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VANEZA APARECIDA DE FIGUEIREDO VASCONCELLOS
A POLIFONIA NAS CHARGES DE OLDACK ESTEVES:
CARNAVALIZAÇÃO, TRANSTEXTUALIDADE,
TRANSGRESSÃO
BELO HORIZONTE
2006
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VANEZA APARECIDA DE FIGUEIREDO VASCONCELLOS
A POLIFONIA NAS CHARGES DE OLDACK ESTEVES:
CARNAVALIZAÇÃO, TRANSTEXTUALIDADE,
TRANSGRESSÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos Lingüísticos da
Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Lingüística.
Área de concentração: Análise do Discurso
Orientador: Prof. Dr. William Augusto
Menezes
Belo Horizonte
2006
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Dissertação intitulada “A Polifonia nas Charges de Oldack Esteves: Carnavalização,
Transtextualidade, Transgressão”, de autoria da mestranda Vaneza Aparecida de Figueiredo
Vasconcellos, aprovada em ____________ pela banca examinadora constituída pelos
seguintes professores:
_______________________________________________________________
Prof. Dr. William Augusto Menezes - UFOP - Orientador
________________________________________________________________
_________________________________________________________________
Dedico este trabalho a meus pais, José (in
memoriam) e Francisca, meus primeiros
mestres; a meu esposo Carlos Alberto e a meus
filhos Alessandra, Carlos Henrique, Cristiane e
Rafael Leandro, os melhores prêmios da
minha vida, pelo incentivo e pela compreensão
em todas as minhas ausências.
AGRADECIMENTOS
O valor das coisas não está no tempo em que elas
duram, mas na intensidade em que elas acontecem. Por
isso existem momentos inesquecíveis, coisas
inexplicáveis e pessoas incomparáveis. (Fernando
Pessoa)
Obrigada, Senhor, por ter pouco a pedir e muito a agradecer;
Obrigada, Senhor Deus, pela vida e pelos caminhos a mim destinados, sempre amparada pelos
seus anjos e santos, São Miguel Arcanjo e Nossa Senhora Desatadora dos Nós;
Obrigada ao meu orientador, Prof. Dr. William Augusto Menezes, pela paciência, tolerância,
confiança, aconselhamento nas minhas incertezas e atenção preciosa com que sempre me
distinguiu;
Obrigada,
Aos professores da UFMG, do Poslin e do Poslit que me acolheram na busca de
aperfeiçoamento, compartilhando seu saber, desvelando conhecimento, questionando
posições, orientando e incentivando, e, de maneira particular, à minha primeira orientadora,
Profa. Dra. Ida Lúcia Machado, que tornou encantado o caminho árduo da Análise do
Discurso;
Aos colegas, alunos do Poslin e do Poslit, com quem tive o privilégio de conviver e de trocar
idéias e momentos de aprendizagem;
A todos os funcionários do Poslin e do Poslit a quem nunca faltou solicitude no trato e boa
vontade no atendimento a todas as questões burocráticas;
Obrigada,
A Maria Aparecida Leite Mendes Cota, colega de buscas e de caminhada, que sempre foi
pródiga em atenção, incentivo e apoio, dividindo conhecimentos, tempo, livros; pela leitura
deste trabalho e aconselhamentos sobre o mesmo;
A Ana Maria Corrêa dos Santos, que personificou o amigo, aquele que chega sempre na
incerteza da hora, pela preciosa atenção, doação e apoio metodológico;
A Ivanete Avelar Chaves pelo apoio e presença amiga em todos os momentos;
A Olívia Fernandes Pinheiro de Aguiar, colega a quem devo o primeiro convite para embarcar
nessa conquista, e às também colegas de profissão, companheiras de viagem: Valeriana,
Cidinha, Ana Maria, Miriam, Patrícia, Ângela, Marisa, Ivanete, que compartilharam a
aventura de idas e vindas à UFMG, permeadas de palavras de apoio e de incentivo;
A Karla e Ricardo pela ajuda nos serviços de digitação e de inserção de imagens no corpo do
trabalho;
A Carlos Alberto que foi o salvador dos meus textos, recuperador de arquivos do PC, essa
máquina perfeita imperfeita.
A Andréia pelo precioso e oportuno apoio nos serviços do lar;
Aos professores, colegas de trabalho, funcionários, diretora e vice-diretoras da Escola
Estadual Maurilo de Jesus Peixoto, aos alunos e ex-alunos, que me incentivaram a lutar pelo
desafio de fazer o mestrado;
Obrigada, muito obrigada.
RESUMO
O estudo da polifonia nas charges de Oldack Esteves, publicadas na página
“Opinião” do caderno principal do jornal “Estado de Minas”, foi o objetivo deste trabalho.
Através da análise dos sujeitos presentes nos circuitos externo e interno do contrato
comunicativo da charge, foi possível constatar a presença de várias vozes nesta variante
genérica do contrato de comunicação do jornal impresso. Sob o olhar da Semiolingüística, da
teoria da Transtextualidade e do Dialogismo estudou-se a polifonia sob o aspecto da
carnavalização, da transgressão genérica e da hipertextualidade, o que nos levou a concluir
pelo caráter polifônico das charges.
RÉSUMÉ
L’étude de la polyphonie dans les charges d’Oldack Esteves publiées à la page
«Opinião» dans la section principale du journal «Estado de Minas» a été le but de cet
œuvre.Par l’analyse des sujets présents dans les circuits extérieur et intérieur du contrat
communicatif de la charge, on a pu constater la présence de plusieurs voix dans cette variante
générique du contrat de communication du journal imprimé.Aux yeux de la
Sémiolinguistique, de la théorie de la Transtextualité et du Dialogisme, la polyphonie a été
étudiée sous l’aspect de la carnavalisation, de la transgression générique et de la
hypertextualité, ce qui nous a mené à conclure au caractère polyphonique des charges.
LISTA DE FIGURAS
Charge n.1: “Você não mudou nada.”...............................................................................
Charge n.2: “Decide em casa com vantagem.”..................................................................
Charge n.3: “Minas vai bem?”...........................................................................................
Charge n.4: “Dê sua opinião.”...........................................................................................
Charge n.5: “Dói demais!”.................................................................................................
Charge n.6: “Zé, tem uma pulga atrás da orelha!”.............................................................
Charge n.7: “O correio também traz péssimas notícias.”..................................................
Charge n.8: “Corrupção? Que corrupção?”.......................................................................
Charge n.9: “Agosto Sombrio”..........................................................................................
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LISTA DE QUADROS
Quadro n.1: Contrato de comunicação...............................................................................
Quadro n.2: Categorização de variantes textuais...............................................................
Quadro n.3: Gêneros hipertextuais canônicos – In Genette “Palimpsestos”.....................
Quadro n.4: Gêneros hipertextuais (atualizado) – In Genette “Palimpsestos”..................
Quadro n.5: Contrato de comunicação da charge n.1........................................................
Quadro n.6: Contrato de comunicação da charge n.2........................................................
Quadro n.7: Contrato de comunicação da charge n.3........................................................
Quadro n.8: Contrato de comunicação da charge n.4........................................................
Quadro n.9: Contrato de comunicação da charge n.5........................................................
Quadro n.10: Contrato de comunicação da charge n.6......................................................
Quadro n.11: Contrato de comunicação da charge n.7......................................................
Quadro n.12: Contrato de comunicação da charge n.8......................................................
Quadro n.13: Contrato de comunicação da charge n.9......................................................
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................
PARTE I: CHARGE, SEMIOLINGÜÍSTICA E MODOS DE ORGANIZAÇÃO
DO DISCURSO
CAPÍTULO 1 - A CHARGE NO CONTRATO DE COMUNICAÇÃO DE UM
JORNAL DE INFORMAÇÃO À LUZ DA TEORIA SEMIOLINGÜÍSTICA........
1.1 Conceituação e caracterização histórica da charge.....................................................
1.2 A charge por chargistas...............................................................................................
1.3 O chargista Oldack Esteves.........................................................................................
CAPÍTULO 2 - A TEORIA SEMIOLINGÜÍSTICA COMO SUPORTE
TEÓRICO-METODOLÓGICO....................................................................................
2.1 O contrato comunicacional.........................................................................................
2.2 O contrato de “diversão” da charge............................................................................
2.3 Os sujeitos e seus papéis.............................................................................................
2.4 A charge como subgênero do gênero informativo......................................................
CAPÍTULO 3 - OS MODOS DE ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO......................
3.1 O modo enunciativo....................................................................................................
3.2 O modo descritivo.......................................................................................................
3.3 O modo narrativo........................................................................................................
3.4 O modo argumentativo................................................................................................
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PARTE II: POLIFONIA, CARNAVALIZAÇÃO, GÊNEROS
TRANSGRESSIVOS E TRANSTEXTUALIDADE
CAPÍTULO 4 - POLIFONIA: CARNAVALIZAÇÃO, TRANSGRESSÃO E
TRANSTEXTUALIDADE.............................................................................................
4.1 Marcas ou elementos polifônicos no discurso............................................................
4.1.1 A ironia....................................................................................................................
4.2 A carnavalização.........................................................................................................
4.2.1 A paródia..................................................................................................................
4.2.2 A sátira menipéia.....................................................................................................
4.3 Os gêneros transgressivos...........................................................................................
4.4 A teoria da transtextualidade.......................................................................................
4.4.1 O hipertexto e o hipotexto........................................................................................
PARTE III: ANÁLISE DO CORPUS
CAPÍTULO 5 - O CORPUS...........................................................................................
5.1 Caracterização do corpus............................................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................
REFERÊNCIAS..............................................................................................................
ANEXOS
Xerox das fotos e das notícias que deram origem às charges (Hipotextos)...............
ANEXO A - Charge n. 1
a) Xerox da charge “Você não mudou nada” EM, 31 maio 2003.............................
b) Xerox da foto e da notícia “Lula pede apoio a Aécio”EM, 29 maio 2003..........
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c) Xerox da notícia “Lula faz apelo ao PT” EM, 29 maio 2003...............................
ANEXO B - Charge n. 2
a) Xerox da charge “Decide em casa com vantagem” EM, 10 junho 2003..............
b) Xerox da foto e da notícia Cruzeiro decide em casa com vantagem” EM, 9
junho 2003.............................................................................................................
c) Xerox da notícia “Planalto pressiona governadores” EM, 9 junho 2003..............
ANEXO C - Charge n. 3
a) Xerox da charge “Minas vai bem?” EM, 2 julho 2003.........................................
b) Xerox da foto e da notícia “União vai compensar estados exportadores” EM,
1º. julho 2003........................................................................................................
c) Xerox da notícia “Lula aceita compensar estados” EM, 1º. julho 2003...............
d) Xerox da notícia “Aécio garante apoio mineiro” EM, 1º. julho 2003…………..
ANEXO D - Charge n. 4
a) Xerox da charge “ Dê a sua opinião” EM, 6 junho 2004......................................
b) Xerox da foto e da notícia “Posse no STF” EM, 4 junho 2004............................
c) Xerox da notícia “Posse em tom conciliador” EM, 4 junho 2004........................
d) Xerox da foto “Posse do ministro Nelson Jobim” EM, 4 junho 2004..................
ANEXO E - Charge n. 5
a) Xerox da charge “Dói demaisssss!...” EM, 18 junho 2004...................................
b) Xerox da foto e da notícia “Costa quer punir laboratórios” EM, 17 junho 2004..
c) Xerox da notícia “Batalha do salário mínimo” EM, 17 junho 2004.....................
d) Xerox do editorial “Pobres e ricos” EM, 17 junho 2004......................................
e) Xerox da notícia “Lula entra em campo” EM, 17 junho 2004.............................
f) Xerox da notícia “Reformas essenciais” EM, 17 junho 2004...............................
g) Xerox da notícia “Governo perde guerra do mínimo” EM, 18 junho 2004..........
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h) Xerox da notícia “Salário mínimo induz à cautela” EM 18 junho 2004...............
ANEXO F - Charge n. 6
a) Xerox da charge “Zé, tem uma pulga atrás da orelha! EM, 8 julho 2004.............
b) Xerox da foto e da notícia “Balanço” EM, 06 julho 2004....................................
c) Xerox da notícia “Prefeitura de BH” EM, 6 julho 2004.......................................
d) Xerox da notícia “Máfia com atuação na UFMG” EM, 6 julho 2004..................
e) Xerox da notícia “Eu não consigo compreender” EM, 6 julho 2004....................
f) Xerox da notícia “Licitação suspeita anulada” EM, 7 julho 2004........................
ANEXO G – Charge n. 7
a) Xerox da charge “O correio também traz péssimas notícias!” EM, 29 maio
2005.......................................................................................................................
b) Xerox da foto e da notícia “Lula desdenha e governo combate a CPI” EM, 21
maio 2005..............................................................................................................
c) Xerox da “Análise da notícia” EM, 21 maio 2005...............................................
ANEXO H - Charge n. 8
a) Xerox da charge “Corrupção? Que corrupção?” EM, 30 junho 2005...................
b) Xerox da foto e da notícia “Lula propõe governo de coalizão com PMDB” EM,
25 junho 2005........................................................................................................
c) Xerox da notícia “Secretária fala de saques na véspera de reuniões com PT”
EM, 29 junho 2005................................................................................................
d) Xerox da notícia “Ex secretária rebate as acusações de Valério” EM, 27 junho
2005.......................................................................................................................
e) Xerox da notícia “CPI procura o resto das fitas do correio” EM, 28 junho 2005.
f) Xerox da notícia “Cerco fechado em Valério” EM 28 junho 2005......................
g) Xerox da notícia “Deputado viu mala de dinheiro” EM, 25 junho 2005..............
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ANEXO I - Charge n. 9
a) Xerox da charge “Agosto sombrio” EM, 27 agosto 2005.....................................
b) Xerox de foto e notícia “Não farei como Getúlio, Jânio ou João Goulart”
(Lula) EM, 26 agosto 2005...................................................................................
c) Xerox da notícia “Lula faz o mais duro discurso” EM, 25 agosto 2005...............
d) Xerox das notícias “Crescimento não será uma Brastemp” e “Mandatos que
não chegaram ao fim” EM 26, agosto 2005..........................................................
e) Xerox da notícia “Senado dá impulso à reforma” EM, 11 agosto 2005...............
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15
INTRODUÇÃO
Fazer humor é uma maneira de sobreviver aos
problemas. A diferença entre o homem e os outros
animais é que ele ri. (Aroeira)
A observação das charges publicadas no jornal Estado de Minas, principalmente
as de Oldack Esteves, foi o marco inicial deste trabalho. As charges de Oldack Esteves
chamam a atenção pela maneira peculiar como são construídas. Muitas vezes o espaço de uma
única charge é dividido em planos distintos que mostram diversos espaços sociais, culturais,
esportivos e, principalmente, políticos. O uso de vários recursos, como a fotografia retirada de
um artigo ou reportagem e inserida nos desenhos, e da inserção provérbios, narrativas,
denominações diversas, diálogos ambíguos e comentários parecem simular o discurso do
outro, representado em muitas oportunidades por animais personificados, constituindo-se em
estratégias que nos pareceram importantes para uma reflexão no interior da Análise do
Discurso.
A importância da charge cresce a cada dia. Nos jornais e revistas impressos, e
também na comunicação virtual
1
, a charge parece ter uma presença garantida, tornando-se um
recurso comum no cotidiano das trocas discursivas. Atualmente, ela se faz evidente nos livros
didáticos e tem servido de motivação para sensibilizar os alunos sobre diversos temas em
redações escolares, nas salas de aula e em concursos públicos e vestibulares. Capaz de captar
a atenção até mesmo do leitor despretensioso, aquele que quer “passar os olhos” nas
1
Uma pesquisa simples à Internet revela a existência de diversos sítios consagrados à divulgação de charges,
como http://www.opovo.com.br, http://www.jornalatribuna.com.br, http://www.chargeonline.com.br/,
http://www.jblog.com.br/liberati.php, entre outros. Também na Internet, podemos encontrar o trabalho de
chargistas consagrados, como Nani, do Jornal do Brasil; Aroeira, de O Dia; Alfredo, da Charge on line; Chico
Caruso, do jornal O Globo, e muitos outros que utilizam esse canal tanto para divulgar as suas charges quanto
para a reflexão em torno da atividade chargística.
16
notícias, o desenho chargístico desperta para a realidade do mundo, com poucas ou nenhuma
palavra. O chargista consegue sintetizar, em poucos traços, uma mensagem de uma página
inteira.
Do ponto de vista discursivo, parece-nos que a charge pode ser considerada como
um procedimento lúdico que participa da estratégia de captação do leitor, pois, além de
sugestionar, ela apresenta senso de humor, levando ao irônico e ao riso, enquanto faz a crítica
aos acontecimentos do momento, principalmente a que se relaciona aos fatos políticos. Ao
considerá-la como integrante do jornal impresso, como é o caso da presente pesquisa, a
charge está inserida no contrato de “diversão” do jornal, o qual, por sua vez, faz parte do
contrato de informação presente no domínio de comunicação midiática.
Mas como apreender a simulação do discurso do outro, que se faz presente na
charge? A esse respeito, realizaremos uma reflexão em torno da diversidade de vozes
convocadas para o texto chargístico, inserindo no nosso estudo a compreensão do fenômeno
da polifonia. Para isso, a nossa pesquisa se dará em torno de três níveis de elementos
polifônicos: o nível enunciativo, o nível textual e o nível discursivo, propriamente dito. No
nível enunciativo, o sujeito comunicante utiliza-se estrategicamente de formas (ou ícones) que
são apresentadas pelo sujeito enunciador para produzir efeitos de humor, subvertendo, de
alguma maneira, enunciados anteriores. No nível textual, o sujeito comunicante cria um novo
texto a partir de outro de existência reconhecida, promovendo uma espécie de ruptura com o
material anterior, que vai favorecer os efeitos de humor. E no nível discursivo, propriamente
dito, o sujeito comunicante realiza uma transgressão de regularidades reconhecidas em um
gênero anterior, do contrato de informação midiático, construindo uma nova tipologia
genérica.
A nossa hipótese é que a esses níveis corresponde uma diversidade na organização
polifônica que pode ser pensada em função da carnavalização (no sentido bakhtiniano), da
17
transtextualidade e da transgressão genérica. Assim, em nível do enunciado, deve ser possível
a identificação de elementos lingüísticos e icônicos, possibilitando-nos uma referência à
carnavalização, como resultado do entrelaçamento da multiplicidade fônica; em nível textual,
essa dimensão múltipla pode-nos permitir perceber uma interação constante entre o texto
chargístico e outros textos que compõem a mídia informativa, enquanto índices de
intertextualidade; e em nível discursivo, podemos pensar em uma transgressão genérica, pelo
processo de recriação, de um gênero anteriormente reconhecido. Como perceber, então, esses
diversos níveis de organização polifônica nas charges de Oldack Esteves? Quais são os
elementos e as regularidades desse discurso?
Como referencial teórico, pretendemos nos situar na teoria Semiolingüística de
Patrick Charaudeau, que nos fornecerá a base necessária para a análise do contrato de
“diversão”
2
da charge. Buscamos também a teoria polifônica de Bakhtin, adaptada à análise
do discurso por Oswald Ducrot para nos dar suporte na questão da carnavalização, também
um índice de polifonia; e, no nível textual, para o estudo da hipertextualidade, pedimos a
contribuição de Gérard Genette com a teoria da Transtextualidade.
Para compor o nosso corpus, selecionamos apenas charges de Oldack Esteves
publicadas no jornal Estado de Minas, em 2003, 2004 e 2005, que apresentassem transposição
de imagens fotográficas, usadas para documentar um discurso sério, para um contexto irônico.
Começamos a análise das charges pelo nível da enunciação. Foi necessário fazer um quadro
do contrato comunicacional de Charaudeau adaptado a cada charge na sua situação específica
de comunicação. Como cada charge é dividida em dois planos ou mais, construiu-se um
quadro comunicativo em que aparece um circuito externo, lugar do “fazer”, mas com vários
circuitos internos, lugar do “dizer”, no caso, representando as vozes de enunciadores diversos.
um sujeito comunicante subdividido em rios sujeitos enunciadores, o que confirma a
2
O termo contrato de “diversão” foi usado pela professora Ida Lúcia Machado em suas aulas de Teorias do
Discurso (2002) na FALE/UFMG.
18
hipótese da polifonia. Em seguida, foi feito um levantamento dos elementos icônicos e verbais
que constituíam a charge. Em todas as charges encontramos elementos icônicos: fotos,
desenhos caricaturados de pessoas, objetos, animais (tartarugas e cachorro) devidamente
personalizados; e os verbais: marcas enunciativas do discurso dos sujeitos, modalizadores,
provérbios, títulos, citações etc. Todos esses elementos discursivos comprovam a existência
de vários sujeitos e, conseqüentemente, de várias vozes.
Nosso trabalho será dividido em três partes. Na primeira, trataremos da definição
do gênero charge e de sua relação com outros desenhos, como o cartum e a caricatura.
Refletiremos, também, sobre a noção de contrato de comunicação, com seus circuitos externo
e interno, dando ênfase aos sujeitos. Para finalizar, apresentaremos alguns aspectos dos modos
de organização do discurso, previstos por Charaudeau (1992).
Na segunda parte, vamos nos ocupar da teoria polifônica, da relação entre a
diversidade de vozes no discurso e a carnavalização, uma vez que os gêneros carnavalizados
parecem mostrar a concorrência de vários sujeitos, sugerindo a existência de várias vozes.
Ainda nessa parte, discutiremos os gêneros do discurso para tratar mais especificamente da
questão da transgressão, relacionando-a à variação genérica, e, em seguida, abordaremos a
transtextualidade, dando ênfase principalmente à formação de um hipertexto a partir do
concurso de vários hipotextos
3
.
Na terceira parte, trataremos especificamente do contrato de “diversão” produzido
nas charges de Oldack Esteves, para o qual foi selecionado um corpus específico. Finalmente,
faremos a análise propriamente dita, destacando a ocorrência polifônica a partir de marcas ou
elementos situados no vel enunciativo, no nível textual e no nível discursivo, relacionando-
os, respectivamente, à carnavalização, à hipertextualidade e à transgressão genérica.
3
Texto anterior que se relaciona a outro, posterior, de acordo com a teoria da hipertextualidade de Genette, que
será vista na Parte II, sob o título de “Teoria da Transtextualidade”.
19
PARTE I
(...)a sutileza está sempre presente no trabalho do
chargista. (Quinho)
CAPÍTULO 1
A CHARGE NO CONTRATO DE COMUNICAÇÃO DO JORNAL DE
INFORMAÇÃO À LUZ DA TEORIA SEMIOLINGÜÍSTICA
O jornal, importante fonte de informação midiática, representa valioso
instrumento para o leitor se situar e se inserir na vida social e profissional. Embora o primeiro
contrato do jornal seja o de informação, outros contratos podem ser incluídos, como o
contrato de “diversão”, presente nos cadernos especiais, e que se manifesta através de jogos,
desenhos, “tirinhas” de humor, palavras cruzadas, horóscopos, charges, cartuns, fotografias,
que divertem, mas ao mesmo tempo chamam a atenção do leitor para acontecimentos do dia-
a-dia, sejam eles notícias gerais, políticas, ou fatos corriqueiros referentes à sociedade em
geral (MACHADO, s.d).
A charge, uma das variantes do contrato de “diversão” do jornal de informação, é
portadora de um discurso icônico-verbal, satírico e crítico de fatos da atualidade e, como
imagem, causa normalmente forte impacto no leitor. Aliás, a charge pode ser interpretada
dentro de um determinado contexto situacional, pois ela dialoga com os dados do presente e o
leitor poderá interpretá-la se tiver conhecimento do contexto comunicacional. O seu
discurso visa principalmente aos fatos da política, mas charges sobre esporte
(principalmente sobre futebol), meio-ambiente, economia etc. A charge pode ser vista como a
condensação crítica das notícias veiculadas pelo jornal. Assim sendo, ela se torna campo fértil
20
para eco das vozes oriundas dos vários discursos, a partir do que se pode dizer que ela é
portadora de um discurso altamente polifônico.
1.1 Conceituação e caracterização histórica da “charge”
Charge é palavra originária do francês e equivale a uma representação pictórica,
de caráter burlesco e caricatural, em que se satiriza um fato específico, em geral relacionado à
política, e que é do conhecimento público. Pictórico é adjetivo referente à pintura ou próprio
da pintura. Aqui o termo se refere ao desenho, mas, na realidade, não somente de desenhos
são produzidas as charges. As falas das personagens também são importantes elementos
constitutivos desse discurso e são, muitas vezes, transcritas/reproduzidas. Mas o que podemos
perceber é que o sentido nem sempre é explicitado nessas falas; ele é produzido em um
intrincado jogo entre o dito e o não dito.
Quanto ao caráter burlesco, podemos afirmar que esse se constitui no cômico, o
que provoca riso, grotesco, caricato. Caricato é o que está carregado nos defeitos e caracteriza
a caricatura desenho que, pelo traço, pela escolha dos detalhes, acentua ou revela certos
aspectos da pessoa ou do fato. Temos, então, que a charge constitui uma sátira pictórica ou,
segundo o dicionário Aurélio (1975): 1. Composição poética que visa a censurar ou
ridicularizar defeitos ou vícios; 2. Qualquer escrito ou discurso picante ou maldizente, crítica;
3. Troça, zombaria, ironia; 4. Censura jocosa. Se verificarmos o significado dicionarizado do
substantivo feminino “charge”, veremos algo interessante. “Charge” leva-nos primeiramente a
fardo, carga, encargo, obrigação. Na sua extensão, significa também emprego, imposto,
ataque e, por fim, caricatura e imitação para o campo literário (Cf. LE ROBERT, 1998). Une
21
charge à fond significa uma carga pesada. Na extensão que nos interessa mais de perto,
“carga” parece pertinente no sentido de carregar o desenho, torná-lo expressivo, através de
traços exagerados. Em relação ao teatro, caricatura se refere à representação burlesca em que
se arremedam comicamente pessoas e fatos: seria, então, arremedo, farsa, sátira. Um terceiro
significado conduz à reprodução deformada de algo: “Só consegue escrever caricaturas de
romance” (AURÉLIO, 1975). A palavra pode também representar pessoa ridícula pelo
aspecto ou pelos modos; o adjetivo caricatural é o que se presta à caricatura, caricaturesco.
Voltando à charge, Oliveira (2001, p.265) informa-nos que essa palavra significa
também ataque. Constitui empréstimo do francês e denomina um tipo de texto no qual a
realidade é (re)apresentada a partir de imagens (ícones) e palavras (símbolos). A charge seria,
então, uma sátira através de caricaturas, visando a criticar idéias, situações ou pessoas, com
enfoque em experiências e conhecimentos partilhados dentro de uma determinada cultura.
Segundo Zélio Alves Pinto (Estado de Minas, 08/08/2004), a mágica da empatia, para o
artista, está ligada ao momento e acontece quando o desenhista “transcreve a emoção, o
sentimento coletivo, e faz a crítica que todo mundo queria fazer”. Cremos que esse “todo
mundo” é o resumo das muitas vozes sociais que estariam fazendo a crítica. O sujeito
comunicante, através do seu sujeito enunciador, (CHARAUDEAU, 2001), traz ao discurso da
charge as vozes do povo, da sociedade, dos marginalizados, dos políticos, das minorias
injustiçadas, numa verdadeira polifonia.
Ique e Aroeira, em entrevista a André Valente (UERJ), compartilham da opinião
de Zélio, como podemos ver nas declarações transcritas abaixo:
A charge está ligada ao momento, é por isso que, às vezes, eu esqueço de
determinada charge que eu fiz e tenho que voltar ao assunto que me motivou para eu
poder me lembrar. Ique (AZEREDO, 2001, p. 155)
A charge tem um papel de catarse, ela funciona desse jeito. Eu não acho que muda o
mundo, não derruba ninguém, mas ajuda o leitor a ter, às vezes, uma vingança
pessoal. ‘Era isso que queria dizer!’. Esse papel catártico da charge incomoda até o
próprio jornal. Aroeira (AZEREDO, 2001, p.154)
22
A caricatura, por fazer parte da charge, muitas vezes se confunde com esta. Esse
tipo de desenho mereceu um estudo de várias páginas da Enciclopédia Britânica Barsa (1981),
que o caracteriza como “gênero de desenho deformado, de cunho basicamente satírico, mas
não obrigatoriamente mico”. A caricatura seria a reprodução em termos gráficos, ou seja,
por meio de linhas, da aparência de uma pessoa, um animal, uma coisa, uma cena, um
episódio, exagerando-se certos traços, com intenção satírica, burlesca ou crítica.
Considerada nos seus primórdios como divertimento, a caricatura, entretanto,
constitui um capítulo importante da atividade artística, e entre aqueles que a cultivaram,
artistas renomados, como: Bosch, Leonardo, Goya e outros. A caricatura transcende o
individual e particulariza o coletivo de uma época ou de um povo. John Bull, Tio Sam e
Povinho são exemplos de caricaturas que representam, respectivamente, o povo inglês, o povo
americano e o povo português. (Mozilla Firefox http://www.google.com.br/). Baudelaire
(Barsa, 1981, p.96, v.5) teria falado que, através da caricatura, “o povo podia falar ao povo”.
Assim, nos regimes autoritários, sempre que a manifestação do pensamento se cerceada ou
suprimida, os caricaturistas têm papel de destaque.
Rabaça e Barbosa (1978), citados por Nair Gurgel, a qual estuda a charge em uma
perspectiva discursiva, lembra-nos ser a caricatura “uma forma de arte expressa através do
desenho, da pintura, da escultura, (e também do cinema e do teatro), cuja finalidade é o
humor”. Segundo ela, a diferenciação entre caricatura, charge, cartum, portrait-charge,
desenho de humor não é tarefa fácil, uma vez que todos esses textos têm como característica
comum a visualização e o humor. Entretanto, Gurgel vale-se da classificação dos gêneros
literários (romance, conto, novela) e segue o modelo, colocando caricatura como gênero
caricatural, o qual engloba todos os desenhos caricaturados subdivididos em categorias
segundo os traços, os temas e os propósitos de cada tipo, com suas particularidades e
especificidades.
