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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRA E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
A CAPOEIRA E OS MESTRES
ILNETE PORPINO DE PAIVA
Natal
2007
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ILNETE PORPINO DE PAIVA
A CAPOEIRA E OS MESTRES
Tese apresentada ao Programa de pós-
graduação em Ciências Sociais, área de
concentração: cultura e representações, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
para obtenção do título de doutora em
Ciências Sociais, sob a orientação do Prof. Dr.
Edmilson Lopes Junior.
Natal
2007
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Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
(CCHLA).
Paiva, Ilnete Porpino de.
A capoeira e os mestres / Ilnete Porpino de Paiva. – Natal, RN, 2007.
166 f.
Orientador: Prof.
Dr. Edmilson Lopes Júnior.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Gran-
de do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais. Área de Concentração: Cultura e Representa-
ções.
1. Tradição – Tese. 2. Capoeira – Mestres – Tese. 3. Cultura – Tese. 3. Cul-
tura popular - Tese. 4. Sociologia da cultura – Tese. II. Lopes Júnior, Edmilson
III. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. IV. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 39
SNBSE-CCHLA
ILNETE PORPINO DE PAIVA
A CAPOEIRA E OS MESTRES
Aprovada em ___/___/___
BANCA EXAMINADORA
Prof° Dr. Edmilson Lopes Junior – UFRN (Orientador)
________________________________________________
Prof° Dr. Marcos Ayala – UFPB (1° Examinador Externo)
________________________________________________
Prof° Dr. Pedro R. J. Abib – UFBA (2° Examinador Externo)
_________________________________________________
Prof° Dr. Luiz Carvalho de Assunção (Examinador Interno)
________________________________________________
Prof° Dr. Edmundo Marcelo M.Pereira – UFRN (2° Examinador
Externo)
________________________________________________
Prof° Dr. Alexsandro Galeno A. Dantas – UFRN (1°Suplente
Interno)
_________________________________________________
Prof° Drª Norma Missae Takeuti – UFRN (2° Suplente
Interno)
Dedico
A Raul, meu filho, que a cada dia me
ensina a ser aprendiz.
AGRADECIMENTOS
- Quero expressar minha gratidão, especialmente, aos Mestres de
Capoeira, que de forma generosa me acolheram, me permitiram “invadir
as suas vidas”.
- Ao professor Dr Edmilson Lopes Júnior, orientador que com sua calma
conseguiu estar ao meu lado, ao mesmo tempo em que me fazia
‘caminhar com minhas próprias pernas’.
- Ao professor Dr João Bosco Araújo da Costa, auto declarado ateu-filho
de Oxossi que me abriu os caminhos para a escolha do tema de estudo.
- A Base de Cultura Popular pela acolhida que me proporcionou momentos
singulares de apreensão do conhecimento.
- A todos os professores do programa da pós-graduação que lecionaram
as disciplinas de maneira a tornar o tempo de estudo um prazer.
- À banca de qualificação, professora Drª Terezinha Petrúscia Nóbrega e
professor Dr. Luiz Assunção pelas valiosas observações, que me
facilitaram tecer o resultado final do trabalho.
- A Cyro Almeida, pela prestatividade com que fez o abstract.
- A Hilanete Porpino, minha irmã que, como em tantas outras
caminhadas, me deu beijo e abrigo; dessa vez pela dedicação com que
fez a revisão do trabalho.
- A minha mãe, Ivonete que com força e simplicidade tornou mais leve os
momentos que se anunciavam difíceis.
- As amigas Isabel, Késia, Patrícia, Cidinha que a maneira de cada uma,
me deram força e incentivo para continuar a caminhada.
- A amiga Jaquilene Linhares por ter me acolhido em sua residência
durante a minha estada em Salvador.
- Ao Coco Maracajá, especialmente a Cacau Arcoverde, por ter me
possibilitado experimentar no corpo através dos ritmos, danças e cantos,
a Cultura Popular. Momentos de incentivo e prazer, que me ajudaram na
construção do conhecimento teórico.
- A CAPES, pela concessão da bolsa durante 3 anos e meio do curso.
A TODOS aqueles que de várias formas deram sua ajuda para a realização
deste trabalho nas diversas fases.
RESUMO
A Capoeira, considerada uma manifestação da Cultura Popular - herança
de povos africanos - é uma prática cultural e social presente no Brasil
desde a época colonial. Este estudo é dedicado à Capoeira e seus
mestres. Trabalhamos a Capoeira como um campo social na perspectiva
teórica da Sociologia de Pierre Bourdieu. Procuramos apreender a
construção social do mestre, a legitimidade do seu saber, as disputas e
as representações que elaboram no espaço redefinido pelas mudanças
materiais e simbólicas ocorridas com a Capoeira nas últimas décadas.
As noções operatórias de campo social, habitus, capital e tradição foram
pertinentes para pensar os jogos de poder, as relações sociais e as
tramas simbólicas no campo da Capoeira. Do ponto de vista
metodológico, embora as entrevistas com os mestres e a observação
direta tenham tido um lugar especial na pesquisa, outras estratégias
foram utilizadas: pesquisa em jornais, revistas temáticas,
documentários, composições musicais e trabalhos acadêmicos. A
atuação dos mestres no processo de reinvenção de tradições tem
redefinido o seu lugar social em relação às gerações anteriores. Estes
são percebidos como atores sociais responsáveis pela manutenção,
dinamicidade, afirmação, divulgação e expansão da prática capoeirística.
Palavras-chave: Capoeira - Mestres - Cultura Popular Campo
Capoeirístico - Tradição
ABSTRACT
The Capoeira considered as a manifestation of the Popular Culture -
inheritance of African peoples - is a cultural and social practice present
in Brazil since the colonial time. This study is dedicated to the Capoeira
and its masters. We work the Capoeira as a social field through the
theoretical perspective of the Sociology of Pierre Bourdieu. We try to
apprehend the social construction of the master, the legitimacy of his
knowledge, the disputes and the representations that they’ve elaborated
over the space which was redefined for material and symbolic changes
that occurred with the Capoeira through the last decades. The operating
notions of social field, habitus, capital and tradition had been pertinent
to think the power games , the social relations and the symbolic plots in
the Field of Capoeira. From the methodological standpoint, although the
interviews with the masters and the direct observation have had a
special place in the research, other strategies had been used:
researches in newspapers, thematic magazines and periodic, musical
compositions and academic works. The performance of the masters in
the process of reinvention of traditions has redefined their social place in
relation to the previous generations. These are perceived as social
actors responsible for the maintenance, dynamicity, affirmation,
spreading and expansion of the “capoeirístic” practice.
Key words: Capoeira – Masters – Popular Culture – Capoeiristic field –
Tradition.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................11
CAPÍTULO 1: A TRAJETÓRIA DA CAPOEIRA: ENTRE A TRADIÇÃO
E A MODERNIZAÇÃO .................................................................43
1.1. A ORIGEM DA CAPOEIRA: O DEBATE CONTINUA .......................45
1.2. A NECESSIDADE É A MÃE DA INVENÇÃO .................................49
1.3. CONTANDO HISTÓRIAS DE CAPOEIRA .....................................50
1.4. DA GINGA DA CAPOEIRA AO PASSO DO FREVO........................ 52
1.5.CAPOEIRA E CAPOEIRAS.........................................................54
1.6. CAPOEIRA ANGOLA: CADA UM É CADA UM ..............................56
1.6.1. Centro Esportivo de Capoeira Angola João Pequeno de
Pastinha.................................................................................. 57
1.6.2. Grupo de Capoeira Angola Pelourinho
GCAP........................................................................................62
1.6.3. Escola de Capoeira Angola Irmãos
Gêmeos....................................................................................65
1.7.CLASSIFICANDO A CAPOEIRA.................................................67
1.8. REDEFINIÇÕES MARCAM A CAPOEIRA - ALGUMAS NOTAS SOBRE A
CAPOEIRA REGIONAL...................................................................69
CAPÍTULO 2 : A CAPOEIRA E OS DESLOCAMENTOS
SOCIOCULTURAIS.....................................................................82
2.1. A CAPOEIRA E OS ESPAÇOS SOCIAIS OCUPADOS: RUAS,
ACADEMIAS, ESCOLAS E UNIVERSIDADES......................................83
2.1.1. A capoeira e a rua ..........................................................86
2.1.2. A Capoeira e as academias .............................................89
2.1.3. A Capoeira e as escolas ..................................................93
2.1.4. A Capoeira e a universidade ...........................................97
2.2. TEM MULHER NA RODA: A PRESENÇA FEMININA NA
CAPOEIRA...................................................................................99
2.3.DA BAHIA PARA O MUNDO: A EXPANSÃO DA CAPOEIRA............103
2.4. A CAPOEIRA É TAMBÉM PROFISSÃO ......................................111
2.5. A CAPOEIRA E SEUS MESTRES: UMA APROXIMAÇÃO TEÓRICA .114
CAPÍTULO 3: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO MESTRE DE
CAPOEIRA...............................................................................120
3.1. MESTRES DA CAPOEIRA: MESTRES DA CULTURA POPULAR.......123
3.2. O MESTRE E A CAPOEIRA ....................................................129
3.3. RECONHECIMENTO E LEGITIMAÇÃO: O TÍTULO DE MESTRE E A
COMUNIDADE .......................................................................... 134
3.4. COMO TORNAR-SE UM MESTRE DE CAPOEIRA ........................137
3.5. O TEMPO E A CONSTRUÇÃO DO MESTRE ...............................140
3.6. AS GRADUAÇÕES NÃO SÃO IMUTÁVEIS ................................143
3.7. AS ACUSAÇÕES AOS FALSOS MESTRES.................................149
3.9. A CAPOEIRA NA VIDA DO MESTRE ..................................152
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................155
REFERÊNCIAS..........................................................................161
A Capoeira e os Mestres
11
INTRODUÇÃO
Eu louvo os mestres das danças,
lhes dou todo meu carinho.
Pastinha e Zé Alfaiate,
Capoeira e Caboclinho.
Eu louvo Mateus Guariba,
do meu Cavalo-Marinho.
Antonio Nóbrega e Wilson Freire
Mais do que homenagem, a composição Sambada dos Mestres
1
é
uma louvação aos mestres. Sejam eles, poetas, músicos, dançarinos,
cantadores, atores. São mestres de diferentes saberes, linguagens e
expressões da Cultura Popular. Cada um com sua história. Celebrada
como dança, na Capoeira a saudação é para Vicente Ferreira Pastinha
(1889-1981), o Mestre Pastinha, consagrado como um dos
representantes maior da Capoeira Angola.
É oportuno ressaltar que até os anos 20 não se falava em
Capoeira Angola. Era apenas Capoeira. Esta, considerada por
praticantes como a Capoeira Mãe, a Capoeira Primeira. Na década de
30 Manoel dos Reis Machado (1900-1974), o Mestre Bimba, cria
2
a luta
regional baiana - conhecida como a Capoeira Regional - uma espécie
de modalidade ou estilo de Capoeira idealizada a partir da Capoeira
que existia. Os capoeiristas que escolheram permanecer fiel à Capoeira
que praticavam, não se envolvendo com a novidade proposta por
Mestre Bimba; possivelmente pôr uma questão política, passaram a
1
Versos de uma faixa do CD de Antônio Nóbrega intitulado Madeira que cupim não
rói, gravado em 1997.
2
O mérito de criação da Capoeira Regional é atribuído ao Mestre Bimba. No
entanto, trabalhos questionando essa exclusividade. A esse respeito, ver Sérgio
Luiz Vieira, em
Capoeira: Matriz Cultural para uma Educação Física Brasileira;
e André
Luiz Lacé Lopes em
Capoeiragem no Rio de Janeiro.
A Capoeira e os Mestres
12
acrescentar ao nome Capoeira, o termo Angola, demarcando uma
identidade, uma singularidade, uma diferença.
Pesquisar Capoeira é um desafio. São culos de história. Quem
construiu e como foi construída? Qual era o seu sentido? Que práticas
a constituíram e a constituem? Que usos foram feitos dela no passado?
E hoje, onde se insere? Onde se situa o mestre nessa história? São
questões que inspiram a criação de uma narrativa sobre Capoeira,
contribuindo para compor mais um fragmento da sua história.
À Capoeira, relacionamos fatos, acontecimentos, histórias. Ao
longo da sua existência, ela tem desempenhado papéis: social, político
e cultural. Ora identificada/identificados (capoeira e capoeiristas) com
a ordem, ora com a desordem. Ora lutando pelos seus, ora do lado de
lá. Estudos dedicados à História do Brasil e à Capoeira confirmam a
presença dos capoeiras em episódios como a Revolta dos Mercenários
3
(1828) a Guerra do Paraguai
4
(1865-1870). Estiveram envolvidos na
disputa do poder entre monarquistas e republicanos (segunda metade
do século XIX), na Revolta da Vacina
5
(1904). Nessas ocasiões, com
exceção do último episódio, eram cooptados para servir aos interesses
da classe dirigente do país - uma história pouco explorada ou quase
não mencionada.
É corrente a idéia de que Capoeira é sinônimo de resistência ao
opressor, a uma ordem escravista. De fato, isso ocorreu; porém, é
importante relativizar um pouco o peso dessa representação e
levarmos em conta o quanto tal resistência é, em certo sentido, uma
construção idealizada do passado para justificar e legitimar práticas
presentes.
3
A respeito da Revolta dos Mercenários ver Eduardo M. da Silva, em o Império
Subterrâneo do Rio de Janeiro no século XIX, 2006.
4
Sobre a Guerra do Paraguai, ver Soares em A negregada instituição: os capoeiras
no Rio de Janeiro, 1850-1890.
5
Sobre a Revolta da Vacina, ver José Murilo de Carvalho, em Os bestializados: o Rio
de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
A Capoeira e os Mestres
13
Nesse sentido, vale a pena levar em conta as elaborações que
apontam para o envolvimento da Capoeira por grupos políticos e
sociais dominantes. Em determinadas situações, os capoeiras serviam
aos interesses destes, o que afasta a idéia de a Capoeira ser apenas
símbolo de resistência. Conforme Soares
6
(2004), em época de
eleições os capoeiras eram convocados por políticos conservadores
para serem seus capangas.
(...) ao mesmo tempo em que enfrentavam o aparato
policial e a ordem escravista, o capoeira participava
ativamente das lutas políticas dentro dos grupos
dominantes, como capangas dos senhores da Côrte, e
mesmo incorporava termos e trejeitos do vocabulário
pedante de juízes e doutores da política da época
(SOARES, 2004, p.17).
Esses fatos não circulam no meio capoeirístico. São pouco
conhecidos. capoeiristas que não têm interesse em divulgar
determinadas passagens da sua história. É como se estas viessem
diminuí-la. Estudos voltados para o fenômeno da Capoeira têm
desconstruído algumas histórias, questionado verdades e evidenciando
fatos omitidos. Não se trata de privilegiar a história encontrada em
livros, teses, dissertações mesmo porque há limites em detrimento
da história contada pelos capoeiras, mestres ou não, histórias que eles
ouviram, algumas escritas. Histórias de um tempo distante,
passadas através da oralidade. Histórias que têm alimentado teses.
Para compor o presente trabalho, um dos caminhamos
percorridos foi o de realizar leituras de obras que tratassem da
Capoeira. Um jeito brasileiro de aprender a ser, estudo realizado por
6
Soares – historiador que se dedicou ao estudo do fenômeno da Capoeira no Rio de
Janeiro do século XIX.
A Capoeira e os Mestres
14
César Barbieri
7
em 1993, foi uma delas. Lá, encontrei a fala de um
mestre que contribuiu para a definição deste estudo. Tratava-se da
resposta do Mestre João Grande
8
a respeito do que é ser um mestre de
Capoeira. A partir daí, decidi entrar na Roda, e jogando com as
palavras, construir um estudo, não conclusivo, mas que tivesse a
pretensão de ser revelador da Capoeira, com atenção especial para a
figura do mestre.
A construção das representações que o mestre tem de si
enquanto mestre sugere que uma relação de dependência entre a
Capoeira e o mestre. É como se a Capoeira existisse porque tem o
mestre. Eles contam que são eles os responsáveis pela preservação da
Capoeira através do tempo. Diante desse fato e em meio ao contexto
em que a Capoeira se encontra, veio o interesse em compreender o
papel do mestre na história da Capoeira. Como tudo começou? Quem
produziu os mestres? Como se forma um mestre? Qual o lugar do
mestre no campo da Capoeira e fora dela? A Capoeira sobrevive sem a
figura do mestre? Algumas dessas questões mereceram atenção
especial ao longo da construção do trabalho.
Os mestres não estão ancorados apenas na Capoeira. As
manifestações da Cultura Popular são depositárias deles. Mestre de
Boi, Mestre de Maracatu, Mestre de Cavalo-Marinho, Mestre de
Caboclinho, Mestre de Coco, Mestre de Capoeira. São os mestres
7
César Barbieri é graduado em Educação Física (1973) com doutorado em
Educação (2003). Atualmente é professor titular da Faculdade Cenecista de Brasília.
Em 1993 o autor publicou Um jeito brasileiro de aprender a ser, um estudo
dedicado à Capoeira.
8
João Oliveira dos Santos (1934), um dos alunos do Mestre Pastinha que se tornou
João Grande para diferenciá-lo do outro João o João Pequeno de Pastinha. Mestre
de Capoeira Angola, deixou Salvador em 1990 para se dedicar à Capoeira em Nova
York. Em 1995, através de seu trabalho com a Capoeira, recebeu o tulo de doutor
Honoris Causa da Universidade de Upsala, Nova Jersey. (Revista Praticando
Capoeira,ano 1, n° 9, 2000, p.18).
A Capoeira e os Mestres
15
brincantes
9
– fazedores de cantos, dançarinos e atores populares.
Portadores de uma imaginação criadora, esses guardiões de um saber
e de uma tradição, reinventam com música, dança e teatro o seu
mundo; tradição compreendida aqui não como coisa cristalizada, mas
viva e dinâmica. É um erro imaginar a tradição dissociada da
mudança. Portadora de sentido e significado, ela se encontra em
constante estado de transformação. Nenhuma tradição se mantém
imóvel. Como nos diz Georges Balandier (1997), seu próprio
dinamismo é alimentado pelo movimento e pela desordem, aos quais
ela deve finalmente se subordinar” (BALANDIER, 1997, p. 94).
Ordem e desordem, continuidade e descontinuidade,
permanência e ruptura, tradição e transformação termos geralmente
apresentados como antagônicos; contudo, em se tratando de tradição,
aqui são vistos como complementares. Lidar com tradição exige que se
atente não apenas à permanência, mas também à mudança. Essa
questão pode ter relação com o eterno processo de criação e recriação.
As estruturas se repetem, mas ao mesmo tempo é na repetição
que se tem a adequação, a recriação e a adaptação. Paul Zumthor
(1997) afirma que para manter a tradição tem de existir possibilidade
de reelaborar-se, readaptando-se. A Capoeira hoje existe num
contexto que não é mais aquele do século passado. A dinâmica da
sociedade possibilita um novo contexto, que por sua vez provoca
adaptações no campo capoeirístico. O que antes era diversão, hoje
também é trabalho.
9
Brincantes termo presente no universo da Cultura Popular. Aquele que brinca a
brincadeira, o brinquedo. É por exemplo, a pessoa que se veste para brincar:
Mateus no boi de reis; o Mestre Ambrósio, no Cavalo-Marinho, são os personagens
do pastoril, os dançarinos de um Coco de Zambê. São também os tocadores e
cantores da brincadeira. A atribuição da palavra “brinquedo” às manifestações
culturais tem relação com a visão que tinha as elites das práticas culturais dos
negros. Vistas como um folguedo, um momento de diversão. Conforme Ivaldo
Marciano, historiador e mestre do Maracatu Nação Cambinda Estrela, essas
manifestações vão mais além: “recriar o mundo africano em terras distantes”.
Informações colhidas no encarte do CD Maracatu Nação Cambinda Estrela.
A Capoeira e os Mestres
16
Escolher a Capoeira como objeto de reflexão partiu, inicialmente,
de um interesse pelos bens e manifestações próprios da Cultura
Popular. Primeiro, na condição de apreciadora de uma dança, de uma
musicalidade, de uma encenação e de uma história, que carregam os
tambores das bandas de Congo da Barra do Jucu/ES; a dança dos
galantes com seus arcos enfeitados no espetáculo da brincadeira de
Cavalo-Marinho na Zona da Mata Norte pernambucana; a chama
aquecedora do Zambê de Mestre Geraldo, em Cabeceiras - Tibau do
Sul, litoral potiguar; as lôas tiradas por Mestre Pedro no Boi de Reis da
Vila de Ponta Negra. E, nesse terreno de práticas culturais, como não
se encantar com a leveza e a agilidade de homens e mulheres, nas
rodas de Capoeira!
De apreciadora das brincadeiras à motivação em compreender
parte dessa diversidade que ocupa o campo da Cultura Popular,
terreno de sabedoria, conhecimento e arte. Um campo de reflexão
fértil e de possibilidades de interlocução nos domínios os mais
variados. A Capoeira tem despertado o interesse de pesquisadores
nas diversas áreas do conhecimento, como a Sociologia, a
Antropologia, a História, a Educação, a Arte, a Psicologia e a Educação
Física. Precisamente, a partir das últimas décadas, nacionais e
estrangeiros, praticantes de Capoeira ou não, têm se dedicado a dar
visibilidade a esse fenômeno social, evidenciando uma contribuição na
construção de um campo discursivo que confluiu para o processo
histórico de formação e consolidação dos estudos sobre a Capoeira.
De fato, a Capoeira, na condição de objeto de análise, tem
estado presente, de maneira significativa, na produção intelectual
brasileira. A diversificada literatura é resultante das várias facetas que
compõem e substancializam a singularidade dessa manifestação que
se inscreve na cultura brasileira mais de três séculos. Deve-se
deixar claro, entretanto, que,
a periodização é uma problemática nos
A Capoeira e os Mestres
17
estudos sobre Capoeira. É uma missão difícil perceber o momento do
seu surgimento, nascimento ou aparecimento. Diante da escassez de
provas, é mais seguro trabalhar com hipótese.
As pesquisas nos mostram a Capoeira a partir de diferentes
abordagens. Não custa lembrar que há muito a Capoeira se fazia
presente em obras de nomes representativos da Literatura Brasileira:
Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida e Jorge Amado; no
campo capoeirístico, com os escritos dos mestres Noronha e Pastinha.
No Campo folcloristas, nomes como os de Edson Carneiro e Câmara
Cascudo também se dedicaram à Capoeira.
A respeito das pesquisas sobre Capoeira, sem a preocupação de
identificar as mais importantes e representativas, decidimos de forma
breve, apresentar algumas informações. Em 1968 temos a primeira
dissertação que resultou na publicação do livro Capoeira Angola um
ensaio sócio cultural, de Waldeloir Rego. Uma reflexão no campo da
Antropologia, considerada referência para quem se dispõe a estudar
Capoeira.
Conforme Vieira (2004) entre os anos setenta e meados dos
anos oitenta, a Educação Física tomou de conta dos estudos da
Capoeira, priorizando os aspectos bio-mecânicos, cinesiológicos e
fisiológicos. Daí, até o final da década de oitenta, despertou interesse
na Educação. A relação Capoeira, Educação Física Escolar e Educação
era o enfoque dos pesquisadores.
A partir dos anos noventa, a Capoeira chama a atenção de
sociólogos, antropólogos e historiadores. A maioria da produção
acadêmica foi escrita por brasileiros e praticantes de Capoeira. O Rio
de Janeiro é o campo de referência maior para os estudos, seguido por
Salvador. Mais da metade dos trabalhos tem como referência a
A Capoeira e os Mestres
18
Capoeira nas últimas décadas. O levantamento
10
realizado apontou
que a presença da Capoeira na condição de objeto de reflexão é
recente.
Até a década de noventa eram poucas as pesquisas envolvendo
a temática. A partir desse período, quando a Capoeira se expande de
forma considerável pelo Brasil e por outros países, elas foram
intensificadas. É importante ressaltar que aumentou o interesse
acadêmico pela Capoeira, porém estudos sobre o mestre são
praticamente ausentes. Voltar atenção para o lugar do mestre torna-se
relevante para enriquecer a reflexão sobre a Capoeira e ampliar a
perspectiva de análise acerca dos mestres e suas manifestações
culturais.
Sendo assim, levando em consideração a presença e,
especialmente, o papel desempenhado pelos mestres nas
manifestações populares, possível de perceber através da dedicação
na afirmação e propagação de sua arte, convém o interesse em
estudá-los, priorizando o campo da Capoeira por estar diante de um
tema estimulante e desafiador, em vista das mudanças materiais e
simbólicas que vêm passando, especialmente, a partir das três últimas
décadas do século XX, período ao qual um olhar focado para a
compreensão da dinâmica da Capoeira na contemporaneidade é
direcionado.
Trabalhamos com a idéia de campo capoeirístico, partindo do
pressuposto de que a Capoeira é um campo social na perspectiva
teórica da Sociologia de Pierre Bourdieu. Isso significa que falar de
campo é entendê-lo como um microcosmo - um pequeno mundo social
relativamente autônomo que faz parte do grande mundo social - o
macrocosmo social. Cada campo seja ele político, religioso,
10
Em 2005, ano da realização da pesquisa em Salvador, tive oportunidade de fazer
o mapeamento de trabalhos sobre Capoeira no arquivo do historiador Frede Abreu.
A Capoeira e os Mestres
19
jornalístico, artístico, esportivo - à sua maneira, tem regras, leis,
propriedades, relações, ações, jogos e pessoas aptas a jogar o jogo.
São atores significativos do campo capoeirístico: os mestres e seus
aprendizes (contramestre, professores, instrutores e alunos).
A institucionalização da Capoeira como esporte, a sua expansão
para além do território brasileiro, o crescimento do número de
praticantes e mestres de diferentes camadas sociais, a sua presença
nas escolas e cursos de Educação Física, a relação com o mercado, os
estudos acadêmicos, o aparecimento de uma imprensa específica de
circulação ampla, a forma de a sociedade representá-la, a produção de
um discurso centrado na profissionalização da Capoeira e dos Mestres,
o crescimento da Capoeira Angola, bem como a formação de novos
representantes são sinais de visibilidade que fazem parte das
mudanças recentes
11
.
Mestre, figura determinante na afirmação e propagação da
Capoeira, arroga o discurso expresso pelos mestres. A relação entre o
Mestre e a Capoeira faz parte de uma história recente. Se a Capoeira
hipoteticamente tem cerca de três séculos, o Mestre está presente nela
menos de um. Nesse sentido, cabem aqui algumas indagações; a
saber: Como nasce o título de Mestre? Quem os criou? Qual o
interesse na sua criação? Que jogos estavam envolvidos? Como era a
Capoeira antes do aparecimento desse título? Por que o título de
Mestre é um dos temas mais debatidos atualmente no campo
capoeirístico? Como se a construção social do mestre de capoeira?
Essas questões se tornaram foco de atenção da pesquisa.
O trabalho, tomando o Mestre como questão central, teve a
pretensão de elucidar a complexidade dos jogos que se institui na
Capoeira. Incorporados seletivamente, os aportes teóricos da
11
Mudanças recentes são aquelas ocorridas a partir dos anos 70 do século XX.
A Capoeira e os Mestres
20
Sociologia de Pierre Bourdieu - habitus, campo social e capital - foram
tomados como referência. Trata-se, portanto, de compreender o lugar
do Mestre, apreendendo a sua construção; a legitimidade do saber
desses Mestres, as representações que elaboram no espaço redefinido
pelas mudanças, as disputas e os jogos de interesses. A nossa missão
é iniciar uma discussão ainda não realizada. Nas pesquisas sobre
Capoeira, o aparecimento do Mestre é de forma descritiva, superficial e
periférica.
Nesse momento, é oportuno um exercício de auto-objetivação,
ou seja, o que Bourdieu chama de objetivação participante. A
objetivação da relação do pesquisador com o seu objeto
uma objetivação que não seja a simples visão redutora,
parcial, que se pode ter, no interior do jogo,(...), mas a
visão global que se tem de um jogo passível de ser
apreendido como tal porque se saiu dele (Bourdieu, 1989,
p. 58).
É pertinente, portanto, responder à questão: Como cheguei até a
Capoeira? O primeiro contato, o interesse, a motivação para praticá-la
e a escolha como objeto de estudo são pontos de partida para o
traçado percorrido. Para começar, filtro da memória cenas e
momentos que me levaram a ter uma relação com a Capoeira.
O interesse pelo estudo sobre Capoeira é resultado de um
processo que se iniciou em 1988, quando conheci Fábio, na época,
contramestre
12
do Grupo de Capoeira Beribazu
13
, de Vitória ES. Ele
estava em Natal na condição de aluno da especialização em Educação
Física Escolar, promovida pelo Departamento de Educação Física da
12
Contramestre: É a graduação que antecede ao título de Mestre. Esse termo é
usado pela maioria dos grupos ou escola de Capoeira.
13
Beribazu: Grupo de capoeira fundado no ano de 1972 pelo mestre Zulu, na
cidade de Brasília. Atualmente está presente em vários estados do Brasil e no
exterior.
A Capoeira e os Mestres
21
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Como a maioria
dos capoeiristas que cursaram o ensino superior e decidiram investir
no campo acadêmico, dedicando-se a ampliar o quadro de
conhecimento sobre a Capoeira, não causa surpresa saber que o
estudo de Fábio foi voltado à Capoeira. A atuação de capoeiristas,
mestres ou quase mestres, formados e legitimados em dois diferentes
campos - o acadêmico e o capoeirístico - é uma situação presente na
Capoeira, mas compartilhada por um número pouco expressivo de
praticantes - aqueles que tiveram condição de concluir o ensino
superior -, e que viram na Capoeira um horizonte.
Gráfico 1:
Escolaridade dos capoeiras mestres
Fonte: Pesquisa de Campo
À maneira de Bourdieu, estamos diante da idéia de capital social,
acúmulo de capital, investimento. A participação em qualquer
mercado exige que os capitais relacionados a ele devam ser
alimentados, regados. Regamos os nossos capitais para usufruir o
máximo os benefícios que a sua posse permita. A respeito da
Capoeira, por exemplo, quem é capoeirista investe no corpo, no
conhecimento dos fundamentos da Capoeira, na voz para tirar as
cantigas, nos instrumentos para saber tocar, nas relações com outros
grupos, nas relações com outros mercados. Esses capitais circulantes
vão beneficiar a distribuição, a inserção do Capoeira no espaço
mestres Escolaridade
O3 Ensino Superior
O5 Ensino Médio
05 Ensino Fundamental
03 Ens. Fund. Incompleto
02 Analfabeto
A Capoeira e os Mestres
22
específico. Em outras palavras, o acúmulo de capital tem muito valor
para o mercado de bens capoeirístico.
Na certeza de que as nossas escolhas restringem e potencializam
outras, posso dizer que a partir do momento em que me dispus a ouvir
alguém falar de Capoeira, vislumbrei a possibilidade de conhecê-la. A
fala apaixonada de Fábio sobre a Capoeira me seduzia. Fiquei tomada
pelo desejo de vir a ser uma capoeirista. Percebi que fui ganha para
Capoeira. Isso ficou evidente no final de 1988, quando conheci, em
Vitória/ES a Capoeira da qual ouvia Fábio falar. Nesse momento, a
relação que estabeleço é de admiração. Quando retornei a Natal,
procurei um lugar para praticar Capoeira.
Em 1989 comecei a fazer aula com o Mestre Iranir, no Clube
Camana. Na época, ele não tinha o título de mestre. Nos anos oitenta
e noventa as referências de Capoeira em Natal eram duas escolas
(estilos) a do Mestre Marcos, identificada com a Capoeira Angola; e a
do Mestre Índio, voltada para o estilo Regional. A maioria dos
capoeiristas que trabalha com Capoeira em Natal foi formada por um
ou outro.
Ao saber que na Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
em 1991 tinha Capoeira, deixei as aulas do Mestre Iranir e passei a
freqüentar a Capoeira que acontecia no Centro Acadêmico de
História/UFRN. Quem as ministrava era o contramestre Robson,
atualmente, mestre do Grupo Corpo Livre, que igualmente ao Mestre
Iranir, pertence à linhagem do Mestre Índio. Na época, eu não assumia
uma postura de vinculação com um grupo ou outro, ou mesmo mestre.
O interesse era praticar Capoeira, onde fosse mais conveniente. No
entanto, isso mudou. Havia Capoeira a alguns metros de casa e eu não
conseguia me desvincular do Mestre Robson.
Inserir-se num grupo é criar relações, afetos, cumplicidades,
laços, interesses. No campo capoeirístico, isso acontece com
A Capoeira e os Mestres
23
freqüência. Em 2006 parei de freqüentar o Grupo do Mestre Robson.
Resolvi conhecer a Capoeira Angola, uma capoeira parecida com a que
vi em Salvador. Integrantes do Grupo Abaô de Capoeira Angola
(Aracaju - SE) resolveram ministrar oficina de Capoeira Angola em
Natal com a possibilidade de criar um núcleo de extensão do Grupo.
Após a minha participação na oficina, decidi praticar Capoeira Angola.
A motivação que tinha para ir às aulas do Mestre Robson já não existia
mais. Acreditava ser difícil freqüentar as duas ao mesmo tempo. As
diferenças eram visíveis na movimentação, na música, na roda. O
discurso dos angoleiros de que não dava para fazer as duas capoeiras
reforçava esse sentimento. O referido discurso, usando as palavras de
Bourdieu, é identificado como o exercício de violência simbólica.
O desafio que faço aqui consiste no exercício de auto-objetivação
de meus sentimentos em relação às modalidades da Capoeira. A
oportunidade que tive de experimentá-las foi significativa para a minha
condição de praticante e pesquisadora. Tomada por um momento de
reflexão - a partir das minhas observações e das conversas que ouvia -
revi minhas posições a respeito de freqüentar as duas Capoeiras.
