem nunca chegar exatamente ao lugar onde ela acontece. Há, então, na experiência da
criação da obra, entrelaçamento entre a narrativa e o tempo em que esse entrelaçamento acontece.
Segundo Paul Ricoeur (1994), os processos de construção narrativa permitem ao homem
perceber o tempo e, dessa forma, conseguir falar sobre o tempo, categoria fundante da
experiência. Isso se deve ao fato de que as narrativas permitem estruturar o tempo numa
configuração em que os fatos aparecem ordenados de determinada maneira, de modo a poderem
ser contados com um determinado sentido. Entretanto, as narrativas só se completam quando há a
presença do leitor, que se confronta com a organização narrativa sugerida e a reconfigura
segundo a sua própria percepção, o que confere a essa relação o caráter de intersubjetividade.
Assim, o ato de criação de uma narrativa é também um ato baseado na criação de um processo
que exige, em alguma medida, o contato de autores e leitores em partes e momentos distintos,
para que a narrativa apresente completudes, mesmo que temporárias. E é justamente a partir
desse contato que se pretende analisar o processo de construção de cibernarrativas.
A discussão sobre esse tipo de narrativa baseia-se numa análise que conjuga os processos
de construção narrativa, a teoria do efeito estético, o conceito de cibertexto e o conceito de
imersão. O que se pretende é enfatizar o fato de que as cibernarrativas não são uma nova forma
de literatura, ontologicamente falando, mas sim intensificam o tipo de experiência que já se pode
ver em narrativas presentes em outros meios. Para tanto, o foco de análise se faz sobre processos
de escrita e leitura, como os responsáveis pela efetivação do processo que leva ao surgimento de
uma narrativa.
A conjunção entre meios eletrônicos, meios digitais e processos de criação literária sugere,
como dito, outro tipo de experiência com as narrativas. Ainda que essa experiência não seja
ontologicamente diferente de experiências em outros meios, o que nunca é demais reafirmar,
novas questões em jogo quando as obras derivadas das cibernarrativas se apresentam como um
híbrido de obras acabadas e processos em construção incessante. É como se a materialidade
dessas narrativas apontasse para um tipo de percepção em que tanto autores quanto leitores se
aproximassem das camadas temporais que fundam a percepção do mundo. Entretanto, o que se
afirma aqui também poderia ser afirmado sobre outras formas narrativas. Afinal, quando um
leitor interpreta uma obra, o que ele faz é justamente colocar em contato camadas temporais
diversas, numa tentativa de perceber o tempo, através da forma como se conta esse tempo. O que
15
parece ser um elemento a mais no caso das cibernarrativas é a possibilidade de entrada na
materialidade das obras, no momento mesmo em que elas ainda não estão estruturadas, em que as
narrativas em si ainda não foram construídas. Ou seja, parece haver aqui a possibilidade de
transportar os atos interpretativos para os processos de construção sica das narrativas. E essa
transposição seria possível a partir do tipo de imersão derivado da conjunção entre suportes
materialmente instáveis, como é o caso dos suportes digitais, e processos de construção narrativa
baseados na construção de obras processuais. É a partir de tal conjunção que esta tese pretende
mostrar de que forma a imersão pode ser vista como uma condição para a construção de
cibernarrativas.
No primeiro capítulo são discutidos os processos de escrita e leitura a partir,
principalmente, da teoria do efeito estético elaborada por Wolfgang Iser (1996). Com essa
abordagem pretende-se enfatizar os processos comunicativos experimentados por autores e
leitores na produção de uma obra. A teoria do efeito estético permite perceber que as obras são
sempre arranjos de camadas temporais, cuja mobilidade é resultado justamente dos processos de
contato com essas camadas.
Analisar os conceitos de espaço e tempo a partir de uma abordagem fenomenológica, com
base nas discussões empreendidas por Maurice Merleau-Ponty, é o propósito do segundo
capítulo. O conceito de tempo também será discutido em função de estruturas narrativas
ficcionais, tomando como base a discussão de Paul Ricoeur (1994) em “Tempo e narrativa”. A
idéia de tempo aqui se liga à noção de que em toda obra várias camadas temporais que
estruturam a narrativa. Nesse capítulo a definição de camadas temporais será relacionada tanto à
obra de Paul Ricoeur (1994) quanto à discussão que Iser (1996) empreende sobre a teoria do
efeito estético.
O conceito de espaço será trabalhado a partir da discussão que Barthes (2004) realiza sobre
a escrita e sobre a noção de obra e texto. Essa análise permitirá, no capítulo sobre imersão,
compreender em que medida esse conceito relaciona-se com a experiência de escrita ou leitura e
não se reduz a pensar um espaço fixo em que a obra seria alocada, ou a uma pura experiência
temporal. sempre um equilíbrio entre espaço e tempo, assim como reversibilidade entre os
dois, principalmente nas experiências de imersão em cibertextos.
Pretende-se, no capítulo três, discorrer sobre o conceito de hipertexto e cibertexto,
atravessando as diversas acepções que os termos adquirem quando se referem à literatura em
16
meio digital. Espera-se que essa análise permita compreender melhor o conceito de cibertexto,
desenvolvido por Espen Aarseth (1997) e que se aproxima do conceito de texto como
produtividade, desenvolvido por Julia Kristeva, por Barthes (2004) e também por Pierre
Macherey (1966). O conceito de cibertexto será analisado detalhadamente, procurando
compreender em que medida as obras cibertextuais, em tese, podem se aproximar da hipótese
principal desse estudo, qual seja, a de que um tipo específico de imersão é condição para a
existência de obras que possam ser chamadas de cibernarrativas.
Para o capítulo quatro, em que se discute a imersão como um conceito relacional, entende-
se fundamental um histórico sobre o conceito de imersão e a relação com as artes de ilusão e
criação de espaços ilusórios. A obra de Oliver Grau (2003) permite discutir a evolução do
conceito desde o período medieval até o momento em que se pode falar de uma telepresença e de
espaços virtuais.
Em seguida, pretende-se discutir outra maneira de trabalhar o conceito de imersão, a partir
da fenomenologia da leitura e da visada fenomenológica de Merleau-Ponty (1999) sobre espaço e
tempo. Essa abordagem será feita a partir do trabalho de Marie-Laure Ryan (2001) sobre imersão
e interatividade nas narrativas virtuais. A discussão que Iser (1996) realiza sobre o efeito estético
e as relações entre o pólo do leitor e o pólo do texto será também utilizada para definir a idéia de
imersão a partir das experiências de escrita e leitura, como um fenômeno que se a perceber e
permite a percepção da obra e do texto. Assim, imersão não será considerada como um conceito
em que primeiro se define um espaço para a obra existir e então ela pode ser alocada nesse
espaço, no caso de obras em meio digital. É a própria construção da obra e também do texto que
irão permitir a experiência de uma imersão. E esta, por sua vez, será fundamental para se definir
condições para a criação de cibernarrativas.
No quinto e último capítulo dessa tese verifica-se em que medida o conceito de imersão
elaborado no capítulo anterior aplica-se à análise de cibernarrativas. Para tanto, será criada uma
tipologia que funcionará como instrumento analítico de obras cujos artistas transitam entre a
literatura, a programação em computadores e obras que podem ser chamadas de verbo-voco-
visuais, com uso de códigos digitais. A análise será trabalhada a partir, principalmente, da
experiência de produção dessas obras e de algumas experiências de leitura, uma vez que a tese se
baseia nessas duas possibilidades de contato com as cibernarrativas. Na análise será considerado
17
de que maneira a relação entre imersão, espaço, tempo, escrita e leitura podem definir
características específicas das obras em questão.
À guisa de conclusão, pretende-se sugerir algumas condições associadas à produção de
cibernarrativas. Ainda que o estudo em questão não deseje, de forma alguma, determinar um
gênero específico a partir das condições de produção, é objetivo desta tese defender a existência
de determinadas condições para que se possa falar de cibernarrativas. A definição dessas
condições virá da análise da experiência de escrita e leitura em obras cibertextuais. Essa análise
deve permitir verificar condições similares nas obras e na forma que tomam quando produzidas.
18
2 ESCRITA E LEITURA: ENTRELAÇAMENTOS POSSÍVEIS
2.1 O ato da escrita
A escrita de uma obra
1
transforma-se em um caminho que, freqüentemente, ultrapassa o
primeiro ímpeto criativo, a primeira idéia esboçada. É como se a obra tomasse as primeiras
palavras do autor e imprimisse a elas um movimento que não é mais possível prender em
fronteiras definidas. Uma obra, assim que começa, não seria mais propriedade privada. Ainda que
essa visão se assemelhe muito a uma percepção romântica do ato de escrita, o que se deseja
enfatizar é o envolvimento entre aquele que escreve e a obra que é escrita. Ou seja, desde o início
uma obra apresenta-se como uma relação em que o autor manipula condições de produção que,
por sua vez, apresentam perspectivas com as quais ele mesmo irá trabalhar. As obras deixariam,
então, de ser posse do mundo por uma consciência instalada naquele que cria a obra, para tornar-
se criação intersubjetiva, em que diversas vozes já se manifestam e o autor experimenta a própria
escrita no papel: experiência do que foi pensado, mas presa ao corpo que esboça as letras, que
escolhe as teclas do computador e sente, em cada uma delas, a letra que surge fugaz e efêmera na
tela. Como bem diz Rancière,
“Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo
tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo
que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os
quais ele forma uma comunidade, dessa comunidade com a sua própria alma”.
(RANCIÈRE, 1995, p. 7).
O ato da escrita é o seu próprio constituinte como experiência e como possibilidade de
materialização do escrito. O espaço escrito surge sempre no instante do contato material com o
que se deseja escrever e não é, então, um espaço fixo, mas sujeito ao fluxo temporal da escrita.
1
Nessa tese, será considerada como obra a parte material, impressa ou digital, com que tem contato o leitor. Já o
texto será considerado como o resultado da ação sobre a obra. Ou seja, uma mesma obra pode dar origem a diversos
textos, de acordo com as leituras que recebe. Essa terminologia já foi utilizada por Barthes em sua teoria do texto.
Não obstante essa ressalva, quando se discutir a teoria do efeito estético a terminologia utilizada por Iser será
mantida, para melhor efeito de compreensão das idéias do autor. Nessa parte, o texto poderá ser entendido tanto
como a parte material como quanto aquilo que é derivado do ato interpretativo do leitor.
19
Barthes (2004) indica já esse duplo equilíbrio a que está sujeito todo ato de escrita. Nesse
momento é possível pensar a imersão como produzida pela própria inscrição. O conceito de
ductus parece bem apropriado para se compreender a relação entre espaço e tempo no momento
da escrita. Segundo Barthes, o ductus relacionar-se-ia ao movimento, e só poderia ser captado
quando se capturasse a escrita em vias de fazer-se. Além disso, o ductus manifestaria a natureza
manual da letra ao mesmo tempo em que indicaria a temporalidade que caracteriza a escrita como
produção. A relação estabelecida por Barthes permite verificar que o ato de escrever carrega
consigo uma forte carga de imersão numa materialidade criada pela própria ação, para pensar
numa relação inicial entre imersão e processos de escrita.
No momento da escrita, cada frase revela a procura pelo entrelaçamento mais completo de
forma incessante, numa busca do olho à volta das palavras, procurando encontrar sob elas o
fundo no qual surgem. Merleau-Ponty diz que Matisse
“Não examinou, sob o olhar do espírito, todos os gestos possíveis, nem lhe foi preciso
eliminá-los todos, exceto um, para fundamentar sua escolha. É a câmera lenta que
enumera os possíveis. Matisse, instalado num tempo e numa visão humanos, olhou o
conjunto aberto da tela iniciada e conduziu o pincel ao traçado que o chamava para que
o quadro fosse por fim o que estava em vias de se tornar”.(MERLEAU-PONTY, 1980,
p. 146).
O que o quadro se torna é também o fundo sobre o qual aparece, é o que a citação parece
dizer. A pintura seria então o encontro do pintor com um momento que ainda viria a surgir e que
desperta quando ele, pintor, cria a paisagem que irá se tornar um quadro.
No momento em que escreve, um escritor participa do jogo entre uma suposta
incompletude que é quase explícita, percebida no meio das palavras, e as significações visíveis,
implicações temporais da percepção desse autor da carne
2
na qual se encontra incrustado. O
escritor veria, de relance, então, uma plasticidade imaterial da linguagem, quase como se as
palavras permitissem serem tocadas para que aquele que as escreve sentisse o seu caráter físico.
“A intenção do autor não implica uma consciência de todos os detalhes que a escritura
realiza, nem constitui um acontecimento separado que precederia ou acompanharia a
performance, conforme a dualidade falaciosa do pensamento e da linguagem”.
(COMPAGNON, 2001, p. 91).
2
Sobre o conceito de carne, mais adiante nesse estudo tal termo será discutido, em relação aos processos de escrita e
leitura. Evita-se, nesse momento, uma explicitação maior, em prol de um desenvolvimento do texto em direção ao
próprio conceito.
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Uma vez que a intenção do autor não implica uma consciência pura sobre a obra, antes
mesmo que ela exista, é possível então dizer que a escritura permite a esse autor perceber a
porosidade do que escreve, o surgimento da obra por entre os seus dedos e as palavras que
surgem no papel, um acontecimento que acompanha a performance da própria escrita.
“O impensado diferencia internamente escrita e leitura, mantém uma obra aberta, sustenta
sua temporalidade e cria seu porvir na posteridade dos que irão retomá-la”. (CHAUÍ, 2002, p.
39,40). Aqui aparece, então, a carne, sempre de forma oblíqua, quando tanto autor quanto leitor
percebem esse processo de diferenciação que experimentam nos atos de manuseio da obra, cada
qual à sua maneira. Da diferenciação entre os dois (obra e autor ou leitor) surge o quiasma, que
tem como fundo o impensado, que não é jamais um vazio, uma incompletude, mas o que permite
que a obra apareça.
“Não é buraco. É poro. Não é lacuna que preenchemos, mas trilha que seguimos.
Ausente estando presente na trama cerrada de um discurso, sem, entretanto oferecer-se
sob a forma de teses completamente determinadas, é aquilo que sem o tecido atual desse
discurso não poderia vir a ser pensado por um outro que o lê”. (CHAUÍ, 2002, p. 40).
Mais do que a busca por uma definição do impensado, o que interessa nessa passagem é
procurar compreender como o impensado poderia constituir a experiência da escrita. Uma trilha
que se escolhe irá sempre revelar novas significações e é impossível ao autor desvelar todos os
pequenos detalhes da obra que produz. Assim, no entrelaçamento entre o escrito e aquilo que se
lê, sempre uma parte que escapa, um texto que ninguém fez, mas que se entranha no que o
autor deseja, mesmo que não consiga se fazer escritura sica no papel. É como se, a partir da
impossibilidade de encontrar o invisível, o autor conseguisse criar uma visibilidade sempre
opaca, sempre prenhe de significado. E não seria preciso esperar a presença do leitor, já que basta
olhar novamente para a obra que escreveu para reconhecer que alguma coisa falta e não significa
que precisa ser dito.
Quando Merleau-Ponty (1980) discute em “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” o
surgimento das formas gramaticais, ou melhor, o processo que as faria aparecer, pode-se perceber
aí uma relação com o ato da escrita. Escrever não seria a busca da expressão daquilo que
incomoda o escritor, daquilo que ele já sente em si e que desejaria perceber também no mundo? E
que o percebe, pois está no meio dessas mesmas inquietações? Mesmo antes das formas
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gramaticais começarem a ser sistematicamente empregadas, elas permeariam as relações de
uso da língua. De forma semelhante, aquilo que é escrito no papel não é algo já sistematicamente
utilizado. É como se a escrita permitisse chegar ao limite da experiência, um desafio que o
escritor propõe, antes de tudo, a si mesmo: experimentar a criação do ser, no momento em que
ele se faz. Encontrar o momento em que a linguagem se engravida do sentido que incomoda o
escritor, sabendo, talvez, que o incômodo poderá cessar, mas que a linguagem continuará prenhe
das novas transformações que virão (Merleau-Ponty, 1980).
Ao desenhar as palavras no papel, ou digitá-las na tela, ou ainda, ao construir paisagens
textuais, não é de um mundo fora de si ou fora das palavras de que trata o escritor. É de algo que
permeia e perpassa a linguagem e o mundo percebido. Lugar onde, de forma indireta, se encontra
a plasticidade da literatura, o ser viscoso que se entranha naquilo que ainda será escrito. Porque
as frases não resistem sozinhas depois de escritas, nem a paisagem consegue se fazer inabitada.
Não é na paisagem textual que opera o escritor o lugar onde se encontra o sentido completo. Se
“a palavra se desenrola sobre fundo de palavra, nada sendo senão uma dobra no imenso tecido da
fala” (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 143) é possível imaginar a paisagem textual como a
abertura de um caminho entre as palavras, como a experiência de se sentir na e a carne do mundo.
Tocar a si mesmo enquanto toca o que o rodeia, seria essa uma possibilidade da literatura.
O escritor que não controla os seus personagens não seria, então, aquele que perdeu o
sentido do que escreve, mas aquele que percebe que a linguagem faz sentido no excesso, além
das fronteiras que se opõem ao conjunto de relações estabelecidas pelo próprio texto. Não se
entenda aqui a oposição em relação às fronteiras como impedimento, mas como possibilidade de
diferenciação.
“O sentido é o movimento total da fala, eis porque o pensamento arrasta-se na
linguagem. Por isso, também ela o atravessa como o gesto ultrapassa seus pontos de
passagem. No instante primeiro em que sentimos o espírito repleto de linguagem,
quando todos os pensamentos são tomados por sua vibração e justamente na medida em
que nos abandonamos a ela, passa além dos signos’ para seu sentido”. (MERLEAU-
PONTY, 1980, p. 144).
O sentido ou o significado deve ser criado entre o que se escreve, no momento em que está
aparecendo. Não haveria um significado pronto nos signos. Ou melhor, não seria o encontro
desse significado um ato que permitiria a percepção da carne. Porque esta não está definida nem
dentro nem fora das palavras. Encontrar-se-ia nos traços incertos além da linha, no instante de
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silêncio em que se pode pensar que um vazio. Há, talvez, porosidade, mas as ranhuras
desses mesmos poros são o que se manifesta no ato da escrita.
“Ora, se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a linguagem
seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão completa é
um contra-senso, que toda a linguagem é indireta ou alusiva e, se quisermos, silêncio”.
(MERLEAU-PONTY, 1980, p. 144).
A linguagem permite, assim, uma ação de atravessar e ser atravessado. Não é um meio por
onde os pensamentos escoam, nem lugar vazio a ser habitado. Não é dela que se faz o que se
escreve, mas com ela, entre as palavras que são escritas. O texto é sempre originário de dentro de
si mesmo e daquilo que o faz de fora. Um texto escrito poderia até se pretender completo, mas
seria então buscar aquilo que é o não-sentido, o que ele, neste instante, não diria mais. Quando
Merleau-Ponty convida a investigar a obra que existe não como coisa, mas como o que atinge o
espectador, aqui uma forma de instigar leitor e escritor ao incômodo, ao descentramento. O
escritor não realiza este deslocamento, na produção do texto, de forma completamente
consciente. Percebe-se no caminho das palavras que põe no papel, porque opera a obra que
virá a existir.
A relação proposta por Merleau-Ponty (1980) assemelha-se ao que Wolfgang Iser (1999)
denomina caráter imagístico da representação. Segundo Iser, os atos de apreensão do ponto de
vista em movimento empregado pelo leitor dão origem a uma realidade complexa, em que
desaparece a diferença entre sujeito e objeto. Ou seja, o texto não pode ser percebido como uma
síntese objetivada e sim, como movimento entre expectativa e memória, entre diacronia e
sincronia, entre o que está por vir e o que foi, (e antecipando a discussão de Ricoeur sobre
tempo e narrativa, a ser detalhada mais adiante). As sínteses responsáveis pelo surgimento de
uma representação são denominadas de sínteses passivas, porque acontecem por baixo do limiar
da conscientização e continuam a ser produzidas durante a leitura. Elas seriam pré-predicativas e
por isso estariam ligadas à noção de imagem. Daí adviria também o seu caráter de instabilidade,
de fluxo e de movimento temporal.
“A imagem traz à luz o que o é idêntico a um objeto empírico, nem ao significado de
um objeto representado. A mera experiência do objeto é transgredida pela imagem, sem
todavia ser predicado para o que a imagem mostra.” (ISER, 1999, p. 56).
23
O ato da escrita e o seu desdobramento, que é o surgimento da palavra, são também nós da
trama entre o simultâneo e o sucessivo? Como diz ou sugere Merleau-Ponty (2003), no início do
texto sobre o entrelaçamento e o quiasma, a escrita que permite entrever a carne se faria como
recomeço incessante, a partir de um lugar onde experiências não “trabalhadas”. Entretanto, ao
escrever aparecem também “falas faladas”, retomam-se trechos e significações percorridas
anteriormente. No momento em que o escritor investe em direção às palavras ditas, para
encontrá-las, há uma possibilidade de fazer surgir uma “fala falante”. Porque para as palavras que
são escritas, ainda que não necessariamente em busca de novos significados, o escritor é
investido por elas, instigado a redescobri-las, tocado por aquilo que desvela seu próprio olhar.
Há, então, um mundo que o ato da escrita revela e do qual também faz parte?
“Uma vez que vejo, é preciso (como tão bem indica o duplo sentido da palavra) que a
visão seja redobrada por uma visão complementar ou por outra visão: eu mesmo visto
de fora, tal como se outro me visse, instalado no meio do visível, no ato de considerá-lo
de certo lugar”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 131).
É preciso investigar a relação entre o ato da visão e o ato de escrever, na forma como
Merleau-Ponty descreve acima. Ao falar da visão, ou melhor, ao utilizar nessa tese a citação
acima, não se está em busca de uma completa conjunção entre escrita e visão. Diferentemente, o
que se pretende é propor trilhas, saídas, entradas, recuos. E a proposição não se faria através de
conceitos que explicassem o como fazer as trilhas, mas, sim, através do resgate da criação,
experimentando o próprio ato que o origina.
Ao tratar do visível total, Merleau-Ponty (2003) indica que o nosso corpo domina o visível
concentrando a sua visibilidade esparsa. Parece surgir aqui uma abertura para pensar escrita e
leitura como esses momentos de concentração, de experiência de conhecimento através do
sensível, sem que seja necessário descobrir a resposta certa para a sensação, ou melhor, sem que
seja necessário criar a ilusão de que essa sensação pode ser nomeada e concretizada em um único
objeto. Através da relação com a obra, com essa visibilidade concentrada, ao descobrir o
entrelaçamento entre o escrito e o que se desejava escrever, é possível perceber um fundo de não-
dito, um espaço que preenche a figura que se forma, sem se igualar a ela. É possível sentir a carne
do mundo que habita o escritor e que também é habitada por ele. O texto fica preso às palavras
porque o seu sentido deve ser escrito ou lido para que dele se perceba, indiretamente, o que tem
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de invisível. Não parece, aqui, que Merleau-Ponty trataria da materialidade das palavras, nem de
um sentido que está além delas somente, mas justamente do contato entre essas duas percepções,
que produz instantaneamente a visibilidade de um texto e que provoca a carne. Nas relações é que
se percebe o Ser, que sempre escapa a estas mesmas relações, que não é fundado pelas palavras,
mas que se faz no meio delas, no quiasma. Não há, dessa maneira, texto que o escritor retira de si,
mas texto que o autor percebe, porque é com o mundo, porque vive em relação. O texto escrito
não seria, ao contrário, leitura de um mundo à parte, onde se encontram as coisas. No ato de uma
escrita que se indaga todo o tempo, haveria entrelaçamento, haveria a experiência indireta da
carne.
Esse entrelaçamento a que alude Merleau-Ponty parece intimamente relacionado ao
momento de imersão, ao menos na maneira como se pretende tratar dele. Tal momento pode ser
relativo àquilo que se pensou em escrever, ou às palavras que tomam corpo no papel, ou ainda ao
que despertou a percepção daquele que escreve. Essa distinção de três momentos de imersão não
aparece nitidamente no momento da escrita, assim como as diversas camadas que o leitor
encontra em uma obra não surgem separadas, embora possam ser diferentes entre si. diversos
pontos de contato entre os momentos de imersão citados e, em cada um desses pontos, manifesta-
se uma tensão que faz surgir a escrita de dentro dessa mesma rede. Aquele que escreve
experimenta a resistência material das palavras, a fluidez do pensamento e o arrebatamento da
percepção. Qualquer que seja a escolha do meio de expressão, aqui um distanciamento da
materialidade das coisas, embora elas continuem a ecoar no que está expresso, seja verbalmente,
seja em imagens, seja em pontos na tela. Para cada forma de expressão há, claro, diferenças de
materialidade do suporte. No entanto, o ato de expressão, não é um preenchimento desse suposto
“vazio” entre as palavras (quando se trata de uma escrita eminentemente verbal) e as coisas.
Trata-se de um movimento de imersão em uma rede de pontos que se agitam incessantemente,
cujos choques nem sempre produzem visibilidades. É como se o movimento do escritor tornasse
perceptível o fenômeno de uma rede, que antes parecia não existir, e que talvez não existisse
como forma atual, mas como virtualidade. Assim, a escrita exige um grau de imersão, ainda que
não se possa distinguir exatamente um “local” em que essa imersão se dá. É nesse sentido que a
imersão será discutida no quarto capítulo 4, como um conceito relacional.
“Ora, a escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia
legitimamente e o leva a destino legítimo, vem embaralhar qualquer relação ordenada
do fazer, do ver e do dizer”. (RANCIÈRE, 1995, p. 9).
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Quando a escrita separa o enunciado da voz que o enuncia, ela opera uma dupla relação, ou
melhor, uma disjunção: o escrito surge como a espacialização do que foi dito, mas garante
também sua virtualização e capacidade de re-inscrição em outros fluxos temporais que não se
ligam mais somente a uma cronologia dos enunciados. Simultaneamente, o tempo da fala pode
ser deslocado para um espaço que é instável, mas surge agora separado da exigência de um fluxo
contínuo de ação.
Luiz Costa Lima afirma que “na verdade, não apenas a obra moderna, mas a obra (no
sentido absoluto: a obra forte, marcante), não ‘preencheuma forma predeterminada, preexistente
ela a cria.” (COSTA LIMA, 2002, p. 47). Tomando a citação como base, a elaboração de uma
obra enseja o seu próprio espaço de imersão, o lugar onde ela irá mostrar as suas tensões e
vibrações, não em relação a um fator exterior, mas em relação ao seu próprio conjunto e em
relação às redes das quais pode participar. No caso de uma obra em meio digital, como todos os
espaços narrativos parecem demandar a mesma importância na construção da obra, a tensão
parece originar-se justamente de uma não-necessidade de escolha da estrutura. Ainda assim, é
possível observar que nem todas as obras existentes em meio digital apresentam estruturas
narrativas ainda não construídas. Tais obras não utilizariam todo o potencial do código digital do
qual se apropriam e poderiam ser vistos como obras disponibilizadas em meio digital, mas não
necessariamente cibernarrativas.
No caso dos cibertextos, pode-se perceber uma materialidade mais fluida da obra que se
constrói e da obra que se lê. O autor se envolvido, em vários momentos, com caminhos que
não irealizar, mas que suscitam uma abertura, através de um link explicativo, uma nota, uma
imagem. Se a função “autor”, como a define Foucault (1969), citado por Barros da Costa (2001)
pode ser caracterizada a partir de traços comuns, de marcas similares encontradas em diferentes
obras, de continuidades entre as obras, fica a pergunta sobre como essas características surgem
em obras cibertextuais. Porque se a imersão for considerada como uma manifestação da obra, de
que maneira garantir que ela acontecerá sempre no mesmo local e da mesma forma? E, assim,
como perceber as marcas comuns a obras diferentes, de modo a distinguir a função “autor”?
Talvez o que Foucault não possa dizer é que essa função, em suportes mais fluidos, se desloca
muito rapidamente. É a possibilidade de criação de novos caminhos, aparentemente infinita, que
permite falar de uma obra materialmente em fluxo, de maneira mais intensa, considerando o
aspecto material, que uma obra impressa. A imersão, nesse caso, assemelha-se mais a uma
26
entrada em um fluxo do que a uma interpretação que crie uma espacialização momentânea da
obra.
Jacques Rancière (1995) permite uma reflexão importante sobre a inversão entre tempo e
espaço permitida pela escrita. Ao afirmar que a escrita é o regime errante da letra órfã e também a
garantia de uma inscrição imutável, permite dizer que a escrita tenta espacializar o tempo, mas,
paradoxalmente, se aproxima muito mais de uma apresentação de um tempo liberto de qualquer
fluxo determinante externo ao seu próprio funcionamento.
O caráter processual do ato da escrita como fenômeno pode ser explorado mais
intensamente quando se pensa em suportes mais fluidos, mais instáveis e quase que criados para
serem indeterminados. Em suportes digitais não se pratica outro tipo de literatura, ou talvez não
se deva pensar em outro tipo de literatura. Pode-se dizer que acontece um aumento da intensidade
experimentada na ação da escrita sobre suportes mais instáveis e uma percepção mais acurada do
caráter temporal de toda e qualquer forma de expressão. A imersão experimentada em suportes
digitais pode aproximar-se mais de uma instabilidade que se encontra em outros suportes, mas
que nas cibernarrativas deveria ser pensada como condição primordial para a criação da obra.
“Aquilo que virá a ser recoberto pelo nome ‘indeterminado’ de literatura poderia então
ser o redesdobramento daquilo que aqui está fechado, o conjunto aberto e sem lei das
aventuras da letra com falta de um corpo, onde a delimitação dos discursos não pára de
se apagar, voltando a tomar figura sem cessar, onde qualquer distribuição legítima das
posições de enunciação desaparece na comunidade sem contornos dos seres falantes”.
(RANCIÈRE, 1995, p. 28).
Rancière parece falar ou tratar das posições paradoxais que ocupam a “fala falada” e a “fala
falante”. A distribuição legítima das posições de enunciação desaparece na comunidade dos seres
falantes, porque esse é um movimento normal de reapropriação do discurso em um fluxo
temporal novo. Ainda que exista uma resistência, que aparece sob forma espacializada com a
escrita em um determinado suporte, é essa mesma resistência que engendra a sua supressão pela
sua ultrapassagem. E no caso de suportes mais fluidos, como a escrita em meio digital, um
aumento da intensidade desse fluxo.
27
2.2 O ato da leitura
“O que interpretamos quando lemos um texto é, indiferentemente, tanto o sentido das
palavras quanto a intenção do autor.” (COMPAGNON, 2001, p. 92). De certa maneira, o ato de
leitura não deixa de ser um entrelaçamento, um encontro entre invisíveis, um momento que faz
surgirem figuras e que deriva do quiasma. Há algo que fica sempre além do percebido, que se
encontra nas entrelinhas, que parece ser o que dá consistência à obra que se lê. O mesmo
Compagnon irá dizer que é próprio da obra literária significar fora de seu contexto original.
Poderia ser dito que é próprio desse tipo de obra significar fora de seu contexto aparentemente
original, uma vez que uma retomada quando o autor escreve. Na leitura haveria a
experiência do encontro de diferenças, gerando novas significações.
A leitura, como sugere Chauí, “não é inspeção intelectual do pensamento de um outro, nem
coincidência com ele. É manter a distância deslizando para o interior de uma obra a fim de
aprender a pensar nela e com ela, aprendendo seu jeito de falar.” (CHAUÍ, 2002, p. 23). Ler seria,
então, um ato de descentramento, assim como a escrita o é, um ato de criação. Nesse ato, aquele
que lê percebe-se mais que o leitor considerado passivo; ele age sobre o que lê e, assim, age sobre
si mesmo, pois se percebe experimentando o que o seu olhar constrói e aquilo que constrói o seu
olhar.
“É preciso, pois reconhecer sob o nome de olhar, de mão e de corpo em geral um
sistema de sistemas voltado para a inspeção de um mundo, capaz de compassar
distâncias, germinar o futuro perceptivo, desenhar na unidimensionalidade inconcebível
do ser côncavos e relevos, distâncias e aberturas, um sentido...” (MERLEAU-PONTY,
1980, p. 162).
Embora Merleau-Ponty se refira aqui ao gesto do artista, é perfeitamente possível e até
mesmo instigante tomar a citação acima para pensar a experiência da leitura. São as aberturas e as
distâncias os locais por onde o leitor percebe a carne do mundo? Talvez não sejam exatamente
locais, mas momentos em que essa experiência do sensível acontece, em que se o
conhecimento, não havendo um local predefinido para designar tal acontecimento. Ao dizer que
os gestos humanos significam sempre para além da sua existência de fato, parece que Merleau-
Ponty também indica essa inesgotabilidade do ato da leitura em uma obra como possibilidade.
28
Haveria sempre princípio e seqüência em cada gesto, a reversibilidade entre diacronia e sincronia,
entre escrita e leitura, tornando os gestos comparáveis e também generalidades? Se assim é,
também é possível entender que todo gesto é cúmplice de outras tentativas de expressão,
permitindo à leitura se fazer como criação, como diferença, mas não igual à escrita. Seriam
visível e invisível, fundo e figura que nunca entram em síntese?
A experiência da leitura permite uma visada mais geral de uma obra, como se fosse
impossível fazer deste ato um processo contínuo. E, no entanto, é sempre em seqüência que
lemos, sempre após algo que foi lido, e que pode ou não ser retomado. Qual seria o sentido de
reorganizar as páginas já lidas, senão aquele de buscar entrelaçamentos cada vez mais complexos,
como se o todo pudesse ser composto de sobreposições finitas? Nesse ponto é possível resgatar
Merleau-Ponty quando afirma que “não é menos certo, porém, que a linguagem só poderia deixar
transparecer a coisa em si mesma deixando de estar no tempo e na situação.” (MERLEAU-
PONTY, 1980, p. 174). Mas não é isso que permite a linguagem, se for pensada como
possibilidade de resgate da experiência do sensível? A leitura pode fazer com que o leitor consiga
se sentir estranho consigo mesmo, buscando sentidos que considera incompletos, com o desejo de
continuar estes caminhos.
No início de “Se um viajante numa noite de inverno”, de Ítalo Calvino (1999), há como que
uma tentativa de enumerar e esgotar possibilidades de leitura de todo e qualquer livro. O autor
indica diversas modalidades de livros, de leituras, de entrelaçamentos, de diferenciação. Aparece,
nesse primeiro capítulo da obra de Calvino, uma sensação de que seu livro será tudo aquilo que
os outros não puderam ser. Mas, logo surge também a percepção de que o livro que se é feito,
na verdade, dos livros que se deixou para trás na livraria, das relações que serão estabelecidas
pela metade na leitura, pelo que o autor deixará para ser dito. Uma provocação ao leitor que
procura, em cada gina, o sentido da anterior e espera que o fim seja realmente capaz de
engendrar um pensamento que o livro carregaria sozinho. Cada página significa consigo mesma,
com as anteriores e com as que virão, embora o leitor não se aperceba completamente disso.
Cômodo seria, realmente, descobrir que a obra é completa, que pode ser fechada ao final, que
restará na estante como mais um dos livros lidos.
Logo na introdução do primeiro volume de sua teoria do efeito estético, Iser destaca o
caráter de acontecimento do texto literário. Ao fazê-lo, o autor demonstra a inclinação
fenomenológica de sua proposição teórica, o que permite tentar aproximá-la dos estudos de
29
Merleau-Ponty e, a partir daí, do que acontece na experiência do mundo. Como a tese presente
busca compreender as cibernarrativas e, mais especificamente, os processos de criação aí
experimentados (relacionados tanto à escrita quanto à leitura), a partir de um ponto de vista
fenomenológico, parece bastante pertinente tomar a teoria do efeito estético como uma das
visadas que movimentam as indagações aqui expostas. Maria Antonieta Jordão Borba (2003), ao
discutir a teoria do efeito estético, propõe algumas relações com perspectivas teóricas derivadas
da sociologia do conhecimento. Elas podem trazer novos elementos para o que se denomina a
experiência de deslocamento com o uso da linguagem. Uma noção fundamental na sociologia do
conhecimento é aquela relacionada à institucionalização das relações sociais, a partir do estudo
de situações cotidianas que envolvem o contato entre indivíduos. Seria a partir dessas situações
que um indivíduo produz conhecimento e, através da linguagem, institucionaliza esse
conhecimento de maneira a poder transmiti-lo para outros.
“A estabilização da experiência com a família dá-se com a linguagem, através da qual a
criança toma conhecimento não só deste fato específico, como também de um amplo
conjunto de normas: o papel desempenhado pelos membros em sociedade; seus padrões
de conduta; a estratégia para se agir em situações similares; a identificação social; a
possibilidade de um mesmo papel ser exercido por indivíduos diferentes”. (BORBA,
2003, p. 23).
Ao tratar a instituição como concebida a partir de relações biunívocas que envolvem sujeito
e sociedade, percebe-se como o indivíduo, ao fazer uso da linguagem em uma relação social, já o
faz de uma perspectiva, ao mesmo tempo, interna e externa. Ele está dentro da linguagem, mas
não completamente imerso e também é capaz de transformar a percepção externa dessa
linguagem no seu uso social. O ato de comunicação da experiência de um indivíduo sobre o
mundo pode criar novos deslocamentos no uso da linguagem. Assim, o sentido seria sempre um
processo em construção, porque no ato de sua comunicação não se trata mais puramente de
uma revelação de procedimentos institucionalizados que regem o real, mas de colocar a
linguagem em movimento. “Como a realidade da literatura manifesta-se segundo os conceitos de
repertório e estratégias, a linguagem, então, deixa de ser vista como transmissora de mensagem,
para ser compreendida como meio pelo qual se fala da realidade.” (BORBA, 2003, p. 28).
A linguagem instaura, dessa maneira, as condições para o leitor se comunicar com o texto e
construí-lo, mas é também a própria estrutura da linguagem que pode ser modificada pelo ato de
comunicação do texto literário. Ou seja, é possível pensar que o próprio meio sugere as condições
30
para a sua alteração, para o seu deslocamento. E é nesse momento, em que o sujeito percebe a
linguagem como instauradora de condições e, simultaneamente, como a sua própria possibilidade
de ser modificada, que pode acontecer uma experiência estética.
Iser se pergunta de que maneira um texto literário se deixa apreender como um
acontecimento e até que ponto as elaborações provocadas pelo texto são previamente estruturadas
por ele. Os processos que envolvem a interação entre texto e leitor recebem, nesse sentido,
especial atenção, mas é preciso também investigar de que modo o texto acontece para o autor.
Afinal, o acontecimento tem uma forte presença também nesse momento. Como o próprio Iser
afirma, “o texto literário se origina da reação de um autor ao mundo e ganha o caráter de
acontecimento à medida que traz uma perspectiva para o mundo presente que não está nele
contida.”(ISER, 1996, p. 11).
Ou seja, o surgimento do texto literário provoca um descentramento em relação ao contexto
a que se refere o texto e isso é fato tanto para o leitor quanto para o autor. O texto não diz respeito
somente ao real do qual supostamente provém e ao qual deve prestar contas, mas ele origina a sua
própria realidade nesse primeiro deslocamento. Por que é possível fazer tal afirmação? Porque no
texto literário a linguagem é posta em movimento e, nesse momento, pode ser deslocada do seu
uso consolidado, através de novas combinações propostas, em primeiro lugar, pelo autor. Ora, tal
ação não acontece somente no texto literário, mas o destaque dado se justifica em razão das
possibilidades que esse tipo de texto cria, qual seja, o de fazer tanto autor quanto leitor
experimentarem o deslocamento temporal do uso da linguagem, através de novas ordenações
espaciais de seus significantes. Autor e leitor podem perceber, no acontecimento do texto, as
perspectivas de tempo e espaço que acompanham a sua experiência.
A teoria do ato de leitura, ao encarar o texto como um acontecimento, o entende como um
processo integral e incessante, que indica as fases que atravessa, mas não pode ser capturado
totalmente em nenhuma delas. a reação do autor ao mundo, a interpretação do texto, os
processos de seleção e combinação da linguagem e vários outros momentos que, embora
somados não compreendam toda a obra, juntos podem ultrapassá-la, quando entendidos como
partes de um processo. Essa noção processual vinculada ao texto é fortemente marcada, na teoria
do efeito estético, pela percepção de que o texto literário é comunicação, porque se realiza na
interação entre o pólo do texto e o pólo do leitor.
31
Segundo Iser (1996), a interpretação universalista parte do princípio de que todo texto
possui um segredo escondido, que pode ser fixado e acessado através das ferramentas da análise
discursiva. Mas, se o texto é entendido como um processo resultante da interação entre texto e
leitor, o sentido é também algo movente, sujeito às diversas interações que o texto e o leitor
podem produzir. O sentido não poderia ser reduzido a algo fixo e imutável, que independe do
texto. Iser defende a noção de que o sentido possui um caráter imagético e o texto, antes de
possuir ou ter que revelar um significado referencial, apresenta, na verdade, indicações que
sugerem ao leitor o sentido como imagem. Dessa maneira, o sujeito não pode ser retirado da
relação através da qual o texto recebe um significado. O leitor irá relacionar o texto “a uma
situação pela atividade nele despertada; assim estabelece as condições necessárias para que o
texto seja eficaz.” (ISER, 1996, p. 33). O processo de criação, nesse caso, esteja ele relacionado à
escrita ou à leitura, aparece como um momento em que os significados imagéticos surgem
agarrados nas dobras temporais, os quais podem ser percebidos de maneira espacializada. Não
significa dizer que tais significados estão presentes, bastando ao sujeito encontrá-los e, sim,
que, de acordo com os movimentos ensejados pelo sujeito no seu contato com a obra, criam-se
combinações que existem no momento dessa relação. A obra não irá carregar sempre tais
combinações fora da relação que as criou. Ela apenas tem o efeito de ensejar a relação entre autor
ou leitor e o texto. São as relações e as condições para que ela se estabeleça que interessam como
foco de análise.
Iser, ao discutir o ato da leitura, afirma que “a obra é o ser constituído do texto na
consciência do leitor.” (ISER, 1996, p. 51). Entretanto, para chegar a essa constatação, afirma
também que a obra literária não pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem somente à
forma como o leitor a percebe. A obra é a constituição, através da leitura, de um caráter próprio
do texto. Por isso, o texto para Iser é denominado, nesse estudo, de obra: ou seja, a estrutura
criada pelo autor. E texto, nesse estudo, é a concretização produzida pelo leitor. Nesse ponto
encontra-se um paralelo com o entrelaçamento, pois a obra poderia ser a relação entre o texto
escrito e a percepção do leitor, sem ser síntese realizada em qualquer um dos pólos. A obra seria,
então, o entrelaçamento desses dois invisíveis, a diferenciação entre texto e leitor, que permitiria
a percepção da carne do mundo.
“Com a primeira visão, o primeiro contato, o primeiro prazer, iniciação, isto é, não
posição de um conteúdo, mas abertura de uma dimensão que o poderá mais vir a ser
32
fechada, estabelecimento de um nível que será ponto de referência para todas as
experiências daqui em diante.” (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 146).
O contato com o texto compreendido como abertura faria o leitor sentir a vibração temporal
daquilo que lê. Seria a possibilidade de ver que a leitura não deve buscar o sentido final do texto,
mas sim, ser conduzida pelas significações que encontra. Aqui aparece uma pergunta: a condução
da leitura indica que o leitor deve ser passivo? Novamente Iser sugere uma abertura para se
investigar a pergunta, ao afirmar que “o sentido não é mais algo a ser explicado, mas sim um
efeito a ser experimentado.”(ISER, 1996, p. 34). A idéia de efeito a ser experimentado remete a
uma relação que necessita do reconhecimento da indissociabilidade entre sujeito e objeto, do
reconhecimento de uma intersubjetividade, que é responsável pela percepção do texto tal qual ele
aparece no ato da leitura. O texto não está pronto à espera do seu leitor ideal, nem é mera cesta
onde o leitor despeja suas idéias. Se o texto pode levar à percepção oblíqua da carne, melhor para
o leitor é entendê-lo como revestimento, como pele que não pode ser separada nem das palavras,
nem de si mesmo. Não significa demonstrar passividade diante da leitura que se apresenta, mas
talvez querer a experiência. Agir em direção à obra, para ser também investido por ela.
Iser critica a noção de interpretação de uma obra no sentido conferido a esta pela crítica
tradicional. Enquanto interessada em fazer a obra de arte representar testemunhos fiéis de uma
época ou revelar significados ocultos em si mesma, a interpretação esvaziaria a noção de
experimentar a obra naquilo que ela pode dizer.
“Pois é característico dos textos literários que não percam sua capacidade de
comunicação depois que seu tempo passou; muitos deles ainda conseguem ‘falar’
mesmo depois que sua mensagem’ se tornou histórica e sua ‘significação’ se
trivializou”. (ISER, 1996, p. 40).
Encontra-se nessa passagem uma relação com a noção de reversibilidade entre diacronia e
sincronia. Se o texto pode falar mais do que a interpretação clássica mostra, cabe também ao
leitor ser parte ativa nesse processo. Merleau-Ponty (2003) sugere cuidado nesse movimento,
que haveria a tentação de construir a percepção como o que já se conhece do mundo. É como se o
contato com a obra enviasse ao leitor o que ele conhece, com a ilusão de que ali está a
experiência. A proposta é justamente se deixar interrogar, no ato da leitura, não pelo texto,
mas pela própria experiência. Para permitir o entrelaçamento de invisíveis, cabe ao leitor
perceber o que o modifica e, ao mesmo tempo, o constitui.
33
Merleau-Ponty diz que a carne é
“... no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espácio-temporal e a
idéia, espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares
onde se encontra uma parcela sua. (...) Não fato ou soma de fatos e, no entanto,
aderência ao lugar e ao agora. Ainda mais: inauguração do onde e do quando,
possibilidade e exigência do fato, numa palavra, facticidade, o que faz com que o fato
seja fato”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 136).
Ao se interrogar sobre o momento da leitura e a experiência do texto, o leitor poderia
perceber a ‘carne’ de que fala Merleau-Ponty. O leitor perceberia, então, que faz parte daquilo
que lê? Que o texto não é um objeto que ele manipula, nem que ele, leitor, é manipulado pelo
texto?
A carne apareceria na intercorporeidade, não como visível, mas estando constituída. O
leitor perceberia a reversibilidade entre visível e vidente ao realizar a experiência da leitura sem
buscar a si mesmo ou ao texto, mas se deixando tomar pelo corpo em geral, por aquilo que torna
o texto generalidade, reconhecível como experiência de conhecimento através do sensível. Coisa
entre coisas, vidente e visível, tangente e tangível, o leitor poderia então abandonar a noção de
uma interpretação última, o encontro com o ‘texto’, nele ou em si mesmo? O que aparece
novamente é a dificuldade em não se deixar levar pela definição do processo correto de leitura,
pois seria contradizer a própria sugestão de Merleau-Ponty, quando afirma que
“Este hiato entre minha mão direita apalpada e a mão esquerda palpante, entre minha
voz ouvida e minha voz articulada, entre um momento de minha vida táctil e o seguinte,
não é, porém, um vazio ontológico, um não-ser: está dominado pelo ser total de meu
corpo e do mundo, e é o zero de pressão entre dois sólidos que faz com que ambos
adiram um ao outro”. (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 143).
A forma correta de leitura permitiria ao leitor livrar-se do texto que o instiga e encontrar o
texto ideal, harmônico, completamente equilibrado consigo mesmo. Só que, nesse ponto, tal leitor
encontraria somente o não-sentido e deixaria de aceder à experiência do sensível que percorre o
texto incrustado nas palavras.
A leitura de uma obra poderia ser pensada como se vermelho e amarelo pudessem ser
jogados um contra o outro e as duas cores sentissem essa mistura. Como se elas sentissem a
impossibilidade de saírem dessa experiência como simples vermelhos e amarelos e soubessem
ainda que a mistura total é impossível. É a experiência do leitor quando se depara com a obra
34
literária, que não deixa marcas aparentes, mas que irá constituir toda a sua experiência posterior.
Seria como encontrar as palavras em estado de pré-dicionário: prontas, porém sempre
incompletas, vivas, saltando aos olhos, entrando pelos poros, tomando o leitor de assalto, ou de
sobressalto. Quando se mistura à sua leitura, o leitor encontra o texto que procurou sempre ler.
Talvez a leitura em voz alta faça ou permita uma aproximação desse gesto. O leitor não deveria
esquecer que, ainda que se misture ao texto, não chegará à sobreposição total através da leitura.
Se assim fosse, o texto não diria mais nada depois que fosse lido. Ou a leitura não seria, nesse
sentido, intencionalidade operante, facticidade. Quando o leitor se mistura ao que o texto “fala”,
encontra o texto que realmente lê, no qual está imerso e do qual não poderá ser tudo que é o
texto. A ‘fala’ que preenche não completa, tem um quê de inesgotabilidade. “A obra literária se
realiza então na convergência do texto com o leitor; a obra tem forçosamente um caráter virtual,
pois não pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do
leitor.”(ISER, 1996, p. 50).
Com a ressalva sobre o termo convergência, que indica uma possível síntese, Iser posiciona
a obra no “entre” da leitura e da escrita. Parece haver aproximação ainda maior com o
pensamento de Merleau-Ponty quando o autor alemão diz que as estruturas do texto fundam a
obra literária, mas que a função das estruturas deve ser preenchida pelo leitor. É no encontro dos
dois pólos que acontece a percepção de que algo se deu a conhecer. E o fenômeno não pode ser
separado dessas duas subjetividades. Nesse sentido, a leitura e a escrita vivem a reversibilidade e
permitem a diferenciação. Assim, trata-se não de discutir como se deve ler ou escrever, mas do
que acontece quando formas de escrita se encontram com tipos de leitura. É ainda Iser que
reforça a significação com caráter de evento ao tratar do efeito estético, que é caracterizado pelo
autor como “o não-idêntico ao de antemão existente no mundo.” (ISER, 1996, p. 53). Aqui
aparece a noção de diferenciação como possibilidade da experiência de uma obra literária, tal
como discute Merleau-Ponty.
“... as idéias são este afastamento, esta diferenciação nunca acabada, abertura sempre
a refazer entre signo e signo, como a carne, dizíamos nós, é a deiscência do vidente em
visível e do visível em vidente. E tal como meu corpo porque faz parte do visível
onde eclode, o sentido tomado pelo arranjo dos sons nele repercute.” (MERLEAU-
PONTY, 2003, p. 148).
35
A leitura deveria ser sentida, como os sons são também sentidos quando repercutem? O
olhar se faz, então, possuidor do sensível e não só veículo de representações que estariam fora do
texto? O encontro do sentido estaria na relação que existe entre texto e leitor, na deiscência entre
visível e vidente, entre vidente e visível. A linguagem permitiria esse encontro quando se
apresenta em sua forma criadora. Ao leitor caberia não reduzi-la à fala falada, ao que foi dado
e, sim, permitir-se viver o sentido no momento em que ele surge.
Iser descreve essa interação a partir das noções de pólo artístico (as estruturas criadas pelo
autor) e pólo estético (a concretização produzida pelo leitor). Segundo o autor, uma interação
entre os dois los que é responsável pela constituição de um sentido. Seria com a participação
do leitor que o texto poderia se constituir. Entretanto, as condições para o surgimento dessa
interação estão presentes na estrutura do texto criado pelo autor. Assim, Iser afirma que os textos
literários são, ao mesmo tempo, constituídos por uma estrutura verbal e uma estrutura afetiva.
Pode-se perceber o caráter de reversibilidade que acompanha, então, uma obra literária, ou
melhor, que caracteriza a experiência de e com uma obra literária. A primeira característica
relaciona-se ao fato de que essa experiência não se cristaliza em algo existente. Ela tem a forma
de um evento, que é também a maneira pela qual Iser descreve a significação. Entretanto, se a
experiência com a obra reduzir-se somente ao seu caráter de evento, a própria noção de que as
estruturas criadas pelo autor são condições elementares para a interação entre obra e leitor
termina por se esvaziar. Isso porque se a obra está em condições de receber qualquer significação,
não importando mais o que ela apresenta como estrutura, é essa estrutura que não tem razão de
existir. Ela apareceria apenas como um sustentáculo vazio onde o leitor deposita a sua
consciência. Entretanto, ao experimentar esse “evento”, o leitor não completa necessariamente o
texto, mas antes percebe novas possibilidades em função do seu próprio movimento em relação à
estrutura da obra. Barthes (2004) enxerga nessa desvinculação uma potencialidade para libertar a
obra do suporte verbal, conferindo a outras linguagens a capacidade de gerarem textos.
Em suma, quando o leitor percebe o efeito estético do texto, parece que ele se diante de
uma experiência contínua, sujeita a constantes desdobramentos, reorganizações de significados,
interpretações renovadas. Assim, a experiência estética engendra a sua própria continuidade, uma
vez que é constituída e constitui o próprio processo de sua comunicação, os seus próprios atos
intersubjetivos. Esse equilíbrio dinâmico entre estrutura verbal e estrutura afetiva, na forma de
36
um evento, pode ser percebido quase que como condição estrutural para a criação de um
cibertexto, como será discutido posteriormente nesse estudo.
Uma segunda característica da experiência com uma obra literária é que ela é altamente
instável, no que diz respeito aos efeitos da experiência. Estes não são realizados somente pelo
leitor e tendem a converter-se em referências de significação que poderão ser utilizadas em novas
estruturas criadas por outros autores. Afinal, na experiência com a linguagem, o homem pode
experimentar deslocamentos através de processos de seleção que reposicionam significados
referenciais. Entretanto, após o deslocamento, aquilo que foi experimentado como efeito tende a
assumir o lugar de referência, se for aceito por quem experimentou o deslocamento. Ou tende, ao
menos, a se tornar mais um significado referencial. Na criação de uma obra, o autor produz
estruturas textuais que sugerem novos deslocamentos, estruturas que contêm elementos de
indefinição. No momento em que o leitor se depara com tais proposições, pode operar a
experiência estética provocada pela obra e pela maneira como, ali, os significados referenciais
propõem a sua própria atualização pelo pólo estético. Aqui se verifica a reversibilidade entre
espaço e tempo que acompanha a relação com uma obra. A linguagem, em sua forma
espacializada, aponta para o seu fundo temporal.
A atualização provocada pelo leitor, e na qual se pode perceber o efeito estético, tenderia a
tornar-se um produto o-estético, ou uma nova obra, ainda que a interpretação em si não gere
uma nova estrutura física. O deslocamento inicial operado pela leitura ou pela escrita tende a
estabilizar-se no seio dos significantes escolhidos e mesmo a incorporar-se a um conjunto de
significados referenciais. Entretanto, não reside o ponto final do processo de constituição de
sentido de um texto. Pelo contrário, cada uma das fixações que uma obra recebe e carrega são
como instantâneos que buscam neutralizar a força do movimento temporal que sustenta a
constituição incessante de sentidos que uma obra pode gerar.
No momento da leitura, o leitor se depara com uma determinada estrutura, um dos muitos
instantâneos que uma obra carrega no seu interior. Como esse instantâneo não comporta todas as
possíveis significações da obra, ela comporta indeterminações, que podem ser percebidas na
leitura e funcionarem como o momento em que o leitor experimenta o efeito estético. Nesse
momento, o leitor experimenta a intersubjetividade, porque sente o confronto entre as diversas
significações que a obra parece carregar, construídas a partir de sentidos vivenciados por
leitores diversos e que aparecem fixados na escolha do autor, e a sua própria subjetividade, que
37
sofre um deslocamento em função da experiência da leitura. Assim, o papel do leitor se define
como estrutura do texto
3
e estrutura do ato de leitura.
Em relação à estrutura da obra, Iser afirma que esta constrói um mundo a partir do material
que lhe é dado e nesse modo de constituição se manifesta a perspectiva do autor. A experiência
da leitura manifesta-se como uma experiência dinâmica e de criação porque ao leitor não cabe
reconstituir o mundo imaginado pelo autor. Iser afirma que
“... o texto literário não apresenta apenas uma perspectiva do mundo de seu autor,ele
próprio é uma figura de perspectiva que origina tanto a determinação dessa visão,
quanto a possibilidade de compreendê-la”. (ISER, 1996, p. 74).
Compreendida dessa forma, a obra literária é composta de várias camadas temporais que
surgem numa determinada configuração espacial aos olhos do leitor. Tal configuração não
impede que o leitor perceba outros possíveis movimentos ou perspectivas que a obra poderia
mostrar, ou seja, que também a compõem. E qualquer que seja a configuração escolhida pelo
leitor, nenhuma delas terá completa identificação com o sentido do texto. Por isso é possível dizer
que a estrutura verbal do texto é condicionante do seu caráter perpétuo de não acabamento, de
instabilidade. O sentido do texto poderá ser atualizado no ato de leitura e, nesse instante, o leitor
experimentará a reversibilidade entre espaço e tempo, mas não poderá realizar todo o sentido
porque o caráter de reversibilidade se esgotaria e um dos elementos que compõem a experiência
não precisaria, então, existir. Um sentido que pode ser atualizado é apenas imaginável, pois
aparece sempre preso nas dobras do texto e não pede jamais para ser decifrado por completo.
Quando um conjunto de frases se torna uma enunciação verbal, tais frases são ou estão sempre
relacionadas a contextos determinados. Porém, tais enunciações só adquirem sentido quando são
comunicadas e, por isso, dependem do contexto ao qual se relacionam. Nesse sentido, o texto
literário, enquanto um dos muitos exemplos de criação artística, ultrapassaria o mero conjunto
das frases dispostas porque comunicaria sempre algo a mais do que a disposição física dos seus
significantes. Talvez se possa dizer que, ao tomar o conjunto das enunciações verbais de um texto
como uma significação estanque, espacializada, o texto perde a sua força dinâmica, sua
capacidade de comunicar algo, que remete sempre à sua própria instabilidade. Entender as
3
Apenas para lembrar que o que Iser denomina texto é a estrutura criada pelo autor. Em função disso, no início do
próximo parágrafo, o que se lê é a estrutura da obra, em função da compreensão de obra presente nesse estudo,
diretamente associada à estrutura criada pelo autor.
38
estratégias textuais como capazes de realizar a mediação entre o leitor e um determinado contexto
significa compreender que qualquer sentido do texto não só é transitório, mas que também escapa
ao próprio conjunto ou seleção de significantes feita pelo autor ou pelo leitor. Experimenta-se,
dessa maneira, a percepção de que toda obra é um momento do tempo capturado precariamente
numa estrutura frágil, que cede ao menor olhar desviante que o leitor ou o autor lhe dirigem.
No caso dos cibertextos, a transitoriedade aparece como condição para sua própria
produção e não somente como uma percepção pós-leitura. como que um aumento da
intensidade ou da importância da instabilidade para a existência do cibertexto. Essa hipótese
orienta a discussão que se fará sobre a escrita e a leitura nos cibertextos. É em função da
exigência de uma instabilidade que talvez se possa dizer que o cibertexto cria o seu próprio
ambiente de imersão, que é também temporário e se modifica junto com os deslocamentos
provocados por aqueles que experimentam a obra.
As idéias de imersão e de instabilidade como condições para a produção de um cibertexto
podem ser associadas à construção de situações nos textos literários, conforme a visão de Iser. O
texto literário engendraria as suas próprias condições de existência, uma vez que ele mostra,
através de sua constituição, os limites da estrutura da qual deriva. Segundo Iser, os símbolos
utilizados no texto literário não fazem referência a um contexto real, mas ainda assim conseguem
constituir um mundo perceptível. Essa seria a característica do texto literário: construir a sua
própria possibilidade de existência. E não significa dizer que o texto literário determina o mundo
que virá a existir em função da organização de seus significantes, mas sim que servirá “para
apresentar as instruções para a produção de significados.” (ISER, 1996, p. 122).
