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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (UFJF)
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS (ICH)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO – MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
A TEORIA SOCIOLÓGICA FRANCESA: ELEMENTOS PARA A ANÁLISE DE UM
GRUPO CIRCUNSTANCIAL
Diogo Silva Corrêa
(Orientador: Prof. Dr. Raul Magalhães)
Dissertação de mestrado submetida à
banca examinadora como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Ciências Sociais.
Marçode2009
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A TEORIA SOCIOLÓGICA FRANCESA: ELEMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE
UM GRUPO CIRCUNSTANCIAL
por
Diogo Silva Corrêa
Banca Examinadora:
_________________________________________________
Dr. Raul Magalhães (Orientador, ICH – UFJF)
_________________________________________________
Dr. Pedro Paulo Martins de Oliveira (IE – UFRJ)
_________________________________________________
Dr. Rubem Barboza Filho (ICH – UFJF)
Juiz de Fora
Março de 2009
2
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à UFJF e ao Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Ciências Sociais pelo
incentivo e apoio.
Agradeço ao professor Raul Magalhães por ter acolhido meu projeto. Agradeço às
leituras atentas do professor Rubem Barboza, que esteve em minha qualificação e
ajudou, com sua finura intelectual, no avanço desse trabalho.
Agradeço ao professor Jessé Souza pelo estímulo intelectual e por, de uma forma ou de
outra, sempre alimentar minhas discussões intelectuais.
Agradeço ao professor Octávio Bonet, talvez o único professor que acompanha meu
trabalho desde os tempos de graduação, e de cuja leitura pude me beneficiar de modo
bastante considerável.
Agradeço ao sociofilo, grupo de colegas no IUPERJ, que acolheu meu projeto e fez
contribuições importantíssimas que não pude incorporá-las por completo, em razão do
tempo que demanda a reflexão e o tempo da escrita. Dos colegas, faço menção ao
Alexandre, com quem pude ter diversas conversas sobre os mais variados temas.
Ao Gabriel Peters, a quem considero amigo, e com quem tenho debatido uma série de
questões, controvérsias, que não têm outro efeito sobre mim que não seja outra coisa
senão o constante estímulo intelectual.
Agradeço aos meus colegas de teatro, pessoas cuja amizade tornaram minha vida mais
leve e mais fácil.
Agradeço muitíssimo a Jussara Freire, pessoa que me ajudou a conhecer esse novo
universo, que é a sociologia pragmática francesa, fazendo dosar minha excessiva sede
pela crítica sociológica.
Faço um agradecimento especial ao professor Frédéric Vandenberghe pelo incessante
estímulo e apoio intelectual, pela finura de seu pensamento e pelo desafio que sua
confiança intelectual representa para mim.
Agradeço às pessoas que estiveram ao meu lado ao longo desse tempo e que, pelas mais
diversas razões, não podem mais estar.
Agradeço, com um carinho especial, à Aline de Almeida Coutinho, por sua dedicação,
leitura e cuidado, que decerto contribuiram demais para a realização – do que há de bom
– desse trabalho.
Agradeço, por fim, à minha família, sem a qual nada, nada teria sido possível.
3
ÍNDICE
INTRODUÇÃO...............................................................................................................7
CAPITULO 1 – A TEORIA CRÍTICA DE PIERRE BOURDIEU..........................11
CAPITULO 2 – PARA UMA CRÍTICA À CRÍTICA SOCIOLÓGICA.................24
CAPITULO 3 – A ETNOMETODOLOGIA: UMA SOCIOLOGIA DAS
COMPETÊNCIAS…………………………………….................................................35
CAPITULO 4 – A SOCIOLOGIA PRAGMÁTICA DE LAURENT THÉVENOT E
LUC BOLTANSKI........................................................................................................42
CAPÍTULO V: O SURGIMENTO DE UM GRUPO CIRCUNSTANCIAL: O
CASO CEG………………………………………………….........................................73
CONCLUSÃO………..……...…..………..………..………..……….……..………..105
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................111
4
RESUMO
O presente trabalho se propõe a fazer uma apresentação sintética de algumas das
principais teorias sociológicas do final do século XX. Em um primeiro momento, faz-se
a apresentação da sociologia crítica a partir de seu maior expoente, Pierre Bourdieu. Em
seguida, faz-se uma apreciação crítica dessa teoria, mostrando seus impasses. Em um
terceiro momento, apresentamos a etnometodologia, como uma teoria que busca
formalizar a competência dos atores. Em seguida, fazemos uma apresentação da
sociologia da crítica de Luc Bolanski e Laurent Thévenot para, por fim, no ultimo
capítulo, usá-las (com considerável privilégio da última) como ferramentas analíticas
para pensar a emergência de um grupo circunstancial, quer dizer pessoas que, diante de
um infortúnio ocorrido com um próximo, resolvem se juntar e buscar por medidas que
façam justiça a esse acontecimento trágico.
ABSTRACT
The present work seeks a synthetic account of some of the most important sociological
theories at the end of the XX century. At a first moment, it is displayed the critical
sociology and its leading exponent, Pierre Bourdieu. A critical appreciation of this
theory comes afterwards, showing its break-even points. In a third moment, we present
the ethnomethodology, as a theory that seeks to formalize the actor’s competences.
Then, it is shown Luc Boltanski and Laurent Thévenot’s sociology of critique. In the
last chapter, we use these theories (especially the last one) as an analytical tool to think
the emergence of an circumstantial group, by it meaning some people that, confronted
with any misfortune with someone close, decide to gather and seek for policies that
make justice to this unfortunate happening.
5
INTRODUÇÃO
Vivemos em uma sociedade crítica. Por todos os lados e em todas as direções,
independentemente de condições sociais ou dos estratos de grupos ou classes, há críticas
por toda parte. Partindo de todos os lugares e em todos os instantes, as críticas não
cessam. Se existe uma competência bem disseminada por todo o social, está é a
competência crítica. Basta uma leve olhadela sob as páginas do jornal e toda uma pleura
de juízos críticos, julgamentos, réplicas veementes, representantes que se digladiam por
idéias e ideais nos assola. Na seção de opinião, há aqueles que criticam a obesidade
mórbida; outros, o sistema tributário; há denúncias sobre o projeto de poder do PT e as
falácias em torno da CPMF; em um outro artigo, o leitor lamenta o fato de, em um país
com tamanha desigualdade, haver pessoas que choram com a queda do Corinthians para
a segunda divisão do campeonato brasileiro. Fala-se também das “mentiras” da social
democracia e da história sueca. Há uma outra seção dedicada à discussão sobre a
delinqüência infantil: estatísticos, sociólogos, antropólogos, desembargadores,
advogados e outros tantos esgrimam a propósito da criminalização da juventude. Um
procurador de justiça “demonstra” a farsa promulgada pela estatística sobre a
reincidência dos jovens presos; um desembargador critica o sistema prisional e a
incapacidade deste de ressocializar...
Saímos à rua e as competências críticas continuam a nos afrontar: justificações e
críticas não param de proliferar. A indiferença forçada é apenas mais um gesto crítico.
Apenas somos indiferentes ao que não vemos ou não lemos; de resto, criticamos ou
justificamos. Seja na esfera pública, seja no trabalho ou em casa agimos e, em vários
momentos, justificamos nossas ações e criticamos a ação dos outros. São infindos os
exemplos e as situações em que elas podem ocorrer... X demitiu Y por razões
compreensivas; Y, no entanto, revela as verdadeiras motivações subjacentes:
homofobia. P. divorciou-se de K.; K., contudo, não aceita essa condição e demonstra
como, por detrás do discurso de P., há razões ilegítimas: ele teria se apaixonado por
outra. L. conseguiu obter êxito acadêmico, segundo ele, devido ao seu esforço pessoal;
outro aluno, E., pretexta que seu sucesso se deve a motivos não explícitos, pois L. seria
originário de uma família de elevado capital cultural, portanto teria sido avaliado por
critérios extra-acadêmicos; já G. bateu em seu filho porque, diz ele, o pegou fumando
6
um baseado; seu filho, todavia, expõe que só apanhou por que seu pai bebia muito; J.,
alegando problemas de segurança, furou uma fila de banco; Z, que estava na fila, achou
estapafúrdia a justificação e disse que, na verdade, J. o fez apenas porque, sendo vedete
da emissora W., esta se considerava “acima dos mortais”; S., alegando urgência, achou-
se no direito de estacionar em lugar proibido; P., no entanto, diz que S. o fez, uma vez
que seu pai é delegado da região e não teme nenhuma sanção legal; o político V. foi
inaugurar uma quadra de futebol na comunidade C.; A. menciona que V. deveria
investir em escolas e hospitais, não em esporte, coisa supérflua; H. vai além: diz que V.
só teve o interesse de mandar fazer a obra para poder “embolsar” parte da quantia
liberada superfaturada. O Presidente diz que a CPMF não quer ser aprovada apenas
pelos ricos, porque torna difícil a sonegação; já a oposição pretexta que, ao contrário do
que diz o Presidente, é contra o imposto em razão de seu estado provisório e pelo fato
dele não estar sendo investido no que deveria, isto é, na saúde.
Em sociedades tipicamente críticas como a nossa, quem nunca criticou?
Retomando o velho chavão cristão: então que atire a primeira pedra... Todos esses
exemplos, dos mais privados e corriqueiros aos mais públicos e solenes, nos incitam a
pensar a centralidade do procedimento crítico como forma de coordenar nossas ações e
estabelecer acordos. A questão que se encontra no horizonte de todo esse trabalho,
permeando-o por inteiro, é a seguinte: se ao invés de tomarmos partido por uma das
críticas ou explicá-las para além delas mesmas, levarmo-nas à sério, o que acontece?
Sem tentar reduzi-las umas às outras ou nelas encontrar interesses escondidos, por vezes
não conscientes até mesmo pelos a(u)tores envolvidos na disputa, querela, tivermos por
objetivo fazer algo um tanto mais simples quanto mais modesto: retirar do sociólogo o
monopólio da crítica e aos atores conceder essa competência, fazendo com que, assim, a
tarefa da sociologia passe a ser a formalização e clarificação dos procedimentos críticos
postos em práticas pelos atores quando mergulhados em situações em que se faz
presente o imperativo de justificação.
A pergunta que norteia nosso horizonte consiste em refletir sobre algumas das
conseqüências teóricas e práticas que incidem sobre essa abordagem. E como pensar a
dinâmica do social, a partir de um caso concreto, com base nessas novas intuições? Na
superfície, essa tese pode parecer rasteira e óbvia; suas conseqüências, contudo, não são
nada desprezíveis. Ela nos permite a análise do próprio social de modo mais elástico,
flexível, dúctil, dinâmico e constantemente em vias de constituição. Nesse nível, as
7
operações críticas deixam de ser meras competências e tornam-se um dos modos
privilegiados de análise da propagação e da proliferação do próprio elo social.
Para lidar com a questão do acordo e da crítica, fizemos um trabalho, em um
primeiro momento, de apresentação das principais (em nossa opinião, é claro) teorias
sociológicas francesa do século passado: a sociologia crítica de Pierre Bourdieu e a
sociologia da crítica de Luc Boltanski e Laurent Thévenot. Para tanto, e tendo como
pano de fundo a questão apresentada, faremos, no primeiro capítulo, a apresentação da
sociologia crítica. Cremos que só por referência a – e em confrontação com – ela que se
pode apresentar de forma adequada a sociologia da crítica. Entre a apresentação de um e
de outro modelo, faremos, no segundo capítulo, uma apresentação um pouco mais
pormenorizada dos problemas e limites existentes no paradigma crítico promulgado por
Bourdieu. Se no primeiro capítulo apresentaremos a teoria do sociólogo francês,
mostrando seus principais temas e virtudes, no segundo tentaremos demarcar os
equívocos e impasses de sua aplicação. Enfim, no terceiro capítulo, apresentaremos uma
breve síntese da etnometodologia, entendendo-a como um trabalho descritivo das
competências dos atores quando, confrontados com um problema, produzem arranjos,
isto é, pequenas combinações circunstanciais. Essa apresentação nos serve de
introdução para a teoria de Boltanski e Thévenot que, a partir de uma conjugação entre
o situacionismo etnometodológico e o universalismo habermasiano, e incorporando o
problema hobbesiano do acordo, dentro do quadro de uma teoria da justiça, fazem uma
descrição e formalização originais a respeito dos momentos em que os indivíduos
encontram-se sob o imperativo de justificação, mais precisamente quando suas
respectivas argumentações, dentro de um horizonte público, sofrem constrangimentos
de legitimidade. Em confrontação com a teoria de Bourdieu, a sociologia pragmática
francesa (que aqui tomamos como sinônimo de sociologia da critica) tenta abrir alguns
dos pontos cegos da crítica sociológica e, para isso, elabora um novo quadro conceitual.
Assim, seguiremos os desenvolvimentos de Luc Boltanski sobre os regimes de ação e as
diferentes formas de engajamento e de agenciamento frente ao ambiente com o qual as
entidades (sujeitos e objetos) se relacionam.
Por fim, após a apresentação sintética das teorias, faremos uma aplicação das
mesmas (de forma assimétrica, é verdade, na medida em que utilizaremos sobretudo os
conceitos da sociologia da crítica) para compreender – quer dizer, retraçar algumas das
8
associações (em sentido latouriano) - de um caso
1
(affaire) estudado. Trata-se do
surgimento de um grupo circunstancial (nome que se justifica na medida em se trata de
um grupo criado por pessoas em razão de um infortúnio ocorrido com seus respectivos
parentes) e que, embora os mesmos não tenham suscitado nem procurado sua formação,
se vêem lado a lado em torno de uma causa, gerada apenas pela desventura
compartilhada. Tendo seu senso de justiça abalado, essas pessoas, uma vez unidas,
produzem uma série de reivindicações, buscando responsabilizar e punir aqueles que
elas tomam como responsáveis pelo acontecimento do mal. Nesse último capítulo,
temos por escopo analisar as operações empregadas pelo grupo circunstancial no intuito
de se de-singularizar, quer dizer sair da singularidade de mortes esparsas e passar
concernir todas as mortes anteriores e potenciais, em razão dos riscos existentes
implicados e também gerados a partir do sorumbático evento.
Unindo, então, as teorias e o caso estudado, pretendemos mostrar a validade do
modelo das grandezas, de modo, com isso, a demonstrar a importância de se ir além de
uma teoria sociológica apenas preocupada em desvendar a má-fé subjacente às falas e
questões dos atores.
1
Toda vez que a palavra caso se encontrar em itálico, trata-se da tradução da palavra francesa affaire.
Trata-se não apenas de uma palavra, mas de um conceito desenvolvido por Boltanski e Clavérie (sobre o
qual falaremos na primeira parte do quinto capítulo), o qual se refere ao momento em que um estado de
incerteza se insurge e os atores se mobilizam em torno de posições antagônicas, buscando validar suas
pretensões de objetividade.
9
CAPITULO 1 – A TEORIA CRÍTICA DE PIERRE BOURDIEU
Há quem receie, na teoria sociológica, o perigo da generalização (Passeron,
2005), fora da qual não haveria nada além de meras (re)descrições, cuja finalidade não
passaria de uma reprodução do mesmo, onde a própria sociologia colocaria a si mesma
em questão enquanto saber de segunda ordem ou, para alguns, enquanto ciência.
Por outro lado, não é tanto por evocar os elementos gerais – ou generalizáveis –
de uma formação social que a própria sociologia pode ganhar o status que foi requerido
e conferido pela tradição cientifica de Durkheim. Fechar-se ao caminho da pretensão ao
geral é uma forma de impedir, para alguns, a própria existência desse tipo de saber;
alçá-lo a todo custo, contudo, parece não ser, em si, o bastante. Querer vê-lo, à força,
em um coletivo até o ponto de reificá-lo “em nome de uma sociedade ou cultura”, talvez
seja o preço pago por alguns por essa atitude mefistofélica. A quem diga que, apesar do
caráter formativo dessa tradição, chegou a hora de a sociologia não se perder em meio à
confusão e à desordem dos fenômenos sem, por outro lado, pactuar com uma abstração
cujo valor não consiga ultrapassar a sua heurística. Finalmente, a sociologia apercebeu-
se de que ao invés de olhar o coletivo já pronto, era preciso, antes, conferir-lhe a
formação, resgatar o seu processo e alcançar sua operação en train de se faire. Admitida
uma nova conceituação do social, os caminhos agora se multiplicam.
Deixemos, todavia, os vários rastros e escolhamos apenas, para o presente
capítulo, um deles: a sociologia crítica. Esta foi o último reduto da dissolução do
coletivo, lançando o materialismo do habitus como o último brado de esperança para a
restauração do social totalizado. Se pela via de uma marxo-fenomenologia essa tradição
nos trouxe de volta a percepção do mundo vivido e “as condições materiais de
existência”, não foi senão para, em um momento seguinte, restabelecer toda a
objetividade ideal estruturalista, só que agora “encarnada nos corpos”. Certo, o
estruturalismo genético de Bourdieu fez um trabalho enorme com o intuito de fazer
dissipar o social reificado e o indivíduo tabula rasa; não obstante esse meritório
empenho, o caminho escolhido foi dissolver os extremos com a condição de manter, em
larga medida, a totalidade, só que agora temporalizada, tornada fluxo e encarnada na
substância física. O habitus foi indubitavelmente uma boa estratégia, sem dúvida uma
das mais finas e sofisticadas, mas o seu trunfo parece ser a causa do seu próprio
10
malogro: ao tentar extinguir a ontologia dualista entre o símbolo e o corpo, entre o
social e o individual, entre o ideal e o material, essa teoria não fez senão por no avant-
guard o corpo e toda a sua materialidade para, ao modo de um Cavalo de Tróia
(Alexander, 2001:40
2
), trazer de volta e com toda potência o velho símbolo, restaurando
a estrutura lévi-straussiana e, com ela, o velho social durkheimiano
3
. Quem duvidaria da
relação entre o social durkheimiano e a estrutura simbólica feita carne que orienta e rege
as porções limitadas da matéria? Não haveria em Bourdieu, em sua insistência na
estrutura estruturada, a manutenção da posição holista tipicamente durkheimiana
segundo a qual há uma estrutura social relativamente autônoma que pré-existe os
indivíduos e torna sua socialização possível? Ora, não é difícil perceber o peso dos
campos por sobre os ombros dos corpos socializados. Por detrás do materialismo de
Bourdieu está o velho Durkheim
4
e, até mesmo, o próprio Kant – com suas intuições
puras e categorias de entendimento filtradas por uma “cultura”, “sociedade” e/ou
“classe”.
Não se pode menosprezar, contudo, essa tradição: se ela permanece aquém dos
problemas que pretendia – e dizia – resolver (o que será discutido no próximo capítulo),
ela, por outro lado, indica as dificuldades com que inevitavelmente a sociologia não
pode simplesmente não se deparar. Abandonar essa terceira dimensão do social – para
não trocar o modelo da realidade pela realidade do modelo, como bem Bourdieu gostava
de parafrasear Marx. não quer dizer deixar de resolver certas questões. Afinal, como se
2
Fato é que Alexander aponta a metáfora do cavalo de tróia em sentido diferente daquele utilizado pela
presente dissertação. Para ele, o habitus é um conceito que, em última instância, traduz uma relação não
de restituição da criatividade, mas de determinação da subjetividade. Aqui, para os meus propósitos, uso a
metáfora para demonstrar como Bourdieu, embora mescle o simbolismo ao materialismo, o faz mantendo
o primeiro no que concerne a via categorial: inculcamos as categorias, isto é, os princípios de visão e de
divisão próprios e relativos à posição que ocupamos dentro da coletividade a qual pertencemos e na qual
fomos socializados. Portanto, se saímos do objetivismo é para, momentos depois, a ele retornar.
3
Numa análise meta-teórica, Alexander aponta como Bourdieu, apesar de construir toda sua teoria numa
suposta superação do objetivismo estruturalista lévi-straussiano e do subjetivismo radical de Sartre,
oriundo da fenomenologia, ele nada mais fez do que uma espécie de bricolage, capaz não de ir além, mas
de combinar elementos dessas duas tradições. Ademais, Bourdieu, como bom teórico, sabia bem
caricaturar seus inimigos, o que inclui o próprio estruturalismo, o qual, nas palavras de Alexander: “Seria
talvez mais exato dizer que o estruturalismo como o funcionalismo não pressupõem o conceito de ação
formal, governado por regras, e que não excluem a consideração independente da ação enquanto tal. O
estruturalismo ignorou a fala para afirmar a prioridade, e não exclusividade, da língua. Como poderíamos
explicar de outra forma o famoso bricoleur de Lévi-Strauss, esse fazedor de contos desordenados que,
confortavelmente instalado no coração da vida cotidiana, extrai dos mitos aquilo do que precisa para
construir as narrativas de seu ambiente local ?” (Alexander, 2000: 32).
4
A relação entre Durkheim e Bourdieu nada tem de nova. A assunção é do próprio autor: “Eu tentei
resgatar formas escolares de classificação como Durkheim havia resgatado as formas primitivas de
classificação”, frase essa proferida em um colóquio sobre Durkheim, em Sociologue de l’éducation,
L’Harmattan, Paris, 1993.
11
produzem os coletivos? Como o consenso e a ordem são possíveis? Como se coordenam
as ações?
Seja como for, é imperativo tentar olhar tais questões de uma nova maneira; não
basta, nos parece, criar uma mirabolante lógica da prática, “reconhecer à prática uma
lógica que não é aquela da lógica, a qual supõe o sacrifício do rigor em proveito da
simplicidade da generalidade” (Bourdieu, 1980: 144) para findar com os problemas da
teoria da prática e, por conseguinte, da prática teórica. Na realidade, há um conjunto de
teorias que procuram não mais manter as representações sociais através de uma teoria
praxiológica mas, sim, recolocar em questão a própria formação do social. Ora, se a
prática, para a tradição clássica da sociologia, é resultado da aprendizagem do jogo
social, esta mesma depende de um social já constituído, de uma estrutura estruturada,
e/ou em vias de constituição, uma estrutura estruturante, em torno da qual elas, as
práticas, podem gravitar. Pensou-se, por muito tempo, que para a manutenção da
possibilidade do consenso e da harmonia entre as ações seria preciso pressupor uma
cultura capaz de produzir uma “orquestração sem maestro”, uma conformidade lógica
geral
5
, de modo a conciliar os elementos a partir de uma transcendência sem telos. O
objetivismo presente nessa idéia, insinuado por meio da pressuposição de uma cultura
sem a qual os indivíduos encontrar-se-iam perdidos em meio ao caos dos elementos
sensíveis sem o filtro das categorias e das representações sociais, vem sendo criticado
não apenas por Sapir e a escola de cultura e personalidade, mas maiormente por Leach
(1996). Diga-se de passagem, o próprio Bourdieu, em muitos aspectos, não fez senão
criticá-la – muito embora ele mesmo tenha sido o último a elaborar uma teoria para,
malgrado tudo, deixar incólume o velho social, preso ao paradoxo da agência e da
estrutura. Aliás, não seria legitimo perguntar se toda a teoria de Bourdieu não foi feita
senão para, assim como os fatos sociais de Durkheim, conferir concretude ao social e
apreender as “coisas” a partir de suas regularidades objetivas? Não seria a morfologia
social de Durkheim a estrutura feita por pares dicotômicos de Lévi-Strauss – a qual o
estruturalismo genético incorpora – e a fisiologia social o que a praxiologia tentou
resolver via habitus?
5
No sentido de Durkheim das Formas Elementares da Vida Religiosa, cuja citação segue: “Na raiz de
nosso julgamentos, há um certo número de noções essenciais que dominam toda a nossa vida intelectual;
são aquelas que os filósofos, desde Aristóteles, chamam de categorias de entendimento: noções de tempo,
espaço, de gênero, de número, de causa, de substância, de personalidade, etc. Elas correspondem às
propriedades mais universais das coisas”. (Durkheim, 2003: XV-XVI)
12
A idéia do presente capítulo é apresentar sociologia crítica de Bourdieu, fazendo
uma sintética apresentação de seus principais conceitos para, no capítulo próximo,
tentar demonstrar as fragilidades de uma teoria que pretende em si abarcar a totalidade
do mundo social.
Das sociologias francesas do fim do século XX, duas são as formas de atribuição
dos condicionantes da ação. Há os que concedem um peso às experiências passadas do
ator, destacando sua trajetória social e os esquemas mentais e corporais de percepção e
avaliação adquiridos ao longo dessa trajetória e outras que tendem a deslocar a lógica da
ação para o momento da interação e para os constrangimentos referentes às situações
em sua singularidade, sem haver uma necessária preocupação com o passado daqueles
que agem. De um lado, acentua-se o passado como determinante do presente; de outro,
a ênfase recai sobre as coações próprias das circunstâncias que emergem no curso da
interação. São deixadas de lado, no primeiro caso, as características peculiares da
situação propriamente dita, uma vez que esta é sempre reduzida ao modo como os
agentes e suas respectivas disposições herdadas reagem à lógica da situação; no
segundo, renuncia-se ao passado incorporado dos agentes que tendencialmente, ao
modo de disposições, os impelem a agir de uma forma no lugar de outras possíveis, para
focar a análise sobre os constrangimentos inerentes às interações – sem esquecer de
tratá-las como uma ordem sui generis –, as quais independem do passado inculcado do
ator. De fato, enquanto a primeira é mais uma teoria do ator que da ação, a segunda
estaria mais inclinada a perceber a ação em seu curso que o ator em seu pretérito.
Deixemos a segunda de lado e atenhamo-nos à primeira.
O modelo paradigmático para a compreensão dessa primeira forma de enxergar a
ação e seus condicionantes é, sem dúvida alguma, a teoria do habitus. Trata-se de uma
concepção que enfatiza as disposições cuja função primordial é fazer a mediação entre
as estruturas sociais e os indivíduos biológicos.
Entendido como “um sistema de disposições duráveis e transponíveis”, o habitus
funciona como a base gerativa de um sistema de relações objetivas estruturado,
unificado e unificante das práticas sociais. Formado pelas ações em ato e decorrente de
suas virtualidades, o habitus produz e é resultado de recursos dispostos e inculcados na
e através da cultura, ao modo de sistemas de comportamentos adquiridos que produzem
e reproduzem esquemas mentais e corporais capazes de reger e orientar a ação coletiva e
individual. Como define bem Joana Overing e Nigel Rapport, esse sistema é dotado de
uma circularidade: estruturas sociais produzem a cultura a qual, por sua vez, gera
13
práticas que, enfim, reproduzem as estruturas sociais). Desse modo, se faz imperativo
definir o que é uma disposição. Em primeiro lugar, uma disposição diz respeito a uma
tendência, a uma inclinação, a uma propensão, a uma vocação, a qual o agente, por
vezes malgrado ele próprio, é impelido a agir de uma forma no lugar de outras
possíveis. Em segundo, toda disposição, ao ser posta em prática, isto é, ao ser atualizada
visa algum propósito, intento, designo, buscando satisfazer as condições impostas pelo
que lhe é geneticamente determinante, sem deixar de levar em conta os necessários
ajustamentos frente às situações que vão aparecendo no curso das (inter)ações.
É preciso fazer justiça a essa última questão: o habitus, embora carregue uma
carga de determinação, possui um princípio de flexibilidade que “graças às
transferências analógicas de esquemas que permitem resolver os problemas que
apresentam a mesma forma, e graças a correções incessantes dos resultados obtidos
dialeticamente produzidos por esses resultados” (Bourdieu, 1971: 179) mantém uma
relação imediata com o mundo e as situações que se desvelam ao longo das ações. O
habitus impõe uma relação prática com a prática, pois considera um mundo que impõe
sua presença, com suas urgências, suas coisas a fazer e a dizer, suas coisas feitas para
serem ditas. Desse modo, o habitus enquanto “principtum importans ordinem ad
actum”, ou seja, “princípio gerador duravelmente montado de improvisações regradas”
(Bourdieu, 1981: 96), aliado aos esquemas que lhe são peculiares, estes últimos
devendo ser entendidos como “princípios que autorizam a invenção sem intenção”
(Bourdieu, 1981: 96), sem a antevisão reflexiva dos recursos a serem mobilizados para a
sua execução, estabelece um ar de família, uma coordenação ao menos no que diz
respeito aos aspectos do conformismo lógico entre as pessoas que compartilham das
condições materiais semelhantes, onde “não seguindo senão suas próprias leis, cada um
afina-se, sintoniza-se com o outro” (Bourdieu, 1981: 98). Contrariamente ao que os
críticos tendem a acentuar, pode-se dizer que, no máximo, o habitus produz uma
antecipação prática e não um futuro que está nele inscrito de modo prévio e definitivo.
Assim, partindo de um esquema limitado de recursos e repertórios, isto é, esquemas de
ação e de pensamento, o habitus tende a reproduzir ao se confrontar com situações
típicas e a inovar quando defrontado com situações insólitas.
Sendo, portanto, reprodutor “das regularidades imanentes às condições nas quais
foi produzido seu princípio gerador” (Bourdieu, 1981: 94), o habitus tende a
desenvolver potencialidades objetivas capazes de orientar a conduta dos agentes em
meios às situações postas pelo curso da vida. De fato, até aí o habitus pode ser visto em
14
seu aspecto prático e, até certo ponto, superando o intelectualismo do social reificado;
no entanto, o próprio elaborador da teoria esclarece, confirmando o objetivismo sub-
reptício de sua teoria, o qual foi apontado na introdução: “não se pode dar razão às
práticas senão com a condição pô-las em relação com estrutura objetiva que define as
condições sociais de produção do habitus que lhes engendrou” (Bourdieu, 1971: 179).
Deste modo, a experiência vivida dos agentes só adquire sentido se, e somente se,
referida ao sistema de relações objetivo, estruturado e hierarquizado. As práticas,
embora mantenham uma relação prática com o mundo, são efetuações da estrutura
simbólica que as condiciona e as torna possível. Mas não é tão simples assim: podem
haver situações nas quais as condições objetivas se modificam sem que o habitus de
certos indivíduos e/ou grupos sociais as acompanhem, gerando o efeito de hystérésis,
onde ocorre um descarrilamento entre a percepção subjetiva do mundo social e a
realidade objetiva, dos quais Dom Quixote e Le Bourgeois Gentilhomme são bons
exemplos encontrados na literatura. No que concerne seus trabalhos empíricos, o jovem
pesquisador Bourdieu, na década de 60, analisava esse efeito nas conseqüências geradas
pelo desajuste propiciado pelas transformações econômicas e sociais. Nele, Bourdieu
descreve trabalhadores que haviam interiorizado valores tradicionais vinculados à lógica
da honra e por esta razão se resignavam ao cálculo e à racionalização das trocas
econômicas tipicamente capitalistas. Nesta lógica, pode-se dizer que todo habitus
individual é “uma variação de um estilo de época ou de classe” (Bourdieu, 1979: 210),
uma singularidade que emerge de uma estrutura de relações objetivas que o antecede e o
condiciona genetica e gerativamente. Por conseguinte, um agente não pode ser senão
uma variação dentro de um espaço de possíveis (que se oferece desigualmente aos
indivíduos), uma efetuação singular do habitus do grupo, da classe ou da fração de
classe a qual ele pertence. Afinal, o habitus é o social feito corpo e reproduzido por esse
mesmo corpo que é dele resultado. Esse processo, no entanto, não é percebido como
historicamente condicionado, mas tudo se passa como se inconscientemente os atores
fossem inculcando e incorporando tais esquemas: “se o habitus pode funcionar como
um operador que efetua praticamente o ato de relacionar os eixos do sistema de relações
em e para a produção da prática, é [pelo fato de ser] história feita natureza, quer dizer,
negada enquanto tal porque efetivada em uma segunda natureza; o ‘inconsciente’ não é
nunca, de fato, senão do esquecimento da história que a história mesmo produz
incorporando as estruturas objetivas que ela produz nessas quase-naturezas que são os
habitus”. (Bourdieu, 1971: 180).
15
Aí fica clara a importância conferida à hipótese do inconsciente (ou impensado,
como preferia Foucault, em As palavras e as coisas, pelo fato de a palavra inconsciente
ser sobrecarregada de sentido), típica do pensamento francês desde os discípulos de
Saussure: este é a condição de possibilidade do habitus, pois ele dá conta de um
processo que passa como se não passasse e, assim, faz esquecer o que só pode ser
lembrado através, talvez, de uma sócio-análise ou de uma objetivação do sujeito da
objetivação
6
. Ademais, este explica como é possível haver uma sociedade coordenada
sem maestro, onde expectativas subjetivas e condições objetivas (isto é, chances de
acesso as universidades, a certos postos de trabalho, escolhas matrimoniais,
freqüentações de museus, aptidões culturais, etc.), salvo exceção, se harmonizam como
que por afinidade ontológica: os agentes tendem a projetar e a pretender (apenas) o que
são capazes de alcançar. Engajados em um campo dotado de um doxa e de uma lógica
imanente em operação, os agentes tendem a agir estrategicamente sem que isso
implique consciência e antevisão das estratégias postas em prática. Os campos, essas
estruturas objetivas marcadas por uma desigual distribuição de recursos, possuem
agentes dotados de um senso prático, o qual tende a ajustar o subjetivo ao objetivo
aproximando o possível do provável
7
, e é apto a regê-los e a dirigi-los sem que, no
entanto, estes possam ser considerados como meros executores de regras e leis; neles,
nos campos, os agentes engajados estão em constante luta para conservar ou transformar
as relações de forças, cada qual, dependendo de sua posição, pondo em prática
6
Mesmo aqui Bourdieu é um tanto quanto ambíguo. De um lado, ele coloca a sociologia dos intelectuais
como o que permite ferir o narcisismo próprio aos intelectuais e, ao mesmo tempo, mostrar que a posição
livre, sem vínculos nem raízes não passa de um efeito ilusório próprio ao narcisismo existente no campo
intelectual. Por outro lado, essa sociologia da sociologia, em outras passagens, parece ser o mecanismo
que permite ao intelectual (no caso, o próprio Bourdieu) escapar a todos os determinismo que pesariam
sobre ele em razão da sua posição enquanto intelectual. Aí vão as duas passagens de Bourdieu que
ilustram essa ambigüidade: “Se todas essas pessoas, eu o primeiro, escolheram fazer o que fazem, é
sempre um pouco para poder se pensar como ‘sujeitos’, sujeitos puros, ‘sem vínculos nem raízes’, como
dizia Manheim [...] essa remissão à libido específica que se encontra no princípio das ações de
intelectuais parece ter qualquer coisa de insuportável para muitos intelectuais” (apud cit, Heinich, 2007:
149)... Diz isso para logo depois proferir : “É certo que o projeto sociológico, ele mesmo, e sobretudo o
que chama-se a ‘sociologia do conhecimento’, não é jamais salva da ambição de se colocar como sujeito
absoluto, capaz de tomar os outros por objeto e de conhecer melhor que eles a verdade do que eles são e
do que eles fazem. O essencial de meu trabalho em Homo academicus consistiu justamente em tentar
descobrir, para destruí-lo, tudo o que minha análise pode dever a esse tipo de enviesamento profissional”.