Voltar à Academia do Mestre Robson se colocava, mas sem deixar a
Capoeira Angola. A insistência dos angoleiros ao afirmar que angoleiro
que é angoleiro não é para praticar outra capoeira suscitava
questionamentos. Por que o praticante de Capoeira Angola é levado a
não freqüentar outra Capoeira? O que está por trás desse discurso?
Interfere no aprendizado do capoeirista que pratica a Capoeira Angola,
dificultando-o; foi uma das justificativas que ouvi. Como interfere, se
somos capazes de aprender uma diversidade de movimentos lentos
e rápidos? Andamos e corremos. Aprendemos a dançar Coco de
Zambê, Coco de Roda, Maracatu, Pastoril, Cavalo-Marinho, Samba,
Frevo e tantas outras práticas. Qual a dificuldade que se coloca na
Capoeira? A meu ver, essa questão não tem relação com técnica.
A Capoeira e os Mestres
24
Trata-se do jogo próprio de um campo as disputas, os interesses, a
concorrência e a própria estrutura e funcionamento criados pelos
capoeiristas.
Retornemos ao momento em que a minha relação com a
Capoeira era apenas a de praticante. Como tal, chamava-me atenção
não a movimentação, a musicalidade, mas a história da Capoeira.
Sobre ela, procurava ler, ficar atenta; tudo me interessava: as falas,
como foram ditas as coisas, os gestos, os silêncios, o tom da voz, até
o que não me foi possível ouvir dos capoeiristas, especialmente,
mestres e quase mestres com quem tive contato. Queria conhecer
mais do que o treinamento para executar os movimentos da Capoeira.
A condição de praticante, que antecede a de pesquisadora,
pressupôs uma sistemática observação da Capoeira. Deixando-me
envolver pelas tramas, construo expectativas em conhecer de perto
algo que fazia parte do meu cotidiano, familiarizando-me cada vez
mais com um código peculiar à Capoeira. Isso significava ir mais além
do que meus olhos podiam ver. Um passo para chegar à condição de
praticante e pesquisadora. Ter a Capoeira como tema para estudo era
um projeto que se colocava à minha disposição.
De posse de um aparato conceitual, a que Bourdieu chama de
capital teórico, disponibilizado e distribuído, através do contato com as
disciplinas, especificamente, a Antropologia, a História e a Sociologia,
posso dizer que o olhar domesticado pela teoria, conforme Cardoso de
Oliveira (1998) permite-me situar a Capoeira como uma manifestação
da Cultura Popular.
Dentre tantas definições que o termo propicia, optamos pela
definição de Cultura Popular, construída por Stuart Hall (1997), que
considera como sendo “as formas e atividades cujas raízes se situam
nas condições sociais e materiais de classes específicas”
(HALL,1997,p.257). São as práticas culturais construídas pelas classes
A Capoeira e os Mestres
25
menos favorecidas economicamente, as classes subalternas; próprias
das camadas populares. Considerada reminiscência de antigas práticas
relacionada ao passado escravista, a história social da Capoeira nos
revela que ela tem sua gênese no território popular.
Sobre essa questão, a pesquisa mostrou que dentro do campo
capoeirístico, relacionar Capoeira à Cultura Popular não é uma posição
unânime. Possivelmente, isso tem relação com a dicotomia que passou
a tomar conta do discurso no campo capoeirístico a partir da primeira
metade do século XX, com a criação da Capoeira Regional. Os adeptos
da Capoeira Angola não relacionam a Capoeira Regional à Cultura
Popular. Em Salvador, encontrei mestres que, ao me questionarem
sobre o tipo de Capoeira que eu estudava: se era a Capoeira Angola ou
Capoeira Regional, antes de eu responder alguma coisa, diziam:
porque a regional, sabe moça, não tem nada a ver com Cultura
Popular.
Na visão desses mestres, pertencer à Cultura Popular tem uma
valorização positiva. Eles se identificam como fazendo parte dela.
Capoeira Regional, que convencionou chamar de toda Capoeira que
tem como modelo a escola de Mestre Bimba, para esses mestres é a
Capoeira da elite, a Capoeira da burguesia etc. Por trás dessa
bipolaridade identificada no discurso construído pelos capoeiristas -
mestres ou não -, o dado empírico nos tem revelado que nem tudo
que não é Capoeira Angola é Capoeira Regional. Estamos diante de
entendimento e visões que permitem apreender as relações de
conflitos no campo.
A discussão que segue diz algo sobre as inquietações, as
dificuldades, os desafios e as surpresas encontradas no processo da
pesquisa; e que, sem dúvida, é vivenciada por aqueles que se dedicam
a esse métier, mas que pouco se comenta ou mesmo se deixa
A Capoeira e os Mestres
26
registrado em suas teses. Normalmente, os pesquisadores não falam o
caminho das pedras. Escrever sobre esse processo, colocando os
percalços, as dificuldades, as angústias é louvável. Bourdieu (1989)
dizia: “nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades”
(BOURDIEU, 1989, p.18).
As inquietações aparecem na escolha do tema. Uma delas diz
respeito à situação do pesquisador envolvido diretamente com o objeto
de pesquisa: o sujeito enquanto capoeirista, pesquisar Capoeira.
Quando temos previamente um envolvimento com o objeto, os
cuidados para conduzir um trabalho de investigação científica são
afirmados e cobrados o tempo todo. Ora, essa é uma situação que se
coloca, mas que por outro lado, o lugar de praticante, de quem tem
uma experiência, de quem já tinha de certa forma conhecimento
acumulado, pois já estava familiarizado com o que se pretendia
pesquisar, tomando os cuidados necessários, permite ao pesquisador
estar mais à vontade para voltar a sua atenção na construção de um
fenômeno passível de ser (re) escrito.
Inicialmente, o terreno de investigação privilegiado para o
estudo da Capoeira compreendia a segunda metade do século XX. No
entanto, houve a necessidade de estender esse período; isso porque, a
criação da figura do mestre antecede aos anos cinqüenta. Como o
mestre é a questão central, a idéia era que, a pesquisa de campo
pudesse ser realizada em qualquer cidade que tem mestre de
Capoeira. Presente em todos os estados do Brasil e, em todo lugar do
mundo”, como nos contam com orgulho os mestres. Não podemos
negar que o campo empírico é amplo.
Diante das limitações em dar a volta ao mundo para realizar o
trabalho de campo, decidimos priorizar algumas cidades a partir de
critérios pertinentes à história da Capoeira naquela cidade, como por
exemplo, se é uma história de séculos ou recente. Priorizá-las não
A Capoeira e os Mestres
27
invalidou a ida àquelas que não estivessem entre as selecionadas. Foi
o caso de São Paulo. Não constava em nossos planos ir lá. Recuos nas
decisões iniciais, mudança de caminhos e estratégias são ações
presentes no trajeto do pesquisador. As cidades contempladas com a
pesquisa foram Natal, São Paulo, Recife, Olinda e Salvador.
Escolher Salvador como um dos campos empírico para a
pesquisa tem relação com o fato de a cidade ter sido um dos principais
centros onde a Capoeira se desenvolveu lá, ela tem séculos de
história sobretudo, por ter sido foco de resistência cultural durante
um período em que a Capoeira constava no digo penal como crime.
Segundo Barbieri (1999)
Salvador é considerada no Brasil e no exterior, a fonte de
onde se origina e preserva-se a capoeira enquanto
tradição, autenticidade e manifestação cultural
(BARBIERI, 1999, p. 69).
A literatura sobre a Capoeira, quando trata da sua história mais
recente, no que diz respeito a sua expansão, apresenta a cidade de
Salvador como um pólo irradiador de sua prática. Foi dessa cidade que
migraram capoeiristas para trabalhar com Capoeira em outros estados
e países; inclusive para centros urbanos onde existia Capoeira, mas
que sob o efeito do código, estava silenciada. Refiro-me ao Rio de
Janeiro e Recife.
A relação entre Capoeira e Salvador apareceu com freqüência no
depoimento dos mestres. Falando-me de sua experiência ao deixar
Recife, disse-me Mestre Pirajá
14
:
14
Mestre Pirajá nasceu em 1948. Tem como nome Marcondes Luiz. É considerado
pela comunidade capoeirística local como o mais antigo mestre de Recife.
A Capoeira e os Mestres
28
Então em 66 eu fui embora daqui de Recife pra Salvador,
conheci os grandes velhos mestres da época: O Mestre
Pastinha, Mestre Caiçara, Canjiquinha. Todo esse pessoal
da Bahia, até porque nós devemos muito aos velhos
mestres de Salvador, da Bahia pelo fato deles terem
preservado essa nossa cultura (Mestre Pirajá).
A visão do Mestre Pirajá - um dos representantes de uma
geração de velhos mestres de Capoeira; sendo o único nessa situação
na cidade de Recife - é seguida pela comunidade capoeirística que
uniformemente reconhece o papel desempenhado pelos mestres
soteropolitanos na preservação da Capoeira. Assumida pelo mestre
como brasileira, ela passa a ser uma dádiva dos mestres baianos que,
com o tempo, passaram a ser conhecidos como os grandes velhos
mestres. O discurso é unânime em ressaltar que a história mais
recente da Capoeira tem relação com a Bahia, especialmente com a
cidade de Salvador.
“Todo capoeirista tem que visitar Salvador, conhecer a Capoeira
lá”. Salvador é a Meca para os capoeiristas”. Estas são frases
pronunciadas por mestres e capoeiristas em todo o mundo; uma
imagem construída pela comunidade capoeirística baiana. Para muitos
capoeiristas, foi que a Capoeira surgiu e expandiu-se. Diante desse
significado que passou a ter a cidade de Salvador, ela foi transformada
em palco central para os eventos anuais regulares, de caráter nacional
e internacional promovidos por grupos, fundações, associações e
escolas de Capoeira.
A título de ilustração, entre os meses de julho e agosto de 2005
período da pesquisa de campo - foram realizados em Salvador: o
Encontro Internacional de Capoeira, promovido pela Associação de
Capoeira Mestre Bimba, por ocasião dos 30 anos da Associação, no
período de 27 de junho a 03 de julho; o Encontro Internacional da
A Capoeira e os Mestres
29
Academia João Pequeno de Pastinha entre os dias 12 e 18 de julho;
em seguida, na primeira semana de agosto acontecia o XI Encontro
Internacional de Capoeira, organizado pela Fundação Internacional de
Capoeira Angola.
Se uma ênfase das pessoas envolvidas com Capoeira em
evidenciar a importância dos capoeiristas conhecerem Salvador,
diríamos que, para um pesquisador capoeirista, essa viagem torna-se
imprescindível. Nas aulas de Capoeira, algumas vezes manifestei
vontade de conhecer uma roda de Capoeira Angola. em Salvador
você encontra”; diziam-me os mestres.
Salvador significava não somente a possibilidade de ver a
Capoeira dos Mestres considerados referências na Capoeira Angola -
João Pequeno de Pastinha, Boca Rica, Moraes, Cobrinha Mansa, Curió -
; mais do que isso, a capital baiana representava a possibilidade de
ouvir o que eles tinham a nos dizer. Ainda sobre a escolha de
Salvador, tem o fato de os mestres consagrados como as duas maiores
referências de Capoeira - o Mestre Pastinha e o Mestre Bimba terem
construído suas histórias lá. Esses critérios justificam a escolha da
capital baiana como uma cidade importante para a natureza do
trabalho.
Além de Salvador, a cidade de Recife foi um dos lugares
selecionados para fazermos a pesquisa. A escolha tem relação com
alguns fatos. Um deles, é que, assim como Salvador, Recife foi um dos
centros urbanos onde a Capoeira existia desde a época colonial.
Porém, por ocasião da repressão aos capoeiras, sofreu uma baixa. A
sua especificidade é que, diferente de Salvador, deixa de existir no
início do século XX. A Capoeira de Pernambuco teve um vazio - do
início do século passado até o final da década de sessenta - quando
Marcondes Luiz - o Mestre Pirajá - que tinha passado um tempo em
Salvador praticando Capoeira, de volta a Recife, decide dar início a um
A Capoeira e os Mestres
30
trabalho de retornar e integrar a prática da Capoeira àquela cidade.
Essa história é contada pelos mestres de Pernambuco, com quem tive
contato. O que também nos chamou a atenção para nos guiar até
Recife foi o discurso propalado por capoeiristas pernambucanos de que
a Capoeira teria nascido em Pernambuco.
uma produção discursiva elaborada para legitimar essa idéia
que se contrapõe à de que a Capoeira é da Bahia. É evidente que não
é por acaso que histórias e memórias são construídas e para isso,
recorre-se ao período do Brasil Colônia. Portanto, torna-se oportuno
registrar aqui a fala de Mestre Americano.
(...) a Capoeira nasceu aqui. Depois daqui ela foi pra
Bahia, da Bahia, porque a Bahia é muito rica. Ai pronto
implantou (...) porque tem gringo. Bahia não tem
nada a ver não. Capoeira foi daqui de Pernambuco.
Quilombo dos Palmares não era capitania de Pernambuco?
E a Capoeira era de do Quilombo. A Capoeira não veio
de lá de fora. Ela foi daqui pra lá. (Mestre Americano
15
).
Contrariando o discurso dos capoeiristas baianos, e configurando
disputa, a fala do Mestre menciona o Quilombo de Palmares como o
lugar onde a Capoeira teria se originado. Na época, o Quilombo
pertencia à capitania de Pernambuco. Essa história, contada e
recontada por mestres pernambucanos, se propaga no imaginário dos
capoeiristas. A esse respeito, a historiografia sobre Capoeira diz não
haver indícios que provem a versão de que a Capoeira fora criada nos
Quilombos.
Quando o Mestre Americano explica o fato de a Capoeira, numa
época determinada, ter se desenvolvido em Salvador em detrimento
de Recife, no tom de sua fala, percebe-se sutilmente a rivalidade entre
15
Mestre Americano é Carlos Fortunato da Silva (1964). Nascido em Igarassu
PE. Reside em Recife e desenvolve o trabalho com Capoeira junto ao Projeto Daruê
Malungo.
A Capoeira e os Mestres
31
Bahia e Pernambuco. Bahia é muito rica, diz o mestre. pronto,
implantou. Porque tem gringo. Aqui estamos nos referindo a sua
história mais recente.
Desvendar por que riqueza e gringo teriam uma importância na
implantação da Capoeira na Bahia, na visão do mestre, supõe uma
imagem da riqueza associada aos atrativos culturais, à diversidade e
singularidade que fazem com que a Bahia (e Bahia aqui é Salvador)
exerça uma atração forte para o turismo, portanto, para a presença de
gringos. No entanto, quando se percorre a história e a vida cultural de
Pernambuco, de Recife, percebemos o quanto de riqueza essa terra
oferece. Com efeito, a justificativa do mestre torna-se simplória,
limitada.
Para finalizar os motivos que nos levaram a escolher Recife,
apontamos a relação entre a Capoeira e o Frevo. A ginga movimento
básico da Capoeira - transforma-se no passo do frevo. Como tive
referências de Mestres de Capoeira localizados em Olinda,
aproveitando a proximidade entre esta e a capital pernambucana, foi
oportuno procurá-los.
Com vistas a considerar o fato de morar numa cidade onde a
Capoeira é uma realidade, por si, já justifica a escolha de Natal.
Considerando as singularidades da Capoeira em cada lugar,
observando o contexto histórico e a situação em que ela se encontra,
essa cidade é um parâmetro para tantas outras; isso pelo fato de que
a sua chegada em Natal coincide com o mesmo período em que ela se
torna presente em outras cidades do país.
A especificidade, com relação às cidades que foram citadas, é a
de que em terra potiguar, conforme os registros orais obtidos junto a
mestres de Capoeira de Natal, sua prática era inexistente até início dos
anos sessenta, período em que situamos o processo de expansão da
Capoeira pelo país.
A Capoeira e os Mestres
32
Para contemplar o nosso objeto numa dimensão ampla,
abrangendo as diversidades de um país como o Brasil; com suas
particularidades regionais e locais, fizemos escolhas, muito embora
uma inquietação se fizesse presente: o que poderíamos fazer para
ampliar o universo com diferentes sotaques? A idéia seria aproveitar
os eventos regulares de caráter nacional e internacional, promovidos
por grupos, associações e fundações de Capoeira, realizados em Natal
ou em cidades mais próximas; um momento oportuno para encontrar
mestres que atuam em diferentes estados e países.
Para as reflexões pretendidas, a intenção foi de trabalhar com
material relevante ao desenvolvimento do estudo. A pesquisa envolve
um levantamento de dados que possibilitam compreender:
1. As classificações, hierarquias, códigos, rituais e relações de
poder entre os mestres. Como são instituídos, que novas
tramas sociais o estabelecidas e como os diversos
segmentos que compõem o campo da Capoeira (mestres,
contramestres, professores, instrutores, alunos) se situam
diante da realidade social construída.
2. A criação do título de mestre, como se a construção
social do mestre de Capoeira e o seu lugar na Capoeira.
3. O que representa para o mestre de Capoeira a
profissionalização dessa prática, compreendida por alguns,
como uma prática cultural e por outros como uma prática
esportiva; ou como uma prática cultural e esportiva.
4. As percepções dos mestres diante das mudanças mais
gerais ocorridas com a Capoeira.
Quando decidimos compreender os novos significados que a
Capoeira assume, numa dinâmica de posicionamento entre os
mestres, o que nos impõe de imediato é descobrir uma estratégia que
A Capoeira e os Mestres
33
nos permita dar conta do que estamos propondo. Segue-se daí as
nossas escolhas com o que nos foi possível trabalhar.
Pesquisamos em jornais e revistas, principalmente as de
Capoeira; documentários, informações vinculadas à Internet.
Utilizamos as composições musicais, presença imprescindível na
Capoeira. O negro, a Capoeira, o mestre e o grupo são alguns dos
temas presentes nas cantigas entoadas nas rodas.
Para construir um quadro de análise sobre a Capoeira,
trabalhamos com a revisão da literatura existente. São as pesquisas
produzidas pela academia, as obras elaboradas por capoeiristas; para
ver e ouvir, o trabalho de campo. A observação direta e as entrevistas
têm um lugar especial. O trabalho de campo, através da observação
direta, aconteceu nos lugares onde os capoeiristas marcam presença.
Através da observação direta, foram vistas as formas exteriores
das mudanças ocorridas com a Capoeira e como os mestres se
localizam e se comportam no novo cenário. A participação em eventos
promovidos e organizados pelos grupos de Capoeira como os
batizados, troca de cordas e formatura; os encontros de caráter
nacional e internacional; as rodas de Capoeira; as competições
esportivas em que a Capoeira participa isolada ou em conjunto com
outras modalidades, como é o caso do JERNS Jogos Escolares do Rio
Grande do Norte – foram relevantes no processo de observação.
Com as entrevistas - instrumento privilegiado para a obtenção
de dados da pesquisa - a intenção foi alcançar as informações
necessárias para o que nos propusemos atingir. Na compreensão de
que o resultado de uma pesquisa de campo depende da relação
pesquisador/pesquisado, optamos por estabelecer com os Mestres de
Capoeira uma relação dialógica, de confiança, na intenção de construir
uma análise com o que for possível ver e ouvir deles.
A Capoeira e os Mestres
34
Para as entrevistas, escolhemos os mestres representativos que
atuam na Capoeira. São os mestres antigos, reconhecidos com
admiração e orgulho como os velhos mestres de Capoeira, e os
mestres novos. Além dos mestres, foram ouvidos os discípulos dos
mestres que ainda não têm o título de mestre. Os mais próximos na
hierarquia - contramestres, professor, trenel
16
.
Diante da tarefa de escolher os mestres pesquisados, uma das
preocupações foi a de não somente ter como interlocutores aqueles
que estão presentes na maioria das pesquisas - as grandes referências
- aqueles que têm um lugar de honra; mas também fazer aparecer os
mestres que têm uma trajetória dedicada à Capoeira e que são poucos
conhecidos. A intenção foi de não ter uma visão cristalizada; limitada
a um conjunto de atores e agentes, que por reconhecimento social
lhes é dado mais poder de uma fala autorizativa sobre a Capoeira. A
idéia foi ir além; inclusive porque não temos uma visão idealizada do
campo como se houvesse uma homogeneidade e não houvesse
hierarquia. Ao contrário, uma imersão no campo percebe-se que existe
hierarquia, lugar social, interesses, disputas.
Para a pesquisa de campo, a estratégia adotada foi de realizá-la
em períodos descontínuos; porque desde o primeiro ano do doutorado
(2003) as oportunidades de viagens que surgiram (encontros
científicos, carnaval, entre outros) eram também momentos de entrar
em campo, seja realizando entrevistas com os mestres ou tomando
notas.
As entrevistas foram realizadas com 18 mestres e 02 não
mestres. Caracterizando o perfil dos entrevistados, quanto ao sexo, à
16
Trenel é comum na Capoeira, especialmente, na Capoeira Angola, o mestre ter
entre os seus alunos o trenel. Ele é aquele que tem condição de auxiliar o mestre
no ensino da Capoeira. Recordando o dia em que chegou para ser aluno do Mestre
Pastinha, contou-me o Mestre João Pequeno: o mestre me botou logo como trenel.
Porque eu era capoeirista. Explica o mestre: trenel é aquela pessoa encarregada de treinar
os alunos novos que vão chegando
.
A Capoeira e os Mestres
35
escolaridade, à etnia, á faixa etária, à Capoeira a que está vinculado,
de onde são e se vivem da Capoeira, temos um quadro: todos são do
sexo masculino; com relação à escolaridade, 04 concluíram o ensino
superior (02 formados em Educação Física, 01 em Letras e 01 em
Medicina), 06 concluíram o ensino médio, 04 completaram o ensino
fundamental, 04 não completaram o ensino fundamental e 02 deles se
declararam analfabetos. Quanto à etnia, temos 15 negros e 05
brancos. No tocante a faixa etária, temos 05 que se encontram entre
30 e 40 anos, 06 deles estão entre os 40 e 50 anos, e acima de 50
anos, tivemos 09 mestres. Dos entrevistados, 50% disseram trabalhar
com Capoeira Angola. Os demais se identificaram com a Capoeira
Regional e com a Capoeira Contemporânea. Quanto ao lugar onde
residem os entrevistados, 50% em Salvador; os demais estão
distribuídos entre Natal, Recife, Olinda, Aracaju e São Paulo. A
maioria dos entrevistados vive de Capoeira. Dois não trabalham com
Capoeira e dois têm outro trabalho além da Capoeira.
Para compreendermos as percepções dos mestres sobre as
modificações materiais e simbólicas que têm acontecido com a
Capoeira, especialmente, a posição e o papel deles nesse espaço
social, foram consideradas a idade, a escolaridade, a condição em que
vivem; enfim, os valores e modos de vida.
Antes de finalizar essas considerações iniciais, com a
apresentação da estrutura da tese, decidimos descrever algumas
surpresas reveladas no processo da pesquisa. São três: a do mestre
que não quer ser mais chamado de mestre, a do mestre que faz
questão de ser chamado de mestre, muito embora seus pares não o
reconheçam porque ele não trabalha e nunca deu aula de Capoeira. A
última situação é a de um mestre que me cobrou pela entrevista.
A Capoeira e os Mestres
36
Gostaria de começar com as investidas para entrevistar um
Mestre de Olinda conhecido como Mestre Sapo
17
. Ele não quer mais ser
chamado de Mestre. Em 2003 fui até a sua academia para fazer o
primeiro contato e agendar uma entrevista. A pintura de uma zebra no
muro do espaço sinalizava que o Mestre é de Capoeira Angola. A zebra
simboliza a origem da Capoeira. Para os angoleiros, ela tem relação
com o n’golo (dança da zebra) - uma prática cultural de Angola. No
local onde acontece a Capoeira, havia uma turma de jovens dançando
Cavalo-Marinho. Um deles me atendeu. Ao me apresentar, perguntei
pelo Mestre, o rapaz informou que iria saber se ele podia me receber.
Não pôde. Ele pediu para que eu voltasse outro dia. Peguei o número
do telefone do Mestre para marcar um encontro. Nesse momento, tive
a primeira surpresa no campo: é que ao escrever o nome “Mestre”, de
imediato o rapaz disse: não, Mestre não porque ele não quer que o
chame mais de Mestre. Tal fato aguçou a minha curiosidade e a
determinação de encontrá-lo.
O encontro foi um ano depois. Novamente fui pega de surpresa.
Sapo não permitiu que eu gravasse a entrevista. Ele não aceita que
façam filmagens, tirem fotos da sua academia e gravem a sua fala.
Perguntei por que ele não permitia a gravação da entrevista. Disse-me
que não confia. E assim afirmou: quem me garante que você não
passe essa fita para outros mestres. Expliquei por que seria
importante a gravação, mas o mesmo se recusou. Diante da negativa,
perguntei se podia tomar nota no caderno do que ele me falava. O
mesmo autorizou.
A segunda situação, a do Mestre que faz questão de ser
chamado de mestre, muito embora alguns de seus contemporâneos
17
Sapo Nascido em Olinda no ano de 1957. Seu nome de batismo Humberto F.
Mendonça. É uma referência na Capoeira de Pernambuco. Capoeira Angola Mãe é o
nome do seu Grupo que fica em Olinda-PE.
A Capoeira e os Mestres
37
não o reconheça. Nesse caso, ele não é o único. Ser Mestre de
Capoeira, não é para qualquer um. Essa é a visão dos descendentes
diretos dos Mestres Pastinha e Bimba. Para ser Mestre precisa ter
condições, e isso significa o capoeirista ter passado por um longo
processo de aprendizado, um conhecimento produzido pelo exercício
da prática capoeirística passada pelo Mestre.
Na concepção dos Mestres com os quais tive contato, para ser
Mestre é preciso aprender a movimentação, cantar, tocar os
instrumentos, conhecer a história da Capoeira. No campo capoeirístico
é preciso acumular uma quantidade de capital cultural. Além desse
conhecimento, precisa dar aulas de Capoeira. Diferentemente da
situação anterior, o Mestre, pelo fato de eu não ter escrito o nome
“mestre” anterior ao seu nome, pegou a agenda da minha mão e
escreveu. Esse gesto podia passar despercebido se antes eu não
tivesse informações para pensar que aquela ação tinha um significado
que passa pela posse do título de “mestre”, e que por sua vez, tem
relação com reconhecimento, legitimação, valorização, status e disputa
no campo capoeirístico.
Não importa se os Mestres de Salvador reconheçam ou não a
titulação destes. Ter sido aluno e bem próximo do Mestre Pastinha já é
suficiente para garantir o título, mesmo que o reconhecimento não
seja unânime, isso porque a quantidade de capital cultural acumulada
na Capoeira, nesse caso, não teve peso para a definição do ser
mestre.
Por último, descrevo a terceira surpresa revelada no processo da
pesquisa: o encontro com o Mestre Curió, que cobrou pela entrevista.
Um dos mestres que não podia deixar de encontrar. Soube da sua
existência no documentário: Pastinha, uma vida pela Capoeira,
produzido em 1999. É difícil para um pesquisador desse campo não ter
A Capoeira e os Mestres
38
curiosidade em conhecê-lo. Um mestre que a todo instante enfatiza a
firmeza das suas convicções e posturas com relação à Capoeira, que
diz não ter medo de falar o que pensa. A indignação com a
universidade e com o Brasil por não tratar a Capoeira como ela de fato
merece está expressa no seu tom de voz.
O trecho que segue é a fala do Mestre, no documentário:
Eu fui a um debate na universidade que eles me disseram
que o camarada para ensinar uma capoeira na
universidade tinha de ter curso de Educação Física e tinha
de ser universitário e eu debati porque eles dizem que eu
sou analfabeto. Eu sou analfabeto. Posso ser na leitura,
mas na Capoeira, quando vier discutir comigo, se segure.
A gente, para conseguir alguma coisa, tem que sair daqui
(Mestre Curió).
Em 11 de junho de 2005, com os endereços das academias e
escolas de Capoeira localizadas no Pelourinho, em mãos, a prioridade
foi de estabelecer o primeiro contato com o Mestre Curió. Dirijo-me a
Rua Gregório de Matos, onde fica a Escola de Capoeira Angola Irmãos
Gêmeos - a escola do Mestre. Ao chegar ao portão de acesso às
escadas que me conduziriam ao seu endereço, uma placa de aviso com
os horários das aulas chama atenção. É que ali também uma mestra
leciona Capoeira, a Mestra Jararaca. Eu tinha ouvido falar a seu
respeito. O espaço estava fechado. Ao checar o horário e as
informações do quadro de aviso, resolvi esperar; pouco tempo faltava
para começar sua aula. Não tardou, chegam os dois. O mestre pede
para que eu suba, e o acompanhe até uma sala que fica vizinha ao
salão onde a Capoeira acontece.
Penso que essa cena deve ter se repetido na vida do Mestre.
Outras pessoas tiveram ali na condição de pesquisadoras. O que me
A Capoeira e os Mestres
39
levaria até foi à primeira pergunta que o mestre fez. Eu me
apresento e falo da pesquisa que estou fazendo sobre Capoeira. Em
seguida, ele pergunta que Capoeira é essa que eu estou estudando.
Diz o mestre: Capoeira Regional não é cultura, fora. Para ele, não
tem nenhuma relação com a Cultura Popular. Agora a capoeira Angola,
essa sim. Esse começo de conversa deu-se dessa forma porque, no
momento da minha apresentação, sinalizo que pretendo estudar os
Mestres de Capoeira, entendendo-a como uma manifestação da
Cultura Popular.
Em seguida, começo a ouvir um discurso meio ressentido,
reafirmando a fala dele no documentário, a saber: a Universidade o
preocupava porque não abre as portas para Mestres como ele que têm
mais de meio século de experiência; a Educação Física usa a Capoeira
sem dar nada em troca, pois eles, os mestres legítimos detentores de
um saber não estão na universidade. Esse era o seu discurso.
Nesse momento, para não esquecer as palavras ditas pelo
Mestre pego o lápis e começo a tomar nota. De imediato, ele pergunta
o que você está escrevendo aí? Não podia fazer aquilo. Parei e fiquei
atenta a sua fala que me parecia um desabafo. Além de mim, nessa
ocasião, estavam presentes duas pessoas: um jovem Mestre e a
Mestra Jararaca. Ambos ouviam a palavra do Mestre com dedicação e
faziam gestos de concordância com o que ele dizia.
Ao apresentar o jovem Mestre, que no dia seguinte estava
viajando a Paris para trabalhar com Capoeira, o Mestre Curió disse:
esse é um jovem mestre. Capoeira não na idade. Essa fala me
chamou a atenção porque esse mestre tem o perfil que se aproxima
dos mestres que assumem uma posição crítica com relação aos
mestres jovens. No campo capoeirístico é notória a queixa proveniente
de mestres não jovens endereçada à formação de mestres jovens.
A Capoeira e os Mestres
40
Na Capoeira, a relação entre tempo e formação do mestre é uma
questão presente, e densa. Essa discussão será oportunamente
desenvolvida no capítulo três.
Continuando sua fala, o Mestre disse que lá – em sua academia -
iam pessoas de fora. Especificou: estrangeiros pagos pelas
universidades, para conversar com eles. O que a Capoeira ganha com
isso? Insistia o Mestre. Em seguida, falou que eu não ia ter controle
quando fosse entregar a tese na universidade porque pessoas podiam
usar a fala dele. Posteriormente, ele comentou sobre direitos autorais.
Ressentido, disse que teses são publicadas à custa dele e que ele não
ganha nada em troca.
Após ouvi-lo, questionei a possibilidade de encontrá-lo em outro
momento para uma conversa. Ao comunicar-lhe que se tratava de
uma entrevista, ele disse: pra gravar entrevista, pagando. Se eu
quisesse 45 minutos, eram 400 reais, mas podia negociar. Sua fala
pegou-me de surpresa. Como era sexta-feira, dia de roda, convidou-
me para eu passar à noite. Nesse mesmo horário, outra roda de
Capoeira acontecia no Pelourinho: a roda organizada pela Associação
de Capoeira Angola. Logo cedo, os mestres da Associação me
chamaram para eu assistir a roda. Decidi conhecer a Roda de Capoeira
do Mestre Curió.
Na semana seguinte estive com o Mestre para dizer que não
podia pagar pela entrevista. Lá, encontrei com a Mestra Jararaca e
com o Mestre Pé de Chumbo, discípulo do Mestre João Pequeno.
Depois que fiz o comunicado, o Mestre justificou a cobrança pela
entrevista. Disse que vivia da Capoeira, precisa pagar as despesas do
espaço. Novamente falou que a universidade não abre as portas para
eles. Indignado, comentou: como pode esse pessoal de Educação
Física ter seis meses de aula de Capoeira e assumir aula na
universidade! Para o Mestre Curió os verdadeiros Mestres não são
A Capoeira e os Mestres
41
valorizados, não têm o reconhecimento que merecem. Cita os mestres
que morreram na miséria. O Mestre mencionou uma pessoa da
Inglaterra que teria lançado um livro contendo falas dele. As pessoas
estão aí ganhando dinheiro com a gente e a gente só sendo usado.
O que pude entender do que ouvia é que esses mestres se
sentem explorados. Alguns deles não concordam com as normas da
universidade que, para dar aula de Capoeira, é preciso ter a
escolarização exigida. Os mestres, não todos, não vêem legitimidade
para outros que não sejam eles - a exemplo do Mestre Curió - com a
experiência de tempo assumir um trabalho com Capoeira.
Dias depois, quando estava tomando notas das teses e
dissertações existentes no acervo do historiador Frede Abreu,
encontrei uma dissertação defendida em 2002 pelo Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia,
intitulada Capoeira Angola como treinamento para o ator. Esta teve
como campo empírico a Escola Capoeira Angola Irmãos Gêmeos, do
mestre Curió.