Na relação entre texto e leitor não haveria uma situação anterior à “entrada” do leitor no
texto. Iser sugere haver, nesse sentido, um vazio provocador das condições de comunicação do
texto.
“O que é dado ao uso cotidiano da fala aqui deve ser primeiro produzido; isso pode ter
a desvantagem de que a comunicação não chega a se realizar, e pode ter a vantagem de
que o leitor se comunica com o texto por meio de ações verbais que não são apenas
pragmáticas.” (ISER, 1996, p. 124).
Cabe ao leitor produzir as significações relativas a uma situação em que há o encontro entre
ele próprio e o texto. A produção é uma constante no ato de leitura e é esse acontecimento o
responsável pelo grau de abertura de um texto, pelo seu grau de realização de uma situação.
Entretanto, como alerta Iser, a convergência entre texto e leitor não é uma realização exclusiva no
39
ou do ato de leitura. O texto deve apresentar também elementos suficientes para permitir o
desenrolar da situação. Iser define três elementos centrais em um texto literário que seriam
responsáveis por esse processo: o repertório, relativo às convenções necessárias para a produção
de uma situação; as estratégias textuais, como os procedimentos que estruturam o repertório; e a
realização, relativa ao momento de participação do leitor.
De que maneira o repertório se apresenta no texto? Através da recorrência a normas e
padrões sociais relativos ao qual o texto emergiu, mas dos quais também consegue se destacar.
Tal recorrência não significa que os textos copiam e reproduzem simplesmente as convenções
institucionalizadas às quais se referem. Iser afirma que as convenções, ao serem separadas do seu
contexto original e entrarem num texto literário, podem assumir outras relações sem deixar de
fazer referência ao seu contexto inicial. Em função desse duplo movimento, o repertório pode
constituir-se num pólo de mediação da experiência de leitura de um texto literário. É justamente
nesse momento que o texto revela seu caráter individual, ao provocar no leitor uma
desfamiliarização em relação às normas e convenções às quais faz referência. Para melhor
compreender tal modo de funcionamento, parece conveniente retomar alguns conceitos derivados
da sociologia do conhecimento, relativos à maneira como se criam convenções sociais
institucionalizadas a partir de interações sociais ainda não padronizadas.
Berger e Luckmann (1985) afirmam, em “A construção social da realidade”, que a
realidade é construída socialmente e o objetivo da sociologia do conhecimento é justamente
explicitar os mecanismos que levam a essa afirmação. Interessam para os propósitos desse estudo
a maneira como os dois autores articulam a relação entre a complexidade da vida cotidiana, o uso
da linguagem e a institucionalização de normas em uma determinada sociedade. A relação com a
realidade se dá, segundo os autores, preferencialmente, através do contato com a realidade da
vida cotidiana. Essa, por sua vez, é duplamente marcada: por um lado, aparece ordenada,
constituída por objetivações que fornecem sentido e ordem ao mundo; por outro, pela relação
com outros homens, através das quais o homem percebe os seus próprios atos, porque entra em
contato com os atos de outros homens. A realidade da vida cotidiana é marcada pelos
conhecimentos que os homens compartilham entre si, mas também pelas situações de
excepcionalidade, pelo não familiar, pelo não institucionalizado em normas ou padrões. Como
surgem as institucionalizações que objetivam o mundo e o fazem aparecer ordenado e dotado de
sentido? Segundo Berger e Luckmann (1985), através das interações face a face, o homem
40
apreende que a realidade da vida cotidiana é construída intersubjetivamente, através do confronto
entre a sua percepção e a percepção dos outros. Tais percepções são, progressivamente,
institucionalizadas através do uso de sistemas de expressão, dos quais a linguagem seria aquele
capaz de expressar as situações mais complexas. A criação de tais sistemas permite ao homem
reduzir a complexidade da vida cotidiana e estabilizar certas relações sociais, tipificando-as.
Assim, o homem consegue criar certa estabilidade diante da complexidade do real, o que
permitirá a esse mesmo homem ampliar o seu grau de conhecimento, através de uma atenção
especial ao que não é familiar ao sistema de convenções que utiliza para mapear a vida social. Ou
seja, é a estabilização do sistema, através das convenções, que permite ao homem perceber o que
está fora das convenções, no limite do sistema e o que pode provocar uma atualização das
próprias convenções. Assim, o uso de estruturas de criação de sentido na institucionalização das
relações sociais aponta para o próprio limite do sentido criado.
Esse é o mesmo movimento que Iser utiliza para descrever o modo de seleção do repertório
de um texto ficcional, bem como o seu funcionamento.
“A realidade como pura contingência não pode servir como campo de referências para
o texto ficcional. Ao contrário, esses textos se referem a sistemas em que a
contingência e a complexidade do mundo são reduzidas e é produzida em cada caso
específico uma construção de sentido do mundo. (ISER, 1996, p. 132,133).
Ou seja, o repertório não se refere à totalidade do mundo, nem mesmo aos desvios em
relação a normas conhecidas, mas sim aos sistemas de sentido dominantes à época da sua
produção. E se assim o faz, é justamente para engendrar o próprio movimento de superação das
convenções sociais em que surge, pois se refere ao que os sistemas de sentido dominante
excluem, ao mostrar a forma de funcionamento dessa estruturação de maneira organizada e ao
explicitar, assim, as possibilidades negadas pelas convenções usuais. O texto literário apresenta a
realidade de uma maneira não usual ao leitor, embora não faça isso explicitamente. Ele se refere
ao que não está dentro do sistema dominante, mas que se atualiza como seu limite. Em função
desse modo de funcionamento é que se pode afirmar que os textos literários criam a sua própria
existência, que se referem, concomitantemente, ao sistema de sentido dominante do qual são
parte e também ao limite desse sistema de sentido.
O repertório é, então, selecionado entre o sistema de valores dominantes em uma
determinada época, e é também o que indica, no texto literário, os limites desse sistema.
41
Entretanto, essa indicação não é feita de forma explícita. Cabe ao leitor verificar, no texto
literário, os valores que conhece e transcodificar de que maneira o repertório selecionado se
diferencia dos valores institucionalizados. Nesse ato se realiza a comunicação desse tipo de texto.
Iser trata ainda de outro elemento presente no repertório dos textos literários: além de
normas extra textuais, os textos literários também incorporam, segundo o autor, elementos
literários do passado. A função do resgate de referências literárias passadas seria tornar mais
evidente a maneira como o texto sugere respostas para os limites dos sistemas de sentido do qual
faz parte. As alusões literárias não funcionam como meras reproduções de esquemas
consolidados, uma vez o contexto em que tais normas possuíam valor é de antemão negado.
Ao retirar as referências literárias do seu contexto, o texto literário propõe também um novo
sentido para elas, à luz do repertorio que as estrutura. O sentido anterior não desaparece, pois é
sobre ele que o texto literário sugere ao leitor o deslocamento das normas consolidadas em
direção aos seus limites.
Ao conjugar alusões literárias consolidadas com normas selecionadas de realidades extra
textuais, o texto literário cria o seu próprio sistema de equivalências, derivado de uma mútua não
familiaridade entre elementos de sistemas diferentes. Há, no dizer de Iser, uma deformação
coerente dos dois sistemas. Basta pensar na estrutura de um romance do séc. XIX para narrar a
realidade fragmentada do presente século. Do encontro de dois sistemas que podem ser
reconhecidos como familiares em si mesmos, há uma não familiaridade derivada da não-
equivalência dos próprios sistemas. Dessa deformação resultaria o valor estético do texto,
constituído pela própria seleção do repertório do texto.
“1. É através da desvalorização do familiar que o leitor se torna consciente da situação
familiar que orientava a aplicação da norma agora desvalorizada. 2. A desvalorização
do familiar marca um ponto culminante, que introduz o familiar na memória, que
orienta a busca pelo sistema de equivalência do texto à medida que esse sistema deve
ser constituído em oposição à memória, ou diante dela.” (ISER, 1996, p. 152).
O processo de comunicação de um texto literário se baseia, assim, na relação entre os
elementos do repertório textual e os elementos do leitor. Essa seria a perspectiva externa à qual o
texto permite o acesso. Quando o texto reproduz, em seu repertório, elementos já bastante
familiares ao leitor, a demanda pela sua participação no processo de construção de sentido é
pequena; ao contrário, quanto mais o texto apresenta um repertório não familiar ao leitor, maior
42
deve ser a sua participação na construção do sentido. O movimento descrito aqui é denominado
por Iser como uma relação entre o primeiro e o segundo plano do texto. O segundo elemento
responsável pelo processo de comunicação em um texto literário, segundo Iser, seriam as
estratégias textuais. As estratégias têm duas tarefas primordiais, segundo o autor: criar relações
entre o contexto de referência do repertório por elas organizado e o leitor do texto; e esboçar as
relações internas entre os elementos do repertório. Interessa agora compreender de que maneira
as estratégias organizam as relações entre os elementos do repertório, pois tais elementos serão
trabalhados posteriormente quando da discussão sobre tempo, narrativa e imersão.
As relações internas entre os elementos do repertório devem ser combinadas de tal maneira
que permitam ao leitor a compreensão do texto. Antes da compreensão, entretanto, o leitor deve
ter acesso ao mundo do texto, tarefa que é cumprida, segundo Iser, pela seleção dos elementos do
repertório, discutida aqui anteriormente. A combinação dos elementos selecionados entre si é
que fornecerá ao leitor pistas para compreender o objeto estético do texto. Em função disso, Iser
afirma que a organização interna do texto é baseada em um sistema de perspectivas. Somente
assim seria possível, segundo o autor, “combinar as visões perspectivísticas de um objeto
intencionado de tal modo que esse objeto, que não é dado enquanto tal, é representável.” (ISER,
1996, p. 179). O texto é composto pela conjugação de várias perspectivas e Iser designa quatro
delas como as principais na combinação dos elementos do repertório: a perspectiva do narrador, a
perspectiva dos personagens, a perspectiva da ação ou enredo e a perspectiva da ficção marcada
do leitor. Cada uma permite um acesso distinto ao repertório do texto, permite uma visão
específica sobre a intenção comunicativa esboçada no texto. A intenção total do texto aparece
apenas nas relações entre as quatro perspectivas. Não uma sobreposição dessas camadas e sim
uma co-ocorrência dentro do texto. A forma como se relacionam as perspectivas permite discuti-
las como estruturas dinâmicas que, ao mesmo tempo que oferecem acesso ao objeto estético
esboçado pelo texto, não podem ser reduzidas a esse objeto, nem ele a elas separadamente,
porque há sempre uma ultrapassagem mútua nesse movimento relacional das perspectivas.
No fluxo de leitura, o leitor se em um movimento constante entre as várias perspectivas
internas ao texto. A cada tomada de posição, correspondente à adoção de uma determinada
perspectiva, o lugar ocupado pelo leitor revela o limite da sua posição em função daquelas
perspectivas não assumidas naquele momento. Ou seja, ao assumir, por exemplo, o ponto de vista
do narrador, o leitor transforma a visão que tem das outras perspectivas e o texto a partir desse
43
ponto de vista. Entretanto, como a esse tema faltam os outros pontos de vista, o leitor não
descortina nunca o objeto total do texto ao assumir somente uma perspectiva. Antes, o que lhe é
dado a perceber é também o limite do ponto de vista no qual está situado. Ou seja, o tema em que
o leitor se situa mostra a ele: o horizonte, definido pelas demais perspectivas não adotadas, e a
necessidade de reavaliar o ponto de vista adotado temporariamente. O duplo movimento entre
tema e horizonte indica que o objeto estético do texto transcende o próprio texto, uma vez que
aparece na relação entre todos os elementos, mas não é jamais a soma de todos eles. Há aqui
vários pontos de contato com a maneira como Merleau-Ponty discute a percepção de um
fenômeno.
O equilíbrio entre as perspectivas explica porque o texto não pode ser reduzido às
combinações que o estruturam, porque o objeto estético transcende o texto. “(...) cada segmento
ganha sua significação apenas por meio das relações recíprocas que consegue desenvolver no
texto, através da estrutura de tema e horizonte. O objeto estético se constrói através da rede
dessas relações.” (ISER, 1996, p. 183).
Propõe-se considerar as perspectivas como camadas temporais que estruturam o texto. A
correlação baseia-se no fato de que as perspectivas são linhas de visão de um determinado objeto,
que sofrem alterações constantes no processo de leitura, ainda que não sejam alterações físicas. A
posição do narrador não é fixa, por exemplo, uma vez que a percepção sobre o que essa posição
significa é constantemente alterada em função da perspectiva da qual é observada ou que permite
observar. Novamente, há o retorno à estrutura de tema e horizonte em Iser. Quando uma posição
é adotada como tema, ela muda o horizonte do texto. A mudança do horizonte modifica a própria
perspectiva utilizada como tema, porque permite percebê-la como tal, não como valor fixo e
imutável. Assim, se o valor de cada perspectiva é modificado pela relação com as demais, essas
estruturas funcionam como fluxos temporais que percorrem o texto.
A forma como Iser enxerga a construção de sentido no mundo ficcional permitirá a ele
afirmar o caráter de comunicação, principalmente, do texto literário, e a leitura como uma relação
dialógica. Para o âmbito desse estudo, essa conceituação do texto literário ecoa, hoje, no modo de
produção das cibernarrativas.
O caráter dinâmico das cibernarrativas intensifica o que o texto literário exige no momento
da leitura e transfere essa exigência também para o momento da primeira escrita do texto
eletrônico. Assim, é a existência física da cibernarrativa que deve ser criada de maneira a
44
estimular não somente as condições de produção de significação, mas também as próprias
mudanças estruturais que a obra deverá sofrer para ser percebida como cibernarrativa. O leitor
deve poder atravessá-la fisicamente, intensificando a experiência de comunicação texto-leitor
através de uma experiência de reconstituição física da obra. As mudanças podem ser diretamente
no código de programação, na criação de novos caminhos de leitura com abertura de novos
hipertextos e em recombinações variadas. Para cada possibilidade de mudança é possível pensar
em um nível de imersão específico. Por exemplo, no caso da obra “Cinco cidades”
4
, um
convite para aqueles que navegam pela obra para recombinarem os sons gravados pela equipe
que produziu o projeto. Trata-se de uma obra que apresenta sons de lugares variados, gravados
em cinco cidades de Portugal. A obra permite que os sons gravados sejam recombinados pelos
leitores, com modificações no volume das reproduções, modificações na mistura dos sons que
aparecem a cada vez na tela, escolha dos sons que comporão a mistura em um banco de dados.
Aqui não se trata apenas de permitir ao leitor novos caminhos de leitura, mas de deixá-lo criar o
mapa sonoro que depois será ouvido por ele mesmo e/ou por outros leitores da obra. A imersão
na obra transforma fisicamente a própria estrutura com a qual o leitor entra em contato.
A partir da estruturação que Iser propõe para o texto literário, é possível dizer que, nele, o
leitor imerge em um conjunto de significados produzidos pela sua relação com o texto. E tal
processo é dinâmico, porque ao avançar na leitura, o “local” inicial da imersão se transforma. No
texto eletrônico, o processo de leitura é revestido de uma ação física sobre o próprio
“ambiente” de leitura e, em função disso, pode-se pensar que o leitor reconstrói, incessantemente,
o espaço que irá ler, de modo que esse espaço torna-se mais temporal, mais fluido; mais fluxo e
menos permanência. Iser situa esse processo no momento da leitura quando diz que “como a
leitura desenvolve o texto enquanto processo de realização, ela o constitui como realidade, pois,
qualquer que seja o caráter da realidade, ela o é porque sucede.” (ISER, 1996, p. 127).
A análise sobre o processo de leitura indica que ele pode ser visto como um momento de
criação, que é justamente entre os atos estimulados pelo texto e o contato com o leitor que se
origina a criatividade da recepção. A leitura pede uma ação de querer ir de encontro ao texto, que
ainda não está completo. É preciso desejar a experiência do deslocamento. Dito de outra maneira,
a criatividade da recepção sugere e, talvez se possa dizer, exige movimento. Este, por sua vez,
relaciona-se com o movimentar lugares ou signos que parecem possuir sentidos dados e
4
Disponível em
http://www.cincocidades.com/. Acesso em 11 de outubro de 2007.
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consolidados. É como se a experiência da leitura solicitasse do leitor a motivação para
experimentar outras configurações para o conjunto de estratégias textuais que se lhe apresentam.
Novamente, tempo e espaço surgem, mas também a percepção de que as obras possuem uma
característica processual, de que são obras em construção. No caso da cibernarrativa, pode-se
dizer que a experiência do deslocamento não modifica mais somente o texto, mas enseja a
produção de novas obras e pode aproximar essa vontade em direção a uma experiência
colaborativa. A proximidade entre autor e leitor, verificada por Iser, permite imaginar de que
maneira a colaboração pode acontecer. “O autor e o leitor participam, portanto, de um jogo de
fantasia; jogo que sequer se iniciaria se o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra do
jogo.” (ISER, 1999, p. 10).
Em uma obra o mais aberta possível, o que o seu autor pode sugerir é um pouco mais que
uma regra de jogo; são as condições para que o leitor crie primeiro as enunciações, que farão o
papel de estratégias textuais. O texto surge no momento quase em que irá transformar-se
novamente em obra, a qual, por sua vez, poderá ensejar outras obras. O que se apresenta para o
leitor, numa obra extremamente dinâmica, não são somente as regras do jogo, mas a necessidade
de pensar, inicialmente, em quais serão as condições para que se crie a regra do jogo. E mesmo
quais serão as regras do jogo. Nesse momento, o leitor experimenta o ato de criação com a
cibernarrativa.
Ao analisar as operações da frase em textos literários, Iser permite dizer que a
fenomenologia do ato de leitura já apresentava discussões que são realizadas hoje sobre o caráter
do texto eletrônico. O autor sugere que o “mundo” que surge com a “obra” se constitui a partir de
correlatos intencionais de enunciação. Ou seja, se uma obra é composta de enunciações e se estas
podem combinar-se de diversas formas, o que interessa no ato de apreensão da obra é o momento
em que as correlações são estabelecidas. As enunciações sugerem os seus movimentos no tempo,
que serão estabelecidos pelos atos do leitor. As sugestões contidas nas enunciações funcionariam,
dessa maneira, como os poros da obra, os locais instáveis em que ela indica as suas próprias
possibilidades de ultrapassagem. O leitor, ao se situar dentro do texto, abre ou tem à sua
disposição, duas possibilidades de movimento: ele pode satisfazer-se com as expectativas
sugeridas ou perceber que o movimento que experimenta ao direcionar-se a um horizonte
escolhido o faz reavaliar e reconfigurar as expectativas geradas anteriormente. Em cada um
desses momentos o leitor experimenta um movimento de criação com o texto. Isso porque os
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correlatos de enunciações não fazem referência a algo dado, mas a algo que ainda não foi
produzido. Dessa maneira, o horizonte de leitura não é uma estrutura empírica de referência, mas
é resultante dos processos de interação e de criação entre texto e leitor.
A abordagem de Iser sobre as perspectivas textuais sugere que a experiência de criação com
o texto acontece justamente na percepção das diferenças entre as perspectivas. O fluxo temporal
linear de uma leitura permite perceber essas diferenças como camadas temporais que funcionam
concomitantemente, sem se sobreporem, se anularem ou se englobarem. Não se trata de um
acesso à pura instabilidade das combinações realizadas com as variadas camadas temporais, mas
sim de um momento de aproximação desse fluxo temporal e de um desdobramento das muitas
relações entre espaço e tempo que uma obra pode oferecer. A citação a seguir oferece um bom
exemplo sobre as possibilidades aludidas aqui.
“Desse modo, o ponto de vista em movimento pode desenvolver uma rede de relações, a
qual, nos momentos articulados da leitura, mantém potencialmente aberto e disponível
todo o texto. Essa rede relacional nunca poderá ser de todo realizada, mas ela oferece a
base para as decisões seletivas a serem tomadas durante o processo da leitura.(ISER,
1999, p. 27).
Segundo Maria Antonieta Jordão Borba (2003), esse movimento corresponde ao ponto de
vista nômade do leitor, que transita pela obra, reorganizando as variadas perspectivas textuais e, a
cada movimento, modificando também a perspectiva sobre o ponto de onde todas as perspectivas
textuais convergem para conferir um significado ao texto. Ou seja, o significado é sempre
derivado da relação comunicativa que o leitor estabelece com a obra. Nesse sentido, o significado
seria um efeito a ser experimentado, ou seja, uma experiência estética. Iser denomina também
esse momento como aquele da atribuição, pelo leitor, de uma significação a um significado.
A passagem à significação, segundo a teoria do efeito estético, é um ato permeado também
pelas intersubjetividades que o leitor experimenta. Na passagem, através do texto, o leitor ativa
tanto as estruturas textuais que formam a obra quanto as suas vivências cotidianas, tensionadas
pela proposta contida no discurso ficcional. O leitor não se detém ou não encontra a resposta em
um dos dois lados, mas, sim, experimenta a tensão entre os dois: aí aparece o significado
imagético, em que a experiência estética ainda o se conceitualizou. É possível pensar, segundo
essa formulação, na experiência estética como um processo de equilíbrio instável, que ora tende
ao conceitual, ora ao sensorial, mas que não se define somente em um desses pólos. As sínteses
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predicativas, evocadas por Maria Antonieta Borba, segundo esse mesmo raciocínio, seriam uma
tentativa de resistir à natureza estética do significado, altamente instável, e que caminha em
direção a uma significação, sem, no entanto, se esgotar nela. Afinal, como as significações o
rearticulações de uma intersubjetividade, elas engendrariam o seu próprio processo de
questionamento. Com a construção de sínteses predicativas, o leitor é remetido para “uma
instância em que ele formula significações, sujeitos, como vimos, às impregnações do mundo das
subjetividades.” (BORBA, 2003, p. 33). Segundo Iser, é o ponto de vista nômade do leitor que
permite desdobrar o texto em estruturas interativas. Ou seja, o texto não se desdobra em pontos
fixos que demarcarão, por exemplo, o movimento da leitura. Esta ação faz perceber as estruturas
interativas, que são também atos de agrupamento das perspectivas do texto.
Como foi dito na introdução, se a teoria do efeito estético permite discutir uma obra
como um arranjo das camdas temporais que a compõem, sem que isso signifique uma
reversibilidade do tempo em direção ao espaço, a razão principal parece assentar na perspectiva
de interação entre escrita e leitura proposta por Iser. As relações analisadas por esse autor
enfatizam fortemente os processos de construção da narrativa de um texto literário, deixando
claro que essa narrativa não se esgota, em momento algum, no texto dado, mas existe justamente
porque o texto não deve ter a pretensão de terminar o processo narrativo, e sim fundá-lo e ser
fundado por esse mesmo processo. De que forma isso pode ser sugerido pela fenomenologia e
pela teoria do efeito estético? O primeiro ponto que justifica o processo narrativo como algo que
constrói o texto e não simplesmente é dado a ver através do texto conjuga-se com a perspectiva
fenomenológica de Merleau-Ponty, ao compreender o texto enquanto algo que atinge o leitor, ao
sugerir que a linguagem permite a ação de atravessar e ser atravessado. Ou seja, o processo de
escrita como processo narrativo é sempre aberto, porque feito de dentro da própria linguagem,
mas também com ela. Não há, então, uma narrativa acabada pela e na obra, mas um arranjo do
que Iser chama de perspectivas textuais O ato da escrita é um ato de concentração da visibilidade
esparsa, e não um esgotamento do caráter do visível. Essa concentração, por seu turno, pode
ser percebida na relação com o que a produz, o que significa pensar que a narrativa surge ao se
fazer, e não após ser completamente realizada.
Há, então, uma narrativa que termina de ser reailzada e se isola do processo que a
construiu? Aqui é possível falar de um segundo ponto na relação entre processo narrativo,
fenomenologia e teoria do efeito estético. Esse aspecto diz respeito ao movimento da escrita
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como um movimento de imersão em uma rede temporal, de modo a fazê-la vibrar e, dessa
vibração, fazer surgir uma configuração específica, que Paul Ricoeur irá chamar de mimese II, ou
de narrativa configurada. A escrita parece poder espacializar o tempo, mas é Jacques Rancière
que indica o caráter contraditório desse movimento, ao afirmar que a reapropriação do discurso é
conseqüência da sua própria estruturação em uma forma temporariamente instável. Assim, o
discurso estruturado em uma narrativa é apenas uma das visões possíveis dessa mesma narrativa,
que não cessará de poder ser reconfigurada pela leitura.
A teoria do efeito estético destaca o texto como acontecimento e o mesmo acontecimento
como condição para perceber que o texto não pode se limitar à obra estruturada fisicamente. Esse
seria um terceiro ponto de contato entre essa teoria e os processos de construção narrativa. Para o
que texto possa ser visto como acontecimento, ele deve ser criado de modo a provocar um
descentramento em relação ao próprio contexto de onde surge. Ou seja, a narrativa deve ser capaz
de sugerir o seu próprio questionamento enquanto estrutura fechada fisicamente. E também
enquanto coisa, nesse sentido. Além disso, é o processo de leitura que irá concretizar o texto
produzido pelo leitor. Ou seja, não se trata de igualar o texto à narrativa que o constrói, nem de
compreender aquela como resultado de um texto dado. A narrativa é a indicação da relação entre
autor, texto e leitor e, como tal, é sempre processual. A leitura, então, não é o lugar onde o texto
se esgota, onde termina o seu sentido, mas justamente momento de embate entre as perspectivas
textuais sugeridas por um autor e as concretizações percebidas pelo leitor. Nesse sentido, a
narrativa aparece como escolha de determinadas perspectivas textuais, processo que irá indicar os
seus próprios limites, já que se trata de uma escolha específica de como configurar e reconfigurar
o texto.
Enquanto evento, o texto sempre exige uma seleção dentre todas as possíveis. É justamente
a não-seleção das outras possibilidades que faz com que a leitura se descubra como momentânea.
Nesse sentido, o texto eletrônico não deve ser configurado como a mera possibilidade de
experimentação de todas as formas fechadas de Gestalt permitidas pela seleção e combinação das
estratégias textuais. Haveria o risco, a se adotar esse procedimento, de oferecer todas as
possibilidades de maneira física, programada, o que levaria ao não-sentido e, talvez, à não-
percepção do efeito estético. O caráter de evento, no caso das cibernarrativas, parece associar-se
tanto ao não-fechamento material da programação quanto ao incentivo à participação física do
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leitor na construção de novas possibilidades de produção de possibilidades. Para melhor
compreender de que maneira a teoria do efeito estético sustenta essa visão, basta notar que
“no plano de sentido, porém, o tomadas de decisões seletivas que não são subjetivas
porque sejam arbitrárias, mas porque a Gestalt se deixa fechar quando uma das
possibilidades é selecionada, e não quando todas elas se realizam ao mesmo tempo.”
(ISER, 1999, p. 35,36)
É importante perceber que as não-escolhas de que fala Espen Aarseth (1997), ao tratar da
navegação ou da experiência com cibertextos, estão presentes na formação de sentido dos textos
literários. Embora Aarseth não afirme o contrário, como se verá adiante nesse estudo, cabe
ressaltar que o cibertexto de caráter mais dinâmico talvez consiga apenas intensificar o que um
texto literário faça, independentemente do suporte utilizado. Afinal, como afirma o próprio
Iser, ao dotar uma Gestalt de sentido, restam ainda possibilidades despertadas pela seleção de
determinadas estratégias textuais, ainda que não escolhidas na configuração da narrativa. Ao
configurar uma narrativa, o autor dessa narrativa propõe ao leitor uma determinada configuração
temporal, que surge espacializada em forma de obra, ainda que não esteja toda contida nessa
forma. O capítulo a seguir trata das relações entre espaço, tempo e narrativa, a partir das
discussões realizadas até esse ponto.
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3 TEMPO, ESPAÇO E NARRATIVA
3.1 A experiência com o tempo e com o espaço
De que maneiras se relacionam tempo, espaço e narrativa e como essa relação acontece
quando se fala de cibernarrativas? Discutir essas duas questões é um projeto bastante amplo e não
será respondido de todo nesse capítulo. Entretanto, pretende-se apresentar aqui algumas relações
possíveis entre três termos: tempo, espaço e narrativa.
A relação entre tempo e narrativa baseia-se na tese defendida por Paul Ricoeur em “Tempo
e narrativa”, qual seja, a de que o tempo é um tempo humano, à medida que é articulado de modo
narrativo. E “a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência
temporal.” (RICOEUR, 1994, p.15). A noção de que o tempo torna-se humano somente quando é
narrado aproxima-se bastante da discussão que Merleau-Ponty empreende sobre o tempo e o
tempo percebido.
Sobre o tempo, Merleau-Ponty afirma:
“Os acontecimentos’são recortados, por um observador finito, na totalidade espaço-
temporal do mundo objetivo. Mas, se considero este próprio mundo, um único ser
indivisível e que não muda. A mudança supõe um certo posto onde eu me coloco e de
onde vejo as coisas desfilarem; não acontecimento sem alguém a quem eles (sic)
advenham, e do qual a perspectiva finita funda sua individualidade. O tempo supõe uma
visão sobre o tempo”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 551).
O tempo, segundo a citação acima, seria o tempo percebido, embora exista o tempo como
fundo desse tempo experimentado. Como fundo, ele não é percebido de forma direta. Nesse
tempo de fundo existiram o passado e o futuro, pois segundo Merleau-Ponty, eles existem
em demasia no presente. O mundo objetivo seria excessivamente plano para que nele houvesse
tempo. E por essa razão o mundo objetivo parece trazer um tempo distendido, em que tudo se
encontra num mesmo patamar temporal e o tempo que não é não se deixaria perceber.
“Se separamos o mundo objetivo das perspectivas finitas que dão acesso a ele e o
pomos em si, em todas as suas partes podemos encontrar ‘agoras’. Mais ainda, esses
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agoras, não estando presentes a ninguém, não tem nenhum caráter temporal e não
poderiam suceder-se”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 552).
Nesse sentido, não haveria como se pensar em uma espacialização do tempo, posto que esta
excluiria de si mesma o caráter fundante da relação temporal que o homem estabelece com o
mundo objetivo. Na discussão sobre temporalidade, Merleau-Ponty apresenta o tempo pensado
pelo homem como algo que surge antes das partes do tempo. Isso significa dizer que as noções de
passado, presente e futuro não são naturalmente lineares e que a sucessão temporal é uma
relação com o tempo, um acesso indireto a esse tempo de fundo, invisível que sustenta as
relações de visibilidade constituídas na e com a experiência do mundo objetivo. O tempo
percebido seria, então, aquilo que nasce da relação do sujeito com as coisas (Merleau-Ponty,
1999). nessa afirmação um caráter de intersubjetividade que impossibilita o acesso a um
tempo puro de maneira espacializada e independente de uma relação. O caráter temporal do
mundo objetivo aparece nas relações estabelecidas entre um passado e um porvir que não se
deixariam capturar por completo no presente, ou numa ordem sucessiva de “agoras”. O que
equivale dizer que o tempo não se situa do outro lado do mundo objetivo, construído somente na
consciência. Se alguma forma de alcançar o tempo, ela se relaciona com o desdobramento da
consciência no momento em que esta constitui o tempo do mundo objetivo. Tal desdobramento
não pode, entretanto, equivaler a um nivelamento do tempo como o objeto imanente de uma
consciência. O caráter temporal do mundo objetivo exige que o tempo esteja sempre sendo feito.
“É essencial ao tempo fazer-se e o ser, nunca estar completamente constituído. O
tempo constituído, a série de relações possíveis segundo o antes e o depois o é o
próprio tempo, é seu registro final, é o resultado de sua passagem que o pensamento
objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
556).
A experiência do tempo exige que ele passe, para que possa ser percebido o seu caráter
temporal. O tempo, constituído como uma espécie de eternidade, deve ser percebido no cerne da
experiência do tempo e não por um sujeito atemporal situado fora dessa experiência (Merleau-
Ponty, 1999). O tempo está sempre em estado nascente e a eternidade a que alude Merleau-Ponty
relaciona-se com a invisibilidade do tempo. Ao afirmar que o tempo é uma dimensão do ser, esse
autor sugere a impossibilidade de uma constituição espacial do tempo, ou a impossibilidade de
uma reversibilidade que levasse o tempo a ser espacializado completamente, porque esta exigiria
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uma separação entre o ser e uma de suas dimensões fundantes. Isso não significa afirmar que o
tempo não pode ser percebido. O tempo em estado nascente é um tempo prestes a aparecer e que
“some” no momento mesmo de sua aparição. É tanto a passagem quanto a percepção dessa
passagem. Na relação com o que passa e entre o que passa, percebe-se o tempo em constituição
ininterrupta, um fazer-se do tempo e não um ser do tempo.
O tempo seria não uma linha, mas uma rede de intencionalidades, no sentido trabalhado por
Husserl. O contato com o tempo é o contato com o curso do tempo, com as ações que fazem o
tempo passar. As intencionalidades estariam relacionadas ao próprio campo perceptivo de um
sujeito, “que arrasta atrás de si seu horizonte de retenções e por suas protensões morde o porvir”.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 558). Dito dessa maneira, o tempo se configura não como uma
série de momentos lineares a serem atravessados por um sujeito; antes, os momentos são
constituídos e manipulados pelo próprio ato de realizá-los. A passagem do tempo é construída
pela própria experiência que alguém tem do tempo e não cessa jamais de se fazer. O tempo é em
estado nascente incessantemente. Ele não pode ser reduzido somente a uma síntese momentânea
dos diversos momentos atravessados. O tempo é, então, um movimento, uma passagem em si
mesmo e não um conjunto de pontos objetivos através dos quais alguém passa. “Meu presente se
ultrapassa em direção a um porvir e a um passado próximos e os toca ali onde eles estão, no
próprio passado, no próprio porvir.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 561). O tempo se põe a
mover como um todo, como uma rede de intencionalidades operantes, em que um determinado
ponto qualquer do tempo permite a reabertura de um passado ou o surgimento de um porvir que
aparecem sempre em conexão com o movimento que os recuperou. O movimento do tempo é a
própria condição de sua percepção como constituinte da experiência que o sujeito tem do tempo.
Por essa razão, as intencionalidades são operantes, pois tornam possível ao tempo o seu
movimento. O que há, então, na experiência do tempo, é um fenômeno de escoamento e não uma
reconstituição de posições objetivas pelas quais o sujeito passou.
“Em suma, como no tempo ser e passar são sinônimos, tornando-se passado o
acontecimento o deixa de ser. A origem do tempo objetivo, com suas localizações
fixas sob nosso olhar, não deve ser procurada em uma síntese eterna, mas no acordo e
na recuperação do passado e do porvir através do presente, na própria passagem do
tempo”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 563).
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Merleau-Ponty estabelece, assim, que o presente reafirma todo o passado e antecipa todo
porvir, um tempo que se confirma a si mesmo. Se pensarmos em camadas temporais, presente,
passado e futuro não aparecem sobrepostos, mas entrelaçados, uma vez que cada uma dessas
camadas é a outra antecipada ou expulsa de uma delas em direção a um não-ser. As camadas
temporais são percebidas quando uma subjetividade introduz entre elas uma perspectiva, um
não-ser. Como, para o tempo, ser e passar são sinônimos, a percepção do tempo é a sua condição
de existência. A temporalidade é acessível de maneira intersubjetiva, quando o sujeito se instala
entre as camadas temporais com o intuito de vi-las e não de reuni-las numa síntese exterior a si
mesmo. Da maneira como Merleau-Ponty define o tempo, o sujeito está sempre envolvido nesse
tempo que percebe; não como perceber a existência do tempo sem já estar instalado nele.
Nesse sentido, o tempo pode ser percebido, mas não pode ser tomado e visto em sua totalidade
porque ele existiria de maneira perceptível enquanto estivesse sendo constantemente criado e
percebido em sua criação.
“(...)a ‘síntese’ do tempo é uma síntese de transição, ela é o movimento de uma vida que
se desdobra, e nãooutra maneira de efetuá-la senão viver essa vida, não há lugar do
tempo, é o próprio tempo que se conduz e torna a se lançar.” (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 567).
Se a maneira de efetuar a síntese do tempo é viver o movimento de uma vida e não
necessariamente pensá-la, o tempo não pode ser separado do próprio ato de percebê-lo. Nesse
sentido, a narrativa de uma vida, mesmo que ficcional, é uma maneira de vivenciar o tempo e,
talvez, a única maneira de fazê-lo aparecer. E, ao mesmo tempo, de compreender o movimento
dessa vida. “O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do
mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta.”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 576).
O acesso ao tempo é sempre indireto, uma vez que o movimento em direção a ele o
transforma, pois esse movimento implica estar situado no próprio tempo como passagem. O
tempo é modificado por si mesmo à medida que se desenvolve e também a partir de uma
consciência instalada no tempo. E como a consciência é a consciência do fluxo, ela encontra-se
desde sempre imersa no tempo, mas não completamente envolvida por ele e, sim, constituindo-o
e sendo por ele constituída. Ao pensar o tempo como constituinte e constituído pela própria
experiência que o engendra como movimento, abre-se uma possível questão relacionada às
54
características dessa experiência. Merleau-Ponty parece empreender essa mesma busca em “A
linguagem indireta”. Ao afirmar que um escritor ou um pintor compõe certa forma com o que lhe
é dado em termos de materiais, o filósofo francês percebe a condição para a manifestação de um
sentido sobre e com o mundo.
“Dadas, por outro lado, as cores e uma tela que fazem parte do mundo, ele subitamente
as priva de sua inerência: a tela, as próprias cores, porque foram escolhidas e
compostas segundo um certo segredo, deixam de estar, para nosso olhar, ali onde estão,
abrem um buraco no pleno do mundo, tornam-se, como as fontes ou as florestas, o lugar
de aparição dos Espíritos, estão ali apenas como o mínimo de matéria de que um
sentido precisava para se manifestar”.(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 73).
O mínimo de matéria a que alude Merleau-Ponty é o que permitiria o surgimento do texto
como o impensado. Quando o autor afirma que um pintor ou um escritor cria determinadas
relações entre as coisas, privando-as de sua inerência, é como dizer que a obra materialmente
criada carrega em si as relações que poderiam antecedê-la, mas não representa todas essas
relações, que são temporais. Se o pintor ou o escritor busca um corpo mais ágil, não é uma busca
por uma representação do tempo que está em jogo aqui? Não é uma determinada configuração do
tempo que aparece nesse momento? Nesse sentido, uma similaridade com a noção de mimese
como configuração do tempo preconcebido. Na experiência com a narrativa, o escritor desdobra o
tempo sem, no entanto, alcançá-lo, pois realiza tal desdobramento a partir de uma configuração
particular das camadas temporais que compõem a experiência vivida. o haveria, desse modo,
um retorno completo do escritor à experiência vivida, mas o engendramento de um para-além da
experiência de dentro dela mesma, uma transcendência imanente à narrativa. Esta seria uma
forma de perceber o caráter temporal dos acontecimentos, mas não necessariamente de maneira
cronológica, uma vez que se trata de configurar o tempo de uma forma específica, humana. Como
afirma Merleau-Ponty (2002), o mundo não exige nenhuma forma em particular.
“Meu olhar, percorrendo livremente a profundidade, a altura e o comprimento, não
estava submetido a nenhum ponto de vista, porque os adotava e os rejeitava a todos
sucessivamente, ao passo que agora renuncio a essa ubiqüidade e convenho fazer
figurar em meu desenho o que poderia ser visto de um certo ponto de observação por
um olho imóvel fixo num certo ‘ponto de fuga’, de uma certa ‘linha de horizonte’
escolhida de uma vez por todas”.(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 79).
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Merleau-Ponty parece retomar assim o que falava sobre a temporalidade em A
fenomenologia da percepção”; ou seja, o fato de que o tempo nasce da relação de um sujeito com
as coisas e da maneira como este sujeito se coloca junto a elas. Assim, há uma temporalidade
fundante e um tempo associados ao mundo objetivo. o seria o tempo espacializado, mas antes
uma perspectiva do tempo, uma das diversas camadas temporais que compõem, como uma rede
de invisíveis, o tempo.
Em “A linguagem indireta”, o filósofo francês afirma que a percepção jamais é acabada.
Ela seria o reconhecimento de uma significação que não visa o objeto já dado, mas o constitui e o
inaugura. Isso não significa um retorno à consciência ou uma preferência pelo indivíduo em
detrimento do mundo. Antes, o autor parece afirmar aqui justamente a idéia de que o percebido
sempre se faz sobre um fundo de percepção. uma invisibilidade que o sustenta, um mundo
ainda pré-configurado. E seria na relação com esse mundo, através da narrativa como
configuração do tempo, que o tempo percebido se deixaria à mostra, ainda que tal configuração
aponte sempre para além e para aquém de si própria, no que diz respeito ao mundo que a
perceber. A narrativa mostraria perspectivas parciais que o mundo ultrapassaria por todos os
lados. Não se poderia falar, então, de uma reversibilidade do tempo no espaço de uma obra, uma
vez que o tempo sempre ultrapassaria as perspectivas pelas quais se deixa perceber.
“Sem se voltarem para suas primeiras obras, e pelo simples fato de terem efetuado
certas operações expressivas, o escritor e o pintor são dotados como que de novos
órgãos e, experimentando, nessa nova condição que se deram, o excesso do que há por
dizer sobre seus poderes ordinários, são capazes a menos que um misterioso
esgotamento ocorra, do qual a história oferece exemplos – de ir no mesmo sentido ‘mais
longe’, como se, alimentados da substância desses poderes, crescessem com seus dons,
como se cada passo exigisse e tornasse possível um outro passo, como se, enfim, cada
expressão bem sucedida, prescrevesse ao autômato espiritual uma outra tarefa ou ainda
fundasse uma instituição cujo exercício ele jamais terá terminado de verificar.”
(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 84).
É como se cada nova expressão suscitasse a sua própria falta, aquilo que não foi exprimido,
e que funciona como um impulso para uma nova criação. Essa criação não seria um retorno à
consciência, mas um retorno ao mundo a partir de uma expressão sobre ele. Uma volta que não
irá completar a expressão sobre o mundo e, sim, um movimento que é a própria condição de
relação com o mundo. Não uma circularidade exata, que separaria o dentro e o fora, mas uma
espiral infinita que se refaz incessantemente, como uma curva de Moebius. É no momento de
contato com o mundo que este passa a significar, mas não se deve entender, a partir dessa
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afirmação, que o mundo seja vazio. Antes, não havia uma relação, uma tomada de posição em
relação ao mundo que permitisse a sua expressão. Enquanto invisível, a temporalidade é sempre o
ainda não-percebido, o não contado. A tomada de posição e a expressão sobre o mundo
acontecem de forma simultânea. Ou seja, não um causa anterior nessa relação. o
surgimento da expressão porque a tomada de posição e a tomada de posição, porque
uma expressão com o mundo. Isso é o que Merleau-Ponty diz ao afirmar que o homem e a
significação surgem do fundo do mundo pela operação do estilo. O estilo é o que surge quando
aparecem figuras e fundos, altos e baixos, quando alguns elementos do mundo adquirem uma
dimensão pela qual todo o resto passa a ser medido (Merleau-Ponty, 2002). Pode-se relacionar
essa caracterização como equivalente a habitar uma das camadas temporais que compõem o
invisível e, com ela e a partir dessa localização provisória, produzir uma objetivação do mundo.
Ou seja, o mundo objetivo é o que surge com o estilo, com a criação de um sentido, com a
percepção de um sentido da temporalidade. O sentido seria referente, nessa passagem, à
disposição das camadas temporais em uma determinada relação, à configuração de uma narrativa
sobre e a partir de um tempo pré-percebido, ainda não-configurado.
“O sentido se afunda no quadro, habita ou freqüenta o quadro, estremece a seu redor
‘como uma bruma de calor’, em vez de ser manifestado por ele. É como ‘um esforço
imenso e vão, sempre detido a meio caminho do céu e da terra’ para exprimir o que a
natureza do quadro lhe proíbe exprimir”. (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 88).
Se o sentido habita o quadro é justamente porque somente de dentro da própria forma de
expressão é que o sentido acontece. É somente dentro do próprio tempo que o homem percebe a
sua passagem, o ser do tempo, mas já de passagem, sempre como um estremecimento, como uma
sensação de algo que o envolve e onde também ele não cabe completamente. A partir da
narrativa, já que se trata aqui de discutir a relação entre temporalidade e tempo narrado, o homem
expressa o que de si no mundo e o que do mundo em si, um indivisível distinto. O sentido
não é o dado de uma vez, mas a passagem em direção a, a vibração das relações que compõem o
mundo construídas naquele que conta o próprio mundo. Merleau-Ponty refere-se, num
determinado momento, à tríplice retomada através da qual o pintor infunde um sentido novo ao
que antes convocava esse sentido. É como se um autor estivesse constantemente criando a partir
da destruição, conservando a partir de uma ultrapassagem. Tal proposta se assemelha à noção de
57
tríplice presente em Santo Agostinho, cuja idéia é a de uma distensão da alma em direção tanto
ao futuro quanto ao passado, a partir da percepção de que o tempo é o tempo que passa.
Em relação ao sentido de um texto, a relação entre os objetos da representação, sua
modificação durante a leitura e entre as várias leituras permite pensar que a leitura ativa camadas
temporais distintas na realização do sentido. A cada nova leitura, os objetos de representação se
diferenciam de maneira distinta da anterior e se combinam de forma individual. Essa combinação
não exclui a de uma primeira leitura, nem se sobrepõe a ela. A formulação de Iser sobre os
processos de representação não defende uma acumulação entre as diversas camadas temporais e,
sim, combinações temporais distintas em função de formas de organização também distintas. Iser
afirma
“Pois inexiste para esse momento temporal qualquer padrão de referências, de modo
que, em cada leitura, os objetos de representação se iluminam de maneira diferente.
que o momento temporal não é determinado em si, ele se define por meio da
individualidade do sentido realizado, individualidade que ele mesmo produz.(ISER,
1999, p. 79).
O tempo, segundo Merleau-Ponty (2003), é algo que deve constituir-se, que deve ser visto
da perspectiva de quem está nele. Tal perspectiva, entretanto, não significa uma co-incidência do
homem com o tempo presente em que vive. Este não é um tempo dado, fixo, conquanto seja
constantemente percebido. O tempo presente está aqui, agora, mas não possui contornos
definidos. Isso porque se baseia numa linha de fuga, que pode ser retomada (a recuperação de um
tempo já vivido) ou pode ser um caminho em direção a uma diferença que ainda virá a ser. O
tempo seria o fundo sobre o qual surgem figuras momentâneas que podem ser percebidas como
co-relacionadas a este fundo que não aparece, mas se dá a perceber de forma indireta.
Se o Ser é aquilo que de nós exige criação, para que possamos experimentá-la (Merleau-
Ponty, 2003), ou experimentá-lo (o Ser) (Marilena Chauí, 2002), o tempo é a linha de força com a
qual acontece a criação; é uma condução em direção ao Ser; mas como condução, é sempre
movente do seu próprio caminho e objetivo.
O tempo comporta-se como um invisível para o espaço, que pode ser percebido em co-
operação com este, não como subordinado ou superior. Para cada percepção, há camadas
temporais que a sustentam e estas camadas não funcionam como uma linha retrospectiva ou
prospectiva linear. As diferenças entre as coisas sugerem a existência, como fundo das
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diferenças, de uma dimensão temporal que pode se desdobrar em várias camadas. Como dito
anteriormente, o tempo é um movente, mas não em uma única linha tensionada, senão como
diferença entre as várias linhas de força que se dão a perceber em uma experiência.
Deseja-se enfatizar aqui o fato de que talvez o tempo deva ser percebido a partir de outras
formas e não somente a cronológica. Segundo Márcio Tavares d’Amaral (2003), os gregos
possuíam diversas intuições sobre o tempo e procuraram exprimir tais intuições através de
diversas palavras: aiôn, que seria o acaso, o jogo, o inesperado; kairós, cuja relação mais próxima
seria estabelecida com a idéia de momento oportuno, oportunidade; khronos, ou a duração de
alguma coisa; e ethos, cujo significado estaria relacionado à idéia de moradia, ou demora no lugar
próprio, que é seu. Assim, não haveria para o tempo um ritmo único, como o cronológico
(passado, presente e futuro nessa ordem), mas várias temporalidades. Ao ser descrito a partir de
pelo menos quatro percepções distintas, o tempo aparece como ritmo em função das próprias
diferenças de percepção, e não como uma linha contínua em direção ao infinito, como se as
relações temporais não fossem também intersubjetivas. Segundo Amaral (2003), o acaso seria a
irrupção do inesperado que permite ao homem perceber um ritmo, denominado tempo. Segundo o
autor, o tempo é
“... a nossa perspectiva de que o que é é originariamente, quer dizer, provém de uma
origem que nunca cessa, como uma fonte que provém da incessância da origem, mas
que não se dá linearmente como uma reta sem interrupção, mas segundo ritmos,
diferenças, ao acaso, afirmando a máxima potência do poder não ser.” (AMARAL,
2003, p. 32).
3.2 A relação entre tempo e narrativa
Em “Tempo e narrativa”, Paul Ricoeur afirma que o tempo humano é o tempo narrado. E “a
narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.”
(RICOEUR, 1994, p.15). Ao desenvolver essa relação, Ricoeur permite realizar uma
aproximação entre o tempo em Merleau-Ponty, o tempo narrado e o conceito de imersão.
Interessa aqui justamente essa relação, conquanto seja necessário, antes, detalhar a discussão
empreendida por Paul Ricoeur.
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A narrativa, segundo Ricoeur, seria a forma de perceber o tempo, porque através dela o
sujeito poderia experimentar o tempo pré-figurado, um tempo semelhante à temporalidade pura,
ao se deparar com este mesmo tempo já configurado pela narrativa.
Ricoeur propõe pensarmos um vínculo entre narrativa e temporalidade, como dito acima.
Em sua discussão retoma a teoria do tempo em Santo Agostinho e a teoria da intriga em
Aristóteles. O autor afirma, a partir da argumentação de Santo Agostinho sobre a medida do
tempo, que o que se mede não são as coisas passadas ou futuras, mas a recordação que se têm
delas (no caso do passado) e a espera do que virá (futuro) através de uma atenção constante
(presente). Ele articula a noção de um tríplice presente com a noção de distentio animi,
desenvolvida por Santo Agostinho.
O conceito de tríplice presente é desenvolvido como contraponto ao ceticismo de se medir
o tempo, algo que não é. Afinal, se o futuro ainda não é, se o passado não é mais e se o
presente não permanece, o tempo não teria extensão e, por conseguinte, não poderia ser medido.
Ricoeur contrapõe ao argumento cético o fato de que o tempo é falado como tendo ser, é narrado.
Nesse sentido, através da linguagem, do ato de narrar coisas passadas e futuras, o tempo adquire a
consistência suficiente para ser medido. “Narramos as coisas que consideramos verdadeiras e
predizemos acontecimentos que ocorrem tal como os havíamos antecipado.” (RICOEUR, 1994,
p. 26).
Através da narrativa, passado e futuro tornam-se qualidades temporais que podem existir no
presente, sem que tenham ainda, necessariamente, existência física. Passado e futuro surgem,
assim, como impressões, como imagens que compõem a própria experiência com o tempo. Ou
seja, as coisas passadas e futuras existem e o enquanto a experiência com elas. E essa
experiência acontece na e através da narrativa. Entretanto, aqui se enuncia o enigma que sustenta
a tese do tríplice presente: como a narrativa pode compreender, ao mesmo tempo, imagens que
remetem à memória, mas também ao que virá e ao que passa, sem que uma dessas imagens seja
exatamente a outra, mas considerando que elas são concordantes? Santo Agostinho dirá que os
três tempos (presente do passado, presente do presente e presente do futuro) existem na alma. O
presente encontra-se ampliado com a experiência da e na narrativa. As coisas futuras encontram-
se no presente como que pré-anunciadas ou pré-percebidas. Há uma espera, no presente, pelo que
virá. E as coisas passadas surgem na narrativa após a passagem do que virá em direção ao
passado. Elas são aquilo que se encontrava em estado de espera, mas são também o que
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passou, de acordo com a narrativa que se produz com elas. Entretanto, como o próprio Ricoeur
afirma, ao desenvolver a noção de distentio animi, os três modos do tempo não se misturam na
própria percepção do tempo. É, antes, a diferenciação entre eles que permite a experiência com o
tempo.
A noção de distentio animi baseia-se na seguinte proposição: o tempo pode ser medido e,
por conseqüência, experimentado, porque o tríplice presente é uma distensão do espírito em
direção ao futuro e ao passado (Agostinho, 1998). Ricoeur afirma, baseado em Santo Agostinho,
que é quando os tempos passam é que podem ser medidos. Mas essa passagem não implica uma
passividade em relação ao movimento e sim uma atividade em direção às coisas futuras e às
coisas passadas. Tal atividade pode ser realizada na construção de uma narrativa. uma espera
inicial em relação ao que será narrado, uma atenção em relação ao todo da narrativa que ainda se
encontra em estado latente e um movimento da consciência para que a narrativa se inicie. Após
essa primeira distensão da alma em direção ao futuro, os elementos que significavam as coisas
futuras passam a pertencer a uma camada temporal de coisas passadas e a alma se distende em
direção a eles através da memória, para que possam ser contados. São, aqui, os mesmos
elementos que se apresentam como coisas futuras e coisas passadas, mas em camadas temporais
distintas e com qualidades distintas ao longo da narrativa. Esse movimento requer uma atenção
constante, que Ricoeur identifica com o presente. É através do presente que a alma percebe a
passagem e faz passarem as coisas futuras em direção às coisas passadas. Dessa maneira, uma
distensão da alma que origina uma extensão do presente. A distensão da alma relaciona atividade
e passividade, sem nunca confundi-las ou reduzi-las uma à outra. É na diferença entre a espera e
a memória que a consciência percebe a passagem do tempo e cria a própria experiência do tempo.
A noção de distentio animi parece bastante apropriada para discutir a importância da imersão
para a experiência do tempo na e com a narrativa. “É, pois, na alma, a título de impressão, que a
espera e a memória têm extensão. Mas a impressão está na alma enquanto o espírito age, isto
é, espera, está atento e recorda-se.” (RICOEUR, 1994, vol. I, p. 39).
A ação do espírito será tratada, nessa tese, como o movimento de imersão no e com o
tempo, através da narrativa e com a narrativa. A imersão é o movimento que interrelaciona a
espera com a memória, através da atenção. Não concordância total entre memória, espera e
atenção, mas sempre falha, sempre algo que falta e que se encontra além de uma ou outra
qualidade temporal. Dessa falha e nessa falha surge a experiência com o tempo.
61
A impressão do que passou não é a mesma impressão do que virá, embora a segunda
engendre a primeira. As coisas passadas, ao serem recordadas, não são o que eram antes de
passarem, porque nesse momento a narrativa era ainda pré-percebida. Como tal, não se
assemelhava à narrativa contada. O movimento de imersão, a ação do espírito em direção ao
tempo, oscila sempre entre o pré-percebido e o que é lembrado, nunca sobrepondo essas duas
camadas temporais. O tempo se desdobra sempre na relação entre o que se passa na alma e no
mundo objetivo, seja ele ficcional ou não. Se algum “lugar” para esse desdobramento, ele está
associado à própria passagem do tempo enquanto esta é empreendida por uma consciência,
através de uma narrativa. Ricoeur toma como exemplo desse desdobramento o conceito de intriga
da Poética de Aristóteles.
A tessitura da intriga, própria do modelo da tragédia, e que Ricoeur sugere como modelo de
qualquer narrativa, é o que permite conferir à ação um contorno, uma totalidade (Aristóteles,
1993). Ou seja, é o que conferiria ao tempo dos acontecimentos do mundo, uma vez narrados, a
possibilidade de serem percebidos como tendo uma extensão. Extensão esta que não está ligada
ao caráter cronológico, mas à idéia de lógica. Uma narrativa possui início, meio e fim de maneira
lógica e não simplesmente como encadeamento de “agoras sucessivos” sem causa e
conseqüência. Dessa maneira, não se trata aqui simplesmente de organizar cronologicamente a
temporalidade, mas de conferir-lhe um contorno, de percebê-la. Através da narrativa, passado e
futuro tornam-se qualidades temporais que podem existir no presente, sem que tenham ainda ou
necessariamente existência sica. Passado e futuro surgem, assim, como impressões, como
imagens que compõem a própria experiência com o tempo. Ou seja, as coisas passadas e futuras
existem e são enquanto a experiência com elas. E essa experiência acontece na e através da
narrativa.
O modelo da tessitura da intriga discordante permitiria a percepção da distensão da alma ao
realizar, através da narrativa, a configuração de um tempo pré-figurado, ou a concordância das
diferenças entre futuro, presente e passado. É preciso ressaltar, com Paul Ricoeur, que o modelo
de tessitura da intriga não significa que a narrativa fornece acesso ao tempo, mas que ela o
configura. Ou seja, a mimese não seria a imitação dos fatos, mas a imitação do agenciamento dos
fatos, um “como se” que não esgota a ação, mas cria uma configuração dessa ação.
Ricoeur destaca o fato de que a atividade mimética é o cerne da relação entre mimese e
muthos. Segundo o autor francês, a mimese deve ser compreendida em seu sentido dinâmico,
62
como o processo ativo de representação do agenciamento dos fatos. Ou seja, a mimese produz a
imitação da disposição dos fatos, da maneira de agenciá-los, a imitação da tessitura da intriga,
que Aristóteles denomina muthos. Ricoeur sugere, entre mimese e muthos, uma ação criadora, em
que a atividade mimética reproduz não uma ação, mas o modo com que essa ação pode se
desenvolver. Assim, a narrativa é uma ão criadora de possíveis agenciamentos entre os fatos.
Mas a questão é investigar de que maneira a narrativa permite a percepção da medida do tempo,
conforme proposto anteriormente. A percepção da medida do tempo acontece quando os três
modos do tríplice presente são percebidos pela consciência e com a consciência. Ou seja, trata-se
aqui de uma percepção completa, mas não fechada. Ricoeur utiliza o modelo da tragédia como
aquele que melhor pode explicar a capacidade da narrativa de realizar uma concordância
discordante. Essa relação é a que serve de base para o conceito de distensão da alma e
conseqüente extensão do presente.
A configuração poética da narrativa, proposta por Paul Ricoeur, se desdobra em três
mimeses: mimese I, mimese II e mimese III. Através da inter-relação entre as três mimeses a
narrativa tornaria o tempo um tempo humano e o tornaria ser, porque passível de ser percebido.
Note-se que, quando se menciona a narrativa como a estratégia para tornar o tempo ser, não
significa dizer que a narrativa permite o acesso direto ao tempo, mas que ela permite a percepção
do tempo como ser, porque ela confere acesso à passagem do tempo.
“Não se permite mais a dúvida; o tipo de universalidade que a intriga comporta deriva
de sua ordenação, a qual constitui sua completitude e sua totalidade. Os universais que
a intriga engendra não são idéias platônicas. o universais parentes da sabedoria
prática, portanto, da ética e da política. A intriga engendra tais universais que a
estrutura da ação repousa sobre a articulação interna à ação e não sobre acidentes
externos. A conexão interna como tal é a isca da universalização. Seria um traço de
mimese visar no muthos o seu caráter de fábula, mas seu caráter de coerência”.
(RICOEUR, 1994, p. 70).
A mimese, base estrutural da narrativa, é uma ão de estruturar os fatos, mas ela começa
com a disposição prática dos fatos e a percepção dessa disposição e termina com a leitura. Por
isso Ricoeur instiga a pensar a mimese a partir do seu caráter de coerência. Trata-se de investigar,
na relação entre as três mimeses, a forma do agenciamento dos fatos. A narrativa estrutura a
experiência do tempo a partir da rede de acontecimentos que são engendrados por
verossimilhança ou por necessidade. É a forma da rede que deve ser investigada, e não seus nós
separadamente ou em repouso. Assim, entre as três mimeses estabelece-se uma relação em
63
constante movimento, em que mimese II realiza a mediação entre mimese I e mimese III. Mas o
que são as três mimeses propostas por Paul Ricoeur?
