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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Bruno Salviano Gripp
ALÉM DAS NUVENS: CRÍTICA À FILOSOFIA NOS FRAGMENTOS DA
COMÉDIA ANTIGA
Belo Horizonte
2009
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BRUNO SALVIANO GRIPP
ALÉM DAS NUVENS: CRÍTICA À FILOSOFIA NOS FRAGMENTOS DA
COMÉDIA ANTIGA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito para obtenção do título
de Mestre.
Orientador: Prof. Dr.Teodoro Rennó Assunção
Belo Horizonte
2009
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BRUNO SALVIANO GRIPP
ALÉM DAS NUVENS: CRÍTICA À FILOSOFIA NOS FRAGMENTOS DA
COMÉDIA ANTIGA
BANCA EXAMINADORA
Titulares
Prof. Dr. Teodoro Rennó Assunção
Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Dr. Jacyntho José Lins Brandão
Universidade Federal de Minas Gerais
Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques
Universidade Federal de Minas Gerais
Suplente
Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
2009
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6
AGRADECIMENTOS
A conclusão desta dissertação não seria possível
sem o apoio em especial de meus pais, Glicia e
José Antônio, de Evelyn e de todos meus outros
amigos que, de alguma forma, me ajudaram a
escrevê-la..
Também tiveram grande importância para a
dissertação, o meu orientador, Teodoro Rennó
Assunção e o Programa de Pós-Graduação em
Estudos Literários da UFMG. E também o
Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, sem cujo apoio a
redação deste trabalho muito sofreria.
Solo deo gratias
7
VADIUS
J'ai le contentement,
Qu'on voit qu'il m'a traité plus honorablement.
Il me donne en passant une atteinte légère
Parmi plusieurs auteurs qu'au Palais on révère;
Mais jamais dans ses vers il ne te laisse en paix,
Et l'on t'y voit partout être en butte à ses traits.
TRISSOTIN
C'est par là que j'y tiens un rang plus honorable.
Il te met dans la foule ainsi qu'un misérable,
Il croit que c'est assez d'un coup pour t'accabler,
Et ne t'a jamais fait l'honneur de redoubler:
Mais il m'attaque à part comme un noble adversaire
Sur qui tout son effort lui semble nécessaire;
Et ses coups contre moi redoublés en tous lieux,
Montrent qu'il ne se croit jamais victorieux.
Molière – Les Femmes Savantes Ato 3, cena 3
8
RESUMO
Partindo das interpretações tradicionais d’As Nuvens que tentam interpretar a longa questão cratica
suscitada pela diferença de caracterização entre o Sócrates "filosófico" e o Sócrates "aristofânico", levantamos a
hipótese de que tal diferença é, ao menos em parte, tradicional, ou seja: de que Aristófanes esteja trabalhando
com uma maneira tradicional da comédia de ver Sócrates. Sugerimos que não apenas a caracterização de
Sócrates, mas a caracterização de toda a filosofia antiga segue um padrão estabelecido, tradicional. A base
para tal afirmação o os fragmentos cômicos de outros autores que tratam Sócrates de uma maneira
razoavelmente semelhante, outros fragmentos que mencionam Protágoras, os fragmentos que mencionam
Pródico e a disposição em cena do conflito de dois tipos de educação que é a base do conflito d’As Nuvens. Com
uma breve verificação dos fragmentos da Comédia Média, percebemos que estes são dúbios, uma vez que tanto
confirmam as teorias básicas de um tratamento padronizado, como também apresentam uma diferença
fundamental em relação à comédia antiga: as alusões o específicas, e os poetas demonstram possuir uma
verdadeira noção do que defendem os atacados. Tal discrepância pode-se explicar por uma mudança na posição
social da filosofia no século IV, mudança essa que inviabiliza toda discussão da comédia antiga que pouco se
interessa nas doutrinas em si mas naquilo que elas representam como uma quebra na tradição. Depois faz-se uma
breve análise da origem da figura do pensador na comédia, de onde ele teria sido moldado, e esposamos a teoria
de que ele tem origem numa identificação com o parasita. E por fim tenta-se compreender a razão de Aristófanes
ter escolhido Sócrates como alvo; imaginamos que o motivo principal é que, ao contrário de todos os outros
pensadores, incluídos filósofos, retores e todo tipo de intelectual, Sócrates é ateniense, e somente atenienses
podem ser criticados em cena na comédia antiga.
9
ABSTRACT
From the traditional interpretations on The Clouds, which try to understand the old Socratic question, risen from
the difference between the characterizations of Socrates in the works of the philosophers, such as Plato and
Xenophon and the Aristophanical Socrates. We suggest that such difference comes, at least partially, from
tradition, which Aristophanes works within a traditional way of comic abuse against philosophers in general.
That means that not only the characterization of Socrates but the characterization of all philosophers and thinkers
stem from a traditional pattern. The base for such statement comes from the comic fragments which treat
Socrates in a very similar manner to other writers from Old Greek Comedy, other fragments which mention
Protagoras, Prodicus and the mise-en-scène of the conflict between old and new education, which is the base of
the conflict in The Clouds. Scrutinizing the extant fragments from the Middle Comedy, we realize that they may
give two basic conclusion, the first is that they confirm some tendencies from the Old Comedy maintaining the
same type of sarcasm, but they also show a very different approach and knowledge of philosophy: the allusions
are clear and they show a special awareness of philosophy’s doctrines and practices. Such a difference can be
explained due to a change in the social position of philosophy in IV century, a change which denies the problems
of the V century when philosophy and philosophers were seen as menaces to tradition. After we make a brief
commentary in the origin of the philosopher’s stage persona, where it came from, and we support the theory that
it comes from the stock of the parasite. And finally we try to answer the reason why Aristophanes chose Socrates
as his main target, we think that comes from the fact that, unlike most other philosophers, sophists and
intellectuals, Socrates is an Athenian man, which made him an easier target to the Athenian comedy.
10
Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
1. O SÓCRATES D’AS NUVENS ....................................................................................... 14
2. SÓCRATES NA COMÉDIA ANTIGA ........................................................................... 39
3. A FILOSOFIA NA COMÉDIA ANTIGA ....................................................................... 60
4. A FILOSOFIA EMANCIPADA ..................................................................................... 91
5 O ESTOQUE CÔMICO COMUM ................................................................................. 103
CONCLUSÃO ................................................................................................................... 126
11
INTRODUÇÃO
Esta dissertação busca tratar primariamente de um dos problemas centrais da
comédia As Nuvens de Aristófanes, o qual diz respeito aos motivos pelos quais Aristófanes
elegeu Sócrates como um dos personagens, e à razão de tal caracterização de Sócrates ser tão
destoante da figura que obras como as de Platão e Xenofonte nos mostram. No entanto, por
motivos que logo explicaremos, não estamos satisfeitos com as interpretações tradicionais
desta comédia, que encontramos nas obras mais importantes e fundamentais como
Aristophanes de Gilbert Murray e a introdução à edição das Nuvens de Kenneth J. Dover
1
. O
motivo é bastante simples, todas elas acabam por não considerar esta comédia dentro do
panorama da Comédia Antiga, e acreditamos, baseados em trabalhos mais recentes publicados
sobre o assunto, que essa perspectiva é essencial para qualquer interpretação de Aristófanes.
Nos últimos anos, vários livros vêm enriquecendo e aprimorando nosso conhecimento sobre
outras obras e outros autores da Comédia Antiga, demonstrando que ela pode ser melhor
compreendida se esta tradição for considerada. Este é o objetivo desta dissertação: avaliar em
perspectiva se a tradição da Comédia Antiga influenciou a composição e caracterização dos
personagens n’As Nuvens, ou seja, enfrentar a difícil questão da caracterização do filósofo na
comédia.
Para sua completa realização, o trabalho passou por diversas fases. A primeira
começou antes mesmo do início do mestrado com a leitura do texto grego da comédia de
Aristófanes. Foi uma leitura cuidadosa da obra a qual motivou a escolha deste tema da
dissertação que possibilitou um contato mais profundo com a comédia, permitindo que o
autor se familiarizasse com os temas e os problemas que lhe são únicos. Também teve grande
importância na escolha do tema a leitura do clássico The Greek Comedy de Gilbert Norwood,
que apresentou ao autor pela primeira vez a Comédia Antiga em uma perspectiva mais ampla,
com comentários relevantes sobre autores importantes como Êupolis, Cratino, Crates, Aléxis
e Menandro.
Uma vez escolhido o tema e dominado o assunto básico, buscou-se, numa segunda
etapa, a bibliografia básica sobre a comédia de Aristófanes, cujas interpretações comuns,
gerais e aceitas, foram de grande importância para a realização do projeto da dissertação.
Após a realização do concurso para o mestrado em Estudos Clássicos da FALE-UFMG e
1
1968
12
aprovado o ingresso do autor, iniciou-se a terceira parte da dissertação, a qual se centrou na
leitura e compreensão da obra de Aristófanes, na língua original.
Apesar de à primeira vista o esforço de ler em grego obras cujas traduções são tão
facilmente encontradas, como as comédias de Aristófanes, possa ser considerado excessivo
para a duração limitada de um curso de Mestrado, tal procedimento foi de grande utilidade
para a posterior redação da dissertação, pois permitiu ao autor habituar-se à linguagem e aos
termos característicos de Aristófanes, em especial àqueles ligados à dissertação.
Este hábito adquirido foi de essencial importância para a quarta fase da dissertação,
quando foi realizada a leitura do primeiro volume de fragmentos de Bergk, pois, uma vez
habituado aos termos característicos da Comédia Antiga, foi mais fácil ao autor selecionar os
fragmentos e passagens mais relevantes para a composição da obra. Escolhidos os
fragmentos, buscou-se uma bibliografia mais específica tanto do tema quanto dos autores aqui
tratados.
A última fase, concorrente com a redação da dissertação, consistiu na leitura dessa
bibliografia de apoio bem como de outras obras da Antigüidade que seriam de utilidade para a
interpretação deste corpus adquirido, em especial as fontes da maioria dos fragmentos e textos
relativos à biografia dos personagens históricos aqui citados, principalmente Sócrates,
Protágoras e Pródico de Ceos.
A análise dos fragmentos, por sua vez ainda que nem sempre evidenciada pela
redação centrou-se, primeiramente, na atribuição do autor, algo que normalmente não nos
coloca muita dificuldade, pois são raros os fragmentos que apresentam alguma dúvida quanto
a sua autoria. Em seguida, concentrou-se na atribuição da comédia, tarefa que representou um
desafio maior, visto que é bastante freqüente a citação sem atribuição de comédia, restando-
nos apenas sugerir, por questões temáticas ou de personagens, a relação do fragmento em
questão com uma comédia conhecida O passo seguinte foi determinar em que esse fragmento
é relevante dentro do universo da Comédia Antiga, se por um paralelo temático, uma citação
em comum ou um personagem relevante. Naturalmente tais paralelos são feitos
primordialmente com Aristófanes, pelo fato de possuir o corpus mais extenso da Comédia
Antiga. Feito isso, buscamos alguma relação fora da Comédia Antiga, caso ela comprove
algum dado real para nós deixado pela tradição ou negue o fragmento.
Por fim, redigimos ao final uma conclusão que retoma os achados dos três primeiros
capítulos e tenta verificar a assunção inicial, ou seja, de que a caracterização de Sócrates n’As
Nuvens origina-se na tradição cômica e não em alguma indisposição de Aristófanes para com
o legado socrático.
13
Para a realização deste trabalho o autor contou com a orientação do professor
Teodoro Rennó Assunção e utilizou as bibliotecas da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, da Faculdade de Filosofia da Universidade Aristóteles de
Tessalônica e da Escola Francesa de Atenas. Ferramentas essenciais para a realização do
trabalho foram os dicionários de grego-inglês A Greek-English Lexicon Liddell-Scott e grego-
francês Dictionnaire grec-français Anatole Bailly, a gramática grega de Smyth
2
e o segundo
volume de Schwyzer
3
, além do dicionário de verbos anômalos de Papadopoulos ter sido
utilizado em certos momentos. O Thessaurus Linguae Graecae foi também uma grande
ferramenta, ainda que bastante falha em sua coleção de manuscritos. No entanto a facilidade
de pesquisa e seu vasto banco de dados se provam bastante úteis, em especial na leitura e
acompanhamento de escólios.
Para a leitura e tradução das obras gregas que aqui citamos, foram úteis as traduções
de Adriane Duarte As Aves, Gilda Starzynski d´As Nuvens, as traduções de Platão de Carlos
Alberto Nunes, para o português, e as traduções d´As Nuvens e Os Acarnenses de van Daele
e dos Memoráveis de Eugene Talbot para o Francês, e as traduções de Kenneth Dover da obra
de Aristófanes e da obra de Platão de Paul Shorey para a língua inglesa.
Por fim, o trabalho contou com o fomento financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico iniciado em março de 2008 e terminado em
janeiro de 2009.
2
Greek Grammar, 1984.
3
Griechische grammatik, 1953.
14
1. O SÓCRATES D’AS NUVENS
1.1. O PROBLEMA D’AS NUVENS
Um velho Ateniense encontra-se inquieto com as crescentes despesas do filho com
corridas de cavalos. No desespero para fugir das dívidas ele arma um grande plano: mandá-lo
para o φροντιστήριον para que ele assim consiga aprender, junto a Sócrates, Querefonte e
seus discípulos, sobre a arte de enganar a todos nos tribunais e com isso livrar-se das dívidas.
Depois da negativa do filho em aquiescer a este plano, o velho decide ir ele mesmo ao lugar
onde Sócrates ensina e tornar-se seu aluno para dominar tal conhecimento.
chegando, encontra-se inicialmente com um aluno de Sócrates, que prontamente
lhe divulga todos os segredos que são mantidos como mistérios é a pica cena introdutória
da porta, como pode ser vista em outras comédias como Os Acarnenses e As Rãs. O objetivo
dessa cena é o de retardar a entrada do personagem principal e de introduzir o ambiente e as
questões da comédia. Em seguida, Sócrates faz sua entrada em cena e concorda em fazer do
velho seu discípulo. Entretanto, no ritual da mais importante iniciação, ele faz o velho
conhecer as verdadeiras deusas de Sócrates, as Nuvens, que foram geradas pelo Vórtice, o
deus que suplantara Zeus.
Posteriormente, face à impossibilidade de fazer o velho aprender os ensinamentos,
Sócrates desiste e abandona o velho à sua própria sorte, o qual, no entanto, consegue
convencer seu filho a ter aula com Sócrates. Como uma demonstração inicial do que ele virá a
aprender, encena-se o agón, na forma de um combate entre os dois discursos: o discurso justo
e o discurso injusto. Ao fim da cena, o filho já foi completamente treinado por Sócrates, e seu
pai prontamente põe vários credores a correr por meio de ameaças e agressões físicas. Porém,
o próprio filho adapta-se à lógica do pai e começa a bater no seu próprio genitor. Num golpe
final de teatro, as Nuvens, que antes se mostraram ligadas a Sócrates, revelam-se punidoras e
censoras de tais atitudes e instam o velho a destruir o φροντιστήριον, e com esse em chamas a
comédia se encerra.
Esse é, de maneira bastante sucinta, o argumento da comédia. A primeira
consideração é a de que, apesar de uma larga parte da literatura
4
dedicar-se a outros assuntos,
4
Apenas algumas páginas da introdução de Dover referem-se a esse problema. A maior parte da introdução
dedica-se à importante questão da data e das duas versões da comédia, tal como Kopff e obras como as de Pietro
Pucci e outros autores.
15
como é visível claramente pelo argumento simplificado, o protagonista da comédia é
Estrepsíades, o velho. Esse personagem possui diversas semelhanças com os protagonistas de
outras comédias de Aristófanes, como Diceópolis, Trigon, Filocléon e muitos outros
5
. A
história também é conformada pelo paradigma tradicional da Comédia Antiga de uma pessoa
comum, que no final consegue subverter personagens superiores, e.g, a pólis, n’Os
Acarnenses; os deuses, no Pluto, n’As Aves e n’A Paz; pessoas superiores em hierarquia, n’Os
Cavaleiros ou em intelecto, no caso desta comédia. Característico também de uma comédia
antiga é o fato de que o fim, ainda que possa ser considerado um happy ending típico, termina
de forma um tanto amarga e incompleta: Estrepsíades consegue livrar-se de Sócrates e dos
credores com o custo de perder seu próprio filho.
No entanto, apesar de apresentar tantas características tradicionais do gênero, As
Nuvens são uma comédia à parte na história da interpretação de Aristófanes, pois ela nos
apresenta um dos problemas mais discutidos e comentados da história da literatura grega: a
caracterização de Sócrates e sua relação com a figura histórica desse personagem. o
dúvida de que grande parte da popularidade e da importância que essa comédia tem para nós
reside na presença de um personagem amplamente conhecido, sendo ele um dos filósofos
gregos que mais influenciaram a história da filosofia. Diferentemente do que acontece na
maioria das outras comédias, Aristófanes está atacando um personagem com o qual temos
certa familiaridade
6
, dada sua proeminência em obras de Platão e Xenofonte, o que o
acontece com outras personalidades gregas de talvez até maior vulto na época para o cidadão
comum, como é o caso de Cléon, Hipérbolo, Agatão e a maioria dos outros personagens da
comédia aristofânica baseados em figuras reais, com exceção de Eurípides. Com relação a ele,
ainda que conheçamos um volume não desprezível de obras, a tradição é bem mais reduzida
do que a de Sócrates e sua importância para a história das idéias européias. Assim, o modo
como Aristófanes nos apresenta Sócrates choca-se com o modo tradicional de apresentação de
um dos mais admirados personagens da história, estimado tanto pelos gregos quanto pelos
romanos, cristãos, árabes e modernos. O choque dá-se o apenas pelo escárnio a um
personagem de tanta importância e tão elogiado, mas também por confundir-nos pela sua
aparente incongruência com os outros testemunhos que dele temos.
5
Cf. MACDOWELL, 1995
6
WILAMOWITZ (1920:180-1) faz um bom apanhado da história textual do teatro antigo. E direciona a escolha
das obras de que dispomos a uma edição escolar comentada elaborada no final do século I e início do II por
Símaco. Segundo o autor, a escolha das obras de Aristófanes baseou-se principalmente na presença de
celebridades atenienses, como Eurípides, Cléon e Sócrates.
16
Com efeito, o retrato de Sócrates n’As Nuvens não condiz, em várias instâncias, com
o que sabemos ou com o conhecimento que temos dos seus ensinamentos em obras de
Xenofonte e Platão. N’As Nuvens, Sócrates é claramente caracterizado como um sofista, que
ensina retórica persuasiva
7
, interessado em assuntos das ciências naturais
8
. Isso contradiz
completamente o testemunho direto que nos apresentam as obras dos vários filósofos e
doxógrafos gregos, principalmente Platão
9
e Xenofonte. Nas Memoráveis deste último,
inclusive, Sócrates chega a afirmar o seu total repúdio a alguns dos mais importantes
interesses intelectuais demonstrados na comédia, isto é, as ciências naturais:
Οὐδὲ γὰρ περὶ τῆς τῶν πάντων φύσεως, ᾗπερ τῶν ἄλλων ο πλεῖστοι,
διελέγετο σκοπῶν ὅποως καλούμενος ὑπὸ τῶν σοφιστῶν κόσμος ἔχει
καὶ τίσιν ἀνάγκαις ἕκαστα γίγνεται τν οὐρανίων, ἀλλὰ καὶ τοὺς
φροντίζοντας τὰ τοιαῦτα μωραίνοντα ἀπεδείκνυε.
10
Nem sobre a natureza de todas as coisas, como a maioria dos outros, discursou tendo
como objetivo de que forma era o (assim chamado pelos sofistas) cosmos e com
quais necessidades cada coisa dos us veio a ser, mas demonstrou como eram
idiotices estas coisas com as quais eles se importavam .
11
E esta outra citação, também das Memoráveis, é ainda mais surpreendente, por fazer
uma crítica direta a Anaxágoras, aquele a quem frequentemente atribuem algumas das teorias
esposadas pelo Sócrates da comédia de Aristófanes:
ὅλως δὲ τῶν οὐρανίων, ἕκαστα θεὸς μηχανᾶται, φροντιστὴν
γίγνεσθαι ἀπέτρεπεν οὖτε γὰρ εὑρετὰ ἀνθρώποις αὐτὰ ἐνόμιζεν οὔτε
χαρίζεσθαι θεοῖς ἂν ἡγεῖτο τὸν ζητοῦντα ἐκεῖνοι σαφηνίσαι οὐκ
ἐβουλήθησαν. Κινδυνεῦσαι δ΄ἂν ἔφη καὶ παραφρονῆσαι τὸν ταῦτα
μεριμνῶντα οὐδὲν ἦττον Ἀναξαγόρας παρεφρονῆσαι μέγιστον
φρονήσας ἐπὶ τῷ τὰς τῶν θεῶν μηχανὰς ἐξηγεῖσθαι
12
E dissuadia-o completamente de ser um pensador das coisas do u, como que o
deus maquina cada uma delas, nem considerava tais assuntos possíveis de serem
descobertos pelos homens nem considerava que agradaria aos deuses aquele que
investiga os assuntos que eles não desejavam deixar evidente. E dizia arriscar-se e
perder a razão quem se preocupava com isso não menos do que Anaxágoras teria
perdido a razão, ele que mais se preocupava em explicar os mecanismos dos deuses.
7
Aristófanes, Nuvens 112-132, etc.
8
225, etc.
9
Cf. Górgias 463 b, Apologia 19b-d.
10
Memoráveis. I,1, 11.
11
Todas as traduções da dissertação são do autor.
12
Memoráveis IV,7, 6.
17
Nota-se, portanto, uma diferença muito grande entre as duas figuras. Os
comentadores vêm tentando encontrar a razão dessa descaracterização tão dramática na qual
Aristófanes parece se desviar bastante das outras referências históricas a Sócrates.
1.2 O PROBLEMA SOCRÁTICO: ENTRE PLATÃO E XENOFONTE
Aristófanes é um elemento importante da questão socrática, mas não se deve achar
que ele é o único ponto de dificuldade nela, uma vez que, ainda que Xenofonte e Platão
apresentem algumas semelhanças, diversas diferenças que foram levadas em consideração
desde o princípio do estudo universitário do assunto. Por exemplo, na famosa introdução de
Schleiermacher, o importante estudioso alemão comenta sobre o testemunho de Xenofonte,
testemunho esse que para ele é irrelevante pelo pouco interesse filosófico de suas obras. Na
opinião mesma de Schleiermacher, o único Sócrates de valor é o Sócrates de Platão, vindo ele
até mesmo a ignorar Sócrates como figura histórica de valor filosófico.
Naturalmente, o interesse filosófico conforme um dos pressupostos de
Schleiermacher, e, compreensivelmente, dos estudantes de filosofia não é o único interesse
possível pela Antigüidade. Ou seja, há outros tipos de conhecimento que podemos tirar da
Antigüidade em várias áreas, como a filologia, a história da cultura e mesmo a história da
filosofia (pois se pode negar a relevância filosófica do Sócrates histórico, mas o se pode
negar sua influência na história da filosofia), as quais muito têm a ganhar com o
desenvolvimento e a análise da figura histórica de Sócrates. Além disso, a suposição de que a
figura de Xenofonte é irrelevante filosoficamente vem ela mesmo sendo colocada em questão
em obras mais recentes
13
.
O Sócrates que Xenofonte apresenta difere do Sócrates platônico por uma
diversidade de temas. O primeiro, e talvez o mais conspícuo, é que, ao contrário do Sócrates
platônico, o Sócrates de Xenofonte jamais alega ignorância de conhecimento e é capaz de
definir corretamente as virtudes, enquanto o Sócrates platônico frequentemente cai em aporia
ao tentar chegar a uma definição de virtude, justiça, etc. Nas duas apologias, temos
afirmações contraditórias: o Sócrates de Xenofonte abertamente se diz professor e
especialista, enquanto o Sócrates platônico nega isso de maneira absoluta, ao dizer em sua
defesa que ele jamais foi professor ou se colocou neste lugar. O Sócrates de Xenofonte se diz
não envolvido na vida política, mas ensina jovens a dela participar, o Sócrates de Platão
13
DORION, 2005:94
18
abstém-se totalmente de tais ensinamentos. As diferenças continuam no nível das opiniões
particulares e são muito grandes, e, portanto, vamos terminar este breve catálogo aqui.
Se compararmos estas duas figuras de Sócrates que nos foram legadas por seus dois
discípulos, chegaremos à conclusão de que algo do Sócrates de Platão pode ser aproximado
do Sócrates de Aristófanes, especialmente na questão do vestuário e do desprezo às riquezas.
E algo, talvez a mais importante, do Sócrates de Xenofonte pode ser aproximado do
Sócrates de Aristófanes no que diz respeito à posição auto-declarada de Sócrates como um
professor de jovens, algo que o Sócrates de Platão nega veementemente. Seria possível
resolver esses problemas ao utilizar um método quantitativo de fontes, considerando que as
características que estão presentes em mais de um autor são as da figura histórica, enquanto as
características singulares são invenção do próprio autor? Evidentemente este não é um
método que de nos facilitar a resolução desta questão, dada a natureza fragmentária de boa
parte das obras que temos e a própria figura elusiva de Sócrates que frequentemente evade as
tentativas dos estudiosos modernos de compreendê-lo.
Louis-André Dorion
14
destacou como a própria figura de Xenofonte também é
formada a partir de uma visão interessada. Visão essa que em alguns pontos, dada sua
aparente maior simplicidade, é tomada como uma representação fiel do Sócrates real. No
entanto, o Sócrates de Xenofonte se caracteriza como valorizando o “auto-
controle”(αὐτάρκεια) e a “moderação” (ἐνκράτεια), características que também se revelam
em outras figuras da obra de Xenofonte, como Ciro, Agesilau ou Licurgo.
Ficamos, na questão socrática, com três autores de testemunhos distintos acerca da
figura de Sócrates. Para melhor desenvolver esta questão, seria preciso voltar e examinar cada
um desses autores e verificar neles o que é propriamente de Sócrates e o que é de interesse
próprio do autor em questão. Além disso, caberia também verificar de forma mais detida
todos os outros testemunhos que podem nos dizer algo sobre a figura de Sócrates.
Para o presente trabalho, entretanto, vamos nos interessar somente pela figura de
Sócrates tal qual é apresentada na Comédia Antiga, e os paralelos que poderão ser feitos com
a filosofia e as obras de Platão e Xenofonte são apenas indicativos de questões comuns, que
indiquem algum traço da percepção de Sócrates por parte da sociedade ateniense em geral,
sem corroborar, por suposto, qualquer tipo de aproximação à questão socrática.
14
DORION, 2005: 99
19
1.3 A FORTUNA INTERPRETATIVA D’AS NUVENS
As Nuvens também possuem outras particularidades, ela foi a única comédia de
Aristófanes a ter recebido o terceiro lugar nas Grandes Dionísias de Atenas
15
e ainda assim a
ter sobrevivido. No entanto, não é a versão que foi levada a público em 423 a. C. que nós
recebemos dos manuscritos medievais, pois na parábase Aristófanes faz referência direta ao
resultado da comédia e a uma comédia seguinte, o Maricas de Êupolis, que foi apresentada
dois anos depois:
Εὔπολις, μὲν τὸν Μαρικᾶν πρότιστον παρείλκυσεν
ἐκστρέψας τοὺς ἡμετέρους Ἱππέας κακὸς κακῶς,
προσθεὶς αὐτῷ γραῦν μεθύσην τοῦ κόρδακος οὕνεχ’, ἥν
Φρῦνιχος πάλαι πεπόηχ’, ἣν τὸ κῆτος ἤσθιεν..
16
Eupolis, primeiro, arrastou o Maricas,
O vil que revirou os meus Cavaleiros horrivelmente
E colocou nele uma velha embriagada por causa do cordax
a qual Frínico colocara em cena há muito e a qual a baleia comia.
O escoliasta desse trecho nos confirma também que ele pertence a uma segunda
versão d’As Nuvens. No entanto, em um momento seguinte da parábase, no epirrema,
Aristófanes cita a eleição de Cléon para general e imagina-o fazendo uso de subornos e
roubando a pólis. Como sabemos que Cléon morreu em 422 a. C.
17
e também que Aristófanes
apresentara A Paz no ano seguinte, fica demonstrado que a tarefa de revisão da peça ou foi
incompleta
ou Aristófanes jamais teve a intenção de levá-la novamente a público
18
.
Assim, mesmo tendo obtido um fracasso com esta comédia, parece que Aristófanes a
tinha em alta conta e por isso resolveu retrabalhá-la na edição que temos. No entanto,
sabemos que, ao menos no século V, não foi representada nenhuma segunda versão d’As
Nuvens em nenhum dos dois festivais teatrais atenienses: as Grandes Dionísias e as Lenéias
(temos a informação, por exemplo, de que foi feita uma segunda versão da Assembléia de
mulheres), mas sabemos também que a tradição na Antiguidade reconhecia a existência de
duas versões d’As Nuvens, de tal forma que possuímos fragmentos da chamada primeira
Nuvens”.
15
Cf. o argumento VI: Νεφέλαι ἐδιδάχθησαν ν ἄστει ἐπὶ ἄρχοντος Ἰσάρχου, ὅτε Κρατῖνος μὲν
ἔνικα Πυτίνῃ, μεψίας δὲ Κόννῳ
.
As Nuvens, foram encenadas na cidade sob o Arconte Isarco, quando
Cratino ganhou com Pitine, e em segundo Amípsias com o Conno.”
16
Nuvens 553-555
17
Tucídides, 5, 10.
18
DOVER (1968:xxxiii) ainda usa outros argumentos para demonstrar os problemas com estas duas versões.
20
Face a esses dois problemas, uma maneira de se perceber esta questão é sumarizada
na seguinte citação:
Não podemos evitar lamentar e condenar o poeta por ter feito a escolha malfadada
de Sócrates como personagem importante na peça; devemos censurar a gratuidade
do ataque a essa pessoa, por fazer de um bom e grande homem o objeto de sua
ridicularização esmagadora.
19
Essa frase pertence a um comentário às Nuvens feito no século XIX e, observando a
literatura do período, esse é o julgamento tradicional sobre As Nuvens. A origem dele está
naquilo que Martha Nussbaum
20
caracteriza de “reverência” por Sócrates. Em alguns casos tal
reverência chega ao ponto de acusar Aristófanes de ter sido corrompido pelos inimigos de
Sócrates. Tal acusação era suficientemente comum, de modo que os dois primeiros
comentaristas modernos d’As Nuvens, Süvern
21
e Rötscher
22
dedicam-se a contradizer tal
curiosa afirmação.
Süvern, ligeiramente mais antigo, tenta resolver a questão de uma forma típica de seu
tempo. Para ele, Sócrates representa não uma pessoa em particular, mas uma Idee, a
representação ideal do sofista, contra o qual Aristófanes se dirigira anteriormente na sua
comédia Δαιταλῆς. Em seguida, talvez a extrapolando os limites do idealismo alemão,
Süvern afirma que não apenas Sócrates é uma figura típica, como Fidípides também é a figura
ideal do nobre ateniense, especialmente dos nobres debauchés do círculo de Alcibíades. A
primeira parte da interpretação é sem dúvida muito mais interessante do que a segunda e
Süvern tem o mérito de evitar a acusação contra Aristófanes de incompreensão ou venalidade
que fora até então a maneira comum de interpretar As Nuvens. Podemos ver, inclusive, na
interpretação dada a Sócrates, o germe de interpretações posteriores, como as de Douglas
McDowell
23
e, principalmente, Kenneth J. Dover.
24
O grande filólogo F. A. Wolf também escreveu sobre As Nuvens
25
. A sua teoria, que
não permanecerá muito em voga e será revivida recentemente, e apenas parcialmente, por Leo
Strauss, é de que o Sócrates d’As Nuvens representa um estágio de transição entre uma fase
19
FELTON, C. C. The Clouds of Aristophanes pp. x-xi:
“We cannot help regretting and condemning the poet’s mistaken choice of Socrates for the chief personage in the
play; we must censure the wantonness of the attack upon his person, making a good and great man the object of
his overwhelming ridicule.”
20
NUSSBAUM, 1980.
21
SÜVERN, 1835.
22
ROTSCHER, 1827.
23
MCDOWELL, 1993: 113-150
24
DOVER, op. Cit, xxviii-xxxiii
25
WOLF, 1811
21
em que Sócrates dedicar-se- ia às ciências naturais (com uma riqueza de citações de Platão) e
a fase mais “moral” e “humana”, que seria representada pela aproximação com os sofistas.
Apesar da grande erudição dessa interpretação, alguns problemas cronológicos em relação
a ela, de que trataremos no decorrer desta dissertação.
Rötscher, firmemente na linha idealista alemã (seu livro é dedicado a ninguém menos
do que Hegel), tenta estabelecer uma linha dialética. Segundo ele, As Nuvens coloca no palco
a disputa entre dois elementos político-histórico-religiosos (a filosofia hegeliana sempre optou
pelos quadros mais abrangentes): o tradicional que é representado pelas Nuvens e por
Estrepsíades, e o “modernista”, representado por Sócrates. Por esta razão, todas as
incongruências estão presentes no personagem cênico de Sócrates, afinal, ele representa não
apenas o filósofo de todos os dias, mas a idéia de modernidade” que era trazida por ele, e
também pelos sofistas e pelos filósofos naturalistas. Apesar de suas bases dependerem
absolutamente de um tipo de filosofia, qual seja, o idealismo hegeliano, a fina leitura das
Nuvens que ele faz, combinada com um profundo conhecimento do que havia sido discutido
até então (Rötscher apresenta o primeiro sumário bibliográfico d’As Nuvens de que temos
notícia), lograram que sua interpretação revivesse freqüentemente, especialmente na análise
de Martha Nussbaum.
Uma curiosa interpretação foi proposta por Taylor em seu volume Varia Socratica
26
.
Segundo ele:
Não existe, e tanto quanto sabemos, jamais existiu realmente qualquer relato
histórico fiel da personalidade de Sócrates, exceto aquele deixado pela tradição
acadêmica que remete a Platão [...]. e a brilhante caricatura que Aristófanes
concebeu em sua obra-prima cômica.
27
Diferentemente de outros intérpretes, ele não somente propõe que Sócrates teve
interesse durante sua juventude pelas ciências naturais, como manteve tal interesse durante
sua vida adulta. Para atingir tal conclusão ele precisa subverter totalmente o testemunho de
Xenofonte, sob a alegação de sua pobreza filosófica.
Além de ser um julgamento sobre a obra de Xenofonte, esse argumento parece advir
do pressuposto de que um filósofo mais refinado seria capaz de compreender melhor Sócrates.
No entanto, esta é uma afirmação que vai contra quase qualquer metodologia de estudo de
textos da Antigüidade, pois textos filosóficos mais refinados são normalmente tratados com
26
TAYLOR, 1991
27
“(…)there is not, and so far as we know there never was, any really faithful historical account of the
personality of Socrates except the Academic tradition which goes back to Plato and the brilliant caricature
which Aristophanes reasonably thought his own comic masterpiece.”
22
maior cuidado do que textos mais simples, justamente pelo fato de o filósofo estar mais
propenso a modificar os fatos para provar a sua teoria do que um escritor supostamente mais
neutro, como o caso de Xenofonte, ainda que não se possa cair no erro, freqüente, de que a
simplicidade de Xenofonte signifique uma certa ingenuidade e falta de intenção no retrato de
Sócrates.
E a tradição acerca de Sócrates é uma prova patente da segurança de tal método. É
muito difícil, e muitas vezes extremamente complicado, conseguir comprovação da maioria
das doutrinas que Platão atribui a Sócrates em seus diálogos, ao passo que as afirmações mais
sóbrias de Xenofonte sobre a doutrina socrática, freqüentemente podem ser confirmadas pelo
testemunho de outras fontes independentes, como Lísias e Aristipo.
Influenciado em boa parte pela curiosa interpretação de Taylor, Gilbert Murray
28
realiza uma das mais influentes análises d’As Nuvens, que ainda é bastante citada. Tomando
como ponto de partida as conclusões das duas versões da obra e pressupondo um dado
bastante precipitado de que o agón e a última cena pertenciam completamente à segunda
versão, ele afirma que a primeira versão d´As Nuvens seria uma peça de um humor bastante
refinado, que tratava o somente de invectivas inteligentes e espirituosas contra Sócrates e
sua escola. Porém, com a falta de sucesso desta primeira versão, Aristófanes teria mudado de
maneira completa a comédia, acabando por criar As Nuvens que conhecemos, onde ele ataca
Sócrates de maneira mais brutal e maliciosa. No geral, entretanto, Murray diz: “There is no
attack on his [i.e. of Socrates] honour” e ele interpreta a comédia mais como uma paródia e
ataque a Estrepsíades, que para ele não é capaz de usar os ensinamentos de Sócrates para o
bem.
O que de marcante nessa interpretação e a torna muito relevante é o
reconhecimento que Murray faz do conhecimento que Aristófanes tinha de Sócrates,
enumerando, a partir da sugestão de A. E. Taylor, as várias semelhanças que existem entre o
Sócrates da comédia e o Sócrates histórico. Entretanto, a interpretação de Murray possui duas
falhas relevantes: a primeira é que ele conclui que as partes de maior abuso a Sócrates
encontram-se na parábase e no agón, o que é bastante duvidoso. E a segunda falha parte de
um dado concreto, presente nos escólios: de que o agón e a parábase foram modificados para
a segunda edição d’As Nuvens; mas Murray aqui ultrapassa esse dado concreto e conclui que
28
MURRAY,. 1933: 85-90.
23
todas essas passagens foram introduzidas para a segunda “edição” d’As Nuvens, que seria uma
tentativa, por parte de Aristófanes, de ser mais abusivo.
Podemos ver nos escólios da comédia uma refutação dessa assunção, quando,
exatamente no início dos comentários ao agón, o escoliasta afirma que os dois discursos
estariam dispostos em jaulas como dois galos de briga, mas no texto de Aristófanes não
nenhum dado que suponha essa cenografia, os dois discursos apresentando-se, ao visto, como
dois personagens normais. Disso, Dover conclui que o escólio refere-se à primeira versão, o
que nega a suposição inicial de Murray de que o agón foi completamente reescrito sendo
que alguma semelhança entre ambos os agônes permaneceu, pela presença dos mesmos dois
personagens: o discurso justo e o discurso injusto.
A interpretação mais influente da comédia As Nuvens é a de Kenneth Dover, que faz
uma pesada crítica a Murray e tende a ignorar um pouco os outros comentários alguns, por
não fazerem mais sentido em sua época, e outros, por tacitamente o influenciarem. A sua
teoria é de que não há nada de muito particular no Sócrates de Aristófanes, e que a crítica não
é direcionada a um filósofo ou um pensamento em particular, mas a um γένος, i.e. um tipo,
uma Idee de pensador, e, como Sócrates era o mais famoso de seu tempo, ele
conseqüentemente seria o seu alvo preferido. Podemos ver que Dover reabilita a antiga
interpretação do início do século XIX, esposada por Rötscher, despindo-a da sua carga
filosófica original.