(Apud cit, Heinich, 2007: 150). Bom, fica a pergunta : não seria essa objetivação do sujeito da
objetivação uma forma de reconhecer as raízes e os vínculos e, com isso, fazer o Mannhein buscava, só
que pelo caminho inverso?
7
O autor é claro a esse respeito: “colocando em prática para apreciar o valor de sua posição e de suas
propriedades um sistema de esquemas de percepção e de apreciação que não é outro senão a incorporação
de leis objetivas segundo as quais se constitui objetivamente seu valor, os dominados tendem, em
primeiro, a se atribuir o que a distribuição lhes atribui, recusando o que lhes é recusado (‘isso não é para
nós’)”. (Bourdieu, 1980: 549).
16
estratégias de conservação ou de subversão (ver Bourdieu, 1971b). No intuito de dar
conta do processo de diferenciação social e da pluralidade dos mundos advindos dele, o
qual engendra a autonomização das esferas de sentido, Bourdieu define os campos
como “lugares onde se constroem sensos comuns, lugares comuns, sistemas tópicos
irredutíveis uns aos outros”, (Bourdieu, 1987: 32). Desta feita, os campos são formados
e constituídos pelas relações de concorrência existente entre seus agentes, todos em
busca da capitalização dos recursos legítimos próprios a cada um (o que torna possível,
como no caso do campo artístico, capitais legítimos que negam, de modo veemente, o
capital econômico). E na totalidade dos campos, há o que Bourdieu chama de campo de
poder, onde os detentores de diferentes poderes (capitais) se digladiam entre si, lutando
pelo poder global.
Os agentes imersos nos campos são guiados e regidos por um senso prático cujo
funcionamento é dado pelas próprias condições da doxa do campo, que pode ser
definida como uma “fé prática” (Bourdieu, 1980: 113) que institui uma “experiência
dóxica do mundo”. Não significa, contudo, que os agentes sigam mecanicamente as leis
próprias de cada campo, mas apenas que são dotados de um habitus a ele
correspondente. Há, neste aspecto, um componente paradoxal no habitus, donde
Bourdieu mostra a finura do seu conceito: quanto mais bem interiorizadas estão as
normas e as regras menor é a necessidade de que estas sejam seguidas mecanicamente.
Eis o caso da língua: quanto mais e melhor estão interiorizadas as normas e as
categorias semântico-gramaticais, menos é necessário fazer uma aplicação mecânica das
mesmas, pois o que de fato se aprende no processo de inculcação não são as regras em
si, mas um savoir-faire que permite utilizá-las nos momentos adequados, esta sendo a
razão da presença do componente criativo e da expressão paradoxal para definir o modo
como se opera o que foi inculcado: improvisações regradas, ações que partem de regras
e normas, mas cuja regra maior é o não respeito absoluto, isto é, imitativo e mecânico
dessas mesmas regras.
Sabe-se bem que Bourdieu, quando pesquisava os trabalhadores argelianos e as
condições pré-capitalistas que os orientavam, em seu Trabalho e Trabalhadores na
Argélia, ainda não trabalhava com noção de habitus, mas de ethos, entendido como um
sistema de esquemas cognitivos susceptíveis a engendrarem uma visão de mundo. Seus
primeiros trabalhados faziam menção a uma visão de mundo internalizada e mediada
pelas condições sociais objetivas, sem incluir a dimensão corpórea. Apenas mais tarde,
o sociólogo francês incorpora a abordagem de Mauss sobre as técnicas corporais,
17
trazendo o social corporificado através dos hábitos relativos ao corpo para, enfim, no
posfácio à obra de Panofsky, em 1967, começar a sistematizar o conceito, desenvolvido
primeiramente, de modo mais metódico, no Esboço de uma teoria da prática e, enfim,
exposto de modo mais detalhado em seu trabalho já maduro, O senso prático, publicado
em 1980. O habitus já amadurecido é resultado de uma síntese sociológica que integra
três tradições clássicas:
“o conceito de habitus permite, assim, integrar a herança de diferentes tradições da
sociologia : a tradição marxista, a qual lembra que as formas de consciência se
diferenciam segundo as condições de existência, a crítica weberiana do
materialismo marxista, que restabelece o lugar da visão de mundo dos grupos
sociais na orientação de suas ações, e a tradição durkheimiana do estudo das
formas classificação, tal como ela foi adaptada pelo estruturalismo” (Shapiro,
2004: 69).
Com vista disso, Bourdieu retoma a temática marxista da dominação aliada a
perspectiva durkheimiana da concretude do símbolo (via uma síntese entre o
relacionismo neokantiano de Cassirer e o racionalismo aplicado de Bachelard
[Vandenberghe, 1999]) e coloca em correlação sistemática as relações de sentido e as
relações de força, de modo a dar uma resposta ao problema weberiano da autoridade
legítima com o conceito de violência simbólica, fechando um quadro de análise que
permite vislumbrar como a existência do consenso social, a despeito de tudo, é ainda
possível.
Também atento as diversas disciplinas que margeiam a sociologia, Bourdieu, já
em 1971, em seu Ensaio, fez apelo, com o objetivo de fugir ao intelectualismo do
estruturalismo, ao modelo de competência de Chomsky. A razão é bem clara: ao invés
de destacar apenas a estrutura estruturada e tratar os agentes como meros executores de
regras prévias, a idéia foi resgatar a prática existente na própria construção dessa
estrutura via uma praxiologia que buscava destacar os aspectos gerativos e ativos do
agente
8
. Como se sabe, uma das principais tarefas da lingüística de Chomsky foi relevar
o aspecto criativo do aprendizado da linguagem, mostrando como uma criança pode
produzir enunciados nunca antes escutados, o que implicava na assunção da idéia de que
a criança não dispõe de uma habilidade para imitar e reproduzir o que escuta, isto é,
responder a estímulos externos, mas uma competência para produzir enunciados cuja
8
Nas palavras do sociólogo francês: “O habitus poderia ser definido por analogia com a «gramática
gerativa’ de Chomsky, como sistema de esquemas interiorizados que permitem engendrar todas os
pensamentos, as percepções e ações características de uma cultura e apenas essas.” (Bourdieu, 2001:
152).
18
base seriam os elementos lingüísticos aos quais fora exposta. A competência lingüística
seria a capacidade de compreender e produzir um número infinito de enunciados com
elementos finitos; esta poderia ser definida, assim, como um know-how, ou seja, um
conhecimento implícito que o falante de uma língua adquire com a mera exposição aos
dados lingüísticos. Prendendo-se tão somente ao aspecto lingüístico, a competência que
Chomsky destaca é de cunho gramatical, sendo a gramática “um sistema de regras e de
princípios que determinam as propriedades formais e semânticas das frases” (Chomsky,
1972: 89). Decerto, a lingüística chomskiana foi uma grande via de acesso para a
superação do estruturalismo (afinal, não fora Chomsky, antes mesmo de Bourdieu,
quem havia criticado o estruturalismo?
9
). Entretanto, as semelhanças terminam por aí: o
sociólogo francês incorporou a noção de competência à de disposições duráveis,
historicamente adquiridas e condicionadas por uma dada formação social. Sem aderir ao
inatismo cognitivista do lingüista americano, Bourdieu jamais deixou de sociologizar as
disposições do habitus via estrutura simbólica sempre social: “o sujeito não é o ego
instantâneo de uma espécie de cogito singular, mas traço individual de toda uma história
coletiva” (Bourdieu, 1987: 61).
E o que significa sociologizar as competências cognitivas dos agentes? Ora, o
falante de uma língua não possui apenas um saber prático capaz de produzir frases
ajustadas aos princípios gramaticais basilares da língua, correspondendo, assim, às
expectativas dos outros falantes, mas possui também um senso prático capaz de
distinguir o pobre do rico, o erudito do vulgar, o belo do feio, o forte do fraco, alto do
baixo, dominante do dominado, o quente do frio, o brilhante do medíocre, o exuberante
do discreto, o harmônico do atonal, o realista do abstrato, e assim por diante. E o que
predispõe os agentes a possuírem esse reconhecimento diferencial é uma competência
cultural (não poderia o habitus ser considerado, desde que abandonada sua terceira
dimensão – isto é, a estrutura estruturada –, uma competência pragmática?),
desenvolvida e trabalhada extensamente por Bourdieu em seu livro já clássico, A
Distinção, onde é apontado que o habitus não se resume a práticas de classificação, mas
consiste também no modo como, partindo de uma taxionomia prévia, agentes apreciam,
avaliam e julgam. Ou seja: para além da questão semântica, existe a questão da
qualificação e da desqualificação dos objetos e das pessoas em função da posição
9
Ver Neto, 2005, O empreendimento gerativo.
19
ocupada no mundo social
10
, fazendo das palavras, dos gestos, dos sotaques, dos esportes
preferidos, das bebidas diletas, do modo de se vestir e dos comportamentos, signos
qualificativos de distinção social que estabelecem afinidades e divergências de estilos
de vida. Nesse trabalho seminal, Bourdieu estira as intuições estruturalistas e descreve
um mundo puramente diferencial, no qual “a mínima distância objetiva no espaço social
pode coincidir com a máxima separação subjetiva [...], porque o mais vizinho é o que
ameaça mais a identidade social, isto é a diferença (e também por que o ajustamento das
esperanças às chances tende a circunscrever no vizinho imediato as pretensões
subjetivas”. (Bourdieu, 1980: 238).
Como decorrente dessa competência cultural inerente ao habitus, Bourdieu vai
atribuir ao gosto, na sociedade francesa, uma lógica da distinção referente ao conjunto
de práticas vinculadas às múltiplas posições sociais. Tais posições referem-se a um
mesmo mundo, hierarquizado e dividido entre dominantes e dominados, definido
diferencialmente em seus múltiplos pontos de vista; e o modo como os elementos
dispostos nesse mundo são julgados, avaliados e apreciados depende da posição
ocupada pelos agentes nele imersos. Ora, é sempre o dominante que detém o monopólio
e o poder de definição e de imposição do gosto legítimo e das normas estéticas mais
apropriadas. Desta forma, pode-se definir o gosto como uma disposição cultural, uma
propensão para a apropriação de bens materiais ou simbólicos significativamente
distintos e capazes de transmutar o indiferente em distintivo, quer dizer pertinente
segundo a classe de pertencimento: “o próprio da lógica do simbólico é transformar em
diferenças absolutas, do tudo ao nada, as diferenças infinitesimais” (Bourdieu, 1980:
238). Por essa razão, “uma diferença, propriedade distintitva [...] Volvo ou 2 CV, vinho
tinto ou champagnhe, Pernod ou uísque, golfe ou futebol, piano ou acordeon [...] não
torna-se perceptível, não indiferente, socialmente pertinente, senão se ela é percebida
por alguém capaz de fazer a diferença, porque estando inscrito no espaço em questão,
não se é indiferente. (Bourdieu, 1994: 95). Como bom sociólogo crítico, Bourdieu não
encara a temática do gosto apenas como o que é pertinente do ponto de vista cultural,
mas como o que é pertinente porque arbitrariamente instituído como tal. Embora o
culturalmente bem avaliado seja sempre histórico, transformável e efêmero, ele é
10
Aqui o objetivismo de Bourdieu é sempre enfático, pois acaba, no fim das contas, vinculando a
percepção dos atores, de modo quase imediato, às estruturas objetivas: “a percepção [...] depende por uma
grande parte da percepção das estruturas de relações objetivas entre as posições objetivas na estrutura
social de agentes em interação (e.g. por exemplo, relações de concorrência ou antagonismo objetivo ou
relações de poder e de autoridade”. (Bourdieu, 1971: 169).
20
sempre visto como natural, porque ligado a ordem dominante e, portanto, imposto por
uma violência simbólica que institui relações de dominação, as quais tornam possível a
cumplicidade do dominado com relação à sua própria dominação. Um dos exemplos
característicos de Bourdieu é o caso da educação, cujo campo enseja uma “ideologia
apologética que permite às classes privilegiadas, principais utilizadores do sistema de
ensino, ver no seu êxito a confirmação de dons naturais e pessoais” (Bourdieu, 1997:
108). Afinal, as escolas transmitem uma “pedagogia implícita que produz
reconhecimento (para alguns) sem conhecimento (para todos), que avalia não apenas o
que é pertinente do ponto de vista estritamente escolar, mas também o que é
significativo no que diz respeito aos atributos próprios a cultura dominante, como um
certo dialeto, uma determinada sintaxe, um comportamento típico (caracterizado pelo
distanciamento frente à lógica do necessário), além de conhecimentos gerais (como o de
certas obras literárias canônicas, além de filmes, museus, quadros, etc). Nesse sentido,
essa pedagogia não faria uso, para avaliar os alunos, de critérios restritos ao universo
escolar, mas, sim, da familiaridade com a cultura dominante, que não adviria senão por
meio da socialização em ambientes vinculados às culturas legítimas. Mesmo em um
contexto no qual o sistema escolar foi universalizado, como é o caso francês, as escolas
teriam por função transmitir informação sem formação, pois apenas os indivíduos
dotados das disposições correspondentes às classes dominantes estariam
(tendencialmente) aptos a obter sucesso acadêmico e escolar.
Caso análogo seria o da freqüentação dos museus e da decoficação das
fotografias. Os códigos transmitidos pela cultura hegemônica, por meio das escolas,
seriam capazes de engendrar em certo número de pessoas a competência estética apta a
constituí-los de um habitus capaz de decifrar os códigos herméticos, valorizados e
restritos a classe dominante. Ora, se o “consumo é [...] uma etapa no processo de
comunicação, isto é um ato de deciframento, de codificação que pressupõe uma
habilidade prática ou explícita de uma cifra ou código” (Bourdieu, 1980: 2), este deve
sempre ser vislumbrado como instrumento de poder, pois o valor do ciframento das
obras legítimas que as revestem de reconhecimento é inversamente proporcional ao
número de pessoas capazes de decifrá-las. Nesse aspecto, toda e estrutura social
francesa, auxiliada pelo sistema escolar e universitário, seria um apanágio da
reprodução e da dominação. E a realidade, por conseguinte, mero resultado de lutas que,
em última análise, traduziriam as relações de dominação e de reprodução.
21
Seguindo a lógica de suas pesquisas, Bourdieu apresenta uma teoria do mundo
social dada pelo encontro entre o habitus e o campo, isto é, a história feita corpo com a
história feita coisa, relacionando de modo dialético a internalização da exterioridade
com a exteriorização da interioridade interiorizada: “o princípio da ação histórica, da
ação do artista, do erudito ou do governante, assim como a do operário ou do pequeno
funcionário publico, não é de um sujeito que se oporia à sociedade, como o faria um
objeto constituído na exterioridade. Ele não reside nem na consciência, nem nas coisas
mas sim na relação entre dois estado do social, ou seja, a história objetivada nas coisas,
sob a forma de instituições, e a história encarnada nos corpos, sob a forma desse sistema
de disposições duráveis que chamo de habitus” (Bourdieu, 1982: 37-8)
22
CAPITULO 2 – PARA UMA CRÍTICA À CRÍTICA SOCIOLÓGICA
“Demorei muito tempo para compreender que existem utilizações não agonísticas da discussão
intelectual, não críticas da história, não desencantadoras da cultura, não políticas da sociologia, não
cientificistas da ciência. Demorei muito tempo para compreender que é melhor descobrir antes de
demonstrar, que a pluralidade é próprio da experiência humana e que o logicismo, que reduz esse
pluralidade à unidade, é o primeiro inimigo do pesquisador. Demorei muito tempo para compreender que
do lado da sociologia explicativa, que põe em evidência as causalidades exteriores, há lugar também para
uma sociologia compreensiva, que leva à sério as lógicas subjacentes às condutas dos atores ao confiar
em sua capacidade reflexiva, e que essa sociologia também pode ser rigorosa mesmo se ela não se baseia
na estatística. Demorei muito tempo para compreender que os valores não são ilusões a serem
demonstradas, mas sistemas de avaliação a serem analisados, e que a vontade de fazer do coletivo o lugar
da verdade, e do individual o lugar da ilusão, pode não ser senão uma ideologia sociologista, desde que
ela não se interrogue sobre o modo pelo qual os atores se deslocam entre esses dois pólos, segundo os
contextos. Demorei muito tempo para compreender que o invisível pode ser simplesmente efeito do
implícito e não necessariamente do escondido, que o relativismo pode não ser normativo, mas
simplesmente descritivo, e que a descrição analítica abre ao pesquisador vias muito mais heurísticas que o
julgamento de valor. Demorei muito tempo para compreender que o engajamento do pesquisador não é
uma obrigação moral, e que o civismo para fazer aquilo por que ele é pago pela coletividade, ou seja
produzir um saber. Demorei muito tempo para compreender que meu interesse pela sociologia não me
obrigaria a dela fazer uma ciência reinante, porque pode-se praticar uma concepção não hegemônica, mas
distribuída da relação entre disciplinas.”
Heinich, Pourquoi Bourdieu?
Como aponta Boltanski
11
, a sociologia nasce ao menos com dois problemas
basilares. O primeiro é o da manutenção da ordem social em um contexto histórico no
qual novas formas de solidariedade estavam sendo estabelecidas, marcado por uma forte
desigualdade e pelo pauperismo. Este primeiro é o problema da justiça, isto é, de como
é possível findar com os conflitos, dentro do contexto de um Estado-nação. O segundo é
o problema da religião. Esse último é central, pois grande parte do esforço, desde o
fundamentalismo da razão apregoado pelo Iluminismo
12
, passa a ser ironizá-la,
relativizá-la ou fundá-la em uma razão que não seja aquela da própria religião. Para
executar esse procedimento, se fazia imperativo fazer um desvelamento da religião e
demonstrar como esta preenchia funções que iam além do que ela mesma dizia; afinal,
acreditar no discurso religioso para um moderno
13
seria acreditar nas crenças e
superstições, portanto não fazer a distinção entre o que as coisas são de fato e o valor
que as pessoas lhe atribuem. Mesmo Durkheim, que à religião atribuía um papel
regulativo-constitutivo, não mentiroso e alienante, como em Marx (embora o próprio
11
Ver Boltanski, “Do que são as pessoas capazes”, 1990.
12
Ver a análise de Gadamer, 2002.
13
Aqui faço menção a utilização que Latour faz dessa palavra em Jamais Fomos Modernos.
23
filosofo alemão não negasse o aspecto regulativo-constitutivo da mesma), tinha como
objetivo produzir uma reforma laica capaz de liberar a moral da religião
14
. Para ele, a
religião, embora não fosse em si mesma falsa
15
, tinha por função a manutenção de uma
moral apta a impor o reconhecimento da própria coletividade. O abandono da moral
seria problemático, uma vez que levaria a nação à hobbesiana guerra de todos contra
todos. A sociologia, ao liberar a moral da religião, deveria imputá-la uma realidade que
fosse próxima à sua natureza “real”, a qual não seria religiosa, mas social.
Outras foram as estratégias para revelar a ilusão religiosa. Marx (eo destaque
conferido ao seu papel alienante), Nietzsche (com a sua crítica radical à totalidade dos
valores particulares, sempre rebatendo o desinteresse com os interesses mesquinhos e
hipócritas subjacentes) e Weber que, na esteira desse último filósofo, operava a
relativização dos valores, reduzindo-os uns aos outros, tornando-os todos equivalentes.
A questão é que o desvelamento não cessou na religião. Dela, passou-se para a teoria do
conhecimento, da arte, para, enfim, enxergar o mundo como um sistema de relações
simbólicas, manifesto (somente) por meio das representações e crenças. Desse primeiro
passo, passou-se a “acreditar” que tudo não era ‘senão’ crença. Para isso, contudo, o
desvelamento do sociólogo para ser eficaz teve que se apoiar em um ponto fixo, a partir
do qual seria possível construir uma realidade mais real do que a realidade ilusória em
meio a qual estavam os atores envoltos. Essa realidade foi o laboratório (Latour
16
), no
qual ele reunia os elementos capazes de demonstrar como os atores estavam enganados
(embora coerentes), apesar de se acreditarem corretos. É no laboratório, auxiliado pelas
estatísticas, pelos recortes das falas dos autores, por artigos acadêmicos, por conceitos
filosóficos, que o sociólogo se punha capaz de construir uma realidade mais real, isto é,
mais objetiva que a dos atores, estes últimos presos à sua subjetividade (e, de certo
modo, por ela enganados). O problema é que esse laboratório era, ele mesmo,
dependente dos meios de divulgação, os quais deveriam transmitir seus resultados
alhures
17
. Para atingir seu ímpeto controverso a sociologia do desvelamento precisava
14
Bem assim bem define Patrick Pharo: “a sociologia moral, e mais precisamente o projeto de uma
ciência positiva da moral, ocupa um lugar central em toda a obra de Durkheim. Este tinha, de fato, a
ambição de substituir a filosofia moral tradicional uma verdadeira ciência moral que não seria fundada
sobre a metafísica, mas sob a observação da sociedade”. (Pharo, 2004: 86).
15
“Com efeito, é um postulado essencial da sociologia que uma instituição humana não pode repousar
sobre o erro e a mentira, caso contrário não pode durar. Se não estivesse fundada na natureza das coisas,
ela teria encontrado nas coisas resistências insuperáveis. Assim, quando abordamos o estudo das religiões
primitivas, é com a certeza de que elas pertencem ao real e o exprimem. (Durkheim, 2003: VI-VII)
16
Ver Latour, 2001.
24
atingir outras pessoas que não os sociólogos para, assim, exercer seu papel
desmitificador, extirpando a mistificação na qual estavam as pessoas presas pelas suas
próprias crenças.
Mas o laboratório do sociólogo, por mais poderoso que pudesse ser, nunca o era
suficientemente para impor sua “verdade” sobre a “verdade” das outras pessoas, pois
elas também eram capazes de criticar e de justificar suas “crenças”. O sociólogo crítico
sabia disso. De um lado, às que negavam as objetivas verdades sociológicas, ele as
atribuía um efeito de resistência, uma vez que elas se encontrariam incapazes de
assumirem a verdade tal como ela é. Por outro lado, nada deixava o próprio desvelador
ao abrigo da crítica de que, ele também, poderia estar preso às suas próprias crenças.
Daí por que o sociólogo voltava seus métodos e suas análises contra si mesmo, tentando
escapar do que nele havia de pressuposto tácito, passando da sociologia das crenças
religiosas para a sociologia do conhecimento, da arte, da ciência para, enfim, chegar a
sociologia da sociologia. Tal era o projeto crítico mais amplo de Bourdieu, qual seja:
fazer uma crítica da razão escolástica
18
, única capaz de analisar os efeitos produzidos
pela situação de skholé, a qual engendraria, por exemplo, falsas oposições, como aquela
existente entre o objetivismo e o subjetivismo, universalismo e relativismo etc. É nesse
sentido que o sociólogo francês dizia fazer um “tristes tropiques à l’envers” (Bourdieu,
2002: 11), voltando-se para a prática intelectual dos intelectuais e suas formas de
classificação, aos quais consagrou ao menos quatro livros: Os herdeiros, A reprodução,
e A nobreza de Estado.
Acrescente-se a essa sociologia, onde tudo no mundo social não é senão crença,
onde todo valor esconde crenças ilusórias, os avanços da análise estrutural “que, [nas
palavras de Bourdieu], permitiu realizar a ambição neo-kantiana de apreender a lógica
específica de cada uma das formas simbólicas’” (Bourdieu, 1998: 9). Lévi-Strauss, cuja
obra exerceu influencia direta sobre Bourdieu (algumas vezes de forma explicita
19
), já
havia feito a transposição do método estrutural para outros domínios que não aqueles da
lingüística, como o das relações de parentesco, da lógica do pensamento sensível, do
totemismo e, por fim, dos mitos ameríndios, nos quatro volumes das Mitológicas. Essa
frase, proferida pelo antropólogo francês, poderia ser assinada por Bourdieu: “toda
18
Ver Meditações Pascalianas, onde Bourdieu desenvolve essas intuições.
19
Em O senso prático, Bourdieu se diz abertamente tributário do estruturalismo, dado que este é um
“modo de pensamento relacional que, rompendo com o pensamento substancialista, conduz a caracterizar
todo elemento pelas relações que os unem aos outros em um sistema, e do qual ele extrai seu sentido e sua
função”. (Bourdieu, 1980: 11). Nesse sentido, em específico, Bourdieu sempre foi um estruturalista.
25
cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos”. Não foi senão
por meio dessa intuição que Bourdieu pôde fazer seu tristes trópicos às avessas,
retornando o simbolismo e o método estrutural para a sua sociedade de origem
20
.
Mas sua análise não parou por ai: para além da abordagem que acentua os
sistemas simbólicos como instrumentos de comunicação e de conhecimento,
tipicamente estruturalista, o sociólogo francês acrescentou a utilização prática que
fazem os atores desses sistemas simbólicos, dando ênfase às suas funções políticas
21
.
Nessa segunda abordagem, vinculou os sistemas simbólicos não ao seu aspecto
constitutivo-regulativo, mas alienante-dominador. De forma abertamente marxista,
Bourdieu vinculou os sistemas simbólicos aos interesses dos dominantes, os quais
embora servissem aos interesses particulares, apresentavam-se como universais
22
. Essa
abordagem evidencia-se quando Bourdieu trata da doxa, isto é, da relação de crença
imediata, atética, pré-reflexiva que os atores tem para com o mundo. Sem encerrá-la em
seu aspecto constitutivo, como a fenomenologia de Schütz o fizera, Bourdieu a ela
acrescenta “os princípios mais fundamentais de um arbitrário cultural ou político [...]
que se impõe ao modo de evidência ofuscante e desapercebida”. (Bourdieu, 1971: 300).
Essa atitude natural que os sujeitos têm frente ao mundo que os circunda importa, como
indica o sociólogo francês nas Meditações Pascalianas, à medida que explica “a
extraordinária adesão que a ordem estabelecida chega a obter”. (Bourdieu, 1997: 206).
20
Sua sofisticação consiste em incorporar o estruturalismo, acentuando o materialismo em oposição ao
idealismo a ele inerente, acionando também, por outro lado, as teorias mais individualistas, impondo a
elas a estrutura idealista do estruturalismo. Pois se é verdade, como acima apontamos, que o materialismo
do habitus é lançado para restituir a estrutura estruturada que advém da tradição durkheimiana, não é
menos verdade que essa estrutura, em Bourdieu, é mediada pelas estruturas materiais de existência. Pois
ainda que os atores bourdieusianos estejam em contínua adaptação e ajustamento frente ao ambiente com
o qual se deparam e no qual se encontram, estes têm sua subjetividade vinculada à estrutura de
disposições – a qual corresponde a uma posição dentro da relação de estruturas objetivas – que é efeito de
estruturas materiais que praticamente revogam o domínio da subjetividade. Afinal, o subjetivo é sempre
resolvido pelo programa interiorizado das relações simbólicas que refletem, em última análise – e aí
consiste o marxismo bourdieusiano de modo mais influente – as condições materiais de existência. É
nesse sentido que Bourdieu acaba sendo, ao fim e ao cabo, determinista e reducionista: ao invés de
restituir um domínio de liberdade da subjetividade, no sentido de atribuir múltiplas respostas as diferentes
situações, dando ensejo para, em determinados momentos, uma abordagem possível do pensamento
consciente, ele acaba por reduzir tudo, inclusive a subjetividade, aos condicionamentos inconscientes
impostos pela estrutura simbólica que, em último caso, reflete as estruturas materiais de existência.
21
Bourdieu acusava, nesse segundo aspecto, o estruturalismo de “fazer desaparecer as condições de
produção, de reprodução e de utilização de objetos simbólicos no movimento mesmo pelo qual fazia-se
aparecer sua lógica imanente”. (Bourdieu, 1979: 68-9). Mas se, por um lado, Bourdieu forja a teoria da
prática para romper com o “realismo da estrutura” (Bourdieu, 1979: 87), ele o faz sem contudo deixar de
lado o objetivismo, o qual era considerado por ele um “momento necessário da ruptura com a experiência
primeira e da construção de relações objetivas”. (Bourdieu, 1980: 87).
22
Aqui é claro o objetivo do sociólogo francês: “Mais do que ficar maravilhado com a existência de
interesses universais, eu perguntaria : quem tem um interesse universal ? Ou ainda: quais são as condições
sociais que devem ser encontradas para que certos agentes tenham um interesse pelo universal ?”
(Bourdieu, 1987: 31).
26
Ora, se os sistemas simbólicos são feitos, em última instância, para enganar
(ainda que os nativos estejam certos porque enganados ou enganados porque certos) e
para, desse modo, manter a dominação e a reprodução, tendemos a concordar com
Alexander (2001) quando aponta que, levadas às últimas conseqüências, por meio das
teses de Bourdieu “descobre-se [...] a imagem de uma sociedade vertical, reduzida a
estratificação social, às lutas impostas pela raridade e reguladas pelo egoísmo da oferta
e da demanda. Uma sociedade desprovida de horizontalidade, sem solidariedade no que
concerne às classes, e sem as identidades nacionais que multiplicam as possibilidades de
inserção”. (Alexander, 2001: 32). Na mesma direção, Nathalie Heinich, uma outra
dissidente do pequeno grupo de pesquisadores talentosos que Bourdieu reuniu em torno
de si, nos aponta que a tese do sociólogo crítico nos encerra em um mundo
“desencantado, esvaziado de seus valores, arruinado, povoado exclusivamente de
habitus e de posições no campo, de violência simbólica e do que está em jogo nas lutas,
entre dominantes e dominados, entre maldosos culpáveis e de pobres vítimas” (Heinich,
2007: 174). Desta feita, o mundo não é senão efeito de crenças ou, para voltar a
expressão de Schopenhauer, que Bourdieu tanto gostava de retomar, vontade e
representação (imposta pelos dominantes). Faz-se preciso, então, perguntar: como
diferenciar uma sociedade ditatorial de uma sociedade democrática? Como pensar a
emancipação?
No que diz respeito aos valores, estes são tratados como mera ilusão de uma
subjetividade incapaz de perceber suas verdadeiras motivações objetivas. Primeiro,
estes, os valores, são derivados do habitus, portanto jamais tratados enquanto esferas
autônomas capazes de transcender a experiência vivida – e determinada – dos atores.
Mais ainda: os valores universais só importam na medida em que interessam às classes
dominantes, o que nos leva a pensar que, para Bourdieu, os valores não possuem
nenhum potencial emancipatório; antes, são reduzidos à sua dimensão estratégica e sub-
reptícia.
Deste modo, ao negar às pessoas o potencial de-singularizador
23
dos valores (nas
palavras de Boltanski e Thévenot, das grandezas), não tornando possível a
generalização e o ultrapassamento de si através de outra coisa que não seja a criação de
um invólucro revestido pelos interesses particulares e egoístas, Bourdieu reduz toda e
qualquer estratégia de oficialização à função ideológica e torna qualquer atitude altruísta
23
Ver Boltanski, 1990 e Boltanski e Thévenot, 1991. Trataremos disso no capítulo quatro.
27
impossível. Segundo o sociólogo francês, as estratégias de oficialização não fazem outra
coisa a não ser “transmutar os interesses egoístas, privados e particulares [...] em
interesses desinteressados, coletivos, publicamente honoráveis, legítimos” (Bourdieu,
1979a: 40). Nesse sentido, toda ação é, em última instância, reduzida ao seu aspecto
instrumental, pois “as práticas não cessam de obedecer ao cálculo econômico, mesmo
quando elas manifestam as aparências do desinteresse, porque escapam a lógica do
cálculo interessado (em sentido estrito) e se orientam na direção do que está em jogo,
que não é material e dificilmente quantificável” (Bourdieu, 1980: 235). Assim, não
mais ação cujas bases sejam os valores, mas um raciocínio prático inerente a lógica de
cada campo, que impõe aos indivíduos uma ação estratégica visando a maximização do
capital simbólico a ele inerente
24
.
Disso podemos concluir que, na obra do sociólogo francês, os valores não tem
potencial socializador, mas apenas refletem as estruturas hierárquicas próprias às
condições materiais em meio às quais os indivíduos foram socializados. É a necessidade
econômica e social que recai sobre as relações potencialmente socializadoras que
condicionam a relação com os valores, o que nos incita a pensar que são as necessidades
externas, de tipo material, aquelas capazes de engendrar e reger as relações axiológicas
24
É por este motivo que Bourdieu acaba, em sua teoria, levando a si mesmo ao oxímoro da “estratégia
inconsciente” (Ver Alexander, 2000, cap IV). Como coloca Alexander, é Bentham que está por detrás de
Bourdieu, porque o sociólogo francês vê, em toda e qualquer ação, uma lógica que visa à maximização
dos recursos legítimos ao campo dentro do qual ela ocorre. Há uma razão que nega a razão racional, mas
que afirma, por outro lado, uma razão inconsciente, a qual apenas o sociólogo tem acesso. Para dar conta
da lógica da ação, Bourdieu diz que “não há ação sem razão de ser, ou seja, sem interesse ou, dito de
outro modo, sem investimento em um jogo”. Isso a ancora um habitus, o qual, por sua vez, é vinculado a
um campo capaz de nele inculcar suas regras e sua lógica. Assim, o habitus é apenas definido como
reprodução e recorrente busca pelo que foi geneticamente determinado pelos esquemas interiorizados. Os
atores, imersos no mundo permeado pelas relações simbólicas estão, malgrado eles mesmos, em contínua
busca pela capitalização dos recursos legítimos presentes em cada campo. Como conseqüência dessa
economia não redutível à economia (stricto sensu), Bourdieu tenta ultrapassar as práticas econômicas da
economia, com a economia geral das práticas: “a teoria das práticas propriamente econômicas não é senão
um caso particular da teoria geral das práticas”. (Bourdieu, 1971: 235). Nesse sentido, o habitus não faz
outra coisa a não ser refletir as estruturas externas que, pouco a pouco, vão se interiorizando fazendo de
uma transcendência – a terceira dimensão, isto é, a estrutura de relações objetivas – o princípio imanente
que rege o próprio corpo. Por isso, o habitus é, antes de qualquer coisa, reflexo das estruturas que o
engendraram e que, de modo contínuo, esse mesmo habitus passa a reproduzir. As mudanças são sempre
redutíveis ao efeito hysteresys, que representam a exceção que confirma a regra. Mesmo Maio de 1968
não escapa: este nada mais foi do que um descarrilamento entre as percepções subjetivas dos estudantes,
os quais tinham por expectativa emprego nos estratos superiores, e a realidade objetiva, que não lhes
apresentava outra coisa senão uma superprodução de diplomas e, por conseguinte, uma desvalorização
dos títulos escolares; em suma, uma realidade na qual havia expectativas demais para poucas
oportunidades objetivas: “todos os fenômenos de ‘superprodução de diplomas’ e de ‘desvalorização de
títulos’ [...] são fatores prioritários, porque as contradições que disse resulta engendram a mudança.”
(Bourdieu, 1987: 59-60).
28
dos indivíduos no mundo, fazendo dos valores resultados e não as causas de tipos
distintos de socialização.
