Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
A ARTICULAÇÃO ENTRE POÉTICA E PRÁXIS NO PENSAMENTO DE PAUL RICOEUR:
UM ESTUDO SOBRE O ESTATUTO DA IMAGINAÇÃO NA HERMENÊUTICA DO TEXTO, DA AÇÃO E DO SI
Wanderley Martins da Cunha
BELO HORIZONTE
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
WANDERLEY MARTINS DA CUNHA
A ARTICULAÇÃO ENTRE POÉTICA E PRÁXIS NO PENSAMENTO DE PAUL RICOEUR:
UM ESTUDO SOBRE O ESTATUTO DA IMAGINAÇÃO NA HERMENÊUTICA DO TEXTO, DA AÇÃO E DO SI
BELO HORIZONTE
2008
Dissertação apresentada ao programa de Pós
-
graduação em
Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Filosofia
Linha de pesquisa: Filosofia social e política
Orientador:Prof. Dr. Carlos Roberto Drawin
ads:
WANDERLEY MARTINS DA CUNHA
A ARTICULAÇÃO ENTRE POÉTICA E PRÁXIS NO PENSAMENTO DE PAUL RICOEUR:
UM ESTUDO SOBRE O ESTATUTO DA IMAGINAÇÃO NA HERMENÊUTICA DO TEXTO, DA AÇÃO E DO SI
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Carlos Drawin
(ORIENTADOR)
– UFMG
Prof. Dr. Ulpiano Vázquez – FAJE
Prof. Dr. Ivan Domingues – UFMG
Belo Horizonte, 14 de Outubro de 2008
Dissertação apresentada ao programa de
Pós-graduação em Filosofia da Faculdade
de Filosofia e Ciências humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Filosofia
Linha de pesquisa: Filosofia social e
política
À Professora Constança Marcondes César, pela iniciação à filosofia.
Ao Prof. Pe. Alberto Antoniazzi, in memoriam.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de vida e sabedoria
Aos meus pais, Maurício e Conceição
Às minhas irmãs, Sandra, Adriana e Andréia
Aos professores e funcionários do programa de Pós-graduação em filosofia
Ao Prof. Dr. Carlos Drawin, pela aposta que propiciou a realização deste trabalho
Aos professores Dr. Ulpiano Vazquez e Dr. Ivan Domingues, pela competente argüição
Aos amigos, pelo encorajamento constante
Ao CNPq, pelo apoio financeiro.
Imagine!
John Lennon
RESUMO
A presente dissertação visa oferecer alguma contribuição à tentativa de explicitar e
sistematizar o tema da imaginação no pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur
elaborado entre 1970 e 1990. Estudando o tema da imaginação nas principais obras do
filósofo publicadas neste período, este trabalho organiza-se em torno da seguinte
questão: Qual o estatuto atribuído à imaginação na hermenêutica do texto, na
hermenêutica da ação e na hermenêutica do Si elaboradas por Ricoeur? Visando dar
uma resposta a esse questionamento, buscou-se inquirir o papel central da imaginação
no discurso metafórico e narrativo e a sua extensão à esfera da ação e ao campo da
ética. Assim sendo, ao longo desta dissertação, procurou-se, inicialmente, explicitar o
estatuto da imaginação na hermenêutica do texto, analisando, no âmbito das reflexões
desenvolvidas em La Métaphore Vive (1975), aquilo que Paul Ricoeur denominou de
“o problema da imaginação semântica”. Em seguida, passou-se a aclarar o estatuto
da imaginação na hermenêutica da ação, discutindo a partir da relação entre
narrativa, imaginação e ação explicitada por Ricoeur em Temps et Récit I, II e III
(1983-1985) a proposta ricoeuriana defendida em Du texte à l’action (1986),
segundo a qual, "embora primordialmente pertencente à esfera do discurso, a
imaginação pode ser generalizada à esfera da ação". Por fim, buscou-se relacionar a
hermenêutica do si explicitada em Soi-même comme un autre (1990) com a questão da
imaginação, explorando a proposta ricoeuriana, segundo a qual uma imaginação
ética se alimenta de imaginação narrativa”. As análises empreendidas neste texto,
dentre outros aspectos, põem em relevo que Ricoeur, mesmo não sistematizando sua
reflexão numa obra específica, procurou articular a imaginação à criatividade regulada
atuante na metáfora e na narrativa e à criatividade presente no domínio das
possibilidades inerentes às ações humanas, de tal modo que o estatuto da imaginação
no pensamento ricoeuriano é o de um operador que viabiliza a articulação entre
criatividade poética e a dimensão prática da realidade humana, articulação essa que se
desdobra num convite a pensar junto na linha de uma complementaridade de
abordagens que se alimentam mutuamente, sem confusões de métodos o agir e o
poético, o ético e o poético, contribuindo também para explicitar que o poder criador
da imaginação é o motor do processo pelo qual o homem torna-se ‘si-mesmo’.
