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Cassia Cardoso de Miranda
Filosofia Analítica e Antropologia:
uma discussão acerca da comensurabilidade e
alteridade lingüística
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Filosofia
Orientador: Profª. Danilo Marcondes de Souza Filho
Rio de Janeiro
Setembro de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610696/CA
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Cassia Cardoso de Miranda
Filosofia Analítica e Antropologia:
uma discussão acerca da comensurabilidade e
alteridade lingüística
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre pelo Programa
de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho
Orientador
Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira
Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Edgar da Rocha Marques
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, setembro de 2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610696/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
do orientador.
Cassia Cardoso de Miranda
Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro em 2003. Foi bolsista do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano da UFRJ. Enquanto aluna de Graduação,
apresentou trabalhos em diversos encontros de estudantes.
Enquanto mestranda, apresentou comunicações em eventos e
congressos na área de Filosofia, expondo resultados parciais da
pesquisa que desenvolveu na elaboração da presente dissertação.
Ficha Catalográfica
CDD: 100
Miranda, Cassia Cardoso de
Filosofia analítica e antropologia : uma discussão
acerca da comensurabilidade e alteridade lingüística / Cassia
Cardoso de Miranda ; orientador: Danilo Marcondes de Souza
Filho. – 2008.
113 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Filosofia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2008.
Inclui bibliografia
1. Filosofia Teses. 2. Filosofia da linguagem. 3.
Wittgenstein. 4. Antropologia. 5. Análise conceitual. 6.
Comensurabilidade. I. Souza Filho, Danilo Marcondes de. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Filosofia. III. Título.
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Para Francisco.
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Agradecimentos
Ao meu orientador, Professor Danilo Marcondes, sempre compreensivo e
atencioso, por todas as sugestões, críticas e comentários aos meus textos.
Ao CNPq e à PUC-Rio pelos auxílios concedidos, que possibilitaram a existência
desse trabalho.
Ao professor Edgar Marques, pela disposição em participar na avaliação dessa
dissertação.
Ao professor Luiz Carlos Pereira, por todas as contribuições a esse trabalho, desde
empréstimos de livros a sugestões de leitura essenciais e aulas instigantes. E
ainda, por participar da banca examinadora de minha dissertação.
Aos professores Déborah Danowski, Oswaldo Chateaubriand, Edgard José, Raul
Landim e Marco Ruffino, pelos ensinamentos valorosos ao longo desses anos.
Às funcionárias do Departamento de Filosofia, Diná e Edna, sempre muito
eficientes.
Aos funcionários da Biblioteca da PUC-Rio, por sua impressionante gentileza e
boa vontade.
Aos colegas da PUC-Rio, por tornarem a filosofia menos árida, em especial
Raquel Sapunaru, Bruno Vaz, Marco Silva e Flora Tucci.
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A todos os grandes amigos, pela compreensão, ajuda e incentivo, em especial,
Rachel Saint-Williams.
A Francisco, por não deixar um minuto sequer de demonstrar o quanto acredita
em mim, por passar noites em claro revisando meus textos, e principalmente, por
todo seu afeto.
Ao Vô Luiz e Tio Nando, pela preocupação e torcida de sempre.
Aos meus irmãos, pessoas que muito admiro, pela ajuda e paciência.
Em especial, aos meus pais, pelo apoio, carinho e confiança.
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Resumo
Miranda, Cassia Cardoso de; Marcondes, Danilo (Orientador). Filosofia
Analítica e Antropologia: uma discussão acerca da comensurabilidade e
alteridade lingüística. Rio de Janeiro. 2008. 113p. Dissertação de Mestrado
Departamento de Filosofia Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
A proposta inicial de análise da linguagem afirmada pela filosofia analítica
partia do pressuposto da existência de uma linguagem logicamente perfeita, que
espelharia a forma lógica dos fatos. Essa linguagem ideal revelaria de maneira
clara e correta a estrutura essencial do mundo, evitando as ‘armadilhas’ da
linguagem cotidiana. A filosofia desenvolvida na segunda fase da obra de
Wittgenstein fragmenta essa noção de linguagem unitária em uma multiplicidade
de “jogos de linguagem”, firmados sobre “formas de vida” particulares. A
gramática, ou o conjunto de regras que regem uma linguagem, torna-se autônoma,
posto que não leva em consideração uma pretensa essência ou forma da realidade,
mas adquire seu sentido no uso das expressões que regula. Essa autonomia da
gramática abre espaço para a existência de diferentes sistemas dotados de sentido
e, portanto, nos permite falar de uma alteridade de formas de representação. A
presente dissertação pretende apontar tal ‘abertura’ provocada por Wittgenstein,
em parte prefigurada na sua crítica à obra do antropólogo J. G. Frazer, bem como
apresentar algumas discussões que ela suscitou dentro e fora da filosofia analítica.
Por fim, o objetivo é esboçar um método de análise conceitual, derivado do
encontro entre antropologia e filosofia, como uma alternativa de abordagem para a
corrente analítica.
Palavras-chave
Linguagem, Wittgenstein, Antropologia, Análise conceitual,
Comensurabilidade
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Abstract
Miranda, Cassia Cardoso de; Marcondes, Danilo (Advisor). Analityc
Philosophy and anthropology: a discussion on linguistical alterity and
commensurability. Rio de Janeiro. 2008. 113p. MSc Dissertation -
Departamento de Filosofia Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
The original proposition of language analysis set forth by analytical
philosophy stemmed from the assumption of the existence of a logically perfect
language, which would mirror the logical form of the facts. This ideal language
would clearly and correctly reveal the logical structure of the world, avoiding the
'traps' of daily language. The philosophy developed on the second phase of
Wittgenstein's work breaks apart this notion of a unitary language in a multiplicity
of "language games", based upon particular “forms of life”. Grammar, or the set
of rules that govern a language, becomes autonomous, since it does not account
for an assumed essence or form of reality, but acquires its meaning in the use of
the expressions it regulates. This autonomy of grammar makes room for the
existence of different systems endowed with meaning and, therefore, allows us to
speak of an otherness of forms of representation. This dissertation intends to point
out this 'opening' introduced by Wittgenstein, which was partly foreshadowed on
his critique of the works of the anthropologist J. G. Frazer. It also presents some
discussions that it raised inside and outside of analytical philosophy. Finally, the
objective is to sketch a method of conceptual analysis, derived from the encounter
between anthropology and philosophy, as an alternative approach to the analytical
train.
Keywords
Language, Wittgenstein, Anthropology, Conceptual Analysis,
Commensurability.
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Sumário
INTRODUÇÃO 11
1 WITTGENSTEIN E O PROJETO ANALÍTICO 15
1.1. O BACKGROUND ANALÍTICO 16
1.2. A ANÁLISE WITTGENSTEINIANA DA LINGUAGEM 23
1.3. LINGUAGEM E MUNDO: A REALIDADE COMO SOMBRA DA
GRAMÁTICA 36
2 UM ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA 42
2.1. WITTGENSTEIN DE ENCONTRO A FRAZER 43
2.2. A DETERMINAÇÃO CONTEXTUAL DO SIGNIFICADO E A
EXIGÊNCIA DE UM “SOLO COMUM”. 56
3 RACIONALIDADE, RELATIVISMO, TRADUÇÃO E
COMENSURABILIDADE 65
3.1. RACIONALIDADE E TRADUÇÃO 66
3.2. RELATIVISMO LINGÜÍSTICO 68
3.3. COMENSURABILIDADE E COMPARAÇÃO 78
4 UM SEGUNDO ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA 84
4.1. AS FORMAS ALTERNATIVAS DE REPRESENTAÇÃO 84
4.2. UMA PROPOSTA DE ANÁLISE ETNOGRAFICAMENTE
MOTIVADA 90
CONCLUSÃO 106
BIBLIOGRAFIA 109
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“Nothing has been defined, because every definite entity requires a
systematic universe to supply its requisite status. Thus every proposition
proposing a fact must, in its complete analysis, propose the general character of
the universe required for the fact.”
Alfred North Whitehead – Process and Reality
“If we look at things from an ethnological point of view, does that mean we are
saying that philosophy is ethnology? No, it only means that we are taking up a
position right outside so as to be able to see things more objectively”.
Ludwig Wittgenstein – Culture and value
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INTRODUÇÃO
A filosofia analítica da linguagem tornou-se, ao longo do século XX, uma
das tendências dominantes da filosofia. Esta assumiu como pressuposto a
concepção de que o homem é um ser essencialmente lingüístico, de que os
pensamentos estão intrinsecamente ligados à sua expressão na linguagem. Assim,
a análise do significado de conceitos, entendidos como entidades lingüísticas, e
não como entidades mentais ou metafísicas, passa a ter papel de destaque como
forma de elucidar problemas filosóficos. A filosofia se afirma então, o como
uma disciplina cognitiva, mas como uma atividade que busca clarificar nossa
linguagem.
Neste cenário, a filosofia de Ludwig Wittgenstein (1889-1951) possui
destacada relevância. Seu novo método de fazer filosofia provoca uma guinada no
desenvolvimento do pensamento humano. Sua metodologia vai, não apenas contra
o espírito científico do século XX, mas também contra toda a história da filosofia.
Se em seus primórdios a filosofia estava preocupada em produzir conhecimento
sobre a realidade empírica, após Immanuel Kant (1724-1804) o interesse da
filosofia estava menos nos objetos do que no modo de conhecimento desses
objetos. Se a filosofia de Wittgenstein por um lado pode ser identificada com a
perspectiva crítica de Kant, que defende que a filosofia deve se ocupar com as
precondições para se pensar a realidade, por outro lado promove uma virada
lingüística nessa perspectiva kantiana, afirmando que as precondições para a
representação são regras lingüísticas. Os pensamentos não são entidades mentais
ou abstratas, mas sim proposições e sentenças, podendo, portanto, ser
completamente expressos na linguagem. A filosofia traça limites para o
pensamento, estabelecendo os limites da expressão lingüística. É um conjunto de
regras lingüísticas, a nossa gramática, que constitui nosso esquema conceitual,
nossa forma de representação.
Num primeiro momento, Wittgenstein afirma no Tractatus que os
fundamentos da linguagem estavam nos objetos eternos “indecomponíveis”, cujas
essências deveriam determinar o espaço lógico de situações possíveis,
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12
estabelecendo limites inalteráveis para aquilo que faz sentido dizer.
Posteriormente, numa segunda fase de sua obra, Wittgenstein nega essa idéia e
passa a sustentar que, se a linguagem possui fundamentos, eles não são fornecidos
por átomos metafísicos, por um suposto objeto simples, mas sim por padrões
cambiáveis de atividade comunitária, a nossa forma de vida. A sua proposta
defende uma concepção pragmática de linguagem, que deve ser compreendida em
seus usos, e não mais referenciando-a a uma essência transcendental do mundo.
A gramática é uma parte essencial das práticas humanas, estando, por isso, sujeita
à mudanças. Essa gramática constitui nossa forma de representação da realidade,
mas não é, ela própria, controlada pela realidade. Ela é arbitrária, dado que não
deve prestar contas a uma pretensa essência ou forma da realidade para se
legitimar. Essa constatação abre espaço para a possibilidade de outras gramáticas.
É com base nessa idéia de autonomia da linguagem que podemos falar de
um relativismo conceitual em Wittgenstein. Esse relativismo baseia-se na idéia de
que cada forma de representação estabelece seus próprios padrões de
racionalidade, o que implica que até mesmo justificações pragmáticas são
inerentes aos jogos de linguagem particulares. “Que espécie de objeto alguma
coisa é, é dito pela gramática”
1
.
Wittgenstein insistiu ainda que o mais importante em seu trabalho não
eram seus resultados específicos, mas sim seu novo método de fazer filosofia,
uma prática que nos permitiria caminhar com nossas próprias pernas. Sua
metodologia, de fato, suscitou inúmeras aplicações e propostas não previstas por
seu autor.
A filosofia analítica que vem se configurando no século XXI parece ter
abandonado a pretensão de exclusividade e tem buscado interagir com outras
correntes filosóficas e áreas do conhecimento, como exemplo, a ética, a teoria do
discurso, a filosofia política, o direito e a antropologia. Essa interação resultou em
contribuições bastante interessantes para ambas as áreas, apontando para a
capacidade da filosofia analítica de renovar-se e adaptar-se a novas questões,
mantendo-se atual. Assim, dada essa abertura, a presente dissertação pretende
buscar na antropologia inspiração para um projeto interdisciplinar de análise
conceitual.
1
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §373.
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No primeiro capítulo apresento brevemente o projeto analítico, com o
objetivo de fornecer um panorama do contexto em que se insere a obra de
Wittgenstein. Depois, passo a uma exposição dos fundamentos da segunda fase da
filosofia de Wittgenstein, em especial, de sua obra Investigações Filosóficas, para
demonstrar as transformações que o pensamento do filósofo gerou na filosofia
analítica. Tais transformações produzem uma alteração na própria concepção de
linguagem, que, se antes deveria espelhar uma estrutura lógica universal, agora
passa a ser constituída no uso. As regras de nossa gramática, precondições de
nossas representações, estão inseridas em nossa forma de vida, derivam seu
sentido e coerência de nossas práticas. A questão da verdade, da correspondência
ou não de uma proposição com o ‘real’, passa a ser uma questão pragmática de
compreensão do significado. Assim, a linguagem não está mais presa a uma
estrutura única, mas sim fragmentada em inúmeros jogos de linguagem, que
podem ser compreendidos dentro do contexto de uma forma de vida.
No segundo capítulo apresento as críticas de Wittgenstein à obra The
Golden Bough do antropólogo James George Frazer. O diálogo de Wittgenstein
com a antropologia prefigura a transformação operada em sua filosofia. Nas
críticas à Frazer estão contidas algumas das concepções essenciais para o
desenvolvimento posterior da filosofia desenvolvida nas Investigações
Filosóficas. Dessas observações podemos ainda deduzir um método
wittgensteiniano para compreender diferenças culturais.
No terceiro capítulo discorro a respeito de alguns debates, influenciados
pela obra de Wittgenstein, sobre tradução de esquemas conceituais e
comensurabilidade de formas de vida diferentes.
Por fim, no último capítulo, apresento uma proposta de investigação
etnográfica contemporânea, para propor uma filosofia etnograficamente motivada,
que pretende utilizar os dados etnográficos para modificar nossas categorias
analíticas e, consequentemente, nossa forma de representação do mundo.
Se essa proposta parece um tanto afastada das intenções iniciais da
filosofia analítica e da obra de Wittgenstein, ela, no entanto, foi possível pelas
aspirações analíticas a compreender a linguagem como forma de explicar o
pensamento, e também pelo movimento que a obra do filósofo gerou dentro da
corrente analítica, que permitiu que esta tratasse da multiplicidade de usos da
linguagem.
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Além disso, se um primeiro contato com a antropologia ajudou
Wittgenstein a reformular sua filosofia, por que não poderíamos pensar num
segundo encontro, agora com uma antropologia que já incorporou muito das
críticas do filósofo, e supor algumas conseqüências dessa interação? Acredito que,
se a proposta desenvolvida nessa dissertação desafia alguns postulados da
filosofia analítica e de Wittgenstein, isso permite, no entanto, alguns insights
interessantes para uma análise conceitual revigorada.
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1
WITTGENSTEIN E O PROJETO ANALÍTICO
Ao final do século XIX surge uma nova concepção de filosofia que se
constitui como uma reação ao idealismo especulativo de inspiração hegeliana e ao
empirismo psicologista: a Filosofia Analítica da Linguagem.
2
Esse movimento
tem origem em Cambridge, sobretudo com George Edward Moore e Bertrand
Russell, e, paralelamente, com Gottlob Frege na Alemanha. O recurso a entidades
subjetivas, como idéias e representações mentais, ou a entidades metafísicas,
como formas e essências, é questionado, que são inverificáveis, inacessíveis a
um exame empírico. Essa reação levou a uma concepção de Filosofia como
análise conceitual realizada através de um método lingüístico: é através da análise
do funcionamento da linguagem, dos princípios que governam seu uso, que
podemos analisar o pensamento. Devemos, portanto, explicar estes princípios para
tornar possível a análise do pensamento.
De acordo com Michael Dummett, a ruptura com a filosofia moderna (séc.
XVI-XVII), que tinha como questão central a epistemologia, a investigação sobre
a natureza e possibilidade do conhecimento, abre espaço para a questão lógico-
linguística, ou seja, o conhecimento não pode ser entendido independentemente de
sua formulação e expressão em uma linguagem, caracterizando a assim chamada
“virada lingüística” (linguistic turn). É nesse contexto que nasce a filosofia
analítica contemporânea, que:
[...] define sua tarefa como a análise dos conceitos, visando desse modo elucidar
os problemas filosóficos [...]. A análise do conceito como parte da tentativa de
solução de um problema filosófico não depende de uma compreensão da história
do conceito, de suas origens e evolução, mas sim, na concepção tipicamente
analítica, apenas da determinação da definição desse conceito da forma mais clara
e precisa possível.
3
Inicialmente, a análise, na perspectiva da filosofia da linguagem, é vista
como um procedimento, um método de investigação filosófica, que revela a
2
Cf. DUMMETT, 1993.
3
MARCONDES, 2004, p. 09.
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16
essência da linguagem examinando sua estrutura, isto é, mostrando como os
signos simples se relacionam entre si, e determinando como se a relação entre
esses signos e a realidade. Este método de análise vai sofrer profundas alterações,
como veremos em seguida. Mas a perspectiva analítica mantém seu objetivo de
produzir um esclarecimento filosófico sobre perplexidades geradas por uma
compreensão da linguagem. Trata-se de analisar a linguagem como forma de
dissolver problemas filosóficos.
.
1.1. O BACKGROUND ANALÍTICO
A filosofia analítica não teve um desenvolvimento linear e homogêneo, ao
contrário, se deu de forma dispersa no tempo e no espaço, comportando uma
heterogeneidade de concepções. Danilo Marcondes distingue, em meio a essa
multiplicidade, duas grandes vertentes de análise. A primeira, que podemos
chamar de semântica clássica, se desenvolve a partir das obras de Frege, Russell
(sobretudo com a teoria das descrições definidas e com o atomismo lógico) e
Wittgenstein (com o Tractatus logico-philosophicus).
4
Esta vertente possui como
traço comum a preocupação com a fundamentação da ciência, utilizando a lógica
como recurso básico
5
. Marcondes inclui ainda nessa tradição o positivismo lógico
do Círculo de Viena, de início fortemente influenciado pelo Tractatus de
Wittgenstein. A segunda grande vertente, também conhecida como “filosofia da
linguagem ordinária”, parte da influência da ‘análise conceitual’
6
proposta por
Moore, de Gilbert Ryle, do “segundo” Wittgenstein (sobretudo com as
4
Russell e Wittgenstein, juntamente com Moore, constituem a chamada Escola Analítica de
Cambridge.
5
“A elaboração dessa tradição foi motivada por considerações epistemológicas oriundas da
revolução científica e do desenvolvimento da ciência moderna. A ciência requeria uma abordagem
sistemática das relações entre linguagem e mundo, que purificasse as linguagens naturais dos
preconceitos subjetivos, fornecendo aos cientistas um meio objetivo de descrição e explicação dos
fenômenos naturais do mundo. Esse objetivismo consiste em uma atitude epistêmica que trata o
todo da realidade como um objeto de investigação científica, um objeto a ser esmiuçado para
aquisição de conhecimento. Essa abordagem do significado eliminava as mistificações de
concepções da linguagem religiosas e espiritualistas; no entanto, o resultado do foco exclusivo
sobre aspectos referenciais e representacionais do significado resultou numa abordagem da
linguagem incompleta e unilateral”. Cf. MEDINA, 2007. p. 49-50.
6
O termo análise, nesse caso, não se refere à decomposição de nada em seus componentes
simples, mas sim à elucidação de conceitos.
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Investigações Filosóficas) e de John Langshaw Austin e a Escola de Oxford. A
distinção entre essas duas correntes, no entanto, não deve ser pensada em termos
absolutos, já que elas interagem de diversas formas.
1.1.1. George Edward Moore (1873 – 1958)
A reação de Moore ao idealismo absoluto pode ser considerada um dos
estopins do movimento analítico. Essa investida de Moore começou em 1898, e
foi enraizada, não no empirismo, mas no realismo. Ele defendeu a visão anti-
idealista de que conceitos não são abstrações de idéias, mas existências
independentes em si mesmas. Existências que se combinam para formar
proposições que são objetos de pensamento independentes da mente. A noção
idealista de que a unidade de uma proposição depende da atividade sintetizadora
da mente foi ‘jogada para escanteio’ em favor de um platonismo irrestrito,
insistindo que as relações são objetivas e independentes da consciência. Uma
proposição verdadeira não corresponde à realidade, ela é parte da realidade. A
verdade e falsidade de proposições são absolutas, e não uma questão de grau.
Negado o monismo dos idealistas, Moore passou a atacar a idéia de que a
realidade é subjetiva, espiritual ou mental. Afirmou que nenhuma boa razão tem
sido dada para a doutrina de que não existe distinção entre a experiência e seus
objetos, ou que o que nós percebemos não existe independentemente de nossa
percepção. Em outras palavras, ele insistiu que objetos do conhecimento
(incluindo proposições) existem independentemente de serem conhecidos. O
conhecimento de alguma coisa, seja por meio da percepção ou do pensamento, é
diferente do objeto que se conhece; é uma relação cognitiva exterior ao objeto do
conhecimento.
Em seus primeiros escritos, Moore evocou a noção de ‘análise’ um
método de fazer filosofia que iria ter grande influência sobre as próximas décadas.
A análise não foi concebida, inicialmente, para ser da linguagem, mas de alguma
coisa objetiva que é significada por expressões. Uma análise que se aplicasse
estritamente a entidades lingüísticas como a decomposição de uma expressão
verbal em seus elementos simples constituintes, indicando-se sua ordenação não
teria, para ele, relevância filosófica, já que não envolve diretamente nenhuma
determinação ou esclarecimento do significado da expressão. A análise lingüística
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não é um fim em si mesma, mas um método através do qual conceitos são
analisados e o significado das expressões determinados, produzindo-se assim um
esclarecimento. A análise de um conceito seria a explicitação de seu significado,
através de outra expressão equivalente que o torne mais claro, possibilitando um
melhor entendimento de seu sentido e uma melhor determinação do objeto a que
se aplica.
Embora Moore não esclareça qual é sua concepção da natureza do
conceito, de acordo com Hacker, fica claro que o conceito não é uma entidade
mental, o que nos traria de volta ao idealismo que é rejeitado por ele. O conceito
deve ser entendido como o conteúdo significativo das expressões verbais, ou seja,
Moore tomou o conceito como sendo o significado de uma expressão – aquilo que
a expressão substitui (‘stands for’). Apesar de o conceito não se confundir com a
expressão verbal, é necessário usar expressões verbais, através das quais o
conceito se expressa, na análise.
A concepção de Moore do método filosófico estava distante da orientação
lingüística que a filosofia assumiria subsequentemente. Para ele, o primeiro e mais
importante problema da filosofia é dar uma descrição geral de todo o Universo,
mencionando todas as coisas que sabemos estar nele, e como essas coisas se
relacionam.
1.1.2. Bertrand Russell (1872 – 1970)
Russell seguiu os passos de Moore na crítica ao Idealismo, substituindo
esta doutrina, não pelo empirismo, mas pelo realismo platônico. Para Russell a
realidade consistiria em uma pluralidade de itens externamente relacionados uns
aos outros de múltiplas de maneiras. Em The principles of Mathematics” ele
escreveu:
All complexity is conceptual in the sense that it is due to a whole capable of
logical analysis, but is real in the sense that it has no dependence upon the mind
but only on the nature of the object. Where the mind can distinguish elements,
there must be different elements to distinguish.
7
7
RUSSELL apud HACKER.
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19
Ele aceitou a concepção referencialista
8
de significado, a saber, que se uma
expressão tem um significado, então deve haver alguma coisa que ela significa.
Diz: “[B]eing is a general attribute of everything, and to mention anything is to
show that it is
9
. Russell persuadiu-se que o caminho para a verdade em filosofia
era a análise, sendo essa essencialmente a decomposição de coisas
conceitualmente complexas (das quais o mundo supostamente consiste) em seus
constituintes simples e não analisáveis.
Dentro de pouco tempo, no entanto, Russell reformulou sua teoria (como
fez ainda outras vezes). Até aquele momento, Russell, como Moore, acreditava
que a expressão lingüística de uma sentença era um meio transparente por meio
do qual ver a real questão da reflexão filosófica a saber, as proposições. Eram
essas, seguindo seu ponto de vista, as portadoras de verdade e falsidade; e ele as
concebia, assim como Moore, como objetos não lingüísticos, independentes da
mente, que contêm, não palavras, mas entidades objetivas. Sua teoria das
descrições (1905), ao mostrar que a estrutura gramatical de uma expressão pode
ocultar a verdadeira forma lógica da proposição expressa, gerou a possibilidade de
um racha entre essas estruturas. Assim, seria necessário submeter as sentenças a
uma análise lógica a fim de revelar ou tornar explícita a forma lógica oculta. Essa
teoria surge da análise de expressões que não possuem uma referência ou
denotação, e que, por o se referirem a nenhum objeto existente, não são nem
verdadeiras nem falsas. Isso pode ser percebido no exemplo clássico da análise da
sentença “O atual rei da França é careca”. Como não existe um rei da França, a
sentença não pode ser verdadeira; mas dizer que é falsa implica dizer que o atual
rei da França não é careca, o que não resolve o problema. Essa questão teve
muitas implicações para sua concepção de análise filosófica, que se tornou um
instrumento para descobrir a verdadeira forma lógica das proposições.
Quando Russell começou a evocar a noção de que são fatos, ao invés de
proposições, que compõem o mundo, ele distinguiu a forma gramatical de uma
sentença da forma lógica do fato correspondente. Assim, argumentou que a
primeira tarefa da filosofia é a investigação das formas lógicas dos fatos do
8
A tradição referencialista ou designativa focaliza naquilo que os termos designam ou denotam,
isto é, na relação biunívoca entre palavra-objeto, nas relações representacionais entre a língua e o
mundo – o significado de um termo é o objeto ao qual se refere.
9
RUSSELL apud HACKER.
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20
mundo. A lógica e seu aparato técnico se tornaram ferramentas de análise,
permitindo-nos penetrar nas características desviantes da gramática ordinária para
conseguir alcançar a verdadeira estrutura lógica das coisas, comum à linguagem e
ao fato. A função da análise da linguagem seria, portanto, determinar os
componentes últimos que constituem um fato na realidade.
A análise revela a verdadeira forma da sentença, indicando como suas
partes se articulam para formar o todo.
Isso significa que o método de análise é também um procedimento de tradução de
uma linguagem menos perfeita (a linguagem comum) em que a forma
gramatical oculta a forma lógica (a estrutura comum à sentença e ao fato) – para a
linguagem lógica que exibe a forma lógica de modo direto e explícito,
dissipando possíveis dúvidas e mal-entendidos.
10
Esse método supõe a existência de uma linguagem logicamente perfeita,
que deve espelhar a forma lógica dos fatos e então revelar a estrutura lógica do
mundo de maneira clara e correta, evitando equívocos e confusões.
A teoria das descrições forçou Russell a conceder maior importância a
investigação da linguagem e simbolismo do que fora dado até esse momento, ao
menos porque revelou quão enganadora é a linguagem ordinária, se tomada como
sendo um meio transparente através do qual investigar as formas das proposições
(ou fatos).
A força motriz da filosofia de Russell é o desejo de estabelecer uma
rigorosa fundamentação para o conhecimento. Com esse intuito, defendeu o
‘método científico na filosofia’. A filosofia, assim como a ciência, busca alcançar
o conhecimento – uma compreensão teórica do mundo. Ela difere das outras
ciências por sua generalidade e formalidade. Seu núcleo, a lógica, consiste de
proposições completamente gerais, e fornece critérios para se justificar a
determinação da relação verdadeira, correta, entre a linguagem e a realidade. Seu
interesse deve ser naquilo que é verdade em qualquer mundo possível,
independentemente dos fatos que podem ser descobertos pela experiência
sensível.
Tanto Moore quanto Russell, em seus diferentes estilos de análise,
inauguraram a filosofia analítica do século 20. No entanto, ambos os filósofos
10
MARCONDES, 2004, p. 21.
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insistiram em enfatizar que sua análise era de fenômenos, e não da linguagem.
Mesmo assim, os fundamentos que deixaram foram rapidamente adaptados a
análise lógico-linguístico, assim que a ‘virada lingüística’ se deu na filosofia.
1.1.3. Gottlob Frege (1848 – 1925)
Foi a obra de Frege que conferiu uma posição de destaque à linguagem, ao
afirmar que é apenas através da análise da linguagem que podemos analisar o
pensamento. A filosofia da linguagem seria, assim, o fundamento de toda outra
filosofia. Frege pode ser considerado, nesse aspecto, o precursor da filosofia da
linguagem de tradição analítica. É Frege, portanto, que estabelece que o objetivo
da filosofia deve ser a análise da estrutura do pensamento; e que o único método
apropriado para efetuar essa análise é tornando explícitos os princípios que
regulam nosso uso da linguagem.
Frege rompe com a teoria kantiana em seu caráter subjetivista (ainda que
transcendental) e em seu apelo à intuição pura na constituição do conhecimento.