É por meio dessa estratégia marxo-materialista que Bourdieu obtêm êxito teórico
em ratificar a dominância “valorativa” (a qual é efeito dos esquemas do habitus) dos
dominantes, posto que as relações simbólicas e valorativas são sempre reflexo das
condições materiais de existência, as quais, por seu turno, refletem uma hierarquia cuja
estrutura básica é sempre dada pela divisão entre dominantes (detentores dos capitais
legítimos) e dominados (desprovidos dos capitais legítimos). Neste aspecto, o
estruturalismo de Bourdieu seria melhor definido não como genético, como o próprio
queria, mas como um estruturalismo materialista (Alexander, 2002: 46.). Isso é evidente
na análise conferida aos camponeses kabyles, aos quais Bourdieu atribui “esquemas de
percepção de um tipo determinado, ao menos negativamente, pelas condições materiais
de existência” (Bourdieu, 1979a: 116). Disso se extrai que as relações entre pessoas são
sempre permeadas pelos esquemas cognitivos que lhes foram engendrados por um tipo
de existência material específica, esta produtora de um habitus que, por suas
características referentes às condições de “possibilidade dos possíveis” juízos a serem
emitidos, impõe acordos espontâneos: “o limite de todas as coincidências de estruturas e
de seqüências homólogas nas quais se realizam as concordâncias entre uma pessoa
socialmente classificada e as coisas ou as pessoas, elas também socialmente
classificadas, que lhe são convenientes, é representada por todos os atos de cooptação
de simpatia, de amizade ou de amor, que conduzem a relações duráveis, socialmente
sancionadas ou não” (Bourdieu, 1979: 267). Daí se infere que as relações humanas, os
acordos e mesmo os sentimentos mais íntimos, tudo é efetuação de uma estratégia
espontânea oriunda dos esquemas incutidos pelo habitus ao longo do processo de
socialização. Ou seja: mesmo os elos aparentemente menos instrumentais, seguem a
lógica da instrumentalidade não instrumental própria à lógica do habitus. Os atores não
possuem capacidade de produzir qualquer generalização ou de ter algum sentimento que
não esteja submetido aos imperativos materiais e simbólicos dos esquemas cognitivos e
perceptivos do mundo do qual eles provêm e no qual eles foram socializados. A
generalização, uma das competências cognitivas pressupostas no senso moral
trabalhadas por Boltanski e Thévenot (1991) é, em Bourdieu, vinculada ao automatismo
corporal e reduzida a efetuações de disposições físicas adquiridas ao longo do processo
de socialização.
29
Com isso, o pensamento consciente na obra de Bourdieu jamais pode ser
entendido como apto a produzir de ações, mas é sempre redutível às disposições
corporais e aos processos inconscientes que o torna possível, porém (quase) irrelevante.
O indivíduo é quase um autômato de sua herança, esta não sendo jamais entendida
como o que pode ampliar o horizonte de possíveis
25
, mas como o que o encerra, isto é, o
que determina negativamente suas possibilidades. Assim, o indivíduo acaba reduzido a
um conjunto de “esquemas motores e em automatismos corporais” (Bourdieu, 1980:
116). Nessa lógica, o habitus, que de início havia sido construído para restituir o aspecto
criativo da ação, uma vez considerados os desenvolvimentos da obra de Bourdieu, acaba
se tornando em um conceito que esvazia uma concepção de ação apta a dar conta do
aspecto inventivo e inovador. A subjetividade, ao invés de fecunda, é esvaziada de
sentido, dado que se torna mera efetuação das relações materiais, sempre externas aos
indivíduos. Em suma, o conceito que a princípio deveria ter por escopo destacar o
componente inovador, acaba sendo mera reprodução ou, para retomar o irônico título da
obra de Alexander, mera redução.
Além disso, constatada essa relação problemática de Bourdieu com os valores,
convém perguntarmos, com Boltanski, “como se pode pensar a coordenação entre
pessoas, cuja socialização realizou-se em contextos de experiências diferentes e que, no
entanto, podem encontrar terrenos de aproximação sem invocar ‘o acordo espontâneo
dos habitus’?” (Boltanski, 2003: 163). Como pensarmos os movimentos coletivos em
torno da temática da violência em diversas metrópoles do mundo, capazes de articular
pessoas de habitus distintos em torno de uma causa comum? Como pensar o caso
(affaire) (Boltanski e Clavérie, 2007
26
), onde diferentes grupos e pessoas se mobilizam
em torno de algo comum, compartilhando posições semelhantes? Como compreender o
caso que trabalhamos, tratado no quinto capítulo, da criação de um grupo circunstancial,
quer dizer pessoas que não possuem nenhuma afinidade categorial e que diante de um
infortúnio comum, se vêem lado a lado? Não haveria nada além do acordo espontâneo,
como parece ser a atribuição feita por Bourdieu em A distinção, condicionado apenas
pela socialização em ambientes cujas condições materiais e simbólicas tiveram alguma
relação de similitude? Será que os atores estão condenados a não fazer outra coisa senão
seguir a lógica da necessidade “de atingir com o menor custo os objetivos inscritos
dentro da lógica de um certo campo?” (Bourdieu, 1980: 85).
25
No sentido Gadameriano, ver Gadamer, 2002
26
Ver Boltanski e Clavérie, 2007, sobretudo “Du monde social en tant que scène d’un procès”.
30
A relevância teórica da obra de Bourdieu é inegável e a crítica da dominação
nela presente produziu insofismáveis progressos. Especialmente no que concerne à
ampliação do conceito marxista de exploração, encharcado pelo viés economicista, em
relação ao qual Bourdieu soube ampliar as margens, forjando uma ferramenta analítica
mais poderosa, o conceito de violência simbólica, sensível não somente ao viés
econômico e a relação entre duas classes, mas extensível à dominação masculina, à
relação entre o professor e o aluno, além, evidentemente, de atingir às fantasias
intelectuais de liberdade de pensamento e das quimeras artísticas ditadas pelo famoso
chavão flaubertiano “a arte pela arte”, Bourdieu soube criar novas ferramentas analíticas
para interpretar outras tantas relações sociais. Mas o problema é que, ao estender a
dominação a todas essas relações, o sociólogo crítico esqueceu-se de refletir sobre o que
tornaria essa própria denúncia da dominação possível, olvidando que essa competência
não seria monopólio da própria sociologia, mas poderia ser encontrada nos atores do
mundo social.
Ora, se espinha dorsal da obra de Bourdieu era sua postura crítica, a qual
se manifestava sobretudo através da denúncia da dominação, sua força consistia, de
modo mais acentuado, em sua capacidade de alimentar os discursos ordinários e
informais, típicos do mundo da vida, assim como aqueles de cunho político, formais e
acadêmicos. Essa sociologia que se nutria do paradigma da suspeita, próprio ao campo
intelectual francês da segunda metade do século XX
27
, tinha como tarefa principal o
desvelamento: ao partir do pressuposto de que o discurso explicito se dá de modo
disfarçado, travestido, e que a consciência dos atores é mistificada, apenas ao sociólogo
era conferido o verdadeiro acesso às causas inconscientes. Mas, paradoxalmente, foi
devido a imersão da sociologia crítica no senso ordinário critico francês, através do qual
se podia entrever pessoas que, mesmo não tendo lido o próprio Bourdieu nem os
bourdieusianos, proferiam argumentações do tipo “fulano é um pequeno-burguês”, “o
menino não obteve êxito escolar em razão da sua origem popular”, “x vem de família
com alto capital cultural” etc, que se pode legitimamente entrever ressonâncias do
repertório crítico. Se o sucesso de Bourdieu foi maior que o de alguns de seus
contemporâneos, este se deve a capacidade com que seu pensamento conseguiu
atravessar a fronteira dos especialistas e a atingir pessoas ordinárias, invadindo o senso
comum. Por mais contra-sensual que pareça, a sociologia que promulgava, em suas
27
Para ver uma lúcida análise que articula os três principais paradigmas críticos vigentes no período
mencionado, a desconstrução de Derrida, a arqueologia de Foucault e a crítica da razão escolástica de
Bourdieu, ver Benatouil, 1999.
31
primeiras reflexões epistemológicas (Ver Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 1973), a
“ruptura epistemológica” com o senso comum, teve seu sucesso em razão da imersão
existente dentro daquele com quem ela pretendia romper.
Há que se perguntar: como entender a reação dos jornalistas às investidas de
Bourdieu ao campo jornalístico? Mera resistência, denegação, no sentido psicanalítico?
Não seria isso uma resposta fácil demais para um sociólogo cuja obra sempre enfatizou
o trabalho e a reflexividade? Ora, não é difícil perceber que as próprias críticas que
Bourdieu fez ao campo jornalístico não tinham nenhuma novidade maior, mas eram,
elas mesmas, tributárias (ainda que revestidas de uma linguagem cientificista) das
críticas que os jornalistas faziam uns aos outros. Como nota Lemieux, “o sucesso de
uma obra como Sur la télévision se deve menos, desse ponto de vista, à ruptura
epistemológica que ele faria com o senso comum que ao fato de que, bem ao contrário,
tudo o que ele diz sintoniza-se com o que dizem as pessoas ordinárias – por exemplo, as
que escrevem aos jornalistas para reclamar da televisão –, mas sob uma forma menos
reflexiva e menos instrumentalizada”. (Lemieux, 2005: 222). Sem romper nem
contrariar o senso comum jornalístico, o que a análise bourdieusiana fazia era “dizer em
outros termos, mais eruditos sem dúvida, o que dizem regularmente os jornalistas entre
eles ou quando são interrogados sobre o tipo de limites que eles encontram no exercício
de sua atividade” (Lemieux, 2005: 225), além evidentemente – e é esse o motivo pela
qual as reações eram tão fortes – de arrogar para si o direito e o monopólio de dizer a
verdade sobre os outros.
Mas o problema desse approach crítico não termina por aí. Se a princípio a
denúncia da dominação revestida pelo cientificismo aparenta não ter nada a dizer a
propósito da diminuição das desigualdades na escola, do aumento das mulheres nos
postos de trabalhos legítimos e mais reconhecidos, da autonomia do campo de produção
cultural frente às incessantes investidas do jornalismo e da mídia, isso logo se revela
inverídico. Ainda que a denúncia não diga nada explicitamente sobre se as escolas
deveriam ser mais iguais ou se a relação entre homem e mulher deveriam ser mais
equânimes, a análise crítica não deixa de ancorar-se em um ponto aparentemente
exterior, transcendente a própria teoria ou, em outras palavras, não dedutível por meio
da teoria ela mesma. Esse ponto é a normatividade (ou o valor
28
– ou ainda, a grandeza
29
28
Embora exista uma diferenciação entre norma e valor, em que a primeira estaria referida à noção de
dever, ao passo que a segunda estaria vinculada à idéia de bem, nós não fazemos a distinção por uma
razão. Para Boltanski e Thévenot, por exemplo, ambas estão vinculadas – toda norma refere-se a um valor
32
–) em que a denúncia precisa se basear para tornar-se legítima. De modo a clarificar
essa perspectiva, basta compararmos a denúncia que pretende “desvelar” as razões pelas
quais não são os sapos com mais de como seres de direito no sentido jurídico (a qual
seria absurda) com aquela cuja premissa é demonstrar os efeitos perversos de distintos
padrões de comportamento nas avaliações escolares (o que é absolutamente legítimo,
pois se baseia no princípio normativo segundo o qual as avaliações escolares devem se
basear estritamente no desempenho escolar). Tal é o impensado da teoria bourdieusiana:
ela se ancora em um princípio normativo para promover a denúncia que, sob as vestes
do cientificismo, ela pretende deixar implícito. Se isso é verdade, a “fria” e “cientifica”
análise de Bourdieu demonstra certas opções valorativas, como parece ser o caso dessa
passagem: “em razão do que você é, leitores-consumidores, eu me refiro a um certo
ideal democrático e isso me leva a usar de modo crítico minha teoria. Pois eu sei (ou eu
sinto) bem que essa referência (à democracia), e esse modo de falar da mídia
(descrevendo-a mais como lugar de censura que como meio de emancipação) são os
melhores meios de interessar um vasto público e de encontrar, em vocês, um eco e um
interesse na mídia, ela mesma”(apud cit: 220). Ora, a dependência existente de um
princípio subjacente apto a tornar a crítica legítima talvez seja um dos principais pontos
cegos da teoria bourdieusiana, explorado posteriormente pela sociologia da crítica (ver
Boltanski, 1990), cuja apresentação faremos no quarto capítulo. Cabe dizer apenas, por
ora, que uma nova agenda se abre a partir dessa nova abordagem. Não apenas no
sentido de abordar as competências axiológicas dos atores e sua capacidade de
avaliação, dando relevo às suas competência críticas, mas, além disso, abandonando a
terceira dimensão, isto é a estrutura estruturada – sem a qual a teoria de Bourdieu perde
o sentido e com a qual o indivíduo torna-se um ‘dopado cultural, para retomar a
expressão de Garfinkel –, abre-se uma via para retomada dos processos de formação da
coletividade e de construção dos horizontes públicos (Boltanski, 1984, 1990, 2007,
Cefaï, 1996, 2001, Freire, 2005), que denotam uma ontologia do social mais fluída,
aberta e ampla, além de irredutível aos efeitos de dominação.
e todo valor – se considerado a partir da Cidadela – refere-se a uma norma. Pharo, por exemplo, faz a
distinção entre norma e valor, dizendo que a primeira se refere sempre a uma dimensão prescritiva. Como
o próprio diz: “por exemplo, se um grupo considera como praticamente obrigatórias os valores de
coragem, da civilidade ou da bondade, então esses valores tornam-se normas” (Pharo, 2004: 82).
29
No sentido de Boltanski e Thévenot, 1991.
33
CAPÍTULO 3 – A ETNOMETODOLOGIA: UMA SOCIOLOGIA DAS
COMPETÊNCIAS.
No acompanhamento das ações e dos movimentos do grupo Morte por Gás
Nunca Mais (que trataremos adiante), em diversos momentos fomos levados a constatar
uma gama de competências expressas por meio das mais variadas situações e interações.
Não foram poucas vezes que ao longo de entrevistas e reuniões do grupo, os atores
foram capazes de produzir atitudes coerentes que visavam estabelecer provas de
legitimidade, de relativização (quando negociavam o sentido de forma contextual), de
desvelamento (ao revelarem as causas subjacentes aos interesses, por exemplo, da CEG)
ou de estabelecimento de novas associações entre seres heterogêneos (ao elencarem
todos os acidentes provocados pela CEG como concernente a categoria dos acidentados
que possuem direta relação com o grupo circunstancial mencionado). Por outro lado,
ainda que não devamos duvidar do fato de tais competências serem gerais, isto é
irredutíveis a um ou mais agentes específicos e bem delimitados, isso não significa, de
modo algum, por outro lado, que elas sejam e estejam disponíveis para todos os atores e
em todas as situações de modo equânime.
Os atores, uma vez deparados com as situações, possuem a capacidade de
mobilizar e remobilizar instrumentos, repertórios, dispositivos e métodos utilizados em
situações anteriores. As provas (épreuves), mobilizadas quando uma situação sai de seu
estado de rotina (justesse), isto é quando o estado de coisas sai de seu curso “natural”,
funcionam como momentos de explicitação de estados, além de funcionarem como
momentos de aprendizagem. Assim, pressupondo nos atores a capacidade (que
pretendemos demonstrar nas descrições das ações e atitudes dos membros do grupo
circunstancial estudado), uma competência para vincular os acontecimentos ordinários
às causas gerais que fundamentam nosso senso crítico, podemos dizer que é por meio
dessas ações que se funda, se mantêm e se transforma o que chamamos de senso
comum. Entendido como um “conjunto de recursos duravelmente compartilhados cuja
definição não é posta em causa a cada nova prova” (Chateauraynaud, 1991: 394), o
senso comum é revelado e constituído nesses micro-processos por meio dos quais os
indivíduos mobilizam suas competências críticas e aprendem a agir e a se orientar no
mundo.
34
Seguindo esse raciocínio e pressupondo uma série de competências
relativamente partilhadas pelos indivíduos, podemos pensar as teorias sociológicas
como formas de clarificação e sistematização das competências mobilizadas pelos
atores no curso da vida. Decerto, é possível ler algumas das recentes teorias como
formalizações sociológicas de competências gerais que, ao menos a nosso ver, não são
monopólio da sociologia, mas são os atores, eles mesmos, ainda que em graus variados,
dotados dessas capacidades (afinal, não seria sempre o sociólogo também um ator?).
Ora, se olhada desta perspectiva, o que seria a teoria de Bourdieu senão a sistematização
e aplicação exaustiva (quiçá obsessiva) da capacidade de desvelar as “reais” causas que
subjazem a superfície lisa das coisas, sistematizando e expressando, por vezes de modo
hiperbólico, a competência do desvelamento. De uma forma ou de outra, toda a teoria
de Bourdieu é voltada para a demonstração da ação de estruturas globais que estão
impressas nas coisas e nos corpos, donde os conceitos de campo e de habitus ganham
seu sentido maior. A etnometodologia, por outro lado, teria focado nas competências
das quais dispõem os agentes para, em uma situação local e específica, produzirem
arranjos, combinações, negociações rápidas e ocasionais.
Em nossa visão, a teoria pragmática francesa teria por objetivo encontrar o
caminho do meio. Tal como Bourdieu construíra, na década de 60, um caminho possível
entre o estruturalismo (ao qual o autor francês atribuía um objetivismo) e o
existencialismo de Sartre (do qual Bourdieu criticava o subjetivismo radical), Boltanski
e Thévenot intentam refazer o movimento. Do mesmo modo que, incorporando aspectos
do estruturalismo lévi-straussiano e da fenomenologia, Bourdieu construiu sua teoria
crítica da dominação, Boltanski e Thévenot tentaram forjar um caminho entre o neo-
objetivismo bourdieusiano (Peters, 2008) e a micro-sociologia de Garfinkel. Antes de
passarmos a sociologia das justificações, convém levar à cabo a leitura das duas
sociologias supra-citadas como formalizações de competências relativamente
partilhadas pelos atores no mundo.
Se existe algo que a sociologia do sociólogo francês Pierre Bourdieu soube fazer
bem, foi produzir um desvelamento da dominação nos mais variados campos. Ao se
situar no nível das estruturas de relações objetivas, a sociologia crítica soube restituir às
interações um sentido maior, o qual permitia situar de modo estrutural a posição
ocupada pelos atores e os limites de suas tomadas de posição.
Tomando como pressuposto a idéia de que as interações são mediadas por
estruturas e que, em alguma medida, existe uma correlação dialética entre um princípio
35
de inércia emanado das segundas em oposição a um princípio de transformação
irradiado pelas primeiras, Bourdieu confere preeminência, no plano das determinações,
ao reino das estruturas em contraposição ao reino das ações. É, então, por meio da
construção de uma cadeia de mediações, e através do estabelecimento de esquemas de
percepção e de avaliação incorporados e inculcados nos indivíduos, que o pensador
francês forja o conceito de habitus, construindo uma sociologia das possibilidades
perceptivas e cognitivas dos agentes situados em posições estruturalmente demarcáveis
e demarcadas. Assim, é ao modo de um neo-objetivismo que Bourdieu funda a
possibilidade do acordo e do consenso entre as pessoas. Afinal, não é senão mediante o
pré-agenciamento social dos objetos e mediante a incorporação dos esquemas
condicionados pelo e no processo de socialização que os acordos e os desacordos, as
afinidades e as repulsas são, ao menos de modo tendencial, fundados.
Embora exista um aspecto inovador na confrontação do habitus com as situações
(sobretudo quando as últimas são insólitas, obrigando o primeiro à inovação, o que
acima abordamos de forma mais aclarada), a ação importa à medida que revela uma
estrutura de relações objetivas subjacente, expressando (salvo em caso de hysterésis) a
harmonia entre as estruturas tornadas coisas e as estruturas encarnadas nos corpos, as
últimas funcionando como disposições duráveis condutoras das práticas.
O julgamento moral, a partir desse viés, nunca é tratado a partir de sua dimensão
mesma, mas é sempre ligada ao ethos, este último determinado pelas posições
restrospectivas ao longo das quais a trajetória social do indivíduo foi construída. Os
julgamentos e as ações morais dependem das estruturas objetivas, de modo que há uma
contínua redução dos julgamentos às causas exógenas; indivíduos, embora no plano das
interações possam atender as expectativas dos outros, no sentido da produção de uma
argumentação passível de ser acolhida como justa, sempre têm suas atitudes
reconduzidas aos possíveis lucros simbólicos que podem ser adquiridos por meio de sua
ação, de maneira que a moral é sempre vinculada ao campo de interesses (ainda que
esses últimos não sejam visto de forma instrumental tout court, mas olhados a partir de
uma espécie de “estratégia inconsciente” (Elster), a qual apenas o sociólogo teria
acesso). Mas o paradoxo, como vimos, a que a sociologia crítica incorria é que a
denúncia desveladora que a própria produzia acerca da dominação, pressupunha um
arcabouço normativo apto a validar suas pretensões de justiça. Ou seja: para mostrar o
quão iníquo e desigual, além de permeado pelas relações de dominação, era o universo
social, preciso era supor uma estrutura normativa que fizesse a desigualdade aparecer.
36
Em suma, criticar a desigualdade é, em alguma medida, supor, enquanto estrutura
normativa de base, uma igualdade de condições.
Ao pressupor um universo de base excessivamente ideal a partir do qual e com
base no qual toda a crítica ganha a sua dimensão maior, o modelo, que visa fundar a
objetividade global no mundo social, acaba caindo no buraco que ele próprio cavou: a
liberdade fica restrita ao aumento da margem de manobra frente às determinações por
meio do conhecimento das mesmas. Interessante é notar que, aqui, Bourdieu usa a
autoridade da ciência de nosso tempo como a forma primordial de justificação para
conhecer os determinismo que pesam sobre os agentes. À visão de que a liberdade pode
ser concebida e pensada a partir do conhecimento das determinações, Bourdieu
acrescenta um relativismo ético, uma vez que só a posição projetiva do sociólogo pode
conferir às praticas sociais seu sentido objetivo.
Nos parece mais útil do que pressupor uma incompatibilidade a priori sobre o
julgamento moral e os constrangimentos causais que pesam sobre a situação, relegando
a parte moral à dimensão propriamente privada e subjetiva, fazer um esforço teórico
para entender o que faz com que um julgamento moral, em uma dada situação, ganhe
densidade objetiva.
Assim, para Boltanski e Thévenot o julgamento moral não está ao abrigo de
qualquer determinação, nem relegado a condição de mero acaso, mas supõe, da parte do
agente, um sabedoria prática, de ordem cognitiva, acerca da situação dentro da qual ele
encontra-se engajado.
Embora isso não possa ser generalizado para todas as situações (donde se extrai
o valor heurístico do modelo dos regimes de ação (Boltanski, 1990) ou regimes de
engajamento (Thévenot, 2006), no caso em que Boltanski e Thévenot trabalham, os
constrangimentos estão ligados às exigência de uma ordem política que define
obrigações relativamente partilhadas que, se olhadas de uma perspectiva formal, podem
ser definidas a partir de uma teoria da justiça.
Mas não se pode, por essas razões apresentadas, deixar de lado o modelo
bourdieusiano. Além do aspecto acima mencionado, isto é o de por o relevo na
capacidade que os agentes possuem de produzir desvelamentos, a sociologia de
Bourdieu é bastante adequada quando queremos nos reportar aos momentos e situações
em que os atores experimentam o irreversível, o incontornável estado de coisas –
mesmo quando respeitam os constrangimentos de legitimidade, e atendem aos
imperativos de justiça; então, quando em meio a uma prova (épreuve) os atores intentam
37
forjar mecanismos de produção de objetividade, baseando-se em uma norma tomada,
pelo nosso senso ordinário de justiça, por legítima, e encontram um estado em que
existe a fixação de pessoas aos estados duráveis, eis que o modelo de Bourdieu ganha
seu sentido. Mas nos parece indubitável que o processo de construção do mundo
objetivo não advêm de uma objetividade fundada de antemão, mas que ele é um
contínuo trabalho localizado, situado, quer dizer produzido pela relação entre os seres
que constituem e povoam o mundo. Trata-se, sim, de uma negociação permanente entre
as pessoas que se encontram de modo constante imersas no trabalho de produção de
pertinência, de desvelamento, de desconstrução e de objetivação da realidade.
Quem melhor trata dessas competência é a etnometodologia, da qual convém
falarmos a propósito.
Garfinkel e a entnometodologia
Garfinkel, ex-aluno de Parsons, é o maior nome da corrente que, ao longo dos
anos oitenta, pretendeu reformular a concepção de elo social estabelecida pela
sociologia clássica, através de estudos originais.
Sem partir do pressuposto clássico estabelecido pela tradição sociológica, a qual
parte da hipótese da existência e da validade dos fatos sociais, a etnometodologia trata a
própria facticidade como resultado da atividade recorrente dos atores sociais. Os
indivíduos, em meio ao trabalho cotidiano de interpretar e dar conta do estado de coisas
por meio de raciocínios práticos e através de métodos que não possuem nenhuma
diferença de natureza daqueles métodos utilizados pelos sociólogos, tornam-se
descritíveis para análise sociológica. Nesse sentido, tanto o ator leigo quanto o
sociólogo. em alguma medida, constantemente estão voltados para o semelhante
trabalho de produção de fatos objetivos.
Se na sociologia de Bourdieu, como vimos, a adoção ao ponto de vista
objetivista implica na busca de um princípio de realidade que escapa à superfície lisa
das interações, isto é as aparências perceptíveis de modo imediato, a etnometodologia
faz a descrição das interações cotidianas dos indivíduos, o que a torna cognitivamente
possível, sendo seu foco “os procedimentos de objetivação que os atores ordinários ou
eruditos utilizam em um contexto de ação particular para agir e dar um sentido às suas
ações” (Chateauraynaud, 2001: 49). No caso da sociologia objetivista a condição de
possibilidade das interações e do consenso existente entre elas (ao menos que concerne
38
aos aspectos ligados ao conformismo lógico) estava diretamente ligada às estruturas
objetivas, as quais são tão necessárias quanto transcendentes (embora atualizadas na
situação), e ao seu estado (na maior parte das vezes) velado. A etnometodologia, ao
contrário, vai conferir à situação e às atividades práticas que se desdobram ao longo
dela, além de os arranjos locais e provisórios, o lócus privilegiado de expressão de
sentido da situação.
Se a sociologia clássica (a qual nesse sentido aproximamos de Bourdieu) tinha
como uma de suas orientações metodológicas o distanciamento para com o senso
comum, estabelecendo a ruptura epistemológica como uma das condições necessárias
para a construção do objeto de conhecimento, a etnometologia vai submergir no senso
comum, no sentido de descrever os procedimentos por meio dos quais esse se constitui
enquanto tal, sem reduzi-lo a alguma causa subjacente. Ao invés de reduzir o que
acontece a uma estrutura de relações virtuais, o sentido que é captado, para um
etnometodólogo, deve vir da ação e da situação ela mesma.
Na mesma linha da teoria de Wittgenstein, a qual atribui ao uso o principal
aspecto do ‘seguir uma regra’, Garfinkel acentua a utilização das regras em situação
como o que permite a sua determinação de sentido. Visando a exceção para demonstrar
o aspecto circunstancial das regras, Garfinkel faz experimentos em que produz uma
perturbação nas situações ordinárias, de modo a revelar e fazer aparecer os métodos de
reestabilização forjados pelos atores, os quais mostram o sentido da situação e as suas
respectivas certezas de fundo que dão à situação a aparência de natureza. Assim, por
meio dessas perturbações, Garfinkel se propõe a fazer a descrição das operações
fundamentais e basilares que visam ao restabelecimento – portanto à construção – da
ordem social. E se realmente existe alguma coisa por detrás das situações e das
interações, elas apenas se tornam acessíveis quando se manifestam através das
operações dos indivíduos, isto é, quando estes se encontram imersos nas situações em
que a reelaboração de sentido se faz necessária. Em suma, o que está atrás (se há
realmente algo!) só é passível de ser levado em consideração quando é manifesto. Nesse
quesito a etnometodologia é radical: o especialista e o leigo estão no mesmo plano,
sendo a tarefa do sociólogo descrever o conjunto de operações e raciocínios práticos
levados a cabo pelos indivíduos em situações rotineiras.
A questão torna-se dar conta de como os indivíduos dão sentido aos atos e às
ações e raciocinam em cima de situações práticas específicas. Do ponto de vista de
nosso enquadramento, que busca ao invés de jogar uma teoria contra a outra, justificar
39
sua validade relativa, a etnometodologia abrange as operações em que a situação é posta
em causa, exigindo dos indivíduos um trabalho de reparação, de restituição desse estado
de coisas abalado. É lá, quando o estoque de evidências normativas falha, quando a
situação descarrila, que a etnometodologia entra com todo seu valor heurístico: é o
trabalho de restauração da ordem, a partir do que a embaralha, aquilo do que trata seu
principal teórico. A competência, disposta de modo relativo no mundo, é mobilizada
quando há uma falha, um problema que tira do mundo seu “estado natural”.
É na falta do sentido, da evidência, do óbvio que a etnometodologia vai
descrever como os membros vão refabricar o sentido em situação, por meio das
atividades que vão enriquecer o estoque de conhecimentos e seus respectivos métodos
disponíveis. Há que se dizer que tanto o estoque quanto os métodos são precários e
constantemente reformulados.
Mas a etnometodologia, em que pese seu trabalho fundamental, não atinge os
casos em que as ordens locais e precárias atingem formas de generalidade. Pelo fato de
restringir-se ao instante e de ter uma espécie de fobia acerca do que é construído de
modo prévio, ela não consegue dar conta dos casos sob os quais incidem formas gerais
com pretensões universais.
Quem supre bem esse ponto cego da etnometologia é a teoria habermasiana do
agir comunicativo, além da economia das grandezas de Boltanski e Thévenot, a quem
convém se faz imperativo abordar.
40
CAPITULO 4 – A ECONOMIA DAS GRANDEZAS DE LUC BOLTANSKI E
LAURENT THÉVENOT
É inegável a presença da influência do modelo habermasiano para o
desenvolvimento da obra de Boltanski e Thévenot. Por essa razão, convém fazer uma
apresentação sintética do que em Habermas interessa aos sociólogos pragmáticos
franceses.
Ora, se grande problema da etnometodologia seria sua incapacidade de pensar a
possibilidade dos atores manifestarem, de modo situacional, suas pretensões de validade
universal, Habermas e sua teoria do agir comunicativo abrem uma via que permite
avançar nessa direção. No intuito de referendar essas pretensões, o filósofo alemão
estabeleceu a possibilidade do acordo a partir da realização da comunicação não
deformada por atores humanos; assim, vinculou as estruturas formais de comunicação
ao problema da fundação das normas de comportamento da ação. Renunciando ao
relativismo promovido pela etnometodologia, uma vez que essa reduzia toda concepção
e orientação ao ocasionalismo da situação singular, que para ele a condenaria a pensar o
problema do acordo como mistificação ideológica ou como valores culturais
contingentes, não estando, desta feita, apta a pensar as normas, isto é modos de ação
discursivamente baseados em uma pretensão ao universal, Habermas forjou uma teoria
que abrangesse uma racionalidade que fosse além da dimensão instrumental e do
ocasionalismo particular, de modo que, novamente, pudéssemos pensar o universalismo
das normas mediante uma comunicação circunscrita no plano intersubjetivo.
30
Não é senão visando os modos pelos quais pessoas, em contextos particulares,
constroem referências universais ou universalizáveis, permitindo assim a construção de
sua legitimidade, que Habermas produz uma crítica à racionalidade instrumental,
demonstrando como a ação racionalmente motivada depende, em larga medida, de um
processo de intercompreensão prévio. Nessa modalidade intersubjetiva do agir,
Habermas detectou o fato de os atores renunciarem ao interesse egoísta, mergulhando
na universalidade das categorias da ação e dos juízos. Três foram as formas destacadas
de pretensão ao universal: 1) a questão da verdade sobre o mundo objetivo ou do êxito
de uma ação sobre o mundo, 2) a justeza de um comportamento referido a um contexto
normativo reconhecido como legítimo e, por fim, 3) a veracidade e a autenticidade de
30
Para uma interessante crítica ao modelo habermasiano pelo viés da etnometodologia, ver Magalhães, R.
em seu sensível texto: “Ulisses e seu barco: esboço para uma crítica microssociológica à teoria crítica”.
41
uma experiência vivida. Assim, de modo complementar à questão comunicacional,
Habermas vai estabelecer a justificação (ponto sob o qual Boltanski e Thévenot se
deterão extensamente) como o que permite a intercompreensão entre os atores humanos,
uma vez que esta permite a formão de um acordo sobre a qualidade da humanidade
das pessoas. É por meio dela que se expressam nossas pretensões à verdade, à justeza
normativa e à autenticidade; é apenas quando a verdade, a justeza e a autenticidade são
invocadas pelos atores servindo de critério, de base para o estabelecimento de um
consenso, que a pretensão ao universal se realiza de modo satisfatório.
Para melhor fundamentar sua teoria, Habermas estabelece quatro conceitos
fundamentais de ação, quais sejam: o (1) agir teleológico, o qual pressupõe a
antecipação do comportamento do outro para executar a ação, o (2) agir regulado por
normas, que se caracteriza pela referência à uma ação que se justifica no seio de um
grupo social, (3) o agir dramatúrgico, no qual os agentes se apresentam levando em
consideração e formando um público e o (4) agir comunicacional, por meio do qual os
atores buscam coordenar seus planos de ação de modo consensual. Seja ao modo de
cálculos racionais voltados para o próprio beneficio do ego, seja pelo acordo integrado
pelas normas, valores e tradição ou seja, ainda, pela relação integrada produzida pelo
público e pelos que diante dele se apresentam, há sempre relações objetivadas mais ou
menos coordenadas.
Boltanski e Thévenot avançam nas teorizações de Habermas, retomando, ao
menos em parte, as modalidades de agir estabelecidas no agir regulado por normas e do
agir comunicacional, unindo ambas a partir do problema da justificação e do acordo.
Melhor dizendo, ambos os autores se perguntam como, em uma sociedade complexa
como a nossa, é possivel a temática da ordem social, quer dizer o fim do problema
hobbesiano da guerra de todos contra todos.
Pode-se circunscrever a obra de Boltanski e Thévenot no quadro de uma
sociologia moral, retomando uma discussão que, de certo modo, perpassa a sociologia
de Weber e de Durkheim. Para Durkheim a moral é tanto uma obrigação autônoma
(afinal, o fato social é exterior e coercitivo, como está nas Regras do Método
Sociológico), bem como ela é desejável, à medida que indica a possibilidade de uma
ação voltada não para o auto-interesse, mas, mais precisamente, para o bem comum.
Conjuga-se, desta feita, a autonomia da moral e a relação deontológica voltada para o
bem. Weber não passa ao largo dessa discussão, afinal faz a distinção entre ação
racional visando os fins (zweckrational) e ação racional com referência aos valores
42
(wertrational). Já Boltanski e Thévenot restringem a ação moral, quer dizer a ação
racional com vistas aos valores, às situações em que vige o imperativo de justificação.