23
A caricatura pessoal é aquela que exagera nos traços físicos característicos da
pessoa, principalmente do rosto, embora outras partes do corpo possam também ser realçadas.
Trejeitos e expressões também podem ser destacados, sem, contudo, desmerecer as
características da pessoa caricaturada. Parece interessante acrescentar palavras do chargista
Mendez, quando foi entrevistado por Ziraldo, Nássara e Augusto Rodrigues, em 1973, para o
Museu da Imagem e do Som. Dizia ele que as melhores caricaturas sempre foram as que
fazemos de pessoas com as quais convivemos, pois assim podemos captar os traços da
personalidade. Para ele, a caricatura seria o retrato da alma (...) e valeria mais que uma
fotografia. Acrescentamos aqui palavras de Camilo Riani, proferidas durante entrevista no
Festival Internacional de Banda Desenhada (Portugal/1997), o qual prefere chamar de humor
gráfico à caricatura e, corroborando as palavras de Mendez, diz: “Poeticamente: o mais
impressionante retrato da alma. Aquilo que até parece máscara, mas que desmascara todos
nós”.
A charge e o cartum constituem também formas de manifestação caricatural, mas,
em vez de realçar pessoas, o que será focalizado será um fato ou uma situação. A charge
pode ser entendida dentro de um contexto situacional e temporal e por isso tem importante
papel como registro histórico dos acontecimentos de uma determinada época. A charge é,
basicamente, política, embora outros temas possam ser abordados, principalmente, o futebol.
O cartum, ao contrário, não está limitado no tempo, pois tem caráter universal. Relata fatos
atemporais, que não dependem de uma época ou de uma cultura. Os temas são universais (o
náufrago, o amante, a guerra, o palhaço, o bem versus o mal) e podem ser entendidos em
qualquer época em qualquer parte do mundo. A ausência de signos verbais em cartuns é
comum e as idéias são representadas sem o suporte do texto, apenas pela expressão das
personagens no desenho. Aliás, o cartum pode ser considerado uma anedota gráfica, pois
24
provoca o riso através de sua crítica irônica, mordaz, satírica e, principalmente, humorística às
fraquezas do comportamento humano.
De um ponto de vista mais específico, a caricatura difere do cartum, que é um
gênero criado pelos ingleses, e se caracteriza basicamente por seu aspecto anedótico e pelo
fato de compor-se de um desenho, acompanhado ou não de palavras. Na caricatura, a primeira
intenção não é de ridicularizar ou provocar o riso fácil, mas sim de fixar os caracteres e as
expressões” conforme escreveu Watelet (BARSA, 1981, p.96, v.5). Do cartum em seqüência
surgiram as historietas cômicas. De maneira diferente do cartum, o desenho de humor explora
os aspectos não anedóticos dos fatos. O desenho de humor tem no acontecimento
contemporâneo a sua matéria prima, focalizando-o, em geral, de modo ameno, embora, às
vezes, assuma o caráter de humor negro. Cabe aqui lembrar o portrait-charge, que seria a
caricatura de pessoas, em que se observa um exagero proposital de suas características
marcantes, diferenciando do desenho de humor, o qual concentraria o humor no próprio traço.
A caricatura era praticada pelos egípcios, que caricaturaram Ramsés II (Faraó
da XIX dinastia egípcia), ostentando orelhas de burro. Tanto arquitetos quanto escultores e
miniaturistas se valeram desse tipo de desenho e até margens de textos sagrados eram
decorados com caricaturas.
No Brasil, cabe ao Aleijadinho a prioridade na história da caricatura, segundo
Rodrigo José Ferreira Brito (Enciclopédia Britânica-Barsa, 1981), primeiro biógrafo de José
Francisco Lisboa, o qual teria reproduzido traços de um desafeto seu no grupo de escultura
São Jorge com o dragão. Entretanto, coube a Manuel de Araújo Porto Alegre o lugar de
iniciador da caricatura em terras do Brasil, com a publicação anônima no Jornal do Comércio
de 14 de dezembro de 1837 da primeira caricatura, que era uma sátira ao jornalista Justiniano
José da Rocha, inimigo do artista.
25
Apesar de ser uma criação artística e, portanto, expressão particular de um
desenhista, a charge é criada para ser divulgada. Precisa de um suporte material. O jornal de
informação, revistas de notícias, noticiários empresariais, boletins diversos servem a esse
propósito. A seguir, citamos os periódicos que primeiramente publicaram caricaturas.
No Brasil, Lanterna Mágica (1844-1845) foi o primeiro periódico a imprimir
caricaturas, seguido de outros, como Sete de Abril, O Caricaturista, Marmota Fluminense
(1849), O Charivari Nacional (1862), todos de vida efêmera. Vida Fluminense (1868) teria,
desde o seu primeiro número, a colaboração de Ângelo Agostini, um dos maiores
caricaturistas brasileiros do século, o qual publicaria, em 1876, o primeiro número da Revista
Ilustrada, cognominada por Joaquim Nabuco “bíblia da abolição dos que não sabem ler”.
Seguiu-se a esses periódicos O Mosquito, que contou com a colaboração do pintor português
Bordalo (criador da caricatura do Povinho, em Portugal), e também a Revista da Semana
(1900) que inaugura a nova fase da caricatura no Brasil. Surgem nessa época grandes
caricaturistas, como: Raul Pederneiras (Raul), Calixto Cordeiro (K-lixto) e J.Carlos,
considerados os primeiros verdadeiramente brasileiros.
Apareceram também os jornais: Jornal do Brasil (1892), Correio da Manhã
(1901), O Malho (1902), Kosmos (1904), Fon-fon (1907), Careta (1908), que possibilitaram
ampla divulgação das caricaturas de cunho social e político. Um dos maiores caricaturistas
brasileiros dessa fase foi J.Carlos, que se sobressaiu em todas as modalidades de caricatura
do portrait-charge à sátira política, e da ilustração à crítica social. Surgiram, a partir de 1930,
novos caricaturistas, os quais se destacavam pela maior modernidade do traço e pela
contemporaneidade dos motivos. Destacam-se os portrait-chargistas: Andrés Guevara,
paraguaio; Figueiroa, mexicano; Alvarus e Mendez, brasileiros. Em 1937, com o Estado
Novo, houve declínio da caricatura política, mas a Segunda Guerra Mundial deu ensejo a
sátiras notáveis, como, por exemplo, as de J.Carlos. Entre 1940-1950, surgiram outros
26
desenhistas: Hilde Weber, na charge política; Péricles, criador da personagem “Amigo da
Onça”; e Carlos Estevão, com seu humor popular. que se destacar também Millôr
Fernandes, que abre caminho para o aparecimento de caricaturistas mais novos: Ziraldo e
Borjalo no cartoon internacional, aos quais acrescentam-se Fortuna, Jaguar, Claudius, Henfil
e os portrait-chargistas: Appe e Lan.
Essa lista pode ser enriquecida, atualmente, com chargistas de renome em todo o
Brasil, como: Paulo Caruso, Chico Caruso, Quinho, Aroeira, Zélio Alves Pinto, Miguel Paiva,
Son Salvador, Oldack Esteves, entre outros.
Após 1960, surgiram outras revistas: Pif-paf, Pasquim, Urubu, Bundas, que
seguem a tradição das anteriores, sem criar muito. Mas o importante é frisar que, nos dias de
hoje, poderíamos falar em uma proliferação de veículos chargísticos. Além de revistas,
folhetos, jornais particulares de empresa, Internet (com páginas especiais e atualizadas
diariamente), quase todos os jornais publicam charges. para exemplificar, no jornal “O
Globo” (RJ), assinam charges: Chico Caruso (na primeira página do primeiro caderno),
Miguel Paiva (em ginas do meio do primeiro caderno), Lan (também em páginas do meio
do primeiro caderno, mas seu trabalho parece ser mais de cartunista); no jornal Hoje (MG),
aparece charge de Lute na página 2 do primeiro caderno e também a de Mário Vale, com o
tema “A Linha”, na página passatempo do caderno de Cultura; no jornal Estado de Minas, em
páginas do meio do primeiro caderno, na seção “Opinião”, aparece, em dias alternados, no
mesmo espaço, charges de Son Salvador e de Oldack Esteves.
Vale relembrar, por fim, o valor didático-pedagógico que as charges têm
adquirido. Elas se fazem presentes nos textos selecionados para fins didáticos, tanto no livro
didático, como no material do professor que trabalha com as diversas linguagens e com o
contexto sócio-político-cultural em que estas se manifestam. Podem-se tornar um objeto de
estudos, por exemplo, na sala de aula do Ensino Fundamental, no momento em que a
27
preocupação do professor de Língua Portuguesa é o ensino dos gêneros discursivos, ou um
recurso pedagógico para as reflexões específicas sobre a linguagem em uso e a gramática da
língua.
1.2 As charges por chargistas
Zélio Alves Pinto, em declaração ao jornal Estado de Minas, em 8/8/2004, diz que o
comentário político ferino sempre foi uma marca do humor e que é de se estranhar que o
pessoal do humor veja graça onde todo mundo tristeza. “O humorista primeiro ri de si
mesmo. Daí, rir dos outros é um passo”. Aliás, Quinho diz que “É rir para não chorar”,
pois fazer humor é uma forma de sobreviver aos problemas. E o assunto que os humoristas
adoram é a política. A propósito, os chargistas sabem muito bem traduzir os sentimentos que
poucos sabem manifestar. Falam através das charges, mas também através das palavras,
quando, metalingüisticamente, definem seu trabalho. Vejamos algumas frases de chargistas:
“A charge boa é aquela que o político não quer, que não manda emoldurar para
enfeitar a sua mesa”. (Quinho, jornal Estado de Minas, Cad. Cultura, 8/8/2004)
“O essencial é aquela cutucada esperta”. (Aroeira, jornal Estado de Minas, Cad.
Cultura, 8/8/2004)
“Existem artistas que são autores mais refinados, outros mais escrachados, mas a
sutileza está sempre presente no trabalho do chargista”. (Quinho, jornal Estado de
Minas, Cad. Cultura, 8/8/2004)
“O insumo do humor de qualidade não é exatamente o grande fato político, mas a
atitude de buscar o político no cotidiano. Esse é o maior mérito do bom
humorista”. (Zélio Alves Pinto, jornal Estado de Minas, Cad. Cultura, 8/8/2004)
28
“Nossa pretensão é fazer pensar e ajudar a transformar a realidade. Boa charge é
aquela que revela o que está por trás do noticiário, que ajuda a compreender o
assunto”. (Paulo Caruso, jornal Estado de Minas, Cad. Cultura, 8/8/2004)
“Charge ruim ou é propaganda pura e simples, ou não vai além do que o senso
comum conhece sobre o assunto”. (Paulo Caruso, jornal Estado de Minas, Cad.
Cultura, 8/8/2004)
“As pessoas fazem coisas ridículas e acham que vão ficar impunes. Mas não vão.
Os chargistas vão perceber e contar para todo mundo”. (Aroeira, jornal Estado de
Minas, Cad. Cultura, 8/8/2004)
Ainda de acordo com as palavras de Zélio:
“A mágica da empatia, para o artista, está ligada ao momento, pois
descontextualizada não tem o mesmo efeito, e acontece quando o desenhista
transcreve a emoção, o sentimento coletivo e faz a crítica que todo mundo queria
fazer”. (Zélio, jornal Estado de Minas, Cad. Cultura, 8/8/2004)
Zélio considera que o bom trabalho faz a síntese entre linguagem visual adequada e
idéia.
1.3 O chargista Oldack Esteves
Para compreender as motivações do autor das charges que compõem o nosso
objeto de estudo, apresentamos alguns dados da biografia de Oldack Esteves, coletados em
entrevista dada por ele à TV Belo Horizonte em 14 de janeiro de 2004.
Oldack Esteves, como também suas charges, é uma pessoa peculiar. Nasceu em
Bom Jesus do Bonfim, na Bahia. Aventurou-se, muito jovem, numa mudança para o Rio de
Janeiro, onde queria trabalhar e estudar. Voltou à Bahia por ocasião da doença e do
29
falecimento de sua mãe. Foi trabalhar no jornal A tarde, de Salvador, onde publicou sua
primeira charge. Convidado pelo então ministro Simões Filho, voltou ao Rio de Janeiro a
trabalho. De lá veio a Belo Horizonte, a serviço, para ficar uma semana. Prorrogou sua estada
para quinze dias e acabou ficando em Minas. No jornal Estado de Minas ele fez de tudo,
chegando a trabalhar em todas as etapas da produção do citado jornal. Começou desenhando
charges, fez reportagens jornalísticas e acabou virando fotógrafo. Fotografou pessoas
famosas, políticos e damas da sociedade. Há fotos suas que foram vendidas no mundo inteiro.
Mas ele gosta mesmo é de fazer charges. As personagens criadas por ele têm características
especiais. Além das caricaturas das pessoas públicas, são os animais, as tartarugas e o
cachorrinho que chamam a atenção no seu discurso chargístico.
As charges de Oldack Esteves são, muitas vezes, divididas em diversos planos e
em cada um aparece um texto discursivo em situação social, política e cultural diferenciada. O
uso de vários recursos, como a fotografia inserida nos desenhos, os provérbios e também os
comentários das personagens a respeito das situações focalizadas, numa espécie de simulação
do discurso do outro, constituem estratégias que podem ser consideradas transgressivas ou
carnavalizadas.
Podemos considerar que a charge constitui uma paródia visual, uma vez que usa
recursos iconográficos e textuais com intenção de criticar, através do humor, os
acontecimentos que lhe deram origem, sejam eles de ordem política ou não (MACHADO,
s.d.). É também, hoje, parte obrigatória do contrato de informação e de “diversão” de diversos
jornais, sejam semanários de interior ou jornais diários de grande circulação. Ironizando os
acontecimentos políticos, sociais, esportivos, a charge desperta a atenção do leitor e leva-o a
interpretar criticamente os fatos.
Cada chargista é individualizado pelos seus traços particulares e personagens
características. As charges apresentadas por Oldack Esteves mostram personagens portadoras
30
de diversas vozes. a voz da política, a voz do povo, a voz de diversos segmentos sociais,
personagens caricaturadas, que representam os políticos em eminência, e animais
personificados (as tartarugas e o cachorrinho), com características tão próprias que se
tornaram personagens dignas de observação no dia-a-dia do periódico.
31
CAPÍTULO 2
A TEORIA SEMIOLINGÜÍSTICA COMO SUPORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO
O jornal impresso, com suas variantes textuais ou subgêneros, entre os quais
encontra-se a charge, constitui um gênero inserido no gênero informativo que, como meio de
comunicação, adota principalmente a palavra escrita para fazer a interação entre os sujeitos
envolvidos no processo de comunicação. Esses sujeitos são: o jornal, através da voz do editor,
o jornalista, o repórter e o leitor, aquele que irá interpretar a mensagem.
Para analisar esse processo, buscamos apoio na Teoria Semiolingüística de Patrick
Charaudeau. Trata-se de uma teoria que se presta à análise dos mais variados tipos de
discurso. O nome Semiolingüística, segundo Charaudeau (1995, p.98) vem de sémio- de
sémiosis, lembrando que a construção do sentido e sua configuração se fazem por meio de
uma relação forma-sentido, relação esta que pode ocorrer em diferentes sistemas
semiológicos. Tal construção está sob a responsabilidade de um sujeito, movido por uma
determinada intenção, ou seja, um sujeito que tem em sua mente um projeto visando
influenciar alguém: tal projeto está encaixado no mundo social no qual vivem e circulam os
sujeitos-comunicantes. Quanto à presença de “lingüística” no nome, Charaudeau enfatiza que
a forma pretendida pelo sujeito-comunicante é, sobretudo, constituída por um material
linguageiro oriundo das línguas naturais (MACHADO, 2001, p.47).
A partir de tal perspectiva, podemos falar na charge como um discurso, quer dizer,
um tipo de manifestação que possui regularidades e normas reconhecidas no cotidiano, tanto
pelo chargista, produtor do discurso, quanto pelo leitor do jornal, receptor do discurso
chargístico. Mas o que vem a ser discurso? O sentido da palavra “discurso”, segundo
32
Charaudeau (2001, p.26), está relacionado ao fenômeno da encenação do ato de linguagem.
Essa encenação depende de um dispositivo que compreende dois circuitos: um circuito
externo, que representa o lugar do fazer psicossocial (o situacional) e um circuito interno, que
representa o lugar da organização do dizer. É o domínio do dizer que receberá o nome de
discurso.
Charaudeau (2001, p.26) aponta um outro sentido para a palavra discurso: um
conjunto de saberes partilhados, construído na maior parte das vezes, de modo inconsciente,
pelos indivíduos pertencentes a um dado grupo social. Ainda segundo o teórico, os discursos
sociais (ou imaginários sociais) mostram o modo como as práticas sociais são representadas
em um dado contexto sócio-cultural e como são racionalizadas em termos de valor:
sério/descontraído, popular/aristocrático, polido/impolido etc.
Observando a oposição discurso versus língua, Maingueneau (2004, p.169) diz
que a língua, definida como sistema partilhado pelos membros de uma comunidade
lingüística, opõe-se ao discurso, considerado como uso restrito desse sistema, podendo tratar-
se de: (a) um posicionamento em um campo discursivo (“discurso comunista”, “discurso
surrealista”); Foucault (1969b, p.153) chama de discurso um conjunto de enunciados, na
medida em que eles provêm da mesma formação discursiva; (b) um tipo de discurso
(“discurso jornalístico”, “discurso administrativo”, “discurso televisivo”); (c) as produções
verbais específicas de uma categoria de locutores (“discurso das enfermeiras”, “discurso das
mães de família”); (d) uma função da linguagem (“discurso polêmico”, “discurso
prescritivo”).
De acordo com Benveniste (1966, p.266), “discurso” está próximo de
“enunciação”: “é a ngua como assumida pelo homem que fala, e na condição de
intersubjetividade que a comunicação lingüística torna possível”. Ainda com Benveniste
(1974, p.80), a enunciação consta como a colocação em funcionamento da língua por um ato
33
individual de utilização”, que o autor opõe a “enunciado”, distinguindo-se, portanto, o ato do
seu produto (CHARAUDEAU, 2004, p.193). Machado (2002), em tradução livre do verbete
Énoncé/Énonciation (LUDWIG, 1997, p.228), compara enunciado a frase e diz que a “frase”
é um objeto abstrato: uma mesma frase pode ser repetida várias vezes, escrita num papel, num
quadro, codificada nos circuitos de um computador ou de um CD-ROM.
O enunciado, ao contrário, é o resultado de uma ação localizada no espaço e no
tempo, ação esta que será chamada de enunciação. O enunciado é uma das realizações
concretas possíveis da frase. Halliday e Hasan (apud CHARAUDEAU, 2004, p.467)
definiram o texto como uma unidade de uso da língua em uma situação de interação e como
uma unidade semântica, enquanto Weinrich (1973, p.13 e p.198) define o texto como uma
seqüência significante (considerada coerente) de signos entre duas interrupções marcadas da
comunicação, o que, segundo Charaudeau, é preferível.
De acordo com Adam (1999, p.39), “o discurso é concebido como uma inclusão
de um texto em seu contexto (condições de produção e de recepção)”, definição usada por
Charaudeau confrontando discurso versus frase. (2004, p.169). Para mostrar a oposição
discurso versus enunciado, Charaudeau (2004, p.169) propõe as palavras de Guespin (1971,
p.10): “Um olhar lançado sobre um texto do ponto de vista de sua estruturação “em ngua”
faz dele um enunciado; um estudo lingüístico das condições de produção desse texto fará dele
um discurso”.
Machado (2004), em artigo publicado sobre as possibilidades de pesquisa do
discurso de informação midiático, de acordo com a visão semiolíngüística da Análise do
Discurso proposta por Charaudeau (1992), tece algumas considerações sobre a maneira de ver
o discurso:
1. Discurso não deve ser reduzido à manifestação verbal de um língua.
34
2. Discurso não deve ser confundido com texto. Esse último representa a
materialização do ato de linguagem. Ele é produto e um processo que depende
de um sujeito-falante particular e de circunstâncias particulares de produção.
3. Discurso não é também uma unidade que ultrapassa a frase. Um conjunto de
frases não faz em si um discurso.
4. Discurso não é visto aqui no sentido usado por Benveniste, que o opõe a
história, como dois planos de enunciação diferentes. O discurso compreende a
união do componente “enunciativo” (discurso) e do componente “enuncivo”
(história).
Portanto, o termo discurso pode ser usado como “encenação” do ato de linguagem
e pode, também, referir-se a um conjunto de saberes comuns construído por participantes de
um grupo social. A charge participa deste conjunto de noções, apresentando regularidades e
normas específicas reconhecidas no cotidiano.
2.1 O contrato comunicacional
Para Charaudeau (1983, p. 46-55), o ato de comunicação é interacional e contratual e
é nesse sentido que se situa o seu quadro teórico-metodológico. O ato de comunicação resulta,
assim, da articulação entre dois circuitos interativos: um situacional e um “linguageiro”,
representados no gráfico abaixo:
35
Ato de Linguagem
Eu
c
Circuito interno (linguageiro)
DIZER
Eu
e
Tu
d
Tu
i
Circuito externo (situacional)
FAZER
Esquema 1: Quadro enunciativo
No circuito externo, encontram-se os parceiros empíricos do ato de linguagem,
seres psicossociais: o Eu-comunicante, instância de emissão-produção do ato, e o Tu-
interpretante, instância de recepção-interpretação desse ato.
No circuito interno, esses sujeitos tornam-se protagonistas, seres de fala, criados e
encenados de acordo com o projeto de fala do Eu-comunicante. São eles o Eu-enunciador e o
Tu-destinatário.
Esse modelo teórico permite uma análise mais ampla do espaço comunicacional,
que se articula a partir de dois contratos (MACHADO, 2004):
- Um contrato situacional (espaço do Fazer), que determina as relações entre os
parceiros do ato de comunicação. (“Estamos aqui para fazer o quê?” “E em que
tipo de situação?”)
- Um contrato comunicacional, que articula os elementos linguageiros ou
discursivos do ato de comunicação. (“Como devemos falar?”) (MACHADO,
2004)
Segundo Charaudeau, é com base nesses contratos que se constrói o projeto de
fala, o qual vai se formar através de um dispositivo midiático determinado. Relacionando o
“Esquema 1: Quadro enunciativo” ao contrato de comunicação do jornal, e aqui se inclui o
contrato da charge, temos: no circuito externo, identificamos o Eu
c
(Eu-comunicante) e o Tu
i
(Tu-interpretante), os quais representam, respectivamente, o responsável pelo jornal
36
(proprietário, presidente, empresário) e o leitor empírico. No circuito interno, identificamos o
Eu
e
(o sujeito-enunciador) e o Tu
d
(o sujeito-destinatário), que seriam, respectivamente, o
jornalista, (ou o chargista, o cronista, o desenhista, o fotógrafo, o editorialista) e o leitor, dito
ideal. Esses são os seres de fala da encenação do Dizer, os quais assumem diferentes faces, de
acordo com os papéis que lhes são atribuídos pelos parceiros do ato de linguagem, em função
da relação contratual do jornal de informação (CHARAUDEAU, 2001, p.32).
Essa relação contratual estabelecida entre os produtores do jornal e os
consumidores (leitores), conforme o “Esquema 1: Quadro enunciativo”, serve de modelo a
todos os sub-contratos que estão nas mesmas condições de realização, considerando que cada
um deles pode gerar variantes. Uma variante, segundo Charaudeau (2004, p.35), respeita as
características essenciais do gênero, entretanto, acentua uma delas, o que não modifica o
gênero, mas especifica um dos seus aspectos, ou seja, “uma variante não muda nada nos
dados situacionais de base do contrato, mas especifica um dos seus componentes”.
Charaudeau (1996, p.39) propõe:
construir uma tipologia não de formas nem de sentido, mas de condições de
realização dos textos, - isto é, os contratos de comunicação, considerando que
existem contratos mais ou menos gerais que se ligam uns aos outros e cada um deles
pode dar lugar a variantes.
Na prática, podemos observar que são estabelecidos sub-contratos ou variantes
referentes a cadernos, seções, artigos, página de entretenimento e de cultura e também em
relação a cada texto dos discursos publicados.
A relação contratual “depende do desafio construído no e pelo ato de linguagem”
(CHARAUDEAU, 2001, p.30). Depende de componentes tornados necessários pelo jogo de
expectativas que envolvem o ato linguageiro, os quais são de três tipos: comunicacional ou
situacional (definem o quadro físico da situação); psicossocial (estatutos passíveis de
reconhecimento pelo outro, como idade, sexo, profissão, posição hierárquica); intencional
(conhecimento a priori sobre o outro, saberes partilhados). O sujeito-comunicante (Eu
c
) é o
37
parceiro que inicia o processo de produção do ato de linguagem em função dos componentes
acima. É no componente intencional que estão as hipóteses de saber que são construídas
acerca do sujeito-interpretante (Tu
i
). Para que um ato de linguagem seja válido, é preciso que
os parceiros reconheçam o direito à palavra de cada um, o que vai importar conhecer a
identidade do parceiro.
No circuito externo, nível situacional do contrato comunicacional, encontra-se o
espaço das restrições, o que se refere às condições mínimas para que se possa estabelecer uma
interação linguageira, ou seja, os dados da identidade, da finalidade, do propósito e das
circunstâncias materiais. No circuito interno, nível linguageiro do contrato comunicacional,
encontramos o sujeito-enunciador (Eu
e
) e o sujeito destinatário (Tu
d
), os quais deverão
satisfazer as condições de legitimidade (princípio de alteridade), de credibilidade (princípio
de pertinência) e de captação (princípios de influência e de regulação), para a realização de
um conjunto de “atos de discurso” (CHARAUDEAU, 1996, p.36).
Cada situação de comunicação tem seus elementos essenciais: finalidade,
identidade, propósito e circunstância. A finalidade do ato de comunicação é que vai selecionar
a visada que determina a orientação discursiva da comunicação. As visadas (visées)
correspondem “a uma intencionalidade psico-sócio-discursiva que determina a expectativa
(enjeu) do ato de linguagem do sujeito falante e, por conseguinte, da própria troca
linguageira” (CHARAUDEAU, 2004, p.22-23). Charaudeau descreve seis das principais
visadas: de prescrição, de solicitação, de incitação, de informação, de instrução, de
demonstração. Ei-las:
1 - a visada de “prescrição: Eu quer “mandar fazer” (faire faire), e ele tem
autoridade de poder sancionar; Tu se encontra, então, em posição de “dever fazer”;
2 - a visada de “solicitação”: Eu quer “saber”, e ele está, então, em posição de
inferioridade de saber diante do Tu, mas legitimado em sua demanda; Tu esem
posição de “dever responder” à solicitação;
3 - a visada de “incitação”: Eu quer “mandar fazer(faire faire) , mas, não estando
em posição de autoridade, como no caso da prescrição, não pode senão incitar a
fazer; ele deve, então, “fazer acreditar” (por persuasão ou sedução) ao Tu que ele
será o beneficiário de seu próprio ato; Tu está, então, em posição de “dever
acreditar” que, se ele age, é para o seu bem;
38
4 - a visada de “informação”: Eu quer “fazer saber”, e ele está legitimado em sua
posição de saber; Tu se encontra na posição de “dever saber” alguma coisa sobre a
existência dos fatos, ou sobre o porquê ou o como de seu surgimento;
5 - a visada de “instrução”: Eu quer “fazer saber-fazer”, e ele se encontra ao mesmo
tempo em posição de autoridade de saber fazer e de legitimação para transmitir o
saber fazer; Tu está em posição de “dever saber fazer”, segundo um modelo (ou
modo de emprego) que é proposto por Eu;
6 - a visada de “demonstração”: Eu quer “estabelecer a verdade e mostrar as
provas”, segundo uma certa posição de autoridade de saber (cientista, especialista,
expert), Tu está em posição de ter que receber e ter que avaliar” uma verdade e,
então, ter a capacidade de fazê-lo. (CHARAUDEAU, 2004, p. 23-24)
O jornal de informação está dentro de uma situação de comunicação midiática em
que a circunstância material de comunicação é a escritura. Os participantes da troca,
denominados por Charaudeau instância informante (Eu
c
) e instância cidadã (Tu
i
), estão numa
situação monolocutiva, ou seja, não estão in praesentia. Em relação à finalidade, uma ou mais
visadas podem ser selecionadas, contudo, a visada dominante é a de informação, que poderá
vir acompanhada de outras, como a de incitação, a de demonstração, a de instrução. Quanto
ao propósito e à sua estruturação temática, os acontecimentos do espaço público é que serão
privilegiados.
2.2 O contrato de “diversão” da charge
Para cada situação de comunicação vai existir um contrato. O contrato de
informação visa, principalmente, informar, fazer o leitor tomar conhecimento do que ocorre
no seu mundo. O jornal constitui um dos veículos desse contrato comunicativo-informativo.
Contudo, além de pretender ser fonte de informação legítima e oferecer credibilidade, o jornal
ainda precisa conservar os seus leitores, e é com o propósito de cativar e manter a fidelidade
dos leitores que se coloca dentro do jornal impresso um contrato de “diversão”. Segundo
Machado (s.d.), além de chamar a atenção do leitor, esse contrato vai despertá-lo para os
implícitos, para o outro lado dos textos ditos sérios, veiculados no jornal impresso. Nesse
contrato de “diversão”, encontram-se as estratégias de sedução do jornal, as quais implicam a
39
inclusão de efeitos lúdicos. Entre esses, estão o uso do humor e da ironia em desenhos, fotos
parodizadas, e também as palavras cruzadas, inseridas na expressão comunicativa.
Nas palavras de Machado (s.d.),
o ‘corpo grotesco’ (que suscita riso ou escárnio, ridículo) é algo previsível nos
desenho de humor e nos cartuns. A ‘visão do mundo às avessas’ é favorecida pelo
cômico dos jornais. A ironia aí utilizada mostra a inversão de valores, mas ao
mesmo tempo convida o leitor para uma reflexão sobre o papel dessa inversão no
jornal, veículo de comunicação midiática.