O grande sucesso da interpretação de Dover dá-se principalmente na refinada
avaliação das doutrinas ensinadas pelo Sócrates d’As Nuvens. Ao contrário do que
normalmente era afirmado aentão, a filosofia deste trecho, segundo o autor, está mais para
Diógenes de Apolônia do que para Anaxágoras desta forma negando aqueles que tentam
atribuir uma ligação desta filosofia à juventude de Sócrates (Diógenes era seu contemporâneo
quase exato). Sua teoria era de que Aristófanes usou Sócrates como um mero representante de
uma classe porque a ele faziam pouco sentido as sutis diferenças entre ele e os Sofistas, da
mesma forma que pessoas que pouco distinguem “Brahms de Rachmaninoff, o partido
trabalhista (britânico) do comunista”, para usar a afirmação de Dover.
Tal afirmação não se sustenta pelo fato de que Brahms e Rachmaninoff, a despeito
das diferenças, possam ser comparados e julgados de acordo com uma característica comum:
a de compositores românticos. Há, decerto, pontos suficientes de contato entre a social-
democracia e o comunismo para perceber como podemos incluir ambos em um grupo; assim,
pois, basta comparar os compositores a Bach e os partidos políticos ao partido Tory. A crítica
de Martha Nussbaum baseia-se toda nesta interpretação: pois não é porque uma
24
individualidade seja diferente de outra que o se pode achar pontos de contato para uma
comparação e uma crítica conjunta.
Embora ele se refira a este problema apenas de passagem, se as doutrinas esposadas
por Sócrates admitem uma certa dúvida quanto a sua origem, as características externas são
mais verosemelhantemente próximas à figura histórica de Sócrates.
Um tipo diferente de interpretação é proposto por Martha Nussbaum
29
, Werner
Jäger
30
e Leo Strauss
31
. Os três possuem abordagens semelhantes, que podemos classificar de
“culturais”, pois todos partem do pressuposto de que um conflito entre o pensamento de
Sócrates e o tipo de educação que Aristófanes defende, e que As Nuvens surgem a partir deste
conflito. A comédia seria, portanto, na visão de Martha Nussbaum, o resultado do conflito
entre a educação antiga, esposada por Aristófanes, e a educação moderna que Sócrates traz
consigo.
Leo Strauss parte do pressuposto de que Aristófanes não desconhece completamente
a figura de Sócrates, mas, constrangido pelo gênero da comédia, ele deve caracterizar
Sócrates de uma maneira diferente da de Platão ou Xenofonte. Por exemplo, a famosa
continência de Sócrates que vemos n’O Banquete, onde ele é capaz de resistir ao vinho, ao
sono e a Alcibíades, em Aristófanes é transformada na facilidade em suportar as picadas de
mosquitos. Strauss também pressupõe um conflito íntimo entre poesia e filosofia: para ele,
Aristófanes as considerava duas formas de conhecimento concorrentes e deseja demonstrar
que a poesia era a melhor, pelo bem que trazia à cidade. O Sócrates de Aristófanes, segundo
Strauss, é a figura que é incapaz de reconhecer as particularidades humanas e políticas,
porque está apenas interessado no conhecimento elevado, sendo este o motivo que o coloca
perigosamente acima das leis humanas.
Sócrates é, ainda segundo Strauss, um representante típico do personagem cômico,
que, em paralelo com o personagem trágico que vai contra as leis humanas ou divinas em um
ato de ὕβρις, também infringe tais leis, mas em um ato de ἀλαζονεία. Sócrates seria o
exemplo mais importante e relevante do falastrão, no modelo do Salsicheiro e de Lâmaco nas
comédias anteriores. Porém, para tal personagem cômico funcionar, é necessário que o
charme de Sócrates não seja exibido, e seria por esta razão que a iniciação de Fidípides é
realizada toda fora de cena. Para Strauss, parte da diferença entre Aristófanes, Platão e
Xenofonte está neste ponto de vista particular: enquanto os últimos dois estiveram, a exemplo
29
NUSSBAUM, 1982
30
JÄGER,. 2001: 414-440
31
STRAUSS, 2001.
25
de Fidípides, na presença de Sócrates, Aristófanes conheceria tão somente a figura pública do
filósofo grego.
Uma nova, e bastante original, interpretação foi proposta por Marie-Pierre Noël
32
em
um artigo recente. Segundo ela, Aristófanes não estaria atacando Sócrates, tampouco
representando uma figura genérica do intelectual, como propõem Dover ou Bowie. Tampouco
ela compartilha da opinião de Murray de que Aristófanes foi obrigado a atacar mais
ferozmente Sócrates. Segundo ela, Aristófanes se identifica também com Sócrates e ambos
são representantes da mesma nova educação.
Para Marie-Pierre Noël, Aristófanes não se volta contra os sofistas, aqueles que nós
chamamos de tais, pois não é esse o assunto a que Sócrates se dedica mas sim a estudar os
assuntos celestiais (τὰ μετέωρα), que não teriam nada a ver com personagens tais quais
Pródico, Protágoras e outros.
A interpretação é bastante original, e marca com certeza alguns pontos importantes
da comédia de Aristófanes: o primeiro é a imprecisão da terminologia de Aristófanes e o fato
de que, realmente, ele invoca para si algumas características que o típicas daqueles que ele
estaria teoricamente criticando, como o pendor para a inovação e a alegação de sabedoria; o
segundo é que o há, de fato, separação no século V entre filósofo e outras categorias de
pensadores; além disso, não se pode assumir que “discurso forte-justo” e “discurso fraco-
injusto” sejam pares realmente válidos para Aristófanes, uma vez que são expressos somente
por Estrepsíades figura sempre caracterizada como ignorante. Também não é garantida, na
verdade, a admiração que ele teria pela educação antiga, e ela marca de maneira bem precisa a
sutileza do ridículo com que Aristófanes caracteriza o “discurso forte”.
No entanto, esta interpretação falha ao considerar que os assuntos celestiais são
prova de que o ataque aos sofistas como Pródico e outros. Isso é equivocado porque
Pródico é atacado As Aves exatamente por este motivo, e também porque temos
informações de que alguns sofistas se destavacam na discussão de tais assuntos, como o
escoliasta d´As Aves nos revela em relação a Pródico. Visto ser esse o único argumento
fornecido contra a identificação das figuras da comédia com os sofistas, e como os dados
sofísticos abundam na comédia como a teoria dos dois discursos, o ensino de algum tipo de
arte de falar e o aparente relativismo devemos voltar a considerar que os sofistas, tais quais
nós os conhecemos, foram o alvo principal ou, ao menos, um dos alvos importantes da
comédia.
32
NOËL, 2000:. 111-128.
26
Todas estas interpretações, por assim dizer, “culturais” falham, entretanto, naquilo
que Dover marca de forma bastante perspicaz: as características das doutrinas do Sócrates
histórico e do Sócrates de Aristófanes são radicalmente diferentes. Desse modo, ainda que
resumam de forma profunda o que Aristófanes desejava dizer com As Nuvens, não
solucionam o problema da incoerência entre o Sócrates histórico e o Sócrates de Aristófanes.
Martha Nussbaum e Werner Jäger tendem a esquecer tal questão. Para Leo Strauss,
isso deriva apenas do fato de o Sócrates do don de Platão afirmar que se interessou por
ciência natural anteriormente, sendo a comédia As Nuvens, portanto, datada de um momento
posterior. Mas tal argumento tem um defeito por não sobreviver ao escrutínio da datação
dramática dos diálogos de Platão: por exemplo, com base na datação dramática tradicional do
diálogo Protágoras, por volta do ano de 430 a. C., As Nuvens de Aristófanes já devem
apresentar um Sócrates posterior a essa data, mas no diálogo de Platão ele aparece
interessado nas questões que marcam a nossa concepção de Sócrates, o que mostra que há um
real desvio entre o Sócrates histórico e o Sócrates de Aristófanes, e não uma mera questão de
datação.
1.4. CARACTERIZAÇÃO DE SÓCRATES POR ARISTÓFANES
No entanto, não é somente no campo teórico que Sócrates é descrito. Um elemento
importantíssimo de toda a literatura e que, nos estudos sobre As Nuvens, bem como nos
estudos sobre literatura grega em geral, é frequentemente negligenciado, é o comportamento
não-verbal, ou seja, as características e atitudes que,
por si próprias, carregam significado
dentro do texto. No entanto, um livro recente de Donald Lateiner
33
chama a atenção para o
refinamento do qual Homero se vale no uso de ações não-verbais e como elas nos permitem
uma leitura mais completa da Odisséia. Nesse espírito e munidos um pouco desse
conhecimento, podemos inicialmente ver se o comportamento não-verbal de Sócrates n’As
Nuvens nos abre caminho para uma maior compreensão da mesma, e podemos, para começar,
concentrarmo-nos exclusivamente na caracterização não-verbal de Sócrates.
O motivo para isso é simples. Tradicionalmente, como foi visto no breve quadro da
tradição acima, as grandes questões em torno d’As Nuvens baseiam-se na coerência interna e
externa das idéias esposadas pelo Sócrates da comédia, e pouca atenção é dada para a
possibilidade de se ver algo de particular na caracterização física de Sócrates. A importância
33
LATEINER, 1998.
27
disso reside em que normalmente dá-se por garantido que Aristófanes caracteriza Sócrates
fielmente por esse ser uma figura pública e conhecida em Atenas (há inclusive uma citação de
Eliano em relação a isto
34
), mas qualquer descoberta de diferenças pode abrir caminho para
uma melhor compreensão d’As Nuvens.
Como todo grande cômico, Aristófanes não se descuida da caracterização o-verbal
de seus personagens; um exemplo fora d’As Nuvens muito claro é o do demagogo Cléon, que
Aristófanes coloca em cena várias vezes. Seguem duas citações de Aristófanes que nos
permitem fazer um quadro bem completo de Cléon e seu tipo de oratória:
Αὐτὸς δὲ Κλέων ὁ κεκραξιδάμας μόνον ἡμᾶς οὐ περιτρώγει
35
E o próprio Cléon, que domina pelo grito, somente a nós não engole.
Οὔτοι μὰ τοὺς δώδεκα θεοὺς χαιρήσετον
ὁτιὴ΄πὶ τῷ δήμῳ ξυνόμνυτον πάλαι.
Τουτὶ τί δρᾷ τὸ Χαλκιδικὸν ποτήριον
Οὐκ ἐσθ΄ὅπως οὐ Χαλκιδέας ἀφίστατον
Ἀπολεῖσθον, ἀποθανεῖσθον, ὤ μιαρωτάτω
36
De jeito nenhum, pelos doze deuses, vocês dois vão se alegrar
Com o que contra o povo conspiram há muito.
O que faz essa garrafa Calcídica?
Não será possível que vocês não se afastem das Calcídicas:
Perecerão! Morrerão! Ó imundíssimos!
A primeira indica uma característica não-verbal de Cléon, isto é, a facilidade de ele
gritar, e a segunda, de um certo modo, nos confirma tal característica ao demonstrar um
discurso extremamente inflamado, terminando com uma série de invocativas sem ligação
sintática, que refletem uma grande exaltação da parte do orador.
34
Eliano, Varia Historica 2.13: a)ll' oià ge ce/noi,(to\n ga\r kwm%dou/menon h)gno/oun, qrou=j
par' au)tw½n e)pani¿stato, kaiì e)zh/toun oÀstij pote\ ouÂtoj o( Swkra/thj e)sti¿n. oÀper ouÅn
e)keiÍnoj ai¹sqo/menoj (kaiì ga/r toi kaiì parh=n ou)k aÃllwj ou)de\ e)k tu/xhj, ei¹dwÜj de\ oÀti
kwm%dou=sin au)to/n: ka dh\ kaiì e)n kal%½ tou= qea/trou e)ka/qhtoŸ, iàna ouÅn lu/sv th\n
tw½n ce/nwn a)pori¿an, e)canasta\j par' oÀlon to\ dra=ma a)gwnizome/nwn tw½n u(pokritw½n
e(stwÜj e)ble/peto.
Mas entre os estrangeiros, como desconheciam o alvo da comédia, levantou-se um murmúrio e eles procuraram
saber quem era aquele tal de Sócrates. E aquele, ao perceber isso (pois também ele estava presente não de outro
modo senão por acaso, sabendo que o escarneciam, e por isto sentou-se em um bom lugar do teatro), e para
acabar com a confusão dos estrangeiros, permaneceu de durante todo o drama, enquanto os atores
representavam, de pé era visto.
35
Vespas 846
36
Cavaleiros 235-9
28
Com efeito, a figuração de tal comportamento de Cléon não consiste apenas em uma
injúria de Aristófanes, uma vez que ele é confirmado por diversas fontes como Tucídides e
Aristóteles:
Κλέων Κλεαινέτου, ὅς δοκεῖ μάλιστα διαφθεῖραι τὸν δῆμον ταῖς ὁρμαῖς
καὶ πρῶτος πὶ τοῦ βήματος ἀνέκραγε καὶ ἐλοιδορήσατο, καὶ
περιζωσάμενος ἐδημηγόρησε τῶν ἄλλων ἐν κόσμῳ λεγόντων.
37
Cléon o filho de Cleaneto, o que mais parecia fazer perder o povo com a
impulsividade e que foi o primeiro a gritar no palanque e injuriar, subindo armado,
fazia discursos públicas, enquanto os outros falavam de maneira ordenada.
Tais fontes confirmam a impulsividade de Cléon e seu estilo de oratória aos gritos.
Vemos, assim, apenas com um exemplo, mas que poderia ser expandido para outros
personagens dos quais possuímos outras fontes, como Aristófanes usa características pessoais
dos personagens baseadas em figuras reais e as coloca em cena, e muitas vezes, como seria de
se esperar, como um recurso cômico.
A Caracterização não-verbal de Sócrates
Uma das maneiras que melhor nos permite ver como Aristófanes aproximou ou
afastou o seu Sócrates do Sócrates histórico é por meio de sua caracterização não-verbal na
comédia, isto é, seu vestuário, as expressões de sua face, o tom de sua voz e, de maneira mais
controversa, a máscara teatral. Temos uma grande massa de informações a esse respeito nos
escritos sobre Sócrates, que constituem uma importante descrição do próprio filósofo, de suas
características e seu comportamento. Um exemplo muito claro disso é o diálogo Teeteto, onde
temos uma descrição bastante detalhada da sua aparência, em que essa serve para fazer uma
diferenciação básica na filosofia platônica: a distância entre o mundo inteligível e o mundo
sensível.
Pela incerteza que ronda a questão da caracterização de Sócrates, comecemos por
ela. As Nuvens não apresentam nenhuma linha clara sobre a fisionomia de Sócrates, e
podemos apenas fazer uma inferência, com muito boa vontade, de uma suposta falta de
cabelo, a partir do verso 149:
{Μα.} λέξω, νομῖσαι δὲ ταῦτα χρὴ μυστήρια.
ἀνήρετ' ἄρτι Χαιρεφώντα Σωκράτης
37
Tucídides, 3, 36.
29
ψύλλαν οπόσους ἅλλοιτο τούς αὐτής πόδας.
Δακοῦσα γὰρ τοῦ Χαιρεφώντος τὴν οφρύν,
ἐπὶ τὴν κεφαλὴν τὴν Σωκράτους ἀφήλατο.
Direi, mas deve-se julgar estas coisas como mistérios.
Há pouco Sócrates inquiriu Querefonte sobre
Quantas vezes uma pulga saltaria os próprios pés .
Pois depois de ter mordido a sobrancelha de Querefonte
Ela pulou para a cabeça de Sócrates.
Na verdade podemos inferir isso apenas se possuirmos as tradicionais representações
de Sócrates como careca. A primeira fonte que possuímos, que relata a falta de cabelo de
Sócrates, encontra-se em Hegesandro de Delfos
38
, já bastante afastada dele. Além do mais,
Sócrates foi condenado à morte no ano de 399 a. C., aos 75 anos, tendo sido a peça escrita em
421, quando ele estaria com 43 anos, sendo bem provável que sua aparência tenha mudado
sensivelmente neste intervalo de anos. O que é certo, e muitas vezes é completamente
ignorado nas montagens e ilustrações modernas, é que a caracterização de Sócrates como um
professor grisalho não está presente na comédia e de certo modo não era de se esperar.
Se a fisionomia está ausente em Aristófanes, ela certamente está bem documentada
no Teeteto de Platão:
Καὶ εἶ μὲν ἦν καλὸς, ἐφοβούμεν ἄν σφόδρα λέγειν, μὴ καὶ τῷ δόξῳ ἐν
ἐπιθυμίᾳ αὐτοῦ εἶναι. νῦν δέ κα μή μοι ἄχθου – οὐκ ἔστι καλός,
προσέοικε δὲ σοὶ τήν τε σιμότητα καὶ τὸ ἔξω τῶν μμάτων∙ ἦττον δσὺ
ταῦτ΄ἔχει ἀδεῶς δὴ λέγω
39
.
Se fosse belo, eu teria bastante medo de falar, para que não parecesse estar
desejando-te. Mas agora – e o se irrite comigo ele não é belo, e parece-se
contigo pelo nariz achatado e pelos olhos esbugalhados mas ele tem isso menos do
que tu, digo sem medo.
No Banquete, Aristófanes é comparado a um Sileno:
Φημὶ γὰρ δὴ μοιότατον αὐτὸν εἷναι τοῖς σιληνοῖς ἐν τοῖς ἑρμογλυφεῖοις
καθημένοις, οὕστινας ργάζονται οἱ δημιουργο σύριγγας αὐλοὺς
ἔχοντας, οἵ διχάδε διοιχθέντες φαίνονται ἔνδοθεν ἀγάλματα ἔχοντες
θεῶν. Καγάρ φημι αὖ ἐοικέναι υτὸν τῷ σατύρῳ τῷ Μαρσύᾳ. ὅτι μὲν
οὖν μὲν τό γε εἶδος ὅμοιος εἶ τούτοις ὤ Σώκρατες.
Pois digo que ele é parecidíssimo com os silenos que ficam assentados nas estátuas
de Hermes. Aqueles que os escultores fazem possuindo uma siringe.ou flautas, e
38
Fr. 1, Muller.
39
Platão, Teeteto, 143e
30
que, separados em duas partes, mostram possuir em seu interior imagens de deuses.
E eu também digo que te pareces com o sátiro Mársias, porque és semelhante no
aspecto a estes, ó Sócrates (...)
É quase um locus communis, especialmente na obra de Platão, a figuração de
Sócrates como uma figura de aparência rude ou desagradável. No entanto, isso pode ser visto
como um exagero
40
, seja devido ao grupo e às filiações aristocráticas de Platão, ou devido à
própria teoria platônica realista, que pressupõe e necessita de uma separação entre os
domínios sensível e inteligível; e a figura de um filósofo bastante feio, mas capaz de expressar
idéias sublimes, cai como uma luva nessa filosofia.
Um adaptador corporal, não sendo exatamente uma característica permanente, são as
roupas e o asseio de Sócrates:
καὶ μηδὲν εἴπῃς φλαῦρον ἄνδρας δεξιοὺς
καὶ νοῦν ἔχοντας: ὧν ὑπὸ τῆς φειδωλίας
ἀπεκείρατ' οὐδεὶς πώποτ' οὐδ' ἠλείψατο,
οὐδ' ἐς βαλανει̂ον ἦλθε λουσόμενος:
41
E não diga nada prejudicial desses homens dignos
e cordatos, dos quais nenhum por causa da sua moderação
jamais cortou os cabelos, nem untou-se,
nem foi aos banhos para se lavar:
Encontramos uma referência ao modo de Sócrates vestir-se nas Memoráveis de
Xenofonte, a qual de um certo modo confirma o que diz Aristófanes.
ἀλλ' οὐ μὴν θρυπτικός γε οὐδὲ ἀλαζονικὸς ἦν οὔτ' ἀμπεχόνῃ οὔθ'
ὑποδέσει οὔτε τῇ ἄλλῃ διαίτῃ.
42
Mas não era sofisticado nem charlatanesco, nem na vestimenta, nem no calçado,
nem em outra maneira de viver.
Em relação a estes adaptadores corporais, certamente uma grande proximidade,
pois Sócrates vestia-se da maneira mais frugal possível, diz-nos Xenofonte aqui. Aristófanes
apenas usou, talvez com algum exagero, tal procedimento para caracterizá-lo como mal
vestido, e, além disso, podemos interpretar a acusação de não se banhar também a partir dessa
descrição de um Sócrates extremamente frugal, uma vez que no século V a. C. o hábito de
freqüentar os banhos públicos era considerado uma característica de extremo luxo. Assim, a
40
Esta é também a opinião de Dover.
41
Nuvens, 834-7.
42
Xenofonte, Memoráveis 1.2.5.
31
abstinência por parte de Sócrates desses hábitos, observada por Xenofonte, é aqui
transformada em uma característica cômica.
Mas talvez uma das características mais particulares de Sócrates, que Aristófanes
introduziu na comédia, foi seu modo de olhar de maneira fixa para as pessoas:
oÀti brenqu/ei t' e)n taiÍsin o(doiÍj kaiì tw©fqalmwÜ paraba/lleij.
43
porque se pavoneia nos caminhos e fixa os dois olhos..
Temos uma confirmação exatamente com a citação deste verso no Banquete de
Platão:
ἔπειτα ἔμοιγ' ἐδόκει, Ἀριστόφανες, τὸ σὸν δ τοῦτο, καὶ ἐκε
διαπορεύεσθαι σπερ καὶ ἐνθάδε, βρενθυόμενος καὶ τὠφθαλμὼ
παραβάλλων ρέµα παρασκοπν κα τος φιλίους κα τος πολεµίους
44
.
Em seguida, parece-me, ó Aristófanes, ser este o seu caso, e passar como aqui,
pavoneando-se e fixando os dois olhos, observando tranquilamente tanto os amigos
quanto os inimigos.
Aqui estão em destaque dois tipos de adaptadores corporais: em primeiro lugar os
olhos de Sócrates, que seriam sensivelmente proeminentes, e, em segundo, o costume de
Sócrates de olhar para todos de maneira muito inquisitiva, o que é sem vida uma
característica marcante que revela uma certa falta de tato social. Aristófanes o desenvolve
essa característica como outras, e talvez o ator em cena tenha destacado essa e outras de
maneira mais evidente. Entretanto, Aristófanes deixa uma dica sobre esse costume de
Sócrates, que permite vislumbrar essa característica que é confirmada em outras fontes.
Podemos ver, pois, como Aristófanes usa características do Sócrates histórico n’As
Nuvens, onde muito do comportamento do personagem tem uma estreita relação com a figura
de Sócrates que conhecemos de outras fontes. Portanto, no que diz respeito às características
particulares de cada um, Aristófanes aproximou-se bastante da figura que era conhecida por
todos os atenienses. Devemos nos referir novamente à anedota, contada por Eliano,
45
de que
alguns estrangeiros comparecendo à comédia teriam se perguntado quem seria esse Sócrates,
e o próprio teria se levantado, como para mostrar a semelhança entre ambos.
43
Nuvens, 362.
44
Banquete, 221b.
45
Várias histórias 2, 13.
32
No entanto, uma característica física que se afasta desse quadro, que é a suposta
palidez de Sócrates e de seus discípulos, da qual somos informados em várias passagens,
como, por exemplo, no verso 103:
Αἰβοὶ, πονηροί γ', οἶδα. Τοὺς ἀλαζόνας,
τοὺς ὠχριώντας, τοὺς ἀνυποδήτους λέγεις,
ὧν ὁ κακοδαίμων Σωκράτης καὶ Χαιρεφών.
Ai, os terríveis, eu conheço. Falas dos charlatões,
Dos empalidecidos, dos sem calçados,
Dentre os quais o maldito Sócrates e Querefonte
O tom da pele é um adaptador corporal importantíssimo na Grécia antiga, por ser
uma característica essencial da diferenciação dos gêneros. As mulheres, tradicionalmente,
ficavam confinadas em casa, e acabavam por ter uma pele bem pálida, enquanto os homens,
dedicados às atividades exteriores como a agricultura (para os mais pobres), o esporte (boa
parte das atividades era exercida a u aberto) ou mesmo às atividades da ágora, estavam
sujeitos a um nível de insolação muito maior, resultando, portanto, em uma pele bronzeada.
Dessa forma, disfarçar o tom de pele torna-se um motivo importantíssimo nos travestimentos
das comédias de Aristófanes, seja um homem que se trai entre mulheres pelo seu tom moreno,
como é o caso do parente de Eurípides nas Mulheres que celebram as Tesmofórias, ou as
mulheres que encontram dificuldades em esconder seu tom de pele lido quando se
disfarçam de homens na Assembléia de mulheres. É também uma característica comum da
iconografia que resgatamos nos vasos gregos as mulheres serem caracterizadas sempre com a
pele clara, e os homens conforme a técnica de pintura do vaso. Assim, ao nomear e descrever
de maneira bastante repetitiva o tom de pele de Sócrates e seus discípulos como pálido,
Aristófanes não apenas os está caracterizando como pessoas completamente dedicadas ao
estudo, e sim relativizando uma das principais características masculinas do grupo, algo que
pode ser visto a mesmo como uma invectiva de Aristófanes. Esta questão da excessiva
feminilidade dos socráticos será mais tarde, e em termos completamente diferentes, tratada de
forma ampla no agón da comédia.
O problema com que nos encontramos neste momento é se essa característica em
especial é confirmada por outros testemunhos. Como bem comprova esta passagem de
Xenofonte:
33
Ἀλλὰ μὴν ἐκεῖνός γε ἀεί μὲν ἦν ἐν τῷ φανερῷ πρῲ τε γὰρ εἰς περπάτους
καὶ γυμνάσια ᾔει καπληθούσης ἀγορᾶς ἐκεῖ φανερὸς ἦν, καὶ τὸ λοιπὸν
ἀεὶ τῆς ἡμέρας ἦν ὄπου πλεῖστοις μέλλοι συνέσεσθαι.
46
Porém, aquele sempre esteve às vistas. Pois de manhã passeava e ia aos ginásios e
sempre era visível quando a ágora estava cheia, e no resto do dia ele sempre estava
onde encontrasse a maior parte de pessoas.
Não encontramos nenhuma confirmação dessa característica na literatura dos
discípulos e podemos até encontrar dados para refutá-la, primeiro pelo fato de Sócrates ter
participado ativamente das batalhas do início da guerra do Peloponeso, o que é uma
demonstração de sua atividade física; segundo pela própria descrição da participação de
Sócrates em diversas atividades ao ar livre que provavelmente davam-lhe o mesmo tom de
pele de seus concidadãos. Assim, a descrição de uma suposta pele branca de Sócrates é
inverossímil, dadas as atividades de que ele participava, e tal descrição parece calhar bem
para Aristófanes, por convir ao quadro desejado para seu personagem: o filósofo natural
separado da realidade e efeminado. Nessa passagem, a conveniência dessa característica é um
forte indício de sua artificialidade.
Esse detalhe da cor da pele nos mostra que não é em todas as características físicas
que o personagem se parece com o Sócrates histórico. Aristófanes está pronto a sacrificar um
pouco da verossimilhança para a composição de um personagem, algo que se expressa de
maneira clara com a questão do elemento da cor da pele na comédia, que provavelmente não
convinha às atividades de Sócrates. Isso mostra que Aristófanes nem sempre se mantinha fiel
às características do κωμῳδούμενος e era capaz de modificá-lo por um tipo ideal. Se isso
ocorre em um caso tão claro como o da aparência, sendo Sócrates um homem visto por muitos
em Atenas, podemos supor que Aristófanes está pronto para fazer o mesmo quando se trata de
suas opiniões e do seu comportamento. Ou seja, muito do que Sócrates faz na comédia é
utilizado por Aristófanes apenas para compor um quadro ideal do tipo de personagem com o
qual ele quer que aquele se pareça.
Doutrinas Socráticas n’As Nuvens?
Embora tradicionalmente a crítica tenha reconhecido os pontos em que Aristófanes
está enganado a respeito das atividades de Sócrates, em alguns casos podemos entrever
alguma relação positiva entre o Sócrates da cena e os relatos que temos da personagem por
46
Memoráveis, 1, 1, 10.
34
outras fontes sobre sua vida. Uma outra referência que nosso conhecimento de Sócrates
consegue avaliar se encontra no verso 137:
καὶ φροντίδ΄ἐξήμβλωκας ἐξηυρημένην
E abortaste um pensamento descoberto.
A essa passagem corresponde, de forma bem precisa, esta do Teeteto de Platão
(149d):
Καὶ μὴν καὶ διδοῦσαί γε αἱ μαῖαι φαρμάκια καὶ ἐπᾴδουσαι δύνανται
ἐγείρειν τε τὰς ὠδῖνας καὶ μαλακωτέρας ἂν βούλωνται ποιεῖν, κα
τίκτειν τε δ τὰς δυστοκούσας, καὶ ὰν νέον ν δόξῃ ἀμβλίσκειν,
ἀμβλίσκουσιν.
E, com efeito, também as parteiras, por meio da administração de remédios e de
invocações, são capazes de despertar as dores e, se quiserem, de fazê-las mais
brandas, e tanto de fazer as difíceis (de parir) parirem quanto de fazê-las abortar um
bebê que julgam que será abortado.
A concisão é impressionante: Aristófanes é capaz de usar apenas uma palavra (o
verbo ἐξαμβλόω, “abortar”) e com isso evocar toda a doutrina da maiêutica socrática, que
momentos depois, no diálogo platônico,
47
Sócrates definirá como sua única habilidade. Tal
citação, afirmam alguns comentadores, demonstra um conhecimento seguro de Sócrates e
suas atividades, uma vez que não é um ambiente esperado para o uso dessa palavra, e,
podemos adicionar, ela se encontra justamente no início da peça, dita por alguém que aparenta
conhecê-lo profundamente. Uma outra semelhança é que logo em seguida o discípulo diz que
não pode relatar o pensamento, por ser ele um mistério, e, da mesma forma, Sócrates pede a
Teeteto
48
para não divulgar a informação sobre o seu método.
No entanto, tal passagem concerne uma questão bastante discutida recentemente na
bibliografia socrática. De acordo com um artigo de M. F. Burneyat
49
, partindo de uma
suposição de Dover, que logo iremos comentar, tal maiêutica socrática jamais existiu ela
seria uma invenção de Platão. Portanto, em tal passagem apareceria tão somente uma
coincidência entre as palavras de Aristófanes e as do Teeteto de Platão. Lançando mão de um
argumento puramente filosófico, e não filológico, e baseando-se em alguns poucos
testemunhos de Xenofonte e nos primeiros diálogos platônicos, Burnyeat propõe que a
47
Platão, Teeteto 150 d.
48
Teeteto 149 c.
49
BURNYEAT 1977:7-16.
35
dialética de Sócrates era tão somente destrutiva, isto é, seu principal objetivo seria o de levar
seus interlocutores a um estágio de aporia, visando a desconstrução das suas idéias. A idéia da
maiêutica, no entanto, conforme exposta de maneira clara no Teeteto, é exatamente oposta, e
diz respeito a uma dialética e um pensamento que visam à obtenção de um resultado, ou, nos
termos de Burnyeat, de uma estratégia construtiva. Portanto, tal conceito jamais poderia ser
socrático, e sim platônico por essência, porque ele também está ligado a idéias dos últimos
diálogos, como Fedro, República, etc.
A idéia de que tal doutrina da maiêutica não era originalmente socrática fora
considerada anteriormente, justamente no comentário de Dover à tal passagem. Inicialmente,
ele tenta desacreditar essa afirmação com base no argumento de que a consideração sobre a
maiêutica encontra-se em um diálogo relativamente tardio de Platão. O fato dela não aparecer
em nenhum outro diálogo anterior e de se aproximar da maiêutica socrática (ou platônica,
segundo a teoria de Burneyat) tornaria tal doutrina extremamente improvável, e seria tão
somente uma fortuita coincidência. Além disso, o nome fornecido para a mãe de Sócrates,
segundo Burneyat, teria sido uma criação platônica, pois o nome Fenarete (“que faz aparecer
a virtude”) seria bom demais para ser verdade.
Entretanto, para validar esta tese, seriam necessárias duas comprovações:
primeiramente provar que na Comédia Ática, ou em algum outro texto grego, o verbo abortar
é usado de forma figurada, o que não acontece, pois na verdade a palavra jamais é atestada em
sentido figurativo. E, em segundo lugar, também não é persuasivo o argumento da data do
Teeteto, primeiro porque a tradicional datação e evolução do pensamento de Platão parte do
pressuposto de que suas primeiras obras são mais ligadas ao pensamento de Sócrates, e que,
com o tempo, Platão vai se desvinculando da influência de seu mestre e criando uma filosofia
própria. Por fim, Burnyeat parte do falso pressuposto de que a não referência à maiêutica
alhures é prova de sua inexistência. A semelhança dos conceitos e sua proximidade são muito
evidentes para serem descartadas, e Dover parece fazê-lo aqui simplesmente para suportar seu
argumento de que Aristófanes não faz nenhum comentário verdadeiramente ligado a Sócrates,
e sim critica um “filósofo ideal”
50
.
Não é também de todo correto o argumento de que não nenhuma informação a
respeito da maiêutica em outros diálogos, pois, em um outro artigo
51
, J. Tomin mostra que há
uma boa base filológica para se acreditar na existência de Fenarete, a mãe de Sócrates, e que
50
DOVER, 1968: xxxii-lvii e vide supra
51
TOMIN, 1987: 97-102.
36
também passagens no Cármides e no Menon que podem muito bem ser referências à
maiêutica
52
.
Outros pesquisadores tentaram aproximar as doutrinas de Sócrates de informações e
versos presentes na comédia de Aristófanes. Um exemplo radical de tal ponto de vista é
defendido por Philippson, em um artigo de 1932
53
. De acordo com ele, vários usos de verbos
tais quais τέμνω “cortar”, διαιρέω distinguir, separar”, συνάγω “ajuntar”, que são
encontrados em alguns trechos da comédia, são referências veladas ao método dialético
socrático. Philippson também tenta mostrar que muitas das afirmações de Sócrates em obras
como a Apologia devem ser levadas em conta somente como isso, apologias, porque ele tenta
encontrar várias passagens em outras situações que demonstrem que a doutrina e o
ensinamento de Sócrates não eram tão abertos como ele assim pregava e Xenofonte nos faz
acreditar
54
.
No entanto, vemos uma outra semelhança entre as notícias dos métodos de Sócrates e
As Nuvens na seguinte passagem: quando Estrepsíades será iniciado nos “mistérios” do grupo
de Sócrates, a principal qualidade que deve ser testada nele para entrar no grupo é possuir
uma boa memória μνημονικός
55
. Também será essa a razão de Sócrates desistir de ensiná-
lo, ele esquece-se de tudo ἐπιλησμών. Ainda que alguns trechos de Platão afirmem que a
memória é um elemento importante para a filosofia e o pensamento, esta passagem foi
freqüentemente esquecida ou deixada de lado, até mesmo por aqueles que, como Murray,
tentaram provar a proximidade entre Platão e Aristófanes. Em Xenofonte um pequeno
trecho cuja proximidade chega a nos impressionar:
ἐτεκμαίρετο δὲ τὰς ἀγαθὰς φύσεις ἐκ τοῦ ταχύ τε μανθάνειν οἷς
προσέχοιεν καὶ μνημονεύειν ἂν μάθοιεν κα ἐπιθυμεῖν τῶν
μαθημάτων πάντων δι΄ὧν ἔστιν οἴκόν τε καλῶς οἰκεῖν καὶ πόλιν καὶ τὸ
ὅλον ἀνθρώποις τε καὶ τοῖς άνθρωπίνοις πράγμασιν εὖ χρῆσθαι
56
.
E reconhecia as boas naturezas por aprenderem rápido no que se concentravam e por
lembrarem o que aprenderam e por desejarem todos os ensinamentos pelos quais é
possível uma casa e uma cidade serem bem habitadas e por serem úteis a todos os
homens e a todas as coisas humanas
52
Platão, Cármides 156d, Ménon 83a.
53
PHILIPPSON, 1932.
54
Cf. Xenofonte, Memoráveis I-11, Platão, Apologia 17c.
55
Aristófanes, Nuvens, 483.
56
Xenofonte, Memoráveis 4-1.
37
Quanto a esta passagem, pode-se discutir se ela é um dado único em relação a
Sócrates que Aristófanes fielmente reproduz; no entanto, ela pode ser um dado cultural
relacionado a todos os pensadores, ou a toda a Atenas do século V a.C., o que destituiria tal
evidência de valor. Aristófanes pode estar usando esta passagem apenas para ressaltar a baixa
qualidade da cognição de Estrepsíades.
Porém, que se ressaltar que se trata de uma afirmação em tom solene vinda do
coro d’As Nuvens, e não meramente de Sócrates, e que ela não seria necessária para
caricaturar Estrepsíades como alguém sem as capacidades mnemônicas suficientes muito
provavelmente por ser um velho. Esta freqüente afirmação é provavelmente uma reiteração de
algo que não existiu, ou que estava sendo suplantado em sua época. Além disso, o próprio
Sócrates em vários outros momentos destaca com grande clareza a importância que a
memória tinha para ele.
Outros comentaristas tentaram ver outros paralelos entre a possível doutrina socrática
e As Nuvens, especialmente no vocabulário que Sócrates usa na comédia. Entretanto, não foi
possível encontrar nenhum verdadeiro paralelo, e normalmente buscou-se exagerar o
significado de vocábulos comuns na língua grega.
Mas certamente é necessário reforçar, por exemplo, que quando Sócrates elege o
Vórtice como o grande senhor do universo que destronou Zeus, Aristófanes não faz outra
coisa senão parodiar as teorias de Diógenes de Apolônia sobre a natureza do mundo e o ar em
movimento como o princípio de todas as coisas
57
.
O que possuímos desse grande quadro é que Aristófanes certamente conhece
Sócrates, e mesmo é capaz de reconhecer e citar algumas de suas doutrinas, conseguindo
mesmo tirar um efeito cômico disso. Entretanto, esse quadro não é de todo coerente, pois
muitas das doutrinas referem-se a filósofos como Diógenes de Apolônia ou Anaxágoras, e
muitos dos procedimentos são típicos dos sofistas. Parece-me provado e, portanto, fora de
questão, que as interpretações que pressupõem tanto o desconhecimento absoluto de Sócrates
por Aristófanes quanto uma mudança nos interesses daquele são falhas em muitos pontos e,
portanto, extremamente improváveis. Por exemplo, no ano em que As Nuvens foram
representadas, Sócrates tinha mais de quarenta anos e havia passado a data dramática de
vários diálogos importantes, tais quais Protágoras e Parmênides
58
. O que nos resta são as
várias hipóteses que oferecem Sócrates como um símbolo, um representante de uma classe,
em especial a classe dos intelectuais.
57
Diógenes Laércio, IX, 57.
58
Vide a discussão da data dramática do Protágoras que será realizada no terceiro capítulo.