Além disso, Durkheim sustentava a necessidade de complementar a obrigação
moral kantiana com a noção de bem, sem a qual a própria obrigação moral não teria
capacidade de motivar a agência humana – o que, em parte, é seguido pela obra dos
teóricos da justificação, como veremos adiante. E se em Durkheim o próprio fato moral
é fundado sob consciência coletiva e a sociologia é atrelada à ciência da moral, em
Weber a moral, como podemos ver na ética protestante e o espírito do capitalismo,
explica certos fatos sociais, por exemplo quando o mesmo vincula a moral protestante
aos desdobramentos do capitalismo moderno. Já os autores da sociologia pragmática
francesa abandonam a relação de determinação e passam a ter uma visada mais
empírica, descrevendo e formalizando situações em que o “fato moral”
31
torna-se
indispensável. Quer dizer, ao invés de pressupô-lo ou de colocá-lo como condição
abstrata, Boltanski e Thévenot tratam o fato moral como oriundo da confrontação do
senso reflexivo dos agentes com situações que necessitam de justificação ou objeções
externas; é na subsistência do desacordo, o ponto exato onde as virtualidades
normativas dos agentes são atualizadas em situação: eis que o modelo dos autores
franceses ganha todo seu valor heurístico.
Indo de encontro à perspectiva que denota certa arrogância epistemológica (do
tipo “Pai, perdoai os atores, eles não sabem o que falam” – peculiar à sociologia
bourdieusiana), Luc Boltanski e Laurent Thévenot, após suas respectivas pesquisas
sobre a formação dos grupos sociais (Boltanski, 1982) e das categorias sócio-
profissionais (Desrosières e Thévenot, 1988), começaram a forjar um novo paradigma
sociológico. Ao invés de construir um objeto próprio à sociologia, Boltanski e Thévenot
fizeram um trabalho conjunto de explicitação e formalização, o qual parte das situações
concretas nas quais os atores estão submetidos a um imperativo de justificação, sem que
no entanto façam uso da violência. Dos casos observados, procuraram revelar não os
atributos e características incorporadas de cada ator (origem social, espaço objetivo de
posições), mas o tipo de argumentação que eles, os atores, punham em prática quando
se empenhavam na geração de acordos, compromissos ou críticas que faziam menção a
31
Assumimos aqui a definição de fato moral estipulada por Patrick Pharo, donde é possível uma forte
associação com a sociologia de Boltanski e Thévenot: “o fato moral pode ser definido como:
- um fato que é o que é ou deveria ser outro do que é, em razão de uma virtualidade normativa
suposta comum, acessível à reflexão do agente e susceptível de justificá-lo ou de contradizê-lo;
- Sem o que o fato considerado é moralmente indiferente ou eventualmente incoercível, quer dizer
não acessível à uma regulação moral.” (Pharo, 2004: 54)
43
princípios de equivalência gerais (Cidadelas
32
), os únicos capazes de torná-los legítimos
e, por conseguinte, produzirem um consenso com certa estabilidade.
32
Como presente no dicionário Aurélio, assumimos a segunda definição como a mais aproximada do
ponto de vista semântico:
1.Fortaleza defensiva duma cidade.
2.P. ext. Lugar onde se pode estabelecer defesa.
3.Fig. Centro onde se reúnem os defensores mais ardentes de uma doutrina, ideologia, etc.:.
4.Bras. Fut. V. gol (1).
Na tradução portuguesa do livro “Les nouvelles sociologies” de Phillipe Corcuff, a palavra Cité
foi traduzida por cidade, o que, a nosso ver, não se trata da melhor tradução pelo fato de haver, em
francês, outro correspondente da palavra “cidade” que seria ville. Ademais, para além desse problema, a
palavra Cidadela capta, como pode ser visto na segunda definição do dicionário Aurélio, o sentido
proposto pelos autores.
De modo a incorporar a crítica feita por Gabriel Peters, segundo a qual a tradução por Cidade
seria a melhor, à medida em que a referência seria a concepção de Cidade antiga, o que a distinguiria de
ville, entendemos que a tradução por Cidadela permanece a melhor por uma razão simples. Os próprios
autores, Boltanski e Thévenot, optaram por traduzir Cité, em inglês, não por City, mas por Commowealth.
Creio que essa opção, por parte dos autores eles mesmos, nos indica que a tradução deve enfocar o
sentido, não a literalidade das palavras. Para além da confusão, mencionada acima, entre ville e Cité, a
palavra Cidadela, embora exista no Francês um correspondente, Citatelle, no caso do português capta
melhor o sentido proposto do que a palavra Cidade. Basta uma olhadela no dicionário para isso perceber:
Cidade
do Lat. civitates. f.,
complexo demográfico formado, social e economicamente, por uma importante concentração
populacional não agrícola, ou seja, dedicada a actividades de carácter comercial, industrial, financeiro e
cultural;
povoação de primeira categoria, de maior importância e grandeza;
habitantes dessa povoação;
a parte mais antiga ou mais central dessa povoação.
Cidade da Luz: Paris;
- dormitório: povoação situada numa área suburbana que funciona como base residencial para as pessoas
que trabalham na cidade; cidade satélite;
Cidade Eterna: Roma;
- fantasma: povoação outrora florescente mas que se encontra actualmente abandonada ou com poucos
habitantes;
Cidade Invicta: Porto;
Cidade Santa: Jerusalém ou Meca;
- universitária: conjunto de edifícios formando um complexo mais ou menos fechado onde
funcionam instituições académicas.
Fica, então, a pergunta: a partir da exposição feita, qual das definições aproxima-se mais do sentido
proposto pelos autores? Essa é a razão pela qual o autor da presente dissertação opta do Cidadela.
44
As Cidadelas
33
, espécies de metafísicas morais, são entendidas pelos autores
como gramáticas do elo político, a saber o que torna possível o acordo e, com ele, o
aplacamento do conflito. Usando as palavras de Patrick Pharo, retirando-as do contexto
em que elas foram utilizadas pelo autor, as Cidadelas, entidades morais, teriam por
função “não cria[r] um véu de ignorância, mas sobretudo desfaze[r] o véu da
desconfiança” (Pharo, 2004: 70). Essas últimas engendram princípios de equivalência
(comparação), isto é, medidas com base nas quais é possível comparar os seres entre si,
não apenas fazendo a ponte do geral e do particular, mas ordenando a realidade por
meio de categorias referentes a cada mundo categorizado pela respectiva Cidadela. A
menção ao princípio superior comum impõe sob o mundo uma ordem, com base na qual
se torna possível criar julgamentos, uma vez que, dependendo do princípio acionado, o
tamanho, o valor ou, nas palavras dos autores, a grandeza dos seres é distribuída
segundo o critério estabelecido pelo principio de equivalência geral.
Aliando essas metafísicas morais ao processo de categorização que delas
decorre, os autores descrevem a criação de um solo comum a partir do qual e com base
no qual passa a ser possível a coordenação das ações e, com elas, a produção de acordos
comuns. Com isso, Boltanski e Thévenot tornam realizável, como já mencionamos
acima, a explicação do que seria o ponto fraco da teoria do habitus, isto é, “como se
pode pensar a coordenação entre pessoas, cuja socialização realizou-se em contextos de
33
Convém nos perguntar: contra qual noção de arbitrário um argumento, fundado em uma Cidadela, se
coloca? Arbitrário aqui nos remete a noção discutida por Lévi-Strauss em seu já clássico artigo sobre a
Eficácia Simbólica. Diz-nos o antropólogo francês a respeito do ritual xamanístico: “a cura consistira,
pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito
as dores que o corpo se recusa a tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade
objetiva, não tem importância: a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita. Os
espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos, fazem
parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente os aceita, ou,
mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que ela não aceita são dores incoerentes e
arbitrárias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai
reintegrar num conjunto onde todos os elementos se apóiam mutuamente. Mas a doente, tendo
compreendido não se resigna apenas: ela sara. [...] a relação entre monstro e doença é interior a esse
mesmo espírito, consciente ou inconsciente: é uma relação de símbolo à coisa simbolizada, ou, para
empregar o vocabulário dos lingüistas, de significante a significado. O xamã fornece à sua doente uma
linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo
informuláveis. E é a passagem a esta expressão verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob uma
forma ordenada e inteligível uma experiência real, mas, sem isto, anárquica e inefável) que provoca o
desbloqueio do processo fisiológico, isto é, a reorganização num sentido favorável, da seqüência cujo
desenvolvimento a doente sofreu” (Lévi-Stauss, 1996: 228). Do mesmo modo que o ritual xamanístico
permite a criação de uma linguagem e, com isso, faz com que a paciente aceite a dor, a priori, arbitrária e
estranha ao seu próprio corpo, uma Cidadela engendra uma linguagem que permite fazer com que uma
assimetria (e o próprio poder) seja aceito pelos membros de uma coletividade. Ao menos
tendencialmente, a fundamentação em uma Cidadela é capaz de fundar um argumento e, com isso, tornar
aceitável uma relação assimétrica.
45
experiências diferentes e que, no entanto, podem encontrar terrenos de aproximação
sem invocar ‘o acordo espontâneo dos habitus’?” (Boltanski, 2003: 163).
Por isso, o ponto de partida de sua obra seminal Da justificação é a justiça, quer
dizer a pluralidade de valores (nas palavras dos autores, grandezas) capazes de sustentar
uma argumentação passível de ser considerada como justa e, com isso, não só coordenar
a ação coletiva – sem pressupor um passado inculcado que tendencialmente engendra
acordos espontâneos – bem estabelecer o acordo. Assim, a justiça
34
, desde Aristóteles
entendida como a distribuição de valores relativos entre os seres a partir de um critério
comum, é tomada como o pano de fundo do trabalho.
Com isso, partindo da hipótese de que os atores possuem um senso moral (tal
qual o senso gramatical, o qual permite distinguir os bons dos maus enunciados) que os
dota de capacidade de saber tanto proferir quanto distinguir, em uma situação ordinária,
os argumentos aptos a serem considerados justos daqueles que vão de encontro ao nosso
senso ordinário de justiça, Boltanski e Thévenot se propõem a fazer um trabalho de
clarificação e de formalização dessa competência dos atores, de modo a fazer o vai e
vem entre a empiria e os princípios que validam essas argumentações. Ao fazerem
alusão ao princípio superior comum, os agentes passam por um exame de justificação
(épreuve de justification), produzindo ou não argumentos publicamente defensáveis.
Evidencia-se, nesse processo, o fato de os agentes disporem de uma competência
comum apta a engendrar o justo através da referência a uma Cidadela “que torna
explícita as exigências a que devem satisfazer um principio superior comum, afim de
sustentar justificações” (Boltanski e Thévenot, 1991: 86) Esses princípios superiores
comuns não são senão medidas com base nas quais se pode estabelecer uma justa
proporção entre o valor das coisas e das pessoas, dando a cada o que cada um – segundo
34
Em uma entrevista a respeito do seu recém publicado livro sobre a História da Beleza, Umberto Eco
dizia que as formas de feiúra e de beleza variam ao longo do tempo. Quer dizer, cada época teria sua
própria noção do que é belo e do que não é. Entretanto, o conceito de beleza e de feiúra possuem uma
diferença para além da variabilidade histórica. Enquanto a feiúra pode ter infinitas razões, a beleza,
segundo Eco, e isso serve para todas as épocas e lugares, sempre segue uma idéia de proporção.
Boaventura de Bagnoreggio, no século XIII, já dizia que “não há beleza e deleite sem proporção”. As
formas de feiúra, embora possam variar com o tempo, elas nunca se reduzem a um conjunto mínimo de
possibilidades. A beleza, não: em razão de um imperativo de proporção, ela deve seguir sempre um
número mínimo de constrangimentos para que, dele depurado, ela possa realizar-se plenamente.
Ora, não é difícil perceber a analogia entre o conceito de beleza e o conceito de justiça; as formas
de ser injusto são infindáveis, mas para ser justo é preciso seguir um número de constrangimentos
mínimos, quer dizer uma proporção com base em um critério, premissa a partir da qual Boltanski e
Thévenot vão fundar o conceito de Cidadela. Cada um, como vimos, engendra um princípio de
comparação que vai definir o valor relativo dos seres envoltos pela e engajados na situação.
46
o critério estabelecido – merece. Isto quer dizer que todo acordo implica um julgamento
sobre pessoas e coisas e uma hierarquização do valor relativo das mesmas feitas in situ.
Dessa análise, extraíram-se seis princípios gerais, quer dizer metafísicas morais
comumente utilizadas por indivíduos ordinários para fundamentar suas respectivas
argumentações quando submetidos ao imperativo de justificação.
Para dar validade a esse princípios, os autores fizeram um mergulho na tradição
ocidental
35
e retomaram obras da filosofia política
36
que tiveram uma larga aceitação a
ponto de se tornarem canônicas. Com isso, fizeram uma triagem das obras que fundam
uma ordem de grandezas justa, baseada em um único princípio de equivalência geral.
Em outras palavras, exploraram trabalhos nos quais seus respectivos autores fizeram um
esforço de depuração de um único princípio capaz de servir de base aos elos que
estruturam o acordo e o vínculo social. Por isso, e essa é a hipótese dos sociólogos
franceses, são esses princípios, em última análise, que estruturam e servem de
fundamentação aos argumentos dos atores quando estes se encontram submetidos ao
imperativo de justificação. Assim, tomando esses autores canônicos como gramáticos
do elo político, Boltanski e Thévenot selecionaram seis princípios gerais:
35
O modelo canônico antropológico das sociedade exóticas, que por certo mostrou demonstrou a
utilidade e relevância fundamental do papel diferença para familiarizar o estranho e, conseqüentemente,
fazer estranhar o familiar, não pode ser o único meio de privilegiar a produção do conhecimento. Desde
que não estabeleçamos mais uma ruptura epistemológica entre o conhecimento erudito e o popular, pode-
se pensar a sociologia das “sociedades complexas” a partir de uma tarefa nem simples, nem menos nobre:
tomando a tradição como referencial, não mais pensando-a como portadora de preconceitos ao modo
como os iluministas a viam, mas, sim, tomá-la a partir da noção gadameriana e hermenêutica em que a
entende como um dos componentes do ato de compreensão, cria-se uma nova tarefa, que é a de traçar o
conjunto de traços pertinentes legados e herdados pela tradição. A tradição, nessa versão, deixa de ser um
conjunto de velharias em detrimento das quais é necessário buscar o novo, isto é, puro passado deixado de
lado ou mero instrumento de instauração de preconceitos negativos, e torna-se um amálgama de recursos
disponíveis com base nos quais e a partir dos quais o ato de compreensão e ação se tornam possíveis. Essa
nova modalidade de produção de conhecimento antropológico, ao reconhecer que as pessoas possuem
competências cognitivas capazes de atualizar os atributos implicados e incutidos na tradição da qual são
originarias, admite, por outro lado, o baixo grau de sistematicidade por parte dos atores no que tange suas
motivações e ações. Não quer dizer contudo que os atores não sejam conscientes do que fazem, mas
simplesmente que não sistematizam suas ações e orientações, a não ser que sejam submetidos a esse
imperativo.
36
Assim é que Boltanski define a relação da filosofia política com a sua sociologia: “a filosofia política
nos apresentava esses princípios de uma forma purificada, porque sua perspectiva é normativa. Dando-se
por objeto a utopia de um mundo justo inteiramente agenciado em torno de um princípio único, as
filosofias políticas clássicas, obra de especialistas, são, de fato, afrontadas com constrangimentos de
construção e de clarificação que não pense, no mesmo nível, sobre as pessoas que agem na prática. O
rigor lhe é necessário para convencer que, mesmo se ele for julgado, no instante, utópico, o mundo do
qual elas traçam a arquitetura é possível, quer dizer aqui logicamente possível, coerente e robusto. A
clarificação mais rigorosa é, então, necessária para fazer ver que não existe, nos recantos do modelo,
vícios escondidos, contradição interna que tornariam sua realização prática impossível” (Boltanski, 1990:
150)
47
1. Cidadela Inspirada, é construída com base na Cidade de Deus de Santo Agostinho. O
critério de valor que opera é a inspiração, a autenticidade, a criatividade;
2. Cidadela Doméstica. Baseada na obra de Bossuet “La politique tirée des propres
paroles de l’écriture sainte”, cujo valor vai ser conferido de acordo com a posição
hierárquica em uma cadeia de dependências pessoais. O que funciona é a relação de
proximidade; é o proporcional ao capital de relações pessoais;
3. Cidadela do Renome. Inspirada no Hobbes do Leviatã: o critério que confere valor às
entidades se dá apenas pela opinião dos outros, quer dizer o acordo se estabelece a partir
do crédito conferido às pessoas. Apenas isso.
4. Cidadela Cívica. É baseada no Contrato Social de Rousseau. Vai de encontro a
cadeia de dependências pessoais e depende unicamente da capacidade de uma entidade
encarnar a coletividade ou, em outros termos, representar o interesse geral;
5.Cidadela do mercado tem fulcro na Riqueza das Nações de Adam Smith, cujo elo é
estabelecido pelo preço, o qual resulta da raridade das mercadorias em confrontação
com os apetites de todos;
6. Cidadela Industrial forjada a partir de Saint Simon em seu livro O sistema industrial,
em que confere o valor das pessoas a partir do grau de eficácia.
Quando uma disputa, um litígio está submetido a um critério capaz de canalizá-
los, eis que se pode dizer se tratar de uma situação na qual vigem as provas de grandeza.
Caso o litígio não esteja à medida comum adstrito, temos uma prova de força, onde não
há nenhum critério ordenador senão a materialidade da força dos materiais em choque.
As provas são baseadas não apenas nos princípios de justiça, mas elas se validam
também no universo dos objetos. Aos argumentos é acrescentado mundos de objetos
que, uma vez ajustados à situação, conferem a ela o ar de natureza.
Por essa razão, aos trabalhos de filosofia política foram adicionados guias práticos
contemporâneos referentes a um mesmo universo, central para nossa sociedade, qual
seja: o da empresa. Cada guia faz menção aos objetos e dispositivos próprios de
Cidadelas distintas. Pois, como coloca Boltanski, “numa empresa, uma mesma pessoa
pode ter que passar, no curso de um mesmo dia, por situações de produção que relevam
uma outra natureza industrial, em uma situação onde valham as relações pessoais, por
exemplo na cantina (que revelam uma grandeza domestica), a uma situação de mercado
ou ainda uma situação sindical que revele uma natureza cívica” (Boltanski, 1990: 90).
Eis o quadro:
48
Cidadelas
Modo de
avaliação
Tipo de
informação
pertinente
Objetos
pertinen
tes
Modo de
relação
Capacida
de
Obra de
filosofia
Política
Guia
contemporâneo
Inspirada
Originalidade Singular
Corpo, ser
investido
de emoção
Paixão Criatividade
Cité de
Dieu de
Saint
Agustin
Guia de
criatividade, escrito
por um consultor
Doméstica
Reputação
Oral, exemplo,
anedota
Capital
especifico,
patrimônio
Confiança Autoridade
Politique
tirée des
propres
paroles de
l’ecriture
sainte de
Bossuet
Guia de boas
maneiras
Opinião
Difusão na
opinião
Crença Signo Comunicação Notoriedade
Léviathan
de Hobbes
Guia de relações
públicas
Cívica
Interesse geral Regulamentar Regra Solidariedade
Capacidade
de
representar o
interesse
geral
Le Contrat
Social de
Rousseau
Guia sindical
Industrial
Desempenho,
eficácia
Escrito,
mensurável,
estatístico
Objetos,
normas
técnicas,
métodos
Elo funcional
Competência
profissional
Oeuvres de
Saint-
Simon
Guia de
produtividade
Mercado
Preço, lucro Monetário
Bens e
serviços.
Trocas
Desejo,
poder de
compra
Recherce
sur la
natures et
les causes
de la
richesse
des nations
de Adam
Smith
Guia escrito por um
americano que fez
fortuna vendendo
nomes de atletas a
marcas
* (Tirado, em parte, de Nachi, 2006: 112-3)
Partindo da pressuposição de que em um horizonte de publicidade existem fortes
constrangimentos de legitimidade e de generalidade que pesam sobre os argumentos
utilizados pelas pessoas quando estas se vêem na necessidade de criticar ou justificar, os
49
autores estabeleceram seis aludidas convenções gerais que, em nossas sociedades
ocidentais, servem em geral de substrato às nossas pretensões de justiça.
Não quer dizer, todavia, que tais convenções sejam sempre articuladas de modo
claro por todo e qualquer indivíduo que tenta fundamentar sua argumentação que se
quer justa. Mas, diferentemente da sociologia crítica que não apenas arrogava para si o
monopólio da crítica bem como tratava os atores como seres desprovidos de consciência
do que faziam, a sociologia da crítica confere aos atores um potencial reflexivo: “ao
modo das regras da gramática, elas [as Cidadelas] não possuem um caráter inconsciente
no sentido em que as censuras, ligadas aos interesses ou às interdições, se oporiam à sua
explicitação por parte dos atores, mesmo se, na maior parte das situações práticas, os
atores não têm necessidade de explicitá-las e de irem até os princípios que dão sentido
às suas ações. Mas nós tratamos essa explicitação como sempre possível sob certas
pressões, quer se tratem, por exemplo, de responder à viva crítica de um adversário ou
ainda às interrogações de um entrevistador” (Boltanski, 1990: 69). Para a sociologia da
crítica, os atores não são “coitadinhos” que necessitam dos especialistas mas, assim
como os próprios sociólogos, são menos ou mais competentes para fazerem essa
remissão aos princípios que fundamentam uma argumentação passível de ser acolhida
como justa.
Para se orientarem no mundo é necessário aos atores uma capacidade de tipo
cognitivo “(capacidade de fazer comparações e de reconhecer equivalências, por
exemplo), mas eles não precisam de personalidade, entendida como um conjunto de
esquemas de resposta estabelecidos e fixados ao modo como estão os hábitos ligados ao
corpo, e que seriam próprios à guiá-los do interior e, freqüentemente, de modo
inconsciente, inspirando-lhes condutas cuja coerência seria assegurada pela repetição”.
(Boltanski, 1990: 90). A ênfase é deslocada sobretudo para “a plasticidade das pessoas
sob sua aptidão a mudar de situação e se acordar nas situações diferentes”. (Boltanski,
1990: 91).
Portanto, aos agentes é conferido uma reflexividade
37
que não os encerra nos
esquemas interiorizados que, ao modo de disposições, os impelem a agir: “em nosso
modelo, as pessoas dispõem de uma liberdade de princípio, elas não são submetidas à
37
Sem pressupor um fechamento sobre qualquer que seja o determinismo, Boltanski chega mesmo a falar
em livre-arbítrio, referindo-se à sempre presente margem de manobra dos indivíduos frente aos
constrangimentos que pesam sobre sua ação: “fechar os olhos engajando-se na natureza da situação e agir
de modo a ser o que ela é; ou, ao contrário, abrir os olhos, quer dizer, se retirar da situação e denunciá-la
considerando-a segundo uma outra natureza. É essa capacidade crítica, sempre aberta, que define o livre
arbítrio das pessoas.” (Boltanski, 1990: 94).
50
determinismos internalizados, mas a constrangimentos externos que dependem do
repertório de recursos disponíveis na situação [...] em nosso modelo, as pessoas que
mantêm sua integridade em todas as circunstâncias flertam com a anormalidade:
inscritas uma vez por todas no mundo do qual elas não podem sair e que elas
transportam, em alguma medida, com elas, elas não podem senão ser perpetuamente
tentadas a se apoiarem sobre ele para denunciar as situações agenciadas segundo os
mundos diferentes nos quais elas mergulham os acasos da vida”. (Boltanski, 1990: 91).
Assim, em Boltanski e Thévenot há um deslocamento frente à noção de
competência, distanciada tanto daquela sugerida por Bourdieu quanto daquela proposta
por Chomsky. Afastando-se de ambos, Boltanski e Thévenot enquadram sua noção de
competência na capacidade de que os agentes dispõem para produzir julgamentos
morais. Mais precisamente, o modelo alude à “competência que os atores põem em
prática quando agem concernidos pela justiça e pelos dispositivos que, na realidade,
suportam e confrontam essa competência, assegurando a ela a possibilidade de ser
eficaz”. (Boltanski, 1990: 67). Ao conferir aos agentes uma competência cognitiva
dessa ordem, Thévenot e Boltanski estabelecem e formalizam os mecanismos e
argumentos utilizados pelos atores quando, em meio a situações de disputa, procuram ir
além da particularidade da situação, se desvinculando das circunstâncias imediatas para,
destarte, mobilizarem metafísicas morais (as Cidadelas) em cuja base podem fundar um
acordo legítimo. Ora, se o falante competente é aquele cujo savoir-faire permite a
produção de frases ajustadas aos momentos adequados e, além disso, o permite
distinguir os bons enunciados daqueles incapazes de satisfazer os constrangimentos
gramaticais de uma língua, é legítimo supor que haja uma competência moral análoga, a
qual permite reconhecer uma argumentação justa daquela incapaz de atender aos
imperativos de justiça. Afinal, como dizem os atores, “para ser justo, é preciso ser capaz
de reconhecer a natureza da situação e a ela se ajustar” (Boltanski e Thévenot, 1991:
181). E ajustar-se à situação não é nada mais do que promover uma argumentação
consoante à Cidadela vigente, lançando mão dos (e apoiando-se nos) dispositivos
necessários para validar sua argumentação.
Desta feita, uma vez que ocorre um problema, uma falha, um distúrbio, a
situação não mais se mostra passível de acordo imediato, quer dizer tácito, tudo isso
produz a necessidade de novas justificações e críticas para o estabelecimento de um
novo acordo: “quando o acordo é difícil de estabelecer, as pessoas devem para realizá-
lo, clarificar suas posições de justiça, se conformar à um imperativo de justificação e,
51
para justificar, elas devem se retirar da situação imediata e ascender em generalidade
(montée en généralité). Elas se orientam, então, na direção de uma posição que se apóie
sob um princípio que vale em toda generalidade, quer dizer um princípio cuja pretensão
é conferida por uma validade universal” (Boltanski, 1990: 74).
Sem considerar a realidade fundada única e exclusivamente em relações de
força, entendidas a partir de um arbitrário instituído apenas pela imposição dos
dominantes sobre o dominados (donde o conceito de violência simbólica, em Bourdieu,
é a máxima expressão), o conceito de Cidadela foca as situações em que acordos
justificáveis e universalizáveis são capazes de resistir à denúncia, simplista, de que se
tratam simplesmente de relações de forças disfarçadas de relações de justiça
38
.
Ora, podemos elencar um número infinito de argumentos que condizem com
nossas pretensões de justiça e outros que as contrariam (fato que, no mínimo, merece
uma consideração e distinção analítica). Tal é o caso em que um funcionário de uma
empresa é demitido por incompetência e outro em que a alegação para sua demissão é
referida à sua cor da pele. Outra: um juiz que julga de acordo com a lei e outro que julga
em razão do suborno recebido alguns dias antes. Outra, ainda: um candidato que passa
em um concurso em razão das relações amistosas que possui com outros professores e
outra na qual ele, de modo notório e público, é reconhecido por seu saber. Aqueles que
vão ao encontro de nosso senso de justiça, assim são pelo simples fato de que elas se
baseiam em algum critério, aceito de modo genérico, que serve para fundar acordos
relativos em relações em que vige algum grau de assimetria e hierarquização, sem que
necessariamente sob elas estejam implicadas puras relações de arbitrariedade.
Os gráficos a seguir nos dão a dimensão das relações baseadas em força e
daquelas mediadas por um princípio de comparação capaz – senão de resolver – ao
menos reduzir o grau de arbitrariedade das relações entre as entidades. Neles, fica claro
38
Uma discussão que não avançaremos na própria dissertação, mas que se encontra subjacente à
confrontação da sociologia crítica com a sociologia pragmática francesa refere-se ao problema weberiano
da legitimidade da ordem social. Enquanto a teoria bourdieusiana pressupõe relações fundadas em uma
autoridade que é imposta por relações de força, a noção de autoridade promulgada por Boltanski e
Thévenot está mais próxima àquela de Gadamer, quando este diz que a “autoridade das pessoas não
possui seu fundamento último em um ato de submissão e de abdicação da razão, mas em um ato de
reconhecimento e de conhecimento: conhecimento de que o outro é superior em julgamento e em
perspicácia, de que, desse modo, seu julgamento é mais importante, tem preeminência sobre o nosso. Isso
está ligado ao fato de que na verdade a autoridade não é recebida, mas adquirida, e deve necessariamente
ser adquirida por quem pretende possuí-la. Ela se baseia no reconhecimento, por conseguinte, em um ato
da própria razão que, consciente de seus limites, concede a outros uma maior perspicácia. Assim
compreendida em seu verdadeiro sentido, a autoridade não tem nada a ver com obediência cega a uma
ordem dada. Não, a autoridade não possui nenhuma relação direta com a obediência: ela está diretamente
ligada ao conhecimento.” (Gadamer, 2001: 300).
52
que reduzir todas as relações a uma mesma dimensão, qual seja a meras provas de força,
torna-se, ao menos do ponto de vista analítico, um grave problema, à medida que não
permite a distinção de relações mediadas por critérios capazes de fundar uma assimetria
entre as entidades com o consentimento delas e outras que contrariam de modo
veemente suas pretensões de justiça.
* (Tirado, em parte, de Nachi, 2006)
Prova de Força (épreuve de force)
* (Tirado, em parte, de Nachi, 2006)
53
Mas é preciso melhor delimitar os constrangimentos mínimos para que uma
Cidadela seja efetivada enquanto tal. Para que uma Cidadela se realize, ela precisa se
confrontar com constrangimentos de construção de modo que a grandeza legítima possa
dar conta e subsumir a situação e os seres nela envoltos, a partir dos quais torna-se
possível definir suas respectivas grandezas relativas. Quais são, afinal, os princípios de
equivalência com validade universal que podem nortear os juízos críticos dos atores de
forma legítima, tendo como hipótese o fato de eles não variarem infinitamente, sem, por
outro lado, tomá-los a partir de um único ponto? Existe, então, uma pluralidade de
grandezas – acima elencadas –, sob as quais convém estabelecer alguns atributos
formais que incidem sobre o modelo. (1) Toda Cidadela engendra uma comum
humanidade, isto é, um conjunto de seres pertinentes, formalmente iguais, considerados
e mobilizados a partir da confrontação da competência dos atores com os dispositivos
existentes no mundo; (2) toda Cidadela opera por meio de um critério que institui uma
ordenação hierárquica entre as entidades dispostas no mundo e vinculadas na disputa.
Se a primeira funda uma igualdade entre as mesmas, esta institui uma assimetria
estabelecida pela medida induzida pela princípio de equivalência geral; (3) toda
Cidadela, de modo a resolver a tensão engendrada pela igualdade e pela ordenação
diferencial, associa a obtenção de estados superiores (proximidade com a grandeza
superior) um determinado custo, um sacrifício. Eis o que legitima e resolve a tensão; (4)
toda Cidadela justapõe à equivalência que lhe confere singularidade o bem comum,
associando aqueles que ascendem ao estado de grandeza ao benefício de todos; (5) toda
Cidadela implica um princípio de incerteza, não podendo os seres terem uma grandeza
garantida de uma vez por todas (ao modo de disposições incorporadas), não podendo
ser, então, as grandezas afixadas às entidades. Todas as entidades, em potência, podem
atingir as grandezas superiores. Como se colocou, elas ascendem ao preço de um
sacrifício; e esse sacrifício que as pode elevar ao estado de grandeza superior, supõe a
realização de provas
39
preuves), as quais podemos chamar de provas de grandeza, em
oposição à prova de força (como estabelecido no gráfico acima).
Esses axiomas formais, a que toda construção de uma Cidadela está submetida,
os quais são inerentes a sua arquitetura mesma, serve para resolver o problema entre a
comum humanidade e o princípio de diferenciação, que parece ser um desdobramento
39
Assim Boltanski nos fala da importância da conceito de prova: “É, de fato, a noção de prova que
permite articular o ideal de justiça de que as pessoas de nossas sociedade possuem um sentido, e que é
expresso na axiomática da Cidadela, com as situações de disputa em justiça, onde esse ideal é posto em
prática” (Boltanski, 1990: 97).
54
da teoria da justiça de Rawls, quando o mesmo define dois atributos de sua noção de
justiça: “em primeiro lugar: cada pessoa deve ter um direito igual no sistema mais
estendido de liberdades de base iguais para todos que seja compatível com o mesmo
sistema para os outros. Em segundo lugar: as desigualdades sociais e econômicas devem
ser organizadas de modo que ao mesmo tempo (a) se possa razoavelmente esperar que
elas sejam vantajosas para cada um e (b) que elas sejam vinculadas às posições e às
funções abertas a todos [...] Todos os valores sociais – liberdade e possibilidades
oferecidas aos indivíduos, salários e riquezas assim como as bases sociais do respeito de
si mesmo – devem ser repartidas igualmente a menos que uma repartição desigual de
um ou de todos esses valores não seja vantajoso para cada um” (Rawls, 1987: 91-3).
O injusto seria a distribuição que não poderia ser considerada como benéfica
para o conjunto dos membros da sociedade, o que é adotado pelo modelo das grandezas
de Boltanski e Thévenot. Por essa razão, o estado de grandeza não favorece apenas aos
grandes, mas aos pequenos – que também dele se beneficiam pelo fato de a “grandeza
dos grandes” gerar benefícios para o bem comum; em verdade, o grande é a encarnação
(mais próxima) do bem comum específico a uma Cidadela, o que o torna benéfico para
o bem de todos. Se antes, no marxismo (ao qual Bourdieu pode ser aproximado nesse
aspecto), a felicidade dos grandes era corolário da infelicidade dos pequenos, no modelo
das Cidadelas a felicidade dos grandes é também responsável pela felicidade dos
pequenos, porque os primeiros encarnam o bem geral e, assim, contribuem para o bem
comum.
Trata-se aí de uma retomada de uma concepção há muito deixada de lado pelas
teorias de cunho mais crítico: como pensar a associação de uma ordem legítima
enquanto encarnação de um bem comum, permitindo às pessoas, através dessa
associação (quando bem sucedida), ascenderem a um grau de generalidade, cujo efeito
seria se desvincular do caso particular e singular. A tudo o que concerne a justiça, a
harmonia, a felicidade a sociologia crítica deixaria ao largo, colocando-a sob a
responsabilidade de uma filosofia política - por ela tomada como mero idealismo
abstrato. A ela, quer dizer a sociologia crítica, só importariam leis e métodos, melhor
dizendo, tudo aquilo que pode conferir regularidade à sociedade; felicidade e vida social
harmoniosa, jamais. Entretanto, na prática nunca se fez a separação total entre uma
coisa e outra. Se a mão direita denunciava a realidade social através de uma análise que
se queria positiva, a mão esquerda utilizava-se de um ideal normativo até mesmo para
que a denúncia se tornasse possível. É, então, descrentes da possibilidade de criação de
55
uma ilha de positividade (a qual poderia ser encarada como laboratório do sociólogo
crítico), que a sociologia da crítica pensou ser preciso restituir a unidade entre fato e
valor. A crítica feita pelo sociólogo, juntamente com seus juízos emitidos a propósito de
como deve a sociedade ser, deve ser conjugada com a análise do que a torna possível,
quer dizer os valores com base nos quais essa crítica é fundamentada. Pois
“para defender ao mesmo tempo uma posição de não intervenção com relação aos
valores – que neles reconhece a relatividade – e a legitimidade de uma critica, a
sociologia [crítica] pretende, quando ela toma consciência da tensão entre essas duas
exigências, nada fazer senão opor as ‘realidades’ que desvela a ciência ao discurso que a
sociedade expressa sobre si mesma e aos seus ideais declarados, sem tomar partido pela
justiça. Mas essa posição é difícil de sustentar porque a simples descrição das
desigualdades exerce um efeito de seleção e de determinação, e que ela encerra nela
mesma uma definição vaga e implícita do que deveria ser a igualdade” (Boltanski, 1990:
52) Então, continua Boltanski, “dos que dizem como deve ser uma sociedade para ser
justa, dos que tentam esboçar um quadro de uma Cidadela justa, de uma Cidadela
harmoniosa, o sociólogo moderno, com pretensões científicas, dirá que ele faz filosofia
social, o que desqualifica o valor científico de seu trabalho”. (Boltanski, 1990: 52).