Para finalizar a introdução, cabe descrever aqui a estrutura da
tese. Trabalhamos três capítulos. “A trajetória da Capoeira: entre a
tradição e a modernização”; “Os deslocamentos sócio-culturais da
Capoeira; “A construção social do Mestre de Capoeira”.
No primeiro capítulo, situaremos a Capoeira na história. Sem
grandes pretensões e de forma sucinta, apresentaremos aspectos da
origem da Capoeira. Em seguida, trataremos do processo histórico da
Capoeira, sua classificação e escolas, dando destaque para os Mestres:
Pastinha e Bimba na construção da história da Capoeira.
No segundo capítulo, trataremos da Capoeira com atenção
especial aos anos setenta em diante; contexto em que os
deslocamentos quanto ao espaço, ao discurso, aos novos segmentos e
A Capoeira e os Mestres
42
novas finalidades vão se dando, afirmando as mudanças materiais e
simbólicas. Nesse capítulo, também dedicaremos atenção à
aproximação dos aportes teóricos da Sociologia de Pierre Bourdieu:
campo social, hábitus e capital, com o nosso objeto empírico.
No terceiro capítulo, abordaremos a construção social do Mestre
de Capoeira, enfatizando a idéia do mestre de Capoeira como Mestre
da Cultura Popular, destacando a hipótese sobre a sua nese, a
formação do Mestre em diferentes escolas; o que é ser mestre na
visão dos Mestres; a relação Mestres antigos e novos Mestres; e a
representação da Capoeira na vida do Mestre.
CAPÍTULO I - A TRAJETÓRIA DA CAPOEIRA: ENTRE A
TRADIÇÃO E A MODERNIZAÇÃO
Na diversidade da capoeiragem reside sua
força e beleza. Nenhum estilo poderá
representar Capoeira como um todo e
nenhum mestre poderá ser considerado o
dono da capoeiragem. Se assim fosse, a
Capoeira seria muito chata. Capoeira é o
conjunto de todos nós, com nossas
A Capoeira e os Mestres
43
interpretações, verdades e diferenças (Mestre
Acordeon, Revista Capoeira, 1999).
Impossível falar de Capoeira e não perceber a dimensão do
tempo como uma referência recorrente nas narrativas. Tempo para
contar o que passou, para avaliar o que existe e para especular o que
vem depois. Tempo para dizer que em determinada época, a Capoeira
era de um jeito, se apresentava de tal forma, tinha um sentido de ser,
de existir. O tempo da Capoeira no Brasil Colonial é um, que se
distanciou ao do culo XIX, e que, não é o mesmo da Capoeira do
século seguinte, de agora, e que não será o de amanhã.
Os fatos, os nomes, as lembranças, as histórias de ontem e de
hoje o que se viu e o que se ouviu anuncia: Capoeira que,
exatamente, um século era crime a polícia prendia quem a
praticasse - hoje é considerada símbolo de cultura; faz parte da
identidade brasileira. Tornou-se produto brasileiro de exportação. Na
visão dos capoeiristas, representa diversão e trabalho, cultura e
esporte, terapia e filosofia de vida.
Quem poderia imaginar, nas primeiras décadas do século XX,
que a Capoeira pudesse chegar a ocupar o lugar que tem hoje? De
repudiada, perseguida, proibida e reprimida, como aconteceu com
práticas da religiosidade africana as casas de Candomblé na Bahia,
as de Tambor de Mina no Maranhão, as casas de Xangô em Recife - e,
manifestações populares, como o Maracatu, o Samba, o Tambor de
Crioula - herança da cultura africana - passa a ser aceita e construída
como um dos ícones da identidade nacional; e motivo de orgulho.
Em 1953 o presidente Getúlio Vargas nomeia a Capoeira de
Esporte Nacional Brasileiro. E, tempo depois, entre tantas
A Capoeira e os Mestres
44
representações atribuídas a ela, passa a ser modalidade esportiva em
instituições escolares e produto de consumo turístico.
O estudo com os mestres de Capoeira sugere dar uma atenção
especial aos fatos ocorridos a partir dos anos trinta do século XX. Isto
porque este momento ancora muitas narrativas sobre a Capoeira. No
entanto, sem grandes pretensões e de forma um tanto sucinta,
apontamos alguns momentos da construção e emergência da
Capoeira. Para isso, é necessário recuar no tempo. Sendo assim,
situemo-nos, de início, na História do Brasil Colônia, período em que
os protagonistas da Capoeira viviam como escravos.
Para começar, examinemos, brevemente, o debate em torno da
sua origem, um dos caminhos que nos leva a conhecer parte de sua
história. Em seguida, acompanharemos os caminhos, por onde a
Capoeira percorreu - do código de repressão até a sua entrada numa
fase que vou chamar de modernidade. Nesse contexto, o destaque
consiste em dois estilos de Capoeira que passaram a existir a partir
dos anos 30a Capoeira Angola e a Capoeira Regional - bem como as
duas maiores referências da Capoeira - os consagrados mestres Bimba
e Pastinha.
1.1. A ORIGEM DA CAPOEIRA: O DEBATE CONTINUA ...
quatro séculos a alma africana tem sido o motor
da inquietação, da resistência, da transgressão.
(...) O negro sempre quis fugir da opressão fazendo
história, ganhando o mundo com estilo. É assim que
a alma sobrevive em todo novo continente (...) Mas
é o ariano que ignora o africano, ou é o africano
que ignora o ariano. Ao sul o africano fez nascer o
maracatu, o afoxé, o choro, o samba, o baião, o
coco, a embolada entre outros os Jaksons e os
Ferreiras, os Gonzagas e os Pexinguinhas ...
(Mundo Livre SA, CD Carnaval na Obra, 1998)
A Capoeira e os Mestres
45
A respeito da origem da Capoeira, temos um problema. As
perspectivas de análise têm, na sua maioria, expressado a dificuldade
de precisar uma data, um local e uma autoria. Quando tudo começou?
A Capoeira veio da África ou a sua gênese é brasileira? Quem teria
feito os primeiros movimentos? A respeito dessa questão,
encontramos no campo capoeirístico duas linhas de pensamento. Uma,
diz respeito à criação brasileira; a outra, à criação africana.
Praticantes e estudiosos (Reis, 1993; Vieira, 1990; Soares,
1994 e Pires, 1996) concordam com a hipótese de que a Capoeira foi
criada no Brasil, pelos negros bantos, naturais de Angola. Entre os
séculos XVI e XIX, O Brasil recebeu milhões de negros escravizados,
vindos de diversas regiões da África para alimentar o sistema colonial.
A escravidão era uma prática social presente na África.
Destinados a cruzar o Atlântico para morar em terras distantes, nada
lhes era permitido levar. A sua cultura, impressa no corpo, na alma, na
memória era para ser apagada, esquecida, conforme lembra uma cena
do documentário Atlântico Negro, na rota dos Orixás: esta gira em
torno de voltas que mulheres e homens eram obrigados a dar ao redor
de uma árvore. Era um procedimento realizado antes do embarque.
Uma forma de os responsáveis pela migração forçada de homens e
mulheres se prevenirem de pragas ou maldições proferidas pela boca
daqueles que eram obrigados a deixar sua terra, sem possibilidades de
retorno.
Todo escravo que ia ser embarcado era obrigado a dar
voltas em torno da árvore do esquecimento. Os escravos
homens deviam dar nove voltas em torno dela. As
mulheres sete voltas. Depois disso supunha-se que os
escravos perdiam a memória e esqueciam seu passado,
A Capoeira e os Mestres
46
suas origens e sua identidade cultural (Documentário
Atlântico Negro, na rota dos Orixás, 1998).
O fato é que, seja no Brasil, em Cuba, Venezuela, Caribe ou em
qualquer outra terra, o esquecimento do seu passado, da sua
memória, da sua história, evidentemente, não acontecia. Quando
chegavam nas novas e estranhas terras, em meio aos obstáculos,
esses povos recriavam seus traços, suas marcas identitárias, sua
cultura. Era, portanto, uma maneira de imprimir significado e sentido à
nova realidade a que estavam submetidos. Com eles, para vieram
os ritmos, as canções, as crenças, as idéias e as formas de se
relacionar com a vida. Não é à toa que, no Brasil, a presença africana
é forte na dança, na música, na religiosidade, na comida, no
vocabulário e nos gestos de uma parcela significativa da sociedade
brasileira.
Com efeito, a história da Capoeira se insere nesse contexto,
possivelmente, como uma mistura de danças, lutas e instrumentos
musicais de diferentes culturas africanas, conforme avalia Nestor
Capoeira (1981) em O pequeno manual do jogador de capoeira. Na
sua concepção, o Brasil foi o palco onde essa síntese se deu.
A tese da brasilidade da Capoeira não encontra unanimidade no
campo capoeirístico. Os mestres antigos, principalmente, os adeptos
da Capoeira Angola pensam o contrário dessa versão. Afirmam que a
Capoeira é africana. Eles se apóiam no argumento de na África existir
danças, rituais com características semelhantes à Capoeira, como o
n’golo Jogo da Zebra. Câmara Cascudo (1993) registrou essa prática
no Dicionário do Folclore Brasileiro, como uma luta que fazia parte de
um ritual em que os negros lutavam e os vencedores tinham como
prêmio meninas da tribo que ficavam moças, podendo casar sem
pagar dote. Antigos mestres angoleiros, discípulos do Mestre Pastinha,
A Capoeira e os Mestres
47
como João Grande e João Pequeno e descendentes desses mestres
como o Mestre Moraes, entre outros, têm essa compreensão,
afirmando a originalidade africana da Capoeira.
Como apontamos mais acima, a versão defendida pelos mestres
antigos diverge do que pensam os novos mestres; especialmente
aqueles que têm feito da Capoeira um tema privilegiado de estudo.
Luiz Renato Vieira, doutor em Sociologia, mestre de Capoeira do grupo
Beribazu de Brasília e um dos mestres pioneiro a se dedicar ao estudo
da Capoeira, é um deles. Ele afirma que a Capoeira surgiu no Brasil
como arma de resistência de um povo que trouxe de sua terra natal
uma identidade cultural, e que, por ocasião da situação de opressão
em que vivia, de seus movimentos corporais, cria técnicas de ataque e
defesa. (VIEIRA, 1998).
Nesse sentido, é útil fazer menção a Técnicas e movimentos
corporais, de Marcel Mauss, publicado em 1936. Nesse trabalho
dedicado ao corpo, Mauss assinala que qualquer movimento humano é
uma técnica. Possui tradição e eficácia. É gesto criado pelo homem
que transmite aos seus descendentes para atender às necessidades
materiais e simbólicas. Persistindo, torna-se eficaz. Possui significados
e sentido que orientam as ações de um grupo específico.
Essa é uma questão merecedora de atenção. Tomar como dado
as afirmações do autor inviabiliza uma compreensão maior do
problema. Faltam informações precisas para afirmar onde, de fato, a
Capoeira surgiu. Ao expressar que a Capoeira surgiu no Brasil, não
estaria VIEIRA dando uma importância decisiva aos discursos
produzidos por intelectuais, no que se refere à questão sobre a
construção de uma identidade nacional?
No início do século XX, o samba e o carnaval são tomados e
criados como símbolo de identificação da nacionalidade e passam a
fazer parte da cultura brasileira. Mais à frente, o mesmo acontece com
A Capoeira e os Mestres
48
outras práticas culturais inseridas na sociedade brasileira, como foi o
caso da Capoeira.
A questão referente ao fato de a Capoeira ter surgido no Brasil
ou na África não está resolvida. Dizer que a Capoeira foi criada no
Brasil porque a maioria dos autores concorda com essa tese, como faz
VIEIRA, é posicionamento insustentável. Portanto, vale sinalizar
algumas indagações: as pesquisas foram satisfatórias para
fundamentar tal conclusão? Quando e onde foram realizadas? As
fontes foram suficientes para tratar do problema? Se nas pesquisas
não encontraram lutas semelhantes à Capoeira fora do Brasil, não
poderiam elas terem existido e na época das pesquisas não terem sido
encontradas
18
, devido a repressão às práticas culturais negras, como
aconteceu no Brasil?
1.2. A NECESSIDADE É A MÃE DA INVENÇÃO
O mesmo que dança o
samba se preciso, vai à
luta, capoeira.
(Marcos Vale, 1983)
Práticas culturais próprias de um tempo, ocorridas em outros
espaços e épocas nunca são as mesmas. Ora, novas situações
engendram novas experiências. A opressão vivida pelo negro
18
Algumas manifestações da Cultura Popular passam por um processo de
desaparecimento e reaparecimento.
A Capoeira e os Mestres
49
possibilitou a ressignifição do uso de seus movimentos corporais.
Antes usado para um fim ritualístico, em terras distantes, passa a ser
arma de defesa. A experiência nova é compreensiva. Poderia ela ter
convivido com a anterior (o n’golo)? Não resta dúvida; a resposta é
negativa. Para compreender a questão é indispensável saber que a
condição do africano no Brasil era outra. Portanto, não cabia o n’golo.
Em terras brasileiras, traços da ancestralidade africana passaram
por processos de adaptação. A movimentação corporal que o negro
executava em rituais na África não se perdeu porque foi para outro
continente, mesmo que a prática ritual não mais se fazia presente. Ela
tem outros sentidos e intenções, outros significados. Sendo assim,
uma questão se coloca: a ressignificação do uso dos movimentos
antes ritualístico, agora de defesa - ocorrido no Brasil, é suficiente
para firmar o caráter de nacionalidade atribuído à Capoeira, se o negro
trouxe consigo a manifestação dessa linguagem em seu corpo? É
importante compreender por que o autor afirma que a Capoeira é
brasileira e perceber de onde parte esse discurso.
As análises sobre a origem da Capoeira têm dificuldade de
precisar data, local e autoria. Em A capoeira escrava e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), o historiador Carlos
Eugênio Líbano Soares explicita o nascimento das versões produzidas
sobre a possibilidade de a Capoeira ser brasileira e ser africana. A
polêmica é notadamente conhecida no campo da Capoeira e entre
pesquisadores.
Para o historiador, a questão da nacionalidade brasileira
encontra-se no pensamento de Plácido de Abreu, um imigrante
português que em 1886, construiu a versão da origem nacional.
Convergindo numa direção oposta à versão da nacionalidade brasileira,
tem a versão de Hermeto Lima, que em 1925 escreveu um artigo
intitulado Os capoeiras, na Revista da Semana, e dizia os africanos
A Capoeira e os Mestres
50
que para aqui vieram escravizados e que a usavam como esporte,
como hoje se usa o boxe, jogavam-se ao som do tambor(LIMA apud
SOARES, 2004, p. 41). Como vemos, a questão sobre a origem da
Capoeira permanece sem solução.
1.3. CONTANDO HISTÓRIAS DE CAPOEIRA
A Capoeira tem séculos de história, e muitas foram as mudanças
ocorridas com ela. Tomando como referência o estudo de Reis (1993),
Vieira (1998), Soares (2004), Karash (2000), entre outros, a Capoeira,
inicialmente foi arma dos negros escravizados. Possivelmente, era
praticada em senzalas e quilombos. Pesquisas sobre a Capoeira no
século XIX, fazem alusão de que ela era praticada, especialmente, nas
ruas dos centros urbanos do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luiz
e Pará. Nesse período, a Capoeira era considerada um problema de
segurança pública. No Rio de Janeiro não se restringia apenas a negros
e pobres, estendendo-se também aos brancos de diferentes classes e
imigrantes estrangeiros. Contudo, o número desses capoeiras era uma
presença menos significativa. Com o advento da República, a Capoeira
é marcada por perseguição e repressão. O Código Penal Brasileiro de
11 de outubro de 1890 associa a prática da Capoeira à criminalidade.
O decreto nº. 487 do digo estabeleceu no capítulo XIII que tratava
dos “Vadios e Capoeiras”:
Art. 402 Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de
agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação de
capoeiragem, andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes
A Capoeira e os Mestres
51
de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens,
ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor ou algum mal:
Pena de prisão celular de dois a seis meses.
Parágrafo Único É considerada circunstância agravante
pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeças
se imporá a pena em dobro.
Em nome da defesa da ordem pública, autoridades justificavam a
repressão aos negros capoeiras, tidos como um bando de desordeiros.
Pegos em flagrante, eram presos por praticarem Capoeira. Anterior ao
código, quando a Capoeira ainda não era crime, os capoeiras eram
perseguidos. Vítimas da ação repressiva da polícia sofriam severas
punições como receber 300 açoites. Com o código, as prisões, os
trabalhos forçados, a expulsão de capoeiras do Rio de Janeiro, na
época capital Federal do país, com o desterro para a Ilha de Fernando
Noronha eram freqüentes
19
.
Durante meio século, a Capoeira permaneceu na ilegalidade,
deixando de ser crime em 1937, quando, por interesses conjunturais e
políticos, o Presidente da República - Getúlio Vargas - decide tirar a
Capoeira da ilegalidade, concedendo-lhe uma liberdade vigiada através
de normas e regras para o seu funcionamento; a saber: ser praticada
em lugar fechado, enfatizando o caráter esportivo e folclórico. “A
abordagem folclórica e ou esportiva passou a ser uma exigência oficial
a partir do governo Vargas para que as aulas de Capoeira
acontecessem” (Esteves, 2004, p. 78).
Na primeira década do século XX época em que o efeito da
repressão à Capoeira era sentido em todo território brasileiro que
respirasse Capoeira, destacou-se a produção de um fenômeno
resultado da repressão, ocorrido, particularmente, na cidade de Recife.
Trata-se do nascimento do frevo. Quando o assunto é perseguição ao
19
Ver Soares, 2004; Vieira, 1998 e Rego, 1968.
A Capoeira e os Mestres
52
capoeira, imediatamente, a minha atenção se volta para a cidade do
Recife. A relação entre as bandas de música, as maltas de capoeiras e
o nascimento do frevo é uma história singular e interessante para
contar.
1.4. DA GINGA DA CAPOEIRA AO PASSO DO FREVO
No início do ano de 2007, a cidade do Recife se preparou para
festejar o aniversário do Frevo. Oficialmente, em 09 de fevereiro esse
fenômeno que ocorreu em Pernambuco, completou 100 anos. Afinal, já
dizia uma canção de Capiba: Pernambuco tem uma dança que
nenhuma terra tem.
A primeira vez que ouvi falar da relação entre a Capoeira e o
Frevo foi em 1988, durante uma aula espetáculo ministrada por
Antônio Nóbrega. Para efeito de esclarecimento, a referência é o passo
do frevo, ou seja, a dança e não o ritmo, a música. Uma
descontinuidade ocorreu com a Capoeira, dando lugar ao Frevo. O
processo foi lento, disse Nóbrega. Dançando, ele representou em
minutos o que teria ocorrido em anos: a transformação da Capoeira
em Frevo, metamorfoseando, movimentos próprios da Capoeira. A
saber: ginga, meia lua, au, rabo de arraia se misturam a outros
movimentos até se transformar em passo, tesoura, dobradiça,
locomotiva, ferrolho, parafuso movimentos, conhecidos como passos
do frevo.
No final do século XIX e início do seguinte, durante o carnaval, à
frente das bandas marciais dos quartéis que desfilavam nas ruas de
Recife - a do Quarto (4º Batalhão) e a da Espanha (assim denominada
devido à nacionalidade do mestre) saiam os capoeiras, identificados
A Capoeira e os Mestres
53
pela literatura jornalística como uma rapaziada de valentões,
malandros ou desordeiros. Como observa Rui Duarte (1969) “Os
capoeiras adotavam uma banda marcial como a de sua preferência, e
considerava adversário quem não compartilhasse da mesma torcida”
(DUARTE,1969,p.19).
Da movimentação executada pelos capoeiras, perseguidos pelo
código penal, nasceu o passo do frevo, um legado da ginga da
Capoeira, escreveu Édison Carneiro (1975) que os passos vieram da
Capoeira, a luta com o tempo metamorfoseando-se numa única
coreografia. Efeito do digo, durante mais de meio século, a Capoeira
é silenciada em Recife.
Essa observação se evidencia na fala de um dos mestres
pernambucano:
A Capoeira de Pernambuco teve um espaço vazio do início
do século passado até os anos 69, quando nesse período
eu retornei a Recife. Mestre dei início a um trabalho de
resgate da prática da Capoeira. É por isso que hoje eu sou
considerado um ícone de Capoeira em Pernambuco.
(Mestre Pirajá)
Houve uma época em que era comum às pessoas deixar sua
cidade em busca de melhor qualidade de vida nos grandes centros
urbanos. Esse poderia ter sido o caso de Pirajá que, em 1966, com 18
anos, deixa Recife e vai residir durante quatro anos nas cidades de
Salvador e Niterói. Mas a história dele é outra. Foi levado a sair de
Recife por ocasião da Marinha. Em Salvador, divide a sua vida entre a
sua profissão e a Capoeira como forma de investimento; conhece
vários capoeiristas da Capoeira Angola, mas a aproximação maior foi
com a Capoeira do Mestre Bimba, chegando a fazer um curso com ele.
Transferido para Niterói, passa a dar aulas de Capoeira, ensinando o
que aprendeu com o Mestre Bimba.
A Capoeira e os Mestres
54
Quando do retorno de Pirajá a Recife, o título de Mestre era uma
raridade no campo capoeirístico. O contato dele com os capoeiras da
Bahia, especialmente o curso feito com o Mestre Bimba, e as aulas de
Capoeira que ministrou em Niterói, possivelmente, o teria credenciado
a dizer “retornei a Recife já Mestre”.
Ainda com relação à fala do Mestre, vale ressaltar o papel que
desempenhou na história da Capoeira de Pernambuco. Esse
reconhecimento está presente não apenas quando este fala de si. Os
capoeiras mestres que participaram da pesquisa falaram da
importância dele para a história da Capoeira. Após evidenciar algumas
considerações mais recentes, seguimos o fio do trajeto da Capoeira e
chegamos aos anos trinta.
1.5. CAPOEIRA E CAPOEIRAS
Durante o primeiro terço do século XX a Capoeira passou por
mudanças significativas. Seu universo é dividido. Duas modalidades de
Capoeira passaram a existir. Trata-se da Capoeira Angola e da
Capoeira Regional. Durante algumas décadas se ouvia falar dessas
duas expressividades de Capoeira. Hoje, encontramos capoeiristas se
referindo a uma outra Capoeira que o se identifica com a Regional e
nem com a Angola, embora se utilize de elementos das duas. É a
chamada Capoeira Contemporânea. Vejamos o que diz o Mestre Caio
dos Anjos
20
a respeito dessa questão:
20
Caio dos Anjos reside em Natal. Tem 37 anos. Desses, mais de 20 anos é
dedicado a Capoeira. Identifica-se com a Capoeira Angola. É responsável
pelogrupo: Capoeira Arte e Vida. A entrevista foi concedida em Natal no dia 02 de
abril de 2005.
A Capoeira e os Mestres
55
Hoje em dia você chega numa roda e você vai encontrar
um pessoal dizendo que é regional e com a bateria
completa de angola. Você vai encontrar o pessoal
jogando, tocando até numa roda que tem bateria de
regional, tocando o bento grande de Bimba, mas na
verdade jogando o que nunca vai ser regional, com muitos
saltos (Caio dos Anjos).
A composição da bateria o conjunto de capoeiras que toca os
instrumentos - compreende um dos signos de pertencimento e
diferenciação que representa ou indica o que é ser angola e o que é
ser regional. Na compreensão do Mestre Caio, é uma contradição o
auto-reconhecimento de capoeiristas que dizem ser Regional, ou seja,
que assumem a identidade de Capoeira Regional e usam um signo de
representação da Capoeira Angola, no caso, a formação da bateria
(disposição dos instrumentos). É uma contradição também a
execução de saltos
21
numa roda em que o toque e a formação da
bateria caracterizam-se como tipicamente da Regional. Diante dessas
questões, muitos capoeiristas, por utilizarem um ou outro elemento
próprio desses tipos de Capoeira, preferem dizer que praticam uma
Capoeira Contemporânea.
1.6. CAPOEIRA ANGOLA: CADA UM É CADA UM
“O negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de
cada qual. Ninguém luta do meu jeito, mas no jeito deles.
21
Os defensores da Capoeira Regional avaliam que a presença de saltos não tem
relação com essa Capoeira, sinalizando, portanto, uma descaracterização.
A Capoeira e os Mestres
56
toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um
(...).” (Mestre Pastinha
22
)
Revelava o Mestre Pastinha (1967) ao se referir a maneira como
a Capoeira Angola devia ser ensinada. Se cada pessoa tem um jeito
gestos, movimentos - que lhe é peculiar, isso precisa ser levado em
conta. Respeitar o que cada um carrega sem forçar a naturalidade da
pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada
qual. (Mestre Pastinha,1967). Aqui, verifica-se um aspecto próprio da
Capoeira Angola, uma das marcas de distinção entre esta e a Capoeira
Regional.
Se cada um é cada um, pensando o indivíduo; também se pode
levar essa compreensão aos grupos. O termo grupo, por ser a
denominação mais usual na Capoeira, é a referência para estarmos
falando de escolas, associações e fundações. O foco a seguir é uma
composição de imagens que tive o privilégio de presenciá-las na cidade
de Salvador. Trata-se da representação ritualística da Capoeira Angola
em suas peculiaridades. A Capoeira do Mestre João Pequeno, a
Capoeira do Mestre Moraes, a Capoeira do Mestre Curió, a Federação
Internacional de Capoeira Angola e a Associação de Capoeira Angola
constituíram espaços representativos para observação.
Fruto da Escola de Mestre Pastinha, a observação fornece
elementos para perceber as singularidades, particularidades, sutilezas
de cada uma. Através das observações, vou tecendo as minhas
impressões a cerca da Capoeira Angola. Para esse exercício, optamos
pela seleção de três espaços: o Centro Esportivo de Capoeira Angola
João Pequeno de Pastinha - a Capoeira de Angola de João Pequeno de
Pastinha, o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho - a Capoeira de
22
Depoimento prestado por Mestre Pastinha no ano de 1967, ao Museu da Imagem
e do Som.
A Capoeira e os Mestres
57
Mestre Moraes e a Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos a
Capoeira do Mestre Curió.
1.6.1. Centro Esportivo de Capoeira Angola João
Pequeno de Pastinha
Sábado, 11 de junho de 2005. No céu avisto a primeira estrela
dando sinal que a noite estava chegando. Saio do Pelourinho,
caminhando em direção ao Forte Santo Antônio
23
, localizado no bairro
Santo Antônio que fica vizinho ao Pelourinho. Nesse espaço duas
referências de Capoeira Angola: a Academia de João Pequeno de
Pastinha Centro Esportivo de Capoeira Angola e o Grupo Capoeira
Angola Pelourinho. Sábado é o dia em que acontecem as rodas
24
de
Capoeira desses Grupos.
Inicialmente, a intenção foi conhecer a Academia de João
Pequeno de Pastinha. Lá, soube que no mesmo horário o Grupo de
Capoeira Angola Pelourinho GCAP - estaria realizando suas
atividades. Aproveitei a oportunidade e resolvi fazer o exercício de
observação também no Grupo do Mestre Moraes.
A Academia de João Pequeno de Pastinha Centro Esportivo de
Capoeira Angola pertence ao mais antigo Mestre de Capoeira João
Pequeno de Pastinha. Quando cheguei, o mestre não estava. Algumas
23
Há um projeto para transformar o Forte Santo Antônio em o Forte da Capoeira. A
intenção por parte da Secretaria de Cultura e Turismo é de construir um Centro de
Referência, pesquisa, estudo e memória da Capoeira.
24
Roda No sentido mais amplo a roda é um dos mbolos representativos da
Capoeira. O formato circular é composto pelos capoeiristas que, sentados,
acocorados ou de cantam, jogam e tocam. É na roda onde acontece o jogo, a
brincadeira de Capoeira. No caso citado acima, o termo é usado para diferenciar os
momentos de treinos. É o dia em que os capoeiristas exercitam o que aprenderam,
quer seja na movimentação do jogo ou como instrumentistas.
A Capoeira e os Mestres
58
pessoas circulavam pelo salão. Próximo a mim escuto alguém
comentando sobre a viagem que o Mestre fez recentemente à Itália, a
convite de um grupo de Capoeira. O relógio indicava que se
aproximava a hora da atividade começar. Aos poucos, o espaço
passou a ser tomado por alunos, discípulos, visitantes, turistas e
pesquisadores.
A maioria dos capoeiras vestia calça e camiseta branca. Na
camiseta estava escrito o nome do mestre. Este não pode faltar. É
uma prática recorrente em qualquer grupo de Capoeira. Além do
nome, o símbolo da academia: um arco-íris com as cores azul,
vermelha, laranja, amarela, verde e anil, uma árvore ao centro e sete
capoeiras – cinco tocando instrumentos e dois jogando; a mesma
imagem que fica pendurada na entrada da Academia.
Foto: A entrada da Academia de João Pequeno de Pastinha
– Salvador – BA. Fonte: Ilnete Porpino, junho de 2005.
A Capoeira e os Mestres
59
Todos estavam calçados. Uma movimentação se forma. É a
preparação para a formação da bateria. Três capoeiristas com
berimbau em mãos procuravam a afinação, um rapaz com o pandeiro
em punho se juntava a mais três que estavam sentados. Cada um com
instrumento diferente: um atabaque, um reco-reco e um agogô. De
repente, um som vindo de uma outra sala me chamou atenção. Era a
bateria do GCAP. O som era forte, vibrante e convidativo. Impossível
não se entusiasmar e conferir o que estava acontecendo na sala que
ficava no andar de cima. Antes, espero o Mestre João Pequeno
chegar. Enquanto isso, vou compondo a descrição da Academia.
A maioria das academias que tive oportunidade de conhecer em
Salvador tem suas paredes decoradas com fotos de mestres
capoeiristas, cartazes, além de berimbaus pendurados. Na Academia
do Mestre João Pequeno duas fotos são destaques em uma das
paredes: à esquerda, uma foto de Mestre Pastinha; à direita, à foto de
João Pequeno. Entre as fotos, uma placa de madeira com o nome da
academia e o símbolo - já descrito. Abaixo das fotos, berimbaus
pendurados (berimbaus de reserva) completam a decoração. Essa
parede fica atrás da bateria e de frente para o lugar onde costumam
ficar as pessoas que vão visitar a academia do mestre. No salão,
bancos reservados aos capoeiristas que compõem a bateria e bancos
para as pessoas assistirem às atividades realizadas.
No momento em que penso em levantar-me para ver de perto
um aviso escrito na parede, o mestre atravessa a porta todo de
branco. Logo percebo que as cores - preta e amarela - usadas por
muitos grupos de Capoeira Angola não é instituída na academia do
Mestre João Pequeno. De passos lentos, cumprimenta um e outro e se
dirige para uma cadeira segurando uma baqueta. Tomada pela música
A Capoeira e os Mestres
60
da Capoeira do Mestre Moraes, resolvi por um instante ver o que
apenas ouvia.
Quando retorno à Academia do Mestre João Pequeno, a roda
tinha começado. A música me chamou a atenção. O ritmo mais lento
diferenciava da música que tocava no GCAP. Os participantes da roda
estavam todos sentados no chão e respondendo o coro da música que
era cantada pelo capoeirista que tocava o berimbau gunga. Nessa
Capoeira não tem palmas. Um capoeirista que estava à direita formava
dupla com o que se posicionava à esquerda, se cumprimentavam e
esperavam o momento de entrar na roda. O sinal era dado por quem
tocava o berimbau e puxava as músicas. Ao término da dupla que
jogava, uma após outra se agachava ao do berimbau para dar
conta da brincadeira. Era de uma beleza formidável. Jamais vi uma
dupla passar tanto tempo jogando. Cheguei a contar mais de dez
minutos. Aqueles que tinham jogado pegavam o instrumento e
quem antes tocava, ficava na roda esperando a sua vez de jogar.
Mestre João Pequeno ficou o tempo todo sentado, com uma
baqueta na mão, ora batia na perna, ora ficava parado. Seu olhar era
atento ao que acontecia naquele espaço. O tempo a passar, a bateria a
tocar, a roda a girar e os capoeiras a brincar. Pareciam incansáveis.
Pelo horário, aproximava-se o enceramento da roda. Os instrumentos
silenciaram e ouve-se a voz do Mestre convidando as pessoas que
estavam assistindo para participar. Mais alguns minutos ele se levanta,
pega um dos berimbaus que estava pendurado à parede e começa a
tocar; com um sinal, chama várias duplas que estavam na roda para
jogar; brincar, como diz ele. Quatro duplas se formaram ao mesmo
tempo, tomando conta do salão. Ele sai caminhando e cantando. Neste
momento os capoeiras que estão na bateria se levantam e seguem o
mestre que voltas em torno das duplas. Agradecendo mais um dia,
o Mestre João Pequeno canta a canção de despedida.
A Capoeira e os Mestres
61
Adeus... adeus,
Boa viagem (coro)
Eu vou embora,
Boa viagem
Eu vou com Deus
Boa viagem
E nossa Senhora
Boa viagem
Adeus.
Este é um ritual que se repete nas rodas de Capoeira, quando
ele está presente. Para finalizar, o Mestre agradeceu a todos. Com 90
anos de idade e mais de 40 dedicado à Capoeira, o Mestre João
Pequeno de Pastinha é o mais antigo entre os mestres. Além de
desenvolver atividade diariamente em sua academia, o Mestre
participa das rodas dos seus discípulos - mestres formados por ele -
em Salvador ou em outras cidades, e como convidado mais ilustre dos
eventos de Capoeira que acontecem no Brasil e no exterior.
A Capoeira e os Mestres
62
Foto: Ritual do término de uma roda com a presença do Mestre João Pequeno
na Praia de Amaralina – Salvador – BA. Fonte: Ilnete Porpino, junho de 2005.