Assim, distingue o objeto do conhecimento e seu reconhecimento, afirmando que
é o conteúdo objetivo da asserção que deve ser o objeto de investigação do lógico.
A tarefa filosófica seria a investigação do pensamento como algo objetivo,
impessoal e atemporal, e não como algo psicológico e subjetivo, como era
característico das correntes idealistas. O princípio da investigação filosófica é a
análise conceitual de definições, isto é, a análise do significado, e não de
processos mentais, subjetivos. A análise do significado, por sua vez, depende de
um modelo de como a linguagem funciona, da caracterização de sua estrutura. É
dessa forma que passamos aqui a uma primazia da investigação lógica da
linguagem.
É a discussão de Frege do problema do significado que constitui um dos
principais pontos de partida para o desenvolvimento da teoria semântica. Frege
estabelece uma distinção fundamental entre o sentido (Sinn) e a referência
(Bedeutung). A referência é o objeto designado, enquanto que o sentido é o modo
de designar o objeto, de determinar a referência, ou seja, o modo pelo qual o
objeto se apresenta. Duas expressões podem, portanto, ter a mesma referência e
diferentes sentidos.
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22
A Conceitografia (1879) de Frege toma como ponto de partida, como
afirma Marcondes, a concepção de que as proposições com significado têm um
conteúdo conceitual objetivo, e de que esse conteúdo não é adequadamente
representado pela linguagem comum, devendo ser possível construir uma notação
em que o conteúdo conceitual de qualquer proposição possa ser expresso de forma
mais clara e adequada. A tarefa filosófica pode ser vista, então, como a
determinação desse conteúdo objetivo a partir da crítica de sua expressão na
linguagem comum e de sua tradução para uma linguagem lógica formal e
depurada das imperfeições da linguagem comum. Segundo essa concepção, a
análise filosófica se através de um processo de tradução de uma linguagem
para a outra mais perfeita, em que os problemas da anterior são resolvidos.
É a partir dessa concepção que se desenvolve a noção de análise lógica
como descrição semântica da sentença capaz de distinguir na linguagem os
elementos que refletem a estrutura do pensamento dos que não refletem.
1.1.4. O projeto de formalização da linguagem
Frege e Russell igualmente pensavam que as proposições lógicas são
verdades perfeitamente gerais. De acordo com Frege, as ‘leis do pensamento’ que
a lógica investiga são generalizações sobre proposições, conteúdos julgáveis ou
pensamentos. Uma proposição como “Chove ou não chove” é uma instância
particular de uma lei lógica, mas não uma lei lógica em si. As leis da lógica
governam tudo o que é pensável, já que thought is in essentials the same
everywhere; it is not true that there are different kinds of laws of thought to suit
the different kinds of objects thought about.” Assim, “the task we assign to logic
is only that of saying what holds with the utmost generality for all thinking,
whatever its subject matter…
11
. Consequentemente a lógica é a ciência das leis
mais gerais da verdade. Eles acreditavam que os axiomas primitivos da lógica são
auto-evidentes, verdades indemonstráveis. O que é importante não é o fato de que
pensamos de acordo com essas leis, mas o fato de que as coisas se comportam de
acordo com elas. Em outras palavras, o fato de que quando pensamos de acordo
com elas, pensamos verdadeiramente.
11
FREGE apud HACKER.
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23
Ambos os filósofos consideravam a linguagem natural logicamente
defeituosa. A gramática ordinária é um guia falível para as estruturas reais que a
lógica e filosofia devem investigar. A linguagem desenvolvida por Frege foi
concebida para revelar a verdadeira estrutura do pensamento, que a linguagem
natural esconde. Todas as expressões em sua fórmula lógica são amplamente
definidas, sendo impossível formar expressões sem referência ou sentenças
expressando pensamentos sem valor de verdade. Russell, fiel ao atomismo
metafísico e a correspondência entre a proposição verdadeira e o fato, afirma que,
em uma linguagem perfeita, haverá uma palavra, e não mais, para cada objeto
simples, e tudo que não é simples será expresso por uma combinação de palavras,
derivada das palavras que se referem às coisas simples que formam o objeto
complexo de que se trata. Uma linguagem desse tipo seria completamente
analítica, deixando clara a estrutura lógica dos fatos afirmados ou negados.
É evidente, afirma Hacker, que, apesar dos grandes avanços na
formalização alcançada por Frege e Russell, havia muito pouco avanço na
compreensão acerca da natureza da lógica e proposições da lógica. Foram essas
questões que o jovem Wittgenstein confrontou na segunda década do século XX.
1.2. A ANÁLISE WITTGENSTEINIANA DA LINGUAGEM
A obra de Wittgenstein parece consolidar as intenções do movimento
analítico: a rejeição ao idealismo e ao psicologismo, e a escolha do tema da
linguagem como central para a reflexão filosófica. No entanto, o trabalho do
filósofo reformula muitos pontos da discussão que vinha sendo travada no interior
da filosofia analítica.
Enquanto a filosofia da primeira fase da obra de Wittgenstein,
representada pelo Tractatus Logico-philosophicus, ainda se aproxima bastante das
idéias centrais de Russell e Frege, a segunda fase de sua obra, representada pelos
escritos posteriores a 1929, sobretudo pelas Investigações Filosóficas, apresenta
uma nova concepção de método filosófico e de análise da linguagem. Enquanto
antes a análise lingüística se dava através de uma perspectiva semântico-
transcendental, a partir das Investigações essa perspectiva passa a ser pragmática,
indicando a importância de se considerar a linguagem como um modo de
comportamento social, devendo ser examinada do ponto de vista de suas funções
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24
e efeitos que o contexto sócio-cultural lhe impõe. Como afirma Danilo
Marcondes, agora a linguagem não é mais considerada tomando como base a
forma lógica da proposição, a partir da qual se determina sua relação com o real,
isto é, sua verdade ou falsidade. A noção de linguagem se dissolve em uma
multiplicidade de “jogos de linguagem”, que se definem como um todo,
consistindo do “conjunto da linguagem e das atividades com as quais está
interligada”
12
. A linguagem passa a ser entendida como ação, como sistemas de
atos simbólicos, e não como representação mental ou sistema formal. “O termo
jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de
uma atividade ou de uma forma de vida”
13
.
Neste contexto, Wittgenstein produz uma transformação na discussão
clássica da filosofia ao negar a existência de uma essência metafísica,
apresentando a noção de “formas de vida” como o fundamento da linguagem, do
pensamento e do significado. Assim, quando investigamos a linguagem, estamos
igualmente investigando a realidade da qual falamos.
Esta mudança na concepção de linguagem reflete-se também na concepção
da tarefa da filosofia. Se desde o Tractatus Wittgenstein afirmava que a
filosofia não é um corpo doutrinário, mas uma atividade de elucidação, nas
Investigações essa posição é radicalizada. A afirmação nas Investigações
Filosóficas de que “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”
14
, de
que a linguagem “está em ordem tal como está”
15
, ou que os problemas
filosóficos “nascem quando a linguagem entra em férias”
16
, procura pôr em
evidência que a elucidação dos problemas filosóficos consistiria em “reconduzir
as palavras do seu uso metafísico para seu uso cotidiano”
17
, negando uma
abordagem especulativa de um conceito, que consistiria em abstraí-lo do seu
contexto de uso, isto é, isolá-lo das diferentes funções que pode exercer em atos
comunicativos. É necessário examinar a linguagem a partir de seu uso,
considerando os jogos de linguagem, suas regras, seu contexto. Os problemas
filosóficos se originam, em grande parte, de uma consideração errônea,
12
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §7.
13
Ibid., §23.
14
Ibid., §43.
15
Ibid., §98.
16
Ibid., §38.
17
Ibid., §116.
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25
equivocada, da linguagem e de seu modo de funcionar. Assim, Wittgenstein
defende que a filosofia deve apenas descrever a linguagem em seus contextos de
uso, negando a formulação de uma teoria ideal da linguagem. Dessa forma a
investigação filosófica se transforma numa análise gramatical
18
, isto é, em uma
análise do conjunto de regras de uso de palavras que explica o significado de um
termo nos diferentes jogos de linguagem de que participa. No §89 das
Investigações, Wittgenstein afirma: “Mas não que devêssemos descobrir com isso
novos fatos: é muito mais essencial para nossa investigação não querer aprender
com ela nada de novo. Queremos compreender algo que já esteja diante de nossos
olhos. Pois parecemos, em algum sentido, não compreender isto”.
Delineado o contexto teórico em que se insere o pensamento de
Wittgenstein, passemos agora a discutir mais detalhadamente algumas noções que
assumem relevada importância em sua obra, apontando as transformações que
desencadearam na análise da linguagem.
1.2.1. Os Jogos de Linguagem
O projeto de análise do uso das palavras e das frases na linguagem
ordinária se consolida com o conceito de “jogos de linguagem”, que são sistemas
de comunicação completos em si mesmos, com regras e propósitos que se
justificam internamente. Descrevendo-se os diferentes jogos de linguagem em que
é usada uma mesma expressão, isto é, descrevendo-se os diferentes atos
comunicativos nos contextos sócio-culturais em que são realizados, elucida-se o
sentido da expressão.
A análise deste conceito permite uma melhor avaliação do
novo método de análise lingüística.
18
“É como se devêssemos desvendar os fenômenos: nossa investigação, no entanto, dirige-se não
aos fenômenos, mas, como poderíamos dizer, às ‘possibilidades’ dos fenômenos. Refletimos sobre
o modo das asserções que fazemos sobre os fenômenos. (...) Nossa consideração é, por isso,
gramatical. E esta consideração traz luz para o nosso problema, afastando mal-entendidos. Mal-
entendidos que concernem ao uso das palavras; provocados, entre outras coisas, por certas
analogias entre as formas de expressão em diferentes domínios da nossa linguagem. Muitos deles
são afastados ao se substituir uma forma de expressão por outra; isto pode chamar de “análise” de
nossas formas de expressão, pois esse processo assemelha-se muitas vezes a uma decomposição”.
(Cf. WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §90). O termo “Gramática” é utilizado por Wittgenstein em
um sentido próprio, que se refere ao conjunto de regras lingüísticas que constituem nosso esquema
conceitual. Esse conceito será abordado mais detalhadamente abaixo.
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26
Ao destacar a importância do sistema de referência, Wittgenstein renuncia
à noção de objeto simples, central no Tractatus Logico-Philosophicus
19
, bem
como no atomismo lógico
20
em geral. O que corresponde agora ao nome, e é
imprescindível para que este tenha significação, é o sistema que é utilizado na
linguagem em ligação com ele, e não uma referência supostamente fixada por
alguma essência transcendental do objeto.
Wittgenstein rompe com as concepções tradicionais da linguagem ao
introduzir as noções de contexto e de ação do falante como relevantes para a
determinação do sentido. Essa tese nega a idéia de uma relação essencial entre o
signo e o objeto
21
, justamente por aceitar que as expressões têm várias funções
22
determinadas pelos contextos de uso, e não apenas a função referencialista.
Afirma:
Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez?
inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo
que chamamos de “signo”, “palavras”, “frases”. E essa pluralidade não é nada
fixo, um dado para sempre; [...] É interessante comparar a multiplicidade das
ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das
espécies de palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura
da linguagem. (E também o autor do Tractatus Lógico-philosophicus).
23
Restringir as palavras de uma língua à função designativa significaria
identificá-las ao papel dos substantivos nas linguagens naturais. Mas,
evidentemente, nem todas as palavras designam objetos e mesmo quando não são
designativas podem ser compreendidas, tendo, portanto, sentido
24
. Afirma ainda
que a exigência lógica da simplicidade do objeto exprime a necessidade de que a
definição ostensiva
25
associe à palavra uma característica essencial do objeto,
19
O Tractatus se apóia na idéia de completude da análise gica de uma proposição atômica: a
decomposição da proposição dá acesso ao que constitui a substância do mundo, os objetos simples.
O objeto simples, no Tractatus, é uma condição para que a linguagem – entendida como seqüência
de proposições analisáveis em proposições simples e independentes – seja possível.
20
O atomismo gico, postulado por Russell, sustenta que a determinação do sentido se dá através
da análise de proposições atômicas independentes entre si.
21
Cf. WITTGENSTEIN, 1999 [1953] §23, 38.
22
Ver exemplo das alavancas de uma cabine de locomotiva e da caixa de ferramentas. Cf. Ibid.,
§10-17.
23
Ibid., §23.
24
Ibid., §8.
25
A definição ostensiva associa o signo ao objeto através de uma ação não lingüística (por
exemplo, o proferimento de uma expressão acompanhado de um gesto que indica o objeto). Ibid.,
§6.
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27
abstraída de seus aspectos acidentais.
Assim, a expressão supostamente denotaria
aquilo que constitui o objeto, o que ele é, a sua essência.
A crítica de Wittgenstein não consiste apenas em mostrar que a
simplicidade é uma questão de contexto: que em certas circunstâncias um objeto
pode ser considerado como simples e em outras como composto de partes mais
elementares
26
, mas em afirmar que a definição ostensiva pode ser sempre
interpretada
27
, o que significa que tal como a definição verbal, a definição
ostensiva é ela também parte de um ato comunicativo onde os falantes
desempenham papéis determinados e dominam uma linguagem, de tal maneira
que atividades diferentes poderiam correlacionar uma mesma palavra com objetos
diferentes.
Wittgenstein considera que uma palavra em si mesma é morta, quem lhe
vida é o uso
28
. Isto significa que a palavra é um instrumento do ato
comunicativo, uma ferramenta
29
, e que pode ser definida como palavra (e não
apenas como sinal) pelo papel que exerce no ato comunicativo, dentro do contexto
geral em que a linguagem é usada, assim como as peças do xadrez
30
, que não
representam coisa alguma, só assumindo significação dentro das regras do jogo.
31
O conceito de jogo não admite uma definição ‘traço por traço’. Assim, não
qualquer conjunto de condições necessárias e suficientes para que uma
atividade seja definida como jogo; teoricamente, o conceito pode ser
indefinidamente estendido. Ademais, o objetivo do jogo permanece inteiramente
interno a ele, não sendo determinado em nada pelo exterior. Chamamos de
“jogos” determinadas atividades, não em virtude de um conjunto fixo de
propriedades comuns, pois não existe nenhuma definição precisa de jogo, o que,
no entanto, não nos impede de compreender ou explicar o que é “jogo”. O que faz
26
Cf. WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §48.
27
Wittgenstein, ao apontar que uma definição ostensiva pode ser enganosa (Ibid, §28), não estava
argumentando que ela é uma forma defeituosa de explicação. Estava apenas mostrando que ela não
é uma forma privilegiada, mais legítima, de explicação, que conecta sem equívocos a linguagem à
realidade. Como todas as definições, ela pode ser mal interpretada e incompreendida.
28
Ibid., §432.
29
“A linguagem é um instrumento. Seus conceitos são instrumentos”. Ibid., §569.
30
Dando início à sua crítica do Tractatus, Wittgenstein comparou a linguagem a um cálculo ou a
um jogo de xadrez. Posteriormente ele usaria cada vez menos a noção de cálculo lingüístico para
atribuir uma importância crescente a de jogo de linguagem. Enquanto o cálculo é uma atividade
governada por um sistema completo de regras cada ato de um cálculo está conforme (ou não) a
uma regra jogos são atividades abertas, onde cada um dos movimentos não é justificado por um
sistema de regras exato.
31
Ver discussão sobre regras e erro em WINCH, 1970 [1958], p. 46.
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28
diversas atividades serem chamadas de “jogos” é uma rede de semelhanças
variadas, comparáveis às que observamos entre os membros de uma família
32
.
Explicar o que é um jogo é antes de tudo dar exemplos, isto é, descrever jogos,
depois construir outros por analogia com eles, para mostrar o que deve ser
excluído da família dos jogos. “Os jogos de linguagem figuram muito mais como
objetos de comparação, que, através de semelhanças e dissemelhanças, devem
lançar luz sobre as relações de nossa linguagem”
33
. Os exemplos usados para
explicar “jogo” são paradigmáticos, isto é, “centros de variações”. Mas mesmo
que não tenha limites nítidos, o conceito de jogo não deixa de ter unidade. Sua
extensão não é rigidamente demarcada. A explicação envolve o uso de
paradigmas, sem que se precise especificar o grau de semelhança com eles. Se em
certos casos é possível circunscrever o conceito de jogo, a localização dessa
fronteira é determinada apenas pelo objetivo momentâneo.
1.2.2. Formas de Vida
Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein procura precisar o conceito de
jogos de linguagem através do conceito “formas de vida”. Coloca: “o termo “jogo
de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é parte de uma
atividade ou de uma forma de vida”
34
.
Se a expressão “jogos de linguagem” denomina uma família de atos
comunicativos completos, e os atos lingüísticos a unidade básica da comunicação
lingüística, é também verdade que, para Wittgenstein, é o modo de agir humano, a
prática histórico-social, que especifica e identifica os atos comunicativos
35
. Torna-
se evidente, então, que o conceito de formas de vida remete a análise do falar à
análise do agir. Em outras palavras, compreende o dizer através do fazer.
32
Para falar dessas semelhanças entre os diferentes jogos de linguagem, Wittgenstein desenvolve o
conceito de “semelhança de família”. As semelhanças se distribuem aleatoriamente, sem um
padrão constante, da mesma forma que acontece com os parentes de uma mesma família. Cf.
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §65-69.
33
Ibid, §130.
34
Ibid., §23.
35
Wittgenstein coloca o problema da elucidação dos atos de fala por um pesquisador que não
domina os instrumentos de comunicação: “Imagine que você fosse o pesquisador em um país cuja
língua lhe fosse inteiramente desconhecida. Em que circunstâncias vodiria que as pessoas ali
dão ordens, compreendem-nas, seguem-nas, se insurgem contra elas, e assim por diante? O modo
de agir comum a todos os homens é o sistema de referência, por meio do qual interpretamos uma
linguagem desconhecida”.Ibid., §206.
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29
Assim como as palavras derivam seu significado de seu contexto
lingüístico, os jogos de linguagem derivam seu significado das formas de vida.
Nossos conceitos e jogos de linguagem são dependentes do mundo, mas eles não
são diretamente produtos do mundo, mas de nossas vidas conduzidas no mundo.
Os significados das palavras não são determinados pelos objetos aos quais eles se
referem, pelas imagens mentais que eles evocam, mas pelos jogos de linguagem
em que são usados, e estes, por sua vez, são manifestações de uma forma de vida.
As regras da linguagem, como as de um jogo de xadrez, são regras
autônomas
36
. São arbitrárias
37
, no sentido que não levam em conta uma pretensa
essência ou forma da realidade, não podendo ser vistas como corretas ou
incorretas de um modo filosoficamente relevante, mas alterá-las equivaleria a
mudar o jogo. Afirmar que a linguagem é autônoma não é o mesmo que dizer que
é facilmente alterável ou uma simples escolha individual. A linguagem está
imersa numa forma de vida, estando, portanto, sujeita as mesmas restrições a que
se sujeitam as atividades humanas em geral. “When language-games change, then
there is a change in concepts, and with the concepts the meanings of words
change.
38
Nossos jogos de linguagem e regras não repousam na vontade humana ou
em escolhas individuais. As regras são conectadas com circunstâncias que
justificam seu uso, com práticas e comportamentos de uma comunidade
lingüística. Na linguagem que usam, os homens estão de acordo, diz ainda
Wittgenstein. Não é um acordo sobre os instrumentos e nem sobre os usos destes
instrumentos; se um acordo sobre a linguagem é porque há um acordo sobre a
forma de vida. “Correto e falso é o que os homens dizem; e na linguagem os
36
As regras da linguagem funcionam sem a necessidade de fundamentarem-se na adequação
“nome-objeto”. Tais regras surgem a partir do uso de expressões e não da denominação de objetos.
Essa afirmação dirige-se contra o fundacionalismo lingüístico, a visão de que a linguagem deve
espelhar a essência do mundo. Essa discussão será aprofundada mais à frente.
37
A arbitrariedade da gramática é um aspecto de sua autonomia. As regras da culinária não podem
ser ditas arbitrárias, pois são relacionadas a um objetivo externo à culinária, que é a produção de
boa comida. Assim, podemos distinguir regras de culinárias corretas e incorretas por referência a
esse fim da culinária. As regras do xadrez (assim como as da gramática), no entanto, não possuem
um objetivo externo. Se seguirmos outras regras diferentes das do xadrez, não estaremos jogando
mal xadrez, mas jogando outro jogo. Da mesma forma, se você segue outras regras gramaticais
que não tais e tais isso não significa que você diz algo errado; não, você está falando de alguma
outra coisa”. .WITTGENSTEIN, 2003 [1974], §133. E ainda: “Pode-se chamar as regras da
gramática de ‘arbitrárias’, se com isso se quer dizer que a finalidade da gramática é apenas a da
linguagem”. Cf. Id., 1999 [1953], §497.
38
Id., 1972 [1969], §65.
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30
homens estão de acordo. Não é um acordo sobre as opiniões, mas sobre o modo
de vida”
39
.
A visão unitária da linguagem, própria do Tractatus, foi, a partir de então,
ultrapassada. Essa pretensa linguagem unitária fragmenta-se em inúmeros
sistemas, os “jogos de linguagem”. Mas esses sistemas lingüísticos estão firmados
sobre algo mais fundamental – um contexto humano ou uma forma de vida
particular, que delimita a aplicação e interpretação de regras. Nós somos
constrangidos não por uma forma lógica, mas por nossa “forma de vida”. Essa
imagem repudia a idéia de uma única forma necessária de linguagem e introduz a
idéia de muitas e variadas unidades de sentido inter-relacionadas, inseridas em um
contexto de vida mais amplo. O falar passa a ser visto como uma prática social
entre outras, abordável do ponto de vista antropológico.
Fragmentada em jogos múltiplos, a linguagem não perde por isso sua
unidade. Não mais aquela conferida pela essência, pela posse comum de um
conjunto fixo de propriedades; trata-se agora da unidade de uma família de jogos
de linguagem, ligados entre si por “semelhanças de família”, sem que se possa
encontrar casos comuns a todos. Portanto, compreender o funcionamento da
linguagem é compreendê-la como um conjunto de diferentes ações comunicativas
que têm entre si “semelhanças de família”.
1.2.3. Gramática
Falar uma língua é tomar parte em uma atividade guiada por regras.
Compreender uma linguagem envolve dominar as técnicas de aplicação de suas
regras. A própria noção de linguagem implica a presença de uma forma
gramatical, de regras através das quais palavras são conectadas, umas às outras,
num sistema. Wittgenstein reconhece, portanto, a importância dessa forma
gramatical na determinação do significado.
Hacker
40
, de forma esclarecedora, justapõe a concepção de Wittgenstein de
gramática com sua concepção anterior de sintaxe lógica. De acordo com o
Tractatus
41
, linguagens ordinárias podem variar superficialmente, mas ocultam
39
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §241.
40
Cf. HACKER, 1986 [1972], cap.VII.
41
Não pretendo aqui discutir a fundo a concepção de linguagem do Tractatus, e nem cair na
questão de até que ponto a segunda fase da obra de Wittgenstein é continuidade ou não da
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31
uma uniformidade latente, que se torna manifesta através da análise lógica. A
análise traz à tona as regras essenciais de qualquer linguagem possível.
somente uma lógica “que abrange tudo e espelha o mundo”
42
, comum a todos os
sistemas lingüísticos capazes de afigurar a realidade.
Muitas dessas regras da sintaxe lógica estão escondidas da visão. Elas não
são evidentes no uso comum da linguagem, na qual expressões logicamente
diferentes parecem enganosamente uniformes. Elas não o usadas nas atividades
pedagógicas diárias usadas para explicar como aderir corretamente às práticas
que governam. Não são citadas para justificar o uso de expressões ou para criticar
ou corrigir maus usos. As regras latentes de qualquer linguagem possível são
sempre seguidas pelos falantes, mesmo se eles não são capazes de dizer o que elas
são ou empregá-las como normas de correção para a avaliação do uso de
expressões. De qualquer forma, no Tractatus, essas regras são absolutamente
determinadas, pois são elas que, juntas com a atribuição de significados aos
nomes simples, estabelecem o sentido das proposições. Elas não são usadas em
atividades pedagógicas, mas funcionam como instrumento de garantia do
discurso, impedindo que a ‘denotação’ extrapole seus limites. A distinção entre
sentido e não-sentido era concebida como sendo independente do contexto e
propósito, estabelecido de uma vez por todas.
A gramática, diferente da sintaxe lógica, não é universal, não consiste de
regras que necessariamente sublinham qualquer linguagem possível diferentes
linguagens possuem diferentes gramáticas. A gramática de uma linguagem
consiste de regras para o uso correto
43
de expressões daquela linguagem.
Regras da gramática são abertas à visão, e o ocultas como o são as
regras da sintaxe lógica como concebidas no Tractatus. Em uma conversa com
Waissman em 1931, Wittgenstein clarificou a mudança em seu ponto de vista:
The wrong conception which I want to object to in this connection is the
following, that we can hit upon something that we today cannot see, that we can
discover something wholly new. That is a mistake. The truth of the matter is that
we have already got everything, and we have got it actually present: we need not
primeira, mas apenas contrapor algumas noções dessas obras como forma de esclarecer alguns
conceitos.
42
WITTGENSTEIN, 2001 [1921], 5.511.
43
Correto”, aqui, não quer dizer “verdadeiro”. Mas apenas que a expressão foi utilizada de
acordo com as regras lingüísticas que a regem naquele momento.
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32
wait for anything. We make our moves in the realm of the grammar of our
ordinary language, and this grammar is already there. Thus we have already got
everything and need not wait for the future.
44
As ‘regras da gramática’ são explicitas na maneira como uma linguagem é
ensinada, em explicações dadas pelos falantes sobre o significado das palavras, na
maneira como eles criticam e corrigem maus usos da linguagem, nas justificativas
dadas para usar uma palavra de uma maneira ou de outra. “‘Hidden rules’ are not
rules at all”
45
, que não podem ser usadas pelos falantes como regras, não
podem desempenhar o papel de padrões de correção, guias para conduta, ou
justificativas para empregar expressões. Dar o significado de uma palavra é
especificar sua gramática.
O sentido de uma proposição é determinado por seu lugar no sistema gramatical,
no sentido de que este determina suas relações lógicas com outras proposições
[...]. A gramática de uma língua é o sistema global de regras gramaticais, das
regras constitutivas que a definem, pela determinação daquilo que faz sentido
dizer ao usá-la.
46
A gramática filosófica não lida com regras especiais. Wittgenstein o
buscou ampliar o conceito de gramática, ou mesmo introduzir um conceito
diferente, mas sim indicar que existem dois tipos de interesse nas regras de uma
linguagem. O interesse do filósofo na gramática é guiado pelo propósito de
elucidar problemas filosóficos. Esses problemas derivam da má compreensão e
mau uso da linguagem, e são clarificados e resolvidos apontando as formas pelas
quais as expressões são mal utilizadas, questões ilegítimas formuladas, regras de
linguagem violadas. Mas essas regras não são aquelas que interessam ao
gramático; são primeiramente explicações do significado, e não regras sintáticas
sobre as quais os gramáticos tendem a focar.
Da mesma maneira, Wittgenstein não estava buscando estender o conceito
de regras. Para Wittgenstein algo conta como uma regra da gramática, não se
possui uma determinada forma (ex. uma determinada forma de generalidade), mas
se é usada de uma determinada maneira (ex. como um guia de conduta,
explicando ou justificando ações, como um padrão de correção, etc.). O estatuto
44
WITTGENSTEIN apud HACKER
45
Cf. HACKER, 1986 [1972].
46
Cf. GLOCK, 1998 [1996], p. 193.
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33
lógico de uma sentença não se deve à sua forma lingüística, mas sim ao modo
como ela é utilizada, podendo, portanto, alterar-se: any empirical proposition
can be transformed into a postulate – and then becomes a norm of description
47
.
Como afirma Hacker
48
, depois de Platão, filósofos passaram a aceitar
como explicação correta apenas aquela que captura a essência do explicandum em
uma definição formal, dando as condições necessárias para a aplicação de uma
expressão. Mas este seria, de acordo com Wittgenstein, um ideal equivocado,
dado que nem todos os nossos conceitos são completamente definidos, preparados
para todas as ocasiões possíveis, e eles não deixam de desempenhar sua função
por isso. “We don’t have to apply them in all conceivable eventualities but only in
actual ones. If a rule for the use of an expression provides a standard for its
correct use in normal circumstances, than it has fulfilled its function”. Os
conceitos são regras de aplicação de palavras de acordo com a gramática, e uma
regra pode ser julgada como adequada ou não dentro de um contexto. Se uma
regra exerceu com sucesso seu papel na prática, está em ordem. Se essas
condições de normalidade mudam, então as definições formais e explicações do
significado de palavras podem se tornar obsoletas. As regras gramaticais surgem
da práxis da linguagem.