38
Entretanto, apesar da grande literatura existente sobre Sócrates e Aristófanes, a
questão acerca da fonte dessas anedotas ainda não foi levantada. Teriam sido criação ad hoc
de Aristófanes, para ridicularizar Sócrates? Julgamento popular? Essas parecem ser as
explicações que estão subentendidas na maioria dessas interpretações. Porém, quando vemos
anedotas que são repetidas e encontradas em um longo corpo de fragmentos da comédia
ateniense, somos obrigados a repensar a sua origem. Segue um exemplo dessas:
Σώκρατες ἀνδρῶν βέλτιστ΄ὀλίγων, πολλῶν δὲ ματαιὸταθ΄, ἥκεις
καὶ σὺ πρὸς ἡμᾶς; καρτερικός γ΄εἶ. πόθεν ἄν σοι χλαῖνα γένοιτο;
τουτὶ τὸ κακὸν τῶν σκυτοτόμων κατ΄ἐπήρειαν γεγένηται
οὗτος μέντοι πεινῶν οὗτως οὐ πώποτ΄ἔτλη κολακεῦσαι.
Ó Sócrates, o melhor dentre poucos homens, o mais idiota dentre muitos, vieste
até tu junto a nós? És paciente. De onde conseguiste esta manta?
Este mal dos sapateiros surgiu por maldade,
este aqui, então passando fome deste modo, jamais ousou adular.
59
Faz-se necessário, portanto, uma análise profunda das relíquias da Comédia Antiga e
da situação desses fragmentos para notar se se trata somente de Sócrates, ou se estamos diante
de uma visão geral do filósofo. É importante, então, vasculhar os fragmentos da Comédia
Antiga em busca não somente de algo que facilite nossa visão de Sócrates, mas também de
fragmentos que nos mostrem a situação da filosofia na Comédia Antiga.
Tal trabalho ainda não foi feito, pois nos restam apenas trabalhos que tentam
contemplar a presença de Sócrates em outros fragmentos da Comédia Antiga, como o
excelente, ainda que exageradamente especulativo, artigo de Patzer
60
. Tal estudo, com efeito,
ajudaria a desfazer a controvérsia, presente desde o século XIX, sobre se há uma disputa entre
a filosofia e a comédia, ou entre Aristófanes e Sócrates.
59
Amípsias Fr. 9 Bergk.
60
PATZER, 1994.
39
2. SÓCRATES NA COMÉDIA ANTIGA
2.1. UMA NOVA VISÃO DA COMÉDIA ANTIGA
A tradição crítica a respeito d’As Nuvens nos deixou um quadro bastante amplo e
diversificado de interpretações que nem sempre são coerentes entre si. Esses estudos, porém,
não exauriram as fontes que possuímos, pois ainda falta uma investigação dos fragmentos de
outros autores cômicos gregos. Podemos verificar que a esse quadro que a tradição crítica
d’As Nuvens nos legou, pode ser adicionado este tipo de testemunho que, embora seja
esparsamente atestado, raramente foi considerado como um conjunto relevante para a
interpretação da comédia de Aristófanes.
Algumas interpretações d’As Nuvens, especialmente aquelas que hipotetizam um
antagonismo básico entre a poesia, em especial a comédia, e a filosofia, tais como as de
Süvern e Leo Strauss, de certo modo pressupõem uma análise desse corpus. Esses fragmentos
são também importantes para a confirmação ou refutação de outras teorias, como o argumento
de Dover, que diz que a comédia está apenas representando um tipo ideal de intelectual, sem
ter interesse nos detalhes e no refinamento doutrinal de cada intelectual.
Apesar de raramente levados em consideração na interpretação de Aristófanes, o
estudo dos fragmentos cômicos já conta com uma larga tradição. As obras mais importantes, e
que de certa maneira inauguram tais escritos, são as edições de Fragmentos Cômicos feitas
por Bergk, Koch e Meineke. Essas edições são fruto do grande trabalho crítico e filológico
executado com especial intensidade no ambiente universitário de língua alemã no século XIX.
É um conjunto de valor científico e filológico inestimável, pois em muitos casos envolve não
apenas o recolhimento dos testemunhos presentes na vasta tradição grega, mas também uma
análise crítica que determina, quando isso é possível, o autor e a obra, com comentários e
referências valiosos para o pesquisador.
Autores da virada do século XX, como Wilamowitz e Murray
61
, tiveram maior
propensão para estudar os fragmentos de Menandro e da Comédia Nova, e a mesma tendência
foi verificada entre os estudiosos da Comédia Grega até mais ou menos a metade do século
XX. As razões para isso são práticas: além da renomada fama do discípulo de Teofrasto, cabe
mencionar a descoberta, no Egito, de uma obra completa de Menandro entitulada O Díscolo
assim como papiros do mesmo autor, cujos fragmentos se revelaram mais abundantes se
61
Cf. WILAMOWITZ 1899 e MURRAY, 1955.
40
comparados aos de autores como Êupolis ou Cratino. Isso, no entanto, não impediu que
alguns desses estudiosos apurassem ainda mais os dados filológicos e assim refinado o
conhecimento que possuímos sobre os pequenos fragmentos.
Desde 1940, no entanto, o estudo de outros autores importantes, especialmente da
Comédia Antiga, vem crescendo aceleradamente, e um livro que marca esse momento é o
Ancient Greek Comedy de Gilbert Norwood
62
. Mais recentemente, começando na década de
1990
63
, os estudos sobre Aristófanes vêm se aproveitando da rica produção no estudo dos
fragmentos cômicos. Foi a partir deles que se começou a enxergar Aristófanes não como um
autor isolado da tradição, mas um autor de seu tempo, que não apenas vivia em seu ambiente
político e cultural, mas que também era atuante dentro de seu próprio meio, capaz de citar, de
se aproveitar de invenções de outros autores cômicos e de fazer polêmica com eles. Um
exemplo de obra característica deste novo período é o livro Eupolis, poet of the ancient
comedy de Ian Storey
64
, que, por um lado, é um recolhimento e uma suma da tradição
filológica sobre este grande poeta, como também um raro e, até aqui inigualado, estudo de
contextualização e compreensão do significado de sua obra.
Nosso primeiro objetivo não é, como freqüentemente acontece nestes casos, o de
buscar em tais fragmentos alguma informação que nos ajude na investigação sobre o Sócrates
histórico, uma vez que foram razoavelmente discutidas no capítulo anterior as conclusões
que podemos tirar do uso do personagem Sócrates nas Nuvens. Mesmo que a comédia não
seja considerada um depósito seguro de dados biográficos, os estudiosos da filosofia grega, na
difícil busca por referências e citações a alguns autores, freqüentemente usam o testemunho
de autores cômicos como autoridades nesta ou naquela figura. Por exemplo, em sua história
da filosofia grega, Guthrie
65
se vale de um fragmento de Êupolis como testemunho dos
interesses que Protágoras poderia entreter nas ciências naturais. No entanto, tal fragmento
apresenta, como poderemos ver no capítulo seguinte, uma forte semelhança com algumas
passagens das Nuvens e pode muito bem não ter significado algum como um testemunho
fidedigno sobre os interesses verdadeiros da figura histórica de Protágoras. A maior parte das
afirmações que podemos encontrar na Comédia Antiga deve ser considerada válida apenas se
confirmada por outras fontes, uma vez que a comédia é um gênero que normalmente trabalha
com inversões, exageros e estereótipos.
62
Methuen and Co., London, 1961.
63
Cf. os trabalhos de RUFFEL,2002: 138-163; HEATH, 1997;. e SIDWELL 1994
64
, New York: Oxford University Press, 2004.
65
GUTHRIE, 1995.
41
No presente capítulo vamos nos concentrar nas ocorrências de Sócrates na Comédia
Antiga, estabelecendo como limite a passagem do quinto para o quarto século a. C., sendo que
a razão é antes prática do que cronológica, visto que esse limite coincide, grosso modo, com a
fronteira tradicional entre a chamada Comédia Antiga e a chamada Comédia Média
66
. O
interesse está em verificar o uso que se fez de Sócrates enquanto esse ainda vivia, antes que a
visão popular pudesse ter absorvido doutrinas e lugares comuns posteriores a ele.
2.2. INVECTIVA PESSOAL NA COMÉDIA ANTIGA
Cabe aqui estabelecermos uma breve descrição do termo em grego de difícil tradução
ὀνομαστὶ κωμῳδεῖν, o qual traduzimos grosseiramente como “escárnio nominal”. A prática
sugerida pelo termo constitui a característica distintiva da Comédia Antiga em relação à
Comédia Nova ateniense, como também figura como um fator praticamente único na história
da literatura ocidental. Desta forma, a Comédia Antiga torna-se (na expressão de Albin
Lesky
67
) um gênero eminentemente político. Não que ele esteja nos dizendo que a comédia
ateniense seja um gênero exclusivamente voltado aos assuntos da πολιτεία ateniense, mas
sim que este caráter especial que está presente em todas as comédias antigas que possuímos
por inteiro ao gênero um caráter público, aberto, de interesse coletivo. E de fato, não
somente todas as comédias de Aristófanes que restaram possuem citações e escárnios
nominais, como também tratam de assuntos de interesse comum para a comunidade ateniense,
sendo, desse modo, “políticas” em um sentido lato. Que tal característica era propiciada pela
democracia ateniense é um julgamento que vem da Antigüidade e que podemos conferir na
obra de Platônio
68
, para o qual aquilo que marca a passagem da Comédia Antiga para a Média
e a Nova é a situação política ateniense que vai a cada dia impedindo a livre expressão dos
poetas.
Sabe-se, porém, que tal uso não está circunscrito ao estilo de Aristófanes. Com
efeito, temos notícia de outros autores, como Cratino e Êupolis, que também valeram-se de tal
procedimento. Na verdade, o gramático Platônio nos relata em seu importante opúsculo Sobre
as diferenças entre os comediógrafos:
66
Sobre as divisões entre a comédia antiga e media, ver o capítulo seguinte.
67
LESKY, 2002:449.
68
Platônio, Sobre a diferença entre os comediógrafos, 1.
42
Κρατῖνος τῆς παλαιᾶς κωμωιδίας ποιητής, ἅτε δὴ κατὰ τὰς Ἀρχιλόχου
ζηλώσεις, αὐστηρὸς μὲν ταῖς λοιδορίαις ἐστίν. οὐ γὰρ
ὥσπερ
Ἀριστοφάνης ἐπιτρέχειν τὴν χάριν τοῖς σκώμμασι ποιεῖ.
69
Cratino, o poeta da antiga comédia, é, conforme as imitações de Arquíloco, austero
nas invectivas; com efeito, o era como Aristófanes, que mistura a graça com as
críticas.
Isso revela que este grau de crítica não era exclusivo de Aristófanes e que outros
comediógrafos poderiam ser até mais graves e severos em relação ao escárnio de personagens
públicos. Também não era exclusivo de Aristófanes o escárnio de figuras do ambiente cultural
e artístico. Como veremos mais a seguir, o comediante Amípsias escarnece a figura pública
do flautista Conno, e Eurípides também é um alvo freqüente dos poetas cômicos, como nesta
citação cuja autoria desconhecemos:
aÃneu de\ mhtro/j, wÕ ka/qarm' Eu)ripi¿dh;
e sem a mãe, ó purificado Eurípides?
Podemos recolher os nomes de mais uma dezena de tais personagens que foram
motivo de escárnio nominal na Comédia Antiga
70
. Entretanto, se houve outras obras
dedicadas exclusivamente ao escárnio de Sócrates, não estamos em condição de saber pelos
fragmentos restantes. Porém, podemos saber com certa segurança que Sócrates foi tratado
com certa freqüência na Comédia Antiga.
2.3 SÓCRATES EM OUTRAS OBRAS DE ARISTÓFANES
As Aves
Em primeiro lugar estão as referências a Sócrates feitas em outras obras de
Aristófanes que não as Nuvens, ou seja, duas passagens nas Aves e uma nas Rãs:
Ὤ κλεινοτάτην αἰθέριον οἰκίσας πόλιν
Οὐκ οἰσθ΄ὅσην τιμὴν παρ΄ἀνθρώποις φέρει,
ὅσους τ΄ἐραστὰς τῆσδε τῆς χώρας ἔχεις.
Πρὶν μὲν γὰρ οἰκίσαι σε τήνδε τὴν πόλιν
ἐλακωνομάνουν ἅπαντες ἄνθρωποι τότε
ἐκόμων, ἐπείνων, ἐρρύπων, ἐσωκράτων,
69
Platônio, Sobre a diferença entre os personagens.
70
SOMMERSTEIN, 1996.
43
σκυτάλι΄εφόρουν
71
Ó fundador da famosíssima cidade etérea,
Não sabes quanta fama possuis entre os homens?
Quantos amantes tens nesta terra?
Pois antes de fundares esta cidade
Laconizavam todos os homens,
Sofriam, passavam fome, maltrapilhos socratizavam
Levando bastõezinhos
A referência a Sócrates dá-se na criação de um verbo denominativo a partir do nome
de Sócrates, um suposto verbo σωκρατέω. Tal procedimento não é único na literatura grega, o
de criar-se um verbo a partir de um nome de uma figura famosa, assim verbalizando uma
característica especial de tal nome, sendo que pelo menos um exemplo do mesmo recurso
na Comédia Antiga, neste famoso fragmento de Cratino:
Τίς δὲ σύ; Κομψός τις ἔροιτο θεατής,
ὑπολεπτολόγος, γνωμοδιώκτης, εὐριπιδαριστοφανίζων.
E quem você é? Dir-se-ia algum espectador refinado
E de frases delicadas, perseguidor de máximas, euripidoaristofanizante.
Tal fragmento de Cratino, entretanto, constitui-se para nós algo que pode soar como
um oxímoro para a pessoa acostumada à obra de Aristófanes. Pois dada a famosa e constante
freqüência com que esse ridiculariza Eurípides em sua obra, parece pouco provável que
ambos possam ser equiparados. E de forma ainda mais curiosa, ao interpretarmos o
fragmento, ele soa como a maioria dos comentários a Eurípides da obra de Aristófanes, isto é,
Eurípides é, em Aristófanes, o personagem tradicional do “modernista” literário
72
, que
sacrifica a tradição por um tipo diferente de poesia, exatamente o que o adjetivo
ὑπολεπτόλογος parece querer dizer. Para se ter certeza disso, basta constatar a freqüência
com que a raiz λεπτ- ocorre nas Nuvens (quatorze vezes em toda a comédia, sendo dez
sendo no sentido figurado de refinado”), pois ela representa bem, no imaginário grego da
época, um tipo específico de pensamento, o pensamento refinado dos entendidos e, para usar
um termo moderno, “antenados” com a modernidade.
No caso do trecho d’As Aves em questão, entretanto, não está em questão a sutileza
dos pensamentos de Sócrates, porém reforça-se a sua aparência suja e descuidada a quenos
referimos no capítulo passado. A princípio, poderíamos tomar isso como alguma característica
tradicional de Sócrates.
71
Aristófanes, Aves 1277-83
72
Acarnenses, 394, Mulheres que celebram as Tesmofórias, 13, Rãs 771
44
As Aves apresentam outra citação de Sócrates:
Πρὸς δὲ τοῖς Σκιάποσιν λί-
μνη τις ἔστ΄ἄλουτος οὗ
ψυχαγογεῖ Σωκράτης.
Ἔνθα καὶ Πείσανδρος ἦλθε
δεόμενος ψυχὴν ἰδεῖν ἥ
ζῶντ’ἐκεῖνον προὔλιπε
σφάγι’ἔχων κάμηλον ἀ-
μνόν τιν’ἧς λαιμοὺς τεμὼν
ὥσπερ Οὑδυσσεὺς ἀπῆλθε,
κᾆτ’ἀνῆλθ΄αὐτῷ κάτωθεν
πρὸς τὸ λαῖτμα τῆς καμήλου
Χαιρεφῶν ἡ νυκτερίς.
73
Próximo ao povo dos pés-sombreiros
Há um certo palude não lavado onde
Sócrates encanta as almas.
Para lá também veio Pisandro
Pedindo para ver uma alma
Que ainda vivo o abandonou.
Portando na mão como vítima
Um certo camelo-ovelha e cortando sua goela,
como Ulisses, afastou-se
E depois apareceu-lhe por cima
Diante do golfo do camelo
Querefonte, o morcego.
Aqui, novamente, algumas características externas estão associadas a Sócrates. Mas a
passagem é mais uma invectiva contra este Pisandro, que é chamado de covarde por
Êupolis
74
, e também a referência ao ritual da entrada de Odisseu no Hades no canto 11 da
Odisséia
75
, por causa da ocorrência do sacrifício e da procura da alma.
Aristófanes trabalha com o duplo sentido do verbo ψυχαγογέω, que pode significar
“conjurar almas”, que é o sentido etimológico e semanticamente mais evidente, além do
sentido derivado existente de convencer, persuadir, enganar”. Sócrates é, portanto, nesta
passagem, novamente “confundido” com os sofistas (inclusive porque a retórica, um pouco
mais tarde, sedefinida como ψυχαγογία), e a piada dá-se apenas pela frustração do sentido
esperado (o de enganação) pelo uso do sentido etimológico da palavra, mas, mesmo assim, a
identificação de Sócrates como um personagem que engana e convence os outros, tal como
nas Nuvens, permanece forte.
73
Aristófanes, Aves 1553-1564
74
Cf. Frr. 31Kock Πεισάνδρος εἰς Πακτωλὸν ἐστρατεύετο / κἀνταῦθα κάκιστος ἦν ἀνήρ Pisandro
armou campanha contra Pactolo e foi o pior dos homens” & 182Kock κουε νῦν Πείσανδρος ὡς
ἀπόλλυται “ouça agora como Pisandro morre”
75
Homero, Odisséia XI, 23-50.
45
No entanto, a importância desta passagem é sem dúvida e mais uma vez a atribuição
de uma frugalidade exagerada a Sócrates, uma frugalidade que foi expressa nas Nuvens e que
pode ser facilmente verificada nos escritos socráticos, e também por esse comportamento
enganador e sofístico, contra o qual tão freqüentemente a literatura socrática se volta. Torna-
se, portanto, importante buscar saber se tal conjunto é único para Sócrates ou se ele faz parte
da visão contemporânea, ou ao menos da visão cômica da figura do filósofo, mas isto é um
assunto para mais tarde.
As Rãs
Outra citação de Sócrates importante está na comédia As Rãs:
Χαρίεν οὖν μὴ Σωκράτει
Παρακαθήμενον λαλεῖν
ἀποβαλόντα μουσικὴν
τά τε μέγιστα παραλιπόντα
τῆς τραγῳδικῆς τέχνης
τὸ δ΄ἐπὶ σεμνοῖσιν λόγοισιν
καὶ σκαριφησμοῖσι λήρων
διατριβὴν ἀργὸν ποεῖσθαι
παραφρονοῦντος ἀνδρὸς
76
Não é agradável ficar assentado
E falar com Sócrates,
Abandonando a música e
Deixando de lado o mais importante
Da arte trágica,
E com discursos elevados
E com ninharias tagarelando
Passar o tempo à toa
É coisa de um homem desvairado.
O coro em tal passagem parece querer traçar uma relação de proximidade entre
Eurípides e Sócrates e o estilo do tragediógrafo, como se Sócrates fosse uma influência para
Eurípides. Isso ocorre no final da comédia, no momento em que Eurípides é derrotado no
agón com Ésquilo. Neste momento, estabelece-se a relação, que também estava presente
n’As Nuvens, de uma forte ligação entre Sócrates e Eurípides. N’As Nuvens, Eurípides é
citado quando Fidípides volta de seu treinamento socrático; o a relação que vemos aqui,
de Sócrates como um mentor de Eurípides, e certamente não se trata de nenhuma afirmação
de valor, mas apenas de um reforço da situação intelectual da Atenas da época, e da função de
76
Aristófanes, Rãs 1491-1499
46
Sócrates como um revolucionário que, portanto, deveria ser visto ao lado de outros
“revolucionários”.
Até aqui nos restringimos às citações em Aristófanes. Ora, é possível que tal
caracterização seja fruto do fato de Aristófanes nutrir alguma antipatia especial contra
Sócrates, e então essa caracterização seria somente uma particularidade do autor. Para
verificar isso, ou se, pelo contrário, se trata de um lugar comum da Comédia Antiga, é
importante saber o que outros autores falaram de Sócrates para ver se há correspondência.
2.4. SÓCRATES EM OUTROS AUTORES
Com efeito, dispomos de uma série de fragmentos cômicos, cujo número total de
referências diretas a Sócrates, fora aquelas encontradas na obra de Aristófanes, é de quinze
(duas delas estão presentes em fragmentos cuja autoria não podemos determinar). O número
pode parecer reduzido, mas Sócrates é uma das figuras públicas mais citadas na Comédia
Antiga, sendo que personagens importantíssimos como Alcibíades são mencionados menos do
que ele, e o político Cléon só é citado mais vezes justamente por causa da freqüente querela
entre os dois. É evidente que a larga literatura a respeito de Sócrates guardou um maior
número de citações dele, permitindo-nos ver de maneira um pouco mais precisa a maneira
como Sócrates era visto na comédia clássica ateniense.
Amípsias
Entre os fragmentos, há um, já citado, da comédia Conno (Κόννος), de grande
importância para o nosso argumento, do comediógrafo Amípsias, que cita Sócrates
nominalmente:
Σώκρατες νδρν βέλτιστ΄λίγων, πολλν δ µαταιταθ΄, κεις
κα σ πρς µς; καρτερικός γ΄ε. πόθεν ν σοι χλανα γένοιτο;
τουτ τ κακν τν σκυτοτόµων κατ΄πήρειαν γεγένηται
οτος µέντοι πεινν οτως οπώποτ΄τλη κολακεσαι.
Ó Sócrates, o melhor dentre poucos homens, o mais idiota dentre muitos, vieste
Até tu junto a nós? És digno de resistente. De onde conseguiste esta manta?
Este mal surgiu por maldade dos sapateiros,
Este então, passando fome deste modo, jamais se esforçou em adular.
47
Segundo informação do argumento d’As Nuvens, ambas as comédias foram
representadas no mesmo ano em 423 a. C., sendo que Conno arrebatou o segundo lugar, à
frente da comédia de Aristófanes. Temos aqui, portanto, uma referência a Sócrates que
podemos considerar completamente independente de Aristófanes pois ambas tornaram-se
públicas por volta da mesma época. Tal comédia recebe o nome de um famoso músico do
período, que, segundo uma informação presente no Eutidemo e no Menéxeno de Platão, teria
sido professor de Sócrates. A citação do Menéxeno
77
é a seguinte:
Λέγω γάρ, καὶ Κόννον γε τὸν Μητροβίου, οὗτοι γάρ μοι δύο εἰσὶν
διδάσκαλοι, μὲν μουσικῆς, δὲ ῥητορικῆς. Οὔτω μὲν οὖν τρεφόμενον
ἄνδρα οὐδὲν θαυμαστὸν δεινόν εἴναι λέγειν.
Pois eu falo também de Conno, o filho de Metróbio; pois esses são meus dois
professores: ele de música, ela (i.e. Aspásia) de retórica. Deste modo, pois. o
nada admirável em um homem crescido ser capaz de ser terrível no falar .
O mais importante a marcar sobre essa passagem é o tom profundamente jocoso da
citação de Conno: Sócrates estava, em conversa com Menéxeno, elogiando os dons oratórios
de Aspásia, a cortesã que era amante de Péricles, chegando inclusive a afirmar que o famoso
estadista ateniense seria um de seus mais importantes alunos. E termina com esta passagem
em que afirma que ele, Sócrates, tinha sido aluno tanto de Conno quanto de Aspásia, música
com um, oratória com a outra.
Ao contrário do que afirmam alguns comentaristas, não se deve tirar daí que Sócrates
tenha alguma relação real com Conno, pois seria como afirmar que Aspásia também seria um
discípulo “socrático”, o que evidentemente vai contra todas as fontes mais confiáveis.
No entanto, há um motivo para a citação de Aspásia no diálogo socrático, e os
comentadores tradicionalmente entendem que seja uma referência a Eutidemo:
ὥσπερ Κόννῳ τῷ Μητροβίου, τῷ κιθαριστῇ, ὁς μὲ διδάσκει ἔτι καὶ νῦν
κιθαρίζειν: ὁρῶντες οὖν ο παίδες οἱ συμφοιτηταί μοι ἐμοῦ τε
καταγελῶσι καὶ τὸν Κὸννον καλοῦσι γεροντοδιδάσκαλον
78
.
Como a Conno, o filho de Metróbio, o citarista, que me ensina ainda agora a tocar
cítara. As crianças, então, minhas colegas, vendo-me, tanto riem-se de mim quanto
chamam Conno de professor de anciãos.
77
Platão Menéxeno, 235e-236a
78
Platão, Eutidemo, 272c
48
É importante marcar aqui, entretanto, que um certo ar jocoso em ambas
passagens, pois nelas Sócrates refere-se a Conno como seu professor. Neste ponto é
importante notar que o paralelo feito por Sócrates é entre Conno e um professor que ele não
considera seriamente, em uma matéria que dificilmente lhe seria de alguma importância. Na
verdade, o objetivo do Eutidemo é justamente mostrar como o personagem título e seu irmão
não são capazes de ensinar nada.
A ligação, real ou suposta, entre Conno e Sócrates parece ter sido suficientemente
importante para Sócrates fazer parte do coro da comédia. Trata-se, muito provavelmente, de
um coro individualizado, o que por si só já é um fato raro. O coro seria formado por
“pensadores”, φροντισταί, segundo a informação de Ateneu. Assim sendo, Sócrates aqui é
caracterizado não como um indivíduo único, mas como o representante de um grupo social.
Quais seriam esses pensadores, não estamos em totais condições de dizer, mas é relevante
notar o comentário de Ateneu sobre o assunto quando ele diz que se Protágoras não é listado
entre os “pensadores” é porque ele já teria abandonado Atenas no período. Ou seja, para os
Atenienses do século V, ou pelo menos aos olhos da comédia, parece bem claro que Sócrates
estava no mesmo grupo que Protágoras.
Tais testemunhos platônicos não confirmam, como pressupõem a maioria dos
comentadores, a passagem em que Sócrates afirma ter sido um aluno de Connos. Na verdade,
o tom das citações e seu ambiente são extremamente desencorajadores para uma tal
afirmação. Longe de confirmar, elas levantam ainda mais a dúvida, se é verdade ou não que
alguma relação direta entre Sócrates e este músico, opinião essa compartilhada por alguns
comentaristas de Platão, como Louis Méredier.
A questão desse Connos tornar-se-ia mais clara se fosse possível fazer a identificação
entre este personagem, presente no nome da comédia e nos diálogos de Platão, e um outro
músico chamado Connas, que é escarnecido na Comédia Antiga, nesta passagem de
Aristófanes
79
:
a)lla\ ge/rwn wÔn perie/rrei,
wÐsper Konna=j, ste/fanon me\n eÃxwn auÂon, di¿yv d' a)polwlw¯j,
oÁn xrh=n dia\ ta\j prote/raj ni¿kaj pi¿nein e)n t%½ prutanei¿%,
kaiì mh\ lhreiÍn, a)lla\ qea=sqai liparo\n para\ t%½ Dionu/s%.
Mas sendo velho, vaga
Tal como Conas, que por um lado tem uma coroa seca, mas por outro
Está morto de sede,
Que (ao invés disso) era para beber no pritaneu por conta das vitórias anteriores.
79
Aristófanes, Cavaleiros 533-6.
49
E não falar besteira, mas ver (a comédia) gordo junto a Dioniso
É esta a opinião de Willamowitz
80
. Outros ainda deixam um pouco de espaço para
dúvida, pois, de fato, além da diferença entre os nomes, este Conas não necessariamente é um
aulista, tal qual o professor que é comentado nos diálogos de Platão que vimos acima. O
maior problema é que de fato não outra referência a um outro Conno além das citações
acima comentadas, enquanto temos dados mais concretos em relação a este outro personagem,
fornecidos pelo escólio a Os cavaleiros ad locum.
A única outra solução do motivo pelo qual Sócrates seria posto ao lado de uma figura
como Conno (ou Conas, se formos seguir Wilamowitz), afora uma improvável relação estreita
entre um e outro, é imaginar que ambos participassem de uma característica comum, ao
menos aos olhos da comédia do século V a. C. Muito provavelmente é a mesma característica
que faz Sócrates ser emparelhado com Eurípides nas Nuvens, ou seja, ambos apresentam algo
de novidade intelectual, algo de inovador, sendo, portanto, dignos de serem escarnecidos ao
mesmo tempo. Com tal ponto de vista, torna-se muito mais cil compreender as citações
dessa figura em Platão, pois o Sócrates platônico está apenas aludindo a algum papel cômico
no qual ele teria sido aluno de Conno, algo que se torna ainda mais provável se supusermos
que o próprio papel de Aspásia, neste diálogo, deve bastante ao que a comédia teria
produzido, o que lamentavelmente é difícil de confirmar pelo fato de nenhuma comédia da
época de Péricles ter restado.
Ainda que comentaristas como Gilbert Norwood
81
afirmem que a passagem em
questão é mais gentil com Sócrates do que Aristófanes normalmente o é, há um claríssimo eco
dela em uma passagem das Nuvens
82
:
Φειδιππίδης
δια ταυ̂τα δη και θοἰµάτιον ἀπώλεσας;
Στρεψιάδης
ἀλλ' οὐκ ἀπολώλεκ', ἀλλα καταπεφρόντικα.
Fidípides
E por isso perdeste também a túnica?
Estrepsíades
Mas não a perdi, gastei com imaginação.
Em ambas as passagens, a de Amípsias e a d’As Nuvens, parece estar subentendido
que Sócrates tenha roubado, ou tenha conseguido por meio de adulação, ou tenha cobrado
como salário uma peça de vestuário, o que destaca também um outro lugar comum na
80
Apud DAELE, 2002 :104.
81
NORWOOD, 1961: 24-5.
82
Aristófanes, Nuvens 176-9.
50
literatura sobre Sócrates, que é sua maneira de vestir, como comentamos anteriormente.
Outro dado importante é que, como são obras apresentadas no mesmo festival, não é lícito
supor uma influência de Aristófanes sobre Amípsias, nem em relação a essa anedota,
tampouco em relação à introdução de Sócrates na comédia. Ou seja, Sócrates, no ano de 423,
era considerado um personagem digno de ser um komoidoúmenos, sendo escarnecido de
maneira semelhante.
Indo além, podemos fazer disto uma questão: assim como certa facilidade em
encontrar motivos políticos específicos para a crítica de Aristófanes a Cléon em algumas de
suas comédias, haveria alguma razão para Sócrates ser lembrado no mesmo ano por poetas
diferentes? E mais, haveria alguma razão para o uso desse mesmo motivo?
Vemos neste breve fragmento a confirmação de duas tendências do anedotário
socrático presentes também nas Nuvens: sua ligação estreita com o meio intelectual do
período e sua maneira de vestir e se comportar diferentemente dos demais uma delas é
bastante verossímil e confirmada pelos testemunhos platônicos, e a outra parece bem
provavelmente ser uma criação mica comum, um elemento de estoque. Tal fragmento,
ainda que breve, já dificulta a posição tradicional sobre um suposto antagonismo entre as
posições de Sócrates e de Aristófanes; na verdade, indica que há, na composição da figura de
Sócrates, muito de uma visão comum a toda Comédia Antiga.
Êupolis
O comediógrafo Êupolis possui dois fragmentos que também nos ajudam a avançar
no assunto:
Μισ δ΄γ κα Σωκράτην, τν πτωχν δολέσχην,
ς τ΄λλα µν πεφρόντικεν,
πόqεν δ καταφαγεν χοι τούτου κατηµέλεκεν.
E eu odeio também Sócrates, o mendigo charlatão,
Que já pensou em todo o resto,
Mas de onde ter para comer, disto se esqueceu
83
Este fragmento é de suma importância para compreender o retrato que a Comédia
Antiga fazia de Sócrates. A expressão mais importante e mais rica para nós é
τν πτωχν
83
Fr. 352 Kock
51
δολέσχην, uma vez que está presente também nas Nuvens, bem no final, quando
Estrepsíades decide destruir o Frontistério
84
:
oiãmoi paranoi¿aj. w¨j e)maino/mhn aÃra
oÀt' e)ce/balon kaiì tou\j qeou\j dia\ Swkra/th.
a)ll' wÕ fi¿l' ¸Ermh=, mhdamw½j qu/maine/ moi,
mhde/ m' e)pitri¿yvj, a)lla\ suggnw¯mhn eÃxe
e)mou= paranoh/santoj a)dolesxi¿#.
kai¿ moi genou= cu/mbouloj, eiãt' au)tou\j grafh\n
diwka/qw graya/menoj, eiãq' oÀti soi dokeiÍ.
o)rqw½j paraineiÍj ou)k e)w½n dikorrafeiÍn
a)ll' w¨j ta/xist' e)mpimpra/nai th\n oi¹ki¿an
tw½n a)dolesxw½n. deu=ro deu=r', wÕ Canqi¿a,
kli¿maka labwÜn eÃcelqe kaiì sminu/hn fe/rwn,
kaÃpeit' e)panaba\j e)piì to\ frontisth/rion
to\ te/goj kata/skapt', ei¹ fileiÍj to\n despo/thn,
eÀwj aÄn au)toiÍj e)mba/lvj th\n oi¹ki¿an.
Ai de mim, que loucura! Como eu ensandeci
Quando derrubei até os deuses por causa de Sócrates
Mas, ó caro Hermes, de modo algum te irrites comigo
Nem acabe comigo, mas tem compreensão
Por eu ter enlouquecido com a falastrice,
Torna-te meu conselheiro, para que ou eu escreva
Uma condenação para eles, ou o que te parecer (melhor).
Corretamente aconselhas não permitir encalhar os processos,
Mas o mais rápido possível atear fogo à casa
Dos falastrões. Rápido, Xântias
Sai, pega uma escada e leva uma picareta,
E em seguida, depois de ter subido no pensatório
Destrói o teto, se gostas do teu dono
Até destruir completamente a casa deles.
O termo δολέσχης é de difícil compreensão, primeiramente por ser formado por
uma raiz, δο-, sem outro correspondente em grego, para o qual ainda não foi levantada uma
hipótese definitiva. Chantraine, em seu dicionário etimológico, nos duas possíveis origens,
sem no entanto esposar qualquer uma delas. A primeira remete à “saciedade”, e a segunda à
família ἁFαδο-, e estaria no campo semântico de ἡδύς. O segundo termo também é
complicado, por possuir uma longa história semântica: λέσχη, originalmente, possuía o
simples sentido de leito, sofá, um lugar para descanso, uma vez que relacionado a λέχος,
cama, leito. Este é o sentido homérico da palavra¨οὐδ’εθέλεις εὕδειν χαλκήιον ἐς δὀμον
ἐλθὼν ἠέ που ἐς λέσχην
(Mas não desejas dormir (indo) à brônzea casa ou a algum lugar
de descanso qualquer); no entanto, a evolução semântica do termo levou-o a significar uma
84
Aristófanes, Nuvens, 1476-89
52
sala pública de encontros
85
, especialmente em Esparta, e também tornou-se um termo
utilizado em Atenas. Em relação a tal sentido, temos testemunhos em Ésquilo e Cratino,
pertencentes ao início e à metade do século V. Ao final desse século, no entanto, o termo
passou a tomar um significado mais pejorativo, o de conversa ociosa, provavelmente
relacionada ao tipo de conversa encontrado nas tais salas. A partir dele surge o termo
δολέσχης e seus derivados, que possui o sentido de “agir e falar ociosamente”, sentido esse
que presumimos encontrar nos primeiros testemunhos da palavra, pertencentes aos
comediógrafos antigos, especificamente Aristófanes e Êupolis.
A importância de tal passagem, especialmente se compararmos com a citação do
termo em Aristófanes, reside no fato de Platão continuamente usar tal expressão como uma
resposta à comédia, como nesta passagem do Fédon, cujo conteúdo alusivo parece claro
86
:
OuÃkoun g' n oiåmai, d' oÁj o( Swkra/thj, ei¹peiÍn tina nu=n
a)kou/santa, ou)d' ekwm%dopoio\j eiãh, w¨j a)dolesxw½ kaiì ou) periì
proshko/ntwn tou\j lo/gouj poiou=mai. ei¹ ouÅn dokeiÍ, xrh\
diaskopeiÍsqai.
E de modo algum julgo o ouvinte dizer algo, nem se fosse um comediógrafo, que
tagarelo e também faço discursos sobre o que não é conveniente. Se então parece, é
preciso examinar.
Platão aqui põe Sócrates respondendo diretamente a um termo antes encontrado
nos comediógrafos, e em ambas as vezes em referência ao próprio Sócrates. No entanto, o que
é curioso nesta passagem é que o paralelo não é exatamente com as Nuvens, uma vez que
δολέσχης e δολεσχία não se referem diretamente a Sócrates e sim aos habitantes do
pensatório e a Estrepsíades
87
, enquanto Êupolis dirige-se diretamente contra Sócrates, e
provavelmente mais de uma vez, pois uma outra citação da palavra, sem, porém, a certeza
de que se trata de Sócrates:
ἀλλ’ἀδολεσχεῖν αὐτὸν ἐκδίδαξον, ὤ σοφιστά
88
.
Mas ensine-o a tagarelar, ó sofista.
Não se deve dar muito valor ao uso do termo σοφιστής, que viria a se especializar
no sentido pejorativo que lhe atribuímos até hoje a partir da obra de Platão. No entanto, é de
85
cf. Lidell-Scott: “2. lounging place, resort for idlers or beggars.”
86
Platão, Fédon, 70b-c.
87
É esta inclusive a base da argumentação de Paul Vander Waerdt.
88
Fr. 83 Kock.
53
grande importância a relação direta aqui estabelecida entre o termo δολέσχης e o trabalho do
pensamento, sem dúvida uma relação comum e natural dentro do imaginário ateniense da
época. Ou seja, o σοφιστής é um sujeito ocioso, termo que aparece nas Nuvens e que também
é muitas vezes comentado de passagem nos diálogos socráticos, como nesta passagem do
Parmênides:
Πρῲ γάρ, εἰπεῖν, πρὶν γυμνασθῆναι, Σώκρατες, ὀρίζεσθαι ἐπιχειρεῖς
καλόν τέ τι καδίκαιον καὶ ἀγαθόν καἕν ἕκαστον τῶν εἰδῶν. νενόησα
γὰρ κα πρῴην σου διαλεγομένου ἐνθάδε Ἀριστοτέλει τῷδε. Καλὴ μὲν
οὖν καὶ θεία, εὖ ἴσθι, ἡ ὀρμὴ ἣν ὀρμᾷς ἐπὶ τοὺς λόγους· ἕλκυσον δὲ
σαυτὸν καὶ γύμνασαι μᾶλλον δι τῆς δοκούσης ἀχρήστου εἶναι καὶ
καλουμἐνης
ὑπὸ τῶν πολλῶν ἀδολεσχίας ἕως ἔτι νέος εἶ· εἰ δὲ μή, σὲ
διαφεύξεται ἡ ἀλήθεια.
89
Pois ontem, ele disse, antes de te exercitares, ó Sócrates, decidiste-te a distinguir o
bom, o justo, o belo e cada uma de suas formas. Com efeito, percebi até ontem
depois de ouvir tu falares ali com este Aristóteles. De fato, é belo e divino , tu bem
sabes, o impulso que impulsionas em tais raciocínios, mas eles te arrastam até à
palestra mais pela considerada inutilidade por muitos chamada de tagarelice, até
quando eras jovens. Se não, a verdade te escapa.