Ora, perde-se de vista tudo o que é relativo à felicidade, à vida harmoniosa,
posto que a leitura dos sociólogos será visada em sua dimensão mais relativa ao método
e à lei. O problema é que ao fazer uma ilha de positividade, onde haveria o mundo dos
fatos, sob o titulo de uma crítica social, a sociologia clássica encontrar-se-ia com a
filosofia política, exatamente ali onde ela pretendia se afastar. Se um ideal normativo é
necessário para a feitura do procedimento crítico, então que a desqualificação da
filosofia política tanto quanto os procedimentos críticos de que a sociologia se arrogava
o monopólio são, os dois, competências dispostas no mundo social, das quais fazem os
atores uso.
A tarefa que está diante do trabalho do sociólogo da crítica é mais modesta e,
digamos, mais simples: trata-se se remontar e seguir essas competências críticas
mobilizadas pelos atores até o fim; melhor dizendo, remontar os princípios nos quais
estes se baseiam de modo que se torne possível executar um trabalho de clarificação e
de sistematização dos argumentos emanados por esses atores quando submetidos ao
imperativo de justiça.
Os regimes de ação.
56
Como tentamos mostrar acima, o ponto desenvolvido pela sociologia
bourdieusiana para resolver a questão dos condicionamentos da ação é a teoria da
prática. Nela, Bourdieu pretendia dar conta da regularidade da ação, sem tratá-la como
previamente determinada nem como absolutamente genuína. Para efetivar sua
argumentação, criou um nível, o da prática, onde as contradições e as tensões do
geneticamente (ou tendencialmente) determinante e as situações em sua irredutibilidade
se resolveriam dialeticamente. O nível da prática, onde existiria esse fluxo dialético
entre as estruturas e as situações mediadas pelo habitus, seria capaz de dar conta da
ação, isto é, das determinações estruturais e das singularidades ocasionais que, por
vezes, obrigariam o próprio habitus à inovação. Não se trata aí da única forma de
abordar a teoria da ação. A idéia do regime de ação defendida por Boltanski tem como
base a seguinte intuição: não se pode derivar uma ação do passado inculcado do ator,
mas é preciso ter em conta a multiplicidade de situações em meio às quais pode o ator
se encontrar envolto. Se a teoria do habitus nos explica muito bem as propensões dos
agentes para agir de uma maneira específica no lugar de outras possíveis, ela não
explicita as diferentes modalidades de ação no interior das quais pode um mesmo agente
encontrar-se engajado.
Ao invés de reduzir tudo a um mesmo e único nível, o da prática, Boltanski
estabelece quatro regimes de ação (o de justificação, o de violência, o de ágape e o de
rotina [justesse])
40
. O escopo do autor é mostrar como os agentes, ao serem
confrontados por situações particulares, mobilizam um número de repertórios finitos
com o intuito de se ajustarem frente aos imperativos coletivos e ao mundo que diante
deles se desvela. Destarte, parte da assunção de que há uma diversidade de registros de
ação e de formas de coordenação, cada qual referida, no caso do regime de justificação,
a uma grandeza superior comum.
Como vimos, o regime de justiça pressupõe um princípio de equivalência que,
uma vez mobilizado e atualizado pela competência dos atores, serve como princípio
ordenador da realidade, destacando objetos cuja pertinência não pode ser ignorada, pois
são eles que suportam, constrangem e dão validade às nossas pretensões de justiça.
40
Assim define Boltanski:: “A disputa em justiça, referida ao que faz equivalência, corresponde um
regime de paz igualmente sob equivalência, ao qual nós chamamos rotina. É a impossibilidade de
convergir na direção de um princípio de equivalência que diferencia a disputa em violência da disputa em
justiça. Mas a violência não é o único modo que ignora a equivalência. Nós visaremos, de fato, a
possibilidade de um outro regime, igualmente desvinculado da equivalência, e que é dessa vez um regime
de paz: o do amor como ágape”. (Boltanski, 1990: 110-111).
57
Avançando nessa perspectiva, podemos pensar o regime de rotina (justesse) onde as
equivalências operam de modo tácito, sem que sejam a todo momento recolocadas em
jogo. Nas palavras do autor:
“A possibilidade de uma equivalência tácita é decerto
considerada no modelo da economia das grandezas, onde ela é suportada pela relação
entre justiça e rotina (justesse). Mas nós pensamos que é necessário melhor distinguir
essas duas formas de realizar a equivalência a fim de tornar mais aparente a mudança
completa de regime que se opera quando se passa de situações pacíficas, onde as
pessoas se dobram às equivalências tacitamente inscritas nas coisas que as envolvem, às
situações em que elas revelam essas equivalências e as tomam como objeto de suas
disputas. A um regime de disputa em justiça, nós oporemos, pois, primeiramente, um
regime de paz em justiça” (Boltanski, 1990: 112).
Convém mencionar que também existe dois outros modos de ação que estão
envoltos pela contingência, quer dizer pela ausência de equivalência, de medida e de
ordem. Nesse caso, tratam-se dos regimes de violência e de amor - como agapè. De
modo a melhor articular os regimes, acrescentamos um outro eixo, que os define através
das relações em disputa e das relações em paz. Temos, então, nas relações perpassadas
pela disputa, o regime de violência e o regime de justiça e, no outro lado, relações
fundadas na paz, que são os regimes de rotina e de ágape. Dessa correlação, é possível
esboçar o seguinte quadro:
58
A disputa em justiça estabelece relações fundadas a partir de uma grandeza que
engendra, sobre uma dada situação, o valor relativo dos seres nela presentes e
pertinentes. Trata-se de uma disputa submetida a uma medida, a qual podemos chamar
de prova de grandeza. Já o regime de violência não conta com a possibilidade de
convergir na direção de um princípio de equivalência: os seres se medem uns aos outros
através de resistências materiais, puramente submetidas à ordem da contingência, e não
através da confrontação de entidades metafísicas e virtuais atualizadas no discurso dos
agentes. O mesmo serve para definir as relações fundadas no amor como ágape, no
sentido em que, nelas, as equivalências são postas de lado.
Embora importe mais para a análise sociológica as passagens, e não os estados
em si, convém abordar de forma mais detida cada estado a partir dos atributos que lhes
são peculiares.
Regime de rotina (jutesse)
Nessa modalidade de relação entre os seres prevalecem as condutas humanas
regidas pelo hábito e pelo funcionamento padronizado dos objetos. A lógica operante
não é a da transformação, mas da manutenção dos elos e das interações. As
59
equivalências, as medidas estão encarnadas nos sujeitos e nos objetos de modo tácito,
quer dizer implícito. Da mesma forma, há um acordo implícito a propósito da grandeza
relativa dos seres, o qual engendra a sensação de segurança ontológica: os objetos e os
atores, isto é, os actantes estão em plena harmonia.
A configuração emanada do mundo tende a ser dóxica, pré-reflexiva, de modo que
o fluxo se assemelha com a natureza das coisas. A ênfase temporal é dada ao presente
imediato, de modo que as expectativas subjetivas - corporais - estão em plena correlação
e ajuste com as condições objetivas. Os objetos e os sujeitos estão costurados em um
plano de imanência comum, a partir do qual tornam-se, desde que olhados dentro do
registro do regime, indiscerníveis. Sujeito e objeto, uma vez harmonizados, tornam-se (e
diluem-se em) apenas um ambiente,
Sendo a rotina entendida como um “conjunto de procedimentos de resolução de
problemas, que são táticos e econômicos, flexíveis e evolutivos, sensíveis à prática e
que se adaptam às circunstancias e às mudanças de situação” (Ogien e Queré, 2005:
111), pode-se entender o regime rotina como sendo, do ponto de vista situacional, o
momento no qual um critério vige de forma inquestionada. Não é senão operando nesse
registro que é permitido aos atores estarem mergulhados em suas respectivas tarefas,
sem pensarem a propósito da finalidade de suas ações.
O hábito é um outro grande operador desse regime pragmático. Esse “grande guia
da vida humana”, como dizia Hume, é o que prevalece se nos ativermos aos sujeitos.
Mas é preciso aqui distinguir o hábito em termos de habitus, cuja ênfase, nesse último, é
conferida à abordagem disposicional, quer dizer ao conjunto de repertórios potenciais
inculcados que, diante de determinados estímulos, são atualizados na situação. Assim,
confrontando abordagem em que as potencialidades implícitas pedem apenas por um
estímulo externo para serem atualizadas, como a de Bourdieu, com as competências
tornadas descritíveis através da análise dos regimes pragmáticos, de Boltanski, pode-se
dizer que a última faz usufruto do conceito de hábito próximo àquele tratado por
Wittgenstein e Dewey, onde o que prevalece não são as potencialidades latentes, mas as
capacidades abertas e criativas, irredutíveis às propensões. Tratam-se de modos
artesanais de agir que requerem habilidade e destreza. Não existe aqui correlação entre
disposições e estruturas objetivas do mundo social; menos ainda um foco na inculcação,
repetição, adestramento, aquisição de automatismos, mas o ponto de convergência é
dado pelos “agenciamentos experimentados, organizações estabilizadas de respostas ou
‘modos organizados de fazer’” (Ogien e Queré, 2005: 48). A competência não remete
60
ao princípio de inércia construído nas e pelas experiências passadas, mas sobretudo à
descoberta de modos de preceder, de se agenciar aptos a garantirem uma estabilidade à
situação, a ponto de produzirem uma espécie de integralidade entre o organismo físico
do ator e os dispositivos materiais do ambiente. É justo nesse ponto, quer dizer onde o
organismo coaduna-se com o ambiente, que a configuração de uma natureza é possível.
A fila é um ótimo exemplo da vigência desse regime. Em geral, existe uma
configuração de objetos que permite aos sujeitos saberem onde se colocar; a ordem
estabelecida é sabida, em geral, por todos: a ordem de chegada. Mas pode haver algum
desrespeito a ordem, algum problema (trouble) o que decerto terá como conseqüência a
transição de regime; se tudo estava até então operando segundo uma ordem natural, uma
vez mudado o estado de coisas, e uma vez quebrada a sua naturalidade, um outro regime
se faz necessário. Eis que ocorre a passagem: saímos do regime de rotina e entramos no
regime de justiça.
Regime de Justiça
Em seu viés ordinário, o mundo nos parece irreversível. Com seus objetos
estabilizados, com suas entidades ajustadas à situação, tudo se passa segundo a
configuração de uma natureza. É apenas quando um problema, um desajuste, um
defeito, uma incoerência, uma crise ocorrem que os atores se põem sob o trabalho de
qualificação da perturbação, intentando devolver ao mundo a ordem que lhe foi retirada.
A partir daí faz-se necessário um trabalho de justificação, buscando o reengendramento
de uma medida que recondicione a situação à sua condição “natural”.
A vantagem epistemológica de focar a análise nos momentos em que vige essa
crise (donde é inegável a influência da etnometodologia), acompanhando o trabalho dos
atores de identificação da fonte da perturbação, é que ele nos informa bastante sobre a
situação, sem que dela precisemos, de antemão, ter algum conhecimento aprofundado.
Em termos pragmáticos, é por meio desse trabalho que podemos ter um conhecimento
acerca do que se passa nas realizações práticas dos atores, quando estes encontram-se
engajados no cumprimento de um objetivo, quer dizer, no nosso caso de análise, na
produção de acordos relativos passíveis de serem considerados como justos e legítimos.
Afinal, pensemos: haverá outro momento melhor para entender o que e no que
nossos acordos se fundamentam senão naqueles em que os atores, deparados com um
problema, se põem sob o trabalho de restituir a ordem das coisas? Como pensar a justiça
61
senão a partir dos momentos em que o sentimento de injustiça se mostra em seu
máximo vigor? É a partir desse pressuposto que o regime de justiça se encontra
definido: saber como os atores elaboram seu conceito de justiça é, mais do que isso,
entender de que modo e de que forma eles se confrontam com situações injustas, de
modo, com isso, a mobilizarem seu senso de justiça.
Se no regime de rotina os objetos e os atores tornam-se indiscerníveis, quer dizer
amalgamados sob um bloco amorfo (uma vez que ambos estão integrados a uma
dimensão maior, que é o ambiente), no regime de justiça a distinção torna-se radical,
dado que cada Cidadela, uma vez mobilizada pela competência dos atores, não apenas
fundamenta uma argumentação, bem como engendra sobre o mundo uma categorização,
dispondo sobre eles os sujeitos e objetos pertinentes. Sendo a categorização entendida
como uma estruturação qualitativa de um domínio ou um espaço, nele introduzindo uma
ordem que diferencia e organiza posições relacionais, os atores, de acordo com a
Cidadela mobilizada, produzem a criação de um espaço de pertinência, separando os
sujeitos dos objetos, de modo que cada qual, segundo o princípio de equivalência
mobilizado, ganhe seu peso relativo.
Mais do que isso, no regime de justiça os atores se fazem porta-voz uns dos
outros e dos próprios objetos. Ora, se um ator se põe a criticar ou a justificar o estado de
coisas, seja a ação de um outro ator ou mesmo o desempenho de um objeto, ele se
coloca como o “sujeito do suposto saber” e arroga para si o direito de falar em nome da
pessoa, do objeto ou da situação da qual ele faz um relato. Afinal, “criticar, ou seja,
contestar o estado de grandezas é, decididamente, reclamar que os objetos mudem de
mão”. (Boltanski, 1990: 113). Em outras palavras, “dizer que as pessoas contestam a
atribuição dos computadores, da Legião de honra ou de títulos escolares, é dizer
também que elas se fazem porta-vozes desses objetos materiais ou imateriais quando o
retorno à rotina reclama uma mudança de suas afetações. Nessas disputas, as pessoas
não falam jamais de si mesmas apenas. Elas se fazem, em primeiro lugar, as porta-vozes
das coisas que, pela sua boca, exigem mudar de mão para que, a justiça uma vez
satisfeita, a rotina silenciosa das pessoas e das coisas possam de novo se instaurar.”
(Boltanski, 1990: 114)
Quando as pessoas se colocam como porta-vozes de algo que não a si mesmas,
elas, de certo modo, operam uma ascensão em generalidade, no sentido em que saem do
particularismo da situação e buscam encarnar em si alguma coisa para além delas
mesmas. Assim ocorria na análise das cartas analisadas por Boltanski em seu artigo
62
sobre a denúncia, que está na terceira parte de Amor e a Justiça como competências, no
qual analisa cartas em que pessoas, de modo a promoverem suas respectivas denúncias,
se tornam porta-vozes de entidades coletivas com o intuito de se de-singularizarem.
Falar em nome de outros – sejam entidades singulares ou coletivas – é engrandecer-se, e
é também fazer com que seu argumento seja válido para outras pessoas que não si
mesmo.
Esse regime, focado ao longo do livro Da justificação, enfoca as situações nas
quais os indivíduos encontram-se submetidos aos imperativos de justificação.
Para além da possibilidade de passar do regime de rotina para o de justiça, é
possível passarmos do regime de justiça (e também do regime de rotina) para o regime
de violência, onde as equivalências (as medidas e os critérios) encontram-se ausentes.
Convém abordá-lo, então.
Regime de violência
O regime de ação que podemos chamar de violento, refere-se ao momento em que
o problema ocorre e não há mais medida que possa mensurar a situação. Exemplo:
estamos em um automóvel em uma estrada: até aí vige o regime de rotina. De repente,
uma derrapagem, um problema, e pronto: um acidente acontece. Quem já viveu um
acidente com relativa gravidade sabe que, por alguns momentos, não se sabe ao certo o
que exatamente aconteceu. Primeiro, mexe-se o corpo, depois, se possível, sai-se do
carro de modo a ver o que ocorreu. Aí, sim, em um segundo momento, liga-se para a
seguradora, médico, apenas quando o estado de coisas foi minimamente mensurado.
Outro exemplo é o momento em que, em meio a uma disputa, alguém resolve ir além
dos critérios de argumentação e desfere um golpe físico contra a outra parte. É a
passagem, a transição, mais precisamente o ir além das bordas das medidas vigentes, o
que caracteriza esse regime.
É absolutamente necessário deixar claro que violência aqui não está referida ao
sentido usual do termo, quer dizer ao emprego de força física. Violência aqui se refere
ao momento crítico em que a equivalência antiga já não mais está operante sem que, por
outro lado, uma nova não tenha sido recolocada.
O que funciona, em um momento que transcende os critérios, são as relações de
força em choque. Não há mais equivalência nem critério que estabelece vínculo entre os
seres. Não há mais grandeza vigente e não há mensuração das forças: há apenas o
63
resultado do choque.
“Os choques em estado de violência, quer dizer também as pessoas quando elas estão
no estado de violência, não são mais coisas humanas, estabilizadas por sua associação
com os homens, mas seres da natureza, forças da natureza. Desde então, elas se
revelam estrangeiras e desconhecidas. Não se sabe de que são feitos, o que querem,
quem as habita ou as domina, nem até onde elas podem ir” (Boltanski, 1990: 115).
Tudo é reduzido ao seu estado de materialidade pura: o imperativo de justificação,
embora permaneça sempre no horizonte (após um acidente, caso as pessoas envolvidas
estejam em condições físicas de fazê-lo, decerto cairão no regime de justiça para provar
de quem foi a responsabilidade pelo acidente), é suspenso. Reina a instabilidade e
ausência de equivalência.
Retomando a reflexão de Victor Turner (apesar de Boltanski não avançar nesse
sentido), entendo que o estado de violência pode ser aproximado do conceito de
liminaridade. Diz Turner que “é como se houvesse dois modelos principais de
correlacionamento humano, justapostos e alternantes. O primeiro é o da sociedade
tomada como um
sistema estruturado (...). O segundo (...) é o da sociedade considerada
como
comunitas não estruturada, ou rudimentarmente estruturada e relativamente
indiferenciada, uma comunidade ou mesmo comunhão, de indivíduos iguais que se
submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos rituais” (Turner, 1974:119).
Adaptando a comunitas, esse estado de indiferenciação, a redução ao estado material,
podemos dizer que a violência é o fluxo aberto, o devir, o plano de imanência liberto de
qualquer estado de diferenciação (seja homem, coisa, etc). É tudo força, potência,
choque. Trata-se de uma noção aproximada, do ponto de vista ontológico, ao que Latour
estabelece em seu famoso capítulo chamado Irreduções: “(Não há senão) provas (de
força ou de fraqueza). Ou mais simplesmente ainda: provas. Tal é o ponto de partida,
um verbo, provar.” (Latour, 2001: 243).
Mas essa não é a única forma de se pensar as relações fora das equivalências e das
medidas. Há outros modos de se pensar uma interação sem passar por um critério de
diferenciação. Aí entra o valor heurístico do modelo do ágape, sobre o qual falaremos a
seguir.
Regime de ágape (amor).
Luc Boltanski se coloca o seguinte problema: é possível pensar uma relação que
64
vá além das equivalências sem que, por outro lado, seja redutível a pura relações de
forças em choque? Ora, pensemos com o exemplo acima, o do acidente de carro: o que
ocorre se, ambos os motoristas em bom estado, saiam para discutir de quem foi a culpa
pelo acidente. Um deles, que foi sem sombra de dúvida o responsável pelo acidente,
encontra-se embriagado. Se um motorista alega que seu estado de embriaguez se deu em
razão da descoberta de que seu filho estava com câncer e de que sua esposa, após ter
sabido da notícia, acabara de cometer suicídio, e o outro aceita o que foi dito e o deixa ir
embora: passamos do regime de justiça para o de amor como ágape.
“Inteiramente construído sob a noção da dádiva” (Boltanski, 1990: 171), o
sociólogo francês extrai da tradição teológica uma noção de amor, oriunda da Grécia
antiga, na qual havia uma distinção entre três palavras que indicavam distintas
modalidades desse conceito. Amor como eros (fundado sobre a idéia de que a
completude está no outro), como philia (que pressupõe uma relação de reciprocidade) e
como ágape, que na tradição cristã foi traduzido pelo termo charitas, quer dizer
caridade no sentido de um ato de dar que pressupõe a ausência de cálculo e de retorno.
É a dádiva radical: “o ágape, definido pela dádiva, não espera retorno, nem sob a forma
de objetos, nem mesmo sob a espécie imaterial de amor em retorno. A dádiva do ágape
ignora a contra-dádiva” (Boltanski, 1990: 173).
O modo de relação estabelecido entre pessoas não é mediado por equivalência
alguma. Se no regime de violência tudo é redutível à materialidade das coisas, no
regime de ágape tudo é ampliado à sua condição humana: “as pessoas podem aparecer
descartando a equivalência por que elas descartam também de seu mundo a importância
das coisas” (Boltanski, 1990: 114). Aqui só importam os sujeitos enquanto passíveis de
serem considerados em sua dimensão ideal. É esse gênero de acordo, o qual pressupõe o
ir além das equivalências e medidas, que caracteriza as relações norteadas pelo amor,
mais precisamente o amor como ágape. Esse estado pode ser vislumbrado, sobretudo,
nas relações de amor filial, conjugal ou de amizade; nelas, não é incomum situações nas
quais as pessoas não pressupõem retorno, cálculo e fundam sua ação na crença
incondicional: “o ágape não questiona, dado que ele em tudo crê” (Boltanski, 1990:
114).
O regime de ágape tem como um referente um mundo em que as equivalências
não mais existem, onde não vigoram senão as ações desinteressadas e em que as coisas
são descartadas. Mas não significa que um objeto não pode ser investido desse regime
de ação – ou, nas palavras de Schütz, desse estilo cognitivo. Uma obra de arte, um
65
objeto guardado da infância, um objeto sagrado, tudo isso pode ser objeto de
investimento afetivo. A questão não é se se trata ou não de um objeto, mas qual é o tipo
de relação que se tem para com ele. Da mesma forma que tudo no regime de violência é
redutível a relações materiais (inclusive os corpos e os homens) entre potências, no
ágape tudo é ampliado às condições humanas, inclusive os objetos. Pode-se aproximar
essa abordagem a de Viveiros de Castro (2002), quando este trabalha sobre a noção de
perspectivismo ameríndio, em que, partindo da cosmologia Araweté, todos os animais
têm uma origem humana comum, o que contraria nossa cosmologia naturalista, onde
todos os humanos tem uma origem animal comum. Daí porque, segundo o antropólogo
brasileiro, pode-se dizer que, embora humanos, temos uma animalidade, bem como para
os índios, os animais, embora animais, tem uma humanidade comum. O mesmo pode
ser pensado com relação aos regimes: ainda que saibamos se tratarem de humanos, uma
vez no regime de violência, todos estão redutíveis à condição de objetos. No ágape,
prevalece o inverso simétrico: embora objetos, todos possuem uma comum
humanidade, isto é, passividade com relação aos investimentos e identificações
humanas. Em poucas palavras, segundo o modelo de Philippe Descola (2005), no
aspecto que destacamos, bastante próximo àquele de Viveiros de Castro, em ágape
somos todos animistas.
Mas é preciso separar o ágape em estado puro, tal como descrito pela teologia
cristã, e o ágape confrontado com os imperativos urgenciais próprios à realidade, que
evidentemente implicam adaptações. Para que o conceito se torne operacionalizável
sociologicamente, convém fazer as seguintes distinções:
Ágape na realidade:
1. Vínculo definido como natural;
2. Enraizamento no biológico;
3. Desejo de possessão;
4. Sublimação;
5. Reciprocidade
Ágape Puro:
1. Abertura ao outro, impessoal;
2. Recusa do julgamento, da comparação e da equivalência;
66
3. Silêncio dos desejos;
4. Ausência de antecipação na interação;
5. Sacrifício do futuro e do passado.
(Tirado, em parte, de Nachi, 2006)
Assim, pode-se dizer que, como vimos, no regime de rotina todas as entidades
estão redutíveis ao ambiente, sendo indiscerníveis; já no regime de justiça, as distinções
são rígidas e firmes, de modo que, dependendo dos seres pertinentes mobilizados, cada
um ganha seu peso relativo; no caso do regime de violência, tudo é reduzido ao seu
estado de coisa, onde não importam senão os corpos reduzidos à condição material; por
fim, no caso do ágape, tudo é colocado em sua dimensão humana, onde vigem as
relações norteadas pela dádiva. Em poucas palavras, no ágape tudo é passível de
apreensão antropomórfica.
Esboço de uma sociologia pós-social.
Boltanski e Thévenot abandonam a terceira dimensão (a estrutura estruturada da
sociologia clássica) em prol de uma via de mão dupla entre o singular e o geral, o
particular e o coletivo, deixando de lado o social das alturas para, a partir das situações
concretas, vislumbrarem os processos de de-singularização dos quais os agentes lançam
mão quando se encontram mergulhados em situações de conflito, disputa e denúncia –
sem o emprego da violência física, moral ou simbólica – e apontam, destarte, para o
social em curso de edificação. Não há social prévio, uma estrutura anterior capaz de
estabelecer as possíveis tomadas de posição dos agentes; pelo contrário, e essa é a razão
pela qual a primeira parte do livro O amor e a justiça como competências chama-se “do
que as pessoas são capazes”, jamais uma ação pode ser definida previamente, pois o
sociólogo jamais pode reduzir os aspectos reflexivos e criativos do agente, em razão da
pluralidade de mundos possíveis e passíveis de serem agenciados. Neste aspecto, o
social não é nem o sagrado durkheimiano nem a estrutura estruturada incorporada, mas
um processo de deslizamento constante que se faz nas interações em meio as quais os
agentes, fazendo uso de suas competências, se encontram imersos: “ao invés de se
pressupor coletivos já constituídos e, de algum modo, já prontos para o uso, pode-se,
67
então, apreender as operações de construção dos coletivos, examinando a formação de
causas coletivas, ou seja a dinâmica da ação política.” (Boltanski, 1990: 23).
Da primeira intuição original já presente no artigo sobre a denúncia pública (ver
Boltanski, 1984), onde Boltanski se perguntava sobre os constrangimentos mínimos a
serem respeitados para que se efetivasse o processo de ascensão em generalidade
(montée en généralité) (isto é, o processo pelo qual o ator consegue transcender o caso
particular dentro do qual se encontra e, assim, torna-o não somente válido para todos os
casos semelhantes, bem como digno representante de um bem superior comum
compartilhado), os autores da sociologia pragmática dão um passo além no livro Da
justificação. Dos eixos particular-geral, proximidade-alteridade, presente no artigo da
denunciação, onde se via a formação de coletivos via processo de de-singularização
existente nas cartas mais bem avaliadas pelo júri (de fato, pessoas comuns que se
puseram a lê-las e a avaliar o senso de normalidade nelas presente), derivou-se o
preceito da pluralidade de grandezas possíveis, estabelecendo com isso outros mundos
igualmente plausíveis, com base nos quais se é permitido fazer a ponte entre o particular
e o geral – isto é, de edificar o social –, cada qual correspondendo a uma Cidadela
respectiva
41
. Cada Cidadela, como vimos, pressupõe uma pluralidade de ordens de
realidade distintas, agenciadas pelos agentes competentes nos momentos apropriados.
Com isso, na esteira desse desenvolvimento posterior presente em Da Justificação, os
sociólogos pragmáticos fizeram uma imersão nas obras canônicas de nossa tradição a
partir das obras de filosofia política nas quais se encontra a explicitação longa e
minuciosa de um modo particular e singular da construção do coletivo, tratando-os
como gramáticos do vínculo social.
Recapitulando: cada Cidadela representa um modo de estabelecer um vínculo
entre pessoas por meio da alusão a um princípio de equivalência geral, próprio a cada
uma, com base no qual os seres são postos em correlação. Cada uma delas pode ser
caracterizada por ser dotada de um bem comum superior particular, dando ensejo a uma
lógica de justificação mobilizável em situações particulares. A equivalência serve como
critério de comparação a partir do qual se dá a distribuição relativa dos seres e de suas
respectivas qualidades. Admite-se, desse modo, que um homem bem sucedido no
41
Como bem colocam os autores: “O modelo da Cidadela permite, pela construção de uma ordem em
torno de um bem comum, a redução de outros princípios. Ainda que o modelo da Cidadela não faça
referência senão a um só princípio de justificação, ele é uma resposta à multiplicidade sem os quais o
mundo seria um éden, e ele deixa aberta a possibilidade dessa multiplicidade assegurando a primazia de
um único. A redução da pluralidade dos bens se opera pela construção de uma ordem entre eles, o inferior
sendo tratado como um bem particular”. (Boltanski e Thévenot, 1991: 101).
68
trabalho possa ser um pai de família terrível e um péssimo cidadão, não havendo
necessariamente uma estrutura social prévia que, diante da posição ocupada pelo agente
(seja no mercado de trabalho ou na escala social), o transforme em cidadão digno ou
sub-cidadão.
Nessa linha de argumentação, a tarefa do sociólogo não é pressupor um coletivo
preexistente, menos ainda observar de que modo este coletivo objetivo se inculca, pouco
a pouco, em um agente que passa a reproduzir esse mesmo coletivo do qual ele é
resultado, mas relatar o modo pelo qual as pessoas confeccionam causas coletivas,
passando do singular ao geral e, nesse processo, tecem o liame instável e nem sempre
duradouro que possibilita sair de si, atingindo os pontos que costuram o próprio fluxo
do social. Desse modo, a idéia é a de “reconstituir a competência à qual os atores podem
ter acesso para produzir, nas situações determinadas, argumentos aceitáveis pelos
outros, ou, de outro modo, convincentes, ou seja argumentos capazes de sustentar uma
pretensão à legitimidade e dotados também de um grau elevado de objetividade e, com
isso, de universalidade”. (Boltanski, 1990: 1). E se é verdade, como acima se disse, que
uma grandeza não pode ser afixada aos atores, isto significa que eles devem mostrar sua
grandeza, sua capacidade ao longo de testes, provas (épreuves), as quais confirmam ou
não o seu estado de grandeza. Se no mundo bourdieusiano o agente era dotado de uma
grandeza inerente, oriunda da posição por ele ocupada no espaço social, o mundo de
Boltanski e Thévenot é tanto mais incerto quanto mais atento às mudanças: se alguém
se diz, como é um dos exemplos dados por Boltanski, filho de uma figura pública ou
ilustre, há uma série de dispositivos e verificações que precisam ser acionados, como o
exame de DNA, a árvore genealógica da família, etc. Pode existir, depois disso, uma
duração maior: não é a todo momento que as provas existem e são requisitadas;
entretanto, quando uma crítica é instaurada, o estado volta a pedir a necessidade de uma
nova prova e exame: a caixa-preta (Latour, 2000) se reabre; caso o agente envolvido
obtenha sucesso, há uma ratificação da sua grandeza; caso o resultado seja negativo,
novos testes são acionados. A posição nunca é adquirida, mas sempre relativa a uma
situação e a um estado de coisas.
O consenso não é mais tributário de uma estrutura estruturada permeada por
relações de violência dissimulada, mas resultado de (inter)ações que fazem apelo aos
princípios superiores. Com isso não se quer dizer, contudo, que cada um dos homens
comuns que empregam uma justificação específica conheça as obras de filosofia política
citadas pelos autores e, conseqüentemente, utilizem os princípios nelas desenvolvidos.
69
Nada disso: cada uma dessas Cidadelas possui um mundo comum a ela inerente, um
conjunto de seres a elas vinculados, que torna possível a ligação entre tais princípios e
as ações práticas existentes no fluxo do dia a dia. Portanto, quando postos em situações
em que o emprego de uma justificação se faz necessário, os agentes põem em marcha as
competências cognitivas próprias ao mundo e ao modelo de justiça a ele intrínseco. Nas
palavras dos autores : “em uma sociedade diferenciada, cada pessoa deve afrontar
quotidianamente situações que revelam mundos distintos, deve saber reconhecê-las e se
mostrar capazes de a elas se ajustar” (Boltanski e Thévenot, 1990: 266).
Para agirem, os agentes devem por em operação uma classificação e, desta feita,
clamar pela intervenção de uma transcendência categorizante para, enfim, produzirem
uma distribuição de grandezas entre os seres dispostos na situação com vistas a
produção de um acordo justo. Se em Bourdieu há uma estrutura estruturada que (pré)
dispõe um mundo categorizado de modo preliminar (ainda que essa categorização seja,
em si mesma, um objeto de disputa), no caso de Boltanski e Thévenot ela ocorre no
processo de interação mesmo e pressupõe, ao menos, seis mundos (se não contarmos
com a Cidadela por Projetos promulgada no Novo espírito do capitalismo, que não será
tratada aqui) distintos, que permitem a feitura de diferentes categorizações
42
. Afinal, a
competência moral das quais os atores dispõem supõe uma capacidade de categorização
não como uma faculdade kantiana a priori, mas como possibilidade empírica de operar
aproximações que são pertinentes. Ora, para a ocorrência de uma crítica é preciso que
haja uma pluralidade de mundos e, por conseguinte, várias categorizações possíveis,
uma vez que a mesma pode trazer seres de outros mundos para, assim, propiciar a
feitura de um desvelamento. Nas palavras dos autores: “um modelo com vários mundos
dá aos atores a possibilidade de se subtrair à prova e, apoiando-se em um princípio
exterior, contestar sua validade ou mesmo retornar à situação lançando mão de uma
prova válida em um mundo diferente” (Boltanski e Thévenot, 1990: 267).
A idéia explorada pelos defensores da sociologia pragmática é a de que sempre
há nos exames de grandeza (épreuves de grandeur) (isto é, o momento em que se
instaura uma crítica e a justificação se faz necessária) uma base normativa. E desse
modo a compreensão da crítica se encontra reconfigurada. Na via proposta por
Boltanski e Thévenot, o que ela, a crítica, põe em jogo não é senão outra categorização
possível, através de outro princípio superior comum ou, se este não for o caso, esta
42
“Considerar-se-á que essas grandezas estão inscritas, estocadas nas situações, e que elas assim o são
precisamente pelo intermédio dos objetos”. (Boltanski, 2005: 7).
70
incide diretamente sob as condições insatisfatórias que indicam a razão pela qual o
princípio estabelecido não foi adotado ou realizado corretamente.