It is, of course, true that ostensive definitions, explanations by example,
paraphrasistic explanations, etc. can be misunderstood. But formal definitions
can be misunderstood too. There is no such thing as an explanation of meaning
that is immune to misunderstanding, and no such thing as a rule for the use of an
expression that cannot be misapplied
49
Mas, - questiona Wittgenstein “um conceito impreciso é realmente um
conceito?”, e também “não é a imagem pouco nítida justamente aquela de que,
com freqüência, precisamos?”. E mais à frente:
Mas é absurdo dizer: pare mais ou menos aqui!’? Imagine que eu esteja com
alguém numa praça e diga isso. Dizendo isso, não irei traçar um limite qualquer,
mas farei com a mão um movimento indicativo como se lhe mostrasse um
47
WITTGENSTEIN, 1972 [1969] §321. No entanto, Wittgenstein considera essa afirmação muito
geral. Como coloca Glock (1998 [1996]) no verbete ‘gramática’ de seu Dicionário, seria
dogmático insistir na idéia de que qualquer proposição poderia ter seu papel gico alterado,
considerando-se que a possibilidade de rever nossa forma de representação é limitada.
48
Cf. HACKER, 1986 [1972].
49
Ibid., p. 184.
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34
determinado ponto. (...) A exemplificação não é aqui um meio indireto de
elucidação, - na falta de outro melhor. Pois toda elucidação geral pode também
ser mal compreendida.
50
Exemplos, da mesma forma que definições ostensivas e explicações por meio de
uma paráfrase contextual são explicações de significado perfeitamente legítimas.
Todas são corretas e adequadas pois desempenham o papel de padrões de uso
correto na prática de usar a linguagem. A gramática abrange todas as regras para o
uso de palavras, e todas as explicações de significado, incluindo definições
ostensivas.
Wittgenstein distingue a “gramática profunda” da “gramática superficial”
das palavras. Como afirma no §664 das Investigações: “poder-se-ia distinguir, no
uso de uma palavra, uma gramática superficial’ de uma ‘gramática profunda’.
Aquilo que se impregna diretamente em nós, pelo uso de uma palavra, é o seu
modo de emprego na construção da frase; a parte de seu uso – poderíamos dizer –
que se pode apreender com o ouvido”. Esta última, isto é, as características
imediatamente evidentes das palavras, seus aspectos superficiais, não deve ser
objeto do filósofo, mas sim dos lingüistas, uma vez que é essa a gramática
responsável pela construção da frase de modo correto.
A gramática de superfície (a estrutura sentencial) do enunciado “Eu estou com dor”
é igual à do enunciado “Eu estou com um alfinete” (...). Suas gramáticas profundas,
entretanto, são completamente diferentes: as palavras possuem possibilidades
combinatórias diversas, e as proposições constituem lances diferentes no jogo de
linguagem, possuindo relações e articulações lógicas distintas”.
51
A gramática profunda revela as diferentes espécies de uso das expressões, e
é nela que o filósofo deve se concentrar. Ela é um instrumento que nos permite
verificar a pluralidade dos usos das palavras e as diversas formações de
proposições, permitindo-nos analisar os diversos modos do discurso.
Esta distinção entre gramática profunda e superficial não indica, contudo,
um contraste entre níveis diferentes de regras gramaticais. A idéia de
profundidade sugere, enganosamente, como afirma Glock, que a gramática
50
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §71.
51
GLOCK, 1998 [1996], p. 197.
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35
profunda é descoberta por meio da análise lógica, como no Tractatus, ou por meio
da análise lingüística como concebida por Chomsky
52
.
Estamos na ilusão de que o especial, o profundo, o essencial (para nós) de nossa
investigação residiria no fato de que ela tenta compreender a essência
incomparável da linguagem. Isto é, a ordem que existe entre os conceitos de
frase, palavra, conclusão, verdade, experiência etc. Esta ordem é uma super
ordem entre por assim dizer superconceitos. Enquanto as palavras
“linguagem”, experiência”, “mundo”, se têm um emprego, devem ter um tão
humilde quanto as palavras “mesa”, “lâmpada”, “porta”.”
53
O contraste não se dá entre a superfície e a “geologia” das expressões,
como era o caso no Tractatus, que propunha alcançar um ponto de vista lógico
correto escavando sob as aparências da linguagem para descobrir sua estrutura
latente. O contraste se “entre as cercanias locais, que podem ser apreendidas
em um lance de olhos, e a geografia geral, isto é, o uso geral de uma expressão.”
54
Não se trata, portanto, de uma investigação “geológica”, mas sim “topográfica”.
Wittgenstein afirmou ainda que, assim como as violações corriqueiras da
gramática, as proposições metafísicas são absurdas, pois não existem regras
metalógicas ou conceitos logicamente mais fundamentais do que outros. A
gramática é plana. Não existem superconceitos”, pois todos os conceitos têm
valores comuns, isto é, adquirem valor na medida em que são usados dentro dos
jogos de linguagem. Não existe uma separação entre linguagem e meta-
linguagem, enquanto uma super-ordem que garantiria a regulação da linguagem,
constituindo sua essência. A gramática não se desvincula do próprio uso
lingüístico que regula.
Não se trata de compreender a gramática profunda como um instrumento
de normatização do discurso, o que se pretendia com o logicismo Tractatiano. Não
se trata de corrigir a linguagem cotidiana através da gramática profunda como se
ela fosse o parâmetro de uma linguagem ideal. Nas Investigações não existem
conceitos privilegiados que possam servir de parâmetros para algum tipo de
aferição. Com efeito, as Investigações eliminam essa concepção de uma “norma”,
52
A teoria lingüística de Noam Chomsky, à maneira do Tractatus, prende-se à visão de que
possuímos um conhecimento tácito de um sistema universal de regras de formação e derivação,
que se oculta sob a superfície da linguagem.
53
Cf. WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §97.
54
GLOCK, 1998 [1996], p. 197.
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“ordem” ou “essência” de determinada parte da linguagem que sirva de parâmetro
para toda linguagem.
Ao refletir sobre nosso uso da linguagem, devemos nos ater ao que é
chamado uma explicação do significado de uma expressão e resistir às tentações
de um falso ideal de explicação. Não uma linguagem ideal, desprovida de
equívocos. “Se acreditamos que devemos encontrar aquela ordem, a ideal, na
linguagem real, ficaremos insatisfeitos com aquilo que na vida quotidiana se
chama “frase”, “palavra”, “signo”.”
55
.
Sendo assim, a explicação das regras gramaticais não constitui apenas uma
tarefa secundária para a filosofia. “A essência está expressa na gramática”
56
; “que
espécie de objeto alguma coisa é, é dito pela gramática”
57
, uma vez que especifica
o que pode ser dito com sentido sobre ele. “Não analisamos um fenômeno (por
exemplo, o pensar), mas um conceito (por exemplo, o do pensar), e portanto o
emprego de uma palavra.”
58
.
As investigações empíricas quanto à natureza física ou matéria X pressupõem a
gramática de ‘X’, uma vez que essa última determina o que pode contar como X.
A resposta à pergunta socrática “O que é X?” não nos é dada pelo exame de
essências (objetos mentais ou abstratos), mas pelo esclarecimento do significado
de “X”, que é fornecido pelas regras de uso do termo “X”.
59
A busca por essências, tarefa que perpassou toda a História da Filosofia, é
então substituída pela investigação gramatical, por uma tentativa de entender
“como” a linguagem funciona. O que interessa é compreender os diversos “usos”
da linguagem.
1.3.
LINGUAGEM E MUNDO: A REALIDADE COMO SOMBRA DA
GRAMÁTICA
Vimos, portanto, que Wittgenstein mudou radicalmente a maneira de
conceber as regras que regem a nossa linguagem. Essa mudança recoloca a
55
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §105.
56
Ibid., §371.
57
Ibid., §373.
58
Ibid., §383.
59
GLOCK, 1998 [1996], p. 195.
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problemática da relação entre linguagem e mundo, questão que perpassa toda a
obra do autor.
No Tractatus, Wittgenstein afirma que a estrutura da linguagem espelha a
estrutura da realidade, refletindo a relação entre as coisas no mundo. Qualquer
linguagem capaz de descrever a realidade deve ser governada pela sintaxe lógica,
cujas regras devem corresponder aos traços estruturais da realidade: a forma
lógica dos nomes deve espelhar a essência dos objetos aos quais correspondem.
Afirma: “Especificar a essência da proposição significa especificar a essência de
toda descrição e, portanto, a essência do mundo”
60
Nas Investigações Filosóficas a idéia de um isomorfismo entre linguagem
e realidade ganha outro sentido. Não sugere mais que a linguagem deve espelhar a
forma lógica do universo, mas sim que a aparente ‘estrutura da realidade’ não
passa de uma sombra projetada pela gramática.
A linguagem deixa de ter a função exclusiva de representação biunívoca.
O que faz sentido em um sistema de linguagem dado, “o que é (logicamente) dito
possível e o que não é”
61
, depende do que nossa gramática autoriza, e não de um
acordo com uma ‘estrutura do mundo’. A gramática constitui nossa forma de
representação, estabelece o que pode contar como uma descrição inteligível da
realidade, mas não é diretamente controlada por essa realidade. De acordo com
essa nova concepção, a gramática é autônoma e autocontida, posto que não
precisa “prestar contas” à realidade extralingüística para se legitimar. Essa
concepção abre espaço para a possibilidade de existirem diferentes gramáticas.
Ao negar o isomorfismo entre o fato e a proposição com base na
adequação entre o objeto e o nome, ou entre a essência do mundo e seu
representante na linguagem, Wittgenstein desmonta a concepção denotacionista de
linguagem. A crítica ao modelo metafísico de explicação da linguagem se
relaciona a uma nova concepção de explicação do significado. É o uso que
constitui a significação, e não a denotação de objetos. Assim, existindo uma
multiplicidade usos, existe uma multiplicidade de significações. A questão da
relação entre linguagem e o mundo, quando formulada com uma pretensão de
validade universal, torna-se ociosa com a noção de autonomia da gramática. Isso
porque toda mudança operada nas regras de uso de uma expressão setambém
60
WITTGENSTEIN, 2001 [1921], 5.4711.
61
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §520.
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uma mudança de significação. A significação, enquanto uso, muda de acordo com
o jogo de linguagem.
Assim, é a partir da noção de regras de uso que o problema da harmonia
entre linguagem e realidade aparece no segundo Wittgenstein. A questão poderia
tornar-se então: ‘Como se a relação entre as regras que regem um jogo de
linguagem e as atividades com as quais está interligada?’, ou ‘Como uma regra se
relaciona com sua aplicação?’, ou ainda, ‘Como se o acordo entre uma
explicação de uso e esse uso propriamente dito?’. Mas dentro do jogo de
linguagem particular, a relação entre uma regra gramatical e o que está de acordo
com ela é algo sem mistérios. O problema só surge quando abstraímos as palavras
de seu contexto, quando tentamos estabelecer uma relação que se aplique a todas
as situações, quando buscamos formular uma teoria sobre essa relação. Se
investigarmos os casos em que as expressões aparecem inseridas em seu contexto,
a relação e aplicação não serão problemáticas, mas dadas pelo próprio contexto.
Uma relação entre duas coisas não se porque elas possuem algo em
comum, mas porque nós selecionamos um critério para estabelecer essa relação.
Uma matéria possui inúmeras propriedades que poderiam ser utilizadas como
critério para definir diferentes conceitos. A escolha desses critérios, portanto, não
se deve a uma correspondência com a realidade, mesmo que leve em consideração
a maior ou menor utilidade, o maior ou menor poder explanatório. A gramática
não está sujeita á refutação empírica. “As convenções gramaticais não podem ser
justificadas descrevendo-se o que é representado. Qualquer descrição desse tipo
pressupõe as regras gramaticais. (...) Não se pode usar a linguagem para ir além
daquilo que é possível comprovar”
62
. Não dispomos de um ponto de vista exterior
à gramática, extralingüístico ou pré-conceitual, a partir do qual poderíamos
justificar nosso sistema gramatical.
Dessa forma, para o segundo Wittgenstein, não podemos fundamentar
filosoficamente a linguagem. Não existe uma essência oculta que possa servir de
fundamento ontológico para nossa linguagem. As essências metafísicas são meras
ilusões que enfeitiçam nosso entendimento, são apenas ‘sombras’ da gramática.
Cabe, portanto, à filosofia, apenas descrever os usos das palavras, e não postular
teorias para fundamentar esses usos.
62
WITTGENSTEIN, 2005, [1964], §7.
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39
Wittgenstein afirma: “A filosofia não deve, de modo algum, tocar no uso
efetivo da linguagem; em último caso, pode apenas descrevê-lo. Pois também não
pode fundamentá-lo. A filosofia deixa tudo como está”
63
. E depois: “A filosofia
simplesmente coloca as coisas, não elucida nada e não conclui nada. – Como tudo
fica em aberto, não nada a elucidar. Pois o que está oculto não nos interessa.
Pode-se chamar também de ‘filosofia’ o que é possível antes de todas as novas
descobertas e invenções”
64
.
Dentro dessa perspectiva, os problemas filosóficos são como mal-
entendidos gramaticais. Surgem, principalmente, quando confundimos nossa
gramática profunda com a gramática de superfície, formando ‘falsas analogias’.
Para ‘dissolver’ esses problemas, devemos adotar um método terapêutico de
análise da linguagem para que possamos compreender como ela funciona e
reconduzir as palavras para seu uso cotidiano. Wittgenstein assegura:
Quando os filósofos usam uma palavra “saber”, “ser”, objeto”, “eu”,
“proposição”, “nome” – e procuram apreender a essência da coisa, deve-se sempre
perguntar: essa palavra é usada de fato desse modo na língua em que existe? –
Nós reconduzimos as palavras do seu emprego metafísico para seu emprego
cotidiano.
65
Alguns filósofos, como salientou Stegmüller - “entre eles também Bertrand
Russell objetaram contra a filosofia da segunda fase de Wittgenstein, afirmando
que este, de repente, estaria dividindo completamente a ‘conexão entre linguagem
e realidade’; que não estaria mais se preocupando com esclarecer a questão de
como a linguagem ‘se refere ao mundo real’”
66
.
No entanto, é somente quando concebemos uma imagem metafísica do
“mundo real” separada da linguagem que o problema da relação entre eles
aparece. De acordo com Wittgenstein, o que precisamos é dirigir nossa atenção
para a maneira como essas expressões são usadas cotidianamente. O que devemos
é investigar esses usos, e não propor teorias para responder a um falso problema.
Ao verificarmos os usos das palavras ‘real’ ou ‘realidade’ dentro do jogo de
63
Id., 1999 [1953], §124.
64
Ibid., §126.
65
Ibid., §116.
66
STEGMÜLLER apud CONDÉ.
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40
linguagem em que estão sendo proferidas, constataremos que a aplicação se dá
sem problemas ou ambigüidades.
Assim, ao negar a existência de uma gica como condição transcendental
de possibilidade de representação do mundo pela linguagem, e,
consequentemente, invalidar a idéia de que a linguagem deve ser um ‘quadro’ da
realidade, Wittgenstein torna a questão da simetria entre linguagem e mundo sem
sentido. Ao adotar uma perspectiva pragmática essa questão passa a ser um falso
problema.
A dissolução do problema não implica na negação de que ao fazermos
afirmações estamos realmente fazendo afirmações sobre as coisas no mundo
67
.
Mas implica na negação de uma lógica, externa à linguagem e ao mundo, que
garanta uma relação biunívoca entre nomes e objetos simples, ou entre predicados
e propriedades. Essa gica pode ser pensada como derivada do uso da
linguagem na prática, do uso comum no interior de uma forma de vida. A lógica
não mais representa uma ‘ordem a priori’. Ela está expressa na gramática de
nossos múltiplos jogos de linguagem.
Condé afirma: “Se uma relação entre a linguagem e o mundo, ela ocorre
no jogo de linguagem, pois ele [o mundo], enquanto um conjunto de ações e usos
de palavras, e, portanto, significações no interior de uma forma de vida, não
privilegia conceitos (“Não superconceitos”, I.F.§97). A realidade não é mais
um superconceito fundamentado metafisicamente, mas simplesmente algo dado
nas formas de vida.”
68
É nossa forma de vida que constitui o fim da cadeia de
razões, o fundamento último.
Assim, como afirma Marcondes, quando investigamos a linguagem estamos
ao mesmo tempo investigando a sociedade da qual ela é linguagem, o contexto
social e cultural na qual é usada, as práticas sociais, os paradigmas e valores, a
“racionalidade” desta comunidade. Não há, portanto, uma separação radical entre
“linguagem” e “mundo”, já que a “realidade” é constituída pelo modo como
usamos a linguagem.
67
Essa é a postura defendida por Kripke (1982), em sua leitura cética das Investigações
Filosóficas. Para ele a resposta a questões como: “O que conecta a compreensão que alguém tem
de uma palavra com sua correta aplicação?”, “O que liga uma regra a seu uso?” ou, de forma mais
geral, “O que relaciona a linguagem ao mundo?” seria: “Nada!”. Disso pode-se concluir que não
há tais relações a serem explicadas.
68
CONDÉ, 1998, p. 121.
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41
Para Peter Winch, nossa idéia do que pertence ao domínio da realidade nos
é dada pela linguagem que usamos. Os conceitos que temos estabelecem para nós
a forma da experiência que temos do mundo. O mundo é para nós o que se
apresenta através desses conceitos. Isto não quer dizer que os nossos conceitos
não possam mudar; mas quando mudam, isto quer dizer que o nosso conceito do
mundo também mudou”.
69
69
Cf. WINCH, 1970 [1958], p. 26.
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2
UM ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA
Vimos no capítulo anterior que a segunda fase da obra de Wittgenstein nos
fornece uma nova concepção de linguagem, que se opõe à concepção
referencialista do significado. Nesse período o autor passa a afirmar que a
linguagem deve ser compreendida dentro de seu contexto de uso, dentro da forma
de vida e jogo de linguagem em que está inserida, e não mais com referência a
uma suposta estrutura lógica universal. Defende, portanto, uma concepção de
significado contextual, que nos permite falar em uma relatividade de estruturas
gramaticais, que as diferentes linguagens não são mais pensadas como
derivações, mais ou menos aproximadas, dessa estrutura gica única, mas sim
como sistemas que constituem seus próprios padrões de racionalidade, que se
fundamentam em formas de vida particulares.
Esse ponto de vista implica em uma nova percepção da tarefa da filosofia,
que consiste agora em descrever os usos da linguagem, o seu funcionamento
ordinário, inserida em uma forma de vida, opondo-se assim às concepções
anteriores, que supunham que a filosofia deveria nos oferecer teorias explicativas
gerais. De acordo com essa nova noção, a própria tentativa de formular teorias é a
origem de nossos problemas filosóficos, pois retiramos o conceito de seu uso,
gerando uma separação que impede que tenhamos uma compreensão correta de
seu significado, do seu modo de funcionar. A filosofia não pretende descobrir
nada de novo, mas apenas compreender o que esta aí, diante de nós. A
descoberta de novos fatos, a invenção de novas teorias, não pode contribuir em
nada para a dissolução dos problemas da filosofia.
Essa nova noção de linguagem e dos procedimentos próprios da filosofia
que Wittgenstein nos fornece, e que rompe não com posições estabelecidas da
filosofia analítica, mas também, de acordo com o próprio filósofo, com
concepções da primeira fase de sua obra, é resultado, em parte, de diálogos e
debates travados entre 1929 e 1933, o chamado “período de transição” da obra do
autor. O economista marxista Piero Sraffa teria sido uma de suas influências nesse
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período, a quem Wittgenstein atribui o mérito de lhe proporcionar uma
perspectiva “antropológica” dos problemas filosóficos
70
. Essa perspectiva fica
evidente em sua abordagem da linguagem como parte das práticas humanas, como
parte de uma forma de vida, e não mais como um sistema abstrato de
precondições para a representação. As críticas que Wittgenstein desenvolve a
respeito da obra The Golden Bough (1890), do antropólogo James George Frazer
também são bastante representativas desse momento. Suas notas sobre esse estudo
prefiguram algumas concepções fundamentais para a segunda fase de sua
filosofia, desenvolvidas posteriormente nas Investigações Filosóficas (1953), e
coloca questões sobre o debate, ainda em voga, quanto à possibilidade de
comparar diferentes culturas.
71
2.2.WITTGENSTEIN DE ENCONTRO A FRAZER
Durante esse chamado período de transição, Wittgenstein manifestou
interesse em conhecer a obra The Golden Bough (1890), do antropólogo vitoriano
James Frazer. Em 1931, pede a M. O´C Drury que consiga uma cópia da obra e a
leia para ele. Drury revela:
Wittgenstein told me he had long wanted to read Frazer´s The Golden Bough and
asked me to get hold of a copy out of the Union Library and read it out loud to him.
I got the first volume of the full edition and we continued to read it for some weeks.
He would stop me from time to time and make comments on Frazer´s remarks.
72
Posteriormente, em 1936, Wittgenstein recebe uma edição abreviada do
Golden Bough e faz mais algumas anotações referentes a passagens particulares
dessa edição. Wittgenstein nunca chegou a se encontrar pessoalmente com Frazer,
mas deixou importantes anotações de suas impressões sobre a obra do
antropólogo. Essas anotações constituem-se essencialmente de críticas à tentativa
de Frazer de postular teorias interpretativas sobre diferentes culturas. Tais
observações de Wittgenstein antecipam suas concepções posteriores de formas
70
Cf. GLOCK, 1998 [1996], p. 30.
71
As críticas de Wittgenstein encontram ressonância nas críticas à teoria de Frazer que partem do
interior da própria antropologia.
72
DRURY apud KLAGGE & NORDMANN. In: WITTGENSTEIN, 1993.
.
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44
de vida” e “jogos de linguagem”, bem como a postura metodológica descritivista
e a busca pela construção de uma visão perspícua
73
, que são características da
segunda fase de sua obra.
2.1.1.A antropologia de Frazer (1854-1938)
Frazer foi considerado por seus contemporâneos um explorador da
experiência unitária da raça humana’, um investigador dos estágios evolutivos da
civilização. Era tido como “the great teller of the story of how humanity from its
remotest and darkest beginnings gradually developed its manifold relations and
its understanding of its place in nature and in the cosmos”.
74
No entanto, a
reputação de Frazer foi completamente eclipsada pelas críticas de antropólogos
que o sucederam no tempo e que tornaram insustentável as bases de sua teoria.
Uma das contribuições de Frazer na época foi organizar os princípios de
Tylor de associação no pensamento mágico em dois tipos básicos: o princípio de
similaridade ou semelhança e o princípio de contágio ou contigüidade (no espaço
ou no tempo)
75
. Esses dois princípios de associação, segundo Frazer, são leis
gerais do pensamento, que quando legitimamente aplicados, produzem ciência, e
quando mal aplicados, resultam na magia. Frazer dividiu os sistemas mágicos em
dois tipos, de acordo com os princípios de associação em que se baseiam, a saber,
a “magia homeopática” (ou imitativa) e a “magia contagiosa” (ou de contato)
76
,
embora consciente de que esses dois tipos se sobrepõem na prática. Essas duas
modalidades de magia estão compreendidas na categoria abrangente de magia
simpática”.
73
Esse conceito de visão perspícua’, ou ‘visão sinóptica’ (Übersicht) será discutido mais
detidamente abaixo, ocasião em que apresentaremos a passagem em que o termo aparece pela
primeira vez na obra de Wittgenstein.
74
TAMBIAH, 1990, p. 51-52.
75
Os princípios associativos de similaridade e contigüidade como características gerais da mente
humana têm, desde os tempos de Frazer, sido utilizadas em outras estruturas interpretativas,
descartadas suas conotações ‘causais’ como aplicadas à magia. Essas noções foram apropriadas
pelo lingüista Roman Jakobson, que desenvolveu a partir delas a noção de associação metafórica e
metonímica.
76
If my analysis of the magician’s logic is correct its two great principals turn to be merely two
different misapplications of the associations of ideas. Homeopathic Magic is founded on the
associations of ideas by similarity. Contagious Magic is founded on the associations of ideas by
contiguity. Homeopathic Magic makes the mistake of assuming that things which resemble each
other are the same; Contagious Magic commits the mistake of assuming that things which have
once been in contact with each other are always in contact” (FRAZER, 1979 [1890], p. 53-54).
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45
A magia, declarou, é de alguma forma uma precursora da ciência, pois
ambas compartilham o mesmo pressuposto fundamental: a idéia de uniformidade
da natureza. Ciência e Magia elaboram seus procedimentos de acordo com a
noção de causalidade, acreditando que as mesmas causas vão sempre fornecer os
mesmos resultados. À medida que o mágico executa a cerimônia de acordo com
regras estabelecidas, acredita que inevitavelmente obterá os resultados desejados.
Daí a afirmação de Frazer da existência de similaridade entre concepções mágicas
e científicas do mundo:
In both of them the succession of events is assumed to be perfectly regular and
certain, being determined by immutable laws, the operation of which can be
foreseen and calculated precisely; the element of caprice, of chance and of
accident are banished from the course of nature
77
Frazer dispôs magia, religião e ciência em um esquema linear de evolução,
no qual a magia estaria situada num estágio anterior à religião na história da
humanidade, sendo a ciência o estágio mais desenvolvido. A passagem da magia à
religião se deu a partir da centralização do poder iniciada pelos sacerdotes que,
uma vez percebendo a ineficiência da magia, passaram a utilizar sua influência em
proveito próprio
78
. A centralização do poder teve grande importância in breaking
the chain of custom which lies so heavy on the savage”
79
, modificando a estrutura
social de forma a propiciar as condições para que os demais primitivos, aos
poucos, se elevassem também da magia à religião. O Homem começou então a
acreditar que os resultados obtidos pela magia não eram fruto da uniformidade da
natureza ou do correto desempenho de seus rituais, mas sim da Vontade de seres
superiores
80
, e assumiu uma dependência em relação a eles.
81
. A magia, depois de
77
Ibid., p. 56.
78
The result is that at this stage of social evolution the supreme power tends to fall into the hands
of men of the keenest intelligence and the most unscrupulous character. If we could balance the
harm they do by their knavery against the benefits they confer by their superior sagacity, it might
well be found that the good greatly outweighed the evil.” (Ibid, p. 53).
79
Cf. Ibid, p. 54.
80
Frazer definiu a religião como the propitiation or conciliation of powers superior to man which
are believed to direct and control the course of nature and of human life”. (Ibid., p. 57-58).
81
This conjecture is that the shrewder intelligences began to see that magic did not really
accomplish what it was set out to accomplish and fell back on the belief that there were beings,
like themselves, who directed the course of nature and who must be placated and cajoled into
granting man what he had hitherto believed himself able to bring about through his own initiative
[…] Not that the effects witch he had striven so hard to produce did not continue to manifest
themselves; they were still produced, but not by him.” (FRAZER apud TAMBIAH).
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46
superada pela religião, permaneceu na obscuridade a espera de uma etapa
posterior onde foi recuperada e, investigando as seqüências causais da natureza,
preparou o caminho para o surgimento da ciência
82
.
Restava ainda saber por que o homem demorou tanto tempo para detectar a
falácia da magia. Segundo Frazer:
The answer seems to be that the fallacy was far from easy to detect, the failure by
no means obvious, since in many, perhaps in most cases, the desired event did
actually follow, at a longer or a shorter interval, the performance of the rite
which was designed to bring it about ... Similarly, rites observed in the morning
to help the sun to rise, end in spring to wake the dreaming Earth from her winter
sleep, will invariably appear to be crowned with success, at least within the
temperate zones.
83
Aqui, Frazer, de forma indireta, acaba por tocar em uma possibilidade
interpretativa interessante no que se refere ao contexto performativo de certos
tipos de rituais, particularmente os ritos ligados às mudanças de estação, ritos para
fazer nascer o sol ou produzir boa colheita, etc. (‘calendrical type’). Esses ritos de
natureza ‘antecipatória’ são guiados por mudanças regulares astronômicas ou de
calendário, e são eficazes exatamente porque a natureza é regular. Frazer afirma:
A ceremony intended to make the wind blow or the rain fall, or to work the death
of an enemy, will always be followed, sooner or later, by the occurrence it is
meant to bring to pass; and primitive man may be excused for regarding the
occurrence as a direct result of the ceremony, and the best possible proof of its
efficacy.
84
Esses rituais completam um curso de eventos que termina com o resultado
se seguindo à performance. Stanley Tambiah ilustra a natureza antecipatória”
desses rituais relatando uma história narrada a ele por Meyer Fortes. He once
invited a rainmaker to perform the ceremony for him for an attractive fee, and the
officiant in question replied ‘Don’t be a fool, whoever makes a rain-making
ceremony in the dry season?’”. De forma geral, o esquema evolutivo de Frazer e
82
But when, still later, the conception of the elemental forces as personal agents is giving way to
the recognition of natural law; then magic, based as it implicitly is on the idea of necessary and
invariable sequence of cause and effect, independent of personal will, reappears from the
obscurity and discredit into which it had fallen, and by investigating the causal sequences in
nature, directly prepares the way for science. Alchemy leads up to chemistry.” (FRAZER,
1979[1890], p. 374.
83
FRAZER apud TAMBIAH.
84
FRAZER apud WITTGENSTEIN, 1993 [1967].
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47
sua caracterização da magia como ciência bastarda’ bloquearam outros insights
sobre as características dos ritos mágicos, que seriam possíveis à luz de uma
explicação desvinculada da noção de causalidade.