A passagem é dita por Parmênides e o tom é suficientemente crítico contra Sócrates.
A importância, entretanto, reside na ênfase dada ao modo como o povo julgava o trabalho de
Sócrates, considerado um vagabundo pela multidão (ο πολλοί), algo que Parmênides o
deixa de marcar de forma jocosa. A importância disto está em revelar que a própria opinião
popular não se colocava de maneira muito distante da de Aristófanes, e que, conforme
veremos no próximo capítulo, mesmo Parmênides não estava excluído disto totalmente, visto
que se poderia supor que ele também era considerado um “tagarela”.
É bom lembrar que o fragmento 352 é atribuído por Bergk e confirmado por vários
outros estudiosos
90
como pertencente à comédia Os Aduladores de Êupolis e pode-se saber
pela métrica que esta é uma passagem do coro de parasitas, talvez pertencente à parábase ou
ao párodo. Sendo enunciada por um coro de parasitas, não é uma fala estranha a seu grupo, e
talvez essa comédia esteja no caminho para a consolidação do personagem do parasita
como pertencente ao repertório da Comédia Nova. A relação entre o filósofo e o parasita
mostrar-se-á mais clara no próximo fragmento de Êupolis a citar Sócrates nominalmente:
δεξάµενος δ Σωκράτης τν πιδεξιν
89
Platão, Parmênides, 135c-d.
90
Cf. STOREY, 2004
54
Στησιχόρου πρς τν λύραν, οινοχόην κλεψεν
E Sócrates aguardando o momento de apresentar
Estesícoro com a lira, roubou um vaso de vinho.
91
Este fragmento guarda, novamente, uma estreita relação com uma passagem do
diálogo entre o discípulo e Estrepsíades
92
, no início das Nuvens:
Στ. Εἶἑν. Τί οὖν πρὸς τἄλφιτ᾿ ἐπαλαμήσατο ;
Μα. Κατὰ τῆς τραπέζης καταπάσας λεπτὴν τέφραν,
κάμψας ὀβελίσκον, εἶτα διαβήτην λαβών,
ἐκ τῆς παλαίστρας θοἰμάτιον ὑφείλετο.
Estrepsíades: O que então arranjastes como alimento?
Aluno: Sobre a mesa, espalhando uma sutil cinza,
tendo sovado o pãozinho e em seguida, tomando um compasso,
Roubou o manto da palestra.
O fragmento nos deixa em dúvida quanto ao seu modo de obtenção de alimento, ou
seja, Sócrates é um personagem que, na falta de algum tipo de riqueza, ou mesmo de uma
ocupação que lhe forneça uma forma de sustento, utiliza-se ou do furto, como no caso do
fragmento de Êupolis, ou apenas dissimula a fome, como em Aristófanes.
Aqui um tema se repete: a relação de Sócrates com o banquete. Como é bastante
comum nas Nuvens, o relacionamento e o comportamento de Sócrates é sempre estranho e
alheio ao mundo social grego, freqüentemente negando e indo de encontro a modos e
costumes da etiqueta antiga. Uma expressão bem clara disso é o furto. O fragmento descreve
claramente uma situação de banquete, em que um dos convivas, como é muito comum neste
tipo de ambiente, é convidado a exercitar-se na poesia. Sócrates, nesta situação parece
envolver-se em um furto de um equipamento típico do ambiente do banquete. Desta forma, a
breve menção de Êupolis a Sócrates reforça a sua caracterização como um personagem alheio
às convenções sociais, algo que não é de todo contrário ao testemunho dado pela obra
socrática de Xenofonte e Platão. O que ocorre é apenas uma mudança de como esse
alheamento às convenções se dá: em Xenofonte e Platão, Sócrates aparece apenas como um
exemplo de um novo tipo de virtude; na comédia, Sócrates é apenas um parasita.
Outra aproximação importante, também relevante em Aristófanes, de Sócrates com o
personagem do parasita, diz respeito ao fato de ele provavelmente estar incluso em um coro
de parasitas, e nada nos impede supor que esse fragmento também esteja presente na mesma
91
Fr. 361 Kock
92
175-179
55
comédia. Ou seja, Sócrates está sendo nomeado como um parasita ou ao menos é considerado
um equivalente.
Cálias
Outro fragmento da comédia em que Sócrates aparece é o seguinte de Cálias:
Τί δ σ σεµνο κα φρονες οτω µέγα;(...)
ξεστι γάρ µοι Σωκράτης γρ ατιος.
Por que você se afeta e pensa tão grandemente? (...)
É próprio de mim, pois Sócrates é o culpado.
Há uma provável lacuna entre os dois versos. Não possuímos nenhuma notícia
biográfica do autor, e portanto fica bastante difícil precisar a sua data. Mas, pelo uso de um
neologismo, é provável que o verbo σεµνόω, que nunca é usado em Aristófanes e no século V
aparece em Heródoto, se refira a um texto posterior, talvez pertencente ao século seguinte.
No entanto, o adjetivo σεµνός é muito comum n’As Nuvens, e está freqüentemente
relacionado ao status de sofisticação de determinada atitude, como, por exemplo, em uma
citação de algo não relacionado ao mundo intelectual
93
:
eiãq' wÓfel' h( promnh/stri' a)pole/sqai kakw½j
hÀtij me gh=m' e)ph=re th\n sh\n mhte/ra.
e)moiì ga\r hÅn aÃgroikoj hÀdistoj bi¿oj,
eu)rwtiw½n, a)ko/rhtoj, ei¹kv= kei¿menoj,
bru/wn meli¿ttaij kaiì proba/toij kaiì stemfu/loij.
eÃpeit' eÃghma Megakle/ouj tou= Megakle/ouj
a)delfidh=n aÃgroikoj wÔn e)c aÃstewj,
semnh/n, trufw½san, e)gkekoisurwme/nhn.
Bem que a alcoviteira deveria morrer cruelmente
A que me escolheu para casar com sua mãe.
Pois antes eu tinha uma agradabilíssima vida rústica
Cheio de mofo, não perturbado por insetos, jazendo à toa
Com o cheiro de abelhas e rebanhos e videiras
Depois esposei a sobrinha a de Mégacles, filho de Mégacles
Da cidade, sendo eu rústico
E ela venerável, refinada, nos modos de Césira.
Aqui Estrepsíades compara a sua infância no campo com os modos requintados e
sofisticados da mulher com quem ele se casou, que jamais é nomeada na comédia. Pelo uso da
mesma palavra, pode-se notar que, apesar do humor feito contra Sócrates por causa de seu
93
Aristófanes, Nuvens, 48-55
56
asseio, e também por seu comportamento excêntrico em ambientes sociais, algo na fala e
nas idéias de Sócrates que o aproxima das classes mais consideradas, pois o mesmo adjetivo é
usado igualmente para ambas as situações. Isto não quer dizer que Sócrates tenha uma
filosofia voltada diretamente para as classes altas – o que no quadro histórico grego não deixa
de ser verdade, haja vista seus discípulos mais famosos, como Alcibíades e Platão mas sim
que a filosofia e os pensamentos de Sócrates parecem, por tal classificação, dispor de uma
elevada estima e consideração na sociedade ateniense. Tal consideração é de grande valor
para a compreensão das Nuvens e de toda a referência à filosofia que encontramos em tais
obras: a filosofia, apesar de escarnecida, possui um certo valor social que está implicitamente
reconhecido ao longo de toda a comédia. Ou seja, apesar dos filósofos serem ridículos e
desprezíveis, os assuntos de que tratam são os mais elevados.
Vemos tal valor representado na própria figura de Fidípides, que antes se esforçava
para gastar o máximo de dinheiro com cavalos e corridas, e que ao final converte-se em um
dos mais entusiásticos discípulos de Sócrates, campeão na arte de refutar algum acusador. De
certo modo, a figura de Fidípides em pouco difere de uma figura histórica de grande vulto,
que é a do famoso político ateniense Alcibíades. Pois sabemos por Plutarco
94
que Alcibíades
também se destacou na criação de cavalos e no amor às corridas, e também é bastante
conhecido como esta importante figura tornou-se um apaixonado discípulo de Sócrates
95
.
Desta forma, o testemunho tanto da evolução de Fidípides quanto o da história de
Alcibíades e de vários outros jovens gregos, relata que, apesar de todo escárnio que Sócrates
suscitava tanto entre cômicos quanto entre seus próprios pares, o seu círculo de discípulos
possuía um considerável status social. Tal fragmento confirma um valor que nem sempre é
muito comentado nas interpretações tradicionais das Nuvens, visto que muito se diz, como
vimos no capítulo anterior, sobre uma suposta oposição entre Aristófanes e Sócrates, ou seja,
uma oposição entre uma forma nova de educação e uma educação tradicional. Fala-se
96
até no
exagero de que As Nuvens seriam um “convite ao assassinato” de Sócrates. Mas muito pouco
se comenta sobre algo que está de certo modo implícito na comédia e que consiste em
Sócrates e seus discípulos possuírem uma elevada consideração entre seus pares.
94
Plutarco, Vida de Alcibíades, 11 A d' i¸ppotrofi¿ai peribo/htoi me\n e)ge/nonto kaiì t%½
plh/qei tw½n a(rma/twn: e(pta\ ga\r aÃlloj ou)deiìj kaqh=ken ¹Olumpi¿asin i¹diw¯thj ou)de\
basileu/j, mo/noj d' e)keiÍnoj, kaiì to\ nikh=sai kaiì deu/teron gene/sqai kaiì te/tarton w¨j
Qoukudi¿dhj fhsi¿n, w¨j d' Eu)ripi¿dhj tri¿ton, u(perba/llei lampro/thti kaiì do/cv pa=san
th\n e)n tou/toij filotimi¿an.
95
Como se torna evidente na própria Vida de Plutarco supracitada com o também no Banquete, no Parmênides,
nos dois diálogos Alcibíades e em várias outras passagens de Platão.
96
É esta a opinião de Eliano, Varia Historica, 32
57
Esse breve fragmento de Cálias revela que Sócrates é considerado σεµνός, isto é:
venerável, elevado, sublime. Se formos procurar pelas causas da escolha de Sócrates como
objeto de escárnio nas Nuvens e em outros breves fragmentos aqui citados, será justamente
esta a principal razão, pois trata-se do esquema mais tradicional da Comédia Antiga: um
cidadão comum que se revolta contra personagens muito mais poderosos do que ele e, apesar
de tudo, consegue ser bem sucedido nesse intento.
Teleclides
O comediógrafo Teleclides também tem um fragmento que menciona Sócrates:
Φρύγες στί καινν δρµα τοτ΄Εύριπίδου
[...] κα Σωκράτης
Τ φρύγανα ποτίθησι
Os Frígios é este novo drama de Eurípides (...)
Do qual Sócrates compôs até a lenha.
O autor é firmemente datado no século V a. C., sendo portanto, um contemporâneo
de Aristófanes. Nesse fragmento, Sócrates é diretamente associado a Eurípides, associação
que existe nas Nuvens, mas que não é suficientemente forte. Talvez não possamos, a partir
desses dois dados, inferir uma proximidade real entre ambos, mas o fato de os dois se
colocarem como figuras inovadoras no ambiente cultural ateniense do culo V a. C. faz
ambos serem aproximados pelos poetas cômicos.
Comica Adespota
Ainda mais dois fragmentos que fazem referência direta a Sócrates, de autoria
desconhecida. O primeiro apresenta uma particularidade por citar Sócrates em um paralelo
com Aspásia:
oiãei d' e(tai¿raj to\n sofisth\n diafe/rein;
paideu/omen d' ou) xeiÍron h(meiÍj tou\j ne/ouj.
su/gkrinon, wÕ 'ta/n, ¹Aspasi¿an kaiì Swkra/thn:
th=j me\n ga\r oÃyei Perikle/a, Kriti¿an de\ tou=
e(te/rou maqhth/n.
Você acha que as cortesãs se distinguem do sofista?
Não menos nós ensinamos os jovens.
Vamos comparar, ó caro, Aspásia e Sócrates:
58
Desta, você verá como aluno, Péricles,
Do outro, Crítias.
Aspásia é a cortesã mais conhecida da história da Grécia, amante de Péricles,
aparece com grande proeminência na biografia do estadista, porém, com menos freqüência do
que se podia esperar na comédia, com apenas três citações além desta: uma de Cratino, uma
nos Acarnenses de Aristófanes e outra de Êupolis. Todas as citações são relativamente
antigas, remontando, no caso de Cratino, certamente à vida de Péricles, enquanto que em
Êupolis é uma conjectura de um fragmento d’O Maricas achado no Egito, peça datada no ano
de 421 a. C. Portanto, todas as referências a Aspásia que temos na tradição cômica grega são
antigas, não parecendo muito forçado assumir que esse fragmento pertença à década de 430
ou de 420 a. C., ou seja, durante a vida de Péricles ou logo depois, quando sua memória ainda
era forte. Há, portanto, uma grande probabilidade de ele ser anterior às Nuvens.
Um paralelo extremamente curioso e revelador que podemos fazer desse fragmento é
justamente com o diálogo Menexeno de Platão, quando Sócrates mesmo declara ter Aspásia
sido uma boa professora de retórica, uma σοφιστής, querendo implicar que ela mesma teria
escrito os discursos de Péricles. Trata-se, pois, da mesma comparação entre um sofista, um
homem de letras, e uma cortesã.
O que esse fragmento traz de novo e importante é a confirmação da posição de
Sócrates no período como o pensador, o intelectual por excelência no anedotário grego do
final do século V a. C.
Todos esses fragmentos o são suficientes para assegurar, mas servem para mostrar
uma tendência. A primeira é de que circulavam certos tipos de anedotas sobre Sócrates,
muitas delas relacionadas com a sua frugalidade (nas comédias, sua pobreza), as quais vemos
reproduzidas nas Nuvens de Aristófanes e cuja confirmação também encontramos nas obras
da escola socrática. Também de grande importância é notar a posição que Sócrates possuía
quando da composição das Nuvens, a ponto de ser freqüentemente apresentado como um
representante do gênero do intelectual e deve-se notar que havia, naquele período, outros
filósofos e sofistas capazes de representar igualmente bem esse cargo consideração que
pode ser útil e frutífera para os próprios estudos sobre a biografia de Sócrates, pois implica
que suas atividades durante aquele período já o destacavam no ambiente cultural ateniense.
Entretanto, muitos outros aspectos do Sócrates de Aristófanes, esses até
contraditórios com os que vimos neste trabalho, não são confirmados por esses fragmentos.
Podemos formular duas hipóteses, que devem ser confirmadas com mais estudo. A primeira é
que as fontes desses fragmentos, em sua larga maioria histórias e biografias de Sócrates,
59
fizeram uma filtragem do que eles citariam; e a segunda é a hipótese tradicional de que
Aristófanes está voluntariamente tomando partido contra Sócrates, enquanto os outros
comediógrafos estão sendo mais neutros em relação a este assunto. É necessário, portanto,
prosseguir no estudo não apenas dos fragmentos relativos a Sócrates, mas de todas as
referências aos antigos pensadores, os φροντισταί, como os chamava a Comédia Antiga, para
confirmar se algo de tradicional na caracterização de Sócrates ou se se trata de uma
particularidade de Aristófanes caracterizar Sócrates como um sofista.
60
3. A FILOSOFIA NA COMÉDIA ANTIGA
3.1. A AUTO-REFERÊNCIA NA COMÉDIA ANTIGA
Boa parte da interpretação d’As Nuvens tende a se concentrar exclusivamente na
questão socrática. Conseqüência disso é a centralização da pesquisa na figura de Sócrates e a
focalização da interpretação em sua figura. No entanto, mesmo em Aristófanes, um
número considerável de referências a outras figuras que podemos chamar de filosóficas, e os
fragmentos coligidos de outros autores apenas reforçam tal impressão. A interpretação dessas
passagens pode ser muito frutífera para a compreensão d’As Nuvens.
Acreditamos que Aristófanes é uma figura indissociavelmente ligada a seu meio e
que é possível ter uma compreensão de sua obra se tentarmos, na medida do possível,
recriar o ambiente em que viveu e assim perceber as ligações e referências a este meio veladas
em sua obra. Em diversos momentos da obra de Aristófanes podemos perceber como temas
que circulam em outros poetas aparecem, ou como uma referência, ou fazendo parte de um
estoque comum de termos e situações da comédia antiga.
Estudo de um caso: Péricles
Podemos observar isso de forma bastante significativa a partir deste exemplo tirado
do seguinte fragmento de Cratino:
ὁ σχινοκέφαλος Ζεὺς ὅδε προσέρχεται
Περικλέης, τᾠδεῖον ἐπὶ τοῦ κρανίου
ἔχων, ἐπειδὴ τοὔστρακον παροίχεται
97
E este Zeus de cabeça apontada avança
Péricles, tendo o Odeão sobre a cabeça
Uma vez que se livrou do ostracismo
Esses versos pertencem à comédia As Trácias, de cujo argumento não possuímos
nenhuma informação. Aqui, Péricles, provavelmente salvo de ser expulso pelo ostracismo, é
comparado a Zeus, uma referência certeira ao poder que Péricles tinha obtido em Atenas, e
ainda uma sutil referência a um suposto meio ilícito pelo qual Péricles teria sido salvo do
97
Cratino Fr. 71 Kock
61
ostracismo
98
. Esse é o tipo de comparação política que poderíamos esperar da comédia antiga
que é principalmente cômico e não político ou sectário, Cratino se esquece, ou para ele pouco
importa, de que os meios obtidos por Péricles e por Zeus para conseguir o poder tenham sido
completamente diferentes.
Em outra comédia do mesmo autor podemos perceber um desenvolvimento deste
tema de “Zeus-Péricles” com um tratamento ainda mais refinado:
Στάσις δὲ καὶ πρεσβυγενὴς Κρόνος ἀλλήλοισι μιγέντε
Μέγιστον τίκτετον τύραννον
ὅν δὴ κεφαληγερέταν θεοὶ καλέουσιν.
99
E a rebeldia e o antiqüíssimo Crono unidos entre si
Geraram o maior dos tiranos
A quem os deuses chamam de ajuntador de cabeças
Ἥραν τέ οἱ Ἀσπασιαν τίκτει Καταπυγοσύνη παλλακὴν κυνώπιδα
100
E a esculhambação lhe gerou uma Hera, Aspásia, concubina de olhos de cão
Tais versos o líricos e fazem parte da comédia Quírones de Cratino. Por isso,
provavelmente são cantados pelo coro de centauros que nome à comédia. Trata-se de uma
refinada, ainda que bastante abusiva, sátira a Péricles. É feita com base na literatura épica,
cujo maior exemplo para s (e muito provavelmente também para Cratino) é a Teogonia de
Hesíodo.
Neste fragmento, podemos reconhecer traços da dicção épica, como na expressão
ἀλλήλοισι μιγέντε, que são imediatamente relacionados a expressões bastante comuns em
Hesíodo e Homero, tais quais o uso de epítetos épicos modificados para servir de abuso
político, como κεφαληγερέταν em lugar de νεφεληγερέταν e κυνώπιδα no lugar de
βοώπιδα.
Os fragmentos transpõem de forma mica o nascimento de Zeus que vemos na
Teogonia: Crono, que no poema de Hesíodo une-se a Réia para gerar o senhor dos Deuses,
Zeus, no fragmento em questão, une-se à rebelião (στάσις), para gerar o grande tirano
chamado de “ajuntador de cabeças”. Apesar de não citar o nome de Péricles a referência aqui
é óbvia, pois é sabido que o formato de sua cabeça era ligeiramente deformado, razão pela
98
Esta é a suposição de Kock no comentário ao texto; ele segue Plutarco, Vida de Péricles 14, que conta a
disputa entre Péricles e Tucídides que termina com o ostracismo do último.
99
Fr. 240 Kock
100
Fr. 241 Kock
62
qual ele sempre é representado com um capacete nas estátuas que dele possuímos
101
.
Encontramos, pois, uma expansão da metáfora política que vimos anteriormente, aquela que
coloca Péricles como Zeus (mas ao invés de ser filho de Réia, ele é filho da rebeldia [στάσις]).
E Crono e a rebeldia não apenas geraram o Zeus particular desta comédia, como também,
aproveitando a paródia à Teogonia, geraram a sua Hera: Aspásia, a “olho de cadela”,
relacionada à βωόπις, olho de boi, da Hera corriqueira.
Trata-se de uma refinada sátira política, que se mistura à poesia épica para o escárnio
de um importante personagem público. No entanto, se tal imagem estivesse presente apenas
em Cratino, poderíamos nos contentar com o fato de isso ser alguma rixa que ele teria contra
o político (como a rixa que encontramos entre Aristófanes e Cléon), mas a imagem de um
Péricles-Zeus não se restringe ao autor, pois podemos encontrá-la em um outro cômico,
Teleclides. Não temos as palavras, mas temos o comentário de Ateneu:
Καὶ Περικλέα τὸν Ολύμπιον ἐρᾶν φησι Τηλεκλείδης ἐν Ἠσιόδοις
102
E Teleclides, n’Os Hesíodos, diz amar Péricles, o Olímpio
Não apenas tal imagem aparece em Teleclides, como ela se repete, também, em
Aristófanes:
Ἐντεῦθεν ὀργῇ Περιkλέης οὑλύμπιος
ἤστραπτ΄,ἐβρόντα, ξυνεκύκα τὴν Ἑλλάδα
ἐτίθει νόμους ὥσπερ σκόλια γεγραμμένους
ὡς χρή Μεγαρέας μήτε γῇ μήτ΄ἐν ἀγορᾷ
μήτ΄ἐν θaλάττῃ μήτ’ἐν ἠπείρῳ μένειν
103
E lá, irado, Péricles, o Olímpio,
Soltou raios, trovejou, dispersou a Grécia
Estabeleceu leis como quem escreve canções
Sobre como que os Megarenses devem nem na terra
Nem na ágora, nem no mar, nem no continente ficar.
No entanto, é importante observar que apesar da forma ser idêntica, o uso que se faz
dela é completamente diferente. No caso da referência n’Os Acarnanenses de Aristófanes,
trata-se de uma crítica bastante severa à política ateniense com relação à cidade de Mégara
durante a Guerra do Peloponeso. No caso, a comparação com Zeus é com o deus furioso que
com todo seu poder é capaz de destruir ou acabar com uma sociedade. Somos imediatamente
101
Plutarco, Vida de Péricles, 3, 3
102
Τeleclides fr. 18 Kock
103
Acarnenses 530-4
63
lembrados da cena na Ilíada em que Hera tenta barganhar a destruição de Tróia pela
destruição de outras três cidades caras à deusa: Argos, Esparta e Micenas
104
. Daí as
referências à ira, ao trovão e a todo esse vocabulário relacionado a Zeus e ao poder dele sobre
mortais.
No caso da passagem de Cratino, embora evidentemente com a desvantagem de o
possuirmos o contexto, parece que a referência não é ao poder que Péricles possui fora de
Atenas, àquilo que, baseados em Tucídides, os historiadores costumam chamar de “poder
imperial de Atenas”, mas à situação política interna da pólis. A crítica” dar-se-ia ao seu
poder e à sua situação de destaque, que o colocariam numa proeminência semelhante à de
Zeus. Por isso, as referências algo obscuras à “dissenção política” e, à “Hera” de Péricles,
Aspásia. Podemos ver que Cratino se coloca contra Péricles, mas é difícil imaginar algo além
da crítica cômica característica, pois o tom é doméstico e patriarcal, e não possui, como em
Aristófanes, uma crítica às decisões políticas.
O que podemos supor disso? Devemos, portanto, criar uma “questão Pericléia” para
nos perguntar sobre a confiança dos relatos sobre a personalidade e o governo de Péricles?
Devemos então pressupor que ricles mudou de facção durante a sua carreira política e
apenas depois se tornou o partidário da democracia que vemos, por exemplo, em Tucídides?
Tudo isto é absurdo. Qualquer forma artística e literária deve ser usada com a
máxima prudência no lugar de fonte histórica, no caso da comédia antiga podemos considerar
esse princípio ainda mais importante. Muitos pesquisadores, em especial aqueles que
pesquisam sobre a vida de Sócrates, tentam usar os testemunhos cômicos a respeito de um
autor como fonte ou como prova de algum tipo. Sem vida isso se pela forte ligação da
comédia antiga com a vida, a cultura e a política atenienses do século V o fato de
personagens aparecerem com seus nomes reais leva a supor uma certa fidedignidade aos fatos.
No entanto, isso não apenas não é verdade, como em muitas vezes dá-se o exato oposto.
O caso de Péricles é um excelente exemplo de vários traços característicos da
Comédia Antiga. Primeiro, como ela se relaciona com os fatos de uma maneira muito
superficial, e segundo, e isto é algo que vai nos interessar mais neste trabalho (pois vemos
isso aqui de uma forma extremamente clara), como uma imagem, a de Péricles como um
soberano divino, migrou de autor para autor. Pode-se concluir também que o uso da imagem é
próprio de cada autor e independente de qualquer referência histórica estável, ou seja,
Aristófanes a usa para criticar a política externa, Cratino a usa como uma piada relacionada à
104
Homero, Ilíada, IV, 51-3
64
política interna, não havendo nenhuma outra semelhança no uso além da repetição do termo.
A expressão “Péricles Olímpico” flutua de autor para autor sem possuir nenhum sentido
comum, trata-se apenas de um termo, uma comparação que depois de ter adquirido uso dentro
dos meios cômicos, disseminou-se e ganhou popularidade. Trata-se, sem dúvida de uma
forma de crítica a Péricles, mas não se deve pressupor que a partir de tal crítica haja algum
apoio a algum tipo de partido político, a imagem é mais cômica do que política e vale mais
pela riqueza poética que ela traz do que por qualquer valor que ela realmente possua.
Apesar da maior riqueza do uso de Aristófanes, cabe lembrar que a imagem mais
antiga é a de Cratino, pois a comédia As trácias é provavelmente imediatamente posterior ao
ostracismo de 446, e a referência vem da fonte que o cita, ou seja, quase vinte anos anterior à
de Aristófanes. Portanto, sequer a noção de uma idéia original que opere com um sentido
completo em seu contexto, mas que depois é degradada e tornada em um lugar comum, cabe
aqui, o que vemos é a imagem circulando e sendo utilizada de acordo com os interesses e a
habilidade do escritor.
3.2. ELEMENTOS DE ESTOQUE NAS NUVENS?
E o que isso tem a ver com o assunto desta dissertação? Certamente o fato de termos
levantado, na introdução, a possibilidade de que muitas das referências a Sócrates sejam
tradicionais, ou seja, se repitam pelo costume de se usar contra figuras como Sócrates. Cabe
agora, em uma primeira instância, avaliar as referências feitas na comédia antiga a
personagens e a fatos relacionados com As Nuvens, mais especificamente nos concentrando
no mundo intelectual d’As Nuvens, o qual compreende boa parte da polêmica dessa obra.
A preferência será dada aos fragmentos da comédia antiga que sejam ou
contemporâneos ou anteriores à obra em questão. Tal abordagem de chofre nos coloca um
problema, pois no caso da comédia antiga de fato, da literatura grega em geral na maioria
das vezes,
datar uma certa obra é uma tarefa demasiado complicada. Por tal razão por
“anteriores ou contemporâneos às Nuvens vamos considerar todo o corpus da Comédia
Antiga. No entanto, uma longa tradição de comédia intelectual naquilo que se
convencionou chamar de “comédia média”, e, dada sua riqueza, não podemos ignorá-la;
porém, é bastante difícil saber o que é um desenvolvimento independente das Nuvens.
Analisaremos os testemunhos e, à medida do possível, e onde for necessário, o
ambiente das citações, para saber o objetivo dessas e se elas podem interferir ou não no nosso
texto. Um exemplo: na comédia Os Aduladores de Êupolis, como vimos, há algumas
65
referências a Sócrates, e se formos buscar as referências na obra de Kock, boa parte das
citações vem dos próprios escoliastas a Aristófanes. Outras referências normalmente se
esgotam em obras relacionadas a Sócrates: escólios às Memoráveis de Xenofonte, a biografia
de Diógenes Laércio et alia.
Uma conclusão que se pode tirar a respeito disso é que é bastante improvável que
Sócrates tenha sido nomeado em muito mais comédias do que as de que temos notícia, uma
vez que as obras dedicadas à erudição de textos tão importantes quanto as comédias de
Aristófanes, as Memoráveis de Xenofonte e os diálogos de Platão, falharam em assinalar a
presença desses outros comentários.
Aliás, provavelmente a riqueza que temos de citações de Sócrates deve-se justamente
ao fato de ele ter sido um personagem cuja importância ganhou bastante volume para a
história do pensamento grego, uma vez que todos estes fragmentos foram recolhidos
justamente com o objetivo de demonstrar algo que o estudioso desejava destacar. Como esta
passagem, num comentário às Memoráveis de Xenofonte:
Αὐτὸν μὲν τὸν Σωκράτην πτωχὸν ἀδολέσχην καλοῦντων τῶν
κωμῳδιοποιῶν(…)
E os comediógrafos chamando o próprio Sócrates de um mendigo falador(,,,)
E segue a citação do fragmento 352 de Bergk. É uma citação interessante porque o
escoliasta está claramente reforçando a nossa tese da repetição e aproveitamento de um
estoque comum contra Sócrates. demonstramos no capítulo anterior que, pelo quadro geral
que os fragmentos nos mostram, tal proposição é bastante provável. Cabe agora expandir a
questão, considerando se tal tratamento é exclusivo de Sócrates ou ele pode ser aplicado a
todo personagem intelectual (na falta de termo mais abrangente) que é escarnecido na
Comédia Antiga.
Repetições de temas comuns em Aristófanes
Não é fácil definir qual tipo de pessoa Aristófanes escolhe para escárnio, uma vez
que várias figuras públicas são representadas muitas vezes com características coincidentes.
vimos como Eurípides e Sócrates costumavam ser identificados como pertencentes a uma
categoria semelhante, ao ponto de Teleclides acusar Sócrates de escrever para Eurípides
105
.
105
Teleclides, fr. 18 Kock, cf pg. 56..
66
Vamos ver brevemente dois exemplos de dois temas das Nuvens que se repetem em outras
obras de Aristófanes.
Primeiramente uma passagem da primeira comédia que possuímos em sua
integridade de Aristófanes:
ΔΙΚΑΙΟΠΟΛΙΣ Ἔνδον ἔστ΄ Εὐριπίδης:
ΘΕΡΑΠΩΝ Οὐκ ἔνδον ἔνδον ἐστίν, εἰ γνώμην ἔχεις.
ΔΙ Πῶς ἔνδον, εἶτ’οὐκ ἔνδον: ΘΕ Ὀρθῶς, ὧ γέρον.
Ὁ νοῦς μὲν ἔξω ξυλλέγων ἐπύλλια
οὐκ ἔνδον, αὐτὸς δ’ἔνδον ἀναβάδην ποιεῖ
τραγῳδίαν ΔΙ Ὧ τρισμακάρι’Εὐριπίδη,
ὅθ’ὁ δοῦλος οὑτωσὶ σοφῶς ὑποκρίνεται
Diceópolis: E dentro está Eurípides?
Servidor: Mas dentro não é dentro, se tiveres imaginação
Di: Como Dentro, e depois não dentro? Se: Certamente, ó velho
O pensamento não está dentro,, está fora colhendo versinhos
E ele mesmo, dentro, escreve uma tragédia de pernas para o ar
Di: Ó três vezes bem aventurado Eurípides
Cujo escravo distingue tão sabiamente.
Tal passagem fornece um paralelo interessante com a entrada de Sócrates n’As
Nuvens, pois ambas apresentam o personagem com uma aura de inacessibilidade: Eurípides
não pode ser visitado sequer pelo seu escravo, Sócrates só pode ser conhecido depois de se ser
de certo modo iniciado nos mistérios. Ambos também são representados com um refinamento
do pensamento o elevado que devem ser mantidos afastados das coisas da terra: no caso de
Sócrates, seu próprio corpo não pode estar em contato com o chão, no caso de Eurípides seu
pensamento migra para fora do corpo e da casa. No entanto, os objetivos são diferentes: n’Os
Acarnenses Eurípides está coletando termos exóticos e elevados para suas tragédias, n’As
Nuvens,
Sócrates tenta compreender os fenômenos meteorológicos.
Quanto a esse objetivo, temos um caso parecido na comédia As Aves:
Μέτων ἥκω παρ' ὑμᾶς Πισθέταιρος ἕτερον αὖ τουτὶ κακόν.
τί δ' αὖ σὺ δράσων; τίς δ' ἰδέα βουλεύματος;
τίς ἡ 'πίνοια, τίς ὁ κόθορνος τῆς ὁδοῦ;
Μέτων γεωμετρῆσαι βούλομαι τὸν ἀέρα
ὑμῖν διελεῖν τε κατὰ γύας. Πισθέταιρος πρὸς τῶν θεῶν
σὺ δ' εἶ τίς ἀνδρῶν; Μέτων ὅστις εἴμ' ἐγώ; Μέτων,
ὃν οἶδεν Ἑλλὰς χὠ Κολωνός. Πισθέταιρος εἰπέ μοι,
ταυτὶ δέ σοι τί ἔστι; Μέτων κανόνες ἀέρος.
αὐτίκα γὰρ ἀήρ ἐστι τὴν ἰδέαν ὅλος
κατὰ πνιγέα μάλιστα. προσθεὶς οὖν ἐγὼ
τὸν κανόν', ἄνωθεν τουτονὶ τὸν καμπύλον
67
ἐνθεὶς διαβήτην μανθάνεις; Πισθέταιρος οὐ μανθάνω.
Μέτων ὀρθῷ μετρήσω κανόνι προστιθείς, ἵνα
ὁ κύκλος γένηται σοι τετράγωνος κἀν μέσῳ
ἀγορά, φέρουσαι δ' ὦσιν εἰς αὐτὴν ὁδοὶ
ὀρθαὶ πρὸς αὐτὸ τὸ μέσον, ὥσπερ δ' ἀστέρος
αὐτοῦ κυκλοτεροῦς ὄντος ὀρθαὶ πανταχῇ
ἀκτῖνες ἀπολάμπωσιν.
Méton: Eu chego a vocês Pistetero: Que outro mal é este?
O que então vieste fazer? Que forma de desejo?
Que pensamento – que coturno! – do caminho?
Me: Quero geometrizar o ar
E separá-lo conforme os ângulos Pi: Pelos deuses
Quem és dentre os homens? Me: quem eu sou? Méton,
Que conhecem a Grécia e Colono. Pi: dize-me
Que é isto junto de ti? Me: Réguas do céu,
Pois o céu é, em seu todo, em relação à forma,
Como um forno. Então, colocando eu
A régua acima desta curva aqui
E fixando o compasso, entendes? PI: Não entendo
ME: vou medir com a régua reta, para
Que a curva torne para você um quatrado e para que no meio
Haja uma ágora e as ruas que levam a ela
Sejam retas para o meio, como de uma estrela
Que mesmo sendo circular, os raios brilham
Retos de todos os lados
.
A semelhança desta passagem com a mesma cena da entrada de Sócrates é bastante
clara: ambos possuem um projeto científico bastante amplo que tenta abarcar esferas inteiras
do conhecimento, ambos usam métodos e objetos tipicamente científicos, e o interesse das
atividades de ambos para o homem comum é bastante reduzido.
Vemos que ambos os personagens, o poeta e o cientista, refletem algo da
caracterização de Sócrates. Podemos dizer que, para o pensamento do tempo de Aristófanes,
tanto o poeta quanto o cientista e o filósofo ocupavam um mesmo papel, que poderíamos
chamar de intelectual, isto é, todas as figuras ligadas de alguma forma ao pensamento e que
não estão ligados à manufatura ou qualquer forma de trabalho” que produza um objeto
concreto. Fica claro que em muitos casos as críticas e as características coincidem. Mas
também podemos perceber que nem sempre pelo mesmo motivo.
Pois nem Eurípides tem uma fala que é incompreensível como a fala de Méton, nem
este se comporta arrogantemente como Eurípides. No entanto, podemos perceber que ambos
possuem características que podem ser aproximadas às de Sócrates, embora a relação entre
Meton e Eurípides seja somente superficial. O motivo disso é que a figura de Sócrates
apresenta um compósito de várias figuras, contendo tanto a arrogância do poeta e dos
“refinados” quanto a obscuridade do cientista prático como o arquiteto Méton. o
68
encontramos, em Aristófanes, outro personagem paralelo a Sócrates, salvo se considerarmos
seus discípulos, Querefonte, o aluno sem nome e, ao final da comédia, Fidípides.
3.3. A FILOSOFIA NA COMÉDIA ANTIGA
As Aves
Vamos agora analisar as referências a filósofos, sofistas e doutrinas e procedimentos
filosóficos na comédia antiga, quem considere As Aves como uma comédia influenciada
pela tradição sofística
106
. De acordo com essa visão, as Aves não o uma verdadeira utopia,
como afirmam as interpretações mais comuns
107
, mas uma espécie de distopia criada a partir
da visão de certos sofistas. Não são poucos os que perceberam as refencias a doutrinas e
personagens sofísticos, tais quais Górgias, Sócrates, Pródico, nesta comédia. Como nesta
referência a Górgias:
ἔστι δ' ἐν Φαναῖσι πρὸς τῇ
Κλεψύδρᾳ πανοῦργον ἐγ-
γλωττογαστόρων γένος,
οἳ θερίζουσίν τε καὶ σπείρουσι
καὶ τρυγῶσι ταῖς γλώτταισι
συκάζουσί τε:
βάρβαροι δ' εἰσὶν γένος,
Γοργίαι τε καὶ Φίλιπποι.
κἀπὸ τῶν ἐγγλωττογαστόρων
ἐκείνων τῶν Φιλίππων
πανταχοῦ τῆς Ἀττικῆς ἡ
γλῶττα χωρὶς τέμνεται..
E existe em Fanes, perto da clepsidra,
Um povo malvado
De Ventres-línguas.
Eles preparam, semeiam
E vindimam com as línguas,
E também colhem figos.
São bárbaros pela raça,
Górgias e Filipes.
E por causa daqueles filipes
Ventres-línguas, em todo lugar na Ática
A língua é cortada e deixada à parte
106
HUBBARD, 1997: 29-36 constrói todo seu argumento de que um elemento sofístico elementar nas aves,
citando referências a Sócrates e Górgias nos coros e relacionando proposições de sofistas sobre a formação da
cidade com o tema central da comédia, que é o da construção de uma cidade utópica no céu.
107
Cf. DOVER,,1971;, MCDOWELL, 1995.
69
É um tipo de σκῶμμα bastante virulento e seu alvo é justamente uma personagem
bem conhecida do mundo grego: o famoso sofista Górgias e Filipe
108
, um médico menos
conhecido do que o famoso sofista do diálogo de Platão. Duas coisas merecem ser aqui
destacadas: a primeira é que um toque de xenofobia nesta descrição, especialmente se
pensarmos que Górgias era de Leontino, na Sicília. A segunda é que não como não ligar o
aspecto desta “raça de línguas-estômagos” com a figura dos parasitas que tanto será frutífera
na comédia posterior. Tais quais os parasitas do estoque tradicional, parece que esta raça
também deve a sua sobrevivência à maneira com que sobrevivem pela língua.