1.6.2. Grupo de Capoeira Angola Pelourinho – GCAP
A música da Capoeira do Mestre Moraes convidou-me a subir. No
momento que atravesso a porta da sala, a minha atenção se volta
para a formação do grupo que tocava. A música estava sendo cantada
por Mestre Moraes que tocava o gunga - berimbau especial da bateria
- geralmente tocado pelo mestre. Diferente dos capoeiristas que
participavam da Academia do Mestre João Pequeno, a maioria vestia
calça preta e camiseta amarela. Oito pessoas estavam sentadas num
banco porque fazia parte da bateria, ou seja, naquele momento eram
A Capoeira e os Mestres
63
os instrumentistas, e mais sete juntas sentadas no chão em círculo
formavam a roda.
Aos poucos, vou percebendo diferenças em relação ao espaço
físico das duas academias. O salão onde acontece a Capoeira é bem
maior. As cores preta e amarela estão presentes no piso do chão e nas
roupas. Eram as cores usadas por Mestre Pastinha na sua academia,
que Mestre Moraes fez questão de seguir. Não havia roda, riscada ao
chão. No centro, dois capoeiras faziam suas evoluções. Cada dupla
passava entre 10 a 15 minutos jogando. Nesse dia tinham duas
pessoas produzindo imagens da academia. Uma delas tirava fotos e
outra estava filmando. Geralmente, as academias têm aviso
comunicando que é necessário pedir permissão para fotografar.
Retiro a minha visão das pessoas e continuo observando o
espaço físico. Numa parede está escrito Sala Vicente Ferreira Pastinha
com várias fotos do mestre. Em outra, uma espécie de estandarte -
pano amarelo com a imagem de duas zebras, um dos mbolos da
Capoeira Angola. Essa decoração revela uma espécie de templo do
culto à Capoeira Angola e ao Mestre Pastinha. Decorar as academias é
uma prática presente não apenas na Capoeira. As academias
americanas de boxe, observadas por Loic Wacquant (2002) também
são reveladoras dessa prática.
Após conseguir falar com o Mestre Moraes para agendar uma
conversa, retorno à Academia de João Pequeno de Pastinha e deixo
para continuar a observação na Academia do Mestre Moraes no dia
marcado com ele para fazer a entrevista. Como havíamos combinado,
chego às 16 horas. Espero uma hora e o mestre não chega. Resolvo
ligar. Disse-me que havia esquecido. Perguntei se ele ainda podia me
receber nesse dia. Ele disse que tudo bem porque iria dar treino às
dezenove horas. Após a conversa com Moraes, resolvi ficar para
observar o treino.
A Capoeira e os Mestres
64
Era um dia de treino. Como tinha pedido autorização do Mestre
para fazer umas fotos, tomei a máquina em minhas mãos e, antes de
eu disparar o primeiro “clic”, aproxima-se um rapaz fazendo sinal para
eu parar. Eu disse que tinha pedido autorização ao Mestre. Quando eu
me preparava para tirar a quarta foto, o Mestre fez sinal para eu
parar. Foi uma situação constrangedora.
Foto: Treino de Capoeira GCAP - Grupo de Capoeira Angola Pelourinho,
Salvador – BA. Fonte: Ilnete Porpino, junho de 2005.
Doze capoeiristas estavam participando do treino: cinco
mulheres e sete homens. A maioria usava calça preta de tecido, cinto
e calçado. Todos se movimentavam no salão sob a ordem de um aluno
trenel - que coordenava o treino enquanto o Mestre conversava com
uma pessoa. O trenel pediu para que os capoeiristas gingassem. Todos
faziam o mesmo movimento. Logo em seguida, o Mestre assume o
A Capoeira e os Mestres
65
treino e chega junto de quem fazia diferente do que estava sendo
pedido. Ele disse “quero em linha reta, não quero assim”.
No salão havia alguns estrangeiros. No tempo que permaneci lá,
presenciei algumas movimentações que o Mestre pedia para os alunos
fazerem. Umas feitas individualmente (corta-capim, au, meia-lua);
outras eram trabalhadas em dupla. Essa movimentação consistia em
uma pessoa da dupla aplicar a meia-lua de frente, enquanto a outra se
aproximava um passo à frente para dar uma cabeçada. Terminado o
treino, aproximei-me para me despedir do Mestre Moraes.
1.6.3. Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos
A minha passagem pela Academia do Mestre Curió foi numa
sexta-feira. Dia de treino e roda. Mais uma vez o mestre de Capoeira
me repreende. Isso porque eu fiz o movimento de pegar o caderno de
anotações na bolsa. Ele disse que se eu fizesse o que pretendia
tomar notas - parava tudo. Que constrangimento! Por um instante
pensei em ir embora. Respirei fundo e fiz um sinal pedindo desculpas
ao Mestre. Em seguida, faço um exercício de concentração e
perseverança. Procurei ficar bem e continuar com o propósito de
colher informações a partir do que observava.
Era preciso estar atenta para registrar na memória, que fui
impossibilitada de tomar notas. Quando saí, me dirigi ao ponto de
ônibus. Não esperei chegar em casa. Na parada, enquanto esperava o
transporte, peguei a cadernetinha e comecei a fazer as anotações das
imagens que tinha acabado de deixar para trás. Entre as notas
A Capoeira e os Mestres
66
registradas, penso: o que levaria o Mestre a tomar tal atitude? O
objetivo da minha visita era do seu conhecimento. Talvez fosse
necessário para ele repreender uma pessoa da maneira que fez para
mostrar seu poder, para sua atitude servir de comentários entre as
rodas de Capoeira afora.
Das imagens que registrei enquanto esperava o ônibus, guardei
na memória o momento em que o Mestre se dirige à sala onde
acontecem o treino e a roda. Os alunos chegando. Alguns
uniformizados - calça preta e camiseta amarela -; outros não.
No lugar reservado aos convidados, onde eu estava, havia mais
quatro pessoas. Duas eram estrangeiras. No salão, participando da
aula havia doze pessoas. Antes de começar o treino, chega o Mestre
com um recipiente fazendo uma defumação. Um cheiro forte, mas
agradável tomara conta de todo o espaço. Nesse momento, os
participantes estavam em formando um círculo. Inicialmente, ele
passa por cada um que forma a roda. As pessoas pegam a fumaça e
jogam para si, como se tivessem pedindo proteção. Após passar por
toda a roda, o Mestre chega até nós que estávamos apreciando o
ritual, e faz o mesmo movimento.
Após esse momento, o Mestre início ao treino. Foi quase uma
hora de movimentação. O Mestre Curió sinalizava os movimentos.
Cada um executava individualmente. Enquanto os capoeiristas
treinavam, algumas pessoas chegavam para participar da roda que
não demorou a se formar. Alguns capoeiristas formaram a bateria, os
demais se posicionavam para formar a roda juntamente com aqueles
que chegaram para participar. A primeira música era uma ladainha,
puxada pela Mestra Jararaca, que dava viva ao Mestre Curió.
1.7. CLASSIFICANDO A CAPOEIRA
A Capoeira e os Mestres
67
Para conhecer a Capoeira Angola mais do que observá-la,
experimentá-la, interessa saber o que é elaborado sobre ela, quais os
discursos produzidos. Quando as pessoas falam de Capoeira, de
Capoeira Angola, de Capoeira Regional, elas estão classificando. Nessa
classificação, a produção de um discurso sobre o mundo em que se
encontram, ou seja, elaboram uma classificação das suas práticas.
Angoleiros, Regionais, Contemporâneos constroem um discurso
de identidade, de qualificação e de classificação sobre o que fazem. Na
Capoeira, além de se ensinar movimentos também são contadas a sua
história e nesse contar, as classificações são elaboradas, as definições
do que vem a ser Capoeira Angola e Capoeira Regional são produzidas.
As generalizações são feitas.
Os adeptos da Capoeira Angola elaboram noções e
representações, vinculando o estilo Angola à Capoeira “mãe” - a
Capoeira “antiga”, “primitiva” - no sentido de primeira. No universo
capoeirístico, a Capoeira Angola é associada à Capoeira Tradicional
25
.
Certamente, por acreditar na idéia de que a Capoeira veio da África,
um segmento de capoeiristas a denomina de Capoeira Angola.
Uma Capoeira voltada para as raízes, um discurso em que à
tradição está o tempo todo sendo afirmada. Tradição, para muitos
capoeiristas, identificada com aquilo que permanece, que se repete,
portanto, que não se pode mexer. Tradição utilizada para justificar
práticas, normas, rituais inventados por capoeiras para a Capoeira. A
tradição justifica, por exemplo: o uso de calçado na Capoeira Angola.
Em nome da tradição, músicas pejorativas em relação à mulher,
cantadas nas rodas de tempos atrás, são cantadas hoje em alguns
grupos.
25
Tradicional: Relacionada à Capoeira primeira. A ela, são associados os termos
raiz e tradição.
A Capoeira e os Mestres
68
A Angola, Capoeira mandingueira, de improvisação e de
criatividade, de movimentação mais lenta e rasteira, e de luta, tem
seu nome ligado a vários mestres que fizeram escola, sendo o mais
famoso deles o Mestre Pastinha. Protagonista da História da Capoeira
do século XX, é reconhecido por capoeiristas como o guardião da
Capoeira. Discípulos, seguidores e admiradores consideram-no rei.
Essa admiração e reconhecimento estão presentes na memória de
velhos e novos capoeiristas, nos escritos produzidos por capoeiristas
ou não, em documentários e músicas, como os versos desta
ladainha
26
:
Ê, meu senhor e minha senhora, favor me licença pra
eu cantar mais uma história. Mestre Pastinha foi o rei da
capoeira de angola, em Salvador, no ensinamento o que
africano lhe ensinou.
Cântico em forma de lamento, a ladainha conta e canta a história
da Capoeira, dos negros, celebra os mestres. Ela lições, e mais do
que isso, traduz e revela significados que nos permite entender valores
que constituem o universo simbólico de quem está inserido no campo
conceito central na obra de Pierre Bourdieu e um dos fios da
tessitura desta tese. Gostaríamos de sublinhar que na Capoeira, é
impossível não ouvir o nome do Mestre Pastinha. Está presente na
memória. Não é por acaso que seu nome é sempre lembrado.
26
Ladainha: Música de abertura da roda. É entoada por quem toca o gunga, um dos
berimbaus que compõe a bateria, podendo ser entoada por outra pessoa, a
depender do mestre. Bateria, também chamada de orquestra - é o nome dado à
formação dos instrumentos. Na Capoeira Angola predomina três berimbaus, dois
pandeiros, um atabaque, um agogô e um reco-reco. A disposição dos instrumentos,
seja na Capoeira Angola, ou não, pode variar. O atabaque, por exemplo, não fazia
parte da formação da bateria do Mestre Valdemar - angoleiro - contemporâneo do
Mestre Pastinha. Este também não utilizava o atabaque.
A Capoeira e os Mestres
69
Hoje, além de ser um mito da Capoeira é também considerado,
como disse antes, um dos grandes mestres da Cultura Popular,
homenageado por capoeiristas, escritores, artistas e músicos. Em 2005
o Mestre Pastinha, juntamente com Mestre Bimba, estavam entre os
34 nomes homenageados na 11ª edição da Condecoração da Ordem
do Mérito Cultural, um reconhecimento pelas contribuições prestadas à
cultura brasileira.
1.8. REDEFINIÇÕES MARCAM A CAPOEIRA - ALGUMAS
NOTAS SOBRE A CAPOEIRA REGIONAL
A outra modalidade, a Capoeira Regional, foi criada por Mestre
Bimba, a partir da Capoeira que se tinha, com o nome de Luta
Regional Baiana. Um dos objetivos do Mestre era procurar desenvolver
uma Capoeira mais rápida e direcionada, principalmente, para o
combate. Diversas técnicas de lutas como o jiu-jitsu, o boxe e o
batuque
27
foram incorporadas a ela. É importante lembrar que as
inovações não se limitaram apenas à introdução de novos movimentos
na Capoeira. Mestre Bimba sentiu a necessidade de criar um método
para o ensino da Capoeira.
A Capoeira se aprendia na roda, jogando. Era a oitiva, o jeito de
ensinar. A pessoa aprendia olhando. Lembra o Mestre Pirajá ao contar
do seu primeiro contato com a Capoeira, no Bairro de Casa Amarela,
em Recife, quando tinha 10 anos.
27
Conforme CASCUDO, batuque é uma luta de origem africana. No Brasil, praticada
nos municípios de Cachoeira, Santo Amaro e Salvador.
A Capoeira e os Mestres
70
Naquela época nós aprendíamos a Capoeira de oitiva.
Como hoje é ensinada também na Capoeira Angola. Ela é
ensinada através de oitiva, quer dizer olhando (Mestre
Pirajá).
A oitiva era o método existente até a criação do método
idealizado por Bimba. O método proposto por Mestre Bimba, com o
aprendizado da Capoeira através de séries repetitivas de movimentos,
ganha destaque no campo da Capoeira. As inovações propostas à
Capoeira por Bimba resultaram na criação da sua própria Capoeira.
Muitas críticas foram feitas ao Mestre Bimba: acusaram-no de ter
descaracterizado a Capoeira. Tais acusações refletiam uma luta no
interior do campo capoeirístico, uma disputa pela posição dominante
da Capoeira, com a entrada no campo da nova Capoeira a Capoeira
Regional do Mestre Bimba.
Não muito tempo depois, um número significativo de
capoeiristas, principalmente aqueles que tinham uma aproximação
com o Mestre Bimba, passaram a enfatizar a questão desportiva da
Capoeira.
Conforme Vieira (2002) a Capoeira ocupa um lugar no cenário
esportivo nacional no início dos anos setenta quando passa a ser
reconhecida como modalidade esportiva pela Confederação Brasileira
de Pugilismo. Entre 1973 e 1992, o seu vínculo era a Confederação
Brasileira de Pugilismo. Criar as regras para a participação da Capoeira
em competições era um dos papéis dessa entidade. Posteriormente,
quando em 1992 é criada a Confederação Brasileira de Capoeira, essa
função passa a ser realizada pela nova entidade.
De início, as competições assemelhavam-se a outras
modalidades esportivas. A competição limitava a Capoeira a ser mais
um esporte de combate. Ela não precisava dar tudo o que podia
oferecer. Sem poder usar alguns movimentos, sem roda, sem
A Capoeira e os Mestres
71
capoeiristas tocando os instrumentos ou cantando, ou seja, sem
música, ela se distanciava do formato e estrutura das rodas de
Capoeira. Aos poucos, conta Vieira (2002) as competições ficaram
parecidas com as próprias rodas de Capoeira” (VIEIRA, 2002, p.10).
Conforme o que foi mostrado, a década de trinta foi um marco
na História da Capoeira. É a partir desse período que academias,
grupos e escolas dão nome às organizações dos capoeiristas. Nos
anos trinta, os capoeiras são identificados pelo pertencimento à
academia do mestre. Hoje, o que marca a identidade da maioria deles
é o pertencimento a um grupo. Para efeito de esclarecimento, os
termos grupo, academia e escola apresentam o mesmo significado. É a
forma como os capoeiristas estão organizados, e mais do que isso,
representa identificação, pertencimento e vínculo.
Até a primeira metade dos anos sessenta, na Capoeira, não se
falava de grupo. Numa entrevista à revista Praticando Capoeira, em
1999, Mestre Peixinho, integrante do Grupo Senzala, um dos mais
conhecidos grupos de Capoeira, fundado em 1964
28
, na cidade do Rio
de Janeiro, disse que teria sido o Grupo Senzala quem usou pela
primeira vez a palavra grupo. Durante a pesquisa, encontrei um
mestre que disse não gostar de ser identificado como grupo; prefere
chamar escola de Capoeira. O Mestre a que me refiro é Nenel, o filho
do Mestre Bimba. Ele disse ser o único mestre responsável pela Escola
de Capoeira Filhos de Bimba, criada em 1986, na cidade de Salvador.
Ele se orgulha em dizer que é uma das poucas referências de Capoeira
Regional existente no mundo.
O que convencionou chamar o que seria uma Capoeira Regional,
aos olhos do herdeiro de Bimba, é visto com desconfiança. Porque nem
tudo que dizem ser Capoeira Regional, de fato, não é. Infelizmente,
fala o Mestre Nenel, a Capoeira Regional passou a ser identificada
28
A Revista Capoeira em 1998 publica uma reportagem sobre o Grupo Senzala.
Nela, a data citada como fundação do grupo é 1966.
A Capoeira e os Mestres
72
como a Capoeira de saltos, de agarramentos, violenta e rápida; que
nada tem a ver com Mestre Bimba. Por isso, a necessidade do Mestre.
De mostrar pro mundo o que é a Filosofia de ser a
Capoeira Regional. Ou seja, mostrar pro povo qual é a
metodologia, a tradição e os princípios da capoeiragem de
Bimba que é esses três principais pontos que se dar o
nome de regional (Mestre Nenel).
Para o referido Mestre, se os praticantes de Capoeira falam que
praticam Capoeira Regional, eles têm que seguir automaticamente os
princípios, a metodologia e as tradições do Mestre Bimba. É assim que
pensa o seu herdeiro. Conservar a Capoeira Regional, uma forma de
afirmação do legado deixado pelo seu pai.
uma unanimidade no discurso dos mestres e de seus
discípulos, mesmo os adeptos da Capoeira Angola, quanto ao
reconhecimento de que, com o Mestre Bimba, houve uma revolução no
campo da Capoeira. Além do que foi mencionado, um conjunto de
elementos novos são instituídos: os rituais de batizado
29
, troca de
graduação
30
e a formatura
31
. Mestre Bimba marcava a diferença entre
o aluno e o formado. A posse do lenço de uma determinada cor
sinalizava a distinção de graduação dos praticantes.
Falando-me sobre a Capoeira Regional, disse-me o Mestre Nenel
que os capoeiristas, quando se formavam, recebiam do seu pai uma
medalha de honra ao mérito com um lenço azul de seda, depois faziam
duas especializações. Quando concluíam, recebiam o lenço vermelho,
29
Batizado na Capoeira o batizado é o momento em que o aluno iniciante está
apto a pegar a sua primeira corda de Capoeira, tornando-se um aluno iniciado ou
graduado.
30
Troca de graduação - acontece quando o capoeirista que tem uma graduação
está habilitado a mudar, atingindo o vel superior ao que estava. Na época de
Bimba esse ritual era marcado com a entrega de um lenço.
31
Formatura – é o momento em que o capoeirista recebe a titulação de mestre. Na
época do Mestre Bimba não havia necessariamente a formatura vinculada à
titulação de mestre.
A Capoeira e os Mestres
73
relacionado à primeira e o lenço amarelo, à segunda. E quando o
capoeirista estava apto a receber o certificado de mestre charangueiro
– espécie de contramestre -, este recebia o lenço branco.
As cores utilizadas na Capoeira para marcar a graduação dos
capoeiristas possuem significados, simbologia. Elas estão presentes na
Capoeira desde a formação das maltas. Esse formato da Capoeira com
graduação, batismo, formatura foi seguido por outras academias e
grupos, sendo a maioria descendente da Capoeira Regional de Bimba.
Todavia, em vez do lenço, adotam cordas ou cordões amarrados à
cintura. A intenção é de dividir os níveis de aprendizado a partir da cor
da corda. Na Capoeira, esse processo é chamado de graduação.
Em 1989 existiam basicamente duas formas de graduação: uma
que chamávamos a Graduação dos Orixás e a outra, a da Bandeira do
Brasil. A primeira, tomava como referência as cores dos orixás
32
: azul,
amarela, marrom, verde, roxa, vermelha e branca. Uma escolha
política. Capoeiristas relacionavam a Capoeira à herança cultural
africana; daí a opção pela simbologia das cores dos orixás.
Nesse período, essa graduação era praticamente hegemônica.
Pouco a pouco, esta foi se redefinindo. Grupos que adotavam essa
graduação foram incentivados a mudar de graduação. Estes foram
ganhos por capoeiristas favoráveis à divulgação da Capoeira como
uma manifestação brasileira. Assim, muitos passaram a adotar as
cores: verde, amarela, azul e branca. Sobre esse aspecto peculiar, a
Capoeira descendente da Regional de Bimba e alguns grupos que se
auto-identificam como de Capoeira Angola, continuaram a
32
O Grupo Beribazu é um dos poucos que ainda adota essa graduação, a primeira
corda é a azul, em seguida vem a marrom, a verde, a amarela, a roxa, a vermelha
e por último a cor branca. Nesse grupo a identificação hierárquica é a seguinte: o
capoeirista que usa a corda azul, amarela e verde é aluno, o verde-amarela é
estagiário, quem tem a
corda amarela é monitor, o corda amarela-roxa é instrutor, o
corda roxa é contramestre ou professor, o corda vermelha é mestre e o corda branca é
mestre dignificador.
A Capoeira e os Mestres
74
metamorfosear as graduações, criando outras referências para a
identificação hierárquica de seus grupos.
O batismo, a troca de cordas e a formatura estão tão presentes
na Capoeira que aparecem como algo natural. É como se a Capoeira
nascesse com esses elementos. Não resta dúvida de que eles
compreendem rituais instituídos que passaram a fazer parte do campo
capoeirístico por volta da década de trinta. Os ritos na Capoeira
separam os calouros (iniciante) dos iniciados, instituindo diferenças. As
cordas com suas cores marcam a diferença do aluno que recebeu a
sua primeira graduação daquele que ainda não está legitimado ou do
capoeirista apto a ser consagrado um contramestre ou mesmo mestre.
Sobre ritos, vale a pena fazer referência a Bourdieu (1998) quando
discute os rituais de instituição. Para o autor, mais do que uma
passagem “O rito consagra a diferença, ele a institui” (Bourdieu, 1998,
p. 98).
Para efeitos de esclarecimento, os grupos de Capoeira Angola -
aqueles que se dizem verdadeiros angoleiros - não adotam o batismo e
a graduação com cordas. Esses rituais representam um momento
solene produzido pelos Grupos e fazem parte do seu calendário de
eventos. No campo capoeirístico existe uma discussão a respeito da
produção de eventos relacionados a batizado, troca de cordas e
formatura. Geralmente os eventos são organizados anualmente. No
entanto, alguns grupos realizam semestralmente, o que é motivo de
crítica e acusações de capoeiristas, principalmente quando têm a
informação do valor a ser cobrado para participar do evento e receber
uma corda.
Mestre Boca Rica, ao falar dos capoeiristas que estão no exterior
trabalhando com Capoeira, fez referência a essa questão.
A Capoeira e os Mestres
75
O próprio formando abre uma academia com 300, 400
alunos e a cada e 6, 5 ou 4 meses faz um batizado. Cada
cordão daquele que o aluno pega é mais caro. se
bem, né? Agora, procure fundamento num mestre desse,
numa escola dessa, que ele não sabe. (Mestre Boca Rica)
Alguns mestres se mostraram descontentes com o
encaminhamento de grupos no tocante à produção de mais de um
evento por ano, chegando a reduzi-lo a um comércio, no sentido
negativo. Dizem que tem Mestres que estão interessados em
ganhar dinheiro, isso porque cobra um valor alto para as pessoas
participarem. Embora reconheçam os gastos com as cordas, infra-
estrutura, cachê para convidados, despesas com passagens e
transportes, entre outras, as acusações de que os mestres ganham
dinheiro com esses eventos são presentes.
É importante sinalizar para o fato de que a Capoeira vem sendo
redefinida e recriada pela inclusão não de elementos novos, mas de
significados e intenções. Um ponto de partida para pensar essa
questão diz respeito à noção de tradição inventada, como ressalta Eric
Hobsbawn e Terence Ranger (1984), quando enfatizam que por
tradição inventada, entende-se um conjunto de práticas de natureza
ritual ou simbólica, normalmente reguladas, que por meio da
repetição, objetiva inculcar valores e normas de comportamento,
implicando uma continuidade em relação ao passado.
Nesse contexto de redefinição no campo capoeirístico, quer seja
na prática dos seus movimentos, no gestual, nos métodos instituídos,
nos mitos cultuados, como apontamos anteriormente, tomando o
cuidado para não estar se repetindo, faz-se necessário destacar
algumas considerações referentes aos mestres, considerados pelo
campo, como responsáveis pela construção da história recente da
Capoeira.
A Capoeira e os Mestres
76
Embora o campo seja heterogêneo, o discurso é unânime em
dizer que a história mais recente da Capoeira está diretamente
relacionada aos mestres: Pastinha e Bimba. Dois nomes da Capoeira
que foram notabilizados pelo papel que desempenharam. É valioso
para o currículo de qualquer mestre ter sido discípulo ou aluno do
Mestre Pastinha ou Mestre Bimba. A referência aos mestres antigos, ao
passado e à tradição são discursos presentes na Capoeira e usados
com freqüência por mestres, contramestres, professores, capoeiristas
em geral e admiradores.
Vieira (1990) ao fazer uma leitura sobre essa questão, chega a
dizer que a referência aos antigos remete a um saber de alto valor
político. No campo da Capoeira, o fato de o capoeirista ter sido aluno
de um dos mestres mais tradicionais, mais antigo; àqueles que
tiveram seus nomes vinculados à história da Capoeira lhe atribui
status, fama, prestígio e posição. Isso lhes confere o que Bourdieu
denomina de capital cultural, capital simbólico diferenciado.
Hoje, ainda temos mestres de Capoeira que foram alunos do
Mestre Pastinha e mestres que receberam os ensinamentos do Mestre
Bimba; os dois mestres mais representativos, mais celebrados e
homenageados do campo. Essa é uma identificação que cada vez mais
faz diferença. O mestre João Pequeno é um deles; respeitado
internacionalmente no meio capoeirístico devido a sua trajetória na
Capoeira. Como destacamos anteriormente, ele diariamente pode ser
visto coordenando treinos e roda em sua academia.
Por ocasião do trabalho de campo, tive a oportunidade de
observar o Mestre João Pequeno em plena atividade na sua academia
e durante uma apresentação de Capoeira na Praia de Amaralina,
organizado pelo Mestre Faísca - jovem mestre formado por ele.
A Capoeira e os Mestres
77
Foto: Roda com a presença do Mestre João Pequeno na Praia de Amaralina
Salvador – BA. Fonte: Ilnete Porpino, junho de 2005.
Como sinalizamos anteriormente, a década de setenta marca
a institucionalização da Capoeira como esporte oficial (1972). É nesse
período também que inicia a sua expansão, de forma considerável,
pelo Brasil e por outros países. Em 1999, Vagner Vieira, vice-
presidente da ABRACAP – Associação Brasileira de Capoeira – informou
à revista Praticando Capoeira que a Capoeira era praticada em quase
20 países. Hoje, esse número ampliou. Mestre Pinatti, quando
participou da mesa redonda Capoeira como inclusão social, durante o
Fórum Cultural Mundial, realizado em São Paulo no ano de 2004,
entusiasmado disse: “Não há um país fora que não tenha Capoeira”.
Além da expansão, marcam esse período a formação das federações
de Capoeira nos estados e a intensificação dos Grupos.
Os anos oitenta têm como uma das características o aumento
significativo do mero de capoeiras. Negros, brancos, mulatos,
homens, mulheres e crianças tocam, cantam e movimentam as rodas,
A Capoeira e os Mestres
78
sejam elas de Angola, de Regional, Contemporânea ou simplesmente
Capoeira.
Nas últimas décadas, o mercado profissional da Capoeira
cresceu. Várias instituições, como creches, escolas, ONGs, passaram a
contar com a sua prática. Assim, o ensino da Capoeira, antes voltado
apenas para a formação de novos capoeiristas, passa a atuar nas
diferentes áreas e com diversos propósitos: Capoeira como terapia
33
,
Capoeira como lazer e recreação, Capoeira atuando em projetos
sociais para tirar crianças e adolescentes da rua, Capoeira para a
integração social dos portadores de deficiências.
Esse fenômeno de ampliação do seu universo influenciou alguns
profissionais ligados à Capoeira e à Educação Física a oferecer em
faculdades cursos de formação para capoeirista. Os organizadores
desses cursos justificam que a intenção é de complementar o
conhecimento prático. Bernardo Conde (2000) capoeirista e professor
de Educação Física afirma que foi pensando nesse mercado emergente
que alguns professores da Universidade Gama Filho decidiram criar o
primeiro curso superior profissional específico de Capoeira. Criado em
1998, o curso tem a duração de dois anos. Nesse curso, os alunos
estudam Administração, Marketing, Anatomia, Antropologia, Cultura
Afro-brasileira, História da Capoeira, Organização de Eventos,
Fabricação de Instrumentos, Ritmos e Cantigas, Treinamento
Desportivo, entre outras disciplinas.
Seu objetivo é dar uma complementação profissional ao
capoeirista que pretende investir na profissão de Capoeira. Daí, a
compreensão de que toda área que se profissionaliza exige a
necessidade de um conhecimento minimamente sistematizado.
33
Vale a pena informar que Universidades - USP, Unicamp - e Faculdades de
Educação Física têm produzido teses e dissertações que abordam a Capoeira como
terapia.
A Capoeira e os Mestres
79
Todavia, estamos diante de situações complexas na Capoeira: a
disputa por espaço entre profissionais de Educação Física e
profissionais de Capoeira e as divergências entre mestres com relação
à forma como a Capoeira se insere nas escolas.
Em 1998, quando o exercício profissional da Educação Física foi
regulamentado, os profissionais que tinham algum conhecimento de
Capoeira passaram a exigir o direito de trabalhar com Capoeira nas
escolas e também a cobrar das academias o registro do professor de
Capoeira junto ao Conselho Regional de Educação Física – CREF.
Quando estava em campo, alguns mestres, desatualizados com
relação às informações recentes sobre essa questão, criticavam
duramente a postura do CREF. Não sabiam eles que, em 04/05/2005
um projeto de lei que autonomia aos profissionais da Dança, Artes
Marciais, Ioga e Capoeira - em relação aos CREFs - tinha sido
aprovado na Comissão de Turismo e Desporto da Câmara.
A Capoeira, que é anterior a Educação Física, passa a ser por ela
apropriada, no sentido de inserir em seu currículo os conteúdos que
são da Capoeira. No campo capoeirístico, essa questão revela
contestação e indignação de mestres, principalmente aqueles que
estão fora do processo, uma vez que o Estado, através das Secretarias
de Educação passa a exercer controle, não permitindo que os velhos
mestres lecionem nos estabelecimentos de ensino por não terem a
titulação de professor de Educação Física.
Sobre essa questão, não é sem sentido que, quando solicitado a
falar sobre a presença da Capoeira nas escolas, Mestre Moraes enfatiza
que mestres, considerados uma representação viva entre o educando,
o aluno, e os ancestrais, com mais de cinquenta anos de experiência
em Capoeira não têm oportunidade, não têm lugar nos
estabelecimentos de ensino. Para Mestre Moraes, a proibição do
Estado é revelada quando não permite que mestres como João
A Capoeira e os Mestres
80
Pequeno e João Grande, por não serem licenciados em Educação
Física, não possam lecionar nas instituições escolares.
Esses mestres, eles deixam de existir e de ter valor para o
Estado a partir do momento em que uma exigência
legal. Porque pra lecionar nas escolas de e grau,
você tem que ser licenciado; ora, um Mestre como João
Pequeno, João Grande e até eu mesmo. Eu não sou
licenciado em Educação Física, eu não posso ensinar nas
escolas de 1º e 2º grau. (Mestre Moraes).
Mestre Moraes é ciente de que uma lei que exige licenciatura
para ser professor na escola. Ele é licenciado em Letras, o que lhe
credencia ministrar aulas de Língua Inglesa e de Língua Portuguesa.
Mesmo com uma longa trajetória de Capoeira, conhecido
internacionalmente, é impedido de dar aula de Capoeira. Não importa
se ele está mais familiarizado com a prática capoeirística do que com o
curso em que foi graduado ou até mesmo se seu capital capoeirístico
supera o dos professores de Educação Física. A lei barra o mestre por
ele não ter o curso de graduação em Educação Física.
A Secretaria de Educação entende que ele não tem capital
escolar suficiente para ocupar o lugar de professor de Capoeira no
estabelecimento de ensino, que sua formação foi outra. Isso posto,
vale a pena afirmar que a Capoeira está presente em estabelecimentos
de ensino, no entanto, sem as condições dos professores formados
que ministram as disciplinas. Voltaremos a essa questão no capítulo
seguinte, quando trataremos da Capoeira na escola.
A figura do Mestre de Capoeira tem sido determinante na
afirmação e propagação dessa arte; como também, é indiscutível o seu
lugar como detentor do saber que possibilita a graduação e habilitação
de um capoeirista à condição de mestre. Todavia, terão mais
A Capoeira e os Mestres
81
oportunidades aqueles que tiverem uma maior abrangência de
conhecimento, somada aos da Capoeira. Uma creche, por exemplo,
selecionará um professor de Capoeira com um bom conhecimento de
pscicomotricidade. Assim, muitas vezes, as escolhas dos candidatos
recaem sobre um professor de Educação Física com algum
conhecimento em Capoeira, em detrimento de um professor de
Capoeira. Esse fato gera no campo capoeirístico muito ressentimento
e críticas por parte de capoeiristas, particularmente, aqueles que têm
mais de 30 anos dedicados a sua prática.
CAPÍTULO 2: A CAPOEIRA E OS DESLOCAMENTOS
SOCIOCULTURAIS
Somos todos juntos uma miscigenação não
podemos fugir da nossa etnia/índios, negros,
brancos e mestiços/nada errado em seus princípios/
o seu e o meu são iguais/corre nas veias sem
parar/ costumes, é folclore, é tradição/ capoeira
A Capoeira e os Mestres
82
que rasga o chão/samba que sai da favela acabada/
é hip hop na minha embolada/ é o povo na arte/ é
arte no povo/ e o o povo na arte/ de quem faz
arte com o povo (Chico Science e Nação Zumbi -
Afrociberdelia, 1996).