2.1.2.As críticas de Wittgenstein
Wittgenstein, ao comentar a obra do antropólogo, chama nossa atenção
para algumas intrincadas confusões filosóficas inerentes a este relato sobre as
crenças e práticas mágicas nas sociedades ocidentais e não-ocidentais. A narrativa
de Frazer sobre o rei-sacerdote da Neméia, a grim figure prowling in the sacred
grove, carrying a drawn sword, and waiting for his stalking assassin
85
, a busca
pelas origens desse ‘costume bárbaro’ e a concepção de Frazer da magia como
uma aplicação equivocada do que considerou serem os mais simples e
elementares processos da mente (a associação de idéias em virtude da semelhança
ou contigüidade), suscitaram uma fervorosa crítica de Wittgenstein. A coletânea
de notas Remarks on Frazer’s Golden Bough começa afirmando esse
descontentamento de Wittgenstein com o trabalho de Frazer: Frazer’s account of
the magical and religious views of mankind is unsatisfactory: it makes these views
look like errors.”
86
E afirma que as concepções mágicas e religiosas não podem
ser consideradas erradas em si mesmas, mas apenas quando se estabelece uma
teoria, que pretende explicar essas visões de acordo com algum paradigma
exterior a elas.
87
Critica, portanto, a tentativa frazeriana de aplicar critérios de
verdade e erro a visões mágicas e religiosas, utilizando para isso seus conceitos e
categorias, característicos de um homem inglês do século XIX. Com essas
críticas, Wittgenstein busca nos prevenir contra os “erros de categoria”
88
que
cometemos quando equacionamos e comparamos o que não é comparável, e
contra a fácil assimilação dos conceitos de outras culturas (formas de vida) em
nossos próprios conceitos.
85
TAMBIAH, 1990, p. 57
86
WITTGENSTEIN, 1993 [1967], p. 119.
87
Was Augustine in error, then, when he called upon God on every page of the Confessions? But
one might say if he was not in error, surely the Buddhist holy man was or anyone else
whose religion gives expression to completely different views. But none of them was in error,
except when he set forth a theory.” (Ibid., p. 119).
88
Este conceito só foi cunhado posteriormente por Peter Winch (1970 [1958]).
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48
Na visão de Wittgenstein, Frazer utiliza uma falsa analogia quando trata
essas crenças e práticas mágicas como atividades pseudocientíficas, aplicando
padrões científicos para testar sua racionalidade. Frazer resume sua visão da
relação entre magia e ciência dizendo que: whereas the order on which magic
reckons is merely an extension, by false analogy, of the order in which the ideas
present themselves to our minds, the order laid down by science is derived from
patient and exact observation of the phenomena themselves.”
89
Wittgenstein argumenta que as práticas gicas parecem erradas ou mal
concebidas somente se são (enganosamente) tratadas como práticas similares às
nossas práticas científicas. Ele afirma: “An error arises only when magic is
interpreted scientifically
90
. Atividades científicas (o teste de hipóteses e teorias,
mensuração das propriedades do objeto sob investigação, etc.) derivam seu
sentido e justificação da instituição da ciência, enquanto as práticas mágicas
derivam seu sentido e justificação da instituição da magia. Magia e ciência são
instituições sociais distintas, que têm seus próprios objetivos e regras específicas.
Isso significa que o que conta como “sendo um erro” pode somente ser
determinado com referência aos padrões internos à instituição social envolvida
91
.
Assim, seria um engano dizer que as práticas mágicas derivam de “erros”
que podem ser detectados por métodos científicos e “corrigidos” com base em
teorias e leis científicas. Da mesma forma, é apenas pelos modelos internos à
magia que se pode estabelecer o que conta como erro na performance de certo tipo
de rito num caso particular.
Afirma que o erro de Frazer foi representar os nativos
as if they had a completely false (even insane) idea of the course of nature,
whereas they only possess a peculiar interpretation of the phenomena. That is, if
they were to write it down, their knowledge of nature would not differ
fundamentally from ours. Only their magic is different.”
92
Lembra-nos que o mesmo ‘selvagem’ que apunhala efígies também
constrói sua cabana e esculpe suas armas, que o ‘primitivo’ que entrega-se à
89
FRAZER apud SAARI.
90
WITTGENSTEIN, 1993 [1967], p. 125.
91
Essa posição dará origem posteriormente, nas Investigações Filosóficas, à noção de ‘jogo de
linguagem’.
92
WITTGENSTEIN, op. cit., p. 141.
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49
magia fornece evidências de raciocínio prático em sua tecnologia e domínio da
agricultura
93
. O ponto é que eles não concebem a influência mágica nos termos
da nossa concepção de causalidade, mesmo que falem da magia como eficaz. Os
nativos estudados por Frazer fazem uma distinção entre influência mágica e
causal. A principal diferença entre a noção de eficácia técnica e eficácia mágica
parece estar no fato de que no primeiro caso, a causa e o efeito estão conectados
por leis de causalidade que irão tornar necessária a ocorrência do efeito quando a
causa estiver presente. Mas no caso da influência mágica, não existe nenhuma lei
causal envolvida que torne necessária a ocorrência do efeito desejado quando a
causa (a performance dos mágicos nos ritos) ocorrer. A influência mágica não
supõe necessariamente uma lei causal. Do contrário, porque não executariam
rituais para fazer chover em períodos de seca? Ou ritos para o sol nascer durante a
noite, ao invés de simply burn lamps’
94
? É nossa própria concepção de
causalidade que torna difícil, para nós, compreender a noção dos nativos de
influência mágica da mesma forma que eles a concebem.
Uma leitura dos ritos dos índios Norte Americanos, que envolvem espetar
efígies ou atirar nelas com flechas supondo que o inimigo humano real sofrer,
estimula comentários de Wittgenstein que tenta substituir a representação de
Frazer de ‘magia homeopática’ como ação causal equivocada pela concepção de
magia como ação expressiva, onde a representação já é em si a realização
95
.
Burning in effigy. Kissing the picture of one’s beloved. That is obviously not
based on the belief that it will have some specific effect on the object which the
93
Bronislaw Malinowski (1884-1942), antropólogo que desenvolveu suas idéias sobre a
linguagem mágica independente de Wittgenstein, também demonstra, em suas obras etnográficas,
a mesma cautela que o filósofo na interpretação de outras culturas: que o mesmo nativo que se
entrega à magia fornece provas de raciocínio prático em muitas esferas de sua vida cotidiana. Sua
obra Coral Gardens and Their Magic”(1935) apresenta muitos pontos de convergência com a
concepção de Wittgenstein sobre a compreensão de linguagens pertencentes a outras formas de
vida.
94
I read, among many similar examples, of a Rain-King in Africa to whom the people pray for
rain when the rainy period comes. But surely that means that they do not really believe that he can
make it rain, otherwise they would do it in the dry periods of the year in which the land is “a
parched and arid desert”. For if one assumes that the people formerly instituted this office of the
Rain-King out of stupidity, it is nevertheless certainly clear that they had previously experienced
that the rains begin in March, and then they would have had the Rain-King function for the other
part of the year. Or again: toward morning, when the sun is about to rise, rites of daybreak are
celebrated by the people, but not during the night, when they simply burn lamps
(WITTGENSTEIN, 1993 [1967], p. 137).
95
Essa é uma antecipação dos ‘atos performativos’ de Austin.
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50
picture represents. It aims at satisfaction and achieves it. Or rather: it aims at
nothing at all; we just behave this way and then we feel satisfied.
(…)
The representation of a wish is, eo ipso, the representation of its realization. But
magic brings a wish to representation; it expresses a wish
96
.
Apesar dessa concepção de magia como ação expressiva de Wittgenstein
suscitar algumas discordâncias
97
, o que nos importa aqui é que ao negar a
possibilidade de uma explicação causal da magia, de uma consideração dessas
ações como uma visão equivocada dos fenômenos físicos, e defender que os
critérios de legitimidade e correção de uma prática social são internos à própria
prática, Wittgenstein torna insustentável a tentativa de Frazer de estabelecer um
esquema evolutivo linear, no qual a magia seria um estágio rudimentar da ciência.
É importante frisar que Wittgenstein não nega que a instituição da magia
possa ser criticada por outsiders. Mas isso pressupõe, de qualquer forma, que a
crítica não trate essas práticas como atividades pseudocientíficas, mas as
compreenda como práticas distintas que são inteligíveis dentro do contexto em
que se desenvolvem, dentro da rede de costumes, crenças, práticas e instituições
em que ocorrem, e que leva em consideração o sentido que os próprios nativos
atribuem a seus ritos mágicos. Só se pode dizer que um ato é inteligível em termos
dos modos de comportamento que são familiares à sociedade em questão. Toda
prática social é governada por considerações apropriadas ao seu contexto.
Os critérios lógicos, que nos permitem julgar atos como lógicos ou
ilógicos, não são dados, mas se originam e somente são inteligíveis dentro do
contexto das formas de vida. Segue-se que não podemos aplicar critérios de lógica
às formas de vida social como tais. Por exemplo, a ciência possui alguns critérios
de inteligibilidade particulares e a religião possui outros. Assim, dentro da religião
ou da ciência, as ações podem ser lógicas ou ilógicas. Mas a ciência ou a religião
não podem ser julgadas lógicas ou ilógicas em si mesmas.
Wittgenstein sugere, então, que algumas vezes uma descrição sem
adicionar nada ao que se sabe é mais significativa do que uma busca forçada
por uma ‘explicação’, que já pressupõe uma estrutura de ‘hipóteses’
98
.
96
WITTGENSTEIN, 1993 [1967], p. 123-125.
97
Sobre estes diferentes pontos de vista, ver CIOFFI, 2001 [1998].
98
Wittgenstein, em sua obra ‘On Certainty’, faz alusões à suas reflexões, feitas quase vinte anos
antes, sobre o ‘The Golden Bough’, que podem ajudar a entender o que ele quis dizer quando
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51
The very idea of wanting to explain a practice for example, the killing of the
priest-king seems wrong to me. All that Frazer does is to make them plausible
to people who think as he does. It is very remarkable that in the final analysis all
these practices are presented as, so to speak, pieces of stupidity.
(…)
I believe that the attempt to explain is already therefore wrong, because one must
only correctly piece together what one knows, without adding anything, and the
satisfaction being sought through the explanation follows itself.
99
Depois, Wittgenstein explicita que a maneira de Frazer de combinar os
dados de forma a sustentar uma explicação ‘evolucionista’ em termos de
desenvolvimento ‘histórico’, é apenas uma possibilidade; e afirma sua própria
preferência por um ‘esquema’ sincrônico, que destaque as conexões entre os
dados em um determinado contexto. Coloca que, no entanto, o entendimento
dessas relações não deve servir para elaborar nenhuma teoria, mas para
desenvolvermos uma ‘representação perspícua’ que nos permitiria compreender
nossa forma de interpretar e os critérios que adotamos para conectar as coisas no
mundo.
The historical explanation, the explanation as a hypothesis of development, is
only one way of assembling the data of their synopsis. It is just as possible to
see the data in their relation to one another and to embrace them in a general
picture without putting it in the form of a hypothesis about temporal development.
(…)
“And so the chorus points to a secret law”[
100
] one feels like saying to Frazer’s
collection of facts. I can represent this law, this idea, by means of an evolutionary
hypothesis, or also, analogously to the schema of a plant, by means of the schema
of a religious ceremony, but also by means of the arrangement of its factual
content alone, in a ‘perspicuous’ representation.
associou ‘explicação’ com hipótese e teoria, e porque ele acusa o antropólogo de misplaced
reasoning’. Um ‘erro’ é algo que pode ser testado e demonstrado como estando errado. Mas a
idéia de testar já implica algum sistema particular que tem como seu fundamento um conjunto de
pressuposições e proposições que não podem elas mesmas serem testadas ou postas em dúvida.
Wittgenstein diz: Whether a proposition can turn out false after all depends on what I make count
as determinants for that proposition”. The truth of certain empirical propositions belongs to our
frame of reference”. “All testing, all confirmation and disconfirmation of a hypothesis takes place
within a system The system is not so much the point of departure as the element in which
arguments have their life”. Cf WITTGENSTEIN, 1972 [1969], §§ 7, 84, 107.
99
Id., 1993 [1967], p. 119-121.
100
Esta frase é retirada de um poema de Goethe: You are confused, beloved, by the thousandfold
mingled multitude of flowers all over the garden. You listen to their many names which are for
ever, one after another, ringing outlandishly in your ears. All their shapes are similar, yet none is
the same as the next; and thus the whole chorus of them suggests a secret law, a sacred riddle
(GOETHE apud BAKER; HACKER).
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52
The concept of perspicuous representation is of fundamental importance for us. It
signifies our form of representation, the way in which we interpret things.(A kind
of ‘World-view’ as it is apparently typical of our time. Spengler.)
This perspicuous representation brings about the understanding which
consists precisely in the fact that we “see the connections”. Hence the
importance of finding connecting links.
But a hypothetical connecting link should in this case do nothing but
direct the attention to the similarity, the relatedness, of the facts. As one might
illustrate an internal relation of a circle to an ellipse by gradually converting an
ellipse into a circle; but not in order to assert that a certain ellipse actually,
historically, had originated from a circle (evolutionary hypothesis), but only in
order to sharpen our eye for a formal connection.
But I can also see the evolutionary hypothesis as nothing more, as the
clothing of a formal connection.
101
O objetivo do trecho acima é enfatizar que existem diversas formas de
organizar os fenômenos da experiência, diversas formas de compreender a relação
entre eles. A noção de ‘representação perspícua’, defendida por Wittgenstein,
seria uma dessas formas, e sugere que para compreendermos a diversidade dos
fenômenos devemos apenas reorganizar o que já sabemos, sem acrescentar nada
de novo, apenas deixando mais claras as conexões factuais entre eles. Here one
can only describe and say: this is what human life is like.”
102
Wittgenstein ressalta que o que, muitas vezes é apresentado como uma
relação evolutiva pode ser não mais do que uma forma de perceber as
similaridades e analogias, de chamar atenção para uma conexão formal (como no
caso da ‘geração’ de uma elipse através de um círculo)
103
. De acordo com Baker e
Hacker
104
, uma disposição apropriada dos dados apresentados no Golden Bough
poderia iluminar muito mais os fenômenos que desconcertaram Frazer do que sua
hipótese evolucionista duvidosa. Essa disposição apropriada implica em perceber
que tais fenômenos não adquiriram seu sentido de explicações científicas, mas
teriam se tornado inteligíveis como fenômenos da vida humana como formas de
comportamento ritual, simbólico, expressivo, característicos da humanidade.
101
WITTGENSTEIN, 1993 [1967], p. 131-133.
102
Ibid., p. 121
103
Nesse ponto uma evidente convergência com o formalismo e anti-evolucionismo expresso
na teoria estruturalista de Claude Lèvi-Strauss.
104
BAKER; HACKER, 2005 [1980], p.320
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53
2.1.3.Visão perspícua e mitologia da nossa forma linguagem
A concepção metodológica de visão perspícua foi essencial para a filosofia
do segundo Wittgenstein. Ela nos fornece um remédio contra as confusões
filosóficas que derivam de nossa incapacidade de compreender a Gramática.
Essa idéia é derivada da noção tractatiana de “ponto de vista logicamente
correto”
105
, que buscou evitar confusões filosóficas por meio de uma notação ideal
que, sem dizer coisa alguma sobre as proposições, permite uma representação
perspícua de suas formas lógicas. Entretanto, essa representação exige que a
proposição tenha sido previamente analisada. Enquanto a análise lógica procura
desvendar uma estrutura latente que debaixo das aparências da linguagem, é
por meio de uma geografia lógica, e não de uma geologia lógica, que o segundo
Wittgenstein busca atingir um ponto de vista logicamente correto.
Consider the geography of a country for which we have no map, or else a map in
tiny bits. The difficulty about this is the difficulty about philosophy; there is no
synoptic view. Here the country we talk about is language and the geography
grammar. We can walk about a country quite well but when forced to make a
map we go wrong.
106
A representação perspícua deve ser obtida através de uma cuidadosa
descrição de nossos usos ordinários da linguagem. A estrutura interna da nossa
linguagem, constituída pelas regras que determinam o uso de sentenças e seus
constituintes, é a nossa forma de representação, a rede de conexões conceituais
por meio da qual nós concebemos o mundo. Obtemos uma compreensão adequada
de nossa forma de representação, uma visão perspícua, quando somos capazes de
descrever as interconexões de regras para o uso de expressões.
As regras gramaticais não estão ocultas; são visíveis em nossas práticas
lingüísticas. No entanto, elas não estão incorporadas em um meio estático, que
nos permite instantaneamente uma visão perspícua; mas está incrustada em nossas
práticas lingüísticas dinâmicas, na confusão de regras e seus métodos de
aplicação. Embora dominemos a gramática de nossa língua, estamos propensos,
na reflexão filosófica, a distorcer ou ignorar certas diferenças existentes entre
expressões ou conexões lógicas entre proposições.
105
WITTGENSTEIN,2001 [1921], 4.1213.
106
MICHAELMAS apud HACKER.
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54
Essa representação perspícua deve ser utilizada para evitarmos essas
armadilhas preparadas pela gramática de superfície da nossa linguagem, que nos
ilude, ocultando diferenças entre tipos de usos de expressões atrás de uma
similaridade de forma; ou ainda para evitarmos os “erros de categoria”, que
derivam de uma tentativa descuidada e apressada de equacionar os conceitos de
outras culturas aos nossos próprios conceitos.
Uma outra fonte de incompreensões filosóficas está no que Wittgenstein
chamou de “mitologia das formas de nossa linguagem”
107
. Essa tendência
mitificadora do nosso entendimento obscurece as conexões conceituais que
compõem nossa forma de representação. Tal tendência é apresentada por
Wittgenstein no contexto de mais uma réplica a Frazer.
Em sua descrição de algumas crenças dos nativos, como no caso do tabu
que recai sobre os guerreiros que retornam a suas vilas após matar inimigos
algumas vezes mesmo trazendo suas cabeças – Frazer insiste em tratar essas
crenças como ‘medos supersticiosos’, ‘ditados pelo medo dos fantasmas do
morto’. No entanto, utiliza palavras perfeitamente inteligíveis para nós. Nos
seguintes comentários Wittgenstein coloca a questão da ‘tradução entre culturas’,
indagando se, ao utilizar as palavras em inglês ghostse godspara representar
os conceitos selvagens, Frazer não estaria equacionando termos nativos àqueles
familiares a sua própria experiência cultural como um Europeu moderno. Se essa
correspondência é feita, então o antropólogo deve ter percebido que existe algo
nele que “speaks in favor of those savages’ behavior”.
Frazer: “... that these observances are dictated by fear of the ghost of the slain
seems certain ...” But why then does Frazer use the word ‘ghost’? He thus
understands this superstition very well, since he explains it to us with a
superstitious word he is familiar with. Or rather, this might have enabled him to
see that there is something in us which speaks in favor of those savages’
behavior. – If I, a person who does not believe that there are human-superhuman
beings somewhere which one can call gods if I say: “I fear the wrath of the
gods”, that shows that I can mean something by this, or can give expression to a
feeling which is not necessarily connected with that belief.
Frazer is much more savage than most of his savages, for they are not as far
removed from the understanding of a spiritual matter as an twentieth-century
107
Wittgenstein atribuía essa idéia ao escritor Austríaco Paul Ernst, mas Baker e Hacker afirmam
que, na verdade, esse termo havia sido utilizado antes por Nietzsche, ao afirmar que as
estruturas gramaticais podem nos desencaminhar para ilusões metafísicas. Cf. BAKER; HACKER,
2005 [1980].
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55
Englishman. His explanations of primitive practices are much cruder than the
meaning of these practices themselves.
I would like to say: Nothing shows our relationship with the former savages
better than that Frazer has at hand a word that is familiar to him and to us, such
as “ghost” or “shade”, to describe the views of these people.
(This is of course different than if he were to write, for instance, how the savages
imagined that their head falls off when they have killed an enemy. Here there
would be nothing superstitious or magical about our description).
Yes, this peculiarity is related not only to the expressions “ghost” and “shade”
and we have made much too little fuss over the fact that we count the word
“soul”, “spirit” as part of our own educated vocabulary. In comparison to that,
it is a trifle that we don’t believe that our soul eats and drinks.
An entire mythology is stored within our language.
(…)
And whenever I read Frazer, I would like to say at each point: all these
processes, these changes of meaning, we still have before us in our language of
words.
108
Essas palavras, que Frazer utiliza para descrever o comportamento dos
nativos, não são resíduos de uma ciência ruim, mas são imagens incrustadas em
uma época ou cultura, e desempenham um papel crucial no pensamento e
imaginação desta, um papel não diferente daquele de uma forma de representação.
Tais ‘figuras’ incorporadas na linguagem, que carregam um parentesco com o
mito, estão presentes mesmo em nossa cultura. Falamos do tempo voando, do
correr dos fatos, etc. e a maneira como essas frases são usadas o nos causa
problemas. Mas somos tentados a interpretar a ‘figura’ sem examinar sua
aplicação, a inventar uma mitologia ao invés de dizer o que constatamos na
prática. Isto é, somos propensos a tomar a figura literalmente e então buscar por
alguma forma de aplicá-la (por exemplo, como exemplificam Baker e Hacker
109
,
ao tomarmos a figura dos números literalmente e inventarmos o mito’ de um
outro mundo, nem temporal nem espacial, em que estes ‘objetos’ residiriam).
Frazer”, diz Wittgenstein, doesn’t notice that we have before us the
teaching of Plato and Schopenhauer
110
(e mesmo o Wittgenstein do Tractatus,
que sucumbiu à tendência mistificadora ao postular coisas como o ‘objeto
simples’ ou ‘forma proposicional’). Nossa linguagem muitas vezes nos engana.
“Lá onde nossa linguagem autoriza a presumir um corpo, e não existe corpo
algum, desejaríamos dizer, existe um espírito
111
. Falhamos, nesses casos, em
108
WITTGENSTEIN, 1993 [1967], p. 131-133.
109
Cf. BAKER; HACKER, 2005 [1980].
110
WITTGENSTEIN, op. cit., p. 141.
111
Id., 1999 [1953], §36.
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56
fazer o que precisa ser feito, a saber, tomar o sentido da figura de sua atual
aplicação, o que nos leva a postular teorias metafísicas ou idealistas, o que pode
ser visto, é o que Wittgenstein parece sugerir, como um tipo de mitologia. Backer
e Hacker
112
comparam a metafísica com a mitologia primitiva, afirmando que a
metafísica, embora geralmente assuma os objetivos de uma super-ciência, não é
uma ciência errônea, mas sem sentido. Já o ritual tem um importante papel
expressivo na vida de sua comunidade e se entrelaça com as formas de vida da
cultura na qual está enraizada. A metafísica oferece pseudo-respostas para
questões mal-compreendidas, e essas questões, quando corretamente resolvidas,
enfraquecem a metafísica. o ritual e a magia não são respostas a questões como
um todo, elas são representações expressivas, imaginativas, de características
essenciais da vida humana e do mundo em que vivemos.
2.2.A DETERMINAÇÃO CONTEXTUAL DO SIGNIFICADO E A
EXIGÊNCIA DE UM “SOLO COMUM”.
A denúncia que Wittgenstein faz da impropriedade dos julgamentos de
Frazer a respeito dos ritos primitivos como sendo equívocos, nos confere uma
idéia do contraste entre uma tentativa de “explicação” e o método defendido por
Wittgenstein para compreendermos uma cultura diferente. Nas observações de
Wittgenstein apresentadas acima, no entanto, existe uma aparente tensão entre sua
defesa de um “solo comum” e sua ênfase nas particularidades de formas de vida.
Para criticar a atribuição de Frazer de medos supersticiosos e erros de
raciocínio aos primitivos, Wittgenstein tenta demonstrar como nós “civilizados”,
em nossa natureza humana e em nossas construções lingüísticas e culturais, temos
algo em comum com os “selvagens”. Ao propor essa unidade da humanidade,
Wittgenstein levanta uma questão muito debatida por antropólogos e filósofos
contemporâneos: que a tradução de concepções de outra cultura em nossas
categorias lingüísticas necessariamente implica um “espaço compartilhado”, algo
como uma interseção entre os sistemas, uma semelhança mínima que permita a
compreensão.
112
Cf. BAKER; HACKER, 2005 [1980].
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57
No entanto, como vimos anteriormente com as noções de “formas de vida”
e “jogos de linguagem”, que começam a ser explicitadas nas críticas a Frazer
apontadas no começo deste capítulo, a filosofia defendida pelo segundo
Wittgenstein pode ser vista como argumentando pela particularidade e natureza
contextual de culturas e gêneros lingüísticos. A particularidade de formas de vida
e jogos de linguagem alerta contra a prática de “erros de categoria”, contra uma
assimilação e equação de conceitos incompatíveis pertencentes a diferentes
contextos.
Veremos que essas posições não são conflitantes, mas antes, estabelecem
os limites da metodologia de Wittgenstein. Quando conseguimos compreender
como essas concepções se articulam chegamos a um entendimento mais completo
das propostas do filósofo quanto à relatividade de culturas e gramáticas.
Para esclarecer essa questão, primeiro apresentarei a concepção
contextualista de linguagem de Wittgenstein opondo-a as críticas céticas quanto à
determinação do significado; depois, discutirei a noção do filósofo de “espaço
compartilhado” com o objetivo de mostrar que essas duas requisições não são
incompatíveis.
Como vimos no capítulo anterior, ao refutar o ‘fundacionalismo’
semântico, mostrando que não “fatos superlativos” que determinam o
significado, que tais fatos são ficções filosóficas, Wittgenstein abre caminho para
sua nova abordagem do uso cotidiano da linguagem. Nos alerta: “(...)
necessitamos então o atrito. Retornemos ao solo áspero!”
113
, devemos voltar ao
solo áspero das nossas práticas lingüísticas cotidianas. O fundacionalismo da
linguagem nos mantém presos à falsa expectativa de encontrar uma essência
oculta que possa servir de fundamento ontológico para justificar o significado de
nossas palavras. Quando nos damos conta de que essa expectativa é mera ilusão,
somos tentados a concluir que qualquer interpretação semântica é igualmente
válida. Sendo assim, de acordo com o realismo do significado, na ausência de
fundações semânticas, o significado é radicalmente indeterminado
114
. No entanto,
113
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §107.
114
Medina defende que os argumentos de indeterminação de Wittgenstein e Quine ocupam um
papel negativo semelhante contra o realismo do significado: estes argumentos minam o ponto de
vista de que o significado de uma palavra ou frase é uma coisa definida e pré-determinada, que
pode ser preservada na tradução e pode ser completamente captada numa interpretação. No
entanto, após haver rejeitado o realismo do significado, Wittgenstein e Quine usam os seus
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essa indeterminação radical do significado desaparece quando retornamos aos
contextos comuns da comunicação cotidiana. As situações particulares de
interação lingüística, assim como as várias circunstâncias sócio-históricas que
afetam o uso de um termo, limitam as interpretações semânticas, tornando muitas
possibilidades interpretativas não-razoáveis.
Como já citamos no capítulo anterior, o funcionamento da linguagem
depende de um acordo entre os seres humanos, que consiste, não em um acordo de
opiniões, mas de modo de vida. Esse acordo de forma de vida não se esgota em
uma concordância quanto a definições/juízos, mas inclui também “um consenso
de ação”, de aplicação de uma mesma técnica
115
. Sem um consenso quanto à
aplicação e resultados, uma regra perderia o sentido.
O acordo comunitário, no entanto, não é a única condição prévia e
restritiva para a prática de certos jogos de linguagem. Nossos conceitos relativos à
medição, por exemplo, funcionam somente em um mundo que contenha objetos
rígidos, relativamente estáveis da mesma forma, os ritos de natureza
antecipatória têm como pré-condição a regularidade nas mudanças astronômicas e
climáticas –; entretanto, as regras do sistema métrico não especificam essa
condição. E assim, aquilo que Wittgenstein denomina “fatos da natureza” também
exerce uma limitação sobre os jogos de linguagem.
Glock divide as condições restritivas em três grupos:
116
Regularidades gerais relativas ao mundo que nos cerca. Os objetos não
desaparecem ou passam a existir, crescem ou diminuem de modo súbito ou
caótico
117
.
Fatos biológicos e antropológicos que nos dizem respeito. Nossas capacidades
perceptuais nos permitem discernir tais e tais cores [...], nossa memória nos
permite efetuar cálculos de um determinado grau de complexidade [...]; os
padrões de reação que temos em comum tornam possível o ensino [...] a
definição ostensiva, por exemplo, pressupõe que os seres humanos olhem
para a direção que o dedo aponta, e não para o próprio dedo (como fazem os
gatos).
argumentos de indeterminação para desenvolver pontos de vista muito diferentes sobre a
linguagem. Quine generaliza as conclusões de seus argumentos e afirma que a indeterminação
radical é um traço básico e inevitável da linguagem. Por outro lado, para Wittgenstein a
indeterminação radical de nossas práticas lingüísticas surge quando adotamos uma perspectiva
desligada e absoluta, quando tornamo-nos persuadidos por teorias filosóficas descontextualizadas,
que destorcem o uso da linguagem ao procurar por fundamentos inatingíveis. (MEDINA, 2007, p.
97-98).
115
Cf. WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §241-2.
116
GLOCK, 1998 [1996], p. 308.
117
Cf. WITTGENSTEIN, op. cit., §142.