Os Aduladores de Êupolis
No entanto, na comédia antiga encontramos em alguns casos,
outros paralelos bem
próximos de Sócrates. Podemos começar a investigação com esta comédia de Êupolis de
grande importância para o assunto: Κόλακες ou Aduladores. Seu personagem principal, ou ao
menos o personagem central da comédia, é a figura de Cálias, filho de Hipônico, que após a
morte do pai é mostrado em cena gastando a recém-herdada fortuna em banquetes e outras
licenças. Está em cena um importante exemplo de como a relação entre pais e filhos está em
cena neste período, pois outras comédias como As Nuvens, As Vespas, Os Convivas,
de
Aristófanes, As Cabras de Êupolis e Conno de Amípsias, também tratam do assunto e estão
separadas por bem pouco tempo cronologicamente.
Quanto a Os Aduladores, de que vêm os dois fragmentos citados, sua datação não
nos proporciona grandes dificuldades, pois temos uma referência à obra no argumento d’A
Paz de Aristófanes. Como esta comédia, ela foi apresentada nas Grandes Dionisíacas sob o
arconte Alceu, isto é, no ano de 422/1, e Êupolis ganhou o festival cômico deixando a Paz em
segundo lugar.
Não possuímos o argumento da comédia, portanto toda nossa informação deriva de
referências feitas a essa por outros autores. Felizmente, o número de referências é
suficientemente volumoso para nos dar uma idéia do conjunto. Como é natural nos
fragmentos de Comédia Antiga, uma boa parte está dedicada à mesa e à descrição de comida,
o que, ainda que no caso específico desta comédia seja bastante compreensível, deriva de um
desequilíbrio de nossas fontes: grande parte dos fragmentos vem de autores que estão
especialmente interessados em descrições alimentares, como é o caso de Ateneu.
108
De acordo com o Escólio às Aves neste verso.
70
Podemos ver dois fragmentos importantes para a compreensão da obra:
Παρὰ τῷδε Καλλίᾳ πολλὴ θυμηδία
ἵνα πάρα μὲν κάραβοι καὶ βατίδες καὶ λαγῷ
καὶ γυναῖκες εἱλίποδες
109
E junto a este Cálias, uma farta mesa
Lá tem lagostins, arraias e lebres
E mulheres dançantes
ὥσπερ οὖν τοὺς Καλλίου κωμῳδουμένους κόλακας γελῶσιν οὗς
οὐ πῦρ οὐδὲ σίδερος
οὐδέ χαλκὸς ἀπείργει
μὴ φοιτᾶν ἐπὶ δεῖπνον
110
Como se ri dos aduladores de Cálias escarnecidos:
Nem fogo, nem ferro
Nem bronze impedem
De freqüentar o banquete
Parece que o ambiente principal é uma festa na casa de Cálias, o famoso milionário
que, tendo recebido a fortuna de Hipônico, decide desperdiçá-la com banquetes e outras
indulgências. Nossos fragmentos, como seria de se esperar, não se furtam a uma larga
descrição de sua mesa. Presente também, e talvez com grande importância para a comédia,
está a figura de Protágoras:
Ἔνδοθι μέν ἐστι Πρωταγόρας ὁ Τήϊος,
ὅς ἀλαζονεύεται μέν, ἁλιτήριος,
περὶ τῶν μετεώρων, τὰ δὲ χαμᾶθεν ἐσθίει.
E lá dentro está Protágoras de Teos
Que charlataneia, o bandido,
A respeito dos eventos celestiais, mas come as coisas da terra.
Essa passagem vem sendo sugerida como pertencente a um prólogo, pois uma
personagem (ou duas personagens em diálogo, tal qual acontece na maioria dos primeiros
prólogos de Aristófanes) descrevendo o que es acontecendo dentro da casa de lias; é
possível mesmo que haja um paralelo próximo com uma cena na introdução do diálogo
Protágoras de Platão, cujos paralelos com esta comédia muito têm ocupado os estudiosos.
Neste caso estão em destaque as ações de Protágoras, que são apresentadas com o que é quase
um lugar comum nesta literatura cômica sobre intelectuais: a oposição entre pensamentos
109
Eupolis, fr.161 Kock
110
Eupolis, fr 162 Kock
71
elevados e apetite por coisas baixas. vimos no capítulo anterior o fragmento de Êupolis
sobre Sócrates e possuímos, por exemplo, um fragmento de Aristófanes:
oÁj ta)fanh= <a)eiì> merimn#=, ta\ de\ xama=qen e)sqi¿ei.
111
E pensa as coisas invisíveis, mas come as da terra
Este fragmento parece representar certo lugar comum no pensamento grego do
período, podemos ver, por exemplo, esta mesma idéia sendo expressa neste fragmento de
Sófocles, que é citado na mesma passagem de Aquiles Tácio:
misw½ me\n oÀstij ta)fanh= periskopw½n
Eu odeio quem investiga as coisas invisíveis
Vemos aqui da mesma forma a repetição do tema e a mesma imagem. Infelizmente
nada sabemos do fragmento de Aristófanes, pois ele não contém nenhuma informação sobre
sua origem. Contudo, podemos ter certeza de que ele está se referindo à mesma categoria de
intelectuais do Sócrates das Nuvens possível que seja mesmo um fragmento da primeira
versão das Nuvens) e de Protágoras nesta comédia de Êupolis.
A importância dos µετέωρα na caracterização dos pensadores é suficientemente clara
por sua atestação freqüente n’As Nuvens, como uma das preocupações de Sócrates, que entra
em cena observando e diz:
Οὐ γὰρ ἄν ποτε
ἐξηῦρον ὀρθῶς τὰ μετέωρα πράγματα,
εἰ μὴ κρεμάσας τὸ νόημα καὶ τὴν φροντίδα
λεπτὴν καταμείξας εἰς τὸν ὅμοιον ἀέρα.
Pois eu não descobriria então corretamente os assuntos celestiais
Se não pendurasse o intelecto e o pensamento
Misturando o leve com o ar, seu semelhante.
111
Aristófanes fr 672 Kock
72
Mesmo em outras comédias, a pesquisa sobre tais temas é colocada como
característica do intelectual, mesmo a tradição nos deixe pouca informação sobre seus
interesses nesse assunto, como neste trecho d’As Aves:
ἵν' ἀκούσαντες πάντα παρ' ἡμῶν ὀρθῶς περὶ τῶν μετεώρων.
φύσιν οἰωνῶν γένεσίν τε θεῶν ποταμῶν τ' Ἐρέβους τε Χάους τε
εἰδότες ὀρθῶς, Προδίκῳ παρ' ἐμοῦ κλάειν εἴπητε τὸ λοιπόν.
Para que, da nossa parte, tendo ouvido tudo corretamente sobre os assuntos celestiais
Sobre a natureza das aves, a gênese dos deuses e dos rios e do Érebo e do Caos
Conhecendo corretamente, vocês dirão para Pródico chorar por mim daqui em diante
Trata-se de um trecho da parábase d’As Aves, onde o coro composto pelas
personagens-título da comédia se apronta a cantar a famosa “Teogoniad’As Aves. Esses são
os versos imediatamente anteriores à passagem, quando as aves anunciam o que vão cantar,
ou seja, sobre os assuntos celestes e a geração das aves, dos deuses, do Érebo e do Caos, em
seguida, há um chiste em relação a Pródico, muito provavelmente o famoso sofista Pródico de
Ceos, o qual as aves dizem que seinútil dem diante, porque o conhecimento sobre os
meteora será seguro. Ou seja, Pródico também estava interessado nas pesquisas sobre os
assuntos divinos, ao menos segundo As Aves de Aristófanes. Se a figura real de Pródico de
Ceos realmente se interessou por tais assuntos, possuímos poucos testemunhos que nos
assegurem disso, como também possuímos poucos testemunhos de Protágoras e quase
nenhum de Sócrates se interessando por isso. O que, entretanto, é certo é que esse o foi o
assunto central de nenhum destes pensadores, mesmo que na comédia esse seja o assunto que
mais freqüentemente aparece nas suas falas.
Voltando ao fragmento de Êupolis, o termo λιτήριος nos apresenta uma grande
dificuldade de tradução. ao menos duas interpretações favorecidas, sendo que vou
começar pela mais recente, porque ela parte do pressuposto que o significado de “sacrílego”
não é válido para esta passagem, porque ela não se relaciona com os deuses, mas com os
assuntos celestes, µετεώρων não caracterizando, deste modo, Protágoras como ímpio, mas tão
somente como algum tipo de charlatão. Entretanto, e é nisto que falha a interpretação de
Pivetti, o termo pode estar relacionado com assuntos divinos, dada a crença grega da posse
divina dos céus, como a própria passagem As Aves acima referida provaria em contrário,
73
pois as Aves anunciam que vão cantar os µετεώρα e tratam justamente da origem do mundo e
dos deuses
112
.
Somos obrigados, portanto, a aceitar a interpretação mais tradicional, vista pela
primeira vez na História da Grécia de Grotius e apoiada pelos editores Meineke e Bergk:
“Orgulha-se aqui um sacrílego sobre as coisas celetiais, e pesquisa no momento as coisas
terrestres.
113
” .
Essa tradução coloca em destaque a tradicional condenação de Protágoras por
impiedade, e ainda o famoso fragmento de Protágoras sobre os deuses, citando a passagem
completa de Eusébio de Cesaréia:
μὲν γὰρ Δημοκρἰτου γεγονώς ἑταὶρος Περικλῆς ἄθεον ἐκτήσατο
δόξαν: λέγεται γοῦν τοιᾷδε κεχρῆσθαι εἰσβολῆι ἐν τῷ <Περὶ θεῶν>
συγγράματι: «περὶ μὲν θεῶν οὐκ οἶδα ιδέαν»
Pois, tendo-se tornado companheiro de Demócrito, Péricles adquiriu a fama de αteu.
Diz-se então ter se valido daquela frase no escrito Sobre os deuses: Sobre os deuses
não conheço nenhuma forma.
Ou seja, λιτήριος significaria “sacrílego”, “ímpio”, e, corroborando a opinião de
Eusébio, “ateu”. Se adaptarmos esta tradução, poderemos aproximar tal passagem o apenas
das cenas em que os personagens tratam de assuntos celestes, mas, de forma mais precisa, das
passagens d’As Nuvens em que Sócrates abertamente nega os deuses gregos e coloca novos
deuses em seu lugar:
Σωκράτης αὗται γάρ τοι μόναι εἰσὶ θεαί, τἄλλα δὲ πάντ' ἐστὶ φλύαρος.
Στρεψιάδης ὁ Ζεὺς δ' ἡμῖν, φέρε πρὸς τῆς γῆς, οὑλύμπιος οὐ θεός ἐστιν;
Σωκράτης ποῖος Ζεύς; οὐ μὴ ληρήσεις: οὐδ' ἔστι Ζεύς.
114
Sócrates: Pois somente elas são deusas, todo o resto é bobagem.
Estrepsíades: Mas Zeus, pela terra, o Olímpio, não é um deus para nós?
Sócátes: Que Zeus? Não fala besteira, não existe Zeus
E mais precisamente esta passagem d’As Nuvens pode nos esclarecer exatamente o
significado da palavra λιτήριος:
Ὁρᾷς οὖν ὡς ἀγαθὸν τὸ μανθάνειν ;
112
E, de fato, todo o argumento d’As Aves é uma refutação de que τ µετέωρα não tenha relação com a esfera
religiosa, uma vez que as aves impedem a comunicação entre os humanos e os deuses que estão acima delas.
113
superbit hic sacrilegus de caelestibus, at esse quaerit interim terrestrea.
114
Nuvens, 365-7
74
Οὐκ ἔστιν, ὦ Φειδιππίδη, Ζεύς .
ΦΕ. Ἀλλὰ τίς ; ΣΤ. Δῖνος βασιλεύει τὸν Δί ΄ ἐξεληλακώς .
ΦΕ. Αἰβοῖ, τί ληρεῖς ; ΣΤ.Ἴσθι τοῦθ ΄ οὕτως ἔχον.
ΦΕ. Τίς φησι ταῦτα ; ΣΤ. Σωκράτης ὁ Μήλιος
καὶ Χαιρεφῶν, ὃς οἶδε τὰ ψυλλῶν ἴχνη
115
.
Estrepsíades: Agora vês como é bom aprender?
Não existe, ó Fidípides, Zeus Fidípides: Mas quem existe?
Estrepsíades: O Turbilhão governa, tendo afastado Zeus
Fi: Ai ai, que bobagem dizes? Es: Saibas que isto é assim
Fi: quem disse estas coisas? Es: Sócrates, o Mélio
E Querefonte, que conhece as pegadas das pulgas
Se for este o caso e realmente λιτήριος significar ímpio, temos um exemplo
claríssimo de paralelo entre As Nuvens e Os Aduladores. Pois tanto aqui quanto as
pesquisas “meteorológicas” significariam uma posição religiosa de negação dos deuses
comuns e de toda a tradição. Ou seja, o pesquisador é um inimigo da tradição.
Êupolis nos brinda ainda com um fragmento científico, que nos faz imediatamente
lembrar das sentenças “biológicas” d’As Nuvens (133-168):
πίνειν γὰρ αὐτὸν Πρωταγόρας ἐκέλευ΄, ἵνα
πρὸ τοῦ κυνὸς τὸν πνεύμον΄ἔκλυτον φορῆ.
E Protágoras ordenou-lhe beber, a fim de,
antes do início do banquete, levar os pulmões livres.
116
Esta passagem é freqüentemente levada em consideração como uma prova de que
Protágoras teria algum interesse científico
117
.
Mas como Dover mostrou e já comentamos no
primeiro capítulo e mais acima: a comédia o é uma fonte confiável para dados biográficos
bem como para quase nada. O que Êupolis coloca aqui é Protágoras utilizando um assunto
médico (e de fato havia na Antiguidade um debate sobre onde os quidos ficavam
armazenados no corpo) como desculpa para ampliar a dissipação na casa de Cálias. E, na
verdade, esta passagem tem mais a ver com as passagens d’As Nuvens onde os personagens
encontram-se mais interessados em pesquisas biológicas ou fisiológicas, como por exemplo,
nos versos 156-158:
Μα. Ἀνήρετ᾿ αὐτὸν Χαιρεφῶν ὁ Σφήττιος
ὁπότερα τὴν γνώμην ἔχοι, τὰς ἐμπίδας
115
Nuvens, 826-31.
116
Fr. 147 Kock.
117
KERFERD, 2003:70 .
75
κατὰ τὸ στόμ᾿ ᾄδειν ἢ κατὰ τοὐρροπύγιον.
118
E Querefonte, o Esfécio, perguntou-lhe
Qual opinião ele tinha, se as moscas
Cantam pela boca ou pelo rabo
As semelhanças são grandes: o personagem não possui nenhuma ligação conhecida
com o assunto, mas aqui se mostra bastante interessado em algo que pode soar diminuto ou
mesmo absurdo para a platéia, como alguns fazem com Sócrates. Assim, estamos diante de
uma condição bastante parecida com a d’As Nuvens: um intelectual é escarnecido por assuntos
que ele não pratica e com os quais ele pouca coisa tem em comum: tanto Sócrates, muito
provavelmente, tinha pouco interesse tinha em biologia quanto Protágoras na fisiologia
humana.
Êupolis é tradicionalmente colocado ao lado de Cratino e Aristófanes como fazendo
parte das listas canônicas de poetas cômicos: vemos tal testemunho em Horácio, Quintiliano e
também no autor do tratado Sobre as diferenças entre os comediógrafos atribuído a um certo
Platônio. Se a elaboração de tal conjunto deu-se naturalmente ou por uma aproximação
paralela aos três comediógrafos, é difícil saber, mas dois um dado é importante: a partir do
século II as citações de outros comediógrafos diminuem bastante, o que talvez seja um indício
da atuação do none da segunda sofística, mas não se pode tirar nenhuma certeza disso.
Mesmo a maioria dos elogios recolhemos parece muito repetitiva, mostrando que às vezes é
complicado estabelecer o quanto uma determinada obra era lida na Antiguidade: as citações
tendem a ser sempre as mesmas, mesmo quando autor tenha efetivamente lido a obra, pelo
costume e método de ensino do final da antiguidade, que é justamente o período que mais nos
fornece dados em relação à comédia antiga.
Mas ora, como vimos, também nesta comédia a presença de Protágoras, e, ao
visto, pelo menos uma vez nela ele se prolongou em ensinamentos científicos ou pseudo-
científicos. Não era de todo incomum a presença de Protágoras na comédia antiga, uma vez
que o próprio Ateneu comenta com uma certa surpresa a sua ausência em uma outra comédia:
o( d' ¸Ippo/nikoj e)piì me\n Eu)qudh/mou aÃrxontoj strathgw½n
parate/taktai meta\ Niki¿ou pro\j Tanagrai¿ouj ka tou\j
parabohqou=ntaj Boiwtw½n kaiì tv= ma/xv neni¿khke. te/qnhke de\
pro\ th=j e)p' ¹Alkai¿ou didaskali¿aj tw½n Eu)po/lidoj Kola/kwn
ou) poll%½ xro/n% kata\ to\ ei¹ko/j. pro/sfaton ga/r tina tou=
Kalli¿ou th\n para/lhyin th=j ou)si¿aj e)mfai¿nei to\ dra=ma. e)n ouÅn
tou/t% t%½ dra/mati EuÃpolij to\n Prwtago/ran w¨j e)pidhmou=nta
118
Nuvens, 144-6
76
ei¹sa/gei ¹Ameiyi¿aj d' e)n t%½ Ko/nn% du/o pro/teron eÃtesin
didaxqe/nti ou) katariqme au)to\n e)n t%½ tw½n frontistw½n xor%½.
dh=lon ouÅn w¨j metacu\ tou/twn tw½n xro/nwn parage/gonen.
119
O Hipônico foi deixado ao lado dos generais com Nícias diante dos tanagreus,
enquanto Eutidemo era arconte. E venceu os beócios que os ajudavam na batlha. E
morreu antes da apresentação de Alceu da comédia Os Aduladores de Êupolis, o
muito tempo depois segundo consta. O drama mostra recente herança da riqueza por
Cálias, neste drama, Êupolis põe Protágoras em cena como se estivesse na cidade,
mas Amípsias, no Conno, dois anos anteriormente não o conta no coro de
pensadores. Fica claro que entre estes dois anosele estava ausente.
Além da relação entre a comédia e o diálogo, vimos aqui a grande proximidade
entre o tratamento dado a Sócrates, n’As Nuvens, e o tratamento dado a Protágoras.
Os Convivas
Uma outra comédia que nos permite continuar a discutir o tema é a primeira comédia
de Aristófanes, Os convivas (∆αιταλς). O próprio Aristófanes nos o primeiro testemunho
a seu respeito, na parábase das próprias Nuvens
120
:
ἐξ ὅτου γὰρ ἐνθἀδ΄ὑπ΄ἀνδρῶν, οὓς ἡδὺ καὶ λέγειν,
ὁ σώφρων τε χὠ καταπύγων ἄρστ΄ἠκουσάτην,
κάγὼ, παρθένος γὰρ ἔτ΄ἦν κοὐκ ἐξῆν πώ μοι τεκεῖν
ἐξέθηκα.
Desde quando, por homens cujo discurso também é agradável
o prudente e o esculhambado foram tidos em alta conta
121
,
e eu, porque ainda era “virgem” e não me era permitido ter filhos, expus
As listas de obras que possuímos de Aristófanes, combinadas com as parábases das
três comédias seguintes e com uma fala de Diceópolis nos Acarnenses são unânimes em lhe
atribuir duas obras anteriores a Os Acarnenses: Os Babilônios (Βαβυλώνιοι), que teria talvez
motivado um processo por parte do demagogo Cléon, e Os Convivas. Sabemos que este
trecho da parábase se refere a Os Convivas por não haver nenhuma referência explícita a esta
dicotomia (o homem prudente e o “esculhambado”) nas duas comédias anteriores que
possuímos por completo, e também por sabermos que n’Os Babilônios, a segunda comédia de
Aristófanes, o assunto girava em torno de um processo movido pelo coro de Babilônios ao
119
Ateneu, Banquete dos sofistas 5, 59.
120
528-531
121
Cf. o verbete no Bailly do verbo ἀκούω para este uso.
77
deus Dioniso
122
. Aristófanes, portanto, certamente referir-se-ia a uma comédia anterior por
uma característica marcante de seu enredo, e não por um fato meramente secundário.
Considerando assim esta contraposição entre o “prudente” e o “esculhambado”,
podemos facilmente nos lembrar do famoso agón d’As Nuvens, quando se enfrentam as
personificações destas duas personalidades, destes dois estilos de educação como o
“Argumento Justo” e o “Argumento Injusto”. E encontramos fragmentos que nos lembram de
imediato a educação tradicional, como por exemplo:
ᾆσον δή μοι σκόλιόν τι λαβών Ἀλκαίου κἀνακρέοντος.
123
Canta-me uma canção pegando algo de Alceu e Anacreonte.
Ainda que o verso esteja um pouco truncado, o paralelo com As Nuvens é
considerável
124
:
πρῶτον μὲν αὐτὸν τὴν λύραν λαβόντ΄ ἐγὼ΄κέλευσα
ᾷσαι Σιμωνίδου μέλος, τὸν Kριόν ὡς ἐπέχθη.
Primeiro, então, eu ordenei-lhe, pegando a lira,
cantar uma canção de Simônides, sobre como Crios foi penteado.
Estes dois fragmentos são uma demonstração de como podemos encontrar também
n’Os Convivas uma divisão entre a antiga poesia de Alceu, Anacreonte, Simônides e a nova
educação dos retores e também de Eurípides
125
, tal qual vemos n’As Nuvens. Esta divisão é
marcada também pela divisão entre idades: um pai representa a antiga educação e seu filho
(ou um deles) representa a nova, ao menos é isto que podemos depreender de Galeno:
προβάλλει γὰρ ἐν ἐκεῖνῳ τῷ δράματι ἐκ τοῦ δήμου τῶν Δαιταλέων
πρεσβύτης τῷ ἀκολάστῳ υἱεῖ πρῶτον μὲν τὰ κόρυκά τί ποτ΄ἐστὶν
ἐξηγήσασθαι.
126
Pois naquele drama o velho do demo dos Detalos pede para o filho libertino explicar
o que significa κόρυκά
.
Outros fragmentos atribuídos a Os Convivas fazem-nos supor que o assunto da
comédia é realmente o confronto entre a educação tradicional e a educação moderna.
Certamente o assunto envolve algum tipo de iniciação e aprendizado:
122
Cf. escólio aos Acarnenses e Ateneu XI, 494d
123
Fr. 223 Kock
124
1355-6
125
Cf. Nuvens 1371
126
Galeno, Linguarum seu dictionum exoletarum Hippocratis explicatio livro 19-66
78
ἀλλ΄οὐ γὰρ ἔμαθε ταῦτ΄ἐμοῦ πέμποντος, ἀλλὰ μᾶλλον
πῖνειν ἔπειτ΄ᾷδειν κακῶς, Συρακοσίαν τράπεζαν, κτλ
127
Pois ele aprendeu não estas coisas depois que eu o mandei, mas sobretudo
a beber e depois cantar mal, a mesa de Siracusa, etc.
Possuímos também, como n’As Nuvens
128
, um fragmento de uma aula:
Α. πρὸς ταῦτα σὺ λέξον Ὁμήρου ἐμοὶ γλώττας, τί καλοῦσι κόρυμβα;
Α. τί καλοῦσ΄ἀμενηνὰ κάρηνα;
Β. ὁ μὲν οὖν σός, ἐμὸς δ΄οὗτος αδελφὸς φρασάτω, τἰ καλοῦσιν ἰδυίους.
Β. τί καλοῦσιν ἀποινᾶν;
129
A. Diante disto, diga você para mim, com a língua de Homero, o que quer
dizer κόρυµβα?
A. O que quer dizer µενην κάρηνα?
B. Por um lado então o teu irmão, e por outro o meu, diga o que quer dizer δυίους.
B. O que quer dizer ποινν?
Como n’As Nuvens, este ensino se caracteriza pelo aprendizado de uma quantidade
considerável de vocabulário exótico (em grande parte extraído de Homero), o que certamente
constitui-se em um grande documento para o estudo da educação retórica na Atenas do século
V. O caso específico da expressão µενην κάρηνα” vem em muito boa hora, pois esta é
uma expressão que se repete em vários textos, incluindo obras tardias como os Diálogos dos
Mortos de Luciano, o que apenas reforça a veracidade da descrição da educação no tempo de
Aristófanes.
Portanto, ainda que não haja uma relação direta entre Os Convivas e As Nuvens, uma
vez que na primeira não a presença de Sócrates ou de algum outro filósofo, ambas são
comédias que muito se aproximam, pela contraposição clara entre uma educação tradicional e
uma educação “moderna”, “retórica” (a qual, de uma forma ou de outra, Sócrates representa
n’As Nuvens), que também é representada no texto por um pai e um filho, pela descrição do
ambiente de estudo e por representar a função e a influência da retórica nesta época. Os
Convivas, então, apresentam desde um estoque tanto de situações quanto de opiniões que
seria reutilizado nas Nuvens.
127
Fr. 216- Omiti o último verso, que apenas enumerava itens culinários.
128
627s
129
Fr. 222 o fragmento está incompleto, falta o início dos versos 2 e 4, além de não haver consistência gica
entre os versos, recolhidos de Galeno.
79
As Cabras
No entanto, a comédia que mais semelhanças apresenta com As Nuvens é As Cabras
(Αἶγες) de Êupolis. Estas duas peças vêm sendo consideradas bastante semelhantes desde o
julgamento de Bergk e Wilamowitz no século XIX, e este julgamento vem sendo mantido até
obras mais recentes como a de I. C. Storey, de 2004, Eupolis: Poet of old comedy.
As aproximações o feitas por uma série de fatores. Primeiramente, porque a
comédia contém um personagem principal ἄγροικος, como As Nuvens, e sabemos disso
pelas diversas alusões à vida rural, como nos seguintes fragmentos:
w¨j dh/ pot' au)tw½n hÄn ka/mv tij, eu)qe/wj
e)reiÍ: pri¿w moi sela/xi': hÃn t' iãdv lu/kon,
kekra/cetai fra/sei te pro\j to\n ai¹polon
130
Como então algum deles trabalha, logo
Dirá: eu vou comprar para mim um tubarão: se vir um lobo
Gritará e mostrará ao pastor de cabras
e)pi¿stamai ga\r ai¹poleiÍn, ska/ptein, nea=n, futeu/ein.
131
Pois eu sei pastorear cabras, arar, plantar
Dentre outros
132
, que são comprovados com uma fala direta com o “rústico”:
Σκληρῶς ποιοῦντος τοῦ ἀγροὶκου τὸ σχήμα
133
O rustico fazendo a forma duramente
Então devemos contar como um dos personagens principais um homem rústico,
como Estrepsíades. A presença da imagem das cabras como representativa da vida campestre
é uma constante da literatura e marca presença na própria comédia de Aristófanes, como
nestes versos que associam o trabalho de pastorear cabras como a marca distintiva da vida do
campo, em oposição (na comédia) com a vida urbana na qual Fidípides despende a riqueza do
pai:
oÀtan me\n ouÅn ta\j aiågaj e)k tou= felle/wj,
wÐsper o( path/r sou, difqe/ran e)nhmme/noj"
134
.
130
Êupolis, fr. 1 Kock
131
Fr. 13 Kock
132
Cf. fr. 3, 15, 19
133
Fragmento não catalogado, achado em um papiro egípcio e publicado por THORJAN pg. 78.
134
Nuvens, 72-3
80
Quando então as cabras das pedras
Como eu seu pai, enchido com couro
Além da presença de um personagem rústico, encontramos também um professor,
como indicado pelo fragmento 17:
Πάλαι τοὺς αὐτοὺς γραμματικής καὶ μουσικῆς εἶναι διδάσκαλους, ὡς
Εὔπολις εἰσάγει ἐν Αἰξί.
Antigamentee eles eram professores tanto de gramática como de música, como
Eûpolis mostra nas cabras.
Como n’As Nuvens, gramática e música estão associadas ao trabalho de ensino.
Também devemos aceitar a presença desse professor em cena, pois o mesmo papiro citado
contém um comentário a respeito de algumas comédias:
ὁ διδάσκαλος ἐκἐλευσε
O professor ordenou
A proximidade com o Sócrates d’As Nuvens é maior do que aparenta à primeira
vista: devemos voltar à comédia de Aristófanes para ver que Sócrates é nomeado claramente
como διδάσκαλος e a comédia, como nos referimos acima, contém uma cena de
aprendizado. Também devemos supor que As Cabras contenham esta cena de aprendizado, no
caso da dança, uma inferência tirada do papiro de Oxyrrinco 2738 por Thorjahn e seguida por
Storey.
Como na cena d’As Nuvens, o aluno também falha no aprendizado, e esta falha,
talvez mais até do que a de Estrepsíades n’As Nuvens, pode nos instruir em algo bastante útil
sobre a comédia, uma vez que ao aluno é pedido para que dance µαλακς, delicadamente, e
esta palavra é frequentemente considerada como insulto em grego, e o apenas na comédia
como se lê em Tucídides:
kaiì ou)k iãsmen oÀpwj ta/de triw½n tw½n megi¿stwn cumforw½n
a)ph/llaktai, a)cunesi¿aj malaki¿aj a)melei¿aj dokw½n kaiì e)n tv=
cunagwgv= tou= pole/mou malako\j eiånai kaiì toiÍj ¹Aqhnai¿oij
135
E não sabemos como estas dentre as três maiores desgraçadas se abateram,
parecendo que pela falta de percepção, pela frouxidão, ou pela falta de cuidado e na
condução da guerra estar também aos atenienses frouxos
135
Tucídides 2, 18.
81
O velho dança de forma rígida, que está associada à dança marcial e à antiga dança
grega, e o professor o repreende por isto. Trata-se da rejeição das formas tradicionais um
tema caro à comédia e especialmente às Nuvens –, pela adoção de formas novas, consideradas
efeminadas. vimos isso anteriormente em relação ao aspecto da pele de Sócrates e um
pouco acima em relação ao καταπύγων d’Os Convivas de Aristófanes.
Não temos referências seguras para datar esta comédia, no entanto, um terminus ante
quem seguro de que dispomos está na referência a Hipônico, o milionário ateniense que ao
morrer deixou sua fortuna para o mesmo Cálias d’Os Aduladores. Como este Hipônico
morreu em 424 a.C., sabemos com segurança que a comédia é anterior às Nuvens. As diversas
semelhanças entre as duas comédias levaram mesmo alguns comentadores a se desculparem
por parecerem estar propondo que As Nuvens são somente uma versão um pouco diferente
d’As Cabras, o que certamente não é o caso, embora a semelhança bastante grande entre as
duas comédias seja uma prova de que em toda composição da comédia de Aristófanes está
presente um fortíssimo elemento tradicional que nós não devemos ligar, como é dito
normalmente, a algum interesse ou obtusidade especial de Aristófanes.
Outro ponto de encontro entre esta comédia e As Nuvens está na referência a um
determinado salário:
e)gwÜ telw½ to\n misqo\n oÀntin' aÄn xrv=.
136
Eu vou pagar o salário que for preciso
Este salário se refere provavelmente à aula dada em cena, porque encontramos a
mesma expressão μισθὸν τελεῖν referindo-se justamente ao dinheiro devido ao serviço de
um professor, no Protágoras de Platão:
Ei¹pe/ moi, eÃfhn e)gw¯, ¸Ippo/kratej, para\ Prwtago/ran nu=n
e)pixeireiÍj i¹e/nai, a)rgu/rion telw½n e)kei¿n% misqo\n u(pe\r seautou
Diz-me, eu disse, Ó Hipócrates, pretendes agora ser aluno de Protágoras, pagando
por ti mesmo dinheiro como salário a ele?
Resumindo com fragmentos que são seguramente atestados para a comédia de
Êupolis: um rústico, provavelmente velho, está tendo aulas com um professor, identificado
nos fragmentos como Pródamo, que lhe deseja ensinar modos novos, efeminados, mas
136
Fr. 4 Kock.
82
modernos. É quase a mesma descrição que temos n’As Nuvens e a proximidade do assunto
realmente chega a confundir alguns estudiosos.
Freqüentemente dois outros fragmentos são associados a esta comédia e podem nos
esclarecer ainda mais :
a)ll' a)dolesxeiÍn au)to\n e)kdi¿dacon, wÕ sofistά
137
Ensina-o a tagarelar, ó sofista
Onde uma terceira pessoa recomenda alguém a ser um δολέσχης, termo cujo
significado vimos acima. No caso desta comédia, o Sofista seria Pródamo, nome que não
conseguimos associar a nenhuma figura cultural do século V. Alguns tenderam a considerar
uma referência velada a Pródico, o famoso sofista, e outros a Dâmon, sico que foi
professor de Sócrates. Em qualquer um dos casos, é segura a relação entre este sofista e a
“nova escola” de intelectuais, músicos, filósofos, sofistas, que dominou o cenário político da
Atenas naquela época.
A escolha deste personagem um tanto obscuro tem a mesma origem da escolha de
Sócrates para As Nuvens, da de Protágoras para Os Aduladores e mesmo da de Cono para
Konnos: que é a de contrapor a vida tradicional às inovações intelectuais da segunda metade
do século V. Neste sentido fica mais fácil e mais abrangente a interpretação de todas estas
comédias. E o resultado que podemos esperar é explicitado por outro fragmento de Êupolis:
oÁj to\n neani¿skon sunwÜn die/fqoren.
Que acabou com jovem com a sua presença
Este verso é ora atribuído a Os Aduladores, ora atribuído às Cabras, e então esta
comédia se aproximaria mais ainda d’As nuvens. Temos bons argumentos para qualquer uma
das duas atribuições: no primeiro caso tratar-se-ia da corrupção de Cálias pelos aduladores
que dão nome à comédia; no segundo caso, seria algum jovem, talvez o próprio filho do velho
agricultor, quem teria sido corrompido, e isto aproximaria ainda mais esta comédia d’As
Nuvens. Qualquer uma das duas atribuições permite, entretanto, o mesmo paralelo com as
outras obras da comédia antiga: figuras de uma nova forma de cultura são responsáveis pela
mudança e corrupção dos jovens.
137
Fr. 353 Kock.
83
A comédia Ταγηνίσται de Aristófanes possui um fragmento que confirma esta
associação:
tou=ton to\n aÃndr' hÄ bibli¿on die/fqoren
hÄ Pro/dikoj hÄ tw½n a)dolesxw½n eiâj ge/ tij
E este homem foi perdido ou por um livro, ou por Pródico, ou algum dos
vagabundos
Esta comédia, da qual temos, como de costume, pouquíssimas informações, pode nos
ser útil para compararmos algumas de suas afirmações com algumas das que já vimos. Talvez
ela ajude a explicar um dos fragmentos d’Os Aduladores de Êupolis:
n periì ta/ghnon kaiì met' aÃriston fi¿lwn
dos amigos em volta da frigideira e no almoço
O argumento é um mistério para nós, mas podemos fazer algumas inferências: como
Plutarco, que nos transmite o fragmento, nos informa que tal passagem se refere aos parasitas,
é-se levado a supor que a comédia é análoga a Os Aduladores de Êupolis e contenha um coro
de parasitas, tal qual Os Aduladores de Êupolis, sendo que esta hipótese foi primeiramente
levantada por Bergk em sua edição dos fragmentos.
Alguns outros tentam interpretar que, uma vez que τάγηνον também pode significar
“vulva”, a comédia dirige-se contra Alcibíades e sua famosa incontinência. Tal argumento é
bastante especulativo, porque ele se baseia não em um fragmento de Aristófanes, mas em um
d’Os Aduladores, de Êupolis, em que Alcibíades se diz amigo do ταγηνίζειν, ao invés do
λακωνίζειν;q no caso, ταγηνίζω referir-se-ia à freqüência a banquetes, enquanto λακωνίζειν
referir-se-ia ao comportamento favorável a Esparta, bastante comum na época. Contra isto
pesa
o fato de não haver o menor traço de Alcibíades nesta comédia de Aristófanes, sendo que
ele tampouco fora um alvo comum do comediógrafo.
É mais fácil retomar o paralelo com Os Aduladores de Êupolis por outro viés. Como
esta comédia trata muito provavelmente de um coro de aduladores em uma festa na casa de
Cálias, que está sendo influenciado e talvez mesmo perdido” pelos seus convivas, e onde
dois de seus personagens mais importantes são Sócrates e Protágoras, com o último
aparecendo em uma certa posição de destaque, podemos imaginar que a comédia tenha um
assunto parecido com este, qual seja, a influência de algumas doutrinas sofísticas ou
filosóficas na vida de um homem. O fragmento mais longo que dela possuímos é o 488:
84
kaiì mh\n po/qen Plou/twn g' aÄn w©noma/zeto,
ei¹ mh\ ta\ be/ltist' eÃlaxen; eÁn de/ soi fra/sw,
oÀs% ta\ ka/tw krei¿ttw 'stin wÒn o( Zeu\j eÃxei:
oÀtan ga\r i¸stv=j, tou= tala/ntou to\ r(e/pon
ka/tw badi¿zei, to\ de\ keno\n pro\j to\n Di¿a.
ouÃ<te> ga\r aÄn a)poqano/ntej e)stefanwme/noi
prou)kei¿meq' ouÃt' aÄn <bakka/ridi> kexrime/noi,
ei¹ mh\ kataba/ntaj eu)qe/wj pi¿nein eÃdei.
dia\ tau=ta ga/r toi kaiì kalou=ntai maka/rioi:
pa=j ga\r le/gei tij "o( makari¿thj oiãxetai,
kate/darqen: eu)dai¿mwn, oÀs' ou)k a)nia/setai."
kaiì qu/ome/n <g'> au)toiÍsi ta)nagi¿smata
wÐsper qeoiÍsi, kaiì xoa/j ge xeo/menoi
ai¹tou/meq' au)tou\j deu=r' a)neiÍnai ta)gaqa/.
E de onde Plutão foi assim nomeado
Se não participasse das melhores coisas, uma coisa eu vou te dizer
Quando as coisas de baixo são melhores do que as que Zeus domina
Quando pesas, o prato do talento
Vai para baixo, e o vazio para Zeus
E nem se mortos jazeríamos coroados
Tampouco ungidos com mirto (o termo é obscuro)
Se não fôssemos logo de cara obrigados a beber
Por isto que são chamados de bem-aventurados
Pois todo que diz “o bem aventurado parte,
Adormeceu: feliz o que não se angustia”
E Sacrificamos para eles coisas sagradas
Como aos deuses, e fazemos libações
E pedimos a eles enviar-nos as coisas boas
Talvez esta passagem seja uma reação a alguma doutrina sobre a morte, ou mesmo a
alguma espécie de filósofo que rejeite as riquezas segundo a acepção de alguns
138
.E se isso for
verdade, o comentário em relação a Pródico vem mostrar justamente a pessoa que se afasta
das concepções normais pela influência de algum dos filósofos, dos quais Pródico era um dos
mais destacados.