A mimese I é equivalente a um tempo pré-figurado, que será posteriormente configurado
pela mimese II. Compreender mimese significa compreender a ação em geral pelos seus traços
estruturais. É somente a partir dessa compreensão que se poderá operar, na mimese II, a
configuração dessa mesma ação. Ou seja, se a tessitura da intriga é uma imitação da ação, é
fundamental compreender quais são os traços componentes dessa ação. Ricoeur define três traços
fundamentais como componentes da mimese I: os traços estruturais, os simbólicos e os temporais.
Segundo o autor, toda ação possui traços estruturais relacionados aos agentes da ação, aos
motivos da execução da ação e aos fins da ação. Entretanto, compreender esses traços é li-
los de alguma maneira, é possuir a competência do que se chama compreensão prática. A
compreensão prática seria uma pré-compreensão narrativa, porque ligada à capacidade de
acrescentar à estrutura prática da ação, ainda que minimamente, traços discursivos que ligariam
logicamente os seus elementos. Para realizar a composição narrativa, seria preciso entender
também as características simbólicas da ação. Ou seja, toda ação, se pode ser narrada, é porque
está articulada em signos, ou melhor, em mbolos. Aqui se encontram as características
simbólicas da ação, que serão depois traduzidas na narrativa em termos de discurso. E, por fim,
os traços temporais da ação estariam ligados ao ato de construir a ação como um todo, a partir da
noção de tríplice presente em Santo Agostinho. A característica temporal da ação só seria
percebida a partir de uma intratemporalidade, de uma construção do tempo da ação a partir de
dentro da própria ação. Tais traços preparariam o sujeito para empreender a mimese II, a
configuração da ação através da narrativa, a mediação da ação prática em direção à mimese III,
que seria refiguração dessa mesma narrativa pelo leitor.
“Seguir uma história é avançar no meio de contingências e de peripécias sob a conduta
de uma espera que encontra sua realização na conclusão. Essa conclusão não é
logicamente implicada por algumas premissas anteriores. Ela à história um ‘ponto
final’, o qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do qual a história pode ser percebida
como formando um todo”. (RICOEUR, 1994, p. 105).
Seguir uma história é uma experiência de imersão, porque exige justamente o trabalho de
deslocamento no tríplice presente a partir de sua própria construção. Ou seja, uma ação que
faz a história se encaminhar para o passado, um atravessamento de dimensões temporais que
64
será empreendido pelo leitor. Discutir-se-á, no caso da cibernarrativa, a possibilidade de retomar
o passado não para ler o futuro, mas para iniciar novamente uma pré-figuração, anterior à
configuração da narrativa.
Através da tessitura da intriga, os acontecimentos do campo da ação são constituídos como
uma história. E a concordância discordante entre passado, presente e futuro encontra seu termo
em um todo que é dado pela própria tessitura. A idéia de todo aqui se relaciona com uma ão
narrada com princípio, meio e fim lógicos e não necessariamente cronológicos. O ato de narrar
coloca em movimento os traços componentes do tríplice presente e propõe uma configuração
para a ação percebida em mimese I. A narrativa é menos a seqüência de acontecimentos lineares e
mais a configuração de um processo entre os acontecimentos que se encontravam ainda
precariamente interligados em mimese I. A tal processo Ricoeur o denomina tessitura da intriga e
não intriga. A noção de tessitura é empregada para enfatizar o caráter de mediação de mimese II,
o seu caráter processual. É somente em mimese III que a narrativa permitiria compreender que o
tempo percebido é sempre o tempo narrado, o tempo tornado humano na e com a narrativa.
A mimese III é a ação que reconfigura o tempo pré-figurado da mimese I, através da
experiência de mimese II. Tal reconfiguração não se dá apenas em função de uma suposta
ordenação dos traços temporais que apareciam de maneira desordenada em mimese I. A
configuração proposta em uma tessitura da intriga é apenas uma proposição e, como diz o próprio
Paul Ricoeur, é o começo de um processo que encontra um termo em mimese III, e não
necessariamente o seu término.
A narrativa é uma entre as várias configurações que se encontram ainda não contadas. As
histórias não contadas estariam em estado de potência enquanto situam-se em mimese I. O
processo levado a um termo em mimese III é aquele de fazer emergir, através da imersão em
mimese II (a tessitura da intriga), tanto o sujeito implicado nessa imersão quanto uma
temporalidade própria desse conflito, que é característico da mimese III e uma das possíveis
histórias ainda não contadas em mimese I.
“O emaranhamento aparece antes como a pré-história da história narrada da qual o
começo permanece escolhido pelo narrador. Essa ‘pré-história’ da história é o que a
vincula a um todo mais vasto e dá-lhe um ‘pano de fundo’. Esse pano de fundo é feito
pela ‘imbricação viva’ de todas as histórias vividas umas nas outras. É preciso pois que
as histórias narradas ‘emerjam’ desse pano de fundo”. (RICOEUR, 1994, p. 115,116).
65
A experiência da leitura, própria do momento da mimese III, é aquela em que o pólo do
texto e o pólo do leitor são imbricados em um sujeito que opera as três mimeses. Através dessa
operação, o leitor constitui um texto, apreende o que a obra comunica, mas também o mundo que
ela projeta e que constitui seu horizonte. O que permite dizer que a experiência do tempo narrado
é uma experiência de construção desse próprio tempo e do seu horizonte. A relação entre tempo e
narrativa parece apontar sempre para uma dupla organização: a estrutura de uma narrativa
permite um determinado tipo de percepção temporal sobre o que se conta e a perspectiva adotada
ao se contar uma história permite perceber como as camadas temporais da história podem se
relacionar. Dessa maneira, narrativas com propósitos diferentes sugerem relações diferentes entre
as várias camadas temporais. Ao se adotar a análise da narrativa ficcional para discutir a estrutura
temporal em uma tese sobre cibernarrativas, pretende-se seguir também a definição que Paul
Ricoeur utiliza para o termo ficcional, qual seja, o de uma narrativa que não ambiciona ser uma
narrativa verdadeira. Ao fazê-lo, essa tese enfatiza o caráter de possibilidade da narrativa
ficcional como estrutura de base, o que parece ser o mais apropriado para tratar do caráter das
cibernarrativas. Ricoeur defende uma experiência fictícia do tempo.
“por um lado, de fato, as maneiras temporais de habitar o mundo permanecem
imaginárias, na medida e que existem no texto e através dele; por outro, constituem
uma espécie de transcendência na imanência, que permite precisamente o confronto
com o mundo do leitor.” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 13).
Ricoeur considera importante definir os limites do conceito de intriga como base para se
pensar as narrativas ficcionais, em função do seu caráter integrador, da sua capacidade de
originar uma história única e completa. Independentemente do desenvolvimento da argumentação
do autor, salta aos olhos o caráter sempre mais completo dessas formas na linha temporal, em
relação às metamorfoses do conceito de intriga, ao longo de sua história e do desenvolvimento
das formas narrativas. Novas formas narrativas sugerem explorar ao limite máximo a tensão entre
os possíveis componentes da intriga, como se para cada novo componente surgisse uma linha de
força atravessando a narrativa. Tais linhas de força serão consideradas como camadas temporais
cujo caráter não é espacial, mas sim de movimento, de sentido em direção a. À crescente
complexidade das estruturas narrativas, Paul Ricoeur contrapõe o movimento das narrativas
ficcionais romanescas modernas de dar conta do real e suas variações.
66
“Se, de fato, o verossímil não passa da semelhança do verdadeiro, o que é então a
ficção, sob o regime dessa semelhança, senão a habilidade de um fazer-acreditar,
graças ao qual o artifício é tido por um testemunho autêntico sobre a realidade e sobre
a vida?” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 24,25).
Ou seja, a narrativa, ao se aproximar de uma suposta representação do real, se multiplica
em convenções narrativas, o que termina por mostrar o seu caráter altamente construído e não-
natural. Esse paradoxo parece funcionar como aquele presente na reversibilidade entre tempo e
espaço. Se o tempo é tido como fundante, as configurações espaciais cujo objetivo é representar
um determinado fluxo temporal mais não fazem do que destacar a sua instabilidade, em função
de articulações convencionais e parciais sobre o tempo que procuram exprimir. Nesse sentido,
quanto mais complexa uma determinada organização espacial, mais clara se torna a maneira pela
qual a sua estrutura funciona como uma simples replicação do real, reduzindo essa representação
a uma pia sempre muito menor em termos de complexidade estética. A questão, então, não
seria converter as camadas temporais em estruturas espaciais, mas trabalhar com o intuito de
explorar a instabilidade de qualquer configuração espacial, em função das camadas temporais que
fundam a sua organização frágil. Não se trata, no entanto, de fragmentar a estrutura narrativa de
modo a copiar o real, mas de destacar os componentes dessa estrutura, de torná-los claros para o
leitor e, talvez, até mesmo, manipuláveis por ele. A seguir esse raciocínio, o leitor seria capaz de
entrar na obra não em razão do seu envolvimento emocional unicamente, mas em razão de uma
demanda da própria configuração da obra, apresentada em seu momento de pré-figuração; ou
seja, uma aproximação entre mimese I e mimese II. A aproximação aludida encontra ressonância
no modo como Ricoeur enfrenta os limites do conceito de intriga, no tocante ao que denomina a
arte de contar. Afinal, se a estrutura narrativa baseada na intriga pareceria dar sinais de
esgotamento, argumenta ele, a própria idéia de uma obra completa não faria mais sentido. A
solução proposta por ele baseia-se na proposição de Frank Kermode, cuja enunciação é a
seguinte:
“A Crise não assinala a ausência de qualquer fim, mas a conversão do fim iminente em
fim imanente. Não se pode, segundo o autor, afrouxar a estratégia da infirmação e da
peripeteia até o ponto em que a questão do encerramento, da conclusão, perderia
qualquer sentido. Mas cabe a pergunta, o que é um fim imanente, quando o fim não é
mais uma conclusão, um encerramento?” (KERMODE apud RICOEUR, 1994, vol. II,
p. 40).
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O fim imanente apontaria para uma perspectiva mais flexível de uma possível unidade da
obra literária? Ou seja, haveria diversas unidades completas nas obras literárias contemporâneas
e, por essa razão, o fim se tornaria algo imanente? Paul Ricoeur afirma que a dissolução da
intriga seria um indicativo da necessidade de entrada do leitor na obra. Posteriormente, nessa
tese, esse argumento servirá para mostrar de que maneira a imersão é uma demanda criada pelas
próprias obras ficcionais contemporâneas e, no caso das cibernarrativas, torna-se uma exigência.
A concepção do fim imanente relaciona-se com a realização da completude da obra pelo leitor. É
o leitor, ao assumir a intriga como uma construção ainda a ser feita, que reconfigura a narrativa e
confere à obra o seu caráter mesmo de ordem.
A desestruturação da obra faria parte do contrato entre autor e leitor e isso exigiria do
leitor uma disponibilidade para refazer a obra. Aqui a imersão é crucial para que se possa falar de
uma narrativa; no caso das cibernarrativas parece haver uma intensificação dessa exigência, pois
se trata não de perceber uma narrativa em meio a um suposto caos, mas de trabalhar no nível
físico da obra. Há, assim, não uma dissolução da ordem da narrativa, mas talvez o encontro que
permite a reversibilidade entre espaço e tempo. A noção de fim imanente indicaria justamente o
caráter temporal do espaço, e a vibração desse espaço em direção às camadas temporais que o
compõem. O espaço da obra, ao apresentar uma estrutura cronológica, não seria capaz de encerrar
em si todas as articulações possíveis entre as diversas camadas temporais. Antes, apontaria o
caráter provisório dessa cronologia e uma abertura para outras formas de investida sobre o tempo
da narrativa. Cabe aqui perguntar se essa abertura poderia ser realizada tomando como base uma
análise estrutural da narrativa, ou mesmo as figuras temporais de Gérard Genette.
3.3 Os elementos do jogo temporal na narrativa
Em “Discurso da narrativa” (1970), de Genette, encontra-se um conjunto de elementos que
estruturam a presença do jogo temporal na narrativa. Ainda que as categorias encontradas nessa
obra pareçam ser de difícil relacionamento com o tipo de narrativa característica das
cibernarrativas, não se pode deixar de notar que tais categorias podem aparecer nas
cibernarrativas, mesmo que não se constituam em elementos exclusivos das obras e possam ser
68
associadas ao processo de produção delas. A abordagem desses elementos pode fornecer pistas
para pensar o próprio desafio de criação de uma cibernarrativa, no que diz respeito ao tipo de
temporalidade presente nessas obras.
A primeira questão abordada por Genette trata do tipo de temporalidade que se pode
associar ao termo narrativa, pois discute o conjunto da narrativa e não somente a configuração de
seus elementos internos. Como se verá no momento de investigar exemplos específicos de
cibernarraativas, as análises são, também em sua maioria, sobre as obras consideradas no todo,
ainda que em alguns casos essa análise desça ao nível dos elementos presentes na configuração
narrativa. O autor destaca três sentidos para o termo narrativa, quais sejam: “a narrativa designa o
enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de
uma série de acontecimentos” (GENETTE, 1970, p.23); um segundo sentido, em que a narrativa
relaciona-se a uma sucessão de eventos que são o objeto desse discurso; e um terceiro sentido em
que a narrativa significa o ato de narrar em si mesmo, aquele que consiste em que alguém conta
qualquer coisa. O primeiro sentido diria respeito ao discurso narrativo, ao texto narrativo, aos
significantes; o segundo sentido diria respeito ao significado e o terceiro sentido diria respeito à
narração, ao ato narrativo produto do discurso.
Os três sentidos empregados por Genette não aparecem dissociados entre si e não se
constituem em unidades independentes da sua própria relação. Entretanto, é possível concordar
com o autor quando afirma certa primazia de análise do discurso narrativo (o primeiro sentido)
como mediador da visão sobre como os três processos estruturam uma obra. Se essa é uma visão
ainda muito centrada na estrutura dos significantes e, talvez por isso, passível de críticas, não é
menos verdade que a “separação” empregada por Genette é de grande utilidade para discutir todo
o processo de construção de uma narrativa. A análise do autor permanece focalizada no discurso
da narrativa, na forma como a obra está estruturada, mas não desconsidera os demais níveis, em
termos de importância. Apenas afirma que a melhor forma de mediação é a obra estruturada e não
os outros significados do termo narrativa. À medida que se realiza uma aproximação com as
cibernarrativas pode-se perceber que as demais partes componentes do processo surgem com
mais intensidade justamente com a obra, que parece compartilhar melhor o seu lugar com as
outras instâncias de sentido. Afinal, a narração, nas cibernarrativas, é bastante evidente, uma vez
que a obra não aparece ainda contada para o leitor. Assim, cabe a este não participar mais
69
ativamente do momento de mimese III, mas vivenciá-lo quase que diretamente a partir de mimese
I.
O conteúdo narrado, em cibernarrativas, pelo fato de poder sempre sofrer acréscimos por
parte do leitor, mostra-se também em caráter sempre latente, sempre em estado de incômodo. A
história, para empregar um termo utilizado por Genette, pode constantemente receber novos
componentes, o que faz da cibernarrativa uma estrutura processual, inacabada, como condição de
existência, e que exige uma participação (imersão) do leitor em sua estrutura física.
As relações entre os três termos empregados por Gérard Genette permitem a visualização
de todo o processo de construção da narrativa. Além disso, o autor deriva também desse
relacionamento uma maneira de abordar o tempo na narrativa que é de grande auxílio para as
análises aqui presentes. Genette afirma que “a análise do discurso narrativo será, pois, para nós,
essencialmente o estudo das relações entre narrativa e história, entre narrativa e narração, e
(enquanto se inscrevem no discurso da narrativa) entre história e narração.” (GENETTE, 1970, p.
27).
Mesmo considerando o débito dessa proposta para com uma visão estruturalista, não se
pode deixar de lado o caráter processual também evidente quando da utilização dessas relações
para definir os problemas da narrativa, quais sejam: a questão do tempo, derivada da relação entre
tempo do discurso e tempo da história; a questão do aspecto, relacionada à forma como a história
é percebida pelo narrador; a questão do modo, ou o tipo de discurso utilizado pelo narrador. São
evidentes, nessa formulação, as imbricações entre obra, texto, autor e leitor. Deseja-se trabalhar
com tais categorias para discutir elementos associados à temporalidade e às camadas temporais
presentes em uma narrativa, num primeiro momento; num segundo momento, associar-se-á essas
camadas com formas de participação no processo de construção de uma narrativa (se são mais
próximas da escrita ou da leitura) e como essa relação indica as formas de imersão na narrativa.
As figuras presentes na narrativa como componentes são cinco: ordem, duração, freqüência,
modo e voz. A ordem expressa a dualidade temporal de uma narrativa, dividida em tempo da
coisa-contada e em tempo da narrativa, ou o tempo da ação prática e o tempo em que essa ação
surge configurada. Genette utiliza uma afirmação de Christian Metz para indicar uma das funções
da narrativa: “cambiar um tempo num outro tempo” (METZ apud GENETTE, 1970, p. 31). A
interpenetração entre essas duas temporalidades demonstra que a experiência do tempo, na
narrativa, é aquela da percepção do entrecruzamento de várias camadas temporais. No caso da
70
figura “ordem”, o jogo se entre o tempo contado e o tempo prático, o que permite diversas
variações de movimento dentro da própria narrativa.
“a sua temporalidade é, de alguma maneira, condicional e instrumental; produzida,
como todas as coisas, no tempo, existe no espaço e como espaço, e o tempo necessário
para a ‘consumir’ é aquele que é preciso para a percorrer ou atravessar, como uma
estrada ou um campo. O texto narrativo, como qualquer outro texto, não tem outra
temporalidade senão aquela que toma metonimicamente de empréstimo à sua própria
leitura”. (GENETTE, 1970, p. 32,33).
Ao se aceitar o argumento acima, é preciso tomar cuidado para não adotar a narrativa
espacializada em sua forma escrita como aquela que acesso à temporalidade pura presente na
narrativa. Afinal, como diz o próprio autor, uma relação metonímica entre a temporalidade do
texto na narrativa e a temporalidade da leitura.
A temporalidade da narrativa é uma temporalidade criada pelo confronto entre o tempo da e
o tempo da história. O estudo dessa temporalidade e a percepção dela são o resultado desse
confronto, o que significa dizer que tanto autor quanto leitor precisam se deslocar entre as duas
camadas temporais, a fim de compreender as relações entre elas. A temporalidade da narrativa é,
assim, uma intratemporalidade, mas também se refere a uma extratemporalidade: aquela do
tempo da ão prática. Se a imersão aqui acontece em uma narrativa configurada, no caso das
cibernarrativas, o leitor se diante de uma situação em que a relação de ordem encontra-se não
estabelecida, ou seja, uma situação em que o intratemporal deverá ser criado fisicamente pelo ato
de leitura. Assim, a imersão se fará na pré-figuração da obra, em contato bastante próximo com a
ordem prática dos acontecimentos. A ordem é criada pela imersão do leitor na obra, e não
somente no texto.
Tendo em mente a estrutura dual da temporalidade da narrativa, as diferenças ou
concordâncias entre as suas camadas temporais constituem a base da configuração da
temporalidade dessa narrativa (Genette, 1970). Num grau de concordância total entre a
temporalidade da narrativa e a temporalidade da história situa-se um tempo puro expresso pela
narrativa, o que parece mais um estado ideal ou improvável. Ou seja, se a concordância total
entre uma e outra temporalidade, a narrativa permitira acesso a um tempo puro. Se o tempo
narrado já é um tempo configurado de maneira específica, como afirmá-lo enquanto tempo puro?
As anacronias, como Genette denomina as diferenças entre os dois tempos mencionados, são
indicativas desses movimentos entre as camadas temporais e podem ser subdivididas em várias
71
estruturas menores. As manobras narrativas, próprias de uma análise da narrativa configurada,
parecem, em princípio, não servir como operadores para a discussão sobre a configuração das
cibernarrativas. Por outro lado, o jogo entre os elementos permite a Genette nomear alguns
elementos macro, com os quais se pode perceber que o movimento temporal presente nas
cibernarrativas é uma intensificação do que já acontece em outras formas narrativas.
Sobre a relação entre as anacronias, Genette afirma que uma anacronia se constitui sempre
em função da narrativa na qual se insere. Assim, quando em uma determinada narrativa uma
evocação de um fragmento anterior da história, uma analepse, essa anacronia será compreendida
como uma narrativa segunda, subordinada à narrativa principal. Os desdobramentos anacrônicos
podem ir em direção ao passado ou ao futuro, em relação ao presente da narrativa; quando uma
anacronia surge em uma narrativa primeira, ela faz aparecer outra camada temporal dentro da
primeira narrativa e sugere também que a composição espacial que aparece ao leitor é somente
uma ordenação específica da temporalidade da narrativa, e não a espacialização de todas as
camadas temporais que podem ser exploradas. À medida que Genette desenvolve sua
categorização, parece cada vez mais claro que há uma rede constituída pelos movimentos
temporais propostos pela configuração narrativa. Quando um autor escolhe um determinado
movimento, ele confere um sentido à narrativa, um modo de atravessar a narrativa a partir de uma
perspectiva temporal específica, ao contrário de sentido como o significado acabado de uma
história. Ou seja, o sentido da narrativa faz perceber como as camadas temporais estão ordenadas,
e essa mesma ordem é que produz o sentido.
A figura de ordem apresenta duas camadas temporais macro: o tempo da história e o tempo
da narrativa. Da inter-relação entre tais temporalidades surge uma tipologia para os movimentos
entre as duas camadas temporais. Essas, por sua, vez, são mais diretamente associadas à narrativa
configurada. Nesse sentido, a imersão do leitor encontra uma configuração temporal
estruturada, mesmo que essa se aproxime da ubiqüidade espacial ou de uma omnitemporalidade.
A ordem temporal comporta, na tipologia empregada por Gérard Genette, os seguintes elementos
principais: analepses e prolepses; externas, internas ou mistas, este último caso apenas para as
analepses. Mais que uma tipologia restritiva, a combinação desses recursos demonstra que, em
uma narrativa, sempre um retorno ao tempo, a partir da configuração espacial da obra. Se
fisicamente parece haver uma espacialização da temporalidade, a reversibilidade é, na verdade,
do espaço em direção ao tempo. Genette enxerga em “Em busca do tempo perdido” uma
72
ubiqüidade espacial, mas também uma omnitemporalidade, e trata os dois conceitos a partir das
redes de relações temporais ou espaciais que podem ser traçadas ao longo da obra de Proust.
Reforça-se, assim, a noção de uma imersão que se faz cada vez mais temporal sobre o caráter
físico das obras em suportes digitais. Não que o suporte digital inaugure ou seja condição para a
imersão temporal, mas talvez o contrário. A imersão temporal é que seria condição para se falar
de uma imersão na cibernarrativa. Se não houver uma possibilidade de imersão temporal, a
dinamicidade do caráter ciber encontra-se comprometida. Tratar-se-ia, nesse caso, de um tipo
distinto de imersão temporal, nem pior, nem melhor, mas atuando sobre outros elementos da
obra. É o que se pode perceber em “Pianographique”
5
, cuja proposta central é a de realizar uma
performance com o teclado e o mouse, que ativam sons e imagens armazenados em uma base de
dados. Aqui a leitura é também execução da obra que aparecerá fisicamente diante do leitor, uma
vez que o acesso imediato deste à obra é feito através dos dados ainda não organizados
completamente em uma configuração narrativa.
A segunda figura utilizada por Genette é a duração, cuja medida não pode ser tomada, nas
palavras do autor, a partir de uma confrontação entre o tempo da história que se conta e o tempo
da narrativa. A duração varia de acordo com o tempo da leitura e também de acordo com os
efeitos de variação temporal presentes na própria obra. Se não é possível definir a medida da
duração de uma narrativa, ao menos fica claro o seu caráter relacional, derivado do contato do
leitor com a obra. Uma narrativa sugere um ritmo de contato com o leitor, um ritmo de “entrada”
e também de “permanência” na história, seja através de analepses, prolepses, elipses, variações na
pontuação etc. Genette sugere trabalhar com quatro movimentos fundamentais da estrutura
narrativa, relativos ao confronto entre tempo da narrativa e tempo da história, ainda que esse
confronto não defina a medida de duração de uma história: a elipse, a pausa descritiva, a cena e o
sumário. Cada movimento pode ser descrito pela comparação aos tempos aludidos, referindo-
se ora a um tempo narrativo maior que o tempo da história, ora a uma suposta igualdade entre os
dois tempos, ora a um tempo da história maior que o tempo da narrativa. Se em uma narrativa em
suportes menos maleáveis, do ponto de vista físico da obra, os movimentos são disponibilizados
ao leitor em estado de mimese II, no caso das cibernarrativas o leitor pode alterar os
movimentos e cruzar as fronteiras entre eles de maneira física. No capítulo sobre imersão e
cibernarrativas, esses movimentos de alteração física serão descritos com mais detalhes. Nesse
5
Disponível em
http://www.pianographique.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.
73
ponto do trabalho cabe, de modo resumido, discutir os quatro movimentos temporais relativos à
duração da narrativa, mesmo que sob o risco de não se encontrar algo paralelo nas
cibernarrativas.
O sumário corresponde a uma relação em que o tempo da narrativa é menor que o tempo da
história, ou seja, a um tipo de efeito de duração em que a história aparece “acelerada” pela
narrativa. Geralmente os sumários podem encobrir acontecimentos de menor importância para o
andamento da narrativa e que, por essa razão, podem ganhar um rápido resumo, a título de
ligação entre segmentos narrativos, por exemplo.
As pausas descritivas surgem quando o tempo da narrativa é superior ao tempo da história,
em termos de duração. A pausa descritiva corresponde a um momento da narrativa em que o
tempo da história seria praticamente anulado, em função de uma descrição narrativa que paralisa
a história em um determinado momento sem, no entanto, elidi-lo, como no caso das elipses.
Segundo Genette, a pausa descritiva não deve ser confundida com interrupções do autor, a tulo
de explicação de um determinado ponto da história. Trata-se de um recurso narrativo interpolado
no universo espaço-temporal da história, a exigir do leitor uma imersão mais demorada num
determinado ponto da narrativa.
A elipse compreende tanto a ausência da narrativa sumária quanto da pausa descritiva, no
momento em que há um salto temporal que permanece elidido. Pode ser dividida em elipse
explícita ou implícita, quando há ou não referência ao tempo da história que foi elidido.
Por último, a cena é o movimento em que o tempo da narrativa corresponde ao tempo da
história, mesmo que não diretamente. O caráter indireto dessa correlação diz respeito ao próprio
fato de que o acesso à cena é feito sempre de uma perspectiva específica, do narrador, do
personagem, do personagem-narrador, e nem sempre é possível descrever todos os momentos de
uma cena simultaneamente. Ora, a narrativa é uma configuração específica do tempo de uma
cena, que é sempre múltiplo e inter-relacionado. A descrição detalhada de uma cena configura
uma espacialização de um ponto da história, mas evoca sempre a temporalidade que funda esse
caráter espacial. Daí as alterações de ritmo e de duração, presentes nas cenas, alterando o seu
caráter espacial e convocando o leitor a uma imersão no tempo da narrativa. No caso das
cibernarrativas, parece-nos que a imersão cria o tempo da narrativa e essa prerrogativa também
está disponível para o leitor, no sentido de modificação física da obra. Esse é o caso, por
74
exemplo, da obra “circ_lular”
6
, na qual o leitor estrutura fisicamente o tempo da narrativa ao
combinar conjuntos sonoros, visuais, textuais, dispostos em uma base de dados, e cuja
combinação será realizada a partir da simulação de uma mesa de edição não-linear em rede.
várias imagens, textos, fotos, vídeos, exertos sonoros e o leitor deve colocá-las em uma área de
edição, para criar uma narrativa específica. Trata-se, aqui, não somente de entrar em contato com
uma duração específica do tempo da história e do tempo contado, mas sim de criar tanto o tempo
da história quanto o tempo contado.
Os quatro movimentos, da maneira como foram tratados, dizem respeito a configurações
narrativas com as quais o leitor se confronta quando da relação entre mimese II e mimese III.
Resta perguntar o efeito que tais movimentos provocam ou podem provocar quando ainda não
configurados numa narrativa. Uma das possibilidades presentes na cibernarrativa sugere que o
código disponível para o leitor não é somente o código de programação, mas também as regras de
configuração da narrativa. Produzir uma obra cibernarrativa seria, então, permitir ao leitor não
somente a imersão em mimese II, mas a construção física de mimese II, através da
disponibilização, por exemplo, do conjunto de relações que compõem a duração. Se o efeito
estético, em um meio menos maleável, é derivado do embate entre o pólo do texto e o pólo do
leitor, nas cibernarrativas ele poderia ser derivado também do embate entre os vários pólos de
leitores, derivado dos diversos processos de leitura, agora disponíveis fisicamente. Assim, abrir
as categorias de duração para o leitor alterá-las significa configurar um outro tipo de estrutura
narrativa, capaz de fazer o leitor imergir no e com o seu código de existência, com e no seu
código temporal. Nesse sentido, os movimentos de duração seriam referentes aos movimentos do
leitor quando se depara com uma obra em estado de mimese I. A cena corresponderia ao
movimento do leitor de elaboração ou configuração da narrativa; a elipse seria equivalente àquilo
que se descarta da configuração, podendo ser indicado através de links ou não; a pausa descritiva
poderia corresponder ao que se denomina a obra configurada, pois “explica” o processo que o
leitor está vivenciando, apresentando-o de modo espacializado; e o sumário corresponderia aos
procedimentos adotados para se chegar à obra. Ainda que as correlações demandem uma
discussão com mais vagar, o objetivo aqui é indicar que aquilo que em Genette se refere à
configuração da narrativa e, portanto, da obra acabada fisicamente, aqui será considerado como
referente também ao processo de leitura, mas como um ato físico de construção da obra. Não se
6
Disponível em
http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.
75
deseja encerrar o caráter processual da cibernarrativa em uma estrutura que defina todos os
passos para sua elaboração, mas discutir como esses elementos compõem alguns dos movimentos
possíveis do leitor.
A temporalidade narrativa se faz, também, a partir da categoria de freqüência (Genette,
1970). Essa figura diz respeito à repetição ou iteração que acompanham: o número de vezes que
um acontecimento se repete na narrativa, ou o número de vezes que um acontecimento é
enunciado na narrativa. Das relações entre o tempo do acontecimento e o tempo narrado se pode
falar de quatro tipos de freqüência: contar uma vez o que aconteceu uma vez; contar n vezes o
que aconteceu n vezes; contar n vezes o que aconteceu uma vez ou contar uma vez o que se
passou n vezes. Em relação aos dois últimos tipos, Genette os denomina, respectivamente,
narrativa repetitiva e narrativa iterativa. É sobre esses dois aspectos das narrativas que Alckmar
Luiz dos Santos também se debruça para analisar o texto eletrônico. Nos exemplos operados por
Genette, a narrativa repetitiva e a narrativa iterativa funcionam como aspectos da disposição das
camadas temporais em relação à sua aparição e permanência no texto. A freqüência pode marcar
a importância de um determinado episódio dentro da narrativa configurada. Várias obras em
formato eletrônico hipertextual dispõem da freqüência para também propor ao leitor uma
determinada forma de perceber os episódios dentro da narrativa que apresentam. Assim, em
“Grammatron”
7
, de Mark América, para citar um exemplo sobejamente conhecido, não a
freqüência é de um acontecimento contado uma única vez como o tempo desse enunciado não é
controlado pelo leitor e, muitas vezes, um desses enunciados não se permite ler, tal a sua rapidez.
Quando é esse o caso, é preciso começar novamente a leitura de toda a obra, até que o ritmo de
leitura se equipare à velocidade das mudanças de telas, pois o leitor chegou ao ponto em que
havia “perdido” o enunciado. Acontece, dessa maneira, uma narrativa singulativa que se repete n
vezes em função da própria história se repetir n vezes. Entretanto, é possível pensar que a cada
entrada na obra, o leitor “inicia” sua leitura atenta de um novo ponto. A freqüência com que a
narrativa se repete para que se possa lê-la parece, progressivamente, apagar o que foi lido e surge
repetidamente na tela. A obra, assim, se reduz a cada tela, em função da velocidade com que se
atravessa a história.
Contrariamente ao estilo de “Grammatron”, obras cibernarrativas parecem deslocar a
freqüência do âmbito do que se apresenta na tela somente, para o modo como o leitor fará a
7
Disponível em
http://www.grammatron.com/. Acesso em 04 de junho de 2007.
76
narrativa surgir na tela. É o caso novamente de circ_lular
8
, citada aqui, pois nessa obra é o
leitor que deve criar a conjunção entre os elementos da base de dados. Os aspectos da obra se
tornam os aspectos do processo de imersão na construção física da própria obra. A freqüência,
nesses casos, relaciona-se com os modos como o leitor constrói a obra. Além disso, ela permite
ao autor marcar perspectivas temporais capazes de ordenar a configuração narrativa em torno de
si, dependendo da maneira como aparecem na obra. Um acontecimento contado várias vezes
pode demarcar, quando combinado com pequenas variações na forma ou no conteúdo, a
temporalidade múltipla que reside por trás de uma determinada cena, como que a sugerir a
impossibilidade de captar no enunciado o tempo da história. Quando esse tipo de narrativa,
repetitiva, é utilizada no hipertexto, pode originar ligações randômicas entre partes da narrativa.
Assim, um mesmo processo, por parte do leitor, multiplica-se em nuances diferentes, até que o
efeito repetitivo não possa mais ser constatado, devido à enorme variação de efeito.
A categoria de modo narrativo associa-se muito intimamente à idéia de perspectiva adotada
em relação à narrativa. De acordo com o modo como o autor configura a narrativa, franqueia o
acesso do leitor a camadas temporais específicas da obra, podendo mesmo multiplicar esse acesso
com a variação dos modos. Segundo Genette, “com efeito, pode-se contar mais ou menos aquilo
que se conta e contá-lo segundo um ou outro ponto de vista; e é precisamente tal capacidade, e as
modalidades do seu exercício, que visa a nossa categoria do modo narrativo.” (GENETTE, 1970,
p. 160)
O modo funciona como um regulador da informação narrativa, ora permitindo ao leitor
situar-se mais ou menos próximo do fato narrado e com maior ou menor grau de conhecimento
sobre o que se conta. A essas duas variações Genette o nome de distância e perspectiva. É
possível, de acordo com o modo, situar o leitor no centro da narrativa, mas privá-lo da capacidade
de perspectiva sobre a história. Inversamente, pode-se fornecer ao leitor todas as perspectivas
sobre a história, mas impedir-lhe o acesso distanciando-o do acontecido ou do que está
acontecendo. Nos dois casos, estão em jogo as camadas temporais e o acesso a essas camadas,
bem como o trânsito que elas permitem dentro da narrativa.
No tocante à distância, Genette opõe dois tipos de narrativas: a narrativa de acontecimentos
e a narrativa de falas, sendo a primeira uma narrativa mais mediada e mais distante, e a segunda
uma narrativa mais direta, porque é “contada” por quem a vive no momento em que ela acontece.
8
Disponível em
http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.
77
A narrativa de acontecimentos é decomposta em quantidade de informação narrativa e
ausência ou presença do narrador. Da relação entre esses dois conceitos Genette sugere
caracterizar a mimese e a diegese. A primeira seria composta por um máximo de informação e um
mínimo de presença do narrador; a segunda pela relação inversa. Pode-se pensar, dessa maneira,
em como se a imersão a partir do modo como a narrativa se configura, ou melhor, como
aparece configurada, de acordo com a velocidade da narrativa ou o grau de presença da instância
narrativa, o que Genette denomina de um fato de voz. Um acontecimento descrito
pormenorizadamente diminuiria a velocidade da narrativa, evocando a presença de um narrador
muito próximo do fato, considerando-se a oposição entre mimese e diegese como norma, e tal
descrição configuraria a diegese. A imersão aqui se aproxima de uma entrada do leitor no texto
pela via da mediação intensa, em que o cenário parece muito mais pronto antes da entrada do
leitor na obra. No caso inverso, em que o acontecimento é narrado como se estivesse sendo
vivido, aumentaria a velocidade da narrativa, à medida que se diminui a presença da instância
narrativa, e a sensação é a de uma imersão marcadamente mais instável, em que a camada
temporal ocupada pelo leitor não surge toda descrita, mas como linha de força a atravessar o
espaço da narrativa, composto por diversas outras camadas temporais. A imersão é, nesse caso,
um componente mais forte da configuração narrativa e não somente uma constatação de um
acontecimento.
A narrativa de falas permite, segundo Genette, três tipos de discurso: o discurso
narrativizado ou contado, que se assemelha muito à narrativa de acontecimentos, mas que é feito
a partir da assunção do ponto de vista de um personagem; o discurso transposto, em que uma
aproximação maior com o fato no seu acontecimento, e o discurso em que o narrador “finge ceder
literalmente a palavra à sua personagem”.(GENETTE, 1970, p. 170). Os três tipos aludidos são,
ainda, categorias relacionadas à distância narrativa e indicam também de que maneira o leitor
será situado na narrativa. Em cada discurso propõe-se a leitura de toda uma obra a partir de uma
camada temporal específica, desde uma visão mais panorâmica do entrelaçamento das diversas
camadas até a completa imersão em uma camada, como no caso do discurso baseado
diretamente num diálogo, ou em que as marcas do narrador somem. Nesse último caso, as
conexões entre as rias camadas temporais não surgem de imediato, pois o leitor acompanha a
história pelos olhos de um personagem, com a sua visão. O jogo entre os vários discursos
78
dinamiza a narrativa, pois mistura as distâncias relativas às camadas temporais e impede uma
estabilidade do leitor frente à narrativa.
A categoria de modo é analisada também a partir da perspectiva adotada para se contar a
história. Genette distingue três perspectivas possíveis em uma narrativa, segundo o modo como a
história é focalizada: a narrativa de focalização zero, em que o narrador sabe mais que a
personagem ou diz mais que qualquer personagem sabe; a narrativa de focalização interna,
podendo ser fixa ou variável, de acordo com o mero de personagens que contam a história; e a
narrativa de focalização externa, em que o narrador diz menos do que sabe à personagem. Cada
forma de focalização pode ser combinada com as outras dentro de uma mesma obra e cada um
desses tipos pode engendrar narrativas muito diferenciadas, o que parece óbvio.
A última das figuras discutidas por Genette, a da voz, é relacionada à instância narrativa, ou
seja, ao sujeito que conta a história e a todos os que participam da atividade narrativa. A voz
aproxima-se não necessariamente da escrita, mas do modo como se configura uma narrativa,
dependente do tempo da narração, do nível narrativo e da pessoa que conta.
As figuras associadas ao discurso da narrativa marcam a imersão em narrativas
configuradas, às quais o leitor tem acesso como dadas fisicamente. Ainda que a análise de
Genette se relacione a essas estruturas, a tentativa empreendida aqui é a de associar as figuras da
narrativa ao processo de construção de uma obra cibernarrativa. Como dito no início dessa
digressão sobre a obra de Genette, o que se percebe nas obras ficcionais contemporâneas é uma
abertura da narrativa cada vez mais ampla, de modo a complexificar as relações entre as camadas
temporais e sugerir um não-encerramento da narrativa em si mesma, mas uma incompletude
incessante. Cabe ao leitor não somente se confrontar com essa incompletude e, ainda, não
simplesmente completá-la, mas compreender que as obras apresentam-se como fluxo, sempre, e
no caso das cibernarrativas, em nível físico de modificação também. O contraponto fornecido por
Genette pode fornecer indicativos importantes para se pensar em que medida as cibernarrativas
apresentam um caráter de fluxo.
Paul Ricoeur (1994), ao enunciar uma gica da narrativa, busca um caminho em direção a
uma abordagem mais flexível e menos intemporal que aquela relacionada a uma pura logicização
da narrativa, ao que parece. Ao procurar associar as análises estruturalistas da narrativa com uma
lógica da ação, em que o movimento em uma camada temporal não pode ser desconsiderado,
Ricoeur parece afirmar o mesmo que Espen Aarseth (1997) quando trata do cibertexto. A escolha
79
de uma lógica de encadeamento entre perspectivas temporais, assumidas por diferentes
personagens, é também a não-escolha de outras configurações possíveis. E é justamente desse
embate que deriva o efeito estético conforme preconizado por Iser (1996); em função da escolha
de um tema perspectivado por um horizonte. Dessa forma, a lógica de uma narrativa se fundaria
em uma tensão entre o espaço configurado dessa narrativa e as diversas camadas temporais que a
sustentam. Como é possível transitar nessas camadas temporais? No caso das cibernarrativas, a
defesa dessa tese é que esse trânsito chega ao nível do componente físico da obra, pelo leitor, o
que Pedro Barbosa chama de texto-ovo ou texto-semente (Barbosa, 1996). Mas as cibernarrativas
parecem ser o desdobramento mais intenso de jogos com o tempo em outros níveis.
Além das camadas temporais internas da narrativa, Paul Ricoeur (1994) procura demonstrar
que a análise do sistema de tempos da narrativa comporta uma discussão outra, qual seja,
“A necessidade de separar o sistema dos tempos do verbo da experiência viva do tempo
e a impossibilidade de separá-los completamente me parecem ilustrar
maravilhosamente o estatuto das configurações narrativas, ao mesmo tempo autônomas
com relação à experiência cotidiana e mediadoras entre o antes e o depois da
narrativa.” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 111).
Assim, é possível afirmar que a experiência de uma narrativa, ao propor uma configuração
temporal específica para o leitor, sugere também uma nova percepção com relação à experiência
cotidiana do tempo. Ou seja, não uma separação completa entre o tempo da ficção e o tempo
da história. Não subordinação de um tempo pelo outro, mas possibilidades de relacionamento
entre o tempo narrado e o tempo vivenciado, que parece ser a tese de Ricoeur quando trata das
relações entre mimese I e mimese II. O tempo narrado não cria a” estrutura sobre o tempo da
ação prática, mas sugere uma linha temporal, um vetor de leitura, um sentido de leitura e entrada
na obra. A imersão surge, então, como condição para a configuração da narrativa e também para
sua reconfiguração, no caso das narrativas literárias.
A narrativa, ao sugerir uma atitude de deslocamento do leitor, em função da forma como
apresenta uma temporalidade configurada, propõe a esse leitor a entrada em um tempo construído
pela narrativa. O que parece diferente, em termos epistemológicos, nas cibernarrativas, é que a
entrada do leitor na obra é uma entrada no estado pré-figurado dessa obra. Tal conclusão não
deve, entretanto, levar à assertiva de que as cibernarrativas conferem acesso ao tempo em seu
estado puro. Afinal, para que o tempo possa ser “experienciado” é preciso que ele passe e, na
80
narrativa, isso começa a acontecer quando o tempo surge configurado em uma perspectiva
temporal dentre as várias possíveis. A análise empreendida por Ricoeur (1994) ressalta a sua não-
concordância com a possibilidade de se considerar os tempos verbais completamente dissociados
do tempo vivido, do tempo cotidiano. O que se pretende nessa parte do texto é apenas elencar
algumas das possíveis camadas temporais que se apresentam e que constituem uma narrativa
configurada, a mimese II.
De que maneira a narrativa configurante permite perceber suas camadas temporais, que a
constituem e são por ela constituídas como percepção da temporalidade? Há, segundo Paul
Ricoeur, uma primeira forma, baseada na distinção entre contar e comentar, ou debater.
Pode-se pensar aqui em duas camadas temporais iniciais: o mundo comentado é mais
próximo da ação, exibe um caráter de tensão mais acentuado na narrativa; o mundo contado se
liberta da tensão da ação e permite um distanciamento temporal do movimento. As diferenças de
perspectiva temporal permitem movimentos também distintos com e em relação ao tempo da
narrativa. Ao dividir a narrativa entre comentário e mundo contado, propõe-se ao leitor um
deslocamento entre camadas temporais e uma constante reflexividade sobre a obra que e sobre
o modo como tal obra cria e apresenta a sua própria temporalidade. Uma segunda forma através
da qual as camadas temporais de uma obra podem ser percebidas diz respeito às diferenças entre
o tempo do ato e o tempo do texto. Segundo Weinrich, citado por Ricoeur (1994), a diferença
entre o tempo do ato e o tempo do texto marca a perspectiva temporal assumida pelo narrador em
relação ao que ele conta. Assim esse narrador pode se antecipar ao que será contado, pode contar
retrospectivamente ou pode ocupar o local da ão que está sendo contada. Há, novamente, em
jogo, camadas temporais distintas, componentes da narrativa configurada.
Uma terceira forma de trabalho com as camadas temporais baseia-se na idéia de deslocar
para o centro da narrativa, ou melhor, para o primeiro plano, um determinado evento, enquanto
outros eventos compõem o plano de fundo para esse evento principal. Dessa forma, aqueles
processos em primeiro plano ocupam a primazia, para o leitor, em relação à temporalidade da
narrativa.
Ricoeur (1994) defende a impossibilidade de dissociar uma fenomenologia do tempo e a
noção de tempo narrado, com base somente na relação entre as três mimeses. Para o autor, “a
ficção não apenas conserva o vestígio do mundo prático, do fundo do qual ela se destaca, mas
reorienta o olhar para os traços da experiência que ‘inventa’, isto é, ao mesmo tempo descobre e
81
cria.” (RICOEUR, 1994, vol. II, p. 130). Mesmo com essa ressalva, a análise proposta por
Ricoeur permite discutir algumas camadas temporais e suas relações, quando se trata de
estruturar a narrativa em seu estado de mimese II. O propósito aqui é discriminar tais camadas e
retomar essa discriminação quando se abordar o tipo de configuração próprio das cibernarrativas.
Em relação às camadas temporais, a análise empreendida por Paul Ricoeur distingue, além
das camadas internas à mimese II, aquelas relativas ao tempo do contar e ao tempo contado. Se
contar é tornar presente algo que não era ainda uma narrativa, o contar pode ser compreendido
como configurar um tempo próprio que não é exatamente igual ao tempo daquilo que ainda não
foi contado. Se o contar é, ainda, um processo de vida, é esse mesmo contar que configura uma
temporalidade para os fatos contados. Entretanto, o tempo do contar relaciona-se ao conjunto
físico da obra, que exige um tempo para ser percorrida. Esse tempo não é equivalente ao tempo
contado, que trata da experiência de embate com a narrativa configurada. No caso das
cibernarrativas, parece haver uma aproximação entre o tempo do contar e o tempo contado. Ou
seja, ainda que não se possa falar exatamente de coincidência entre as duas camadas, é possível
dizer que o tempo contado depende, mais intensamente, de como o leitor irá configurar a
narrativa, o que significa estar a um passo adiante da reconfiguração da narrativa. Tome-se o
exemplo de circ_lular
9
e a visualização dessa afirmação se faz mais clara. Como a parte principal
da obra diz respeito ao uso de um simulador de uma ilha de edição não-linear para criar uma
narrativa, o tempo do contar é de responsabilidade do leitor, bem como o tempo contado. A
“autora” da obra não estrutura completamente o tempo contado, uma vez que os elementos estão
ainda não organizados. Se a percepção do tempo contado trata do embate com a narrativa
configurada, ou seja da reconfiguração da narrativa, no caso da obra em questão o embate se faz
no momento de configuração da narrativa. Significa dizer que, aqui, o leitor aproxima-se mais da
mimese I, porque ocupa o lugar daquele que irá contar a narrativa.
Ricoeur analisa a relação da estrutura narrativa com outros dois elementos, próximos do
discurso da narrativa: o ponto de vista e a voz narrativa. O ponto de vista compreenderia a
“orientação do olhar do narrador em direção a seus personagens e dos personagens entre si.”
(RICOEUR, 1994, vol. II, p. 154). Ao apresentar ao leitor diferentes momentos e locais a ocupar
na narrativa, o ponto de vista do narrador se configura como uma camada temporal com que o
autor sugere os jogos com os tempos presentes na narrativa. O ponto de vista do narrador pode
9
Disponível em
http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.
82
ser similar à voz narrativa, identificada por Ricoeur como pertencente ao discurso dos
personagens; pode, ainda identificar uma percepção “externa” sobre a história contada, ou mesmo
sobre o estado psicológico dos personagens. Qualquer que seja a perspectiva indicada pelo ponto
de vista, ela apresenta uma perspectiva para o leitor e se configura em torno de uma coerência
espaço-temporal em relação à narrativa. O narrador, ao ocupar uma determinada camada
temporal da narrativa e fazer o leitor acompanhá-lo nesse movimento, deve manter a coerência
desse ponto de vista, sob pena de embaralhar de tal maneira as múltiplas camadas temporais a
ponto de o leitor não conseguir, minimamente, perceber em que camada está em cada momento
da leitura. O que pode funcionar como recurso de composição pode também impedir o leitor de
reconhecer seus próprios movimentos na narrativa. Pelo caráter de narrativa não-configurada de
uma cibernarrativa, esse desafio é ainda mais intenso nela, pois o leitor não tem camadas
temporais configuradas à disposição para leitura. Não se trata, assim, apenas de se movimentar
numa configuração, mas de construir as relações entre as camadas temporais que irão tornar
perceptível uma determinada configuração narrativa.
A voz narrativa difere do ponto de vista na medida em que apresenta o mundo do texto ao
leitor e não é apenas um convite ao olhar, um direcionamento do olhar do leitor. Mais que buscar
uma diferença cabal entre ponto de vista e voz narrativa, o que se pretende com a referência a
esses dois elementos é ampliar a discussão sobre os vários entrecruzamentos temporais relativos
aos papéis de autor e leitor na experiência narrativa ficcional. São essas várias maneiras de
ocupar camadas temporais nas narrativas um dos motivos, também, para se relacionar escrita e
leitura no capítulo inicial dessa tese. A questão não é investigar o estatuto de uma ou outra forma
de produção de sentido, mas indagar as relações estabelecidas entre escrita e leitura em virtude do
processo de comunicação que estabelecem entre si.
A experiência do e com o tempo ficcional é também uma experiência relacional,
considerada a visão de Paul Ricoeur sobre o caráter de transcendência imanente da narrativa
ficcional.
“Uma obra pode estar, ao mesmo tempo fechada, sobre si mesma quanto à sua
estrutura e aberta para o mundo à maneira de uma ‘janela’, que recorta a perspectiva
fugidia de uma paisagem oferecida. Essa abertura consiste na pro-posição de um mundo
suscetível de ser habitado.(RICOEUR, 1994, vol. II., p. 182).
83
A experiência temporal na narrativa literária é a experiência de construção do tempo da
narrativa, que pode acontecer no contato entre mimese II e mimese III. Em cibernarrativas, o
contato também pode ser iniciado em mimese I, pois o leitor terá acesso a um tempo ainda não-
contado. Esse estado é que será investigado na discussão sobre as obras cibertextuais e a
produção colaborativa com o cibertexto. “O corpo, que não é coisa nem idéia, mas espacialidade
e motricidade, recinto ou residência e potência exploratória, não é da ordem do ‘eu penso’, mas
do ‘eu posso’”.(CHAUÍ, 2002, p. 68).
Espaço e tempo podem ser compreendidos como elementos entrelaçados, sujeitos à
constante vibração. Trata-se, então, de discutir a visibilidade do tempo e do espaço a partir de
como se manifestam na experiência e como constituem a experiência em que se manifestam;
como, por exemplo, na escrita, na produção de uma obra literária em meio digital, na produção de
imagens em vídeo etc. Os dois termos não existem em si como idéia ou coisa, mas de forma
conjunta, sustentados um pelo outro, assim como o visível é sustentado pelo invisível, que é o
fundo sobre o qual acontece a visibilidade. Espaço e tempo surgem na experiência da qual são
também condições fundadoras.
O espaço acontece na relação entre o corpo e o mundo, entre a obra e aquele que a
experimenta. E o mais importante aqui é a relação, o entre, e não um dos dois los, uma vez
existem somente no contato e pelo contato. Nesse sentido, o espaço pode ser entendido como o
que se manifesta no momento em que uma experiência. De maneira mais específica, não
interessa aqui discutir o espaço físico, mas a percepção deste espaço em manifestações artísticas,
principalmente naquelas relacionadas ao cibertexto. Perceber o espaço de uma obra, ou o espaço
em uma obra exige, em primeiro lugar, perceber que a obra é o espaço que a cria. Essa relação
implica uma postura diante do fenômeno, postura essa que, ao ser alterada, altera também o
espaço percebido. A modificação a que se alude aqui possui forte relação com o tempo e com o
momento em que se adota uma posição.
Buscar uma entrada em uma obra é buscar uma relação com o fenômeno, fato este que se
a partir de um movimento. Esse movimento acontece fundamentalmente no tempo, mas o
pode ser decomposto como a soma de todos os movimentos ou posições adotadas diante de um
fenômeno. Cada posição indica uma relação, a ocupação de um lugar entre o olhar e o fenômeno
observado que não é congelado eternamente no espaço ocupado, que permite esse olhar. O
espaço, para ser percebido e para conceder a percepção, precisa ser tomado por um olhar, um
84
gesto, uma ação. Essa ação não permanece a mesma depois que o espaço é ocupado e recebe um
outro movimento. Assim, cada movimento entre uma obra e aquele que a percebe se em
função de um espaço ocupado num determinado instante. A sucessão desses movimentos não
constitui todo o fenômeno porque o espaço é percebido ao ser ocupado, ele não retém a
relação ali acontecida. O espaço é, então, o emaranhado de relações temporais realizadas na
percepção de um fenômeno.
O espaço seria sempre atravessado pelo tempo de maneira transversal, quando se considera
a relação entre diacronia e sincronia. O tempo como simultaneidade aparece na fala falante que,
ao mesmo tempo, implica a retomada de uma fala falada, um atravessamento em perspectiva
diacrônica. O espaço é, numa relação de simultaneidade, trespassado pelo tempo, para que essa
mesma relação possa existir. A relação que acontece na percepção de uma obra coloca em
movimento tanto o simultâneo quanto o sucessivo, de forma indissociável, porém distinta. O
simultâneo não significa, assim, o esgotamento da vibração temporal num suposto espaço que
retém todas as relações. Antes, ele é a velocidade infinita, a não rigidez e a não cristalização;
exige, ao mesmo tempo, uma imersão em si mesmo para que seja percebido. O movimento de
imersão é sempre transversal, considerando-o como uma retomada de relações temporais distintas
não em sua totalidade, mas nos pontos que o movimento faz vibrar. No momento em que se
experimenta um fenômeno, ou melhor, uma obra, o que se faz é colocar em contato sentidos
cristalizados no tempo, em alguma relação temporal, em direção a um movimento de
reorganização dessa fala falada. É a ação da fala falante que atravessa, como o tempo, os espaços
que a constituem, para sugerir uma outra relação.
O tempo e as relações que acontecem entre as várias camadas temporais que surgem e
constituem um fenômeno fazem vibrar o espaço, o que o transforma a cada momento ou a cada
movimento imersivo. O espaço seria percebido, dessa forma, como uma vibração decorrente do
contato entre camadas temporais, vibração sempre transitória, lugar instável, abertura, poro,
visível e invisível. Interessa, na perspectiva aqui adotada, compreender as manifestações e
relações entre espaço e tempo, mais que buscar uma ou a experiência em que se possa apreender
o tempo ou o espaço diretamente.
Se o espaço é co-operativo com o tempo ou momento em que o olhar “toca” em algo a ser
visto, em alguma medida esse olhar está imerso na carne” do mundo. Entretanto, tal fato não
significa uma imersão total, uma vez que, então, haveria um espaço do qual o olhar pode se
85
desligar, ou mesmo o olhar poderia ser desligado desse espaço. Antes, é uma perspectiva de
imersão no espaço, passível de transformação à medida que aquilo que se olha também modifica
a experiência do olhar. Podem-se construir espaços diferentes entre o olhar e o que se olha,
considerando modos de mediação distintos e posições distintas ocupadas em relação ao visível.
Se o visível não é idêntico a si mesmo, conforme Merleau-Ponty (2003) sugere, e uma vez
que o olhar, ao desvelar esse visível, também já o envolve, a experiência da visibilidade é sempre
uma percepção daquilo que acontece no contato entre as coisas e o olhar. No cruzamento entre o
que se e aquele que olha para essa visão, um “espaço” visível. Entretanto, não se trata aqui
de um lugar como espaço ocupado por um corpo (Lalande, 1999), mas de uma relação em que a
visibilidade do espaço acontece no momento do cruzamento entre o visível e o vidente. Nesse
sentido já é possível tratar o espaço como co-ordenado com o tempo, uma vez que a percepção de
um “objeto” seria também a percepção do olhar que desvela e cobre esse “objeto”.
Os modos de mediação utilizados para perceber o espaço modificam a própria visualização
deste, tornando tal contato uma forma indireta de percepção. Indireta porque o encontro com esse
espaço seria sempre o encontro com as diferenças entre as partes que compõem o espaço e este
escaparia entre um e outro movimento do olhar em direção a si mesmo. A perspectiva sugerida
pela análise da relação da experiência da visibilidade parece apontar na direção dos processos
envolvidos nessa relação, e não simplesmente na direção de quem ou daquilo que se vê,
tomados de forma isolada. Se é a experiência que permite e constrói a percepção do espaço e do
tempo, de que experiência se trata aquela relativa à cibernarrativa? Em linhas gerais, a
experiência relativa à cibernarrativa é, principalmente, uma experiência processual, em que
importa muito mais investigar a obra como uma estrutura aberta, ou se preferir-se, o texto
enquanto processo de significação, nunca permanente e acabado. É sob essa perspectiva que o
capítulo seguinte posiciona a discussão sobre hipertexto, cibertexto e cibernarrativa.
86
4 DO HIPERTEXTO AO CIBERTEXTO: UMA PROPOSTA PARA A
CIBERNARRATIVA
4.1 O texto como produtividade
A escrita em meio digital é marcada, atualmente, por uma multiplicidade de termos que
procuram dar conta de características presentes em cada tipo de obra e, a partir daí, se definirem:
hipertexto, hipermídia, games, obras colaborativas, cibertextos etc. A escolha desses termos e a
sua utilização nem sempre consensual entre vários autores torna mais claro o porquê de se pensar
o termo cibertexto como uma proposta para a cibernarrativa e o porquê dessa aproximação. Chris
Joseph
10
(2005) procurou traçar um estado da arte sobre o que seria a escrita digital e é bastante
sintomática a primeira observação do seu texto, quando afirma ser praticamente impossível
sumarizar o campo da escrita digital e todas as terminologias. Não se pretende, aqui, utilizar tal
argumento para escapar à discussão, mas atentar para o fato de que a escrita em meio digital
apresenta um caráter de fluxo constante, como bem o diz Sarah Boland, citada pelo mesmo Chris
Joseph. Ou seja, os conceitos ou tipologias apontam para uma tentativa de dizer o que são as
obras, quando talvez a principal característica de cada uma delas seja o seu desdobramento em
obra-processo. O caráter de obra-processo não é, de forma alguma, inaugurado pela literatura em
meio eletrônico, no entanto. Entre os vários comentários sobre o que é a escrita digital, presentes
no texto de Chris Joseph, não parece haver uma percepção clara sobre a questão da obra-processo
e a sua relação com a escrita em meio digital. Talvez o primeiro conceito relacionado a esse tipo
de escrita seja o conceito de hipertexto, ainda que tal termo tenha sido utilizado por Gérard
Genette (1982) para descrever um texto segundo derivado de um primeiro, um texto para o qual o
leitor é remetido em função de conexões com o texto primeiro que está lendo. E a remissão aqui
não é aquela das notas de rodapé, que seriam paratextos, na terminologia de Genette. O texto
segundo é um texto que aparece na leitura de um texto primeiro, à maneira de um intertexto. E
Genette não estava tratando, nesse caso, de escrita em meio digital, mas de elementos que
compõem um texto escrito.