A partir das últimas décadas a Capoeira vem passando por
grandes deslocamentos socioculturais. A redefinição de espaços de
atuação, os novos discursos, a inserção de novos segmentos, a
expansão pelo mundo afora, a atribuição de novas finalidades e a
consolidação da profissionalização constituem sinais de deslocamentos
que compõem o cenário da história recente da Capoeira.
Das ruas para academias, escolas, universidades. De um
discurso centrado na negatividade para um outro, centrado na
positividade deixa de ser estigmatizada, vista como coisa de
malandro, desordeiro, para ser reconhecida pela sociedade. Antes
praticada, predominantemente, pelas classes populares, vêm se somar
a esta, outras classes, em especial, os segmentos das classes média e
alta, como também outras etnias e nacionalidades brancos e
estrangeiros.
De um espaço predominantemente masculino, para um espaço
comum aos dois gêneros; não havendo restrição de idade. Restrita aos
estados da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão e Pará,
passa a ser amplamente praticada em todo o país e também no
exterior. A peculiaridade hoje é de que a expansão da Capoeira já não
se confina mais ao Brasil; possui, portanto, um raio maior de
abrangência; é conhecida internacionalmente. Do ensino voltado
apenas para a formação de novos capoeiristas, para atuação com fins
terapêuticos, recreativos, educativos, de integração social.
A Capoeira e os Mestres
83
2.1. A CAPOEIRA E OS ESPAÇOS SOCIAIS OCUPADOS:
RUAS, ACADEMIAS, ESCOLAS E UNIVERSIDADES
A Capoeira foi vivenciando um processo de redefinição dos seus
cenários e de seus autores, o que lhe possibilitou a ocupação de novos
espaços sociais. As academias, as escolas pública e privada , as
universidades, incorporaram, se apropriaram, inauguraram um novo
espaço para a prática da Capoeira. Hoje, qualquer pessoa que queira
praticar Capoeira pode se inscrever em uma academia do bairro, em
clubes ou associações de moradores - espaços caracterizados como
não formais de ensino - como também, escolher entre tantas outras
modalidades oferecidas em escolas particulares e públicas.
A presença da Capoeira nesses espaços expressa um momento
de conquista que resultou em ganhos e perdas. Ganhos porque
possibilitou a sua expansão, ampliando as possibilidades de uso para
pessoas praticarem e para quem tem projeto em segui-la como uma
carreira. E, quando nos referimos às perdas, é no sentido de que seus
antigos mestres, por não terem a formação exigida e não terem como
fazê-la estão à margem do processo.
Antes de evidenciarmos a Capoeira e os novos espaços,
situaremos no espaço macro: o espaço urbano. Os estudos revelam
que ao longo da sua história, ela se desenvolveu nesse espaço. A
Capoeira é, portanto, um fenômeno urbano. Ao incorporar essa idéia,
é pertinente conceder a palavra ao mestre Acordeon
34
.
34
Ubirajara Almeida (1943) é baiano. Conhecido na Capoeira como Mestre
Acordeon. Foi aluno do Mestre Bimba. Em 1968 migrou para as terras paulistas.
Dez anos depois viajou para os Estados Unidos onde ensina Capoeira até hoje.
A Capoeira e os Mestres
84
Conhecendo as várias formas que a Capoeira se
manifestou através do tempo, tanto no Rio de Janeiro
como Salvador e Recife, os primeiros centros urbanos
onde se desenvolveu a Capoeira no Brasil, e se nós lermos
as descrições da Capoeira antiga, a meu ver, a Capoeira
antiga é um fenômeno urbano. Ela se desenvolveu nas
cidades, cresceu, assimilou roupas novas e influência. A
cada lugar ela se apresenta, de uma certa maneira, como
o arquétipo africano no Brasil, que se manifesta
diferentemente (Documentário Capoeiragem na Bahia,
TV-E Salvador, 1999).
O Mestre refere-se, primeiramente, ao momento que antecede à
expansão da Capoeira, que por sua vez é anterior a época em que era
considerada crime. Era praticada apenas em algumas cidades do
Brasil. Após justificar a Capoeira como fenômeno urbano, a fala do
Mestre tanto pode se referir a um tempo passado como ao momento
recente. Conforme o Mestre, a Capoeira onde se desenvolve adquire
uma maneira de ser através das influências de cada lugar. Para efeitos
de ilustração, pode-se dizer então que, embora a Capoeira praticada
na Bahia possua características comuns, mesmo sendo de um mesmo
estilo e ou grupo, diferenças entre a Capoeira praticada no Rio de
Janeiro ou em outro lugar.
Ainda sobre essa discussão, pode-se dizer que as diferenças são
marcas visíveis na Capoeira existentes numa mesma cidade. Ao
analisar os grupos de Capoeira, Travassos (2002) na sua tese
Capoeira: difusão e metamorfose culturais entre Brasil e EUA, chama
atenção para o fato de que
o mundo da Capoeira (...) está longe de possuir algo
como um estatuto ou constituição aceita por todos. Nem
mesmo a existência de Federações garante uniformidade
de organização e atuação dos grupos. No mundo da
Capoeira não regras universalmente aceitas; não
formação de categorias profissionais que englobam todos
A Capoeira e os Mestres
85
os capoeiristas; não uma regulamentação geral das
graduações, não há padronizações dos formatos das rodas
(TRAVASSOS, 2002, p.104).
O depoimento do Mestre Cobrinha Mansa confirma essa
característica presente na Capoeira. Para o Mestre, o capoeirista
sempre manteve seu espírito de liberdade que lhe é conservado. Sem
controle de uma instituição única para dizer como deve se comportar,
como deve fazer. Assim se expressa o mestre: Que todo mundo tem
que botar a cor a, b ou c; que todo mundo tem que falar. Não é
ninguém que tem que ficar mandando não - afirma o mestre.
Volto à discussão dos espaços. O acorde do seu berimbau, o
repique do atabaque, as melodias de suas músicas e as presenças dos
capoeiras movimentando seus corpos nas rodas dão uma sonoridade e
uma tonalidade ao espaço urbano. Hoje, nas cidades brasileiras, por
exemplo - em grandes centros como São Paulo - existem espaços que
são representativos da Capoeira. Pensando como Magnani (2000) eles
constituem verdadeiras manchas no espaço urbano. São espaços
considerados tradicionais da Capoeira, como a roda que se forma na
Praça da República e a do Parque Ibirapuera, em São Paulo.
Na Capoeira, o espaço é objetivado em diversos lugares com
significações distintas: a rua, as academias, as escolas, as
universidades. Devido às características que particularizam cada lugar,
é necessário apresentar algumas considerações sobre cada um deles.
Embora a rua não seja um espaço predominante da prática da
Capoeira, como foi em épocas passadas, portanto, não se inserindo em
novos espaços, ainda assim terá uma atenção.
2.1.1. A Capoeira e a rua
A Capoeira e os Mestres
86
Ao tomar como fio condutor a trajetória da Capoeira no Brasil,
não dá para negar que no espaço urbano, o mundo da Capoeira
começa na rua. Nos centros urbanos, a Capoeira acontecia em
espaços abertos, públicos e de uso coletivo. Ruas, praças e largos
eram festivamente ocupadas pela Capoeira. Espaços por excelência de
encontros, de comunicação e de troca, onde as relações se alimentam
e se desfazem, onde as redes de sociabilidade se encontram.
O uso e apropriação desses espaços estiveram presentes durante
muito tempo no cotidiano dos capoeiristas. Sobre essa questão, ao se
referir à capoeiragem baiana na primeira metade do século XX, Vieira
(1998) afirma que, apesar de já existir no início dos anos trinta
academias de Capoeira o aprendizado informal da Capoeira, nas ruas
de Salvador, predominou até meados da década de cinqüenta
(VIEIRA, 1998, p. 101).
Reconstituída pela narrativa dos mestres, situamos a Capoeira
em diferentes épocas. São histórias diversas em diferentes momentos
de sua tessitura. Sendo assim, concentrar os interesses nesse ponto é
percorrer as linhas traçadas pelo tempo; é penetrar na história da
Capoeira, desdobrando seu transcurso e escrever parte dela; é
procurar mostrar como o espaço ocupado pela Capoeira foi sendo
redefinido através dos tempos e o que isso significava.
As palavras do Mestre João Pequeno de Pastinha, que se auto-
identifica como o patrimônio da Capoeira, no depoimento em que
recorda a sua entrada na Capoeira em Salvador rememora tempos
vividos onde o espaço da Capoeira era a rua. Nessa época, não se
falava em academia, mestre, grupo. Mas, em rodas de Capoeira.
Cada roda tinha uma pessoa responsável - uma espécie de
liderança ou mesmo dono - como os mestres costumam falar ao se
A Capoeira e os Mestres
87
referirem a uma roda de Capoeira. Nessa época, se aprendia Capoeira
não na academia do mestre fulano, mas na roda de Capoeira de
fulano. Ao narrar fragmentos de sua história no cd João Pequeno de
Pastinha, gravado em 2000, o Mestre relembra uma conversa que teve
com um colega de trabalho que, vendo o seu interesse pela Capoeira,
disse que iria colocá-lo na roda de Capoeira de Barbosa.
Barbosa era amigo dele, ele falou com Barbosa pra me
ensinar Capoeira. Naquele tempo não tinha academia, não
tinha organização, assim academia; não tinha nada. E as
rodas de Capoeira eram na rua e Barbosa me levava para
a roda de Cobrinha Verde no Chame-Chame (Mestre
João Pequeno de Pastinha, 2000).
A fala do Mestre nos leva a pensar a presença de uma dimensão
do pessoal, do afetual, afirmando o subjetivo nas relações
estabelecidas entre praticantes de Capoeira. Tendo convivido, tanto no
espaço das ruas como no espaço das academias - dois mundos
contrastantes - percebemos uma certa valorização do Mestre à
Capoeira nas academias em detrimento à Capoeira nas ruas. Questões
referentes ao surgimento da academia serão observadas adiante.
Espaço físico fechado, matrículas, horários a cumprir, quantidade de pessoas
definidas, uniformizadas, aulas programadas, estabelecimentos de regras
obrigatórias são sinais que marcam a diferença mencionada pelo Mestre. São
práticas que traduzem uma idéia de organização diferente da rua;
uma configuração distante da época em que a prática da Capoeira
acontecia nas ruas. Vale a pena destacar que a rua tinha uma
organização; porém, diferente da instituída nas academias.
O aprendizado se dava nas rodas. As tantas que existiam tinham
lugares fixos para acontecer e responsáveis - geralmente considerados
A Capoeira e os Mestres
88
donos das rodas - as quais eram identificadas pelos seus nomes, como
lembra mestre João Pequeno.
Durante certo período, a Capoeira praticada nas ruas conviveu ao
mesmo tempo com a que era exercida nas academias. Muitos
capoeiras fizeram parte de uma geração em que tanto à Capoeira de
rua quanto a que era praticada na academia faziam parte do seu
cotidiano. Quando capoeiristas diziam fazer Capoeira de rua,
sinalizavam que havia uma outra Capoeira. Com isso, eles não estão
apenas se referindo ao local em que exercita a prática da Capoeira. É o
que confirma o Mestre Moraes em seu depoimento, ao falar da sua
trajetória na Capoeira.
Fui terminar meu aprendizado no que diz respeito a tocar,
cantar, dentro da academia do Mestre Pastinha e vendo
outros mestres de Capoeira também que não eram de lá,
jogando nas rodas de rua, tocando e tal (Mestre Moraes).
Hoje quase não Capoeira de rua, mas sim, apresentações de
rodas de Capoeira na rua. cidades onde mestres têm se
responsabilizado para fazer uma roda periódica em lugares
representativos da cidade - um ponto turístico, uma praia, um parque
ou uma praça. Espaços bem freqüentados pelo público. A intenção é
divulgar a Capoeira e o seu grupo, ou seja, dar visibilidade ao trabalho
que desenvolve.
Pontos de encontro onde relações de sociabilidades são traçadas;
constata-se que, algumas rodas são abertas no sentido de permitir a
entrada de qualquer pessoa que queira participar. Outras, como forma
de prevenir confusão ou briga, aceitam a participação apenas de
mestres. É o que nos conta Mestre Pirajá em seu depoimento, quando
A Capoeira e os Mestres
89
disse ter criado, por volta dos anos oitenta a roda de Capoeira no
Centro de Recife como forma de divulgar a Capoeira:
Eu ainda faço de vez em quando uma roda na Pracinha de
Boa Viagem. Geralmente no último domingo de cada mês.
Mas hoje em dia eu não permito que capoeirista estranho
nenhum jogue. Eu permito do grupo. Se aparecer
algum mestre, eu permito. O mestre, ele tem um trajeto.
A roda de rua é uma roda descompromissada. Tudo pode
acontecer. Pode descambar para violência. Você não tem
um domínio total. Você não tem um controle de quem
chega (Mestre Pirajá).
Apesar da existência da relação entre a Capoeira e a rua,
podemos afirmar que o tempo em que a Capoeira era exclusivamente
na rua não existe mais. Diferente de tempos atrás, hegemonicamente,
a sua prática agora se em espaços fechados. A academia é um
deles.
2.1.2. A Capoeira e as academias
A Capoeira na academia está estruturada nos moldes que se
aproxima a uma escola formal de caráter particular. Os alunos se
escrevem, fazem matrícula, obedecem a horários e têm a obrigação de
pagar uma mensalidade pelas aulas. Essas ações fazem parte da
maioria delas, sinalizando a presença de um processo de organização
social. Ora, mas academia não se resume a essa descrição fria e
burocrática; não é apenas o espaço físico.
É necessário esclarecer que o termo academia, empregado nesse
contexto, representa a escola do mestre com todos os seus rituais,
A Capoeira e os Mestres
90
valores, códigos, significados e símbolos. A relação com aqueles que
estão envolvidos com ela - aqui estamos pensando na figura do mestre
- é de sentimento, dedicação, devoção. Muitas vezes, a imagem do
mestre está a ela vinculada.
A presença da academia na história da Capoeira é relativamente
recente. Elas começam a ser gestadas nos anos trinta do século XX.
Tanto o Mestre Bimba como o Mestre Pastinha são lembrados por
capoeiristas - descendentes deles, ou não - como aqueles que primeiro
colocaram a Capoeira no espaço fechado.
Naquele tempo, Capoeira não tinha organização; assim,
academia. O primeiro a botar Capoeira no espaço foi Seu
Pastinha. Foi o primeiro a botar Capoeira no espaço. E eu
tomei conta do grupo dele e ele me entregou; ele morreu
e quando ele morreu, eu tinha a minha academia por
minha conta própria (João Pequeno de Pastinha).
Esse termo academia não é próprio do mundo da Capoeira. Era e
ainda hoje é comum ouvir falar de academia como se referindo ao
estabelecimento onde acontecem treinamentos de modalidades
esportivas como Karatê, Boxe, Judô, Jiu-Jitsu, entre outras. Seguindo
a mesma direção, os capoeiristas, quando abriram seus espaços para
ensinar Capoeira, passaram a usar o nome de academia.
As primeiras academias de Capoeira surgem em Salvador. Os
pesquisadores são unânimes em afirmar que a primeira foi criada em
1932. Conforme Rêgo (1968) nesse ano, o Mestre Bimba foi o primeiro
a abrir a academia que recebeu o nome de Centro de Cultura Física e
Capoeira Regional. Nessa época, a Capoeira vivia na ilegalidade.
O processo que culmina com o deslocamento da Capoeira para o
espaço fechado tem relação com as exigências do Presidente Getúlio
Vargas. Ao mencionar as regras e normas para a prática da Capoeira,
A Capoeira e os Mestres
91
Areias (1983) assinala que esta era uma forma de o presidente
exercer controle sobre os atos dos praticantes das diferentes
manifestações populares. Folguedos, nos festejos populares,
espetáculo folclórico em recintos estipulados e esporte em locais
fechados; era a maneira como a Capoeira poderia ser apresentada
(AREIAS, 1983, p. 64).
As academias viviam das mensalidades cobradas aos alunos e
dos turistas que por elas transitavam. Nos anos setenta elas começam
a vivenciar um processo de falência. A diminuição de público nas
academias - particularmente, os turistas - compromete a continuidade
delas; isso porque, numa regularidade freqüente, hotéis e restaurantes
contratavam as apresentações de shows e espetáculos de Capoeira
dos grupos parafolclóricos e de Capoeira, que viam nessas atividades,
uma forma de ter um ganho material e serem conhecidos. O desejo de
brincar, jogar Capoeira associava-se, nesse momento, a
mercantilização.
O surgimento dos grupos parafolclóricos e dos grupos formados
pelas próprias escolas/academias de Capoeira em Salvador acontece a
partir dos anos sessenta. A referência seguida era o Mestre Bimba e o
Mestre Pastinha, que um tempo, e de modo particular, cada um a
sua maneira, contavam com capoeiristas para a realização de
apresentações de Capoeira para turistas.
O esquema montado pelas empresas turísticas com
programações definidas, de certa forma, acabava interferindo na ida
dos turistas às academias de Capoeira. Essa situação que atingia às
academias, provocando a decadência das mesmas foi lembrada por
Mestre Pastinha em entrevista ao jornal A Tarde, no dia 05 de junho
de 1980, a qual resultou em uma reportagem que teve como
manchete O desabafo do mestre. Naquele momento, quase no fim
da vida, a preocupação do mestre era de encontrar uma forma de
A Capoeira e os Mestres
92
impedir que os hotéis e restaurantes comprem os shows de Capoeira,
tirando os turistas das academias e decretando as suas falências.
No tempo dele, lembrou o mestre:
os turistas transitavam livremente visitando o que bem
quisesse, o que não ocorre hoje, quando o turismo é feito
de forma organizada, em grupos seguindo roteiros
preestabelecidos, programados a partir dos interesses dos
promotores das excursões (Trechos da matéria publicada
no jornal A Tarde
35
).
É pertinente esclarecer que, a partir de meados dos anos oitenta,
a situação se redefine com a multiplicação de academias e grupos de
Capoeira não em Salvador, mas em outros lugares, configurando a
expansão da Capoeira. Se bem que, nos dias de hoje se fala mais em
grupo do que em academia ou escola. O grupo tem o sentido e o
significado que antes era vinculado à academia. Quando a referência é
o grupo, a academia passa a significar mais o espaço físico.
2.1.3. A Capoeira e as escolas
35
Jornal localizado em o Barracão do Mestre Waldemar, de Frede Abreu.
A Capoeira e os Mestres
93
A presença da Capoeira nas escolas públicas ou privadas é um
fato
36
. A sua prática acontece na educação infantil, no ensino
fundamental e ensino médio. Estudos dedicados à temática da
Capoeira na escola enfatizam a importância dessa atividade para os
praticantes de diferentes faixas etárias.
Para Campos (2003) através dos movimentos da Capoeira
são desenvolvidos a criatividade e o interesse pelas artes
e pela cultura, proporcionando ainda uma mudança de
comportamento pelas múltiplas experiências vivenciadas
(Campos, 2003, p. 17).
Os responsáveis pela Capoeira nas escolas enfatizam os ganhos
que esta propicia aos praticantes. Ao tratar da Capoeira na escola, em
seu depoimento, Mestre Beto
37
afirmou que a Capoeira ajuda as
crianças e adultos nas escolas porque possibilita ao praticante adquirir
segurança, concentração, reflexo, interação, disciplina e confiança. E
complementa dizendo:
Porque você sabe que a Capoeira livra você do stress, da
depressão, mantém seu corpo em forma. Você relaxa
mais, esquece os problemas, tem a capacidade de no dia-
a-dia, você se sentir mais segura; é uma proteção a mais
(Mestre Beto).
A Capoeira está realmente presente nas escolas; mas de que
forma? Quem ministra essas aulas e qual o vínculo estabelecido com a
instituição? Segundo Mestre Nenel, a Capoeira atua nas escolas, mas
36
Conforme estudos realizados por Falcão (2004) a partir da década de 1970 a
Capoeira se insere no contexto educacional.
37
Beto Mansinho Adilsom Souza Cardoso, nasceu em 1968. É natural de
Amargosa BA. É Mestre de Capoeira formado por João Pequeno de Pastinha.
Desenvolve trabalho com Capoeira em Salvador.
A Capoeira e os Mestres
94
não faz parte do currículo, como as demais disciplinas. A escola
oferece a Capoeira como uma atividade opcional em forma de oficina
ou algum projeto. Uma outra maneira de a Capoeira atuar no espaço
escolar é via os professores de Educação Física que têm habilidade na
prática da Capoeira e escolhem trabalhá-la.
Nas escolas particulares, a Capoeira compreende o rol das
modalidades oferecidas. Nesse caso, o professor de Educação Física é
o responsável pela sua execução; o que provoca na comunidade
capoeirística, severas críticas, particularmente por capoeiristas
identificados com a Capoeira Angola. Haja vista que a intenção desses
profissionais não é de trabalhar a Capoeira levando em conta o
aspecto cultural. O que prevalece é a Capoeira como desporto,
enfatizando a competição. Essa opção limita a potencialidade da
Capoeira que, além da movimentação corporal, tem poesia,
musicalidade e história.
A Capoeira é compreendida como uma prática cultural e
esportiva. Todavia, o que tem sido levado para as escolas é a Capoeira
predominantemente esportiva. As pessoas identificadas com a
Capoeira Angola, com as quais mantive contato em Salvador,
ressaltam a preocupação com a Capoeira desenvolvida nas instituições
escolas.
Segundo Mestre Valmir, o aprendizado da Capoeira numa
disciplina que é dada em seis meses de curso, como acontece nos
cursos de Educação Física, em que a Capoeira é uma disciplina
ofertada em um semestre, compromete o seu ensino. Esse tempo é
insuficiente para a pessoa estar apta a desenvolver um trabalho com
Capoeira nas instituições escolares; avaliam os mestres que m mais
de 20 anos de prática de Capoeira.
A Capoeira e os Mestres
95
Às vezes, as pessoas não sabem tocar um berimbau, não
sabem construir um instrumento, não sabem entrar numa
mata. Tudo isso é conhecimento, na realidade é cultura. A
cultura afro-descendente ela está presente. E mostra a
você o momento de entrar numa mata na força da lua pra
poder tirar uma madeira, pra fazer um berimbau, um
caxixi (Mestre Valmir).
Na compreensão dos capoeiristas, Capoeira demanda prática,
vivência, experiência e contato com os mestres. Trabalhar a Capoeira
com uma visão mais ampla é o objetivo da FICA Fundação
Internacional da Capoeira Angola - entidade a qual o Mestre Valmir faz
parte. O enfoque é o respeito para com o outro e a valorização da
identidade afro-brasileira. Complementa o mestre: quando a gente fala
de Capoeira, não podemos dissociar do povo negro a questão do
próprio papel do negro na sociedade na construção, na formação desse
país.
Mestre Valmir, quando leciona Capoeira em escola, privilegia o
trabalho na área cultural, enfatizando a afro-descendência, a
cidadania. Não desenvolve o lado esportivo, no sentido da competição,
como a maioria das instituições escolares faz. Nesse caso, os
professores preparam os alunos para participar dos campeonatos que
acontecem nos estados. O Rio Grande do Norte é um exemplo.
Anualmente acontecem os JERNS Jogos Escolares do Rio Grande do
Norte e, nesse evento, escolas públicas e privadas participam nas
diferentes modalidades; e a Capoeira compreende uma delas.
Em 2005 acompanhei a atuação da Capoeira no JERNS. Os
atletas capoeiristas são divididos em categorias quanto ao gênero -
feminino e masculino, quanto ao peso médio, leve e pesado - e
quanto à idade mirim, infantil e juvenil. Segue aqui a descrição do
que foi observado. Foram formadas duas rodas. Cada uma tinha um
árbitro para dar instruções e marcar o tempo que as duplas tinham
A Capoeira e os Mestres
96
para fazer o jogo. Havia uma só bateria para as duas rodas. Os
instrumentistas eram mestres, contramestres e professores
convidados pelo coordenador da Capoeira no JERNS, o Mestre Marcos.
Primeiramente, as duplas jogaram a Capoeira Angola em seguida
fizeram um jogo nos moldes da Capoeira Regional. Os atletas eram
avaliados por uma comissão julgadora, formada por cinco capoeiristas.
Cada roda tinha a sua. A maioria dos capoeiristas que participaram do
evento era de escolas particulares.
A Capoeira nos JERNS – outubro de 2005 – no CAIC de Lagoa Nova.
Fonte: Ilnete Porpino, outubro de 2005.
2.1.4 A Capoeira e a universidade
A Capoeira e os Mestres
97
A Capoeira é praticada como atividade legitimada em instituição
de ensino superior mais de 30 anos. As formas de atuação se
diversificam em Projeto de extensão, eventos de caráter científicos
de curta duração -, disciplina da grade curricular dos cursos de
Educação Física em algumas universidades. Além dessas atuações, o
tema da Capoeira como objeto de estudo, tem alimentado
monografias, dissertações e teses em vários cursos de pós-graduação.
Nas universidades, na maioria dos casos, a Capoeira existe na
condição de Projeto de Extensão. Anualmente os projetos são
aprovados, através da Pró-reitoria de extensão, para serem
desenvolvidos durante o período de um ano. Cabe aqui questionar:
como se tal procedimento? Este parte do interesse de algum
professor do departamento em querer escrever o projeto. O mesmo
torna-se o coordenador.
A continuidade do projeto depende da motivação do
coordenador. Então, novamente ele é inscrito e, na maioria das vezes,
aprovado. Para esses projetos, a universidade destina uma bolsa. O
bolsista precisa ter vínculo com a universidade. Geralmente é um
aluno. Durante os anos de 1996 e 1997 recebi o convite para integrar
a equipe de colaboradores no Projeto de Extensão “Capoeiragem um
corpo livre”, coordenado pelo professor Edmilson Pinto de
Albuquerque, do Departamento de Educação Física do Centro de
Ciências da Saúde, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
As aulas eram ministradas por Mestre Robson do grupo Corpo Livre
que, durante 16 anos desenvolveu atividade de Capoeira no setor II de
aulas dessa universidade, no espaço que é reservado aos CA s de
humanas – Letras, História e Ciências Sociais.
Para enfatizar a inserção da Capoeira no currículo das
universidades brasileiras, tomamos como referência o estudo de Falcão
(2004). A Universidade Federal da Bahia (1971) foi pioneira, sendo
A Capoeira e os Mestres
98
seguida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1972) e
Universidade Católica de Salvador (1982). Para o autor, nos últimos
anos, as universidades é um espaço fértil para disseminação da
Capoeira como disciplina curricular. Conforme Mestre Falcão, a
Capoeira
se encontra presente, na condição de componente
curricular, em cerca de vinte universidades brasileiras,
dentre elas, Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Universidade Federal da Bahia (UFBA),
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Brasília
(UnB), Universidade Gama Filho (UGF), Universidade
Católica de Salvador (UCSAL), Universidade Estadual de
Feira de Santana - UEFS (FALCÃO, 2004, p. 193).
Uma outra maneira de a Capoeira estar presente na universidade
- se bem que é uma passagem muito rápida - é através de oficinas
programadas durante os eventos anuais que fazem parte do calendário
letivo. A CIENTEC (Semana de Ciência, Tecnologia e Cultura) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte no ano de 2001 ofereceu
na sua programação, a oficina Da ginga da Capoeira ao passo do
frevo. Nos anos de 2002 e 2003, uma das tantas oficinas selecionadas
para o evento foi O berimbau e os ritmos da capoeira. Ambas as
oficinas tiveram a minha pessoa como coordenadora.
2.2 TEM MULHER NA RODA: A PRESENÇA FEMININA NA
CAPOEIRA
“Capoeira é pra homem, menino e mulher”.
A Capoeira e os Mestres
99
De fato, hoje essa é a realidade; mas nem sempre foi assim.
pouco tempo, uma das identificações atribuídas à Capoeira era a de
que ela era coisa de homem. E sem vida, isso não acontecia com
a Capoeira. Nas diversas manifestações populares que envolve a
expressividade corporal, numa performance própria a cada uma,
encontramos hoje aquelas em que somente homens fazem parte.
No Rio Grande do Norte, temos dois exemplos: o Zambê e os
Congos de Calçola. Eles dançam, cantam e tocam. Na maioria das
manifestações da Cultura Popular a formação é mista; tanto homens
como mulheres vivenciam-na. É o caso do Maracatu de Baque Solto,
Maracatu de Baque Virado, Tambor de Crioula. Boa parte delas,
herdadas da cultura africana.
Ao pensarmos as modificações vivenciadas pelas manifestações
culturais ao longo da sua existência, é oportuno perguntar com relação
à composição delas pelos agentes sociais homens e mulheres - será
que sempre foi assim? As manifestações de caráter misto eram
diferentes? Se eram, qual a lógica específica daquele mundo social que
produziu essa realidade?
Com a Capoeira, podemos dizer que até a década de setenta, ela
era uma prática cultural predominantemente masculina. O número de
mulheres que praticavam era insignificante. Buscar as razões para isso
é conhecer a condição da mulher na sociedade brasileira pouco
menos de um século, no que se refere à relação entre os gêneros e,
situar o lugar da Capoeira nesse período em que a ausência da mulher
era notória.
De um modo geral, a situação da mulher no Brasil até a primeira
metade do século XX era muito diferente. Se fizermos uma
reconstrução histórica da condição feminina no país, podemos
A Capoeira e os Mestres
100
constatar que elas estavam destinadas à subordinação, à submissão, à
repressão, à descriminação e à desvalorização. Havia uma absoluta
sujeição da mulher ao homem, prevalecendo o tratamento desigual.
No Brasil, essa história começa com a colonização. Durante um
longo tempo, o papel da mulher era a maternidade, tomar conta das
crianças e do lar. Para justificar a dominação masculina, idéias o
faltavam. Convém lembrar que, lentamente a situação vai se
redefinindo em vista das transformações que a própria sociedade
passa no caminhar do século XX. Hoje, podemos encontrar as
mulheres em praticamente todas as atividades reservadas aos
homens.
Essas considerações são necessárias para introduzir a apreensão
do Mestre Pirajá, sobre a ausência da mulher na Capoeira até os anos
setenta. Interrogado por que antes do final dessa década não tinha
mulher na Capoeira, assim responde o Mestre:
Era machismo, era machismo mesmo. Porque a sociedade
brasileira sempre foi machista. Hoje diminuindo. Mas,
veja bem, a mulher apesar das grandes conquistas que
teve, mas ela sempre era vista apenas como dona de
casa, criadora de menino e parideira. Só. Esse era o
pensamento daquela época antiga. Entendeu? Da época
dos meus pais, dos meus avós. Hoje em dia não. A
mulher conquistou um espaço (Mestre Pirajá).
Como ponto de partida para essas constatações, incorporamos
a tese da dominação masculina proposta por Bourdieu. Independente
das mudanças provenientes dos movimentos sociais, especialmente o
movimento feminista que foi significativo no sentido de contribuir para
a redefinição do papel da mulher no espaço social, a dominação
masculina encontra-se entrelaçada tanto nos homens, como nas
A Capoeira e os Mestres
101
mulheres. Elas podem contribuir para sua própria dominação.
(Bourdieu, 1998, p. 14).
Hoje, é consenso entre os mestres enfatizar a importância da
presença feminina na Capoeira, mesmo àqueles que antes negava a
participação delas. O que mudou? Mestre Pirajá conta que até o final
da década de setenta não tinha mulher no seu grupo. Nessa época, ele
era mestre do grupo Senzala, na cidade do Recife. Ao perguntar se
era comum às mulheres procurá-lo para fazer aula, disse que uma ou
outra aparecia querendo aprender Capoeira, mas ele não ensinava.
Atualmente, Mestre Pirajá é o mestre maior do grupo Axé.
Segundo ele, 40% dos capoeiristas desse grupo são mulheres,
destacando as estrangeiras como as melhores na qualidade do jogo. A
dedicação delas aos treinos é o diferencial. Ao interrogar sobre a razão
que levava a não inclusão da mulher no grupo, a explicação dada por
ele - formado na tradição capoeirística do Mestre Bimba - era de que
estava seguindo a linha dos mestres antigos, uma tradição que parecia
invariável.
Dentro da capoeiragem, mesmo com o Mestre Bimba e
com mestres mais velhos. Entendeu? A única função da
mulher era servir de coro, cantar, responder, bater palma.
Então, pra jogar mesmo, fazer movimento, não. Isso foi a
partir do início de 1980. foi quando eu comecei a ter as
primeiras alunas (Mestre Pirajá).
O que podemos perceber quanto à participação feminina na
Capoeira é que, ao manifestar-se de forma diferente - porque fazer a
movimentação era prática reservada apenas aos homens -, ela vai se
dando numa condição limitada. As constatações feitas apontam que,
até recentemente, às mulheres na Capoeira é reservado um papel
secundário. Obviamente, a tradição a qual o mestre seguia tinha na
sua construção uma fortíssima influência das representações próprias
A Capoeira e os Mestres
102
de uma época em que ser mulher era manter-se quase que totalmente
excluída dos espaços públicos.
Além dessa questão de fundo, não podemos negar o fato de que,
atrelada a ela, também a situação em que se encontrava a própria
Capoeira. Se no início da 2ª metade do século XX a situação da mulher
fosse a que é hoje, com relação à sua participação em várias
atividades, possivelmente, isso por si não era suficiente para que
nesse período pudéssemos encontrar uma presença significativa da
mulher nas rodas de Capoeira, em condições semelhantes às do
homem.
O discurso que fora produzido sobre a Capoeira constituía
representações de valor negativo - Coisa de vagabundo, de marginal,
de valentão. Além do fato de que o racismo e a discriminação eram
fortes na sociedade; alguns garotos que tinham vontade de praticar
Capoeira eram proibidos pelos seus pais e, dirá as garotas!