Assim sendo, esses princípios de equivalência geral, espécies de gramáticas
“entendidas como um conjunto de constrangimentos que se impõe a todos, do protesto
em razão de uma injustiça e da acusação que lhe é inerente” (Boltanski, 1990:21), são
tratados como a condição mesma da crítica (o que inclui a sociologia da crítica); e seu
objetivo é a explicitação das pressuposições normativas presentes em todo e qualquer
discurso crítico legítimo, seja ele ordinário ou sociológico (ou “científico”). Neste
ponto, fica bastante evidente um dos problemas fundamentais da sociologia crítica: a
diferença entre ela e a sociologia da crítica não é necessariamente de ordem política,
mas metodológica. O que, de fato, a sociologia crítica fazia ao produzir o desvelamento
era criticar sem evidenciar o princípio de justiça que subjazia a sua crítica, quer dizer
sem de fato atingir o que possibilitava o acordo e a fundava o tecido que instaura o elo
entre as entidades. E agora, talvez, a sociologia da crítica possa nos ajudar nesse
trabalho.
Nos capítulos anteriores buscamos esboçar uma síntese da sociologia crítica, da
etnometodologia e da sociologia da crítica tendo como base a idéia dos condicionantes
da ação e da formação da coletividade. O objetivo foi mostrar como a sociologia
bourdieusiana representa a manutenção de uma tradição de pensamento que tende a dar
ênfase à estrutura estruturada, malgrado sua meritória tentativa de resolver essa questão
através da construção de uma teoria praxiológica, tributária da relação entre a estrutura e
a agência. Mostramos também como, para resolver a tensão entre as tendências
estruturais e as situações singulares, Bourdieu elabora um único nível, o da prática,
onde estas tensões se manteriam em um fluxo dialético. Por outro lado, tentamos
mostrar de que forma a etnometodologia e a sociologia da crítica fazem um trabalho de
articulação a partir de um novo paradigma, abandonando toda e qualquer teoria sobre o
mundo social, isso é, uma cultura capaz de produzir um concerto sem maestro e intenta
explicitar o social em curso de edificação, seja por meio da análise de micro-processos
interativos, seja via formalização dos processos de crítica e de justificação. Além disso,
explicitamos como esta última tem o intuito de clarificar os princípios morais
subjacentes a toda e qualquer crítica ou justificação tida como legítima, o que inclui a
sociologia crítica. A partir disso, tentamos deixar claro como ao invés de reduzir tudo a
um único e mesmo nível, o da prática, a etnometodologia e a sociologia da crítica põem
seu foco na multiplicidade de situações nas quais podem os indivíduos estar imersos.
71
Deixando de lado a teoria do ator – e seu pretérito – presente no conceito de habitus,
procuram fazer uma teoria da ação constituída a partir da análise das operações
axiológicas dos atores, no caso do primeiro momento da sociologia da crítica, e depois
nas múltiplas modalidades de relação com o ambiente, no tratamento conferido pela
analise etnometodológica às micro-interações, além das análises sobre os regimes de
ação, da sociologia pragmática francesa.
CAPITULO 5 – O SURGIMENTO DE UM GRUPO CIRCUNSTANCIAL: O CASO
43
43
Embora tratado de um modo genérico e mais formal, que serve ao escopo da presente dissertação, não
deixamos de ver o lado histórico. Boltanski e Clavérie fazem uma historicização, ainda que breve, dessa
modalidade: “O caso, como forma social especifica, com as propriedades que nos acabamos de lembrar
rapidamente, é sem nenhuma duvida uma forma histórica. Ela se encontra por volta do meio do século
XVIII e, após um longo eclipse durante a maior parte do século XIX [...] encontra seu apogeu entre,
digamos, 1880 e 1980. Essa periodização é particularmente evidente se põe o acento sobre as propriedade
associadas à constituições de um espaço público – de uma Cidadela – que nos tínhamos designado em Da
Justificação pelo pleonasmo Cidadela cívica a fim de marcar a distância que separa essa nova concepção
de relações entre membros de uma mesma unidade política de elos de tipo doméstico, ainda prevalecentes
no Antigo Regime, com a representação de um rei pai e a predominância de relações pessoais, que elas se
ordenam sobre uma linha hierárquica ou se manifestam sobre o modo do favor. Dentre essas
propriedades, desempenham um papel particularmente importante às que põem o acento sobre o
desatamento relativamente aos elos pessoas (o que nós chamamos de de-singularização); sobre a distinção
entre relações dominadas pelos interesses e modo de concernimento considerados como propriamente
morais porque desinteressados (distinção que Allan Silver mostrou o elo que ela entretém com a
autonomização de um mundo do mercado); sobre o reconhecimento, ao menos formal, de uma
distribuição alargada das capacidades de julgamento; sobre a igualdade de tratamento jurídico; sobre um
senso de justiça que dá um lugar o privilegiado ao mérito pessoal, manifestado nas realizações que tomam
a forma de provas e têm em conta uma pluralidade de formas de grandeza; mais também, sobre o direito à
felicidade e, através disso, inversamente, sobre uma exigência de atenção ao sofrimento, com a
introdução da piedade na ordem política; sobre as tecnologias que permitem o tratamento de pessoas à
distância e, particularmente, de um lado, sobre tecnologias de governo administrativo de populações
(estatística, demografia, policia estendida às questões de higiene, etc.) e, de outro lado, sobre tecnologias
que permitem o tratamento e difusão das informações em grande escala – o que chamamos hoje de mídias
–, isso sobretudo a partir do fim do século XIX; enfim, sobre a regulação dos modos de intervenção no
espaço público, com uma atenção cada vez maior às condutas julgadas desviantes, codificadas – no fim
72
CEG.
Em suas pesquisas sobre a constituição do grupo social dos executivos (cadres),
feita entre 1976 e 1981, Luc Boltanski nos conta logo no início de O amor e a justiça
como competências, que começou a se deparar com casos nos quais pessoas revelavam
seu sentimento de injustiça em razão de problemas e de demissões ocorridas ao longo
de suas respectivas carreiras profissionais. Nesses relatos, elas narravam uma série de
episódios através dos quais buscavam comprovar a ilegitimidade da maneira como
foram tratados e/ou demitidos por seus antigos companheiros. Mais do que isso, elas
contavam como suas vidas haviam mudado, como antigos amigos as evitavam, como
toda uma gama de traições advinham ao infortúnio ocorrido. Das pessoas das quais, até
pouco tempo, recebiam elogios pelo trabalho e pela dedicação, passavam a receber, de
modo repentino, a evitação, a indiferença como se tivessem cometido um pecado
mortal. Essas pessoas manifestavam um sentimento de vitimização e, entretanto,
apresentavam versões distintas daquelas apresentadas pelos seus respectivos chefes, ex-
amigos e algozes. Cada qual, ao seu modo, buscava justificar seus atos de modo
coerente, razoável e justo.
Foi, então, envolvido em meio à trama das diversas versões que se
apresentavam, que Boltanski se punha o seguinte dilema: qual lado tomar? Tanto as
vítimas como seus respectivos algozes apresentavam versões distintas dos fatos
passados. Ao narrarem situações em meio as quais encontravam-se mergulhados, tanto
um lado quanto outro descrevia as situações por meio das distintas modalidades de
narração de um “mesmo fato”. No entanto, malgrado essa diferença, apresentavam algo
em comum: ambos procuravam demonstrar a veracidade de seus relatos através da
apresentação e mobilização de documentos, dispositivos e argumentos. Cada qual
mostrava a si mesmo como verdadeiro e justo ao passo que o outro aparecia sempre
como aquele cujo interesse verdadeiro se escondia por detrás da versão oficial
apresentada. Com isso, cabia ao sociólogo perguntar-se: qual dos lados seguir? Fato era
que qualquer das versões escolhidas pelo sociólogo poderia se basear em uma
perspectiva normativa, mas jamais em uma positividade fundada sobre o “real”
44
. Por
do século XIX – pela psiquiatria sob a etiqueta de ‘delírio de interpretação’’, de ‘loucura de grandeza’, de
‘delírio de perseguição’, de ‘paranóia’, etc.”. (Boltanski e Clavérie, 2007: 443-4)
44
Tal era o sonho que a sociologia crítica tinha, que a nosso ver parece duvidoso: conjugar a análise
científica, rigorosa e positiva, com uma crítica cujo fundamento era, em última análise, normativo. Com
73
isso, se fazia necessário modificar o procedimento metodológico e tomar o caso ele
mesmo como objeto de estudo, sem tomar um partido (ao menos a priori); isto é, ao
invés de tomar um dos lados ou escolher uma das versões, a idéia foi não tratá-las senão
a partir delas mesmas, sem que uma fosse reduzida à outra – ou nem mesmo
compreendidas em uma versão maior, mais complexa, capaz de englobar as duas.
A tentativa então foi tratar os vários casos e controvérsias a partir de um quadro
comum. Com o escopo de explorar ao máximo essa temática, Boltanski, dessa pesquisa
sobre a formação do grupo social dos executivos na França, passou, como acima já
pontuamos, para a análise de cartas de denúncia enviadas ao jornal Le Monde, para que
desse modo fosse possível analisar o caso por si mesmo, tentando pensar o que o
constitui e o que o torna possível, e com isso avaliar os constrangimentos mínimos a
serem respeitados para que uma denúncia pública fosse considerada como recebível,
isto é, digna de ser apreciada por um júri que, no caso empírico abordado, representaria
a opinião pública. Traçado o escopo, a primeira questão que se punha ao júri seria a do
senso de normalidade presente em cada denúncia; isto é, em que medida aquele que
denunciava era ou não normal ou, melhor dizendo, em que medida o denunciante
contrariava o senso de normalidade dos que se punham a ler as cartas. Mas não se
tratava no caso de fazer uma análise psicanalítica da anormalidade ou da loucura
implicada nas cartas consideradas não passiveis de serem recebidas; muito pelo
contrário. Tratava-se, antes, de pensar por meio de quais argumentos – ou do não
respeito a certos padrões formais de argumentação – os autores da denúncia passavam a
ser consideradas como anormais. Donde se poderia entrever quais os constrangimentos,
pressupondo-os finitos, que, uma vez não respeitados, fariam com que a denúncia fosse
considerada anormal.
Evidentemente, um passo mínimo era necessário para passar da questão da
normalidade para a questão da justiça. No caso das denúncias avaliadas, um tema estava
intrinsecamente ligado ao outro. Afinal, uma denúncia não justa era aquela que, de certo
modo, não atenderia aos constrangimentos mínimos para que uma reivindicação fosse
considerada normal e, assim sendo, acabaria por ferir o senso do justo presente nas
competências dos atores que se dispunham a analisá-las. Partindo da premissa de que os
atores engajados nas denúncias tinham por objetivo comprovar que estavam ao lado da
razão, intentando validar suas pretensões de justiça por meio da utilização de
isso, pretendia fundar sua crítica na positividade, tornando o aspecto normativo invisível. Essa postura
levou a alguns impasses, alguns dos quais tratamos mais acima.
74
argumentos, documentos, fatos, gráficos, notícias, etc., e dado que nem todos obtinham
êxito nessa tarefa, a pergunta que o sociólogo do GSPM
45
se colocou foi a seguinte:
quais “as regras de normalidade que o autor do protesto deve observar para que sua
reivindicação seja considerada como digna de ser examinada” ? (Boltanski, 1990: 20).
Para dar uma resposta a essa pergunta, Boltanski procurou codificar as cartas de modo a
construir uma gramática, entendida como um número de constrangimentos mínimos e
finitos aptos a engendrarem satisfação no que concerne às condições necessárias para
que uma denúncia pública fosse tratada como digna de ser apreciada, capaz de dar
conta, de modo mais sistemático e formalizado, dos repertórios expressos pelos atores
quando imersos em uma situação de denúncia e de disputa.
É preciso que se diga que isso não é o mesmo que responder o que é capaz de
fazer com que uma denúncia, que a princípio não diria respeito senão a uma só pessoa,
pudesse se expandir até outros indivíduos, ganhando, assim, o status de coletiva. Nada
garante, de antemão, que uma denúncia vá se expandir e conseguir mobilizar uma série
de outras pessoas (coletivas ou não) em torno da(s) causa(s) sustentada(s). O que
Boltanski tentou delimitar nesse estudo é exatamente o inverso, isto é, o que faz com
que uma denúncia, antes mesmo de ser apreciada, não seja capaz de mobilizar outras
pessoas ou, em outros termos, o que é imperativo respeitar para que uma denúncia
possa, em princípio, ser considerada como digna e legítima de ser pleiteada. A incerteza
é algo próprio aos possíveis desdobramentos da denúncia. Mesmo o tamanho, a
dimensão dos atores mobilizados não pode ser predita. Sabe-se: uma denúncia restringe-
se à esfera privada e individual ou se torna pública, dependendo do êxito que dela
decorre ao mobilizar ou não uma série de pessoas (não necessariamente oriundas de
classes ou grupos sociais idênticos ou semelhantes) em torno de si. Nas palavras de
Boltanski:
“Estudar um caso supõe, então, que se renuncie a qualificar previamente o objeto de
estudo e, particularmente, a dizer suas dimensões. Ora, é das dimensões de um
processo que dependem fundamentalmente a divisão das disciplinas. Uma secretária
que protesta diante de uma injustiça, se obstina em seu protesto sem chegar a
mobilizar um número importante de pessoas, nem a engajar em torno de si os
representantes de instituições, sindicalistas, jornalistas, etc., terá seu problema tratado
como puramente pessoal. Ela permanece um caso singular. É sua personalidade que
será posta em causa e ela será reenviada para uma assistente social, para o médico do
trabalho ou para o psiquiatra especialista. Mas se, ao contrario, seu protesto é
escutado, se ela é seguida, se instâncias autorizadas e, particularmente, os sindicatos
estabelecem uma equivalência entre seu caso e outros casos ditos “similares”, se seu
45
Trata-se do Grupo de Sociologia Política e Moral, fundado por Boltanski e Thévenot em 1984.
75
caso, definido a partir de então como “exemplar”, é utilizado para servir uma causa
dita a partir de então “geral”, seu caso poderá ser escutado, mobilizar um número
importante de pessoas, aceder ao estatuto de problema coletivo e atrair a atenção do
sociólogo. Longe de aceitar a divisão a priori entre o que é individual, que seria desde
então assunto da psicologia, e o que é coletivo [...] o sociólogo deve tratar a
qualificação singular ou coletiva do caso como o produto da atividade mesma dos
atores. Ao invés de se dar coletivos já constituídos e, de qualquer sorte, já prontos para
o uso, pode-se apreender, então, as operações de construção de coletivos examinando
a formação de causas coletivas, ou seja a dinâmica da ação política”. (Boltanski, 1990:
33)
Ora, basta alguns minutos de análise de uma denúncia para logo se deparar com
versões distintas sobre o caso comum ou sobre o objeto (cabeludo, como gosta de dizer
Latour) em causa. A denúncia é assim: se caracteriza por distintas versões de um
mesmo problema, que se encontram em disputa, cuja densidade é dada pelos
desdobramentos das constantes críticas e justificações. Daí pode-se dizer que há duas
operações principais, sem as quais a controvérsia perderia seu sentido: as críticas, em
geral daqueles que se sentem injustiçados ou se põem ao lado dos que, em suas
respectivas opiniões, sofreram com injustiças, e as justificações, proferidas pelos que
defendem uma dada posição e respondem às críticas. Se por acaso as críticas cessam e
são aceitas as justificações, a caixa preta
46
se restabelece e a controvérsia se apazigua
em torno de um acordo comum: voltamos ao regime de rotina. Em havendo um
problema (trouble) subseqüente, os antigos argumentos podem ser novamente
mobilizados e confrontados com outros antigos ou novos, havendo a necessidade de
nova prova (épreuve), a partir da qual o estado de coisas vai ser ratificado ou
modificado.
Das características apontadas acima, faz-se necessário mencionar outra
modalidade importante para a constituição de um caso: o sistema actancial. Forjado por
Boltanski no intuito de produzir uma formalização do caso, este tem como condição de
existência quatro actantes
47
: uma vítima (em nosso caso, os acidentados), um
denunciante (os próprios parentes dos acidentados), um algoz (a CEG e seus
funcionários) e um juiz (no caso, tanto a opinião pública quanto o próprio juiz, no
46
Latour toma o conceito de caixa preta como sendo os fatos científicos não mais controversos, quer
dizer tomados como indiscutíveis e tidos por aceitos. Exemplo dado em Ciência em ação é a hélice do
DNA, que fora objeto de controvérsias, mas que hoje tornou-se por fato..
47
Actante é um termo, tomado de empréstimo da semiologia de Greimas, em que se baseia em seis
categorias (ou papéis funcionais) a que toda história faz uso. A partir disso, Greimas cria oposições
binárias, que são: “sujeito/objeto”, “emissor/destinatário” e “ajudante/oponente”. O papel – ator – não
seria aí uma entidade física individual, um indivíduo, mas uma individuação expressa em uma narrativa.
Daí por que pode ser um ator, mas também um objeto ou mesmo uma entidade abstrata indefinível como
“Deus”, o “capitalismo”, “a estrutura social francesa”, etc.
76
sentido jurídico). Em sociedades como a nossa, a opinião pública seria, ao menos no
que concerne à esfera pública, essa entidade genérica, em geral constituída, canalizada e
expressa pela mídia (impressa ou não), cujas especificações fogem ao nosso quadro de
análise. Das cartas extraídas do jornal Le Monde, Boltanski lança mão da análise
fatorial, colocando os actantes (exceto o júri), em dois eixos. Um primeiro definido pela
oposição entre singular e coletivo; e um segundo, ditado pela relação de proximidade e
alteridade. Da posição ocupada pelo actante na relação desses dois eixos, Boltanski
extraiu a seguinte intuição: “uma denúncia de injustiça aparecia como anormal quando
os diferentes actantes não ocupavam a mesma posição no eixo geral-singular”. Ora, o
juiz sendo sempre, nos casos analisados, um actante de grande tamanho, os casos cuja
exposição permanecia na ordem do singular, isto é, os casos que não tinham sido objeto
de um processo de ‘de-singularização’ através do apoio de uma instância cujo caráter
coletivo poderia ser sustentado de modo crível, apareciam como anormais (por
exemplo, o caso no qual o reivindicante escrevia para acusar seu vizinho, que o acusa de
ter roubado uma escada).“ (Boltanski, 1990: 28) Mais adiante, diz Boltanski, “de fato, o
que parecia anormal, nesses documentos, eram precisamente as manobras que os
reclamantes realizavam para tentar aumentar de tamanho (grandir) e,
conseqüentemente, se colocar à altura do juiz, eminentemente coletivo dado que se
tratava da opinião pública, para a qual eles submetiam seus casos (por exemplo, se
apresentando como sustentados por um comitê de defesa do qual se era o presidente e o
único membro, ou ainda se dando títulos pomposos, acumulando carimbos e indicações
especiais, etc.)” (Boltanski, 1990: 28). No fundo, a idéia era a seguinte: as
reivindicações mais bem avaliadas eram, em geral, aquelas que denotavam maior
capacidade de se justificarem como causas coletivas, onde o caso particular era, em
verdade, um problema que concernia toda uma gama de indivíduos, para além daqueles
envolvidos diretamente nos casos.
Isso é significativo uma vez que as denúncias tratadas como normais e justas
eram, de fato, aquelas que conseguiam transcender o caso particular e encarnavam em si
mesmas algo que seria da ordem não do particular ou do privado, mas do público e do
coletivo. Disso decorreu outra intuição: a forma de generalidade do eixo particular e
coletivo, analisada nas cartas consideradas normais, não seria apenas um modo
estratégico de fundar a legitimidade de uma reivindicação, mas uma forma de
generalidade que poderia ser encontrada como a estrutura basilar de uma ordem política.
Dessa derivação, foi-se de uma questão sociológica a uma questão de filosofia política,
77
uma vez que as denúncias públicas de injustiça, tendo por objetivo a avaliação de uma
opinião pública, remetiam, antes de qualquer coisa, à definição do corpo político
historicamente constituído na França, além, de modo concomitante, à constituição da
idéia de cidadania. Ora, não é ocasional que a denúncia de um escândalo (que pode ser
vista cotidianamente nos jornais) siga sempre uma mesma estrutura, qual seja,
“ela consiste em desvelar o particular sob o geral, a pessoa singular sob o
representante ou magistrado, o interesse particular escondido sob a proclamação de
uma adesão ao interesse geral que não é senão de aparência e os elos pessoais secretos
que “subentendem” relações dadas como oficiais: o magistrado foi visto jantando no
restaurante com o réu; o promotor imobiliário que construiu um novo bairro é, ‘na
verdade’, o sobrinho do prefeito que lhe forneceu autorização. Eles são cúmplices [...]
O escândalo é, assim, sempre conspiração, quer dizer aliança secreta por um interesse
particular, lá, onde deveria existir apenas o acordo de todos pelo bem comum”.
(Boltanski, 1990: 30).
O filósofo político, cuja distinção entre o interesse público e o interesse
particular foi levada até as últimas conseqüências, foi Rousseau. Repousando sob a
distinção entre a vontade de todos e a vontade geral, Rousseau fez a clássica distinção
entre uma vontade que corresponde à soma das vontades dos particulares e uma outra,
fundada na capacidade dos agentes de ignorarem seus interesses privados em prol de um
bem comum. Não há dúvidas que, independente das possíveis objeções, a fundação do
corpo político e da nossa noção de cidadania se fundam nessa divisão – decerto tensa –
entre as pessoas particulares, voltadas para os seus próprios interesses pessoais, e
aquelas cuja formação é dada pelo conjunto de cidadãos, estes reunidos em prol do bem
comum. Claro, não se trata aí de dois tipos distintos, mas de entidades em estados
diferentes, uma representando senão a si mesma, enquanto indivíduo privado e
particular, e a outra, de ordem genérica, representando todo um corpo coletivo. Afinal,
qual seria a razão de denunciar um político que se beneficia com verbas públicas, se não
a pressuposição de que ele deveria, pelo seu cargo, agir em prol não de si mesmo, mas
do bem comum? Assim, para além de um nível particular e privado, há o nível das
convenções capaz de qualificar as pessoas a partir de distintos valores, definindo em que
medida elas são suscetíveis de possuírem diferentes tamanhos, ou melhor, grandezas. E
não é senão dessa construção a dois níveis, que supõe a possibilidade de deslocamentos
nas duas direções – do geral e do particular –, a hipótese da qual parte Boltanski para a
construção, sobre a qual falamos acima, do modelo das Cidadelas (Cités).
Como vimos, o modelo das Cidadelas só pode ser entendido se referido à
concepção de justiça proposta por Aristóteles, que pode ser explicada do seguinte modo:
78
“a justiça é assegurada em uma ordem política quando a distribuição do valor que cada
pessoa possui é operada por referência a um princípio de igualdade. Mas o respeito a
esse princípio não supõe a divisão aritmética de tudo entre todos. Pois ele deve levar em
conta o valor ou, se se prefere, a grandeza relativa daqueles dentre os quais a
distribuição é realizada” (Boltanski, 1990: 32).
Nessa ótica, a construção metafísica de Rousseau, em dois níveis, seria aquela
correspondente à Cidadela Cívica, cuja distribuição relativa de valores entre os seres
seria medida pela capacidade com que esses encarnam o coletivo, quer dizer
representam outros seres e encarnam a vontade geral. O político, assim como o juiz – e
os ocupantes de cargos públicos, quando investidos de seus cargos – são, em verdade,
uma espécie de princípio superior comum encarnado, que devem colocar seus interesses
privados de lado em prol do bem comum. É por essa razão que, partindo da Cidadela
Cívica, as relações pessoais são tratadas como relações privadas e singulares, cuja
legitimidade depende da mediação de um coletivo apto a engendrar o bem comum.
Explica-se, pois, o por quê das cartas mais bem avaliadas terem relação direta com a
capacidade com que o autor conseguiu efetivar o trabalho de de-singularização, de
modo que não fossem desqualificadas de modo prévio sob o título de anormalidade.
Nos casos, o êxito está condicionado pela capacidade de os atores de, em meio às suas
críticas e justificações, alçarem a posição de seres coletivos, irredutíveis aos interesses
que o ator, enquanto pessoa privada, poderia ter, no que diz respeito aos possíveis
desdobramentos de sua denúncia ou justificação. O anormal, em última análise, era
aquele cuja competência não lhe possibilitava transcender o caso particular e, com isso,
mostrar a relevância pública e coletiva da causa para a qual dirigia suas atenções e seus
esforços.
Como se sabe, o que caracteriza o surgimento da instituição histórica da
Cidadela Cívica é o fim dos laços de dependência pessoais que constituíam a base de
todo o Estado Moderno no Antigo Regime e o surgimento de uma nova ordem
republicana, a qual é fundada no cidadão, esse homem sem qualidades, avaliado de
acordo com o pertencimento ao espaço público. Nessa Cidadela, importam os
representantes, as leis, as pessoas coletivas, Partidos, Federações, Comitês, Eleitos,
Delegados, Secretários, os códigos, tudo aquilo que, em geral, é revestido de
oficialidade e de solenidade. “No mundo cívico, acede-se à grandeza sacrificando os
interesses particulares e imediatos, ultrapassando a si mesmo, não pondo interesses
individuais antes dos interesses coletivos”. (Boltanski, Thévenot, 1991: 237). Aqui os
79
porta-vozes ganham importância, posto que para que uma entidade coletiva possa se
exprimir é necessário a escolha de um representante que possa manifestar – traduzir (e
trair), representar – o coletivo do qual ele faz parte. A conexão e a adesão são as
principais formas de relação: quanto mais conectado, maior o número de seres
vinculados, e com isso maior é o tamanho daquele a quem as entidades se atrelam. Mas
não é qualquer forma de vínculo que, na Cidadela Cívica, é tomado por legítimo. Não é
por acaso que todo o código eleitoral procura desvincular os elos cívicos daqueles de
ordem doméstica: “sabe-se que, segundo o Código Eleitoral, ‘nas comunidades com
mais de quinhentos mil habitantes, os ascendentes e descendentes, os irmãos e as irmãs,
não podem ser simultaneamente membros do conselho municipal’ (Boltanski, Thévenot,
1991: 34).
Ao aprofundar suas análises das relações existentes em um caso, Boltanski
deparou-se com algumas acusações que tinham uma forma singularizada, mas que não
deixavam de ser taxadas como normais por essa razão. Isso significava que havia, para
além da Cidadela Cívica, outras modalidades de generalidade capazes de fundar o bem
comum. Ainda que certos assuntos não concirnam diretamente uma opinião pública,
como era o ponto das cartas mais bem avaliadas por um júri a ela correspondente, não
seria taxada de anormal a briga de um amigo com outro por ter sido tratado com a frieza
impessoal próprias do mundo cívico. Se é verdade que os escândalos são as operações
por meio das quais ocorre um desvelamento de relações pessoais onde deveria
prevalecer relações mediadas pelo bem público, não seria menos absurdo um pai, para
dar mesada ao seu filho de doze anos, fazer um contrato pelos serviços prestados por
seu filho, como filho
48
.
48
Isso significa dizer que uma distinção rígida entre o moderno impessoal e o pré-moderno pessoal, a
qual tem alimentado tantas divergências de ordem teórica em nossa sociologia brasileira contemporânea,
parece-nos inócua. Na esteira de Latour, Boltanski e Cia., afirmamos que não há relações tipicamente
modernas ou relações pré-modernas. Há simplesmente regimes de ação, os quais podem ser agenciados
em situações específicas. Podemos subtrair das interações que analisamos as modalidades mais salientes;
mas, de modo algum, podemos dizer que em “sociedades modernas” há o predomínio de relações
impessoais em detrimento de relações pessoais. Qualquer trabalho de campo mais pormenorizado nos
ensina que tanto a impessoalidade pura quanto a pessoalidade absoluta são meros construtos teóricos de
tipo analítico que, na empiria, se mostram mais híbridos e relativos a situações dadas. Sim, mesmo em
uma grande empresa onde as relações impessoais são bastante relevantes, há laços de pessoalidade, de
amizade e de compadrio. E perguntamos: trata-se de uma empresa moderna com traços pré-modernos? De
fato, não. Nunca seremos tão modernos a ponto de tornamo-nos impessoais, bem como nunca fomos tão
pré-modernos a ponto de nos relacionarmos de formas (apenas) pessoais.
80
A partir daí Boltanski e Laurent Thévenot construíram, em Da Justificação,
outras formas de generalidade possíveis e passíveis de serem agenciadas em momentos
de desacordo. Nós já falamos do modelo apresentado pelos sociólogos franceses acima.
Nosso objetivo, para os propósitos do presente capítulo, consiste em apontar e
demonstrar a necessidade de uma de-singularização no processo de emergência de um
coletivo, sendo esse um dos pontos, dependendo do sucesso, necessário para a
solidificação da objetividade pleiteada. Mais precisamente, trouxemos a sociologia das
justificações à baila para mostrar como pessoas mobilizadas em torno de uma causa
comum precisam construir uma auto-justificação que se prove de utilidade pública e
como, em meio a um caso, diferentes lados mostram versões acerca de um fenômeno
comum. As duas partes tentam produzir objetividade sobre o real. Não nos cabe, então,
ao menos no que concerne à perspectiva normativa, tomar um ponto de partida; antes,
cabe apenas apresentar as duas versões.
A CEG: Companhia Estadual de Gás.
A CEG é uma empresa histórica cuja fundação se deu em 25 de março de 1854,
com o nome de Companhia de Iluminação a Gás. Foi então que, no século de sua
fundação, iniciou-se o uso do gás nas cozinhas e para a iluminação pública, sendo o gás,
naquela ocasião, fabricado a partir do carvão. No século XX, o gás passou a ser
produzido a partir dos derivados do petróleo. Em meados da década de 40 desse mesmo
século, o gás natural surgiu como uma energia possível.
Das modificações sofridas ao longo do último século, cuja extensão fogem aos
propósitos do trabalho, uma teve importância marcante: a privatização. A CEG foi
privatizada em Julho de 1997, passando a ter, a partir de então, como operador técnico,
o grupo Gás Natural. Tornando-se fornecedora de três tipos de gás (o gás natural, o gás
manufaturado e o gás liquefeito de Petróleo), uma tarefa nada modesta foi posta diante
da Companhia: fazer a revisão e a conversão do gás manufaturado para o gás natural em
todo o Estado do Rio de Janeiro.
A Gás Natural, a nova operadora da CEG, é considerada a maior empresa de Gás
da Espanha, a qual fora responsável pela conversão do gás manufaturado para o gás
natural em diversas cidades espanholas, das quais merecem destaque Madri, Barcelona,
Sevilha. A justificativa da mudança do gás manufaturado para o gás natural é de ordem
81
ambiental e funcional; estudos afirmam que o gás natural não é poluente, pelo fato de
não conter enxofre, e que, ademais, possui como vantagem substituir diversos
combustíveis que degradam a natureza, como a lenha.
“O gás natural é uma energia de origem fóssil, mistura de hidrocarbonetos leves entre os
quais se destaca o metano (CH4), que se localiza no subsolo da terra e é procedente da
decomposição da matéria orgânica espalhada entre os extratos rochosos. Tal e como é
extraído das jazidas, o gás natural é um produto incolor e inodoro, não é tóxico e é mais
leve que o ar. Além disso, o gás natural é uma energia carente de enxofre e a sua
combustão é completa, liberando como produtos da mesma o dióxido de carbono (CO2)
e vapor de água, sendo os dois componentes não tóxicos, o que faz do gás natural uma
energia ecológica e não poluente.Uma vez extraído do subsolo, o gás natural deve ser
transportado até as zonas de consumo, que podem estar perto ou bastante distante. O
transporte, desde as jazidas até estas zonas, é realizado através de tubulações de grande
diâmetro, denominadas gasodutos. Quando o transporte é feito por mar e não é possível
construir gasodutos submarinos, o gás é carregado em navios metaneiros. Nestes casos
o gás é liquefeito a 160 graus abaixo de zero reduzindo seu volume 600 vezes para
poder ser transportado. No porto receptor, o gás é descarregado em plantas ou terminais
de armazenamento e regasificação.Sendo assim o gás permanece armazenado em
grandes depósitos na pressão atmosférica e é injetado depois na rede de gasodutos para
ser transportado aos pontos de consumo. Todas estas instalações são construídas
preservando o meio ambiente, sendo em grande parte subterrâneas favorecendo a
possível restituição do paisagem.”
49
Uma vez a privatização efetivada, o objetivo da nova operadora foi, até junho de
2006, concretizar o processo de conversão, o qual foi posteriormente adiado para 2007.
Como diz a carta do Presidente da empresa, quando da comemoração de cinco anos da
privatização, três eram os desafios maiores: “primeiro, completar a conversão de gás
manufaturado para gás natural; segundo, aumentar o número de clientes, o que exigira
investimentos na expansão de rede de gasodutos e na interiorização da companhia;
terceiro, por fim, buscar excelência no atendimento ao cliente, aumentando a
49
Extraído do Site: http://portal.gasnatural.com/servlet/ContentServer?gnpage=4-60-
2&centralassetname=4-60-2-1-5-1
82
conectividade”.
50
Para a execução do plano, já em 1997, havia sido constatada, pelos
técnicos da nova operadora, a necessidade de renovar 1,5 mil km de dutos de uma rede
que possuía 2,2 mil km de dutos. Dos 941 km da rede de aço, apenas 491 tinham
proteção catódica. Das quase oitenta mil válvulas, somente 5% funcionavam em
perfeito estado. No momento da privatização, a CEG não tinha veículos para situações
emergenciais, e a taxa de perda com escapamentos era de 23%. Até 2004, já havia sido
concluído o processo de renovação de 300 km da rede, implantado um tele atendimento
24hrs e um centro de Controle e Operação da Rede, que teria por função fazer a
monitoração de toda a rede canalizada. Um processo de mapeamento e digitalização
fora também concluído, passando os mapas de papel, que tinham sido herdados, para as
telas do computador. Em um orçamento previsto para R$ 150 milhões, já havia sido
investidos R$ 52 milhões apenas para a conversão residencial.
Tais são alguns dados apresentados pela CEG, que visam uma justificação
pública acerca do trabalho por ela executado, além de buscar comprovar a utilidade
pública do serviço prestado. É imperativo observar que todos esses avanços e melhoras
descritas pela CEG não somente indicam os benefícios produzidos para a empresa (em
termos claros, o lucro), bem como apontam para os melhoramentos gerais produzidos
para a população de modo genérico. Nos dados descritos acima, vislumbram-se não
apenas fatos, mas uma narrativa que imputa à empresa a responsabilidade pela melhora
da qualidade de vida dos que habitam a cidade do Rio de Janeiro e fazem uso desse
serviço tão elementar que é o gás. O que está em jogo não é apenas o benefício
comercial da empresa, mas o quanto tais modificações por ela engendrada beneficiam as
pessoas de modo genérico e, com isso, geram benefícios para o bem estar geral. Um
serviço de gás bem prestado não concerne, ao menos em tese, somente aos índices
comerciais e financeiros da empresa, mas principalmente ao bem comum (Boltanski e
Thévenot, 1991; Boltanski, 1990). Ele interfere na vida das pessoas comuns que
utilizam o gás em seus aquecedores, em seus fogões, em seus respectivos carros, em sua
indústria, etc. Em última análise, a descrição não é apenas de ordem factual, mas moral:
ela propala os avanços de um serviço fundamental para a população cuja melhoria
contribui para o bem estar geral.