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Fatos histórico-sociais que dizem respeito a determinados grupos ou períodos.
Nossas maneiras de falar expressam necessidades e interesses práticos [...]
moldados pela história.
Dadas essas ‘condições’, certas formas de representação são “práticas” e
outras não. Se certas condições de base contingentes mudassem, veríamos como
plausíveis ou úteis procedimentos alternativos, e como impraticáveis ou
descabidos os nossos próprios procedimentos. Modos alternativos de calcular e
medir, empregados em condições semelhantes às nossas, e com as mesmas
finalidades, nos parecem bastante inapropriados. Da mesma forma, se tais fatos da
natureza sofressem mudanças drásticas, nossas regras poderiam não apenas perder
a praticidade, como também se tornarem inaplicáveis. A física poderia nos
informar que uma mudança em certas leis da natureza levaria os objetos a crescer
ou diminuir caoticamente. Mas não é preciso recorrer à física para estimar que,
nessas circunstâncias, não faria sentido medir tamanhos.
Apenas em casos normais, o uso das palavras nos é claramente prescrito; não
temos nenhuma dúvida, sabemos o que é preciso dizer neste ou naquele caso.
Quanto mais o caso é anormal, tanto mais duvidoso torna-se o que devemos
dizer. E se as coisas se comportassem de modo totalmente diferente do que se
comportam de fato e se não houvesse, por exemplo, expressão característica da
dor, do terror, da alegria; se o que é regra se tornasse exceção e o que é exceção,
regra, ou se as duas se tornassem fenômenos de freqüência mais ou menos igual –
então nossos jogos de linguagem normais perderiam seu sentido. O
procedimento de colocar um pedaço de queijo sobre uma balança e fixar o preço
segundo o que marca o ponteiro perderia seu sentido, se acontecesse
frequentemente que tais pedaços, sem causa aparente, crescessem ou
diminuíssem repentinamente.”
118
.
Se os objetos desaparecessem ou surgissem no mundo de forma
imprevisível, o jogo de linguagem de contar se tornaria inutilizável. Da mesma
forma, se os objetos mudassem de cor aleatoriamente, os nossos conceitos de cor
perderiam o sentido. “Não se inclui entre as regras do tênis o preceito de que esse
esporte deve ser praticado sob a força da gravidade da Terra. Mas o tênis seria um
jogo descabido na Lua”.
119
As condições de base não determinam quais são as
regras do jogo de linguagem, mas determinam parcialmente quais jogos de
linguagem podem ser praticados. Sendo o modo como falamos parte das práticas
118
WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §142.
119
GLOCK, 1998 [1996], p. 308-9.
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60
humanas, está sujeito aos mesmos tipos de fatores que determinam o
comportamento humano em geral. Assim, essas condições naturais limitam nossa
possibilidade de adotar diferentes regras gramaticais.
Contudo, a existência de fatos da natureza não implica em uma
justificativa determinista para nossa gramática. A aparente necessidade de
algumas regras é passível de ser modificada por um processo educacional, por
exemplo; ela é relativa a pessoas e circunstâncias. “Uma mudança nas condições
de base não tornaria nossas regras incorretas (falsas em relação aos fatos), mas
apenas descabidas ou obsoletas”
120
. As condições de base não nos forçam a adotar
determinados jogos de linguagem, elas apenas impõem algumas restrições:
explicam em parte por que não seguimos um determinado caminho, sem, contudo,
explicar por que seguimos um outro. A estabilidade relativa do mundo material é
uma condição para o jogo de linguagem de medição, mas não nos obriga a adotar
o sistema métrico, que depende de um acordo de nossa comunidade. Da mesma
forma, uma capacidade humana comum para discriminar as cores e a relativa
constância dessas cores são condições de base para qualquer gramática de cores,
e, no entanto, são compatíveis com uma grande variedade de gramáticas de cores
que existem entre as línguas humanas
121
.
As restrições contextuais a nossas interações lingüísticas conferem certo
grau de determinação aos nossos significados, mesmo que alguns graus de
indeterminação ainda subsistam. Assim, os significados tornam-se
contextualmente determinados, isto é, determinados o suficiente para que a
comunicação possa continuar com sucesso.
Esta forma de determinação obtida contextualmente vai de encontro à idéia
de determinação absoluta, definida por realistas do significado, que envolve a tese
da unicidade semântica
122
, isto é, a tese de que há somente uma interpretação que
fixa o sentido de um termo. A determinação contextual não exclui a possibilidade
de interpretações alternativas do significado e, portanto, admite certos graus de
indeterminação. No entanto, essa indeterminação em graus deve ser distinguida da
indeterminação radical, defendida por céticos do significado, que envolve a tese
de que todas as interpretações rivais são igualmente dignas de crença, ou cuja
120
GLOCK, 1998 [1996], p. 309.
121
Para mais sobre o assunto, ver SAHLINS, 1976.
122
Sobre essa discussão acerca do contextualismo do significado, ver MEDINA, 2007, p. 96-105.
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aceitação é igualmente racional. Em outras palavras, podemos aceitar que nossas
interpretações são subdeterminadas, sem sermos forçados a concluir que elas são
radicalmente indeterminadas.
É somente quando fomos anteriormente persuadidos pelo fundacionalismo
que faz sentido argumentar que na ausência de fundações semânticas não há
qualquer tipo de determinação. Medina afirma que Wittgenstein procura esboçar
um quadro do significado não-fundacionalista, com o propósito de mostrar que a
impossibilidade de fundação semântica, enquanto tal, não garante o ceticismo
semântico. No cerne desse quadro está a tese da determinação contextual,
afirmando que nossos significados não estão à altura dos padrões de determinação
e fixidez absolutas do realismo semântico, mas não são radicalmente
indeterminados: eles são contextualmente determinados, adquirem uma forma
transitória e sempre imperfeita, frágil e relativizada de determinação em contextos
particulares da comunicação, dados os propósitos das trocas de comunicação, as
condições e práticas anteriores, as perspectivas dos participantes, seus padrões de
interações, etc.
Do ponto de vista de Wittgenstein, a perspectiva de um falante competente
é a perspectiva engajada de um participante em uma prática
123
. A partir da
perspectiva dos participantes em um jogo de linguagem, não há nenhuma
indeterminação radical. O significado é contextualmente definido pelas técnicas
de uso compartilhadas pelos membros da prática particular em ação. Tais cnicas
não estabelecem uma fronteira bem-delineada ao redor do significado de nossos
termos, mas tornam o significado tão determinado quanto necessário na troca de
comunicação em andamento. A normatividade de um jogo de linguagem não pode
ser inteiramente capturada em uma lista de regras ou em um manual de tradução
(como pretendia Quine). As normas que regulam as atividades lingüísticas
tornam-se inteiramente indeterminadas quando são descontextualizadas, separadas
de suas técnicas de aplicação. Estas técnicas não são apenas um conjunto de
123
Aqui pode-se traçar um paralelo com um movimento iniciado no interior da própria
antropologia por Bronislaw Malinowski. O antropólogo polonês, que se enamorou pela
antropologia quando leu a obra “The Golden Bough”, viria a revolucionar os objetivos e técnicas
do trabalho de campo. A novidade de seu trabalho era a de ser um estudo intensivo, feito por um
antropólogo que havia vivido com um povo por aproximadamente dois anos, que falava
fluentemente a língua nativa, que procurava participar das atividades sociais do dia-a-dia dos
nativos e era capaz de elaborar descrições com uma vividez e uma proximidade nunca antes vistas.
O chamado método da “observação participante” buscava romper a barreira de comunicação entre
observador e observado, que impede o acesso ao significado do comportamento manifesto.
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regras, mas uma atividade que exige competência e que pode ser demonstrada
na ação.
Assim, a indeterminação radical é um artefato de teorias filosóficas que
perdem de vista o caráter contextual do uso da linguagem. O significado é
crucialmente dependente do contexto particular de uso da linguagem, e portanto,
não pode ser encapsulado numa interpretação. Medina
124
ressalva que, dado o
espírito anti-teórico da filosofia tardia de Wittgenstein, seus argumentos não
envolvem um apelo a teorias de fundo
125
. O contexto do uso da linguagem
requerido pelos argumentos de Wittgenstein não é um contexto teórico: é o
contexto de uma prática compartilhada. Wittgenstein afirma que as atividades de
falar, traduzir e interpretar são possíveis quando se tem um certo pano de
fundo, constituído por um conjunto de técnicas ou de procedimentos comuns, isto
é, pelos modos de fazer as coisas que os falantes competentes compartilham.
A abordagem que Wittgenstein faz da linguagem como uma prática, reflete
um holismo orientado para a ação. É para enfatizar a estreita relação entre
linguagem e ação que Wittgenstein introduz a expressão “jogos de linguagem”
126
.
A unidade mais básica da significação, o todo dentro do qual as palavras adquirem
significação, não é um conjunto de frases, mas uma prática de uso, uma atividade.
Compreender uma frase é saber o que fazer com ela; é saber o papel que ela
desempenha numa atividade lingüística compartilhada, ser capaz de usá-la
apropriadamente no jogo de linguagem.
127
124
MEDINA, 2007, p. 101.
125
Diferente de Wittgenstein, a abordagem da linguagem de Quine baseia-se no holismo que
defende que, uma vez que os significados são sempre relativos às suas respectivas teorias, a
linguagem cotidiana deve conter um estoque de teorias de base, a partir das quais nossas palavras
adquirem seus significados. Para Quine, teoria e linguagem tornam-se mais ou menos
intercambiáveis, e tudo que se necessita para falar uma língua é aceitar seu corpo doutrinário.
Quine incita-nos a pensar que a linguagem é uma vasta teia de frases interconectadas, “como um
único tecido interligado incluindo todas as ciências e, na realidade, tudo que possamos dizer a
respeito do mundo”. Cada falante individual domina somente uma pequena parcela desta vasta
rede. Esta porção da linguagem, “a teia de crenças do falante”, contém as teorias de fundo de
acordo com as quais o falante compreende as frases de sua língua. Falantes diferentes podem
compreender frases de acordo com teorias de fundo diferentes, assim como tradutores diferentes
podem interpretar locuções de acordo com manuais de tradução diferentes. Uma vez que não
significados que sejam independentes de teorias particulares, o significado, de acordo com essa
concepção de Quine, permanece inevitavelmente indeterminado. Cf. Ibid., 2007.
126
O termo aparece pela primeira vez nas Investigações Filosóficas,§7.
127
para Quine, o que é necessário para que uma frase tenha sentido é que ela seja relacionada a
outras frases dentro se uma estrutura teórica; compreender uma frase é assimilá-la a uma cadeia de
frases interconectadas ou uma “teia de crenças”.
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63
O relativismo cultural adotado por Wittgenstein, que decorre do
relativismo conceitual presente na idéia de autonomia da linguagem, baseia-se na
idéia de que “cada forma de representação estabelece seus próprios padrões de
racionalidade, o que implica que até mesmo justificações pragmáticas são
inerentes aos jogos de linguagem particulares”
128
.
Wittgenstein defende que requisitos mínimos a serem satisfeitos por
uma forma de comportamento lingüístico para que possamos compreender uma
comunidade diferente da nossa (real ou fictícia). Como vimos anteriormente, o
pano de fundo sobre o qual se a compreensão é algo intrinsecamente social,
uma “forma de vida” compartilhada
129
, é um conjunto de padrões normativos
realmente compartilhados pelos membros de uma prática. A linguagem envolve
um “consenso de ação”. “Para uma compreensão por meio da linguagem, é
preciso não apenas um acordo sobre as definições, mas (por estranho que pareça)
um acordo sobre os juízos”
130
. Contudo, para que possamos julgar se uma pessoa
está falando a verdade, precisamos compreender o que ela diz. Portanto, o que
está no fundo de nossas práticas lingüísticas, “a pedra fundamental” da
linguagem, é um acordo prático: compartilhar uma linguagem “não é um acordo
sobre as opiniões, mas sobre o modo de vida”
131
. Pela mesma razão, compreender
uma linguagem que nos seja estranha é algo que não pressupõe uma convergência
de crenças, mas sim de padrões comportamentais, que, por sua vez, pressupõe
capacidades perceptuais, necessidades e emoções comuns: “O modo de agir
comum a todos os homens é o sistema de referência, por meio do qual
interpretamos uma linguagem desconhecida.”
132
Conforme afirma Tambiah, é necessário esclarecer que:
[…] the doctrine of the psychic unity of mankind or human universals and the
doctrine of diversity of cultures/societies are not contradictory dogmas.
The doctrine of human universals is applicable to certain basic human capacities
and operations, both physical and mental. (I leave out of this account, of course,
malformed individuals with birth or acquired defects.) All humans have within a
common range similar sensory and motor skills, the ability, for instance
physiologically to see or the possibility of being trained to discriminate the
same range of colors, and to taste the same range of tastes (sweet, salty, bitter,
128
GLOCK, 1998 [1996], p. 176.
129
Cf. WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §19, 23.
130
Ibid., §242
131
Ibid., §241
132
Ibid., §206
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64
astringent, sour, etc.), although the cultures/societies they belong to may label,
classify or emphasize only some of these colors and tastes, and invest them with
different ranges of meanings. All humans see the same colors but color may have
different meaning and significance for them”.
133
Assim, a requisição de Wittgenstein de um “solo comum” de
comportamentos humanos que constituam nosso sistema de referências para
interpretar linguagens diferentes das nossas não entra em conflito com a defesa da
particularidade e peculiaridade de formas de vida. Não nos seria possível “tomar
pé” em uma comunidade de seres humanos que possuíssem um repertório
comportamental inteiramente distinto do nosso. Mas isso não nos leva a supor que
seu sistema de representação é semelhante ao nosso. In short, Human nature,
conceived in terms of common human needs and capacities, always
underdetermines a way of life”
134
.
133
Cf. TAMBIAH, 1990., p.112.
134
Ibid., p.138
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3
RACIONALIDADE, RELATIVISMO, TRADUÇÃO E
COMENSURABILIDADE
Desde Wittgenstein, inúmeros filósofos enfrentaram as questões
relacionadas à racionalidade, relativismo, tradução de culturas e sua
comensurabilidade. Até hoje se discute como “nós” podemos compreender os
“outros”, traduzir seus fenômenos em nossas categorias e conceitos e como essa
compreensão, por sua vez, age sobre nossa própria compreensão de nós mesmos.
As críticas que Wittgenstein tece à obra The Golden Bough, que tratamos
no capítulo anterior, parecem bastante elucidativas a respeito da tensão entre a
universalidade e a particularidade contidas na aspiração da antropologia por
traduzir diferentes linguagens, assim como por comparar formas culturais.
A concepção de racionalidade sistematizada no Ocidente foi evocada por
alguns filósofos como sendo um padrão de comparação universal que poderia ser
aplicado a diferentes culturas, a diversos fenômenos religiosos e sociais. Essa
questão da aplicação de um padrão de racionalidade a diferentes contextos
suscitou um desacordo entre filósofos e antropólogos, que se dividiram em duas
amplas escolas: os Unifiers(como MacIntyre, Gellner, Davidson, Lukes) e os
Relativizers” (Wittgenstein, Winch, Geertz e outros)
135
.
Para os ‘Unifiers’ pode haver uma racionalidade, fundamentada em
regras universalmente válidas, e que fornece as categorias que devem ser
aplicadas a qualquer fenômeno estudado. Dessa forma poderemos medir o grau de
racionalidade manifesto em diferentes crenças e sistemas de ação, comparando-os
e julgando-os como superiores ou inferiores. A tradução entre diferentes culturas,
de acordo com essa concepção, é possível, pois devemos pressupor uma base de
acordo entre seus padrões de verdade e inferência, e um núcleo comumente
compartilhado de crenças e experiências cujos significados são fixados pela
aplicação desses padrões aos diferentes contextos. os Relativizers’ pregam que
pode haver múltiplas “racionalidades”, diferentes “jogos de linguagem” e “formas
135
Cf. TAMBIAH, 1990.
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66
de vida” que podem mesmo ser incomensuráveis. E por isso é necessário evitar
uma aplicação apressada de critérios de racionalidade não apropriados ao
contexto. Julgamentos quanto a maior ou menor racionalidade de sistemas são
difíceis de aplicar entre culturas e entre períodos históricos, pois têm que enfrentar
o perigo de efetuar “erros de categoria”, comparações deslocadas e uma aplicação
equivocada de cânones racionais a fenômenos não suscetíveis a julgamentos de
racionalidade, como as manifestações poéticas, estéticas e as questões afetivas. A
tradução entre culturas é difícil, afirmam os relativistas, mas possível, desde que
um cuidadoso mapeamento dos conhecimentos da outra cultura seja feito, e tendo
em mente que nossas próprias categorias “racionais”, por sua vez, podem ser
modificadas em virtude de nossa experiência intercultural.
3.1.RACIONALIDADE E TRADUÇÃO
Essas noções de racionalidade, tradução de culturas e sua
comensurabilidade são centrais para uma controvérsia que começou nos anos 60
entre os filósofos Peter Winch e Alasdair MacIntyre, e que envolveu também
antropólogos, pois utilizava a pesquisa etnográfica de Evans-Pritchard sobre os
Azande e os Nuer para propósitos filosóficos
136
. Foi um momento em que
filósofos recorreram à etnografia antropológica para argumentar suas posições
filosóficas
137
. Winch criticou alguns aspectos da obra de Evans-Pritchard de
forma a defender a filosofia da linguagem ordinária do segundo Wittgenstein.
Enquanto o antropólogo defende uma noção de realidade que é independente do
contexto (a “realidade” cuja verdade a “ciência” estabelece), Winch afirma que
não uma realidade exterior às formas de vida e jogos de linguagem de uma
dada comunidade lingüística. Já MacIntyre se dedica a demonstrar que existe um
caráter dialético e reflexivo da compreensão e que privilegiar as categorias dos
nativos não deve, e não pode, implicar a abdicação das categorias do investigador.
136
Cf. TAMBIAH, 1990.
137
A controvérsia é apresentada na coletânea de textos Rationality. Nesse livro um texto de
Winch “The Idea of a Social Science”, seguido do ensaio de MacIntyre também chamado “The
Idea of a Social Science”, que é sua crítica do livro de Winch. Depois, o “Understanding a
Primitive Society” de Winch, e o “Is understanding religion compatible with believing?” de
MacIntyre, que trata do trabalho de Evans Pritchard sobre os Azande, levam o debate além (Cf.
WILSON, 1977[1970])
.
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67
Os argumentos defendidos por Winch e MacIntyre nesse debate se apóiam
sobre diferentes “centros de gravidade”. Winch, começando com a afirmação de
que nossa tentativa de compreensão de outras comunidades deve se dar em termos
dos próprios conceitos e crenças pertencentes à sociedade que pretendemos
interpretar, destaca a possibilidade de existência de diferentes racionalidades’ e
lógicas sociais, prevenindo contra a possibilidade de efetuarmos “erros de
categoria” ao comparar, reduzindo a uma medida comum, fenômenos cujos
pontos de interesse são diferentes. Ressalta que a tradução de concepções de
outras pessoas para as categorias próprias da nossa linguagem não deve ser vista
como uma via de mão única, pois a verdadeira compreensão do outro deve deixar
aberta a possibilidade de que suas concepções possam informar nossas próprias, e
portanto, estender/modificar nossa própria concepção de racionalidade.
O contra-ataque de MacIntyre enfatiza que o antropólogo, para fazer uma
descrição de outra sociedade, precisa pressupor a tradução dos conceitos nativos
para sua própria linguagem e um inevitável encontro e confronto das noções de
inteligibilidade daquela sociedade e do próprio antropólogo. Isto quer dizer, uma
tradução e descrição bem sucedida das crenças, normas e ações de outro povo
pelo antropólogo implica a existência de um espaço compartilhado, de algumas
noções compartilhadas de inteligibilidade e racionalidade entre as duas partes.
Segundo MacIntyre, ainda que reconheça a força do argumento de Winch de que a
primeira tarefa do antropólogo é alcançar os critérios e valores que governam a
crença e comportamento de um povo dentro da própria tradição a que pertence,
insiste simultaneamente que não é possível aproximar conceitos estranhos, exceto
em termos dos critérios do próprio antropólogo. A busca do antropólogo pelos
padrões de inteligibilidade de outra cultura ou sociedade, necessariamente evoca
seus próprios padrões. E, conforme Tambiah, se o cientista social faz isso de
forma consciente, ele tem uma chance maior de se tornar ciente das limitações e
distorções de sua própria cultura. Em resumo, MacIntyre argumentou que para
descrever com sucesso as regras de uso de outra cultura, o antropólogo (na prática
um Ocidental, ou submetido ao doutrinamento Ocidental) aplica ‘padrões de
crítica racional’ desenvolvidos no Ocidente contemporâneo.
138
138
Tambiah afirma que quando os estruturais funcionalistas demonstram as relações funcionais
entre fenômenos, suas contribuições e conseqüências, e fazem julgamentos sobre seus ‘efeitos’,
eles empregam uma forma de ‘critica racional’. Concepções, valorações e crenças têm uma
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68
A esse respeito, Donald Davidson propôs algumas regras de tradução de
culturas que podem ser mais elucidativas do que as investidas de MacIntyre.
Notando que a atribuição correta de crenças não é mais fácil do que interpretar a
fala de um homem, e que, por sua vez, nós não podemos dominar a linguagem de
um homem sem conhecer muito de suas crenças, ele propõe que The problem of
interpretation [and translation] therefore is the problem of abstracting
simultaneously the roles of belief and meaning from the pattern of sentences to
which a speaker subscribes over the time”
139
. Davidson propõe como solução o
princípio de “caridade interpretativa” que ressalta o “espaço compartilhado de
racionalidade entre o tradutor e seu objeto’. Analisemos mais detidamente os
argumentos de Davidson que, ao criticar a posição interpretativa relativista,
levanta importantes questões referentes à tradução e comensurabilidade de
esquemas conceituais e linguagens.
3.2.RELATIVISMO LINGÜÍSTICO
Donald Davidson, em seu artigo “On the very idea of a conceptual
scheme” (1984), pretende demonstrar a incoerência do relativismo conceitual,
entendido como a tese de que a realidade é relativa a um esquema conceitual e que
existem diferentes esquemas, de modo que o “que é considerado como real em um
sistema pode não ser em outro”.
Partindo do pressuposto de que devemos associar esquemas conceituais a
linguagens, Davidson afirma que linguagens diferentes partilham o mesmo
esquema conceitual se podem ser traduzidas entre si. A relação seria: onde um
esquema conceitual difere, a linguagem também difere. A hipótese da
possibilidade de esquemas conceituais distintos é, portanto, a hipótese da
existência de linguagens intraduzíveis.
‘história’, têm ou tiveram uma determinada importância em seus contextos. Os significados
ligados aos fenômenos podem mudar com o passar do tempo. Mas essa crítica não é apenas
exterior à forma de vida em questão. No nível sincrônico os fenômenos podem ser diferentemente
compreendidos, diferentemente rejeitados ou aceitos pelos membros de uma mesma comunidade.
Tambiah ressalta que essas diferenças constituem uma forma de “crítica racional interna”. Assim,
se existem críticas e avaliações internas dentro de uma sociedade, então seus agentes m que
exercer alguma escolha entre alternativas e envolver-se em debates sobre a ‘racionalidade’ de suas
próprias regras e convenções. Ver: TAMBIAH, 1990.
139
DAVIDSON apud TAMBIAH.
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69
Davidson pretende, então, argumentar que não podemos defender a idéia
de que existem diferenças conceituais radicais entre línguas diferentes, negando,
consequentemente, a idéia de relativismo lingüístico, de que diferentes línguas
contêm esquemas conceituais incomensuráveis.
Essa concepção de relativismo lingüístico foi originalmente desenvolvida
pelos lingüistas Edward Sapir e Benjamin Whorf, que afirmaram que a linguagem
nos permite classificar e organizar o fluxo da experiência sensível, produzindo
uma “ordem do mundo”. Nós pensamos e experimentamos o mundo de acordo
com a língua que falamos, e, portanto, nosso pensamento, experiência e realidade
são relativos à linguagem que usamos. Línguas substancialmente diferentes
dividem o mundo de forma diferente, de acordo com diferentes princípios de
individuação, que reconhecem diferentes conjuntos de entidades (diferentes
ontologias).
Em seus estudos de línguas nativas da América do Norte, como a hopi, os
lingüistas encontraram estruturas gramaticais queo poderiam ser traduzidas
sem uma distorção dos significados originais. Isso os levou a conceber um novo
princípio de relatividade, a saber, que observadores diferentes não chegam à
mesma imagem do universo a partir dos mesmos dados físicos, a menos que seus
recursos lingüísticos sejam similares ou traduzíveis entre si. Diferentes gramáticas
resultam em diferenças conceituais que moldam a mente do falante e suas
concepções de mundo de modo diferente. Duas línguas são intraduzíveis quando
suas gramáticas, assim como os esquemas conceituais que elas contêm, são
incomensuráveis, quando não nenhuma estrutura que sirva de ponte, nenhum
conjunto de regras ou padrões que cubram ambas as línguas.
Para esclarecer as idéias relativistas que pretende criticar, Davidson
confronta duas metáforas, desenvolvidas na filosofia da ciência: Strawson observa
que ‘é possível imaginar tipos de mundos muito diferentes do mundo como nós o
conhecemos’, e nos convida a imaginar mundos possíveis não atuais, mundos que
devem ser descritos usando a nossa linguagem atual, redistribuindo valores de
verdade sobre sentenças de formas diferentes. Thomas Kuhn, por outro lado, quer
que pensemos sobre diferentes observadores que vêem um mesmo mundo através
de sistemas de conceitos incomensuráveis. De acordo com Kuhn, cientistas
operando em diferentes tradições científicas (com diferentes ‘paradigmas’)
‘trabalham em diferentes mundos’. Os muitos mundos imaginados de Strawson
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70
são vistos, ouvidos ou descritos do mesmo ponto de vista; o mundo de Kuhn é
visto de diferentes pontos de vista. É essa segunda metáfora que representa o
relativismo que Davidson pretende discutir. Kuhn argumentou que na história da
ciência podemos identificar trocas de paradigmas que ocorrem mediante uma
“revolução científica”, na qual a maioria dos conceitos e normas básicas da
investigação científica muda. Durante este período de revolução não mais um
paradigma dominante. Kuhn generalizou este vazio entre paradigmas científicos
(e suas respectivas linguagens) com a tese da incomensurabilidade: paradigmas
científicos diferentes não podem ser objetivamente comparados uns com os
outros, porque eles contêm padrões, estruturas conceituais e visões de mundo
incomensuráveis (ex. noções de espaço e tempo na física de Newton e de
Einstein); e as línguas dos diferentes paradigmas não são mutuamente traduzíveis.
Essa metáfora adota uma dualidade entre a linguagem, ou esquema conceitual, e o
conteúdo empírico não interpretado ao qual o esquema se aplica. Um novo
esquema conceitual surge à medida que se produz uma mudança na significação
das frases em conseqüência de uma nova teoria. O significado ou condições de
aplicabilidade das palavras mudam. Embora muitos dos mesmos símbolos sejam
usados antes e depois de uma revolução ex. força, massa, elemento, etc. a
maneira como eles se relacionam com a natureza foi de alguma forma modificada.
Essa tese da relatividade lingüística e os relativismos conceitual e ontológico que
dela resultam, no entanto, são bastante controversos.
Davidson argumenta que essa tese da relatividade lingüística se encontra
em frontal oposição às nossas práticas reais de comunicação intercultural, que não
oferecem evidência alguma de que diferenças conceituais entre falantes de línguas
diferentes são incomensuráveis. Aponta que a metáfora do relativismo conceitual,
descrita acima, denuncia um importante paradoxo. A suposição da existência de
diferentes pontos de vista só faz sentido se houver um sistema comum ao qual
referi-los; por sua vez, a existência de tal sistema desmente a reivindicação de
uma incomparabilidade radical. Esse paradoxo está presente na própria
formulação do relativismo, como podemos perceber no empreendimento de
Whorf, que ao tentar demonstrar que a língua hopi incorpora uma metafísica tão
estranha à nossa que não pode ser ‘calibrada’ à língua inglesa, usa o próprio inglês
para transmitir o conteúdo da amostra de sentenças hopi. Da mesma forma, Kuhn
utiliza uma linguagem pós-revolucionária para descrever como as coisas se
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apresentavam antes da revolução. E ainda podemos acrescentar o caso de Frazer,
citado no capítulo anterior, que utiliza sua linguagem e categorias para descrever
as crenças mágicas nativas que considera supersticiosas e equivocadas.
Assim, como vimos acima, Davidson, para refutar o pressuposto central
subjacente ao relativismo lingüístico o de que em cada língua um esquema
conceitual que organiza nossas experiências –, afirma que a única evidência da
existência de diferentes esquemas que pode ser evocada por relativistas
conceituais é a da intraduzibilidade: se diferenças nos esquemas conceituais
encerrados em duas linguagens, elas não podem ser traduzidas uma na outra, quer
total ou parcialmente. Estudar o critério de tradução seria, então, uma forma de
tratar dos critérios de identidade de esquemas conceituais. Com esse intuito,
Davidson faz uma distinção entre a possibilidade de falhas de tradução totais e
parciais.
A primeira etapa do argumento de Davidson contra a possibilidade de
diferenças conceituais baseia-se na possibilidade de uma falha total de tradução.