De um espaço masculino para um espaço comum aos dois
gêneros, se formos pensar no tempo que a Capoeira tem de
existência, é recente a presença feminina na Capoeira. Hoje, é
significativo o número de mulheres que a praticam. No entanto,
questões se colocam: onde estão as capoeiras mestras? Por que o
número é tão insignificante?
Ao pensarmos a estrutura hierárquica da Capoeira e
entendermos que ela não é única, pois sofre variações entre escolas,
estilos ou grupos, a pesquisa revela que o número de mulheres
diminui na medida em que se aproxima a titulação de mestre. Mestre,
mestrando ou contramestre, professor, instrutor, estagiário e aluno
compreende uma das graduações usadas pela maioria dos grupos de
Capoeira.
A Capoeira e os Mestres
103
2.3. DA BAHIA PARA O MUNDO: A EXPANSÃO DA CAPOEIRA
Conforme a história recente da Capoeira, registrada na
memória dos mestres e em um número considerado de pesquisas, a
Bahia, em especial, a cidade de Salvador foi um pólo irradiador de sua
prática. De migraram capoeiristas com a intenção de desenvolver
um trabalho com Capoeira nos estados do centro-sul do Brasil e no
estrangeiro; inclusive para centros urbanos onde a Capoeira, praticada
desde o período colonial, encontrava-se silenciada por ocasião do
código penal que a reprimiu severamente. Foi o caso do Rio de Janeiro
e Recife. A literatura sobre a Capoeira, quando trata da sua expansão,
tem enfatizado o fato de que a cidade de Salvador, a partir da década
de setenta também recebe pessoas de outros lugares do país a fim de
aprender a Capoeira e desenvolver um trabalho na sua cidade.
Pensar a Capoeira a partir dos anos setenta é reconhecer uma
situação nova: a expansão histórica da Capoeira. De início, ela é
situada internamente no Brasil para, em seguida, absorver o exterior.
Dois aspectos considerados significativos estão relacionados à sua
expansão: o movimento migratório e a atividade turística, não
podendo ser entendida fora desses contextos, sob pena de se cometer
uma compreensão insuficiente do fenômeno. Com isso, não queremos
dizer que apenas os dois aspectos explicam o processo da expansão.
As colocações que seguem têm apenas um caráter inicial e
exploratório, nada mais que algumas notas, em função do que
achamos possível uma primeira abordagem do tema.
Para compreender o processo de expansão da Capoeira, é
necessário situá-lo no contexto histórico do movimento migratório e do
desenvolvimento do turismo. Por volta da primeira metade do século
A Capoeira e os Mestres
104
XX
38
, acontece em praticamente todo o Nordeste uma movimentação
em direção aos grandes centros urbanos, sobretudo, para a região
Sudeste Rio de Janeiro e São Paulo. Era comum encontrar pessoas
nas cidades nordestinas com necessidades e desejos de buscar
melhorias para suas vidas. Entre os imigrantes nordestinos que se
deslocaram para cidades do centro-sul, migraram para aqueles que,
além de terem uma profissão, tinham habilidades com Capoeira.
Estamos nos referindo aos baianos - a maioria - natural de Salvador.
Em 1998 a Capoeira comemorou meio século de existência em
terras paulistas. Eventos organizados por grupos de Capoeira e
reportagens especiais não faltaram na programação dos festejos. Entre
os discursos pronunciados com freqüência, numa saudação às bodas
de prata, uma ênfase dada ao processo de expansão da Capoeira.
Embora a maioria das pessoas entrevistadas tome como referência
Salvador, quando o tema é a expansão, os paulistas reivindicam a
cidade de São Paulo. Ao apresentar São Paulo como o grande pólo de
irradiação da Capoeira, as reportagens especiais produzidas pela
Revista Capoeira Arte e Luta Brasileira, negam o discurso que
ênfase à Bahia. Foi da Paulicéia que a capoeira ganhou asas
conquistou o mundo reza o editorial da revista.
Conforme as informações publicadas na referida revista, a
presença da Capoeira em São Paulo tem relação com a chegada de
três jovens capoeiras baianos: Esdras Magalhães dos Santos, Manoel
Garrido Rodeiro e Fernando Rodrigues Perez. Esse fato ocorreu em
dezembro de 1948. O objetivo deles era acertar um contrato de
temporada para shows com Jacob Naum, um empresário de lutadores
e promotor de espetáculos de artes marciais. A partir daí, São Paulo
iria conhecer a Capoeira.
38
Sobre migração do Nordeste para o Sul (como era costume chamar as grandes
metrópoles da Região Sudeste) ver Durval Muniz, A invenção do Nordeste e outras
artes, p. 152.
A Capoeira e os Mestres
105
Nessa época, os espetáculos de luta tinham uma visibilidade na
cidade e os capoeiristas costumavam participar. Em o Paulo, as
lutas, na sua maioria, eram apresentadas como espetáculo de exibição
e não ‘para valer’. Os capoeiras eram formados pelo Centro de Cultura
Física Regional em Salvador, a Escola de Capoeira do Mestre Bimba. A
intenção dos rapazes era apenas mostrar a Capoeira baiana no Sul do
Brasil, como costumavam falar. Não estavam pensando em implantá-
la em terras paulistas. No mesmo ano, com os contratos feitos, chega
Mestre Bimba
39
acompanhado de cinco alunos que se somam aos três
para cumprir a temporada. O treinamento deles acontecia numa
academia de boxe, localizada à Rua Santa Efigênia.
A temporada que consistia em disputas de vale-tudo com os
lutadores paulistas da modalidade, foi cumprida em fevereiro e março
de 1949. As lutas dos capoeiristas tinham receptividade e platéia que
lotava o Pacaembu - conta Esdras Magalhães dos Santos, ao repórter
da Revista Capoeira. Esse capoeirista, de apelido Damião, é um nome
lembrado na história da Capoeira em Santa Catarina. Na década de
sessenta, os alunos do Mestre Bimba aceitaram o convite do setor de
turismo de Joinville para uma turnê de apresentações naquele estado;
liderando o grupo, estava Damião.
Em São Paulo, a Capoeira os primeiros passos numa
academia de boxe; a mesma que recebeu os capoeiras de Bimba para
treinar. As aulas de Capoeira foram ministradas durante dois anos
(1950/1951) por Esdras. De 1957 a 1958, na mesma academia, o
jornalista Augusto Mario Ferreira, recém-formado por Mestre Bimba,
retoma as aulas.
No final dos anos cinqüenta, José de Freitas, outro capoeira
recém-chegado, sublocou espaço para dar início a um curso de
39
A respeito da participação de Bimba nas lutas ver Frederico José de Abreu em
Bimba é Bamba: A Capoeira no Ringue. Salvador: Instituto 1999.
A Capoeira e os Mestres
106
Capoeira, no Bairro do Brás. Pouco depois, um carioca, de nome
Valdemar, abre a primeira academia.
Na década de sessenta, o jornalista Augusto abriu o Centro de
Capoeira Regional Ilha de Maré em parceria com Paulo Gomes da Cruz,
um capoeira baiano, ex-aluno do Mestre Artur Emídio que tinha uma
academia no Rio de Janeiro. Nessa época, continuam a chegar a São
Paulo capoeiras da Bahia e do Rio: Suassuna, Brasília, Joel, Ananias,
Limão, Airton Onça e Acordeon. A primeira geração de capoeiras de
São Paulo era uma questão de tempo. Nomes como Pinatti, Gladson e
Almir das Areias fizeram parte dela.
Na década de setenta, a Capoeira era uma realidade no mundo
dos paulistas. Conforme Mestre Pinatti, em 1970 funcionava na cidade
de São Paulo nove academias, entre as quais estava a dele - a São
Bento Pequeno. A respeito do que vem sendo apontado, podemos
perceber que a Capoeira se expandiu como conseqüência dessas
pessoas que saíram de Salvador para trabalhar em terras distantes,
quer seja em São Paulo, Nova York ou na Europa. Como vimos
anteriormente, nesse período, foi significativa a movimentação de
turistas em Salvador. As academias de Mestre Pastinha e Mestre
Bimba eram locais de visitação dos turistas e muitos eram
divulgadores da Capoeira em suas terras.
Diante dessas informações, não podemos esquecer que um ano
antes de falecer, em 1973, um dos mais famosos mestres de Capoeira,
o Mestre Bimba, com 74 anos, decidiu seguir o exemplo daqueles que
sonhavam encontrar em outras terras expectativas de uma vida
melhor materialmente. Motivado por um convite feito por um de seus
alunos, ele partiu para se radicar em Goiânia. Vale salientar que nesse
processo de expansão da Capoeira, a Capoeira Regional teve um
espaço maior em detrimento da Capoeira Angola.
A Capoeira e os Mestres
107
A grande maioria daqueles capoeiras que se deslocaram de
Salvador para outros centros urbanos vinha da linhagem de Mestre
Bimba. Hoje, o avanço da Capoeira Angola, tanto no país como no
estrangeiro, é um fenômeno visível. No Brasil, começa a acontecer a
partir dos anos oitenta, com o dedicado trabalho dos Mestres Moraes e
Cobra Mansa. Em 1990, João Grande levou a sério a mensagem do
Mestre: “Espalhai a Capoeira pelo mundo!”, e decidiu deixar Salvador
para trabalhar com Capoeira Angola em Nova York.
A respeito da expansão da Capoeira pelo mundo, informou
Mestre Pinatti, no fórum cultural mundial realizado em São Paulo no
ano de 2004:
a Capoeira conquistou o mundo de forma avassaladora,
sem uma ação organizada de exportação, sem auxílio
oficial (...) sozinha, solitária, valente e destemida;
conseguiu conquistar o mundo através de seus encantos,
seu glamour, seu carisma (Mestre Pinatti).
Sobre a fala do Mestre Pinatti, pode-se entrever uma lamentação
pelo que não se teve para a Capoeira: ausências de apoio financeiro,
logístico, culminando com a falta de interesse, valorização,
reconhecimento dos órgãos governamentais em divulgar a Capoeira
fora do país. O Mestre também acentua com orgulho a capacidade
que teve a Capoeira de conquistar o mundo, caminhando com seus
próprios pés.
Ainda a respeito da expansão da Capoeira, ouvi do historiador
Frede Abreu
40
, que o processo como a Capoeira se expandiu nem
sempre foi pela via dos mestres antigos. Ela vai pelo aventureiro. Os
40
Frede Abreu, historiador. Nasceu em Salvador no ano de 1946. É um nome
conhecido no campo da Capoeira. Proprietário de um grande acervo de Capoeira. É
autor de alguns trabalhos sobre Capoeira. Entre eles destaca-se: Bimba é Bamba: a
Capoeira no ringue; O Barracão de Valdemar e A Capoeira no século XIX.
A Capoeira e os Mestres
108
primeiros partiram na década de setenta, a maioria de Salvador. Nos
anos 90, temos capoeiristas saindo de outras cidades do Nordeste do
Brasil para ensinar Capoeira fora do país. Um dos exemplos, entre
tantos, é o de Marcos Antônio da Silva - o Mestre Barrão - que em
1992 deixa Recife, para viver no Canadá, e lá, diz o mestre: conquistar
a realização pessoal e profissional. (Entrevista a Revista Capoeira, Arte
e Luta Brasileira, 2000).
Quase sempre a história que os mestres contam a respeito da
maneira como eles chegam até esses países tem relação com convites
feitos por estrangeiros, empresários ou não, após terem assistido à
apresentação de Capoeira do grupo. O que acontece: o grupo recebe o
convite para uma turnê fora. Quando termina o contrato, um ou outro
do grupo decide ficar.
Nas conversas com os mestres, a expansão da Capoeira foi uma
questão recorrente. As representações elaboradas por eles, são
dotadas, na maioria das vezes, de uma valorização positiva. Esta tem
relação com a garantia de uma vida melhor e com a valorização e
interesse do pessoal de fora pela Capoeira que, segundo os capoeiras,
é bem maior que no Brasil.
Ao falar do crescimento da Capoeira fora do país, Mestre Nenel,
em seu depoimento, enfatizou o reconhecimento, a valorização e o
interesse no que diz respeito à participação dos capoeiristas
estrangeiros.
Fora do Brasil, a receptividade à Capoeira é muito grande.
É fantástico. E isso é muito prazeroso. Você nasce, cresce
aqui na BA, dentro da sua própria cultura e não tem um
reconhecimento desse tipo. Na Europa, você as
pessoas levando as crianças pra freqüentar a Capoeira.
Você pessoas de todas as idades. Eu fico boquiaberto
de a sede que as pessoas têm fora. Voacaba de
dar uma aula, faz uma roda e ainda eles ficam treinando
na frente do espelho. Fica treinando um com o outro. A
vontade que eles têm de se envolver com a história da
A Capoeira e os Mestres
109
Capoeira é enorme. E aqui não tem essa coisa; e aí, você
como baiano, como um brasileiro, como capoeirista,
chega e aquilo fica alegre e triste porque a fonte é
aqui (Mestre Nenel).
A avaliação do Mestre Nenel a respeito da valorização e
dedicação dos capoeiristas estrangeiros é repetida na fala de outros
tantos mestres quando o ponto em discussão é a atuação dos
estrangeiros praticantes de Capoeira. Todavia, o reconhecimento dessa
positividade vem acompanhado de preocupações no que tange às
pessoas que estão trabalhando com Capoeira. Uma delas é a de que
nem todo mundo que está fora tem condições de estar desenvolvendo
um trabalho com Capoeira. Ao tecer comentário sobre essa questão,
Mestre Sapo disse:
tem pessoas fora que não estão preparadas para
ensinar. Não são mestres. As estrangeiras chegam aqui e
levam eles. Chega na Europa e já se auto-intitulam de
Mestre de Capoeira (Mestre Sapo).
Um discurso recorrente na fala dos mestres, quando entramos
nesse ponto, é o de que muitos que estão na Europa e em outros
lugares foram levados pelas estrangeiras. Estes capoeiras são
acusados pelos mestres de serem falsos mestres. Para efeito de mais
esclarecimentos, essa questão se trabalhada no capítulo seguinte,
quando trataremos da construção do mestre.
Ainda sobre a expansão da Capoeira, não poderia deixar de
mencionar a visão do Mestre Moraes, que assim se expressa:
A partir do momento em que a Capoeira tornou-se um
passaporte para as pessoas irem para a Europa, para
América e tal, eu disse tudo bem, sem problemas. Agora,
A Capoeira e os Mestres
110
que a Capoeira seja levada, para esses lugares, da forma
como ela é. Não alterar a Capoeira em função dos
interesses de fulano, sicrano e beltrano. Nada. Entendeu?
Tem um pensador, um filósofo africano que disse: ‘se
querem saber o que eu sou, se querem saber o que eu
sei, esqueça quem tu és, esqueça o que tu sabes’. Então,
eu não acredito que eu tenho que levar a Capoeira para
que ela se adapte a A, B, ou C. A, B, ou C é quem tem
que se adaptar à Capoeira. (...) A forma como eu ensino
Capoeira aos meus alunos aqui, é a forma como eu saio
para ensinar lá. O meu trabalho com Capoeira tem sido
assim, procurado levar a Capoeira para as pessoas e não
para que a Capoeira se adapte às pessoas, mas que as
pessoas se adaptem à Capoeira (Mestre Moraes).
A forma como a Capoeira está sendo ensinada fora do Brasil é
um aspecto questionado pelo Mestre. Não uma visão hegemônica,
o que provoca disputas e lutas no campo capoeirístico. Realmente,
mestres que consideram ser necessário fazer adaptação do seu
conhecimento para o conhecimento das pessoas estrangeiras porque a
cultura delas é diferente, justifica o Mestre Cobrinha Mansa defensor
da adaptação. Como exemplo, ele citou alguns trechos de músicas
41
que não têm sentido serem cantadas porque as pessoas não
conhecem determinados vocabulários.
Na visão do Mestre Moraes, a maneira como a Capoeira é
ensinada fora deve persistir da forma como acontece no Brasil. À
medida que a Capoeira sai do Brasil, não há necessidade de inovações,
adaptações. Porque se assim acontecer, ela está deixando de ser o que
é.
2.4. A CAPOEIRA É TAMBÉM PROFISSÃO
41
Tabaréu que vem do sertão, vendendo maxixe, quiabo e limão.
A Capoeira e os Mestres
111
Capoeira - que um dia foi representada e registrada pela maioria
dos segmentos da sociedade, como coisa de desocupado, malandro,
vadio - agora é considerada, na prática, uma profissão. Para os
capoeiras, dos anos trinta até os anos setenta do século passado, a
Capoeira era considerada brincadeira nas horas vagas. Hoje, pessoas
vivem do trabalho com Capoeira em vários cantos do mundo.
Até os anos setenta, em geral, os mestres não tinham a
Capoeira como uma profissão, um ofício, um trabalho, uma atividade
que o possibilitasse viver dela. Mestre Bimba é uma exceção. Como
ilustração, para confirmar a afirmação anterior, em uma entrevista
concedida à Revista Capoeira, o Mestre Onça-Tigre, ex-aluno do
Mestre Bimba, disse que um dia lhe perguntou por que não havia
negro em sua academia. A resposta que ouviu do Mestre Bimba foi:
“negro não pode pagar, meu filho. E eu vivo disso”! Tal fato deve ter
acontecido entre os anos 1938 e 1943, período em que foi aluno do
Mestre Bimba.
Para a maioria, a Capoeira, representava brincadeira nas horas
vagas”, como dizem os mestres. Ela não era oportunidade de garantir
a sobrevivência. Os velhos mestres trabalhavam como estivadores,
pescadores, feirantes, marinheiros, funcionários públicos, pedreiros,
motoristas, cortadores de cana, entre outras ocupações. Essa condição
nos remete aos mestres de Cavalo-Marinho e de Maracatu de Baque
Solto que ainda hoje vivem de cortar cana na Zona da Mata Norte
Pernambuco. Tal evidência nega o discurso que relaciona Capoeira à
coisa de malandro, de desocupado. Essa imagem negativa do capoeira
vem desde o período da escravidão. Os capoeiristas eram
trabalhadores de diferentes ofícios.
Numa situação outra, distinta de um passado ancorado em
ilegalidade, proibição e negação, o momento da Capoeira agora é o de
celebração, valorização e divulgação. Essa nova imagem pode ter
A Capoeira e os Mestres
112
influenciado as pessoas, no sentido de elas se sentirem atraídas,
seduzidas e com vontade de praticar, de se inserir - de alguma forma -
na Capoeira. Para ressaltar esse aspecto, é necessário sublinhar que a
Capoeira, ao conquistar novos públicos, oportunidade para aqueles
que tinham uma vivência cotidiana com a mesma - traduzida em
diversão - ampliarem seu significado, sua representação. Ela agora -
além de brincadeira - é trabalho.
Diante dessa realidade, viver da Capoeira era uma possibilidade.
A maioria deixou a profissão que tinha para se dedicar ao trabalho com
a Capoeira - ensiná-la a quem quisesse aprender. Essa era uma das
situações que começava a ser colocada para o capoeirista a partir dos
anos setenta. Com a Capoeira, a depender da sua vontade, ele podia
ter horizontes e projetos. Viver dela e para ela passa a ser uma
pretensão alcançada por muitos deles. Capoeiristas formados por
esses mestres - o pessoal novo - ainda sem profissão, escolhem
trabalhar com Capoeira, que esta se projeta internacionalmente
como um produto brasileiro de grande público.
Confirmando essa realidade, cabe destacar as palavras do Mestre
Sabiá
42
, a respeito da escolha em trabalhar com Capoeira.
Todos os meus irmãos fizeram faculdade. Eu fui o único
que não fiz. E depois de um tempo, o maior
salário da casa
é o meu. Com a Capoeira eu tive oportunidade de
conhecer muitos lugares. De jantar com ministro, de fazer
apresentação pra presidente. Isso tudo eu não teria se
fosse professor de Educação Física e nem um médico. De
ganhar fora por dois dias de trabalho 1500 euros. É
uma grana. Entendeu? Então, a Capoeira me fez ver que a
gente pode chegar aonde a gente quer. Se a gente tem
vontade, se a gente acredita. É o que eu tento passar
para os meus alunos. Vocês podem chegar em qualquer
42
Mestre Sabiá, cujo nome de batismo é Jair Oliveira de Faria Júnior. Nasceu em
1972 na cidade de Ilhéus. Tem 22 anos de Capoeira e trabalha com ela há 15 anos.
A entrevista foi concedida à autora em 17/06/2005.
A Capoeira e os Mestres
113
lugar com a Capoeira e pode chegar de cabeça erguida,
de forma digna, de forma honesta e se apresentar. E ter
orgulho (Mestre Sabiá).
A Capoeira existe como profissão no discurso dos capoeiristas. A
fala do Mestre João Pequeno, o mais antigo mestre de Capoeira, é
representativa para sustentar o que ora foi colocado: “A minha vida eu
divido em duas partes. A parte espiritual, eu entrego nas mãos de
Jesus Cristo e a parte material é a Capoeira, que é a minha profissão
(2002, encarte do CD João Pequena de Pastinha).”
Atuante, com seus 90 anos de idade, o mestre defende a
Capoeira como a sua profissão ampliando o coro daqueles que, com
orgulho, afirmam: “a minha profissão é a Capoeira,” “eu vivo da
capoeira,” “trabalho com Capoeira”; e estabelece com ela uma relação
de complementaridade da vida. Com a profissionalização da Capoeira,
a maioria dos mestres passou a vivenciar a possibilidade de se manter
apenas da sua arte. Profissionalização é uma categoria que se insere
no campo da Capoeira recentemente, quando os capoeiristas se dão
conta de que podem trabalhar com Capoeira.
2.5. A CAPOEIRA E SEUS MESTRES: UMA APROXIMAÇÃO
TEÓRICA
Para pensar as novas relações sociais, as tramas simbólicas e os
jogos de poder existentes no campo da Capoeira, é necessário fazer
uma aproximação com algumas categorias teóricas, discursivas da
A Capoeira e os Mestres
114
Sociologia de Pierre Bourdieu. As noções operatórias de campo social,
habitus e capital são relevantes para esse exercício. A pretensão aqui
é apresentar, de forma sucinta, questões pertinentes a essas
categorias, sinalizando para a temática em estudo.
Iniciaremos com algumas considerações sobre a noção de campo
social, uma vez que, trabalhar a Capoeira como um campo social, na
perspectiva Bourdesiana, consiste a nossa hipótese teórica. Campo
social é o local de luta constante, de relações de forças, é o espaço do
jogo. Seja ele político, acadêmico, cultural, artístico; relaciona-se com
o poder (internamente, dentro do próprio campo e externamente, em
relação com a sociedade).
Ao buscar a legitimação dos valores e poderes, princípios
definidores de um espaço socialmente estruturado, os atores lutam em
função das posições que ocupam no campo, isto é, da distribuição do
capital específico e da percepção que eles têm do campo, quer para
conservação, quer para a transformação.
Em As regras da arte, quando discute O mercado de bens
simbólicos, Bourdieu (2002) mostra que o campo é uma estruturação
social, um sistema estruturado, com suas hierarquias, seus códigos,
com suas disputas, com seus trunfos, com seus anjeux aquilo pelo
qual se luta, pelo qual se disputa num determinado momento. Como
exemplo aproximativo, destacamos as disposições dos mestres de
Capoeira em virtude dos deslocamentos socioculturais apontados.
Ao considerar esse aspecto, não é arriscado afirmar que no
campo da Capoeira, os estilos Capoeira Angola e Capoeira Regional
disputam à forma de conceber a própria Capoeira. Como vimos,
recentemente, a Capoeira contemporânea vem sendo destacada por
capoeiristas como um outro estilo. Os mestres lutam em função das
posições que ocupam. Como os campos são constituídos por sub-
campos, com suas lógicas e regras próprias, podemos considerar as
A Capoeira e os Mestres
115
Capoeiras Angola, Regional e Contemporânea como sub-campos da
Capoeira.
Podemos dizer que os mestres - sejam eles da época em que
Capoeira significava apenas brincadeira, diversão, sejam os que vivem
o tempo de hoje - repetem coisas comuns às quais o traduzidas
numa forma de apreensão e decodificação do universo em que se
encontram inseridos: o campo da Capoeira. Os esquemas cognitivos, a
linguagem corporal dos capoeiristas mestres e a forma de eles agirem,
constituem, na perspectiva de Bourdieu, o habitus - uma lógica da
prática, conseqüência de uma inserção objetiva no espaço social o
campo da Capoeira.
Os habitus são esquemas de percepção de pensamento e ação
que somente funcionam dentro de determinados espaços
estruturados específicos, social. Para nos movimentarmos dentro
desse espaço social, para nos fazer existir, é necessário que tenhamos
o habitus, construamos o habitus daquele espaço social, do campo
social: o habitus dos sem-terras, o habitus dos mestres de Capoeira, o
habitus dos acadêmicos, entre outros. Os hábitus dos mestres de
Capoeira funcionam e têm um sentido de ser no universo em que eles
estão inseridos. Incorporar e decifrar os códigos do campo da Capoeira
ter o habitus - é condição para fazer parte dele, para se comunicar,
para se movimentar e para usufruir da sua inserção, de seus trunfos,
de seus capitais nesse espaço específico.
No tocante ao capital, este existe em função de determinados
campos. Capital econômico, capital social, capital cultural e capital
simbólico são formas reconhecidas e legítimas de diferentes espécies
de capital. Ao chamar atenção para o capital cultural dos mestres de
Capoeira, é relevante perceber como ele se apresenta. Sendo assim,
faz-se necessário compreender que, dentro de um campo, as
A Capoeira e os Mestres
116
estruturas de capital (social, cultural, econômico, escolar) não são as
mesmas para os que nele estiverem inseridos.
Se os diferentes tipos de capital são distribuídos e disponíveis de
forma desigual, e não se adquire instantaneamente, podemos dizer
que o capital cultural dos mestres não é igual. Ao tomarmos como
exemplo os mestres Bimba e Pastinha, pela trajetória de cada um,
verifica-se que as estruturas de capital dos mestres são distintas,
principalmente no que se refere ao capital social e cultural.
A aproximação de Mestre Bimba com estudantes universitários
da classe média baiana e com outros tipos de lutas - jiu-jitsu, batuque,
boxe, luta-livre - o que não foi o caso do Mestre Pastinha, aponta para
a posse de um capital, respectivamente, social e cultural diferente; um
investimento, demarcando o seu lugar no campo da Capoeira. Para
engendrar mudanças, foi preciso o Mestre Bimba possuir uma
estrutura de capital diferenciada dos demais mestres.
Bourdieu, em Meditações Pascalianas (2001) assinala que
universos como os do esporte, da música ou dança, exigem um
envolvimento prático do corpo que não é cobrado aos que se iniciam
em outros universos, como o do campo científico. O envolvimento
prático do corpo de forma fervorosa é investimento no capital cultural,
que irá assegurar ao mestre de Capoeira uma posição dominante no
campo.
A participação dos capoeiristas (mestres ou não) em encontros
de mestres, eventos regulares de caráter nacional e internacional
organizados pelos grupos, cursos de Capoeira promovidos por
instituições de ensino superior e as viagens, especialmente, à Bahia,
somados ao investimento do corpo credencia-os a ter um destaque
maior no campo.
No imaginário social dos capoeiras, a Bahia ocupa um lugar de
referência. Pensado enquanto espaço tico que confere prestígio e
A Capoeira e os Mestres
117
saber a mestres formados lá, ou pelo menos, que fizeram cursos,
alguns capoeiristas qualificam como o melhor mestre aquele que viaja,
faz curso com os velhos mestres de Salvador.
Reis (1993) nos diz que a legitimação de passar pela Bahia e,
especialmente, pelo aprendizado junto aos velhos mestres de Capoeira
Angola de Salvador, é significativa para os novos mestres. Podemos
acrescentar que se trata, portanto, de investimento no capital cultural.
A despeito do que ora foi dito, a imagem dos idosos, atribuída
aos velhos mestres na Capoeira, afasta-se do sentido predominante do
velho na sociedade ocidental, historicamente tidos como improdutivos
e dispensáveis. Acredito que esse discurso de valorização dos mestres
antigos é recente. Mas a partir de quando ele é produzido? Quem os
produziu? Qual o seu significado? Mestre Pastinha, por exemplo,
quando vivo não teve esse reconhecimento que lhe é dado hoje.
Poderíamos pensar que há, nesse caso, uma construção de um
referencial mítico tanto para o lugar - a Bahia -, como para a
representação positiva atribuída aos velhos mestres. A construção e
produção da Bahia enquanto espaço mítico é uma questão importante
para reflexão. A idéia de mito fundador apresentada por Chauí (1996)
parece potencializar essa discussão. Um mito que impõe um vínculo
com o passado, que se conserva no presente.
Retomar a idéia do passado, da tradição, um discurso presente
no campo da Capoeira, nos convida a refletir sobre os discursos
proferidos por mestres que demonstram o desejo da Capoeira voltar a
ser como era antes, na época do Mestre Pastinha, do Mestre Bimba
dois nomes notabilizados nesse campo - enfatizando o apelo à
tradição. Nesse caso, a idéia de tradição não é dinâmica, mas é algo
petrificado, cristalizado, a -histórico. Questão que se configura no
campo da Capoeira a uma relação de disputa, de conflito, e inserida na
lógica de um mercado de bens simbólicos, uma necessidade vai se
A Capoeira e os Mestres
118
colocando: a de manter-se diferente, mesmo que seja com a idéia de
se voltar ao passado - um querer um tanto impossível. Essa questão
se orienta para o estudo realizado por Featherstone (1995), ao
analisar a relação entre estilo de vida e cultura de consumo.
Os novatos adotam estratégias de subversão, buscam a
diferença, a descontinuidade e a revolução, ou uma volta
às origens, para detectar o verdadeiro sentido de uma
tradição – estratégias para criar um espaço próprio e
desalojar os dominantes (FEATHERSTONE,1995, p. 131).
Com relação à idéia de que o espaço mítico confere prestígio e
saber aos mestres, a temática referente ao saber, na perspectiva
apresentada por Foucault (1984) é substantivamente relevante para a
interpretação e compreensão do saber no campo capoeirístico. O
saber, aponta Foucault, é aquilo que se torna prática discursiva
especificada; é também o espaço em que o sujeito toma posição e
define possibilidade de utilização e apropriação oferecidas pelo
discurso. Não saber sem uma prática discursiva definida sem
sujeitos sociais; portanto, permite variações de diferentes formações
discursivas e se modifica de acordo com suas mutações.
Nas práticas discursivas dos capoeiristas mestres e não-
mestres - o saber é derivado da experiência, do tempo de prática, do
conhecimento: da tradição, dos fundamentos, dos rituais, da história
da Capoeira, de ter viajado à Bahia e ter feito cursos com os velhos
mestres, de participar de eventos: congressos, encontros de caráter
nacional etc.
Entretanto, essas práticas discursivas nas quais se enfatizam a
tradição e as formas tradicionais de saber e prática, sofrem alterações
quando a Capoeira é institucionalizada. Nesse novo cenário, são
inevitáveis as disputas políticas por espaço e status, as divergências
A Capoeira e os Mestres
119
quanto às modalidades e o ensino da Capoeira, e também a
diversidade das identidades dos mestres e dos grupos.
A identidade do velho mestre é, em muitos sentidos, semelhante
à do novo mestre no que diz respeito à valorização da tradição, das
origens, do ritual. O tempo de experiência não é unicamente o
elemento fundamental na definição dessas identidades sociais.
Uma das hipóteses que pode ser considerada como marca das
diferenças entre o posicionamento dos mestres ou dos diferentes
capitais incorporados pelo mestre de Capoeira diz respeito a classe
social, o grau de escolaridade, a relação com as entidades: federação,
associações, a participação em eventos de caráter nacional e
internacional, a relação com a universidade e a relação direta com os
mestres mais representativos da Capoeira, em especial, os
mencionados Mestre Pastinha e Mestre Bimba.
Mesmo com um conjunto de características universais, comuns,
traduzidas em habitus, as diferenças sociais, regionais e de formação
entre os mestres são marcas presentes no campo da Capoeira. É
importante lembrar que até a primeira metade do século XX, para
começar a dar aula, o capoeirista necessitava ter uma vivência no
meio e seguir os ensinamentos de seu mestre, que era informal e
assegurado pela transmissão oral.
CAPÍTULO 3: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO MESTRE DE
CAPOEIRA
A Capoeira e os Mestres
120
Um mestre é como uma árvore de
fruta: nasce, cresce e muitas frutas
que depois vão virar árvore e também
dá fruta, e assim vai indo.
Mestre João Grande
Para compor a abertura desse capítulo procurei caminhos que
me levassem aos Mestres de Capoeira. Nesse trajeto, encontrei em
Um jeito brasileiro de aprender a ser, de sar Barbieri, depoimentos
de Velhos Mestres de Capoeira falando sobre a responsabilidade do
mestre para com a Capoeira. Não tive dúvidas na escolha; as palavras
do Mestre João Grande nos traduzem uma das representações
atribuídas ao mestre.
As representações sobre os mestres, presentes nas palavras dos
mestres, revela uma construção. Representação de si mesmo
enquanto mestre, ao comparar o mestre a uma árvore que frutas;
Mestre João Grande condiciona a formação dos mestres ao mestre.
A leitura que faz além de enfatizar um dos papéis do mestre
produzir mestres - nos fala do tempo do mestre, do tempo para se
fazer um mestre. O tempo para adquirir sabedoria, experiência,
maturidade, conhecimento. O tempo para construir relações,
estabelecer laços, o tempo responsável pelos nós atados e desatados,
responsável pelo fruto que a árvore dá. Tempo também para se referir
a uma época em que não se ouvia falar em mestre de Capoeira,
embora existissem capoeiristas habilitados para serem reconhecidos
como mestres, que dominavam a Capoeira e ensinavam a quem
quisesse aprender. No entanto, o lugar da Capoeira numa época em
que praticá-la era crime impossibilitava, portanto, denominá-los de
mestre.