10
Disponível em
http://tracearchive.ntu.ac.uk/process/index.cfm?article=131. Acessado em 27/03/2007.
87
Em várias compilações sobre obras em meio digital fica patente que a escolha de um
conceito não é consensual e os próprios projetos indicam o desafio e a aparente falta de sentido
em delimitar uma categoria para as obras. Assim, não parece prudente aqui tomar o mesmo rumo,
ainda que o caminho a ser adotado se cruze com as discussões atuais. Considerando a discussão
empreendida sobre escrita e leitura, a partir da teoria do efeito estético, deseja-se adotar uma
visada transversal sobre o tópico, de modo a procurar em que medida a o definição consensual
aponta para uma relação mais ampla, e não apenas delimitada ao terreno da escrita em meio
digital. Trata-se de adotar um ponto de vista que terá, à partida, a discussão realizada por Barthes
sobre obra e texto; discussão essa devedora, sem dúvida, de vários outros momentos em que se
procurou compreender o estatuto da obra de arte reproduzida tecnicamente. aqui, claro, uma
explícita referência ao texto de Walter Benjamim (1986), A obra de arte na época da sua
reprodutibilidade técnica”, e à sua noção de valor de exposição para se pensar a reprodução
técnica dos objetos artísticos. Ainda que Benjamim tenha feito um ensaio em que ora critica a
reprodução técnica, ora afirma que ela cria condições que modificam a noção de objeto artístico,
o autor alemão já indicava, em seu texto, tanto a característica processual dos objetos
reproduzidos quanto a mudança nas relações entre autor e leitor. Apontava, então, para a relação
entre a obra reproduzida tecnicamente e os seus modos de reprodução como uma nova área de
investigação no campo artístico. Para pensar o cibertexto adotar-se-á uma perspectiva também
relacional, em que os termos da relação são a obra, fisicamente produzida, e os diversos textos
que podem ser produzidos a partir da existência dessa obra. Espera-se, dessa maneira, evitar o
terreno infértil de um puro relativismo e, ao mesmo tempo, a imobilidade que podem produzir
categorias rigidamente estabelecidas que desconsiderem a fluidez dos materiais reproduzidos
tecnicamente, ao apelarem para uma definição excessivamente rigorosa de um conceito em
função do suporte que ele habita. Em última análise, será dado destaque às relações entre obra e
texto em seus embates constantes, em função dos seus próprios modos de existência, em função
do seu caráter de fenômeno. Isso significa resgatar também as relações entre escrita e leitura e
como essas relações constroem obras e textos e são também por eles modificadas.
Em um artigo sobre a teoria do texto
11
, Barthes (2004) antecipa a proposição, que aqui se
faz, de compreender o cibertexto como um processo ou como característica presente em obras de
teor diverso. A crítica feita por Barthes à noção clássica de texto, como aquele habitado por um
11
Barthes, Roland. Inéditos – vol. 1: teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 261-289.
88
sentido “verdadeiro”, indicava já o caminho para se pensar o cibertexto como fenômeno ligado às
experiências de escrita e leitura, ligado às relações de comunicação que o cibertexto enseja e das
quais também deriva. Obviamente, o autor não discutiu, em seu artigo, o termo cibertexto; essa
sugestão é propriedade dessa tese. Ao afirmar o texto como uma prática significante, Barthes
enfatiza o investimento sobre o mesmo, por parte de um sujeito e por parte de um Outro a quem
esse sujeito se dirige, como uma característica definidora e responsável por situar o texto fora da
alçada de possíveis classificações ou de atos de entendimento capazes de descortinar um sentido
transcendental no contato com o que está escrito. Se, como prática, a produção textual ocorre “ao
sabor de uma operação, de um trabalho no qual se investem ao mesmo tempo e num único
movimento o debate entre o sujeito e o Outro e o contexto social” (BARTHES, 2004, p. 270), é
através da imersão que o texto surge, através do contato com o que será dito no momento de dizê-
lo. Tal ato configura-se tanto na escrita quanto na leitura do que foi produzido. Um texto é criado
em uma relação, embora não possa ser visto como o produto dessa relação, que não a esgota,
mas apenas sugere perspectivas sobre o contato entre aquele ou aqueles que o enunciam e os que
o tomam para ler. Tal caráter relacional permite afirmar o hipertexto como continuação de um
modo de pensar o texto como produtividade e não como produto de um trabalho.
Ao afirmar o texto como produtividade, o desejo é situá-lo a partir do conceito de imersão,
ainda que essa definição venha a aparecer num capítulo posterior desta tese. Portanto,
procurando evitar a antecipação, outros termos podem auxiliar na definição que se pretende fazer.
O texto não é o objeto sobre o qual se trabalha, mas aquilo que trabalha a língua, que reúne autor
e leitor e que surge justamente porque estes se dispõem a jogar com os significantes, inventar
sentidos múltiplos, produzir jogos de palavras (Barthes, 2004). O texto não deve ser enquadrado
numa moldura ou numa figura, mas ser percebido como espaço infinito. Ora, dessas afirmações é
possível dizer que o texto propõe, como movimento de sua própria construção, a reversibilidade
do espaço em tempo. E, ainda, que o texto se constrói e se reconstrói incessantemente como
resultado, sempre transitório, da “entrada” de autor e leitor naquilo que será o seu “espaço” de
existência. As aspas nas palavras da frase anterior se justificam pelo caráter de construção
permanente desses termos na relação de produtividade. Autor e leitor “entram” no texto que estão
construindo, mesmo que em momentos distintos, o que significa também afirmar a efemeridade
do espaço construído, porque é sempre inacabado. A imersão é, então, o que produz e a existir
o texto, a partir da construção conjunta de autor e leitor. Como se verá no capítulo sobre
89
cibernarrativas e imersão, o processo acontecerá relacionado à própria existência física da
cibernarrativa, fazendo com que a significância se associe à obra, e não mais somente ao texto.
“Com mais razão, quando o texto é lido (ou escrito) como um jogo móvel de
significantes, sem referência possível a um ou a vários significados fixos, torna-se
necessário distinguir bem a significação, que pertence ao plano do produto, do
enunciado, da comunicação, e o trabalho significante, que, por sua vez, pertence ao
plano da produção, da enunciação, da simbolização: é esse trabalho que se chama
significância.” (BARTHES, 2004, p. 273).
A significância é como a reverberação do texto sobre aquele que investe em direção a esse
texto, é o deslocamento a que o texto submete o sujeito que procura reconfigurar ou configurar o
texto. Como a significância se associa à enunciação, ao movimento, é um conceito relativo
também à necessidade de imersão no texto, para que ele surja. Faz-se presente aqui a percepção
da importância do contato entre texto, autor e leitor, como que a corroborar, por exemplo, com o
conceito de cibertexto, cuja base está também nas relações estabelecidas com e através do texto.
O texto não é apenas um fenômeno em que se envolvem sujeitos produtores de enunciados,
mas também o processo que movimenta a própria língua, os textos outros que compõem essa
língua. Na base do conceito de texto estão os intertextos, ou a presença de textos anteriores em
sua trama. O texto movimenta a linguagem e é colocado em movimento também por essa mesma
linguagem. Assim, apresenta-se tanto no lado interno da linguagem quanto no lado externo. Pode
ser tanto fala falada quanto fala falante. Ao organizar-se e ser organizado, o texto reposiciona as
perspectivas textuais das quais é apenas uma das várias derivações, mesmo que tal
reposicionamento seja de grau ínfimo. O texto aponta, então, para a prática textual que o
engendra, fazendo de si mesmo objeto e processo, sempre um entre lugar, forjado através do
contato e mediador desse mesmo contato, como campo de tensão e não como campo de
conciliação.
Assumir o texto como relacionado a uma prática textual, para daí derivar uma possível
teoria do texto, significa, em conjunto com Barthes, dizer que os textos não são produtos de uma
ordem material verbal ou visual ou relacionada a um suporte específico e, logo, podem ser
associados a produções em suportes físicos variados, pois dizem respeito a enunciações e não a
enunciados. A prática textual é a significância, cuja pedra fundamental é compreender o texto em
ação. “A significância depende da matéria (da ‘substância’) do significante apenas em seu modo
de análise, não em seu ser.” (BARTHES, 2004, p. 281) Propor os textos como produções
90
perpétuas, como enunciações significa também focalizar o envolvimento e a tensão que se
processam entre autores e textos, mas também entre leitores e textos.
Ao longo de toda a sua teoria do texto, Barthes destaca o movimento de um sujeito que se
envolve com o texto. Seja com os conceitos de significância ou produtividade, seja ainda com a
discussão sobre intertexto, a cada momento é mais intensa a questão sobre o relacionamento entre
o texto e aqueles que se envolvem com e de dentro dele. A análise textual não deveria se
restringir, dessa forma, à busca de um significado último, escondido na obra e cujo texto daria a
luz ao seu significado. Antes, é preciso considerar as obras como não-fechadas e mais, pensar que
o devir da teoria do texto surge como um outro texto, que a prática textual se destina mais “aos
sujeitos produtores de escrita que aos críticos, aos pesquisadores, aos estudantes.” (BARTHES,
2004, p. 287). É da sua configuração e de uma análise feita sobre a sua configuração que o texto
se mostra irredutível a qualquer análise de si como contido no objeto da obra. Se há uma
permanência do texto na obra, ela acontece pela necessidade de dar forma ao que é fluido, ao que
é temporal, e, portanto, ao que se deixa perceber quando escoa. Não há como captar o texto
inteiro a partir de somente um movimento em uma camada temporal. Nietzsche, citado por
Barthes, elucida melhor essa questão, ao afirmar
“não somos bastante sutis para aperceber o escoar provavelmente absoluto do devir; o
permanente só existe graças a nossos órgãos grosseiros que resumem e reduzem as
coisas a planos comuns, ao passo que nada existe sob essa forma. A árvore é a cada
instante uma coisa nova, nós afirmamos a forma porque não captamos a sutileza de um
movimento absoluto. (NIETZSCHE, apud BARTHES, 2004, p. 289).
A teoria do texto proposta por Barthes reverbera discussões sobre o estatuto da autoria e da
leitura, bem como o estatuto da obra de arte, realizadas por autores como Foucault, Eco,
Couchot, entre outros. Há diversas possibilidades de entrada nesse debate e deseja-se aqui apenas
indicar a forma como Foucault e Eco trabalham, respectivamente, a noção de autoria e a noção de
obra aberta para, em seguida, analisar mais detidamente as propostas de Edmond Couchot (2003)
e Cláudia Giannetti (2002) sobre a relação entre tecnologia e arte.
Sobre o autor, Foucault (1969) citado em Barros da Costa (2001) o pensa como uma função
do texto e não mais associado a uma pessoa física, externa à obra. Essa função seria aquilo que
atravessa os textos, que os recorta, que manifesta o modo de ser desses textos. Foucault permite
pensar, então, que um texto é recortado e construído por diversas possibilidades de imersão,
91
sendo a função autor uma dessas possibilidades. Ou seja, o conceito de imersão pode ser utilizado
para pensar que o autor já se faz no meio de um texto. Assim, aqui está também uma das
maneiras pela qual se pode pensar o conceito de imersão: é o aparecimento de uma função da
própria obra, ou uma manifestação da obra e do seu modo de funcionamento. Em relação à noção
de obra, o filósofo francês sugere pensá-la como toda a produção de um indivíduo. Assim
considerada, a obra aparece como um ponto dentro de uma rede em que não se pode precisar um
único atravessamento ou caminho ao qual esta obra pertenceria. De acordo com o tipo de
abordagem feita à obra, ela pode se mostrar como pertencente a conjuntos diferentes de
significação, a redes diferentes de sentido.
A visão de obra aberta sugerida por Eco (1976) encontra-se entre as várias raízes utilizadas
por Edmond Couchot (2003), ainda que não diretamente, para analisar os entrecruzamentos da
tecnologia com a arte. Couchot defende uma maneira plural de percepção do objeto artístico,
baseada em dois conceitos: o sujeito-eu e o sujeito-nós. Atente-se aqui para a base
fenomenológica também utilizada pelo autor na elaboração dos conceitos. A percepção dos
objetos, que coloca em jogo a subjetividade do observador e a objetividade do que se observa, é
produto do encontro de intersubjetividades. E o produto desse ato é definido processualmente, e
não retido pelo que se observa.
“A atividade artística colocaria então em jogo dois componentes do sujeito. Um sujeito-
nós modelado pela experiência tecnestésica e um sujeito-eu que resgataria a expressão
de uma subjetividade irredutível a todos os mecanismos técnicos e a todo habitus
perceptivo, singular e vel, própria ao operador, à sua história individual, a seu
imaginário.” (COUCHOT, 2003, p. 17).
A experiência tecnestésica diz respeito à relação do sujeito com as técnicas, tanto no modo
de produção quanto no modo de percepção de um objeto construído tecnicamente. Como modos
de produção e percepção, as técnicas não modelam o mundo, mas propõem opções de
configuração do percebido, sugerem sentidos, pontos de vista, narrativas contra e no seio das
quais se debate a subjetividade do indivíduo. A presença da cnica na produção de um objeto
artístico é a presença do sujeito-nós, de um conjunto de usos possíveis de mediações
sociotécnicas pertencentes a uma subjetividade coletiva, conjunto este traduzido nos modos como
a técnica permite a manipulação do real. Junto a esse sujeito-nós, o sujeito-eu, que procura
expressar uma singularidade no seio dos aparatos técnicos, na criação do objeto artístico. Como
92
afirma Couchot, “cada obra, corresponde a uma associação distintiva destes dois componentes do
sujeito, uma tecnicidade figurativa e uma figura da subjetividade.” (COUCHOT, 2003, p. 17). O
sujeito-nós e o sujeito-eu são figuras pertencentes ao campo da autoria e também ao campo da
leitura. Tanto autores como leitores percebem, na fruição de uma obra, o embate entre os dois
modos de percepção, que não se resolve na forma que a obra assume, que não se resolve de forma
dialética nessa forma. Ao lidar com uma determinada técnica ou aparato técnico, que aqui será
denominado também de mediação sociotécnica, o autor de uma obra se depara com o sujeito-nós
despersonalizado e materializado nos procedimentos permitidos pela mediação sociotécnica. Na
história da arte é possível visualizar o constante desafio de confrontar tais procedimentos, em
maior ou menor escala, de acordo com a época que se deseje analisar. Esse desafio parece ser
justamente o indicador do atrito entre o sujeito-nós e o sujeito-eu, o choque da singularidade do
autor na tentativa de expressá-la através de uma mediação sociotécnica. A abertura do objeto
artístico deriva também dessa não-resolução do atrito, dos transtornos oriundos de uma
experiência de percepção que acontece sempre no interior da relação entre o indivíduo e o mundo
que ele constrói através da sua percepção, e que é também construído por técnicas impessoais,
anônimas. É a abertura do objeto o que permite ao leitor criar a sua própria percepção da obra,
mas também sujeita ao uso das mediações sociotécnicas escolhidas por um determinado autor.
Assim como uma obra soluciona apenas temporariamente o atrito entre o sujeito-nós e o sujeito-
eu, a interpretação de um leitor está também condicionada pelo encontro desses dois modos de
percepção. A maneira como o objeto artístico a conhecer as mediações sociotécnicas que o
originam posiciona o leitor, ao mesmo tempo, no entre o sujeito-nós e o sujeito-eu. O leitor se
move entre o modo como o autor configura a obra que deseja criar, o uso das mediações
sociotécnicas e a obra que realmente ele pode operar. Longe de qualquer romantismo, de um
autor dominado pelo desejo. O que o leitor encontra é um processo em andamento, do qual a obra
é a parte visível do contato. Também o leitor habita o sujeito-nós, pois o objeto artístico apresenta
uma determinada experiência vivida com a técnica. E habita esse leitor o sujeito-eu, pois a
presença do autor surge nos usos específicos de cada mediação sociotécnica ou procedimento
utilizado dentro do aparato técnico. Há, ainda, a própria singularidade do leitor, relativa à sua
interpretação, aos pontos de vista que adota ou imagina em relação à obra configurada com a qual
tem contato.
93
Da relação entre sujeito-nós e sujeito-eu pode-se perceber o movimento com as mediações
sociotécnicas, vivenciado por autores e leitores nos processos de autoria e leitura. A manipulação
da técnica, na busca por explorar todas as suas possibilidades, parece indicar uma tentativa de
aproximação entre sujeito-nós e sujeito-eu, um esforço para conferir visibilidade total à
experiência do mundo. Como afirma o próprio Merleau-Ponty “é preciso reconhecer como
irredutível o movimento pelo qual me empresto ao espetáculo, me junto a ele em um tipo de
reconhecimento cego que precede a definição e a elaboração intelectual do sentido.”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 252).
Ou seja, é a própria irredutibilidade da experiência à obra que lhe confere a percepção, a
origem do movimento incessante que coloca em contato o sujeito-nós e o sujeito-eu. O que se
percebe é sempre uma tentativa inacabada de sobreposição dos dois modos de percepção
discutidos por Couchot (2003). Não obstante a irredutibilidade de que fala Merleau-Ponty (1999),
as confrontações com os aparatos de mediação sociotécnica se constituem também em atos de
alargamento da subjetividade, em atos de desconstrução das próprias mediações e em atos que
buscam aproximar todos os indivíduos envolvidos na fruição do objeto artístico. A arte digital
pode ser vista, nesse sentido, como um processo caracterizado tanto pela fluidez da materialidade
das obras quanto pela aproximação do espectador da elaboração dessas mesmas obras.
4.2 A materialidade do objeto artístico em meio digital
A desmaterialização do objeto artístico não interfere somente no tipo de suporte que dá
forma a esse objeto, mas também na relação entre a obra e o espectador. Se em movimentos
como o expressionismo, na pintura, ou na obra de alguns pintores, como no quadro “As
meninas”, de Velásquez, se percebe o desejo de colocar o olhar do espectador “dentro” da
obra, as mediações sociotécnicas (fotografia, cinema, imagem eletrônica, informação digital) que
permitem registrar o tempo e deformá-lo parecem intensificar essa aproximação entre o processo
de autoria da obra, a obra em si e aquele que irá receber a obra, lê-la ou vê-la. (Foucault, 1981)
Ao longo do século XX é possível perceber, em movimentos artísticos variados, a indagação
sobre o que é uma obra de arte, seja na relação com o seu modo ou tempo de existência, seja na
94
relação com a sua proposta política, seja na relação com o suporte que a obra habita, entre outras
questões. As mediações sociotécnicas propiciam condições para posicionar o objeto artístico em
locais “não-autorizados”, bem como para enfatizar o caráter processual relacionado à criação das
obras. Não é um privilégio da arte em meio digital realizar tal aproximação. Antes, a
multiplicação de interpretações que uma obra pode gerar parece agora habitar o próprio existir do
objeto tornando-se, em muitos casos, condição para que se possa afirmar, inclusive, que uma
obra.
As instalações e performances artísticas, presentes em diversas exposições e eventos a
partir do final dos anos 50, começo dos anos 60, são bons exemplos de como o espectador
compõe a obra ao ter que entrar num espaço e, a partir dessa entrada, fazer surgir um processo
artístico. Tal é o caso de MovieMovie
12
, uma espécie de obra multimídia, criada por Jeffrey Shaw,
Theo Botschuijver, Tjebbe van Tijen e Sean Wellesley-Miller, e apresentada em 1967. A obra
consistia de uma superfície inflável branca sobre a qual se projetavam slides de filmes e efeitos
luminosos. Os criadores da obra, no papel de performers, podiam entrar na superfície, ou se
mover sobre ela, e modificar a sua estrutura arquitetônica, fazendo da tela” um espaço
tridimensional e não mais somente bidimensional como a tela convencional do cinema. Ao
alterarem a superfície de projeção, alteravam também a imagem do que era projetado, colocando
em questão justamente a materialidade da obra vista pelos espectadores. Esses, por sua vez,
também podiam participar da performance, pulando na superfície de projeção e alterando-a com
o próprio movimento dos seus corpos. Uma característica marcante em MovieMovie é o fato do
corpo dos espectadores se transformar na e transformar a própria obra, num movimento de
imersão bastante diferente da imersão psicológica proposta por um tipo de cinema, por exemplo,
e mesmo pela literatura. No caso da literatura, sem tentar estabelecer um paralelo cronológico,
vários artistas, escritores, críticos, ao longo do século XX, colocam em discussão a presença do
leitor na criação de uma obra, seja ao desestruturarem (os escritores) os esquemas de composição
relacionados aos gêneros literários, seja ao discutirem” com o leitor o processo de criação que
enfrentaram, seja ao questionarem o leitor sobre o que ele está fazendo na leitura de uma obra.
“As obras são suscetíveis a diferentes solicitações, manipulações, operações, desencadeadas
pelo observador. Pode-se falar de participação real e não mais mental.” (COUCHOT, 2003, p.
107). Ainda que se possa questionar o contraponto entre participação real ou mental, a afirmação
12
Disponível em
http://www.medienkunstnetz.de/works/movie-movie/. Acessado em 24/05/2007.
95
de Couchot enfatiza a abertura do objeto não só em termos de sua estrutura, mas em relação à sua
estruturação. É o processo que ocupa o lugar central da produção artística, a ponto de se poder
dizer de uma obra que o que interessa nela são as regras ou os modos de composição que a fazem
existir. Como conseqüência desse movimento, pode-se perceber também uma preocupação da
criação artística com a sua própria linguagem e, assim, uma intensificação das obras voltadas
para o meta-discurso. Desmaterializar o objeto artístico e voltar-se para a linguagem, para a
combinatória dos elementos que compõem o objeto, esse parece ser um sentido bastante forte da
criação artística contemporânea. As práticas artísticas com meios eletrônicos debruçam-se sobre
o processo de contato entre emissores e receptores, posicionando no centro da discussão a
questão da comunicação entre obra e espectador. À medida que os suportes tornam-se mais
fluidos e manipuláveis, parece cada vez mais evidente o caráter efêmero das obras de arte, até
mesmo em função do tipo de registro que produzem sobre o real. Não se trata mais de elaborar
uma narrativa somente, mas de poder captar, no momento em que acontecem, as ações da vida
cotidiana, como no caso da transmissão ao vivo via satélite. Se no cinema a imagem está em
movimento, a imagem transmitida via satélite para dentro das casas apresenta o próprio mundo
em movimento, numa narrativa que é configurada ao mesmo tempo em que acontece. O caráter
provisório de qualquer interpretação parece, nos meios eletrônicos e digitais, constituir a estrutura
mesma dos aparatos técnicos. A instabilidade do real entranha-se, nesse sentido, nos mecanismos
de mediação sociotécnica, pois são também, potencialmente, mecanismos de comunicação e não
somente de registro e transmissão de informação. Couchot (2003) expõe questões intimamente
relacionadas ao contato entre obra e espectador quando analisa a arte cinética. Para ele, esse tipo
de arte busca ser uma arte do real, conjugada no presente, e que faz com que a obra se transforme
em acontecimento. Essa é a mesma visão de Iser (1996) quando analisa o efeito estético a partir
da recepção da obra literária. A conexão entre arte e comunicação enfatiza características que
Cláudia Giannetti (2002) associa com o surgimento de novos métodos e formas de expressão, no
que ela propõe como paradigmas estéticos da media art. A primeira dessas mudanças diz respeito
aos conceitos de plurimedialidade e interdisciplinariedade, relacionados às obras baseadas em
instalações audiovisuais. Segundo a autora, tais procedimentos artísticos enfatizam as seguintes
características: a ruptura com as formas fechadas para objetos artísticos; a investigação da relação
entre contexto, tempo e partes componentes da obra; a multiplicidade e a inter-relação de
elementos ou materiais; a preocupação com o papel desempenhado pelo receptor; a atenção ao
96
processo, em contraposição à idéia de obra única, permanente e acabada; a potencialização da
polisensorialidade das obras. As características enunciadas indicam, no aspecto dos suportes, uma
busca também pela ruptura da distância entre os que se envolvem com as obras. Nesse sentido,
tanto a imagem eletrônica quanto os suportes digitais podem ser vistos como respostas às
demandas feitas por artistas e movimentos de vanguarda artística, ao longo do século XX. As
instalações audiovisuais surgidas entre os anos 50/60 combinavam elementos audiovisuais com o
estabelecimento de redes comunicativas entre artistas, ou entre artistas e público. São questões
similares àquelas que Couchot aborda em “A tecnologia na arte”, quando defende uma
associação do espectador com o ato de criação. Giannetti cita vários coletivos de artistas surgidos
no final dos anos 50, começo dos anos 60, entre os quais pode-se destacar também o OULIPO, os
integrantes do movimento Fluxus e até mesmo os integrantes do movimento de poesia concreta
paulista. O que movia tais grupos: a idéia de processo, o uso de tecnologias na produção das
obras, o desenvolvimento de formatos expandidos, que se aproximam da instalação ou da criação
de um ambiente; além disso, os jogos combinatórios do OULIPO, as obras em rede ou em
colaboração com a platéia, do Fluxus, e as discussões sobre a materialidade dos suportes, no caso
dos livros de artista e também no caso do movimento concretista.
Décio Pignatari (1975), ao discorrer sobre as semelhanças e diferenças entre poesia oral e
escrita sugere que o papel torna-se o público do poeta e este lança mão de todos os recursos
gráficos e tipográficos para tentar a transposição do poema oral para o escrito. Entre o poema oral
e o escrito encontra-se o suporte material do próprio poema, que não pode ser separado deste. O
tempo da declamação setransposto através do espaço das palavras no papel, numa tradução
sempre incompleta, em que será possível perceber o trabalho sobre a materialidade do código.
Parece ser essa a indicação do autor nesse trecho. A poesia concreta não será aquela que tenta
encontrar a melhor tradução, mas, sim, a que reforça justamente o seu caráter de trabalho físico
sobre o código, de modo a fazê-lo pertencer ao poema.
E é também sobre materialidade que Augusto de Campos baseia sua digressão sobre Un
Coup de Dés, de Mallarmé. várias questões para reflexão quando se afirma que o método de
Mallarmé exige uma tipografia funcional, que espelhe com real eficácia as metamorfoses, os
fluxos e refluxos do pensamento. (Campos, 1975). O primeiro ponto que interessa aqui é a
possibilidade de espelhamento total do pensamento. Não parece ser factível a representação pura
do pensamento através de uma dada interface ou suporte, se for pensado que qualquer interface
97
estabelece um ritmo e um lugar para contato, sendo o tempo e o espaço do suporte criados por ela
mesma. O uso da tipografia i criar seu próprio espaço-tempo de percepção, que é diverso
daquele do pensamento que originou um poema, não? Ao mesmo tempo, Mallarmé indica que a
materialidade é um componente fundamental no processo de construção da poesia, sendo,
simultaneamente, um mecanismo de mediação e uma criação do próprio poema. Como afirma
Augusto de Campos, “a própria pontuação se torna aqui desnecessária, uma vez que o espaço
gráfico se substantiva e passa a fazer funcionar com maior plasticidade as pausas e intervalos da
dicção.”(CAMPOS, 1975, p. 18).
Há, nesta citação, um paradoxo, pois é preciso libertar-se da pontuação para fazer com que
o material se solte em relação à página, para que as formalidades da regra gramatical dêem lugar
a uma outra materialidade. A plasticidade das palavras poderá, dessa forma, ser testada pelo
poeta, na sua tentativa de transgressão em direção a um diálogo mais múltiplo. Entretanto, resta
ainda a palavra, o verbo, a entonação como que a dizer de um suporte que não pode ser separado
daquilo que se pretende significar.
A análise esquemática empreendida por Augusto de Campos sobre Un Coup de Dés retoma
o que foi discutido anteriormente. Mallarmé cria uma estrutura em temas e, de acordo com a
tipografia das palavras, executa a distribuição dos versos nas páginas. Utiliza a materialidade da
palavra para libertá-la de uma estrutura conceitual que considera apenas a organização sintática e
semântica formal. Ainda que não se possa falar de uma desmaterialização do código, o interesse
por uma nova forma de materialidade e plasticidade é evidente. O espaço e o tempo da leitura não
se reduzem mais somente ao ato interpretativo do leitor, mas devem ser encontrados no esforço
físico de lidar com a plasticidade sugerida. E não se trata de uma estrutura que se abata sobre as
palavras para formá-las à imagem exata do que será representado. Augusto de Campos salienta
que “os melhores efeitos gráficos de Cummings, almejando a uma espécie de sinestesia do
movimento, emergem das palavras mesmas, partem de dentro para fora do poema.” (CAMPOS,
1975, p. 22). Não é a busca de uma representação exata que moverá o interesse dos concretistas,
mas uma alteração da forma material como que a sugerir a atenção para a composição espacial do
poema e sua relação em processo com o nível semântico da obra. Não mais somente a
composição linear em que o tempo aparece como interpretação da ordem sintático-semântica,
mas a exposição mesma da impossibilidade da palavra representar uma interpretação.
98
Exigência do poeta ao leitor, a de penetrar no espaço material da obra e descobrir suas diversas
materialidades e temporalidades.
As palavras, no dizer de Augusto de Campos, são dúcteis, moldáveis, amalgamáveis. A
estrutura verbivocovisual carrega em si vários tempos, mas não como colagem e sim como
relação que não esgota, no seu uso, nem o verbal, nem o vocal, nem o visual. Embora esse todo
dinâmico não seja a soma de suas partes, tampouco é maior que elas. Se o tempo e o espaço são
condições e condicionados pela experiência que temos deles, no caso da poesia concreta a
experiência se faz do meio das palavras, que não completam jamais o todo que se deseja
exprimir. A poesia concreta enfrenta a questão do movimento a partir não mais da figuração ou
representação do objeto através do símbolo verbal, mas a partir das palavras como coisas delas
mesmas. A composição concreta seria uma estrutura espacial, em que o ritmo não é mais o dos
símbolos verbais, mas o do movimento entre as palavras, que se referem à experiência de si
mesmas. Talvez a melhor tradução seja como afirma Augusto de Campos “POESIA
CONCRETA: TENSÃO DAS PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO” (CAMPOS, 1975,
p. 45).
Se a experiência do espaço-tempo se faz do meio das coisas, se o que vemos é o que
também compõe os nossos olhos, (DIDI-HUBERMAN, 1998) a materialidade da poesia concreta
aponta para as palavras como relação entre coisas a partir de dentro de cada significante no seu
contato com os demais.
Na visão dos concretistas, a palavra possui uma dimensão gráfico-espacial, uma dimensão
acústico-oral e uma dimensão conteudística. Da relação entre essas múltiplas materialidades, o
poeta exige do leitor uma leitura concreta, não do objeto representado, mas apresentado. A poesia
concreta talvez leve ao máximo a tensão material da palavra, ao exigir dela uma vida própria, não
mais colada a um objeto, a um conteúdo externo, mas como o próprio conteúdo de si mesma.
Exige transcender a materialidade aparente do verbal para esgarçar a palavra até seus liames: suas
relações em camada com o visual e com o sonoro. Mas, para tanto, reconfigura o tempo e o
espaço de cada obra, e exige uma ação sobre o material que o leve além da pura representação.
Nas obras de poesia concreta é visível a força do processo de experimentação constante da
obra em detrimento do encontro dos seus diversos textos. É como se a cada leitura surgisse um
novo material que irá prestar-se a novos textos. Assim, a verdadeira obra é a possibilidade de
99
produção de obras e formas e não a obra em si ou os resultados dos diversos rearranjos do
material.
No caso dos livros de artista, o tipo de materialidade está mais voltado para a estrutura
física do livro e seus componentes, mas também se pode falar de uma convocação do leitor para a
participação no processo de escrileitura da obra. Nos diversos conceitos trazidos à luz por Paulo
Silveira (2001) salta aos olhos a concepção da página como “matéria plasmável por sua interação
positiva com o texto e a imagem, e também porque é rasgada, furada, colada, feita, desfeita ou
refeita, por mutilação ou reciclagem.” (SILVEIRA, 2001, p. 23). Na introdução do seu livro
sobre o livro de artista e o livro-objeto, o autor salienta que a página será considerada como a
menor unidade possível do suporte livro. Seu interesse está voltado para o volume, mais que para
o texto impresso, como material expressivo no livro. Mesmo nesse sentido, em que o texto vira
contexto, ligação com a poesia concreta. A poesia concreta utiliza a materialidade da palavra,
mas enfatiza também a relação desta com o espaço em branco da gina, com a distribuição dos
caracteres pelo suporte. O livro de artista confere valor central à gina e valor secundário à
palavra, até em função de trazer para o suporte outros materiais como a composição em cores, o
recorte do papel, outros materiais colados sobre o papel. Nos dois casos busca-se uma outra
sintaxe do material, em que o processo de manipulação do suporte cria um espaço-tempo que
ultrapassa aquele da ficção literária e se posiciona por entre os objetos concretos manipulados
pelo leitor. É necessário um esforço físico daquele que entra em contato com a obra, numa
aproximação com a idéia de literatura ergódica de Aarseth (1997), ao caracterizar o cibertexto.
Na discussão sobre o que seja o livro de artista, surgem definições com pontos comuns
direcionados para uma busca de ruptura do formato livro como mero veículo de uma expressão
que não considera a materialidade do volume e das próprias palavras. O suporte não é só
mediação vazia, é também criador da experiência de leitura e da experiência espaço-temporal
desta leitura. A discussão evoca, a despeito de conceitos por vezes muito abrangentes, o livro
como forma mutável, como material que pode superar o isolamento das palavras dispostas em
uma obra e transmitir outros significados que incorporem a concretude com que o suporte se
apresenta. Silveira destaca ainda a seqüência de leitura proposta como parte da obra e do seu
significado, procurando compreender qual é a relação entre o material do livro de artista e o
espaço-tempo da obra. Essa opção torna-se ainda mais clara no momento em que o autor cita
Júlio Plaza e sua concepção sobre o livro.
100
“O texto verbal contido num livro ignora o fato que o livro é uma estrutura autônoma
espaço-temporal em seqüência. Uma série de textos, poemas ou outros signos,
distribuídos através do livro, seguindo uma ordem particular e seqüencial, revela a
natureza do livro como estrutura espaço-temporal. Essa disposição revela a seqüência,
mas não a incorpora, não a assimila. (....).’”(PLAZA apud SILVEIRA, 2001, p. 60).
nessa citação um interesse específico pela estrutura espaço-temporal, pela disposição
dos textos em cada página; há uma interrogação sobre o dinamismo da materialidade do suporte e
suas conseqüências no processo de apreensão da obra. Tais questões aparecem na poesia concreta
quando seus expoentes investigam a palavra-coisa e a tensão de pensá-la e trabalhá-la como
objeto. No livro de artista, é o próprio suporte que é tensionado, mas a preocupação sobre os
limites do suporte e da materialidade dos códigos permanece.
Ao esmiuçar os diversos exemplos dados para cada conceito relacionado ao livro de artista,
Paulo Silveira o situa como objeto em processo, sujeito às marcas tanto de autor quanto de leitor,
volume em permanente movimento de transformação, seqüência espaço-temporal que não
permanece inócua, mas que acusa as marcas de seu manuseio e utiliza as mesmas marcas como
material expressivo da própria obra.
O autor procura aproximar-se desse processo através de uma investigação sobre o espaço e
o tempo do livro de artista e também do livro tradicional. Há, segundo Silveira, diversos tempos
envolvidos no livro e pelo livro: o tempo de sua criação e os diversos tempos de leitura. Há várias
maneiras de se percorrer um livro e, para cada uma delas, surge um tempo distinto. No entanto,
todos os tempos do livro aparecem entrelaçados e em relação íntima como o espaço material onde
se situam os seus códigos. o tempo da seqüencialidade das páginas; o tempo de perceber a
visualidade dos elementos dispostos através das manchas de texto; o tempo da sua própria estória,
mediado pelas palavras; o tempo de cada palavra como estrutura visual e sonora que evoca a
memória do leitor para outros suportes, entre outras temporalidades.
Nas diversas acepções acima, a ênfase está na idéia de tempo como algo que surge no
processo de comunicação da obra. Não é outra a definição que Aarseth (1997) utiliza para
delimitar ou libertar o cibertexto: a qualidade comunicativa de textos dinâmicos. Assim, aqui é
possível perceber antecedentes de conceitos relacionados, comumente, ao suporte digital.
O tempo, no livro de artista, pode ser trabalhado a partir de variadas combinações. A
narrativa pode trazer em cada nova página uma movimentação temporal através de marcas no
101
espaço da página, como no exemplo de Markischer Sand V, de Anselm Kiefer. O livro inicia-se
com fotos de trigais e, a cada página subseqüente virada pelo leitor, uma parte da imagem ganha
marcas físicas de areia e pedra, até que não reste mais nada das imagens, soterradas pelas marcas
de sua leitura. O tempo aqui é representado pela alteração espacial sofrida pelo livro, mas esta
alteração não pode ser entendida se o leitor tomar ginas alternadas soltas. É preciso
experimentar a passagem das páginas para que o tempo possa converter-se em movimento, em
duração. Não é na materialidade de cada página que se encontra a experiência de um novo
espaço-tempo, mas na relação entre a materialidade e a experiência do leitor de interrogá-la, de
querer saber o que acontece com tal disposição do suporte. Outra forma de trabalhar o tempo na
relação com o material é dispor o livro como simultaneidade, através de dobraduras e disposições
que expõem todo o espaço material do volume de uma vez, sem uma distinção seqüencial
imperiosa organizada pelo volume. O “Livro-obra”, de Lygia Clark, funciona sob esse regime de
jogo, de manipulação dos objetos para descoberta de suas relações. É o processo em si que
importa e a materialidade do livro deve prestar-se a esse jogo, mais do que realizá-lo no seu
interior. A informação contida no livro se apresenta a partir de uma performance executada
pelo leitor. Aqui aparece novamente uma idéia próxima do cibertexto, de pensar este como
relação entre partes componentes do texto, em que a materialidade não é definidora de nada
exclusivamente, mas apenas em relação a outros elementos. Em cada tipo de obra é preciso ativar
o processo de contato dessas temporalidades, é preciso investir sobre o código de modo a
experimentá-lo, pois a cada momento ele pode se renovar numa nova tensão derivada da relação
com o seu suporte material.
Paulo Silveira (2001) destaca um outro conjunto de livros de artista, em que o objetivo
principal é o registro personificado do tempo, a materialidade da obra como registro físico do seu
manuseio. Nos vários exemplos indicados, é o desgaste do material ou sua transformação com o
passar do tempo que surgem como a verdadeira obra. Se na literatura o tempo é ficcional, no livro
de artista são os próprios objetos que o compõem os responsáveis pela percepção da mudança
temporal. Neste caso, o suporte é sempre sujeito ao processo de manipulação, o que confere a
este tipo de obra a proximidade com o dinamismo do cibertexto.
Em relação ao espaço, o livro de artista também procura enfatizar o volume trabalhado
como peça central na significação de toda a obra. O livro Exhibition Space, realizado pelos
alunos do California Institute of the Arts, exemplifica bem a afirmação anterior. O livro foi
102
concebido de modo que todas as suas páginas, que são o catálogo de uma exposição, possam ser
arrancadas e montadas da maneira que o comprador desejar. O espaço material da obra só passa a
existir em contato com aquele que resolve montá-lo e esta montagem pode ser feita de formas
muito particulares. Assim, o suporte passa a ser quase que todo o material expressivo da obra e
esta se transforma em um jogo de brincar com o material que se tem em mãos. Como um castelo
de areia, a grande transformação é a criação do castelo e não o castelo pronto em si mesmo.
Novamente, investiga-se aqui o suporte como objeto dinâmico, a sua possibilidade comunicativa.
A partir da percepção do espaço como material a ser trabalhado, o livro e a experiência com o
livro ganham novos contornos e é preciso alargar as definições tradicionais. Não se trata mais de
pensar no suporte como mediação entre espaço e tempo ou como mediação para o pensamento,
mas ir além dos limites do material como veículo. Maurice Blanchot (1984) propõe dois pontos
de apoio para essa questão ao afirmar que o tempo da obra é formado pela obra em si e que com
Mallarmé (1994) o espaço interior do pensamento tornou-se palpável na própria página. Através
da torção de todos os materiais à disposição, a poesia concreta, o livro de artista e o cibertexto
investigam como tempo e espaço são construídos pelo e com o suporte e qual é a experiência que
este suporte proporciona. Em alguns casos, a aproximação maior se faz com o tempo, em outros
com o espaço, mas esses dois elementos não deixam jamais a experiência e o suporte a partir do
qual são percebidos.
“A intenção do livro-poema não e a produção de um objeto acabado, mas, através de
sua lógica interna, formar o poema durante o uso do livro, que funciona como um canal
que, no seu manuseio, ‘limpa’ a leitura fornecendo a informação, possibilitando assim
um novo explorar em vel de escrita’ sobre o livro ‘limpo’: recuperação criativa
dos dados informativos (versão).” (SILVEIRA, 2001, p. 166).
O poema é formado pelo processo de manipulação do material e, assim, surge a obra. A
presença física ativa do leitor é exigida para interrogar o suporte e, com isso, criar um espaço e
um tempo de leitura próprios. A diferença aqui é que o espaço e o tempo não são representados
de forma ficcional pelo encadeamento discursivo somente, mas são apresentados pelo espaço em
branco da página, pela corrupção da leitura através da torção da tipografia, da invenção de
palavras. E, no caso dos livros-objeto, é a corrupção da página, a sua forma traduzida em obra
que sugere uma outra leitura. Cada um dos livros-objeto interroga o leitor sobre o seu próprio
material e qual pode ser a experiência dali derivada. A obra “Transparências”, de Neide Dias de
Sá, é um exemplo marcante da idéia de processo de construção espaço-temporal exigida pelo
103
livro-objeto. O que é a obra? A sua necessidade de experimentação, de posicionar-se frente ao
material exposto, de construir o espaço e o tempo ainda à espera. Ou seja, evidencia-se aqui a
demanda ao leitor de interagir com a obra ainda não construída, como as tentativas em outros
campos artísticos, conforme discutido por Couchot (2003).
Ainda como conseqüência da busca por novas formas de expressão, pode-se citar uma outra
característica discutida por Cláudia Giannetti (2002), denominada ubiqüidade. A ubiqüidade
aponta para uma fluidez tal do suporte artístico que não importa mais o espaço físico em que a
obra se materializa, uma vez que o conceito trata de uma expansão temporal em que a obra não
necessita mais ser congelada no tempo, ou no espaço de uma estrutura; ela existe no tempo, no
movimento, no uso contínuo. Obras hipertextuais como “afternoon, a story”(1990), ou “Victory
Garden” (1991) demonstram de forma bastante clara a experimentação da idéia de ubiqüidade e
também de desmaterialização. As duas obras compõem-se de ligações que podem ser seguidas
indefinidamente, sem que seja sugerido ao leitor em que ponto a história termina. Tampouco são
hipertextos circulares, em que depois de um certo mero de ligações volta-se ao início da
história. Nesses exemplos, a distensão temporal é física, pois a obra não apresenta um término
materialmente definido. Nesse aspecto, uma diferença em relação a obras construídas em
suportes menos fluidos materialmente, pois nestas há um fechamento físico visível para o leitor.
A distinção, entretanto, não permite dizer ou afirmar uma experiência ontologicamente diversa
entre os dois tipos de suporte. Tome-se o caso de “O jogo da amarelinha”, de Júlio Cortazar
(1974), ou de O dicionário Kazar”, de Milorad Pavitch (1989) em comparação com os
hipertextos mencionados. “O jogo da amarelinha” é uma obra dividida em capítulos e em que o
autor convida o leitor a montar a seqüência dos capítulos e, de sua própria montagem, configurar
uma narrativa. Há também a possibilidade de seguir a numeração dos capítulos em ordem
crescente ou ainda seguir uma ordem sugerida pelo autor. O livro de Cortázar apresenta jogos
combinatórios à maneira das obras performáticas, das instalações em que o interagente deve
combinar materiais para fazer surgir a obra, e pode ser relacionado com os jogos combinatórios
do OULIPO, para tomar apenas um caso muito conhecido de experimentação com jogos
literários. “O dicionário Kazar” possui uma lógica combinatória, uma vez que uma mesma
história é dividida em quatro maneiras diferentes e, em cada uma, as narrativas não estão ainda
estruturadas. Como indica o nome do livro, trata-se de um dicionário, com verbetes, cuja
explicação é dada em quatro versões diferentes. A obra gira em torno de uma disputa religiosa e
104
cada seção do dicionário apresenta os verbetes segundo uma vertente religiosa. De acordo com o
processo de leitura escolhido pelo leitor, é possível vivenciar uma estrutura física diferente da
obra, ainda que a obra como um todo apresente suas limitações físicas. O leitor pode optar por ler
os verbetes dentro de uma mesma seção, ou seguir links dentro de cada verbete, o que cria uma
inter-relação com outro verbete, mas não necessariamente dentro da mesma seção. Se não há uma
desmaterialização do suporte nos exemplos citados, é inegável perceber uma tentativa de trazer
para a estrutura física da obra processos mais fluidos, geralmente relacionados às múltiplas
interpretações, ou ao surgimento dos textos. Por essa razão é que se defende, nessa tese, a noção
de que os suportes digitais intensificam a experiência que pode ser vivenciada em suportes
materialmente menos maleáveis. Essa intensificação acontece em função do tipo de imersão
permitida e exigida pela cibernarrativa, qual seja, a de entrada e de jogo com os códigos físicos
das obras. E é também com base nas discussões já realizadas que se afirma aqui o hipertexto
como um dos momentos relativos aos processos de escrita e leitura.
O conceito de ubiqüidade baseia-se também no uso de sistemas de telecomunicações como
meios efetivamente participativos e não somente transmissivos. Não interessa exatamente discutir
essa oposição, mas pensar de que maneira as redes de comunicação demandam processos
colaborativos, nos quais a definição fixa dos papéis dos participantes entra em crise e abrem-se
novas possibilidades para nomear, por exemplo, autores e receptores. Como bem afirma
Giannetti,
“é sem dúvida com o emprego dos chamados novos meios, como os sistemas de
telecomunicações, que essa dilatação espaço-temporal e material assume os sentidos
mais amplos da ubiqüidade (a possibilidade de estar em todas as partes, em qualquer
tempo ou simultaneamente), de desmaterialização (a independência da existência
física/material do objeto) e de participação (a utilização dos recursos interativos que a
rede permite).” (GIANNETTI, 2002, p. 85).
A desmaterialização indica uma ênfase no processo de comunicação, no contato entre os
participantes da experiência com a criação artística. A lógica de participação e colaboração, por
sua vez, sugere tanto uma horizontalização da relação de comunicação quanto uma imersão no
momento de produção da obra, no momento de definição dos elementos que irão compor a obra,
bem como na definição de como tais elementos serão combinados. assim, uma demanda pela
imersão no momento de mimese I, em que as narrativas encontram-se ainda pré-figuradas.
105
A obra Piazza Virtuale
13
possui várias características que antecipam o que será denominado
aqui como cibernarrativa, ainda que não se faça uso, nessa obra, dos códigos de programação da
web. Piazza Virtuale, projeto desenvolvido pelo laboratório europeu de media art Ponton,
ocorreu em 1992, durante a IX Documenta de Kassel, e permaneceu no ar durante 100 dias. A
instalação era uma tv interativa que podia ser recebida em toda a Europa através de quatro
satélites. Os visitantes da instalação podiam usar videofones e câmeras para entrarem na
programação, diretamente de Kassel e ainda de outras cidades em que aparelhos dessa natureza
foram instalados. De casa, os usuários podiam transmitir informações para a estação de
transmissão via telefone, fax ou modem, invertendo o processo tradicional de comunicação de
massa, em que um centro transmissor e milhares de centros receptores. As transmissões de
vários lugares terminaram por virar performances com o uso de transmissão via satélite, no que
se poderia considerar uma interferência do receptor na estrutura dos programas em transmissão.
Um dos “programas” consistia numa imagem de Van Gogh que podia ser alterada por usuários
via satélite, através da transmissão, com o uso do teclado ou com o uso de voz, como pode ser
visto na imagem 1.
Figura 1: uma das obras derivadas de Piazza Virtuale
13
Disponível em
http://www.medienkunstnetz.de/works/piazza-virtuale. Acessado em 24/05/2007.
106
Aqui se pode notar uma narrativa em que o telespectador não apenas se depara com uma
narrativa configurada, mas pode alterar fisicamente essa narrativa, antes que ela seja contada.
Assim, o telespectador poderia acessar o estado de mimese I, conforme conceito desenvolvido por
Paul Ricoeur e apresentado nessa tese. Não se tratava, nesse caso, de apenas seguir ligações
preestabelecidas, como em hipertextos complexos, mas de organizar a estrutura da narrativa, ao
vivo, à distância. O processo apresentando pelo projeto Piazza Virtuale pode ser encontrado em
outras obras que serão objeto de análise dessa tese, em que há a mescla de imagens em
movimento, textos, uso do código de programação e participação efetiva do leitor na
configuração da narrativa. A performance vista em Piazza Virtuale é denominada de
metaformance por Cláudia Giannetti, e pode ser caracterizada pelos seguintes elementos: uma
tendência geral dos media para potencializar o desenvolvimento da interface entre obra e
espectador, que permitirá a comunicação dialógica entre ambos; o processo de interação entre
máquina e performers passa a ser um elemento inerente à própria obra; o emprego da técnica
permite ao artista/performer e também aos leitores/telespectadores prescindirem da sua presença
física no espaço da ação; a possibilidade de convidar o leitor/espectador a assumir o seu lugar na
consumação da interação.
O que parece ficar evidente tanto na obra apresentada quanto no conceito desenvolvido pela
autora é a modificação das relações entre autoria e leitura, processo não exclusivo dos meios
eletrônicos ou digitais, mas que ganha uma intensidade diferente nesses casos. A quase superação
total do material com que se cria o objeto desloca os papéis de autor e leitor. O autor passa a ser
entendido como parte intrínseca da obra, o que já era dito por Foucault (1969), e, portanto, e o
processo de autoria reverbera também no momento de recepção por parte do leitor. No caso do
leitor, se como bem diz Paul Ricoeur (1994), é quando a obra encontra o leitor, em mimese III,
que se pode dizer que ela completa o seu ciclo; no caso dos meios eletrônicos ou digitais, esse
processo se intensifica e pode ser visto também na modificação física da própria obra. A
discussão sobre os lugares de autor e leitor também é realizada por Iser (1996), na teoria do efeito
estético, bem como por Alckmar Luiz dos Santos (2003), quando sugere o termo zonas de autoria
compartilhadas para pensar tais relações. Cláudia Giannetti (2002) propõe os conceitos de meta-
autor e receptor-participante nos lugares de autor e leitor, respectivamente. Para sustentar sua
tese, a autora diz que as obras participativas permitem o acesso do observador à experiência
criativa de um modo que não é meramente mental, mas também factual e explícito. Dito de
107
outra maneira, o tipo de imersão permitido pelas obras participativas é uma imersão que não é
mais meramente emocional, mas também física, como será visto no caso dos cibertextos.
“Os sistemas interativos digitais são sistemas abertos, complexos e pluridimensionais, nos
quais o receptor, além de atuar mentalmente, desempenha um papel prático fundamental na
efetivação física das obras.” (GIANNETTI, 2002, p. 105). Esse receptor é o que Giannetti chama
de receptor-participante, pois atua na obra, freqüentemente, de maneira intuitiva e funcional,
contribuindo para a existência física dela. O meta-autor seria aquele que produz as condições
iniciais para que uma obra possa gerar novas obras, a partir da interferência dos receptores-
participantes, ou das próprias estratégias do meio em que a narrativa foi produzida. Ou seja, seria
aquele que cria as regras pelas quais a narrativa pode ser configurada pelo leitor, e não somente
reconfigurada. Nas obras participativas é preciso criar um canal de intercâmbio de informações
entre a obra, o espectador e o entorno, que possa ser configurada como uma rede dialógica
suficientemente aberta, pela qual aconteça um processo real de comunicação. A visão de Cláudia
Giannetti sobre os sistemas interativos parece ser a mesma que Espen Aarseth (1997) possui
sobre os cibertextos, quando trabalha com o conceito de uma perspectiva relacional. O desejo de
criar sistemas interativos digitais acompanha os desenvolvimentos em hipertextos ao longo da
história dessas obras, o que permite dizer que eles não deveriam ser vistos como obras
fisicamente prontas, mas como processos que estimulam a produção através de zonas de autoria
compartilhadas.
4.3 O cibertexto: processos de comunicação em textos dinâmicos
Parece suficientemente claro o paradoxo contido na afirmativa feita por Theodore Nelson,
ao dizer que o hipertexto é um conjunto de partes textuais conectadas por ligações (Landow,
1997). O próprio George Landow confirma esse paradoxo, ainda que pareça não compreendê-lo,
ao buscar várias definições para o hipertexto que apontam para conceitos reafirmadores da
incapacidade de conter o hipertexto em uma obra. Em várias partes do seu livro Hypertext 2.0”,
esse autor deixa clara a dificuldade na visualização do hipertexto como um produto. Tentativas de
definição como “o hipertexto oferece um mesmo ambiente para autor e leitor”, ou “o hipertexto
108
demanda um leitor ativo”, (LANDOW, 1997, p. 6), ou ainda uma definição discutível como “o
hipertexto tem a capacidade de enfatizar a intertextualidade de uma maneira que os textos
contidos em livros impressos não podem fazê-lo” (LANDOW, 1997, p. 35), mostram o caráter
transitório de um hipertexto, a sua ligação direta com o conceito de intertextualidade e também a
sua base relacional. No tocante à última afirmativa de Landow, parece mais prudente afirmar que
a intensidade contida na intertextualidade, presente num texto impresso, transfere-se, em uma
cibernarrativa, para a possibilidade de modificação física da obra no momento da sua leitura.
A visão que Landow apresenta sobre o hipertexto procura demonstrar como a sua estrutura
libera o texto (a obra, no sentido empregado nessa tese) dos constrangimentos físicos relativos ao
suporte impresso, e consequentemente, permite ao texto libertar-se também de uma suposta
univocalidade. O problema com essa visão é conferir ao surgimento de um novo suporte uma
potência que se encontra no processo de leitura, conforme discutido aqui e demonstrado por
Barthes, Eco e tantos outros. Parece mais prudente analisar de que maneira o hipertexto
intensifica o caráter de rede contido em qualquer obra, independentemente do suporte em que
tenha sido produzida. Afinal, como afirma o próprio Landow “Hipertexto, em outras palavras,
fornece um sistema infinitamente recentrável, cujos pontos focais dependem do leitor, que se
torna um leitor verdadeiramente ativo, ainda que em um outro sentido.”
14
(tradução nossa)
(LANDOW, 1997, P. 36). Esse sistema que pode comportar diversos centros, de acordo com o
ponto de vista do leitor, remete à teoria do efeito estético, de Iser (1996), quando o autor procura
caracterizar qual é o papel do leitor. O leitor seria aquele que atualiza o texto constantemente, de
acordo com um leque possível de realizações que está contido nas estruturas da obra. Assim, a
materialização episódica do texto permitiria perceber como o leitor utilizou as estruturas gerais
do texto. Entretanto, Iser trata do texto impresso, que fisicamente não irá exibir as atualizações do
leitor. O hipertexto, pelo seu próprio suporte, pode ser modificado fisicamente por qualquer
atualização sobre ele realizada. Sua estrutura material não precisa permanecer a mesma no ato da
leitura. O processo de leitura, dessa maneira, é o responsável por abrir a obra e fazer surgirem
textos variados. O suporte em meio eletrônico permite materializar os textos criados pela leitura,
posicionando a obra dos quais eles derivam num centro provisório de influência, e permitindo ao
leitor perceber tal obra como composta de diversas outras obras, textos, leituras etc. a
14
"Hypertext, in other words, provides an infinitely recenterable system whose provisional point of focus depends
upon the reader, who becomes a truly active reader in yet another sense."
109
intensificação de uma experiência que pode ser realizada também no texto em meio impresso e
não uma mudança radical do processo de leitura no hipertexto em meio eletrônico.
Ainda assim, em vários outros autores pode-se encontrar uma visão do hipertexto como
uma estrutura que irá libertar a obra do poder “tirânico” do autor e permitir que as leituras sigam
um curso mais livre que na obra impressa. A leitura de uma obra impressa é capaz de abrir o
texto, porque o leitor reconfigura a narrativa que lhe é proposta pelo autor. O que o hipertexto
pode fazer e, por isso, ele é considerado aqui como uma característica das relações entre autoria e
leitura, é estender esse texto derivado da leitura de uma obra para a própria constituição física da
obra. A possibilidade de participação do leitor na estrutura de um hipertexto é vista, por Jean
Clément (2000), como um ato responsável por fazer do hipertexto algo que “não deve ser
construído de acordo com uma única perspectiva que culminaria na última página, ele é arranjado
para ser visitado como uma exibição de pintura ou uma cidade estrangeira” (tradução nossa)
(CLÉMENT, 2000, p. 5)
15
. Se é possível fazer tal afirmativa sobre como construir um hipertexto,
tal não parece ser o caso quando se fala do processo de leitura de um texto em meio impresso.
Afinal, os movimentos do leitor podem ser restritos fisicamente ao que a obra apresenta, mas não
são restritos, em termos de interpretação, ao que a obra sugere. A afirmativa de Clément permite
reafirmar o hipertexto com uma estrutura processual, fisicamente aberta para a criação de
ligações pelo leitor, ainda que nem todos os hipertextos se comportem de tal maneira. Susana
Pajares Tosca (1997)
16
, a esse respeito, defendia, em 1997, a existência de ao menos dois tipos de
ficção hipertextual: a hiperficção explorativa e a hiperficção construtiva. A primeira teria um
autor, permitindo ao leitor decidir o seu trajeto de leitura, em função da escolha de que ligações
deseja seguir. Entretanto, como afirma a própria autora, não se pode dizer aqui de uma decisão
real do leitor, uma vez que as ligações teriam sido escritas e pensadas previamente por um
autor, que não perde o controle da narração. No caso da hiperficção construtiva, pode-se falar de
uma autoria colaborativa, uma vez que ela permitiria uma experiência semelhante aos role
playing games.
“Nesse tipo de jogos, o narrador prepara um esquema de uma história e funciona como
árbitro, regulando as ações dos jogadores, que atuam como personagens da história. Os
15
“Not being constructed according to a single perspective which would culminate on the last page, it is arranged to
be visited like a painting exhibition or a foreign city”. Disponível em http://hypermedia.univ-
paris8.fr/anglais/fiction.html. Acessado em 24/05/2007.
16
Disponível em
http://www.ucm.es/info/especulo/numero6/s_pajare.htm. Acessado em 11 de outubro de 2007.