Ele afirma que não pode haver uma língua que não possa ser traduzida de forma
alguma para a nossa, e, portanto, não pode haver um esquema conceitual
totalmente incomensurável com os nossos. Todas as línguas são, em princípio,
mutuamente traduzíveis umas às outras.
Para Davidson
140
, qualquer evidência de que alguma forma de atividade
que parece ser um discurso não pode ser interpretada em nossa linguagem, é
também uma evidência de que a forma de atividade em questão não é um
comportamento de fala. Se isso estiver correto, devemos afirmar que uma forma
de atividade que não pode ser interpretada como linguagem não é um
comportamento de fala. A traduzibilidade constituiria, portanto, um critério para
considerar algo como uma linguagem.
Ele acredita que a credibilidade nesta afirmação pode ser aumentada se
refletirmos sobre as relações próximas entre a linguagem e atitudes como crença,
desejo e intenção. Por um lado, a fala requer uma multiplicidade de crenças e
intenções bem discriminadas. Não dúvidas de que a relação entre ser capaz de
traduzir a linguagem de alguém e ser capaz de descrever suas atitudes é muito
próxima. Por outro lado, parece improvável que possamos inteligivelmente
140
Cf. DAVIDSON, 1985[1984], p. 185-6.
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atribuir atitudes complexas a um falante sem que possamos traduzir suas palavras
nas nossas.
O argumento de Davidson coloca um dilema para os relativistas. Se, por
um lado, sons e marcas parecem ser apenas ruídos e rabiscos sem sentido, se são
inteiramente ininteligíveis para nós, não temos qualquer razão para acreditar que
constituam uma linguagem. Sendo assim, não evidência de que se trate de uma
linguagem intraduzível. Por outro lado, se temos qualquer razão para acreditar que
algo é uma linguagem, deve ser porque ela nos alguma indicação de
significados que poderíamos compreender e expressar. Portanto, novamente, não
há evidência de uma linguagem intraduzível.
Acreditando ter descartado a idéia de que existem esquemas conceituais
mutuamente intraduzíveis e incomensuráveis, Davidson passa à segunda etapa de
sua argumentação, explorando a intraduzibilidade parcial de linguagens e
esquemas conceituais. Assim, tendo defendido que todas as línguas são
traduzíveis entre si, parte para a defesa da afirmação de que todos os conceitos
expressos em uma ngua podem ser inteiramente capturados e traduzidos para
uma outra língua, sem que se perca nada na tradução.
Poderíamos supor que as diferenças entre esquemas conceituais podem ser
elucidadas por referência às partes comuns aos dois esquemas. Entretanto, se
fosse assim, seríamos capazes de traduzir ou de interpretar um esquema conceitual
estrangeiro ou um enunciado em uma língua estrangeira sem pressupor as crenças,
as significações ou os conceitos comuns. As partes que pudéssemos traduzir
seriam estudadas para descobrirmos as crenças comuns, e as partes que não
pudéssemos traduzir seriam consideradas como formadoras da diferença entre
nosso esquema e o esquema estrangeiro.
No entanto, como foi apontado, existe uma interdependência entre a
atribuição de crenças e a interpretação de significados. Não podemos interpretar o
discurso de alguém a menos que saibamos bastante sobre suas crenças, sobre o
que o falante acredita/pretende/deseja, e, ao mesmo tempo, não podemos
especificar suas crenças com precisão se não pudermos compreender seu discurso.
Davidson sustenta que a base de apoio para a interpretação do discurso de
um locutor falante de uma língua desconhecida é a identificação da atitude
exprimindo assentimento, aplicada às frases. Mas se tudo que sabemos são quais
sentenças os locutores consideram verdadeiras, nós não podemos interpretar o que
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eles dizem sem pressupor muitas coisas sobre suas outras crenças, pois não
sabemos nem o significado que eles atribuem à sentença, nem qual crença a sua
afirmação de verdade representa. Já que o conhecimento das crenças vem com
a habilidade de interpretar palavras, a única possibilidade, para começar, é
pressupor um acordo geral entre as crenças. A estratégia básica é assumir, de
acordo com nossos próprios padrões, que o falante que ainda não compreendemos
é consistente e correto em suas crenças. Seguindo essa estratégia, é possível
emparelhar sentenças proferidas pelo falante com as nossas sentenças que
afirmamos verdadeiras sob circunstâncias semelhantes. Esse emparelhamento,
feito de forma sistemática, resulta num método de tradução. A comunicação, de
acordo com Davidson, é um processo interpretativo regulado pelo princípio de
caridade, e é nesse princípio que se baseia seu argumento contra conceitos
intraduzíveis. “To make a meaningful disagreement possible, this depends entirely
on a foundation – some foundation in agreement. Such charity is forced on us ... if
we want to understand others, we must count them right in most matters”
141
. Se os
outros pensam diferentemente de nós, sempre podemos atribuir a diferença às
opiniões, e não às estruturas conceituais (o que afetaria todo conjunto de crenças).
Uma vez que maximizamos o acordo mediante eliminação de diferenças
conceituais, e desde que a maximização do acordo seja uma condição de
possibilidade da interpretação, deduz-se que não diferenças conceituais que
sejam inevitavelmente perdidas na tradução.
Enfim, Davidson conclui que não nenhuma base inteligível sobre a qual
possamos defender a existência de esquemas conceituais radicalmente diferentes.
Contudo, seria igualmente errado anunciar que toda a humanidade compartilha de
uma ontologia e esquema conceitual comum, pois se não podemos
inteligivelmente afirmar que esquemas são diferentes, também não podemos
afirmar que sejam os mesmos. Assim, a idéia de um relativismo conceitual, de
acordo com Davidson, seria incoerente.
Podemos, no entanto, apresentar algumas críticas à cegueira
davidsoniana quanto às diferenças conceituais, a fim de defendermos uma forma
de relativismo. Em primeiro lugar, Davidson foca exclusivamente em crenças:
supõe que compreender uma língua estrangeira começa por conferir condições de
141
DAVIDSON, 1985[1984], p.197.
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verdade às frases que os falantes dessa língua consideram verdadeiras. No entanto,
não nos diz como podemos identificar essas frases afirmativas (por oposição as
imperativas, interrogativas, exclamativas etc.), sem levar em conta às práticas nas
quais tais crenças são expressas. E mesmo que fosse possível identificar essas
crenças, só poderíamos compreendê-las adequadamente avaliando o papel que
desempenham em suas vidas. Como foi abordado anteriormente ao
apresentarmos o método de Wittgenstein, o pano de fundo que faz com que a
compreensão seja possível não é um sistema de crenças ou uma rede de
proposições, e sim uma ‘forma de vida’. Diferenças conceituais genuínas
aparecem sempre que interagimos com pessoas cujo modo de vida é
significativamente diferente do nosso. Mas estamos sujeitos a não perceber essas
diferenças caso não levemos em conta o fato de que o pensamento e a linguagem
estão fundamentados em uma forma de vida e informados por interesses e valores
característicos dessa cultura.
Isto é o que a abordagem de Wittgenstein enfatiza ao chamar a atenção
para os contextos de ação nos quais somos aculturados, para as práticas nas quais
somos treinados. Segundo Wittgenstein:
uma educação bastante diferente da nossa poderia ser também o embasamento
para conceitos bastante diferentes. Pois aqui, a vida transcorreria diferentemente.
O que seria de nosso interesse, não seria do interesse deles. Aqui, conceitos
diferentes não seriam mais inimagináveis. De fato, essa é a única maneira na qual
conceitos essencialmente diferentes são imagináveis.
142
Outro traço da abordagem de Davidson que podemos considerar
responsável pela invisibilidade da relatividade conceitual é o privilégio da postura
do observador
143
. De acordo com Davidson, a perspectiva do tradutor ou do
interprete é uma perspectiva de terceira pessoa, de um observador descolado, que
tenta atribuir significado aos comportamentos por meio da construção de uma
teoria. Neste processo de interpretação, a linguagem dos outros aparece como um
conjunto de ruídos não interpretados que apenas o intérprete é capaz de dotar de
significado. Quando adotamos essa atitude, o processo interpretativo não é mais
um processo de negociação entre interlocutores, que pode levar a uma ‘fusão de
142
WITTGENSTEIN apud MEDINA.
143
Cf. MEDINA, 2007, p.146. Essa característica da abordagem de Davidson pode ser pensada
como uma herança da filosofia de Quine.
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horizontes’; a possibilidade de que os outros possam enriquecer nosso horizonte
de compreensão fica excluída. A postura defendida por Davidson não considera a
possibilidade do interlocutor nos fornecer uma explicação da significação, não
leva em conta a possibilidade de perguntarmos o que uma palavra quer dizer e
recebermos explicações, seja por meio de definições ostensivas ou por exemplos
expressos na linguagem que se pretende conhecer.
O contextualismo de Wittgenstein também oferece, aqui, uma alternativa
ao ponto de vista de Davidson, pois nos estimula a pensar a relação entre
interlocutores como uma relação entre pares engajados, juntos em uma atividade.
De acordo com esta postura participativa, a compreensão de outras pessoas não é
um processo auto-centrado, mas sim um processo intersubjetivo, um processo de
interação. Pode haver ou não uma perspectiva conceitual comum, mas quando há,
esta é uma perspectiva que emerge de interações comunicativas. O conhecimento
compartilhado pressuposto pela tradução se manifesta essencialmente na ação
144
.
Hacker, em seu artigo Sur l’idée de schème conceptuel chez Davidson
(1996), desenvolve algumas críticas à teoria de Davidson. De acordo com o autor,
o ponto chave de Davidson para refutar o relativismo conceitual é que nada pode
nos permitir identificar com certeza se uma divergência a respeito de uma frase
deriva de um desacordo sobre o julgamento ou de um desacordo sobre os
conceitos. Hacker discorda.
Admettons qu’à un certain stade de la démarche de traduction, nous parvenions
à identifier par exemple, les prédicats de couleur de la langue indigène. Dans ce
cas, nous allons sûrement constater que leur système des couleurs diffère du
nôtre, qu’ils pensent que des objets sont de la même couleur quand nous disons
que certains sont rouges et d’autres orange, et estimons que ce sont des couleurs
différents. Ce faisant, nous déterminons un désacord sur les concepts. Cela est
analogue à un désaccord sur les unités de mesure, alors qu’un désaccord dans
les jugements est analogue à un désaccord sur les résultats de la mesure.
145
É possível que em alguma situação particular possamos atribuir uma
divergência sobre a verdade de uma frase a um desacordo entre julgamentos no
lugar de um desacordo sobre conceitos. No entanto, isso não é suficiente para
provar que essa distinção não exista, mas apenas para sugerir que em alguns casos
problemáticos não podemos estabelecer essa distinção seguramente.
144
Cf. WITTGENSTEIN, 1999 [1953], §206.
145
HACKER, 1996, p. 325-6.
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A questão que permanece problemática é saber se, ao aprendermos
a falar uma língua desconhecida, poderíamos encontrar expressões que somos
capazes de compreender, mas que não seriam traduzíveis. Nesse caso, a
intradutibilidade poderia ser trivial, se pudéssemos remediar introduzindo uma
nova palavra em nossa língua, ou não trivial, se ela assinala uma estrutura
conceitual diferente para uma parte dada do discurso.
Une différence partielle entre des schèmes conceptuels est une différence entre
les segments correspondants des grammaires des expressions, une différence
d’espace logique, mais non une diffèrence entre des vérités. Le relativisme
conceptuel, lorsqu’il prend la forme de la thèse que la vérité est relative à un
schème conceptuel, n’est pas moins dans l’erreur que Davidson, quand celui-ci
soutient que la vérité est relative à un langage. Ce qui est dit, quand quelque
chose est dit dans un langage, est vrai si les choses sont comme il est dit qu’elles
sont, et il n’y a rien de relatif. Une assertion, au sens de ce qui est don
comme vrai, qui serait vraie en français ou vraie en anglais, cela n’existe pas.
Car, alors qu’une assertion peut être faite en français, i.e. qu’une phrase
française a été utilisée pour la faire – par exemple, la phrase «il pleut» -, ce qui a
été donné comme vrai à savoir qu’il pleut n’est pas vrai em français, mais
vrai (ou faux) tout court.
146
Não é a verdade que é relativa ao esquema conceitual, mas os conceitos.
Diferenças entre esquemas conceituais, segundo Hacker, não conduzem a
verdades relativas, mas a verdades incomensuráveis. No caso da intradutibilidade
parcial de sistemas diferentes de determinação de cor, por exemplo, a comunidade
lingüística que emprega uma escala de cor diferente da nossa utilizaria critérios
diferentes dos nossos para decidir se duas cores são idênticas ou não (e não
somente o espectro de cores pode ser dividido de maneira diferente, mas sua
gramática de nomes de cores pode incorporar ainda outros aspectos, como, por
exemplo, ser brilhante ou fosca). Dessa forma, não são somente seus conceitos de
cor, mas seu conceito do que é determinável como cor que será diferente do
nosso. Mas essa diferença deve respeitar certo limite para que possamos
considerar que o conceito em questão ainda se refere a um conceito de cor.
Um ponto importante concernente ao relativismo conceitual é que o
desacordo entre os conceitos não engendra um desacordo sobre a verdade.
Quando indígenas afirmam que a grama é da mesma cor que o céu, eles utilizam
critérios para a identidade das cores diferentes dos nossos e, nessa medida, um
146
HACKER, 1996, p.326.
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conceito um pouco diferente. O desacordo está nos conceitos, e os enunciados
verdadeiros formados com esses conceitos são incomensuráveis precisamente
porque não podemos traduzi-los de um esquema a outro. Não temos, nesse caso
específico apresentado, dificuldade em compreender o sistema de representação
dos indígenas para o domínio em questão. Mas é impossível sobrepor exatamente
esse esquema conceitual ao nosso.
147
Se, para Davidson, intraduzível quer dizer inexplicável, Hacker afirma que
ele se enganou. É evidentemente possível apreender formas de representação
diferentes. Se a gramática das cores indígenas difere da nossa, nós podemos
aprendê-la, da mesma forma que os indígenas, recebendo definições ostensivas
dos predicados de cor e treinando sua aplicação. Davidson recusa coerentemente a
tese de que a realidade é relativa a um esquema conceitual. Mas engana-se ao
sustentar que a verdade é relativa a uma linguagem. Esse erro repousa, na visão de
Hacker, sobre um outro erro, o de crer que “verdade” é um predicado
metalinguístico e que a verdade é uma propriedade das frases. Mas o relativismo
conceitual não pretende que a realidade seja relativa a um esquema conceitual,
como se fosse verdade que uma rosa é vermelha em português, mas não em
inglês. A tese que deve ser sustentada pelo relativismo conceitual é a de que as
verdades expressas em um esquema conceitual podem ser incomensuráveis com
as verdades expressas em um outro. De fato, elas são incomensuráveis porque são
intraduzíveis.
Existe um caso inteligível que ilustre de uma só vez a intraduzibilidade e a
incompreensibilidade? Podemos conceber casos em que os conceitos disponíveis
em uma língua nos são inacessíveis? Por exemplo, se encontrássemos algo que se
assemelhasse a uma partitura musical, mas que não reconhecêssemos o modelo de
sons com relação aos quais suas notas musicais são definidas. Essa
inacessibilidade de modelos pode ser decorrente de uma limitação da percepção.
Poderíamos pensar no caso dos cegos frente a nossa gramática das cores, ou numa
gramática de sons que compreendesse os ultra-sons. Não teríamos aqui uma
intraduzibilidade remediável por extensão ou modificação de nossa gramática,
mas uma intraduzibilidade somada a uma irremediável incompreensibilidade.
Contudo, podemos estar absolutamente certos de que não estaríamos nos
147
É necessário haver uma similaridade suficiente entre os sistemas de representação que nos
permita afirmar que as gramáticas divergentes pertencem a um mesmo domínio.
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confrontando com ruídos, ou atos não lingüísticos, mas com um discurso sobre a
cor ou som.
Esses exemplos imaginários de gramáticas parcialmente inacessíveis de
sons e cores não justificam o relativismo conceitual, se entendemos por isso uma
posição que implica a relatividade da verdade. Mas eles confirmam a tese central
de muitos relativistas conceituais, a saber, que existem esquemas conceituais
diferentes, formas de representação diferentes para certos domínios dados do
discurso, e que alguns desses esquemas são incomensuráveis.
Isso nos remete à primeira questão de Davidson, aquela de saber se a idéia
de um esquema conceitual inteiramente intraduzível é inteligível. Os seres
dotados de um sistema sensorial completamente diferente do nosso poderiam,
supostamente, comunicar de uma maneira completamente diferente da nossa e que
nos seria completamente inacessível. É nesse contexto que podemos interpretar a
afirmação de Wittgenstein de que se “Se um leão pudesse falar, nós não
poderíamos compreendê-lo”
148
. A afirmação sugere que mesmo que os leões
possuíssem uma linguagem felina de rugidos e rosnados, jamais poderíamos
chegar a compreendê-la. No entanto, como afirma Hacker, essa questão, não
parece ter muito interesse para a filosofia, mas apenas para a literatura de ficção-
científica.
3.3.COMENSURABILIDADE E COMPARAÇÃO
Vimos que compreender uma linguagem envolve, de alguma forma,
traduzi-la para nosso próprio sistema de conceitos; e o mesmo se com crenças,
desejos e ações. No entanto, o que se pretende com a máxima “traduzir para nosso
próprio sistema” não é auto-evidente, pois, como coloca Tambiah, there is a
world of difference between establishing a one-to-one correspondence between a
concept or practice in another culture and one in our own, and mapping a
phenomenon in another culture onto one of our own.
149
Este último processo
coloca a questão da comensurabilidade” e “comparação” significativa, pois
estabelece as sobreposições e diferenças entre os fenômenos estudados. E
148
WITTGENSTEIN, 1999[1953], II, p.201.
149
TAMBIAH, 1990, p.123.
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79
Tambiah levanta ainda outra questão: a noção de Davidson de “uma base de
acordo” não especifica a amplitude da base de acordo, ou a quantidade mínima
necessária de conteúdo do espaço compartilhado, para que possamos garantir a
tradução. De forma que deixa aberta a possibilidade de que uma tradução ou
mapeamento possa revelar que a “racionalidade universal comum” que é
compartilhada como pano de fundo seja menos significante do que as diferenças
não compartilhadas. “In this case the rationality we have to seek to establish must
try to fit the ‘relativities’ into an encompassing framework of absolute truth and
rationality, which is both contingent and open-ended (but not indefensible)”.
150
Tambiah acredita que é essa noção mais complexa da possibilidade de razão
universal que Winch procurou afirmar, defendendo que, dadas as implicações
dialéticas da tradução, nossos padrões” podem ser estendidos e modificados se
pudermos identificar a que remonta a inteligibilidade na vida que estamos
investigando, e estabelecendo uma relação racional com nossa própria concepção
de inteligibilidade.
That is, we have to create a new unity for the concept of intelligibility, having a
certain relation to our old one and perhaps requiring a considerable realignment
of our categories. We are not seeking a state in which things will appear to us
just as they do to members of S, and perhaps such a state is unattainable anyway.
But we are seeking a way of looking at things which goes beyond our previous
way in that it has in some way taken account of and incorporated the other way
that members of S have of looking at things. Seriously to study another way of life
is necessarily to extend our own
151
E Tambiah afirma que nem Davidson nem MacIntyre iriam rejeitar esta
forma de defesa de uma razão humana comum.
Mas ainda precisamos esclarecer a natureza da relação entre tradução de
culturas e o conceito de comensurabilidade. Como colocado acima, para
avaliarmos se os esquemas de tradução podem ser bem sucedidos em capturar o
sentido “real” ou referência de uma linguagem estrangeira, devemos distinguir a
possível falta de uma correspondência one-to-one em um variado número de
conceitos (termos, categorias) entre culturas, da possibilidade de descrever em
detalhes os contornos dos conceitos de uma cultura na linguagem de outra cultura,
mesmo se a última não possui o conceito verbal em questão. Esse último método é
150
TAMBIAH, 1990, p.123.
151
WINCH, 1977 [1970], p. 99.
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80
o que tem sido aplicado por antropólogos, e que permite, por exemplo, descrever
em português, inglês, francês, alemão, etc, conceitos como nirvana, dharma,
karma, etc, familiares a estudantes de Budismo e Hinduísmo, mesmo que não
possuam um paralelo conceitual exato nestas línguas. O projeto de tradução de
culturas comprometido com a máxima da caridade interpretativa nos leva a
atribuir a nossos ancestrais e membros de outras culturas passadas e presentes
referências compartilhadas e conceitos compartilhados, embora as concepções que
possuímos de um fenômeno possam diferir.
We could not say that conceptions differ and how they differ if we
couldn’t translate.” ... Interpretative success does not require that the
translatee’s beliefs come out the same as our own but it does require that they
come out intelligible to us”.
152
Assim, a tradução implica alguma medida de
comparabilidade, e comparabilidade por sua vez implica alguma medida de
comensurabilidade. Mas essa inferência nos leva de volta ao começo da
contestada questão de como devemos entender comparação e comensurabilidade.
A comensurabilidade pode ser compreendida de duas maneiras distintas.
Uma maneira foca na redução a uma medida comum, na mensuração através de
uma unidade comum. A outra maneira é o ato de tornar proporcional, que é
estabelecer a relação entre porções ou partes, ou entre uma parte e o todo.
Tambiah utiliza um debate da antropologia entre Barreman e Dumont para
esclarecer essas duas modalidades de comparação listadas acima. O debate versa
sobre a maneira de caracterizar o sistema de castas indiano. O método de
Barreman agrupa o sistema de castas indiano com sistemas de classe social no
Ocidente industrializado, discriminação racial e dominação nos Estados Unidos e
feudalismo Europeu, todos sob a rubrica de Estratificação Social, e então compara
esses sistemas de acordo com suas “similaridades” com relação às medidas de
desigualdade, taxas de mobilidade social, exercício de poder, bem-estar
econômico, etc.
Para Dumont, esse método de comparação viola os princípios
organizacionais do sistema de casta indiana como um fenômeno social total. Seu
método estruturalista pretende delinear um sistema de relações, e é semelhante ao
segundo modo de comparação que busca estabelecer uma proporcionalidade entre
152
PUTNAM apud TAMBIAH.
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81
os fenômenos. O sistema de casta indiano é uma “hierarquia” constituída em
termos de uma valoração diferencial conferida às partes de acordo com sua
contribuição ao todo. A unidade de tal sistema é o grupo, que assume prioridade
sobre indivíduos. os sistemas de classe Ocidentais industriais e pós-capitalistas
são construídos sobre diferentes princípios estruturais. Seu ponto de partida é o
individualismo possessivo. Os indivíduos têm prioridade sobre a sociedade, que é
vista como um agregado de indivíduos servindo a seus interesses próprios.
Podemos perceber com isso que o primeiro método, que aspira à
comparação por medidas comuns, destaca características de entidades complexas
e sujeita-as à medidas comuns de variação; busca derivar generalizações,
aplicando medidas gerais independentes do contexto. O segundo método insiste
em primeiro construir um modelo total levando em consideração os valores
próprios à entidade sócio-cultural a que pertence, levando em conta a tradição em
que se insere. Essa ambição para totalização apresenta similaridades com o
conceito do antropólogo Marcel Mauss de “fenômeno social total” e com a noção
wittgensteiniana de “formas de vida”. A comparação se após as totalidades
serem construídas. Esse modelo acarreta uma confrontação de sistemas de
valorações e de hierarquia de relações, que revela similaridades e diferenças
qualitativas. Esse programa se aproxima também das pretensões de Winch, de
primeiro compreender um povo em termos de seus próprios conceitos, valores e
ideologia, para só depois pensar em possíveis comparações.
A preferência pela construção de totalidades e formas de vida, na verdade,
pode nos levar aos limites da comparação e comensurabilidade, no ponto em que
o desenho do ‘centro de gravidade’ de uma cultura pode conferir a uma sociedade
sua distinção, sua singularidade, como uma organização única e particular de
determinados componentes, de forma que um comparativista pode ser levado a
concluir que não vale a pena descartar essa peculiaridade e reduzi-la a uma
medida comum vis-à-vis outra entidade igualmente distinta e complexa. Esse é o
limite ao qual deve nos levar a tradução. A fronteira é uma situação de
incommensurable exclusivity’
153
, que é semelhante ao limite determinado por
Winch, cuja transposição nos levaria a promover “erros de categoria” e
comparações deslocadas.
153
WILLIAMS apud TAMBIAH.
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82
À luz da discussão anterior, podemos tentar esboçar, primeiro, sob que
condições julgamentos podem ser feitos sobre a ‘racionalidade’ de um sistema de
crenças ou modo de ação, vis-à-vis outro; segundo, sob que condições podemos
significativamente comparar dois sistemas e afirmá-los como ‘verdadeiramente
relativos’; e terceiro, sob que condições eles devem ser considerados como
incomensuráveis. Em outras palavras, podemos distinguir três possibilidades: (1)
a comparação é possível mesmo que parcialmente –, assim como também é
possível um julgamento entre verdadeiro/falso, ou superior/inferior; (2) a
comparação é possível, mas os fenômenos comparados são verdadeiramente
relativos ou alternativos à mesma questão; (3) nenhuma comparação significativa
é viável no atual estado de conhecimento; por que os dois fenômenos em questão
têm uma base de acordo tão estreita que devem ser deixados em um estado de
incomensurável exclusividade ao invés de serem sujeitados a comparações
forçadas.
Para estabelecer essa distinção, temos que, primeiramente, concordar com
Davidson que a condição mínima para que possamos tornar possível a
comparação entre fenômenos é o estabelecimento de uma base de acordo entre
eles, sobre a qual os desacordos e diferenças podem ser projetados. As regras
fundamentais para essa distinção são delineadas por Tambiah como se segue:
(a) Let us call the two phenomena or systems to be compared S1 e S2. The
most straightforward case of comparison is where S1 e S2 exclude each other by
virtue of proposing conflicting consequences or implications to the same issue or
question, which constitutes their base of agreement.
(b) If there is some straightforward decision procedure by which the efficacy
or truth of the proposition of S1 or S2 can be decided, then relativism will have
been banished, and either S1 or S2 can be declared to be superior or rational,
and the other inferior and irrational.
(c) A truly relativistic outcome is one in which the formulations of both S1
and S2 are alternatives to the same problem, in that their formulations,
implications and consequences in their own contexts cannot be shown to be
untenable or implausible or inefficacious, such that neither side sees a necessity
to abandon its position as inferior.
(d) When two phenomena should not be compared at all because their
presuppositions are different, and they constitute two different “forms of life”,
then there is no basis for setting up the relativism question at all. In these
circumstances spurious comparisons may be sought to be made by injecting from
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83
S1 a set of concepts and issues which are unthinkable in S2 at all. This is a case
of “incommensurable exclusivity” (Williams).
154
Podemos, assim como Tambiah, ler com simpatia as seguintes sentenças
de Peter Winch a respeito das considerações de MacIntyre sobre os Azande
155
:
It may be true, as MacIntyre says, that the Azande do not have the categories of
science and non-science. But Evans-Pritchard’s account shows that they do have
a fairly clear working distinction between the technical and the magical. It is
neither here nor there that individual Azande may sometimes confuse the
categories, for such confusions may take place in any culture. A much more
important fact to emphasize is that we do not initially have a category that looks
at all like the Zande category of magic. Since it is we who want to understand the
Zande category, it appears that the onus is on us to extend our understanding so
as to make room for the Zande category, rather than to insist on seeing it in terms
of our own ready-made distinction between science and non-science. Certainly
the sort of understanding we seek requires that we see the Zande category in
relation to our own already understood categories. But this neither means that it
is right to ‘evaluate’ magic in terms of criteria belonging to those other
categories; nor does it give any clue as to which of our existing categories of
thought will provide the best point of reference from which we can understand
the point of Zande practices.
156
Como vimos, não é necessário aceitar um relativismo radical vulgar, do
tipo “qualquer coisa vale”, nem o seu oposto, um universalismo absoluto, que
defende que toda e qualquer cultura faz parte de um mesmo esquema universal
que responde a um único paradigma de racionalidade. É possível adotar uma
posição mais complexa entre esses extremos, nos esforçando na direção de
comparações e julgamentos gerais sempre que eles forem apropriados e possíveis,
deixando outras questões num estado indefinido até obter melhores condições que
possibilitem a comparação. Afirmar que dois fenômenos parecem
incomensuráveis não nos coloca automaticamente no campo relativista, e nem
nega a possibilidade de mensuração em algum momento futuro.
154
TAMBIAH, 1990, p. 131.
155
Suponho que também Wittgenstein leria tal passagem com simpatia.
156
WINCH. 1977 [1970], p.102.
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4
UM SEGUNDO ENCONTRO COM A ANTROPOLOGIA
Como vimos nos capítulos anteriores, uma das conquistas mais
importantes da segunda fase da obra de Wittgenstein foi afirmar a relevância das
atividades não-lingüísticas com as quais a linguagem está relacionada para a
compreensão desta. Num primeiro momento, propôs um contextualismo radical
ao alegar que uma palavra tem sentido inserida num jogo de linguagem que faz
parte de uma forma de vida comunitária. Depois, reconheceu que nossas
atividades, lingüísticas e não lingüísticas, são parcialmente condicionadas por
certos “fatos da natureza”, e que uma alteração nesse ‘arcabouço’ (constituído
pelos “fatos da natureza” e pelo acordo comunitário) tornaria inteligível diferentes
“formações conceituais”. Essa diversidade conceitual coloca a questão da
comensurabilidade entre formas de representação distintas.