Se, de acordo com Bergk, o Prodamo d’As Cabras é um erro de copista para Pródico,
estamos aqui diante de uma acusação ao mesmo sofista, que já vimos ser referido nAs Aves e
n’As Nuvens. Porém, é bem mais provável que o seja uma referência tão evidente quanto o
ὀνομαστί κωμῳδεῖν, mas sim que esta figura esteja sendo usada como um representante do
gênero do intelectual. De qualquer maneira, ela confirma do mesmo modo essa tendência da
comédia antiga de criticar e acusar estes novos homens de “destruir” a juventude.
Possuímos da comédia antiga algumas outras referências a tais figuras, menos
evidentes, mas cuja lembrança é importante: a primeira vem do comediógrafo Cratino, sempre
citado ao lado de Aristófanes e Êupolis nas listas dos três grandes comediógrafos antigos.
138
FERNANDEZ, 1996:192
85
Diante da verdadeira dominância de Êupolis e Aristófanes neste capítulo, a ausência de
Cratino é sentida nesta discussão sobre os intelectuais na comédia antiga. Isto se dá, talvez,
por uma razão cronológica. Afinal Cratino é bastante anterior a seus dois colegas, e ele
vivenciou apenas brevemente a mudança de costumes e hábitos intelectuais de seu período.
Entretanto, ele possui alguma coisa digna de lembrança. É sabido por exemplo que ele teria
escarnecido um certo Amínias
139
com termos típicos do abuso de intelectuais como ἀλάζων,
κόλαξ, σύκοφάντης, charlatão, adulador, sicofanta. Este personagem é citado n’As Nuvens,
sendo chamado de efeminado, junto com um número muito grande de outras pessoas
140
.
vimos duas vezes referências à comédia Conno de Amípsias, que coloca em cena
o flautista que seria professor de Sócrates. Sabemos que a comédia possuía um coro composto
por personagens individuais, como As Aves de Aristófanes, e que este coro seria formado por
sofistas, dentre os quais estava Sócrates, sem, porém, e para a surpresa de Ateneu , a presença
de Protágoras. Infelizmente não possuímos mais nenhum dado possível sobre isto, com
exceção da suposição de Casaubon de que esta comédia teria sido dirigida contra Sócrates,
naquela que talvez tenha sido a primeira investigação dos fragmentos cômicos gregos.
Não são apenas os personagens e suas caracterizações n’As Nuvens que se repetem
em outras comédias. Não temos muita informação, mas sabemos que uma comédia dirigiu-se
contra um aluno de Protágoras, Evatlo, que é famoso por uma história muito curiosa, contada
em Aulo Gélio
141
: teria sido aluno de Protágoras sob a concessão de pagar a seu professor
somente depois da primeira causa ganha, mas, depois de terminada a formação, muito tempo
teria se passado sem que ele participasse de qualquer disputa forense; irritado com isso,
Protágoras processou-o, exigindo o dinheiro. Evatlo ganhou a disputa com um exemplo
característico do “discurso fraco”, dizendo que, de qualquer forma ele ganharia a disputa, se
ele ganhasse, não seria obrigado a pagar Protágoras, mas, se perdesse, a educação que o
sofista lhe deu teria sido falha, desta forma ele também não teria obrigação de lhe pagar.
Não é impossível imaginar que algo assim tenha sido posto em cena em uma
comédia. Também não como não imaginar que a teoria sobre os dois discursos tenha
aparecido em comédias que possuam personagens como Protágoras, o criador de tal exercício,
e Pródico, cujo discurso da escolha de Héracles é um dos exemplos mais famosos do discurso
injusto.
139
Cf. fr. 212 Kock
140
Vv. 610-20
141
Noites Áticas, 5, 10
86
Algumas das teorias científicas expostas por Sócrates também aparecem em outras
obras, teorias de que temos um exemplo retirado do prólogo das Nuvens, na afirmação de que
o mundo é um forno e as pessoas seriam carvões, afirmação que teria sido originada em uma
comédia de Cratino, conforme nos atesta o escoliasta das Nuvens:
tau=ta pro/teroj KratiÍnoj e)n Pano/ptaij dra/mati periì
àIppwnoj tou= filoso/fou kwm%dw½n au)to\n le/gei: a)f' ouÂ
stoxazo/menoi¿ tine/j fasin, oÀti mhdemia=j eÃxqraj xa/rin
¹Aristofa/nhj hÂken e)piì th\n tw½n Nefelw½n poi¿hsin, oÀj ge mh/te
iãdion mh/te a(rmo/tton, a)lla\ mhde\ pro\j eÁn eÃgklhma hÅlqe
Swkra/touj
.du/o ga\r kat' au)tou= tau=ta proqeiìj e)gklh/mata, to\
periì tou= ou)ranou= w¨j eÃsti pnigeu/j, kaiì w¨j i¸kano/j e)sti to\n hÀttw
lo/gon dida/skein kaiì to\n krei¿ttona, to\ me\n koino\n tw½n
filoso/fwn a(pa/ntwn e)ph/gagen eÃgklhma, fai¿netai de\ kaiì e)piì
tou/t% o( àIppwn kwm%dhqh=nai fqa/saj: to\ de\ tw½n e)gklhma/twn
ou)de\ to\ su/nolon e)pikoinwneiÍ filosofi¿#®ou) ga\r tou=to
e)pagge/llontai oi¸ filo/sofoi, deinou\j poih/sein le/gein®iãdion de\
to\ toiou=to ma=llon <th=j> r(htorikh=j:
E isto primeiro Cratino, no drama “Os que tudo vêem”, escarnecendo Hípon, o
filósofo, diz: apontando para isto onde alguns dizem que Aristófanes não colocou
nas Nuvens nenhum ódio, e que nem armado por ele mesmo e tampouco chegou a
fazer uma acusação de Sócrates. Pois ele estaria colocando duas acusações contra
ele: a de sobre o céu ser como um forno, e o de ser capaz de ensinar o discurso fraco
e o forte, por um lado esta acusação foi apontada contra todos os filósofos, mas por
outro parece que Hípon pereceu por ter sido escarnecido. E a filosofia nem sequer
participa do o conjunto das acusações , pois os filósofos não afirmam isto, fazer as
pessoas terríveis no falar, isto é mais próprio da retórica.
Mais do que qualquer comentador moderno, o escoliasta expõe nossa visão sobre o
assunto: não nenhum interesse particular de Aristófanes contra a figura de Sócrates e, mais
do que criticar a figura de Sócrates, Aristófanes critica uma situação cultural e educacional da
Atenas de seu tempo, fazendo mais uso, para a composição desta comédia, de tipos de
personagens e afirmações que faziam parte do senso comum cômico. Assim como era
tradicional comparar Péricles a Zeus, também se tornara tradicional para os comediógrafos
de sua época colocar um intelectual afirmando que o mundo é como um forno e nós somos os
carvões.
3.4. A COMÉDIA MÉDIA
Definição do termo
87
Existe, porém, um outro conjunto de textos que trata com grande freqüência de
intelectuais de Atenas. Entretanto o ambiente tanto cultural quanto intelectual é outro, e a
comédia é outra. Estamos falando do corpus da Comédia Média.
O próprio termo “Comédia Média” é suficientemente polêmico para sequer ser citado
como aceito. Embora ele esteja presente firmemente na tradição a respeito da comédia antiga,
em especial nas obras de Platônio e no tratado anônimo sobre a comédia, em tempos
modernos a discussão sobre a existência ou não desta categoria distintiva da comédia
começou já no início do século XIX, com A. W. Schlegel
142
, que propunha uma evolução
gradativa da comédia antiga, cheia de liberdades políticas, até a comédia nova, onde as
liberdades estão todas restritas, a comédia média seria uma passagem nesta evolução
gradativa .
Mas o ponto mais importante no debate sobre a natureza da comédia média esna
publicação da monografia de Wilhelm Fielitz, De comoedia atticorum bipartita , que
argumenta que tal tripartição cômica é uma criação da crítica literária da época de Adriano, no
século II, e que até então não nenhuma referência ou conhecimento dela. Nas palavras do
estudioso:”Totam illam comoediae in antiquam mediam novam divisionem ne ipsos quidem
veteres novisse nisi post Hadrianum imperatorem” (toda esta divisão da comédia entre antiga,
média e nova ninguém dos antigo teria conhecido a menos os que viveram depois do
Imperador Adriano)”.
Desde a publicação deste estudo, iniciou-se uma disputa que praticamente concentra
toda a pesquisa a respeito da Comédia Média, que é basicamente se existe ou não tal termo. A
tendência da pesquisa contemporânea é de confirmar a opinião de Platônio e mesmo seus
argumentos para a origem e a distinção entre as fases.
Nosso trabalho não necessita de discutir mais pormenorizadamente tal fato, apenas
usar como balizamento as comédias anteriores ou posteriores à restauração da democracia
ateniense, ou seja, o ano 403 a.C. A data é cômoda, uma vez que a maior parte dos
comediógrafos da comédia antiga estava morta nesta data, com exceção de Aristófanes.
Entretanto, as duas comédias produzidas posteriormente, As Mulheres em Assembléia e Pluto,
são tradicionalmente classificadas como médias.
Como são obras posteriores às Nuvens, enquanto todas as obras aqui selecionadas são
anteriores ou contemporâneas desta comédia, já não podemos afirmar a total independência de
influências dela. No entanto, muito embora exista uma alusão clara exatamente a ela na
142
Apud NASSELRATH, 1993, pag 3-5
88
Apologia de Sócrates, alguns fatores podem indicar que a influência d’As Nuvens, ao menos
nas cadas imediatamente posteriores a sua criação, o tenha sido o grande: o primeiro
deles refere-se ao fato de que ela ficou em último lugar nas Grandes Dionisíacas de 421 a.C.,
o que revela que algo nela não agradou de forma alguma o seu público. Outro fator que talvez
indique a pouca popularidade d’As Nuvens é que Aristófanes iniciou uma revisão do texto,
mas essa jamais ficou pronta e jamais foi encenada durante a vida do poeta. No entanto, nada
disso é seguro e a própria citação das Nuvens (provavelmente ainda em vida de Aristófanes)
na Apologia nos revela que Platão, ou mesmo Sócrates, tinha consciência daquela comédia,
que foi apenas uma dentre várias que incluíram Sócrates como personagem de importância.
A Pitagorizante
Uma comédia do período que contém uma citação bem curiosa é A pitagorizante de
Aléxis, provavelmente o comediógrafo mais importante da Comédia dia. Ela
provavelmente trata de uma mulher que deseja entrar no grupo dos pitagóricos, tal como
Estrepsíades deseja participar do grupo de Sócrates:
ãEdei q' u(pomeiÍnai mikrositi¿an, r(u/pon,
r(iÍgoj, siwph/n, stugno/tht', a)lousi¿an.
143
É preciso suportar a escassez de alimento, a sujeira ,
o frio, o silêncio, a sobriedade, a falta de banho
Podemos perceber aqui traços característicos do Sócrates da comédia que aparecem
com bastante freqüência: a dificuldade de alimentação, a falta de proteção contra o frio e a
falta de banho. O padrão e o tema se repetem aqui em relação aos pitagóricos e certamente se
mantiveram.
Lino
Dentre a comédia média, a obra que tem a citação mais importante é Lino, de Aléxis:
{LIN.} bubli¿on e)nteu=qen oÀ ti bou/lei proselqwÜn ga\r labe/,
eÃpeit' a)nagnw¯sei, pa/nu ge diaskopw½n
a)po\ tw½n e)pigramma/twn a)tre/ma te kaiì sxolv=.
¹Orfeu\j eÃnestin, ¸Hsi¿odoj, trag%di¿a,
143
Fr. 196 Kock.
89
Xoiri¿loj, àOmhroj, eÃst' ¹Epi¿xarmoj, gra/mmata
pantodapa/. dhlw¯seij ga\r ouÀtw th\n fu/sin,
e)piì ti¿ ma/lisq' wÐrmhke. {HR.} toutiì lamba/nw.
{LIN.} deiÍcon oÀ ti e)stiì prw½ton. {HR.} o)yartusi¿a,\
wÐj fhsi tou)pi¿gramma. {LIN.} filo/sofo/j tij eiå,
euÃdhlon, oÁj pareiìj tosau=ta gra/mmata
Si¿mou te/xnhn eÃlabej. {HR.} o( SiÍmoj d' e)stiì ti¿j;
{LIN.} ma/l' eu)fuh\j aÃnqrwpoj. e)piì trag%di¿an
wÐrmhke nu=n, kaiì tw½n me\n u(pokritw½n polu\
kra/tisto/j e)stin o)yopoio/j, w¨j dokeiÍ
toiÍj xrwme/noij, tw½n d' o)yopoiw½n u(pokrith/j
...
{LIN.} bou/limo/j e)sq' aÀnqrwpoj. {HR.} oÀ ti bou/lei le/ge.
peinw½ ga/r, euÅ tou=t' iãsqi.
Lino: E se aproximando dali, pega o livro que quiseres
Em seguida lê, observando bem
Dos títulos precisamente e com diligência
Tem Orfeu , Hesídodo, Tragédia
Cerilo, Homero, Epicarmo, obras
De todos os tipos. Você mostrará a sua natureza
Pela que te inclinares. Héracles: escolho este daqui
Li: mostra o que é primeiro Her: É um livro de culinária,
Como diz o título. Li: Tu és um tipo de filósofo,
É claro, que escolhendo estes textos
Escolheste a arte de Simo Her: Quem é Simo?
Li: Um ótimo homem, escolheu
A tragédia agora e é o melhor cozinheiro
Dentre os atores, como parece aos que usam
Ator dentre os cozinheiros
(Lacuna)
Lino: É um homem desejável Hér: Diz o que queres
Bem fica sabendo que eu estou com fome
Exemplo típico da comédia do seu tempo, trata-se de uma farsa mitológica alguns
buscam imaginar algum antecedente trágico como nos exemplos de Antípoe e Anfitrião, mas
quem duvide desta origem. No entanto, o uso de erudição mitológica e citações literárias é
uma característica fundamental da Comédia Média, ainda que não seja exclusiva dela; o
burlesco mitológico está presente desde o Dioniso Alexandre de Cratino e o criativo uso de
citação literária é um dos grandes charmes d’As Rãs de Aristófanes. Mas posteriormente o uso
e a freqüência de tais temas é bem maior, como demonstram as listas de obras, como Antíope,
Sete contra Tebas e O Cisne (sobre Leda e o nascimento de Helena).
O trecho citado apresenta um diálogo entre, provavelmente, os dois personagens
principais, Héracles e Lino. Provavelmente o tema da comédia é a história das aulas de cítara
que o filho de Apolo teria dado a Héracles e que lhe teriam custado a vida
144
. Mas está em
144
Cf. Apolodoro: 2.63.6 e)dida/xqh de\ ¸Hraklh=j a(rmathlateiÍn me\n u(po\ ¹Amfitru/wnoj,
palai¿ein de\ u(po\ Au)tolu/kou, toceu/ein de\ u(po\ Eu)ru/tou, o(plomaxeiÍn de\ u(po\
90
cena uma discussão entre Lino e Héracles sobre livros: Lino, como um mestre de escola
típico, oferece vários livros para Héracles, dentre os quais Homero, Hesíodo, Orfeu e
Epicarmo, mas Héracles escolhe um livro de culinária. Um traço característico do Héracles da
comédia é a sua voracidade, e também o fato de ser sempre representado como um herói um
tanto ingênuo e pouco sofisticado. Aqui ele apenas repete o comportamento que se em
Aristófanes, como n’As Rãs e mesmo na Alceste de Eurípides. A resposta de Lino é que é um
tanto surpreendente fora de contexto, pois em momento algum seria de se esperar que um
herói glutão e de pouco refinamento fosse comparado com a figura que, em nossa cultura ao
menos, é muitas vezes equilibrada ao refinamento exagerado, o filósofo.
A resposta de Lino faz sentido se ainda tivermos em mente as injúrias e
comentários sobre a filosofia que vimos ao longo desta dissertação, ou seja, ele está
trabalhando com um estoque comum de casos da comédia antiga, que Aléxis herdou. A idéia
do filósofo, portanto, como um tipo de parasita e sua ânsia por comida, exemplificada por
passagens n’As Nuvens, no Conno de Amípsias, n’Os Aduladores de Êupolis e em outras
obras, ainda faz parte do acervo comum da comédia antiga, e Alexis apenas o relembra em
uma piada que certamente teve ressonância fácil no público.
Entretanto, algo de especial nesta citação e ela nos leva ao assunto do próximo
capítulo.
Ka/storoj, kiqar%deiÍn de\ u(po\ Li¿nou. ouÂtoj de\ hÅn a)delfo\j ¹Orfe/wj: a)fiko/menoj de\
ei¹j Qh/baj kaiì QhbaiÍoj geno/menoj u(po\ ¸Hrakle/ouj tv= kiqa/r# plhgeiìj a)pe/qanen.
Héracles aprendeu com Anfitrião a andar de carruagem, a lutar com Autólico, a lançar o arco com Eurito, a lutar
com armas com Castor, a tocar tara com Lino, este era irmão de Orfeu; e chegando a Tebas e tornando-se
tebano, morreu ao ser atingido por Héracles com a cítara.
91
4. A FILOSOFIA EMANCIPADA
4.1 OS TERMOS PARA “FILÓSOFO” NO SÉCULO V
Φιλόσοφος
Os breves comentários que fizemos no capítulo anterior sobre algumas
caracterizações dos filósofos da Comédia Média nos mostraram que, apesar de conterem
alguma relação próxima aos temas da Comédia Antiga, havia uma que, apesar de
aparentemente pequena, era bastante importante. A diferença dessa única passagem de Aléxis
e toda a tradição da Comédia Antiga que acabamos de citar encontra-se no uso de uma única
palavra na réplica de Lino à escolha de Héracles:
φιλόσοφός τις ε;
Você é um filósofo?
Essa pergunta se destaca agudamente no meio de todos os fragmentos e citações de
Aristófanes e de seus colegas pelo uso do termo φιλόσοφος, pois até então os comediógrafos
valiam-se de dois termos para descrever as figuras intelectuais de seu meio: φροντιστής e
σοφιστής. São estes os termos de que não apenas Aristófanes, mas boa parte dos seus
contemporâneos usa, indistintamente, para definir Sócrates e as figuras que hoje chamamos de
sofistas
145
.
Σοφιστής
Esses, porém, são termos extremamente imprecisos e que mal podem servir de
parâmetro para um estudo sério. Peguemos como exemplo o termo σοφιστής. N’As Nuvens,
ele pode ter significados o diversos que mesmo um grego de algum culo posterior seria
capaz de estranhar:
Σω. Οὐ γὰρ μᾶ Δί’οἶσθ’ὁτιὴ πλείστους αὗται βόσκουσι σοφιστάς
Θουριομάντεις, ἰατροτέχνας, σφραγιδονυχαργοκομήτας
145
Lísias mesmo chama manifestamente Sócrates de Sofista em um fragmento de seus discursos, achado em
Ateneu, Banquete dos Sofistas XIII, 95.
92
Κυκλίων τε χορῶν ᾀματοκάμπτας, ἄνδρας μετεωροφένακας
146
Mas, por Zeus, sabes que estas apascentam a maioria dos sofistas:
Adivinhos, médicos, almofadinhas,
Compositores de coros cíclicos, impostores astronômicos.
Os sofistas que As Nuvens apascentam nessa passagem podem ser, ao mesmo tempo,
adivinhos, médicos, poetas e filósofos naturais, se é que interpretamos corretamente o termo
µετεωροφέναξ. Pode-se considerar que tal acúmulo de determinações seja o somente um
artifício cômico para demonstrar o absurdo do φροντιστέριον, ou um artifício retórico
utilizado pelo personagem para demonstrar a sua excelência. Entretanto, apesar de ser curioso
para nós e mesmo para o uso ulterior da língua grega, encontramos correspondência para
praticamente todos estes usos na tradição grega. Para o primeiro termo encontramos paralelo
em Heródoto:
àEllhsi ga\r dh\ Mela/mpouj e)stiì o( e)chghsa/menoj tou= Dionu/sou
to/ te ouÃnoma kaiì th\n qusi¿hn kaiì th\n pomph\n tou= fallou=.
¹Atreke/wj me\n ou) pa/nta sullabwÜn to\n lo/gon eÃfhne, a)ll' oi¸
e)pigeno/menoi tou/t% sofistaiì mezo/nwj e)ce/fhnan
147
Pois, entre os gregos, é Melampo o conduto tanto do nome, quanto do sacrifício de
Dioniso, quanto da procissão do falo. Certamente, não pareceu ter compreendido
toda a razão, mas os sofistas que se seguiram a este pareceram compreender melhor.
Não há uma referência clara ao sofista como médico, mas ambos os termos são
justapostos em uma breve passagem do Corpus hippocraticum
148
. Entretanto, e talvez seja o
fato mais inusitado, todas as outras citações restantes de σοφιστής na Comédia Antiga
relacionam-se a poetas ou músicos. Como neste fragmento de Cratino, em que o termo,
segundo Diógenes Laércio, se refere a Homero e Hesíodo:
oiâon sofistw½n smh=noj a)nedifh/sate.
Tateiem como um enxame de sofistas.
149
Outros significados para o termo o encontrados nesta passagem são também
correntes no quinto século: “sábios” como Sólon
150
e Pitágoras
151
, “moralistas”
152
e, talvez,
“oradores” e “professores de oratória”
153
.
146
Nuvens, 331-3
147
Heródoto, 2, 49.
148
Corpus Hippocraticum, Sobre a Antiga Medicina, 20, 1.
149
Fr. 2, Kock.
150
Heródoto 1, 29.
93
Como podemos ver, o termo σοφιστής não possui nenhuma particularidade e pode
ser aplicado, na verdade, a toda e qualquer atividade humana que necessite de habilidade
discursiva, significado que se coloca em consonância com o uso do termo σοφίη em Hesíodo
e Homero, determinando uma habilidade específica, muitas vezes manual. Existe uma longa
disputa sobre o significado desse termo, sendo que a visão que aqui expusemos e talvez a
mais aceita pela comunidade acadêmica seja a interpretação proposta primeiramente por
George Grote, formulada no famoso capítulo 57 de sua History of Greece
154
: para ele, dados
os diversos significados do termo no quinto século, teria sido uma criação de Platão a
designação do mesmo enquanto uma classe independente.
Grote é um dos primeiros, senão o primeiro, a colocar em relevo o trabalho dos
sofistas e tentar interpretá-los à luz de uma visão mais positiva do que a que Platão lhes
reserva. Para ele, os sofistas foram os precursores da filosofia ocidental e atores
importantíssimos na história das idéias. Essa afirmação de Grote reflete a sua teoria de que, no
quinto culo antes de Cristo, não havia, em absoluto, diferenciação alguma entre aquelas
figuras que vamos posteriormente chamar de filósofos e sofistas, concluindo que tal distinção
é uma criação posterior, que partia especialmente de uma polêmica de Platão e, talvez, de
Sócrates contra eles.
A visão contrária é defendida por Guthrie em sua História da Filosofia
155
. Segundo
ele, as alusões de Platão aos sofistas de certo modo implicam que eles eram comumente
chamados por esse nome em Atenas. Ele tenta demonstrar isso com um discurso de Isócrates,
Contra os Sofistas, e com uma citação de Tucídides
156
. No entanto, Edmunds bem nota que,
mesmo em algumas obras de Platão, o termo sofista não é usado em passagens em que
deveríamos esperar que o fosse, como em todo o Fedro, e reforça a visão de que tal matiz do
termo é criação platônica. Σοφιστής, para uma boa parte dos intérpretes, é apenas um termo
concorrente com σοφός para a designação de uma figura intelectual, o sábio. No entanto, seu
uso na comédia revela já o início do seu deslocamento de uma determinação neutra para outra
pejorativa, pois Aristófanes jamais chama Sócrates ou alguns de seus discípulos de σοφός.
Entretanto, σοφισταί é um substantivo comum na comédia.
151
Heródoto 4, 95.
152
Eurípides, Hipólito, 921 deino\n sofisth\n eiåpaj, oÀstij euÅ froneiÍn
tou\j mh\ fronou=ntaj dunato/j e)st' a)nagka/sai.
“Falaste de um terrível sofista, o qual é capaz de obrigar
A serem sensatos os insensatos.”
153
Cf. EDMUNDS,2006:. 414-42.
154
GROTE, G., 1855
155
GUTHRIE, , 1995
156
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, 3, 38
94
Φροντιστής
O termo φροντιστής é bem mais específico e o é encontrado em autores anteriores
ao século V a. C.. É derivado claramente do verbo φροντίζω, com o sufixo de agente –τής, e
representa aquele que realiza a ação de pensar, o pensador.
As poucas atestações dessa palavra parecem sugerir que ela surge no ambiente da
comédia, uma vez que suas primeiras citações encontram-se nela, e em especial nas Nuvens.
Além disso, outras comédias parecem ter feito uso do termo, como no caso do Conno de
Amípsias encenada no mesmo ano das Nuvens, a qual possui aquele coro de φροντισταί a
que Ateneu se refere – e em uma passagem de Antífanes
157
, que também parece demonstrar o
uso costumeiro desta palavra na comédia.
Podemos sugerir uma origem alternativa para a criação desse nome. Não que
proponhamos uma etimologia diferente, uma vez que a derivação é extremamente clara e
bastante comum na língua grega. Mas, assumindo que seja uma criação cômica, podemos
notar que praticamente todas as vezes que foi utilizado, o foi no contexto da comédia grega,
como na alusão que o Sócrates da Apologia faz às Nuvens
158
e em várias passagens de
Xenofonte. Dentre essas referências de Xenofonte, a mais importante e, para nós, frutífera, é
esta sutil passagem do Banquete
159
:
Toiou/twn de\ lo/gwn oÃntwn w¨j e(w¯ra o( Surako/sioj tw½n me\n
au(tou= e)pideigma/twn a)melou=ntaj, a)llh/loij de\ h(dome/nouj, fqonw½n
t%½ Swkra/tei eiåpen: åAra su/, Sw¯kratej, o( frontisth\j
e)pikalou/menoj; Ou)kou=n ka/llion, eÃfh, ei¹ a)fro/ntistoj
e)kalou/mhn. Ei¹ mh/ ge e)do/keij tw½n metew¯rwn 6.7 frontisth\j
eiånai. Oiåsqa ouÅn, eÃfh o( Swkra/thj, metewro/tero/n ti tw½n qew½n
Sendo estes os assuntos, quando o homem de Siracusa viu alguns despreocupando-
se com tais exemplos, alegrando-se uns com os outros, invejando a Sócrates disse:
Mas tu, ó Sócrates, não és chamado de o φροντιστής? Portanto melhor, ele disse, do
que se eu fosse chamado de insensato. Ao menos se não pretendes ser um
φροντιστής dos assuntos celestes. Mas conheces, disse Sócrates, algo mais celestial
do que os deuses?
A datação dramática d’ O Banquete de Xenofonte é tradicionalmente estabelecida
como sendo no ano de 421 a. C., principalmente pela presença dos convidados na casa de
157
Fr. 271 Kock: sunexw½j ga\r e)mpimpla/menoj a)melh\j gi¿netai/ nqrwpoj, u(popi¿nwn de\
pa/nu frontistiko/j. , pois enchendo continuamente torna-se um homem descuidado, embriagando-se muito
“pensatoriamente”
158
Apologia 18b
159
Xenofonte, Banquete, 6
95
Cálias, tal qual n’Os Aduladores de Êupolis
160
; ou seja, apenas dois anos depois da encenação
da comédia de Aristófanes. Muitos supuseram que tal passagem é apenas uma alusão a
Aristófanes, mas Patzer
161
e Edmunds
162
lêem-na como uma demonstração de que, em 421
a.C., existia um lugar comum cômico que caracterizava Sócrates como um dos φροντισταί.
À luz das passagens que citamos em capítulos anteriores, esse trecho de Xenofonte
certamente vem a confirmar tal suposição, a porque que não nada que especifique
Aristófanes, como faz a passagem da Apologia; e o uso do particípio no presente tende, em
grego, a dar a impressão de que isto é uma atitude que se repete no tempo, indicando assim
um costume de se chamar Sócrates de φροντιστής.
Tal termo, ao contrário de σοφιστής, que é meramente genérico e serve para uma
infinidade de atividades e estados, é um termo de abuso que, ainda que somente funcione
como moeda verdadeira na Comédia Antiga, destaca-se como um dos primeiros vocábulos
que distingue a função de Sócrates, Protágoras e Pródico, da função de Euripides, Conno e um
adivinho qualquer.
O que é certo, entretanto, é que, em nenhum momento de sua vida, Sócrates foi
chamado de φιλόσοφος
, tal palavra não fazia parte do vocabulário corrente do ateniense
médio do século V a. C.
163
e é bem possível que ela sequer existisse neste período. Sabemos,
entretanto, pela famosa afirmação de Diógenes Laércio
164
, que o criador do termo “filósofo”
teria sido Pitágoras, informação essa que encontramos nos manuais e normalmente é aceita.
Entretanto, já foi levantada a questão de se isso realmente procede.
Como Andrea Nightingale
165
bem marca, a definição de filósofo que hoje possuímos
foi criada com Platão, e anteriormente havia apenas a noção de bio, como demonstrada no
vasto uso de σοφιστής para diversas atividades. Tendo isso em vista, é bastante improvável
que houvesse qualquer outro termo à disposição de Aristófanes que não fosse um dos termos
σοφός e σοφιστής outrora citados, e uma criação cômica de abuso, φροντιστής. Devemos
supor isto porque o conceito inexistia
166
, mesmo que na época já existissem figuras que
posteriormente chamaríamos de filósofos, isto é, os pré-socráticos. Esses, entretanto, eram
para seus contemporâneos apenas algum tipo de sábio, e os primeiros a qualificarem-os com
160
discutimos no segundo capítulo sobre a datação dessa obra.
161
PATZER,, 1994.
162
Op. Cit.
163
Para um levantamento sobre os termos pelos quais Sócrates é chamado em vida, ver EDMUNDS
(2005)
164
Diógenes Laércio, Vida dos filósofos, 1, 12
165
NIGHTINGALE, 2000
166
EDMUNDS, 2006, 57.
96
este status de um tipo de pensador diferente foram Platão e, mais especificamente, Aristóteles,
em suas obras de história da filosofia
167
.
Aquilo que na verdade a comédia revela com esta criação vocabular é uma tentativa
de definição de um conceito e de uma classe que até então não se distinguia de outras formas
de intelectuais, para usar um termo imensamente anacrônico, referindo-me aqui a todo tipo de
pensador que efetue uma atividade discursiva e não produza um objeto palpável. Não que seja
uma tentativa consciente, mas As Nuvens e outras comédias revelam que o conceito de uma
classe distinta de pensadores está sendo formado. Vemos isso na idéia de uma escola de
σοφισταί, e também no coro de φροντισταί do Conno de Amípsias. No entanto isso não é
garantia de que o conceito fosse ainda absolutamente independente e moeda corrente, pois
Protágoras e talvez outros pensadores são colocados no coro de parasitas na comédia de
mesmo nome, e os pensadores do Frontistério de Aristófanes executam toda e qualquer
atividade intelectual.
O que é mais seguro é que Aléxis introduz o termo na comédia, e bem
provavelmente também o conceito φιλόσοφος, ou seja, introduz um termo que não é um
abuso, como φροντιστής, e tampouco é vago como σοφιστής. Esse simples ato possui várias
implicações: a primeira, e talvez mais importante, é a de que reflete um novo mundo para a
filosofia, a qual agora o apenas conta com uma nomenclatura própria, como também é
aceita pela comunidade e pelo povo em geral. Ou seja, o fato de que o termo é introduzido na
comédia, é um indício de que os filósofos agora são reconhecidos como uma categoria
diferente de várias outras no mundo grego. A comédia segue esse caminho ao aceitar tal
divisão e tratar a filosofia em seus próprios termos.
4.2. PARÁFRASES E PARÓDIAS DA FILOSOFIA NA COMÉDIA MÉDIA
Anfide
De fato, isso reflete mais uma mudança social do que uma mudança da comédia, mas
é sem dúvida uma mudança que muito influenciou o gênero, pois tal “aceitação” da filosofia
não se demonstra somente pela nomenclatura, algo que também fica claro na aceitação das
doutrinas da própria filosofia, como no seguinte fragmento de Anfide, onde a relação cômica
com a doutrina do Bem de Platão é bastante clara e evidente:
167
Como no primeiro livro de sua Metafísica.
97
to\ d' a)gaqo\n oÀ ti pot' e)sti¿n, ou su\ tugxa/nein
me/lleij dia\ tau/thn, hÂtton oiåda tou=t'
e)gw¯, wÕ de/spot', hÄ to\ Pla/twnoj a)gaqo/n. {B.} pro/sexe dh/.
168
O que é o bem, o qual tu te preocupas
Em alcançar por meio desta, eu faço menos idéia disto,
Ó senhor, do que do bem de Platão. B) Atenção, então.
A comédia apresenta dois personagens, provavelmente um escravo dialogando com
seu mestre. A cena esbem próxima de algumas passagens das comédias mais tardias de
Aristófanes, em especial o Pluto, que apresentam com maior freqüência a relação entre senhor
e escravo. Tal qual a comédia de Aristófanes, aqui o senhor é apresentado como tendo uma
idéia que não é considerada normal e o escravo acaba discutindo com ele. Aqui se trata de
algum bem, sobre exatamente qual, não podemos saber, afinal, é o único fragmento desta
comédia, chamada de Anfícrates, e sequer temos alguma outra informação sobre ela. “Estaa
que se refere o escravo é sugerida por Kock na sua edição dos fragmentos
169
, como sendo
alguma filosofia, mas nada nos garante isso com certeza; entretanto, também nada pode ser
dito em contrário. O que podemos é nos certificar dizendo que tanto o uso do Bem, em um
sentido aparentemente abstrato, quanto a citação de Platão nos remetem ao campo da
filosofia. No entanto, o escárnio revela um conhecimento bem mais refinado da doutrina
platônica sobre o Bem do que qualquer referência à filosofia antiga. Certamente faz parte do
jogo cômico da cena o conhecimento que um escravo teria de Platão, o que revela que, pelo
menos, a audiência deveria ter alguma idéia, ainda que vaga, do que seria sua filosofia.
No entanto, o seguinte fragmento é ainda mais importante para o tema:
Ti¿ fv/j; su\ tautiì prosdok#=j pei¿sein e)me/,
w¨j eÃst' e)rasth/j, oÀstij w¨raiÍon filw½n
tro/pwn e)rasth/j e)sti, th\n oÃyin parei¿j;
aÃfrwn g' a)lhqw½j. ouÃte tou=to pei¿qomai,
ouÃq' w¨j pe/nhj aÃnqrwpoj e)noxlw½n polla/kij
toiÍj eu)porou=sin ou) labeiÍn ti bou/letai.
170
Que dizes? Tu esperas me convencer
Que existe um amante, que, amando o belo,
É amigo do caráter, mas não se importa com a aparência?
Verdadeiramente é um insensato. Nem me convenço disto,
nem de que um homem pobre que muitas vezes se irrita
com os que estão bem de vida e não deseja pegar algo
168
Anfide, fr. 6 Kock
169
KOCK, 1885:237
170
Fr. 15 Kock.
98
Estamos um pouco mais seguros com relação a esse fragmento do que com o
primeiro. Ele vem da comédia Ditirambo, do mesmo autor, da qual possuímos um outro
fragmento, o suficiente para saber que seu assunto principal não é a filosofia, mas uma
inovação teatral que o personagem principal quer levar a cabo. Talvez essa inovação esteja
ligada, tal qual acontecia na Comédia Antiga, a inovações culturais do momento e daí
podemos tirar a referência à doutrina platônica, mas não podemos nos assegurar disso.
O mais importante desse fragmento, entretanto, é que, ao contrário de todas as
citações que já vimos da Comédia Antiga, as de Anfide distinguem de maneira bem clara a
origem e os temas platônicos. Podemos conferir a doutrina do Bem platônico em diversos
diálogos, como o Górgias, A República etc; e, apesar de conter apenas uma alusão velada a
ela, Anfide consegue descrever muito bem o conceito extremamente contra-intuitivo que até
hoje consome parte do tempo dos exegetas platônicos.
De forma ainda mais precisa, a doutrina que pode ser considerada como a central do
Banquete, sobre a superioridade do amor espiritual sobre o amor sico, é citada e comentada
aqui. Trata-se da primeira citação verdadeiramente confiável de uma doutrina filosófica por
um comediógrafo grego.
Antífanes
Encontramos várias paráfrases de doutrinas filosóficas que revelam um verdadeiro
conhecimento do tema nas comédias da Comédia Média. Vemos, por exemplo, esta paródia
da metafísica antiga, que vem sob o nome do Liceu:
a)kolouqeiÍn eÃrij
e)n t%½ Lukei¿% meta\ sofistw½n, nh\ Di¿a,
leptw½n a)si¿twn suki¿nwn, le/gonq' oÀti
to\ pra=gma tou=t' ou)k eÃstin eiãper gi¿netai:
ou)d' eÃsti ga/r pw gino/menon oÁ gi¿netai,
ouÃt' ei¹ pro/teron hÅn, eÃstin oÀ ge nu=n gi¿netai:
eÃstin ga\r ou)k oÄn ou)de/n: oÁ de\ mh\ ge/gone/ pw,
ou)k eÃsq' eÀwsper ge/gonen, oÀ ge mh\ ge/gone/ pw:
e)k tou= ga\r eiånai ge/gonen: ei¹ d' ou)k hÅn oÀqen,
pw½j e)ge/net' e)c ou)k oÃntoj; ou)x oiâo/n te ga/r.
ei¹ d' au)to/qen poi ge/gonen, ou)k eÃstai
khpoi de/potij eiãh, poqen genh/setai
tou)k oÄn ei¹j ou)k oÃn: ei¹j ou)k oÄn ga\r ou) dunh/setai.
tautiì d' oÀ ti e)stiìn ou)d' aÄn a(po/llwn ma/qoi.
171
(...) Seguir uma disputa no Liceu
171
Antífanes, fr. 122 Kock
99
Com os sofistas, por Zeus!,
finos, sem comida, pérfidos, dizendo que
esta coisa não é se por acaso vem a ser,
pois nem ainda existe o surgido que vem a ser,
nem, se antes existia, existe o que agora vem a ser;
pois o que não é nada existe: o que ainda não veio a ser,
nem é até quando veio a ser, o que ainda não veio a ser
pois do ser veio a ser, se não existia de onde
como veio a ser do que não existia, pois não é possível
se lá para onde veio a ser, não haverá,
se houver jardins, de onde virá a ser
o que é até o que não é: pois não poderia até o que não é
isto o que é nem mesmo se o que perece aprendesse
A citação é extremamente confusa e vale-se de um tipo de discussão bastante comum
na filosofia antiga, que é o debate sobre se pode existir a geração e a corrupção. Que o Liceu
estava interessado nisso, sabemos pelas obras de Aristóteles, em especial em seu opúsculo
Sobre a Geração e a Corrupção e na Metafísica. Norwood afirma que tal fragmento parodia a
doutrina eleática de Zenão e Parmênides, para a qual a forma meio paradoxal das afirmações e
a confusão da redação decerto apontam. Entretanto, uma atribuição ao Liceu também não é
exatamente incorreta, pois sabemos que o interesse nestes assuntos era alto na escola de
Aristóteles.
