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identifica como “A vocação do poeta
243
”. Lang escande esse poema em alemão, e é logo
traduzido por Francesca para o francês: “Mas, quando é necessário, o homem perde o medo/
Diante de Deus, a simplicidade protege-o/ Não precisa de armas nem de ardis,/ Até a hora que a
ausência de Deus vem em sua ajuda
244
”.
Em seguida, Lang comenta, e Francesca traduz, novamente:
O último verso é muito obscuro. Hölderlin escreveu antes: “enquanto Deus não
faltar”. Em seguida, escreveu: “Enquanto Deus permanecer próximo”. Como
você pode ver, a redação do último verso contradiz os dois outros, não é mais a
presença de Deus, é a ausência de Deus que tranqüiliza o homem. Estranho, mas
verdadeiro
245
.
243
Ibidem, p. 27. La vocation du poète.
244
A tradução desses versos é de Alvaro Cabral, e estão no livro BLANCHOT. O espaço literário, p. 271. A
tradução de Francesca está em GODARD. Le mépris, p. 27. Mais l’homme quand il le faut peut demeurer sans peur
seul avant Dieu, sa cnadeur le protège el il n’a pas besoin ni d’armes, ni de ruses, jusqu’à l’heure où l’absence de
Dieu vient à son aide. Blanchot, no último capítulo desse livro, “O itinerário de Hölderlin”, faz alguns comentários
bastante esclarecedores sobre o poeta alemão, e o que sua poesia nos diz sobre a relação do homem com os deuses.
Nicole Brenez, que fez a transcrição e redigiu a decupagem completa do filme, plano por plano, e que escreveu
algumas notas no roteiro, quando Lang escande esse poema, e algumas outras variantes, escreveu o seguinte:
“diálogo baseado numa célebre análise de Maurice Blanchot em O espaço literário (1955), “O itinerário de
Hölderlin”. “Dialogue d’après une célèbre analyse de Maurice Blanchot dans L’espace litéraire (1955), L’itinéraire
de Hölderlin.” Ver GODARD. Le mépris, p. 27, nota de pé de pagina. Mas o último verso, que Francesca traduz,
não corresponde ao último verso que está traduzido no livro de Blanchot: lá está “Enquanto o Deus não lhe faltar”. A
tradução do quarto verso citada acima, portanto, é minha, e corresponde ao que é dito no filme por Francesca, e
publicado no roteiro, também. Tudo indica que Godard usou esta análise de Blanchot sim, mas parece que ele
consultou outra(s) fonte(s), pois, como iremos ver, ele emprega uma outra variante desse verso que não está no
ensaio de Blanchot. É interessante observar que o quarto verso, na tradução de Francesca, no filme, “jusqu’à l’heure
où l’absence de dieu vient à son aide” (“até a hora que a ausência de Deus vem em sua ajuda”) é parecido ao verso
que Blanchot dá como variante; mas mesmo aqui, as palavras não são as mesmas: “Jusqu’à ce que le défaut de dieu
l’aide” (“até que a ausência de deus o ajude”, tradução de Alvaro Cabral). Da mesma maneira, uma das variantes
que Lang usa, e que é traduzida por Francesca como “Tant que Dieu ne fait pas défaut” (“de tal forma que Deus não
faz falta”), estão no livro de Blanchot como a versão (traduzida) original do quarto verso: “Aussi longtemps que le
dieu me lui fait pas défaut” (“enquanto o Deus não lhe faltar”, tradução de Alvaro Cabral); aqui, também, algumas
palavras são diferentes, se comparamos a versão de Blanchot àquela de Francesca. A versão francesa desses versos
está em BLANCHOT. L’espace litéraire, p. 365. Quanto à uma segunda variante, que Francesca traduz como “Tant
que Dieu nous demeure proche”, (“enquanto deus permanece próximo”, tradução do autor) não existe no ensaio de
Maurece Blanchot. Diferentes versões, diferentes traduções e, provavelmente, diferentes fontes consultadas:
provavelmente, diferentes interpretações, e diferentes leituras. O importante é que todas elas esclarecem, de alguma
maneira, o que Hölderlin tem a dizer da relação dos homens com os deuses.
245
GODARD. Le mépris, p. 27. “Le dernier vers est très obscur. Hölderlin avait écrit d’abord: “Tant que Dieu ne fait
pas défaut”. Et ensuite: “Tant que Dieu nous demeure proche”. (...) Vous voyez, la rédaction du dernier vers
contredit les deux autres, ce n’est plus la présence de Dieu, c’est l’absence de Dieu qui rassure l’homme. C’est très
étrange, mais vrai.”