4.1. FORMAS ALTERNATIVAS DE REPRESENTAÇÃO
“‘Necessary truths’ are norms or reflections of norms of representation
and of reasoning which form the network of concepts and transitions between
concepts and propositions in terms of which we describe the world”
157
. Uma
forma de representação é produto da atividade humana através da história. É
moldada pela natureza do mundo ao nosso redor, condicionada pela natureza
humana e direcionada pelos interesses historicamente determinados do homem.
Consequentemente, podemos imaginar formas de representação diferentes das
nossas.
It might be imagined that some propositions, of the form of empirical propositions,
were hardened and functioned as channels for such empirical propositions as were
not hardened but fluid; and that this relation altered with time, in that fluid
propositions hardened, and hard ones became fluid.
157
BAKER; HACKER, 1985, p.318.
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85
The mythology may change back into a state of flux, the river-bed of thoughts may
shift. But I distinguish between the movement of the waters on the river-bed and the
shift of the bed itself; though there is not a sharp division of the one from the other.
But if someone were to say “So logic too is an empirical science” he would be
wrong. Yet this is right: the same proposition may get treated at one time as
something to test by experience, at another as a rule of testing.
And the bank of that river consists partly of hard rock, subject to no alteration or
only to an imperceptible one, partly of sand, which now in one place now in
another gets washed away, or deposited.
158
Essa concepção é desenvolvida ao longo da obra de Wittgenstein em
numerosos exemplos de formas de representação alternativas referentes à contar,
calcular, mensurar, à gramática de cores, etc. No entanto, Baker e Hacker afirmam
que seus exemplos foram bastante mal-interpretados, considerados pouco
convincentes, implausíveis e confusos; ou ainda, que constituem exemplos de
formas de representação alternativas, que seriam, em si mesmas, ‘inimagináveis e
inconcebíveis’. Para análise dessas críticas, apresento esquematização elaborada
por Baker e Hacker de alguns dos exemplos de Wittgenstein:
(i) We can not only imagine, but even find, tribes who employ different
techniques of counting from ours, who count ‘1, 2, 3, 4, 5, many’ (AWL, 117;
250). Note, however, that ‘3’ in this technique does not mean the same as in
ours, but only corresponds to our ‘3’ (and similarly for the other symbols).
For in this primitive system, if these people ‘add’ then 3+4=3+5, since both
equal ‘many’. And if they do not have an operation corresponding to our
addition, then a fortiori their numbers differ from ours, since they are not
embedded in that dense network of internal relations characteristic of our
concepts.
(ii) Our practices of measuring are quite useless to us if our rulers are unstable,
if they themselves expand or contract significantly. But we can imagine
circumstances in which rulers with very high coefficients of expansion would
be very useful (RFM 91; LFM 83), or even in which it was reasonable to
measure things with an elastic ruler (RFM 38; LFM 83; RR 121f.)!
(iii) We can readily imagine people selling wood on the grounds of a calculation,
e.g. they measure the length, breadth and height of a pile, calculate the
product and the result is the price in pence. We would say (but they do not)
that they sell wood by the cubic measure (not by weight, labour calculated in
a certain way, or time taken to grow the timber). This may seem odd, but not
unintelligible. But what if they sold wood at a price proportionate to the area
covered by a pile irrespective of the height of the pile? They might even
justify this by saying ‘Of course, if you by more timber, you must pay more.’
This too, Wittgenstein insisted, is a method of calculating price, a system of
payment (RFM 93f., LFM 201f.)
159
158
WITTGENSTEIN, 1972 [1969], § 96-9.
159
BAKER; HACKER, 1985, p.319-20.
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86
Esses exemplos pretendem mostrar que não há nada pré-determinado
sobre nossos conceitos e métodos de representação. Eles não são verdadeiros ou
corretos. Eles não correspondem aos fatos, à ‘forma lógica do mundo’, a algo
intrínseco à natureza das coisas. Rather, they are useful: and above all, they are
used. There could be analogous concepts, which are yet very different. They would
be no less ‘correct’. For they would be perfectly good, not for us, but for others
with different interests and purposes, in different circumstances”
160
.
Essa existência de diferentes conceitos e formas de representação parece
difícil de aceitar porque fomos antes persuadidos pela concepção de que as
relações internas derivam da natureza dos termos relacionados, ao invés de
constituírem sua natureza. Assim, somos tentados a tomar as estruturas
conceituais mais simples do que as nossas (como por exemplo, uma técnica de
contar que não contenha as técnicas de adição e subtração) como pertencendo a
um estágio anterior numa mesma linha de desenvolvimento
161
. Acrescentaríamos,
nesse caso, que esse sistema ‘primitivo’ de contagem seria uma forma ainda não
desenvolvida do nosso próprio sistema, afinal, acreditamos que é da própria
natureza dos números que 5 + 7 = 12. Essa perspectiva nos levaria a afirmar que
as pessoas que contam estão comprometidas, conscientemente ou não, com essas
verdades aritméticas’.
No entanto, para alguém que emprega uma técnica de contar e possui o
conceito de mais e menos, mas nenhuma técnica de adição e subtração, nossa
afirmação de que ‘6 + 2 = 5 + 3’ é totalmente absurda. Contar, para essa pessoa, é
algo inteiramente empírico, um ‘experimento’, e não o resultado de um cálculo.
Seu conceito de número é diferente do nosso, pois não é parte do que ele significa
por ‘8’ que esse número seja também ‘6 + 2’, ‘7 + 1’, ‘5 +3’ etc. Incluir as
operações aritméticas em seu sistema de contagem implica uma alteração em seu
conceito de número, pois não está implícito em seus conceitos de 7, 5 e 12, da
mesma forma que é implícito para nós, que 7 + 5 = 12, ou que 7 12 = -5. De
acordo com seu conceito, 12 não é a mesma coisa que 7 + 5, pois não existe tal
coisa, a menos que esses símbolos sejam integrados à sua técnica e encontrem um
uso.
160
BAKER; HACKER, 1985, p.320.
161
Recairíamos aqui no mesmo erro evolucionista de Frazer (Ver segundo capítulo desta
dissertação)
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87
Não é correto argumentar que se esse nativo, pertencente a uma outra
forma de vida distinta da nossa, atribui os mesmos significados que nós a ‘5’, ‘7’,
’12 etc., então, quer ele saiba ou não, 5 +7=12. Ao contrário, que ele atribui o
mesmo significado é manifesto em sua concordância de que 5+7=12 e em seu uso
dessa proposição como uma regra de representação. A afirmação de que ele
atribui o mesmo significado não é independente do seu reconhecimento de que
5+7=12.
Passemos agora aos outros exemplos de mensuração de Wittgenstein.
Podemos de fato chamar essas técnicas de mensuração? Baker e Hacker afirmam
que alguns tentaram argumentar que apenas poderemos ter certeza de que a
atividade daqueles que tentam medir com réguas elásticas é mesmo uma atividade
de mensuração se, quando confrontados com a variabilidade de seus resultados,
eles abandonarem a prática de medir com regras elásticas e adotarem a nossa
prática correta de mensurar com regras gidas. Quanto aos vendedores de lenha,
poderemos dizer corretamente, de acordo com essa concepção, que eles estão
calculando o valor da lenha se, quando mostrarmos a eles que há mais madeira em
uma pilha mais alta do que em uma mais baixa de mesma área, eles abandonarem
sua prática em favor de calcular o valor pela quantidade. Em resumo,
poderíamos dizer que eles empregam conceitos similares aos nossos conceitos de
mensuração se, quando os confrontarmos com os fatos, eles aceitarem a
superioridade de nossas técnicas. Mas essa resposta expressa justamente a
concepção que Wittgenstein estava tentando descartar, isto é, a idéia de que
nossos conceitos são os corretos, ou de que os significados são atávicos aos
símbolos, apesar de seu uso.
Para contestar essa visão, Baker e Hacker utilizam como exemplo a quinta
viagem de Gulliver, tal como descrita no clássico As Viagens de Gulliver (1726)
de Jonathan Swift. O personagem viaja para as terras além do pôr-do-sol, e, após
incríveis aventuras, retorna para a Inglaterra e narra suas experiências. Entre elas,
relata como os habitantes de uma estranha terra, os Esenapajs, marcavam o tempo.
At noon their clocks strikes nine, although they do not say that it is nine o’clock.
They say that it is the hour of the Horse. The next time the clock strikes, it strikes
one. This signifies that half an hour has passed. The next hour, the clock strikes
eight, and this the Esenapajs call the hour of the Sheep. But now, most strange to
say, the clock strikes two, to signify that a half an hour has passed! The hour of the
Monkey is signified by seven chimes, and the subsequent half an hour is struck only
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88
once. Strange to say, Gulliver continuous, the hour of the Cock is at sunset
(although cock crow at dawn) and is signaled by six bells. For only three hours
separate noon from sunset. At this point, something most strange occurs. A
rumbling occurs in the machine, and it starts ticking at a different rate, sometimes
faster than before, sometimes slower. The half hour is struck twice, and hour of the
Dog (five chimes) is followed (after a single chime) by the hour of the Boar (four
chimes). Midnight strikes nine, however, and subsequent hours are struck eight
(the Ox), seven (the Tiger), six (the Hare), which signals sunrise. At this point,
again, the clocks change their rate, moving slower or faster. It is altogether
curious, Gulliver observed, that the daytime hour are hardly ever the same length
as the night-time hours, sometimes being twice as long, and at other times only
half as long! Worse, the length of a daytime hour differs every fortnight, and so too
does the length of a night-time hour. So the time it takes to walk from Gulliver’s
dwelling to the Emperors Palace ten miles away may be one hour today, but two
hour tonight, or half an hour one day yet an hour and a half in six months’ time,
even though one walks at the same speed (which brave man, he carefully measured
using his own pocket watch!).
162
Embora pareça confuso e inadequado, esse método de medir o tempo, com
horas de diferentes durações, que variam durante dia e noite (e mesmo a duração
destes se altera a cada quinzena), foi o método japonês
163
adotado até 1873
164
. Os
japoneses, quando apresentados aos antigos relógios mecânicos europeus,
adaptaram esse mecanismo para que reproduzissem as rotações de forma que
marcassem as horas do dia e noite da maneira que consideravam adequadas ao
período do ano em que estavam.
Tal técnica de mensuração nos permite afirmar certas coisas que nossa
técnica não permite, assim como torna sem sentido algumas de nossas práticas.
Por exemplo, a idéia de que três horas podem demorar mais em determinadas
épocas do ano do que em outras nos pareceria absurda, assim como a nossa noção
de salário fixado por hora de trabalho seria impraticável de acordo com a técnica
deles.
Apesar dessas diferenças, não duvida de que seus relógios serviam para
mensurar o tempo, assim como também é um fato histórico que os japoneses não
aceitaram prontamente a ‘superioridade’ de nossas técnicas. On the contrary,
they adapted our mechanical clocks to their techniques. For their method of
measuring time served their purposes admirably’. Apenas quando o Japão se
industrializou e adotou novas formas de organização do trabalho, diferentes
métodos de produção e pagamento, a antiga técnica tornou-se inadequada.
162
SWIFT apud BAKER; HACKER.
163
Em inglês, Japanese ou, escrito espelhado, Esenapaj.
164
Cf. BAKER; HACKER, 1985.
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89
O mesmo se com os exemplos de Wittgenstein, que se tornam
compreensíveis se imaginarmos um contexto plausível e uma circunscrição
razoável da prática. Réguas elásticas poderiam ser úteis se usadas para medir
objetos em um mundo elástico, ou úteis para um vendedor de tecido que tenta
enganar seus clientes. Podemos ainda afirmar que os termos ‘mensurar’,
‘extensão’, ‘comprimento’, ‘distância’, ‘duração’ podem ser utilizado de forma
diferente de como usamos, podem significar diferentes coisas. Wittgenstein
insisted […] that units of measurement and methods of measurement are
conventional, responsible not to how things are in the world but only to our
practical requirements.”
165
.
Supomos que estruturas conceituais análogas, mas diferentes, são
impossíveis, pois levariam a contradições. A soma de 3 + 2 tem que resultar em 5,
pois se resultar em 6 ou 4 não é 3 + 2. Essa determinação pode ser correta para um
esquema dado, mas não significa que não possa haver uma aritmética em que 3 +
2 = 6, o que não quer dizer que esse ‘6’ corresponda àquele ‘5’. Ao contrário, esse
seria um cálculo diferente. Como afirmam Baker & Hacker, ‘3 + 2 = 5’ não é uma
verdade aritmética em si, pois o significado de tais signos só será definido pela
aritmética utilizada. In a calculus in which 3 + 2 = 6 the signs will have different
meanings, since they have a different arithmetic, a different pattern of internal
relations. It would not be useful for us, with our purposes. But circumstances can
be envisaged in which this technique might be useful for people with somewhat
different purposes than ours”
166
.
Poderíamos argumentar que esses exemplos de Wittgenstein tornam
inteligível que diferentes pessoas possam ter diferentes conceitos, mas não que
tais diferentes conceitos sejam necessariamente inteligíveis para nós. No entanto,
vimos exemplos, não hipotéticos, mas empíricos, que nos mostram que não
nada de ininteligível em modificar nossas técnicas, ou em ter diferentes técnicas
de contar, calcular ou mensurar.
What is unintelligible is having a different technique while adhering to the
present concepts of number, arithmetical operation, sameness and difference of
measurement. For the technique defines what it means to ‘go on in the same
way’, to ‘add 2’, ‘the series of even integers’. It is inconceivable that our rule ‘+
165
BAKER; HACKER, 1985, p.325.
166
Ibid, p.326.
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90
2’ should be followed differently, since the rule and what counts as its extension
are internally related. But a different calculus which resembled ours in many
respects might proceed differently. Of course, it would not involve our concepts
of two and of addition.
167
O que nos parece natural, que temos dificuldade de acreditar que poderia
ser diferente, é o fundamento para uma técnica. Mas o que é natural hoje pode ter
sido completamente estranho em outros tempos ou culturas. The plausibility of
Wittgenstein’s imaginary practice depends on how the background is filled in. It
is crude only when served up raw”.
4.2.UMA PROPOSTA DE ANÁLISE ETNOGRAFICAMENTE MOTIVADA
Vimos anteriormente que a determinação contextual do significado é uma
conquista interpretativa frágil e transitória, que permanece sempre sob a
dependência de transações dos participantes na comunicação
168
. Os significados
não são entidades estáticas, mas estruturas dinâmicas que emergem da interação
lingüística contextualizada. Até mesmo as categorias aparentemente mais óbvias e
fixas devem ser consideradas como dependentes da interpretação dos membros de
uma dada comunidade. O que dizemos e fazemos adquire significado somente
contra um pano de fundo de um acordo subjacente a contextos particulares.
Quando nossas interpretações estão descoladas de seus contextos e consensos
subjacentes, os significados tornam-se radicalmente indeterminados: todas as
possíveis interpretações tornam-se igualmente razoáveis ou dignas de crença. Não
podemos, a priori, descartar quaisquer interpretações semânticas,
independentemente de quão estranhas pareçam. No entanto, em contextos
lingüísticos e em atividades particulares, como vimos, muitas restrições que
limitam nossas negociações comunicativas, estreitando o conjunto de
possibilidades interpretativas admissíveis.
167
BAKER; HACKER, 1985, p. 327.
168
Essa fragilidade, como apontamos em capítulos anteriores, é um problema quando fomos
antes persuadidos por teorias fundacionalistas do significado. Se assumirmos que toda
interpretação é provisória, e que o significado, quando inserido em seu contexto, é determinado o
suficiente para que a comunicação ocorra de forma bem sucedida, a indeterminação radical deixa
de ser um problema.
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91
Não podemos ignorar interpretações de nossas palavras que fogem ao
padrão, ou fingir que elas não existem, pois descartar hipóteses alternativas de
interpretação simplesmente porque podem ameaçar nosso consenso de ação e a
inteligibilidade de nossas práticas seria dizer que nos recusamos a levá-las em
consideração simplesmente porque desejamos, arbitrariamente, manter o acordo
subjacente atual e preservar a ordem estabelecida a qualquer preço. “Não há
espaço no contextualismo de Wittgenstein para uma atitude conservadora no que
tange a inovações semânticas”
169
.
Recentemente, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro
170
, apoiado em
pesquisas etnográficas junto aos povos ameríndios, nos oferece uma possibilidade
bastante interessante de interpretação de estruturas alternativas de
representação
171
. Essa proposta, somada à sua aplicação por Martin Holbraad aos
‘termos mana’
172
, pode nos fornecer uma pista para esboçarmos uma sugestão de
análise conceitual, corrente que entrou em declínio nos anos pós-guerra, e que nas
últimas décadas têm se renovado ao aliar-se a outras correntes e disciplinas.
Passemos a ela.
4.2.1. A filosofia do nativo
O artigo ‘O Nativo Relativo’ (2002) de Eduardo Viveiros de Castro
começa afirmando:
169
MEDINA, 2007, p.119
170
VIVEIROS DE CASTRO, 2002. Utilizo-me aqui do pensamento de Viveiros de Castro como
icônico de um conjunto de idéias compartilhadas por certos antropólogos contemporâneos, entre os
quais o antropólogo norte-americano Roy Wagner e a britânica Marilyn Strathern.
171
Não pretendo com isso afirmar uma semelhança direta entre a teoria dos antropólogos e a de
Wittgenstein, nem tampouco defender a superioridade de uma sobre a outra, mas sim fazer uma
leitura dessas teorias antropológicas à luz das questões suscitadas pela filosofia de Wittgenstein.
Trata-se justamente de checar a sua comensurabilidade. É, pois, nesse ponto que o conteúdo dessa
dissertação (a alteridade e comensurabilidade) torna-se forma – este capítulo é, em si, uma
tentativa de comensurar duas metodologias distintas de comensuração de linguagens e culturas
diferentes entre si.
172
O Mana é um termo melanésio, um conceito generalizado de poder associado à idéia de
eficácia alcançada por algo mais do que os meios físicos comuns do homem. A discussão a
respeito dos chamados termos-mana foi lançada pela obra clássica de Marcel Mauss e Henri
Hubert, “Esboço de uma Teoria Geral da Magia”(1902-03). Os autores procuraram generalizar o
conceito tendo em mente que o mana seria o elemento básico que a magia e a religião tem em
comum, a saber, o poder milagroso. Encontraram-se analogias com mana em termos de outras
áreas orenda, wakan, manitou entre outros. O mana era tido como uma coisa de natureza não
pessoal, anônima e difusa, um “fluido vago e impessoal”, consequentemente uma noção
característica de uma fase pré-animistica da religião, proporcionando assim uma definição mínima
do mágico-religioso. (Ver SILVA, 1986[1964])
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92
O ‘antropólogo’ é alguém que discorre sobre o discurso de um ‘nativo’. O nativo
não precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco natural do
lugar onde o antropólogo o encontra; o antropólogo não carece ser
excessivamente civilizado, ou modernista, sequer estrangeiro ao povo sobre o
qual discorre. [...] O essencial é que o discurso do antropólogo (o ‘observador’)
estabeleça uma certa relação com o discurso do nativo (o ‘observado’).
173
A alteridade discursiva se apóia em um pressuposto de semelhança. “O
antropólogo e o nativo são entidades de mesma espécie e condição: são ambos
humanos, e estão ambos instalados em suas culturas respectivas, que podem,
eventualmente, ser a mesma”
174
. Mas mesmo quando o antropólogo e o nativo
compartilham a mesma cultura, a relação de sentido do discurso do antropólogo
com sua cultura e o do nativo com a dele é diferente. Nos termos em que
habitualmente se estabelece a relação entre esses discursos, o discurso do nativo é
aquele que exprime sua relação com sua cultura de forma natural, espontânea e
inconsciente, enquanto o do antropólogo é aquele capaz de exprimir sua cultura e
a do nativo de forma consciente e reflexiva. Essa diferença de posição não reflete
uma ‘natureza das coisas’, mas, poderíamos dizer, é definida pelas regras do ‘jogo
de linguagem’ em questão. Apesar da igualdade quanto à condição cultural, o
discurso do antropólogo assume certa vantagem epistemológica sobre o do nativo:
ele pretende explicar, traduzir e justificar o sentido desse discurso.
A proposta de Viveiros de Castro surge como tentativa de responder
questões como:
O que acontece se recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem
estratégica sobre o discurso do nativo? O que se passa quando o discurso do
nativo funciona, dentro do discurso do antropólogo, de modo a produzir
reciprocamente um efeito de conhecimento sobre esse discurso? [...] o que
acontece se o tradutor decidir trair sua própria língua? O que sucede se,
insatisfeitos com a mera igualdade passiva, ou de fato, entre os sujeitos desses
discursos, reivindicarmos uma igualdade ativa, ou de direito, entre os discursos
eles mesmos? Se a disparidade entre os sentidos do antropólogo e do nativo,
longe de neutralizada por tal equivalência [de condição cultural], for
internalizada, introduzida em ambos os discursos, e assim potencializada? Se, em
lugar de admitir complacentemente que somos todos nativos, levarmos às
últimas, ou devidas conseqüências a aposta oposta que somos todos
173
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.113.
174
Ibid., p.114.
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93
‘antropólogos’ [...], e não uns mais antropólogos que os outros, mas apenas cada
um a seu modo, isto é, de modos muito diferentes?
175
As regras do jogo antropológico implicam que o antropólogo ocupe uma
‘meta-posição’, uma ‘dupla função’, como analista e nativo, e o nativo ocupe
exclusivamente o papel de analisado. A proposta contextualista, tal como
apresentada por Wittgenstein, tendeu a sugerir que essa assimetria fosse superada
considerando-se todos (nós e os ‘outros’) como estando imersos em nossos
contextos particulares (como nativos, diriam os antropólogos), negando a
possibilidade de se produzir teoria sobre ‘os outros’ ou sobre si mesmos, e
conferindo a todos o papel de expectadores capazes de descrever as práticas
alheias ou próprias através do prisma de sua própria cultura. A corrente
antropológica aqui representada por Viveiros de Castro defende a solução oposta,
de que devemos considerar todos como ‘antropólogos’, atribuindo a todos o papel
de produtores de teoria. Se, para Wittgenstein, a compreensão de uma outra forma
de vida pode se dar em termos ‘nativos’ (compreendendo os usos e práticas de
forma contextualizada, sem acrescentar nada), para Viveiros de Castro o interesse
reside em compreender a outra cultura em termos duplamente ‘antropológicos’
(fazendo teoria sobre, ou com, a teoria do nativo).
O antropólogo tende a aproximar o nativo de si mesmo, acreditando que
seu objeto faz as mesmas associações que ele, que o nativo pensa como ele. “O
problema é que o nativo certamente pensa, como o antropólogo; mas, muito
provavelmente, ele não pensa como o antropólogo”
176
. Tal confronto entre
diferentes pensamentos (ou fazeres) deve poder produzir uma implicação mútua,
uma alteração dos discursos em jogo.
O problema de Viveiros de Castro seria o de saber o que é um ‘ponto de
vista’ para o nativo, isto é, qual é o conceito de ponto de vista presente nas
culturas amazônicas: assumindo que um ponto de vista nativo. A questão é
saber qual o ponto de vista nativo sobre o ponto de vista. Essa concepção aparece
como um ‘experimento de pensamentoque envolve uma dimensão de ‘ficção’.
Ainda que não possamos descobrir o ponto de vista do outro, pois nosso
conhecimento é mediado pelo nosso próprio, podemos alterar o nosso ponto de
vista em conseqüência do contato com o outro, produzindo um novo.
175
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.115.
176
Ibid., p. 119.
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94
Parafraseando Viveiros de Castro
177
, se a filosofia ‘real’ (como a de Wittgenstein
e de outros) abunda em selvagens imaginários, a filosofia visada pela antropologia
é uma filosofia ‘imaginária’ com selvagens reais. Não obstante, o que não está
dito, e é justamente que se encontra um elo possível entre a teoria filosófica
contextualista e essa proposta antropológica, é que a condição de possibilidade
para se falar nos conceitos indígenas foi uma experiência prévia de campo, em
que o antropólogo experimenta uma nova forma de vida, que negocia com os
nativos.
Viveiros de Castro afirma que o objeto de seu trabalho não é, nem um
estudo de ‘mentalidade primitiva’, nem uma análise dos ‘processos cognitivos’
indígenas.
Meu objeto é menos o modo de pensar indígena que os objetos desse pensar, o
mundo possível que seus conceitos projetam. Não se trata, tampouco, de reduzir a
antropologia a uma série de ensaios etnossociológicos sobre visões de mundo. [...]
Não se trata, por fim, de propor uma interpretação do pensamento ameríndio,
mas de realizar uma experimentação com ele, e portanto com o nosso.
178
Como afirma Roy Wagner, every understanding of another culture is an
experiment with one’s own
179
.
Considerar as idéias indígenas como conceitos é afirmar uma intenção
antipsicologista. Os conceitos não são estados ou atributos mentais, eles não estão
prontos na mente, eles são inventados. São esses conceitos indígenas que diferem
dos nossos, e não seu processo mental, suas estruturas cognitivas, que se
assemelham a de qualquer humano. Não é o caso de imaginar que os índios sejam
dotados de uma neurofisiologia particular, que processa o diverso de maneira
peculiar. Eles pensam, exatamente como nós; mas o que eles pensam, isto é, os
conceitos que criam, as descrições que produzem, são muito diferentes dos
nossos. Assim, o mundo descrito por esses conceitos parece muito diverso do
nosso. O objeto da investigação, portanto, deve ser os conceitos indígenas.
Viveiros de Castro está interessado nos conceitos que os índios inventam, e em
inventar algo com isso.
177
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 127.
178
Ibid., p. 123-4.
179
ROY WAGNER apud VIVEIROS DE CASTRO.
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95
Como colocado acima, a experiência proposta por Viveiros de Castro
começa por propor a equivalência entre os discursos do antropólogo e do nativo,
bem como por afirmar a condição mutuamente constituinte desses discursos, que
existem como tais ao entrarem em relação entre si. Acrescento que essa não é
apenas uma relação de conhecimento, mas também, simultânea e intrinsecamente,
uma relação entre formas de vida. Os conceitos antropológicos são
completamente relacionais:
Eles não são, nem reflexos verídicos da cultura do nativo (o sonho positivista),
nem projeções ilusórias da cultura do antropólogo (o pesadelo construcionista). O
que eles refletem é uma relação de inteligibilidade entre as duas culturas, e o que
eles projetam são as duas culturas como seus pressupostos imaginados
180
.
Assim, vemos que conceitos como mana, totem, kula, tabu e outros
utilizados pela teoria antropológica se originam do esforço imaginativo da própria
cultura que essa teoria procura entender. Viveiros de Castro acredita que está
nessa “sinergia entre concepções e práticas provenientes dos mundos do ‘sujeito’
e do ‘objeto’”
181
a originalidade da antropologia.
Se nos seus primórdios a antropologia
182
evocou um padrão único de
racionalidade – o padrão determinado pela ciência ocidental – para falar das
concepções dos povos estudados, desqualificando-as como erro ou ilusão ou
julgando-as como mais ou menos homogêneas à ciência, agora afirma que a
imagem da ciência não é a única, nem a melhor, maneira de nos relacionarmos
com a atividade intelectual dos povos estranhos à tradição ocidental, e nem
mesmo com a nossa própria tradição.
183
O padrão de comparação que é defendido por Viveiros de Castro é que
tomemos as concepções nativas, não como objetos ou fenômenos a serem
estudados, mas como teorias de mesma autoridade que nossas próprias teorias
antropológicas ou filosóficas, e que podem mesmo ampliar os horizontes de nossa
filosofia. Trata-se de o afirmar a ciência, ou qualquer outra concepção, como
180
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.126.
181
Ibid., p.126.
182
A antropologia de Frazer, que tratamos no capítulo 2, é expoente dessa concepção
antropológica clássica.
183
A predominância do padrão científico para julgar conceitos e práticas foi alvo de crítica de
Wittgenstein, no contexto de suas investidas contra Frazer. Como oposição a esse método de
descrição, o filósofo desenvolve a noção de “representação perspícua”. (Cf. WITTGENSTEIN,
1993 [1967]; e também o capítulo 2 dessa dissertação).
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padrão do pensamento, mas estabelecer como paradigma a própria relação entre
os discursos. Em outras palavras, os critérios da ciência não ditam as regras do
jogo (de linguagem) porque eles mesmos estão em jogo.
A estratégia antropológica advogada por Viveiros de Castro, defende que:
Agora não se trataria mais, ou apenas, da descrição antropológica do kula
(enquanto forma melanésia de socialidade), mas do kula enquanto descrição
melanésia (da ‘socialidade’ como forma antropológica); ou ainda, seria preciso
continuar a compreender a “teologia australiana”, mas agora como constituindo
ela própria um dispositivo de compreensão; do mesmo modo, os complexos
sistemas de aliança ou de posse da terra deveriam ser vistos como imaginações
sociológicas indígenas[...] É preciso saber transformar as concepções em
conceitos, extraí-los delas e devolve-los a elas.