110
jogadores conversam e solucionam os conflitos propostos pelo narrador, como se
fossem atores em um filme, mas que tem que inventar o roteiro a cada passo; (...)deste
modo, a história se conta entre todos, ainda que siga um esquema básico de ações
possíveis e encontros preparados pelo narrazdor, que controla até certo ponto o
desenrolar da história.” (tradução nossa) (TOSCA, 1997, s/p)
17
O paralelo com os role playing games, para a autora, mostra um exemplo de autoria
compartilhada que é muito mais lúdica que necessariamente estética, mas o que interessa aqui é a
visão de que não se trata de definir obras construtivas ou exploratórias, mas processos que
atravessam tais obras. E pensar que tais processos podem reposicionar a experiência estética com
obras em rede. Afinal, parece ser exatamente isso que a autora mencionada afirma, ao dizer que o
mundo da hiperficção é um espaço performático, permitindo que múltiplos autores e/ou leitores
ocupem, a cada vez, o palco onde o jogo” é encenado. Mais que procurar uma associação entre
os hipertextos e a idéia de jogo, aqui encontra-se uma abertura para falar do cibertexto como um
processo em que o leitor pode atuar como receptor-participante, ao manipular as estruturas
elementares da narrativa, como se estivesse em mimese I. O que muda, no caso dos cibertextos, é
que as estruturas elementares não são manipuladas na reconfiguração da narrativa, como em
textos produzidos para outros suportes, menos maleáveis fisicamente. o significa dizer que o
cibertexto apresenta uma estrutura esteticamente superior ou inferior, mas que transporta a
experiência estética para outras formas de contato com a obra.
obras que parecem se comportar para além do simples processo de ligações entre
conjuntos de textos, conforme a definição mais usual de hipertexto. Em Solitaire
18
, há indícios do
que se poderia chamar de uma cibernarrativa. Neste jogo transformado, o leitor faz o papel de
autor de uma obra que está contida em um conjunto de cartas. Estas, por sua vez, são
apresentadas em grupos de três por vez ao leitor, que escolhe como irá ordená-las. À medida que
faz as escolhas, o leitor constrói sua própria história e, ao final, pode escolher registrá-la em uma
galeria. A galeria poderia ser mais interessante se fosse aberta para que todos pudessem trabalhar
as histórias ali expostas. Afinal, o texto em cada carta não muda, apenas a posição delas nas
diversas histórias. Ou seja, a recombinação permitida pelo suporte eletrônico transporta para a
17
“En este tipo de juegos, un ‘narrador’ (storyteller) prepara el esqema de una historia y ejerce de árbitro regulando
las acciones de los jugadores, que actúan de personajes de la historia. Los jugadores hablan y van solucionando los
conflictos que les plantea el narrador, como si fueran actores en una película pero tuvieran que ir inventando el guión
a cada paso; (...)de este modo, la historia se cuenta entre todos, aunque siga un esquema básico de posibles acciones
e encuentros preparados por el narrador, que controla hasta cierto punto el desarrollo de la historia.”
18
Disponível em
http://www.turbulence.org/Works/solitaire/index.html. Acessado em 24/05/2007.
111
estrutura física da obra a mesma recombinação que um processo de leitura pode criar, ao se ver
diante das mesmas cartas. Essa é a proposta, por exemplo, de “O castelo dos destinos cruzados”,
de Ítalo Calvino (1991). Várias histórias, contadas com um mesmo baralho, e que podem
inclusive se entrecruzar, como de fato acontece na obra de Calvino. A diferença entre os
processos reside no fato de que em Solitaire são os leitores que criam a obra e, na obra de
Calvino, é ele que estrutura todas as histórias que ali se encontram. O que muda, então, é o modo
de fazer aparecer o que seria próprio de um processo hipertextual, o entrecruzamento de diversas
histórias. Novamente, o hipertexto surge como característica do processo de autoria/leitura da
obra, e não como algo que reside encerrado na obra. Ou seja, o hipertexto pode ser caracterizado
como uma estrutura discursiva multilinear, que aponta para uma multiplicidade de possibilidades
de construção e leitura (Palácios, 1999)
19
.
Jay David Bolter (2001) discute o hipertexto a partir do conceito de remediação do
impresso, o que parece uma abordagem mais cuidadosa do que aquelas que afirmam o caráter
completamente novo e sem paralelo das obras hipertextuais em relação à literatura em meio
impresso. Ainda que alguns excessos se possam verificar na discussão realizada por Bolter,
uma tentativa de definir o hipertexto como um processo não diferenciado do que se pode fazer
com a escrita em meio impresso.
“Na sua rivalidade com o impresso, o hipertexto se apresenta como uma intensificação,
uma hipermediação de um meio mais antigo. Quando Nelson deu o nome hipertexto ao
textos interligados digitalmente, ele queria indicar algo como um ne plus ultra’ do
texto. Ao seguir ligações hipertextuais, o leitor torna-se consciente da forma do meio em
si e das suas interações com ele. Em contraste, o impresso tem sido reconhecido
geralmentecomo um meio que deveria desaparecer das considerações conscientes do
leitor.” (tradução nossa) (BOLTER, 2001, p. 43)
20
.
O excesso na citação acima parece ser a tentativa de rivalizar o meio impresso com o
hipertexto, mas é inegável considerar que a abordagem de Bolter indica o hipertexto como uma
intensificação do que acontece no meio impresso. Essa perspectiva não é diferente da que é
adotada nessa tese, qual seja, a de que o hipertexto não deve ser considerado como um produto,
19
Disponível em http://www.comunica.unisinos.br/tics/textos/1999/1999_mp.pdf. Acessado em 11/10/2007.
20
“In its rivalry with print, hypertext presents itself as an intensification, a hypermediation, of the older médium.
When Nelson gave the name hypertext to linked digital texts, he meant, something like the ‘ne plus ultra’ of text. In
following hypertexual links, the reader becomes conscious of the form of medium itself and of her interaction with it.
In contrast, print has often been regarded as a medium that should disappear from the reader’s conscious
consideration.”
112
mas como um processo que pode ser encontrado em diversas obras, de maneira mais ou menos
intensa. Jane Yellowlees Douglas (1992)
21
, ao comparar experiências de leitura em textos
impressos e em textos em meio eletrônico, parece indicar o mesmo caminho, ao afirmar que as
narrativas hipertextuais exigem que os leitores realizem uma imersão nas redes de possibilidades
narrativas e consigam se libertar dessas mesmas redes, a fim de compreenderem as narrativas
como uma estrutura de possíveis estruturas.
Jay David Bolter indica ainda uma outra qualidade do processo hipertextual em meio
eletrônico, muito próxima do que Cláudia Giannetti denomina polissensorialidade, bem como
próxima das afirmações de Barthes sobre a relação entre obra e texto. Bolter defende o fato de
que o hipertexto em meio eletrônico promove uma ruptura da hierarquia entre o visual e o verbal
e permite uma reconfiguração da relação entre esses elementos numa obra em meio eletrônico.
Entretanto, mais uma vez o autor posiciona sua argumentação dentro de uma análise mais ampla,
que reconhece o poder do hipertexto em meio eletrônico de resgatar processos antigos de escrita,
em que era possível verificar relações não-hierárquicas entre visual e verbal, ou mesmo relações
em que a hierarquia apareceria invertida (o visual não serviria apenas para ilustrar ou completar o
verbal). “Hipermídia pode ser reconhecida como um tipo de escrita pictórica, que remodela as
qualidades tanto da escrita pictórica quanto da escrita fonética”.(tradução nossa) (BOLTER,
2001, p. 58)
22
. Como bem diz Bolter, os manuscritos medievais apresentavam arranjos visuais
bem mais complexos que os primeiros livros impressos. Nesses, a imagem era controlada pelo
verbal e devia funcionar como complemento de uma obra feita, em larga medida, a partir do
verbal. Ao longo do tempo, os livros adquiriram várias marcas visuais para orientar o leitor
através da massa de elementos verbais, mas ainda nesses casos o que se pode constatar é que a
informação visual aparece subordinada à informação verbal, fisicamente. Em termos de
interpretação, a discussão é de ordem completamente diversa da que se realiza aqui. Antes
mesmo de pensar o hipertexto em meio eletrônico, é possível perceber que os livros impressos
atuais buscam também uma reorganização entre os elementos verbais e visuais, talvez buscando
resgatar formas expressivas de outrora. O que parece próprio do meio eletrônico, e nesse sentido
se pode falar de uma intensificação do que acontecia nos manuscritos medievais, é a fluidez do
material digital, de modo que texto e imagem podem se fundir e se metamorfosearem, pois são
21
Disponível em http://web.nwe.ufl.edu/~jdouglas/perforations.pdf. Acesso em 11/10/2007.
22
“Hypermedia can be regarded as a kind of picture writing, which refashions the qualities of both traditional picture
writing and phonetic writing.”
113
agora dígitos numa memória também digital. Assim, o meio eletrônico parece permitir um tipo de
experiência que remete a formas de “escrita” e “leitura” não mais restritas ao código verbal.
“O uso de imagens para a comunicação cultural não apresenta nada de novo. Mesmo
antes da invenção da imprensa escrita, já havia sido desenvolvido, na Idade Média, uma
sofisticada iconografia que substituía as palavras para uma audiência, em sua maior
parte, iletrada. Uma catedral medieval era realmente um complexo texto hipermidiático,
disposto num espaço sagrado para que a comunidade pudesse lê-lo.” (tradução nossa)
(BOLTER, 2001, p. 54)
23
.
O hipertexto em meio eletrônico pode ser visto então como um resgate de experiências
associadas a outros tipos de suporte e mesmo com a experiência de “leitura” de ambientes físicos,
como no caso das igrejas. Tal resgate intensifica a experiência pela desmaterialização do suporte
eletrônico e pelo constante movimento físico do hipertexto na tela do computador. A obra digital
reforça o caráter de rede presente em obras impressas, as quais também fazem parte de um
processo de conexão entre várias obras impressas, mesmo que as segundas obras não sejam
ligações dentro da obra original. O suporte digital pode ser considerado, dessa maneira, uma
estrutura física em rede, nas quais as obras são processuais e não mais produtos acabados em
termos físicos. Ollivier Dyens (2003) considera as obras em rede semelhantes às glosas da Idade
Média, com sua mistura de textos, imagens em formatos alineares e afirma ainda que o suporte
para essas obras é a navegação, e não o livro, a interface, a tela etc. Essa perspectiva permite
afirmar a literatura em meio eletrônico como uma experiência que transporta para a existência da
obra aquilo que acontece quando o leitor produz um texto: a produção de interpretações pode
funcionar para interferir no caráter físico da obra. E mais, a obra em rede possui um caráter
fugidio próprio da construção de textos, como afirma Barthes, em que as interpretações não
reduzem a obra escrita e nem se reduzem a ela. Entender o hipertexto, o cibertexto e as
cibernarrativas como obras em e da rede, sem querer conferir a essa relação uma idéia de
evolução, significa afirmar a efemeridade dos produtos criados com tais processos e, portanto,
reforçar o caráter processual deles.
A efemeridade é uma experiência própria da interpretação, ainda que não se queira afirmar
que as interpretações não possam durar o tempo de uma vida. Antes, por efêmero quer se
23
“The use of images for cultural communication is nothing new. Even before the invention of the printing press, the
Middle Ages had developed a sophisticated iconography that served in the place of words for a largely illiterate
audience. A medieval cathedral was indeed a complex, hypermediated text displayed in a sacred space for the
community to read.”
114
enfatizar o caráter não-material de qualquer interpretação e, logo, a sua independência de um
suporte físico. Considerar o hipertexto como uma característica associada ao processo de escrita e
leitura, sem que seja necessário definir um suporte, permite também afirmar a multilinearidade
contida em experiências com hipertextos em meios eletrônicos. Além disso, se em obras em meio
eletrônico é possível registrar as interpretações, ou seja, os textos derivados da leitura de obras, é
preciso discutir também de que maneira o meio eletrônico intensifica a experiência e a presença
do leitor na obra. Nesse sentido, o conceito de cibertexto, conforme desenvolvido por Aarseth
(1997) apresenta-se como uma derivação natural da discussão até aqui empreendida.
Por que pensar o cibertexto a partir da experiência de escrita e leitura? Porque ele não é
uma obra pronta, que pode ser dissecada, ou que a ilusão de poder sê-lo. Parte-se aqui da
premissa que considera o cibertexto como processo, como obra sempre em construção, como um
acontecimento. Essa proposição, que pode ser encontrada na discussão que Aarseth realiza sobre
cibertexto, aproxima-se bastante da noção de Iser sobre o texto literário como acontecimento.
O conceito de cibertexto, conforme discutido por Aarseth, baseia-se em uma argumentação
consistente para discutir uma definição mais ampla, qual seja, a do que seria a cibernarrativa. O
autor procura realizar uma aproximação em direção ao cibertexto tomando como premissa a idéia
de uma literatura ergódica. Ou seja, o processo cibertextual exige um esforço de construção física
da própria obra, o que deixa clara a noção de que as características físicas do meio fazem parte da
experiência da obra. Quando Aarseth menciona o termo ergódico, o objetivo é reforçar o ato
físico de construção dos significantes no cibertexto por aquele que iexperimentá-lo. Alckmar
Luiz dos Santos (2003) parece propor o mesmo quando sugere pensar as práticas de arte
contemporâneas – o cibertexto estaria aí incluído – como produção de possibilidades de produção
de materialidades. Trata-se de enfatizar os processos de produção e circulação de significantes, de
negociação entre aqueles que experimentam a obra e podem modificar suas condições de
existência e, portanto, de produção.
Tendo em mente essa proposição, o ato da leitura do cibertexto é o ato de um jogador, de
alguém que aposta em determinadas estratégias de construção topológica da obra; de construção,
em primeiro lugar da materialidade da obra. O cibertexto seria uma máquina de produzir
variedade de expressões (Aarseth, 1997). Se cada escolha de leitura gera um processo de
significância, no cibertexto cada escolha implica uma mudança física da obra que i gerar o
texto. Dessa maneira, o primeiro processo de significação é aquele em que o leitor escolhe quais
115
os significantes farão parte da obra que irá ler. No caso de uma obra em meio digital, os
significantes compreendem desde a palavra na tela até uma animação em que imagens misturam-
se com sons e outras palavras. Essa forma de trabalhar com o cibertexto permite pensar que o tipo
de imersão aqui presente sugere uma entrada na obra, na materialidade do que virá a existir.
Entretanto, tal obra já se transforma quase que instantaneamente em texto, que volta a ser obra e
assim sucessivamente. Aqui parece acontecer a reversibilidade entre obra e texto, como aquela
descrita por Merleau-Ponty (2003) entre visível e invisível e entre espaço e tempo.
Ainda como uma aproximação do que seria o cibertexto, Aarseth (1997) o considera como
uma perspectiva para explorar as estratégias comunicacionais de textos dinâmicos. Tomando tal
conceito como base, pode-se dizer que o cibertexto seria uma relação e não uma forma
espacializada e fixada através de um grupo de significantes.
Se o cibertexto baseia-se nas estratégias comunicativas de textos dinâmicos, parece ser
possível, ao menos, utilizá-lo para discutir algumas experiências, como os MUDs (ambientes
construídos através de estratégias textuais) e os games de estratégia de última geração. É
necessário não deixar de mencionar formas de cibertexto que não são necessariamente digitais ou
eletrônicas, como Cent mille milliards de poèmmes, de Raymond Queneau. Aarseth acrescenta
um dado importante em relação aos sistemas de formas digitais de textualidade ergódica: a
separação física entre obra armazenada e superfície de leitura. A imersão que o receptor
participante experimenta, na maioria dos casos, não acontece no nível da obra armazenada, mas
numa primeira derivação do código digital. Romper essa distância, permitindo a esse receptor
alterar a obra armazenada, talvez seja o primeiro passo em direção a uma outra possibilidade ou
perspectiva de imersão.
A definição que Aarseth propõe para o cibertexto permite trabalhar textualidades como
estratégias de comunicação,
“Cibertexto é uma perspectiva em todas as formas de textualidade, uma forma de
expandir os estudos literários para incluir, no campo da literatura, fenômenos que são
percebidos como não pertencentes ao campo, ou marginalizados. (...) eu investigo o
comportamento literário de certos tipos de fenômenos textuais e tento construir um
modelo de comunicação textual para acomodar qualquer tipo de arte”. (AARSETH,
tradução nossa, 1997, p. 18).
24
24
“Cybertext is a perspective on all forms of textuality, a way to expand the scope of literary studies to include
phenomena that today are perceveid as outside of, or marginalized by, the field of literature – or even in opposition
to it, for (as I make clear later) purely extraneous reasons. In this study I investigate the literary behavior of certain
116
O forte componente relacional implícito nessa sugestão indica a necessidade de
experimentar a obra para que ela possa ser percebida também como um modo de mediação para
uma experiência. A obra não é somente uma experiência em si, mas é uma relação que permite
estabelecer a experiência, de forma indireta, com o Ser, conforme descrito por Merleau-Ponty.
Considerar uma obra como um modo de mediação, no presente estudo, permite vê-la como capaz
de comportar espaço e tempo conjuntamente, numa relação dinâmica.
O autor também considera o cibertexto como um sistema em que três partes se combinam
para formar vários tipos de texto. Os três elementos seriam: os signos verbais, o meio através do
qual esses signos podem ser trabalhados e o operador humano. As fronteiras entre esses três
elementos são fluidas e podem ser constantemente transgredidas. Mas os textos se tornariam
visíveis na relação entre os três elementos.
Aarseth utiliza os termos textons e scriptons para detalhar os componentes de um texto.
Segundo sua definição, os scriptons são o que o leitor ideal deve ler se seguir a estrutura
conceitual proposta, embora não sejam aquilo que o leitor realmente lê. Os textons são o conjunto
de significantes que compõem a parte material da obra. Parece ser possível, por analogia,
trabalhar com os textons e scriptons como se fossem obra (parte material) e texto (diversas
leituras que uma mesma obra pode receber), respectivamente. E, mais ainda, com espaço
(textons) e tempo (scriptons). Os textons parecem ser de uma ordem mais próxima da
organização espacial do código, enquanto que os scriptons relacionam-se com o aspecto temporal
de cada obra, com o movimento que os leitores exercem sobre a obra e com os movimentos que a
obra enseja no leitor.
Do cruzamento entre os textons, os scriptons e as funções que o leitor tem à sua disposição,
é possível descrever como o cibertexto funcionaria. Um cibertexto deve permitir que os textons
que o compõem possam ser adicionados ou retirados pelo usuário, além de permitir que os
scriptons a serem criados também sejam parcialmente escolhidos pelo leitor. Além disso, todo e
qualquer cibertexto comportaria também uma função interpretativa, relacionada aos diversos
significados que o leitor pode encontrar no texto. Segundo essa proposta, o cibertexto poderia
comportar códigos verbais, visuais e sonoros e não depender de uma existência eletrônica. Antes,
types of textual phenomena and try to construct a model of textual communication tha will accommodate any type of
text”.
117
a perspectiva aqui é muito mais próxima dos movimentos que o leitor pode ou não fazer em
conjunto com outros leitores e com a própria obra. Ou seja, o cibertexto seria uma produção que
demandaria uma ação sobre a obra, que possuiria função ergódica. Aarseth (1997) define a
função ergódica como uma situação em que uma cadeia de eventos (um caminho, uma seqüência
de ações) foi produzida por esforços incomuns de um ou mais indivíduos ou mecanismos.
A proposta de Aarseth, de investigar as obras ergódicas como máquinas textuais, as
posiciona como conjunto de relações entre dimensões. Essa aproximação em termos de
dimensões permite trabalhar as cibernarrativas como compostas de n variáveis, que não podem
ser isoladas entre si, embora apresentem diferenças. É possível, também, discutir a relação entre
espaço, tempo e as categorias de Aarseth. Ao aprofundar a análise sobre o controle da obra por
alguma das dimensões tradicionais (autor, texto ou leitor), Aarseth apresenta o exemplo de “Book
Unbound”, em que o texto é controlado pelo equilíbrio das relações entre essas três fontes de
autoridade. Novamente, a dimensão relacional permite perceber que tanto obras quanto textos
não são objetos puros.
Os cibertextos, segundo a proposição de Aarseth, possuiriam dimensões para-verbais, além
de serem considerados “máquinas” para produção de variedades de expressões. Essa segunda
perspectiva permitiria considerar o cibertexto como uma obra em que a imersão se daria sempre
no cruzamento das fronteiras entre os meios (verbal, não-verbal etc). O cibertexto não seria
somente um meio através do qual algo é expresso, mas a própria fundação da possibilidade de
expressão. Mas, em que sentido isso seria possível?
Na experiência de criação do cibertexto, no ato da produção de sua materialidade, o que o
autor produz ou vivencia é uma imersão na obra, mas não na forma que esta irá tomar para o
leitor exclusivamente. O cibertexto possui potência e abertura suficientes para permitir ao autor
criar condições de possibilidades de produção de obras e não somente as obras em si. O autor
pode tornar-se um meta-autor. Nesse sentido, seria o responsável por criar dispositivos de escrita
que podem ser utilizados pelos leitores para modificar a própria obra que ainda não apareceu
como um todo. Talvez possa se pensar aqui em um movimento de imersão que tem sua origem na
obra e tem como um dos resultados as várias possibilidades de obras que os leitores podem
construir. A obra “Paisagem Zero
25
, de Giselle Beiguelmann, apresenta uma possibilidade para
pensar a autoria como um estranho atrator, nos dizeres de Alckmar Luiz dos Santos (2003). O
25
Disponível em
http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/paisagem0/, acessado em 06 de abril de 2004, às 20:27.
118
autor seria metaforizado como um atrator em torno do qual os significantes seriam instalados em
um campo de sentidos possíveis. O que a criadora do sítio faz é propor um trabalho a partir dos
significantes originais, da mesma maneira que Alckmar pontua em sua descrição do autor como
estranho atrator. É como se Giselle houvesse visualizado diversos textos a partir de uma obra
possível e, em vez de terminar a obra, partisse desses textos para propor significantes a serem
trabalhados. Ao leitor/experimentador do sítio é proposto criar obras e não somente textos, ou
ainda, primeiramente criar as obras e depois usufruí-las também como textos. Se os significantes
podem ser relacionados de modo mais próximo com o espaço de onde surgirá o texto, e este pode
ser relacionado com as dimensões temporais que uma obra contém, a meta-autora de “Paisagem
Zero” realiza um movimento que vai do texto à obra e daos significantes. Inverte o processo
tradicional de significação, que parte do encontro de significantes organizados e que sugerem
possíveis significações.
O autor aqui funciona não como uma pessoa empírica, mas muito mais como uma função
da própria obra. E o leitor pode, no cibertexto eletrônico, acessar essa função e dispor dela para
realizar uma leitura que é também criação de uma obra. A instabilidade dos significantes no
cibertexto, como condição fundadora de sua própria materialidade, é uma possibilidade para
pensar que a imersão, em um cibertexto de base eletrônica, acontece no movimento físico entre o
espaço (obra) e o tempo (texto).
No caso da leitura, propõe-se pensá-la como uma experiência relacionada ao processo de
criação de possibilidades de produção em um cibertexto eletrônico. Significa pensar que a leitura,
num cibertexto, cuja característica é a de ser uma obra que exige ação física do leitor, pode
originar outras escritas para a obra e pode, assim, permitir ao leitor realizar um processo de
imersão que é diverso daquele tradicional de encontrar significações em obras já terminadas
materialmente. Aarseth discute essa questão quando defende que
“No cibertexto, entretanto, a distinção é crucial e muito diferente; quando você a
partir de um cibertexto, é constantemente lembrado das estratégias inacessíveis e dos
caminhos que não seguiu, das vozes que não escutou. Cada decisão tornará algumas
partes do texto mais acessíveis e outras menos, e você nunca saberá exatamente o
resultado exato de suas escolhas; isso é, o que você perdeu exatamente. Isso é muito
diferente das ambigüidades do texto linear. E a inacessibilidade, é preciso reforçar, não
implica ambigüidade, mas falta de possibilidade uma aporia”. (tradução nossa)
(AARSETH, 1997, p. 3).
26
26
“In a cybertext, however the distinction is crucial – and rather different; when you read from a cybertext, you are
constantly reminded of inaccessible strategies and paths not taken, voices not heard. Each decision will make some
119
O cibertexto, na visão de Aarseth, leva o leitor a ser um receptor-participante, um
interventor na obra, através do texto que escolhe. E essa obra derivada da experiência não é
somente uma interpretação, é uma intervenção na primeira obra que surgiu. É como se o
cibertexto fizesse o leitor atravessar as várias camadas temporais que repousam no fundo de toda
obra. Ou melhor, experimentasse uma reversibilidade como a que descreve Alckmar Luiz dos
Santos.
“Entre leitor e autor se estabelece uma duplicidade anterior à materialização da
linguagem em forma de escrita: o leitor que sou agora de um dado texto busca, num
primeiro momento, a perspectiva do autor que eu era de minhas palavras; o autor
de quem julgo receber o texto não é apenas o outro que produziu esse texto, mas é
também uma dada maneira de manifestar a originalidade com que me insiro na língua
por meio desse texto e dessa linguagem”. (SANTOS, 2003, p. 77).
À medida que lê, o leitor deve perceber o seu percurso de leitura, a forma como lê, o jeito
de ler. Assim, ele constrói a obra a ser lida e essa construção o torna um pouco autor dessa obra
que ali se oferece para ser experimentada.
Alckmar Luiz dos Santos (2003), ao propor o texto eletrônico como produtividade, parece
falar de uma literatura ergódica. No processo de navegação de um texto a outro, através de
ligações, haveria não um texto primeiro e um texto segundo, fixados como tais, mas uma relação
em que o segundo texto se a ler de acordo com o grau em que evoca ou não o primeiro texto.
Do processo de diferenciação e das ações exercidas pelo leitor entre os dois textos surgiria um
texto terceiro, que seria o texto como produtividade, um texto que o próprio leitor se a ler,
ainda que tal texto não seja materializado em forma de obra, mas que exista apenas no ato de
transposição entre um e outro texto, seja do primeiro para o segundo ou vice-versa. Ao leitor
compete delinear a fisionomia do texto produzido por sua leitura, de modo também a criar uma
obra que poderá se desdobrar em outros textos, de acordo com os movimentos de outros leitores.
Para pensar a relação entre uma pretensa cibernarrativa, o tempo e espaço, pode-se partir da
proposição esboçada por Alckmar Luiz dos Santos em “Leituras de nós”.
“O que ocorre com a mudança da base material, da página impressa para o meio
eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminar
parts of the text more, and other less, accessible, and you may never know the exact results of your choices; that is,
exactly what you missed. This is very different from the ambiguities of a linear text. And inaccessibility, it must be
noted, does not imply ambiguity but, rather, an absence of possibility – an aporia.
120
pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade que foram,
sempre, as do próprio texto. Aquilo que no texto é intertextualidade, no livro eletrônico
encontra correspondência na pluralidade de percursos e na heterogeneidade de
materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.)”. (SANTOS, 2003, p. 22).
A fluidez de que se contamina a obra reforça uma possível reversibilidade e co-operação
entre espaço (obra, materialidade do suporte) e texto (percurso derivado da leitura e
experimentação do texto) no cibertexto. Este, por sua vez, seria construído pelo próprio
ciberespaço, por uma base material o livro eletrônico; e o próprio texto (Santos, 2003). Essa
forma de construção indicaria uma análise da obra digital em seu dinamismo, naquilo que se
refere aos modos de produção de possibilidades de uma obra. Esses modos seriam a ordem plural
de escritas e leituras, a reversibilidade entre o espaço da obra e o tempo do texto, o constante
movimento entre os três elementos sugeridos por Aarseth para discutir a obra em meio eletrônico.
Pensar e produzir um cibertexto relaciona-se, segundo essa proposição, com uma
construção sempre provisória em que os gestos de escrita e leitura são realizados diante de
imagens, ícones, movimentos e processos que podem ser manipulados, de forma a comportarem
também os deslocamentos que autor e leitor realizam durante a construção de um texto. A
criação de um cibertexto, dessa maneira, deveria ser capaz de preservar a intersubjetividade que
existe em todo ato de linguagem, fazendo dela o ponto de equilíbrio inconstante na produção de
um saber internético. (Santos, 2003). O cibertexto intensifica o aspecto relacional existente entre
todo ato de escrita e leitura, transferindo também para a obra a construção de textos, antes restrita
somente a processos interpretativos. Assim, a produção de cibertextos, ou seja, a construção de
cibernarrativas é, antes de tudo, a construção de espaços de imersão similares à imersão
emocional experimentada por um leitor no ato de leitura. Entretanto, as cibernarrativas permitem
deslocar a imersão do seu aspecto puramente emocional e sugerem ao leitor uma imersão física
na obra, mas não no seu caráter de espaço pronto a ser explorado e, sim, no seu caráter temporal,
relacional.
121
5 IMERSÃO: UM CONCEITO RELACIONAL
5.1 Ilusão e imersão na arte virtual
O conceito de imersão apresentado procura conjugar quatro aspectos centrais para essa tese:
a fenomenologia do ato de leitura, a relação entre tempo, espaço e narrativa, as noções sobre uma
poética da imersão e a relação entre imersão e arte virtual. Essa última relação terá como base a
experiência de imersão na história da arte até o surgimento da arte virtual, enquanto a noção de
poética de imersão permite relacionar o conceito com narrativas em meio digital. Devido ao
trânsito das cibernarrativas entre os códigos verbais, imagéticos, sonoros e digitais, parece
prudente tentar uma abordagem capaz de conjugar os aspectos indicados, com o objetivo de
retirar desse cruzamento um conceito capaz de fazer jus ao título do capítulo e apresentar a
imersão em seu aspecto relacional (imersão e a relação com o espaço e o tempo; imersão na arte
virtual; imersão na literatura, a partir da teoria do efeito estético e, finalmente, a imersão no
código digital, baseada na manipulação do código e das camadas temporais que compõem a
obra).
A imersão acontece sempre no visível e no invisível, de acordo com as relações que se pode
estabelecer com o espaço e o tempo. Ela possui um forte componente relacional, um caráter de
entrelaçamento que se configura como constituinte do próprio conceito. Tal caráter advém da
própria maneira como espaço e tempo são propostos nessa tese: como relação entre visível e
invisível, como fundo e figura que são indistintos, embora se diferenciem de acordo com a
experiência. A cibernarrativa, ao permitir o acesso a um tempo pré-figurado, coloca em questão
justamente a relação entre tempo e espaço.
Ao discutir a experiência de Matisse na pintura, Merleau-Ponty diz que o pintor não
precisou calcular os gestos possíveis para executar o ato com o pincel. O pintor já estava
instalado na tela aberta, executava-a imerso dentro dela e, ao mesmo tempo, do lado externo da
mesma.
122
Quando se pensa em Matisse instalado num tempo e numa visão humanos, é possível
imaginar que a experiência de criação é também uma forma de mediação entre o pintor e o
mundo. É um contato que instaura a possibilidade de percepção da “carne” do mundo, do Ser
selvagem, de maneira sempre inacabada. várias formas de experimentar o que o olhar e o
toque humanos percebem, na sua relação constante de formação e de formadores do visível e do
invisível. Não se trata, porém, de igualar tais formas a aparelhos técnico-biológicos que
estabelecem a relação entre sujeito e objeto, mas de compreender que a mediação é inerente à
própria experiência, bem como esta permite compreender o papel dos sentidos como modos de
mediação com a carne do mundo. A aproximação sugerida com o termo “modos de mediação”
permite discutir a escrita e a leitura como mediações correlatas da experiência do sensível.
Mediações que acontecem através do gesto da pena, do gesto do pincel, do surgimento e
desaparecimento dos caracteres na tela do computador.
Em cada uma dessas experiências descritas acima, é possível discorrer sobre como o espaço
e o tempo surgem nas obras e nos textos criados. Ou seja, espaço e tempo servem como
condições para e na percepção da experiência. Como discutido anteriormente aqui, espaço e
tempo relacionam-se com o suporte numa condição de co-operação e não de subordinação. A
proposta é pensar como espaço e tempo surgem no ritmo da poesia, nas utilizações dos tempos
verbais, na sua presença nos cortes do cinema, no ritmo das imagens em vídeo, nas ligações
realizadas entre palavras e imagens no hipertexto, no som que uma palavra emite ao ser vibrada
pelo mouse. A partir dessa perspectiva é possível pensar de que forma o suporte torna
perceptíveis o espaço ou o tempo, no momento da criação da obra ou do texto. Afinal, se o
tempo sustenta a mobilidade do olhar para as coisas, é porque se encontra sustentado por essa
relação, e não independentemente dela. E a mobilidade do olhar pode processar-se através de
diversos suportes, que irão alterar o modo como o tempo pode ser percebido, mesmo que
indiretamente, pelo olhar. Essa mesma descrição pode ser utilizada para discutir a percepção do
espaço, posto que este coexiste com o tempo na experiência de criação de uma obra.
As formas espaciais que surgem na utilização de um determinado suporte não são puras,
mas possuem uma materialidade mais condensada no terreno do visível (espaço) e menos no
campo do invisível (tempo). No ato da escrita há sempre um movimento de testar a materialidade
do que se tem em mãos para mediar uma experiência sensível. De acordo com os significantes
que se utiliza, é possível perceber uma imersão do escritor mais próxima do espaço ou mais
123
próxima do tempo. Essa experiência também estará disponível ao leitor, mas a proposta aqui é
pensar que o primeiro leitor de uma obra é o seu próprio autor, ainda que essa leitura aconteça
porque o autor percebe que existe um texto que fala através de si. A leitura a que se faz
referência não é ainda aquela que será derivada da ou das revisões a que o autor submete o seu
próprio texto, mas da percepção do autor, no momento mesmo em que escreve, de que um
texto sendo escrito por entre as palavras que utiliza, um texto que se escreve através do ato desse
autor. O movimento que ele realiza entre os significantes utilizados seria também a razão para
perceber sua obra como uma ação orientada por um motivo, que é origem” e também
continuidade dessa ação.
A obra criada comporta sempre a sua visibilidade, e também as suas metamorfoses, pois
não se sedimenta indefinidamente em uma de suas representações. Quando um determinado
significante é utilizado, a sensação de cristalização do tempo nesse significante pode se fazer de
forma quase que intransponível, como se o significado de uma palavra estivesse sempre presente
ali, no momento em que ela surge no papel. A “quebra” dessa cristalização pode se produzir de
diversas maneiras: na continuidade do ato de escrever, na torção do material utilizado, na
investigação dos limites espaciais do suporte empregado. Em cada um desses momentos, a escrita
é capaz de conduzir a imersão para sua presença no tempo.
O ato de criação vincula-se tanto à imersão no espaço como à imersão no tempo. Nesse
sentido, a obra será entendida como entrelaçamento, como um visível que está além e aquém do
sujeito, mas que se efetua no e através dele. O que permite dizer que o material que o escritor
encontra como modo de mediação da sua experiência é também a origem da obra.
Para pensar a imersão no espaço ou no tempo, é preciso não perder de vista o caráter
indissolúvel dessas duas experiências, bem como compreender a diferença que existe entre elas.
São dois momentos de uma mesma experiência. No caso de uma obra permitir essa percepção, tal
obra deveria assemelhar-se ao que Merleau-Ponty indica sobre Cézanne. Seria preciso entender a
imersão que surge quando a obra aparece em um dado suporte como apenas um momento da
matéria ao tomar forma, apenas um momento entre a ordem espontânea das coisas e a ordem
humana das idéias e das ciências. A pintura de Cézanne irá buscar justamente os limites do
material à disposição, como que procurando conjugar, na experiência da imersão, o equilíbrio
entre espaço e tempo.
124
Na criação de uma obra como modo de mediação da experiência do sensível, o autor
experimenta o aspecto físico do suporte como possibilidade de percepção do tempo, da
experiência. Paradoxalmente, imerge em relações espaciais e não nas coisas espacializadas,
penetra de forma mais aguda no tempo. Entretanto, em cada suporte, esse autor consegue captar
de maneira diferenciada as camadas que irão constituir o simultâneo que vivencia na experiência
do ser.
Ao discutir o ato da criação como possibilidade de contato com o Ser, Chauí diz que se os
trabalhos do artista, do pintor e do escritor são criadores é porque
“... tateiam ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não
possuem modelo que lhes garanta acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de
acesso para o contato pelo qual pode haver experiência do Ser”.(CHAUÍ, 2002, p. 152).
Há, então, no ato de criação, uma sempre constante experiência com o tempo, para a qual as
vias de acesso acontecem no próprio caminhar. Ainda que os modos de mediação não se
apresentem de antemão, e tendo essa afirmação como ponto inicial, é possível pensar o suporte
como capaz de realizar essa passagem em direção ao Ser, ainda que de forma indireta. O suporte
não deve ser considerado nem meio de acesso somente, nem condição fundadora da experiência.
É um ponto de contato entre o mundo e aquele que tem a experiência desse mundo, com o texto
em que a obra será desdobrada e, por isso, meio de acesso e condição fundante da percepção,
simultaneamente. Opera no suporte a mesma continuidade-descontinuidade que acontece na
passagem de uma experiência a outra, no dizer de Merleau-Ponty, citado por Chauí: “Nem
simples desenvolvimento de um porvir implicado em seu começo, nem simples efeito de uma
regulação exterior...” (MERLEAU-PONTY apud CHAUÍ, 2002, p. 85).
Nesse sentido, um suporte que permita a conjugação das várias camadas com que a
experiência se a perceber seria capaz de uma vibração intensa. Essa experiência, por sua vez,
traria no seu bojo uma possibilidade de imersão cujo contato seria próximo da experiência da
temporalidade, dessa continuidade-descontinuidade incessante presente em toda obra.
Como afirma Marilena Chauí,
“O sentimento de querer-poder e da falta suscita a ação significadora que é, assim,
experiência ativa de ação do indeterminado: o pintor desvenda o invisível, o escritor
quebra o silêncio, o pensador interroga o impensado. Realizam um trabalho no qual
vem exprimir-se o co-pertencimento de uma intenção e de um gesto inseparáveis, de um
125
sujeito que só se efetua como tal porque sai de si para ex-por sua interioridade prática
como obra. É isso a criação, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nos privaria de
experimentá-lo”.(CHAUÍ, 2002, p. 153).
O suporte em si não sustenta a experiência sensível. É através das relações que propõe que
as lacunas podem ser percebidas. Ao mesmo tempo, a fruição ou contato com a obra não deverá
basear-se na concepção de preenchimento. Os textos que uma obra permite não estão desde o
início contidos em sua estrutura. À medida que as diferenças são percebidas, a experiência da
imersão se desloca do espaço para o tempo. Nesses momentos, o Ser Bruto se deixa sentir, tocar
de maneira oblíqua, pois não está ali para ser preenchido, mas sim para sustentar a relação
(Chauí, 2002). É a partir dessa forma de enxergar a imersão que se pretende relacionar a imersão
na arte virtual com a imersão na literatura em meio digital. Entretanto, as perspectivas adotadas
pelos autores escolhidos serão analisadas na tentativa de ultrapassagem da noção de
envolvimento emocional presente em cada uma delas. Ou seja, a imersão a ser considerada como
específica da cibernarrativa é aquela em que autores e leitores constroem o ambiente imersivo
porque estão, simultaneamente, envolvidos por ele e porque conseguem perceber, mesmo que de
maneira indireta, como se esse envolvimento. Como afirma Paul Ricoeur (1994), o tempo
percebido é um tempo humano, construído através da narrativa que se cria dele. Autores e leitores
estão instalados no tempo e desse lugar é que constroem uma percepção “externa” do tempo que
passa.
Uma das maneiras de pensar a imersão na arte virtual é baseá-la no envolvimento
emocional completo do espectador em um mundo virtual pronto. Nas reflexões iniciais sobre
arte virtual e imersão, Oliver Grau (2003) destaca alguns aspectos centrais para a relação desses
dois elementos, quais sejam: a possibilidade de poder “entrar” na imagem e intervir criativamente
no espaço da imagem, em tempo real; a remoção das fronteiras e da distância psicológica entre o
observador e o espaço da imagem; a possibilidade, num espaço interativo virtual, de modificar os
parâmetros de tempo e espaço e, assim, remodelar o próprio ambiente imersivo; a não rigidez do
ponto de vista sobre o ambiente imersivo, composto por inúmeras perspectivas possíveis,
manipuláveis fisicamente pelo observador; e, finalmente, a diminuição da perspectiva crítica e
um aumento do envolvimento emocional sobre o que acontece no ambiente imersivo, na arte
virtual.
126
Uma leitura transversal sobre as quatro características anteriores indica um processo em
que a preocupação inicial é aproximar um determinado objeto artístico e aqueles que se colocam
a observá-lo, não apenas com o intuito de trabalhar o aspecto ilusório dessa aproximação, mas
fundamentalmente com o objetivo de permitir a esses observadores fazerem parte daquilo que
experimentam. Antes de iniciar essa abordagem, é bastante sugestivo indicar a visão de Marcos
Novak sobre o ciberespaço como fundamento para a proposta de imersão dessa tese:
“O ciberespaço envolve uma inversão no modo corrente de interação com a informação
digitalizada. Até o momento essa informação é externa a nós. A idéia do ciberespaço
subverte essa relação; estamos, agora, dentro da informação. A fim de realizar essa
transição, precisamos ser reduzidos a bits, representados dentro do sistema e, nesse
processo, transformados também em informação.” (tradução nossa) (NOVAK, 1991, p.
225)
27
Nessa perspectiva, a imersão relaciona-se ao que é processual em um objeto artístico, ou
àquilo que irá torná-lo um objeto, o próprio projeto da sua elaboração. Isso significa pensar a
imersão como processo de construção do próprio ambiente imersivo.
Em sua análise sobre as relações entre ilusão e imersão, Oliver Grau (2003) sugere pensar a
imersão tanto como uma técnica capaz de criar a ilusão de estar “dentro” de uma imagem, quanto
como uma técnica capaz de envolver emocionalmente o leitor, de tal forma que ele se imagine
parte da história que está lendo ou vendo. O autor destaca as pinturas de aposentos como os
primeiros ambientes imersivos criados no mundo antigo. Um componente importante nas
primeiras experiências de imersão na antiguidade seria o envolvimento emocional do espectador,
através da ilusão de colocá-lo dentro da imagem, integrando-o em uma unidade de espaço-tempo
completa, criando um “local” hermeticamente fechado. Tal é o caso das pinturas em paredes, em
que aposentos eram ornados com pinturas representando cenas que se “deslocavam” fisicamente
pelo ambiente, de modo a construir a ilusão de que se estava dentro de uma cena. O espectador
era circundado pelas imagens, feitas a partir de um metro da base do chão, de modo a intensificar
a sensação de imersão. Essa primeira forma de imersão parece ainda bastante distante das
possibilidades de alteração permitidas pelos ambientes cibernarrativos. O tipo de imersão
associado à cibernarrativa parece apontar para o máximo de possibilidades de alteração das
27
“Cyberspace involves a reversal of the current mode of interaction with computerized information. At present such
information is external to us. The idea of cyberspace subverts that relation; we are now within information. In order
to do so we ourselves must be reduced to bits, represented in the system, and in the process become information
anew.”
127
técnicas de construção do ambiente imersivo. A imersão seria a submersão no código, mas sem a
necessidade de ilusão, objetivo das pinturas em aposentos.
O surgimento da perspectiva irá conferir um novo impulso às estratégias de imersão,
principalmente através dos artistas italianos. A descoberta renascentista da perspectiva artificial
ajudará a modificar a percepção, até então orientada em função da natureza representacional dos
objetos. Com o auxílio da perspectiva, os artistas podiam representar a natureza também de
maneira objetiva, como ela aparecia ao olho humano, através de leis matemáticas. Percebe-se,
assim, a perspectiva como uma técnica utilizada para intensificar o efeito ilusório causado pela
sugestão de imersão na imagem. Entretanto, a mesma técnica pode também ser compreendida
como uma linguagem específica para criar tal efeito. Ou seja, a ilusão do ambiente imersivo
poderia ser e era criada por uma técnica com forte referência no real, mas agora visto através de
leis matemáticas, manipuláveis pelo artista. Ao chamar a atenção para a perspectiva como
derivada de uma construção técnica, e não derivada de uma expressão da visão natural, Grau toca
no ponto-chave para a presente tese: a evolução das técnicas de imersão em direção a ambientes
com alto grau de ilusão será marcada, ao mesmo tempo, pelo desenvolvimento de mecanismos
codificadores mais complexos, cujos derivados terminam por estabelecer códigos específicos
para a criação de ambientes ou pinturas que sugerem imersão. E, o mais importante, os códigos
irão se estabelecer como conjuntos de regras para posterior manipulação, mesmo por aqueles que
não forem artistas. Há um descolamento entre as regras e o ambiente representado, de modo a
permitir a criação de modelos de aplicação mais genéricos. Posteriormente, serão esses mesmos
modelos os responsáveis por inserir o ponto de vista do observador na composição do ambiente
imersivo. A imersão criada pela perspectiva já apresentava um grau de modificação, em função
das regras que governavam o seu efeito. Poderia-se falar da perspectiva como uma técnica que
enfatiza uma certa participação do espectador em relação ao objeto artístico. No caso das pinturas
barrocas nos tetos das igrejas, por exemplo, a perspectiva demanda um ponto específico a ser
ocupado pelo espectador para a experiência de um efeito imersivo mais intenso. O deslocamento
espacial na nave da igreja produz alterações no efeito imersivo, ao realçar alguns aspectos do
“ambiente” criado pela pintura. Assim, mesmo antes de se permitir que o observador pudesse
interferir fisicamente na construção de uma obra, o que é claramente possível atualmente, parece
que sua presença já não era ignorada.
128
O século XVIII será marcado pelo uso da mera escura e das técnicas óticas para criar um
novo tipo de representação do real através da imersão. Novamente, pode-se destacar o uso de
técnicas científicas para aprimorar a criação de objetos artísticos com imagens. Grau (2003)
considera a mera escura uma técnica tão revolucionária quanto a perspectiva, uma vez que
tornou possível a reestruturação das possibilidades até então associadas à experiência visual.
Vilém Flusser (2002), no século XX, parece ter compartilhado essa opinião quando propôs uma
filosofia para as linguagens derivadas dos aparatos óticos relacionados à fotografia e às mídias
audiovisuais.
Após diversas experiências com a câmera escura, o século XVIII traz à luz o surgimento do
panorama, invento patenteado por Robert Barker em 1787, baseado em
“um sistema de curvas numa superfície côncava de uma pintura, de modo que a
paisagem pintada, quando vista de uma plataforma central, em uma altura específica,
apareceria como verdade e não de maneira distorcida. A aplicação desse invento
tornou-se conhecida poucos anos depois sob o neologismo ‘panorama’” (tradução
nossa). (GRAU, 2003, p. 56)
28
.
A aplicação das técnicas derivadas do panorama traz novos elementos a serem utilizados
para provocar o efeito de imersão, como: o tipo de superfície onde seria pintado um determinado
cenário “real”; um local predeterminado, dentro do ambiente, que permitiria uma visão mais
realística e, portanto, mais imersiva. Destaca-se aqui a evolução das formas de imersão em duas
direções complementares: a modificação do ambiente físico para criar um ambiente tecnicamente
mais imersivo; a importância da posição do espectador dentro do ambiente. De técnicas mais
rígidas e sujeitas ao espaço físico utilizado, uma evolução no sentido de permitir o
deslocamento do ambiente e dentro do próprio ambiente. E a evolução se dá quando esse
movimento é paulatinamente incorporado ao ato de criação. Oettermann, citado por Grau (2003),
afirma que o panorama cria espaços de imagem reais dentro dos quais o observador pode se
mover. O ambiente imersivo torna-se uma construção especificamente elaborada com um
objetivo: fornecer a ilusão de que se está em um lugar real. A partir do panorama parece possível
transportar o observador para espaços criados artificialmente, ainda que mantenham uma
referência com locais reais. Ao permitir que o observador se desloque em vários sentidos, e mude
28
“a system of curves on the concave surface of a picture so that the landscape, when viewed from a central platform
at a certain elevation, appeared to be true and undistorted. The application of this invention became known a few
years later under the neologism ‘panorama’”
129
sua visão em função desse deslocamento, o panorama intensifica a importância do movimento
dentro do ambiente imersivo.
Oliver Grau (2003) aponta alguns elementos responsáveis pelo efeito ilusionista concedido
ao panorama, citando Hermann Von Helmholtz: as sombras, capazes de formar contornos; as
nuances na gradação de luz; as sensações diferentes de cor e contraste. E destaca a dificuldade do
observador em saber se está olhando para uma profundidade de campo ou para uma tela plana.
Mais uma vez surge aqui o deslocamento do observador, em relação ao panorama, como o
elemento capaz de provocar mudanças espaciais, ainda que utilizando somente ilusões óticas. Na
análise do panorama de “A Batalha de Sedan”, Grau afirma que a obra não torna a situação mais
clara apenas, ela coloca o observador no meio de uma cena. Essa obra é considerada, pelo autor
mencionado, um dos trabalhos que mais se aproximaria daquilo que pode ser gerado em realidade
virtual. Considerado uma das mais exemplares peças de propaganda política do Reich germânico
à época (guerra franco-prussiana entre 1870 e 1871), o panorama de A Batalha de Sedan”
retrataria um momento específico do campo de batalha, que seria o dia 1º de setembro de 1870, à
uma hora e trinta minutos da tarde. Grau afirma que a imersão provocada pelo panorama seria
capaz de suspender a habilidade para relativizar a percepção do objeto e permitir a reflexão sobre
o que estaria diante dos olhos de um observador. Ou seja, a imersão causada pelos panoramas
seria aquela que apostaria na não percepção dos elementos criadores da imersão. O panorama
contava com uma plataforma de visão rotativa, geradora de um movimento imperceptível capaz
de deslocar o olhar do observador, lentamente, sobre toda a figura. Ao longo de toda sua obra
sobre arte virtual, Grau (2003) afirma sistematicamente que a garantia de imersão reside na
privação de qualquer visão total do ambiente imersivo por parte do observador. O efeito
emocional da imersão foi o ponto central da estética dos panoramas, segundo o autor. A linha de
raciocínio que se pretende desenvolver aqui, em relação à imersão no código digital, diz respeito
justamente à capacidade do observador de manipular os elementos que causam a imersão. Ou
seja, opera-se aqui uma mudança radical em relação à visão de Oliver Grau, o que será
esclarecido na relação entre imersão, literatura eletrônica e a fenomenologia do ato de leitura.
Ao discutir a concepção do panorama de “A Batalha de Sedan”, Oliver Grau produz
considerações sobre os métodos industriais empregados na execução da obra. A equipe envolvida
na produção do panorama foi dividida de acordo com as funções que cada um desempenharia, o
que talvez possa ser considerado como um processo precursor das equipes utilizadas atualmente
130
para produzir em hipermídia. Cada pessoa participava de uma parte do processo, o que também
contribuiria para diluir a noção de autoria da obra, provavelmente.
A própria obra exigia um tipo de produção coletiva, em função da sua grandeza. Oliver
Grau compartilha dessa visão, como se pode ver na citação a seguir.
“Como vimos, no panorama havia um sistema complexo responsável por mediar a
relação entre o artista e todos os seus elementos, e o objetivo final de ilusão total, de
sugestão da conservação de um momento histórico, seria conseguido apenas através de
uma coordenação rigorosa e precisa entre todos esses componentes.” (tradução nossa)
(GRAU, 2003, p. 122)
29
.
O conceito por trás do panorama era conferir forma existencial para um período de tempo
dentro de um determinado espaço físico. Grau associa o panorama à obra de arte total, de
Wagner, em que o resultado final deriva de um jogo inter-relacionado de todos os elementos que
compõem a obra. O panorama seria, dessa maneira, o precursor de trabalhos em multimídia e em
hipermídia. A despeito dessa alusão, a configuração da existência formal de um momento em um
espaço interessa para a presente discussão em função das relações entre tempo e espaço aludidas
no capítulo 2. Se o tempo é fundante de qualquer experiência, ele não pode ser revertido em pura
espacialidade, não importa quantos elementos o evoquem simultaneamente. Sem dúvida, uma
presença espacializada do tempo em um panorama, mas a essa presença faltam componentes
como a ação do próprio observador sobre o tempo que experimenta. A modificação física do
ambiente é restrita para o observador, razão pela qual o tempo não pode ser experimentado de
forma pura dentro do panorama. De fato, é necessário indagar se tal objetivo é válido para a
experiência da imersão em ambientes digitais. E se é válido, como poderia acontecer? A sugestão
dessa tese é que o ambiente imersivo deve funcionar em coordenação com os movimentos
temporais do observador, sofrendo alterações físicas em sua estrutura de acordo com esses
movimentos. Assim, disponibilizar o código que estrutura a obra para manipulação do observador
seria um caminho na tradição encaminhada pelos panoramas e os ambientes imersivos daí
derivados, ainda que não completamente explorado na produção dos panoramas no século XVIII.
29
“As we have seen, in the panorama a complex system intervened between the artist and all components, and the
end-goal of total illusion, of seeming to conserve a historic, aureoled moment in time, could be achieved only
through rigorous and precise coordination.”
131
5.2 Primeiras aproximações entre fenomenologia da leitura e imersão
A fenomenologia da leitura permite uma visão um pouco diferente da noção de
envolvimento emocional como condição para imersão no texto. Ao descrever de que maneira as
estratégias textuais das obras ficcionais contribuem para criar sua própria ambientação, Iser
demonstra como o ambiente imersivo pode ser constantemente reestruturado em função das
próprias possibilidades que desperta e dos movimentos que exige do leitor.
“As estratégias dos textos ficcionais geralmente se organizam de tal maneira que a
formação de Gestalt durante a leitura produz ao mesmo tempo possíveis modificações
dela mesma. Quando as Gestalten sofrem modificações que são iniciadas pelas
possibilidades excluídas, elas tendem a se abrir novamente.” (ISER, 1999, p. 42,43)
Aqui já se pode perceber que o envolvimento é o que garantirá o efeito estético derivado da
experiência de leitura. Não obstante, o envolvimento de que se trata aqui não é total e sequer de
caráter puramente emocional, pois as Gestalten formadas são constantemente afetadas pelas
escolhas não-realizadas. uma tensão que faz o leitor mudar de posição entre o envolvimento
total no texto e o distanciamento latente. A imersão pode ser considerada como o envolvimento
descrito por Iser, e trata-se assim não de uma imersão total, em que a transparência do ambiente é
condição para que ela aconteça, mas justamente o contrário. O ambiente criado pelo leitor ao
agrupar as estratégias textuais em uma Gestalt evoca aquelas possibilidades excluídas e que agem
sobre a Gestalt criada anteriormente. A oscilação a que o leitor é submetido pelas suas próprias
escolhas confere à obra o caráter de evento.
“Isso significa que o leitor reage a algo que ele mesmo produzira, e este modo de
reação explica porque somos capazes de experimentar o texto como evento real. Não o
compreendemos como objeto dado, nem como estrutura determinada por predicados; é
antes de mais nada por nossas reações que o texto se faz presente. Dessa maneira, o
sentido da obra ganha o caráter de evento, e, já que produzimos o evento como
correlato de consciência do texto, experimentamos o sentido do texto como realidade.
(ISER, 1999, p. 45,46).
132
Esse fato também reforça a percepção de que a instabilidade presente na cibernarrativa não
é algo que não apareça na obra ficcional, mas sim que essa instabilidade, no caso das
cibernarrativas, se revela na própria materialidade do que se apresenta ao leitor.
As ambigüidades sugeridas pela obra evocam a formação das Gestalten, que são,
entretanto, agrupamentos produzidos pelo leitor. Ao produzir tais agrupamentos, um determinado
leitor faz escolhas e não-escolhas, envolve-se com a obra porque a reconfigura, ao criar dela um
texto. A reconfiguração é um processo de imersão, pois exige que o leitor resolva sugestões dadas
pela obra. Entretanto, à medida que a leitura se desenvolve, surgem novas ambigüidades
derivadas do texto criado e que podem levar o leitor a reavaliar os agrupamentos feitos até ali, à
luz de novos elementos. Assim, o processo de leitura cria o texto como evento, mas a
possibilidade de perceber o texto dessa maneira se o leitor se envolve com a obra. Como afirma o
próprio Iser (1999), a leitura cria as discrepâncias na obra, e são essas mesmas discrepâncias que
levarão o leitor a reavaliar o que até ali já foi lido. Como tal movimento se na imaginação, o
leitor não pode se excluir totalmente da obra, embora nunca esteja completamente envolvido por
ela. À medida que resolve questões evocadas pelas estratégias textuais, o leitor enquadra as
questões anteriores no novo quadro que surge na leitura. Esse movimento é similar àquele da
distentio animi descrita nesse texto, conforme discussão realizada por Paul Ricoeur. “Quanto
mais presente o texto se torna para s, tanto mais se desloca para o passado que somos ao
menos durante o processo de leitura.” (ISER, 1999, p. 50) É também similar às mudanças de
ordem temporal na narrativa, conforme Genette (1970) afirma na sua análise de “Em busca do
tempo perdido”.
O que garante o caráter de experiência ao processo de leitura é justamente o movimento de
entrar na obra e criar um texto, ainda que a entrada não seja uma imersão total. Ou seja, é preciso
evitar essa imersão, para que a experiência de envolvimento possa ser percebida. A constante
reavaliação dos padrões de representação criados, por parte do leitor, no momento em que
continuidade à leitura e se depara com o não-familiar é a estrutura utilizada por Iser para
descrever a sua fenomenologia da leitura e também esse processo imersivo. Segundo o autor, a
interação com o texto se a partir da não-familiaridade proposta por ele ao leitor. Ao mesmo
tempo, a percepção do não-familiar se faz sobre o fundo de experiências sedimentadas. Assim,
é do meio de padrões de representação organizados que o leitor consegue fazer emergir uma
nova experiência com o texto. Esse processo só acontecerá, segundo Iser, se o leitor estiver
133
imerso no texto e consciente do seu envolvimento. “Perceber-se a si mesmo no momento da
própria participação constitui uma qualidade central da experiência estética; o leitor se encontra
num peculiar estado intermediário: ele se envolve e se envolvido.” (ISER, 1999, p. 53). Em
relação a esse ponto se funda a concepção de imersão relacionada à percepção e possibilidade de
mudança dos códigos de programação, quando se trata de cibernarrativas. Se para as narrativas
ficcionais, independentemente do suporte, segundo a fenomenologia da leitura, a imersão
consciente é uma condição, não há porque diferenciar, em termos ontológicos, a cibernarrativa
ficcional como um novo conceito de narrativa. A hipótese proposta é que o tipo de imersão
consciente, na cibernarrativa, será aquela em que o leitor pode interferir no código de
programação do que virá a ser a obra; ou seja, o leitor poderá intervir no tempo pré-figurado da
narrativa. Somente assim se poderia falar de uma narrativa que joga com a principal
potencialidade do prefixo ciber: uma narrativa cuja característica é operatória no sentido físico da
obra, e não somente no caráter imagético dela. Com isso não se deseja afirmar nenhuma
hierarquia entre as narrativas, mas antes buscar uma razão possível para se falar de um texto
eletrônico realmente, de um texto ciber, e não de uma disponibilização, em suportes eletrônicos,
de textos que independem do caráter ciber para proporem uma experiência estética.
Marie-Laure Ryan (2001) desenvolve em seu livro sobre narrativa e realidade virtual uma
espécie de tipologia de formas imersivas presentes na literatura, em diversas épocas, ora optando
por um tipo de imersão, ora destacando a superioridade de um tipo contrário. Logo na introdução
do seu estudo ela apresenta duas direções que, em maior ou menor grau, se farão presentes no
restante da discussão, e que interessam também a essa tese: de um lado, um estilo narrativo que
enfatiza o modo de contar a história, que torna transparente o arranjo do que Iser denomina as
perspectivas textuais; de outro lado, um estilo baseado na criação de um mundo ficcional cujo
intuito é envolver o leitor sem que ele necessariamente se dê conta desse envolvimento e de como
as perspectivas textuais o fazem “jogar” com o texto. A autora procura demonstrar, a título
introdutório, como a evolução das cnicas narrativas fez com que a ênfase na forma se
sobrepusesse sobre o conteúdo, preparando o terreno para a relação entre imersão e
interatividade. Como resultado dessa evolução, não no sentido de melhora, mas de passagem do
tempo e incorporação de novos elementos, Marie-Laure Ryan destaca o conceito de bricolagem,
muito semelhante ao que Iser denomina de “negação como uma das funções do lugar vazio”
(ISER, 1999, p. 7) O conceito de bricolagem baseia-se num processo de constituição dos
134
fragmentos verbais, nesse caso, para se chegar a um artefato cuja forma e sentido emergem do
processo de ligação dos elementos. Assim, a leitura não seria, ao utilizar a bricolagem, uma
decodificação das perspectivas textuais, mas antes, e também, uma codificação do que virá a ser
compreendido como a obra, a partir do próprio processo de leitura.