A Capoeira e os Mestres
121
Condicionar a formação do mestre ao mestre, como afirma
Mestre João Grande, deve ser entendida como uma construção recente
na História da Capoeira. Uma multiplicidade de falas sobre o mestre
construção, formação, legitimidade, reconhecimento, acusações,
histórias – estão presentes no campo capoeirístico. A imagem da
construção do mestre pensada a partir do mestre ignora a história de
pessoas que não foram formadas por mestres, mas que tiveram o
reconhecimento e merecimento do título de mestre nas páginas da
Literatura, da História. Essa questão é apreendida por Mestre Moraes,
quando perguntei se antes do Mestre Pastinha e do Mestre Bimba já se
referiam às pessoas da Capoeira como mestre.
A minha referência e creio que da maioria das pessoas da
minha idade, nossas referências maiores são o Mestre
Bimba e o Mestre Pastinha. E com certeza outros
anteriores a eles deveriam ter esse título, né? Por
exemplo, para a história são apresentados os mestres
desses mestres com título. É o mestre Bentinho e o
Mestre Benedito. Um mestre do Mestre Bimba, outro
mestre do Mestre Pastinha (Mestre Moraes).
A certeza do mestre de que outras pessoas antes dos mestres
Pastinha e Bimba tinham a referida titulação pode ser entendida como
um reconhecimento por terem feito parte da história das duas maiores
referências da Capoeira. Se Bentinho e Benedito, mesmo dominando
os códigos da Capoeira, possuindo o hábitus que legitimidade a
conquistar um título de mestre não tivessem presentes na história dos
dois famosos mestres, teriam sido reconhecidos como mestres?
A criação do título de mestre para Bentinho e Benedito é mais
provável que tenha relação com a História de Bimba e Pastinha,
quando da construção de suas biografias, que foram os primeiros a
lhes ensinar Capoeira, quando eram crianças. Bentinho e Benedito não
A Capoeira e os Mestres
122
passaram por um processo de formação de mestre, uma vez que, na
época deles essa prática era inexistente. A compreensão é outra. O
título chegou até eles, possivelmente depois que morreram.
A titulação do mestre na Capoeira é uma questão delicada. Que
pessoas são essas que passaram a ter o título de mestres e como o
titulo chega a elas? Na Capoeira, o que se de forma mais geral é
que duas maneiras para uma pessoa ser merecedora do título. A
primeira, a pessoa tem o hábitus do mestre e o título é atribuído
sem que ela precise passar por um processo de formação, como foi o
caso de Benedito e Bentinho. Ora, eles não eram nomeados de
mestres, mas possuíam o capital necessário para serem legitimados e
reconhecidos como mestres.
A Capoeira existe hoje porque existiram pessoas no passado que
dominava o saber dessa manifestação cultural e passaram para outros
indivíduos. Elas não eram nomeadas de mestres, mas tinham o capital
para tal. O que pode ter acontecido, ou seja, a hipótese é de que
alguém passou a se referir a essas pessoas como mestres; e elas
tornaram-se mestres. Em outras palavras, passaram a ter o
reconhecimento desse título, mas não na época em que atuaram.
Assim, independente da existência do título, na Capoeira,
características atribuídas a uma pessoa merecedora desse título
existiam; antecede a ele. Quanto à outra maneira, a pessoa passa por
um processo de preparação, que tem relação com o sistema de
graduação que passou a fazer parte da Capoeira no período mais
recente da sua História. Mais adiante trataremos dessa questão.
Posto isso, vale a pena observar que o título de mestre, presente
em outros espaços sociais específicos criados para atribuir à pessoa
que dominasse um conhecimento, um saber passou a se inserir em
diversas práticas culturais. Como sinalizamos anteriormente,
A Capoeira e os Mestres
123
representantes de diversas manifestações da Cultura Popular
passaram a ser denominados mestres.
3.1. MESTRES DA CAPOEIRA: MESTRES DA CULTURA
POPULAR
Possuir um conhecimento, uma arte, um ofício, uma habilidade,
um saber que tem sua história inserida no território popular, credencia
um mestre a pertencer à categoria de mestre da Cultura Popular. No
entanto, apenas ter essas atribuições é insuficiente, haja vista que
nesse campo, para ser um mestre é necessário transmitir
conhecimento. Ensinar o saber que domina, proporciona uma pessoa
ser reconhecida como mestre.
A pesquisa nos possibilitou identificar e reconhecer os mestres
de Capoeira como mestres da Cultura Popular pelo fato de a Capoeira
ser considerada uma manifestação da Cultura Popular. Presentes em
diversas manifestações, os mestres são responsáveis em transmitir o
que aprenderam à geração seguinte.
Antes de caminhar pela mestrança na Capoeira, rapidamente,
tomamos emprestado o olhar de considerados mestres populares da
cultura para expressar a idéia que eles fazem de si mesmos. Em
Salvador, quando realizava o trabalho de campo, tive a oportunidade
de ir ao lançamento do edital do projeto cultural
43
Rede de Projetos
Locais Mestres Populares da Cultura. Estavam presentes no
lançamento: autoridades representantes dos governos municipal e
federal, admiradores das manifestações populares, pesquisadores, e,
43
Edital de divulgação 01/2005, da Prefeitura Municipal de Salvador, representado pela
Fundação Gregório de Mattos.
A Capoeira e os Mestres
124
eles, os mestres populares da cultura. Na ocasião, Paulo Costa Lima, o
presidente da Fundação Gregório de Mattos, falou sobre os
personagens centrais do projeto:
esses mestres são aquelas pessoas que desenvolvem ou
desenvolveram relevantes atividades culturais na cidade
do Salvador e cujo notório saber no seu ofício é
reconhecido pela comunidade e por seus pares e/ou
pessoas que são detentoras da memória social das
comunidades onde vivem (Costa Lima).
Certamente este é um trabalho de apoio, incentivo e
reconhecimento de órgãos públicos e agentes financiadores voltados
para aqueles que têm um papel na construção de seu espaço social. A
atenção especial a esse segmento, tempo esquecido, é recente na
História do Brasil. O Ministério da Cultura do Governo Lula tem
adotado uma política de ações voltadas para a valorização no campo
da Cultura Popular.
Na solenidade de lançamento foi apresentado um vídeo em que os
mestres populares da Bahia mestre de samba, mestre de artesanato,
mestre de Capoeira, representantes do candomblé, entre outras artes e
ofícios - eram os personagens centrais. Provocados a falar sobre o que é
ser um mestre, um deles disse:
o mestre é aquele que adquiriu uma certa habilidade.
Pode ser manuais, espirituais, culturais, que possa dar
exemplos, possa formar discípulos, possa passar os seus
conhecimentos para as pessoas que queiram aprender
(Paulo Lima).
Detentores de um conhecimento específico, esses mestres são
referências no lugar onde vivem e, certamente, no campo onde atuam.
A Capoeira e os Mestres
125
As suas ações e relações oportunizam serem reconhecidos, legitimados
e valorizados. Responsáveis pelo engendramento de práticas culturais;
de um legado para gerações futuras; são merecedores de
homenagem, visibilidade, estímulo, respeito, valorização e estudo.
Lançamento do Edital Rede de Projetos Locais – Mestres Populares da Cultura –
Museu Náutico da Bahia/Salvador. Fonte: Ilnete Porpino, junho de 2005.
Da multiplicidade de práticas culturais que têm a figura do
mestre como parte integrante da sua estrutura e funcionamento, a
prioridade foi estudar os mestres da Capoeira. Nesse campo, estamos
diante de uma diversidade de mestres: são velhos e novos mestres,
mestres com capitais diferenciados; sejam estes sociais, simbólico,
escolar; mestres formados por sistema de graduação; mestres que
A Capoeira e os Mestres
126
foram reconhecidos e legitimados por sua história e também
capoeiristas que se auto-intitulam mestre.
As narrativas dos mestres revelam que eles aprenderam com a
vivência, com a experiência. Foram alunos ou aprendizes de um outro
mestre. Vivência, experiência, aprendizes, mestres são palavras que
nos fazem recordar os estudos sobre o período medieval. Pois bem,
esse título de mestre no medievo era atribuído às pessoas que
dominavam um ramo da produção. Eram ferreiros, sapateiros, oleiros,
vidreiros, tecelões, artesãos - especialistas numa arte.
No imaginário coletivo dos mestres de Capoeira, a história do
mestre apresenta uma aproximação com o que era vivenciado no
período medieval. Ao fazer relação com quem era chamado de mestre
na sociedade de tempos atrás, um dos mestres com quem falei, disse:
Eram chamados de mestres a quem era dada a
responsabilidade, para que ele contribuísse, né?. Ajudasse
na formação daquele garoto, do adolescente, né? E
normalmente, isso acontecia em espaços como
carpintaria, marcenaria (Mestre Moraes).
Conforme sinaliza o mestre, além de ensinar a técnica de uma
arte, de um ofício, contribuir para a formação da pessoa, fazia parte
da missão do mestre. E isso significa passar conteúdos sintonizados
com a sua forma de ver e se relacionar com o mundo, orientando a
sua conduta. Sendo assim, podemos dizer que, nesse sentido, esse
mestre desempenha, ao lado da família e da escola, cada um a sua
maneira, o papel de agentes da cultura. Entendendo-se aqui, cultura
como algo que completa o homem, uma condição imprescindível para
a existência humana. Uma marca na construção do homem. Esta, ao
mesmo tempo, é produtora e também produto da humanidade.
A Capoeira e os Mestres
127
A respeito do que vem a ser um mestre de Capoeira, um outro
mestre fez uma analogia com outros mestres:
O mestre é o mesmo que mestre de obra, o mestre de
embarcação, o mestre da pesca. O mestre não é nada
mais nada menos do que uma pessoa que acumulou certo
conhecimento, uma arte durante um período e que passa
a transmitir esse conhecimento para outras pessoas e que
essas outras pessoas passam a ter um respeito por ele
como uma pessoa mais sábia. O mestre e o sábio seriam
quase que um sinônimo. A pessoa que tem a sabedoria
numa certa arte (Mestre Cobrinha Mansa).
Com relação à fala do mestre, pode-se perceber uma
caracterização universal que compõe não a mestrança da Capoeira,
mas outras áreas em que a figura do mestre está presente.
Especificando alguns deles, temos o mestre da pesca, da escola de
samba, de banda de música, mestres de obras e no terreiro do
sagrado, os mestres da Jurema
44
. O mestre, seja ele qual for, tem um
conhecimento para transmitir; portanto, é considerado um bio
naquilo que escolheu fazer e por isso é merecedor de respeito, de
consideração por parte das pessoas que dele receberam conhecimento.
Simone Maldonado (1994), estudando os mestres pescadores,
observa que a hierarquia, a autoridade, o respeito, o reconhecimento,
o saber, o poder e o segredo são indicadores que caracterizam não
apenas aqueles aos quais ela se dedicou, mas todos os demais
mestres. Tais características são elementos constitutivos do ser
mestre.
Ao pensarmos em nossos mestres, o domínio prático de uma
roda nos mostra a pessoa do mestre como responsável pela Capoeira,
44
A Jurema é uma prática religiosa. Conforme Luiz Assunção é o universo religioso dos
mestres. Nesse terreno, os mestres o vivos e mortos. Os vivos incorporam os
mestres mortos, considerados uma categoria de espírito.
A Capoeira e os Mestres
128
hierarquicamente preparado e orgulhoso pela autoridade a ele
conferida pelos seus pares. Assim como os mestres artesãos da Idade
Média que tinham os segredos do ofício, na Capoeira ouvi algumas
vezes do mestre a expressão “não ensinar o pulo do gato”,
evidenciando de maneira clara a dimensão do segredo. Ocultar para
depois revelar no tempo oportuno, ou não. A seguir, vamos enveredar
pelo caminho que nos leva à construção do título de mestre na
Capoeira.
Os mestres aos quais estamos nos referindo aqui não são
aqueles legitimados pelo campo acadêmico. Muitos deles não
possuem os títulos escolares. O saber que carregam não foi adquirido
nas instituições educacionais. Ter ou não capital escolar não faz
diferença para a construção social desses mestres. Os mestres da
Cultura Popular, na sua grande maioria, não passaram pelos bancos
escolares. Os títulos escolares - os títulos de nobreza de nossas
sociedades, disse Bourdieu (1989:93) em entrevista ao Le Monde, lhes
falta.
A situação desfavorável economicamente contribui para
diagnosticar a taxa mínima de escolaridade; o que resulta para os
mestres em um desprovimento de capital escolar. Uma realidade
presente nos mestres de outras manifestações, entre elas, a de
maracatu, boi de reis, cavalo-marinho, coco, samba de coco e sem
dúvida, a maioria dos mestres de Capoeira inserida na categoria
velhos mestres.
Até a década de setenta foram poucos os mestres de Capoeira
que passaram pelos bancos escolares. Hoje, na Capoeira têm mestres
que entraram na universidade, concluíram seus cursos, fizeram s-
graduação mestrado, doutorado. Vale destacar que é um número
reduzido que se encontra nessa situação. A que se deve o fato de
termos mestres com título escolar de pós-graduação? Uma das
A Capoeira e os Mestres
129
hipóteses está relacionada à expansão da Capoeira, e a sua
penetração nos diversos segmentos da sociedade.
3.2. O MESTRE E A CAPOEIRA
Como se pode perceber a Capoeira tem formas simbólicas
particulares que se expressam nas representações, simbolismo,
imagem, ritual, gestualidade, musicalidade, tradição. Ela tem espaço e
tempo. Ela tem história. E tem os mestres. Com a intenção de
compreender a Capoeira, assim como o papel e o lugar ocupados pelos
mestres, construímos parte dessa história. Um dos caminhos foi o
diálogo com eles - os mestres. Nesse sentido, criamos, reinventamos;
e, de acordo com os interesses, damos sentidos às coisas,
evidenciando-as. A Capoeira, os mestres, enfim, tudo pode ser
passível de ser reescrito, ressignificado. São possibilidades de
releituras.
Por ocasião da VIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste
em 2003, tive oportunidade de assistir a apresentação de um trabalho
sobre o Mamulengo da Zona da Mata Norte - Pernambuco. Este tinha
como título Tornar-se mestre: aprendizado e legitimação no teatro de
mamulengos na Zona da Mata pernambucana. Conforme a autora
Adriana Schneider Alcure, em conversa com os mestres, na intenção
de saber de onde vem a história do mestre, categoria presente no
mamulengo, um deles lhe revelou que o termo passou a fazer parte do
cotidiano dos mamulengueiros nos anos setenta, com a chegada dos
pesquisadores interessados em estudar o brinquedo. Estes se referiam
aos mamulengueiros como mestres. Até então ninguém era chamado
A Capoeira e os Mestres
130
de mestre. Naquele instante, penso nos mestres de Capoeira. Uma
figura presente no campo, que nos aparece quase como algo natural,
como se eles estivessem nascido junto com ela. O que não foi o caso.
Ora, se o que nos é passado como natural é construído, nos vem
o interesse em compreender como se deu o processo de criação, de
invenção, de nomeação do título de mestre, da chegada e da
atribuição desse termo no campo da Capoeira. Um processo que passa
pelo reconhecimento social. O processo de nomear - quem nomeou?
Pois bem, começa então a investida em buscar respostas nas histórias
orais contadas pelos velhos mestres. Registros de história que habitam
na memória deles. O interesse em recolher dos antigos mestres as
respostas para as questões, advém do fato de que eles estão
cronologicamente mais próximos ao ponto de partida de onde
possivelmente a história de nomear o capoeira de mestre nasceu.
Passadas através da oralidade, muitas das histórias recontadas
pelos velhos mestres não foram vividas por eles. Portanto, é uma
hipótese passível de releituras. As idéias são construções. Nesse
sentido, são invenções. A história é uma invenção porque o passado
do historiador não é o mesmo do passado que passou. É síntese
mediada por conceitos e valores do pensamento”, disse Durval Muniz
em uma conferência que proferiu em 09/11/2005 na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Nas construções dos historiadores,
algo escapa de ser dito como elementos novos, são recriados; a
mesma coisa pode ser dita para os mestres de Capoeira.
É importante destacar o contexto no qual a palavra mestre
passou a ser utilizada na Capoeira, bem como o contexto em que o
título de mestre foi gerado para podermos compreender,
posteriormente, quão abrangente é a discussão a respeito desse título.
A Capoeira é um fenômeno social. Onde tem capoeiristas tem
agrupamentos, o que implica em ter alguém responsável. A depender
A Capoeira e os Mestres
131
da época - como responsáveis pelos agrupamentos - temos os chefes,
os donos, os líderes, os mestres.
Como era de se esperar, não há um consenso entre os mestres a
respeito do momento em que o título de mestre passa a ter lugar na
Capoeira. Antes de dar a palavra a eles, dediquei-me alguns estudos
sobre a Capoeira do século XIX, e vi o quanto é notória a ausência
desse termo. O que se ouve falar nessa época é em líderes das Maltas
de Capoeira
45
. Sendo assim, é possível afirmar que o termo “mestre”
só veio aparecer na Capoeira a partir do século XX.
Mas quando, onde e como ele passa a ser incorporado na
Capoeira? Fui a campo com a impressão de que antes de Bimba e
Pastinha, não existiam mestres de Capoeira. A observação em
diferentes espaços de Capoeira e os cruzamentos com informações
acerca das trajetórias individuais dos velhos mestres, permitiu-me
debruçar sobre a história da emergência da titulação do mestre. Não é
por acaso que, nas entrevistas feitas com os mestres, uma questão
recorrente era: se antes de Mestre Bimba, o título de mestre
circulava na Capoeira.
São diversos pontos de vistas sobre a mesma questão. Conforme
Mestre Decânio
46
, um dos alunos do Mestre Bimba, os registros que
dão conta dessa história, estão relacionados diretamente à trajetória
do seu mestre. Ao contar a trajetória do Mestre Bimba, o ex-aluno
Mestre Decânio, faz um passeio pelo passado e recorda a existência de
uma personagem importante nessa história
.
45
Sobre Maltas de Capoeira, ver Thomas Holloway, em Polícia no Rio de Janeiro: repressão
e resistência numa cidade do século XIX, Rio de janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1997; Mary, C. Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São
Paulo, Companhia das Letras, 2002.
46
Ângelo Augusto nasceu em 1923 na cidade de Salvador onde reside. Foi aluno de
Capoeira de Mestre Bimba. Formou-se em Medicina, Acupuntura atuou como médico e
professor da Faculdade da Escola Baiana de Medicina. Nunca deu aula de Capoeira. Seu
envolvimento com a Capoeira é através de palestras e participação em eventos. Entrevista
concedida à autora em 24/11/2004.
A Capoeira e os Mestres
132
Trata-se do cearense José Cisnando de Lima que, na década de
trinta, chega à Bahia para estudar medicina. Para Mestre Decânio, que
também se reconhece fazendo parte dessa história, a trajetória de
Bimba na Capoeira começa com a chegada desse estudante, que era
conhecedor de artes marciais japonesa. Recorda o Mestre que
Cisnando andou correndo em rodas de capoeira. Até que um dia, no
Bairro da Liberdade encontrou Bimba. Nessa época, Bimba nos idos
dos seus 30 anos era carvoeiro e mantinha uma Capoeira no Engenho
Velho, bairro onde residia. Conta Mestre Decânio que, Cisnando
achando que Bimba era muito bom, pediu para que ele o ensinasse. A
resposta do mestre: “isso não é coisa pra branco, é coisa de preto, não
vou lhe ensinar não.” O mesmo insistiu até que Bimba cedeu,
passando a treiná-lo. Ao falar como Bimba tinha se transformado em
mestre, seu ex-aluno disse:
E começou o destaque. Cisnando pegou os colegas de
faculdade de medicina e obrigou cada um a se matricular
na Capoeira de Bimba e começou Bimba a ganhar
dinheiro, gostou de ganhar dinheiro mole como mestre e
viver do seu próprio trabalho. Essa é a maneira de como
Bimba transformou-se em Mestre. E a palavra mestre foi
posta também por Cisnando. Aentão, o Bimba e outros
capoeiras não tinham título de mestre. Esse título de
mestre aparece em alusão aos mestres de medicina
porque a palavra mestre era usada para professores
acadêmicos de ensino superior e para aqueles que
dirigiam a embarcação (Mestre Decâneo).
Se a história recontada pelo mestre está relacionada com o fato
de que alguém nomeia Bimba de mestre, esse fato abre precedentes
para que os outros capoeiristas, contemporâneos a ele, que tinham
uma prática voltada para o ensino da Capoeira, também passem a ser
identificados ou reconhecidos como mestre. A transformação de Bimba
A Capoeira e os Mestres
133
em mestre, narrada por um ex-aluno é uma versão de como o título
de mestre chegou à Capoeira.
Ainda com relação ao depoimento do Mestre Decânio, é
importante esclarecer que, ao mencionar que Cisnando obriga os
colegas a se matricular na Capoeira de Bimba, ele está querendo dizer
que, obrigar, nesse contexto, tem o mesmo sentido de convencer.
Uma outra questão tocada pelo mestre e que merece destaque, diz
respeito ao fato de Bimba ganhar dinheiro com a Capoeira. Na época,
essa experiência era algo novo que não estava posto, pois quem
poderia imaginar que algum dia as pessoas pudessem viver de
Capoeira?
O material empírico revela que na Capoeira a construção do
mestre recusa uniformidade. Temos um primeiro momento em que
essas figuras vão ser conhecidas e reconhecidas como mestres, mas
não por outro mestre, visto que, esse título era desconhecido na
Capoeira. Nesse caso, elas não se preparam para tal. Não era projeto
se tornar mestre. Não importa o processo que percorreu. O que se
sabe é que a pessoa aprendeu e dominou o saber a prática
capoeirística - e foi responsável pela continuidade desta por ter
passado o que sabia a outras pessoas. Acredito que isso se deu de
forma não institucionalizada. Diferente do processo que passou a ser
instituído na Capoeira tempo depois e predomina na maioria dos
grupos.
A construção do mestre pós Bimba e Pastinha é uma história
recente. Se antes o título de mestre é dado pelo reconhecimento do
serviço prestado ensinar o conhecimento que domina a outras
pessoas agora, para chegar a mestre de Capoeira, na maioria das
vezes, o capoeirista precisa passar por estágios ou níveis de
graduação. A pessoa se prepara para ser mestre, ou seja, o capoeirista
entra numa escola, academia, grupo de capoeira e passa por vários
A Capoeira e os Mestres
134
estágios até chegar a mestre. Em outras palavras, ele se forma a
partir do cumprimento de um tempo de Capoeira, como o aluno no
Sistema Educacional. Ao cumprir os níveis determinados, o mestre
avalia se o aspirante ao título de mestre apresenta condições de se
formar em mestre.
3.3. RECONHECIMENTO E LEGITIMAÇÃO: O TÍTULO DE
MESTRE E A COMUNIDADE
No campo capoeirístico, quando o tema em evidência é o título
de mestre, a idéia predominante é de que o título dado a um
capoeirista parte do mestre. Um dos discursos recorrentes nas falas
dos mestres é de que este é dado pela comunidade que o reconhece e
legitima como tal. A princípio, o entendimento que tive a respeito da
comunidade a qual os capoeiristas se referiam era a dos seus pares,
ou seja, os mestres de Capoeira, a comunidade da capoeira, como
costumam dizer os capoeiristas. No desenvolver da pesquisa,
compreendi que na Capoeira, comunidade não tinha apenas esse
significado. Ela também representa as pessoas com quem os mestres
estão em contato diretamente, ou seja, são os seus alunos, as pessoas
que fazem parte do seu grupo.
No tocante à idéia de relacionar comunidade aos mestres,
observamos a fala pronunciada por um integrante do grupo Abaô de
Capoeira Angola, por ocasião de uma oficina de Capoeira realizada em
Natal no ano de 2006. Ao apresentar seu Grupo, disse:
A Capoeira e os Mestres
135
Robson é o representante maior do Grupo, que
oficialmente é contra-mestre, que a comunidade ainda
não o reconheceu como mestre, mas para nós, que
fazemos parte do Grupo Abaô, a gente considera ele um
mestre(Alex).
Que comunidade é essa? Como foi dito antes, de modo geral,
fazem parte da comunidade os capoeiristas mestres, aqueles que têm
uma longa trajetória de Capoeira, sendo por isso, legitimados para o
papel de poder reconhecer um capoeirista apto a receber o título de
mestre. Mas é importante frisar que a comunidade responsável por
qualificar o contramestre Robson a mestre é aquela em que ele tem
um vínculo, mantém uma relação de proximidade e de laços. Assim
acontece com outros aspirantes a mestre.
Sem nos alongarmos sobre esse assunto, convém observar que
mesmo o grupo de alunos - reconhecendo seu contramestre como
mestre, é importante para ele e para o grupo que o reconhecimento e
legitimação do título de mestre sejam feitos por seus pares. Detentor
de capital cultural como ex-aluno e contramestre que tem relações
com grupos de Capoeira internacionalmente conhecidos, esperar o
reconhecimento do título pela comunidade possibilita ao aspirante a
mestre ter ganhos. Podemos citar como exemplo: valor, prestígio,
autoridade, posição na hierarquia do campo em que está inserido. De
acordo com Bourdieu (1997), ser conhecido e reconhecido também
significa deter o poder de reconhecer, consagrar, dizer, com sucesso, o
que merece ser conhecido e reconhecido (BOURDIEU,1997, p. 296).
Para a comunidade consagrar e legitimar o candidato a mestre é
imprescindível a autorização do seu mestre. É o mestre quem decide o
momento do aluno que está no aguarde, esperando a titulação, seja
consagrado mestre. Posto isso, vale a pena observar que na Capoeira
situações em que o aluno não consegue esperar o dia de seu
A Capoeira e os Mestres
136
mestre lhe dar o sinal, aprovando sua titulação. O que tem ocorrido é
o desligamento desse aluno do grupo e a sua migração para um grupo
que poderá facilmente lhe dar a titulação de mestre. A esse respeito,
disse-me Mestre Boca Rica
47
:
Eu tinha um aluno que eu formei ele professor. Para mim
ele ainda não merecia ser formado mestre. Apareceu um
mestre e prometeu a ele dar um título de mestre. Ele saiu
do grupo e o mestre deu o título a ele de mestre (Mestre
Boca Rica).
A pesquisa revelou-me que o termo comunidade tem significados
diferentes na Capoeira. Alguns mestres com quem tive contato
mencionam o fato de seu título ser dado pela comunidade. No entanto,
esta tem um sentido divergente da compreensão anterior. A fala do
Mestre Bigodinho
48
a respeito da construção da sua titulação,
comprova esse entendimento.
Eu virei mestre por trabalho mesmo, por capacidade, por
tempo. Tenho o reconhecimento de alguns mestres
antigos que me legitimou que me deu esse respaldo.
Respeito antigos mestres, não por formatura, mas sim por
trabalho. Quem primeiro me deu o primeiro título de
mestre foram meus alunos. O reconhecimento, a
legitimidade da comunidade que você trabalha (Mestre
Bigodinho).
47
Mestre Boca Rica (1936). Tem como nome de batismo Manoel Ciro. Faz parte da
Velha guarda de Capoeira da Bahia. Natural de Maragojipe –BA. Reside em
Salvador desde menino. Foi aluno do Mestre Pastinha. Entrevista concedida a
autora em 20/06/2005.
A Capoeira e os Mestres
137
Percebe-se claramente aqui que, por comunidade,
compreendem-se as pessoas que estão diretamente em contato com o
mestre, ou seja, são seus alunos. Nesse caso, a comunidade não
representa os mestres. Embora tenham representações diferentes, na
Capoeira, as concepções de comunidade têm igualmente em comum o
poder de conceder o título de mestre. Mesmo que esse título seja
questionado ou não tenha o reconhecimento da comunidade de
mestres. É preciso, no entanto, sublinhar que não existe uma única
comunidade de mestres.
Como foi dito antes, conferir a um capoeirista a titulação de
mestre na Capoeira é uma das responsabilidades dos mestres. Esse é
um procedimento predominante em todos os grupos de Capoeira. Dito
isso, é necessário conhecer os critérios que habilitam o capoeirista
estar apto a se tornar mestre. Antes, é importante deixar claro que
não existe uma cartilha com os critérios para a construção do mestre,
embora alguns sejam imprescindíveis em qualquer grupo.
3.4. COMO TORNAR-SE UM MESTRE DE CAPOEIRA
Não existe uma uniformidade com relação à formação dos
capoeiras em mestres. Cada estilo, cada grupo, cada escola, cada
mestre tem suas particularidades. Basta ver os sistemas de graduação
adotados pelos grupos, independente de usar corda ou não. No
entanto, observamos alguns critérios comuns. Aqueles em que todos
os mestres enfatizam a sua importância.
Segundo os mestres que foram entrevistados, para tornar-se
mestre, o capoeirista aspirante ao mais elevado posto na hierarquia da
Capoeira, deverá ter passado por um longo processo de aprendizado,
que consiste em conhecer e aprender as técnicas de movimentação da
A Capoeira e os Mestres
138
Capoeira e os fundamentos que são tão bem ressaltados pelos
capoeiras, especialmente, por aqueles que desenvolvem um trabalho
com a Capoeira. Esses fundamentos, além dos movimentos, consistem
em conhecer a história da Capoeira, a música da Capoeira, cantar e
tocar os instrumentos.
No tocante à instrumentação, para efeitos de esclarecimentos,
diferenças entre os estilos de Capoeira. Se o candidato a mestre
pertence à Capoeira Angola, ele terá obrigação de tocar os três tipos
de berimbau - o gunga, o médio e o viola o atabaque, o reco-reco, o
agogô e o pandeiro. Os seguidores da Capoeira Regional usam apenas
berimbau e pandeiro. Outros, não muito ortodoxos, acrescentam o
atabaque.
Nesse instante me vem à lembrança um episódio que ocorreu no
ano de 2000, durante um evento do Grupo Corpo Livre em Natal. O
Mestre Decânio era o convidado ilustre. Começou a festa. A roda de
capoeira estava formada, os instrumentos começaram a tocar
(pandeiros, berimbau e atabaque). Após alguns segundos, o silêncio
tomou conta do espaço. Em seguida volta à roda, mas a
instrumentação não era a mesma; o atabaque foi retirado. O atabaque
tão bem representado no cotidiano do Grupo foi silenciado porque o
convidado não concordava com o uso desse instrumento na Capoeira.
Além dos fundamentos movimentação, história e qualificações
musicais para tornar-se mestre, os mestres enfatizam a importância
de se ter um trabalho, ou seja, desenvolver alguma atividade com
Capoeira. Numa oportunidade que tive de conversar com o mais antigo
mestre de Capoeira a respeito dos mestres que ele tinha formado,
este evidenciou que ter um trabalho com Capoeira é um dos critérios
exigidos. Assim disse o mestre:
A Capoeira e os Mestres
139
eu dou o título de mestre a ele quando ele tem a
academia dele com aluno, com tudo. E pra ele ser mestre ele
precisa ter um trabalho, uma academia. Um trabalho. Um
espaço com trabalho dele, ter alunos (Mestre João
Pequeno).
O mestre João Pequeno é bastante enfático. Para tornar-se
mestre na academia dele, mais do que critério - ter academia, a sua
própria escola, o seu próprio grupo - é uma condição. Segundo o
mestre, essa questão do trabalho passa pela responsabilidade de saber
passar a Capoeira para os alunos. Porque se depender do trabalho
dele, as pessoas vão gostar do trabalho do mestre.” A fala do mestre
nos sugere duas questões. A primeira diz respeito aos resquícios do
passado da Capoeira, quando o capoeirista era visto pela sociedade,
de maneira pejorativa e equivocada, como coisa de desocupado. E a
segunda tem relação com o reconhecimento dado pela comunidade
alunos ao capoeirista professor que espera do mestre a sua
titulação.
Nesse sentido, ter um trabalho é visto pelos mestres com uma
condição necessária para a mestria na Capoeira. Velhos e novos
mestres que participaram da pesquisa são favoráveis à atribuição ao
título de mestre ao capoeirista que tenha um trabalho e que este seja
reconhecido não apenas pelo seu mestre, mas por uma representação
de mestres.
Mestre Robson
49
do Grupo Corpo Livre, ao contar o
procedimento que adotará para formar um mestre, assim se
expressou:
No Grupo Corpo Livre precisa mostrar trabalho. Tem um
tempo pra mostrar seu trabalho em relação à Capoeira.
49
Mestre Robson (1965) conhecido na Capoeira como Mestre Fora do Ar. É natural
de Natal. Há cerca de 20 anos, desenvolve trabalho com Capoeira
.
A Capoeira e os Mestres
140
Não é treino e dar aula, tem que mostrar alguma coisa
pra comunidade da Capoeira para que ela veja, reconheça
e a partir do trabalho que você faz te aceite como mestre
(Mestre Robson).
3.5. O TEMPO E A CONSTRUÇÃO DO MESTRE
Com relação à formação dos mestres, a questão do tempo
merece uma atenção especial. Trata-se de um critério básico que
muitos observam. O tempo de Capoeira, o tempo que precisa para
formar um mestre, a idade do capoeirista. Quando a discussão se
encaminha para o tempo da formação do mestre, não existe uma
uniformidade.
No Grupo de Capoeira Arte e Vida - do Mestre Caio dos Anjos - a
idade da pessoa e o tempo de Capoeira são pré-requisitos necessários.
Assim disse o mestre quando lhe foi perguntado o tempo para se
formar um mestre.