A pesquisadora lembra ainda que, apesar da brevidade do espaço ocupado pelo
desenho, em que o icônico coabita com o verbal, a força de informação do desenho produz
grande impacto, principalmente pela habilidade no uso do componente irônico.
Na charge, podem-se observar todos esses recursos os quais vão certamente
chamar a atenção e levar o leitor à reflexão. A charge constitui uma das estratégias
argumentativo-persuasivas que o sujeito-enunciador (instância da produção), participando do
mesmo conhecimento de mundo do seu destinatário, o leitor do jornal (instância da recepção),
lança mão com o propósito de captar e seduzir o seu leitor a fim de manter a sua atenção e
fidelidade. Segundo Charaudeau (1997, p.9), é a partir da situação de comunicação que se
deve começar a análise dos discursos. Entre os componentes do nível situacional (identidade,
finalidade, propósito, circunstâncias), Charaudeau (1997, p.12) destaca a “finalidade”, porque
ela seleciona um tipo de visada (visée) e determina a orientação discursiva.
No caso da charge, a finalidade seleciona uma “visée” de informação (fazer
saber), mas, ao lado dela, seleciona também uma viséede incitação (fazer crer), através de
persuasão ou sedução.
40
2.3 Os sujeitos e seus papéis
No contrato de comunicação da charge, assim como em qualquer contrato de
comunicação, “o sujeito do discurso é uma noção necessária para precisar o estatuto, o lugar e
a posição do sujeito falante (ou do locutor) com relação a sua atividade linguageira”, cuja
competência não é simplesmente linguageira, mas “é, ao mesmo tempo, comunicacional,
discursiva e lingüística”. (CHARAUDEAU, 2004. p.457-8) O autor diz que o sujeito é, ao
mesmo tempo, coagido pelos dados da situação de comunicação e livre para atuar como
indivíduo; é coagido porque tem de se comportar discursivamente de determinada maneira, e
é livre porque pode se individualizar ao usar estratégias. Para tratar desse mecanismo
complexo de discursivização, o autor propõe distinguir “um sujeito comunicante de um
sujeito interpretante externos ao dito (nível situacional), um sujeito enunciador de um sujeito
destinatário internos ao dito (nível discursivo)” (CHARAUDEAU, 2004, p.458).
Em vista dos sujeitos apresentados tanto no circuito externo como no circuito
interno do contrato de comunicação, Charaudeau chama a atenção para o fato de que o sujeito
do discurso é composto de várias denominações. Ducrot fala de ser empírico (que seria o
autor), ser de discurso (o locutor), ser de pura enunciação (o enunciador). Outros autores,
como Bally, Genette e Benveniste, atribuem outras denominações. Charaudeau (2004, p.458)
diz que o sujeito do discurso é polifônico, uma vez que é portador de várias vozes
enunciativas, e que “é dividido, pois carrega consigo vários tipos de saberes, dos quais uns
são conscientes, outros são não-conscientes, outros ainda inconscientes” e se desdobra quando
é solicitado a desempenhar papéis de bases diferentes: às vezes de sujeito produtor do ato de
linguagem; às vezes de receptor que deve interpretar o ato de linguagem.
41
2.4 A charge como sub-gênero do gênero informativo
O jornal, seja ele televisivo, oral ou impresso, constitui hoje um importante meio
de comunicação, proporcionando a seu telespectador, ouvinte ou leitor situar-se social e
profissionalmente. O jornal de informação impresso apresenta uma grande variedade de
conteúdos no seu objetivo principal: informar. Mas, ao mesmo tempo que informa, ele
também forma, pois todo órgão transmissor de notícia tem sua visão e ideologia próprias. Por
mais imparcial que se queira apresentar, sempre marcas que mostram o sujeito mediador
das mensagens, o qual sempre terá uma postura particular frente aos fatos da vida.
Normalmente, o leitor do jornal terá acesso aos comentários, a uma versão do fato, na visão
do jornalista ou do articulista. Para que o leitor possa ter uma visão crítica do acontecimento,
ele terá que confrontar esses comentários com outras notícias sobre o mesmo conteúdo,
advindas de outros periódicos e com posturas diferentes. O jornal impresso, de acordo com a
teoria dos gêneros do discurso de Charaudeau (2004, p.38), constitui ele próprio um
subgênero do gênero informativo, este também um subgênero do gênero midiático. Essa
classificação em neros, conforme o próprio lingüista adverte, oferece algumas dificuldades
sobre o que realmente chamar de gênero: se às constantes do contrato situacional, ou às
constantes da organização discursiva, ou às constantes formais. O autor propõe uma
terminologia que mostra a interdependência entre os níveis situacional, discursivo e formal,
sugerindo uma classificação que leve em conta:
o contrato global de comunicação social com suas variantes, no que diz respeito aos
dados situacionais; à organização discursiva e seus modos, no que diz respeito às
restrições específicas advindas dos dados situacionais; às formas textuais, no que diz
respeito às recorrências formais que testemunham as regularidades e até mesmo as
rotinizações e a configuração textual (CHARAUDEAU, 2004, p.38).
42
Assim, Charaudeau falaria de “gênero situacionalpara se referir às condições do
contrato, de “subgêneros”, como fala de “subcontratos”, que são as variantes encaixadas em
um contrato global. Nessa percepção, propomos considerar a charge como um subgênero ou
variante textual do jornal impresso (nosso caso), em virtude das características discursivas e
semiolingüísticas que possui. Relacionada a uma orientação lúdica (“diversão”) no interior do
jornal impresso, a charge volta-se tanto para a realização crítica (formação de opinião) quanto
para a característica majoritária do gênero (informação), situando-se ao lado de outras
variantes, como o “Editorial” e as “Cartas à redação”.
A partir de Charaudeau (1999) e do esquema desenvolvido por Souza (2003,
p.71), podemos visualizar tal proposição, conforme o quadro a seguir:
SITUAÇÃO GLOBAL DE COMUNICAÇÃO
Gênero: Informativo
SITUAÇÃO ESPECÍFICA DE COMUNICAÇÃO
Gênero: Jornal Impresso
VARIANTES TEXTUAIS
Sub-gêneros
Editorial
Charge
Cartas à
redação
Quadro 2 - Categorização de variantes textuais
Poderemos, então, falar de gênero Charge como subgênero do gênero Jornal
Impresso e também como uma variante textual do jornal em virtude de características
discursivas e semiolingüísticas específicas da charge. Por fazer parte de um jornal impresso,
que tem tendências e ideologias próprias, a charge normalmente deixa transparecer a postura
político-partidária adotada pelos dirigentes do jornal.
43
CAPÍTULO 3
OS MODOS DE ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO
Todo ato de linguagem, de qualquer dimensão, terá sentido dentro de uma
situação de comunicação, a qual, segundo Charaudeau, se definará pelas respostas às
questões:
1. Comunicar-se para dizer o quê? (a finalidade ou a visada do ato de comunicação)
2. Quem vai se comunicar com quem? (identidade dos parceiros)
3. Sobre o que será a comunicação? (propos)
4. Em quais circunstâncias? (condições materiais, dispositivo) (MACHADO, 2004)
Tais perguntas corresponderiam, respectivamente, às restrições situacionais de
finalidade, identidade, propos e condições materiais, dados essenciais para que se realize o ato
de linguagem. Esses dados, também denominados de restrições psicossociais, pertencem ao
espaço externo do quadro comunicacional de Charaudeau, que apresenta também um espaço
interno, o das restrições discursivas.
A situação de comunicação constitui, ao mesmo tempo, o quadro físico e mental
no qual se encontram os parceiros da troca linguageira, portadores de uma identidade
(psicológica e social) e ligados entre si por um contrato comunicativo. É também o lugar onde
se constrói um contrato linguageiro de troca, em vista da identidade dos parceiros e das
intenções comunicativas do sujeito-falante. Tem-se, assim, um Projeto de Palavra
(CHARAUDEAU, 1992).
Uma vez que as condições essenciais do contrato foram atendidas, o sujeito-
comunicante, atendendo a uma finalidade pré-estabelecida, apropria-se da língua a fim de
organizá-la em discurso. Este sujeito-comunicante terá de fazer escolhas dentro das categorias
44
da língua e dentro dos modos de organização do discurso, em função das limitações impostas
pela situação. Os modos de organização do discurso, considerados “instrumentos” de
trabalho, são em número de quatro: enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo.
3.1 O modo enunciativo
O modo de organização enunciativo intervém na encenação dos outros três modos
de organização do discurso, uma vez que os precede e os comanda. Esse modo de organização
diz respeito a três pontos de vista:
a) à relação que o locutor mantém com o seu interlocutor;
b) à relação que o locutor mantém com o seu dito;
c) à relação que o locutor mantém com o “outro”.
A relação do locutor com seu interlocutor se refere à posição do sujeito falante em
relação ao seu interlocutor ao implicar este último na sua fala. O locutor age sobre o seu
interlocutor, estabelecendo uma “relação de influência”, forçando-o a responder e/ou reagir.
Aliás, no momento da enunciação, o locutor atribui a si e ao interlocutor “papéis
linguageiros” que podem ser de dois tipos: a) o locutor age sobre o interlocutor como numa
relação de controle e “impõe” a ele um “fazer/fazer” ou um “fazer/dizer”, os quais podem ser
exemplificados com os casos de “injunção” e de “interpelação”; b) o locutor está em posição
de inferioridade em relação ao interlocutor e para satisfazer sua necessidade de “sabere de
“poder fazer”, ele solicita algo ao interlocutor como no caso das modalidades de
“interrogação” e de “pedido”.
A relação do locutor com seu dito ou com seu propósito refere-se à posição do
sujeito-falante sobre o mundo, sem implicar o interlocutor nesse posicionamento. Isso resulta
45
numa enunciação modalizada, que deixa transparecer o ponto de vista interno do sujeito-
falante.
A relação do locutor com o outro mostra o apagamento do sujeito-falante no seu
ato de enunciação, bem como a não implicação do seu interlocutor. Aparecem aqui os
discursos do mundo (o outro, o terceiro) impondo-se sobre o locutor e fazendo aparecer uma
enunciação aparentemente objetiva, com ditos e textos que não pertencem ao sujeito-falante.
Dois casos devem ser levados em conta: a) o dito se impõe por si mesmo, como nos casos das
modalidades de “evidência” e de “probabilidade”; b) o dito é um texto produzido por outro
locutor, e o sujeito-falante desempenha o papel de relator, como nas diversas formas do
“discurso relatado”.
As formas de posicionamento destacadas anteriormente, ou seja, a relação do
locutor com o seu interlocutor, com o seu dito e com o outro são expressas através de escolhas
de ordem discursiva e de ordem lingüística e consistem nos chamados “procedimentos de
organização da lógica enunciativa”.
Os procedimentos discursivos encontram-se nos diferentes modos de organização
do discurso: descritivo, narrativo, argumentativo. No modo descritivo, tais procedimentos são
encontrados nos efeitos de saber, de realidade/ficção, de confidência, de gênero. No modo
narrativo, encontram-se nas diferentes formas de implicar o destinatário-leitor nos modos de
intervenção do narrador, nos estatutos e pontos de vista deste. Na argumentação, esses
procedimentos encontram-se nos diferentes tipos de posições adotadas pelo sujeito que
argumenta, e nos diferentes tipos de valores argumentativos por ele apresentados.
Os procedimentos lingüísticos, além das categorias que dependem da posição do
sujeito-falante no ato da enunciação, apresentam a categoria da modalização, a qual vai
explicitar os diferentes tipos de relação do ato enunciativo, ou seja, a posição do sujeito em
relação ao interlocutor, ao seu dito ou ao seu outro, que mostram, respectivamente, uma
46
relação de influência, um ponto de vista situacional e um depoimento sobre o mundo.
(CHARAUDEAU, 1992, p.651). Embora esteja incluída entre os procedimentos lingüísticos,
Charaudeau (1992) admite que a modalização possa resultar da organização do conjunto do
enunciado em relação a outros índices verbais e paraverbais (entonação, gestos, olhares,
pontuação) e as particularidades da situação de comunicação. A modalização não é expressa
por uma marca lingüística, uma vez que as marcas lingüísticas são polissêmicas e podem ter
vários sentidos, de acordo com as particularidades do contexto no qual elas se encontram.
Charaudeau conclui que a modalização se encontra no implícito do discurso e que
(...) longe de ser uma categoria formal, será então considerada aqui como
uma categoria conceptual à qual correspondem os meios de expressão que
permitem explicitar os diferentes posicionamentos do sujeito falante e suas
intenções de enunciação (CHARAUDEAU, 1992, p.574-6).
A modalização se compõe de atos enunciativos de base que correspondem à
posição do locutor em relação ao ato de locução. Os atos locutivos (já vistos acima, mas sem
serem categorizados) são de três tipos: atos alocutivos, elocutivos e delocutivos.
O ato alocutivo implica o interlocutor no seu ato de enunciação e impõe a ele sua
proposição. Constata-se a presença do interlocutor através dos pronomes tu, vós, nome
próprio do interlocutor, frase imperativa ou negativa. Exemplos: Venha, aqui! O que ele disse
a você? O ato alocutivo oferece ao interlocutor a oportunidade de reagir, seja através de um
questionamento, sugestão ou cumprimento de uma ordem.
O ato elocutivo situa o locutor em relação a si mesmo, ao seu dito. A presença do
locutor é constatada através de diversas formas de pronomes pessoais, nome próprio,
substantivo comum, frases exclamativas e optativas: Exemplo: Eu aceito! Eu creio nisso.
O ato delocutivo impõe ao locutor o propósito como se ele ali não tivesse
nenhuma responsabilidade. O locutor e o interlocutor estão ausentes deste ato de enunciação e
ele aparece sob a forma de impessoalidade. Exemplo: É necessário que se faça tal
47
procedimento. Após o ato delocutivo, o discurso não é necessariamente interrompido, o
interlocutor não é obrigado a reagir e o locutor pode silenciar-se.
A esses atos locutivos correspondem sub-categorias denominadas modalidades
enunciativas. Ao ato alocutivo correspondem as categorias de injunção, interrogação,
interpelação. Ao ato elocutivo, as categorias de opinião, apreciação, obrigação, promessa,
acordo, através das quais o locutor revela o seu ponto de vista sobre o seu dito. Ao ato
delocutivo correspondem as categorias de asserção e discurso relatado. Ainda de acordo com
Charaudeau (1992), os atos locutivos e as modalidades enunciativas se relacionam por
encaixamento e a toda modalidade corresponde um ato locutivo.
As modalidades e os atos locutivos são importantes para a organização
enunciativa de qualquer discurso e também para a análise do nosso corpus, onde
predominância do enunciativo, mas contando também com os outros modos de organização
(descritivo, narrativo e argumentativo), sobre os quais faremos uma breve apreciação.
3.2 O modo descritivo
De acordo com Charaudeau (1992), três problemas se apresentam em relação à
organização descritiva: l) a confusão que existe em estabelecer o que é da ordem do descritivo
e o que se refere ao narrativo, principalmente à utilização de palavras como descrever e relatar
em relação às redações escolares; 2) o fato de não se distinguir a finalidade de um texto de seu
modo de organização; 3) a relação língua/texto. Questiona-se se uma relação de
continuidade entre a língua e as características discursivas de um texto e que se apenas a
acumulação de marcas de uma mesma categoria de língua, (neste caso, a qualificação),
48
permite determinar certo modo de discurso (aqui o descritivo). Embora haja estudos que
tentam estabelecer diferença entre o narrativo e o descritivo com base na presença ou ausência
de determinadas marcas lingüísticas, e isso mostra uma afinidade entre categorias da língua e
os modos discursivos, Charaudeau (1992) sugere que isso é insuficiente para se determinar
uma ordem discursiva e ainda mais caracterizar um texto, o qual, diz ele, vai depender da
situação de comunicação.
Do ponto de vista do sujeito-falante, “descrever” corresponde a uma atividade
linguageira que se opõe às atividades de narrar e argumentar, mas que, ao mesmo tempo,
combina com estas no interior de um mesmo texto. Enquanto “narrar” consiste em levar em
conta o que é da ordem da experiência e o que é da ordem do desenvolvimento das ações no
tempo (ações nas quais os seres humanos são protagonistas), “descrever” consiste em olhar o
mundo com um olhar fixo”, o que fará existirem os seres, nomeando-os, localizando-os e
atribuindo-lhes qualidades que os singularizam. Contudo, “descrever” está muito próximo da
noção de “narrar”, pois as ações têm sentido em relação às identidades e às qualificações
dos seres actantes. Em relação a argumentar, que consiste em levar em conta operações
abstratas de ordem lógica, destinadas a explicar as ligações de causa e efeito entre os fatos e
os acontecimentos, descrever consiste em identificar os seres do mundo através de sua
classificação e não necessariamente através de uma relação de causalidade. No entanto,
descrever e argumentar são atividades estreitamente ligadas, pois enquanto a primeira
empresta à segunda um certo número de operações lógicas para classificar os seres, esta
pode ser exercida em função dos seres que têm uma certa identidade e qualificação.
Charaudeau resume a questão dos três modos de organização, dizendo que todos os três
modos contribuem para construir textos: narrar o faz enquanto testemunha uma experiência,
argumentar o faz, demonstrando relações; descrever o faz, identificando e qualificando os
seres.
49
Os componentes da organização descritiva são de três tipos: nomear, localizar-
situar, qualificar, os quais se apresentam, ao mesmo tempo, autônomos e indissociáveis.
Nomear é dar existência a um ser por meio de uma dupla operação: perceber uma
diferença no continuum do universo e, simultaneamente, relacionar essa diferença a uma
semelhança. Esses procedimentos não são pré-construídos. Dependem do sujeito que percebe,
uma vez que é ele que constrói e estrutura a visão do mundo.
Localizar situar é determinar o lugar que um ser ocupa no espaço e no tempo.
Constitui um recorte objetivo do mundo, recorte este que depende da visão que um grupo
cultural projeta sobre este mundo. Para Charaudeau, datar é situar no tempo.
Qualificar é uma atividade distinta de nomear, mas que a complementa. Consiste
em atribuir a um ser, de maneira explícita, uma qualidade que o caracterize e o especifique,
classificando-o, novamente, em um subconjunto. Qualificar, da mesma forma que nomear, é
reduzir a infinitude do mundo, construindo classes e subclasses de seres. Toda qualificação é
testemunha do olhar que o sujeito-falante tem sobre os seres do mundo, e é testemunha,
portanto, de sua subjetividade.
Dentre os procedimentos discursivos e lingüísticos de base para a construção do
modo de organização descritivo, citamos apenas os que servem à análise do corpus desta
dissertação: o procedimento discursivo que diz respeito à construção subjetiva do mundo
correspondente à finalidade de narrar inerente às histórias em quadrinhos, e os procedimentos
lingüísticos que dizem respeito a qualificar, através da utilização da analogia explícita ou
implícita, os seres do universo. No caso da analogia explícita, é um procedimento que consiste
em colocar em correspondência seres do universo e qualidades que pertencem a domínios
diferentes, e em relação à analogia implícita, pelo viés da transferência de sentido (metáforas,
metonímias), seres não humanos serão personificados, num processo de antropomorfia.
50
Melo (2003) trabalha com a descrição através da imagem e diz que quando se
recorre à imagem, a atividade de nomear corresponde a designar visualmente lugares,
personagens e objetos, e que a qualificação se processa através da construção de cenas ou pela
focalização temática e uma escolha de pontos de vistas sobre uma atividade ou processo.
Acrescenta, ainda, que a descrição, através da imagem, apresenta, entre outras, a característica
de utilizar sintagmas o-cronológicos e também uma espécie de fragmentação que tem por
objetivo designar visualmente seres, objetos e lugares. A imagem assegura, nesse caso, uma
função de ratificar os elementos expostos verbalmente e permanece, conseqüentemente,
sujeita ao estrato verbal, o qual se apresenta ora como um mecanismo de restrição, ora como
um procedimento de ancoragem. Parece-nos que esse tipo de descrição se presta muito bem à
descrição promovida pela charge, motivo pelo qual esse modo de organização do discurso
interessa ao nosso estudo.
3.3 O modo narrativo
Não é fácil definir “narrativa”, uma vez que esse termo, juntamente com outros,
como história e narração, apresentam-se como expressões polissêmicas. Pelo fato de a
narrativa pertencer tanto ao universo da realidade quanto ao da ficção, ela pode ser facilmente
associada à polissemia. Para Genette (1972), os seguintes significados podem ser atribuídos
ao termo:
a) enunciado narrativo, discurso oral ou escrito que assume a relação de um fato
ou de uma série de fatos;
b) sucessão de fatos, reais ou ficcionais, que são objeto desse discurso;
51
c) ato de narrar (MELO, 2003).
Genette toma como objeto a análise do discurso narrativo com suas estratégias
para implicar o leitor-espectador. Para ele, a narrativa seria vista como um objeto discursivo, a
partir do qual fatos são relacionados, enquanto que o termo história indicaria o significado ou
conteúdo narrativo, ou seja, a sucessão de fatos que são objetos desse discurso. A narrativa
seria o ato narrativo produtor e, por extensão, corresponderia ao conjunto da situação real ou
fictícia na qual ocorre. O modo de organização narrativo organiza o mundo de maneira
sucessiva e contínua, numa lógica cuja coerência é marcada pelo fato de possuir início e fim.
O universo da narração é construído sob a responsabilidade de um sujeito-narrador, ligado por
meio de um contrato de comunicação ao destinatário da narrativa. Esse sujeito age
concomitantemente sobre a configuração da organização lógico-narrativa e sobre o modo de
enunciação do universo narrado. Em relação aos papéis do sujeito, o sujeito que descreve
desempenha o papel de observador e de descritor. O sujeito que narra tem o papel de
testemunha, que observa como os seres se transformam sob o efeito de seus próprios atos.
Segundo Charaudeau (l992, p.716), o modo de organização narrativo se
caracteriza por uma dupla articulação: a construção de uma sucessão de ações segundo uma
lógica de ação, à qual se denomina: organização da lógica narrativa; e a situação espacial de
uma representação narrativa, a que se chamará organização da encenação narrativa.
Os componentes da lógica narrativa são de três tipos: actantes, procedimentos e
seqüências. Para Charaudeau (1992), os actantes do modo de organização narrativo, do ponto
de vista de sua participação na esfera de ação, lembram os actantes lingüísticos que se
prendem à ação, mas não se deve esquecer de que, neste caso, trata-se de categorias de
discurso e não de categorias de língua, o que traz algumas diferenças.
Quanto aos procedimentos narrativos, estes se parecem com os processos
expressos pelas categorias de língua. Podem ser considerados como a semantização das ações,
52
mas em relação com sua função narrativa. Essas funções se encontram em estreita relação
com os papéis narrativos dos actantes, uma vez que eles se determinam reciprocamente.
Charaudeau (1992, p.710) faz uma introdução ao Modo de Organização do
Discurso Narrativo, tentando definir o que seja “narração”, récit e “história”. Não nos
deteremos nessas definições e partiremos para a noção de “narratividade”, a que esse autor se
refere em relação ao valor operatório, ou seja, descobrir e explicar os mecanismos que
presidem a esse modo de organização. Trata-se de evidenciar os “componentes” e os
“procedimentos” de um modo de organização, cujas combinações devem permitir melhor
compreender as múltiplas significações de um texto em um texto particular. Nas palavras de
Genette, “o essencial não é esta ou aquela combinação efetiva, mas o próprio princípio
combinatório, o qual tem o mérito de colocar as diversas categorias em uma relação livre e
sem restrições a princípio (...)”.
Nas palavras de Charaudeau, “narrar” não é somente descrever uma seqüência de
fatos ou de acontecimentos, teria que ser acompanhado de uma intencionalidade, ou seja, de
uma vontade de transmitir alguma coisa, uma experiência de mundo, a algum “destinatário”
(leitor, ouvinte, espectador), de uma certa maneira”.
Para Charaudeau (1992), récit, (relação oral ou escrita (de fatos verdadeiros ou
imaginários), que se relaciona às palavras “narrar, contar, reportar”), constitui uma totalidade
da qual o narrativo é um dos componentes. Récit corresponde à finalidade “o que quer dizer”,
a qual necessita ao mesmo tempo de ações e de qualificações, ou seja, os modos de
organização do discurso: o narrativo e o descritivo. Em relação à função narrativa, o narrativo
mostra um mundo que é construído num desenvolvimento de uma sucessão de ações que se
influenciam umas às outras e se transformam em um encadeamento progressivo. O descritivo
organiza o mundo de uma maneira “taxionômica” (classificação dos seres do universo),
descontínua (não ligação necessária entre os seres e nem entre suas propriedades) e aberta
53
(não tem fim necessariamente). o narrativo organiza o mundo de maneira “sucessiva” e
“contínua”, em uma lógica em que a coerência é marcada pelo seu próprio fechamento (início
e fim).
Com relação ao terceiro componente da gica narrativa, a seqüência, esta diz
respeito à lógica narrativa e é concebida como uma sucessão de elementos correlatos que se
organizam segundo um princípio de coerência, um princípio de intencionalidade, um princípio
de encadeamento, em um quadro espaço-temporal, segundo um princípio de localização.
A construção da organização gico-narrativa se faz com os componentes acima
em uma configuração assegurada por certos procedimentos. A configuração narrativa é o
resultado de encenação da lógica narrativa; ela depende do que se chama mise en narration,
que será tratada a seguir:
1) Os componentes da mise en narration:
Como ocorre na comunicação lingüística, em que o “eu” e o “tu” são pressupostos
um pelo outro, também não pode haver récit sem narrador e sem ouvinte (ou leitor). Segundo
Charaudeau (1992, p.755), são componentes da encenação narrativa: o dispositivo narrativo,
os parceiros e os protagonistas da mise en narration.
Em relação ao dispositivo narrativo, aquele que conta uma história não é o mesmo
que escreve, nem é o ser empírico. Mesmo em se tratando da própria pessoa, como em uma
autobiografia, não se pode confundir o indivíduo (ser psicológico e social), o autor (ser que
escreve) e o narrador (ser “de papel”, que conta uma história).
Em relação ao leitor, o se deve confundir tal indivíduo com o leitor real de
quem se requer um mínimo de competência de leitura, nem este leitor real com o leitor “ser de
54
papel” que se encontra implicado na história como destinatário de uma história contada por
um narrador.
Toda história (récit) depende de uma “encenação narrativa” que, análoga à
comunicação em geral, articula dois espaços de significação:
- espaço externo (extratextual), onde se encontram os dois parceiros da troca
linguageira: o autor e o leitor “reais”. Esses dois parceiros, que têm como objeto
de troca o texto, são os seres de identidade social e correspondem ao sujeito-
falante e sujeito-interpretante do dispositivo geral de comunicação.
- espaço interno do texto (intratextual), onde se encontram os dois sujeitos da
história: o narrador e o leitor destinatário, os quais são seres de papel e
correspondem ao enunciador e ao destinatário do dispositivo geral de
comunicação.
São parceiros e protagonistas da mise en narration o autor e o leitor real, ambos
subdivididos em dois: o autor-indivíduo e o autor-escritor/escrevente; e o leitor real e o leitor
possível (aquele que tem a competência da leitura).
No espaço interno da narrativa (récit), encontram-se o narrador e o leitor-
destinatário. O narrador é um “ser de papel” e pode se apresentar como um historiador, ou
melhor, um narrador-historiador (que conta da maneira mais objetiva possível) e um contador
ou narrador-contador (que conta a história de um mundo inventado). Em ambos os casos,
implicância de um narrador-destinatário. No caso do narrador-historiador, requer-se a
presença de um leitor-destinatário que receberá a “história” como verdadeira e, no segundo
caso, como um leitor-destinatário que recebe e partilha da história como história inventada.
Os procedimentos de configuração da mise em narration se referem à identidade,
ao estatuto e aos pontos de vista do narrador textual e permitem a esses componentes se
manifestarem de maneira mais ou menos explícita, mais ou menos direta. Esses
55
procedimentos, em cada um dos seus aspectos, estão diretamente relacionados uns aos outros,
uma vez que todos dependem do narrador e, conseqüentemente, toda modificação em um dos
aspectos no decorrer da história se repercute sobre os outros.
Segundo Charaudeau (1992, p.761), embora pareça ao leitor que toda história
(récit) se apresente organizada e contada por um narrador, na realidade, o dispositivo de
“encenação da narração” comporta vários tipos de sujeito, os quais apresentam cada um uma
identidade própria, a qual faz com que cada sujeito desempenhe um papel particular na cena
da narrativa. Desse modo, é possível determinar os procedimentos de aparição e de
identificação desses diferentes tipos de sujeito. É o que faremos a seguir:
a) Presença e intervenção do locutor-indivíduo procedimento que produz efeito
de realidade e o narrador se apresenta como cronista, observador e testemunha de
sua época;
b) Presença e intervenção do autor-escritor procedimento que apresenta marcas
discursivas de um “projeto de escrita” e a intervenção do autor-escritor tende a
produzir efeito de realidade e um efeito de cumplicidade com o leitor, através do
contrato de leitura;
c) Presença e intervenção do narrador-historiador marcas discursivas deixam
pensar que o narrador é como um historiador que conta, tomando por base
documentos e testemunhas, o que protege o narrador de subjetivismo, e os fatos
são narrados com credibilidade histórica;
d) Presença e intervenção do narrador-contador o narrador que conta a história
de outro o aparece na história. É apagado. Entretanto, ele pode: 1) revelar-se
explicitamente (através do uso de pronomes, como “nós”, “se”, “eu”, e nas
recapitulações, como “voltemos...” etc.); 2) implicar diretamente o leitor (“Então,
amigo leitor...”);
56
e) O leitor destinatário é chamado discretamente a partilhar seus pensamentos,
seus julgamentos e opiniões, com a ajuda de enunciados que têm um valor de
reflexão geral;
f) O narrador-contador pode mostrar, pela incisão ou escolha de certas palavras,
que ele toma distância em relação às personagens de sua história (récit) e aos
acontecimentos, distância esta mais ou menos irônica, que ele convida o leitor a
partilhar.
2) O estatuto do narrador:
O narrador pode-se encaixar ou se manifestar de diversas maneiras na história
(récit). A relação estabelecida entre o narrador e a história contada é complexa e depende do
estatuto do narrador, de sua identidade e também do seu ponto de vista sobre as personagens
da história. Aqui, três categorias se apresentam: ou o narrador conta a história de um outro, ou
a história na qual ele é o personagem central (ou um dos personagens centrais), ou existem
vários narradores.