,
RÉSUMÉ
Cette texte vise à offrir une contribution à la tentative d'expliquer et de systématiser le
thème de l'imagination de la pensée herméneutique de Paul Ricoeur développé entre
1970 et 1990. Étudiant le thème de l'imagination dans les œuvres majeures du
philosophe publié au cours de cette période, ce travail est organisé autour de la
question suivante: Quel est le statut attribué à l'imagination dans l'herméneutique du
texte, l'herméneutique de l'action et l'herméneutique du Soi élaborée par Ricoeur?
Visant à donner une réponse à cette question, nous avons essad'enquêter sur le rôle
central de l'imagination dans le discours métaphorique et narratif et de son extension à
la sphère de l’action et au domaine de l'éthique. Par conséquent, le long de cette texte,
il a été d'abord, clarifier le statut de l'imagination dans l'herméneutique du texte, en
analysant, dans le cadre des réflexions développées dans La métaphore Vive (1975), ce
que Paul Ricoeur appelle " le problème de l'imagination sémantique. " Ensuite, il
propose de clarifier le statut de l'imagination dans l'herméneutique de l'action,
discutant à partir de la relation entre le récit, l'imagination et l'action explicite pour
Ricoeur dans Temps et récit I, II et III (1983-1985) la proposition ricoeurienne
soutenue dans Du texte à l'action (1986), selon laquelle, "bien qu’ appartenant
principalement à la sphère du discours, l'imagination peut être généralisée à la
sphère d'action". Enfin, nous avons essa de rapporter l’herméneutique du soi
explicite dans Soi-même comme un autre (1990) avec la question de l'imagination, en
étudiant la proposition ricoeurienne, selon laquelle "une imagination éthique se
nourrit d'imagination narrative." Les analyses entreprises dans le texte, entre autres,
mettent en relief que Ricoeur, même sans systématiser sa réflexion dans un travail
spécifique, a cherché à articuler l'imagination à la créativité régulée agissant dans la
métaphore et dans la narration et la créativité présente dans le domaine des possibilités
inhérentes à l'action humaine. De telle façon que le statut de l'imagination dans la
pensée ricoeurienne est un opérateur qui viabilise l’articulation entre la créativité
poétique et la dimension pratique de laalité humaine, cette articulation qui se
déroule dans une invitation à une approche globale dans une ligne de
complémentarité d’approches qui s’enrichissent mutuellement, sans confusion de
méthodes l’agir et le poétique, l'éthique et le poétique, contribuant aussi à expliquer
que la puissance créatrice de l'imagination est le moteur du processus par lequel
l'homme devient ‘soi-même’.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................................... 9
1. A filosofia da imaginação como um campo de ruínas .........................................................................10
2. A reabilitação da imaginação ..............................................................................................................18
3. Objetivos, Justificativas e Plano da Dissertação .................................................................................24
1 – O PROBLEMA DA IMAGINAÇÃO SEMÂNTICA .............................................................................28
1.1 - DO SÍMBOLO AO TEXTO .............................................................................................................29
1.1.1 - A hermenêutica do texto ..............................................................................................................37
1.2 – O PROBLEMA DA IMAGINAÇÃO SEMÂNTICA EM A METÁFORA VIVA ....................................46
1.2.1 - Delimitação do problema da inovação semântica e da referência metafórica .............................47
1.2.2 - O problema da inovação semântica ............................................................................................50
1.2.2.1 - Excursus: A imaginação em Kant ............................................................................................54
1.2.2.2 – O esquematismo da atribuição metafórica ...............................................................................60
1.2.3 - A função referencial da metáfora .................................................................................................62
1.2.4 – Uma teoria semântica da imaginação .........................................................................................69
2 – A EXTENSÃO DA IMAGINAÇÃO SEMÂNTICA AO CAMPO DA AÇÃO ........................................72
2.1 – DO TEXTO À AÇÃO ......................................................................................................................74
2.2 - A IMAGINAÇÃO ENTRE O POÉTICO E PRÁXICO EM TEMPS ET RÉCIT .................................84
2.2.1 – Narrativa, imaginação e ação na tríplice mimèsis .......................................................................85
2.2.1.1 - Mimèsis I: o mundo da ação como âmbito anterior originário da narrativa ..............................87
2.2.1.2 - Mimèsis II: a narrativa como configuração imaginada do mundo da ação ................................90
2.2.1.3 - Mimèsis III: intersecção do mundo configurado pela narrativa e o mundo do leitor ..................94
2.2.2 – A função mimética da imaginação semântica ...........................................................................105
2.3– A IMAGINAÇÃO IMPLICADA NO AGIR INDIVIDUAL E INTERSUBJETIVO ...............................110