A autora procura descrever uma poética da imersão e parte da metáfora de texto
30
como
mundo para analisar os vários tipos de imersão presentes nessa metáfora. Para abordar essa
metáfora, antes de mais nada, Marie-Laure Ryan destaca a distinção entre textos ficcionais e
textos não-ficcionais. Ainda que se possa objetar o fato de um texto ficcional não ser exatamente
separado de um mundo real, a distinção da autora interessa em função da proximidade com
conceitos trabalhados na Poética, de Aristóteles, e também na fenomenologia da leitura em Iser.
Ryan afirma que o mundo textual de uma ficção é um fim em si mesmo, apresenta os seus
próprios horizontes em função da forma como se estrutura; ao contrário, o texto não-ficcional
possui um apelo mais forte em relação a um mundo real que atuaria como o seu principal
referente. Iser discute o texto ficcional a partir das perspectivas textuais, elaboradas pela própria
obra, e Aristóteles fala da mimese como a imitação de agenciamentos dos fatos, a criação de uma
estrutura em que as ligações se fazem pela própria necessidade criada pela obra, um mundo do
“como se” e não um mundo textual que copia o mundo real. Antes de discutir a primeira forma de
imersão preconizada pela autora, faz-se necessário explicar que a distinção acima foi destacada
para evocar o fato de que a imersão, em uma obra como aquela proposta por Iser, é uma relação
responsável pelo estabelecimento dos próprios limites da obra em que se dará tal imersão. Dessa
forma, a imersão é uma relação entre as diversas camadas que compõem uma obra, sendo
também, em alguns momentos, uma camada da própria obra. Por isso também se defende aqui o
caráter temporal para caracterizar a imersão em uma cibernarrativa. É através da imersão que se
estabelecem as conexões entre as camadas, o que significa dizer que o ambiente não está pronto
antes do leitor iniciar uma relação de imersão, através da leitura da obra.
Como desenvolvida até aqui, a hipótese acima se baseia na discussão sobre o ato de leitura
em Iser. Entretanto, Marie-Laure Ryan propõe incorporar outras dimensões para compreender
melhor como o texto pode ser visto como um mundo, quais sejam: a psicologia cognitiva, a
filosofia analítica, a fenomenologia e a psicologia novamente. Para cada dimensão, a autora
30
Nesse capítulo especificamente optou-se por manter a terminologia de texto para a parte física de uma obra,
mantendo o significado dado pela autora ao conceito de texto.
135
associa um conceito aplicável à teoria literária. O que se pretende a seguir é uma análise
transversal de tais dimensões, de modo a caracterizar a imersão em e com uma cibernarrativa
como um conceito relacional e também como algo que acontece com e no código de
programação.
O primeiro campo explorado pela autora se relaciona com a idéia de perder-se em um livro
e tem como bases conceituais análises da psicologia cognitiva sobre o ato de leitura. Marie-Laure
Ryan (2001) investiga o que denomina uma teoria popular de imersão, descrita por Richard
Gerrig e Victor Nell. De modo resumido, a teoria afirma sobre a imersão que, nesse processo, o
viajante é transportado para um mundo diferente daquele que habita, em que há outras referências
de “leitura” do mundo. Quando esse viajante retorna ao mundo original, de alguma maneira, ele
retorna modificado (Ryan, 2001) .
Para a caracterização do modo de imersão da cibernarrativa, o foco é a afirmativa que
destaca a realização de certas ações. Como a própria autora afirma:
“O objetivo da jornada não é o encontro de um território pré-existente que aguarda o
viajante no outro lado do oceano, mas uma terra que emerge no curso da viagem, à
medida que o leitor executa as direções textuais dentro do modelo de realidade (termo
utilizado por Gerrig para a representação mental do mundo textual). O prazer do leitor
depende, então, da sua própria performance.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p.
93,94)
31
.
A leitura não se faria sobre um território predefinido; antes, a performance do leitor é que
faria emergir, ao longo de sua viagem, em que trabalha com as perspectivas textuais em direção à
criação de relações entre elas, a superfície de um mundo textual. O que chama a atenção nessa
passagem é o aparente caráter de construção mental de tal mundo. No caso das cibernarrativas, há
dois destaques a serem feitos: a superfície referida acima é apenas um emaranhado temporário
das várias camadas que compõem a obra; e a construção desse mundo seria um ato também
físico, uma performance sobre a materialidade fluida que compõe o código digital, e que fará
emergir uma obra que esem estado de tempo pré-configurado. Quando Gerard Genette (1970)
discute as figuras temporais, em Discurso da Narrativa”, cabe questionar de que forma elas
31
“The goal of the journey is not a preexisting territory that awaits the traveler on the other side of the ocean but a
land that emerges in the course of the trip as the reader executes the textual directions into a ‘reality model’ (Gerrig’s
term for the mental representation of a textual world). The reader’s enjoyment thus depends on his own
performance.”
136
podem aparecer ao leitor da cibernarrativa, já que o acesso desse leitor se faria sempre no
momento de um tempo pré-figurado.
Na análise das relações entre psicologia cognitiva e imersão, Marie-Laure Ryan (2001)
propõe quatro níveis de absorção distintos no ato da leitura. Sem assumir necessariamente uma
posição favorável mais clara a favor de algum dos níveis, o texto da autora reforça pontos de
vista defendidos nessa tese: a imersão não é exclusiva da cibernarrativa; e esse tipo de narrativa
não é ontologicamente distinto de algum outro tipo de narrativa em suportes não-digitais.
Os quatro graus de absorção propostos são, de forma esquemática: concentração;
envolvimento imaginativo; arrebatamento; hábito ou vício.
A imersão demandada pela cibernarrativa parece mais próxima de dois deles: o que exige
extrema concentração e o que demanda envolvimento imaginativo. Por que esses dois? No
primeiro caso, porque a cibernarrativa pede, da parte do leitor, atenção especial na construção
física da própria narrativa. Marie-Laure Ryan define a concentração como o tipo de atenção
demandada por trabalhos não-imersivos, de difícil entrada. A autora, de forma não muito
implícita, associa a imersão a obras que envolvem o leitor emocionalmente, de forma lúdica e de
maneira a tornar a leitura um ato que demande pouco esforço do leitor sobre a forma da obra. Por
forma entendam-se todas as estruturas gramaticais e sintáticas de que se utiliza o autor, e mesmo
a parte semântica da obra, em alguns casos. O que permitiria a imersão de alto grau, por assim
dizer, seria a facilidade de entrar na história que está sendo contada, sem que a maneira de contar
constituísse algum empecilho ao leitor.
No tipo de imersão exigida pela concentração, o mundo textual oferece uma resistência tal
à entrada do leitor que exige deste um alto grau de atenção. A cibernarrativa, ao oferecer-se para
o leitor como ainda pré-figurada, parece capaz também de “resistência” à leitura, que não
mostra um caminho inicial qualquer, capaz de servir como uma primeira perspectiva textual.
Como o próprio Iser (1999) enxerga no romance moderno, por exemplo, para utilizar uma
aproximação, na cibernarrativa não haveria pistas claras de como descobrir quais são as
perspectivas textuais sugeridas pelo autor. Na cibernarrativa, o leitor se veria frente a um
conjunto de elementos em que o código de programação se mistura a elementos verbais, visuais
ou sonoros, mas não há, necessariamente, perspectivas textuais associadas ao papel de um
narrador, ou de personagens, ou da própria história. Por isso, a concentração própria da
cibernarrativa associa-se à construção física de relações entre os elementos da obra, de maneira a
137
iniciar a aparição de perspectivas textuais derivadas das camadas temporais pré-configuradas na
obra. Para criar um paralelo com a definição de Marie-Laure Ryan, a cibernarrativa coloca em
jogo um tipo de atenção próprio de obras cujas perspectivas textuais foram rompidas e/ou são
rompidas a todo momento pelo autor. A diferença de procedimento se dá pelo fato de que, na
cibernarrativa, o rompimento se dá no ato físico de construção das relações entre os elementos da
obra. Nos dizeres de Paul Ricoeur (1994), o leitor se depara com o tempo da ação prática, em que
os acontecimentos da obra não se apresentam numa história contada, e sim numa história não-
contada.
A segunda forma de absorção que também permite associação com a cibernarrativa diz
respeito ao que Marie-Laure Ryan denomina envolvimento imaginativo, o que pode ser
compreendido como a percepção do leitor sobre as possibilidades de criação de possibilidades
relativas ao modo como se apresenta uma cibernarrativa. O envolvimento imaginativo seria a
atitude de se transportar para o mundo do texto sem, no entanto, perder a capacidade de perceber
os atos de fala do narrador ou a performance do autor. O leitor seria capaz de se “dividir” e entrar
no mundo do texto, “criar” o mundo do texto sem deixar de se ver como um agente externo, em
parte, em relação à obra que ele próprio reconfigura. No caso da cibernarrativa, poderia se falar
de uma imersão que exige o envolvimento do leitor, mas como aquele que irá realizar a narrativa
fisicamente, como seu primeiro ato de leitura, e então poderá se deixar envolver pelo mundo
textual que criou sem atingir uma imersão que o impeça de compreender o seu papel de ator
físico sobre a obra que o envolve. A vinculação com o termo utilizado por Alckmar Luiz dos
Santos (2003) possibilidades de criação de possibilidades pode ser feita aqui porque o leitor
deve se perceber como aquele capaz de se dotar de um texto a ler, sem, no entanto, chegar ao
extremo de ignorar as pré-figurações sugeridas pela cibernarrativa. A relação pode ser vista
também como se as camadas temporais que surgem entrelaçadas numa narrativa configurada
estivessem mais distendidas entre si e com um maior mero de pontos visíveis. Não se trataria
de um tempo espacializado, posto que o tempo é porque passa, mas de um espaço
temporalizado de maneira mais intensa, em que a pré-figuração fizesse alusão ao fato de que uma
narrativa configurada é um espaço em que o tempo parece se entrelaçar de maneira a vibrar
menos livremente.
138
Os outros dois graus de absorção discutidos por Marie-Laure Ryan parecem possíveis de
acontecer ou não numa cibernarrativa, mas não de maneira a demandarem destaque para essa
discussão.
5.3 Uma poética da imersão
Na elaboração de sua poética da imersão, a autora utiliza alguns aspectos derivados da
teoria dos mundos possíveis, cuja estrutura conceitual resume como sendo
“um conjunto teórico estabelecido segundo a qual a realidade a soma total do
imaginável é um universo composto por uma pluralidade de elementos distintos, ou
mundos, e isto é hierarquicamente estruturado a partir da oposição de um elemento
bem definido, cuja função é atuar como centro do sistema, ao conjunto de todos os
outros membros desse mundo. O elemento central é comumente interpretado como o
“mundo atual” e os satélites são vistos, meramente, como mundos possíveis. Para que
um mundo seja possível ele deve ser ligado ao centro por uma relação chamada de
acessibilidade. Mundos impossíveis aglomeram-se na periferia do sistema, sendo
conceitualmente partes dele uma vez que o possível é definido pelo contraste com o
impossível – e ainda inalcancáveis.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 99,100)
32
.
A autora desenvolve sua argumentação demonstrando os limites e possibilidades desse
constructo teórico no que diz respeito à teoria literária. Após a análise dos diversos problemas e
acertos da teoria dos mundos possíveis para se discutir a noção de mundo textual, Marie-Laure
Ryan propõe um modelo para discutir a imersão em mundos textuais. Alguns conceitos desse
modelo serão agora agrupados à discussão anterior, com o intuito de completar a proposta teórica
dessa tese. O modelo apresenta os seguintes elementos, em sua apresentação do que seriam os
mundos possíveis: no centro, um mundo real hipotético, cuja existência independe de alguma
representação mental; superposto a esse mundo de limites incertos, representações de mundo
feitas por diferentes indivíduos de origens culturais distintas. São versões pessoais sobre um
centro absoluto, cujos limites são muito próximos, em função de serem pensados com base no
32
“the set-theoretical idea that reality – the sum total of the imaginable – is a universe composed of a plurality of
distinct elements, or worlds, and that it is hierarchically structured by the opposition of one well-designated element,
which functions as the center of the system, to all the other members of the set.The central element is commonly
interpreted as ‘the actual world’ and the satellites as merely possible worlds. For a world to be possible it must be
139
hipotético mundo real; distante das fronteiras desses dois mundos estariam os mundos possíveis
não atuais. Ou seja, mundos aos quais os indivíduos poderiam ter acesso, dependendo do grau de
verossimilhança desses mundos face ao contexto do mundo atual representado por cada
indivíduo.
A questão principal que interessa para a elaboração do conceito de imersão a partir de uma
matriz relacional é o tipo de ligação entre os elementos do modelo apresentado. Ryan explora tais
elementos com base no movimento de recentramento que um texto pode provocar entre os
mundos atuais e possíveis.
Antes de desenvolver a noção de recentramento, faz-se necessário apenas ressaltar que a
teoria dos mundos possíveis, ao ser aplicada à teoria literária, deve considerar o fato de que em
um texto literário é possível encontrar todo um sistema de mundo criado, sem necessidade de
referência ao mundo real. Ou, melhor dizendo, um texto literário possui o seu mundo real,
hipotético; os vários mundos atuais, conforme a perspectiva que se adote em relação, por
exemplo, a um dos personagens; e os mundos possíveis não atuais.
Ainda que o texto literário possa apresentar ao leitor um mundo textual sem referência
explícita a um determinado mundo real de qualquer época, o mundo textual apresenta regras de
coerência para criar o que se denomina, na teoria dos mundos possíveis, o mundo real hipotético.
O deslocamento aconteceria quando o leitor se deparasse com uma perspectiva textual que
alterasse substancialmente o quadro do mundo real hipotético, a ponto de levar o leitor para
“dentro” do texto, levando-o a habitar uma nova perspectiva textual para continuar a leitura. Isso
pode acontecer em devaneios de personagens, mas pode acontecer também quando o texto
apresenta uma perspectiva textual que o leitor não esperava ser possível. Nesse momento, pode-
se falar dos deslocamentos de tema e horizonte propostos por Iser em sua fenomenologia da
leitura. À medida que o leitor assume lugares vazios diferenciados, reorganiza as perspectivas
textuais e se movimenta entre o mundo atual e os mundos possíveis não atuais. Pode, dessa
maneira, perceber os limites de cada ambiente imersivo criado pela sua própria leitura. Ao se
deslocar entre perspectivas textuais, o leitor pode entrar na camada temporal de um personagem
que apenas devaneia; pode, também, entrar na camada temporal de um narrador que mostra a
história acontecendo de uma perspectiva completamente diferente, a partir da alteração de uma
linked to the center by a so-called accessibility relation. Impossible worlds cluste at the periphery of the system,
conceptually part of it – since the possible is defined by contrast with the impossible – and yet unreachable.”
140
possibilidade em um fato ficcional. Interessa pensar os mundos possíveis não atuais como
correlatos ao que Iser denomina de horizonte, e o mundo atual em que o leitor se encontra como o
tema daquele momento da leitura. Ao se posicionar em uma ou outra camada temporal do texto, o
leitor sempre provoca um recentramento que atinge o próprio ato de leitura e a forma como
constrói o seu mundo textual.
No universo ficcional, segundo a autora, a realidade objetiva apresentaria um caráter de
provisoriedade mais intensamente percebido, já que as realidades objetivas seriam baseadas em
afirmativas ficcionais correspondentes a escolhas de perspectivas textuais criadas por um autor.
Ao adotar uma determinada perspectiva textual, o leitor poderia perceber o quanto as outras
perspectivas teriam de instabilidade. Esse dinamismo é o que Iser associa ao efeito estético no ato
da leitura e é o que será associado aqui ao conceito de imersão em camadas temporais na
cibernarrativa.
Se no mundo textual a realidade objetiva existe como correspondente de verdades
ficcionais estabelecidas pela autoridade textual, o mundo ficcional surge como relação entre as
diversas perspectivas textuais presentes no texto, sempre em estado constante de construção pelo
leitor. Nas cibernarrativas, a autoria se estabelece também como relação entre os leitores da obra
e a própria obra, ainda em estado pré-figurado. Os deslocamentos entre as perspectivas textuais,
nas cibernarrativas, seriam deslocamentos entre camadas temporais pré-figuradas; o leitor não
teria diante de si o mesmo tipo de mundo atual de uma narrativa configurada. É essa diferença
que conferiria a uma narrativa seu caráter ciber.
O texto literário envolve também um certo distanciamento do leitor em relação ao mundo
textual ao qual tem acesso. Esse afastamento é provocado pelos deslocamentos realizados pelo
leitor entre as diversas perspectivas textuais. Ryan defende a idéia de que um texto literário incita
o leitor a avaliar a capacidade do autor em criar o mundo ficcional, que possui uma lógica interna
própria. No caso das cibernarrativas, em que a leitura envolve a construção física da obra, o leitor
se questionando a sua própria capacidade de organizar um mundo textual com alguma gica.
Como o leitor não tem diante de si uma narrativa configurada, o seu movimento de entrada no
texto é duplo: a todo instante ele constrói a obra e cria algumas configurações narrativas.
sempre uma posição externa e interna ocupada pelo leitor, o que pode fazê-lo perceber mais
intensamente a estrutura temporal da obra em seu estado pré-figurado. No entanto, o acesso a
essa estrutura é sempre indireto, pois tal leitor não trabalha com o tempo espacializado e sim com
141
o tempo distribuído em suas várias camadas ou linhas de força. Ao “entrar” em uma camada , o
leitor o faz sempre em relação à configuração entre essa camada e as demais que compõem a
narrativa. Assim, o acesso ao tempo é sempre parcial e o movimento de imersão comporta uma
entrada em um ponto e a percepção externa dos outros pontos da narrativa. Ao aproximar-se de
uma perspectiva textual, as outras se posicionam no horizonte de leitura, como invisíveis que
sustentam a perspectiva atual adotada pelo leitor. Se no caso de textos literários o mundo
referente e o mundo textual são inseparáveis, a imersão pode ser vista como um distanciamento
entre os dois mundos, produzido pelo leitor. A diferença, no caso das cibernarrativas, é que tal
afastamento produz uma obra física, ainda a ser lida e/ou a se tornar texto.
Em sua proposta de pensar o texto como mundo, Marie-Laure Ryan (2001) utiliza alguns
paralelos com o jogo do “faz-de-conta” e, mais amplamente, com a idéia de pensar o texto como
um jogo com regras específicas. Na área de literatura eletrônica essa é uma metáfora recorrente, e
talvez mais, uma abordagem conceitual bastante utilizada por diversos autores. O próprio Espen
Aarseth (1997), do qual se utiliza o conceito de cibertexto, é um autor interessado em tal questão.
Pode-se ainda ressaltar que a relação entre jogos e textos vem de longa data, não sendo
inaugurada, de maneira alguma, pelo surgimento da literatura eletrônica. O ponto que interessa à
discussão presente envolve a ação de participar de um game e como tal ação auxilia o leitor a
perceber o mundo construído pelo texto. Antes de analisar uma das afirmações de Ryan, é
possível pensar de que maneira, em um jogo de simulação, o jogador percebe o mundo do jogo.
Não se trata apenas de explorar a simulação de um ambiente que surge na tela, mas também de
compreender o comportamento de cada personagem ou objeto do jogo. O jogador constrói um
perfil de ação de acordo com os objetos ou personagens com os quais se depara ou através dos
quais se movimenta no jogo. A “leitura” do jogo é construída pelo jogador e o próprio mundo do
game surge com o movimento do usuário. Entretanto, uma narrativa configurada para cada
elemento e, por mais complexas que sejam as relações entre os personagens, o jogador não acessa
as narrativas pré-figuradas de cada um deles. Esse exemplo funciona muito bem para games de
computador em que o acesso ao código de programação, ou o acesso às partes do jogo ainda não
produzidas é limitado. No caso de jogos com características cibernarrativas, o jogador não
constrói apenas mentalmente o ambiente e apreende os comportamentos de cada objeto: ele pode
também produzir personagens ou objetos. A padronização do jogo está em constante estado de
mudança física, e tais mudanças podem alterar todo o mundo do jogo anteriormente configurado.
142
Games baseados em aprendizado a partir de comportamentos emergentes são ambientes dessa
natureza. Steven Johnson (2003) realiza uma análise sobre comportamentos emergentes que pode
ser relacionada ao tipo de alusão que se faz aqui. Um jogo capaz de se modificar a partir de
algoritmos simples combinados é um jogo capaz de apresentar comportamento emergente. É o
caso de SimCity, em que o comportamento do jogador produz alterações no jogo que não foram
programadas. Nesse exemplo, não ainda a exploração de uma característica cibernarrativa em
toda sua potencialidade, uma vez que o jogo não apresenta ao jogador as opções de programação.
A questão envolvida nos exemplos anteriores relaciona-se, sobretudo, ao modo como a
participação do jogador interfere na construção do mundo do game.
No caso da tese de Marie-Laure Ryan, a participação do leitor no mundo textual é
comparada à participação em um jogo a partir da seguinte perspectiva:
“Participar de um jogo significa entrar em um mundo no qual a proposição pertencente
ao mundo real ‘isso é uma madeira é substituída pela verdade ficcional ‘isso é um
urso’. Toda vez que uma jogadora realiza um movimento legal ela contribui para o
conjunto de verdades ficcionais que descrevem o mundo do jogo: ‘Estou atirando num
urso’, ‘estou fugindo dele’. Nessa atividade criativa residem o prazer, e a função do
jogo.” (tradução nossa) “ (RYAN, 2001, p. 107)
33
.
À medida que determinados movimentos ou ações se repetem, elas configuram eventos
estruturados como verdades ficcionais quase naturais. Ou seja, é a partir dessa repetição que se
constroem, por exemplo, as características de um personagem. Mas, no caso das cibernarrativas,
a questão que se apresenta é de outra natureza: como, numa narrativa constantemente sujeita ao
retorno a um tempo pré-configurado, se constroem verdades ficcionais? Como se estrutura o
mundo textual, em uma cibernarrativa, se sua configuração temporal é permanentemente latente?
No texto ficcional e no jogo do “faz-de-conta”, segundo Ryan, o leitor deve preencher ou seguir
direções textuais para construir a imagem mental do mundo do texto. No caso das cibernarrativas
ficcionais, o que está em jogo é a capacidade do leitor em criar as direções textuais a partir de um
banco de dados, ou a partir de um conjunto de camadas temporais não configuradas. A imersão
do leitor é, assim, um ato performático capaz de realizar a obra que aparece como uma
cibernarrativa. As experiências imersivas que não envolvem algum tipo de entrada do leitor, no
33
Participating in the game means steping into a world in which the real world proposition ‘There is a stump’ is
replaced by the fictional truth ‘There is a bear’. Every time a player performs a legal move, she makes a contribution
to the set of fictional truths that describes the game-world: ‘I am shooting a bear’, ‘I am fleeing from it’. In this
creative activity resides the pleasure, and the point, of the game.”
143
banco de dados que será organizado em uma narrativa, são de uma ordem diversa daquela das
cibernarrativas. Ryan trata essa diferença de ordem como conseqüência da profundidade de
imersão permitida pelo texto e pela disposição do leitor em realizar o jogo proposto. A
profundidade de imersão depende da combinação do que Ryan chama de afirmações miméticas e
também da disposição do leitor. A autora defende a tese segundo a qual apenas os textos que
fazem o leitor se engajar em um mundo criado pela imaginação propiciam uma experiência
ricamente imersiva. Textos dessa natureza demandam, necessariamente, um alto envolvimento do
leitor na construção mental desse mundo imaginário. O ponto de contato com a tese que se
apresenta aqui concerne, justamente, no envolvimento do leitor. Para que uma obra possa ser
considerada como cibernarrativa, é preciso que o leitor se envolva em sua construção física, mas
como se estivesse envolvido em um processo infinito de produção. Ou seja, uma obra
cibernarrativa não se apresenta como um produto a ser elaborado definitivamente pelo leitor. Se
assim fosse, haveria apenas uma transferência do papel do autor para o leitor, o que não é pouco,
mas não demanda nenhum uso do caráter ciber presente no digital. A obra cibernarrativa
apresenta-se como um conjunto de narrativas pré-figuradas à disposição de qualquer leitor. O que
em uma obra em meio impresso acontece de maneira processual na leitura, e na construção de
interpretações ad infinitum, na cibernarrativa acontece na construção incessante de narrativas
configuradas pelo leitor. Assim, quanto ao mundo imaginário de Marie-Laure Ryan, talvez esse
seja somente um aspecto de uma obra cibernarrativa, e não o único. Não se trata de criar um
mundo, mas de lidar com processos de criação de possibilidades de mundos sempre em estado de
construção. No limite da sua potencialidade, a cibernarrativa permite ao leitor interferir nas regras
que orientam a construção da base de dados das narrativas pré-figuradas.
A imersão espacial e temporal é também discutida por Marie-Laure Ryan, quando a autora
associa espaço, tempo e envolvimento emocional com elementos de uma narrativa, a saber: o
espaço seria relativo ao cenário; o tempo, relativo à trama e o envolvimento emocional relativo
aos personagens.
A forma de perceber a imersão espacial proposta pela autora baseia-se, sobretudo, na
capacidade do texto em estimular a criação de imagens mentais de um determinado espaço físico.
Esse espaço seria, entretanto, uma conseqüência da capacidade de ressonância entre o texto e as
memórias pessoais do leitor. A estrutura da narrativa teria um peso menor que as ligações
realizadas pelo leitor com locais particulares pelos quais passou ou viveu. Ryan ressalta, não
144
obstante, que a forma mais completa de imersão seria aquela que agrupa espaço e tempo,
conforme parte da proposta dessa tese, de maneira inseparável. No caso das cibernarrativas, a
intensidade dessa junção é ainda de maior grau, uma vez que cabe ao leitor produzi-la
fisicamente. Paradoxalmente, a ligação espaço-temporal aparece também de maneira bastante
instável aos olhos do leitor na cibernarrativa, pois ainda não foi sequer proposta pelo autor. É o
estado de pré-configuração próprio da imersão em cibernarrativas que surge aqui novamente.
Ryan apóia-se em Bachelard para discutir como se configura o espaço literário e para
contrapor o espaço de narrativas ficcionais modernas com os conceitos relativos à
desterritorialização. O espaço da cibernarrativa se assemelha menos a um espaço descrito e
configurado; antes, está mais próximo da noção de espaço em movimento, de um espaço mais
temporalizado, que surge e existe como fluxo. A autora sugere uma diferenciação entre um
espaço vivo, descrito de maneira detalhada, de forma a situar o leitor “dentro” de um mundo
textual organizado; e um espaço conceitual, relativo a um conjunto de informações frouxamente
conectadas, não contínuas, como se o leitor acessasse um conjunto de dados desmembrados,
altamente abstratos. O espaço vivo seria um espaço mais propício à imersão, em função de uma
possibilidade de experiência com o corpo mais próxima da experiência física de estar em um
lugar; o espaço conceitual seria mais próprio de uma experiência menos corpórea. Por essa razão,
ou talvez por estabelecer tal diferença, a própria autora ressalta aqui uma impossibilidade de
pensar a imersão apenas do ponto de vista espacial. “Espaços textuais envolvem não apenas um
conjunto de lugares distintos, mas uma rede de acessos e relações que agrupa esses locais juntos
numa geografia coerente.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 123)
34
.
De fato, no caso das cibernarrativas, o espaço como movimento não precisa ser concebido
apenas mentalmente, ou de forma conceitual, ele pode ser construído pelo leitor fisicamente
também, e como fluxo. A relação é física, uma vez que, posteriormente, esse espaço será o local
onde acontece o ambiente imersivo. A “leitura” da cibernarrativa configura uma narrativa, para
depois reconfigurá-la, nos termos de Paul Ricoeur. Assim, não parece ser o caso dizer que o
espaço como fluxo barra a experiência imersiva; antes, ele dependeria fundamentalmente da
imersão para poder existir fisicamente. A imersão aconteceria justamente em função da
conjugação entre espaço e tempo permitida pela cibernarrativa, mas não somente por ela. Em
34
“Textual spaces involves not only a set of distinct locations but a network of accesses and relations that binds these
sites together into a coherent geography.”
145
narrativas diversas é possível fazer o espaço surgir em função da forma como ele aparece, à
medida que a história se desenvolve. A descrição espacial não precisa ser necessariamente
estática, ou somente descontínua, para criar uma sensação de fluxo. É possível, através da
descrição, criar relações entre distintas camadas temporais da narrativa. Essa seria uma maneira
de criar um ambiente imersivo através da relação entre os elementos que podem compor tal
ambiente. É ainda Marie-Laure Ryan que nota essa possibilidade, ao afirmar, sobre um dos
romances de Balzac:
“Quando o romance descreve a casa, como na descrição da pensão de Madame
Vauquer em ‘Pai Goriot’, ou da mansão decadente em ‘A grande Bretèche’, o narrador
inspeciona a construção de maneira sistemática, aproximando-se dela da rua,
examinando o jardim e a fachada, entrando pela porta principal, e caminhando de porta
a porta, como se fosse um fiscal ou um possível locatário. Ao final da descrição, o leitor
possui a noção precisa da configuração do prédio, do primeiro ao último piso.”
(tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 125)
35
.
A forma de descrever o espaço apresenta-se como uma conjugação entre os diversos locais
e os objetos e características presentes em cada local. É como se o cenário se misturasse à trama
de tal maneira que se tornassem inseparáveis, mas não completamente indistintos. O estilo de
narrativa descrito pode ser encontrado em cibernarrativas que se apresentam como bancos de
dados dispersos, em que os elementos do cenário e da trama ainda não estão organizados. Em
textos baseados em estratégias de links múltiplos em cada palavra, por exemplo, seria preciso
criar várias linhas organizadoras para um mesmo espaço. Nesses casos, seria como desdobrar o
espaço em todas as suas configurações temporais, ou, pelo menos, tentar criar esses
desdobramentos. É como se todas as camadas temporais que compõem a experiência de leitura
distendessem o espaço ao mesmo tempo, através da multiplicação dos links do texto. Não restaria
cenário a ser narrado? Essa pergunta não parece pertinente, porque em textos mais dinâmicos e
menos estruturados o cenário existiria fisicamente na medida em que fosse configurado pelo
leitor na navegação. Ainda que a descrição que funciona aqui como exemplo não trate de várias
perspectivas textuais ou de várias camadas temporais, é possível pensar numa comparação com o
desdobramento do espaço através da visão de várias camadas temporais. A distensão é espacial,
35
“ When the novel describes a house, such as the boardinghouse of Mme. Vauquer in Père Goriot or the decrepit
manor in ‘La Grande Bretèche’, the narrator inspects the building in a systematic manner, approaching it from the
street, examining the garden and facade, entering through the main door, and walking from room to rom, as would a
real estate agent or a prospective tenant. The reader end up with a precise notion of the configuration of the building,
all the way down to the floor plan.”
146
não temporal, pois o tempo não deixa de seguir o seu curso quando aparece por breves instantes.
Assim, uma perspectiva textual não oferece senão uma visão do espaço da obra. Quando uma
perspectiva descreve o espaço, ela mostra o seu caráter temporal, o seu caráter de fluxo e de
movimento.
A construção do espaço onde se dará a imersão também pode acontecer gradualmente, por
exemplo, a partir dos movimentos do personagem. Parece que a questão central, nas
cibernarrativas, é o fato da experiência de leitura ser uma experiência com o aspecto físico da
obra. Nesses casos, o leitor deveria ser capaz de organizar um material ainda não estruturado e
que pode ser reestruturado a todo momento. O que contaria não seriam as relações estabelecidas
pelo autor, as camadas temporais configuradas, mas a capacidade de instalar o leitor nesse
momento em que o tempo está ainda pré-configurado. O desafio da imersão, nas cibernarrativas,
está ligado à criação de uma história ainda não-contada que permita o acréscimo de perspectivas
textuais, ou de camadas temporais pelos leitores, mas de modo a não criar rupturas nas relações
estabelecidas até então na obra. Entretanto, essa premissa pode resultar na criação de um produto
que apenas cresce fisicamente sem, apesar disso, apresentar outros arranjos entre as camadas
temporais. Se a cibernarrativa se orienta através desse caminho, corre-se um sério risco de ver a
intensidade do seu caráter ciber desaparecer. Talvez a melhor solução para uma imersão na
cibernarrativa se baseie na possibilidade de produzir, de forma colaborativa, a concepção da obra
processo. Nos dizeres de Edmond Couchot (2003), isso significaria associar o espectador à
criação. Ainda que não pareça, mesmo em autores distantes cronologicamente desse tipo de
experiência, é possível encontrar sugestões para tal experiência. Machado de Assis (1959)
convida o leitor a acompanhar o seu processo de produção em “Dom Casmurro”, o que pode ser
considerado um esboço dessa participação do espectador. Aqui entram em jogo camadas
temporais distintas para a configuração de um espaço imersivo. A criação de uma rede
interligando os diversos pontos do espaço não seria justamente a transformação do espaço em
tempo? E, no caso das cibernarrativas, a criação de um cibertempo, que não se estrutura mais
somente de forma mental, mas que aparece fisicamente, no trabalho com o código, por exemplo?
Um outro aspecto na relação entre a imersão espacial de Marie-Laure Ryan e as
possibilidades de imersão em cibernarrativas baseia-se na noção de que memórias pessoais
diretas, quando evocadas em narrativas ficcionais, podem provocar um efeito imersivo mais
intenso. No caso das memórias pessoais diretas, Ryan afirma que elas
147
“possibilitam ao leitor construir mapas precisos do mundo textual e visualizar as
mudanças ambientais à medida que os personagens se movem entre locais distintos, de
forma muito parecida como aquela experimentada por jogadores dos jogos de
computador em primeira pessoa, quando vêem a imagem do mundo do jogo evoluir
como resultado de seus movimentos.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 128)
36
Para além dos jogos em primeira pessoa, em que o leitor “entra fisicamente” na pele de um
personagem, uma cibernarrativa permitiria a esse mesmo leitor combinar memórias pessoais com
a construção de cenários a partir da manipulação de dados digitais em uma base de elementos
pré-figurados. Ou seja, a “leitura” não evolui apenas num território que evoca memórias diretas,
ou mesmo locais estereotipados; o leitor pode criar tais locais fisicamente em jogos onde é
permitido construir o cenário. Efetivamente, a cibernarrativa, nesse caso, surge quando o jogo
baseia-se na construção do cenário como atividade principal. Jogos como Simcity e similares
apresentam como trama narrativa a construção do próprio cenário. De acordo com a forma que o
leitor ao seu mundo simulado, a trama se desenvolve num determinado sentido, que deve ser
entendido aqui como sentido temporal, como linha temporal. Novamente, a imersão se baseia na
capacidade da obra em expor as suas possibilidades de criação de narrativas pelo leitor: quanto
maior essa possibilidade, maiores são as alternativas de uma imersão específica da cibernarrativa.
No caso da imersão espaço-temporal, um aparente estágio intermediário entre a imersão
espacial e a imersão temporal, Marie-Laure Ryan questiona a distância entre o narrador e sua
audiência e o tempo e espaço dos eventos narrados. A imersão espaço-temporal aconteceria no
momento em que a distância referida anteriormente fosse igual a zero, ou muito próxima de zero.
A autora analisa algumas técnicas narrativas capazes de deslocar o leitor para “dentro” dos
eventos narrados, enfatizando a idéia de que a melhor maneira de manter o efeito imersivo é fazer
o leitor ocupar pontos diferentes em relação ao tempo e espaço dos eventos narrados. Pretende-se
utilizar essa afirmativa para discutir a imersão nas cibernarrativas como um movimento de idas e
vindas em relação às camadas temporais que configuram tal tipo de narrativas.
As técnicas narrativas podem ser utilizadas para modificar a posição do leitor em relação às
inúmeras variantes espaço-temporais apresentadas ou possibilitadas pela história não-contada. A
narrativa padrão seria aquela caracterizada como a de um contador de histórias: o narrador
36
“enable readers to construct a precise map of the textual world and to visualize the changing environments as the
characters move from location to location, much in the way the players of the so-called first-person-perspective
computer games see the image of the game-world evolve as a result of their movements.”
148
informa a audiência sobre fatos que aconteceram em um local e tempo distantes do local e tempo
em que a história é contada. Segundo Seymour Chatman, citado por Ryan (2001), o narrador
pode apenas, nessa situação, relatar eventos; ele não os acontecendo no momento em que fala
deles. A variação das técnicas narrativas pode, no entanto, fazer surgir novas configurações
espaço-temporais. Essas configurações permitem ao leitor imaginar a história a partir de
perspectivas distintas. Para ilustrar as possibilidades, tome-se os exemplos utilizados por Ryan,
relativos a três técnicas narrativas: mudança adverbial dêitica, tempo presente e narração em
segunda pessoa. Ao longo da sua análise, Ryan enfatiza as capacidades imersivas diferenciadas
das três técnicas.
Em relação à dêitica, a análise da autora se detém sobre os modos do discurso relacionados
ao pensamento ou fala dos personagens: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso livre
indireto. Para cada forma sintática haveria um grau de imersão diferenciado, com as camadas
temporais também surgindo de modo distinto para o posicionamento do leitor. Embora a autora
sugira o discurso direto como a forma mais imersiva entre as três citadas, uma ressalva em
relação ao discurso indireto livre. As duas maneiras possibilitariam imersões distintas, mas não
necessariamente de grau menor ou maior, numa análise comparativa.
“Eu deixo para o leitor decidir o que é mais imersivo: a forma de expressão que nos
uma completa, mas temporária, realocação na cena narrativa e nos joga dentro e fora
desse ponto focal, ou aquela que mantém uma posição de equilíbrio constante entre a
localização espaço-temporal do narrador e do personagem.” (tradução nossa) (RYAN,
2001, p. 135)
37
.
O discurso direto seria responsável por mudanças mais bruscas, por exemplo, entre a visão
do narrador e a visão do personagem, enquanto o discurso indireto livre apresentaria um
equilíbrio mais suave para o leitor, em relação ao deslocamento entre as camadas temporais. No
caso de uma cibernarrativa, a distinção aplicada pela autora não parece fundamental para a
definição da imersão, uma vez que o tempo narrado ainda aparece em estado pré-figurado. E
mesmo as categorias do discurso literário talvez não possam ser aplicadas aqui diretamente.
Ainda assim, parece suficientemente instigante analisar o que pode acontecer a uma obra
cibernarrativa quando o leitor decide configurá-la a partir de uma aproximação com o discurso
37
“I leave it to the reader to decide what is more immersive: the form of expression that gives us a complete but
temporary relocation to the narrative scene and jogs us in and out of this focal point, or the once that maintains a
constant position halfway between the narrato’s and the character´s spatio-temporal location.”
149
direto. Nesses casos, é como se o leitor se deparasse com um determinado personagem e pudesse
dialogar com ele. Mas isso não pode ser visto como a possibilidade de manipulação do código de
programação que coordena as ações do personagem. O que pode acontecer é uma reação do
personagem às ações do narrador-leitor e o conseqüente surgimento de mudanças físicas na obra.
O discurso indireto livre parece ser uma estrutura mais aberta a alterações diretas na sua própria
estrutura, de modo a fazer com que o leitor seja, quase ao mesmo tempo, narrador e personagem.
Essa característica confere mais suavidade ao processo imersivo, mas não significa que o leitor o
perceba melhor ou pior. Parece que as bases de dados não configurados em uma narrativa é que
serão os termômetros para o tipo de imersão a ser criada pelo leitor.
Uma outra técnica narrativa analisada por Marie-Laure Ryan (2001) relaciona-se ao uso dos
tempos verbais, notadamente o presente. Novamente, como em vários outros pontos em sua obra,
a autora termina por defender um tipo de imersão que envolve emocionalmente o leitor, no caso
em questão, o uso do tempo presente em relação ao uso do tempo passado. Ainda assim,
novamente uma ressalva quanto à necessidade de contrabalançar o uso dos dois modos
narrativos, conforme a própria autora afirma. “Para que a imersão retenha sua intensidade, ela
necessita do contraste dos modos narrativos, de uma distância constantemente renegociada da
cena narrativa, um perfil feito de picos e vales.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 137)
38
. A
mudança de modos temporais marca explicitamente a mudança de camadas temporais que, no
caso das cibernarrativas, talvez possa ser experimentada fisicamente pelo leitor. Também por
essa razão não se pode afirmar que a literatura eletrônica seja um tipo distinto de uma literatura
não eletrônica. E por essa razão o conceito de narrativa permita uma amplitude suficiente de
análise, no que diz respeito ao objeto dessa tese, as cibernarrativas. Voltando à última citação
acima, se a intensidade da imersão é proporcional ao contraste entre os modos narrativos, o
paralelo nas cibernarrativas talvez apareça quando uma escrileitura colaborativa. Ou seja,
quando o receptor-participante se depara com o ambiente imersivo que criou a partir da
modificação feita por um outro receptor-participante, uma mudança na experiência temporal
relacionada não só à mudança física da obra, mas também à presença de outros leitores na mesma
história. Os demais leitores parecem servir como uma lembrança permanente de que a história
configurada por um leitor é somente uma das configurações possíveis e que as pré-figurações
38
“For immersion to retain its intensity, it needs a contrast of narrative modes, a constantly renegotiated distance
from the narrative scene, a profile made of peaks and valleys”.
150
ocupam o mesmo patamar de importância no conjunto de toda a obra. Talvez se possa falar aqui
de uma constante pressão do tempo presente sobre a cibernarrativa e, também em função dessa
pressão, de uma reversibilidade quase que demandada do espaço em direção ao tempo. As obras
cibernarrativas demandariam uma reversão do espaço em tempo para alcançarem o seu grau
máximo de caráter ciber.
Ainda no campo das técnicas narrativas, Marie-Laure Ryan analisa a narrativa em segunda
pessoa, ressaltando o seu uso mais intenso a partir da exploração do potencial expressivo da
linguagem em todas as suas formas. A autora cita diversos exemplos para discutir de que maneira
a narrativa em segunda pessoa possui um efeito imersivo, ainda que de caráter momentâneo. E é
justamente a variabilidade no uso de técnicas narrativas, com o intuito de fazer o leitor se
deslocar “dentro” da obra, o que parece mais interessar a autora. Como afirma Ryan
“Essa experiência de ser transportado para dentro da cena narrativa é tão intensa e
demanda tanto da imaginação que não pode ser sustentada por muito tempo; um
aspecto importante da arte narrativa consiste, além disso, de variar a distância, como
um filme sofisticado irá variar a distância focal das lentes da câmera.” (tradução
nossa) (RYAN, 2001, p. 139)
39
.
A autora sugere que a fenomenologia da narrativa baseia-se em dois descentramentos: o
deslocamento do leitor de um mundo real para um mundo possível não atual, criado pelo texto; o
deslocamento do leitor da periferia para o centro do mundo da história e do tempo da narrativa
para o tempo do narrado. É possível fazer um paralelo aqui com a noção de intensidade de
imersão nas cibernarrativas. Nestas, a variação da distância do leitor em relação à narrativa
parece surgir mais claramente, pois uma demanda constante para que o leitor participe da
construção física do ambiente imersivo, e não apenas através da imaginação. A característica da
cibernarrativa é justamente exigir do leitor um deslocamento físico na obra, seja ele relacionado
ao tempo verbal, à pessoa que narra, ou mesmo relativo ao uso do código de programação na
configuração da narrativa. Esse deslocamento físico pode, numa obra com características
cibernarrativas, ser registrado e passar a fazer parte da obra. Nesse momento, a cibernarrativa
parece alcançar o máximo de sua intensidade. A experiência de uma leitura registrada ao lado da
obra que se pretende ler é a experiência do contato com dois momentos de mimese, nos termos de
Paul Ricoeur. o caráter de mimese III presente, em função de a leitura ser uma reconfiguração
39
“This experience of being transported onto the narrative scene is so intense and demanding on the imagination that
it cannot be sustained for a very long time; an important aspect of narrative art consists, therefore, of varying the
distance, just as a sophisticated movie will vary the focal lenght of the câmera lens.”
151
de uma narrativa configurada. Entretanto, como tal leitura se encontra registrada, ela surge como
mimese II, pois faz parte da nova configuração da obra. É como se o suporte em rede permitisse à
obra, em mimese II, incorporar as experiências que são próprias da mimese III. E ainda, se a
leitura registrada de um determinado leitor for destrinchada em relação às suas camadas
temporais, pode-se dizer que tal obra voltaria ao seu estado de mimese I, de um tempo e uma
narrativa pré-figurados. Estruturada dessa forma, a cibernarrativa permitiria uma reversibilidade
da narrativa espacializada em direção a uma narrativa temporalizada, em que o tempo aparece de
forma pré-figurada. As cibernarrativas colaborativas, em que a produção da base de dados, ou a
produção das perspectivas ou camadas temporais é aberta a vários ou a todos os leitores, parece
ser o estágio mais intenso de imersão próprio desse tipo de narrativa. Ou seja, a cibernarrativa
permitiria e, mesmo, demandaria uma imersão temporal ou de caráter temporal e menos uma
imersão espacial. E o se trata, aqui, do tipo de temporalidade presente numa narrativa
configurada, mas de uma temporalidade que surge ainda não narrada.
De que maneira Marie-Laure Ryan trata a imersão temporal? A discussão realizada pela
autora aborda a imersão temporal a partir da ótica do suspense, como uma metáfora para
descrever a relação entre as escolhas dadas ao leitor no desenrolar de uma história e a sensação
temporal originada dessa atividade.
“Genericamente falando, imersão temporal é o envolvimento do leitor no proceso pelo
qual a progressão da narrativa destila o campo dos potenciais, selecionando um ramo
como contra-factual, e o resultado dessa seleção continuamente gera novas
vistualidades. A passagem do tempo importa para o leitor porque ela não é um processo
de mera acumulação de partículas do tempo, mas um processo de descobrimento.”
(tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 141)
40
.
Para a autora, a imersão temporal total aconteceria no grau máximo de uma situação de
suspense, em que a eliminação gradual das possibilidades de escolha entre as camadas temporais
levaria o leitor ao total envolvimento em relação à camada que resta, ou em relação a duas
últimas escolhas possíveis. O conceito de imersão depende, então, a seguir essa linha de
raciocínio, de um envolvimento emocional intenso do espectador em uma determinada camada
temporal. Esse envolvimento conduz a discussão para um caminho oposto ao que se propõe para
40
“Generally speaking, temporal immersion is the reader’s involvement in the process by which the progression of
narrative time distills the field of the potential, selecting one branch as the counterfactual, and as a result of this
selection continually generates new ranges of virtualities. The passing of time matters to the reader because it is not a
mere accumulation of time particles but a process of disclosure.”
152
pensar a imersão temporal na cibernarrativa nessa tese. Defende-se a noção de que a imersão, em
uma cibernarrativa, pressupõe a percepção de que o ambiente ou a camada temporal que envolve
a percepção da narrativa é perfeitamente compreendida como uma escolha, e que as outras
camadas permanecem com o mesmo nível de probabilidade de escolha por parte do leitor. Isso
porque a imersão aqui é aquela relativa à entrada na narrativa pré-figurada, uma imersão em um
tempo ainda não-contado. O fato da imersão temporal na cibernarrativa acontecer no campo das
narrativas pré-figuradas, no momento de sua estruturação física pelo leitor, significa que a noção
de envolvimento emocional proposta pela autora importa menos no caso das cibernarrativas.
Paradoxalmente, o fato do leitor poder produzir novas configurações narrativas fisicamente pode
originar uma maneira de perceber o efeito estético imersivo a partir de novos parâmetros que não
somente o envolvimento emocional.
Mesmo que se considere a ressalva feita à associação entre suspense e imersão espacial, há
uma questão na obra de Ryan que permite discutir a associação entre espectador e criação. A
autora define a intensidade temporal em função dos níveis de suspense propostos em uma
narrativa e descreve o meta-suspense como um tipo que não pertence propriamente à poética da
imersão. Entretanto, afirma que a relação aqui se aproxima da interação com a obra. Para a
presente discussão, o meta-suspense seria o tipo de imersão próprio de uma cibernarrativa. “No
meta-suspense o foco de atenção do leitor não é descobrir o que acontece a seguir no mundo
textual, mas como o autor irá manter juntos todos os fios e dar ao texto uma forma narrativa
apropriada.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 145)
41
. A definição acima não explora o máximo
de intensidade ou de análise crítica permitida pelo meta-suspense. No caso das cibernarrativas, tal
envolvimento crítico iria até o ponto de permitir ao leitor experimentar o ato de contar a história,
fisicamente, ao acessar uma espécie de base de dados referentes ao tempo da ação prática, ainda
não estruturados numa narrativa. A cibernarrativa não demandaria uma escolha em detrimento
das outras, mas a presença constante de todas as possibilidades de produção de narrativas em
função do acesso a essa base de dados. Não mais uma imersão emocional como causa de uma
imersão temporal, mas também a abertura para uma imersão quase física num tempo que estaria
deixando de ser representado espacialmente. Nas cibernarrativas o leitor não se envolvido
somente pelo tempo da ação configurada, mas sim no trabalho com o código, maleável e
41
“In metasuspense the focus of the reader’s concern is not to find out what happens next in the textual world but
how the author is going to tie all the strands together and give the text proper narrative form.”
153
manuseável indefinidamente. Nesse caso, pode-se até falar de uma absorção, mas o leitor se
diante do tempo distribuído em códigos de programação que não conseguem espacializar o tempo
e, sim, sugerir a presença das diversas camadas temporais que constituirão a obra.
A proposta de Marie-Laure Ryan para definir a narrativa virtual como imersão apresenta
uma similaridade com o tipo de experiência descrita acima, como se pode perceber nesta
descrição.
“Ao descrever o suporte material da representação – um suporte que funciona como um
referencial primário do discurso – através de recursos retóricos como a equifrase,
paráfrase, ou sumário, o narrador conjura imagens do mundo refletido. Quando essas
imagens formam uma história, o narrador indiretamente produz uma narração, ou o
efeito de uma, mesmo que o seu discurso seja focado em algo diferente dos eventos
narrados.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 164)
42
.
Não se trata, na narrativa virtual, de contar uma história já acontecida, mas sim de construí-
la à medida que a narrativa evolui. A descrição do suporte material da representação causaria esse
efeito de algo que ainda não aconteceu e que surge porque está sendo contado. Em vários
exemplos, a autora demonstra como é possível envolver o leitor na própria história, de maneira a
fazê-lo se sentir como aquele que constrói a história porque a está lendo. O leitor percebe a obra
em construção pela sua leitura, como em “Se um viajante numa noite de inverno...”, de Ítalo
Calvino (1999). O efeito imersivo conseguido aqui é bastante similar à idéia de acesso ao código
manipulado pelo autor quando produziu a obra. Nesse caso, parece que ela irá terminar se o
leitor se dispuser a lê-la efetivamente. E, em alguns outros casos, o próprio mundo do texto, ou os
personagens, parecem ter a consciência de que são uma construção da mente do leitor. É como se
o texto fosse produzido evocando, nos personagens, a consciência de que são parte de uma
história narrada. Um paralelo possível com a cibernarrativa seria pensar os elementos
componentes desse tipo de narrativa como códigos abertos à manipulação física, porque são
estruturados como elementos inconstantes, alteráveis pelo leitor. Ou melhor, apresentados como
elementos que, para poderem ser incorporados à narrativa, deverão ser manipulados fisicamente.
Em relação aos jogos de simulação como, novamente, Simcity, os elementos são apresentados de
maneira a só existirem no cenário se forem construídos para lá estarem.
42
“By describing the material support of the representation – a support that functions as primary discourse referent –
through such rethorical devices as ekphrasis, paraphrase, or summary, the speaker conjures images of the reflected
world. When these images form a story, the speaker indirectly produces a narration, or the effect of one, even though
his discourse is focused on something other than the narrated events.”
154
Apesar de todas as possibilidades abertas pela autora em sua análise, novamente uma
busca por um ponto de equilíbrio entre a imersão em que o leitor percebe claramente as técnicas
imersivas e a imersão emocional sem interferência do suporte ou meio de forma perceptível.
Segundo Marie-Laure Ryan, a imersão não poderia ser percebida de dentro do ambiente imersivo,
pois isso poderia destruí-la. Deveria ser criada uma distância contemplativa para que a imersão
fosse percebida, em que a narrativa virtual seria o ponto de partida e nunca o objetivo final dessa
ação. Embora se possa considerar essa afirmação como um alerta para uma possível perda da
sensação de imersão em uma narrativa, no caso das cibernarrativas seria permitido pensar a partir
de uma outra gica. Se o sentido, nesses casos, for justamente enfatizar a maleabilidade e a
instabilidade do material utilizado na narrativa, o destino desta não seria cair numa narração
real, mas talvez se manter sempre como um campo de tensão para a experiência de escrita e
leitura. Ou ainda, o ideal seria a ênfase sempre no processo que se entre escrita e leitura, e não
a escolha de um ou outro lado.
sempre uma tentativa de equilíbrio entre o ato de leitura como ato de criação relativo à
imagem de um mundo; e o ato de leitura como um ato de estruturação física de uma obra, para
que depois se possa falar da construção do sentido através da leitura. A primeira perspectiva,
relativa à passagem de mimese II para mimese III, não é discutida aqui, mas também na
abordagem de Marie-Laure Ryan. a segunda perspectiva surge, no caso da autora mencionada,
relacionada ao que ela mesma denomina uma poética da interatividade. Como se destacam
nesse momento do texto características do que se pode compreender como cibernarrativa, em
contraponto à noção de texto como mundo e imersão puramente emocional, parece prudente, no
mínimo, confrontar tais características com a idéia de uma poética da interatividade.
Para pensar a interatividade, Ryan propõe complementar a discussão de imersão baseada na
relação entre as metáforas do texto como mundo e do texto como jogo. Embora o detalhamento
dessa análise pareça um empreendimento pouco útil nessa tese, considerando o conceito de
cibertexto trabalhado por Aarseth (1997), as delimitações da autora podem definir, com maior
precisão, o conceito de cibertexto e também o conceito de cibernarrativa. A primeira observação
sobre o texto como jogo ressalta o caráter vago do paralelo entre texto literário e as definições
relativas aos jogos. A aparente crítica feita por Marie-Laure Ryan prepara, na verdade, uma
discussão mais cuidadosa sobre jogos e textos, nas suas similaridades e diferenças. Nesse sentido,
a autora critica aqueles que vêem similaridades baseados no fato de que tanto em um jogo quanto
155
em um texto literário um prazer desinteressado e que as regras do jogo ou as “regras” da
leitura garantiriam essa participação prazerosa do leitor.
Uma primeira diferença evocada por Ryan demonstra, paradoxalmente, quão similares
podem ser as cibernarrativas e os games. Segundo a autora, a diferença entre os textos e os jogos
reside no fato de que, enquanto nos primeiros o leitor apreende as regras enquanto lê, nos games
o leitor precisa primeiro conhecer as regras para só então “entrar no campo de jogo”. Ainda que
se possa concordar com essa afirmação, nos jogos multiusuários e nos jogos que permitem ao
jogador alterar elementos ou criá-los, a possibilidade de mudança das regras em função de se
jogar o jogo. Se as cibernarrativas caracterizam-se por permitir ao leitor acessar o tempo pré-
figurado, então se pode dizer que mais similaridades que diferenças, nesse caso. As
similaridades acontecem em função do tipo de imersão demandada pela cibernarrativa.
No caso das similaridades, a autora utiliza a tipologia empregada por Roger Caillois (1990),
segundo a qual é possível destacar quatro tipos de jogos: agon, jogos baseados na idéia de
competição; alea, os jogos de “azar”; mimicry, jogos de imitação ou faz-de-conta; e ilinx, jogos
que envolvem a transgressão de barreira, a reversão de categorias estabelecidas e o caos
temporário, porque baseados na idéia de vertigem. A definição de jogo como ilinx se aproxima
bastante do tipo de proposta apresentada para explicar o comportamento das cibernarrativas:
obras processuais, cuja estrutura é questionada o tempo inteiro, em que a própria combinação dos
elementos não é completamente definida e em que a narrativa surge como uma história não-
contada, como um tempo pré-figurado. Ainda que em sua tipologia Caillois enfatize a noção de
vertigem associada à ilinx, o que se percebe ao longo da discussão é que nesse tipo de jogo a
regra parece estar associada fundamentalmente ao ato de começar a jogar, de começar a
experimentar a vertigem. Como se as regras fossem direcionadas justamente para a ação de
iniciar a vertigem, de iniciar a experiência de entrada no jogo.
Marie-Laure Ryan (2001) realiza ainda outras comparações entre textos e jogos e a
metáfora de texto como mundo. Para a autora, alguns elementos são centrais para a realização
desse paralelo. No caso da função desempenhada pela linguagem, um dos elementos analisados, a
autora afirma que o texto como jogo apresenta uma perspectiva aberta, reconfigurável, como se
fosse uma rede de relações entre unidades semi-autônomas e não uma imagem a ser consumida.
O texto é reconfigurável pelo próprio ato de jogar, o que permite vê-lo como uma operação em
que o leitor pode acessar a narrativa em estado de mimese I, ou quase no estado de mimese I. A
156
segunda questão que aproxima essa visão da cibernarrativa é a noção de texto como uma rede de
relações entre unidades semi-autônomas. duas considerações a se fazer aqui: o texto como
imagem, conforme proposição de Wolfgang Iser (1996), funciona a partir de um princípio
diferenciado nas cibernarrativas, em que o texto não está mais no lugar do que falta e sim como
capaz de construir o seu próprio espaço, através do ato de leitura/escrita, ou melhor, de
escrileitura. A segunda consideração centra-se na visão do texto como recurso renovável e não
como mercadoria consumível. Essa forma de pensar é bastante apropriada ao modo de
comportamento das cibernarrativas, caracterizado por um processo de construção constante de
novas mimeses I, que levam sempre a novas produções de possibilidades de produção.
Em relação a um outro elemento, a concepção de espaço, o texto como jogo é visto como
um espaço bidimensional, em que as palavras são manipuladas e o mapa é uma rede de relações
que conecta unidades textuais, determina padrões de acessibilidade e traça figuras formais. No
caso da metáfora do texto como mundo, o espaço é um ambiente tridimensional em que se é
possível viver dentro”. Se há nessas definições uma contradição clara, não parece ser necessário,
no caso das cibernarrativas, corroborar essa contradição. Manipular o código de uma
cibernarrativa não exige que esse código exista somente em duas dimensões; é possível criar
ambientes tridimensionais, em que o leitor escreve novos elementos e os incorpora ao ambiente.
De fato, essa parece ser uma evolução natural para a produção colaborativa em cibernarrativas:
buscar conexões cada vez mais complexas, em que os códigos de programação que geram
imagens, sons e signos verbais estejam todos à disposição dos leitores. No tipo de imersão
permitido pela cibernarrativa, o leitor não cria somente um mapa mental do que está diante de si.
Ele pode manipular fisicamente esse texto, ou melhor, essa obra.