No estudo que ora desenvolvemos, parece-nos que a existência de vários
narradores mostrando a história (récit) como um jogo de integração ou de encaixamento de
histórias, uma nas outras, cada uma com seu próprio narrador, endossa a noção de polifonia
presente nas charges estudadas, uma vez que cada charge é subdividida em planos com
narradores, às vezes distintos, em cada situação.
57
3) Os pontos de vista do narrador:
Trata-se da relação que se estabelece entre o narrador e seu (ou seus) personagens,
quanto ao saber que ele possui e que ele comunica ao leitor. Genette chama a isso de
“focalização”, mas, de um modo geral, é chamado de “ponto de vista”. Charaudeau faz
distinção preferencialmente entre dois pontos de vista (externo e interno).
a) O ponto de vista externo, objetivante, é o do narrador sobre a “exterioridade da
personagem”, sobre sua aparência física, seus feitos e gestos visíveis, todas as
coisas que podem ser percebidas e verificadas por outro sujeito,
independentemente do narrador.
b) O ponto de vista interno, subjetivante, é aquele do narrador sobre a
“interioridade da personagem”, seus sentimentos, seus pensamentos e suas
pulsões interiores, aquelas que não serão necessariamente percebidas como tais,
nem verificadas por um outro sujeito a não ser um narrador que se encontre no
mesmo lugar e na posição dele.
O ponto de vista do narrador pode ser interessante na análise das personagens das
charges, o que aproveitaremos oportunamente.
Passemos, agora, ao último modo de organização do discurso, o Argumentativo.
3.4 O modo argumentativo
De acordo com Charaudeau (1992, p.785), o modo de organização argumentativo
é ainda mais delicado de tratar do que o narrativo. O narrativo se refere às ações humanas e
58
tem a vantagem de tomar uma realidade “visível e tangível”. O argumentativo não está em
contato a não ser com um saber que tenta prestar conta da experiência humana através de
certas operações de pensamento. A argumentação não faz parte das categorias da língua
(como as conjunções de subordinação), mas da organização do discurso. Argumentar é uma
atividade que inclui numerosos procedimentos, mas tais procedimentos se distinguem
daqueles dos outros modos discursivos, principalmente porque eles se inscrevem num
objetivo racionalizante e jogam o jogo da racionalidade, o qual é marcado por uma lógica e
um princípio de não contradição. A argumentação é o resultado textual de uma combinação
entre diferentes componentes, os quais dependem de uma situação com objetivo persuasivo. O
texto, inteiro ou parcial, poderá se apresentar sob forma dialógica (argumentação
interlocutiva), escrita ou oratória (argumentação monolocutiva). O modo de organização
argumentativo permite construir explicações sobre as asserções feitas a respeito do mundo,
sob duas perspectivas: de razão demonstrativa e de razão persuasiva.
1. A razão demonstrativa vai estabelecer relações de causalidade entre duas ou
mais assertivas. Esse procedimento diz respeito à organização da lógica
argumentativa.
2. A razão persuasiva procura estabelecer a prova com a ajuda de argumentos que
justifiquem os propósitos sobre o mundo e as relações de causalidade que unem as
asserções entre elas. Tal mecanismo depende dos procedimentos da “encenação
discursiva” do sujeito argumentante, ou seja, a mise en argumentative.
Aqui se dará, então, a distinção das categorias da língua, categorias do discurso e
os tipos de textos, mesmo estando esses domínios de construção linguageira em relação uns
com os outros. Charaudeau (1992, p.787), ao se referir à relação entre “categorias do
discurso” e “tipos e textos”, sem entrar nos detalhes de uma tipologia, constata que:
- os textos científicos são organizados segundo um modo dominante argumentativo
(o explicativo);
59
- os textos didáticos são organizados de maneira tanto descritiva quanto
argumentativa;
- os textos da imprensa Charaudeau (1992) acha necessário fazer uma distinção
dos textos de acordo com o gênero – utilizam particularmente o descritivo e o
narrativo; o argumentativo vem somente em contraponto;
- os textos publicitários são raramente argumentativos na sua configuração explícita.
Charaudeau (1992, p.803) estuda o modo de organização argumentativo, partindo
de generalidades, como atribuir uma conceituação a que seja argumentar, estudar a
organização da gica narrativa a partir dos seus componentes e dos procedimentos da gica
argumentativa, ou seja, os modos de raciocínio dedutivo e indutivo e, também, a mise en
argumentation (encenação discursiva) através do estudo dos componentes e dos
procedimentos da encenação argumentativa”. Esses procedimentos se referem ao dispositivo
argumentativo, o qual se compõe de três quadros: “propos”, proposição e persuasão.
O propos é composto de uma ou de várias afirmações sobre os fenômenos do
mundo através de uma relação argumentativa.
A proposição depende da tomada de posição que o sujeito adota em vista da
veracidade do propósito.
A persuasão abre espaço em um quadro de raciocínio persuasivo, o qual é
obrigado a desenvolver uma ou outra opção do quadro de questionamento: refutação,
justificação, ponderação. É no interior desse quadro que o sujeito desenvolve o que se pode
chamar uma “controvérsia”, recorrendo a diversos procedimentos: semânticos, discursivos e
de composição.
Dentre esses, os procedimentos discursivos são os que utilizam pontualmente ou
sistematicamente certas categorias da língua, ou os procedimentos de outros modos de
argumentação do discurso para, no quadro de uma argumentação, produzir certos efeitos de
persuasão. Serão realçados principalmente os seguintes procedimentos: a definição, a
comparação, a descrição narrativa, a citação, a acumulação e o questionamento. Tais
procedimentos são utilizados, visando a efeitos estratégicos, como: efeito de evidência e de
60
saber, efeito pedagógico, efeito de ocultamento, efeito de exemplificação, efeito de
autenticidade. O questionamento argumentativo pode apresentar várias visadas: de incitação,
de proposição de uma escolha, de verificação do saber, de provocação, de denegação.
Os procedimentos de composição podem ser utilizados desde que o sujeito
escolha construir sua argumentação em texto oral ou escrito. Esses procedimentos consistem
em repartir, distribuir, hierarquizar os elementos do dispositivo argumentativo ao longo do
texto, de maneira a facilitar a localização das diferentes articulações do raciocínio
(composição linear, na qual os argumentos são programados segundo uma certa cronologia);
ou a compreensão das conclusões da argumentação (composição classificatória ou
taxonômica, através de representações figurativas, como diagramas, histogramas, esquemas,
cartas etc.).
Melo (2003, p.103) trabalha a construção do texto narrativo através da imagem na
televisão, segundo postulados de Adam (1997). De acordo com a pesquisadora, a imagem
constitui um importante componente à organização argumentativa do texto publicitário. A
argumentação pela imagem apresentaria duas particularidades: a) a estrutura da imagem não
permite o desenvolvimento de uma argumentação lógica, constituída pelo encadeamento de
seqüências dedutivas; b) a imagem pode ser interpretada pela observação do continuum e
da simultaneidade das formas e privilegia o componente de sedução da argumentação, o qual
visaria emocionar e agradar a fim de influenciar o interlocutor por meio de apelos de natureza
afetiva. Para Adam (apud MELO, 2003), os elementos da imagem publicitária funcionam
como índices que provocam ou não efeitos interpretativos no receptor. Acreditamos que a
argumentação pela imagem, como é o caso da charge, funciona como uma estratégia de
captação, a qual, através da emoção, poderá persuadir o destinatário a avaliar o discurso
chargístico, reagindo a ele de forma concordante ou não.
61
PARTE II
O humor na caricatura brota espontaneamente. Ele vem
e naturalmente. Não o tentamos nunca... (Mário
Mendez).
CAPÍTULO 4
POLIFONIA: CARNAVALIZAÇÃO, TRANSGRESSÃO E TRANSTEXTUALIDADE
Nesta parte da pesquisa, pretendemos apresentar uma reflexão sobre a polifonia,
englobando as três categorias que adotamos para a nossa análise: a carnavalização, a
transgressão e a transtextualidade.
A Polifonia, em sentido amplo, constitui, segundo Charaudeau (2004, p.384), um
termo emprestado da música que alude ao fato de que os textos veiculam, na maior parte dos
casos, muitos pontos de vista diferentes: o autor pode fazer falar várias vozes ao longo do seu
texto. Bakhtin (1997, p.5) estuda as relações recíprocas entre o autor e o herói na obra de
Dostoievski, e resume sua descrição na noção de polifonia, que os estudiosos bakhtinianos
desenvolveram em relação à literatura. Na França, Ducrot desenvolveu uma noção
propriamente lingüística da polifonia e da qual ele se serve para analisar toda uma série de
fenômenos lingüísticos. Nos últimos tempos, tem-se tentado forjar, a partir das duas
abordagens polifônicas (de Bakhtin e de Ducrot), uma ferramenta eficaz para a análise do
discurso.
Neste trabalho, consideramos que a polifonia pode ser associada primeiramente ao
nível do “enunciado”, termo também bastante usado em língua corrente e que é empregado de
modo bastante polissêmico em ciências da linguagem, e tem sentido inserido no interior de
62
oposições. Seu emprego se em oposição à “enunciação”, como produto do ato de produção
ou simplesmente como uma seqüência verbal de extensão variável. O enunciado pode ser
empregado em lingüística como um termo primitivo, como observa Charaudeau (2003,
p.196): do ponto de vista sintático, faz oposição a frase; do ponto de vista pragmático, a frase
é uma estrutura tomada fora do uso que corresponde a uma infinidade de enunciados em
contexto, “o enunciado é uma frase em uma determinada situação”. Nota-se, assim, que para
diferentes enunciados podem-se produzir sentidos completamente diferentes.
A charge, em nível discursivo, caracteriza-se como um dos gêneros do discurso.
Dentro do domínio de prática social, ela pertence ao gênero informativo. Na situação global
de comunicação, ela pertence ao gênero jornalístico. Na situação específica de comunicação,
ela constitui uma variante do contrato de diversão do jornal de informação. A charge, muitas
vezes, é produzida a partir de notícias, desenhos, fotos publicadas em edições anteriores, o
que deixa claro seu caráter de hipertexto. Entretanto, ao se apropriar de uma foto, de uma
notícia do jornal considerado de referência e deslocá-las de um gênero para outro com
intencionalidade de gerar o humor, a charge, que desperta o riso e a ironia, serve também para
levar o leitor à meditação e à crítica. Essa teoria, afeita à literatura, pode muito bem se unir à
análise do discurso para estudar a polifonia e a construção da charge através de vários
hipotextos, como é o caso dos desenhos chargísticos de Oldack Esteves.
Para conseguir o humor na charge, o sujeito-comunicante (Eu
c
)
(CHARAUDEAU, 1997), instância da produção, lança mão de outros neros, transgredindo
os limites do que lhe é próprio, favorecendo ambigüidade, superposição de idéias, jogo de
oposições. A essa ocorrência dá-se o nome de transgressão. Segundo Branca-Rossof,
(CHARAUDEAU, 2004, p.33), a transgressão pode ser explicada pelo uso de determinadas
locuções de um domínio de prática para outro e que se crêem da mesma espécie de langues
secondes, as quais consistem no uso de expressões recorrentes de um domínio de prática
63
linguageira em outro. De acordo com Machado (2003), a transgressão implica uma ironia e
uma subversão.
4.1 Marcas ou elementos polifônicos no discurso
Antes de falar em polifonia, é interessante realçar o dialogismo. Bakhtin concebe
o dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso.
Para ele, o dialogismo aparece como o espaço interacional entre o “eu” e o “tu” ou entre o
“eu” e o “outro”, no texto, donde as freqüentes referências ao papel do “outro” na constituição
do sentido; afirma que nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de outra voz. O
dialogismo pode também ser considerado como o diálogo entre os vários textos da cultura e,
para Barros (2003:3-4), parece ser esse o princípio mais explorado e conhecido do trabalho
investigativo de Bakhtin (BARROS, 2003, p.3-4).
Segundo Brait (1997, p.145):
Bakhtin situa o conceito no campo do diálogo socrático, definindo-o como um
debate tenso de idéias em que as palavras de um se confrontam com as palavras do
outro no interior de um único discurso; ora entende o dialogismo como sincretismo
das formas carnavalizadas presentes no discurso citado, na paródia, na mistura de
línguas e de linguagens, enfim, em todas as formas do discurso dentro do discurso.
Também por implicar fenômenos de bi e multivocalidade, o dialogismo pode ser
focalizado como uma manifestação de oralidade, de onde Bakhtin derivou seu
conceito de polifonia. Assim, o que define a dialogia é menos a oposição imediata
ao monologismo e sim o confronto das entoações e dos sistemas de valores que
posicionam as mais variadas visões de mundo dentro de um dado campo de visão
(BRAIT, 1997, p.145).
No monologismo, segundo Bakhtin:
o autor concentra em si mesmo todo o processo de criação, é o único centro
irradiador da consciência, das vozes, imagens e pontos de vista do romance:
“coisifica” tudo, tudo é objeto mudo desse centro irradiador. O modelo monológico
não admite a existência da consciência responsiva e isônoma do outro: para esse
modelo não existe o “eu” isônomo do outro, o “tu”. O outro nunca é outra
64
consciência, é mero objeto da consciência de um “eu” que tudo enforma e comanda”
(BEZERRA, 2005, p.192-194).
O dialogismo contrapõe-se a esse tratamento reificante, uma vez que constrói o
homem
num processo de comunicação interativa, no qual eu me vejo e me reconheço através
do outro, na imagem que o outro faz de mim. (...) nossa comunicação dialógica
requer que meu reflexo se projete nele e o dele em mim, que afirmemos um para o
outro a existência de duas multiplicidades de “eu”, de duas multiplicidades de
infinitos que convivem e dialogam em pé de igualdade (BEZERRA, 2005, p.194).
Segundo Maingueneau (2000, p.41), o dialogismo designava, na retórica, o
procedimento de introduzir um diálogo fictício num enunciado, e, na análise do discurso, de
acordo com Bakhtin, esse termo passou a referir-se à dimensão profundamente interativa da
linguagem, oral ou escrita, seja entre interlocutores imediatos ou na troca cultural (sobre
visões do mundo, tendências, teorias), sem presença física dos interlocutores. Bakhtin
emprega também dialogismo no sentido de intertextualidade. Segundo Moirand, citado por
Maingueneau (2000, p.42) pode-se dividir esse conceito em dialogismo intertextual, que diz
respeito à heterogeneidade enunciativa, ou seja, à presença de outros discursos num dado
discurso, e dialogismo interacional, que se refere às múltiplas manifestações da troca verbal.
Contudo, Bakhtin diz que não podemos dissociar essas duas faces do dialogismo, “pois toda
inscrição prolonga aquelas que a precederam, estabelece uma polêmica com elas, aguarda
reações ativas de compreensão, antecipa-se sobre estas etc.”.
É oportuno lembrar aqui a distinção que Kerbrat-Orecchioni (1990, p.15) propõe
entre dialogal e dialógico, ao atribuir ao primeiro o que diz respeito à interlocução restrita, e
dialógico, aos discursos que não esperam resposta (textos escritos, cursos magistrais etc.),
mas que põem em cena várias vozes, que são polifônicas”. Segundo Maingueneau (2000,
p.42), Bakhtin aplica o termo monológico, pejorativamente, a uma concepção da linguagem
ou da literatura que desconhece sua natureza dialógica. Aplica-o, preferencialmente, para
caracterizar as obras literárias não polifônicas. Monológico também diz respeito aos discursos
65
que dirigimos “a nós mesmos”; aos discursos que, embora dirigidos a um auditório, “não
esperam resposta”; aos textos “escritos” cujo enunciador não está em contato com o co-
enunciador, a que Kerbrat-Orecchioni prefere chamar de discurso monologal.
(MAINGUENEAU, 2000, p.99)
Para Bakhtin, a palavra não é monológica, mas plurivalente. O dialogismo passa a
ser condição para constituir o sentido, o que o leva a elaborar a sua teoria polifônica.
(BRANDÃO, s.d., p.51)
Segundo Bezerra (2005, p.194), o que caracteriza a polifonia, em Bakhtin, é a
posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico.
Esse regente rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia
de forma que as pessoas coisificadas se transformem em individualidades. A polifonia se
define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma
multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e
consciências eqüipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas
peculiaridades desse universo. Essas vozes e consciências não são objetivo do discurso do
autor, são sujeitos de seus próprios discursos, possuem independência na estrutura da obra, e
soam como se estivessem ao lado da voz do autor, combinando-se com ela e com as vozes de
outras personagens.
Ao examinar textos diferentes, Bakhtin chama a atenção para os mecanismos de
enunciação. Ele observou que, em alguns textos, como os de Dostoievski, de caráter literário,
e os da literatura popular, chamados por ele de literatura carnavalesca, o autor usava uma série
de máscaras, às quais atribuía vozes diferentes que falavam simultaneamente, mas sem
nenhuma preponderância de uma sobre a outra. Ao contrário, no monologismo, apenas uma
66
voz se ouve, e as várias consciências que aparecem na obra (por exemplo, Gogol
4
) funcionam
como objetos do narrador (BRANDÃO, s.d., p.52).
Ducrot (citado por BRANDÃO, s.d., p.57) reserva a polifonia para nível do
enunciado, no qual, mesmo isolado, ele verifica a existência de mais de uma voz. No seu
artigo “Esboço de uma teoria polifônica da enunciação”, Ducrot contesta a tese da unicidade
do sujeito-falante e atribui ao sujeito três prioridades:
a) encarregado da produção física do enunciado;
b) autor dos atos ilocutórios;
c) ser, em um enunciado, designado pelas marcas da primeira pessoa, quando
designam um ser extralingüístico (eu - meu - aqui) e é também aquele cujo
enunciado exprime as promessas, ordens, asserções, etc. (DUCROT, 1984, p.189).
Ducrot se baseia em Genette para fazer a distinção locutor/enunciador. No seu
esboço para uma teoria da polifonia, Ducrot parte do pressuposto de que o sentido do
enunciado é uma descrição de sua enunciação e para essa descrição o enunciado fornece
indicações. Dentre essas indicações, estão a atribuição à enunciação de um ou vários sujeitos
(em relação à sua origem) e a distinção desses sujeitos em dois tipos de personagem: os
locutores e os enunciadores. Para melhor compreender a distinção locutor/enunciador, Ducrot
se volta para a teoria da narrativa de Genette em Figures III (1972), conforme Brandão (s.d.,
p.58). Na narrativa aparecem as figuras do narrador/autor/centro de perspectiva, que se
relaciona, para Ducrot, ao locutor/sujeito-falante/enunciador.
Para Ducrot, o locutor é o ser responsável pelo dizer, mas não é real, pois se trata
de uma ficção discursiva. A este se referem o pronome “eu” e as outras marcas da primeira
4
GOGOL, Nikolai Vassilievitch, (1809-1852), novelista e dramaturgo russo, que compõe a trindade máxima da
prosa russa juntamente com Dostoievski e Tolstoi. Grande criador de tipos humanos de caráter universal, sua
obra crítico-humorística, expressão do Realismo nas letras russas, revela aspectos odiosos da época
czarista.(BARSA, 1981, V.8, p.251)
67
pessoa. O locutor é, por conseguinte, um ser do discurso. O sujeito-falante empírico é o
produtor efetivo do enunciado e exterior ao seu sentido. Já o enunciador distingue-se tanto do
locutor quanto do sujeito-falante, como figura da enunciação que representa a pessoa de cujo
ponto de vista os acontecimentos são apresentados. O locutor é aquele que fala; o enunciador
é aquele que o lugar de onde se olha), “exprimindo seu ponto de vista, sua atitude”
(1972, p.204), conforme Brandão (s.d., p.60). Entretanto, aquele “que falae aquele “que vê”
não são atribuíveis a um único ser.
Exemplos do desdobramento do locutor podem ser encontrados no discurso
direto, um caso de dupla enunciação com dois locutores: L
1
e L
2.
No discurso indireto, a
polifonia ocorre de forma marcada, mas menos delimitada. No discurso indireto livre, o
locutor fala de diferentes perspectivas enunciativas, porém sem demarcá-las lingüisticamente.
Ducrot (1984, p.240) procura mostrar a pertinência da figura do enunciador ao estudar
fenômenos de dupla enunciação, como a ironia e a negação. Para ele, o que importa é a
enunciação no momento presente, enquanto que para Bakhtin o conceito de história é
fundamental. (BRANDÃO, s.d., p.61).
Cabe, aqui, enumerar as marcas enunciativas dos discursos. Para isso, não se pode
furtar de falar sobre a teoria da heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva
apresentada por Authier-Revuz (1982). De acordo com essa teoria, há formas que denunciam
a presença do outro e que podem ser as seguintes:
a) formas não-marcadas, como no caso do discurso relatado (discurso indireto,
discurso direto);
b) formas marcadas de construção autonímica: as palavras do outro são
assinaladas através de aspas, travessão duplo, itálico, entonação específica,
comentário, ajustamento, remissão a outro discurso, e também através de glosas,
68
as quais constituem uma explicação indicativa da não-coincidência do enunciador
com o que ele diz (também chamada modalização autonímica);
c) formas mais complexas, em que a presença do outro não é explicitada por
marcas unívocas na frase. (É o caso do discurso indireto livre, da ironia, da
antífrase, da alusão, da imitação, da reminiscência em que se joga com o outro
discurso no espaço do implícito, do semidesvelado, do sugerido). Segundo
BRANDÃO (s.d., p.50), “aqui não uma fronteira lingüística tida entre a fala
do locutor e a do outro, as vozes se imiscuem nos limites de uma única construção
lingüística”.
As glosas, segundo Authier-Revuz, podem ser de quatro tipos:
1) pontos de não-coincidência do discurso com ele mesmo em glosas que
assinalam, no discurso, a presença de palavras pertencentes a um outro discurso,
como em: X, como diz fulano; para retomar as palavras de...; no sentido de tal
discurso etc.;
2) pontos de não-coincidência entre as palavras e as coisas, empregados nas
glosas que representam as buscas, hesitações, fracassos, sucessos, na produção da
palavra adequada à coisa, como em: X, por assim dizer; X, não, mas não encontro
a palavra; não há outra palavra; como diria; etc.;
3) pontos de não-coincidência das palavras com elas mesmas nas glosas que
designam fatos de polissemia, de homonímia, de trocadilho, como em: X, no
sentido próprio, figurado; não no sentido de...; X em todos os sentidos da palavra,
etc.;
4) pontos de não-coincidência entre enunciador e destinatário, como em: X, se
você quiser; dê-me o termo exato; como você diz, etc. que representam o fato de
69
que um elemento não é compartilhado, no sentido comum, pelos dois
protagonistas da enunciação.
Segundo Charaudeau (2004, p.336), a modalização se inscreve na enunciação e
designa a atitude do sujeito-falante em relação ao seu próprio enunciado, atitude que deixa
marcas de diversos tipos (morfemas, prosódias, mímicas...). Para Dubois (1969, p.105), a
modalização “define a marca que o sujeito não pára de imprimir em seu enunciado”.
Charaudeau (1992, p.572) diz que “a modalização constitui apenas uma parte do fenômeno
da enunciação, mas ela constitui o seu pivô, na medida em que é ela que permite explicitar as
posições do sujeito-falante em relação a seu interlocutor, a si mesmo e a seu propósito”,
podendo ser explicitada através de marcas particulares, ou manter-se no implícito do discurso,
mas estará sempre presente. A modalização autonímica, para a análise do discurso, revela-se
como um instrumento de análise produtivo, uma vez que “toca a estrutura enunciativa,
participa da heterogeneidade discursiva” e permite “refinar a abordagem dos discursos
citados”, além de “abordar os fenômenos dialógicos” (CHARAUDEAU, 2004, p.84).
Quanto à heterogeneidade constitutiva, diz-se quando o discurso é dominado pelo
interdiscurso: “o discurso não é somente um espaço no qual viria introduzir-se, do exterior, o
discurso do outro; ele se constitui através de um debate com a alteridade, independentemente
de qualquer traço visível de citação, alusão etc.” (CHARAUDEAU, 2004, p.261). Bakhtin,
Pêcheux, Authier-Revuz, Maingueneau atribuem outras formas a essa tese. Ficamos com a
afirmação de Bakhtin de um dialogismo generalizado em que “as palavras são sempre as
palavras dos outros, o discurso é tecido dos discursos dos outros”. Soares (2003, p.61)
informa que Authier-Revuz, ao conceber as formas de heterogeneidade mostrada como
manifestações de diversos tipos de negociação do falante com a heterogeneidade constitutiva,
afirma ser possível apreender, materialmente, no discurso que um único locutor produz, um
certo número de formas lingüísticas que inscrevem, na linearidade, o outro, como se nas
70
formas sintáticas do discurso relatado, nas formas marcadas por conotação autonímica, nas
fórmulas de comentários metadiscursivos. Entretanto, haveria uma outra modalidade de
“jogar com o outro”, que operaria no espaço do não-explícito, do semivelado, do sugerido (e
não do mostrado e do dito). Sua presença não seria marcada por formas lingüísticas unívocas,
manifestando-se, pois, sem o apoio do “dito”. Seu reconhecimento e interpretação se dariam
apenas a partir de indícios identificáveis no discurso em função de seu exterior, como se
em discursos irônicos, antífrases, discursos indiretos livres, pastiches.
Charaudeau (2004, p.387) indica, como denunciadores da voz do outro,
fenômenos diversos, como as modalidades, os conectores, a argumentação, a pressuposição, a
ironia e o discurso citado, entre outros. Embora no decorrer deste estudo tenhamos já aludido
a alguns desses fenômenos, principalmente os que afetam mais de perto nossas análises, a
ironia merece, pelas suas peculiaridades, um espaço específico, principalmente porque ela
sempre está presente nas manifestações carnavalizadas.
4.1.1 A ironia
A ironia acontece quando o sujeito subverte a sua própria enunciação. De acordo
com Kierkegaard (1991, p.216-217), a ironia é uma figura que ocorre freqüentemente no
discurso retórico e cuja característica está em dizer o contrário do que se pensa. Ainda com
Kierkegaard (1991, p.216), a forma mais corrente de ironia consiste em dizermos num tom
sério o que, contudo, não pensamos seriamente. A outra forma, dizer em tom de brincadeira
algo que se pensa a sério, ocorre raramente. Às vezes, a figura de linguagem irônica tem uma
propriedade que também é característica para toda ironia, uma certa nobreza, que provém do
71
fato de que ela gostaria de ser compreendida, mas não diretamente, e tal nobreza faz com que
essa figura olhe como que de cima para baixo o discurso simples que cada um pode
compreender sem dificuldades.
Na comunicação cotidiana, a figura de linguagem irônica aparece, principalmente,
nas classes elevadas, como uma prerrogativa que faz parte do bonton (bom tom), o qual exige
que se sorria da inocência e se considere a virtude algo de bitolado, ainda que se acredite nela
até certo ponto “...ela não gostaria de ser compreendida pelo comum dos mortais”
(KIERKEGAARD, 1991, p.217). Entretanto, basta que estejam presentes certos índices que
indicam distanciamento, como reticências e palavras enfáticas, para que o co-enunciador
verifique tratar-se de uma enunciação irônica. Desqualificando a si mesma e se subvertendo
no instante mesmo em que é proferida, tal enunciação constitui um caso de polifonia, que
pode ser analisado como uma espécie de encenação em que o enunciador expressa com suas
palavras a voz de uma personagem ridícula que parece falar seriamente e da qual ele se
distancia.
A enunciação proverbial assemelha-se à ironia, pois ambas deixam transparecer
na própria voz, por meio de uma entonação característica, a voz de um outro, do qual
procuram distanciar-se. Entretanto, no provérbio, o “outro” tende a ser uma instância
valorizada, enquanto que na ironia ele é desqualificado. (MAINGUENEAU, 2002, p.175).
Para Machado (s.d.), o conhecimento e a aplicação da teoria polifônica e das
teorias discursivas em geral são de grande utilidade para a análise de diferentes textos, bem
como de cartuns ou desenhos de humor, funcionando esses muitas vezes como estratégias de
argumentação do “contrato lúdico” ou de “diversão”. Machado ainda postula a existência de
uma “argumentação pelo riso” ou uma “argumentação pela ironia”, que se torna agente
poderoso para influenciar e fazer passar determinadas opiniões ou idéias. É o caso dos
desenhos de humor nos jornais, em que a ironia mostra a inversão de valores, mas, ao mesmo
72
tempo, convida à reflexão. Apesar do pouco espaço ocupado pelo desenho, onde o icônico
coabita com o verbal, é grande a sua força de informação e produz um forte impacto, levando-
se em conta, principalmente, a habilidade no uso da ironia. Na charge, podem-se observar
todos esses recursos, os quais vão certamente chamar a atenção do leitor e levá-lo à reflexão.
Machado (s.d.) lembra que Bakhtin (1970) tem uma visão privilegiada sobre o
humor, a ironia e o cômico. Para ele, o riso faz parte do homem e, mais que isso, ajuda-o a
melhor enxergar, compreender e dialogar com o outro. Para Bakhtin (1997, p.107-108), o
gênero do sério-cômico aparece como elemento da teoria do carnaval e da carnavalização.
Bezerra (1997), no prefácio à segunda edição brasileira da obra de Bakhtin, Problemas da
poética de Dostoiévski, informa que Bakhtin deixa patente que não é o cômico que se torna
sério, mas o contrário: na história da cultura, particularmente no clima que envolve o riso ou
nos momentos carnavalescos, os símbolos elevados, oficiais e sérios são destronados do seu
pedestal, colocados, em contigüidade, com manifestações e símbolos culturais populares e,
uma vez, desfeita a distância que antes os separava desse outro universo, tornam-se cômicos.
Conseqüentemente, o sério é que se torna cômico.