2.3.1 – A função projetiva da imaginação à luz da fenomenologia do agir individual ...........................111
2.3.2 – A função empática da imaginação à luz da fenomenologia do agir intersubjetivo ....................114
2.3.2.1 – Imaginação e a condição de possibilidade da experiência histórica ......................................118
2.4 – IDEOLOGIA E UTOPIA: EXPRESSÕES DO IMAGINÁRIO SOCIAL ..........................................121
2.4.1 – Funções e significados da ideologia e da utopia segundo Paul Ricoeur ...................................122
2.4.2 – O entrecruzamento necessário entre ideologia e utopia no imaginário social ..........................128
3 – NARRATIVA, IMAGINAÇÃO E ÉTICA NA HERMENÊUTICA DO SI ............................................132
3.1 - O RETORNO AO SI PELA VIA DA FENOMENOLOGIA DO HOMEM CAPAZ ............................133
3.1.1 – A proposta de uma hermenêutica do si em Soi-même comme un autre ...................................135
3.1.1.1 - Hermenêutica do si e atestação .............................................................................................139
3.1.1.2 – Hermenêutica do si e identidade narrativa .............................................................................144
3.2 - IMAGINAÇÃO À LUZ DA ARTICULAÇÃO ENTRE NARRATIVIDADE E ÉTICA ..........................154
3.2.1 – A expansão do campo prático pelas narrativas e implicações éticas das mesmas ..................155
3.2.2 – “Uma imaginação ética que se nutre de imaginação narrativa” ................................................159
CONCLUSÃO .......................................................................................................................................172
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................187
9
INTRODUÇÃO
“Uma investigação filosófica aplicada ao problema da imaginação o escapa de
reencontrar, desde seu estado inicial, uma série de obstáculos, paradoxos e
fracassos que, talvez, expliquem o relativo eclipse do problema da imaginação na
filosofia contemporânea.” (RICOEUR,1986, p.238)
A citação de Paul Ricoeur, colocada como epígrafe desta introdução, expressa de
maneira clara e contundente o desafio que se apresenta para aquele que pretende fazer do
problema da imaginação o tema geral de sua pesquisa. Por isso, iniciaremos esta dissertação
com um “olhar de sobrevôo” lançado aos obstáculos, paradoxos e fracassos que compõem o
“campo de ruínas que constitui hoje a teoria da imaginação”; em seguida, reteremos nossa
atenção no “relativo eclipse do problema da imaginação na filosofia contemporânea”,
procurando uma explicação para o mesmo na hipótese que assinala a existência de uma
sistemática depreciação da imagem e de uma obsessiva repressão da imaginação, colocadas
em marcha, ao longo dos séculos, pela filosofia ocidental. No entanto, ainda no âmbito deste
ensaio introdutório que visa contextualizar o conjunto das análises que pretendemos
desenvolver na presente dissertação, mencionaremos também o vigoroso, ainda que marginal,
movimento de reabilitação da imaginação desencadeado, no início do século XX, pelo avanço
dos estudos sobre o rito, o simbolismo religioso, a mitologia e o inconsciente. Somente após
uma abordagem introdutória dessas questões, estaremos em condições de detalhar o objetivo
geral da presente dissertação que é o de oferecer alguma contribuição à tentativa de
explicitar e sistematizar o tema da imaginação no pensamento hermenêutico de Paul
Ricoeur elaborado entre 1970 e 1990.
10
1. A filosofia da imaginação como um campo de ruínas
Quem está interessado no tema da imaginação depara-se, de imediato, com um
obstáculo clássico: o desprestígio da imaginação ao longo da história da filosofia ocidental.
Considerada mera fonte de erros, muitos propuseram, em diferentes épocas, que ela fosse
proscrita do processo cognitivo e considerada nefasta no plano moral. Assim, por conta dessa
desconfiança em relação à imaginação, pode-se constatar, com certa facilidade, que, em geral,
os filósofos não tiveram clemência para com esta faculdade, de tal forma que, ao longo dos
séculos, quando não simplesmente ignorada como sendo a “louca da casa”, a imaginação foi
violentamente anatematizada.
De acordo com o que Carlos H. do C. Silva assinala no denso artigo “O imaginário na
Filosofia”, as raízes desse desprestígio da imaginação remonta aos primórdios do filosofar
ocidental. Dessa forma, para o referido autor, “desde a origem da filosofia grega que o
estatuto da imaginação há-de ser reduzido a uma faculdade menor face ao crescente interesse
e domínio do logos e suas exigências de universal racionalidade” (SILVA, 2003, p.287). De
fato, a inauguração da metafísica com Platão, calcada na ruptura ontológica entre o mundo
eterno e supra-sensível do ser e o mundo temporal e sensível do fenômeno, significou também
a instauração de uma postura de desconfiança perante a imaginação que predominou ao longo
da história filosófica ocidental. Uma breve abordagem do problema da imaginação na
filosofia platônica
1
evidencia que ela foi interpretada pelo fundador da Academia como uma
1
Em Platão segundo a análise feita por Richard Kearney na introdução de A Poética do Possível:
fenomenologia hermenêutica da figuração as imagens são consideradas meras “cópias de cópias”, ou seja,
imitações do mundo sensível, o qual, por sua vez, não é outra coisa senão uma cópia do mundo inteligível.