No meu grupo ele tem que ter no mínimo 21 anos de
capoeira e 30 anos de idade. Ele não pode ter menos de
30 anos de idade e 21 anos de Capoeira (Caio dos Anjos)
Na perspectiva de estabelecer o tempo de Capoeira para formar
um mestre, disse Sapo, aquele que dispensa ser chamado de Mestre,
40 anos é o mínimo de Capoeira. Se hoje ele não quer ser chamado de
mestre para que capoeiras novos não venham querer ser mestres,
estipular o mínimo de 40 anos de Capoeira é uma estratégia adotada
para evitar os mestres novos, ou seja, com pouca idade. A existência
dos mestres novos não aflige apenas esse mestre. O desconforto é
A Capoeira e os Mestres
141
revelado, principalmente, pelos mestres mais velhos. Mestre Pirajá,
em seu depoimento, disse ter restrições quanto à formação de mestres
novos.
Até porque, nós velhos, a gente antes era reconhecido
mestre, pela comunidade, pelo tempo, a idade, o
amadurecimento. E hoje não. É por isso que no Grupo Axé
a gente não vende graduação. Eu tenho alunos aqui com
13 anos de Capoeira e ainda tá na terceira corda de
graduação. Em outro grupo é mestre. Porque tem
grupo que faz o evento duas vezes por ano. Às vezes sou
convidado para os eventos de alguns grupos. E quando eu
chego lá com a minha corda branca, chega um jovem com
25, 27, 30 anos com a mesma corda que eu. Quer dizer, a
gente não se sente bem. Então, geralmente, quando eu
vou para esse tipo de evento, eu o uso corda. Porque é
chato (Mestre Pirajá).
Mestre Pirajá, considerado o mestre mor do Grupo Axé
Capoeira, o único corda branca, contou que em 1969 quando iniciou
um trabalho para trazer de volta a prática da Capoeira em Recife, ele
já era mestre; nessa época tinha 21 anos, portanto, um mestre jovem.
A influência do passado não sobrevive ao presente. Hoje os mestres
novos são condenados, desacreditados.
A pouca idade do capoeirista é um obstáculo para a construção
do mestre. No seu grupo, Mestre Pirajá disse que tem outros mestres:
o Mestre Barrão que usa corda vermelha e branca e outros mestres de
primeiro grau que usam corda vermelha. Enfatizou que eles passam
a usar corda branca depois que ele morrer, configurando uma forma
de conservar o seu lugar no ponto mais alto da hierarquia do Grupo.
Passo agora a apresentar outro entendimento do tempo
mencionado pelos mestres. É o tempo de cada um. Autorizado a falar
com propriedade, Mestre Valmir, um dos mestres representante da
A Capoeira e os Mestres
142
Fundação Internacional da Capoeira Angola (FICA), a respeito da
construção do mestre, afirma que
precisa ter uma referência. Isso se adquire com o tempo.
Tem caso de pessoas com pouco tempo e se diz
professor, contramestre, mestre de capoeira. Na FICA eu
não vou dizer que são 12, 15 anos para receber um título
de contramestre, de mestre. Esse tempo é dentro do
processo. Porque, na realidade, cada um tem a sua
história. Tem o seu caminhar. Então depende muito da
história de cada um (Mestre Valmir).
Para o Mestre Valmir, a referência é o mestre. A relação
estabelecida entre as graduações que antecede ao mestre o aluno, o
treinel, o contramestre e o mestre de Capoeira vai se construindo
com o tempo. Diferente dos mestres que determinam a quantidade de
anos para um capoeirista se formar mestre, o tempo adotado pela
FICA está relacionado ao desenvolvimento do hábitus incorporado pelo
capoeirista, bem como a maturidade e compromisso deste para com a
Capoeira. Portanto, o que conta é o processo de cada um. O aluno com
um tempo de Capoeira, por exemplo, pode alcançar a condição de
treinel, ou seja, aquele que pode dar um treino, ensinar os
movimentos que aprendeu mais rápido do que um aluno que tem mais
tempo. Segundo o mestre, essa conquista das graduações tem relação
com o aprendizado, com o interesse de cada um.
Ao analisar a relação entre o tempo e o processo de ensinar e
aprender na Capoeira Angola, Abib (2004) avalia
que a concepção de tempo orientada pela tradição afro-
brasileira, é uma das características mais marcantes dos
processos de aprendizagem presentes no universo da
Capoeira Angola (ABIB,2004, p.118).
A Capoeira e os Mestres
143
Além dos critérios - de caráter mais objetivo, impessoal - as
relações subjetivas aparecem. A relação que o aspirante a mestre tem
com o seu mestre também conta. Não para negar que o contexto
em que está inserido o mestre pode influenciar a formação de
mestres.
3.6. AS GRADUAÇÕES NÃO SÃO IMUTÁVEIS
Vimos que falar em formação do mestre é falar de hierarquia, é
falar de graduação, é falar de tempo. A estrutura dos diversos
agrupamentos de Capoeira tem uma hierarquia, uma construção
elaborada. Nela, ocupando o posto mais importante, está o mestre. A
depender dos grupos, vários formatos, podendo ser renomeados se
assim o mestre decidir.
Sobre essa questão, o Mestre Boca Rica afirmou que no seu
grupo ele usava a velha guarda da formatura: aluno, contramestre e
mestre. Na Capoeira Angola três graduações. Era como os mestres
antigos faziam; lembra o mestre, que na oportunidade fez uma
ressalva com relação à designação de contramestre, a mesma a que
Mestre João Pequeno se referiu.
O contramestre hoje pode ser o professor, porque esse
termo contramestre é pesado. Então eu continuo usando
esta linha: aluno, professor e mestre. No lugar do mestre,
o professor assume. Naquela época se o mestre
precisasse, se tivesse doente ou precisasse viajar, o
contramestre assumia o lugar do mestre (Mestre Boca
Rica).
A Capoeira e os Mestres
144
Como vemos, hoje, alguns mestres, e aqui estamos dialogando
com mestres de Capoeira Angola, fizeram a opção de não mais usar a
palavra contramestre para designar a pessoa que está imediatamente
abaixo do mestre na hierarquia. Em seu lugar usam o termo professor.
Eles justificam a redefinição do nome em função do prefixo contra.
Isolado, realmente, o vocábulo tem um significado de oposição, de
contrário.
Na explicação do mestre, a palavra contramestre é pesada
porque pode relacionar a idéia de ser contra o mestre. Esses mestres
se referem ao professor, aquele que numa necessidade, vai assumir o
lugar do mestre e que um dia virá a ser um mestre. Seria essa
compreensão dos mestres suficiente para substituir a categoria
contramestre por professor? Essa escolha não teria relação com o
momento em que a Capoeira se encontra? Ou seria o diferencial do
grupo? Ser professor de Capoeira em vez de ser contramestre não
teria uma valorização maior? Mais visibilidade? Mais status? Uma
hipótese para pensar é que a designação contramestre é muito
próxima ao mestre, e esse fato implica em o mestre não demorar
tanto a atribuir o título de mestre.
Na Capoeira, para quem está convencido de querer ser um
mestre, de querer ocupar essa posição, precisa passar por estágios de
graduação. A regra, pelo menos, passada na oralidade é a de que você
experiencia cada estágio. Não na Capoeira uma unidade com
relação à graduação. As diferenças são visíveis de um grupo para
outro.
A descrição que segue vale para a maioria dos grupos que
adotam o sistema de graduação, utilizando as cordas, para indicar o
nível do capoeirista até que este consiga alcançar a corda de mestre.
A Capoeira e os Mestres
145
Em novembro de 2004 alguns outdoors, em Natal/RN, anunciavam um
evento de Capoeira. Tratava-se da XIV Reunião Anual da ABPC
(Associação Brasileira de Professores de Capoeira) e Jornada de
Capoeira, Curso, Batizado e Shows. O Grupo Capoeira Boa Vontade,
com sede na cidade de Natal, sob o comando do Mestre Canelão, era
anfitrião da Reunião e celebrava o seu evento anual. Era final de tarde
do domingo de novembro de 2004. As cadeiras vazias começam a
ser ocupadas por parentes, amigos e colegas que vieram prestigiar
mais um evento do Grupo que tinha, entre os objetivos, o batismo e a
graduação dos seus integrantes. Vale salientar que não tinha nenhum
capoeirista se formando mestre.
Entre os capoeiristas, havia mestres de diferentes estados,
professores, alunos que iam ser batizados e alunos que iam trocar de
corda. Na linguagem da Capoeira, trocar de corda se refere ao aluno
que vai mudar de nível. No Grupo Capoeira Boa Vontade, a corda é
verde e branca, corda: verde, corda: amarela e branca, 4ª
corda: verde escuro, corda: azul. A maioria estava se batizando, ou
seja, estava saindo da fase de iniciante para iniciado, o que lhe dava o
direito de receber a sua primeira corda.
Um outro grupo de capoeiristas em número menor - que
usava corda a primeira - com o tempo de aprendizado, a depender
da avaliação do mestre foi considerado apto a mudar de corda. Então,
estes que usavam cordas, ou seja, eram alunos graduados
recebem uma outra corda marcando o estágio imediatamente superior
ao que se encontravam. Geralmente, esse é o procedimento até
chegar ao nível de mestre.
Os capoeiristas estavam vestidos com a sua indumentária branca
o abadá uma calça de malha, a camiseta do grupo estampado o
símbolo do grupo com suas cores, o nome do mestre que não pode
faltar, o nome do evento, a cidade e o ano. Os capoeiristas
A Capoeira e os Mestres
146
graduados usavam uma corda na cintura. Quanto mais se aproxima da
graduação do mestre, o número de capoeiristas vai diminuindo. Essa
festa se repete anualmente. Vale destacar que alguns grupos realizam
duas vezes, o que gera críticas no campo capoeirístico, principalmente,
os que não adotam cordas para graduar. As acusações têm relação
com o valor cobrado pelas cordas.
Durante a pesquisa, não tive a oportunidade de assistir a uma
formatura de mestre. Prevendo que isso poderia acontecer, procurei
ouvir das narrativas dos mestres o que não me foi possível observar.
Portanto, o que os mestres falam sobre o momento em que receberam
a titulação de mestre foi uma questão que se tornou recorrente nas
entrevistas.
Para começar, os mestres fizeram questão de justificar o seu
título. Nomeado mestre em 1986 quando fazia parte do GCAP, Mestre
Cobrinha Mansa contou que, a chegada do título para ele, é o
momento do reconhecimento de um trabalho que estava realizando
em prol da Capoeira, o qual está relacionado com o respeito que
adquiriu perante a comunidade de capoeiristas porque antes do mestre
lhe conferir o título, os próprios mestres o chamavam de mestre.
Quando pedi para que me contasse como foi à formatura dele, o
mestre disse que é um dos momentos mais bonito para um
capoeirista. Fez questão de demarcar a diferença da Capoeira Angola
para outros estilos, e disse
porque é uma grande surpresa, você não sabe. Aí tem um
evento de Capoeira e você vai participar desse evento
como todo mundo vai participar e você chega de
repente e o mestre manda você jogar com um, e você
joga, joga com outro, joga com outro e você sente
que tem alguma coisa aí. E aí tem essa surpresa do
mestre pronunciar na frente de todos os mestres que você
é o mestre de Capoeira (Mestre Cobrinha Mansa).
A Capoeira e os Mestres
147
O Mestre Valmir, que também vem da mesma escola do Mestre
Cobrinha Mansa, e que por sinal foi formado mestre por ele, relatou
como foi o processo que resultou na sua formatura de mestre. Em
1992 recebeu o título no GCAP de contramestre de Capoeira e a sua
formação de mestre se deu onze anos depois, em 2003. O mestre
Valmir fez questão de justificar o seu título quando disse que dentro da
Capoeira, até pelo próprio local que ele se encontrava, pelo trabalho
que desenvolve pela manutenção que dá a Capoeira, não a título de
Salvador, a título de Brasil, mas a título de mundo, as pessoas se
referiam a ele como mestre de Capoeira.
Então o título, na realidade, surge dessa forma e a
confirmação veio de um grande evento que aconteceu em
Belo Horizonte e se oficializou o recebimento desse título.
Esse título dado pelas pessoas que me acompanham.
Como estou com Cobrinha, quem me deu o título foi ele e
o mestre Jurandir (Mestre Valmir).
Narrativas como as dos mestres, revelam que as ênfases nas
justificativas como forma de evitar as acusações - marcam o
momento em que o título de mestre no campo vem sendo debatido,
questionado, posto em dúvida as acusações aos falsos mestres é
uma questão presente. Além do hábitus capoeirístico que foi adquirido
pelo capoeirista no seu processo de formação, o reconhecimento do
trabalho do capoeirista em prol da Capoeira passa a ser um critério de
peso utilizado para que o candidato a mestre seja oficializado e
legitimado pelo seu mestre e por seus pares - os mestres que têm
identificação com o seu grupo.
Como vimos nos capítulos anteriores, pouco tempo a
Capoeira era polarizada em duas vertentes: Capoeira Angola e
A Capoeira e os Mestres
148
Capoeira Regional. O que não era identificado como angola era
regional. Cada uma com a sua história, seus princípios, seus códigos,
seus rituais, sua musicalidade, seus defensores, seus discípulos. Suas
particularidades. Entre elas, a formação do mestre. Falando-me sobre
como se forma um mestre na Capoeira Regional, da Escola Filhos de
Bimba, disse-me o Mestre Nenel
:
Aqui eles têm uma fase de calouros, depois formados,
eles se formam e recebem uma medalha de honra ao
mérito com lenço azul de seda, depois faz a primeira, a
segunda especialização. Primeira especialização recebe
vermelha. Depois o lenço amarelo. É a mesma coisa do
meu pai. E ai quando ele adquire um bom equilíbrio na
parte rítmica da Capoeira, ele recebe o lenço branco e um
certificado de mestre charangueiro (Mestre Nenel).
Formatura, paraninfo, calouro, certificado, especialização - todos
esses termos do campo acadêmico, do meio universitário passaram a
ser incorporados ao vocabulário capoeirístico. Sem dúvida, essa
história tem relação com o Mestre Bimba. Ele foi responsável pela
entrada na Capoeira de um número razoável de estudantes
universitários que teria influenciado o uso dessa linguagem na
Capoeira.
A frase é a mesma coisa do meu pai” pronunciada por mestre
Nenel merece uma atenção. Quando as circunstâncias exigem, ela (a
frase) pode servir de exaltação ao trabalho que o mestre desenvolve
com Capoeira, um trabalho com a pretensão de ser, sobretudo, uma
afirmação do passado, dando uma idéia de continuidade a tudo o que
foi deixado pelo seu pai. Uma outra questão que podemos levantar diz
respeito ao fato de que no campo capoeirístico outros grupos
mencionarem que trabalham igual a Mestre Bimba. Portanto, seria
A Capoeira e os Mestres
149
questionável o filho adotar uma perspectiva que fugisse aos princípios
de Bimba. Nesse caso, a frase evidencia uma prestação de conta.
No mesmo dia que entrevistei o Mestre Nenel, passei na
Associação Brasileira de Capoeira Angola e ouvi os mestres Neco e
Boca Rica comentarem que essa postura de Nenel é recente, pois ele
usava o sistema de graduação com cordas como a maioria dos grupos
faz hoje. Pureza Regional e acusações a parte, com o título de mestre
e a fama que adquire por ser o filho de Mestre Bimba, o Mestre Nenel
desfruta de um capital simbólico acumulado.
3.7. AS ACUSAÇÕES AOS FALSOS MESTRES
Ainda no tocante a discussão sobre a titulação de mestre na
Capoeira, vale a pena destacar um discurso proferido pelos mestres, o
qual se tornou constante em todos os depoimentos. Geralmente é
pronunciado no momento em que avaliam as mudanças mais recentes
vivenciadas pela Capoeira, em especial, quando se trata da sua
expansão. Estou me referindo às acusações que os mestres faziam
àqueles que eles não consideravam mestres; sendo por eles
denominados de falsos mestres.
Mas quem são os capoeiristas acusados de falsos mestres? A
maioria se referia aos capoeiristas que saem do Brasil para o exterior e
antes de descer do avião se auto-intitulam de mestres. também os
mestres que fazem referência aos mestres que compram o título de
mestre e também aos capoeiristas antigos que estavam afastados da
A Capoeira e os Mestres
150
Capoeira e depois do crescimento expansão, valorização (da
Capoeira) apareceram como mestre. É o que nos conta o Mestre Neco.
No meu tempo era difícil ter um mestre. Hoje tem mais
mestre do que aluno. Porque tem gente vendendo corda,
vendendo diploma. Tem mestres de Capoeira de avião.
Eles ficam catando as gringas aqui. O pessoal com
interesse em levar pra fora do país. Eles pegam o avião,
quando chegam lá, já é mestre. Agora não sabem cantar,
nem jogar, nem cantar, nem falar sobre a Capoeira.
Porque para mim, o capoeirista não é só ficar saltando pra
lá e pra cá. Ele tem que ter fundamento (Mestre Neco).
A fala do Mestre revela um sentimento de descontentamento em
relação à quantidade de mestres. Com ironia, chega a dizer que tem
mais mestres que aluno, o que de fato não expressa a realidade. A
questão da acusação aos falsos mestres é delicada na Capoeira. Uma
hipótese a ser considerada pode ser o reflexo da própria forma de a
Capoeira se organizar sem amarras, sem uma entidade única que
determine os critérios, as normas de formação de mestres o que faz
parte do espírito de liberdade, de autonomia da Capoeira, o que é
defendido pelos mestres.
Os mestres avaliam positivamente o fato de a Capoeira estar
presente em mais de cem países. Mas para eles, quem tinha que estar
era quem tem capacidade, quem tem bagagem, quem tem
fundamento, os mestres antigos – mestres que têm nome - ressaltou o
Mestre Neco. Estes, na sua compreensão, estão fora do processo.
Ainda sobre essa questão, é importante destacar que o ressentimento
dos mestres engendra uma generalização.
Acredito que existem no estrangeiro, capoeiristas que não eram
mestres e, ao chegarem não importa se foram os gringos que se
encantaram com o jogo do capoeirista e possibilitaram a ida deles - se
A Capoeira e os Mestres
151
auto-intitularam mestres. No entanto, muitos chegaram a outros
países com a titulação, com o reconhecimento do trabalho
desenvolvido com Capoeira no Brasil.
TRAVASSOS (2000) ao discorrer sobre os títulos e as formas de
tratamento na Capoeira, fez referência às acusações aos títulos de
mestre de brasileiros que ensinam Capoeira no exterior, relacionando
estas a questões como: mercado de trabalho, legitimidade e poder etc.
Ao considerar a acusação aos mestres uma questão presente e
complexa no campo da Capoeira ressaltamos a visão do historiador Frede
Abreu durante a conversa que tivemos sobre o circuito internacional da
Capoeira. Para Frede Abreu, há uma troca entre os velhos e novos
mestres, mesmo os velhos mestres criticando-os, não os reconhecendo
como mestres, são eles que acolhem esses mestres fora do país.
Esse é um momento de reafirmar a confirmação e
afirmação dos velhos mestres. É o momento em que eles
têm a oportunidade de serem reconhecidos, legitimados e
valorizados em termos materiais e simbólicos. Também
têm a oportunidade: de receber um valor em dinheiro pelo
trabalho, de viajar, de conhecer outras coisas, outras
pessoas. De se sentirem importantes. São os palestrantes,
conferencistas (Frede Abreu).
3.8. A CAPOEIRA NA VIDA DO MESTRE
A Capoeira tem sido pra mim a minha vida, o meu
remédio, a minha alimentação.
Mestre Moraes
A Capoeira e os Mestres
152
A Capoeira pra mim é minha forma de viver. A
minha filosofia de vida. Então meu lazer, minha
religião, minha dança, minha luta, meu jogo, meu
tudo. Minha respiração é Capoeira - Capoeira
Regional.
Mestre Nenel
A história nos revela que a prática da Capoeira antecede a
existência do mestre título conferido a alguém pelo reconhecimento
de um trabalho ou construído, instituído a partir de uma preparação. O
título de mestre faz parte da história recente da Capoeira. Sem
minimizar a importância do mestre, percebe-se que mais do que
justificar a existência da Capoeira, é ela que justifica a existência do
mestre, do significado, de um lugar e papel que lhes foi instituído.
Se um reconhecimento da importância do mestre na história
da Capoeira, condicionando-o, equivocadamente, a existência dela. Por
sua vez, a ela, o capoeirista deve a sua condição de mestre, o rumo da
sua vida. Os mestres chegam a estabelecer com a Capoeira uma
relação de complementaridade da vida.
A Capoeira é a minha vida - disse orgulhosamente Mestre Pirajá.
O fato de ser mestre possibilitou-lhe construir uma inserção social.
Algo que ele não teria possibilidade, dado o lugar social de onde veio.
As viagens internacionais passam a fazer parte da agenda dos mestres
considerados referência no Grupo. Geralmente são os convidados
especiais. Mestre Pirajá, por exemplo, viaja constantemente para
participar dos eventos programados pelo Grupo Axé Capoeira, do
Mestre Barrão - formado pelo referido mestre - com sede no Canadá.
Ao falar da presença desse Grupo em outros países, com satisfação, o
Mestre cita os lugares onde esteve e as viagens programadas para o
primeiro semestre de 2004.
A Capoeira e os Mestres
153
Com a Capoeira tive a oportunidade de ir ao Canadá,
Estados Unidos, a Europa. Onde tem o Grupo Axé eu
sempre viajando. Geralmente viajo de dois em dois anos.
(...) Nossos eventos são programados com antecedência. Por
exemplo, esse ano, no verão europeu, eu devo ir para
Turquia. Tenho uma viagem para Polônia e Rússia. Isso até
agosto. Agora em abril tem uma pra Nice, na França. Em
agosto é o encontro mundial aqui em Recife, aonde nós
vamos trazer o Grupo desses países (Mestre Pirajá).
Mestres com o capital social e simbólico de Pirajá - a idade, o
tempo de Capoeira, ser uma referência na história da Capoeira em sua
cidade, ter discípulos formado por ele, que desenvolvem trabalhos fora
do país - constantemente viaja a convite do próprio Grupo ao qual está
vinculado, podendo ser convidado por outros grupos.
O envolvimento com a atividade capoeirística o credencia a
participar, como mestre, do campo da Capoeira, e possuir o hábitus do
Capoeira Mestre. As narrativas e histórias contadas pelos mestres nos
têm revelado que escolher a Capoeira é fazer parte dela e ela de você.
Essa é uma apreensão de quem está no campo de quem fez da
Capoeira um projeto de vida. Essa relação pode ser notada, por
exemplo, em uma das falas de um mestre.
A verdade é que a Capoeira pra mim é a vida. Que eu
pedi muito a todas as forças do universo que um dia eu
pudesse viver da Capoeira, pra Capoeira. Então, hoje em
dia eu consigo fazer isso. Tudo que eu faço na minha vida
está ligado, diretamente, com a Capoeira. Todo mundo
sabe que eu trabalho com documentários, palestras,
viagens sempre ligado a Capoeira (Mestre Cobrinha
Mansa).
A Capoeira e os Mestres
154
Ao tomarmos os cuidados para não cairmos em uma
naturalização é preciso dizer que na verdade o mestre é uma
construção. É um jogo que se dentro da Capoeira, uma vez que a
legitimação do mestre passou a fazer parte da história da Capoeira,
tornando-se o responsável pela sua preservação. Preservar no sentido
de contribuir para que outras gerações possam ter o contato com ela.
As informações que circulam no meio capoeirístico e fora deste
representam o mestre como sendo o guardião da Capoeira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Capoeira, a partir das últimas décadas, tornou-se um objeto de
reflexão em várias áreas do conhecimento, despertando o interesse de
pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Esta narrativa sobre a
A Capoeira e os Mestres
155
Capoeira, com a atenção para o mestre, compõe mais um fragmento
da sua história. Além de contribuir para dar visibilidade a um
fenômeno social com séculos de história, a nossa intenção foi a
construção de um trabalho revelador da Capoeira, porém não
conclusivo.
A Capoeira - herança dos povos africanos - tornou-se presente
no Brasil cerca de três séculos. No entanto, o desafio assumido
para apreender as mudanças que a Capoeira vem passando,
destacando a construção do mestre, foi privilegiar o século XX em
diante, haja vista o fato de a titulação de mestre na Capoeira ter sido
gestada nesse século, assim como os deslocamentos sociais -
mudanças materiais e simbólicas - que fazem parte da história mais
recente da Capoeira.
Para analisar a Capoeira, partimos do pressuposto de que esta é
um campo social. Autonomia, disputas, jogos, interesses, hierarquias,
concorrência são características presentes na Capoeira que respaldam
o nosso entendimento de que estamos diante de um campo
capoeirístico. Além de campo social, os aportes teóricos da Sociologia
de Bourdieu - habitus e capital - foram usados como referências
quando discutíamos o mestre.
A fim de compreender a Capoeira na história, foi preciso recorrer
a estudos realizados no universo acadêmico e às narrativas dos
mestres capoeiras. Tanto a escrita como a oralidade nos revelou
questionamentos e debates a respeito da origem da Capoeira, um
problema ainda sem solução. No campo capoeirístico, predominam
dois discursos a origem africana e a brasileira. Em alusão a História
Social da Capoeira, sua prática exercida no Brasil advém do período
Colonial. Os praticantes eram os negros que vieram para o Brasil na
condição de escravos. Eles usavam-na como arma de defesa, quando
lutavam contra a ordem opressora do sistema escravocrata, e como
A Capoeira e os Mestres
156
divertimento nas horas vagas. Esse contexto histórico exige o
reconhecimento de que a Capoeira veio das classes menos favorecidas
economicamente, o que assegura afirmar, sem dúvida, que ela tem
sua origem no território popular.
Ao avaliar a sua trajetória, vimos que do final do século XIX até
a década de trinta do século seguinte, o código civil colocou a Capoeira
na ilegalidade. Nos anos trinta, dois fatos marcaram a Capoeira. O
primeiro tem relação com o momento político. O Estado Novo populista
retira a Capoeira do código penal e passa a absorvê-la como símbolo
de nacionalidade. O segundo, tem relação com a criação da Capoeira
Regional, o que marca uma bipolaridade no campo capoeirístico. A
partir daí temos a Capoeira Angola e a Capoeira Regional. Cada uma
com suas referências, seus objetivos, seus mitos, seus rituais, seus
fundamentos gestualidade, musicalidade e história suas crenças e
singularidades.
A bipolaridade vinculada aos estilos Angola e Regional, presente
no campo capoeirístico por mais de meio século, passou a ser desfeita
pelos mestres representativos de uma e outra Capoeira. A pesquisa de
campo foi reveladora da idéia de que nem toda a Capoeira não
identificada com a Capoeira Angola é Capoeira Regional.
Usar os elementos das duas Capoeiras e criar outros elementos
somados aos existentes, levou os mestres a identificar recentemente
um outro estilo denominado de Capoeira Contemporânea. Mestre
Nenel, o herdeiro do Mestre Bimba, assume a defesa da Capoeira
Regional deixada pelo seu pai. As inovações acrescidas por outros
mestres são sinais de descaracterização da Capoeira Regional; por
isso, são poucos grupos reconhecidos como Capoeira Regional na visão
do Mestre.
Se a Capoeira Regional teve o Mestre Bimba como o seu
idealizador, tornando-se uma grande referência no campo
A Capoeira e os Mestres
157
capoeirístico, a Capoeira Angola tinha na pessoa do Mestre Pastinha a
sua maior referência. Esses dois nomes são notabilizados pelo papel
que desempenharam na História da Capoeira. Capoeiristas que
estabeleceram relação com os dois mestres, na condição de alunos,
têm prestígio no campo, passando a utilizar o título de mestres,
mesmo que não dominem o hábitus e não possua o capital necessário
para serem legitimados e reconhecidos mestre por seus pares.
Nas últimas quatro cadas a Capoeira tem vivenciado um
processo de mudança. Nesse processo, destacamos as redefinições de
usos da Capoeira, ampliando seu sentido e significado - além de
prática cultural tornou-se prática esportiva; considerada brincadeira
por seus praticantes passa a ser e profissão -, a expansão para além
do território brasileiro, a participação de diversos grupos sociais, a
institucionalização da Capoeira como esporte, a presença em
instituições escolares e universidades e a produção de um discurso
centrado na positividade.
A inserção da Capoeira em espaços sociais de caráter
educacional escolas e universidades - representa um processo de
redefinição dos seus cenários e autores. Uma possibilidade de trabalho
para possuidores de títulos acadêmicos, o que é motivo de críticas e
ressentimento dos mestres veteranos com experiências de mais de
trinta anos de Capoeira, considerados no campo capoeirístico como
legítimos conhecedores da prática da Capoeira. As críticas atribuídas
por esses mestres estão relacionadas ao fato de eles ficarem fora do
processo, uma vez que não possuem a licenciatura em Educação
Física.
Uma das mudanças mais significativas relacionadas à Capoeira
tem sido a sua expansão para além do território brasileiro. Nos anos
setenta, os primeiros capoeiristas deixam o país com a intenção de
trabalhar com a Capoeira em outros países. A maioria, vinculada a
A Capoeira e os Mestres
158
Capoeira Regional. Salvador foi o lo irradiador de onde partiram
capoeiristas, embora os paulistas reivindiquem esse lugar. O
movimento migratório e o desenvolvimento do turismo foram fatores
importantes que impulsionaram a expansão da Capoeira. Sendo o
primeiro relacionado à expansão interna e o segundo, a expansão
externa. A partir dos anos noventa, intensificou-se o processo de idas
de capoeiristas para o estrangeiro.
A expansão da Capoeira foi uma questão recorrente nas
narrativas dos mestres. Suas representações são valoradas
positivamente. As mesmas têm relação com a garantia de uma vida
melhor e com o interesse e dedicação do pessoal de fora pela
Capoeira. Todavia, esse momento de valorização da Capoeira no
estrangeiro despertou o interesse de capoeiristas em trabalhar com
Capoeira fora. Na visão dos mestres, no estrangeiro, capoeiristas
mal preparados, que se auto-intitulam de mestres. Essa é uma
questão que expressa preocupações e insatisfação, especialmente
pelos mestres com mais tempo de Capoeira.
Conhecedores do saber próprio do seu campo, os mestres dizem
como as coisas são a partir dos instrumentos que lhes são disponíveis.
A intenção do trabalho não foi de evidenciar a visão dos mestres, mas
de compreender a posição assumida por eles, entender o que dizem;
tomar como referência as categorias deles para pensar eles próprios.
Esse é o papel do pesquisador, amparado em seu arcabouço teórico e
conceitual.
As construções históricas dos mestres impressas no cotidiano, no
habitus, nos conceitos, nas linguagens, nas regras, nas normas, nas
disputas dizem muito da existência de uma multiplicidade de universos
socialmente diferenciados. Atitudes semelhantes e diferenças
consideráveis, uma pluralidade, na ordem da construção histórico-
social, estão presentes no campo capoeirístico.
A Capoeira e os Mestres
159
Condicionar a formação do mestre ao mestre é uma construção
recente na história da Capoeira. Não há um consenso entre os mestres
a respeito do momento que o título de mestre começa a fazer parte da
Capoeira. Mestres mencionaram o fato de que, antes do Mestre Bimba
e de Mestre Pastinha, outros capoeiristas anteriores a estes, como
aqueles que o ensinaram para a história eram referidos como
mestres. Nesse caso, a titulação de mestre chega aos primeiros
capoeiristas pelo reconhecimento do papel que tiveram na história de
renomados mestres. Dominando os códigos da Capoeira, possuindo o
hábitus e o capital que legitima a conquista do título de mestre,
tiveram o reconhecimento da titulação pela história e não por ter
passado pelo processo de formação de mestre.
A outra hipótese presente no campo foi a de que o título de
mestre havia sido dado primeiramente a Mestre Bimba por um aluno
dele que era estudante de medicina. Em alusão ao mestre da
faculdade, começa a chamar Bimba de mestre. A partir daí outros
capoeiristas que ensinavam Capoeira também passaram a usar o título
de mestre.
A construção social do mestre de Capoeira não é uniforme,
podendo mudar de estilo para estilo e de grupo para grupo. Não
uma cartilha com normas ou regras a serem seguidas, embora um
conjunto de critérios seja levado em conta o tempo de experiência,
podendo este variar, haja vista mestres limitarem a idade do
capoeirista e o tempo de Capoeira. Conhecer os fundamentos a
movimentação, saber tocar e cantar e ter um trabalho voltado para
Capoeira. Para os mestres, a titulação acontece pelo reconhecimento
da comunidade capoeirística os mestres a quem o seu grupo tem
relação. Alguns mestres mencionaram o fato do seu título de mestre
ser dado pelo reconhecimento da comunidade aquela onde
desenvolve o trabalho – seus alunos.
A Capoeira e os Mestres
160
A formação do título de mestre pelo sistema de graduação com
base na troca de cordas é adotada pela maioria dos grupos de
Capoeira. Afastam-se desse formato a Escola de Capoeira Filhos de
Bimba e os grupos de Capoeira Angola que se identificam como os
legítimos e verdadeiros angoleiros.
A pesquisa revelou que no campo capoeirístico uma
insatisfação dos velhos mestres com relação à presença de mestres
novos a ponto de alguns se sentirem incomodados e não quererem
mais ser chamados de mestre, outros não usar a sua corda branca de
mestre nos eventos. É como se o título perdesse sua áurea. Ainda
com relação à titulação vimos que o discurso do falso mestre é
presente no campo, também é proferido pelos mestres com mais
tempo de mestria.
A representação da Capoeira na vida dos mestres é dotada de
positividade. Os capoeiristas são unânimes ao apresentar a satisfação
que têm por ter conhecido a Capoeira e ela fazer parte das suas vidas.
O que têm e o que conheceram – pessoas e lugares – têm relação com
a Capoeira.
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