4.2 A carnavalização
O carnaval, conforme Bakhtin (1997, p.122), no sentido de conjunto de todas as
variadas festividades, ritos e formas de tipo carnavalesco, bem como sua essência, tem suas
raízes na sociedade primitiva e no primitivo pensamento do homem. O seu desenvolvimento
na sociedade de classes, a sua grande força vital e o seu fascínio sempre foi um problema
complexo, mas também interessante para a cultura. A “carnavalização” se refere à influência
73
determinante do carnaval na literatura, especialmente sobre o aspecto do gênero. O carnaval
propriamente dito não constitui um fenômeno literário.
É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada,
que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações,
dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares. O carnaval criou
toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e
complexas ações de massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de
maneira diversificada uma cosmovisão carnavalesca una (porém complexa) que lhe
penetra todas as formas. Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de
plenitude e adequação para a linguagem verbal, (...), no entanto é suscetível de certa
transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das
imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. É a essa transposição do
carnaval para a linguagem da literatura que chamamos “carnavalização da
literatura”. (Bakhtin, 1997, p.122)
Não se contempla o carnaval, vive-se nele, diz Bakhtin. Vive-se de acordo com suas
leis, enquanto estas vigoram. É uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo
sentido, uma “vida às avessas”, um “mundo invertido”. “O carnaval aproxima,
reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado e o baixo,
o grande e o insignificante, o sábio e o tolo etc.” As categorias carnavalescas que
entram em vigor são: o livre contato familiar entre os homens; a excentricidade; a
familiarização; a profanação (paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças
bíblicas). O riso carnavalesco constitui uma das excentricidades do carnaval e é
dirigido no sentido de ridicularizar o supremo. O riso aparece na paródia e essa tem
natureza carnavalesca. Bakhtin observa que a paródia é um elemento inseparável da
“sátira menipéia” e de todos os gêneros carnavalizados. (1997, p.127)
A constituição do discurso polifônico da charge, as estratégias discursivas
representadas pela transgressão e carnavalização, bem como a sua construção pictórica,
favorecida pela intertextualidade de textos verbais e não verbais, incentivam o pesquisador no
aprofundamento do estudo do discurso peculiar dessa paródia visual, crônica iconográfica ou
texto pictórico.
4.2.1 A paródia
A paródia, segundo o dicionário Aurélio (1975), vem do grego parodia e significa
“canto ao lado do outro”. Pode significar também imitação cômica de uma composição
74
literária, imitação burlesca e comédia satírica ou farsa em que se ridiculariza uma obra trágica
ou dramática, ou seja, arremeda.
Segundo Miguel (1987, p.130), paródia (para-ode = ao lado da ode) é uma
composição literária que corrompe o significado de outra (...). Na paródia, a tragédia será
comédia, a comédia vira tragédia; o que faz chorar agora faz rir. A paródia segue o mesmo
caminho traçado pelo autor original, mas busca outras idéias.
A paródia é organicamente estranha aos gêneros puros (epopéia, tragédia), sendo, ao
contrário, organicamente própria aos gêneros carnavalizados. Na Antiguidade, a
paródia estava indissoluvelmente ligada à cosmovisão carnavalesca. Parodiar é criar
o “mundo às avessas” (BAKHTIN, 1997, p.127).
No final da antigüidade clássica e na época do helenismo, inúmeros gêneros se
desenvolveram e constituíram um campo especial da literatura a que os antigos denominaram
campo do sério-cômico. Nesse campo, foram incluídos como gêneros específicos o “diálogo
de Sócrates”, a literatura dos simpósios, a “sátira menipéia”, além de outros gêneros, os quais
eram colocados em oposição aos gêneros sérios, como a tragédia, a história, a retórica clássica
etc. (BAKHTIN, 1997, p.106-107). Segundo Bakhtin, todos os gêneros do sério-cômico
mantêm uma profunda relação com o folclore carnavalesco e os gêneros atuais, que mantêm
relação, mesmo que distanciada, com os gêneros do sério-cômico, conservam o fermento
carnavalesco que os distingue dos demais gêneros. Para Bakhtin, literatura carnavalizada é
aquela que, direta ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência
de diferentes modalidades do folclore carnavalesco (antigo ou medieval) e constitui uma das
importantíssimas questões de poética histórica, predominantemente de poética dos gêneros.
Bakhtin aponta algumas peculiaridades exteriores de gênero do campo do sério-cômico e que
é resultado da influência da cosmovisão carnavalesca. Procuraremos resumir em breves
palavras essas particularidades, dando ênfase àquilo que afeta a análise do corpus do presente
estudo. Citemos:
75
1. O ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade é a
atualidade viva, inclusive o dia-a-dia;
2. Os gêneros do sério-cômico baseiam-se conscientemente na experiência e na
fantasia livre, e não na lenda à qual se dispensa um tratamento crítico; às vezes
cínico desmascarador;
3. A manifestação da pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses
gêneros, que se caracterizam pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime
e do vulgar, do sério e do cômico, empregando amplamente os gêneros intercalados:
cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados,
citações recriadas em paródia etc. Observa-se a fusão do discurso da prosa e do
verso, inserem-se dialetos e jargões vivos (...) surgem diferentes disfarces de autor
(BAKHTIN, 1997, p.108).
Segundo Bakhtin (1997, p.109), no campo do sério-cômico, estão os pontos de
partida do “desenvolvimento” das variedades da linha carnavalesca do romance que conduz a
Dostoiévski, os quais vêm a constituir uma variedade dialógica que são determinantes de dois
gêneros do sério-cômico: o diálogo socrático e a sátira menipéia. O diálogo socrático é um
gênero que se baseia na concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do
pensamento humano sobre ela.
O método dialógico de busca da verdade se opõe ao monologismo oficial, o qual se
pretende dono de uma verdade acabada, opondo-se igualmente à ingênua pretensão
daqueles que pensam saber alguma coisa. A verdade não nasce nem se encontra na
cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens que a procuram no processo
de comunicação dialógico. Apesar da sua brevidade, o diálogo socrático
proporcionou, na sua desintegração, a formação de outros gêneros dialógicos, entre
eles a “sátira menipéia”. Essa, entretanto, não pode ser considerada decomposição
genuína do diálogo socrático, pois suas raízes remontam diretamente ao folclore
carnavalesco (Bakhtin, 1997, p.112).
4.2.2 A sátira menipéia
A sátira menipéia deve seu nome ao filósofo Menipo de Gádara (século II a.C.),
que deu a ela a forma clássica. Entretanto, o gênero propriamente dito surgiu bem antes com
Antístenes, discípulo de Sócrates e também um dos autores dos “diálogos socráticos”. A sátira
menipéia constitui um gênero carnavalizado, extremamente flexível e mutável, capaz de
penetrar em outros gêneros, e de uma importância enorme até hoje insuficientemente
76
estudada. Tornou-se um dos principais veículos e portadores da cosmovisão carnavalesca na
literatura até nossos dias. (BAKHTIN, 1997, p.114). Ainda de acordo com Bakhtin, a sátira
menipéia apresenta rias particularidades, entre elas, a publicística atualizada. A publicística
diz respeito à literatura político-social centrada em temas da atualidade e, segundo Bakhtin,
trata-se de uma espécie de gênero “jornalístico” da antigüidade, que enfoca em tom mordaz a
atualidade ideológica.
“O caráter jornalístico, a publicística, o folhetinismo e a atualidade mordaz
caracterizam em diferentes graus, todos os representantes da menipéia. O nero da
menipéia possui simultaneamente grande plasticidade externa e uma capacidade
excepcional de absorver os pequenos gêneros cognatos e penetrar como componente
nos outros gêneros grandes” (BAKHTIN 1997, p.118).
A paródia tem natureza carnavalesca e constitui elemento indispensável da “sátira
menipéia” e de todos os gêneros carnavalizados. Bakhtin afirma ainda que a paródia é
organicamente estranha aos gêneros puros (epopéia, tragédia), mas é organicamente própria
dos gêneros carnavalizados. O parodiar é criar o duplo destronante do mesmo “mundo às
avessas”, o que leva a concluir sobre a ambivalência da paródia:
O parodiar carnavalesco era empregado de modo muito amplo e apresentava formas
e graus variados: diferentes imagens (os pares carnavalescos de sexos diferentes, por
exemplo) se parodiavam, umas às outras de diversas maneiras e sob diferentes
pontos de vista, e isso parecia constituir um autêntico sistema de espelhos
deformantes: espelhos que alongam, reduzem e distorcem em diferentes sentidos e
em diferentes graus (BAKHTIN, 1997, p.127).
Ora, a charge, como uma paródia icônica, mostra toda essa ambivalência, tão bem
ilustrada por Bakhtin, e a carnavalização com suas características de ridicularização,
destronamento, familiarização, deformação e distorção de sentido vem contribuir para realçar
o caráter altamente polifônico desse desenho de humor.
77
4.3 Os gêneros “transgressivos”
À primeira vista, parece haver uma aproximação entre a categoria carnavalização,
própria dos gêneros ditos carnavalizados, e a transgressão, que seria uma ocorrência afeita aos
gêneros transgressivos. Aliás, se Charaudeau (1992) já reflete sobre a transgressão, parece-
nos importante ressalvar que, segundo a nossa pesquisa, a denominação “gênero
transgressivo” foi primeiramente usada por Machado (2003), durante suas aulas de Análise do
Discurso.
Não sabemos se poderíamos usar o termo “transgressividade” em relação aos
gêneros transgressivos da mesma forma que falamos de carnavalização em relação aos
gêneros carnavalizados. O fato é que muitas vezes parece se confundir a noção de
transgressão em relação à de carnavalização.
Charaudeau (2004, p.32) fala sobre a “transgressão de gêneros”, explicando que
tal fato se dá quando percebemos índices de reconhecimento de um tipo de texto, mas que, ao
mesmo tempo, percebemos também formas que não são esperadas naquele tipo de texto. Para
Charaudeau, houve desrespeito a um gênero do discurso e para afirmar que houve
transgressão, é necessário detectar o que foi desrespeitado: se foram as formas, as restrições
discursivas ou os dados situacionais.
Branca-Rossof, citada por Charaudeau (2004, p.34), fala de transgressão de ethos,
conceito de retórica, ao trabalhar cartas de reclamação, marcadas pela emotividade, às vezes
com insultos, às vezes sem forma de polidez, situações que não estão inscritas nas restrições
situacionais, que, por sua vez, pedem um ethos de cortesia e de distanciamento, como requer a
carta administrativa.
78
Outro caso é a campanha de publicidade da Benetton, citada por Charaudeau
(2004, p.34), que se apresenta como uma campanha humanitária que atende a um contrato de
comunicação cívica – agir de maneira solidária – quando, na verdade, a sua finalidade
responde a uma campanha comercial, cujo contrato é de consumo, caracterizando, dessa
forma, uma transgressão ao propósito, um dos componentes do contrato de comunicação.
No estudo da transgressão na charge, uma das incidências dessa parece-nos
ocorrer quando se faz um deslocamento na utilização primitiva das fotografias, fazendo com
que fujam à finalidade de uso inaugural e passando a ilustrar um texto icônico com propósito
diferente daquele para o qual foi elaborada. Outro fato interessante em relação à comparação
entre carnavalização e transgressão é que, ao que nos parece, na carnavalização sempre
presença do humor, do riso, do ridículo, enquanto que na transgressão isso nem sempre
ocorre, dando oportunidade a um instante de choque, de pasmo, que leva a pensar e a
questionar a peça transgressiva.
4.4 A teoria da transtextualidade
A charge constitui um texto verbal-icônico. Muitas vezes o icônico é a
transformação pelo chargista para a linguagem figurada de algo que foi divulgado em
forma de texto verbal. Por isso mesmo, no pequeno espaço da charge, um campo fértil
onde medram diversos discursos, o que na análise do discurso pode ser visto como se a charge
fosse um hipertexto de vários hipotextos (GENETTE, 1982).
A intertextualidade, segundo Maingueneau (2004, p.288), se aplica ao mesmo
tempo a “uma propriedade constitutiva de qualquer texto e ao conjunto das relações explícitas
79
ou implícitas que um texto ou um grupo de textos determinados mantém com outros textos”,
sendo que a primeira propriedade constitui uma variante da interdiscursividade. Foi Kristeva
(1969) quem primeiro falou de intertextualidade ao observar em literatura a presença de textos
anteriores em um texto, noção que Barthes (1973) ampliou ao afirmar que todo texto é um
intertexto e que outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou
menos reconhecíveis (MAINGUENEAU, 2004, p.289).
Genette (2006, p.7; 1982) denomina transtextualidade a “tudo que coloca em
relação, manifesta ou secreta com outros textos”. Para ele, o objeto da poética é a
arquitextualidade do texto, ou seja, “o conjunto das categorias gerais ou transcendentes – tipos
de discurso, modos de enunciação, gêneros literários etc. do qual se destaca cada texto
singular”. O arquitexto, termo atribuído a Louis Marin (1974), de acordo com Genette, foi
usado no sentido de designar “o texto de origem de todo discurso possível, sua ‘origem’ e seu
meio de instauração”. Entretanto, para o pesquisador, o termo transtextualidade é o mais
indicado, uma vez que abrange a arquitextualidade e a intertextualidade já mencionada por
Kristeva (1974) e que consta como o primeiro tipo de transtextualidade no estudo proposto
por ele.
Para Genette, a intertextualidade é mais restritiva, considerada como uma relação
de co-presença entre dois ou rios textos, ou seja, a presença efetiva de um texto em um
outro, tendo como exemplo mais explícito a “citação” e como forma menos explícita e menos
canônica o “plágio” (empréstimo não declarado, mas ainda literal), e a “alusão”, que é ainda
menos explícita e menos literal, cuja compreensão depende da percepção de uma relação entre
o enunciado e um outro texto. Rifaterre, segundo Genette (2006, p.8), chama de intertexto à
“percepção pelo leitor de relações entre uma obra e outras, que a precederam ou as
sucederam”, e chega a identificar a intertextualidade à própria literariedade, considerando-a
80
um mecanismo próprio da leitura literária. Essa produz significância por si mesma, enquanto
que a leitura linear, comum aos textos literários e não-literários, só produz o sentido.
O segundo tipo de transtextualidade assinalada por Genette diz respeito à
paratextualidade, a qual se refere às relações que o texto mantém com o seu paratexto: tulo,
subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, notas marginais de rodapé,
de fim de texto, epígrafes, ilustrações, errata, orelha, capa e tantos outros sinais acessórios,
autógrafos ou alógrafos.
Genette cita, ainda, a metatextualidade, que constitui um outro tipo de relação
entre textos chamada também de “comentário”, o qual une um texto a outro texto do qual ele
fala, sem necessariamente citá-lo, ou até mesmo, nomeá-lo. Trata-se, com efeito, de uma
relação crítica que aparece naturalmente na charge.
A arquitextualidade, relação definida acima, aproxima-se do que Genette vai
chamar de hipotexto e constitui uma relação completamente silenciosa, que apenas articula,
no máximo, uma menção paratextual (titular ou infratitular).
4.4.1 O hipertexto e o hipotexto
O tipo de relação que Genette denomina hipertextualidade é o que aparece mais
ostensivamente na construção da charge e diz respeito a toda relação que une um texto B
(também chamado hipertexto) a um texto anterior A (chamado de hipotexto), sendo que tal
relação é um tipo diferente do comentário já citado acima.
Para Genette, é necessário considerar uma noção geral de textos de segunda o
ou de texto derivado de outro preexistente. Assim, ele chama de derivação descritiva e
81
intelectual quando um metatexto “fala” de um texto e de transformação quando um texto B,
embora não fale nada de A, não poderia existir como tal sem A, do qual ele resulta. Enquanto
o hipertexto é considerado freqüentemente como obra “propriamente literária”, simplesmente
por derivar-se de uma obra de ficção e conservar-se como tal no campo da literatura, o mesmo
não se pode dizer do metatexto, o qual fala de outro texto, mas estabelecendo uma relação
crítica.
Genette exemplifica a transformação através das obras Eneida e Ulisses, as quais,
derivadas da Odisséia, não sofreram, contudo, o mesmo tipo de transformação. Houve uma
transformação simples e direta entre a Odisséia e Ulisses, ao se transportar uma ação da
Odisséia para a Dublin do século XX, e uma transformação mais complexa e indireta que
conduz da Odisséia à Eneida. Nesse caso, não uma transposição de ação, mas a narração
por Virgílio de uma história completamente diferente, embora inspirada no tipo genérico (ao
mesmo tempo formal e temático) estabelecido por Homero na Odisséia, ou melhor, houve
uma imitação de Homero.
A imitação, embora seja também uma transformação, consiste em um
procedimento mais complexo, pois, para imitar um texto, é necessário adquirir sobre ele “um
domínio pelo menos parcial”, ou seja, daqueles traços que se escolheu para imitar”.
Assim, Genette chama de hipertexto a todo texto derivado de um texto anterior
por transformação simples ou por transformação indireta, ou seja, por imitação. Além disso,
ele diz que não se devem considerar os cinco tipos de transtextualidade (intertextualidade,
paratextualidade, metatextualidade, arquitextualidade, hipertextualidade) como classes
estanques, uma vez que as relações estabelecidas são numerosas e decisivas, e cita exemplos
como a arquitextualidade genérica, que se constitui pela via da imitação (hipertextualidade); o
paratexto prefacial ou outro que contém muitas outras formas de comentário; e também o
hipertexto, o qual, muitas vezes, tem valor de comentário.
82
A hipertextualidade, como classe de obras, é em si mesma, conforme diz Genette,
um arquitexto genérico, ou antes, transgenérico, uma vez que constitui uma classe de texto
que engloba inteiramente certos gêneros canônicos, embora menores, como o pastiche, a
paródia, o travestimento, e que permeia outros, como certas epopéias, certos romances, certas
tragédias ou comédias, certos poemas líricos que pertencem ao mesmo tempo à classificação
reconhecida de seu gênero oficial e àquela desconhecida, à dos hipertextos.
Genette ainda fala da hipertextualidade como uma classe de textos, observando
mais os aspectos da textualidade, ou seja, mais relacionada à literariedade; fala também de um
aspecto universal considerando todas as obras como hipertextuais. Faz ainda a abordagem da
hipertextualidade como derivação do hipotexto ao hipertexto, observando que ela é, ao
mesmo tempo, massiva (toda uma obra B deriva de toda uma obra A) e declarada, de maneira
mais ou menos oficial.
O pesquisador manifesta apreço pela possibilidade de reduzir sua pesquisa a
gêneros oficialmente hipertextuais (sem a palavra), como a paródia, o travestimento e o
pastiche, mas acha que tal restrição se torna impraticável.
A palavra paródia constitui lugar de grande confusão porque é usada para designar
ora a deformação dica, ora a transposição burlesca de um texto, ora a imitação
satírica de um estilo. A razão da confusão se deve à convergência funcional dessas
três fórmulas que produzem, em todos os casos, um efeito cômico, geralmente às
custas do texto ou do estilo “parodiado” (GENETTE, 1982).
Mas, além dessa convergência funcional, uma diferença estrutural muito mais
importante entre os estatutos transtextuais: a que se refere à transformação do texto da qual
procedem a paródia estrita e o travestimento, e a imitação do estilo do qual procede o pastiche
(satírico ou não).
Aliás, é em relação ao critério estrutural que Genette refaz a conceituação de
diversos gêneros hipertextuais, observando o grau de transformação e de imitação a que são
submetidos os hipotextos. São, assim, redefinidos os conceitos de:
83
a) paródia: desvio de texto pela transformação mínima;
b) travestimento: transformação estilística com função degradante;
c) charge: (não mais como paródia) é o pastiche satírico e também a variedade
pastiche cômico-irônico;
d) pastiche: a imitação de um estilo desprovida de função satírica.
Assim, a transformação abrange a paródia e o travestimento, os quais se diferem
em relação ao grau de deformação aplicado ao hipotexto, e o termo imitação para se referir à
charge e ao pastiche, que se diferem por sua função e seu grau de exacerbação artística.
(GENETTE, 1982).
Essa nova divisão, não mais funcional, mas estrutural, separa e aproxima os
gêneros segundo o critério do tipo de relação de transformação ou imitação que se estabelece
entre o hipertexto e seu hipotexto. Reproduzimos abaixo o quadro apresentado por Genette
para mostrar a oposição entre as duas divisões, que conservam em comum os objetos a
distribuir, isto é, os quatro gêneros hipertextuais canônicos:
Divisão corrente (funcional)
Função
Satírica (“paródica”)
não satírica
(“pastiche”)
gêneros
PARÓDIA
TRAVESTIMENTO
CHARGE PASTICHE
Relação
Transformação Imitação
Divisão estrutural
QUADRO N. 3 - Gêneros hipertextuais canônicos – In Genette, “Palimpsestos”, 2006, p.21.
Genette (2006) diz que não pretende substituir o critério funcional pelo estrutural,
apenas deseja dar lugar a uma forma de hipertextualidade que ele considera importante
literariamente, ou seja, a do pastiche ou da paródia canônica, que seria a paródia séria, o que
parece contraditório, mas ele explica que certas fórmulas genéricas não podem se contentar
84
com uma definição puramente funcional. Para ele, a divisão estrutural” conserva um traço
comum com a divisão tradicional: a distinção relacional entre paródia e travestimento de um
lado, entre charge e pastiche, de outro, que repousa, contudo, sobre um critério funcional, o
qual faz oposição entre satírico e não satírico.
A primeira oposição pode ser motivada por um critério puramente formal,
que é a diferença entre uma transformação semântica (paródia) e uma
transposição estilística (travestimento), mas ela comporta também um aspecto
funcional, pois é inegável que o travestimento é mais satírico, ou mais
agressivo, em relação ao seu hipotexto que a paródia, que não o toma
exatamente como objeto de um tratamento estilístico comprometedor, mas
apenas como modelo ou padrão para a construção de um novo texto que, uma
vez produzido, não lhe diz mais respeito (GENETTE, 2006, p.22).
Genette acrescenta ainda práticas hipertextuais que visam unicamente ao puro
entretenimento ou exercício prazeroso, sem intenção agressiva ou zombeteira, a que chama de
regime lúdico do hipertexto ao lado de outra prática que diz respeito ao regime sério, o qual
abriria uma terceira coluna no quadro que trataria das transformações e imitações sérias, às
quais ele atribui o nome de “transposição” para as primeiras e de “forjação” para as últimas.
Propõe ainda trocar a função por regime e acrescentar, entre o regime lúdico e o satírico, o
irônico (linha pontilhada); entre o satírico e o sério, o polêmico (linha pontilhada); e entre o
lúdico e o sério, o humorístico. As linhas pontilhadas mostram as possíveis nuances entre
pastiche e charge. O quadro, atualizado, permite visualizar de maneira mais prática essa
categorização, conforme o reproduzimos abaixo:
85
Gêneros hipertextuais com inclusão do irônico, humorístico e satírico.
Regime
Relação
lúdico
satírico
sério
transformação
PARÓDIA
TRAVESTIMENTO
TRANSPOSIÇÃO
imitação
PASTICHE
CHARGE
FORJAÇÃO
QUADRO N.4 - Gêneros hipertextuais – In Genette, “Palimpsestos”, 2006, p.25.
Tentamos, aqui, pontuar os principais pontos da teoria da hipertextualidade de
Genette, embora saibamos que o melhor é estudar o texto na íntegra. A insistência em colocar
esse estudo diz respeito principalmente à colocação da charge entre os gêneros hipertextuais e
clarear as reações com os gêneros limítrofes.
A captação e a subversão são estratégias discursivas que agem principalmente na
base da imitação de um texto ou de um gênero do discurso. Maingueneau (2002, p.173) diz
que a relação entre a imitação e o imitado normalmente não será lúdica e isso permitique o
discurso de imitação construa sua própria identidade. A captação diz respeito a imitar um
texto e tomar a mesma direção que ele, apropriar-se do seu valor pragmático, entretanto, a
subversão imita um texto, mas visando desqualificá-lo, e adota, então, a estratégia da paródia.
Tanto a estratégia de captação quanto a de subversão permitem perceber marcas enunciativas
da polifonia advinda dos hipotextos imitados.
Ainda segundo Maingueneau (1991, p.155), o estudo das relações interdiscursivas
e, mais precisamente, da hipertextualidade, permite colocar em evidência duas estratégias
opostas de reinvestimento de um texto ou de um gênero de discurso em outros, estratégias
essas que são a captação e a subversão. “O reinvestimento implica que o destinatário perceba
sempre da mesma maneira o discurso fonte, o que confirma a conivência entre produtor e
destinatário”, embora possa acontecer um reinvestimento ambíguo, que será ao mesmo tempo
humorístico
irônico
polêmico
86
captação e subversão. Mais uma vez aparece a problemática da polifonia, pois a voz do
enunciador é portadora de uma outra voz, a do discurso reinvestido, que, mesmo subvertido, é
valorizado e reconhecido. Machado (1999, p.330), conforme Charaudeau (2004, p.94),
sintetiza muito bem essa problemática, ao afirmar que “o sujeito parodista mantém uma
posição ambígua em relação ao parodiado: distancia-se, permanecendo próximo; ele lhe é
infiel, apesar de ser fiel”.
87
PARTE III
O difícil (no humor político) é escolher qual é a melhor
piada. São tantas, que você nem sabe por onde
começar. (Aroeira)
CAPÍTULO 5
O CORPUS
5.1 Caracterização do corpus
O corpus do presente trabalho consta de nove charges de autoria de Oldack
Esteves, chargista do jornal Estado de Minas, publicadas nos anos de 2003, 2004 e 2005.
Foram selecionadas as charges das seguintes datas: 31/05, 10/06, 2/06 do ano de 2003; 6/06,
18/06, 08/07 do ano de 2004; 29/05, 30/06, 27/08 do ano de 2005.
Todas as charges foram publicadas na página “Opinião” do caderno principal do
jornal Estado de Minas. Todas foram construídas a partir de notícias sérias publicadas em
outras partes do jornal, tanto no que se refere à linguagem verbal, quanto no que diz respeito à
linguagem icônica. Quanto ao icônico, Oldack Esteves trabalha com caricaturas de políticos,
de tipos comuns e de animais, elaboradas por ele mesmo, e ainda acrescenta a linguagem
icônica da fotografia, transferindo uma foto de notícia, quase sempre de caráter político e de
regime sério, para o espaço chargístico, acompanhada ora de um discurso direto verbal, ora de
um provérbio, de uma onomatopéia, de falas personificadas, ou de dêiticos verbais ou
88
icônicos. A charge parece constituir um texto plurissemiótico. Charaudeau (2004, p.466)
informa que:
uma receita de cozinha, um “outdoor” ou um artigo de jornal, um discurso político,
um curso universitário ou uma conversação não comportam apenas signos verbais,
eles são igualmente feitos de gestos, de entonações e de imagens (fotografias e
fotogramas, desenhos e infografias).
Lembrando Genette, o texto chargístico constitui um hipertexto, ou seja, tem
relação com um texto anterior, ou com textos anteriores que são denominados hipotextos. As
charges são constituídas de fotos, caricaturas, frases referentes ao contexto político-sócio-
cultural do momento. A aplicação da teoria da transtextualidade torna-se oportuna, uma vez
que os vários hipotextos relacionados ao hipertexto da charge trazem consigo várias vozes
que reforçam o caráter polifônico dos textos em análise.
A polifonia, conforme observou Charaudeau (2004, p.384), refere-se ao fato de os
textos veicularem, na sua maioria, vários pontos de vistas diferentes, permitindo ao autor
fazer falar várias vozes ao longo do seu texto. Bakhtin estuda as relações entre o autor e o
herói na obra de Dostoiévski e resume sua descrição na noção de polifonia. Ducrot
aperfeiçoou a noção de polifonia usada em textos literários por Bakhtin e passou a utilizá-la
para analisar vários fenômenos lingüísticos sob os aspectos pragmáticos e textuais. Ao fazer o
quadro enunciativo das charges, de acordo com o contrato de comunicação de Charaudeau, foi
possível constatar a presença de vozes outras, além das dos sujeitos inscritos nos circuitos
externo e interno do quadro comunicacional, observando-se um desdobramento em mise-en-
abïme. A presença dos vários sujeitos pode ser comprovada pelas marcas enunciativas
observadas na análise lingüística dos enunciados da charge.
A charge, abordada por nós a partir da teoria semiolingüística, mais
especificamente nas reflexões sobre os gêneros do discurso, constitui-se num gênero
situacional inserido em outro: o contrato global de comunicação que pertence ao gênero
informativo. Para alcançar seus objetivos de ironizar e criticar o contexto no qual está
89
inserida, a charge pode transgredir algum componente do contrato de comunicação, o que virá
a constituir uma transgressão, lugar também de outras vozes.
Machado (s.d.) fala sobre o contrato de diversão que está inserido em um contrato
maior, o contrato de informação. Ora, a charge, por pertencer ao gênero do sério-cômico,
postulado por Bakhtin, e ser considerada uma imitação, ou mais precisamente, um pastiche
satírico ou um pastiche cômico-heróico no dizer de Genette, presta-se muito bem a modelo de
gênero carnavalizado (aquele que sofreu influência do carnaval, “no sentido de conjunto de
todas as variadas festividades, ritos e formas de tipo carnavalesco”). Diz-se carnavalização à
“influência determinante do carnaval na literatura, especialmente sobre o aspecto do gênero”
(BAKHTIN, 1997, p.122).
Partiremos, agora, para a análise propriamente dita, com destaque para o nível do
enunciado, o nível textual e o nível discursivo. No nível do enunciado, procuraremos
evidenciar os elementos ou marcas das diversas vozes presentes no discurso chargístico. Para
tal, será importante a reconstituição de um esquema ou quadro enunciativo de base para cada
fragmento do corpus, o que possibilitará, também, a visualização da multiplicidade de sujeitos
convocados para o ato discursivo. No nível textual, trabalharemos com a teoria da
transtextualidade de Gérard Genette, mais especificamente a questão da hipertextualidade. No
nível discursivo, procuraremos examinar a charge como um gênero inserido dentro do
contrato comunicacional de um jornal de informação e verificar a transgressão genérica.