Ao final da comparação entre as duas metáforas o texto como mundo; o texto como jogo
Marie-Laure Ryan propõe uma oscilação entre imersão e não-imersão como forma de
aproveitar o texto tanto como mundo quanto como jogo. Seriam metáforas complementares para
abarcar o texto como fenômeno. Uma das maneiras de criar essa oscilação é tornar o código da
obra manipulável, ou seja, permitir ao leitor o acesso a esse código no momento e como parte da
sua leitura. A leitura seria vista, dessa forma, como um processo em que a imersão é demandada,
exigida pelo próprio modo como a obra se apresenta. A imersão não seria, em primeiro lugar,
aquela do envolvimento emocional e da transparência do meio, mas aquela própria do ato físico
de construção da obra. O leitor deveria interferir na disposição dos elementos da obra para
157
começar não a ler uma narrativa configurada, mas configurar uma narrativa a ser lida. Ou, como
prefere Marie-Laure Ryan, ao falar de interatividade, “no tipo mais completo de interatividade,
finalmente, o envolvimento do usuário é uma ação produtiva que deixa uma marca durável no
mundo textual, seja ao adicionar objetos à sua paisagem, seja escrevendo a sua história.”
(tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 205)
43
. Esse tipo de interatividade, em função do seu caráter e
da sua possibilidade de uma experiência imersiva que modifica o próprio ambiente imersivo é o
que parece mais próximo daquele exigido por uma cibernarrativa.
A autora divide o conceito de interatividade em interatividade seletiva ou interatividade
produtiva. A interatividade seletiva, conforme o próprio nome indica, define-se pelas escolhas
que o leitor pode fazer em relação aos textos interativos. Marie-Laure Ryan sugere sete tipos de
escolhas permitidas ao leitor, e que fariam esse leitor, supostamente, querer interferir no texto,
quais sejam: interferir para determinar a trama da história; interferir para mudar a perspectiva do
mundo do texto; explorar todos os campos de possibilidades da obra; manter a máquina textual
em funcionamento; recuperar informações; jogar jogos e resolver problemas e avaliar o texto.
A interatividade produtiva possui todas as características acima, além das duas a seguir: a
possibilidade dada ao leitor de participar na escrita do texto realizando contribuições permanentes
num banco de dados, ou num projeto coletivo; engajar-se em um diálogo e desempenhar funções
no texto. No caso da interatividade produtiva, o envolvimento do usuário leva a uma ação que
deixa marcas permanentes na obra. Essa seria uma das condições para a produção de obras
cibernarrativas: o leitor participa fisicamente do movimento da obra, ao criar mudanças
permanentes nesse ambiente. Marie-Laure Ryan não considera o texto ergódico como capaz,
sozinho, de produzir o tipo de interatividade que ela denomina de interatividade produtiva. Isso
porque o texto ergódico poderia funcionar de forma autônoma, gerando novas combinações, a
partir de um único comando do leitor. Ou seja, esse leitor não precisaria produzir uma narrativa
configurada, mas apenas realizar uma escolha que faria com que a obra gerasse suas próprias
configurações. Se o caráter ciber tem como uma de suas constituintes a possibilidade do leitor
acessar outras leituras de outros leitores como partes da obra, em função da imersão no tempo
pré-figurado da narrativa, parece ser preciso ampliar o conceito de cibernarrativa a partir do seu
pilar básico, qual seja, o conceito de cibertexto. Por que a cibernarrativa permite, ao leitor, o
43
“In the fullest type of interactivity, finally, the user’s involvement is a productive action that leaves a durable mark
on the textual world, either by adding objetcts to its landscape or by writing its history.”
158
acesso a um tempo pré-configurado? As características utilizadas por Lev Manovich (2001) para
descrever a linguagem da nova mídia permitem uma explicação inicial para a pergunta. Segundo
o autor russo, tal linguagem seria composta por quatro elementos principais: a representação
numérica, a modularidade, a automação e a variabilidade. Essas quatro características servem
aqui para corroborar as várias alusões feitas, ao longo do capítulo, sobre como a imersão pode
acontecer na cibernarrativa. Manovich chama a atenção para o fato de que nem todos os objetos
da nova mídia precisam obedecer aos princípios contidos na explicação de como funcionam as
características. A primeira característica associada à nova mídia, a representação numérica,
permite dizer que um objeto da nova mídia está sujeito à manipulação algorítmica. Ou seja, a
mídia torna-se programável. Se as cibernarrativas baseiam-se nessas características, explica-se
aqui a relação entre o texto enquanto acontecimento, segundo Iser (1996) e o texto programável,
em Manovich (2001). O que Manovich deseja enfatizar é que os dados que configuram um objeto
da nova mídia podem ser manipulados porque são representações numéricas. Isso permite afirmar
que a cibernarrativa pode ser trabalhada a partir de dados pré-figurados, em estado de mimese I,
já que tais dados podem ser transformados em conjuntos numéricos programáveis.
O segundo princípio descrito por Manovich é a modularidade, segundo o qual a nova mídia
possui uma estrutura fractal. Os objetos são modulares e podem ser recombinados
indefinidamente sem perder suas características singulares. Tome-se aqui como exemplo o caso
da obra circ_lular, em que o receptor-participante pode manipular conjuntos de dados
modularizados em uma ilha de edição não-linear. É possível, para qualquer receptor-participante,
acessar o conjunto dos dados agrupados em uma narrativa configurada, mas é possível também
voltar ao conjunto de dados separados e recombiná-los indefinidamente.
A automação, terceiro dos princípios da nova mídia, relaciona-se com a capacidade de criar
algoritmos que corrigem automaticamente determinados comportamentos dentro de um
programa, ou dentro de um jogo. O que se pode dizer aqui é que, ao alterar algoritmos que
regulam comportamentos emergentes (Johnson, 2001), o programador de um jogo está
interferindo nas narrativas que poderão ser criadas automaticamente pelo jogo. Ou seja, em
interfaces interativas, a escrita com o código é verdadeiramente um tipo de escrita com a
estrutura ainda não configurada da obra. Aqui se pode dizer que o meta-autor não configura uma
narrativa ao trabalhar com toda a potência das cibernarrativas. Antes, ele sugere as regras
combinatórias que regularão o contato com a interface. Em jogos como Warcraft, o programador
159
escreve as regras que permitem a criação de cenários, de novos personagens, além, é claro, de
criar as narrativas configuradas do jogo. Entretanto, quando esse programador meta-autor se
depara com a escrita de algoritmos que definem de que maneira os cenários podem ser criados,
está utilizando a idéia de que, em uma cibernarrativa é possível deixar que o receptor-participante
acesse as regras da narrativa ainda antes de elas serem combinadas. Mesmo que a possibilidade
de combinação não possa ser total, ou que o receptor-participante não seja ainda livre para definir
como combinar os algoritmos, ele já pode aproximar-se muito do estado de mimese I da obra.
A última das características da nova mídia, a variabilidade, baseia-se no fato de que um
objeto da nova mídia é algo que não está fixo de uma vez por todas, mas que pode existir,
potencialmente, em infinitas versões. Se relacionarmos essa característica com as cibernarrativas,
pode-se perceber que, nesse tipo de narrativas importa investigar os processos que fazem surgir
as diferentes versões. E tais processos relacionam-se a um tipo específico de imersão: aquele em
que o receptor-participante manipula as quatro características indicadas por Manovich. Ou seja,
uma imersão que, para além da “entrada” em um ambiente, compreende que esse ambiente é
programável, porque é modular, e pode dar origem a vários ambientes, de acordo com o grau de
variação das combinações entre os seus elementos. E esse tipo de imersão que se pretende
explorar para identificar como ela condiciona a criação de cibernarrativas.
160
6 DAS RELAÇÕES ENTRE CIBERNARRATIVAS E IMERSÃO
6.1 Uma tipologia para cibertextos
As relações propostas nesse capítulo final são um desdobramento das tipologias
desenvolvidas por Espen Aarseth, Marie-Laure Ryan e os conceitos de mimese expostos por Paul
Ricoeur. Se o conceito de imersão é visto a partir de uma perspectiva relacional, parece uma
conseqüência lógica verificar sua presença nas cibernarrativas sob a mesma ótica. Assim, o
objetivo é discutir as tipologias dos dois primeiros autores mencionados na busca de uma
aproximação mais detalhada do processo de construção das cibernarrativas. As análises
realizadas apresentam questões variadas, em função mesmo do caráter de processo das obras, que
se intensifica à medida que elas permitem a participação do receptor-participante e ainda mais
quando as obras exigem essa participação. À guisa de conclusão da tese, pretende-se também
indicar uma tipologia para definir alguns padrões de comportamento dos processos
cibernarrativos, mas também indicar questões suscitadas por essa tese e que não parecem ter
respostas muito claras.
A tipologia desenvolvida por Aarseth sugere propriedades relativas ao modo como os
scriptons são gerados ou revelados ao leitor a partir da configuração dos textons. Segundo
Aarseth, a sua preocupação é gerar um modelo que indique de que maneira os cibertextos podem
ser atravessados. As variáveis expostas por ele, como se verá a seguir, derivam da sua maneira de
encarar os cibertextos: a partir da perspectiva comunicacional de textos dinâmicos. Dessa
tipologia pretende-se utilizar justamente tal percepção, esta que compreende os cibertextos como
sempre em movimento. Marie-Laure Ryan procura ampliar um pouco a tipologia de Aarseth
ao agrupar características ergódicas com o tipo de interatividade apresentada por obras variadas.
Sua tipologia baseia-se, principalmente, no tipo de interatividade apresentada pelas obras,
dividida em interatividade seletiva ou produtiva. Aqui o que se percebe é uma atenção maior nas
obras e a classificação parece se aproximar mais de uma análise da obra realizada do que do
processo de construção das narrativas.
161
Aarseth (1997) cria uma tipologia para os cibertextos baseada em um conjunto de
características cujo pano de fundo são os movimentos que o operador humano pode fazer em um
cibertexto, considerando o comportamento de textons e scriptons. Apenas para lembrar a
terminologia empregada pelo autor, os textons são considerados, por Aarseth, como a estrutura
física do cibertexto, o arranjo dos significantes dentro dele. Já os scriptons seriam aquilo que um
leitor ideal leria ao seguir as configurações textuais propostas. Esse segundo termo seria mais
próximo daquilo do que se pode chamar de atividade interpretativa do texto. Segundo a tipologia
de Aarseth, os cibertextos podem ser experimentados considerando: a sua dinâmica; o grau de
determinabilidade; a transiency
44
presente no cibertexto; a perspectiva; o acesso; o grau de
ligação entre os elementos; e as funções do usuário, divididas em explorativas, configurativas,
interpretativas ou “textônicas”. Cada uma das variáveis indica de que maneira o processo pode
ser mais ou menos cibertextual, conforme a combinação delas. A variação dentro de cada
característica indica o grau de modificação que o cibertexto permite ao leitor e,
conseqüentemente, de que maneira a imersão do leitor na obra pode criar ou não o próprio
ambiente imersivo.
A propriedade de dinamismo relaciona-se ao grau de estabilidade dos scriptons no
cibertexto. Numa obra mais estática, os scriptons são constantes, enquanto em obras mais
dinâmicas pode haver variações entre o número de textons e scriptons. Ou seja, um mero fixo
de textons pode gerar vários scriptons, ou o número de textons pode variar também. Isso significa
dizer que nas obras dinâmicas em seu mais alto grau, o cibertexto pode ser construído
indefinidamente, pois ele varia fisicamente também, com o aumento do número de textons. No
exemplo dado por Aarseth para esse último caso, os MUDs, o receptor-participante poderia não
acessar a configuração da narrativa construída, mas também construir a continuação da
narrativa. Em relação ao dinamismo do cibertexto, ele seria tanto mais dinâmico quanto mais
permitisse ao receptor-participante se aproximar da mimese I para poder alterá-la.
O grau de determinação do cibertexto varia de acordo com a maneira como os movimentos
do receptor-participante alteram a configuração dos scriptons. Segundo Aarseth,
“um texto é determinado se os scriptons adjacentes de cada outro scripton são sempre
os mesmos; se não, o texto é indeterminado. Em alguns jogos de aventura, a mesma
44
Esse termo será discutido um pouco mais adiante no texto. Não parece haver tradução em português para ele. O
termo relaciona-se à passagem no e do tempo.
162
resposta a uma dada situação irá gerar sempre o mesmo resultado. Em outros jogos,
funções randômicas (como o rolar de dados) tornam o resultado imprevisível.”(tradução
nossa) (AARSETH, 1997, p. 63)
45
.
Em obras menos determináveis, a reconfiguração da narrativa através do processo de
navegação pode gerar resultados sempre diferentes, relativos às várias interpretações possíveis de
uma obra. Quando se acrescentam a essas reconfigurações comportamentos emergentes, relativos
às regras da narrativa ou ao código de programação, como parece ser o caso no exemplo dado por
Aarseth, sugere-se ao receptor-participante que sua participação altere a mimese I. Entretanto, as
respostas são ainda programadas, ainda que possam ser randômicas e aparentemente indefinidas
em termos de número. Ou seja, não realmente uma modificação das regras do cibertexto, mas
uma abertura da leitura para que o receptor-participante perceba mais claramente o
funcionamento das perspectivas textuais, ou o modo como os scriptons surgem.
Uma terceira variável na tipologia de Aarseth é o que o autor denomina “transiency”, um
termo que, aparentemente, não encontra tradução no português e que indica uma impermanência,
a qualidade de ser passageiro. Essa característica indica de que modo a passagem do tempo altera
ou não o cibertexto, no que diz respeito à aparição dos scriptons. Os textos que se alteram e
fazem surgir novos scriptons com o passar do tempo do usuário são considerados transientes,
enquanto aqueles que precisam ser ativados pelos usuários seriam não-transientes. Essa variável
não parece permitir ao leitor um contato com a mimese I ou um tipo de imersão que se relacione à
modificação física na obra. O cibertexto pode simplesmente ser mais ou menos instável,
intensificando a sensação de desmaterialização do suporte digital para o receptor-participante
desse texto.
A variável relacionada à perspectiva indica se o cibertexto possibilita uma perspectiva
pessoal ou impessoal, relativa ao modo como o cibertexto convoca o leitor e o posiciona na
trama. Essa característica interfere mais diretamente no acesso que o receptor-participante pode
ter à mimese I e como esse acesso irá ou não modificar o cibertexto. Se o texto exige do receptor-
participante o desempenho de uma função estratégica como personagem no mundo do texto,
então o cibertexto seria pessoal; caso isso não aconteça, o cibertexto seria impessoal. No caso dos
textos pessoais, o receptor-participante teria um papel fundamental no desenrolar da trama, o que
45
“a text is determinate if the adjacente scriptons of every scripton are always the same; if not, the text is
indeterminate. In some adventure games, the same response to a fivem situation will always produce the same result.
In other games, random functions (such as the use of dice) make the result unpredictable.”
163
permite dizer que os cibertextos pessoais sugerem um acesso à mimese I e um tipo de imersão
capaz de modificar fisicamente a obra. Entretanto, nesse momento da discussão Aarseth não
menciona como os scriptons e textons aparecem ou não nessa variável, o que causa uma certa
dificuldade de análise da própria categoria. Afinal, a tipologia é baseada no comportamento de
scriptons e textons dentro do cibertexto.
O acesso é uma outra variável para categorizar o cibertexto como randômico ou controlado.
Se os scriptons do cibertexto são disponíveis para o leitor em todos os momentos da leitura, o
texto é mais randômico, e Aarseth exemplifica esse caso falando do codex. Ou seja, numa obra
impressa, é possível ler todos os scriptons que a obra poderia gerar, pois a obra não limita o
acesso do receptor-participante em função da sua estrutura. Nesse sentido, ela seria randômica,
pois não haveria uma hierarquia estrutural que o receptor-participante deveria respeitar para lê-la
completamente. A observação importante aqui diz respeito a uma suposta não-linearidade dos
hipertextos em meio eletrônico. Obras como Victory Garden seriam muito mais lineares do que
obras em meio impresso, justamente porque o acesso, nas primeiras, é controlado pela própria
estrutura de links da obra.
Em relação à capacidade de interligação do cibertexto, Aarseth estabelece para essa
categoria três subdivisões: o texto pode conter links explícitos para que o receptor-participante
navegue, os links podem ser disponibilizados para navegação apenas se o receptor-participante
cumprir certas condições ou pode não haver links no cibertexto. Aqui também a capacidade de
alteração do cibertexto não está associada a qualquer tipo de modificação física na obra, mas a
leituras diferentes que mostram partes diferentes da obra, de acordo com os movimentos do
receptor-participante. uma sensação de interferência na parte física, que pode ser associada
também a tipos de combinações diferentes escolhidas pelos receptores-participantes, no que diz
respeito às ações que podem fazer aparecer ou não links no seio da obra. Como uma obra
cibertextual é dividida entre o que aparece na tela e o que está no código de programação, mas
que não necessariamente irá aparecer na tela, é preciso ainda pensar de que maneira, aqui, o
receptor-participante escreve ou não com o código. A navegação não parece ser capaz de alterar o
código, mas parece possível afirmar que há uma leitura que depende de que partes do código são
ativadas.
A última categoria da tipologia de Aarseth é aquela relacionada às funções que o usuário
pode desempenhar no cibertexto. Essa é a variável que melhor se aproxima à idéia de imersão
164
defendida nessa tese, pois diz respeito, fundamentalmente, ao grau de interferência que o
cibertexto permite ao receptor-participante no que concerne à estrutura física da obra cibertextual.
Como dito anteriormente, as funções do usuário são divididas em quatro subitens: a função
interpretativa, de nível mais elementar, presente em qualquer obra, relativa à construção de
significados a partir do texto, sem necessariamente criar uma interferência física na obra; a
função exploratória, em que o cibertexto permite ao usuário decidir que caminhos quer seguir na
navegação; a função configurativa, em que os scriptons são escolhidos ou criados, em parte, pelo
usuário; e a função “textônica”, em que os cibertextos permitem que funções transversais ou
textons sejam permanentemente adicionados à obra. Aarseth compara as quatro funções
permitidas ao receptor-participante e indica como cibertextos mais dinâmicos aqueles que
permitem ao receptor-participante desempenhar uma função “textônica”. O grau de dinamismo,
considerando o tipo de alteração física que o cibertexto pode sofrer, diminui quando a função
permitida é somente a de configurar scriptons, e diminui mais ainda se a função permitida é
apenas exploratória. No caso da função interpretativa, Aarseth considera que, nesse caso, o fluxo
de informação é somente da obra para o receptor-participante, uma vez que as interpretações não
podem ser acopladas ao cibertexto dinamicamente e imediatamente. O que Aarseth denomina
como função textônica é o que a tipologia a ser demonstrada mais adiante indica como a
possibilidade do receptor-participante alterar a mimese I de uma obra, através da imersão nessa
mesma mimese I.
O que parece ainda confuso na tipologia de Aarseth é a definição entre textons e scriptons.
Em alguns momentos da descrição das propriedades acima, parece haver uma confusão entre os
conceitos, sem que se saiba realmente ao certo qual é a real diferença entre eles. Como o objetivo
do autor é tentar destrinchar o modo de atravessamento dos cibertextos, essa também parece ser a
origem dessa dificuldade de definição, pois é como se Aarseth quisesse conferir aos dois termos
uma presença material quando, na verdade, eles indicam um modo de comportamento relativo
aos movimentos do leitor, aos movimentos do cibertexto e aos movimentos do próprio meio em
que se situa o cibertexto.
Pensar um “local” ou uma obra para criar uma tipologia baseada na imersão parece ensejar
apenas uma relação deste conceito com o espaço. Entretanto, ao se trabalhar aqui a noção de
camadas temnporais, não se trata apenas de pensar o espaço, mas fundamentalmente a relação
entre espaço e tempo no ato de uma escrita que se faz por imersão e que produz o próprio “local”
165
onde imerge e onde emerge. Em uma obra literária puramente verbal, ainda que o escritor se
depare com uma delimitação espacial fortemente marcada, qual seja, aquela relativa aos signos
verbais no papel, por exemplo, o que ele, escritor, experimenta é o tensionamento de uma das
linhas de força que compõem a expressão escrita. Dessa maneira, a imersão não é somente
espacial, ou antes, é uma imersão num movimento, que aparece de forma espacializada, mas que
não se reduz ao espaço. É o que Merleau-Ponty parece dizer quando afirma que a obra é o que
atinge o espectador. Pode-se talvez modificar um pouco o enunciado e dizer que a obra atinge e é
atingida pelo espectador, mas não como coisa e sim como movimento.
Ou ainda, retomando a discussão que Iser empreende sobre o ato de leitura, pode-se discutir
a idéia de acontecimento que acompanha a noção de obra. Assim considerada, a cibernarrativa
aparece como um ponto dentro de uma rede em que não se pode precisar um único
atravessamento ou caminho ao qual ela pertenceria. De acordo com o tipo de abordagem a esta
rede, uma cibernarrativa qualquer se mostra ou pode se mostrar como pertencente a conjuntos
diferentes e talvez até mesmo como uma nova narrativa. Assim, talvez não se possa reduzir a
cibernarrativa a uma figura espacializada, mas seja preciso também abordar a dimensão temporal
dessa percepção. Ou seja, a imersão em uma obra é temporal e o tempo aqui diz respeito ao
instante da percepção da obra e do fenômeno textual que surge desse contato. Ao dizer que o
nome de autor atravessa os textos, que os recorta, que manifesta o modo de ser desses textos,
Foucault (1969) permite discutir a idéia de que uma obra é recortada e construída por diversas
possibilidades de imersão e o autor é uma dessas possibilidades. E esta é uma maneira pela qual
se pode pensar o conceito de imersão: é o aparecimento de uma função da própria obra ou uma
manifestação da obra e do seu modo de funcionamento.
Interessa aqui esse não-lugar de imersão em que o signo se choca com outras camadas que
compõem uma expressão. Parece que a imersão a que se sujeita o escritor e a que ele também
funda é justamente aquela que dá acesso ao entrecruzamento do pensamento, da materialidade do
meio de expressão e da percepção sensível. Há, então, um acesso sempre indireto a qualquer uma
das camadas, uma vez que elas também se movimentam e não se reduzem ao espaço em que
aparecem. Dependendo do modo e do momento em que se experimenta tal entrecruzamento,
parecerá que a imersão é, às vezes, mais temporal e instável, e outras vezes, mais espacial e com
uma tendência menor à instabilidade. Assim descrita, a imersão é também o que produz a sua
própria possibilidade de acontecimento, dentro da cibernarrativa.
166
6.2 Uma tipologia para narrativas interativas
Marie-Laure Ryan (2001) cria uma tipologia com oito textos diferentes, a partir do fato de
apresentarem as seguintes características: serem ergódicos ou não, serem interativos ou não,
serem produzidos em meio eletrônico ou não. Ao aplicar a relação de tempo e narrativa aos
textos, pode-se perceber que a característica de imersão aparece de maneiras muito distintas em
cada uma delas.
No primeiro caso, os textos não-ergódicos, não-eletrônicos e não-interativos, associados
aos textos literários em papel, o leitor poderia acessar somente o estado de mimese II, de uma
narrativa configurada que permitirá a sua reconfiguração no ato de interpretação por parte do
leitor. A imersão aqui é mais de tipo emocional, prioritariamente, conforme terminologia usada
pela própria Marie-Laure Ryan. Ao aplicar aqui as funções do usuário, conforme a tipologia de
Aarseth, esses seriam os textos em que o usuário teria como função apenas a possibilidade
interpretativa. É sempre importante reafirmar que a função interpretativa não é considerada de
somenos importância nesse estudo; muito pelo contrário, ela é a base de todas as discussões sobre
o efeito estético permitido por um texto e também a base para se pensar de que maneira as
cibernarrativas potencializam a função interpretativa em níveis de modificação física da obra.
O segundo exemplo trabalhado pela autora são os textos interativos, não-eletrônicos e não-
ergódicos. Nessa categoria, Ryan enquadra dois conjuntos: um primeiro, relativo a uma
interatividade seletiva, relacionada ao diálogo entre quem ouve e quem conta uma história; um
segundo, que seria a conversação, ou o que Ryan chama de interatividade produtiva. Como nos
dois casos a configuração da narrativa não se faz sobre um suporte manipulável fisicamente,
esses tipos de textos não serão objeto de análise mais detalhada. Entretanto, as características de
oralidade presentes em um diálogo serão úteis para se discutir os exemplos que mais se
aproximam de uma cibernarrativa. Como aqui se tratam de narrativas contadas oralmente, a
relação entre as mimeses se apresenta muito similar a uma das características das cibernarrativas,
qual seja, o seu caráter eminentemente processual. Se narrador e ouvinte podem discutir uma
história que está sendo contada, há uma aproximação dos dois do estado de mimese I. Entretanto,
a reorganização da história de maneira pouco mais personalizada não interfere fisicamente na
história que será contada por outros narradores para outros ouvintes. A diferença principal entre o
167
diálogo em torno de uma história e a cibernarrativa seria a possibilidade de deixar tal diálogo
registrado para outros leitores. É o caráter de efêmero que impede a semelhança total, mas o
diálogo e o seu registro físico são marcas importantes para se pensar a cibernarrativa. O tipo de
imersão característica de um diálogo é aquele em que a transparência do código aparece tanto no
envolvimento emocional quanto na percepção explícita dos mecanismos de criação do local de
interação. Ainda que não se possa falar em equilíbrio entre imersão emocional e imersão no e
com o uso do código, os dois tipos se alternam, considerando cada momento do diálogo.
O terceiro caso abarca os textos eletrônicos, não-interativos e não-ergódicos. No caso dos
textos em computador, pode-se falar de versões eletrônicas de textos impressos, sem links. A
experiência com as mimeses é a mesma daquela dos textos do primeiro caso, ainda que a interface
não favoreça uma leitura mais prazerosa do que no caso de textos literários em versão impressa.
Na comparação com o quarto caso descrito por Ryan, os textos ergódicos, não-eletrônicos e
não-interativos, a categoria de imersão e de trabalho com uma das mimeses não se apresenta de
maneira muito diversa daquela do primeiro caso. Entretanto, como a autora considera ergódicos
os textos, ou melhor, obras que podem produzir novas obras a partir de reações ao ambiente, ou a
mudanças ambientais, essa categoria tem se aproximado do que se poderia chamar uma
transparência dos mecanismos que criam uma narrativa configurada (mimese II) a partir de um
estado de pré-figuração (mimese I). Nesse sentido, os textos ergódicos explicitam o que pode
gerar um ambiente imersivo, mesmo que não necessariamente o leitor ou interagente possa criar
ou modificar os elementos presentes em mimese I, que podem ser gerados automaticamente.
Ainda assim, se são obras que reagem a mudanças ambientais, a aproximação com a
característica de uma obra em que o código será aberto para manipulação física por parte do leitor
é inevitável.
Em uma escala de intensidade crescente no que diz respeito à interpenetração das três
variáveis principais utilizadas pela autora (textos ergódicos, textos interativos e textos
eletrônicos), o quinto tipo de obras apresenta aquelas criadas para o meio eletrônico e dotadas de
interatividade, ainda que não-ergódicas. Elas são subdivididas pela autora em dois tipos, de
acordo com a possibilidade de interatividade: bases de dados textuais, ou sítios de busca,
baseados numa interatividade seletiva; conversas eletrônicas, como aquelas de salas de bate-papo,
baseadas em uma interatividade produtiva. No primeiro subtipo, o interagente não acessa
diretamente o estado de mimese I, mas também não está restrito ao estado de mimese III, de uma
168
interpretação que não resulta em ação física sobre a obra. Não um ambiente imersivo pronto,
mas comandos que podem criá-lo. Ou seja, o leitor pode configurar a narrativa, mas não pode
mudar o tipo de resultado que os comandos produzem sobre o estado de mimese I. Alterar as
palavras-chaves na busca não significa alterar o resultado quando se mantém as mesmas palavras-
chaves. Logo, é como ele se situar entre mimese I e mimese II, mas sem poder alterar a narrativa
que irá ser configurada. A reconfiguração em mimese III não se torna um acesso ou a produção
de uma nova mimese I. É como se os ambientes imersivos estivessem todos prontos e apenas não
disponibilizados. No segundo subtipo, o das conversas eletrônicas, o dinamismo da conversa
mostra bem uma proximidade entre uma possível mimese I e a ação característica de mimese III.
Apesar disso, não aqui uma obra que possa ser vista como mimese II e modificada em seu
estado de mimese I. É como se o estado de mimese II fosse constantemente recriado. A
configuração da narrativa se faz ininterruptamente, mas não é minimamente registrada como uma
obra em estado de mimese I.
O sexto tipo de obras são aquelas eletrônicas, ergódicas, porém não interativas. Nessa
categoria estariam as obras de poesia eletrônica puramente reativas, que reagiriam a algum tipo
de modificação não necessariamente originada do movimento do leitor. A obra Grammatron, de
Mark América, poderia ser incluída aqui. Em Grammatron a obra apresenta modificações de
acordo com o passar do tempo, independentemente dos movimentos do usuário. Os poemas
animados de Augusto de Campos
46
são também exemplos aproximados desse tipo de poesia
eletrônica. Aqui o receptor-participante não atua, apenas observa a obra em movimento, mas sem
poder interferir na construção da obra, sem ver o tipo de código que organiza as modificações. As
experiências do OULIPO poderiam também ser exemplos desse tipo de obras, como Cent Mille
milliards de poèmes, em meio impresso. Não como falar aqui de uma imersão em um tempo
pré-figurado. Antes, são as várias narrativas em mimese II que surgem incessantemente em
função das combinações possíveis engendradas pelo autor da obra.
As obras ergódicas, interativas e não-eletrônicas são o sétimo tipo construído por Marie-
Laure Ryan. Nesse caso encaixam-se as obras não-lineares ou multilineares em meio impresso
que oferecem ao leitor a possibilidade de escolher a seqüência de leitura. A obra “O dicionário
Kazar”, mencionada anteriormente, funciona dessa maneira. O leitor pode escolher uma
seqüência de leitura, em função da configuração da própria obra. Ora, em qualquer texto
46
Disponíveis em
http://www2.uol.com.br/augustodecampos/poemas.htm. Acessado em 02 de junho de 2007.
169
impresso é possível escolher uma seqüência de leitura. A diferença aqui é que as várias
linearidades possíveis parecem ser pensadas pelo autor como parte da experiência mesma da
obra. Ou seja, não são escolhas aleatórias disponíveis ao leitor, embora as recombinações possam
ser de ordem quantitativa tal que pareçam infinitas. As obras em questão aproximam-se de uma
imersão que não pode ser considerada mais emocional, segundo o conceito de Marie-Laure
Ryan, ainda que não se possa falar aqui de uma imersão física na obra. As regras que estruturam
a obra são disponibilizadas ao leitor, e a própria mimese I é acessível ao leitor, uma vez que ele
pode fazer combinações entre elementos que ainda não tiveram todas as suas relações narradas.
Entretanto, não é possível a esse leitor mudar as regras de combinação da obra, ou ao menos
colocá-las em discussão. Assim, um acesso à mimese I, e o leitor pode configurar novas
narrativas, mas essas novas configurações não podem ser registradas como obras no meio em que
é feita a leitura.
Finalmente, Marie-Laure Ryan enumera ainda as obras ergódicas, interativas e eletrônicas,
subdivididas de acordo com o tipo de interatividade que permitem: os hipertextos literários,
vários tipos de poesia eletrônica e as próprias páginas da Internet aparecem como obras de
interatividade seletiva; os dramas interativos (que se assemelham muito às performances teatrais),
projetos literários coletivos e os MUDs fariam parte das obras com interatividade produtiva. As
obras pertencentes a esse último tipo, e dentro da interatividade produtiva, são obras com várias
características cibernarrativas, ainda que a autora procure considerá-las como obras e não como
processos. Na discussão final sobre imersão e interatividade, Marie-Laure Ryan sugere uma
análise mais cuidadosa das instalações em realidade virtual como ambientes capazes de realizar
um tipo de imersão interativa.
“Ao defender que a chave para a interatividade imersiva reside na participação do
corpo num mundo-arte, não desejo sugerir que a interação deve ser reduzida aos gestos
físicos, mas antes que a linguagem em si deva tornar-se um gesto, um modo corporal de
ser-no-mundo. Como no caso das performances dramáticas, a contribuição verbal dos
participantes irá contar como ações e atos de fala de um membro incorporado ao
mundo ficcional.” (tradução nossa) (RYAN, 2001, p. 286)
47
.
47
“By arguing that the key to immersive interactiviy resides in the participation of the body in an art-world, I do not
wish to suggest that interaction should be reduced to physical gestures, but rather that language itself should become
a gesture, a corporeal mode of being-in-the world. As is the case in dramatic performance, the participant’s verbral
contribution will count as the actions and speech acts of an embodied member of the fictional world.
170
A perspectiva sugerida pela autora sugere a interatividade imersiva como um processo em
que a imersão constrói o próprio mundo ficcional e que aqueles que o constroem o fazem como
membros desse próprio mundo. Ao agrupar os conceitos de mimese, imersão interativa e
cibertexto, o que essa tese procura é também uma tipologia para as cibernarrativas, mas não como
obras e sim como processos colaborativos em rede.
A relação entre as mimeses e narrativa engendrada por Paul Ricoeur (1994) permite a
utilização do conceito de mimese I para definir um tipo de imersão relacionada à construção física
do próprio ambiente imersivo. Como a mimese I relaciona-se com um tempo ainda não narrado,
um tempo pré-figurado, a experiência de contato do leitor com essa mimese se caracterizaria pela
criação da configuração da narrativa, pelo arranjo primeiro dos elementos do que Ricoeur chama
de traços estruturais da ação prática. O arranjo desses elementos é feito através do domínio de
padrões discursivos capazes de configurar a ação prática como uma narrativa. Assim, utilizar a
mimese I para definir a imersão característica das cibernarrativas significa discutir essa imersão a
partir de uma ação física sobre a obra.
Nesse sentido, a experiência de contato com a mimese I apresenta uma outra perspectiva
para a percepção da temporalidade na experiência estética. Ao acessar a mimese I o receptor-
participante pode trabalhar mais próximo das camadas temporais que estruturam uma narrativa
antes que elas estejam entrelaçadas numa determinada configuração. Isso significa afirmar que
a imersão própria de uma cibernarrativa não é uma imersão espacial ou num tempo espacializado,
mas sim que essa imersão propicia o trabalho físico com traços temporais da narrativa,
estruturados numa obra processual em rede. Afinal, se as cibernarrativas podem ser modificadas
pelo leitor no estado de mimese I, a percepção temporal nelas e permitida por elas é a de um
tempo em estado de formação, mesmo que não seja um tempo puro, como poderá ser visto nas
obras analisadas. O tempo não aparece somente configurado, como em mimese II, ele pode ser
reconfigurado não apenas em termos de interpretação, mas em termos físicos.
Dessa maneira, o caráter de evento que Iser confere às obras, a partir da sua discussão sobre
o efeito estético, surge nas cibernarrativas como um processo de construção física da própria
narrativa, em conjunto com a possibilidade de mudanças de perspectiva dentro da obra, em
termos interpretativos. Se para experimentar o efeito estético o leitor deve se confrontar com o
pólo da obra, esse embate é intensificado em direção à materialidade dessa obra, quando se
171
trata de cibernarrativas. O que Aarseth denomina, então, de função “textônica” nada mais é do
que uma das características do tipo de imersão defendida nessa tese.
6.3 A imersão como condição para a produção de cibernarrativas
A conclusão fundamental dessa tese diz respeito à relação entre imersão e a perspectiva
fenomenológica. Ao longo do texto procurou-se enfatizar sempre o caráter relacional associado à
imersão, quando se diz que ela acontece sempre no visível e no invisível. Nesse sentido, a
imersão é a reversibilidade de que fala Merleau-Ponty, pois a imersão no espaço das
cibernarrativas é sempre uma imersão na sua forma de comportar, ou seja, é uma imersão
também temporal. Produzir uma cibernarrativa é, então, antes de mais nada, experimentar a
imersão que irá criar a própria estrutura narrativa, que ipermitir a experiência dessa narrativa.
E a narrativa criada através e com a imersão é a experiência da reversibilidade entre espaço e
tempo, uma vez que é ao contar a narrativa que se percebe o tempo. O espaço da narrativa é
sempre atravessado pelo tempo e a imersão é justamente o momento em que acontece esse
atravessamento, em que o espaço se torna tempo, mesmo que e sempre, momentaneamente. A
imersão é a condição para a produção de cibernarrativas porque ela permite a experiência da
cibernarrativa enquanto ato de programar essa própria narrativa, ação essa que pode ser exercida
também por aquele que a narrativa. Ao “entrar” na cibernarrativa o leitor se vê, ao mesmo
tempo, dentro e fora do espaço da narrativa, uma vez que o seu ato de construir fisicamente a
narrativa será o ato que irá permitir a leitura da mesma. Por essa razão, propõ-se aqui uma
tipologia que considera as variações entre as mimeses e o conceito de imersão como o modo de
pensar a construção de uma cibernarrativa.
Alguns padrões se distinguem de maneira suficientemente clara para serem enunciados
como características centrais das cibernarrativas, na relação com os conceitos de imersão,
cibertexto e mimese:
1. Nas cibernarrativas, a narrativa aparece sempre em estado de mimese I - mesmo que a
mimese II também esteja presente - no momento do tempo pré-figurado -, e sua
configuração física em mimese II é uma conseqüência do ato de imersão engendrado pelos
172
receptores-participantes. Para essa propriedade, deve-se considerar ainda a seguinte
subdivisão:
1.1. a cibernarrativa permite o acesso à mimese I e, além disso, é estruturada de tal
maneira que os receptores-participantes possam acrescentar dados à narrativa ainda
pré-figurada; ou
1.2. a cibernarrativa permite o acesso à mimese I, mas sem que os receptores-participantes
possam acrescentar outros dados ao estado de pré-figuração da narrativa; ou,
1.3. o estado de mimese I pode simplesmente não ser acessível ao receptor-participante.
2. Nas cibernarrativas, a imersão do receptor-participante não se em função da
transparência do meio, mas justamente da possibilidade de alteração física do código que
estrutura a obra, no momento da sua navegação, o que gera as seguintes subdivisões:
2.1. a imersão do receptor-participante permite visualizar as regras de funcionamento da
cibernarrativa e o código de programação do material, com alteração dessas regras e
alteração do código;
2.2. a imersão do receptor-participante permite visualizar o código de programação do
material, com alteração desse código. No entanto, as regras de funcionamento da
cibernarrativa podem ser vistas ou não, mas não podem ser alteradas;
2.3. a imersão do receptor-participante permite visualizar as regras de funcionamento da
cibernarrativas e elas podem ser alteradas. O código de programação que estrutura o
material, por sua vez, pode ser visualizado ou não, mas não pode ser alterado;
2.4. a imersão do receptor-participante permite visualizar as regras de funcionamento da
cibernarrativa ou o código de programação do material, mas nenhum dos dois pode
ser alterado pelo participante;
2.5. o receptor-participante não pode ver o código de programação ou as regras que
estruturam o funcionamento da obra, e não pode alterá-los.
3. Nas cibernarrativas, o receptor-participante acessa outras leituras realizadas, mas como
componentes da obra e também passíveis de alteração, o que comporta também as
subdivisões:
173
3.1. o receptor-participante pode ver outras leituras realizadas e pode criar uma
cibernarrativa a partir dessas leituras, alterando a ordem e acrescentando elementos à
cibernarrativa;
3.2. o receptor-participante pode ver outras leituras realizadas e pode criar uma
cibernarrativa a partir dessas leituras, alterando a ordem dos elementos, mas sem
poder acrescentar novos elementos à ela;
3.3. o receptor-participante pode ver, mas não pode acessar fisicamente outras leituras
realizadas em nenhum aspecto;
3.4. o receptor-participante não pode ver outras leituras já realizadas.
A categorização sugerida acima procura caracterizar as cibernarrativas a partir do ponto de
vista do seu processo de construção, conforme dito no início do capítulo. Um ponto parece
central: um ambiente imersivo a ser construído pelo leitor, onde a construção poética se
manifesta fisicamente, como fluxo incessante de modificações e recombinações.
Considerando as subdivisões definidas em cada uma das categorias, é possível também
pensar em gêneros diferentes, de acordo com as combinações entre essas subdivisões. No
entanto, como se considera a imersão, nessa tese, a partir do ponto de vista em que ela constrói e
é demandada pela própria estrutura da obra, priorizar-se-á uma abordagem voltada para
compreender os processos de escrita e leitura permitidos pelas cibernarrativas analisadas, em
função das características que cada uma delas apresenta. Uma provável tipologia voltada para
enquadrar obras de acordo com as combinações possíveis entre as características indicadas
apresenta o risco de retirar das cibernarrativas uma de suas características centrais, qual seja, a de
obras que se apresentam como possibilidades de produção de possibilidades, e não como
configurações nas quais o máximo que se pode fazer é trabalhar com uma interatividade seletiva.
Ao tomar as três macro-propriedades acima (acesso à mimese I; alteração física do código que
estrutura a obra; e acesso a outras leituras já realizadas), a combinação das primeiras subdivisões
de cada uma delas sugere um grau máximo de possibilidade de colaboração na cibernarrativa e
também um grau máximo de intensidade de imersão na materialidade da obra, por parte do
receptor-participante. Em contrapartida, a combinação das últimas subdivisões demonstraria a
inexistência de características de imersão em uma obra que se pretende cibernarrativa. Desde
se pretende trabalhar com as subdivisões de modo a pensar que, em obras disponíveis em rede e
174
cujo objetivo seja ensejar a colaboração do receptor-participante, tais obras podem ser
modificadas ao longo do seu tempo de existência de modo a ganharem características de imersão
ou colaboração que anteriormente não possuíam. A análise das obras e sítios a seguir procura
destacar essas possibilidades de mudanças, para enfatizar a cibernarrativa como um processo e
não como obra em si.
Para realizar a análise de obras com características cibernarrativas, o primeiro desafio foi
procurar critérios de seleção minimamente comuns entre a amostra selecionada, considerando a
discussão sobre imersão e narrativas. Nesse sentido, um problema constante, e que não é
resolvido completamente nessa tese, é descobrir quais são os critérios comuns quando se fala de
obras processuais em rede. várias compilações sobre poesia eletrônica, sobre literatura
eletrônica e sobre web arte, media art e tantos outros termos quantos se deseje encontrar,
disponíveis no universo da Internet.
Em diversos tios sobre literatura eletrônica na web é possível perceber que as tipologias
ou nomenclaturas utilizadas são muito vagas, como que a indicar a dificuldade de definir
processos a partir de análises, cujo objetivo é definir qual tipo de obra o leitor encontrará pela
frente. Assim, é comum encontrar, nas várias compilações, obras em mais de uma categoria, ou
categorias muito semelhantes entre si. Além disso, sempre muito cuidado em descrever as
categorias, o que também pode indicar o desafio de se criar tipologias num ambiente que prima
justamente pela mudança constante e, aparentemente, incessante.
Os sítios de coletâneas sobre media art, por sua vez, nem sempre apresentam termos para
categorizar as obras e quando apresentam verifica-se a mesma dificuldade de categorização. No
entanto, a análise de algumas dessas compilações revela caminhos importantes a serem trilhados
pela literatura em meio eletrônico, pois já indicam obras cujas características cibernarrativas
aparecem no seu grau máximo de imersão, ou muito próximas desse grau máximo.
Constatado esse primeiro problema, procurou-se então analisar sítios ou projetos que
conjugassem abordagens híbridas de media art e literatura eletrônica, de modo a preservar o
aspecto relacional utilizado para discutir o conceito de imersão. Ou seja, a análise deveria
também buscar obras que realizassem o mesmo cruzamento utilizado na discussão indicada. Um
outro parâmetro utilizado para buscar uma certa homogeneidade da amostra foi a possibilidade de
produção colaborativa, derivado do cruzamento das três propriedades indicadas anteriormente.
Ou seja, buscou-se priorizar coletâneas ou projetos voltados para a investigação de obras
175
colaborativas, cujo caráter processual fosse efetivamente o centro da obra, e não uma questão
periférica.
O conjunto analisado ainda parece desigual em vários aspectos, em função da própria
mobilidade da web. Assim, a explicação anterior não tem como objetivo provar a sua consistência
à toda prova, mas antes indicar o porquê das escolhas realizadas e a própria dificuldade de
analisar um ambiente de produção e não um ambiente de catalogação de obras. Entretanto, no que
concerne à idéia de imersão como conceito relacional, e à idéia de produção colaborativa, espera-
se que a amostra apresente um grau mínimo de coerência capaz de justificar sua escolha.
No Brasil diversos projetos de investigação sobre a arte em rede, sobre poesia eletrônica
e sobre literatura em meio eletrônico que merecem atenção e análise. Considerando a dificuldade
de se definir o próprio conceito do que seja uma arte em/da/na rede, essa tese apenas enumera
aqui alguns desses projetos, sem o desejo de indicar o grau de importância de cada um em relação
aos outros, ou o grau de importância de tais projetos no universo da pesquisa no país. Como o
objetivo principal é buscar compilações sobre media art e literatura eletrônica para realizar a
análise e partir da categorização sugerida, espera-se evitar, dessa maneira, uma provável tensão
em afirmar qual dos projetos enumerados é mais ou menos importante.
Dois projetos parecem aqui importantes na busca por compilações ou investigações sobre
media art e literatura em meio eletrônico, quais sejam, o NUPILL
48
e o wAwRwT
49
, em Santa
Catarina e em São Paulo, respectivamente. O NUPILL é mais que um projeto, constituindo-se em
um Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística, sob a coordenação do Prof. Dr.
Alckmar Luiz dos Santos, vinculado ao curso de Pós-Graduação em Literatura e ao
Departamento de Línguas e Literaturas Vernáculas, do Centro da Comunicação e Expressão da
Universidade Federal de Santa Catarina. A proposta principal do Núcleo é desenvolver pesquisas
sobre textos literários em meio digital. O sítio do Núcleo abriga vários projetos sobre literatura
eletrônica, produções sobre poesia eletrônica, publicações científicas e textos produzidos pelos
seus pesquisadores. Não cabe aqui descrever a complexidade dos projetos desenvolvidos pelo
NUPILL, mas indicar que tal sítio permite uma análise importante da discussão sobre literatura e
informática desenvolvida no país e também fora do Brasil. No entanto, optou-se por não buscar
dentro do Núcleo obras passíveis de análise nessa tese, em função de dois aspectos centrais. Não
48
Disponível em http://www.nupill.org. Acessado em 03 de junho de 2007.
49
Disponível em
http://www.cap.eca.usp.br/wawrwt/. Acessado em 03 de junho de 2007.
176
há, exatamente, dentro do sítio do NUPILL, uma tentativa de compilação ou categorização de
obras literárias em meio eletrônico. Há produções realizadas pelos participantes, sem dúvida, mas
o próprio sítio não se propõe a essa empreitada de forma explícita. Como a presente tese é
realizada dentro do próprio Núcleo, parece um procedimento cuidadoso, do ponto de vista
científico, buscar ampliar o tipo de informação que o sítio apresenta, através da análise de obras
que não foram produzidas dentro do Núcleo ou vinculadas a ele, bem como sugerir uma análise
que realiza justamente aquilo que parece ainda não se encontrar no Núcleo: a discussão sobre
categorias que possam caracterizar cibernarrativas.
O projeto wAwRwT é desenvolvido atualmente no Departamento de Artes Plásticas da
Escola de Comunicação e Artes da USP, sob a coordenação do prof. Dr. Gilbertto Prado. Entre os
objetivos do projeto encontram-se a realização de trabalhos artísticos voltados para a media art,
bem como a reflexão teórica sobre as poéticas tecnológicas, privilegiando a dimensão artístico-
telemática. O projeto apresenta, através do seu sítio, a produção do grupo de pesquisadores a ele
vinculado, que engloba ambientes virtuais multiusuário, poesia eletrônica, instalações de media
art entre outros. Além disso, também a disponibilização de textos sobre media art; uma lista
de sítios de arte na rede; textos sobre arte na rede; acesso à gina do grupo de pesquisa sobre
poéticas digitais. O projeto apresenta um espectro amplo de discussões sobre arte em rede, e
ainda que também indique referências fundamentais para a pesquisa sobre media art, no aspecto
de compilação de obras não especificamente um projeto que procure categorizar tais obras a
partir de conceitos específicos. Não se deseja apontar essa característica como um problema;
muito pelo contrário, o projeto wAwRwT é central para todos aqueles que se pretendem a realizar
uma investigação sobre media art. No entanto, como a presente tese sugere uma categorização
sobre cibernarrativas, com todos os riscos mencionados, e como não uma categorização
explícita para comparação no sítio wAwRwT, optou-se por não realizar a análise baseada nas
obras produzidas ou disponibilizadas através do sítio.
ainda outros projetos ou sítios merecedores de menção e análise, entre os diversos
projetos em andamento no país. Entretanto, não se deseja que a presente tese seja uma tese
descritiva de tais projetos, no intuito de esgotar o assunto a partir desse tipo de abordagem.
Assume-se, assim, o risco de não realizar tal compilação, uma vez que essas informações estão à
disposição facilmente através dos projetos mencionados e também disponíveis em larga
medida através da própria web.
177
Para a aplicação da categorização sugerida nessa tese, e para a análise de cibernarrativas,
optou-se, assim, por buscar sítios e obras que se propusessem a ser compilações baseadas em
algum tipo de categorização sobre textos em meio eletrônico e que realizassem o cruzamento
entre media art e literatura em meio eletrônico. Em relação às obras, buscou-se enfatizar obras
com caráter eminentemente colaborativo, cuja estrutura física apontasse justamente para o
processo de imersão nessa estrutura, de modo a permitir ao receptor-participante um constante
envolvimento com a obra ainda em estado de pré-configuração.
O primeiro conjunto de obras analisadas deriva de uma seleção realizada no sítio da
Electronic Literature Organization
50
(ELO). Essa organização existe desde 1999 e tem como
objetivos promover e facilitar a produção, publicação e leitura de literatura eletrônica, conforme o
próprio sítio da instituição informa. Formada por escritores, pesquisadores e artistas de várias
partes do mundo, com proeminência de norte-americanos, a ELO está formalmente situada na
Universidade de Maryland desde 2006 e é dirigida, atualmente, por Thom Swiss.
Em outubro de 2006, a Electronic Literature Organization publicou o primeiro volume da
sua coleção de literatura eletrônica
51
, em CD-ROM e na web, com o objetivo de disponibilizar,
para a maior audiência possível, trabalhos relacionados à literatura eletrônica, contendo
hipertextos em formato clássico, ficção interativa, poesia eletrônica, jogos, bases de dados, obras
combinatórias, entre outras. Destaca-se aqui o variado número de palavras-chaves utilizadas para
descrever o tipo de obras que podem ser encontradas na publicação. As palavras-chaves são um
indicador interessante para pensar sobre a miríade de conceitos que atravessam as experiências
em literatura eletrônica. Os conceitos podem abarcar desde trabalhos que funcionam sozinhos
(palavra-chave ambient), requerendo apenas atenção do leitor quanto às transformações que o
próprio trabalho sofre quando se carrega o tio da obra; até obras nas quais o usuário é
convidado a interagir com uma interface experimental (palavra-chave wordtoy), de modo que
novas criações textuais são produzidas durante a interação. Segundo o próprio sítio, a palavra-
chave pode se referir ainda a trabalhos que evocam mais a manipulação do que a leitura. A
publicação da Electronic Literature Organization foi escolhida por representar uma tentativa de
agrupar obras variadas segundo conceitos ainda bastante incipientes, mas que podem ser
incrementados ao longo do tempo. Assim, juntamente com as tipologias encontradas em Marie-
50
Disponível em http://eliterature.org/. Acessado em 03 de junho de 2007.
51
Disponível em
http://collection.eliterature.org/1/. Acessado em 03 de junho de 2007.
178
Laure Ryan e Espen Aarseth, a coleção da Electronic Literature Organization oferece outros
parâmetros de comparação para a discussão dessa tese.
Como o conjunto de obras apresenta 60 trabalhos distribuídos em várias categorias, elegeu-
se a palavra-chave “collaboration” como foco da análise, em função do que se considera uma
das características fundamentais das cibernarrativas: a possibilidade de colaboração dos
receptores-participantes na construção da narrativa. A categoria em questão apresenta como
definição das obras contidas um conceito demasiadamente simples: trabalhos produzidos por
mais de uma pessoa. Ao mesmo tempo em que essa delimitação evita conceitos muito fechados,
indica também uma vagueza extremamente perigosa e infrutífera quanto à aplicabilidade do
conceito. Considerando a reserva feita ao conceito, buscou-se analisar em mais detalhes obras
que apresentam possibilidades de alteração física em pelo menos duas categorias, das três criadas
nesse estudo e discutidas anteriormente. Entre os 60 trabalhos da coleção, 20 encontram-se
dentro da palavra-chave “collaboration”. Como tanto esse conceito quanto os outros são
definidos de maneira muito vaga, vários trabalhos aparecem em mais de uma categoria, o que
ajuda a explicar o elevado número de trabalhos denominados colaborativos.
Um traço comum à maioria das obras contidas nessa categoria é o fato do processo de
navegação provocar alguma modificação no tempo que o leitor possui para ler a narrativa
configurada. As obras com essas características geralmente são feitas em programas de animação
para permitir algum tipo de interação entre o leitor e a narrativa configurada. Em “Carving in
possibilities”
52
o receptor-participante pode esculpir a face de Davi, de Michelangelo, através de
movimentos de mouse. Enquanto movimenta o mouse, o receptor-participante ouve os sons
produzidos pelo martelo de escultor batendo contra o mármore de onde surgirá a face de Davi. A
cada movimento corresponde também um fragmento de texto relacionado aos diversos
significados que a obra pode sugerir para o leitor. Nessa obra, o receptor-participante pode ver a
narrativa em estado de mimese I se constituindo em estado de mimese II, à medida em que move
o mouse, mas isso não significa que ele possa realmente visualizar a narrativa em estado de
mimese I. É como se o usuário, ao mover o mouse, atravessasse as páginas de um livro. Ele não
pode vê-las antes de serem ordenadas, e sim enquanto estão sendo ordenadas. Assim, no que
52
Disponível em http://collection.eliterature.org/1/works/larsen__carving_in_possibilities/index.html. Acessado em
03 de junho de 2007.
179
tange ao primeiro aspecto das cibernarrativas, a obra estaria no nível 1.3, pois não permitiria a
visualização da mimese I.
Em relação à possibilidade de alteração do código de programação ou das regras de
construção da narrativa, a obra não permite ao leitor ver as regras antes de experimentá-las, mas
como o leitor pode esculpir quantas vezes quiser a face de mármore, a repetição das esculturas
apresenta variações entre si, no que diz respeito ao surgimento dos fragmentos de texto. A cada
nova escultura surgem fragmentos diferentes, mas não a possibilidade do leitor alterar essa
ordem aleatória. Assim, de certa forma, o receptor-participante modifica as regras da
cibernarrativa, mas não tem controle sobre o processo de alteração. Essa característica situa a
obra entre os níveis 2.3 e 2.4 da categoria 2 desse estudo. Considerando a proposta da obra, talvez
fosse interessante permitir ao leitor acrescentar novos fragmentos aos textos existentes, e não
simplesmente tornar transparentes todas as regras de combinação. Isso colocaria a obra num nível
mais bem definido dentro da categoria, relativo ao nível 2.2. E ainda, poderia ser interessante
também, para aumentar o grau de imersão relacionado à alteração física do código ou das regras
da narrativa, permitir que o leitor definisse de que maneira a escultura ganharia forma,
considerando os fragmentos que aparecessem na tela. Dessa maneira, a obra conjugaria
possibilidades de alteração tanto do código de programação, quanto das regras da narrativa,
posicionando-a no nível 2.1, em que tanto o código quanto as regras podem ser vistos e alterados
por um receptor-participante.
Outras obras nessa seleção apresentam características muito semelhantes a “Carving in
possibilities”. Esse é o caso de Chemical Landscapes Digital Tales”
53
, bem como o de
“Cruising”
54
, entre outras. Da seção analisada, a obra “Oulipoems”
55
apresenta características
variadas no que diz respeito à imersão no seu aspecto físico. De autoria de Millie Niss,
“Oulipoems” é uma obra composta de seis trabalhos de poesia interativa que combinam conceitos
da literatura combinatória, baseados nos conceitos do grupo OULIPO, acrescidos de comentários
políticos sobre os Estados Unidos.
53
Disponível em
http://collection.eliterature.org/1/works/falco__chemical_landscapes_digital_tales/chemicallandscapes.html.
Acessado em 3 de junho de 2007-06-03
54
Disponível em http://collection.eliterature.org/1/works/ankerson_sapnar__cruising/crusing-launch.htm. Acessado
em 3 de junho de 2007.
55
Disponível em http://collection.eliterature.org/1/works/niss__oulipoems/index.html. Acessado em 3 de junho de
2007.
180
Figura 2: snapshot da tela principal de Oulipoems
A obra apresenta um conjunto de máquinas textuais, todas podendo ser operadas pelos
usuários, abrangendo poemas eletrônicos, games, ferramentas para gerar e escrever poemas
baseados no vocabulário de vários poetas. O primeiro trabalho denomina-se “Sundays in the
park” e baseia-se na variação do texto criada a partir de movimentos do mouse sobre a tela.
181
Figura 3: snapshot da tela principal de Sundays in the park
A cada movimento sobre um conjunto de palavras elas podem se recombinar, surgindo
assim palavras novas no meio da narrativa, contribuindo para uma completa reconfiguração dessa
narrativa. O texto como um todo não possui um significado definido, mas os grupos de palavras
sugerem significados entre si, de acordo com a maneira como são agrupados. Além dos textos na
tela, também o áudio de duas vozes femininas fazendo a leitura de todo o texto. Essa leitura,
no entanto, não segue as possíveis reorganizações feitas pelo leitor; elas são já pré-programadas e
não se modificam de acordo com as novas organizações da obra.
A obra permite ao receptor-participante vê-la em estado de mimese I, uma vez que ela pode
ser recombinada de várias formas e a cada nova forma é um novo estado de mimese I que surge.
Isso colocaria a obra no nível 1.2 da categorização proposta aqui.
Em relação à categoria de número 2, a possibilidade de alteração sica do código ou das
regras que estruturam a cibernarrativa, é possível afirmar que os movimentos do receptor-
182
participante situam a obra entre os níveis 2.1 e 2.2, pois há uma certa modificação do código de
programação e também das regras da narrativa, quando o receptor muda as palavras criadas.
Como as possibilidades combinatórias são muito grandes em termos quantitativos, e como cada
movimento modifica a obra que se vê, é possível diferenciar os movimentos permitidos aqui
daqueles permitidos em Carving in possibilities. Para que a obra alcançasse um nível máximo de
possibilidade de alteração física do código ou das regras que estruturam sua narrativa, uma
alternativa seria permitir ao receptor-participante descolar conjuntos de palavras ou letras no
espaço da obra. Quanto às narrações em vozes femininas, parece não ser possível fazer com que
essas narrações acompanhem mudanças com tal grau de aleatoridade. Em relação ao acesso às
outras leituras, a obra Sundays in the park não permite que o receptor-participante veja outras
leituras realizadas como elementos físicos da própria obra. Caso os leitores pudessem gravar
suas modificações em uma nova seção da obra, para que tais leituras pudessem ser também
modificadas por outros leitores, a obra passaria do nível 3.4, que é o seu nível atual, para o nível
3.1. Essa modificação não envolve problemas técnicos e permitiria explorar de maneira mais
intensa a combinação entre os conceitos do OULIPO e as possibilidades de participação dos
leitores na construção de obras cibernarrativas na Internet.
Em Morningside Vector Space, uma segunda obra combinatória dentro dos Oulipoems, o
leitor encontra uma obra baseada nos Exercises de Style, de Raymond Queneau, cujo princípio é
apresentar uma anedota banal, recontada em estilos diferentes, segundo padrões distintos de
produção. Morningside Vector Space, por sua vez, apresenta uma história banal, baseada nas
experiências da autora, Millie Niss, que é também recontada segundo estilos diversos.