“Ações para melhoria da cidade do Rio de Janeiro
50
Retirado do site: http://portal.gasnatural.com/servlet/ContentServer?gnpage=4-60-
2&centralassetname=4-63-7-9-5-1
83
Dentro de suas áreas de atuação, a CEG se orgulha de ter levado, em seis anos, o gás
natural para 31 municípios do estado. Uma energia limpa que vem substituindo a lenha
e o óleo combustível nas fábricas e a gasolina e o diesel nos automóveis. Um estudo
recente da Feema revela que, com o crescimento do uso do gás natural, o Rio de Janeiro
já deixa de emitir 500 mil toneladas de CO2 na atmosfera.
A substituição do gás manufaturado pelo natural em residências e comércios da cidade
já permitiu a desativação da Estação Leblon, uma área de 4.015 metros quadrados, que
reunia 11 gasômetros para estocagem de gás manufaturado. A intenção é desativar mais
três pontos de armazenamento de gás manufaturado, incluindo a fábrica localizada em
São Cristóvão, ao final da do projeto de conversão, previsto para o início de 2007.
Também através do processo de conversão, a companhia tem procurado sensibilizar
seus clientes sobre a importância do cumprimento das normas de segurança. Graças a
este trabalho o índice de defeitos nas instalações de gás canalizado das residências em
diversos bairros da cidade tem caído de 92% para 2% .Também foram renovados mais
de 500 Km. de rede, elevando sensivelmente a segurança de todo o sistema de
distribuição.
Em 2004, durante a construção do gasoduto de Petrópolis, foram descobertos seis sítios
arqueológicos na localidade do Vale do Mato Grosso. Em parceria com o Instituto do de
Arqueologia Brasileira (IAB) a Companhia ajudou a resgatar estruturas de rodas-
d´água, um forno para fabricar farinha e até uma moeda de 1868. Todo trabalho foi
supervisionado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
São ações que demonstram o compromisso com o Estado do Rio de Janeiro.”
51
O grupo circunstancial Morte Por Gás Nunca Mais.
Em 1997, começam os trabalhos para a conversão do gás natural. Em 1998, dia
vinte e quatro de fevereiro, Rodrigo Tabata Talarico entra em seu banheiro, como de
praxe, para tomar banho. Pouco tempo depois é encontrado, ainda com vida, intoxicado.
Até meados de 2008, encontra-se em um leito de hospital em estado vegetativo. Alguns
dias antes, no dia vinte, ocorrera um vazamento de gás na Rua Antônio Parreiras, em
Ipanema. Os moradores saíram assustados, de madrugada.
51
http://portal.gasnatural.com/servlet/ContentServer?gnpage=4-60-2&centralassetname=4-60-2-4-0-0
84
Dia 28 de Marco, uma explosão: um rombo foi feito na sobreloja do Prédio do
Ministério da Fazenda, na Av. Presidente Antônio Carlos, no Centro, às 16:40h e
destruiu o restaurante do edifício. Um motorista de ônibus, que passava pelo local, disse
que, no momento da explosão, pensou que o prédio estava a desabar. Outros acidentes
se seguem: dia 26 de Abril, vazamento de gás na Ilha do Governador; dia 28 de
Setembro do mesmo ano: uma menina, Lorena Texeira, de onze anos, morre intoxicada.
Dia 03 de Outubro, Rayrl da Silveira Bodevan, quinze anos, morre asfixiado
durante o banho na Rua Gal. Ribeiro da Costa; no dia 04 do mês seguinte ocorre um
vazamento de gás na Tijuca. Letícia Vasconcelos reclama do forte cheiro de gás, do
barulho das britadeiras e do fechamento total das calçadas. Pouco adiante, no dia 21 de
Novembro Flávio Teófilo, ao tomar banho em seu apartamento na Av. Ataulfo de Paiva,
vai às pressas para o CTI da Clinica São Vicente. Dois dias depois, a CEG é proibida de
fazer a conversão de gás no Leblon, área nobre do Rio de Janeiro. A Agência
Reguladora de Serviços Públicos (ASEP) proíbe a empresa de dar continuidade ao
programa de conversão; a liberação se dá apenas após serem cumpridas as normas de
segurança fixadas pela própria ASEP, por um especialista da UFRJ e do Inmetro. Mas a
conversão e os acidentes continuam: dia 04 de Dezembro um aquecedor do apartamento
202 do Condomínio James Leblon, na Av. Bartolomeu Mitre, explode de madrugada.
Durante o ano de 1999 são contabilizados 2760 casos de escapamento.
Em 2000, os acidentes não cessam; em maio, dia 18, um bueiro explode na rua
Voluntários da Pátria; e no dia 22 do mesmo mês, uma tampa de um outro bueiro voou,
na rua Humberto de Campos, próximo à rua Carlos Góis. No dia primeiro de junho, um
casal, Ivone Ferreira e André Santana, morre durante um banho no apartamento da rua
Maria Amália na Tijuca.
As mortes vão se sucedendo, mas não há a criação de um grupo mobilizado em
torno delas. Cada qual permanece em estado isolado, singular, sem que haja tipificação
e a configuração de um problema maior. Em alguns casos existe uma mobilização
judicial buscando a reparação de um dano provocado, mas, em torno disso, não se
articula um grupo de pessoas mediante o qual se produz a criação de um caso exemplar,
com base no qual todos os outros serão tipificados.
No entanto, anos mais tarde, mais precisamente em 2006, no mês de setembro,
acontecem três mortes em dois dias.
Dia doze de setembro, Raquel Gonçalves Coutinho e Alexander Oliveira
Martins entram na casa do rapaz na Tijuca. Resolvem tomar banhos juntos. Não
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sentindo o cheiro do gás exalado, ambos são encontrados mortos no banheiro. Em um
primeiro momento, conjeturas são produzidas. Atribuem ao fato um pacto de morte
entre o casal, que teriam escolhido morrer. Juntos. No dia seguinte o Jornal o Dia
noticia uma versão distinta. Sua manchete é clara: “Vazamento de Gás mata jovem em
Laranjeiras”.
Essa experiência, que faz da existência dos parentes dessas pessoas escaparem
ao estado de rotina, as põe em contato imediato com o arbitrário. Diz Fátima, uma das
porta-vozes:
“Tudo começou assim: com o caso da Suzana e o meu caso. Por quê? Porque foram
três mortes em dois dias. Então, isso gerou uma repercussão muito grande na mídia. E
o que a CEG fez contra a gente? Ela saiu batendo na gente. Ela, no caso da Suzana,
quis fazer crer que foi suicídio e, no meu caso, disse que eu tinha rompido o lacre.”
(Fátima, em entrevista).
“Namorados são achados mortos em banheiro
Publicada em 13/09/2006 às 11h31m
Antônio Werneck - O Globo
RIO - Policiais da 19ª DP (Tijuca) investigam as causas das mortes da estudante Raquel
Gonçalves Coutinho, de 15 anos, e de seu namorado, Alexander de Oliveira Martins, de
22, na tarde desta terça-feira, no banheiro do apartamento 102 da Rua Uruguai 508, na
Tijuca, onde ela morava com a família. Os dois jovens foram encontrados caídos no
chão do banheiro, nus. Segundo a polícia, não havia nenhum sinal que aparentasse
crime. Peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli apontaram indícios de que as
mortes possam ter ocorrido por inalação de monóxido de carbono. A hipótese de
suicídio, no entanto, ainda não está descartada. Os dois foram levados para uma clínica
particular próximo à casa dele, a São Victor.
Os corpos de Raquel e Alexander serão enterrados no Cemitério São João Batista, em
Botafogo, na tarde desta quarta-feira. Os dois foram encontrados pelo irmão dela,
Daniel Gonçalves Coutinho, por volta das 14h30m de terça. Ele estranhou que os dois
estivessem demorando muito no banheiro, bateu na porta, mas ninguém respondeu. Foi
então que ele resolveu chamar sua mãe, Suzana Gonçalves. Ela deu a ordem para que
Daniel arrombasse a porta. Os dois estavam estirados no chão, com o chuveiro aberto,
caindo água, e a chama do gás acesa. Não havia cheiro de gás.
A perícia do ICCE constatou que, aparentemente, não houve vazamento de gás e que o
aparelho estava funcionando perfeitamente. A CEG informou que não foi chamada para
verificar o equipamento. Na lixeira do banheiro, a polícia recolheu uma cartela de um
86
medicamento de tarja preta. Trata-se de cloridrato de fluoxetina, um antidepressivo. A
cartela não continha comprimidos.
O delegado da 19ª DP, Orlando Zaconne, conversou com o diretor do Instituto Médico-
Legal (IML), Roger Ancillotti, e ouviu dele ser verossímil a hipótese levantada pelo
ICCE. Os corpos foram levados para o IML à noite. Raquel era estudante, e o namorado
trabalhava temporariamente.
A família de Raquel, que namorava há dois anos, descartou a hipótese de suicídio.
Zaconne perguntou à mãe dela se os dois costumavam tomar banho juntos. Ela
respondeu que sim e que a família permitia que eles namorassem em casa.”
52
Suzana, a outra porta-voz, também comenta:
“Tudo isso que aconteceu aqui, para mim tem uma ligação que eu não sei qual é. Toda
adaptação, em laranjeiras onde mora a Fátima... Eles na época estavam fazendo a
conversão. No meu caso, eu moro na Tijuca, já era gás natural desde 2000, já tem gás
natural lá. O que acontece é que como eles fizeram numa época em que tava [...] eles
tinham compromisso, eles tinham compromisso de terminar até 2006, então eles
estavam com pressa e fizeram tudo nas coxas. Eles não adaptaram como deveriam. O
que parece é que meu prédio não era... não tinha ninguém impedido de usar. A pessoa
que me vendeu o apartamento tava tudo funcionando... mas parece que as instalações
não eram adequadas para gás natural. Então aconteceram três mortes em dois dias.
Acontece um, num dia, outro, no outro. Pra mim tem ligação. Não vou crer que uma
coisa que não acontece nunca, vai ter três mortes em dois dias.” (Suzana, em
entrevista).
“Mais uma jovem é encontrada morta dentro do banheiro
Publicada em 14/09/2006 às 10h28m
Extra, O Globo e O Globo Online
RIO - Carolina Rodrigues Macchiorlatti, de 19 anos, foi encontrada morta no banheiro
do apartamento onde morava, em Laranjeiras, na Zona Sul, na noite de quarta-feira. O
corpo será enterrado às 17h desta quinta, no Cemitério São João Batista. A delegada-
adjunta da 9ª DP (Catete), Elen Souto, afirmou que foi encontrado no banheiro um
pequeno vazamento, que pode ter sido a causa da morte. O caso é o segundo que
acontece em apenas dois dias. Raquel Gonçalves Coutinho, de 15 anos, e seu namorado,
Alexander de Oliveira Martins, de 22, foram encontrados mortos no banheiro do
apartamento 102 da Rua Uruguai 508, na Tijuca, na terça. Os laudos da morte
52
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2006/09/12/285635961.asp
87
confirmaram que ambos foram asfixiados por monóxido de carbono .
O corpo da estudante Carolina foi encontrado dentro do banheiro por sua irmã mais
nova. Ela bateu na porta do banheiro e, como não houve resposta, pediu ajuda do
porteiro. Quando os dois conseguiram abrir a porta, a jovem já estava morta. A irmã
chegou a chamar os bombeiros, mas eles não puderam fazer nada. A mãe da Carolina, a
empresária Fátima Rodrigues, era acompanhada por um médico na noite desta quarta.
Ela sofre de problemas cardíacos e teve uma alta de pressão quando chegou em casa e
descobriu que a filha havia morrido.
De acordo com o setor de relações públicas do Corpo de Bombeiros do Humaitá, a
causa mais provável da morte é o de inalação de gás. Técnicos da CEG voltarão nesta
quinta ao imóvel a pedido da delegada Elen Souto para fazerem mais testes na
instalação de gás do banheiro.
O laudo da morte do casal de namorados na Tijuca constatou que ambos tinham as
regiões posteriores do corpo e da face corados, características de asfixia por monóxido
de carbono. O delegado da 19ª DP (Tijuca), Orlando Zaconne, disse que a hipótese de
suicídio está praticamente descartada. Cerca de 50 pessoas estiveram nesta quarta no
enterro de Raquel e Alexander, no Cemitério São João Batista.
— O monóxido de carbono tem poder sete vezes maior de ser absorvido pelo sangue do
que outros gases. Os jovens devem ter ficado um tempo prolongado no banheiro, que
não tem ventilação adequada — disse o diretor do Instituto Médico-Legal, Roger
Ancillotti."
53
É sobretudo ao deparar-se com o arbitrário, quer dizer com um fenômeno
extremamente doloroso e pouco aceitável, o ato inaugural a partir do qual o grupo
circunstancial foi construído. Um grupo, então, surge em razão da experimentação de
uma arbitrariedade, um choque, a experiência de uma falha. Nos termos da sociologia
pragmática francesa, há algo que foge ao regime de rotina (justesse) e que, por motivos
cuja previsão só se torna mensurável a posteriori, produz uma mudança na configuração
do estado de coisas. Quando a rotina falha, ao menos por alguns instantes, as medidas e
as equivalências parecem se desvanecer (quando entramos no estado de violência) e
requerer críticas que visam novas justificações (quando passamos para o regime de
justiça) e rearranjos. Essa nova mobilização reorganiza o quadro de acontecimentos.
53
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2006/09/14/285651228.asp
88
Das versões apresentadas, malgrado distintas interpretações, um fato ocorreu: a
morte de três pessoas em dois dias. E algo quis que essas mortes não se encerrassem ali,
no acontecimento. Foi então que um coletivo circunstancial (Lemieux, Vilain, 1998),
isto é um conjunto de pessoas mobilizadas em torno de um acontecimento trágico
comum começava a se formar. Um grupo de pessoas, que até então não tinham qualquer
vínculo, qualquer identidade categorial – opinião política, filiação religiosa, modos de
vida consoantes a uma classe ou a um habitus comum etc. –, que a princípio não tinham
qualquer razão para estarem mobilizados em torno de uma causa similar, se encontram
lado a lado em razão de um acontecimento trágico sofrido por um parente próximo.
Diante de um acontecimento fortuito, inesperado, que produz sofrimento no curso da
existência dessas pessoas, e que de modo legítimo reclamam por justiça e por uma
espécie de proteção, para que o mesmo acontecimento não atinja outras famílias, um
coletivo auto-justificado moralmente se insurge.
Nossa hipótese é que essa modalidade de grupos cuja origem se dá a partir de
circunstâncias completamente imprevisíveis pelas pessoas envolvidas, é um meio
legítimo de análise da emergência dos coletivos em nossa sociedade. Um coletivo cuja
formação encontra-se à margem dos parâmetros sociológicos tradicionais de análise,
uma vez que esses estudos costumam vincular a ação comum aos pertencimentos
sociais convencionais, tais como sexo, profissão, local, cultura, geração, etc., torna-se
um objeto rico para pensar como a ação coletiva coordenada se produz. Não apenas
isso, pensar a emergência de um grupo circunstancial, isto é um grupo formado por
pessoas cuja vinculação é construída com base em um acontecimento trágico comum, o
qual não fora procurado nem suscitado por elas mesmas, é também pensar a
possibilidade da emergência de um problema público (Gusfield, 1980), posto que,
comprovada a reivindicação pleiteada pelo grupo, e uma vez efetivado o processo de
ascensão em generalidade (Boltanski e Thévenot, 1991; Boltanski, 1990), tal problema
passa a concernir não apenas as pessoas diretamente envolvidas no caso, bem como as
virtuais vítimas daquele mal. A construção de um coletivo que se auto-justifica
moralmente está ligada à tipificação de uma noção de vítima, referida a um problema
especifico, no caso de nosso estudo, aos riscos que incorrem a conversão do gás
manufaturado para o gás natural. Da relação causal e de responsabilização, passa-se ao
aspecto prescritivo. A responsabilização implica em um conjunto de medidas que, além
de punir os males praticados por quem deveria ter previsto e impedido a ocorrência do
89
mal sofrido pela vítima, visam vigiar a ação do causador do mal e impedir que outras
pessoas possam sofrer o mesmo infortúnio.
O infortúnio produz um critério de mensuração em torno do qual o passado e o
futuro vão ganhar novos contornos. A partir do problema primeiro, as versões pululam
acerca do que ocorreu e tendem, ao modo de um caso, a ficar em direções opostas. De
um lado a CEG e, de outro, o grupo circunstancial: cada qual, mobilizando provas e
argumentos, tenta-nos convencer de sua versão sobre o que “de fato” aconteceu. Diz-
nos Fátima:
“Quando eles foram fazer a vistoria na minha casa, no dia 13 de janeiro de 2006, eram
dois rapazes de uma terceirizada que brincavam entre si o tempo todo. E eu tenho dois
banheiros sociais. O aquecedor ficava em um dos banheiros que alimenta esses os
dois. Eles disseram para mim: olha, na época da conversão, a CEG vai vir aqui e vai
tirar esse aquecedor daqui e vai passar para a área de serviço. Botaram um nylon
vermelho que disseram ser um sinalizador. Aí eu perguntei: eu vou ficar impedida de
usar meu banheiro? Eles disseram: claro que não. E o meu banheiro era totalmente
impróprio. Mas eu não sabia. Eles teriam que ter lacrado meu banheiro
imediatamente. E ir lá em baixo no relógio verificar se estava trancado para a minha
segurança.” (Fátima, em entrevista).
A versão da CEG, por sua vez, parece diferente. Como segue a nota oficial
apresentada no jornal O Globo, após o acidente:
“A versão da CEG
A Companhia Estadual de Gás (CEG) divulgou nota oficial informando que uma
vistoria feita no apartamento da estudante Carolina Rodrigues Macchiorlatti condenou
toda a instalação. O aquecedor estava lacrado desde 13 de janeiro deste ano.
A CEG diz ainda que a vistoria constatou ainda inexistência de ventilação inferior na
porta, chaminé inadequada por diâmetro e comprimento vertical da chaminé menor do
que 35 cm.
A polícia abriu inquérito para apurar as circunstâncias da morte da estudante de 19 anos,
encontrada no banheiro do apartamento em Laranjeiras, na Zona Sul, nesta quarta-feira
(13).
Os policiais estiveram no apartamento para recolher mais dados.
Carolina foi tomar banho por volta de 18h30 de quarta-feira (13) e, segundo os
90
parentes, teria ficado mais de uma hora no chuveiro.
A irmã dela, de 13 anos, que também estava no apartamento, estranhou a demora e
tentou falar com Carolina, que não respondia. A jovem resolveu pedir ajuda ao porteiro,
que conseguiu abrir a porta do banheiro e encontrou a estudante caída no chão.
O aquecedor estaria ligado e o chuveiro aberto.
Os bombeiros foram chamados e constataram a morte de Carolina.
Técnicos da companhia de gás estiveram no local acompanhados por peritos. Segundo a
polícia, o laudo preliminar indicou um pequeno vazamento de gás no aquecedor.
O caso da estudante ocorreu um dia após a morte de um casal de namorados durante o
banho em um apartamento na Tijuca, na Zona Norte.
Alexander Martins, de 22 anos, e Raquel Coutinho, de 15, tomavam banho juntos
quando foram encontrados mortos pelo irmão da jovem.
Peritos não encontraram vazamento de gás no banheiro mas o laudo preliminar do
Instituto Médico Legal indicou que os dois morreram de asfixia por monóxido de
carbono.”
Ambos os lados, apresentando suas respectivas versões, não apenas tomam o
acontecimento como ponto de partida, bem como, através desse processo, formam uma
rede, à medida que o acontecimento vai remontando outros momentos – outras
temporalidades – e associando-se a outras situações, sendo todo ele resignificado. O
comportamento dos funcionários, a visita, o lacre vermelho, as mortes anteriores, tudo
isso ganha novos contornos – o novo ponto de vista, muda (a relação com) os objetos.
Tanto o porta-voz da CEG quanto a porta-voz do grupo Morte Por Gás Nunca Mais
tentam englobar a totalidade dos acontecimentos em sua versão, embora nenhum dos
lados consiga abarcar tudo em si. A rede é “caracterizada, de um lado, grosso modo,
pela ausência de contornos nítidos; de outro, pelo fato que ninguém poder controlá-la, a
partir de uma posição superior, sua totalidade e, por exemplo, de dela se fazer porta-voz.
A rede é opaca [...] Pode-se procurar reconstituí-la, mas é sempre preciso partir de um
91
núcleo particular e remontar, paulatinamente, a cadeia de associações”. (Boltanski e
Clavérie, 2007: 427). O núcleo particular é o que dá consistência e permite com que as
duas versões entrem em confronto: trata-se de descrever o que “de fato” ocorreu e, com
isso, encontrar algum responsável pela morte das pessoas. A CEG, no caso da morte do
casal, atribui a responsabilidade aos próprios, fazendo-se porta-voz dos mortos, e no
caso de Carolina, filha da Fátima, atribui à mãe, a (ir)responsabilidade do (ou pelo)
rompimento do lacre. Remonta-se uma cadeia de associações heterogêneas que se
subsumem na categoria comum gerada pelo evento ocorrido: o remédio tarja preta e o
lacre vermelho, ambos os objetos passam a ser re-explicados.
Do fato que ocorrera em sua casa, Fátima passa a (re)explicar o que os
funcionários terceirizados fizeram naquele dia e a razão pela qual aquele acontecimento
foi calhar de ocorrer logo em seu apartamento. Sem partir do pressuposto de que sua
visão é parcial e que nos cabe subir até uma visão de projeção, mais completa – isso é,
capaz de abarcar nela mesma todos os pontos de vistas envolvidos no caso – tomamos a
própria porta-voz, ao modo da etnometodologia, como um ator-mundo, quer dizer
alguém capaz de montar, a partir dos elementos heterogêneos com os quais se depara,
uma teoria para explicar o que “realmente” se passou. Os atores não precisam dos
sociólogos, eles mesmos são capazes de elaborar teorias, mediante raciocínios práticos,
acerca do que se passou. Sem tomar um ponto de vista privilegiado, nosso trabalho
consiste em segui-los e, ademais, em não encerrar uma visão na outra apresentada.
“E o que ocorreu no dia 12 de Setembro de 2006? Houve o acidente com a Suzana dia
12 de setembro de 2006. E no dia 12 de Setembro 2006 abriram um buraco gigantesco
na porta no do meu prédio. Era um buraco enorme e largo, para fazer o chamado teste
de estanqueidade. Você sabe o que é isso? Eles injetam uma pressão de ar comprimido
na tubulação da rua para verificar como estão aas tubulações de dentro das nossas
casas. Tubulação do banheiro e da cozinha. Se der algum problema algum vazamento
nas tubulações, o que eles fazem? Eles pedem ao condomínio para fazer a tubulação
externa? Só quem que vai pagar a tubulação externa que custa 4, 6 mil reais? É o
condomínio: então os moradores tem que se cotizar para pagar em parcelas. Se não
tiver, o morador fica sem gás. É um monopólio [...] Eles não encontraram nenhum
vazamento e taparam as válvulas. Ai é que está o problema. Eles erraram ali, houve
um erro, né? O perito acusou [...] é, é, facilmente que eles injetaram o gás natural
dentro do meu prédio, sem que ainda tivesse convertido. O que aconteceu comigo
poderia ter acontecido com qualquer um. Estourou no meu relógio. A pressão era
violentíssima. E o nível do monóxido de carbono, no dia 13 de Setembro, na hora em
que minha filha tomava banho, [...] era 20 vezes acima do que um ser humano pode
suportar. Então eu perdi a minha filha em um minuto, um minuto e meio.Toda minha
coluna sentia o cheiro de gás. Moro no quarto andar. Dava pra sentir o cheiro do nono
andar. No dia seguinte, dia 14, a CEG chega antes do dia clarear e tapa os buracos
com o intuito de ludibriar.” (Fátima, em entrevista).
92
O buraco do dia anterior, as tubulações, o monopólio do gás, o monóxido de
carbono, a má-fé da CEG, o aquecedor de sua casa, a morte de sua filha, tudo é
mobilizado e associado para explicar o evento. Em suma, tudo é configurado de forma a
dar validade ao sentimento de injustiça – que fica no entremeio da justiça e da vingança
–, pela qual Fátima foi tomada. Como conseqüência disso, e de modo a fazer-se
reconhecer, Fátima mobiliza uma série de entidades para que a causa pleiteada se
engrandeça – e ganhe visibilidade; e, pouco a pouco, não é senão associando-se a outras
entidades, individuais ou coletivas, que ocorre o engrandecimento da causa. Como diz
Latour, “um actante não ganha força senão à medida que se associa a outros” (Latour,
2001: 244).
Convém perguntar de que forma isso ocorre? Em um primeiro momento, as
adesões são de pessoas diretamente concernidas em casos semelhantes, quer dizer
pessoas que tiveram parentes envolvidos em acidentes com equipamentos de
responsabilidade da CEG, cujo critério de mensuração foi formado juntamente com
próprio grupo circunstancial, pessoas às quais a Fátima obteve acesso através de uma
jornalista que havia falado sobre o caso no jornal, pouco depois das três mortes.
“Depois, no dia seguinte, havia uma matéria da jornalista X, do Jornal Oglobo; eu
liguei pra ela e falei: olha, eu não entendo nada de gás, eu não sei o que ta
acontecendo, mas uma coisa eu sei: meu aquecedor nunca esteve lacrado. Ai eu
comecei a contar o que contei até agora: eu queria gritar! Quero gritar. Mataram
minha filha e eu quero gritar. Meu aquecedor nunca esteve lacrado. Eu quero o nome
de todas essas vítimas que você pôs no jornal. Ai ela me deu os telefones que ela
tinha. Aí eu liguei pra ela, Suzana, e encontrei a mãe do Felipe Bonin. Aí apareceu a
cunhada da Lucia, Bonin, pelo Orkut. Aí eu procurei o Talarico Barata, o filho dele
leva vida vegetativa até hoje.” (Fátima, em entrevista).
Como para se produzir um caso, “o reclamante admitido deve se dobrar a certas
condições”, ou seja “ele deve renunciar a agir em pessoa própria e aceitar ver sua
reclamação, e as acusações que a sub-entendem, substituídas por um acusado em nome
de um terceiro muito maior que ele – o Rei, a República, o Estado, etc. – e marcar assim
sua vontade de separação principal com o mundo pessoal da vingança, do próximo, do
contato” (Boltanski e Claverie, 2007: 401), Fátima foi em busca de entidades coletivas
como o Viva Rio, a Comissão de Direitos Humanos, aquelas que poderiam fazer
engrandecer a causa que pleiteava.
“De cara eu comecei a ligar pra todo mundo e, de cara, eu liguei pro sociólogo Rubem
Cesar Fernandes. Porque ele é uma referência, do Viva Rio, e que só não faz mais por
falta de espaço, porque depois aprendi que a corrupção é muito grande. Então eu o
procurei e expliquei pra ele o que tava acontecendo e disse: eu quero gritar! E ele
falou assim: vou te mandar pra comissão de Direitos Humanos da Alerj e você vai
93
entrar em contato, levada por um membro do Viva Rio, você vai entrar em contato
com o Alessandro Molon e o Marcelo Freixo. Eu disse: não quero, não quero saber de
políticos. Tenho horror a isso, não quero. Ele disse: você vai lá, você vai ouvir. Então
fui eu, Suzana, Lúcia, a mãe do Felipe e o pai.” (Fátima, em entrevista).
Assim, sabendo intuitivamente que o sucesso do grupo dependeria de sua
capacidade de efetivar o processo de ascensão em generalidade (montée en généralité),
Fátima buscou a mobilização de instâncias aptas a influírem nesse processo de
“engrandecimento”. A Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembléia Legislativa
do Rio de Janeiro) é um dos principais exemplos de instância coletiva capaz de fazer
uma causa atingir um índice de generalidade superior. O trabalho da Comissão não é
senão esse: não sendo uma instância com competência para julgar ou mesmo punir
infrações e delitos, seu trabalho consiste basicamente em filtrar os casos pequenos e
irrelevante daqueles que possuem relevância, encaminhando-os para as instâncias
competentes. Essas instâncias (Defensoria Pública, Núcleo de Defesa dos Direitos
Humanos, por exemplo), por sua vez, não recebem do mesmo modo um caso
diretamente enviado pela entidade singular (a Fátima enquanto mãe que perdeu sua
filha) e um caso mediado pela Comissão: a última funciona, grosso modo, como um
operador que promove o índice de coletividade da causa. E não é senão desse modo que
a mesma contribui para fazer o Grupo Morte por Gás Nunca Mais ascender a um estrato
de grandeza maior. Analisemos: uma coisa é a Fátima, enquanto mãe de Carolina, morta
em razão de um vazamento de gás do aquecedor de sua casa, outra coisa bem diferente é
a Fátima enquanto representante do Grupo Morto por Gás Nunca Mais (o qual conjuga
em torno de si tantos outras entidades singulares e coletivas), juntamente com a
Comissão de Direitos Humanos, instância coletiva que reconhece sua legitimidade. A
primeira Fátima, singular, não possui o mesmo “tamanho” (segundo a grandeza cívica)
da segunda quando, por exemplo, se propõe a processar a CEG ou mesmo exige junto a
Assembléia Legislativa um projeto de lei
54
responsabilizando a empresa a quem foi
54
PROJETO DE LEI Nº 762/2007
EMENTA:
DISPÕE SOBRE A OBRIGATORIEDADE DA INSPEÇÃO ANUAL DE SEGURANÇA NAS
UNIDADES RESIDENCIAIS E COMERCIAIS ATENDIDAS PELAS CONCESSIONÁRIAS DE
DISTRIBUIÇÃO DE GÁS CANALIZADO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Autor(es): Deputado ALESSANDRO MOLONA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO
94
dada a concessão pela administração do Gás no Estado do Rio por uma série de medidas
preventivas a serem tomadas.
O mesmo pode ser dito para aquela a quem se acusa. Afinal, como mostramos
acima, o desvelamento segue sempre a mesma estrutura: procura-se demonstrar como
por detrás do que deveria agir em prol do beneficio comum, age-se em prol de um
particular. Ademais, a CEG e toda conversão para o gás natural se justifica, ao menos
no que diz respeito às suas ações oficiais, em razão dos benefícios genéricos gerados
pelo novo combustível. Não é senão à medida que se mostra capaz de agir em prol do
bem comum que seu trabalho encontra sua legitimação pública, fazendo com que
críticas não adquiram um grau de generalidade grande. Entretanto, uma vez que isso não
RESOLVE:
Art. 1º – Fica instituída a obrigatoriedade da inspeção anual de segurança nas unidades residenciais e
comerciais atendidas pelas concessionárias de distribuição de gás canalizado do Estado do Rio de Janeiro.
Art. 2º – A inspeção a que se refere o artigo anterior será realizada pela própria concessionária ou
empresas por ela credenciadas junto ao órgão público competente e não acarretará em ônus financeiro
para o consumidor.
Art. 3º - A inspeção abrangetodos os equipamentos e instalações integrantes do sistemas de
fornecimento e utilização do produto, em especial, fogões e aquecedores.
Parágrafo único - Após a realização das vistorias consignadas na presente lei, a concessionária ou seu
representante credenciado, fixará na unidade consumidora selo indicativo da última vistoria, com a data
prevista para a próxima inspeção.
Art. 4º - As concessionárias fornecedoras de gás canalizado, para efeitos da presente lei, terão a obrigação
de interromper imediatamente o fornecimento do produto às unidades porventura reprovadas na vistoria
de que trata a presente. Parágrafo único - O não cumprimento do disposto no caput do presente artigo,
sujeitará as concessionárias às seguintes sanções: I - Multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) UFIR-RJ por
unidade consumidora que não tenha sido vistoriada no prazo anual; II - Pagamento de todas as despesas
decorrentes do atendimento efetuado ao consumidor prejudicado, por danos materiais ou acidentes
pessoais, causados por sinistro em equipamentos e instalações inadequadas. Art. 5º - Esta Lei entrará
em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Plenário Barbosa Lima Sobrinho, em 21 de agosto de 2007.
Deputado Alessandro Molon
95
está sendo cumprido – ou que para seu cumprimento – há uma série de mortes e
problemas que afetam os cidadãos, isto gera um ambiente bastante propício para críticas
e desvelamentos. Um desses exemplos se segue:
“Quando a CEG lá atrás foi privatizada, ela decidiu a fazer a conversão. Ela descobriu
que 92% dos imóveis do Rio de Janeiro, residenciais ou comerciais, não tinham
condições de ter aquecedores em seus banheiros. Os banheiros não foram concebidos
para dar segurança ao consumidor. Então, sabendo de um risco desse, por que eles não
lacraram os 92% desses imóveis, dando segurança ao cidadão carioca, por quê?
Porque será que só com 8% de consumidores pagantes a CEG iria sobreviver ? O que
seria mais importante, o poder econômico ou o poder do cidadão? Claro que ele não
me respondeu, ele não soube responder” (Suzana, em entrevista).
Ora, a prova de que as metafísicas morais funcionam, em geral, quando visam a
uma crítica que se encontra dentro de um horizonte de publicidade é que sempre se é
mais fácil denunciar um ator cuja capacidade de encarnar o bem público é grande, como
o juiz, o policial, o político, do que qualquer outro. E se esse não age em prol do
interesse público, mas de razões particulares (Fátima acima denuncia a CEG por agir em
prol dos seus próprios interesses comerciais e não da garantia da segurança e bem estar
da população), a denúncia é quase que uma conseqüência imediata. Esta, embora pareça
mostrar como algum princípio de moralidade não funciona – ou que seu funcionamento
está aquém do que deveria –, reafirma-o, de outro modo, na medida em que afirma a
necessidade de sua validação.
E é nesse mesmo âmbito que a CEG se defende:
“A palavra da Ceg sobre mortes por gás
RIO - A Ceg não quis comentar o Projeto de Lei do deputado Alessandro Molon,
alegando que ainda se encontra em estágio de análise na Alerj. Sobre as demais
questões, a empresa respondeu:
"Nos últimos 10 anos, a CEG vem cumprindo com às determinações do Regulamento
de Instalações Prediais de Gás do Rio de Janeiro, com todas as normas técnicas
nacionais e internacionais, sendo fiscalizada pela Agencia Reguladora de Energia e
Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro.
Essas normas de segurança são válidas para qualquer tipo de gás, isto é natural,
manufaturado ou GLP. No Rio a CEG distribui o gás canalizado para 25% da população
e os demais 75% utilizam botijão de gás fornecido por outras empresas.
96
A CEG, diferente de outros distribuidoras de gás no município no Estado do Rio de
Janeiro, disponibiliza à população de canais de comunicação (agências, call center, site)
para sanar eventuais dúvidas e realizar serviços de adequação de instalações conforme
os regulamentos.