Como procedimento geral de apresentação da análise, desenvolveremos o texto na
seqüência abaixo:
1) Reprodução da charge;
2) Elaboração do quadro enunciativo polifônico da charge, de acordo com os
postulados da Teoria Semiolingüística de Patrick Charaudeau;
90
3) Levantamento das marcas ou elementos polifônicos no nível do enunciado,
enquanto índices de carnavalização em linguagem verbal e icônica;
4) Levantamento das marcas ou elementos polifônicos no nível textual, ou seja, os
hipotextos que se relacionam ao hipertexto e nos conduzem à transtextualidade;
5) Levantamento das marcas ou elementos polifônicos no nível discursivo, ou
seja, as regularidades na configuração genérica da charge, que nos conduzem à
análise da transgressão e à identificação das variantes.
6) Comentários específicos sobre a constituição polifônica para cada fragmento
discursivo observado.
91
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 1
CHARGE N.1 Fonte: Estado de Minas. Belo Horizonte, 31 maio 2006. Opinião. p.8.
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 1
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
QUADRO N. 5 - Contrato de Comunicação da Charge n. 1
Eu
c
Tu
i
92
O quadro enunciativo da charge 1 nada mais é do que o clássico quadro do ato
de linguagem de Charaudeau, tal qual apresentamos no Esquema 1, aqui desdobrado em
função dos rios enunciadores presentes no discurso da charge em análise. Na realidade,
aparecem dois planos de interação comunicativa. No plano externo, ou seja, no circuito
externo, constata-se a presença do sujeito-comunicante (Eu
c
), no caso, o chargista Oldack
Esteves, ser do mundo; e do sujeito-destinatário, o leitor do jornal, aqui o Tu
i.
(Tu
interpretante). No circuito interno, plano discursivo, espaço do “dizer”, aparecem vários
enunciadores. O Eu
e
1
representa o sujeito-enunciador, agora ser de papel, o chargista, o qual
enuncia o discurso através da foto tirada pelo sujeito-enunciador (Eu
e
2
), o fotógrafo, que
também, iconicamente, enunciou um discurso. Por fim, a fala das personagens. Aqui o Eu
e
3
representa o sujeito-enunciador personagem, o governador do Estado, Aécio Neves, com a
fala: Você não mudou nada”. À primeira vista, parece um discurso normal, não fosse pela
ironia que pode ser verificada na ambigüidade das palavras. Basta olhar a foto original, do
texto sério (Anexo 1b).
O leitor-destinatário, aquele imaginado pelo sujeito, o leitor ideal, está
representado pelo Tu
d
do circuito interno. Esse sujeito-destinatário deverá participar do
mesmo conhecimento de mundo do sujeito-enunciador e compartilhar das memórias (do
discurso, das situações de comunicação e das formas) para que, efetivamente, se processe a
interação linguageira.
No segundo circuito interno, nível discursivo, o Eu
e
1
representa o chargista, o
Eu
e
2
, o pensamento das tartarugas retratando a personagem imaginada, presidente Lula; e o
Eu
e
3
, a personagem presidente Lula, que fala: “Companheiros!...”. Através do desdobramento
do quadro enunciativo de Charaudeau, que sofreu um processo de encaixamento na sua
construção, pode-se observar a enunciação através de várias vozes, o que vem comprovar a
polifonia da charge analisada.
93
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 1:
- Plano verbal:
Discurso direto: - Você não mudou nada.
Exclamação: - Companheiros!...
Vale destacar o uso da forma negativa “não”, que por natureza é polifônica.
Ironicamente, o enunciador rebate outras vozes que insistem em chamar a atenção para a
mudança vivenciada por Lula.
- Plano icônico:
Fotografia do presidente Lula e do governador Aécio Neves por Sérgio Amaral.
Caricaturas: Tartarugas (Personificação do senso comum)
Cachorrinho (tiers
5
– chargista)
Balão: ícone de pensamento
As marcas enunciativas do plano verbal referem-se aos atos locutivos da
enunciação. Os atos de linguagem acima transcritos são atos alocutivos, ou seja, aqueles que
colocam o interlocutor na encenação discursiva, como se pode observar no uso do pronome
“você” na frase negativa “Você não mudou nada”, que faz uma interpelação, e na forma
“Companheiros!...”, exclamativa e interpelativa, e ainda em sistema de encaixamento.
No plano icônico, pode-se perceber que a atitude representada pelo abraço entre
os dois sujeitos remete a uma forma de interlocução.
5
Tiers são figuras intermediárias (sob formas de terceiros do discurso) que ativam valores interdiscursivos,
colocados em cena pelas personagens publicitárias, e que se dissimulam, quase sistematicamente, por detrás da
máscara do anunciante. (SOULAGES, JC. As figuras do terceiro no discurso publicitário. Artigo traduzido.
CUEJ-Robert Schuman, Strasburg, 3/CAD (mimeog.) 2.000. Ver também Charaudeau (1992, p.145)
94
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 1:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Foto retirada de um contexto sério de notícia política do primeiro caderno do
jornal Estado de Minas do dia 29 de maio de 2003.
b) Reportagem sobre o relacionamento do governo estadual com o federal,
representada pelos textos: “Lula pede apoio para Aécio” e “Lula faz apelo ao PT”.
A transposição de uma foto de um contexto sério para um irônico e crítico, como
é o caso da charge, insere a categoria de carnavalização da literatura, uma vez que, no
carnaval, conforme observado por Bakhtin, revogam-se a hierarquia, o medo, a reverência,
a devoção, as regras de etiqueta e tudo o que é determinado pela desigualdade (inclusive
etária) entre os homens. (Bakhtin, 1997, p.123)
Os homens, separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em
livre contato familiar na praça pública carnavalesca. Através dessa categoria do
contato familiar, determina-se também o caráter especial da organização das ações
de massas, determinando-se igualmente a livre gesticulação carnavalesca e o franco
discurso carnavalesco. (BAKHTIN, 1997, p.123)
A aproximação física entre as personagens envolvidas parece transparecer o bom
relacionamento entre os governantes, conforme evocado na charge. Entretanto, o governador
vinha questionando o governo federal sobre a questão do ajuste fiscal no Estado e da MP das
Estradas, o que gerou constrangimento, pois o presidente, para conseguir a reforma
administrativa precisava do apoio do governo estadual. Daí a tentativa de aproximação para
conseguir o apoio necessário.
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO DA CHARGE Nº 1:
De acordo com o quadro de categorização apresentado na página 91, fica evidente
que a charge constitui uma variante do gênero jornal impresso (situação específica de
95
comunicação), encaixado no gênero informativo (de uma situação global de comunicação),
que, por sua vez, pertence ao gênero midiático (o qual constitui um domínio de prática social).
Quanto à transgressão dos gêneros, ou seja, a constatação de formas não esperadas
dentro de um determinado tipo de texto de características já reconhecidas, teremos que
determinar o que não foi respeitado em relação ao gênero em destaque: se as formas, as
restrições discursivas ou os dados situacionais. Parece-nos que, no caso da presente charge, a
transgressão foi a transposição da fotografia, apropriada à finalidade de documentação de uma
situação discursiva de caráter sério, para uma outra com finalidade irônica e crítica. Houve
deslocamento da foto de um contrato de comunicação sério para um contrato de diversão de
um jornal de informação. O posicionamento da foto em uma outra situação de comunicação,
acompanhada do discurso direto verbal, provoca um efeito de comicidade, o que parece
conduzir a uma condição de carnavalização. Charaudeau (1992, p.94) fala sobre as imagens e
os verbos nos desenhos humorísticos:
6
Parfois c´est dans la rencontre de l´image et des mots que se trouvent mises em
scène la “polysémie, “l’homonymie” et les diverses “relations de sens”
(CHARAUDEAU, 1992, p.94).
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE Nº 1:
Observando-se os dados analisados, a charge em questão apresenta-se altamente
polifônica, haja vista em todos os níveis analisados – enunciativo, textual, discursivo –
comprovação da evidência de várias vozes. Olhando-se o quadro enunciativo de Charaudeau,
adaptado a cada análise, podemos observar, tanto no nível situacional, quanto no discursivo,
passando pelo interdiscursivo, a presença de vários sujeitos Eu
c
, o desenhista; Eu
e
1
, o
chargista; Eu
e
2
,
o fotógrafo; Eu
e
3
, a personagem governador Aécio; Tu
i
, o leitor; e Tu
d
, o
leitor modelo, o que vai interpretar a charge, os quais podem ser desdobrados em outros.
6
Talvez seja no encontro da imagem e das palavras que acontece a ‘polifonia’, a ‘homonímia’ e as diversas
relações de sentido (Charaudeau, 1992, p.94). Tradução nossa adaptada.
96
Em relação à charge em estudo, vale notar que, atrás da fala atribuída à
personagem Eu
e
3
, personagem governador Aécio Neves, está implícita uma outra voz, a de
um tiers, que pode ser o chargista. um jogo semântico em que a personagem Aécio, pelo
olhar e pela imposição das mãos em Lula, parece estar falando denotativamente e a expressão
“Você não mudou nada” se referiria à mudança física do presidente Lula. Entretanto,
implicitamente, o discurso é outro. O que não mudou foi o governo, continua igual ao de FHC
(isto sob o ponto de vista de Aécio), e tal fato soa ironicamente, pois é sabido que, apesar
da semelhança no desempenho da função de governar, os dois (presidentes) estão bastante
distanciados. Essa situação de estranheza é manifestada no balão que se refere ao pensamento
das tartarugas personificadas, em que há representação da caricatura do presidente Lula
exclamando: “Companheiros!...”, o que desvela não aproximação, mas distanciamento, ou
seja, o contrário de “companheiros”.
Essas observações confirmam que a charge, de acordo com a teoria da
transtextualidade de Genette, é um hipertexto de vários hipotextos, que reúne num único
espaço as vozes dos sujeitos de cada texto ou de cada situação de comunicação.
Assim, os sujeitos de Genette: escritor, narrador, centro de perspectiva ou
focalização de cada texto e seus desdobramentos, representariam rias vozes que estariam
explícitas ou implícitas, provando a relação de intertextualidade que sempre existiu entre
textos.
A polifonia de Bakhtin, segundo Bezerra (2005, p.194), “se define pela
convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de
vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências
eqüipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas
peculiaridades desse universo”. Ainda de acordo com Bezerra, “o que caracteriza a polifonia é
a posição do autor como regente de um grande coro de vozes que participam do processo
97
dialógico”. Ora, a charge, embora monológica em relação ao seu suporte, o jornal, torna-se
dialógica na sua estrutura, pois são manifestadas vozes autônomas que têm individualidade e
consciência de seus próprios discursos. Observando-se os vários sujeitos representados no
quadro enunciativo de Charaudeau, podemos constatar a existência dessas várias vozes,
algumas explícitas e outras implícitas.
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 2
CHARGE N. 2. Fonte: Estado de Minas. 09 jun 2003.Opinião.p.8.
98
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 2
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
,
Eu
e
2
Eu
e
1
Tu
d
Eu
e
3
QUADRO N. 6 - Contrato de Comunicação da Charge n. 2
O quadro enunciativo da charge 2 apresenta no circuito externo, espaço dos
sujeitos empíricos, o Eu
c
, chargista Oldack Esteves, sujeito comunicante, e o Tu
i
, sujeito
interpretante, o leitor do jornal. No circuito interno, no primeiro plano, aparece um sistema de
encaixamento de sujeitos-enunciadores, sendo que o Eu
e
1
corresponde ao sujeito-enunciador
chargista, ser de papel, que enuncia o discurso de outro; o Eu
e
2
, o fotógrafo que tirou a foto
para documentar um fato esportivo, utilizada agora fora do seu contexto primitivo. O Eu
e
3
representa a personagem carnavalizada, pois substitui a cabeça do jogador pela cabeça
caricaturada do presidente Lula. Seu discurso constitui-se por meio da expressão corporal ao
chutar uma bola, que metaforiza as reformas, complementado pelo letreiro “decide em casa
com vantagem”, também modificado e retirado da foto primitiva, que trazia o letreiro:
“Cruzeiro decide em casa com vantagem”, conforme Anexo 2b.
No segundo plano desse quadro enunciativo, o circuito interno, aparece o sujeito
Eu
e
1
, o chargista, ser de papel que faz com que as personagens tartarugas emitam os
Eu
c
Tu
i
99
enunciados em diafonia
7
, ou seja, não um diálogo, mas a voz de uma tartaruga é
complementada pela voz da outra. Assim, não há encaixamento, mas simultaneidade de
vozes, proferidas pelos sujeitos-enunciadores Eu
e
2
e Eu
e
3
.
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 2:
- Plano verbal:
Discurso direto: - Tá melhorando!
- Pros bandidos, corruptos, bancos, políticos...
Título: DECIDE EM CASA COM VANTAGEM
Inscrição na bola: REFORMAS
- Plano icônico:
Foto de autoria de Auremar de Castro, carnavalizada, pois foi feita transposição
caricaturada da cabeça do presidente Lula para o corpo do jogador Alex, do Cruzeiro, que,
numa jogada metafórica, chuta em gol de letra as “reformas”, representadas pela bola de
futebol, tendo aparente apoio da câmara.
Caricaturas metaforizadas: tartarugas e cachorrinho devidamente personificados:
as tartarugas falam, o cachorrinho aplaude.
4) MARCAS POLIFÔNICAS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 2:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Fotografia de esporte de autoria de Auremar de Castro; destaque da capa do
primeiro caderno do jornal Estado de Minas, página 1, do dia 9 de junho de 2003.
7
A diafonia, segundo Roulet, é um caso particular de voz no enunciado, a retomada e a integração do discurso
do interlocutor no discurso do locutor. (Charaudeau, 2004, p.159).
100
b) Notícia da página 3 do jornal EM, de 9 de junho de 2003, sobre as
REFORMAS: “Planalto pressiona governadores”.
c) Notícia da página 6, do primeiro caderno do jornal EM, do dia 29 de maio de
2003: “Assembléia não revela os nomes dos marajás” e Reforma mineira: Lula
faz apelo ao PT”.
d) Editorial e Cartas à Redação, página 8, do caderno principal do EM, do dia 10
de junho de 2003.
A charge é contextualizada no seu tempo e no seu espaço. O chargista procura
espelhar no seu trabalho tudo o que a opinião pública pensa e diz, seja no domínio social,
político, econômico, esportivo e outros.
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO DA CHARGE Nº 2:
Seguindo os postulados de Charaudeau (2004, p.35), a charge constitui um gênero
do discurso, inserido em um subcontrato de um contrato maior, o contrato global do domínio
de comunicação. Nesse domínio, subcontratos específicos são constituídos, levando-se em
conta as circunstâncias materiais, as restrições discursivas, a organização formal.
De acordo com as restrições discursivas que dizem respeito ao “conjunto dos
procedimentos que o chamados pelas instruções situacionais para especificar a
organização discursiva” e que se referem aos modos de organização do discurso (narração,
descrição, argumentação), teríamos um outro subcontrato e também um subgênero. O mesmo
se pode dizer em relação à organização formal no que se refere às regularidades, rotinizações
e configuração textual. Para Charaudeau, não se pode falar de gênero sem falar nas constantes
do contrato situacional, nas constantes da organização discursiva e nas constantes formais.
101
Regidos pelo subcontrato de “diversão” do jornal impresso, aparecem vários
textos, cujo objetivo principal é agradar e divertir. Tirinhas, cruzadinhas, adivinhações,
piadas, cartuns, desenhos, caricaturas, charges vão constituir subgêneros. Ora, cada
subgênero, mesmo estando submetido ao mesmo contrato, possui traços que o especificam em
relação aos seus congêneres, levando-o a ser considerado uma “variante” da situação de
comunicação a que está subordinado. A charge apresenta especificação quanto às
circunstâncias materiais e às características formais, mas não sofre transformações nos dados
situacionais e constitui, portanto, um exemplo de “variante de gênero”.
Para verificar a transgressão, temos que observar o que foi desrespeitado em
relação ao gênero em destaque: as formas, as restrições discursivas ou os dados situacionais.
Às vezes, torna-se difícil observar uma transgressão. Por se tratar de hipertexto, há, segundo
Maingueneau (1991, p.155), citado por Charaudeau (2004, p.94), um reinvestimento de um
texto ou de um gênero de discurso em outros, através das estratégias de captação e subversão.
O reinvestimento implica que o destinatário perceba sempre da mesma maneira o
discurso fonte, o que confirma a conivência entre produtor e destinatário. Pode
acontecer que um reinvestimento seja ambíguo, que seja interpretável ao mesmo
tempo como captação e como subversão (CHARAUDEAU, 2004, p.94).
A respeito dessa situação, Machado (1999, p.330) afirma que a problemática do
reinvestimento atravessa a polifonia, uma vez que permite ouvir na voz do enunciador uma
outra voz, a do discurso reinvestido. Assim, “de maneira mais geral, a subversão sempre
envolve um certo reconhecimento do valor do discurso reinvestido”. (CHARAUDEAU, 2004,
p.94). Ou, como afirma Machado, “O sujeito parodista mantém uma posição ambígua em
relação ao parodiado: distancia-se, permanecendo próximo: ele lhe é infiel, apesar de ser-lhe
fiel” (MACHADO, 1999, p.330).
102
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE No.2
Na charge em estudo, evidencia-se um desvirtuamento da finalidade da foto.
Primeiramente utilizada para dar credibilidade à “sensacional jogada” do atleta, foi desviada
para outra situação de comunicação. Acreditamos que tal fato constitui uma transgressão do
gênero fotográfico e também uma carnavalização, pois foi substituído o rosto do protagonista
da foto por uma nova máscara, a caricatura do rosto do presidente Lula. A foto do jogador nos
conduz para um contexto menos sério de futebol –, evidenciando uma “boa jogada” de um
jogador, mas a caricatura de Lula e as frases enunciadas nos levam ao contexto da política
(que se supõe mais sério), entretanto “divertido”. O apagamento do sujeito “(?)
melhorando” e a imagem do jogador sugerem várias hipóteses (que “time?”; que “jogador?”;
“o quê?), mas a complementação: “pros bandidos, corruptos, bancos, políticos” acaba
respondendo não “o que” está melhorando, mas também “quem” é responsável por essa
melhora, enfim, a charge esclarece (e critica) para qual “time” o presidente está jogando, onde
ele joga, quem tira “vantagem” desse jogo e o “gol” que ele marca com as reformas,
sugerindo que a jogada não é tão boa assim... Portanto, o posicionamento político do
presidente e a crítica que é sugerida a ele são vozes ouvidas nessa carnavalização de palavras
e imagens, o que implicitamente é revelado ao leitor, que joga ou não esse jogo armado pelo
chargista.
Em vista disso, parece-nos evidente a polifonia em todos os níveis da charge
analisada
,
haja vista o uso de metáforas relativas ao universo esportivo do futebol, figura
lingüística usada prodigamente pelo presidente em seus discursos. Aliás, a charge, em sua
totalidade, mostrando estádio, espectadores, a bola e o jogador em destaque, constitui uma
metáfora do congresso com o seu jogador maior, o presidente, apoiado pelos seus pares, o
qual faz manobras para promover as reformas. Em tal situação, evidenciam-se as vozes dos
103
representantes do povo, vozes estas que representam as vozes dos cidadãos comuns, os quais
vêem as reformas com outros olhares.
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 3
CHARGE N.3 Fonte: Estado de Minas, 02 jul 2003. Opinião. p.10.
104
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 3
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
Eu
c
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
Tu
i
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
QUADRO N.7[W1] - Contrato de Comunicação da Charge n. 3
O quadro enunciativo do contrato de comunicação da charge número três
apresenta um circuito externo onde estão os sujeitos Eu
c
e Tu
i
, ambos seres empíricos; o
desenhista Oldack Esteves como sujeito-comunicante, e o leitor, sujeito-interpretante. O
circuito interno está dividido em três planos. No primeiro plano, o Eu
e
1
representa a voz do
chargista, ser de papel, e o Eu
e
2
é o sujeito-enunciador que dá voz à personagem criança: “Vó,
onde é que desliga o vô?” O Tu
d
representa o leitor-destinatário idealizado pelo enunciador.
No segundo plano do circuito interno, o quadro enunciativo é semelhante ao
anterior, entretanto, apesar de o Eu
e
1
representar o sujeito-enunciador chargista, o Eu
e
2
dará
voz ao sujeito-enunciador personagem tartaruga. Pode-se observar uma narrativa que lembra
o conto de fadas (“Era uma vez...”), onde o elemento icônico, tartaruga maior, conta uma
105
história para a tartaruga menor. Pode-se dizer que, em relação ao gênero do discurso, temos
aqui um caso de efeito de gênero contos de fadas. O Tu
d
, sujeito-destinatário, é o leitor ideal
previsto pelos sujeitos-enunciadores.
No terceiro plano do circuito interno, pode-se observar o encaixamento dos três
sujeitos-enunciadores, portadores de vozes diversificadas, a saber: o Eu
e
1
, o chargista; o Eu
e
2
,
o fotógrafo; e o Eu
e
3
, a personagem presidente Lula, com a interpelação: “Minas vai bem?
Esta soa ambígua e leva à ironia, em virtude das várias discussões entre o poder federal e o
estadual, na época. O Tu
d
é o sujeito-destinatário, que compartilha um saber comum, e é capaz
de interpretar o discurso apresentado nessa charge.
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 3:
- Plano verbal:
Discurso direto: - Vó, onde é que desliga o vô?
- Minas vai bem?
Narrativa: Era uma vez, num país próximo, um grupo de espertalhões se
apossou de um dinheiro do reino e...
Onomatopéia: Blá, blá, blá... (metáfora de discurso vazio)
- Plano icônico:
Caricaturas: - Presidente Lula, D. Marisa, neto e cachorrinho.
Fotografia: - Presidente Lula, governador Aécio Neves, de muletas, após
sofrer uma cirurgia no joelho e um grupo de Parlamentares, fotografados por Sérgio Amaral
para documentar encontro de chefes de governo federal e estadual.
106
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 3:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Foto produzida pelo fotógrafo Sérgio Amaral, retirada de uma notícia séria do
primeiro caderno do jornal EM, do dia de julho de 2003, com o tulo: “União
vai compensar estados exportadores.”
b) Conhecimento público sobre os discursos que o presidente faz de improviso.
c) Texto sobre as reformas: “Lula aceita compensar estados”.
d) Texto sobre reforma tributária e previdenciária: “Aécio garante apoio mineiro”.
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO DA CHARGE Nº 3:
A exemplo das charges nº 1 e nº 2, analisadas, a transgressão parece coincidir com
a questão do uso da foto fora da finalidade a que devia se prestar. A carnavalização aparece
com o uso da foto servindo a um outro contexto, acompanhado de uma fala inserida com o
propósito de despertar ambigüidade, ironizar e criticar.
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE Nº 3:
Observando-se o item 2, quadro enunciativo, parece ficar bem clara a polifonia,
uma vez que se podem verificar os vários sujeitos inscritos nos três níveis do quadro
enunciativo: nível situacional, nível discursivo e nível interdiscursivo. No nível situacional,
circuito externo, aparecem os sujeitos-comunicantes (Eu
c
e Tu
i
) numa situação monolocutiva,
pois o texto tem como suporte a imprensa escrita e o leitor não está presente fisicamente. No
nível discursivo, verifica-se o desdobramento dos sujeitos-enunciadores (Eu
e
1
, Eu
e
2
, Eu
e
3
), ou
seja, o fotógrafo, o chargista e a personagem. No nível interdiscursivo, considerando a charge
como um discurso particular, e levando em conta que Maingueneau (2000, p.86) chama de
interdiscurso ao conjunto das unidades discursivas com as quais esse discurso entra em
107
relação, estaremos tratando da relação com discursos anteriores do mesmo gênero e com
discursos contemporâneos de outros gêneros. Nessa relação interdiscursiva, podemos observar
que estão presentes na charge os discursos sobre a corrupção, a reforma tributária, a fala
prolixa do presidente e os contos de fadas.
A charge é composta de uma foto retirada do seu lugar normal, um texto sério, e
carnavalizada pela colocação em outra situação de comunicação (contrato de diversão do
jornal) com inserção de uma frase interrogativa “Minas vai bem?”, que indicaria um código
de polidez, não fosse a pergunta feita justamente na época em que o governador havia sofrido
uma cirurgia no joelho e com vários problemas dependendo da liberação de verbas pelo
governo federal.
Também em linguagem icônica, a representação caricaturada de Lula discursando
(blá, blá, blá), de D. Marisa, do cachorrinho, e do neto que pergunta: “-Vó, onde é que desliga
o vô?, - linguagem verbal que mostra uma voz ironizando a prolixidade do presidente e a
freqüência com que discursa de improviso. Ligar e desligar são verbos que pertencem ao
mundo tecnológico. Referem-se a objetos, equipamentos que estão a serviço do homem. Se
atribuímos atitudes humanas a seres inanimados e a animais, personificando-os, na análise em
questão, o uso do verbo desligar causaria uma despersonificação da figura do presidente, ou
uma desumanização.
As tartarugas utilizam a narrativa dos contos de fadas: “Era uma vez...” e trazem
para o gênero charge efeitos de gênero contos de fadas, que, a nosso ver, emprestam ao
discurso do presidente um caráter de ficcionalidade, no sentido de inventividade, (ou até
mesmo falseamento da realidade). Assim, podemos dizer que a narrativa representa uma
crítica em linguagem irônica a respeito de problemas no repasse de recursos pelo governo
federal aos Estados e mesmo uma alusão à possibilidade de desvio de recursos públicos por
participantes do governo federal.
108
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 4:
CHARGE N.4. Fonte: Estado de Minas. 06 jul 2004. Opinião. p.18.
109
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 4:
Eu
e
3
Eu
e
4
Eu
e
5
Eu
e
6
Eu
e
7
Eu
e
8
Eue
9
Eu
e
1
Eu
2
Eu
e
10
Tu
d
Eu
e
11
Eu
e
12
Eu
c
Eu
e
13
Tu
i
Eu
e
14
Eu
e
15
Eu
e
16
Eu
e
17
Eu
e
18
Eu
e
2
Eu
e
3
QUADRO N. 8 - Contrato de Comunicação da Charge n. 4
O quadro enunciativo da charge número quatro apresenta um circuito externo,
lugar do sujeito-comunicante e do sujeito-interpretante (Eu
c
e Tu
i
), o desenhista e o leitor
empíricos. O circuito interno é dividido em dois planos. No primeiro plano, o enunciador Eu
c
1
representa a voz do fotógrafo, através da linguagem icônica, uma fotografia deslocada de
Eu
e
1
Tu
d
110
notícia séria do jornal Estado de Minas, página 1, do dia 4 de junho de 2004, sob o título:
“Posse no STF”, que foi carnavalizada pelo chargista. O enunciador Eu
e
2
,
ao abrir o quadro
“Dê a sua opinião”, com múltiplas escolhas, que sugerem um questionário de opinião pública,
voz a vários enunciadores, cada um deles com um discurso específico, que, relacionados à
fotografia, dá margem a múltiplas interpretações, levando à ironia e ao riso, ao mesmo tempo
que deixa implícita a crítica à situação política.
No segundo plano, o discurso do chargista Eu
e
1
voz às personagens tartarugas,
Eu
e
2
e Eu
e
3
;
apesar da frase interrogativa, ocorre, aí, não um diálogo, mas uma diafonia, em
que a personagem Eu
e
3
apenas insinua o implícito que está inerente à frase “Ninguém é
perfeito”, uma vez que o slogan do candidato do PT à prefeitura era “Prefeito perfeito”, uma
figura de linguagem denominada paranomásia, que desperta a ironia e a crítica.
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 4:
- Plano verbal
Discurso direto:- E para a prefeitura?
- Ninguém é perfeito!
Dê a sua opinião (seguida de várias opções para o leitor se
posicionar e selecionar). O verbo no modo imperativo marca
uma ordem, constitui um ato alocutivo, em que o enunciador
pretende exercer influência sobre o interlocutor.
Vale destacar o efeito de sentido produzido pelo uso da forma “e” que sugere
continuidade de um diálogo, em que se apontavam as diversas funções atribuídas a cada
personagem retratada no “trio”.
- Plano icônico
Caricaturas: cachorrinho e tartarugas
111
Fotografia: de autoria de Carlos Moura, publicada no dia 4 de junho de 2004
sob o tulo: “Posse no STF”. A foto mostra o Presidente Lula, os ex-ministros: José Dirceu e
Antônio Palocci, enfileirados, de perfil, em plano americano, ou seja, aquele em que as
personagens são mostradas da cintura para cima.
“Pesquisa de Opinião”, subvertida na mistura dos temas sugeridos para resposta e
fugindo totalmente ao discurso político, provocando ambigüidades e ironia.
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 4:
A charge constitui um hipertexto dos seguintes hipotextos:
a) Foto de autoria de Carlos Moura, publicada no primeiro caderno do jornal
Estado de Minas do dia 4 de junho de 2006, documentando o texto: “Posse no
STF”
b) “Pesquisa de Opinião”, com dezesseis itens, dos quais quinze são referentes a
títulos de universos temáticos bem diferenciados, tendo a maioria em comum
apenas a expressão quantitativa referente a três (trio, três, trinca) e a coincidência
de serem três as personalidades da fotografia.
c) Foto da posse do ministro Nelson Jobim no STF cumprimentado pelo
presidente Lula.
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO DA CHARGE Nº 4:
Segundo Charaudeau (2004, p.35), o que caracteriza a “variante” de um gênero é
que ela respeita o essencial das características do gênero e propõe uma característica
recorrente que não modifica, mas, pelo contrário, especifica uma dessas características. Uma
“variante” parece não sofrer modificações nos dados situacionais de base do contrato, mas
especifica alguns de seus componentes. Essa especificação pode ser no nível das
112
circunstâncias materiais (escrita, oral, audiovisual), no nível das restrições discursivas (relatar
ou comentar um acontecimento) ou no nível da organização formal (seja dando destaque ao
título, à forma de apresentação).
No caso da charge, ora em estudo, podemos verificar que esta constitui uma
variante de gênero por fazer parte de um contrato, ou melhor, de um subcontrato de diversão
de um jornal de informação impresso. No subcontrato de diversão, há, normalmente, uma
página de procedimentos de diversão (cada texto constituindo uma variante, como, por
exemplo, quadrinhos, palavras cruzadas, charadas), destinada a desviar a atenção do leitor
para assuntos mais amenos e engraçados, a fim de captar-lhe a atenção. Muitas vezes, as
situações que despertam o riso parecem constituir uma pausa de repouso no meio de tanta
realidade trágica.