183
Figura 4: snapshot da tela principal de Morningside Vector Space
A obra é realizada com o uso de programas de animação, de modo a permitir que o
receptor-participante altere as histórias sutilmente, com movimentos suaves de mouse, ao longo
dos eixos vetoriais X e Y. Cada versão da obra possui, assim, uma coordenada vetorial distinta,
que corresponde à combinação de estilos diferentes de texto, combinados entre si ao longo das
coordenadas X e Y. As versões no eixo Y (vertical) variam de simplórias (simple-minded) a
pretensiosas (pretentious), enquanto no eixo X (horizontal) elas variam de sociológicas
(sociological) a melodramáticas (melodramatic). Ao posicionar o mouse em qualquer um dos
retângulos com as variáveis indicadas, o receptor-participante pode ver a obra criada a partir
desse valor absoluto. Por exemplo, ao posicionar o mouse no retângulo com a palavra
pretentious, a obra apresenta um arranjo pretensioso puro, sem nenhuma outra combinação. Ao
deslizar o mouse pelo quadrado colorido, a obra recebe as combinações dos outros estilos. O
movimento do mouse cria, assim, novas configurações narrativas, ainda que elas já estejam
184
programadas para acontecerem pela autora da obra. Em relação à possibilidade de visualizar a
obra em estado de mimese I, ainda que estejam visíveis algumas das regras que irão configurar a
narrativa, não é possível afirmar que o receptor-participante acessa a mimese I, o que posiciona a
obra, no que diz respeito à categoria de mero 1, no nível 1.3. Em relação à possibilidade de
alteração física do código de programação ou das regras que estruturam a narrativa, a obra
permite visualizar as regras, embora não se possa alterá-las. Entretanto, o movimento do mouse
sobre os arranjos combinatórios pode alterar a maneira como as narrativas configuradas surgem
na tela. Assim, essa obra apresenta-se mais próxima do nível 2.3 da categorização dessa tese,
embora não se possa dizer que as regras combinatórias sejam alteradas pelo receptor-participante.
Para que isso acontecesse realmente, a obra deveria permitir que os eixos fossem modificados
entre si, ou que novos eixos fossem colocados no lugar dos atuais, o que terminaria também por
permitir que o leitor visse e alterasse a obra em seu estado de mimese I. Ao permitir que o leitor
pudesse alterar ou acrescentar novos arranjos à obra, o que se veria aqui seria um aumento de
possibilidades combinatórias derivada da imersão do receptor-participante na estrutura da obra
enquanto ainda pré-configurada. Nesse caso, a imersão desse receptor-participante seria
responsável por criar recombinações na narrativa, o que permite dizer que a imersão criaria um
novo espaço de imersão, também temporário e inconstante.
Em relação ao acesso a outras leituras realizadas, a obra não permite visualizá-las, o que
a coloca no nível 3.4 dentro da categoria 3. Como as combinações se repetem independentemente
de qual usuário navega pela obra, não parece fazer sentido criar algum mecanismo de registro das
diversas leituras realizadas. Novamente, uma alteração qualquer em um dos parâmetros da
categoria 3 provocaria, inevitavelmente, alterações nas outras categorias.
Entre os seis poemas interativos apresentados em Oulipoems, a obra denominada The
Electronic Muse é aquela que parece apresentar a possibilidade mais clara de uma escrita
colaborativa. Como a própria autora afirma na descrição da obra, The Electronic Muse posiciona
o leitor no campo das possibilidades quase infinitas. “The Electronic Muse é uma ferramenta de
escrita e não somente um gerador de texto, porque permite ao usuário interagir com a obra ao
editar o texto que ela gera. O usuário também pode acrescentar palavras ao vocabulário do
programa.”
56
(tradução nossa)
56
“"The Electronic Muse" is a writing tool and not just a text generator, because the user can interact with it by
editing the texts it generates. The user can also add words to the program's vocabulary.” Texto disponível na página
185
Figura 5: snapshot da tela principal de The Electronic Muse
A obra permite ao usuário criar seus poemas através de frases que o próprio programa
oferece. Cada frase surge configurada a partir do estilo de um dos poetas oferecidos pelo sítio,
na caixa de texto Style. Para gerar uma frase nova, que surgirá na caixa em branco na parte
inferior da tela, basta que o usuário pressione o botão Generate a line. Não parece haver um
limite de frases para cada poema, ou ao menos esse limite é suficientemente amplo de modo a
sugerir que os poemas gerados possam ter infinitos versos. Em relação à ordem das frases dentro
do poema e mesmo à presença delas ou não, o receptor-participante pode alterar a ordem delas ou
apagar frases, com o uso dos demais botões da tela. Há, ainda, a possibilidade de acrescentar
novos termos ao vocabulário de cada estilo, digitando uma palavra na caixa de texto retangular
de introdução da obra, em http://collection.eliterature.org/1/works/niss__oulipoems/intro.html. Acessado em 4 de
junho de 2007.
186
em branco, que possui ao lado os botões sing noun, plural noun, adj e adv. O receptor-
participante digita uma palavra e associa essa palavra a uma categoria sintática específica; a nova
palavra é, então, acrescentada ao vocabulário do estilo escolhido pelo leitor e poderá vir a ser
utilizada na geração de uma próxima linha. Sobre essa ação, entretanto, o leitor não possui
nenhum controle, podendo apenas gerar ou não uma nova linha no poema.
Em relação ao acesso à mimese I, o receptor-participante pode visualizar a estrutura da obra
em estado ainda não configurado, mas pode acrescentar dados em uma parte dessa estrutura:
aquela relativa ao vocabulário utilizado pelo programa para realizar as combinações. Nesse
sentido, a obra estaria situada entre os níveis 1.1 e 1.2 da categoria 1. No entanto, como o
acréscimo de novas palavras ao vocabulário termina por significar um acréscimo indireto em toda
a estrutura, talvez se possa afirmar que essa ferramenta situa a obra no nível de mais
possibilidade de imersão possível no que diz respeito ao acesso à mimese I. Para que a obra
permitisse realmente o acesso à mimese I completo, seria interessante que o usuário pudesse
também acrescentar outros poetas à lista, o que demandaria, no entanto, mudanças de
programação a serem realizadas pela autora da obra, e não de maneira automática. Ainda assim, é
uma possibilidade a ser estudada.
No que tange às possibilidades de acessar o código de programação ou às regras que
estruturam a narrativa, a obra permite alterar as regras que estruturam a narrativa combinando a
possibilidade de acrescentar novas palavras ao vocabulário, trocar o estilo escolhido e alterar,
dentro do poema criado, a ordem das frases. As frases podem ser editadas dentro da obra como
um todo, e não em si mesmas, sob pena de uma alteração muito grande no estilo escolhido. Ou
seja, uma possibilidade de alterar as regras, mas ela não pode ser completamente aberta, até
mesmo em função da proposta da obra, cuja base são justamente as regras combinatórias
utilizadas pelo OULIPO. Nesse sentido, essa obra estaria situada muito próxima ao nível 2.3 da
categoria de número 2.
E, finalmente, em relação ao acesso às outras leituras, característica relacionada
intimamente ao grau máximo de colaboração que a imersão na parte física da obra permitiria, The
Electronic Muse não permite visualizar outras leituras realizadas em formato físico,
disponíveis no corpo da obra. Assim, a obra se situa, quanto a esse aspecto, no nível 3.4. Caso
fosse possível aos usuários gravar novos conjuntos de frases, bem como criar um vocabulário
inteiro em um novo estilo ou mesmo sugerir um estilo, a obra poderia ser considerada
187
colaborativa no seu grau máximo, chegando ao nível 3.1 da categoria 3. O que chama a atenção
sobre essa possível mudança é que, para que a obra seja completamente colaborativa, uma
modificação de nível em qualquer uma das categorias termina por provocar uma reação em
cadeia nas outras categorias, quando se trabalha no sentido de aumentar a intensidade da imersão
na obra, considerando as possibilidades de sua mudança física.
As demais obras da coleção organizada pela Electronic Literature Organization apresentam
variações semelhantes àquelas analisadas acima e, por essa razão, não parece ser necessário uma
análise mais exaustiva de cada uma delas, uma vez que o objetivo da análise é verificar a
aplicabilidade da categorização criada. Além disso, as obras analisadas permitem também
imaginar o que poderia acontecer quando se aumenta a intensidade da imersão na materialidade
de cada uma delas, que é também um dos objetivos na criação da categorização. Ou seja, as
variáveis de análise devem ser amplas o suficiente para que possam ser aplicadas aos processos
de construção de cibernarrativas, e não simplesmente para definir gêneros distintos de narrativas,
encerrados em categorias estanques.
As obras foram analisadas buscando sempre permitir, ao longo da leitura, a apresentação de
obras com graus de complexidade cada vez maiores, relativos ao fato dessas obras apresentarem
de forma mais intensa suas características processuais. Assim, espera-se mostrar alguns tipos de
mudanças ocorridas quando se vai de obras com menos características imersivas até obras com
todas as características imersivas. Embora não se deseje criar uma hierarquização valorativa com
esse artifício, reconhece-se aqui o perigo que tal abordagem pode conceber. Não obstante, a
análise foi construída dessa maneira e espera-se que o leitor perceba que a categorização criada
na tese não funciona para valorar todo e qualquer tipo de obra a partir de um único parâmetro,
qual seja, o da imersão na materialidade das obras.
O segundo conjunto de obras utilizado como amostra foi selecionado no sítio da Rhizome
57
,
a partir das obras que se encontram sob a categoria “collaborative”. A Rhizome se autodefine
como uma plataforma online para a comunidade global interessa em new media art. Surgida em
1996, a Rhizome hospeda um arquivo em rede de obras de media art composto por
aproximadamente 2.110 projetos. Esse arquivo é categorizado por palavras-chave, além de ter
também a busca por título dos trabalhos, nome do artista ou data de criação. O arquivo da
Rhizome, denominado ArtBase, foi criado em 1999, é organizado por um conselho curatorial e o
57
Disponível em
http://www.rhizome.org. Acessado em 3 de junho de 2007.
188
sistema de classificação é baseado nos termos escolhidos pelos próprios artistas, dentre um
conjunto de termos definidos pelo sítio. O vocabulário de termos pode ser acrescido ainda de
palavras criadas pelos próprios artistas. Ou seja, se não houver uma palavra que possa definir o
trabalho de um artista, esse próprio artista pode criar um novo termo. Quando esse novo termo
atinge um determinado nível de popularidade, ele passa a integrar o vocabulário disponível no
sítio. É interessante perceber que, face à variedade de termos para designar trabalhos de media
art, a Rhizome optou por mesclar um vocabulário controlado com um vocabulário criado pelos
próprios artistas. Quando se acessa a lista de termos, eles são disponibilizados em tamanhos de
fonte diferentes. As fontes maiores indicam o grau de popularidade dos termos no banco de
dados. Assim, o vocabulário da Rhizome apresenta uma extrema flexibilidade no que diz respeito
ao modo como organiza a informação, numa tentativa de refletir a própria mobilidade da media
art.
A seleção das obras a partir da palavra-chave “collaborative” reflete justamente o que se
considera um grau máximo de imersão na materialidade das cibernarrativas: a possibilidade do
receptor-participante alterar a obra ainda em estado de pré-figuração, de alterar as regras pelas
quais a obra se estrutura e de poder alterar leituras realizadas por outros receptores-participantes,
agora transformadas também em cibernarrativas. Ainda que seja bastante raro encontrar tais tipos
de cibernarrativas na amostra escolhida, a produção colaborativa parece ser a melhor maneira de
refletir, nas produções em rede, o caráter processual dessas produções. Em relação ao conjunto de
obras que será analisado aqui, cabe ressaltar duas questões: serão feitas análises mais detalhadas
das obras que cumprem ao menos dois critérios dentre aqueles que indicam a possibilidade de
acesso, para o receptor-participante, à estrutura física das obras; as obras enumeradas são aquelas
que constavam na base de dados entre os dias 1 de fevereiro de 2007 e 29 de março de 2007.
Como a base de dados recebe constantemente novas contribuições, obras que não são
enumeradas nessa análise, mas já constam no sítio.
A primeira obra a ser analisada em detalhes é Trace, de autoria de Guillaume Horen, e foi
criada em 15 de agosto de 2006, sendo publicada no tio da Rhizome em 29 de março de 2007.
Segundo o sítio da obra, Trace é uma obra digital interativa, composta de imagens medindo
15x15 pixels.
189
Figura 6: snapshot da tela principal de Trace
Qualquer usuário pode participar da obra, deixando o seu traço nela, ao escolher um entre
seis tipos de imagens à disposição no sítio. Além de escolher uma imagem, o receptor-
participante pode ainda deixar um comentário associado ao traço e também assinar sua
participação. Para cada participação, o usuário recebe um número de referência, como prova que
ali esteve e deixou o seu traço. A obra estará completa, segundo o sítio, quando o número de
10.000 participações for alcançado. Nesse momento, a obra será editada em formato impresso,
com tiragem de 100 exemplares. Entre os participantes, 10 serão sorteados para ganhar uma
edição numerada e assinada da obra, o que parece um contra-senso, considerando a sua
característica processual. Atualmente, a obra conta com 158 traços, dispostos na parte de cima da
tela, e que irão compor a imagem final, com 10.000 traços. A obra conta ainda com um blog
sobre arte digital e é possível ver uma representação isométrica das participações feitas no
sítio.
190
Trace apresenta, em relação à imersão no estado de mimese I da obra, a possibilidade de
visualizar a obra em estado de mimese I, bem como a possibilidade de alterar a narrativa no
estado de pré-configuração. Isso se deve à proposta da obra, de desnudar o seu processo de
construção, o que a coloca no nível 1.1 da primeira categoria de análise de cibernarrativas. A
interatividade proposta pela obra significa também que a imersão se faz na materialidade do que a
obra ainda virá a ser, e não simplesmente no espaço já existente dela.
Em relação à alteração física do código ou das regras que estruturam a narrativa, a obra
permite ao receptor-participante visualizar tanto o código quanto as regras, mas a alteração é feita
prioritariamente naquelas que estruturam a narrativa. Isso se deve ao fato de que o usuário não
pode modificar as imagens que deseja acrescentar; entretanto, ao ter a liberdade de escolher qual
imagem irá compor a nova parte da obra, esse receptor-participante está acessando e alterando as
regras que configuram a narrativa. Assim, a obra está no vel 2.3 em relação a essa categoria.
Caso fosse possível alterar também o tipo de imagem a ser utilizado, ou seja, se os usuários
pudessem criar novos quadrados de 15x15 pixels, a obra chegaria ao estado máximo de imersão
na sua materialidade física.
Em relação ao acesso às outras leituras, a obra permite ver outras leituras quando elas são
transformadas em traços na obra. Ou seja, quando há a participação de outros receptores-
participantes, essa leitura muda fisicamente a obra, embora ela não possa ser alterada pelos
demais usuários. Assim, a obra encontra-se aqui, no vel 3.3 da categoria 3. A colaboração dos
demais receptores-participantes depende, ainda que minimamente, dessa visualização, porque a
obra será composta pelo conjunto de imagens, organizadas uma após a outra. Assim, ao ver o que
já foi acrescentando, o usuário pode decidir se deseja manter a unidade visual da obra, ou se quer
apenas acrescentar uma imagem, sem pensar na conexão entre todas elas. No estado atual, não
parece haver ainda um padrão a ser seguido, embora na primeira linha traçada exista uma
predominância de imagens de tonalidade mais escura na parte direita da linha. No que diz
respeito aos comentários, eles existem de maneira independente uns dos outros, e não parece que
os participantes tenham conseguido ainda criar estruturas sintáticas ou semânticas conjuntamente,
relacionadas, por exemplo, à estrutura de um poema, ou mesmo a algum conteúdo específico.
A obra kollabor8
58
, segundo o banco de dados da Rhizome, é uma rede que funciona como
uma peça de arte colaborativa. A obra foi criada em 3 de maio de 2005 e disponibilizada na base
58
Disponível em
http://kollabor8.org/index.php. Acessado em 03 de junho de 2007.
191
de dados da Rhizome em 08 de março de 2007. Ainda segundo o próprio sítio, a obra explora a
natureza transitória que caracteriza o conteúdo presente na web, convidando artistas a criarem
obras a partir da modificação sobre imagens criadas por outros artistas. Note-se que aqui a
denominação de artistas mascara um pouco as possibilidades colaborativas da obra, já que ela é
aberta à participação de qualquer usuário que deseje realizar tais modificações.
Figura 7: um snapshot de uma das páginas de kollabor8
kollabor8 apresenta-se em várias cadeias de imagens criadas por receptores-participantes
do sítio e que podem ser alteradas por qualquer outro receptor-participante. Cada imagem dentro
da cadeia é considerada como uma imagem digital aberta passível de sofrer colaborações, pois
fica disponível em uma cadeia de imagens conectadas entre si como em um fórum de discussão.
Cada nova imagem criada deve, de alguma maneira, ser derivada da última imagem postada na
cadeia. Novas cadeias de imagens podem ser abertas após um registro no tio, respeitando as
192
regras de colaboração para a inserção de imagens. Os membros podem participar de duas
maneiras: adicionar uma imagem a uma cadeia de imagens existente, realizando as seguintes
ações: o receptor-participante baixa a imagem no seu computador, trabalha sobre essa imagem
num software à sua escolha, e posta novamente essa imagem na mesma cadeia; ou criar uma nova
cadeia de imagens, postando obras de arte, fotos digitais, imagens de natureza variada, lembrando
sempre que essas imagens estarão sendo disponibilizadas para qualquer outro membro poder
fazer modificações sobre ela. Todas as imagens postadas precisam ter 640x480 pixels e serem
postadas no formato JPEG. Ainda sobre o conjunto de regras, não é permitido àquele usuário que
iniciou uma cadeia fazer uma modificação sobre sua própria imagem, com o intuito de incentivar
a colaboração. A obra possui ainda um sistema de créditos para incentivar a postagem de imagens
ou a criação de novas cadeias. O receptor-participante recebe, ao se registrar, dois créditos, e a
cada cinco novas imagens postadas em outras cadeias, ele recebe um crédito. Para criar uma nova
cadeia, o receptor-participante deverá gastar uma parte dos seus créditos, embora o sítio não
informe quantos créditos são necessários para se criar uma cadeia e quantos créditos se gasta na
criação dessa nova cadeia.
É possível ainda, para cada receptor-participante, adicionar comentários em formato de
texto, em cada cadeia. Os comentários são adicionados ao se selecionar uma das imagens que
compõem a cadeia. Quando uma imagem é selecionada, o sítio traz a imagem em formato
ampliado e informa quem produziu aquela imagem dentro da cadeia e quando a modificação foi
realizada. Isso torna possível acompanhar o histórico de evolução da obra. O receptor-
participante pode, ainda, animar as imagens que compõem a cadeia, como uma maneira de criar
um vídeo que mostra as mutações sofridas desde a imagem original até a imagem final. A obra
informa ainda quando a cadeia foi iniciada, quem a iniciou e quando ela foi modificada pela
última vez, bem como quem realizou essa modificação. Por fim, a ainda a informação de
quantas imagens compõem uma determinada cadeia e quantos artistas fizeram modificações
naquela cadeia específica.
Em relação à categorização proposta como instrumento analítico, kollabor8 permite uma
experiência imersiva que chega muito próximo ao grau máximo de colaboração que poderia ser
encontrado numa cibernarrativa. O receptor-participante pode acessar a cibernarrativa em estado
de mimese I e pode acrescentar dados à narrativa ainda no estado de pré-figuração desta (nível 1.1
da categorização). Ainda que a cadeia de imagens apresenta-se como mimese II, porque é uma
193
narrativa configurada que o receptor-participante vê quando acessa uma cadeia específica, cada
imagem da cadeia é uma parte da narrativa e, como o receptor-participante, pode acrescentar
novas imagens à cadeia, pode alterar a narrativa ainda no seu estado de pré-figuração. Segundo as
regras do projeto, cada nova imagem deve ser feita a partir da alteração da última imagem
postada na cadeia; entretanto, o sítio não restringe a possibilidade de se utilizar qualquer imagem
da cadeia como a fonte para uma nova modificação. Ou seja, o receptor-participante poderia até
mesmo reiniciar a cadeia se utilizar a primeira imagem postada como uma nova imagem da
cadeia. Como as regras que estruturam a possibilidade de participação na narrativa não são
restritivas em termos de manipulação da estrutura, qualquer reconfiguração do receptor-
participante pode ser feita como se esse receptor estivesse vendo a narrativa antes que ela
acontecesse.
Em relação à possibilidade de alteração física do código da obra ou das regras que
estruturam a narrativa, a segunda categoria do instrumento analítico, o receptor-participante pode
alterar fisicamente a materialidade da obra através do acesso aos códigos de programação de cada
imagem. Ao poder baixar uma imagem em seu computador e alterá-la em qualquer software de
programação, de acordo com as possibilidades desse software, o receptor-participante não se
constrangido a modificar a obra somente segundo parâmetros que poderiam ser estabelecidos por
algum tipo de regra do projeto kollabor8. Entretanto, uma limitação que não pode ser
transgredida pelo receptor-participante da obra: as imagens podem ser postadas apenas em
formato JPEG. Assim, a liberdade de alteração da materialidade da obra não é total, pois não é
possível adicionar outros formatos às cadeias de imagens. Em relação às regras que configuram a
narrativa, o projeto solicita ao participante que não altere a forma de construção de cada cadeia de
imagens, embora essa limitação apareça como um pedido e não como constrangimento técnico.
Assim, kollabor8 pode ser considerada uma obra que permite a alteração do código, mas não
permite a alteração das regras que configuram a narrativa, o que a situaria como pertencente ao
nível 2.2 da categorização apresentada anteriormente.
Na maior parte dos casos analisados, as limitações quanto ao formato dos arquivos e
tamanho deles parecem ser apenas de ordem técnica, mas terminam também por garantir algum
grau de unicidade às obras, o que demonstra a dificuldade em se criar processos colaborativos
completamente abertos, em que as regras são totalmente maleáveis. Não obstante, uma
cibernarrativa em seu estado de intensidade máxima deveria permitir a esse participante
194
transformar, no que diz respeito à materialidade da obra, por exemplo, uma imagem em um
objeto animado, o que mudaria o tipo de elemento, fisicamente falando.
E em relação à última categoria, o acesso do receptor-participante a outras leituras
realizadas como elementos físicos da obra, kollabor8 apresenta a possibilidade de ver todas as
outras leituras realizadas, uma vez que cada nova imagem é essa leitura como elemento físico
novo da obra. Além disso, o receptor-participante pode alterar fisicamente essa leitura, ao baixar
a imagem em seu computador, alterá-la e postá-la de volta na obra. Não há como, entretanto,
alterar a ordem em que a nova imagem iaparecer, embora qualquer participante possa fazer
uma nova imagem que não é derivada da última imagem da cadeia. Isso significaria, na prática,
alterar a ordem da narrativa, o que indicaria que a obra possui um grau máximo de imersão.
Assim, a obra encontra-se no item 3.2 dessa propriedade, se forem respeitadas as regras indicadas
na própria obra. Não obstante, a obra não constrange tecnicamente o participante a utilizar
imagens variadas em uma mesma cadeia, embora isso pareça não acontecer.
Pode-se alegar aqui que o projeto permite leituras que não serão concretizadas como
elementos físicos. Entretanto, essa é uma possibilidade óbvia e presente em qualquer tipo de
narrativa. A diferença é que kollabor8 baseia o seu desenvolvimento e sua existência justamente
no processo de colaboração a partir de leituras e modificações realizadas pelos usuários nas
imagens postadas por outros usuários.
Kollabor8 pode ser definida, então, como uma obra em que a imersão constrói o próprio
ambiente imersivo em que o receptor-participante experimenta a cibernarrativa. Nesse sentido, e
considerando o tipo de configuração temporal relativo a cada mimese, o receptor-participante
dessa obra pode acessar as três mimeses e modificar a obra continuamente em estado de mimese I.
Dessa maneira, é a própria configuração do tempo que o receptor-participante pode alterar, uma
vez que a mimese I indica um tempo ainda não configurado em forma de narrativa, mesmo que a
obra mostre ao leitor as cadeias de imagens, o que se pode identificar como mimese II. Ao poder
realizar uma reconfiguração da narrativa (mimese III) de modo físico na estrutura da própria obra,
o receptor-participante cria um novo estado de mimese I e faz com que a obra, a partir da sua
leitura, apresente uma nova mimese II, disponível para quaisquer outros leitores. A temporalidade
que se experimenta surge, dessa maneira, constantemente em estado de vibração, pois as camadas
temporais da obra não se estabilizam fisicamente. Cada nova leitura, conforme Iser, permite
195
visualizar novas perspectivas em uma determinada obra. Em kollabor8, essas perspectivas agora
são transformadas em elementos físicos da própria narrativa.
O terceiro conjunto de obras analisadas são obras criadas por Giselle Beiguelman e
disponibilizadas no sítio http: www.desvirtual.com. Optou-se por analisar tais obras em função da
sua estrutura eminentemente colaborativa, e dentre elas, duas foram escolhidas para serem objeto
de análise mais detalhada. O que se pode ver aqui é um aumento da complexidade no que diz
respeito à participação dos usuários, e isso indica também a dificuldade em aplicar as categorias
de análise às obras, em função do seu caráter processual.
Em Code_UP
59
, a primeria obra de Giselle Beiguelman a ser analisada, diversas
escrileituras com os arranjos de pixels, com os padrões de tela e com os parâmetros RGB que
podem compor uma imagem digitalizada.
Figura 8: snapshot da tela principal de Code_UP
196
Uma das questões que a obra permite pensar é a criação de uma retórica do pixel, como a
própria artista sugere numa breve apresentação da obra. Esse é o tipo de imersão característica
das cibernarrativas: não se trata de um ciberespaço, mas de um cruzamento de várias
materialidades em fluxos temporais específicos, que combinam o tempo da leitura, o tempo da
obra e a própria temporalidade de um pixel para aparecer. Essa experiência representa a
hibridação tão característica das poéticas digitais. Em uma das partes da “obra” (Blow Code-UP)
o receptor-participante é instado a “ler” imagens extraídas do filme Blow-upa partir dos pixels
que compõem aquela imagem (essa parte é denominada Pixel Array_UP). A leitura é proposta da
seguinte maneira: um fotograma é exibido em um menu, no lado esquerdo da tela. Ocupando o
restante do monitor está a mesma imagem ampliada. Entretanto, ao se deslocar o mouse por cima
da imagem ampliada, o que se são os pixels de cada um dos pontos da imagem original
escolhida no menu. Não há, num primeiro momento, a imagem ampliada, mas a cor de um pixel
específico por onde o mouse está passando naquele momento. Para saber onde o mouse está, em
relação à imagem original, é possível pressionar uma tecla qualquer e esta imagem aparece
ampliada. Assim, um trânsito constante entre a imagem do filme (o fotograma) e o código que
origem a uma determinada cor da imagem (a imagem “decomposta” em pixels). O receptor-
participante é convidado a penetrar num outro espaço poético, em que a representação presente
nesse “local” é dissolvida materialmente, ao mesmo tempo em que se mostra o âmago da
estrutura que aparece visível (um determinado fotograma do filme Blow-up). Ou seja, uma
imersão no código e com ele, ainda que não se vejam ali os zeros e uns do digital. A questão que
permanece aqui é justamente o embate com um outro tipo de “obra”: a programação que origina
um determinado espaço visível. Essa parte da obra poderia ser caracterizada como pertencente ao
seguinte subconjunto de variáveis, considerando a categorização proposta nessa tese: o
cruzamento de características entre as variáveis 1.2, 2.4 e 3.4. Nessa parte da obra não há como o
usuário acessar a narrativa em estado de mimese I para modificá-la, ainda que ele possa visualizar
as regras de funcionamento no processo de navegação, que a obra se estrutura dessa maneira.
Em relação à possibilidade de colaboração com outros usuários, essa parte de Code_UP não
prevê esse tipo de colaboração.
59
Disponível em
http://container.zkm.de/code_up. Acessado em 3 de junho de 2007.
197
O movimento do mouse, ao decodificar o arranjo de pixels, sugere ao receptor-participante
a leitura de uma outra visibilidade, relacionada ao cruzamento de temporalidades distintas em um
determinado ponto da tela. A imagem composta na tela dissolve-se e transita entre o tempo da
leitura, que é o tempo de composição do ambiente imersivo pelo e para o próprio receptor-
participante, e o tempo que o programa necessita para compor os códigos de programação que
formam um pixel e, posteriormente, exibir o pixel na tela. O fotograma revela-se, dessa maneira,
como um composto de temporalidades que permite apenas um acesso indireto a cada uma delas.
Ao reverter a imagem em direção aos seus componentes temporais, tanto o meta-autor quanto o
receptor-participante aproximam-se dessas temporalidades puras que compõem um determinado
espaço de visibilidade.
Em outra parte de Blow Code_UP, denominada Zomm_RGB_UP, é possível realizar uma
leitura diferente das imagens apresentadas. O programa utilizado apresenta uma imagem
composta por séries de linhas verticais cuja altura corresponde ao valor de uma cor dentro da
imagem. Esses valores correspondem aos parâmetros RGB utilizados para compor uma imagem
eletrônica. O programa focaliza tais parâmetros nas imagens e os transforma em linhas de
tamanhos diversos. A leitura da imagem, dessa forma, é a leitura do resultado da aplicação dos
códigos de programação às imagens capturadas e exibidas na tela. Quando se fala de imagens
capturadas, isso se deve ao fato do programa permitir que qualquer usuário com um telefone
celular com tecnologia Bluetooth e câmera instale o programa em um PC e transforme suas
imagens com o uso desse programa. Ao ler a imagem, o receptor-participante pode ainda mover o
cursor sobre ela para fazer um zoom ou para mudar a posição da imagem na tela. Pode, ainda, ver
a densidade da matriz formada pelas linhas, utilizando as teclas de número 1 a 5 no teclado. Cada
tecla ativa um novo conjunto de linhas, com o número 1 correspondendo a uma imagem menos
granulada e o número 5 apresentando todas as linhas já mais separadas.
198
Figura 9: snapshot de uma das telas em movimento em Zoom_RGB_UP
Aqui a imersão permitida ao leitor se resume em ver a narrativa em estado de mimese II,
porque ele pode ver como as imagens ficam após o tratamento pelos programas, mas não quando
estão sendo tratadas, o que corresponde à variável 1.2. Há uma sugestão forte de acesso à mimese
I, porque a narrativa configurada é apresentada a partir dos elementos que a constituem. No
entanto, essa ilusão relaciona-se mais à característica 2.4, que indica a possibilidade dada ao
leitor de ver as regras de funcionamento ou o código de programação da obra sem, no entanto,
poder alterá-los. Em relação às leituras realizadas por outros usuários, a obra não apresenta a
possibilidade de visualização dessas leituras em rede. No entanto, como é possível gravar o
programa em um computador e transformar as imagens em arranjos de linhas, a partir dos
parâmetros RGB, pode-se dizer que, nesse computador especificamente, o usuário poderia ver
várias imagens realizadas por outras pessoas. Ainda assim, não há como relacionar essa ação com
nenhuma das variáveis do item 3, uma vez que as leituras produzidas pelo programa não são
199
realizadas diretamente em função do acesso do participante às regras de funcionamento da
cibernarrativa. Assim, no que concerne ao item 3, a obra não permite o acesso a outras leituras
realizadas, tendo nesse caso o menor coeficiente de imersão possível, correspondente ao item 3.4
A segunda obra, circ_lular
60
, projeto criado pelo grupo de artistas “Preguiça Febril”,
composto por Giselle Beiguelman, Marcus Bastos e Rafael Marchetti, “é um sistema de
webdjaying baseado em banco de dados aberto e plataforma multiusuários para sampleagem on
line. Todo o conteúdo imagens, sons, textos, filmes e vídeos espelha situações de trânsito e
fluxo e agencia um processo de remixagem coletiva que acontece, em tempo real, na web e em
espaços expositivos.”
61
A obra data de setembro de 2004 e foi lançada no sonarsound em São
Paulo.
Figura 10: tela principal de Circ_lular, captada em um snapshot
60
Disponível em http://www.pfebril.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.
61
Texto disponível no site
http://www.pfebril.net/.Acessado em 03 de junho de 2007.
200
Circ_lular configura-se como estação de mixagem, muito semelhante a uma ilha de edição
não-linear. O participante pode escolher entre cinco menus diferentes, que funcionam como
categorias (80ções, vitamina mixta (mista), sobre trânsitos, circ_lulando, promocenter). várias
mídias à escolha (sounds, stills, motions, sound_bits), para que as recombinações possam ser
realizadas em cada um dos menus. Pode-se pesquisar qualquer mixagem realizada, realizar
modificações nessa mixagem e postar uma nova mixagem daí derivada, criando recombinações
infinitas. Além disso, é possível fazer uploads (colocar arquivos no sítio) de qualquer material
para que ele possa ser utilizado nas mixagens que qualquer outro usuário fará.
Considerando a proposta de análise dessa tese, circ_lular é uma obra em que o estado de
mimese I é a própria obra, de forma muito mais explícita que em kollabor8, por exemplo. O que
o receptor-participante visualiza inicialmente já é a estação de mixagem, correspondente ao que
se poderia chamar de um tempo pré-configurado. Não uma linha discursiva que ligue,
necessariamente, os diversos elementos que poderão compor a narrativa. Assim, aqui se
disponibilizam para o receptor tanto o acesso à mimese I quanto a possibilidade de modificar a
narrativa antes que ela venha a ser contada, porque o receptor-participante pode acrescentar
novas informações à base de dados. Essa característica é definida como pertencente ao item 1.1
da categorização proposta aqui.
Em relação à possibilidade de modificação física do código ou da regras da obra, circ_lular
pode ser situada como pertencente ao item 2.1. O receptor-participante pode postar dados em
formato de texto, sons, imagens em movimento, imagens em bits, embora para cada uma dessas
mídias existam também limites técnicos, relativos aos formatos permitidos e ao tamanho, em
termos de bytes, de cada arquivo. Dentro de tais limites, a possibilidade de modificação do
código que estrutura cada mídia é livre. Em relação às regras que estruturam as narrativas a serem
configuradas, como a obra é uma estação de mixagem, o receptor-participante é que define qual
será a configuração dos elementos em cada narrativa que irá criar. Assim, circ_lular é uma obra
com grau máximo de imersão tanto na materialidade quanto nas regras que a fazem funcionar. É
importante notar que a obra baseia-se notadamente em performances realizadas por aqueles que
se propõem a lê-la, o que indica a característica eminentemente processual e temporal das
cibernarrativas plenas.
Em relação à última categoria, que diz respeito ao acesso do participante a outras leituras
como partes estruturais da própria obra, circ_lular permite o acesso a essas leituras e também a
201
sua remixagem. Os diversos receptores-participantes podem acessar outras mixagem feitas, abrir
estruturalmente essas narrativas, vê-las em seu estado de mimese I e reconfigurá-las. uma
ressalva a ser feita sobre esse aspecto: a obra não permite que um participante acrescente outros
elementos a uma mixagem realizada. Ele pode apenas retirar elementos da mixagem ou alterar
a ordem deles, o que configura a obra no nível 3.2 da categorização proposta. Ou seja, ainda
possibilidades de modificar o processo colaborativo de circ_lular, fazendo com que a
performance do receptor-participante possa alterar efetivamente qualquer aspecto da obra.
Para o propósito deste estudo, que tipo de experiência circ_lular pode ensejar naquele que
a experimenta? Sem estabelecer qualquer hierarquia, a lista a seguir procura indicar as
possibilidades de produção de experiências sugeridas pela obra. É possível percebê-la como um
grande “banco de dados cultural e que propõe ao seu participante investigar as próprias
memórias e compreendê-las como instantes fugazes de percepção do real. O participante é levado
a uma experiência em que as intersubjetividades que formam também as suas memórias são
colocadas em jogo e devem ser novamente avaliadas, em função do “banco de dados” proposto.
Entretanto, essa percepção acontece de maneira mais intensa e clara no momento em que
qualquer um se propõe a realizar uma mixagem. É o ato de relacionar os fragmentos do sítio que
provoca uma experiência de deslocamento naquele que a realiza. Assim, a obra não é a
contemplação do produzido, mas a produção incessante, asfixiante, infinita, que incomoda o seu
participante. A experiência estética, nessa obra, está intensamente relacionada à própria
comunicação do efeito experimentado pelo participante, uma vez que se trata de experimentar a
construção de como comunicar o efeito experienciado.
Ao observar as obras mixadas, a experiência não parece ser muito diferente de assistir
um vídeo, pois todos os fragmentos de mídias são relativamente curtos, em função do espaço
disponível para colocar imagens. Mas algo aqui que escapa de uma gica do vídeo que se
assiste em um aparelho transmissor de imagens: o aparelho de circ_lular permite a interferência
numa obra derivada de uma das inúmeras intepretações realizadas, de modo a reconfigurá-la por
completo. Entretanto, tal tipo de deslocamento pode acontecer na contemplação, independente do
tipo de mídia ou transmissão que se utilize. A questão é que, em circ_lular, a experiência de
deslocamento pode ser compartilhada materialmente, no momento em que o participante realiza o
seu ato interpretativo ao remixar uma obra acabada. Não se trata de discutir qual é a qualidade
do resultado simplesmente, mas de procurar investigar porque a mixagem provocou um
202
descentramento a ponto de sugerir uma nova combinação. E isso tudo pode ser feito, também
como num mix, ao mesmo tempo, pelo participante que é simultaneamente leitor, autor, editor e
que, após realizar a sua mixagem, pode se sentir incomodado ao ver aquilo que acabou de mixar.
O que parece mais claro nessa experiência é que as diversas camadas temporais que compõem
uma obra (o momento do autor, o momento do leitor, o próprio momento do texto etc) podem
aparecer e acontecer todas ao mesmo tempo, mas sem estarem exatamente sobrepostas.
Maria Antonieta Borba (2003) afirma que a estrutura ficcional é caracterizada pela seleção
de um repertório em que os elementos familiares encontram-se despragmatizados. No caso de
obras como circ_lular, a questão parece ser um pouco diferente. Aqui ainda não há uma estrutura
despragmatizada para o leitor enfrentar a surpresa de encontrá-la, ou ela se apresenta de uma
maneira um tanto quando incipiente. O desafio, em termos de experiência estética, passa a ser
sugerir elementos que podem ser reconhecidos como familiares, mas não poder dispor deles de
forma despragmatizada. A experiência fica centrada na criação de possibilidades de produção e
não somente na disponibilização dessas mesmas possibilidades. Após ter participado da
colocação de mais uma peça em uma das categorias propostas, talvez se possa pensar também
que o retorno do olhar para a peça ali colocada pelo leitor é capaz de causar a não-familiaridade.
E esta, por sua vez, será o primeiro passo para uma experiência estética com a obra: a não-
familiaridade das próprias escolhas das peças. Ou seja, não se trata de uma decodificação, mas de
olhar para o que se sugere como possibilidades de produção de possibilidades.
Numa obra de remixagem ao infinito, como é o caso de circ_lular, como distinguir as
estratégias textuais, os padrões, para então poder recorrer a um possível desvio? Não se trata
tanto de encontrar o desvio, mas de perceber, ao mesmo tempo, sua imanência e sua extrema
fugacidade. Ele está inserido na relação proposta por uma obra, internamente, mas ao poder ser
reconfigurado fisicamente, potencializa a percepção da fragilidade do encontro da experiência
estética, do deslocamento que ela provoca. Mais importante do que encontrar e fixar o desvio é
investigar o ato de recombinar incessantemente como o momento efetivo em que a experiência
estética acontece.
Em relação ao papel que o leitor pode desempenhar no que tange ao processo comunicativo
da obra, parece que o primeiro desafio enfrentado numa obra como circ_lular, por exemplo, é
aquele de criar as perspectivas do texto ao mesmo tempo em que é preciso também perceber
quais são as projeções possíveis a partir destas mesmas perspectivas. E o arranjo resultante dessa
203
projeção não é mais imaginativo somente, mas pode e deve ser materializado pelo leitor. O limite
a ser rompido, nas construções de leitura em cibernarrativas, parece ser aquele relativo à
concepção do significado imagético, conforme discutido na teoria do efeito estético. Como o
significado é polimorfo, ele não encontra seu lugar garantido no texto. Entretanto, nas obras
analisadas, o significado pode ser produzido materialmente em todas as suas formas. Mas não
haverá aqui uma ilusão? O objetivo das obras em questão é simplesmente tornar todas as formas
possíveis? E uma outra questão surge então: essa é a pergunta pertinente para um tipo de
fenômeno como o de tais obras?
Por fim, para terminar a análise, foi escolhida uma obra desenvolvida dentro do projeto
Paris Connection
62
, um grupo de seis artistas franceses cujas criações vão de arte programada em
computadores a obras colaborativas, passando por poesias interativas, obras em áudio etc. A obra
Pianographique
63
apresenta ao receptor-participante diversos tipos de pianos que originam sons e
imagens na tela, de acordo com os toques no teclado (sons) e os movimentos do mouse pela tela
(imagens). A obra data de 1993, quando foi criada para CD-ROM. Posteriormente, a obra foi
disponibilizada na web e, desde então, tem recebido vários acréscimos e se modificado
constantemente, indicando aquilo que é a principal característica de uma cibernarrativa em seu
estado pleno: a permanência em processo. Há novos acréscimos que datam de 2002, ou quase dez
anos após a criação da primeira versão da obra.
62
Disponível em http://turbulence.org/curators/Paris/. Acessado em 04 de junho de 2007.
63
Disponível em
http://www.pianographique.net/. Acessado em 03 de junho de 2007.
204
Figura 11: snapshot de uma das telas principais de Pianographique
A obra é composta de diversas bases de dados sonoras e visuais, e é do cruzamento das
bases de dados que surge um fluxo de imagens e sons momentâneo, elaborado pelo próprio
receptor-participante. A experiência marcante, nesse caso, é menos a combinação que pode ser
feita e mais o confronto com um código ainda não-configurado, uma obra ainda não-estruturada.
A divisão do teclado é correspondente aos vários tipos de movimento que originarão o texto da
obra. Esses parecem ser alguns dos tempos de programação da obra, agora indicados como linhas
de força temporais com as quais o receptor-participante entra em contato. Dessa maneira, o
espaço da obra se desdobra nos vários tempos que podem ser combinados, que agora isso tudo
está à disposição do receptor-participante, separadamente.
Numa outra seção da obra (Continuum) podem ser experimentados pianos montados por
outros receptores-participantes, que podem ser tocados em um processo aparentemente infinito de
recombinações. Cada sessão pode ser gravada e disponibilizada no sítio, para que outros
205
receptores possam “lê-la”. Ao permitir o acesso aos bancos de dados que servem como base para
as “escrileituras” realizadas por qualquer pessoa, Pianographique permite ao receptor-participante
investigar de que maneira outros receptores combinaram as diversas temporalidades ainda não-
configuradas da base de dados. Esse é um aspecto que deve caracterizar as cibernarrativas:
disponibilizar ao receptor-participante as pré-configurações temporais de cada leitura potencial a
ser realizada com a obra. Nessa sessão é onde também surge outro elemento a se considerar sobre
cibernarrativas: os processos colaborativos. Processos de criação colaborativa solicitam que as
fronteiras entre autor e leitor sejam tênues o suficiente para que a ênfase da relação esteja no
processo em si e não no produto dela derivado. A criação colaborativa em redes sociotécnicas
apresenta-se fortemente ligada à idéia do transitório. O caráter efêmero de uma obra em constante
criação baseia-se, aqui, numa espécie de desmaterialização da obra: sua estrutura flexível está
diretamente relacionada à participação momentânea do usuário, seu ato de desconstruir e
recombinar, e a conseqüente manipulação tanto dos significados quanto dos significantes da obra
em um determinado período de tempo.
Em Continuum o receptor-participante poderá também enviar imagens, sons, textos para o
sítio da obra, para que tais imagens possam vir a compor a base de dados. Dessa maneira, a
participação na obra se apresentará também naquilo que ela ainda não é, pois, ao preencher a base
de dados, o receptor-participante acrescenta à obra outros tempos ainda não-configurados, ou
tempos pré-configurados. Entretanto, essa característica ainda não está disponível no sítio, ainda
que na tela inicial exista um link informando que, por meio de correio eletrônico, qualquer
usuário pode enviar sua contribuição para o projeto.
Pianographique enfatiza o fato de que uma obra colaborativa exige o máximo de
dinamismo das cibernarrativas e, por conseguinte, é também o que caracterizaria esse tipo de
narrativa em seu estado mais intenso. Ao fazer o cruzamento das variáveis utilizadas para
categorizar o grau de imersão em cibernarrativas, tem-se a seguinte combinação: o acesso à
mimese I, mas não ainda a possibilidade de realizar acréscimos na base de dados sonoros e
visuais, o que posiciona a obra no nível 1.2; o receptor-participante pode visualizar as regras de
funcionamento da cibernarrativa e pode alterá-las, uma vez que com os movimentos do mouse e
do teclado ele cria novas configurações narrativas, e a obra assim estaria no nível 2.3. No que diz
respeito à variável relacionada às leituras realizadas por outros receptores-participantes, dois
resultados permitidos pela obra aqui. O primeiro diz respeito à possibilidade de assistir sessões
206
realizadas por outros usuários e gravadas no sítio. Essa funcionalidade posicionaria a obra no
nível 3.3, em que o leitor pode ver, mas não pode alterar outras leituras já feitas sobre a obra. No
entanto, uma segunda forma de compreender o resultado das leituras em Pianographique,
quando essas leituras se configuram como a produção de novos pianos para serem tocados por
qualquer outro usuário. Nesse caso, o nível de imersão na categoria 3 é o correspondente ao item
3.2, em que o leitor pode acessar outras leituras e modificá-las, gravando os resultados no próprio
sítio. Nessa obra, o tempo experimentado pelo leitor é, como diz Paul Ricoeur, experimentado
com a própria narrativa. Entretanto, o leitor deve primeiro organizar os elementos pré-
configurados, próprios do campo da ação prática, pois o autor não chega a propor uma primeira
narrativa. Assim, o leitor tem um primeiro contato com um tempo pré-configurado e deverá ser
capaz de compreendê-lo e organizá-lo materialmente numa narrativa. É a partir daí, da sua
própria configuração, que tal leitor terá acesso ou possibilidade de reconfigurar o que ele mesmo
produziu. Pianographique assemelha-se muito a um processo com vários estágios de
desenvolvimento e, por essa razão, analisá-lo é uma tarefa complexa e que parece também não ter
fim. Tal fato parece diretamente relacionado à instabilidade das várias criações que surgem no
seu desenvolvimento, como que a indicar que cada uma delas é, na verdade, o início de um outro
processo, de uma outra cibernarrativa.
Se a cibernarrativa parece servir-se de uma flexibilidade extrema do suporte, uma primeira
pergunta permite pensar a experiência estética no momento da criação desse tipo de obra.
Antes de realizar a pergunta, convém discutir a questão da materialidade de qualquer tipo de
suporte. Aquele que cria, no momento mesmo da criação, experimenta a resistência do material
com o qual irá expressar o que deseja transmitir. A forma da expressão nos diz de uma
experiência de resistência de ambas as partes: o material resiste à modelagem que lhe é imposta e
o criador experimenta sua própria resistência interna diante de um material que também modela
aquilo que ele deseja expressar. É do resultado desse campo de tensões, idas e vindas, que surge
uma obra para ser esmiuçada, levada a todos os extremos possíveis. É da relação e na relação
entre as resistências que surge um campo instável, onde se insere de modo muito frágil o material
resultante desse entrelaçamento.
O primeiro desafio de trabalhar com um material digital é a sua extrema flexibilidade, que
dilui essa experiência de resistência da forma, no momento da criação. A expressão que se deseja
não encontra exatamente mais uma resistência que a informe, mas parece desdobrar-se
207
indefinidamente para encontrar forma nenhuma, a não ser aquela que se deseja. Antes do próprio
jogo, há todas as possibilidades de produção de possibilidades do jogo, e essa parece ser a
característica que define a última potencialidade de uma arte que se diz tecnológica.
Em obras colaborativas, há uma provocação para o esgotamento/recriação ao infinito.
Entretanto, quando se pode realizar o acréscimo de elementos, como em circ_lular ou em
kollabor8, uma possibilidade para se pensar a experiência estética de outra maneira.
Retomando a discussão sobre a não-resistência/baixa resistência do suporte digital, sugere-se um
deslocamento para o lugar onde acontece a resistência, centrado mais explicitamente nas relações
possíveis entre a variedade de expressões comportadas por um suporte sem limite, ou onde o
limite tende ao infinito. Se a experiência estética se quando ela desloca o interlocutor e o faz
repensar a própria estratégia que o jogo propõe para ele, numa obra tecnológica o deslocamento
parece acontecer antes disso. É preciso primeiro sugerir as peças do jogo, sem criar as regras
explicitamente. Onde fica a estratégia textual? Essa parece ser a pergunta pertinente nesse
momento. um lugar para a estratégia textual, mas não é mais aquele de ser descoberta na
experimentação da obra materializada. É como pensar que o lugar seja ainda mais instável do que
aquele sugerido por Iser quando discute a teoria do efeito estético.
Em várias obras com características cibernarrativas, o engajamento da totalidade do corpo
não acontece de forma explícita, de maneira a fazer com que o espectador sinta fisicamente a
obra em si. Entretanto, isso não significa que a experiência em que ele ingressa não afete o
sensível e não seja afetada também pela sensibilidade do espectador. Nas obras escolhidas, que
sugerem recombinações de experiências vividas pelos seus usuários, podem-se destacar dois
momentos, ao menos, em que o engajamento aproxima-se de uma interferência física sobre o
espectador ou mesmo instiga este a investigar a sua própria percepção sensível. Na escolha de
experiências que podem ser colocadas no sítio, em formato de vídeo ou áudio, o usuário está
investindo o seu corpo no corpo da obra, mesmo que à distância. Aqui, ele se oferece para sofrer
recombinações a partir de um determinado meio que escolheu para expressar uma dada
experiência. Após anexar a sua experiência ao corpo da obra, esse mesmo espectador irá agora se
deparar com as inúmeras recombinações que podem deslocar a experiência vivida por ele, e
reconfigurá-las, ao fazer com que elas se tornem parte de uma outra experiência. A recombinação
incessante das experiências vividas, dentro do sítio, sugere aos seus espectadores refletirem sobre
208
o significado de cada uma das experiências, mas não como algo em si e sim como uma parte de
um todo maior de relações intersubjetivas.
E mais ainda, o que aparece aqui como fenômeno capaz de causar uma experiência estética,
conforme a abordagem utilizada nesse estudo, não é tanto cada uma das recombinações, mas a
experiência de realizá-las. Afinal, o que o espectador faz aqui é tomar experiências vividas e
propor para si mesmo e para outros, novas possibilidades de produção de possibilidades, um
constante criar de novas experiências e de novas relações comunicativas.
O que caracteriza a experiência de imersão em cibernarrativas parece ser a exigência, em
relação àquele que irá colocar a obra em movimento, de uma entrada no código da obra no
momento em que esse código digital ainda não está configurado para dar origem a alguma ação,
programada ou não. Ou seja, cabe ao receptor-participante criar a obra que ele próprio irá
experimentar. Ainda nesse sentido, a imersão do receptor-participante se faz entre as diversas
camadas temporais que se cruzam na criação das cibernarrativas. O ambiente imersivo surge
como um conjunto de linhas de força temporais que não se esgotam quando a obra aparece, uma
vez que todo surgimento de uma configuração específica, no meio digital, é sempre temporário,
efêmero e marcado pela instabilidade. A imersão, a partir dessa proposta, é bastante diferente
daquela presente em caves, em ambientes de realidade virtual. Entretanto, como se pode perceber
em algumas obras analisadas, a exigência de imersão pode ser dividida em relação às três
categorias de análise (acesso à mimese I; acesso ao código de programação ou às regras da
narrativa; e acesso às leituras realizadas, transformadas em elementos das obras). Assim, de
que imersão se fala aqui? De um conceito relacional, definido pelo cruzamento das três categorias
em alguns pontos. O que se percebe, na análise, é que algumas obras não permitem a imersão do
receptor-participante no estado de mimese I, mas apresentam alternativas de participação nas
regras que estruturam as narrativas, o que lhes confere alguma possibilidade de imersão relativa
ao fato de serem obras em rede. Criar obras em que o acesso à mimese I é franqueado ao leitor
significa criar obras em que provavelmente a participação imersiva será mais intensa também nas
outras categorias de participação. Afinal, se um usuário pode acessar uma narrativa em estado de
mimese I e pode acrescentar dados a essa narrativa, isso implica o acesso ou ao código de
programação ou às regras da narrativa, ou aos dois, conforme pode ser visto em kollarbor8 ou em
Pianographique. Como conseqüência dessa possibilidade, as leituras de outros usuários também
terminam por serem disponibilizadas como partes físicas da obra, e passíveis de alteração. É
209
possível dizer que o acesso ao estado de mimese I de uma narrativa caracteriza um tipo de
imersão na cibernarrativa enquanto está sendo construída e em todas as fases do processo de
modificação da obra. O estado máximo de imersão, considerando a relação entre as três
características, exige uma obra realmente colaborativa, que apresente zonas de autoria
compartilhadas, obras cuja narrativa possa ser vista sempre em estado de pré-figuração, e em que
o tempo seja sempre o que passa e o que é, e essa relação possa ser experimentada no ato de
criação física da cibernarrativa.
A mesma narrativa poderá, num outro momento, vir a ser reorganizada por um outro leitor.
E essa nova reorganização não se faz apenas no nível de uma reconfiguração não material da
narrativa. O que um novo leitor pode realizar é uma nova tessitura, uma nova narrativa material,
bem como disponibilizá-la como mais uma configuração possível dos primeiros fragmentos
disponibilizados pelo autor. Cada nova experiência de navegação é sempre uma experiência de
contato com a experiência poética ainda pré-figurada. Assim, não um ambiente imersivo onde
o receptor-participante entra, a não ser aquele que ele mesmo cria à sua volta, enquanto
experimenta a obra que surge de suas próprias combinações. O tempo experimentado pelo leitor,
em cibernarrativas colaborativas, não é apenas um tempo reconfigurado em mimese III através de
mimese II. A cibernarrativa colaborativa permite e exige que, em sua forma mais dinâmica, o
leitor modifique materialmente as três mimeses propostas por Paul Ricoeur. Essa é a condição
criada pelo tipo de imersão característico das cibernarrativas, confome a discussão proposta por
essa tese. Para que se possa considerar uma obra como cibernarrativa é preciso compreender que
o principal desafio é criar uma experiência processual em que a imersão não seja condição
dada ao leitor, mas que ela exija a sua criação por esse leitor. Ou seja, ao receptor-participante de
uma cibernarrativa cabe estruturar a imersão a que estará sujeito a partir do seu próprio
movimento em um ambiente imersivo ainda em estado de pré-figuração, em estado de mimese I.
E cabe aos meta-autores criarem cibernarrativas que possam sempre serem pensadas como
permanentemente em estado de mimese I, de modo que os receptores-participantes possam se
“situar” para construírem a sua experiência estética.
Ao propor, como uma segunda conclusão, uma tipologia para as cibernarrativas, a partir do
conceito de imersão, tomou-se como parâmetros termos indicativos de processos de construção
de narrativas, e não termos que procuram definir tipos específicos de narrativas. Afinal, quando
Iser (1996) discute sua teoria do efeito estético não procura, com ela, definir o que é um texto que
210
produz efeito estético, mas quais as condições de criação de efeito estético a partir da conjugação
de elementos como as estratégias textuais, repertório e o ponto de vista nômade do leitor, entre
outros aspectos. Por essa razão situa também o efeito estético na conjugação entre o pólo do texto
e o pólo do leitor. Iser (1996) procura discutir de que modo se o processo de comunicação de
textos literários, enfatizando, assim, mais uma vez, o caráter de acontecimento desses textos. Por
entender-se aqui a cibernarrativa como um tipo de obra dinâmica, que destaca justamente os
processos de sua construção é que se buscou a relação entre a teoria do efeito estético e a
tipologia sugerida para pensar o comportamento das cibernarrativas. Entre as três categorias
macro propostas na tipologia, parece-nos que a categoria que trata do acesso ao código de
programação e/ou às regras das cibernarrativas é a que se aproxima mais dos parâmetros
encontrados na teoria do efeito estético, principalmente no que tange às estratégias textuais. Se
nos textos literários discutidos por Iser essas estratégias funcionam como ativadores daquilo que
virá a se constituir, através dos atos do leitor, como efeito estético, nas cibernarrativas essas
estratégias existirão em função dos movimentos do leitor ainda na construção de uma narrativa e
não mais somente na sua reconfiguração.
Em relação à discussão de Paul Ricoeur (1994) sobre o tempo na narrativa, a ênfase se fez
sobre a articulação das três mimeses propostas pelo autor francês em função do caráter de
movimento em direção ao texto evocado pela relação entre narrativa e tempo. Ao construir uma
narrativa estabelece-se um sentido para o tempo, cria-se uma configuração temporal que será
encontrada e discutida” pelo leitor dessa narrativa. Nesse embate, do seu centro mesmo, forma-
se uma determinada percepção temporal que não está contida no texto, e nem está pronta no
leitor. Esse embate estrutura-se na conjugação das mimeses, processo em que o leitor é sempre
parte ativa, porque deve se movimentar em direção ao texto, para com ele dar a perceber um
tempo narrado. Novamente, não se trata aqui de definir qual texto permite o movimento, mas
como as articulações narrativas de textos diversos sugerem a movimentação com as três mimeses.
No que diz respeito às cibernarrativas, a categoria que trata do acesso às mimeses procura dar
conta dessa mesma articulação, ao verificar de que modo a possibilidade de acesso ao tempo pré-
figurado e a sua possibilidade ou não de modificação podem evocar modificações nas
cibernarrativas analisadas.
Finalmente, a terceira categoria de análise, que discute como a leitura pode constituir-se
fisicamente em uma outra obra, retoma o sempre presente receptor-participante e investiga a
211
perspectiva de colaboração entre os vários “leitores” de cibernarrativas, com foco principalmente
na presença física das leituras como elementos da cibernarrativa. Aqui destaca-se a relação tanto
com a teoria do efeito estético quanto com a discussão sobre tempo e narrativa. Nos dois casos,
considera-se o leitor como parte ativa da construção da experiência estética, e aponta-se para sua
presença desde muito cedo na discussão sobre literatura. Por essa razão, quando tratamos das
cibernarrativas, não se pode falar de um leitor finalmente liberto dos constrangimentos físicos de
qualquer tipo de suporte. Antes, é preciso perceber que a discussão se faz sobre processos de
escrita e leitura, sobre questões processuais, e não sobre a existência de um tipo de obra, num
determinado suporte, que resolveria de uma vez por todas os problemas aqui indicados.
Assim, ao final dessa tese, parece-nos que a discussão sobre imersão, voltada para pensá-la
como condição de produção de cibernarrativas, se faz pela via relacional justamente em função
de ser um caminho que, ao mesmo tempo em que preserva conceitos da teoria literária que
procuram dar conta das conexões entre autores, leitores, obras e textos, sugere como atualização a
necessidade de se investigar de que maneira a exposição cada vez mais intensa das relações entre
esses quatro elementos, por exemplo, na abertura dos códigos dessas conexões, provocam
deslocamentos no tipo de experiência a que se tem acesso nas cibernarrativas. É como se a
discussão aqui fosse também ela uma distensão dos conceitos, procurando não perder de vista o
que ganha qualidades temporais passadas e aquilo que aparece prenhe de qualidades temporais
futuras. O movimento dessa tese é também uma narrativa que se faz enquanto memória e espera,
pois como diz o próprio Ricoeur, a impressão aparece na alma através da ação do espírito,
quando ele espera, está atento e recorda-se.
212
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