Estas normas falam sobre a importância da conservação e manutenção das instalações
internas, fogões e aquecedores a gás que, como ocorre com os demais serviços públicos
e conforme a legislação, devem ser realizadas periodicamente pelos usuários.
A CEG é uma empresa distribuidora e não um órgão fiscalizador. No entanto, a
segurança é um princípio básico na linha de atuação da Companhia. Por isso, oferece
serviço de assistência técnica que realiza vistorias e verifica condições de uso de
instalações internas e equipamentos, toda vez que o cliente solicita.
O gás natural ao ser utilizado de forma correta, é uma energia limpa e segura e a CEG,
na qualidade de concessionária de serviço público, sempre buscou sensibilizar seus
clientes para a sua correta utilização. Para tanto, a CEG vem realizando campanhas de
comunicação em todos os meios de comunicação de forma sistemática, visando a
conscientização quanto ao uso adequado do gás.
Nos últimos 10 anos, a CEG renovou e modernizou 652 km de rede pública de
distribuição, realizou mais de 250 mil serviços de assistência técnica solicitados pelos
clientes e, adicionalmente, por exigência do projeto de conversão para gás natural,
revisou as instalações de 492 mil residências, realizando 317 mil reparos, melhorando
substancialmente as condições de segurança da população.
Ocorre que as condições devem ser mantidas pelos consumidores ao longo dos anos, ao
realizarem obras ou qualquer outra alteração no imóvel. Além disso, a CEG, amparada
pela legislação, recomenda que os consumidores realizem manutenção em instalações
internas e equipamentos a cada dois anos”
55
Desse modo, as justificações engendradas pela CEG, em respostas (sempre
indiretas) às críticas proferidas pelo grupo Morte Por Gás Nunca Mais sempre intentam
responder afirmando que sua empresa age em prol do benefício público, e que a
55
Extraído do site: http://extra.globo.com/rio/materias/2007/10/03/297997507.asp
97
responsabilidade por eventuais acidentes está na negligencia do consumidor, o qual ela,
por sua vez, está sempre disposta a ajudar. De certo modo, pode-se dizer que o caso
segue sempre uma estrutura comum, dentro de um sistema actancial (móvel, pois
segundo cada versão apresentada, muda-se a vítima e o algoz): contínuas críticas e
justificações, sendo que ambos os lados tentam comprovar a validade e legitimidade
pública de sua causa. Um sempre tenta mostrar o outro como agindo em prol de seus
próprios interesses, enquanto demonstra a si mesmo como agindo em prol do interesse
público. Nessa perspectiva, pouco importam os atores em si, o que é, como chamava a
atenção Benveniste (1995), mais relevante é a posição pronominal ocupada. O “Eu” é
sempre o que age em prol do bem comum; já o “Ele”, aquele que não age senão visando
a sua própria singularidade. No caso da CEG, defende-se a necessidade da manutenção
das conversões, uma vez que estas seriam beneficias à população em geral; no caso do
grupo Morte Por Gás Nunca Mais alerta-se para os potenciais riscos engendrados pelo
processo de conversão. Mas apesar dessa estrutura comum, cada um dos lados conta
com uma certa vantagem. Pensemos no caso do grupo estudado.
Faz-se imperativo perguntar por que, afinal, o Grupo Morte por Gás Nunca Mais
consegue mobilizar pessoas em torno de sua causa, sejam entidades particulares ou
coletivas. O grupo conta com dois fatores que vão ao encontro de nosso senso moral
ordinário. Esses dois atributos, é verdade, encontram-se em certa tensão: de um lado, o
movimento adquire relevância uma vez que revela aos cidadãos comuns os vários riscos
potenciais a que estes estão submetidos, muitas vezes sem o saber, em razão de uma
série de negligências perpetradas pela CEG, as quais podem gerar acidentes. Isso é claro
quando as porta-vozes do grupos dizem:
“Eles fizeram a conversão. Mas vai lá nas regras [...], o que cabe a eles trocarem as
tubulações depois da conversão feita. Então tem muita gente correndo risco. Botafogo,
só agora eles estão trocando as tubulações. Só agora estão trocando tubulações. E
nessas tubulações novas, eles têm que ficar fazendo manutenção disso, injetando
resina, por quê? Porque esse gás é seco. E ele vai ressecando as juntas. E esse é o
problema. Só que vai chegar um tempo que essa manutenção da cidade inteira, e foi
isso que aquele juiz viu lá, isso vai sair do controle deles. Por isso que vão ter mortes.
Aí, por isso temos na São Clemente, o bueiro explodiu. Feriu um rapaz lá na frente e a
moça que tava dirigindo ficou em estado de choque.” (Fátima, em entrevista).
Ou, então, quando se refere ao projeto de lei que está sendo votado na casa:
“O que nós pedimos no projeto de lei? Que quebre o que a CEG fala. Ela pode matar e
o presidente chega lá e diz: sinto muito, sou pai de três filhos. Sente é nada! É o
caramba que ele sente. Ai é, é, o Molon fez um projeto de lei que pede que haja a
98
fiscalização interna dos usuários, ele pede a fiscalização anual com todos os
aquecedores com selos e data. 26 de outubro, vai ter que voltar lá, se não voltar, se
não voltar, vai ter que pagar multa de 50 ufir por dia. O projeto sofreu algumas
emendas porque nós sabemos que tem um lobby dentro da casa e alguns deputados se
vendendo.” (Suzana, em entrevista).
Ou, ainda, quando falam acerca do objetivo final do grupo:
“o mais importante do movimento é isso: não queremos que aconteça com os outros o
que aconteceu com a gente. A gente só vai conseguir esse tipo de coisa se você,
enquanto cidadão, tomar as rédeas e levar adiante esse processo. A gente tem uma
agência reguladora que não regula nada. Ela é uma agência que deve defender o
direito do cidadão, não o poder econômico. O cidadão não tem proteção. Ele depende
do Estado para isso. O dia que a gente chegar nesse nível, a gente deixa de ser
necessário e faz justiça às mortes [...] eu rezo pra todos nós, porque todos nós
tornamos uma família. Eu sou uma mulher cristã, eu tenho muita fé. Pra que isso
realmente venha à tona e possa beneficiar toda nossa cidade pra que nenhuma mãe
passe mais pelo que nos passamos, entendeu?” (Fátima, em entrevista).
Por outro lado, ao passo que o primeiro ponto se refere à prevenção e à punição
a que, uma vez que um problema advindo da CEG ocorre, os responsáveis pelos
potenciais males devem estar sujeitos, o segundo diz respeito à singularidade do
sofrimento de alguém que perdeu um parente por motivos aparentemente evitáveis. Se a
primeira questão nos reenvia à possibilidade da justiça, a segunda nos remete à
impossibilidade de que o mal seja, de alguma forma, resolvido, através de uma espécie
de restituição. Nesse segundo ponto, o discurso transcende a esfera do justo e parece,
por vezes, cair no mundo da vingança – onde o desejo de restituição se torna infindável.
Afinal, como restituir a perda de um filho?
“Eu estou processando a CEG na área cível e criminal. Mas pra mim não basta. O que
eu quero é provar, como já provei, no laudo do instituto Carlos Éboli, que meu
aquecedor nunca havia sido lacrado, e que mostrar à população dessa cidade a sujeira
que a CEG faz.” (Fátima, em entrevista).
Aqui entramos no problema que não é abordado por Boltanski e Thévenot em
seu trabalho sobre as grandezas, que é o problema do reconhecimento. Quem sobre ele
se detém é Paul Ricoeur, em seu último trabalho antes da morte, chamado “Percurso do
Reconhecimento”. O filósofo francês nos propõe uma leitura própria do trabalho das
grandezas: “onde digo reconhecimento, nossos autores dizem justificações. A
justificação é a estratégia por meio da qual os competidores fazem reconhecer seus
lugares respectivos no que os autores denominam economias da grandeza” (Ricoeur,
2006: 219). De fato, esse tipo de reconhecimento é ainda possível no primeiro caso:
conquanto reconhecida a causa pleiteada, e tendo ela atingido um certo grau de
99
generalidade, a justificação perpetrada pelo Grupo, qual seja a de que a CEG foi a
responsável pela morte de seus parentes e que, além disso, novas medidas precisam ser
tomadas para que novos acidentes não ocorram, é possível encerrar o caso. Entretanto,
esse reconhecimento não é capaz de suprir a segunda demanda por reconhecimento
gerada pela dor da perda. Da generalidade do caso, passamos à singularidade do
sofrimento
56
. Eis um exemplo extraído da entrevista com a porta-voz:
“Eu sou uma mulher muito forte, mas sou absolutamente frágil na emoção. Então, a
minha imagem confunde um pouco. Então eu ouvi da médica Ana Simas, que é
presidente da associação dos moradores da Lagoa, no dia audiência pública, no dia em
que vi o Presidente da CEG na minha frente, a vontade que eu tinha que era pra voar
na cara dele. Falando pelo meu sentimento, como mãe, minha vontade era de voar, de
esganar. Mas aí a Ana Simas me liga: Ah! Eu sempre escuto falar que quem grita é
quem tá querendo um cargo político. Eu disse: ou não. Então quem grita é quem viu
um filho morto em cima da cama. Então ela calou a boca. Ela vai dizer o quê? Ela não
teve um filho morto. Ela até tentou brigar por essa causa e não conseguiu. Graças a
Deus ela não teve um filho morto. O que ela vai responder a uma mãe que chega em
casa e se depara com um filho morto. Não tem palavra que possa dizer isso. Isso não
tem nomenclatura, não tem como nomear, não tem como qualificar. Que possa falar o
que é ver uma caixa daquela, e seu filho dentro, em um velório. Você pensa que vai
viver tudo na vida e que já viveu tudo, e que já sofreu tudo. Eu me pergunto: Será que
Deus existe? Eu trabalho, sou honesta, digna, honesta, cumpridora dos meus deveres.
Por que eu? Acho que é isso que a Suzana se pergunta, a Lúcia se pergunta.” (Fátima,
em entrevista).
Essa mesma sensação da singularidade absoluta é expressa quando da segunda
audiência pública, em que o Presidente da CEG, no início de sua fala, disse: “eu sou pai
de cinco filhos e imagino como seja essa dor”, ao que a Fátima retrucou: “não, não
imagina”. Diversos foram os momentos nos quais, ao longo da entrevista, a porta-voz
do grupo mencionada, fez referência à intraduzibilidade da sensação dessa perda, o que
nos coloca diante de uma questão de reconhecimento que parece insolúvel – no sentido
de não ter fim.
Por outro lado, esse segundo atributo, é bastante eficaz na geração de adesões.
Este último é capaz de funcionar como mecanismo de sensibilização das pessoas, o que
decerto ajuda a gerar adesões para além de pessoas diretamente concernidas no caso. De
fato, se em um primeiro momento as pessoas envolvidas são aquelas que tiveram seus
parentes acidentados, em um momento seguinte, os aliados não necessariamente
56
Não por acaso a própria obra de Boltanski passa da análise das operações de justificação que visam a
generalidade da causa pleiteada para, em um momento posterior, tratar dos casos de sofrimento à
distância em um contexto pós-midiático. Em nosso ponto de vista, trata-se aí de um problema, já presente
no primeiro trabalho feito conjuntamente com Thévenot, que é, para além da comprovação da
universalidade da causa, a seguinte questão: como sensibilizar e gerar adesão por meio da apresentação
do problema. E, sem dúvida, o sofrimento – seja a distância ou não – tem sido um dos meios de expressão
privilegiados para gerar adesão.
100
possuem uma relação direta com as vítimas. Não por acaso, em apenas dois dias os
parentes das vítimas conseguiram mais de duas mil assinaturas.
“Eu comecei a pipocar, vamos fazer um abaixo assinado
57
, que eu quero mandar
pra Brasília. Aí compramos aqueles livros, compra um livro preto e recolha
assinatura. Depois descobri que aquilo podia ser mandado pro Ministério
Público, porque eu tenho dois amigos de infância que sacam tudo de política, que
me ajudaram. Fomos à Cinelândia e montamos uma barraca para acolher
assinaturas. Esse aqui é o baner do Filipe, essa é o da Carol, minha filha. É, a
gente ficava lá o dia todo, ficamos dois dias; em dois dias recolhemos mais de
duas mil assinaturas. Posso dizer que 80% das pessoas tinham um caso pra
contar da CEG.” (Fátima, em entrevista).
Não apenas isso, mas o próprio reconhecimento da legitimidade da causa é, sem
dúvida alguma, impulsionado por sua capacidade de comoção. Não por acaso, a causa
chegou até o Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, apenas através desse
mecanismo. Nos conta Fátima:
“Comecei a ligar pra Brasília, pro Gabinete do presidente. Eu falei: Por favor, eu
quero falar com o Lula. Aí disseram: quem tá falando? Aqui é Fátima Rodrigues, eu
lidero um movimento de mães aqui no Rio de Janeiro. As pessoas me acham louca,
57
Eis as demandas presentes no abaixo assinado:
“Os pais que tiveram ou poderão ter seus filhos vitimados em razão da conversão de gás manufaturado
para gás natural, pela CEG, no Estado do Rio de Janeiro, se reúnem neste para ser encaminhado ao MP,
ALERJ e AGENERSA, o presente pedido: 
- Que sejam apuradas as condições de segurança para a POPULAÇÃO quanto às obras realizadas em vias
públicas, residências, comércio, etc; 
- Que seja apurado o preparo técnico dos funcionários e das empresas contratadas pela CEG para a
execução dos serviços de conversão e de vistoria técnica no Rio de Janeiro; 
- Que a CEG promova uma chamada geral (“RECALL”) a todos os seus CONSUMIDORES,
individualmente, no sentido de revisar todas as instalações e ambientes já convertidos para o
fornecimento de gás natural, a fim de verificar se os mesmos encontram-se enquadrados dentro das
NORMAS LEGAIS VIGENTES, de conhecimento e de observância obrigatória pela CEG e pelo Estado.
- Que quaisquer custas visando à adequação das instalações e ambientes dos CONSUMIDORES para as
normas vigentes sejam de responsabilidade única e exclusiva da CEG; 
- Que o Poder Público tome medidas que dêem segurança e tranqüilidade à POPULAÇÃO com relação às
ações executadas pela CEG no Rio de Janeiro; 
- Que o CONSUMIDOR seja informado dos cuidados com relação à manutenção dos equipamentos de
gás; 
- Que os culpados pelos fatos que vitimaram nossos filhos sejam responsabilizados.”
101
sabe? Aí eu ligo pra todo mundo, olha eu tô procurando o Presidente, aí ninguém
entende nada, sabe? Aí tá. Quatro meses procurando o Lula, e nada, nada. Fala pra
um, falo pra outro, me descabelo, choro. Eu não aceito, não aceito, acho que tem que
me atender mesmo. É minha filha, é meu caso, entende? E acho que se ele tá la é
porque todo mundo votou. E tem quer atender mesmo, por mais que ele seja
importante. Ele é, antes de tudo, ser humano, cidadão como nós, né? Aí tá. Minha
filha caçula faz aula de música na escola Vila-lobos. Um belo dia eu venho, minha
filha errou o horário, e viemos uma hora mais cedo. Coisa de Deus mesmo. Vim e
deixei minha filha na e escolha e fui pra Cinelândia pra um compromisso. Fui pro
ponto de ônibus e tava chovendo muito, e eu tava de branco. Aí todo mundo correu
pra de baixo da marquise. Eu corri pra de baixo da marquise. Ai dois cidadãos do meu
lado: é, todo esse aparato do teatro municipal é porque o homem vem ai hoje. Aí eu
olhei pra ele, já pressentindo. Que homem? O lula? Olha, nessa hora, tava passando
uma Sra. com um guarda chuva enorme. Aí eu pedi uma carona no guarda chuva até o
Municipal. Cheguei na porta do Municipal, vi uns seguranças, botei minha postura e
falei: olha, tão me aguardando ali dentro. Mentira. Mas entrei. Fala com um, fala com
outro. Aí veio um cara da federal, esses que são da federal, da nata, sabe? E falou
assim: eu vou te ajudar. Aí eu expliquei o nosso caso pra ele, falei que tava há dias
procurando o Lula. Aí o cara virou pra mim e disse: tá vindo pra cá o assessor do
Presidente, vou explicar pra ele o assunto com calma e com certeza ele vai te levar até
ele. Mas eu disse pra ele: eu preciso ir em casa, pegar o material pra poder mostrar pro
Presidente. Ele falou: são 15 pras 3 e você só pode chegar aqui ate três e meia. Eu
entrei no taxi e quase enlouqueci o motorista. Corre moço, corre! [...] Aí cheguei em
casa e cadê a camiseta? Deu um branco? Peguei a camisa, passei, cheguei no teatro e
liguei pra Suzana: tira foto do projeto de lei, disso, daquilo, só deixaram eu chamar
mais uma mãe. Cheguei lá a tempo, o federal me olhou, riu pra mim e disse: deixa ela
entrar. Eu não respirei. Aí veio um assessor, só tava eu e ela, as duas falando ao
mesmo tempo, ai ele veio: um baiano, nordestino, simpático, boa praça, ele falou
tenho certeza que o Presidente vai recebê-las, mas primeiro quero falar como
deputado. Ligou pro deputado e o Molon foi pra lá. Chegaram a Suzana e o Molon,
quase ao mesmo tempo. O Presidente tinha ido dar medalha para as crianças que
tinham tirado nota alta na escola e tal. Crianças da escola pública. Ficamos quatro
horas esperando. Fome apertava, sede, lá fora tinha um pipoqueiro, mas cadê a
coragem? Podiam chamar a gente. Até que o cara nos chama. Juntas, em silencio total,
de mãos dadas, fomos andando. O coração ele batia aqui, né? Não da pra descrever o
que foi aquele momento. Ainda ficamos paradas um pouco. Até que a acessória vem e
nos pega. Fomos lá e caminhamos até o presidente que tava premiando os atores que
tinham atuado no tropa de elite. E ele veio: no que ele veio, ele veio olhando. Olha: foi
a surpresa mais grata que eu já tive. Foi surpresa muito grande pelo carinho que ele
teve, pela atenção, pelo respeito à nossa dor, à nossa historia. As duas falavam ao
mesmo tempo. Ele calado. Uma hora me deu uma falha de memória, e eu falava pra
ele e ele parado, me olhando. Ele tem um magnetismo fortíssimo. E ele ia olhando e
entendendo tudo.
Ao mesmo tempo o pessoal da acessória, mesmo o Molon, tavam achando que nós só
íamos tirar uma foto com ele, e acabou. Nada! O Presidente surpreendeu a todos, com
certeza ele ali quebrou o protocolo e conversou conosco. Eu pedi a ele, mostrei a foto
da Carol na hora, ele ficou olhando [...] e, e, falamos tudo, a Suzana pediu para que ele
acelerasse a votação do projeto junto a Alerj. Ele perguntou quem era o autor e
Molon falou: sou eu, presidente. E encaminhou para Graça Fortes da Petrobras, uma
pessoa fortíssima lá, e é a Petrobras que vende o gás pra Ceg. [ ...] E mandou que a
procurássemos em nome dele, coisa que vamos fazer agora. E ele pediu um relatório
do numero de vítimas e de vítimas com seqüelas irreversíveis. Teremos uma semana e
meia porque ele vai voltar ao Rio pra lançar as obras do PAC.
Foi uma semana e meia de maluquice. Eu ligava pra Renata [coordenadora da
Comissão de Direitos Humanos] e ela ficava louca. Era um relatório muito bem
elaborado porque se fosse muita coisa, ele não ia ler, então tinha que ser enxugado em
2 folhas para ele ler. E na pasta em anexo colocamos todos os casos. E colocamos
enfim e tal. Já recebemos, tiramos a foto, e já recebemos que foi enviado ao Ministro
da Minas e Energia. E nele eu pedi ao Presidente que fosse baixado um ato normativo
pelo ministério das minas e energia. Porque baixando esse ato normativo, obrigando a
102
CEG a agir de acordo com que a norma que vem da federal a gente já ultrapassa
qualquer risco de perder a votação de lei do projeto aqui. E a gente não precisa mais
da lei. E se ele for baixado, ganhamos. E eu ainda não sei qual é o sabor dessa vitória.
Porque eu não consigo agora me imaginar, ver minha vida sem o movimento porque
ele é a mola, ele é pedaço da minha filha.” (Fátima, em entrevista).
O interessante é que, uma vez isso feito, a própria Fátima nos diz que: “Caso o
Presidente baixe o ato normativo, ganhamos. E eu ainda não sei o sabor da vitória.
Porque eu não sei me ver sem o movimento. Ele é mola. Ele é parte da minha vida”.
Isso nos remete aos limites do modelo apresentado por Boltanski e Thévenot,
mencionado acima. A justiça e o tipo de reconhecimento engendrado pode saciar apenas
uma parcela de nosso desejo; a conquista da generalidade, que é inegável no caso do
presente movimento, apresenta seus limites. A restituição da perda e o grau de
envolvimento com isso parecem não terem sido saciados pelo acolhimento público de
uma causa. O sentimento de injustiça parece continuar, pois a arbitrariedade do fato,
embora pública e notoriamente reconhecida, ainda deixa escapar um aspecto mais
profundo: a (restituição da) perda.
É interessante encerrarmos aqui o acompanhamento, no que concerne a
dissertação ao menos, do movimento. É na incerteza do futuro e mesmo do que a
própria porta-voz quer, deseja, que paramos. Em termos latourianos, abandonamos aqui
o processo de seguir as múltiplas associações e engrandecimentos que vão continuar se
construindo ao longo desse processo. O tempo da escrita e do acompanhamento dos
movimentos do grupo nos impedem de saber o que ocorrerá no porvir da vida desse
grupo circunstancial (que, pelo próprio nome, deve ter, algum dia, data para terminar).
Se é verdade que o caso só termina quando “o jogo de qualificações se interrompe,
permitindo à narrativa do que é ‘realmente’ passado se estabilizar, com as
conseqüências que devem ‘normalmente’ se seguir” (Boltanski e Clavérie, 2007: 443),
não nos é possível avançar até que ele se termine. Ou, em outros termos, é-nos até
mesmo possível dizer que, em certo sentido, ele nunca terminará ao menos para as
pessoas diretamente envolvidas no caso. Por que aqui ele deixa de ser intenção
estratégica para a produção de um certo reconhecimento com efeitos públicos, mas
torna-se expressão da singularidade da dor – que parece não ter fim: “esse movimento,
ele é o nossos filhos. Os nossos filhos, agora, viraram o movimento.”
103
CONCLUSÃO
Tudo o que fizemos até agora foi relacionar os movimentos do grupo
circunstancial estudado com os parâmetros teóricos das sociologias acima apresentadas,
com quase exclusiva preeminência (consentida e voluntária) da sociologia da crítica.
Acentuamos (1) os procedimentos por meio dos quais as integrantes do grupo buscaram
construir uma causa e (2) as formas por meio das quais as integrantes intentaram se de-
singularizar. Não só isso, (3) mostramos as tensões e alternâncias entre as duas
estratégias principais de de-singularização, qual sejam, a comprovação da generalidade
do problema através dos riscos implicados na causa pleiteada e a exposição contínua da
singularidade do sofrimento e de sua insaciabilidade.
Assim, nossa ênfase foi conferida aos momentos referidos sobretudo aos
constrangimentos de legitimidade que pesam sobre uma argumentação para que ela seja
considerada como justa – quer dizer, vá ao encontro de nosso senso ordinário de justiça
– e, com isso, consiga se de-singularizar, ou seja, gerar adesões para além de si mesma,
comprovando, assim, sua condição de um problema público, não concernindo apenas às
104
pessoas diretamente envolvidas, bem como aquelas (singulares ou coletivas) que,
sensibilizadas pela causa, a ela se vinculam por adesão. Entretanto, deixamos de lado,
talvez em demasia, a questão do poder e dos constrangimentos que pesam sobre uma
causa que, embora justa e legítima – quer dizer, capaz de respeitar os princípios de
universalização
58
a que uma argumentação que se pretende justa precisa estar adstrita –,
não consegue de pleno direito fazer-se prevalecer. Digamos que, embora o caso
privilegiado seja exemplar no que concerne às possíveis aplicações do modelo da
grandeza, não significa, por outro lado, que relações de poder – por vezes
experimentadas de forma arbitrária – estejam ausentes. Nosso foco, todavia, foi outro,
por uma razão bastante simples. Enfatizamos as relações ou os tipos de relações em que
os constrangimentos, dentro de um horizonte de publicidade, podem ser circunscritos
nos termos de metafísicas morais (acima chamadas de Cidadelas). As relações de força
foram secundarizadas em prol das relações não só de sentido, mas de justiça.
Faço uma espécie de mea-culpa que não deixa de ter sua motivação biográfica.
A própria entrada no mestrado do autor dessa dissertação se deu com vistas a aplicação
de uma sociologia crítica ao modo bourdieusiano, ou seja, meu intuito inicial era
desvendar as “reais” causas da desigualdade, refletindo sobre as condições que fazem
com que os dominantes obtenham predominância sobre os dominados. Ao longo da
pesquisa, todavia, não foram poucos os momentos em que percebi o quão inconseqüente
era esse modelo, além dos possíveis problemas gerados por uma aplicação desavisada
do mesmo.
O primeiro capítulo é, então, uma sintética apresentação do que entendo por
modelo crítico, tomando como base a teoria de Pierre Bourdieu. Em seguida, no
capítulo seguinte, busquei apresentar, ainda que com “a pena um pouco pesada”, os
problemas e impasses a que a teoria crítica pode nos levar, tentando dialogar com
Alexander, além de alguns dos dissidentes do modelo bourdieusiano, como Heinich e o
próprio Boltanski. No terceiro capítulo, apresentamos, de forma bastante sucinta, a
etnometodologia, em verdade o fizemos mais como uma introdução a alguns dos
pressupostos da sociologia de Boltanski e Thévenot, apresentada no quarto capítulo. Por
fim, no último capítulo, o escopo foi aplicar as teorias até então esboçadas, com uma
forte acento, conforme acima já foi colocado, na teoria pragmática francesa. Ela nos
58
Embora não tratada de forma direta, é indubitável a relação do imperativo de justificação com o
imperativo categórico kantiano: “Age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo
tempo que se torne lei universal.”
105
interessou mais e foi aquela que, diante do caso estudado, mostrou mais utilidade,
proveito e conveniência.
Ademais, para além do ajustamento teórico entre o caso estudado e a sociologia
da crítica, objetivamos apresentar sua utilidade uma vez que, no Brasil, os trabalhos de
sociologia têm enfatizado, em minha opinião muitas vezes de forma excessiva, o
modelo crítico. Raríssimos são os trabalhos que utilizam como fundamento os autores
da sociologia pragmática francesa
59
. Ademais, penso que, para pensar o Brasil, tornou-
se, ao longo dos últimos anos, “lógico demais” que toda relação é submetida a um
arbitrário cultural, cujo eixo fundamental está dividido entre dominados e dominantes,
sob pena de, em caso de discordância, ser taxado de inocente, ingênuo ou mesmo
alienado. Sendo o Brasil tratado como o país mais desigual do mundo e o tema da
desigualdade um dos temas que mais possui imersão no senso comum, o repertório
crítico acabou por se tornar o que há de mais banal e ordinário, tanto no mundo da vida
quanto na academia.
No caso brasileiro, por exemplo, uma das análises que tem tido bastante imersão
no senso comum acadêmico (e tem tido parte de seu sucesso devido ao truísmo que é
afirmar que no Brasil a desigualdade é brutal) é aquela que promulga a idéia de que
teríamos em nosso país uma espécie de “modernidade periférica”. Assim, o autor que
professa essa idéia, após uma crítica em que acusa, julga e condena a maior parte dos
intérpretes nacionais (Souza, 2000), tratando-os como pueris e superficiais, dado que
teriam caído na “crença doxológica” do “iberismo culturalista ou do patrimonialismo”,
esquece-se de que, ele próprio, recai no mesmo problema na medida em que reduz as
relações (que, segundo ele, “realmente importam”) à uma impessoalidade que, “ao
modo de fios invisíveis”, permeiam as mentes dos atores sociais. A análise olvida que
há relações das mais diversas formas (como no caso dos regimes de ação apresentados,
que não estão adstritas ao essencialismo que as encerra em relações modernas ou pré-
modernas, mas simplesmente tratam as entidades a partir do seu modo de se agenciar no
mundo) e que, do mesmo modo que não se pode reduzir o Brasil a um amálgama de
relações pessoais e impessoais (como Damatta [1979] o fizera), o inverso também não
pode ser feito. Em verdade, essa análise faz o que há de mais arcaico, só que sob as
vestes do novo e do científico: a teoria de Souza nos “emancipa” dizendo-nos
modernos, porém condena-nos à periferia. Ao menos a primeira, quer dizer a análise de
59
Bons exemplos são Machado (2004), Freire (2008).
106
Damatta, nos parece, tem a vantagem de ser mais plural e abarcar um maior número de
relações em sua grade analítica. Ao mesmo tempo, a “crítica científica” promulgada
pela versão crítica, a qual condena o Brasil à condição de modernidade periférica, e que
condenava as antigas interpretações por estigmatizar o mesmo país às relações pré-
modernas, não se dá conta de que ela nos dá a modernidade, mas ao preço de algo pior
do que até então havia sido colocado. Se não somos mais pré-modernos ou uma espécie
de conjugação de relações modernas e não modernas (a casa e a rua, para Damatta),
somos agora ainda mais infelizes: somos modernamente periféricos, ou seja: temos uma
modernidade bastarda. O essencialismo é o mesmo: não mais pelo viés do iberismo ou
do patrimonialismo, mas por uma metafísica ainda mais abstrata. Invoca, para tanto, “a
existência de redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos
sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, e isso sob a forma de uma
evidência social insofismável, tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas
da precariedade”. (Souza, 2003: 177). Sem sequer fazer uma reflexão acerca dos
procedimentos críticos (como acima fizemos) menos ainda sobre a concepção de
habitus tal qual teorizada por Bourdieu (a qual é aplicada por Souza de forma
instrumental), a teoria do sociólogo brasileiro sobre a sub-cidadania parece superar em
nada aqueles a quem critica. Pelo contrário. Reafirma o essencialismo anterior e, mais
do que isso, extrai seu sucesso exatamente daquilo que acusa nas teorias anteriores. Ora,
pergunto-me se existe algum tema que seja mais próprio e próximo ao senso comum do
que a desigualdade? Ou melhor, será que nossa desigualdade é tão irreflexiva ou será
que ela está todo tempo imersa no senso crítico ordinário e sendo empregada e
atualizada em nosso dia-a-dia? Será que precisamos de uma nova metafísica, não aquela
do personalismo ou do patrimonialismo, mas a da impessoalidade? Os atores precisam
mesmo, por acaso, do sociólogo para explicar o que para eles se trata de uma platitude?
Assim, dizendo que a "[...] naturalização da desigualdade periférica não chega à
consciência de suas vítimas, precisamente porque construída segundo as formas
impessoais e peculiarmente opacas e intransparentes devido à ação, também no âmbito
do capitalismo periférico, de uma ideologia espontânea do capitalismo' que traveste de
universal e neutro o que é contingente e particular" (idem, p. 179), Souza repete, de
modo irreflexivo, o chavão crítico e arroga para si o monopólio de dizer a verdade sobre
a verdade dos atores. Aqui, tratando os atores como detentores de uma consciência
mistificada, e a si mesmo como o sociólogo que, à la Platão, atinge a verdade do mundo
das idéias, Souza pretende, por meio de uma metafísica (tão abstrata quanto as idéias do
107
filósofo grego), retirá-los da obscura caverna. Mas, como vimos com Boltanski, convém
perguntar se precisam realmente os atores da sociologia “crítica e científica” de para
lhes dizer o que, para eles, é tão óbvio. Será mesmo que só Damatta está transpondo
para a academia – e em linguagem mais acadêmica – o que o próprio senso comum diz
a propósito de si mesmo? Teria assunto mais, digamos, senso comum do que a brutal
desigualdade brasileira?
Por fim, uma última consideração a respeito da teoria crítica de Souza. Este,
fazendo uma relação com Florestan Fernandes (um dos poucos poupados de seu índex),
diz que no Brasil, após a abolição da escravatura, “formou-se, antes uma 'ralé' que
cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados
dos processos essenciais à sociedade”. (idem, p. 122); daí Souza retraça a origem de
indivíduos que, segundo a hierarquia das instituições fundamentais do Ocidente, são
inúteis e descartáveis. Fazendo-se, então, porta-voz de uma estrutura social invisível,
Souza condena, por meio de uma categoria abstrata, uma série de indivíduos à condição
de “coisa” e ajuda a performar aquilo contra o que, a princípio, ele parece lutar.
Ademais, Souza pretende esconder por detrás de um invólucro “objetivista” a dimensão
fortemente normativa de sua teoria, alçando-a à condição de ciência positiva. Para
fundamentar sua empiria – intitulada “ralé estrutural”
60
– que, de fato, não parte de
nenhuma empiria ou mesmo correlação estatística, mas, antes, formaliza as intuições do
senso comum –, Souza lança mão dos famosos e abstratos “fios invisíveis [que]
interligam e cimentam tanto afinidades e simpatias, constituindo as redes de
solidariedades objetivamente definidas ou, por outro lado, forjam antipatias soldadas
pelo preconceito” (Souza, 2003: 15).
Não vou me alongar em uma discussão que será melhor tratada em um outro
trabalho. Sua breve apresentação serve apenas para mostrar que a sociologia francesa
(pós-bourdieusiana) pode nos ajudar, e muito, a pensar as infindáveis relações e
questões do caso brasileiro, sobretudo no que concerne aos impasses legados pela
tradição crítica cuja importância, é preciso deixar claro, foi inegável.
Penso ainda que, mais para frente, será possível – o que não foi ainda nesse
trabalho – conciliar a perspectiva da sociologia da crítica com as contribuições do
esquema crítico tradicional, chegando a um meio termo entre os constrangimentos de
60
Em nossa opinião, trata-se de um conceito encharcado de normatividade, mas que o autor tenta reduzir
à sua dimensão descritiva.
108
legitimidade que pesam sobre os atores e as situações nas quais, embora esses sejam
respeitados, não se consegue prevalecer.
Nem um éden, nem um inferno: apenas um meio termo que consiga analisar as
diferentes situações em meio às quais as entidades se fazem descritíveis e mobilizam
suas competências. Talvez uma utilização dosada (quem sabe, em doses homeopáticas)
da sociologia crítica possa nos ajudar no trabalho de vigilância epistemológica. A
verdade está sempre no meio e os maniqueísmos devem sempre ser evitados. A questão
da dissertação foi, de fato, enfatizar os constrangimentos de legitimidade respeitados –
ênfase necessária, em nosso ponto de vista, para reverter o óbvio. Em nossa opinião, se
há alguma coisa contra qual o trabalho acadêmico deve lutar, esse é contra o óbvio, o
estabelecido. Nossa tarefa é aumentar o índice de refletividade, exatamente ali onde a
“caixa-preta” está fechada, trancada e todos estão satisfeitos. Daí o imperativo de foco
na sociologia da crítica, daí também o objetivo de toda essa dissertação.
109
B
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