Aléxis
Outras paráfrases são bastante precisas, como esta do discípulo socrático Aristipo,
também de Aléxis:
o( despo/thj ou(mo\j periì lo/gouj ga/r pote
die/triye meiraki¿skoj wÔn kaiì filosofeiÍn
e)pe/qeto: KurhnaiÍoj hÅn e)ntau=qa/ tij,
wÐj fas', ¹Ari¿stippoj, sofisth\j eu)fuh/j,
ma=llon de\ prwteu/wn a(pa/ntwn tw½n to/te,
a)kolasti¿# te tw½n gegono/twn diafe/rwn.
tou/t% ta/lanton dou\j maqhth\j gi¿netai
o( despo/thj. kaiì th\n te/xnhn me\n ou) pa/nu
e)ce/maqe, th\n d' a)rthri¿an sunh/rpasen.
Pois o meu senhor certa vez passou o tempo
(pensando) sobre assuntos enquanto era adolescente e dispôs-se
a filosofar. Havia aqui um certo Cirenaico,
como dizem, Aristipo, um sofista bem feito,
muito à frente de todos os de então,
e destacando-se pela falastrice dos fatos.
Tendo dado um talento a este, tornou-se um aluno
o senhor. E tanto aprendeu não muito a arte,
quanto compreendeu a garganta
100
À primeira vista, parece tratar-se de uma reciclagem dos argumentos da Comédia
Antiga sobre os filósofos e sofistas: são pagos para ensinar e tomam parte em todos os
prazeres possíveis, em especial à mesa. No entanto, cada uma das afirmações feitas nessa
passagem esde acordo com o que as outras fontes dizem a respeito de Aristipo e a escola
que ele criou, a escola cirenaica. Aléxis diz-nos que o senhor do escravo pagou um talento
para ser seu aluno, e é verdade que Aristipo, ao contrário dos outros discípulos socráticos,
realmente recebia pagamento por suas lições
172
, sendo seu estilo de vida realmente o mais
hedonista possível:
ãEgwg', eÃfh o( ¹Ari¿stippoj: kaiì ou)damw½j ge ta/ttw e)mauto\n ei¹j
th\n tw½n rxein boulome/nwn ta/cin. kaiì ga\r pa/nu moi dokeiÍ
aÃfronoj a)nqrw¯pou eiånai to/, mega/lou eÃrgou oÃntoj tou= e(aut%½ ta\
de/onta paraskeua/zein, mh\ a)rkeiÍn tou=to, a)lla\ prosanaqe/sqai to\
kaiì toiÍj lloij poli¿taij wÒn de/ontai pori¿zein(...) e)mauto/n ge
me/ntoi ta/ttw ei¹j tou\j boulome/nouj r(#=sta/ te kaiì hÀdista
bioteu/ein.
173
“Sim”, dizia Aristipo, “e de modo algum me dedico à classe dos que desejam
governar. Pois muito me parece ser próprio de um homem insensato não bastar
preparar as coisas necessárias, o que é um grande trabalho para um homem, mas
também dedicar-se a fornecer aos outros cidadãos aquilo que é preciso (...) eu
mesmo me coloco dentre os que querem viver de modo mais fácil e agradável”.
Esse parece ser o caso em que os modelos da Comédia Antiga e a figura da tradição
realmente encontram-se, e não para saber se essa caracterização de Aristipo deriva dessa
tradição da Comédia Antiga (que a Comédia Média teria preservado) ou se é uma crítica real
às doutrinas de Aristipo. Temos, entretanto, uma expressão que pode nos indicar que Aléxis
está condenando de fato o modo de vida de Aristipo: kaiì th\n te/xnhn me\n ou)
pa/nu/e)ce/maqe. (mas não aprendeu muito da arte). Isso está em contradição com um dos
dados característicos das Nuvens, que é o aprendizado de Fidípides, o filho de Estrepsíades, o
qual vai ao φροντιστήριον e realmente aprende as doutrinas de Sócrates e torna-se um mestre
em retórica. Pode-se acusá-lo de muita coisa, mas o Sócrates das Nuvens é um professor
eficaz s vezes ao contrário do próprio Sócrates histórico, “mestre” de Críticas e Alcibíades,
se é que podemos chamá-lo de professor). Aristipo, pelo visto, não é um bom professor,
172
Diógenes Laércio II, 72: o)neidizo/meno/j pote oÀti di¿khn eÃxwn e)misqw¯sato r(h/tora, "kaiì
ga/r," eÃfh, "oÀtan deiÍpnon eÃxw, ma/geiron misqou=mai." [
se insultado certa vez porque tinha um processo por ter sido pago como um retor, disse: “pois sim, quando tenho
um banquete, eu sou pago como um cozinheiro.”]
173
Xenofonte, Memoráveis, II, 1, 8.
101
pois comenta-se que a personagem não aprende nada, salvo ir aos banquetes. Isto pode ser
uma referência direta a uma das características da filosofia cirenaica, que é a recusa em
estudar qualquer tipo de doutrina física:
a)fi¿stanto de\ kaiì tw½n fusikw½n dia\ th\n e)mfainome/nhn
a)katalhyi¿an: tw½n de\ logikw½n dia\ th\n eu)xrhsti¿an hÀptonto.
E se afastavam da doutrina dos físicos, pela visível impossibilidade de se
compreender, mas ficaram presos pela utilidade dos lógicos.
Ou seja, mesmo quando o texto parece se aproximar do espírito da Comédia Antiga,
ele na verdade se afasta, pois se revela uma crítica a um tipo especial de filósofo.
Efipo
Mesmo a descrição das figuras dos filósofos consegue se afastar bastante daquela a
que nos acostumamos graças às Nuvens e a outros fragmentos da Comédia Antiga:
eÃpeit' a)nasta\j euÃstoxoj neani¿aj
tw½n e)c ¹Akadhmei¿aj tij u(po\ Pla/twna kaiì
Bruswnoqrasumaxeiolhyikerma/twn
plhgeiìj a)na/gkv, lhyilogomi¿sq% te/xnv
sunw¯n tij, ou)k aÃskepta duna/menoj le/gein,
euÅ me\n maxai¿r# cu/st' eÃxwn trixw¯mata,
euÅ d' u(pokaqieiìj aÃtoma pw¯gwnoj ba/qh,
euÅ d' e)n pedi¿l% po/da tiqeiìj u(po\ curo/n,
knh/mhj i¸ma/ntwn i¹some/troij e(li¿gmasin,
oÃgk% te xlani¿doj euÅ teqwrakisme/noj,
sxh=m' a)cio/xrewn e)pikaqeiìj bakthri¿#,
a)llo/trion, ou)k oi¹keiÍon, w¨j e)moiì dokeiÍ,
eÃlecen "aÃndrej th=j ¹Aqhnai¿wn xqono/j".
174
E em seguida, tendo se levantado um jovem sabichão,
Um daqueles da Academia sob as asas de Platão e
Brusotrasimáquicopecunirecebedor
frequentando à força, ocupado com uma arte que recebe pelo discurso
Não podendo dizer nada impensado
Tendo os cabelos corretamente cortados pela faca
E assentando corretamente as partes mais baixas da barba,
Colocando o pé correamente na sandália, precisamente
Com as tiras da correia da canela de igual tamanho
E com o volume da manta bem armado
Acertando a figura importante com um bastão,
estranha, não familiar como me parece,
disse: “Homens da terra dos Atenienses”
174
Efipo, fr. 14 Kock
102
Aqui alguns temas da Comédia Antiga parecem voltar, como o recebimento de
salários e a preocupação com a retórica, como é exemplificado com a frase final, um exemplo
típico de retórica política. No entanto, o que mais se destaca nesse fragmento é o fato de que a
figura muda de forma completa: ao contrário dos pálidos e maltrapilhos da Comédia Antiga, o
homem da Academia aparece como uma figura bem posta, o oposto do homem do
φροντιστήριον, certamente rico, com uma preocupação talvez até excessiva com a aparência.
103
5 O ESTOQUE CÔMICO COMUM
Os comediógrafos da Comédia Antiga não criaram ex nihilo as afirmações que os
φροντισταί emitem em cena; na verdade, nada pode ser mais distante disso. Verifiquemos,
então, o exemplo mais claro dessa relação, o das Nuvens.
5.1. A RELAÇÃO ENTRE AS FIGURAS CÔMICAS E OS PERSONAGENS
FILOSÓFICOS HISTÓRICOS
Citamos e comentamos brevemente, no primeiro capítulo, algumas das diversas
teorias a respeito das doutrinas do Sócrates de Aristófanes. Alguns comentadores, como Leo
Strauss
175
, tentaram ver em algumas passagens uma sutil citação de características especiais
de Sócrates. Por exemplo, Strauss aponta a facilidade do Sócrates cômico de resistir ao frio e
a picadas de mosquito como um exemplo da continência que é demonstrada de maneira mais
evidente no Banquete. Outros, como Philippson
176
, tentam ver em escolhas terminológicas,
como o uso de verbos como τέµνω e substantivos como διάλεξις, uma demonstração da
metodologia socrática e sofística em geral, e outros
177
ainda explicam a menção do aborto da
idéia como uma referência à maiêutica socrática.
Por mais que todos estes paralelos tenham variados graus de verossimilhança e
confiabilidade, e analisamos os citados anteriormente, todos falham em um único sentido:
nenhuma dessas alusões se refere a uma parte importante da filosofia do Sócrates histórico,
elas são tão somente referências superficiais do comportamento ou da metodologia. A
distinção é importante, porque alusões comportamentais e mesmo metodológicas o
implicam um conhecimento ou uma familiaridade com a doutrina que o pensador ensinava
178
,
e o grau de sutileza de todas estas alusões revelam que não sequer uma grande
familiaridade com a própria metodologia em questão.
No entanto, as doutrinas expostas pelo Sócrates de Aristófanes realmente foram
esposadas por uma ou outra figura pública grega antiga, e a crítica sempre possui seus alvos
preferidos. Dover, que tenta ao máximo afastar-se da teoria de que há qualquer tipo de
intenção oculta na composição das Nuvens, considera que a principal alusão em jogo é aquela
175
STRAUSS, 2001.
176
PHILIPPSON, 1932.
177
TOMIN, J. 1987: 97-102.
178
Ainda que, seguindo a sugestão de Pierre Hadot, o comportamento das escolas filosóficas revele em parte
algo da doutrina.
104
à doutrina de Diógenes de Apolônia, enquanto outros tentam aproximar tais alusões de
Anaxágoras. O motivo principal para essa aproximação está na doutrina física de ambos, que
estabelecia o ar como princípio de todas as coisas.
Diógenes é o preferido por pressupor que a origem das coisas está nos elementos em
movimento (τοῦ παντὸς
κινουμένου), que são constituídos tendo o ar como fundamento, o
que faz com que praticamente cada comentarista das Nuvens aproxime tal doutrina da
afirmação de Sócrates de que o vórtice (δῖνος) havia suplantado Zeus. Poucos ousaram
discordar de tal proposição, e não mesmo nenhuma outra teoria sobre a origem de tal
afirmação que seja mais provável, uma vez que Diógenes havia sido condenado por
impiedade, o que provavelmente teria dado alguma publicidade a suas doutrinas. Alguns
poucos autores são ousados e imaginam algo diferente: Philip Ambrose
179
, por exemplo, nota
a curiosa semelhança de δῖνος com as duas formas de genitivo para Zeus: Διὸς e Ζηνὸς.
Ambrose também imagina que as alusões aos filósofos naturais e a presença de
Sócrates são meramente uma forma de esconder o verdadeiro alvo da comédia, que seria o
sofista Pródico. Apesar da eloqüente leitura do texto grego e do erudito uso da fragmentária
grega, a leitura de Ambrose falha justamente n’As Nuvens. Dentro do que comentamos
sobre a relação entre Pródico e a Comédia Antiga, é possível que a comédia Fritadores, de
Aristófanes, se refira a Pródico, bem como haja uma paródia de Pródico no início da parábase
d’As Aves de Aristófanes. No entanto, afirmar que As Nuvens o aparentadas às Aves e que
portanto são também uma alusão a Pródico é apenas uma tentativa de adivinhação sem a
menor sustentação filológica. Tampouco é útil afirmar que a teoria do Dînos, ou seja, do
vórtice que suplanta Zeus esteja na linha do χρήσιµον útil de Pródico, fora o fato de que as
lições gramaticais das Nuvens não contêm nada que, podendo ser relacionado a Pródico,
também não possa ser praticamente relacionado a qualquer outro dentre os que chamamos de
sofistas.
Podemos ver, portanto, que não nenhum objetivo nas alusões a doutrinas.
Nenhuma delas, entretanto, é de criação própria de Aristófanes, mas certamente existiram e
foram defendidas na Antigüidade, sendo que podemos traçar suas origens. Basta lembrar-nos
de um dos fragmentos que tratam de Protágoras
180
, o qual revive uma discussão da medicina
antiga, sobre se os líquidos eram armazenados nos pulmões ou o. Cada uma dessas
afirmações é coerente em si, mas dificilmente são coerentes entre si em seu conjunto; e com a
179
AMBROSE, 1971.
180
Fr. 146 Kock.
105
personagem que as defende, fica claro que, apesar de os comediógrafos terem tido alguma
forma de conhecimento de tais doutrinas, era-lhes irrelevante o conhecimento do autor e dos
detalhes das mesmas.
5.2. UM CONTRASTE: A FILOSOFIA NA COMÉDIA MÉDIA
A situação da Comédia Média é completamente diferente: se na Comédia Antiga a
mera alusão a uma doutrina científica ou filosófica era por si uma maneira de se produzir
riso, no fragmento que se refere à doutrina platônica sobre o amor não é tal alusão que é
importante, mas a crítica a ela feita. Na Comédia Antiga tais doutrinas são ridículas por si e
não precisam ser combatidas o combate, conforme veremos mais à frente, é contra as
figuras. Entretanto, cinqüenta anos mais tarde a situação muda bastante e a filosofia e a
doutrina de seus praticantes torna-se algo de interesse geral.
Nota-se que a filosofia mudou de status social, deixando de ser uma curiosidade que
poderia prejudicar a cidade para colocar-se no centro das decisões políticas, com filósofos
tomando parte na administração de algumas Cidades-Estado, como no caso famoso de
Siracusa, de que Platão nos informa na sua sétima carta (assumindo aqui que a autoria seja
mesmo de Platão) quando ele teria viajado para a Sicília, travado conhecimento com o tirano
Dionísio e tentado influenciar a política local. Os filósofos são então figuras públicas tais
como os poetas do quinto século, e a comédia do período, ainda que tradicionalmente menos
direta do que a Comédia Antiga em suas injúrias, muda seu relacionamento com a filosofia.
Mesmo um grupo filosófico mais alheios à norma social, como os pitagóricos, ganha sua
presença na comédia:
h( d' e(sti¿asij i¹sxa/dej kaiì ste/mfula
kaiì turo\j eÃstai: tau=ta ga\r qu/ein no/moj
181
E na refeição haverá figos secos, uvas, e queijo
Pois esta é a lei do sacrifício
Nesta passagem, percebe-se que o costume de representar os filósofos como parasitas
ou como figuras ligadas a essa cultura do banquete como podemos ver de certo modo em
qualquer referência à Comédia Antiga – já foi substituído por uma representação mais fiel dos
costumes de cada grupo. Os pitagóricos eram famosos pela sua abstenção de carne, por causa
181
Aléxis, fr. 196, Kock.
106
da sua crença na doutrina da transmigração das almas, que é referida bem claramente em uma
passagem de outra comédia de Aléxis:
oi¸ puqagori¿zontej ga/r, w¨j a)kou/omen,
ouÃt' oÃyon e)sqi¿ousin ouÃt' aÃll' ou)de\ eÁn
eÃmyuxon, oiåno/n t' ou)xiì pi¿nousin mo/noi.
{B.} ¹Epixari¿dhj me/ntoi ku/naj katesqi¿ei,
tw½n Puqagorei¿wn eiâj. {A.} a)poktei¿naj ge/ pou:
ou)k eÃti ga/r e)st' eÃmyuxon.
Pois os pitagóricos, como ouvimos falar,
Não comem nem assados nem nada
Animado, e são os únicos que não bebem vinho.
B) Epicárides, entretanto, come cães,
Sendo um dos pitagóricos A) Matando como?
Pois ele não mais é animado.
Novamente possuímos um diálogo, que coloca duas figuras discutindo algumas
características dos pitagóricos. Uma primeira figura, que podemos chamar de personagem A,
faz a descrição do costume; a segunda figura tenta demonstrar uma inconsistência desse
hábito, mas acaba sendo corrigido pela primeira figura. Podemos pressupor que a primeira
figura tenha alguma relação com a doutrina dos pitagóricos, e o uso do verbo a)kou/omen
pode indicar que se trata de um dos que são chamados de “acusmáticos”, ou seja, aqueles que
não tinham um conhecimento profundo da doutrina pitagórica.
Aléxis sabe não somente se referir à doutrina da transmigração da alma, como
também conhece corretamente o termo técnico a ela alusivo na filosofia pitagórica: µψυχον,
mostrando também a diferença com a Comédia Antiga, a qual é capaz de citar doutrinas
físicas, mas jamais se vale dos termos técnicos verdadeiros. Por exemplo, a noção do vórtice
como senhor do mundo é muito próxima da doutrina de Diógenes de Apolônia, mas não
encontramos em seus fragmentos nenhum uso da palavra δῖνος.
Quanto aos pitagóricos, que se tornam no quarto século um alvo bastante comum da
Comédia Média, mesmo quem tenha sugerido que sua “seita” filosófica tenha sido a
origem para as personagens do φροντιστήριον de Aristófanes
182
. A proposta é bastante
tentadora, pois nos permitiria fazer uma ligação entre a terminologia de mistério típica de
alguns momentos da comédia e a filosofia pitagórica, apesar de conhecermos mal quais eram
exatamente suas doutrinas. Os paralelos terminológicos entre os iniciados de Aristófanes e os
pitagóricos são, é certo, tentadores, mas a analogia perde totalmente o sentido se verificarmos
182
Esta é a proposta de Marianetti em Religion and Politics in Aristophanes’ Clouds. Georg Olms, Stuttgart,
1992
107
que a chance de o pitagorismo ter chegado a Atenas na década de 420 a.C. é extremamente
reduzida
183
, e, considerando que para ser motivo de caracterização cômica seria necessário
uma certa dispersão e conhecimento geral desta doutrina, não parece suficientemente
pertinente tal proposta. Se é que há alguma origem para os alunos do φροντιστήριον, podemos
enxergar apenas duas: as fraternidades místicas, que aliás eram a origem e o modelo dos
pitagóricos, e os alunos dos sofistas, que viajavam junto com seu mestre.
5.3. A APRESENTAÇÃO DA FILOSOFIA NA COMÉDIA ANTIGA
O motivo mais importante para esta aparente mudança de situação da Comédia
Média está em sua inclusão da filosofia. citamos e marcamos a semelhança de temas de
outras comédias que o o diretamente ligadas à filosofia, em particular Os Babilônios de
Aristófanes e As Cabras de Êupolis. As outras comédias mais importantes, como o Conno de
Amípsias e Os Aduladores de Êupolis, citam filósofos nominalmente, mas é bem possível e é
até mais provável que não tratem diretamente da filosofia como As Nuvens faz.
As Nuvens são a única comédia do corpus da Comédia Antiga que trata
especificamente de um tema filosófico. Podemos ter quase certeza disso pela natureza das
nossas notícias, pois caso tenha havido alguma outra comédia que colocasse Sócrates ou outro
pensador no centro, teríamos tido dela algum tipo de notícia. Como o notícia alguma,
são extremamente reduzidas as chances de haver algo mais.
No entanto, As Nuvens não são uma comédia especificamente sobre a filosofia, o
no sentido de que possua um filósofo como principal κωμῳδούμενος
, mas pelo fato de que
as mais importantes doutrinas de Sócrates não são contestadas por Aristófanes. Afinal, todas
as afirmações sobre moscas, salamandras, chuva, e mesmo sobre a queda de Zeus, não são
parte essencial da peça, e sim apenas elementos de caracterização do personagem, os quais
formam aquilo que se esperava de um pensador qualquer, razão pela qual Aristófanes pôde
“vestir” Sócrates com diversos “costumes” intelectuais, ainda que mantendo o escárnio como
objeto. No entanto, o que é central na comédia é o efeito que tais ensinamentos provocam na
juventude ateniense, isto é, o que é central é a evolução de Fidípides. Devemos aqui voltar à
análise de Marrou que considerava a comédia como um exemplo do confronto entre dois tipos
183
Vide as considerações sobre o surgimento e a busca de testemunhos feita por Riedweg em Pythagoras: His
Life teaching, and Influence. Cornell University Press, Ithaca, 2005.
108
de educação, o primeiro que era a educação da Grécia arcaica, baseada na música e na
ginástica, e o segundo que era a nova educação da qual Sócrates certamente fazia parte.
A prova mais importante disso talvez esteja no fato de que todas as outras comédias
que conseguimos aproximar d’As Nuvens possuem como tema central justamente este. Muito
comentamos sobre As Cabras de Êupolis, as quais certamente tratam da diferença entre dois
tipos de educação, e, apesar de os fragmentos serem bastante escassos, a cena da aula de
dança coloca em relevo, como já comentamos, a diferença entre essas duas formas de
educação. Tal oposição também é certamente central n’Os Parasitas de Êupolis, com a
presença de lias, que é corrompido pelos sofistas (esta é, inclusive, a cena do diálogo
Protágoras de Platão). Também Os Babilônios de Aristófanes contêm uma cena de aula que
trata da diferença entre um jovem e um velho, o jovem sendo o καταπύγων, termo de abuso
que ocupa lugar central na conclusão do agón principal d’As Nuvens. Em outras palavras, não
apenas n As Nuvens, mas em todas as comédias antigas, a filosofia só é mencionada pelo
efeito que produz na juventude e pouco interesse ainda havia por esta figura do filósofo.
Muito se falou sobre a apropriação de Sócrates n’ As Nuvens. No entanto
esqueceu-se daquilo que talvez tenha sido central. Falamos do fato de que, do ponto de vista
de um defensor da tradição educativa da Idade Arcaica, as diferenças entre Sócrates e os
sofistas são meramente de detalhe. Talvez seja importante aqui citar a defesa do argumento
forte:
le/cw toi¿nun th\n a)rxai¿an paidei¿an w¨j die/keito,
oÀt' e)gwÜ ta\ di¿kaia le/gwn hÃnqoun kaiì swfrosu/nh 'neno/misto.
prw½ton me\n eÃdei paido\j fwnh\n gru/cantoj mhde/n' a)kou=sai:
eiåta badi¿zein e)n taiÍsin o(doiÍj eu)ta/ktwj ei¹j kiqaristou=
tou\j kwmh/taj gumnou\j a(qro/ouj, kei¹ krimnw¯dh katanei¿foi.
eiåt' auÅ promaqeiÍn #Åsm' e)di¿dasken twÜ mhrwÜ mh\ cune/xontaj,
hÄ "Palla/da perse/polin deina/n" hÄ "thle/poro/n ti bo/ama",
e)nteiname/nouj th\n a(rmoni¿an hÁn oi¸ pate/rej pare/dwkan.
ei¹ de/ tij au)tw½n bwmoloxeu/sait' hÄ ka/myeie/n tina kamph\n
oiàaj oi¸ nu=n, ta\j kata\ Fru=nin tau/taj ta\j duskoloka/mptouj,
e)petri¿beto tupto/menoj polla\j w¨j ta\j Mou/saj a)fani¿zwn.
e)n paidotri¿bou de\ kaqi¿zontaj to\n mhro\n eÃdei probale/sqai
tou\j paiÍdaj, oÀpwj toiÍj eÃcwqen mhde\n dei¿ceian a)phne/j:
eiåt' auÅ pa/lin auÅqij a)nista/menon sumyh=sai kaiì pronoeiÍsqai
eiãdwlon toiÍsin e)rastaiÍsin th=j hÀbhj mh\ katalei¿pein.
h)lei¿yato d' aÄn tou)mfalou= ou)deiìj paiÍj u(pe/nerqen to/t' aÃn,
wÐste toiÍj ai¹doi¿oisi dro/soj kaiì xnou=j wÐsper mh/loisin e)ph/nqei.
ou)d' aÄn malakh\n furasa/menoj th\n fwnh\n pro\j to\n e)rasth\n
au)to\j e(auto\n proagwgeu/wn toiÍn o)fqalmoiÍn e)ba/dizen.
Direi então como a antiga educação se constituía
Quando eu era jovem dizendo coisas justas e a sensatez era bem quista.
Em primeiro lugar não se devia ouvir a voz de um garoto cochichando nada,
109
Depois deviam andar bem organizados pelas ruas até o citaredo
Juntos os vizinhos nus, nem se nevasse uma neve bem fofa.
O professor, por sua vez, começava ensinando-os a cantar,
Em seguida lhes ensinava a decorar um canto, não juntando as coxas,
Ou “Palas terrível destruidora de cidades” ou “um clamor longínquo”,
Estendendo a harmonia que os pais transmitiram.
E se algum deles fosse indecente e modulasse uma modulação
Como as que os de agora fazem, as terríveis modulações de Frinis,
Seria espancado, sendo batido muitas vezes por ter rejeitado as Musas.
E era necessário os rapazes sentando no pedótriba esticarem as pernas
Para não mostrar nenhuma indecência para fora.
E depois, ao se levantar, ajuntar a areia e cuidar
Para não deixar nenhuma imagem para os amantes da juventude
Nenhum garoto se untava para baixo do umbigo naquela época,
Assim sobre as vergonhas brotava um orvalho e uma penugem como sobre as maçãs
E não tornando suave a voz para o amante
caminhava para ele oferecendo-se com os olhos.
Não é possível deixar de assinalar a dificuldade de entrever a verdadeira doutrina
socrática, especialmente em questões pontuais como essas. Mas haja vista as opiniões da larga
maioria de seus discípulos, em especial Antístenes e Platão, não é difícil imaginar que
Sócrates também se opunha a este sistema de educação baseado principalmente na música e
na ginástica competitiva
184
, ou, se não se opusesse, pelo menos visava uma modificação
radical das suas bases.
O grau com que ele se opunha a isso o é exatamente relevante; o que parece mais
importante é que a literatura platônica, em alguns breves momentos, parece nos indicar que
Sócrates tinha uma visão bastante utilitarista da educação, especialmente da ginástica
185
. Em
uma passagem no começo do Eutidemo, Sócrates comenta que os dois praticantes do
pancrácio, o que o nome ao diálogo e seu irmão, são os que mais conhecem a arte da
guerra. Se nos lembrarmos das afirmações do Eutidemo
186
, é possível entrever aqui algum tipo
de sarcasmo com relação a estas figuras, pois Sócrates afirma que a função única da ginástica
é preparar para a guerra, e parece meramente usar o talento extremo na ginástica como se
significasse talento máximo na guerra, podendo assim ser sutilmente sarcástico com os dois
lutadores.
Esse comportamento do Sócrates platônico talvez deixe entrever algumas das
opiniões do Sócrates histórico. Certamente ele o era oposto à ginástica, mas parece ser
crítico em alguns pontos em relação à maneira com que tal atividade é desempenhada na
sociedade grega.
184
Platão decerto considerava a ginástica um elemento importantíssimo da educação dos seus guardiães na
República, livro II. Mas essa ginástica difere-se totalmente da ginástica comum grega, a qual tem como objetivo
a competição e a disputa.
185
Cf. República, 376e.
186
Cf. Eutidemo 273b
110
Ou seja, a posição de reformador de Sócrates, que parece estabelecida ao longo da
tradição, ainda que ele seja moderado e esteja longe de ser um radical como os sofistas, como
será Platão, já é por si um fator que causaria a oposição direta de qualquer tradicionalista. É
com base nisso, portanto, que Aristófanes faz uso do seu Sócrates como de um radical à moda
dos sofistas; ele é um opositor da tradição, ainda que suave, e isso basta para colocá-lo ao lado
de todos os mais radicais reformistas. Creio que tal fato explica a inclusão de Sócrates na
Comédia Antiga e os motivos pelos quais ele é atacado.
5.4. O ESTOQUE DA COMÉDIA ANTIGA
O ponto mais central desta dissertação, no entanto, não são exatamente os objetivos
que Aristófanes tinha para escrever As Nuvens e figurar Sócrates da maneira que o fez, mas a
razão pela qual ele caracteriza Sócrates de uma maneira tão contraditória. Podemos ver pela
repetição dos mesmos temas em diversos momentos que a principal razão é o fato de existir
na Comédia Antiga um lugar comum de caracterização do pensador e mesmo do
“modernista”. Podemos ver uma caracterização semelhante nas referências a Protágoras n’Os
Aduladores de Êupolis e a Pródico n’As Aves e n’As Nuvens e nas referências a outras figuras
“pedagógicas”, tais quais os professores presentes n’Os Convivas e n’As Cabras, as quais
possuem uma característica inovadora. Ora, isso nos leva a crer que o se trata de uma
criação original de Aristófanes, e sim do uso que ele faz de uma tradição cômica.
No quadro dessa tradição do pensador como “modernista” figurado pela comédia,
dada a escassez de fragmentos, nos é praticamente impossível estabelecer as verdadeiras
origens de tal caracterização do intelectual, embora nos seja mais fácil perceber que os
cômicos aproveitam-se de outras figuras para moldá-la.
Podemos aqui voltar a uma comédia que já comentamos, Os Aduladores de Êupolis.
A comédia também possui a mais importante descrição do parasita em todo o corpus da
comédia grega:
a)lla\ di¿aitan hÁn eÃxous' oi¸ ko/lakej pro\j u(ma=j
le/comen: a)ll' a)kou/saq' w¨j e)sme\n aÀpanta komyoiì
aÃndrej: oÀtoisi prw½ta me\n paiÍj a)ko/louqo/j e)stin
a)llo/trioj ta\ polla/, mikro\n de/ ti ka)mo\n au)tou=.
i¸mati¿w de/ moi du/' e)sto\n xari¿ente tou/tw,
oiân metalamba/nwn a)eiì qa/teron e)celau/nw
ei¹j a)gora/n. e)keiÍ d' e)peida\n kati¿dw tin' aÃndra
h)li¿qion, ploutou=nta d', eu)qu\j periì tou=ton ei¹mi¿.
kaÃn ti tu/xv le/gwn o( plou/tac, pa/nu tou=t' e)painw½,
111
kaiì kataplh/ttomai dokw½n toiÍsi lo/goisi xai¿rein.
eiåt' e)piì deiÍpnon e)rxo/mes
q' aÃlludij aÃlloj h(mw½n
ma=zan e)p' a)llo/fulon, ou deiÍ xari¿enta polla\
to\n ko/lak' eu)qe/wj le/gein, hÄ 'kfe/retai qu/raze.
oiåda d' ¹Ake/stor' au)to\ to\n stigmati¿an paqo/nta:
skw½mma ga\r eiåp' a)selge/j, eiåt' au)to\n o( paiÍj qu/raze
e)cagagwÜn eÃxonta kloio\n pare/dwken Oi¹neiÍ.
Mas vamos descrever o regime que os aduladores têm junto a vós;
Mas ouçai como somos homens elegantes em relação a tudo,
os quais primeiramente têm um escravo a meu pé,
Ele é dos outros em muitas coisas, mas uma coisa pequena e minha dele.
Possuo estes dois mantos graciosos,
Os quais trocando, sempre conduzo o outro
em direção à ágora. Lá, quando vejo algum homem
Estúpido, rico, logo estou junto dele
E se acontece de o rico falar alguma coisa, isto eu elogio totalmente
E fico estupidificado, parecendo alegrar-me com o discurso.
Em seguida vamos, um de nós pra um lugar, outro pra outro, para um jantar,
Para um pão de cevada estrangeiro, do qual o adulador deve logo dizer muitas coisas
Agradáveis, senão é levado para fora.
Eu sei o que Acestor, o marcado por tatuagem (ie. Antigo escravo), sofreu:
Ele disse uma piada licenciosa e o escravo, expulsando-o com uma coleira de
madeira
Para fora das portas.
Que os parasitas dessa comédia não são figuras anônimas, mas provavelmente
compostos de pessoas famosas, fica claro – conforme vimos no capítulo anterior – pela
presença de Protágoras e Sócrates, assim como pela referência a esse Acestor, que teria sido
um poeta trágico
187
.
Podemos ver aqui alguns paralelos entre os parasitas (cujo líder, nesta comédia, é
sem dúvida Protágoras) e os personagens socráticos das Nuvens. Entre os paralelos, ambos
parecem pobres; este parasita, por exemplo, possui apenas dois mantos, os quais ele troca dia
sim dia o para ir à ágora, o que nos remete imediatamente a uma passagem que já citamos
das Nuvens, onde Sócrates rouba na mesma ágora um manto. A referência a Sócrates e a sua
forma de vestir também é reproduzida em outro fragmento
188
de Amípsias, que pergunta a
Sócrates onde ele conseguiu o seu manto. Não apenas Sócrates e Parmênides estão presentes
nesses paralelos, mas também Pródico, cujas referências na comédia são extremamente
reduzidas. Também possuímos um verso que se refere ao uso ou não de um manto na comédia
de Aristófanes Ταγηνίσται, que significa “os fritadores” (τάγηενον é o nome da frigideira em
grego) e provavelmente trata de aduladores e parasitas.
Parece-nos uma questão demasiado obscura para ser repetida tantas vezes, mas
algo de comum em toda a mentalidade grega quanto ao fato de os mendigos e aduladores
187
Cf. Σ av, 31 OuÂtoj e)stin ¹Ake/stwr, trag%di¿aj poihth/j. Este é Acestor, poeta de tragédia.
188
Fr. 9 Kock
112
serem vestidos pelas pessoas a quem agradam, tendência que podemos verificar
surpreendentemente desde a Odisséia.
Mas não unicamente semelhanças nessa passagem, também uma diferença
fundamental: nas Nuvens, Sócrates e seus companheiros não são adeptos do elogio como
forma de obtenção de alimento. Na verdade, a ausência de alimento é uma de suas
características fundamentais. Pode-se concluir que, embora haja semelhanças entre as duas
figuras, o pensador e o parasita, pois ambos se aproximam pela pobreza, uma distância de
comportamento.
No entanto, é possível que haja uma influência do modelo do parasita na construção
dos personagens “intelectuais”, pois as referências que encontramos nos fragmentos são
bastante abundantes: Sócrates nas Nuvens, no Górgias e nas Aves, Protágoras e talvez Pródico
nos Fritadores. Essa é praticamente a única maneira de se explicar a figura pobre e
maltrapilha dos discípulos de Sócrates na comédia, uma vez que entre as figuras mais
próximas ao Sócrates histórico estavam algumas das mais ricas de Atenas, como Crítias,
Alcibíades e o próprio Platão. Outros personagens intelectuais comuns na comédia também
dificilmente eram maltrapilhos ou eram cercados de πτωχοί (mendigos), caso confiemos nos
valores cobrados por Protágoras e Pródico.
Na verdade, talvez seja exatamente a presença de Sócrates próximo a Crítias, de
Protágoras próximo a Cálias e talvez de Diógenes próximo a Péricles que tenha formado este
modelo. Basta imaginar que, para um antigo, a ligação seria justamente a oposta, seria o
φροντιστής que viveria junto do aristocrata e não esse que buscaria viver perto do sábio. É
certa a dependência econômica destas figuras e dos poetas, como é visto na referência a um
dos poetas trágicos na passagem de Êupolis, ou seja, a dependência que filósofos e poetas
tinham do mecenato e da patronagem dos ricos. Isso é demonstrado em atitudes como o
suporte financeiro para o estabelecimento de coros, o financiamento da produção de obras
literárias ou o pagamento das lições dos sofistas.
Isso explicaria principalmente as aparições de Sócrates e Protágoras nas comédias Os
Parasitas e Conno. No entanto, nas Nuvens a situação é um pouco diferente. Especialmente
importantes são os versos 175-9:
{Ma.}e)xqe\j de/ g' h(miÍn deiÍpnon ou)k hÅn e(spe/raj.
{St.} eiåe(n. ti¿ ouÅn pro\j taÃlfit' e)palamh/sato;
{Ma.}kata\ th=j trape/zhj katapa/saj lepth\n te/fran,
ka/myaj o)beli¿skon, eiåta diabh/thn labw¯n,
e)k th=j palai¿straj qoi¹ma/tion u(fei¿leto.
113
Aluno: Ontem à noite não tivemos jantar
Estrepsíades: O que então arranjastes como alimento?
Al: sobre a mesa, espalhando uma sutil cinza,
tendo sovado o pãozinho e em seguida, tomando um compasso,
roubou o manto da palestra.
Pela citação do manto e da comida fica claro que Aristófanes está trabalhando com a
tradição, basta lembrar do fragmento 9 de Amípsias que citamos no segundo capítulo. Aqui,
no entanto, Sócrates que sofre dos dois problemas básicos do parasita, quais sejam, comida
e roupa não atua como um parasita, mas vale-se de outro tipo de artifício: o roubo. Ou seja,
Sócrates deixa de ser um parasita, ou um mau parasita como no fragmento de Amípsias, e
torna-se uma espécie de marginal.
A caracterização de Eurípides e de outras figuras culturais certamente também
ajudou a compor a figura do ‘intelectual’ na comédia. Nos Acarnenses, por exemplo,
Eurípides surge em cena vestido de mendigo e falando sobre pensamentos refinados e com
distância das coisas terrenas, o que tem uma semelhança mais do que tópica com a entrada de
Sócrates nas Nuvens. Além disto, a posição de Eurípides como representante de uma
vanguarda cultural faz com que ambas as figuras freqüentemente sejam colocadas em
paralelo.
5.5. AS COMÉDIAS “FILOSÓFICAS” NA DÉCADA DE 420 A.C.
Vemos então que a formação do personagem do intelectual é parcialmente baseada
nas afirmações dos próprios e em parte baseada em outras figuras, como o parasita e o
“modernista”. Apesar disso, não estão na comédia pelo mesmo motivo e tampouco pela
comédia de costumes trata-se, mais propriamente, de um tipo particular de crítica cultural.
Mas as Nuvens não são a única comédia a tratar deste assunto; na verdade, possuímos um bom
número de comédias que se referem e tratam da filosofia e do conflito entre os dois tipos de
educação: As Cabras e Os Aduladores de Êupolis, Os Convivas e as Nuvens de Aristófanes,
Conno de Amípsias, Os que vêem tudo de Cratino. Todas apresentam um outro dado em
comum: As Cabras são anteriores à 89ª Olimpíada, ano de morte de Hipônico, isto é, anterior
a 424 a.C.; Conno e As Nuvens, como bem sabemos, são de 423 a.C.; não sabemos a data dos
Aduladores, mas ela não se afasta muito de 422, por causa da morte de Protágoras e sua
presença em Atenas; Os Convivas de Aristófanes o aludidos nos Acarnenses, de 425 a.C.;
Cratino morreu em 420, portanto sua comédia não pode ser posterior a isso. Ou seja, todas as
comédias datam do período entre 426 e 422, que é extremamente reduzido. Vimos uma longa
114
série de obras que tratavam do tema da educação, a maioria destacando a filosofia ou a
sofística como um dos meios de destaque dessa nova educação. A quê devemos tal
concentração de comédias sobre um mesmo tema? Por qual motivo surgiram tantas comédias
em um tão curto período de tempo para depois o tema ser completamente esquecido pelos
poetas cômicos?