A charge, entretanto, não fica disposta na gina de divertimento, geralmente do
segundo caderno ou outro, mas no caderno principal, justamente na página de opinião, ao lado
do editorial. Ora, todos sabemos que o editorial expressa a posição ideológica do jornal, e que
uma charge, construída por um desenhista do jornal, jamais se colocaria contra a posição
manifestada no editorial. Assim, a charge informa e forma, de maneira sutil, fazendo passar o
posicionamento político-ideológico do jornal, (proprietários e anunciantes), por meio da
ironia e do riso ambíguo. Vale lembrar, ainda, que a transgressão aqui também se pelo
desrespeito à situação de comunicação. Uma foto é deslocada de um local de notícia política
séria e colocada em um desenho sério-cômico.
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE Nº 4:
Quanto à questão da carnavalização, esta parece clara pelo fato de se deslocar a
foto de um contexto para outro, acompanhada sempre de um elemento icônico ou verbal que
vai provocar o destronamento, a vulgarização, o riso, mostrando outras vozes e tornando
113
ridícula a situação das personagens. Podemos observar que, na charge em estudo, o simples
relacionamento das personagens da fotografia a qualquer um dos itens mencionados conduz
ao ridículo e ao destronamento e provoca o riso da ironia. Os dezesseis itens fazem parte de
sugestões de respostas ao questionamento: “Dê a sua opinião”, formulação pedagógica de
questão de múltipla escolha, mas também carnavalizada em virtude da multiplicidade de itens
de campos de saber muito diversificados.
Carnavalizou-se a própria questão, tanto na formulação quanto na diversidade dos
itens apresentados. Houve preferência pelo numeral três, pois três eram as personagens da
foto. Entretanto, o critério foi o mais desconcertante, uma vez que mistura itens referentes ao
universo temático da música com personagens de história em quadrinhos e com contos
infantis.
Imaginemos relacionar o presidente Lula, José Dirceu e Palocci com trio Irakitan?
Universos totalmente diferentes. Aliás, é bom observar que Trio Irakitan, Trio Los Panchos,
Trio Ternura (com a música “Filme Triste”) e Trio Parada Dura pertencem ao discurso da
música; Trio Elétrico fica entre a música e a tecnologia, além de lembrar o ambiente de
diversão e de festa, assim também como o Três em Um; e Trinca Ferro fica entre as penas de
natureza ornitológica e a música de seus trinados. Trinca do Terror e Três Mosqueteiros
lembram heróis de historinhas infantis; Trapalhões (sem Zacarias) e Reco-Reco, Bolão e
Azeitona encantavam com palhaçadas os programas de TV e o circo. Do discurso bíblico,
Cavaleiros do Apocalipse (que são quatro, mas deve ter sido retirado o cavalo branco,
sobrando apenas o preto, o vermelho e o amarelo) e os Três Reis Magos podem estabelecer
uma relação de fantasia com a foto. Há, ainda, a referência ao ambiente econômico-financeiro
com o FMI e ao provérbio “Um é pouco, dois é bom, três é demais”.
A linha pontilhada, também apresentada pelo chargista, abre espaço para mais
uma voz: a do leitor. É impossível relacionar todas as vozes que, despertadas nesses itens,
114
compõem a polifonia desse discurso.Entretanto, as vozes implícitas na escolha dos trios levam
à depreciação dos representantes do governo, sugerindo uma crítica aos políticos do PT, com
os quais parece não haver comunhão de idéias por parte do governo e do jornal. Toda essa
mistura leva à carnavalização: cada voz ecoa fora do seu contexto natural e se presta à ironia,
juntamente com a fotografia, que também foi deslocada de um outro texto tido como sério.
Há, por fim, o diálogo das tartarugas, personificando o saber comum, ou seja, a
referência às eleições municipais para a prefeitura de Belo Horizonte. No diálogo: “- E para a
prefeitura?” “– Ninguém é perfeito!” Observando-se as palavras “prefeitura” e “perfeito”,
nota-se uma aproximação entre elas na aparência, embora diferentes no significado, fato que
leva à figura de linguagem chamada “paranomásia”. Esse jogo faz mais sentido se
relacionarmos a propaganda política do PT na época (2004), que conotava Pimentel como o
“prefeito perfeito”. Percebemos nesse jogo uma ironia sutil que desvaloriza o candidato.
Pode-se perceber, através da ironia, a polifonia na voz do outro.
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 5:
CHARGE N. 5. Fonte: Estado de Minas. 18 jun.2004. Opinião. p.8.
115
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 5:
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
Eu
c
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
Tu
i
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
QUADRO N. 9 - Contrato de Comunicação da Charge n. 5
O quadro enunciativo da charge número cinco apresenta um único circuito
externo, onde estão os sujeitos-comunicantes Eu
c
e Tu
i
, sujeitos empíricos, e um circuito
interno dividido em três planos. No primeiro plano, à esquerda e acima, encontra-se o sujeito
enunciador Eu
e
1
,
o chargista, que dá voz à personagem homem do campo: Eu
e
2
,
com a
expressão “Olha o salário mínimo!”, evidenciando o gesto icônico de mostrar o avião
presidencial, o qual custou uma fortuna aos cofres públicos.
No segundo plano, à direita da charge, um encaixamento das vozes de três
enunciadores: o Eu
e
1
, o chargista; o Eu
e
2
, o fotógrafo, o qual usou a foto para documentar
outra notícia; e o Eu
e
3
, a personagem ministro Humberto Costa, que enuncia uma expressão
de dor “Dói demaisssss!...” de conotação ambígua (dor física ou moral?). A foto foi retirada
do seu contexto natural e inserida em um outro, onde a expressão acima, colocada
propositalmente pelo chargista, soa ridícula, irônica e crítica.
116
No terceiro plano, aparece o chargista na situação de enunciador Eu
e
1
,
o
qual
atribui voz à personagem tartaruga, Eu
e
2
, a qual retrata a indignação do povo: “O Lula tá com
amnésia aguda. Não lembra de nada.” Como pode ser observado, através dos vários sujeitos
que se apresentaram nesse discurso, um envolvimento de um número grande de vozes, na
maioria das vezes implícitas, sob falas ambíguas, que o Tu
d
, sujeito-destinatário, interpretará
de acordo com o conhecimento de mundo que tem.
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 5:
- Plano verbal:
Discurso direto: - Olha o salário mínimo! (ato alocutivo, poder de influência)
- O Lula tá com amnésia aguda. Não lembra de nada.
- Dói demaisssss!...
- Plano icônico:
Fotografia do Ministro da Saúde, Humberto Costa, retirada da página de política
do primeiro caderno do jornal Estado de Minas, do dia 17 de junho de 2004, publicada com o
destaque “Operação Vampiro”, “Costa quer punir laboratórios”.
Caricaturas: - Desenho do avião presidencial em vôo.
- Desenho de uma família no campo: homem com enxada na
mão, mulher e filho e o cachorrinho a certa distância do grupo. O homem aponta para o avião
(dêitico, icônico) e diz: “Olha o salário mínimo!”
- Desenho das duas tartarugas que representam o saber comum.
Repetição da letra “s”, que representa o fonema /s/, formando um superlativo de
intensidade.
117
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 5:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Foto de autoria do fotógrafo Joedson Alves retirada de notícia do dia 17 de
junho de 2004, página 5, do jornal Estado de Minas.
b) Textos do jornal EM, do dia 17 que falam sobre o reajuste do salário mínimo
para R$260,00.
c) Textos do jornal do dia 18/06/2004, página 1 e 15 do primeiro caderno.
d) Textos anteriores, de 26/03/04 e 29/03/04, e outros falam sobre a compra do
avião presidencial de Lula por duzentos milhões de reais.
e) Texto do EM do dia 11/06/04: “Quando o governo quer, e tem vontade política,
vota-se tudo rapidamente, (...). Do contrário, corre-se o risco do esquecimento.”
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO DA CHARGE Nº 5:
Essa charge também constitui uma variante do nero informativo do contrato de
comunicação de um jornal de informação. Vários traços foram acentuados, caracterizando a
ironia, a ambigüidade, a crítica e o riso, rastros do sério-cômico do contrato de diversão do
jornal de informação. O deslocamento da foto de uma notícia séria para o contexto parodístico
da charge, juntamente com a menção de outras informações que foram retiradas de
documentário, cujo propósito não era o riso, mas a informação, acentua as características do
gênero charge.
A charge em análise pode ser decomposta em três planos referentes a contextos
diversos. O primeiro plano, da direita, é um hipertexto originado das notícias referentes a
fatos recentes que receberam na mídia o apelido de “operação vampiro”, a máfia do sangue, e
constitui notícia do âmbito federal. No plano da esquerda, no alto, há apresentação em
elementos icônicos (desenho do avião, com a bandeira do Brasil, no ar) em nítida alusão à
118
compra do novo avião presidencial que custou um valor muito alto à nação. Em terra, a
representação, através do desenho, de uma família de camponeses (homem com enxada,
mulher e filho, e também o cachorrinho); o homem, apontando para o avião (dêitico icônico),
diz: “- Olha o salário mínimo!”, com marca autonímica de exclamação.
Abaixo do plano da família de camponeses, o plano das tartarugas. Nesse
plano, as tartarugas representam iconicamente o povo, e enunciam metaforicamente, em vel
coloquial, o discurso direto: “O Lula com amnésia aguda. Não lembra de nada.” Pode-se
observar o uso popular da linguagem nas marcas de oralidade no verbo “tá” (por “está”) e na
regência do verbo “lembrar” (não “lembra de” nada por não “se lembra denada). A amnésia
aguda pode ser referência a promessas de campanha registradas em reportagens anteriores. A
transgressão se justamente no desrespeito à situação de comunicação a que foram
submetidos todos os componentes que constituem a charge.
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE Nº 5:
A foto transposta, acompanhada da exclamação: “Dói demaisssss!...”, despertou
ambigüidade provocando confusão entre um sentimento real de dor física, de dor moral.
Ridicularizou a personagem, no caso, uma autoridade, levando ao seu destronamento e,
portanto, à carnavalização, palco de muitas outras vozes.
Interessante notar que essa enunciação não é própria da pessoa fotografada, é
expressão de uma voz intrusa que modifica semanticamente o hipotexto, acrescentando
informações outras, que podem ser de um terceiro enunciador, um tiers insu, que participa
sem ser convidado.
Mais uma vez, houve evidência da polifonia através das muitas vozes que podem
ser registradas nos três níveis de análise: enunciativo, textual e discursivo.
119
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 6:
CHARGE N. 6. Fonte: Estado de Minas.08 JUL. 2004. Opinião. p.8
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 6:
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
Eu
c
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
Tu
i
Eu
e
2
Eu
e
1
Eu
e
3
QUADRO N. 10 - Contrato de Comunicação da Charge n. 6
Tu
d
120
O quadro enunciativo da charge número seis apresenta um circuito externo, onde
estão os sujeitos-comunicantes Eu
c
e Tu
i
, o desenhista e o leitor interpretante, e três planos do
circuito interno. No primeiro plano do circuito interno, na parte superior do desenho,
aparecem os sujeitos-enunciadores Eu
e
1
, Eu
e
2
e Eu
e
3
, num sistema de encaixamento, onde o
Eu
e
1
representa o chargista; o Eu
e
2
, o fotógrafo; o Eu
e
3
, a personagem presidente Lula com a
fala ambígua: Zé, tem uma pulga atrás da orelha!” Há, pois, uma multiplicidade de vozes,
que geram um discurso polifônico que o Tu
d
, participando do mesmo conhecimento de
mundo, é capaz de interpretar.
No segundo plano, referimo-nos à representação do discurso da charge, abaixo da
foto do presidente Lula com o vice-presidente José Alencar. Nesse plano do circuito interno, o
Eu
e
1
representa o sujeito-enunciador chargista e o Eu
e
2
, a personagem chargista, conforme
demonstra a caricatura do próprio Oldack Esteves, simulando um entrevistador do presidente
Lula. O Tu
d
representa o leitor capaz de entender a charge, uma vez que desfruta de um
conhecimento de mundo semelhante ao do Eu
e
1
.
No terceiro plano, circuito interno, circuito do dizer, não um encaixamento de
vozes, mas o paralelismo das vozes das tartarugas, o discurso do sujeito-comunicante Eu
e
2
,
que é complementado pelo discurso do sujeito-comunicante Eu
e
3
, processo denominado
diafonia. Além da ocorrência de ambigüidade, que leva a interpretações diversas,
explicitamente, há uma crítica à situação das estradas de rodagem, motivo pelo qual
necessidade de se usar a estrada de ferro (trilhos). Entretanto, em vista da ambigüidade,
valorização do governo estadual, que está colocando Minas no caminho certo: “O Aécio está
pondo Minas nos trilhos”.
121
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 6:
- Plano verbal:
Discurso direto: - Zé, tem uma pulga atrás da orelha!
- O Aécio está pondo Minas nos trilhos.
- Claro! As estradas acabaram!
- Pesquisa: Você é contra ou a favor do povo?
- Plano icônico:
Fotografia do presidente Lula e do vice José Alencar, de autoria de Dida Sampaio,
deslocada de uma notícia séria com o título “Balanço”, publicada no primeiro
caderno do jornal Estado de Minas, do dia 6 de julho de 2004.
Caricaturas do presidente Lula, do chargista O. Esteves e do cachorrinho e das
duas tartarugas personificadas.
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 6:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Fotografia deslocada de uma notícia sobre o desempenho do governo nos
dezoito meses depois da posse, publicada no EM do dia 06/07/06.
b) Texto sobre discordância entre presidente e vice-presidente.
c) Texto sobre o desempenho de Lula no governo, após dezoito meses.
d) Opinião sobre o desempenho do governo estadual (“O Aécio está pondo Minas
nos trilhos.”)
e) Crítica circulante sobre as condições das estradas de rodagem.
122
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO DA CHARGE Nº 6:
O contrato de comunicação do jornal impresso, que, geralmente, circula entre um
público amplo, prevê um subcontrato de diversão inserido nele. Se algum texto foge à
finalidade de informar, constitui, no entanto, uma estratégia de captação do leitor, pois
provoca o riso e alivia um pouco a tensão da leitura nem sempre amena das notícias do dia-a-
dia. Cada gênero possui traços específicos que são acentuados em cada situação discursiva.
Geralmente estão agrupadas em uma página específica, mas cada uma tem suas
especificidades e qualquer leitor consegue distinguir uma variante de outra. A charge, no
entanto, apesar de estar no contrato de diversão do jornal impresso, tem o seu espaço
determinado, geralmente na página de opinião do leitor, próximo ao editorial. Ora, todos os
leitores de jornal estão cientes de que o editorial expressa, normalmente, a postura do
informativo frente aos acontecimentos noticiados, e a charge não poderia ser usada de outra
forma.
O desenhista da charge trabalha para o jornal e, pelo menos a rigor, não poderia ir
de encontro às opiniões deste veículo de informação. Assim, a charge emite a opinião dos
dirigentes do jornal impresso, o que constitui um dos traços diferenciadores deste gênero de
terxto. Outra característica seria a transformação de uma notícia séria em crítica-irônica. A
charge não deixa de informar, mas, ao mesmo tempo, critica, diverte o leitor e apresenta o
posicionamento político-ideológico da empresa jornalística, sem precisar argumentar
racionalmente sobre ele. De novo, o posicionamento político, que geralmente despertaria a
polêmica, numa possibilidade de contra-argumentação, simplesmente “passa”, por meio das
ações dos actantes, da pluralidade de vozes e da narrativa icônica bem sucedida. Com isso,
tanto uma economia de raciocínio, na reprodução da ideologia do jornal, quanto a produção
de um certo encantamento, que se manifesta pelo riso-cômico, numa estratégia sedutora de
(re) produção da opinião.
123
Nesta charge, como ocorre nas anteriores, a transgressão se no nível
situacional, com o deslocamento de uma foto do noticiário sério para um gênero do sério-
cômico, transformando um gesto que constitui um dêitico icônico espacial em uma situação
ridícula de insinuação de familiaridade e destronamento, através do enunciado: “Zé, tem uma
pulga atrás da orelha!” Carnavalizou-se a foto e metaforizou-se a pulga, que aparece agora na
voz de um metaenunciador e é transformada em problema, preocupação, situação embaraçosa
por que passa o governo, haja vista, naquele momento conjuntural, as críticas do vice à
política financeira do governo.
No plano inferior, uma outra situação discursiva representada pela caricatura
do Lula e de um entrevistador, no caso, a caricatura do próprio Oldack Esteves, acompanhado
do cachorrinho, que aparece constantemente uma testemunha atenta, ou um tiers, mostrando a
sua participação apenas pela expressão de surpresa. O discurso verbal está representado pelo
discurso direto do sujeito-enunciador: “- Pesquisa: você é contra ou a favor do povo?”
Observa-se a inversão da expressão “favor ou contra”, que constitui um índice de
modalização da posição do sujeito, em vista das recentes notícias sobre a paralisia
administrativa. Houve carnavalização pela inversão da posição do governo, que deveria ser
sempre a favor do povo.
No terceiro plano, o diálogo das tartarugas, o saber comum. O icônico,
representado pelas caricaturas das tartarugas, e o diálogo, em que interpretação semântica
ambígua da palavra “trilhos”, fazem surgir um outro discurso e outras vozes. Enquanto o
sujeito-enunciador enuncia em discurso direto: “O cio está pondo Minas nos trilhos.” (no
sentido de corrigir distorções), o outro sujeito-enunciador, representado pela outra tartaruga,
complementa o enunciado em discurso direto: “Claro, as estradas acabaram!”, ironizando a
deteriorização das estradas mineiras dependentes de verba federal e, ao mesmo tempo,
fazendo menção às ferrovias que também se deterioraram após a privatização e a desativação.
124
Aqui aparece um novo discurso despertado pelo desvio semântico na interpretação
da palavra “trilhos” e a presença de outras vozes suscitadas pelo abandono em que se encontra
a malha ferroviária, o abandono das estradas de rodagem e o problema da moralização do
poder público, com destaque para um posicionamento pró-Aécio e contrário ao governo
federal. O uso metafórico da palavra “trilho” com o uso conotativo da palavra “estrada”
produziram interpretações semânticas diversas para cada sujeito-enunciador. O sujeito-
enunciador, Eu
e
2
, usa trilho” no sentido de “colocar nos eixos”, no lugar correto, mas tal
afirmação é interpretada e complementada pelo sujeito-enunciador, Eu
e
3
, como se trilho fosse
linha férrea, uma alternativa para fugir das estradas de rodagem esburacadas. Esse jogo
semântico faz aflorar vozes implícitas de aprovação ao governo estadual, primeiro pela boa
conduta do governo, depois pela sugestão de alternativa razoável pelo uso da via férrea. Desse
modo, surge a voz da crítica ao governo federal, que não repassou as verbas para a
recuperação das rodovias, deixando as estradas esburacadas e sem condição de trânsito
seguro. Interessante que a intencionalidade principal, que era falar sobre o governo, ficou nos
implícitos e esses outros discursos críticos foram ventilados. Houve a condensação dos
discursos, através da ironia e da crítica despertada pelo diálogo diafônico das duas
personagens animizadas.
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS DA POLIFONIA NA CHARGE Nº 6:
A presença dos vários sujeitos é evidenciada pelas marcas enunciativas: discursos
diretos: “-Zé, tem uma pulga atrás da orelha!”; “Pesquisa: - Você é contra ou a favor do
povo?”; pela assertiva: “O cio está pondo Minas nos trilhos”, seguida pela justificativa:
“Claro, as estradas acabaram!”, evidenciando a existência de várias vozes antes de cada
enunciação discursiva, o que comprova a polifonia no nível do enunciado.
125
No nível discursivo, de acordo com Charaudeau, a charge estabelece um contrato
de comunicação que poderíamos chamar “contrato de diversão” (MACHADO s.d.) dentro de
um contrato maior de um jornal de informação. Observando-se a charge nos níveis:
situacional, discursivo e formal, de acordo com a teoria dos gêneros de Charaudeau (2004, p.
13), constata-se que ela pertence ao gênero do sério-cômico. De acordo com Bakhtin, todos os
gêneros do sério-cômico são altamente carnavalizados e, portanto, portadores de vários
discursos, de várias vozes, o que os torna, conseqüentemente, altamente polifônicos. É isso o
que ocorre também esta charge, que carnavaliza várias situações do contexto da política
brasileira: a posição (real?) do governo em relação ao povo; a discórdia e as desavenças
presentes dentro do próprio governo petista; o (bom?) governo do estado; a negligência do
governo federal em relação à situação das estradas brasileiras. Essa carnavalização é
acentuada pela foto do presidente Lula, que sugere não a ação de procurar (ou colocar) a
pulga atrás da orelha de seu vice, mas também de dar-lhe um “puxão de orelhas”, tendo em
vista as críticas feitas por José Alencar sobre política financeira do governo. Desse modo,
percebe-se na charge um emaranhado de vozes, inclusive a voz explícita do próprio chargista,
que também representa a voz do jornal EM e do governo estadual.
126
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 7:
CHARGE N. 7 Fonte: Estado de Minas. 29 maio 2005. Opinião. p.8.
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 7:
QUADRO N.11 - Contrato de Comunicação da Charge n.7
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
Eu
c
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
Tu
i
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
127
O quadro enunciativo da charge número sete apresenta um circuito externo onde
aparecem os sujeitos comunicante e interpretante, seres empíricos, que são, respectivamente,
o desenhista e o leitor comum do jornal. O circuito interno, plano do dizer, é subdividido em
três planos. No primeiro plano, a representação da fala do presidente Lula, junto com o
vice José Alencar, como mostra a foto inserida na charge e retirada de um outro artigo do
jornal. Nesse primeiro plano, o Eu
e
1
é o sujeito-comunicante chargista; o Eu
e
2
, o fotógrafo,
autor da foto primitivamente publicada em outro espaço do jornal; e o Eu
e
3
representa a
personagem que fala: “Lá vem o fotógrafo...”, podendo-se observar que houve um
encaixamento das vozes dos sujeitos, mostrando a polifonia desse discurso.
No plano abaixo desse, há o discurso das personagens tartarugas (“O correio
também traz péssimas notícias”), sendo essas representadas pelo sujeito-enunciador Eu
e
2
e o
chargista, pelo sujeito-enunciador Eu
e
1
. Aqui também um encaixamento de vozes. O Tu
d
representa o destinatário, o leitor ideal.
No último plano, um Eu
e
1
, o sujeito-enunciador chargista, e um Eu
e
2
, a
personagem cachorro, que se manifesta através do choro (Buééé...), por sinal, um choro que
confirma a fala da personagem tartaruga do plano anterior. O Tu
d
é o sujeito destinatário,
capaz de entender o discurso da charge. A personagem cachorrinho é uma constante nas
charges de Oldack Esteves e é portadora de um discurso especial, principalmente na questão
da recepção, e figura como um tiers. Entretanto, em virtude de essa personagem mexer com
outras categorias, como a emoção e o silêncio, o espaço destinado às nossas análises não seria
suficiente e teríamos que acrescentar outras teorias para dar suporte ao estudo. Fica aberta a
questão que, certamente, merece um estudo mais aprofundado.
128
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 7:
- Plano verbal:
Discurso direto: - vem o fotógrafo. Vamos rir pra mostrar que tudo está bem.
Mas não exagera não, Zé!...
Declaração: - O correio também traz péssimas notícias!
- Plano icônico:
Fotografia de autoria de R. Stuckert, retirada de uma notícia ria, sob o título:
“Lula desdenha e governo combate a CPI”, publicada no primeiro caderno do
jornal Estado de Minas, do dia 21 de maio de 2005, sobre a abertura da CPI dos
correios.
Caricaturas das duas tartarugas (personificação do saber comum) e do cachorrinho
chorando: “Buééé...”
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 7:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Foto publicada no jornal Estado de Minas, do dia 21 de maio de 2005.
b) Notícia: Texto, também publicado no mesmo dia, que informa: “Presidente diz
não estar preocupado com possibilidade de investigação do Congresso sobre
denúncias de corrupção, mas ministros se empenham para impedir que comissão
seja criada”.
Há, na lide, uma parte que dialoga perfeitamente com o discurso direto “Lá vem o
fotógrafo. Vamos rir para mostrar que tudo está bem.” Trata-se do trecho: “Se, nos bastidores,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trabalha para impedir a instalação da CPI dos correios,
(...) em público a atitude é diferente”. “(...) questionado por jornalistas se estava preocupado
com a instalação da CPI, Lula deu um discreto sorriso e depois respondeu: ‘Olha para a minha
129
cara para ver se estou preocupado com isso’”. (Texto de Sandro Lima: EM, 21/05/06). Tal
reação indica uma atitude de preservação da face em frente a “atos ameaçadores da face”,
como críticas, refutações, censuras, insultos, escárnios e outros comportamentos vexatórios
(BROWN; LEVINSON, 1978, 1987, citados por CHARAUDEAU 2004).
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO NA CHARGE Nº 7:
No nível discursivo, segundo Charaudeau (2001, p.26), o discurso está ligado ao
fenômeno da encenação do ato de linguagem, com seus circuitos externo e interno. Num
segundo sentido, discurso pode estar ligado a um conjunto de saberes partilhados. “O discurso
não deve ser assimilado à expressão verbal da linguagem que corresponde a um código
semiológico, mas também a outros códigos, seja o código gestual ou icônico”. O discurso,
conforme seus fins, usa um ou vários códigos semiológicos. No discurso da charge, há
utilização simultânea de vários códigos, como é possível observar nas várias reproduções
apresentadas. O discurso não é a mesma coisa de texto. Considera-se texto a materialização da
encenação do ato de linguagem. O texto é o resultado de um processo que depende de um
sujeito-falante particular e de circunstâncias de produção particulares, sendo que o texto pode
ser atravessado por vários discursos ligados a neros ou a situações diferentes, como, por
exemplo, o atravessamento do gênero político pelo discurso do humor.
Do ponto de vista da transgressão, a fotografia parece ser, mais uma vez, o gênero
deslocado de uma situação primitiva, ou seja, a foto original que atesta o acontecimento
político, um encontro entre o presidente e seu vice, mostrando descontração e afabilidade,
para o discurso da charge. A notícia séria, ilustrada pela foto, foi publicada no dia 21 de maio
de 2005 com o título “Lula desdenha e governo combate a CPI”. O “chapéu” da notícia
informa: “Presidente diz não estar preocupado com possibilidade de investigação do
congresso sobre denúncias de corrupção, mas ministros se empenham para impedir que
130
comissão seja criada”. Observando-se a foto e os títulos dados à notícia, parece realmente
haver uma contradição entre eles, situação que foi captada pelo chargista, ao transferir a foto
para um contexto irônico, acrescentando-se a fala atribuída à personagem presidente “-Lá vem
o fotógrafo. Vamos rir para mostrar que tudo está bem (grifo nosso). Mas não exagera não,
Zé!...” Parte da fala em destaque, em relação à foto, traduz também uma situação de
contradição, vivenciada no momento. Isso lugar ao riso e a um novo posicionamento
político e crítico em relação ao governo do presidente Lula. A transgressão acontece, pois,
pelo deslocamento de situação da foto de um contexto para outro, fugindo, portanto, à sua
finalidade, que era a de documentar o fato, e passando a ilustrar iconicamente uma crítica. O
discurso verbal da personagem presidente desencadeia também um procedimento
carnavalesco, uma vez que o “vamos rir para mostrar que está tudo bem” indica fingimento e,
portanto, mentira. Se se mente, mascara-se, e temos a carnavalização e, conseqüentemente,
a constatação de discursos diversos e variadas vozes, demonstrando mais uma vez a
ocorrência da polifonia através da transgressão e da carnavalização.
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE Nº 7:
É interessante observar, aqui, a amplitude de vozes que são convocadas nesta
charge e, para isso, voltaremos ao levantamento de marcas polifônicas no nível do enunciado.
Vejamos algumas:
- Marcas de sujeito indicando modalização autonímica: exclamação e reticências.
No segundo plano, as caricaturas das tartarugas e a exclamação: “O correio
também traz péssimas notícias!”, com a marca autonímica de exclamação.
A personagem cachorrinho reflete a situação, através do choro: Buééé!...., seguido
de exclamação e reticências (marcas autonímicas do sujeito) Tudo indica que ele é um tiers
inclu. Aqui também são várias as vozes que fazem a polifonia do texto.
131
No nível do enunciado, encontramos, ainda, várias marcas do sujeito-enunciante,
sujeito esse que vai utilizar, de maneira estratégica, formas e ícones para produzir efeitos de
humor, subvertendo, de alguma maneira, enunciados anteriores. Parece que o sujeito sempre
será denunciado através das marcas enunciativas, da modalização, das formas verbais, dos
pressupostos, dos subentendidos, da organização discursiva, dos ícones. Segundo Charaudeau
(2004, p.336), a modalização designa a atitude do sujeito-falante em relação ao seu próprio
enunciado, atitude que deixa marcas de diversos tipos: morfemas, prosódias, mímicas. Diz
ainda que a modalização “define a marca que o sujeito não pára de imprimir em seu
enunciado” e constitui somente uma das dimensões da enunciação. Podemos levantar, então,
outras marcas enunciativas:
Modalização em discurso direto, assertiva e injuntiva:
a) vem o fotógrafo. Vamos rir para mostrar que tudo está bem. Mas não
exagera não, Zé!...;
b) Discurso direto exclamativo: - O correio também traz péssimas notícias (voz do
saber comum);
Marcas enunciativas:
a) elementos dêiticos: “lá” - (dêitico espacial); b) formas verbais: “vamos” -
(forma verbal no plural, indicando inclusão);
Ícones: personificação do cachorrinho (chorando); das tartarugas (frase
exclamativa que denuncia um enunciador subentendido);
Fotografia: utilização de uma foto retirada de uma notícia séria e inserida no
regime satírico e imitativo da charge. Tal transposição, indicando destronamento,
deboche e ironia, leva à carnavalização e, conseqüentemente, à constatação de
vozes outras, mostrando aí a polifonia.