184
A equivalência entre o antropólogo e o nativo, decorrente de sua comum
condição cultural, implica que a aproximação a uma outra cultura pode se dar
nos termos daquela do antropólogo. Disso Roy Wagner conclui que o
conhecimento antropológico se define por sua objetividade relativa”. Isto não
significa uma objetividade deficiente ou parcial, mas uma objetividade
intrinsecamente relacional, como se depreende do que se segue:
A idéia de cultura [...] coloca o pesquisador em posição de igualdade com aquele
que ele pesquisa: ambos ‘pertencem a uma cultura’. Como cada cultura pode ser
vista como uma manifestação específica [...] do fenômeno humano, e como
jamais se descobriu um método infalível de ‘graduar’ diferentes culturas e
arranjá-las em tipos naturais, assumimos que cada cultura, como tal, é
equivalente a qualquer outra. Tal postulado chama-se ‘relatividade cultural’. [...]
A combinação dessas duas implicações da idéia de cultura, isto é, o fato de que os
antropólogos pertencemos a uma cultura (objetividade relativa) e que somos
obrigados a postular que todas as culturas se equivalem (relatividade cultural),
leva-nos a uma proposição geral a respeito do estudo da cultura. Como atesta a
repetição da idéia de ‘relativo’, a apreensão de outra cultura envolve o
relacionamento [relationship] entre duas variedades do fenômeno humano; ela
visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma compreensão que inclua
a ambas. A idéia de ‘relacionamento’ é importante aqui porque é mais apropriada
a essa aproximação de duas entidades (ou pontos de vista) equivalentes que
noções como análise’ ou ‘exame’, que traem uma pretensão a uma objetividade
absoluta.
185
Essa colocação de Roy Wagner é interessante, pois dela podemos
apreender que a igualdade de condições entre nativo e antropólogo implica que a
184
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.128.
185
ROY WAGNER apud VIVEIROS DE CASTRO.
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97
compreensão de outra cultura pode se dar na relação. Negada a superioridade
do antropólogo sobre o nativo, ele também não pode subtrair-se de sua cultura
para compreender o outro. O que se tem é uma relação entre iguais, e não uma
determinação de uma pelos termos da outra. O antropólogo pode entender o
nativo na medida em que estabelece um elo com suas formas de vida, mas terá
estabelecido um “terceiro contexto”, que não é mais o seu, nem o do nativo, mas
da relação entre ambos. Essa relação não é apenas intelectual, mas uma relação de
jogos lingüísticos e práticas compartilhadas.
Voltemos à questão sobre o que aconteceria se recusássemos a vantagem
epistemológica do discurso do antropólogo sobre o do nativo; se entendêssemos a
relação entre eles como suscitando uma modificação, necessariamente recíproca,
nos termos por ela relacionados. O que acontece quando o propósito do
antropólogo deixa de ser o de explicar, interpretar, contextualizar, racionalizar o
discurso nativo, como pretendeu Frazer, por exemplo, e passa a ser o de utilizar,
de verificar os efeitos que ele pode produzir no nosso? O que é pensar o
pensamento nativo?
(...) é, para começar, não neutralizar. É, por exemplo, pôr entre parênteses a
questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da
espécie humana, explica-se por certos modos de transmissão social do
conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida
funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de
neutralização do pensamento alheio. Suspender tal questão é decidir, por
exemplo, pensar o outro pensamento apenas (digamos assim).
186
De fato, podemos concordar que para compreendermos um outro
pensamento, não podemos sobredeterminá-lo por nenhuma dessas questões. O que
equivaleria a uma redução. No entanto, o conjunto dessas questões oferece um
ponto de partida para, por um conjunto de comparações e aproximações, tornar os
conceitos e práticas das diferentes culturas relacionadas comensuráveis.
Ao criticar a solução antropológica clássica para o problema de como
compreender o sentido de afirmações nativas, Viveiros de Castro leva adiante sua
proposta, utilizando-a para pensar a afirmação indígena: “os pecaris são
humanos”. A ‘solução clássica’ a essa questão, de acordo com Viveiros de Castro,
varia em torno de um pressuposto comum, a saber, que, se ‘levamos a sério’ os
186
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.129.
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nativos quando dizem ou fazem coisas que os antropólogos tendem a considerar
irracionais, precisamos fazê-lo apesar daquilo que os nativos dizem ou fazem.
Incapazes de admitir que os pecaris possam ser humanos, os antropólogos
concluem que sua única opção é produzir uma explicação de porque os humanos
acreditam em proposições como essa, visto que são falsas ou vazias.
Levar a sério uma afirmação como “os pecaris são humanos”, nesse caso,
consistiria em mostrar como certos humanos podem levá-la a sério, e mesmo
acreditar nela, sem que se mostrem, com isso, irracionais e, naturalmente, sem
que os pecaris se mostrem, por isso humanos. [...] Essa solução [...] parece
implicar que, para levar os índios a sério, quando afirmam coisas como “os
pecaris são humanos”, é preciso não acreditar no que eles dizem, visto que se o
fizéssemos, não estaríamos nos levando a sério.
187
A afirmação de que pecaris são humanos interessa porque diz algo sobre
os humanos que dizem isso. Com essa afirmação, esses humanos estão dizendo
não somente algo sobre os pecaris, mas também algo sobre o que é, para eles,
‘humano’.
O pressuposto crucial da concepção antropológica clássica é que o
desentendimento dos antropólogos quanto à proposição dos nativos se porque
quando os antropólogos consideram uma frase nativa, eles supõem que os nativos
atribuem o mesmo significado que eles aos conceitos utilizados. Quando os
antropólogos dizem “os pecaris não são humanos”, acreditam que têm em mente
os mesmos conceitos que têm os nativos ao dizerem que os pecaris são humanos.
Do contrário, acreditam que não haveria como julgar a veracidade ou falsidade
dos enunciados dos nativos. Embora os conceitos de “pecari” e “humano” sejam
tão distintos para eles quanto o são para nós, o equívoco derivaria de uma
aplicação dos conceitos, fundindo-os em enunciados descabidos do tipo “os
pecaris são humanos”. A tarefa da análise antropológica clássica, portanto, seria
explicar por que os nativos poderiam ‘entender errado’ seus próprios conceitos, o
que os levaria a cometer tais erros.
Essa abordagem clássica não é insustentável, mas é bastante implausível.
Precisaríamos de uma boa razão para esperar que gente tão diferente de nós
quanto os Ameríndios, Melanésios ou os Maori compartilhassem nossos
187
VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 134.
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conceitos, ou, inversamente, que conceitos tão peculiarmente indígenas, como
‘pecari’, mana’, haunos fossem evidentes. Também precisaríamos de uma boa
razão que explicasse porque os índios compreendem de modo sistematicamente
errado as implicações empíricas de alguns desses conceitos.
Viveiros de Castro nos aponta uma saída: e se estipulássemos que a
perplexidade do analista diante dos enunciados nativos não é causada por uma
discordância epistemológica acerca da aplicação correta de certos conceitos
compartilhados (ou seja, uma diferença de opinião), mas, antes, pela alteridade
dos conceitos envolvidos? Se a posição clássica resulta da idéia de que termos
como ‘pecari’ e ‘humano’ têm a mesma intensão para os nativos e para o analista,
então a alternativa proposta por Viveiros de Castro é sua negação: os termos têm
intensões diferentes para o analista e para o nativo e é por isso que os
enunciados nativos soam estranho ao analista. Ao recusar a primeira
implausibilidade da abordagem clássica a saber, que os conceitos dos nativos
têm que ser basicamente os mesmos que os nossos desfaz também a segunda
isto é, que os nativos aplicam mal seus próprios conceitos. Uma vez aberta a
possibilidade de que os conceitos nativos possam ser diferentes dos nossos,
enunciados como “os pecaris são humanos” não precisam mais ser vistos como
tentativas equivocadas de ‘aplicar’ termos predefinidos a referentes fixos no
mundo, ou seja, de acordo com Viveiros de Castro, de determinar sua extensão.
Ao contrário, eles podem ser vistos como tentativas, por parte dos nativos, de
expressar o sentido de seus próprios conceitos, ou seja, de defini-los
intensionalmente.
Embora uma resposta contextualista a uma questão semelhante a essa
chegasse a conclusões parecidas
188
que a incompreensão se deve a alteridade de
conceitos, e não a uma aplicação desses conceitos por parte dos nativos o
caminho adotado por Wittgenstein não poderia ser através da distinção entre
“intensão” e “extensão”, posto que esta distinção supõe que os conceitos adquirem
significados como formas de descrição do mundo. A resposta contextualista
recorre à noção de que os conceitos adquirem seus significados na prática, no jogo
de linguagem em que estão inseridos e, portanto, se a prática muda, se o acordo
188
Temos prova disso na discussão do começo desse capítulo sobre a abordagem de Wittgenstein
de formas de representação alternativas, e na discussão entre Davidson e Hacker do terceiro
capítulo.
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entre os participantes muda, os conceitos também tem que mudar. Trata-se de
afirmar que os conceitos adquirem significado como formas de ação no mundo, e
não como formas de descrição.
O segundo ponto a ser destacado da crítica de Viveiros de Castro à
antropologia clássica é que ela sugere um programa analítico que vai além de uma
mera inversão da imagem ‘clássica’. O sentido do enunciado nativo torna-se o
objeto principal da análise antropológica. Em lugar de enunciar as condições do
erro nativo, a tarefa passa a ser a de criar novos conceitos.
Holbraad chama nossa atenção para o fato de que o desafio, a dificuldade,
dessa proposta é que devemos criar novos conceitos (nossos) a partir de conceitos
para nós igualmente novos (os dos nativos), o que seria quase como uma criação
ex nihilo... No entanto, Holbraad, instantaneamente após colocar o problema,
refuta-o. Afirma que as ferramentas metodológicas necessárias para os
experimentos propostos por Viveiros de Castro podem, de fato, ser extraídas do
contraste entre os enunciados nativos e nossos pressupostos habituais. De acordo
com as “regras do jogo” de Viveiros de Castro, devemos aceitar que começamos
no escuro, sem nada saber do sentido dos conceitos nativos. Mas conhecemos, de
fato, duas coisas. Em primeiro lugar, conhecemos o sentido de nossos próprios
conceitos ordinários (por exemplo, que os pecaris são animais suiformes da
América tropical). Em segundo lugar, sabemos que um sintoma da diferença entre
nossos conceitos e os dos nativos é que, em certos contextos, nossas traduções dos
conceitos nativos aparecem como enunciações de falsidades.
Temos aqui os rudimentos de um método que permite que nos
aproximemos de uma compreensão dos conceitos e enunciados nativos. Pois, uma
coisa que podemos fazer é transformar o significado de nossos próprios conceitos.
(‘pecari’, ‘humano’ etc.) por meio da análise conceitual, transformando-os de tal
modo que, quando usados para explicitar enunciados nativos, eles produzam
enunciados verdadeiros. A promessa aqui, afirma Holbraad, não é de nos
aproximarmos dos conceitos nativos eles mesmos, mas de produzir equivalentes
aproximados deles, de forma que possamos, nós mesmos, dizer que os pecaris são
humanos. O objetivo, portanto, é que, através da análise, possamos chegar a novos
conceitos.
Martin Holbraad desenvolve uma aplicação de seu método aos termos-
mana. Com isso, apresenta uma possibilidade interpretativa desses termos que nos
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101
leva a uma concretização do projeto de ‘expansão de nossas categorias analíticas’
delineado acima. Esse projeto, ressalte-se, não pretende ser uma aplicação da
concepção wittgensteiniana, mas, ao contrário, é a própria diferença entre as
concepções que importa, pois, como vimos, é na relação entre diferentes que
nasce o novo, aparentado das duas partes, e que pode servir para pensar a ambas.
Ao estudar a cosmologia do oráculo de Ifá cubano
189
e a gramática dos
termos-mana, Holbraad demonstra que estes termos não podem ser articulados
através da distinção comum entre conceitos e coisas e considera a possibilidade de
que a etnografia do mana possa ditar uma estrutura analítica diferente uma que
além, não apenas da distinção entre conceitos e coisas, mas também de
algumas outras antinomias recorrentes relacionadas ao termo, como: força e ação;
qualidade e estado; substantivo, adjetivo e verbo; abstrato e concreto; onipresente
e localizado. Aqui o objetivo de Holbraad é travar uma discussão teórica sobre o
mana para relacioná-la com a possibilidade de rever suposições próprias aos
‘objetos materiais’ ou ‘coisas’. Em particular, argumenta que os termos-mana nos
propiciam uma resistência analítica à suposição comum de que ‘coisas’ devem
necessariamente ser pensadas como ontologicamente distintas de conceitos’
190
.
Tal movimento é possível apenas porque o mana rompe sistematicamente com
essa distinção: ele é tanto coisa quanto conceito. O autor questiona então se pensar
através desses termos pode nos fornecer um ponto de vista em que não
precisemos mais fazer essa distinção. Might there be a frame for analysis in
which mana does not register as an ontological anomaly, as it does when we say –
surprised – that it is both thing and concept?
191
A abordagem de Martin Holbraad dos termos-mana contrasta com as
teorias antropológicas anteriores. O debate da antropologia francesa sobre o mana
ligava-se a uma premissa comum, a saber, aquela de que a dificuldade de
definição do mana sua ‘singular ambigüidade’ era devida ao que foi chamado
189
O Ifá cubano é um culto masculino de origem leste africana estudado por Holbraad na cidade
de Havana. A aparentemente nebulosa evocação da divinação do Ifá à noção de aché’, na qual
foca, apresenta ‘anomalias’ análogas a que os antropólogos vêm associando ao mana.
190
Neste sentido, a argumentação de Holbraad sobre o mana é diretamente inspirada pela de
Mauss sobre o hau Maori. Se a noção de hau proporcionou uma alavanca para negar que a
distinção entre coisas e pessoas é axiomática, então os termos-mana fazem o mesmo pela distinção
entre coisas e conceitos.
191
HOLBRAAD, 2007, p.226.
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102
de ‘excesso de significação’
192
. Para os antropólogos franceses, as ‘contradições’
implicadas pelos temos-mana não eram um engano etnográfico, mas um dado
etnográfico. Afirmavam: o mana é que é confuso, não nossa compreensão a seu
respeito. Lévi-Strauss sugeriu que a questão colocada aos antropólogos pelos
termos-mana era o problema das “antinomias, aparentemente insolúveis, ligadas a
essa noção
193
. O ‘excesso’ do mana foi desde o começo considerado como uma
transgressão sistemática das distinções que se esperava que fossem axiomáticas.
Para Lévi-Strauss a intriga a respeito das antinomias que os temos-mana
possuem se deu por conta da expectativa equivocada de que, embora ambíguo e
difícil de definir, o sentido de tais termos poderia ser identificado com referência
ao fenômeno (ou ao menos ao campo dos fenômenos) que eles significam.
Segundo uma premissa estruturalista, a questão da imprecisão da definição
do mana não pode ser resolvida recorrendo ao suposto fenômeno ambíguo que ele
significa, mas, ao contrário, tem que ser vista em termos de relações entre o mana
e outros significantes. Então, os termos-mana não teriam uma posição fixa dentro
da estrutura semiótica indígena, consistindo em uma série de fluidas noções que
fundem-se mutuamente. Eles são ‘significantes flutuantes’ que podem se mover
de uma posição semiótica para outra, precisamente porque, em si mesmos, eles
não têm nenhum sentido. Lévi-Strauss supostamente esclarece, portanto, a questão
evidenciada por Mauss das antinomias ligadas aos termos-mana, que tanto
incomodou e impressionou os etnógrafos:
força e ão; qualidade e estado; substantivo, adjetivo e verbo ao mesmo tempo;
abstrata e concreta; onipresente e localizada. E, de fato, o mana é tudo isso ao
mesmo tempo; mas não é assim, precisamente porque ele não é nada disso?
Porque ele é simples forma ou, mais exatamente, mbolo em estado puro,
portanto suscetível de assumir qualquer conteúdo simbólico? Nesse sistema de
192
“[E]m qualquer outra parte, e constantemente ainda entre nós mesmos (e certamente por muito
tempo), mantém-se uma situação fundamental e que pertence à condição humana, a saber, que o
homem dispõe desde sua origem de uma integralidade de significante que lhe é muito difícil alocar
a um significado, dado como tal sem ser no entanto conhecido. sempre uma inadequação entre
os dois, assimilável apenas para o entendimento divino, e que resulta na existência de uma
superabundância de significante em relação aos significados nos quais ela pode colocar-se. Em seu
esforço de compreender o mundo, o homem dispõe assim sempre de um excedente de significação
(que ele reparte entre as coisas segundo leis do pensamento simbólico que compete aos etnólogos e
aos lingüistas estudar). Essa distribuição de uma ração suplementar se podemos nos exprimir
desse modo é absolutamente necessária para que, no total, o significante disponível e o
significado assinalado permaneçam entre si na relação de
complementaridade que é a condição
mesma do exercício do pensamento simbólico”. LÉVI-STRAUSS, 2003[1950], p.42-3.
193
Ibid., p.43.
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símbolos que toda cosmologia constitui, ele seria simplesmente um valor
simbólico zero, isto é, um signo que marca a necessidade de um conteúdo
simbólico suplementar àquele que pesa sobre o significado, mas que pode ser
um valor qualquer, com a condição de fazer parte ainda da reserva disponível e de
já não ser, como dizem os fonólogos, um termo de grupo.
194
Assim, o mana seria uma forma simples, ou, para ser mais preciso, um
símbolo em seu estado puro, capaz de assumir qualquer conteúdo simbólico.
Essa concepção estruturalista apresenta uma ruptura com a concepção
referencialista de significado, segundo a qual toda palavra é um nome que possui
um referente e, portanto, não poderia haver algo como uma palavra vazia. A
concepção defendida por Holbraad, por sua vez, se opõe tanto ao referencialismo
quanto ao estruturalismo. A estratégia de Holbraad, que argumenta pela
possibilidade de modificação dos conceitos analíticos pelo material etnográfico,
vai de encontro ao estruturalismo de Lévi-Strauss, que trata pacificamente a
ambigüidade transgressiva do mana em termos como ‘flutuante’, afirmando que o
mana não tem nenhum sentido, que ele é ora significante, ora significado,
dissolvendo assim, a ambigüidade. Mas o mana, para Holbraad, é significante e
significado, que é apenas uma variação de outras famosas ‘antinomias’ do mana,
como concreto e abstrato, e coisa e conceito. O mana funde noções de
pensamento abstrato, propriedade concreta e agência espiritual. Por isso, sua
explicação não pode ser expressa em termos de categorias rígidas e abstratas, ao
contrário, requer um repertório conceitual que ultrapasse essas fronteiras.
A análise de Lévy-Bruhl sobre os termos-mana, citada por Holbraad,
afirma que “primitive representations [must] obey some other system of logic than
the one which governs our own understanding
195
. Então, a tarefa da analise é
mapear este sistema explorando como as representações primitivas são
constituídas
196
. Lévy-Bruhl afirma: “In ‘primitive mentality,’ […] ‘objects, beings,
phenomena can be […] both themselves and something other than themselves.’
The reason why we find this ‘incomprehensible’ is that the law of contradiction
governs our logic, whereas primitive mentality is ‘indifferent’ to it
197
. Ele
194
LÉVI-STRAUSS, 2003[1950], p.43.
195
LÉVY-BRUHL apud HOLBRAAD.
196
Para Lévy-Bruhl a dificuldade de compreender os termos-mana não está no fenômeno e nem
nas relações internas à linguagem. O problema está na lógica (ou pré-lógica) subjacente à
linguagem dos nativos.
197
LÉVY-BRUHL apud HOLBRAAD.
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104
procura mostrar que esse princípio (ou negação desse princípio) o é apenas
exemplificado em todos os aspectos da vida primitiva, mas também é o que
confere a elas coerência. Partindo de um axioma familiar (a lei da contradição),
demonstra como sua negação a qual produz uma fusão de nossas distinções
axiomáticas, incluindo aquela entre conceitos e coisas – aparece coerentemente na
vida primitiva. Para Holbraad, o que Lévy-Bruhl não explora é como a etnografia
pode servir para elaborar um sistema alternativo de axiomas que além de
apenas constatar a insuficiência do nosso próprio sistema para compreensão dos
conceitos nativos. A questão a ser colocada é: “se o mana não obedece a lógica da
contradição, então, a que lógica obedece?”. Devemos passar da simples negação
para a criação de novos axiomas. Holbraad persegue essa tarefa com referência ao
aché, variação Afro-Cubana do termo mana.
Após apresentar em seu artigo detalhada etnografia do Ifá Cubano,
Holbraad chega à categoria motilidade
198
. A motilidade não apenas pressupõe o
colapso da divisão conceito/coisa, mas fornece sua justificativa lógica. A
motilidade provoca a idéia de que diferenças ontológicas não implicam
separações, mas ao contrário, transformações intensivas e ‘auto-reguladas’.
Assim, em um universo lógico motivo, conceitos podem ser coisas e coisas podem
ser conceitos. Tudo que se precisa é parar de pensar em conceitos e coisas como
entidades auto-idênticas e começar a imaginá-las como movimentos auto-
diferenciais.
Em resumo, se a lição da história da teoria-mana é que o mana vai sempre
superar os axiomas analíticos que se impõem sobre ele, então, o desafio proposto
é utilizar potencial transgressivo do mana para alcançar novas saídas analíticas
pensando não ‘sobre ele’, mas ‘através dele’.
Holbraad chega através de uma investigação antropológica a conceitos que,
para ele, parecem solucionar o problema posto pelas antinomias transgredidas
pelos termos-mana. No entanto, o interesse que tem aqui o seu trabalho não se
deve às suas conclusões, mas antes ao próprio método que emprega. Holbraad não
se contenta em utilizar sua prática de campo para, por uma descrição dos
contextos em que o termo aché aparece nos cultos afro-cubanos, dissolver os
supostos problemas que surgem a um primeiro contato com o termo, mas antes
198
No original em inglês Motility.
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procura estabelecer uma mediação entre tal descrição e os problemas postos por
sua prática teórica de antropólogo, que opera por conceitos tão abstratos como
termos-mana. Desse encontro surge uma nova inteligibilidade que pode ser útil à
filosofia.
Of course, if part of the original attraction of mana-terms to anthropologists was
their peculiarly double universality semantic breadth (‘mana is everywhere’,
said the native) coupled with geographical diffusion (‘mana-terms are
everywhere’, replied the anthropologist) it is hardly surprising that these
concepts should still feature in diverse ethnographic accounts of indigenous
cosmologies. Mana is ethnographically unavoidable
199
.
Para uma filosofia etnograficamente motivada o interesse está, por assim
dizer, em analisar as diferenças entres os modos de emprego que cada qual (nativo
e antropólogo) empresta ao seu “mana”.
199
HOLBRAAD, 2007, p.223.
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CONCLUSÃO
Ao longo desse trabalho estabelecemos um diálogo entre a Filosofia
Analítica e a Antropologia, apontando alguns pontos de inter-fecundação entre as
duas disciplinas. Aquela, se num primeiro momento surge com o objetivo de
clarificar nossa linguagem com base em uma estrutura ideal universal, passa a ser
confrontada com uma diversidade de formas lingüísticas, com uma multiplicidade
de usos e práticas lingüísticas não equacionáveis a um sistema comum. Assim, a
noção de um sistema unitário de linguagem fragmenta-se em inúmeros jogos de
linguagem, que devem ser compreendidos de acordo com a forma de vida na qual
se inserem.
Essa concepção contextualista da linguagem é introduzida na Filosofia
Analítica por um de seus maiores expoentes, o filósofo Ludwig Wittgenstein.
Este, que na sua fase mais jovem havia defendido uma forma de referencialismo,
que supunha uma relação bi-unívoca entre um termo e o objeto simples que
nomeia, em sua fase posterior passa a defender uma autonomia da gramática que
regula o uso de nossas expressões ela não mais se refere à suposta essência da
realidade, mas sim à aplicação de conceitos, ao uso correto das palavras. Ela
constitui nossa forma de representação, nosso modo de ver as coisas. Uma
proposição assume a função de regra gramatical se é empregada como padrão de
uso correto de expressões, mas seu estatuto lógico pode mudar de acordo com
nosso modo de utilizá-la. “Proposições empíricas são ‘solidificadas’ e
transformadas em regras, e regras perdem seu estatuto privilegiado e são
abandonadas”
200
.
A abertura na obra de Wittgenstein para uma concepção contextual da
linguagem e para a relatividade de formas de representação se deu, em parte, por
seu contato com a antropologia. Ao ler a obra do antropólogo James Frazer, o
filósofo desenvolveu críticas a ela que prefiguram algumas das concepções
características da segunda fase de sua filosofia. As tentativas de Frazer de
200
GLOCK, 1998[1996], p.172.
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interpretar as crenças nativas incorrem, aos olhos de Wittgenstein, em graves
equívocos. A narrativa do antropólogo das crenças e ritos mágicos como sendo
aplicações errôneas de princípios básicos do pensamento leva à crítica de
Wittgenstein de que essas concepções não podem ser consideradas erradas em si
mesmas, mas apenas quando se pretende explicá-las através de paradigmas
exteriores a elas. É a própria tentativa de Frazer de explicar a magia através de
padrões científico-causais, bem como a sua suposição de um esquema linear no
qual a ciência estaria num estágio evolutivo mais avançado do que a magia, que
constituem um ‘erro’, e não a prática mágica em si. A maneira científico-causal de
explicação é apenas uma forma de organizar os dados, no entanto, não é mais
correta do que qualquer outra, de acordo com o filósofo.
Em contrapartida, Wittgenstein defende que devemos apenas descrever os
fatos, apontando algumas conexões que estabelecemos entre os fenômenos da
experiência, de forma que nos possibilite chegar a uma compreensão dos critérios
que utilizamos para conectar as coisas no mundo. A essa forma de descrição, que
não deve acrescentar nenhuma explicação, Wittgenstein chama de ‘representação
perspícua’. Ela não pretende estabelecer “a ordem” de nossas conexões, mas
apenas apontar “uma ordem” estabelecida para cada caso específico. O filósofo
afirma ainda que o fato de Frazer utilizar conceitos característicos de nossa
própria cultura para explicar os nativos implica em erros, dado que cada conceito
deriva seu significado do papel que desempenha em sua cultura; além disso,
implica afirmar que deve haver algo em comum entre esses conceitos para que
possam ser ‘equacionados’.
Podemos deduzir dessa discussão alguns pontos importantes da concepção
wittgensteiniana para tratar da comensurabilidade entre diferentes culturas e
práticas lingüísticas. Primeiramente, devemos levar em consideração o caráter
contextual do significado, que vai contra a idéia de um fundacionalismo
semântico. A partir desta concepção contextualista afirma-se que nossos
significados são determinados o suficiente para que uma prática comunicativa
possa ocorrer com sucesso, embora ainda existam alguns graus de indeterminação.
O significado é determinado de acordo com o contexto, pelo papel que o termo
desempenha no ato comunicativo, pelas técnicas de uso que os falantes de uma
comunidade compartilham. Dessa forma, a compreensão dos conceitos só pode se
dar sobre o pano de fundo de uma forma de vida compartilhada.
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A concepção acima defendida suscita o problema da tradução entre
linguagens e compreensão de diferentes culturas. Dado que os significados não
são fixos, determinados por uma estrutura universal, eles podem ser interpretados
de diferentes maneiras de acordo com o uso. Como podemos então compreender a
linguagem de uma cultura diferente da nossa? De acordo com Wittgenstein é
necessária a convergência de padrões comportamentais, de certas capacidades
perceptuais e mentais humanas básicas. Tal requisição de um “solo comum” de
comportamentos, no entanto, não impede uma diversidade de formas de
representação, jogos de linguagem e formas de vida.
Essa questão da racionalidade, tradução e comensurabilidade de culturas e
práticas lingüísticas foi (e ainda é) amplamente discutida. Podemos delinear, de
forma geral, duas linhas de argumentação nas quais sucessores de Wittgenstein se
dividiram: os ‘unificadores’ e os ‘relativistas’. Cada um a seu modo, discutiram a
possibilidade de comensuração de diferentes culturas e formas de representação.
Essa discussão, em parte motivada por Wittgenstein, foi incorporada no
pensamento antropológico e filosófico atual.
Num último momento, passamos então a propor uma nova possibilidade
de interlocução entre a filosofia analítica e antropologia, dado que a anterior gerou
frutos tão importantes. O que se pretendeu com isso foi pensar em novas
transformações e rupturas nessas duas disciplinas, e principalmente, pensar em
novas possibilidades para a filosofia analítica, tanto de método, quanto de objeto,
posto que de acordo com o que afirma a proposta antropológica apresentada, a
relação entre contextos gera um novo contexto, da relação entre diferentes
empregos de palavras surgem novos conceitos. O objetivo de tal proposta não foi
o de definir um novo método de análise ou de comensurabilidade de culturas e
formas de representação através de uma comparação/junção dos pensamentos aqui
apresentados, mas apenas apresentá-los para que, a maneira da representação
perspícua buscada por Wittgenstein, possamos perceber algumas conexões que
nos levem a alguns insights, evitando explicações que não se apresentem como
meras possibilidades interpretativas.
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