Conseqüências da Guerra do Peloponeso
Podemos imaginar que a resposta pode ser encontrada na história ateniense. Pois a
década de 420 a.C. em Atenas é marcada por um único fato: a Guerra do Peloponeso, que
provocou uma série de mudanças sociais na cidade, algumas das quais sem dúvida tiveram
efeito na mudança do seu ambiente cultural. Um fato importante foi a mudança de toda a
população da Ática para dentro das fortificações de Atenas, fato que constitui o principal
motivo do coro dos acarnenses, na comédia homônima de Aristófanes, e que nos é
confirmado por Tucídides
189
.
Ora, podemos imaginar também que tal fato tenha mudado de forma considerável a
vida em Atenas. Jovens que antes passavam a vida em atividades tradicionais, afastados do
centro da cidade, agora estão juntos nela e em contato com toda a agitação e inovação na
cidade mais importante da Grécia. Não é à toa que duas das comédias desse grupo, As Cabras
e As Nuvens, apresentem como personagens principais velhos do campo que, agora obrigados
a viver na cidade, entram em contato com esse novo tipo de educação que se difere e contesta
a educação tradicional.
Atenas podia estar em guerra, mas a situação financeira da cidade de maneira alguma
estava desesperadora; os impostos dos aliados constituíam uma imensa soma de dinheiro, que
ainda era somada aos dividendos da própria cidade
190
, o que fazia dela a cidade
financeiramente mais rica e estável da Grécia. A guerra prejudicava relativamente pouco, e se
restringia a pequenas devastações na periferia da Ática situação que apenas contribuía para
as insatisfações dos acarnenses, mas jamais da população ática em geral. E mesmo essas
invasões periódicas diminuíram de freqüência e mesmo deixaram de acontecer depois de 425.
É certo que a guerra continuava, mas com a freqüente vantagem ateniense até 425,
quando a cidade pôde ditar os termos de um acordo de paz, que não foi concluído pela
189
Tuc. I, 20-2.
190
Tuc. 2, 13; Xenofonte, Anábase VII, 1; Aristófanes, Vespas 657.
115
ambição e belicismo exagerado de Cléon
191
. As maquinações espartanas e a habilidade de
Brasidas, é certo, ainda podiam produzir um certo incômodo à cidade, mas tudo isto acontecia
muito longe da Ática, na Macedônia e na Trácia. Enquanto os tributos do vasto império
ateniense e os carregamentos de trigo estivessem garantidos, nada poderia afetar o equilíbrio
de Atenas. Com a guerra longe de casa e a riqueza ainda chegando, não havia nada de
particularmente inquietante. De tal modo que os adversários da guerra eram freqüentemente
acusados de favorecerem os espartanos, como demonstra claramente o fragmento 488 de
Aristófanes citado mais acima.
Ou seja, nos anos em que essas comédias foram produzidas, todas as preocupações
mais imediatas que a cidade teve durante a primeira fase da guerra já estavam para trás,
especialmente depois do fim da peste ateniense, e mesmo os interesses da sua população
puderam se afastar da situação militar. Enquanto a questão da guerra era de vital importância
para os Acarnenses e torna-se novamente central na Paz, a única referência nas Nuvens,
bastante sutil, com relação às outras cidades-estados, encontra-se em uma leve piada sobre o
mapa da Grécia
192
. No mais, Atenas encontrava-se aparentemente no auge da sua glória e
riqueza.
Esse estado de coisas veio se juntar ao fato de que, ainda em situação de guerra,
Atenas era o centro de grande atividade diplomática e atraía um grande número de
embaixadores de todo o mundo grego, em especial das ilhas. A embaixada de Leontino,
cidade-estado na Sicília, foi liderada por Górgias, e, segundo as próprias palavras de
Tucídides, causou grande impressão no público ateniense. É um fato famoso na história grega
e é lembrado pelo historiador que pouco interesse tem por filosofia
193
. Pródico de Ceos
também fez grande parte de sua fama em Atenas devido a suas embaixadas
194
, e se nos
confinamos aos dados de apenas dois sofistas, isso se apenas pela fragilidade das nossas
fontes, porque certamente o número de retores (especialmente da Sicília, a origem da retórica
segundo Aristóteles) e sofistas que foram para Atenas durante a guerra tenha talvez chegado
às dezenas.
Tal conjunção de fatores grande concentração de riqueza na cidade, coabitação na
cidade murada, fim de algumas preocupações com a guerra e grande número de sofistas
visitando a cidade permitiu que se criasse o ambiente propício para que a sofística se
expandisse e ganhasse importância.
191
Cf. Acarnenses 652-4.
192
Aristófanes, Nuvens, 202-216
193
Filóstrato, Vidas dos Sofistas V.
194
Filóstrato, Vidas dos Sofistas, XII.
116
Fim de uma moda
Quais seriam, então, os fatores para o fim dessa voga e para que essa tivesse deixado
de atrair o interesse dos comediógrafos? Os motivos também o variados, sendo a perda da
novidade cômica o primeiro que podemos contar, pois a questão da novidade e da
inventividade sempre foi um tema importantíssimo para um comediógrafo competente, e a
parábase das próprias Nuvens dá um exemplo disto:
a)ll' ai¹eiì kaina\j i¹de/aj ei¹sfe/rwn sofi¿zomai
ou)de\n a)llh/laisin o(moi¿aj kaiì pa/saj decia/j:
Mas eu sou hábil, sempre apresentando novas idéias,
Em nada semelhantes entre si e todas engenhosas
Aristófanes orgulha-se de sempre levar ao teatro idéias e invenções teatrais novas, e
essa afirmação é refeita em diversas outras parábases. Com efeito, a afirmação contrária, de
que um poeta não era original e apenas repetia idéias de outros era vista como suficientemente
destrutiva para aquele, como sugerem os versos seguintes, em que Aristófanes acusa Êupolis:
EuÃpolij me\n to\n Marika=n prw¯tiston parei¿lkusen
e)kstre/yaj tou\j h(mete/rouj ¸Ippe/aj kako\j kakw½j,
prosqeiìj au)t%½ grau=n mequ/shn tou= ko/rdakoj ouÀnex', hÁn
Fru/nixoj pa/lai pepo/hx', hÁn to\ kh=toj hÃsqien.
eiåq' àErmippoj auÅqij e)poi¿hsen ei¹j ¸Upe/rbolon,
aÀlloi t' hÃdh pa/ntej e)rei¿dousin ei¹j ¸Upe/rbolon,
Êupolis, arrastou primeiro o Maricas
O vil, mal revirando os meus cavaleiros,
E nele colocando uma velha embriagada por causa do cordax (tipo de dança), a que
Frínico escreveu antigamente, que a baleia come
Mas Ermipo, por seu lado, escreveu contra Hipérbolo
E agora todos escarnecem Hipérbolo
A afirmação da novidade em detrimento da repetição é uma das características
fundamentais de qualquer gênero artístico, ainda mais um gênero tão especial quanto o teatro
grego, que raramente era representado, no caso da comédia, apenas duas vezes ao ano. Se a
repetição de temas (que afinal é um dos temas desta dissertação) nem sempre era vista com
bons olhos, é natural que a exagerada repetição de um tema fosse vista como algo excessivo e
deixasse de ter qualquer valor.
117
Talvez seja esse um dos motivos para As Nuvens ter fracassado em sua apresentação
e ter ficado com o terceiro lugar. reparamos nas diversas semelhanças entre ela e outras
comédias, especialmente As Cabras de Êupolis, que era anterior às Nuvens, assim como
grande parte das comédias citadas. Além disso, havia semelhanças muito fortes entre as
Nuvens e as Cabras com relação à temática, sendo que essa última dizia respeito a um velho
agricultor rústico aprendendo uma nova educação, possivelmente sofística, e também
continha cenas de aula e conflitos entre tradição e modernidade. Essas semelhanças poderiam
soar extremamente repetitivas para os juízes – que ainda viram uma comédia com uma
temática parecida, o Conno, ser representada no mesmo ano
195
- e contar como parte das
razões para o fracasso das Nuvens..
Além disso, a situação política muda radicalmente: a paz de Nícias, celebrada em
421, certamente fez com que o foco se afastasse completamente da política, e qualquer crítica
à formação dos habitantes talvez tenha perdido sentido. Com a derrota da expedição siciliana
que fez Atenas perder quase toda sua frota e a base de seu império, dando início pouco a
pouco à defecção de cada uma de suas cidades aliadas toda riqueza e bem estar sofrem um
terrível abalo. É o momento da penúria, da redução das forças do teatro, quando começa o fim
de sua vanguarda cultural, cujo exemplo claro está na mudança de Eurípides e outras figuras
artísticas para a corte de Argelau, na Macedônia. Nesse contexto, perde-se o sentido de falar
de sofistas e pensadores que pouco importam para a solução definitiva dos problemas da
cidade.
um terceiro motivo, que é muito mais complicado de se julgar do que os dois
primeiros: parece que houve uma onda de perseguição a pensadores no final da década de
420. Há uma tradição de que Protágoras teria morrido ao fugir de uma condenação em
Atenas
196
, possivelmente por impiedade. Existe também uma tradição de que Pródico teria
morrido bebendo cicuta em Atenas. quem duvide dessas duas tradições, pelo fato de que
ambas derivam da tradição da morte de Sócrates e não existem em fontes anteriores a
Filóstrato. No caso de Pródico, certamente a história parece se assemelhar em demasia aos
fatos descritos no Fédon para ser verdade, considerando que era um sofista famoso pela boa
195
Parte deste argument é de STOREY
, 2004.
196
Cf. Filóstrato vida dos sofistas, X: dia\ me\n dh\ tou=to pa/shj gh=j u(po\ ¹Aqhnai¿wn h)la/qh w¨j
me/n tinej, kriqei¿j, w¨j de\ e)ni¿oij dokeiÍ, yh/fou e)penexqei¿shj mh\ kriqe/nti. nh/souj de\ e)c
h)pei¿rwn a)mei¿bwn kaiì ta\j ¹Aqhnai¿wn trih/reij fulatto/menoj pa/saij qala/ttaij
e)nesparme/naj kate/du ple/wn e)n a)kati¿wi mikrw½i. E por isto, escapou por toda a terra dos
atenienses depois de ter sido condenado, como parece a alguns, não tendo sido levado a voto ao réu. E trocando
as ilhas pelo continente, e vigiando as trirremes dos Atenienses espalhadas por todos os mares afundou
navegando em um pequeno navio.
118
reputação que granjeou. No entanto, possuímos um trecho de um diálogo pseudo-platônico
197
que mostra uma certa animosidade contra Pródico, o que pode revelar que algo aconteceu por
volta daquela época. Também existe, e provavelmente provém da mesma época, uma tradição
de perseguição a certos físicos, como Diógenes de Apolônia, que é a fonte de boa parte das
doutrinas físicas das Nuvens, e que teria abandonado Atenas pela animosidade gerada por suas
opiniões
198
.
Esses três testemunhos de perseguição a intelectuais, abrangendo todos os ramos
criticados nas Nuvens, nos revelam que uma certa animosidade contra essas figuras existia
em Atenas. É difícil saber se ela foi gerada pela comédia, como quer o Sócrates de Platão na
Apologia
199
, ou se, mais provavelmente, a comédia aproveitou-se dela. O que podemos
concluir é que depois desta “caça às bruxas” e de toda esta violência, certamente deixou de
fazer sentido a comédia de tais figuras, e por conseqüência, o escárnio e o ataque dirigido a
elas.
5.6. PADRÕES DA CARACTERIZAÇÃO DO FILÓSOFO NA COMÉDIA ANTIGA
Possivelmente, já foi escrito mais a respeito das Nuvens do que qualquer outra
comédia pertencente à Comédia Antiga e Moderna incluindo as de Aristófanes –, pois trata-
se de uma obra que não cessa de fascinar e intrigar os pesquisadores. No entanto, é preciso
seguir a sugestão de Macdowell
200
e notar que talvez nós supervalorizemos os interesses e o
conhecimento do público de Aristófanes. Uma mostra disso é o resultado da comédia, um
terceiro lugar que revela que, em seu tempo, a comédia foi julgada inferior tanto à de Cratino,
quanto à de Amípsias. É bastante provável que o público de Atenas tivesse bem menos
interesse do que nós temos nas doutrinas filosóficas do século IV a. C.
Uma demonstração disso está na diferença de uso das doutrinas filosóficas na
Comédia Média. No século quarto, as doutrinas dos filósofos que aparecem talvez com maior
freqüência, são citadas com uma precisão maior e com uma atribuição correta. n’As
197
Axioco, 366c.
198
Cf Diógenes Laércio IX, 57: Dioge/nhj ¹Apolloqe/midoj ¹Apollwnia/thj, a)nh\r fusiko\j
kaiì aÃgan e)llo/gimoj. hÃkouse de/, fhsiìn ¹Antisqe/nhj , ¹Anacime/nouj. hÅn de\ toiÍj xro/noij
kat'¹Anacago/ran: tou=to/n fhsin o( Falhreu\j Dhmh/trioj e)n th=i Swkra/touj
a)pologi¿ai dia\ me/gan fqo/non mikrou= kinduneu=sai ¹Aqh/nhsin. Diógenes, filho de Apolótemis de
Apolônia, homem físico e muito venerado. Diz Antístenes que ele foi aluno de Anaximenes. E viveu na época de
Anaxágoras, Demétrio Falério diz na Apologia de Sócrates que ele teve um pouco de perigo em Atenas por causa
de uma grande inveja.
199
Apologia, 17 c
200
MCDOWELL, 1993:17
119
Nuvens e nas outras comédias contemporâneas, um traço de tradição e convenção nas
doutrinas que os filósofos esposam, uma vez que vemos dois filósofos diferentes, Sócrates e
Hípon, defendendo a mesma doutrina, e figuras como Protágoras em meio a demonstrações de
medicina e fisiologia que pouco têm em comum com a doutrina e com os interesses que a
figura histórica esposava. Além disso, todas as figuras também apresentam um traço comum
de caracterização que muito se aproxima do parasita. Todos os personagens demonstram um
grande interesse pelos assuntos da mesa, seja pela abundância ou ausência de comida.
Podemos ver, graças a esses dois fatores, que a caracterização do filósofo, ou mais
precisamente, do intelectual, na Comédia Antiga, é quase que inteiramente dependente da
tradição cômica. É verdade que Aristófanes soube introduzir algumas características
particulares em seu Sócrates, mas tais particularidades, como o olhar característico e a sua
doutrina da maiêutica, são completamente ofuscadas pela altíssima dose de tradicionalismo
que cobre o personagem. Não temos nenhuma informação de que Sócrates tenha defendido
que o vórtice havia suplantado Zeus, nem tampouco que o mundo era como um forno. Tais
afirmações são até mesmo contraditórias e revelam que o interesse filosófico e doutrinário na
caracterização é extremamente reduzido nas Nuvens.
5.7. POR QUE SÓCRATES?
O discurso fraco e o discurso forte
As atividades desenvolvidas por aquilo que depois veio a se chamar sofística são
ligeiramente mais interessantes para Aristófanes do que a especulação filosófica, mas a sua
importância se menos pelas suas afirmações do que pelo impacto que seus ensinamentos
traziam para a cidade. Uma afirmação tradicionalmente sofística é um dos temas principais da
comédia, que é o debate entre o argumento forte e o argumento fraco.
Tal expressão e a afirmação de que o argumento fraco poderia vencer o argumento
forte deriva de Protágoras. Como nos informa Aristóteles na sua Retórica:
kaiì <to\ to\n hÀttw de\ lo/gon krei¿ttw poieiÍn> tou=t' e)sti¿n. kaiì
e)nteu=qen dikai¿wj e)dusxe/rainon oi¸ aÃnqrwpoi to\ Prwtago/rou
e)pa/ggelma: yeu=do/j te ga/r e)stin kaiì ou)k a)lhqe\j a)lla\
120
faino/menon ei¹ko/j, kaiì e)n ou)demia=i te/xnhi a)ll' e)n r(htorikh=i kaiì
e)ristikh=i.
E fazer do discurso mais fraco o mais forte” é isto, e nisto justamente os homens
irritaram-se com a promessa de Protágoras: pois é uma mentira e o uma verdade,
mas uma probabilidade aparente e (presente) em nenhuma arte que o na retórica e
na erística.
Ele afirma que fazer do discurso fraco o mais forte o é um argumento verdadeiro, mas sim
apenas algo que parece provável, e não uma verdade, mas uma mentira. E é por tal motivo
que Aristófanes também chama o discurso fraco de discurso injusto.
Entretanto, algumas coisas devem ser ditas antes de se aceitar tal proposta: a primeira
é que a única personagem que chama o discurso fraco de discurso injusto é Estrepsíades, um
outsider cujos interesses estão principalmente em tirar vantagem ilícita dos ensinamentos do
φροντιστήριον. Além disso, se formos analisar o significado primário do discurso fraco,
podemos ver que ele não pressupõe exatamente um discurso injusto, mas apenas o discurso
que parece menos apropriado para ganhar o favorecimento do seu público. Isto é, estes nomes,
discurso fraco e forte, fazem sentido se o antilogias que estão em disputa no caso da
Grécia, a disputa forense como estão, de fato, na comédia de Aristófanes
201
. O discurso
fraco é somente aquele que, dentro desta disputa, parece mais frágil.
Munidos desta concepção, podemos ver como esta é uma característica central de
todo o grupo sofístico. As obras de Górgias como Elogio de Helena e Defesa de Palamedes
são exemplos literários e epidíticos da defesa de um discurso fraco e não pressupõem a defesa
de um argumento essencialmente injusto, imoral. Um discurso fraco, na verdade, pode até
defender doutrinas que jamais seriam aceitas como injustas, o exemplo mais característico
disso é o discurso mais famoso de Pródico, que é a Escolha de Héracles, tal qual nos relata
Xenofonte nos Memoráveis.
A Escolha de Héracles, que é famosa pelo seu elogio à virtude, não deixa de ser uma
forma de discurso fraco, pois a proposta do Vício é extremamente sedutora:
¸Orw½ se, wÕ ¸Hra/kleij, a)porou=nta poi¿an o(do\n e)piì to\n bi¿on
tra/phi. e)a\n ouÅn e)me\ fi¿lhn poihsa/menoj eÀphi, th\n h(di¿sthn te
kaiì r(a/isthn o(do\n aÃcw se, kaiì tw½n me\n terpnw½n ou)deno\j
aÃgeustoj eÃsei, tw½n de\ xalepw½n aÃpeiroj diabiw¯sei.
EnnoeiÍj, ¸Hra/kleij, w¨j xaleph\n kaiì makra\n o(do\n e)piì ta\j
eu)frosu/naj h( gunh/ soi auÀth dihgeiÍtai; e)gwÜ de\ r(aidi¿an kaiì
braxeiÍan o(do\n e)piì th\n eu)daimoni¿an aÃcw se.
201
Que eles estejam caracterizados como galos de briga apenas reforça tal dado.
121
Eu te vejo, ó Héracles, em dificuldade para qual via da vida se voltar. Se me
seguires, fazendo-me amiga, pela mais agradável e fácil via vou te conduzir e não
deixarás de provar que será nada agradável e atravessarás a vida sem a experiência
das dificuldades.
Tem em mente, ó Héracles, quão difícil e longa é a via para a prudência que esta
mulher te explica. Eu te conduzirei pela via fácil e curta para a felicidade.
Em compensação as promessas da Virtude são bem menos recompensadoras:
ou)k e)capath/sw de/ se prooimi¿oij h(donh=j, a)ll' hÂiper oi¸ qeo
die/qesan ta\ oÃnta dihgh/somai met' a)lhqei¿aj. tw½n ga\r oÃntwn
a)gaqw½n kaiì kalw½n ou)de\n aÃneu po/nou kaiì e)pimelei¿aj oi¸ qeoiì
dido/asin a)nqrw¯poij, a)ll' eiãte tou\j qeou\j iàlewj eiånai¿ soi bou/lei,
qerapeute/on tou\j qeou/j, eiãte u(po\ fi¿lwn e)qe/leij a)gapa=sqai, tou\j
fi¿louj eu)ergethte/on, eiãte u(po/ tinoj po/lewj e)piqumeiÍj tima=sqai,
th\n po/lin w©felhte/on, eiãte u(po\ th=j ¸Ella/doj pa/shj a)cioiÍj e)p'
a)reth=i qauma/zesqai, th\n ¸Ella/da peirate/on euÅ poieiÍn,
Não vou te enganar com exórdios de prazer, mas com o que os deuses dispuseram
vou narrar os fatos com verdade. Pois os deuses não deram aos homens nada de belo
e bom sem sofrimento e cuidado, mas se desejas que os deuses te sejam propícios,
deves servir aos deuses, e se desejas ser amado pelos amigos, deves ajudá-los, se
queres ser honrado por alguma cidade, deves ser útil a ela, e se valorizas ser
admirado em toda a Grécia pela virtude, deves ousar fazer o bem à Grécia (...)
Héracles faz a escolha daquilo que aparenta ser o mais difícil e menos proveitoso, escolhendo
uma vida de sofrimento em lugar de uma felicidade mais tangível. Isto também é uma forma
de discurso fraco. Não que ele seja, efetivamente, um discurso mais forte ou mais fraco
questionamento presente na filosofia de Platão e, posteriormente, na de Aristóteles mas
apenas o tipo de discurso que aparenta ser mais fácil de ser defendido ou aceito. No caso, está
fora mesmo da área jurídica, mas apenas marca um tipo de discurso que aparenta ser mais
difícil de ser defendido.
Os dois discursos de Sócrates
Sócrates também defendia, de certo modo, alguns discursos fracos. Se formos
analisar algumas das afirmações do Sócrates platônico, inclusive algumas dentre as mais
prováveis de serem atribuídas ao Sócrates histórico, muitas delas se enquadram como discurso
fraco. Alguns exemplos seriam a famosa frase encontrada no Górgias, a qual diz que um
tirano e um retor são os que menos têm poder em uma cidade e são os mais infelizes dos
122
homens
202
; a noção de que o homem só faz aquilo que ele julga bom; a história do anel de
Giges na República, assim como muitas outras idéias que vão de encontro à mentalidade
grega
203
e caracterizam-se como um exemplo típico de um discurso que, em contraste com sua
oposição, pareceria como o mais fraco. Ou seja, se o Sócrates real praticou minimante o que o
Sócrates platônico faz, para todos os efeitos Sócrates repetiria, também ele, a teoria do
argumento fraco. Portanto, Aristófanes não está completamente equivocado quanto ao fato de
Sócrates ensinar o argumento fraco.
Também devemos notar que se o discurso fraco não defende o que Sócrates defendia,
aquilo que ele praticava era em muitas ocasiões atribuído a Sócrates: o desprendimento dos
valores costumeiros da sociedade grega. Isso o significa que Sócrates era um relativista tal
qual o Parmênides de Platão – ou, para todos os efeitos, o Parmênides histórico –, mas que os
ensinamentos de Sócrates são, de certo modo, contrários aos ditos da sociedade ateniense.
Pegue-se o discurso de abertura do argumento fraco, que já citamos: lá está escrito de
forma bem explícita quais são as principais atividades nas quais um jovem deve se concentrar:
o aprendizado (decorado) de poemas, a reprodução de formas musicais tradicionais e a prática
da ginástica. Não podemos voltar nos textos de Platão e Xenofonte e tentar enxergar algo que
o Sócrates histórico possa ter pensado sobre cada uma dessas atividades, mas podemos
constatar com toda certeza que, ao contrário de seus contemporâneos, Sócrates não
considerava a excelência e a prática desses atos algo essencial para a formação de um homem.
Se Sócrates considerava a alma superior ao corpo, segue-se daí que as atividades intelectuais
são superiores às atividades físicas, e com isto o Sócrates de Aristófanes está bastante de
acordo. Além disso, a identidade entre virtude e conhecimento já de antemão pressupõe que a
busca por conhecimento deva ser uma atividade central na vida de qualquer pessoa, algo que
também é central no Sócrates da comédia, ao menos de Aristófanes.
Os sofistas, decerto um pouco menos interessados nos próprios assuntos de Sócrates,
como a importância da alma, também seguiam pelo mesmo caminho nesses dois assuntos.
Afinal eram professores de retórica e mesmo alguns deles afirmaram a total onipotência do
lógos, ou seja, do discurso, da razão, sobre o mundo. Neste sentido, eles em nada se opõem a
202
Platão, Górgias, 472e Kata\ de/ ge th\n e)mh\n do/can, Pw½le, o( a)dikw½n te kaiì o( aÃdikoj
pa/ntwj me\n aÃqlioj, a)qliw¯teroj me/ntoi e)a\n mh\ did%½ di¿khn mhde\ tugxa/nv timwri¿aj
a)dikw½n, hÂtton de\ aÃqlioj e)a\n did%½ di¿khn kaiì tugxa/nv di¿khj u(po\ qew½n te kaiì
a)nqrw¯pwn. De acordo com a minha opinião, ó Polo, aquele que comete injustiça e o injusto são
completamente desgraçados, ainda mais se não forem julgados nem encontrem punição por serem injustos,
menos desgraçados se forem julgados e se encontrarem justiça da parte dos homens e dos deuses.
203
A própria construção dos diálogos República e Górgias reforçam a dificuldade com que essas idéias podem
ser aceitas, com Polo e Gláucon expressando sua descrença na primeira proposição de Sócrates.
123
Sócrates ou seus discípulos, tais quais Xenofonte, Platão, Antístenes e os outros socráticos
menores.
A oposição à educação tradicional é marcante e isso basta para poder caracterizar
Sócrates como um representante importante da tradição e dos ensinamentos destes
“modernistas” que eram os sofistas, e mesmo de todo e qualquer “modernista”. Isso se dá pela
negação central dos valores tradicionais, que Sócrates de certo modo compartilha com todos
estes inusitados colegas.
Σωκράτης Αθηναῖος
Mas por qual motivo Aristófanes vai introduzir justamente este sofista” mais
inusitado como a figura central da sua comédia? Se tal crítica é muito ampla e pouco tem a
ver em específico com Sócrates, qual o motivo da sua inclusão nas Nuvens e de ele ser o único
verdadeiro κωμῳδούμενος da comédia? A principal explicação para isto está, a nosso ver,
em uma das características fundamentais da Comédia Antiga ateniense.
A comédia de Aristófanes, Cratino e Êupolis é, fundamentalmente, uma comédia
política. O principal objetivo das suas críticas é o de influenciar e corrigir a cidade. Era essa a
função que Aristófanes e seus parceiros reclamavam para si. Entretanto, a maior parte de
todas estas figuras que citamos era de estrangeiros: filósofos como Diógenes de Apolônia, na
Jônia, Protágoras de Abdera, na Trácia, Górgias de Leontino, na Sicília e Pródico da ilha de
Ceos. Alguns deles sequer chegaram a fixar residência em Atenas, como sabemos pelas
biografias de Protágoras e Górgias. Sócrates contrasta com todos os outros por ser o único
ateniense que em toda sua vida morou em Atenas.
vimos como as invectivas são de tom bem diferente quando destinadas contra
Górgias. Ainda que famoso pela pureza de sua língua e apesar de bastante famoso e popular
em Atenas naquela época, como Tucídides nos informa dos resultados da sua embaixada em
Atenas, ele é da raça de bárbaros”, ou seja, visto como um estrangeiro, alheio à cidade. É
sabido também que ele jamais residiu em Atenas, tendo obtido sua fama por meio dos
famosos discursos epidíticos, como a Defesa de Palamedes ou o Elogio de Helena, e por meio
de suas embaixadas em favor de sua cidade de Leontino. Praticamente qualquer crítica mais
específica que Aristófanes poderia fazer com relação a Górgias teria pouca importância, pois
ele certamente não estaria na audiência e a própria natureza da constituição política ateniense
serviria de defesa para Górgias.
124
Sócrates é, portanto, um alvo muito mais cômodo para Aristófanes, pois é ateniense
do demo de Alopece e participa do exército ateniense. Para os comediógrafos é muito mais
fácil o usarem como alvo, pois ele estava todos os dias na ágora, e todos o conheciam de vista,
sendo portanto mais fácil compor um personagem com suas características individuais.
Também é mais fácil de acusar um ateniense de corromper a juventude e negar a religião
tradicional do que uma figura extravagante que visitava Atenas raramente. Por esse motivo,
Aristófanes escolheu Sócrates, que certamente era o pensador ateniense mais famoso em seu
tempo, como o seu modelo de intelectual.
5.8. AS NUVENS EM SEU TEMPO
Mas não foi uma criação ex nihilo que colocou Sócrates em cena, pois Aristófanes
aproveita-se de uma longa série de personagens, temas e frases que estavam em uso na
Comédia Antiga. Esta dissertação espera ter apresentado um elemento de prova para uma
proposição que recentemente ganhou voga, mas que ainda não foi totalmente demonstrada,
que é a de que pouca inovação na comédia e de que os comediógrafos trabalham com um
estoque comum de temas, sendo que a habilidade do poeta está menos na total inventividade e
sim no uso criativo desta tradição.
Tal afirmação poderia ser contestada se tivéssemos em mente o que Aristófanes diz
em suas parábases, assim como algumas das novidades que parecem surgir em suas comédias
mais tardias. No entanto, ela demonstra com grande segurança o que ocorre para a criação dos
personagens cômicos das Nuvens: o aproveitamento de uma temática já existente, fazendo uso
de um estoque comum de personagens e piadas. Vemos isso pela repetição quase literal desta
temática na figura de Sócrates, na caracterização parecida entre Sócrates e Protágoras, na
repetição do tema do velho que busca aprender uma educação moderna e nas doutrinas
filosóficas que parecem migrar de boca a boca nos pensadores, mantendo-se, entretanto, as
mesmas.
Mas isto não quer dizer que As Nuvens são somente um aproveitamento desse
estoque comum de situações cômicas. Aqui podemos traçar algumas características que
interpretamos como originais e particulares da comédia de Aristófanes.
A primeira é a comparação dos personagens do φροντιστήριον com um grupo de
iniciados em algum rito de mistério. Esse grupo é uma bem vinda mudança com relação ao
125
ambiente de banquete que vemos n’Os Aduladores de Êupolis e n’Os Convivas de
Aristófanes, e, possivelmente, nas Cabras de Êupolis e no Conno de Amípsias. Isso o
significa que a temática tenha sido abandonada, porque ela reaparece nas Nuvens e
Aristófanes tem uma certa dificuldade em escondê-la.
Este jogo com a tradição religiosa possibilita tratar Sócrates de uma maneira bem
mais ambígua e fazer a crítica à sua impiedade ser ainda mais correta. Pois o Sócrates de
Aristófanes não apenas rejeita as divindades tradicionais, como fizeram Xenófanes e, em certa
medida, todos os filósofos jônicos, mas ele as rejeita e insere novas divindades em seu lugar,
fazendo uso de todo o vocabulário religioso. O contraste é cômico, mas também
profundamente crítico e possivelmente contribuiu mais do que qualquer outra acusação dos
cômicos para o julgamento de Sócrates.
Um outro aspecto que podemos considerar novo e de grande importância na comédia
é o seu final. Sabemos que a comédia normalmente termina com uma festa, muitas vezes com
as cenas finais apresentando uma coesão lógica entre si bastante esparsa. Um exemplo típico
desse final cômico são as últimas cenas das Vespas, em que a ação termina ao fim do agón, e
as últimas cenas são somente cenas cômicas que representam Filocléon em sua nova
ocupação, como membro do banquete. Ao contrário dessa tendência, bastante comum nas
obras que possuímos de Aristófanes, a ação principal d’As Nuvens vai até ao final da
comédia. Aristófanes soube intercalar as cenas de abuso, que são típicas da parte pós-
agonística, dentro do contexto da comédia e na cena final do incêndio no φροντιστήριον.
126
CONCLUSÃO
O problema filológico mais discutido de Aristófanes consiste nas razões pelas quais
Sócrates foi caracterizado tanto como um filósofo naturalista, ou professor que recebe para
ensinar retórica argumentativa, quanto como um modernista que rejeita a religião tradicional.
Muitas teorias a este respeito foram publicadas, e algumas procuram dizer que Sócrates na
verdade teria mudado em sua vida, e passado de um interessado em assuntos naturais para o
filósofo que conhecemos, enquanto outras, como aquelas professadas por Dover, tentam dizer
que na verdade Aristófanes não está interessado nas diferenças e apenas ataca um modelo
“tradicional” de pensador. Ainda, segundo o teórico, As Nuvens seriam um exemplo de como
a poesia e a filosofia são formas alternativas de saber, e Aristófanes estaria tentando mostrar
como a sua forma de saber é superior à filosofia.
Com esse trabalho, tentamos nos distanciar o máximo possível dessas três tendências
a fim de verificar uma quarta possibilidade, que consiste na caracterização de Sócrates como a
caracterização tradicional que a Comédia Antiga reservava aos pensadores. Essa visão pode
ser parecida com a solução de Dover, de que Aristófanes ataca um tipo ideal de filósofo, mas
afasta-se por pretender que Aristófanes não a constrói ex nihilo, mas sim a partir de uma
tradição, já estabelecida na Comédia Antiga, do tratamento dessas figuras.
Dentre as comédias que possuímos em sua integralidade, apenas As Nuvens tratam
desse assunto, sendo que algumas das comédias das quais temos notícia que também tratam
do assunto infelizmente constituem hoje apenas um conjunto reduzido de fragmentos que
demanda uma boa dose de extrapolação e intuição para ser analisado. Encontramos, no
conjunto de pouco mais de uma dezena de fragmentos relevantes, alguns indícios de que, de
fato, a Comédia Antiga tratava os intelectuais de uma maneira semelhante à de Aristófanes.
Encontramos exemplos de uma mesma teoria esposada por Sócrates n’As Nuvens
sendo ensinada por Hípon em uma outra comédia, Os que tudo vêem (Πανόπται), de Cratino.
Vimos, como nos mostram os fragmentos d’Os Aduladores de Êupolis e do Conno de
Amípsias, além de algumas passagens d’as Nuvens e d’as Aves, uma forte proximidade entre a
figura dos filósofos e a figura dos parasitas. É comum do mesmo modo a tendência em criar
adjetivos a partir das mesmas expressões e vocábulos para qualificar todos os personagens,
como δολέσχης, φροντιστής e καταπύγων, “falastrão”, sabichão” e “esculhambado”.
Além disso, é um fator sempre importante na composição dos enredos dessas comédias, a
127
tendência em mostrar que essas figuras contribuíram para a perdição” da juventude, como é
visto no fragmento 488 dos ταγηνίσται de Aristófanes, na premissa geral d’os Aduladores de
Êupolis e n’as Nuvens.
Isso indica que As nuvens e todas as comédias do gênero estão bem fundadas na
discussão educacional, o que nos levou à consideração de outras comédias que portam o tema
educacional, em especial Os Convivas de Aristófanes e As Cabras de Êupolis. Novamente
essas comédias apresentaram semelhanças consideráveis com a peça As Nuvens, semelhanças
identificadas na apresentação de um conflito entre dois tipos de educação: a educação
tradicional, normalmente vista sob um ângulo positivo, e uma nova educação, que é
apresentada sempre como indulgente com seus próprios prazeres, um pouco efeminada e
profundamente imoral.
As Cabras de Êupolis é uma comédia especial, porque semelhanças apresentadas
com As Nuvens ultrapassam a temática e chegam mesmo à composição do enredo da comédia.
Assim como n’As Nuvens, um velho rústico entra em contato com esta nova educação e a
comédia apresenta ao menos uma cena de aula. Além disso, sempre a possibilidade de o
“professor” dessa comédia ser Pródico ou um personagem que aluda ao famoso sofista
Pródico de Ceos.
Como contraste a esse comportamento, vimos os exemplos encontrados na Comédia
Média em uma data não muito afastada da Comédia Antiga e esses, ainda que
parcialmente concordem em alguns pontos com a Comédia Antiga, em muitos pontos são
completamente diferentes: em primeiro lugar, a disputa entre educação tradicional e educação
filosófica ou sofística simplesmente deixou de existir, e a filosofia não é mais vista como uma
inimiga da cidade ou uma moda que ataca os deuses; em segundo lugar, a Comédia Média, ao
contrário da Comédia Antiga, apresenta um verdadeiro interesse pelos conteúdos das
doutrinas dos filósofos e é capaz de citá-los corretamente e entrar em um verdadeiro diálogo
com eles, ao contrário do que vemos n’as Nuvens ou mesmo em outras comédias de que
temos apenas fragmentos. A Comédia dia, por seu lado, apresenta uma maior sutileza nas
caracterizações e está bem mais próxima de representar fielmente as doutrinas e
características particulares de cada escola filosófica em questão.
Acreditamos que todos estes exemplos sejam úteis na futura análise e interpretação
d’as Nuvens. Na verdade eles não invalidam nenhuma análise, apenas colocam em perspectiva
o fato de que As Nuvens fazem parte de uma tradição literária, que deve ser considerada em
qualquer análise desta comédia.
128
Por fim, essa dissertação pretende também apontar um caminho de interpretação para
a Comédia Antiga. Um deles seria buscar nos fragmentos aquilo que podemos encontrar de
paralelo em Aristófanes ou mesmo em outras figuras importantes da Grécia do quinto século.
Pois a Comédia Antiga pode nos ajudar a compreender melhor o ambiente intelectual da
Atenas do quinto século. Restam muitos campos a serem estudados política, literatura,
costumes, etc. – e em todos esses meios a Comédia Antiga pode ser muito útil para a posterior
pesquisa sobre a presença e a visão desses temas na sociedade grega.
No que diz respeito, entretanto, ao estabelecimento da caracterização padrão do
intelectual na Comédia Antiga, resta ainda uma questão, que fica para ulteriores pesquisas, a
de se esta caracterização é particular da Comédia Antiga, ou se ela reflete algum preconceito
ou algum dado popular contra os intelectuais, uma espécie de anti-intelectualismo popular.
Trata-se de uma questão difícil, porque as fontes apontam para diferentes direções:
de um lado, a forte ligação com os parasitas, um estoque pico da comédia, denuncia um
padrão interno à comédia, ou seja, os poetas cômicos se valem de uma caracterização
tradicional dentro do gênero para compor um personagem novo. E também pesa a este favor
alguns dados da filosofia, como as passagens da Apologia e do Teeteto, que se referem à
comédia e aos poetas, não à população em geral. De outro lado, no entanto, encontramos
alguns tipos de paralelos em outras obras que não são ligadas à comédia, como na famosa
fábula do astrólogo, de Esopo
204
. Resta pesquisar, portanto, mais textos do período ou
anteriores (por exemplo, saber o quanto a figura do parasita era típica da comédia, e não
popular) para tentar encontrar, se possível, a resposta para esta questão.
204
Esopo, fábula 40.
129
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