132
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 8:
CHARGE N 8. Fonte:Estado de Minas.30 jun.2005.Opinião.p.10.
133
2. QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 8:
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
Eu
e
2
Eu
e
3
Eu
e
1
Eu
e
2
Tu
d
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
QUADRO N. 12 - Contrato de Comunicação da Charge n. 8.
O quadro enunciativo da charge número oito é formado por um circuito externo,
onde estão os sujeitos Eu
c
e Tu
i
. O circuito interno, espaço do dizer, é subdividido em quatro
planos, tal como o discurso da charge que apresenta quatro espaços distintos. No primeiro
plano, a representação do discurso que está à esquerda e acima. O sujeito-enunciador Eu
e
1
representa o chargista, que, por sinal, se inclui como personagem caricaturada e ouvinte, e se
Eu
c
Tu
i
Eu
e
1
Tu
d
134
apresenta dentro do barco juntamente com o cachorrinho. O sujeito-enunciador, Eu
e
2
, é
representado pela personagem presidente Lula. O Tu
d
é o leitor do jornal, capaz de entender o
contexto sócio-político-cultural.
O segundo plano, acima e à direita, representa o discurso das personagens
tartarugas. O Eu
e
1
representa o sujeito-enunciador chargista; o Eu
e
2
e o Eu
e
3
, os sujeitos-
enunciadores representados pelas personagens tartarugas. Aqui também ocorre a diafonia, a
fala de uma personagem complementa a da outra. O Tu
d
representa o leitor ideal.
No terceiro plano, embaixo à direita, há também um Eu
e
1
,
sujeito-enunciador
chargista, que voz a um sujeito-enunciador personagem, Eu
e
2
, o qual representa a primeira
dama D.Marisa, que diz: “Manda brasa, menina!”, provavelmente incentivando a fala da
secretária Fernanda Karina, ao depor no “caso das malas de dinheiro”.
No último plano, embaixo e à esquerda, o encaixe de três discursos no circuito
interno. Assim, temos os sujeitos-enunciadores Eu
e
1
, Eu
e
2
e Eu
e
3
. O sujeito enunciador Eu
e
1
corresponde ao chargista, que faz o discurso usando a charge; o sujeito Eu
e
2
seria o fotógrafo,
que tirou a foto de um determinado ponto de vista, e o sujeito Eu
e
3
seria a voz do senso
comum, através da enunciação proverbial: “Diga-me com quem andas que te direi quem és!”.
O Tu
d
, nos três planos do discurso interno, corresponde ao sujeito-destinatário, leitor ideal,
que, dependendo do seu conhecimento de mundo, vai interpretar o discurso.
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 8:
- Plano verbal:
Discurso direto: - Corrupção?! Que corrupção?!
Enunciação assertiva: - Eles nunca viram a mala.
- Te falei que lá só tem cego!
Enunciação injuntiva: - Manda brasa, menina!
135
Enunciação proverbial: -“Diga-me com quem andas que te direi quem és!”.
- Plano icônico:
Desenho caricatural do presidente Lula, com uma bóia no pescoço, e do chargista
Oldack Esteves, juntamente com o cachorrinho, estes últimos dentro de um
barquinho num mar de lamas, que se supõe seja a representação do contexto de
corrupção em nível federal.
Caricaturas das tartarugas personificadas; do presidente Lula e de D.Marisa, na
cama, assistindo a um programa de televisão que parece tratar-se do depoimento
da ex-secretária de Marcos Valério, Fernanda Karina, haja vista o contexto da
época, o das malas de dinheiro.
Fotografia de autoria de Jamil Pittar, publicada no EM no dia 25 de junho de
2005, no caderno principal, retratando o presidente Lula de mãos dadas com os
parlamentares: Michel Temer, Renan Calheiros e Aloísio Mercadante, retirada de
um contexto noticioso sério para o sério-cômico da charge, sob o título: “Lula
propõe governo de coalizão com PMDB”.
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL DA CHARGE Nº 8:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Foto documentária do noticiário “Lula propõe governo de coalizão com o
PMDB”, publicada no dia 25 de junho de 2005.
b) Texto com o título acima que informa: “Presidente promete ministérios para ter
peemedebistas como aliados fundamentais”.
c) Notícia do dia 25 de junho de 2006, publicada no EM, sobre a crise do governo:
mensalão, malas, CPI dos Correios, corrupção.
136
d) Notícia do dia 29 de junho de 2006, publicada no EM, sobre o depoimento da
ex-secretária de Marcos Valério, patrocinador do escândalo do mensalão.
e) Desenhos caricaturados do presidente Lula em um mar de lamas enquanto
conversa com o chargista (também caricaturado), dentro de um barquinho,
juntamente com o cachorrinho (tiers inclu).
f) Desenho das duas tartarugas (saber comum) sobre o escândalo das malas.
g) Caricatura do presidente Lula e de D. Marisa, na cama, assistindo pela televisão
ao depoimento de Fernanda Karina, ex-secretária do publicitário Marcos Valério.
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO DA CHARGE Nº 8:
Pelo número de notícias arroladas para compor a charge, parece ficar evidente que
a charge constitui uma variante do gênero informativo, estando, portanto, dentro do contrato
de informação do jornal impresso, mas com um contrato próprio, o contrato de diversão, uma
vez que justamente a ironia e a crítica a caracterizam, a partir da imitação de um texto
considerado sério. A transposição da foto do presidente Lula de mãos dadas com o presidente
do PMDB, Michel Temer, o presidente do senado, Renan Calheiros, também PMDB, e o líder
do governo na casa, deputado Aloísio Mercadante do PT, de um noticiário político sério para
o espaço do sério-cômico, parece pecar contra a finalidade de situação de comunicação da
foto. Isso leva a considerar que houve uma transgressão quanto à situação de comunicação.
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE Nº 8:
No nível discursivo, o deslocamento da foto, acompanhada do provérbio “Diga-
me com quem andas que te direi quem és!” e cientes dos jogos de interesse que permeiam os
partidos políticos ao fazerem alianças as mais estranhas, provoca depreciação da situação de
união entre os personagens da foto, desvalorizando o acordo e carnavalizando a foto. Os
137
outros planos da charge também aparecem carnavalizados. Observemos o ridículo da
caricatura do presidente Lula com uma bóia ao pescoço num mar de lama, a mentira acerca
das malas, o depoimento da ex-secretária com palavras de apoio da primeira dama
caricaturada: “Manda brasa, menina!”, usando o termo “brasa”, marca de oralidade e de
conotação popular, no sentido de “ir à frente”, mesmo que isso seja depreciativo para o
governo. Essa atitude, é claro, destrona o governo. Interessante notar que a voz que se faz
ouvir através das personagens é a voz de outros, tiers, o que vai provar o grau altamente
polifônico da charge.
A charge n°. 8 está dividida em quatro planos e pode-se observar a presença de
quatro discursos distintos.O discurso A, que está à esquerda e no alto, com caricatura do
presidente Lula, que parece responder a uma questão implícita (“E a corrupção?”) com
indagações exclamativas (“Corrupção?! Que corrupção?!”).
O discurso B, no alto e à direita, as duas tartarugas, personalização do senso
comum, dialogam sobre um outro discurso implícito, o do mensalão: “Eles nunca viram a
mala”. “– Te falei que lá só tem cego!”.
Logo abaixo, e à direita, o discurso C, o casal presidencial vendo televisão em
seus aposentos particulares. A frase enunciativa injuntiva “Manda brasa, menina!” deixa
perceber um discurso implícito: o depoimento da ex-secretária do publicitário Marcos Valério
sobre a questão das malas de dinheiro para pagamento do chamado “mensalão”.
À esquerda e na parte inferior, o discurso D, com a fotografia dos membros do
governo, de mãos dadas, permitindo detectar um discurso implícito: o da coligação de
partidos para preservar interesses mútuos. Em todas as situações acima parece haver um ou
mais de um tiers. Não há, portanto, como negar a existência de vozes outras, muitas vozes em
cada um dos níveis discursivos dessa charge.
138
1) REPRODUÇÃO DA CHARGE Nº 9:
CHARGE N. 9.Fonte: Estado de Minas. 27 ago.2005. Opinião. p.10.
2) QUADRO ENUNCIATIVO POLIFÔNICO DA CHARGE Nº 9:
Eu
e
2
Eu
e
3
Eu
e
1
Eu
e
2
Eu
e
3
Tu
d
QUADRO N. 12 - Contrato de Comunicação da Charge n.9.
Eu
e
1
Tu
d
Tu
Eu
c
139
O quadro enunciativo da charge número nove apresenta um circuito externo,
espaço do “fazer”, com o sujeito-comunicante Eu
c
e o sujeito-interpretante Tu
i
, os quais
representam o desenhista do jornal, Oldack Esteves, e o leitor do jornal, sujeitos empíricos.
No circuito interno, espaço do “dizer”, temos dois planos de enunciação. Do lado esquerdo da
charge, o discurso do sujeito-enunciador chargista, Eu
e
1
, o qual atribui vozes às
personagens tartarugas: Eu
e
2
e Eu
e
3
. O discurso das personagens tartarugas constitui uma
diafonia, uma vez que a fala de uma personagem é complementada pela fala da outra, dando
uma seqüência argumentativa à notícia da queda dos juros.
No plano da direita, a reprodução da foto do presidente Lula discursando, e o
fotógrafo aproveitou um ângulo de visão para fazer uma foto que, semanticamente, desperta
outros sentidos. Aparecem aqui o sujeito-enunciador Eu
e
1
, o chargista; o sujeito-enunciador
Eu
e
2
, o fotógrafo; e o sujeito-enunciador Eu
e
3
, a personagem presidente Lula, que, discursando
em público, faz um gesto com a mão em direção à sua cabeça e o chargista reproduz na
charge “Agosto sombrio” EM, 27/8/2005, a onomatopéia “Bum”, suscitando a lembrança de
outro discurso feito em situação de desconforto político pelo presidente Getúlio Vargas, que
se suicidou em vinte e quatro de agosto de 1954. O leitor destinatário, que naturalmente
possui uma memória dos discursos, da situação de comunicação e das formas, estará apto a
interpretar o discurso dessa charge e a fazer a sua crítica.
3) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DO ENUNCIADO DA CHARGE Nº 9:
- Plano verbal:
Discurso direto: - Os juros vão cair!
- Mas até chegar aqui em baixo...
Onomatopéia: -Bum!
Titulo de notícia: “Agosto sombrio”
140
- Plano icônico:
Caricaturas: Tartarugas (senso comum)
Cachorrinho (personificado com as mãos nos ouvidos)
Gesto: da personagem presidente Lula apontando para si mesmo, na altura
do ouvido direito, com o dedo indicador da mão direita.
4) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL TEXTUAL NA CHARGE Nº 9:
A charge constitui um hipertexto dos hipotextos:
a) Foto documentário de uma série de outras semelhantes, publicadas em vários
jornais do país, validando notícia sobre o pronunciamento do presidente Lula no
dia 26 de agosto de 2005. No jornal O Globo, a manchete da notícia destacava o
título: “Não farei como Getúlio, Jânio e Jango”, diz Lula. No jornal Estado de
Minas, página 3 do primeiro caderno, o título da matéria era: “Lula faz o mais
duro discurso”, complementado pelo “chapéu”: “Presidente faz diagnóstico do
quadro político e afirma que não seguirá os exemplos de Getúlio, Jânio e Jango”.
A foto que foi transposta para a charge é de autoria de Celso Junior. Esta foto
sofreu uma interferência: foi colocado um texto impresso, na altura do tórax do
presidente, onde aparece apenas o título: “Agosto Sombrio”, numa clara alusão ao
suicídio de Getúlio Vargas, que ocorreu no dia 24 de agosto de 1954, e também à
renúncia de Jânio Quadros, ocorrida em 25 de agosto de 1961.
b) O texto que trata da questão dos juros altos (19,75%), e sobre os quais os
empresários desejavam um pronunciamento do presidente, está inserido na mesma
página 3, do caderno principal do jornal Estado de Minas, sob o título
“Crescimento não será uma Brastemp”. Interessante notar o uso do slogan “Não é
assim uma Brastemp” do discurso publicitário num discurso político. Nas palavras
141
de João Livi, diretor de criação da agência Talent, que criou o slogan, “desde que
a expressão foi lançada, muita gente passou a usá-la quando quer dizer que algo
não é lá essas coisas”, (O Globo 06/08/2005, p.4). Na matéria, o presidente
tentava justificar o crescimento econômico anual. Em relação aos juros, ele
informou que isso é um problema do Banco Central e que a política monetária é
da responsabilidade do Banco Central.
c) As caricaturas presentes na charge são das tartarugas personificadas e do
cachorrinho, um tiers emocionado, que tampa os ouvidos a tanto barulho. A
notícia da página Economia do EM do dia 26 de agosto de 2005 cujo título é
“Banco Central acena com queda nos juros”, e também outras notícias do mesmo
dia, no mesmo caderno, constituem o hipotexto para construção do plano da
charge, que mostra o discurso dos animais personificados. O receio da inflação
contribuiu para que se mantivessem as altas taxas de juros. A meta inflacionária
foi alcançada, havendo até deflação. Conseqüentemente, houve redução no ritmo
de atividade da indústria e os supermercados registraram queda nas vendas.
Apesar de o ambiente econômico acenar para queda dos juros em futuro próximo,
o reflexo no bolso do vai demorar. Eis porque a notícia da queda de juros é
recebida sem euforia pela personagem tartaruga, EU
e
3
, no plano à esquerda da
charge em estudo: “Mas até chegar aqui em baixo...”.
5) ELEMENTOS POLIFÔNICOS NO NÍVEL DISCURSIVO NA CHARGE Nº 9:
Charaudeau (2004, p.35) diz que não se deve confundir variante com transgressão.
Na transgressão detecta-se formas não esperadas de um gênero em um texto que
reconhecidamente pertence a outro gênero. Charaudeau fala de “desrespeito” de um gênero,
mas que é necessário saber o que não é respeitado: se são as formas, as restrições discursivas
142
ou os dados situacionais. Na “variante”, respeitam-se as características essenciais do gênero,
mas propõe uma outra característica que não modifica, mas acentua um ou mais aspectos de
um dos componentes do contrato de comunicação, sejam eles no nível das restrições
materiais, no nível das restrições discursivas, no nível da organização formal.
A charge em questão parece ser uma variante do contrato de informação do jornal
impresso, o qual, por sua vez, faz parte do contrato de informação midiática. Aliás, a charge
informa, além de divertir, ironiza e critica e é regida por um subcontrato de diversão inserido
no contrato de informação do jornal impresso. Os aspectos mais acentuados são os que dizem
respeito às circunstâncias materiais, ou seja, à escripturalidade, que, na charge, se restringe a
frases declarativas, injuntivas, interrogativas, exclamativas, narrativas curtas, citações
proverbiais, onomatopéias seguidas de desenhos caricaturais e foto transferida de outras
notícias publicadas em páginas diferentes ou em outras edições de dias anteriores.
Nesta charge, aparecem duas frases em discurso direto: uma declarativa e outra
argumentativa; uma foto retirada de notícia do dia anterior que mostra o presidente Lula
discursando e gesticulando, e uma onomatopéia, reprodução de estampido de arma de fogo. O
gesto do presidente, que levanta a mão com o dedo indicador voltado para si, foi aproveitado
para insinuar na charge uma arma apontada contra o rosto do presidente, imitando, talvez, o
gesto do presidente Getúlio Vargas, que se suicidou. Nesse último caso, o uso da foto
deslocada da finalidade para a qual foi produzida, e forjada uma nova situação, indica uma
transgressão. Já a colocação da onomatopéia, juntamente com a foto, insinuando o uso de
arma de fogo, produz um efeito de carnavalização, pois deprecia a imagem da autoridade que
é o presidente, atribuindo-lhe fraqueza, incapacidade para resolver os problemas e imitação de
atitudes de outros presidentes.
143
6) COMENTÁRIOS ESPECÍFICOS SOBRE A POLIFONIA NA CHARGE Nº 9:
O estudo dessa charge nos níveis enunciativo, textual e discursivo leva-nos a
concluir a presença da polifonia em todos os níveis. No nível enunciativo, através do quadro
enunciativo de Charaudeau, foi possível observar a presença de vários sujeitos e,
conseqüentemente, de muitas outras vozes. Esses sujeitos são representados pelo Eu
c
e pelo
Tu
i
do circuito externo do quadro enunciativo polifônico e pelos sujeitos-enunciativos do
circuito interno do mesmo quadro, distribuídos em dois planos. No primeiro plano, temos o
Eu
e
1
que atribui voz a dois outros: o Eu
e
2
e o Eu
e
3
, que representam respectivamente o
chargista e as personagens tartarugas, as quais, mais uma vez, mostram não um diálogo
propriamente dito, mas uma fala em diafonia. No segundo plano, além dos sujeitos-
comunicantes Eu
c
e Tu
i
, do circuito externo, podemos observar os sujeitos-enunciadores Eu
e
1
,
Eu
e
2
e Eu
e
3
, dispostos em sistema de encaixamento, e o sujeito-destinatário Tu
d
, o leitor ideal.
Pode-se observar, portanto, a presença de vários enunciadores, portadores de várias vozes.
No nível textual, atentando-se principalmente para a questão da transtextualidade, foi possível
constatar que, por ser a charge um hipertexto, portanto, construída a partir de vários outros
textos, vários discursos circulam por ela, como, por exemplo, o discurso de Lula: “Não farei
como Getúlio, Jânio ou João Goulart”; o discurso sobre as reformas: “Senado impulso à
reforma”; e o discurso sobre os juros: “Banco central acena com queda nos juros”. Daí a
interdiscursividade presente em todas as situações discursivas e as várias vozes que permeiam
cada discurso, o que nos leva a concluir pela polifonia em todos os níveis de análise do texto
chargístico.
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O humor gráfico é uma das manifestações mais
complexas e ricas em nossa cultura, unindo arte,
crítica, história e, logicamente, muito humor.
Considero esta arte o espelho da sociedade, mas um
espelho daqueles de parque de diversões, que
distorcem e revelam novas leituras de quem está ali
representado. É, sem sombra de dúvidas, uma das
mais importantes e populares formas de registro
histórico, atingindo um público tão amplo como
poucas formas de linguagem atingem. Politicamente,
é um valioso contraponto ao discurso do poder formal
(Riani).
As charges de Oldack Esteves analisadas focalizam tanto a política em nível
federal quanto em nível estadual, e também mostram a voz do povo, do senso comum, através
dos diálogos promovidos pelas tartarugas, enquanto o cachorrinho interpreta tudo por meio de
expressões de aprovação, desaprovação, companheirismo, alegria, raiva, decepção,
impaciência, o que evidenciou a personificação dessas personagens.
O chargista não se contenta em desenhar, por isso transpõe para a charge fotos
publicadas nos jornais, sempre acompanhadas de textos verbais, diálogos, provérbios e sinais
de pontuação (reticências, exclamação, interrogação). Estas marcas enunciativas de polifonia
carnavalizam as fotos, mostrando ambivalências, ironias, destronização de autoridades,
ridicularização de personagens. Fotos desse tipo foram analisadas neste trabalho, as quais,
transpostas de um texto sério, sofreram um processo de carnavalização. O mesmo aconteceu
com os textos: os hipotextos sofreram um processo de transformação semiótico e foram
reunidos e transformados, tornando-se uma charge de múltiplos sentidos. Assim, tornou-se
evidente a presença das várias vozes dos diversos discursos no desenho icônico da charge. A
partir do levantamento de vários textos, que deram origem a um ou mais hipertextos, as
análises textuais comprovaram a hipertextualidade da charge. O hipotexto ou hipotextos dos
145
quais se originou o hipertexto chargístico passaram por um processo de semiotização ao
serem inseridos na charge.
Esse processo de semiotização mereceria um estudo particular, mas como não era
o foco do nosso trabalho, não foi devidamente pesquisado. Talvez possa constituir um ponto
de partida para estudos posteriores. A teoria de Genette foi adequada para a identificação de
outros textos em relação à polifonia e para a análise. Isto é, ela serviu não apenas para
evidenciar as marcas de hipertextualidade, mas também como apoio à análise da polifonia,
levando em conta a atividade dos sujeitos nos contratos de comunicação dos textos originais.
Em relação à carnavalização, a charge mostrou que pode ser considerada uma
paródia icônica. Ora, a paródia sempre foi um elemento inseparável da sátira menipéia e de
todos os gêneros do sério-cômico da antigüidade (BAKHTIN, 1997, p.123). Parodiar é criar o
duplo destronante (BAKHTIN, 1997, p.127). A paródia é ambivalente. Na antigüidade se
parodiava tudo e a paródia estava ligada à cosmovisão carnavalesca.
A menipéia, por sua vez, é caracterizada por um amplo emprego dos gêneros
intercalados: novelas, cartas, discursos oratórios, simpósios etc e pela fusão dos discursos da
prosa e do verso. Ora, a existência dos gêneros intercalados reforça a multiplicidade de estilos
e a pluritonalidade da menipéia. Uma outra particularidade da menipéia “publicística”
(BAKHTIN, 1997, p.118) é que ela era considerada uma espécie de gênero jornalístico da
antigüidade. Interessante é que tudo isso parece caracterizar a charge: pertence ao gênero
jornalístico, trata de temas da atualidade, mistura gêneros na sua formação, além de mostrar
linguagem ambígua e multiplicidade de sujeitos, o que vem a ser uma das marcas da polifonia
no discurso. A carnavalização constitui um dos marcadores polifônicos da enunciação
chargística, e isso foi percebido durante os estudos.
A análise das charges mostrou-nos essa mistura de gêneros e as transformações
semióticas dos textos que deram origem aos textos chargísticos. No caso das charges
146
estudadas, pode-se dizer que houve transgressão em virtude do desvirtuamento ou desvio no
uso de fotos, retiradas de um noticiário sério para uma situação em que não nenhuma
obrigatoriedade de se usar aquelas fotos. Ao que tudo indica, houve um desrespeito à
finalidade da situação de comunicação. Percebemos que a transgressão nem sempre precisa
ser cômica ou irônica. Ela acontece quando algo parece estranho, deslocado, como alguma
coisa que surpreende e choca. Isso foi constatado no estudo da charge. Muitas vezes ela é
irônica, mas não é cômica.
Às vezes se confunde carnavalização com transgressão. Durante nosso estudo foi
possível constatar no corpus analisado que, apesar da proximidade entre carnavalização e
transgressão, observou-se uma diferença. O deslocamento da foto de uma situação para outra,
fugindo à sua finalidade principal, que é a de documentar uma notícia séria, e ser inserida em
um contexto estranho ao seu propósito, surpreendendo e chocando o leitor, constituiria uma
transgressão. A mesma foto transgredida tornava-se carnavalizada quando um elemento
estranho à foto (fala de personagem, provérbio, diálogo, narrativa etc) se intrometia nela ou
no contexto.
Da realização do estudo, surgiram questões que mereceriam um aprofundamento.
Por exemplo, seria interessante fazer quadros das marcas enunciativas, análise das
personagens, análise dos modos de organização do discurso (MOD): enunciativo, descritivo,
narrativo, argumentativo, uma vez que na charge um amálgama de todos eles. Entretanto,
como o objetivo principal foi verificar a polifonia nas charges de Oldack Esteves, tendo como
suportes teóricos a Teoria Semiolingüística de Patrick Charaudeau, o Dialogismo de Bakhtin,
a Teoria Polifônica de Bakhtin com adaptações de Ducrot e a Teoria da Transtextualidade de
Gérard Genette, cremos que o propósito foi alcançado, uma vez que ficou evidente a
multiplicidade de vozes no discurso da charge ao responder às questões de acordo com a
teoria apresentada.
147
Outro ponto observado, embora não tenha sido objetivo inicial de análise, foi a
constatação das tendências ideológicas que, embora sutis e muitas vezes implícitas, deixaram-
se entrever na observação das charges. Como já foi dito, o chargista dividia suas charges em
planos que denotavam suas preferências pela política. Havia o plano que focalizava a política
em nível federal, cujas críticas sempre foram mordazes e em maior número, enquanto que, em
nível estadual, o governo do Estado de Minas Gerais aparecia como “bom governo” e sempre
vítima das ações do governo federal, como do descumprimento de promessas quanto ao
repasse de verbas.
Na mesma direção, ainda referências à campanha para eleição à prefeitura da
capital, Belo Horizonte. Aí, também se percebe que o candidato preferido não seria o
candidato “prefeito perfeito”, que pertence ao mesmo partido político do Presidente da
República. Na fala das tartarugas, tem-se a voz do povo, do senso comum. Uma voz que, de
maneira próxima ao narrador, se posiciona, via de regra, criticamente em relação ao governo
federal. Temos, assim, que não críticas ao comportamento do poder político em nível
estadual e essas são sempre dirigidas ao governo federal ou ao seu aliado político na
Prefeitura de Belo Horizonte o que indica uma opção político-discursiva clara da parte do
chargista e do jornal que o acolhe. E o mais interessante é perceber, talvez, que toda a
atividade discursiva se sem a necessidade de uma argumentação que compreenda o
movimento clássico de provas ou argumentos em favor de uma tese. Ou seja, a charge faz
parte do jornal de informação e como tal tem que se submeter às disposições e tendências do
órgão de informação. Entretanto, o chargista, em vista de trabalhar com um discurso ambíguo
e polifônico, tem sempre uma saída bem humorada: deixa a interpretação por conta do leitor e
essa, às vezes, parece surpreender até o próprio desenhista.
148
REFERÊNCIAS
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approche de l’autre dans lê discours. In DRLAV-Revue e linguistique, 26,1982, p.91-151.
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150
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TONNIEL e LEECH. John Bull. Disponível em: <http://www.google.com.br>.
151
ANEXOS
Xerox das fotos e das notícias que deram origem às charges (Hipotextos)
152
ANEXO A – Charge n.1
a) Xerox da charge “Você não mudou nada” – EM, 31 maio 2003
153
b) Xerox da foto e da notícia “Lula pede apoio a Aécio” – EM, 29 maio 2003
154
c) Xerox da notícia “Lula faz apelo ao PT” – EM, 29 maio 2003
155
ANEXO B – Charge n.2
a) Xerox da charge “Decide em casa com vantagem” – EM, 10 junho 2003
156
b) Xerox da foto e da notícia “Cruzeiro decide em casa com vantagem” EM, 09 junho
2003
157
c) Xerox da notícia “Planalto pressiona governadores” – EM, 09 junho 2003
158
ANEXO C – Charge n.3
a) Xerox da charge “Minas vai bem?” – EM, 02 julho 2003
159
b) Xerox da foto e da notícia “União vai compensar estados exportadores” EM,
julho 2003
160
c) Xerox da notícia “Lula aceita compensar estados” – EM, 1º julho 2003
161
d) Xerox da notícia: “Aécio garante apoio mineiro” – EM, 1º julho 2003
162
ANEXO D - Charge n. 4
a) Xerox da charge “Dê a sua opinião” EM, 6 junho 2004
163
b) Xerox da foto e da notícia “Posse no STF” EM, 4 junho 2004
164
c) Xerox da notícia “Posse em tom conciliador” EM, 4 junho 2004
165
d) Xerox da foto “Posse do ministro Nelson Jobim” EM, 4 junho 2004
166
ANEXO E - Charge n. 5
a) Xerox da charge “Dói demaisssss!...”EM, 18 junho 2004
167
b) Xerox da foto e da notícia “Costa quer punir laboratórios” EM, 17 junho 2004
168
c) Xerox da notícia “Batalha do salário mínimo” EM, 17 junho 2004
169
d) Xerox do editorial “Pobres e ricos” EM, 17 junho 2004
170
e) Xerox da notícia “Lula entra em campo” EM, 17 junho 2004
171
f) Xerox da notícia “Reformas essenciais” EM, 17 junho 2004
172
g) Xerox da notícia “Governo perde guerra do mínimo” EM, 18 junho 2004
173
h) Xerox da notícia “Salário mínimo induz à cautela” EM 18 junho 2004
174
ANEXO F - Charge n. 6
a) Xerox da charge “Zé, tem uma pulga atrás da orelha!” EM, 8 julho 2004
175
b) Xerox da foto e da notícia “Balanço” EM, 06 julho 2004
176
c) Xerox da notícia “Prefeitura de BH” EM, 6 julho 2004
177
d) Xerox da notícia “Máfia com atuação na UFMG” EM, 6 julho 2004
178
e) Xerox da notícia “Eu não consigo compreender” EM, 6 julho 2004
179
f) Xerox da notícia “Licitação suspeita anulada” EM, 7 julho 2004
180
ANEXO G - Charge n. 7
a) Xerox da charge “O correio também traz péssimas notícias!” EM, 29 maio 2005
181
b) Xerox da foto e da notícia “Lula desdenha e governo combate a CPI” EM, 2l maio
2005
182
c) Xerox da “Análise da notícia” EM, 21 maio 2005
183
ANEXO H - Charge n. 8
a) Xerox da charge “Corrupção? Que corrupção?” EM, 30 junho 2005
184
b) Xerox da foto e da notícia “Lula propõe governo de coalizão com PMDB” EM, 25
junho 2005
185
c) Xerox da notícia “Secretária fala de saques na véspera de reuniões com PT” EM, 29
junho 2005
186
d) Xerox da notícia “Ex secretária rebate as acusações de Valério” EM, 27 junho 2005
187
e) Xerox da notícia “CPI procura o resto das fitas do correio” EM, 28 junho 2005
188
f) Xerox da notícia “Cerco fechado em Valério” EM 28 junho 2005
189
g) Xerox da notícia “Deputado viu mala de dinheiro” EM, 25 junho 2005
190
ANEXO I - Charge n. 9
a) Xerox da charge “Agosto sombrio” EM, 27 agosto 2005
191
b) Xerox de foto e notícia “Não farei como Getúlio, Jânio ou João Goulart” (Lula) EM,
26 agosto 2005
192
d) Xerox da notícia “Lula faz o mais duro discurso” EM, 25 agosto 2005
193
d) Xerox das notícias “Crescimento não será uma Brastemp” e “Mandatos que não
chegaram ao fim” EM 26, agosto 2005
194
e) Xerox da notícia “Senado dá impulso à reforma” EM, 11 agosto 2005
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