Assim sendo, pelo menos na doutrina platônica “oficial”, a imaginação é concebida como uma “faculdade
indeterminada e imprecisa que apenas pode exercer-se imitando aquilo que existe, mediadora entre os sentidos
e a razão sob a forma de uma re-presentação derivada (mimesis) (KEARNEY,1997, p.14). Uma das implicações
dessa expulsão da imagem do domínio do real e do seu lançamento para o campo do ilusório foi a
desqualificação epistemológica da mesma. De acordo com a perspectiva platônica apresentada na “alegoria da
caverna”, o acesso às Idéias epistêmicas é vedado àquele que está no mundo “doxico” das imagens. Desse modo,
aqueles que produzem cópias das imagens como os pintores, por exemplo são censurados por Platão por
produzirem uma imitação que está “a três graus da verdade”. Não os produtos da imaginação, mas ela mesma
é estigmatizada no pensamento Platônico. De acordo com o livro VI da Republica, a imaginação (eikasia) é a
parte mais nefasta da alma, na medida em que está misturada ao fluxo sensível das aparências e, por isso mesmo,
11
faculdade ambígua que, desempenhando um duplo papel (mimético e extático), está
simultaneamente ligada à mais baixa e à mais alta faculdade do homem. Também no
pensamento de Aristóteles pode ser encontrada semelhante atitude de ambigüidade e
desconfiança perante a imaginação
2
. Conforme ressaltou Cornelius Castoriadis, em “A
descoberta da imaginação”, Aristóteles descobre (em De anima III, 9-11) uma imaginação
situada numa camada mais profunda que subverte o modo como o próprio estagirita (em De
anima III, 3) anteriormente havia pensado a imaginação. Tal subversão se deve ao fato de essa
“imaginação primeira” implicar “um elemento que não se deixa apreender nem no espaço
definido pelo sensível e pelo inteligível, nem o que é bem mais importante no espaço que
se define pelo verdadeiro e falso, e, por trás destes, pelo ser e pelo não-ser” (CASTORIADIS,
prejudica a parte superior ou racional da alma (cf. KEARNEY, 1997, p.16s). Entretanto, conforme salientou R.
Kearney seguindo as análises de Bundy, “juntamente com esta definição negativa da imaginação como ilusão
mimética surge, das margens da metafísica platônica, uma outra noção da imaginação como faculdade extática
(1997, p.18): trata-se de “um segundo modo de imaginação capaz de ter imagens dos objetos ideais da
contemplação da alma superior” (BUNDY, 1927, p.21 apud KEARNEY, 1997, p.19). Tais imagens não são
imitações das Idéias, mas as próprias Idéias que m ao homem por meio de um processo de inspiração através
do qual imagens visionárias permitem, por um lado, que se transcenda o mundo empírico na direção do mundo
trans-empírico; por outro, que o mundo eterno se encarne no mundo inferior do sensível. Em outros termos, a
imaginação anteriormente rejeitada por Platão se apresenta agora como sendo a faculdade que pode, inspirada
por uma luz transcendente, atingir visões para além da razão. Contudo, como ressalta Kearney, “esta descoberta
da imaginação extática é formulada por Platão de um modo imperfeito; é mais esboçada do que articulada”
(1997, p.21).
2
As análises empreendidas por Aristóteles no De anima, num primeiro momento, situando a imaginação entre as
potências pelas quais a alma julga e conhece um ser qualquer e apresentando-a como distinta da sensação,
embora a ela ligada, propõe a definição da imaginação “como movimento que sobrevém a partir da sensação”,
sendo que, enquanto tal, em função de sua ligação com a sensação, ela é susceptível tanto de verdade como de
erro, dependendo do gênero de sensação do qual ela se origina Assim, em De anima III, 3, a imaginação é
apresentada como o par supérfluo da sensação e parece possuir apenas a estranha função de multiplicar
consideravelmente as possibilidades de erro inerentes a determinados tipos de sensações (cf. CASTORIADIS,
1987, p.348s). Castoriadis denomina essa concepção de imaginação extraída de De anima III, 3 de “imaginação
segunda ou secundária” e assinala que a mesma está na base da concepção de imaginação vigente na maioria dos
filósofos ocidentais (imaginação meramente reprodutiva). Contudo, um pouco mais adiante do mesmo livro III
do De anima, Castoriadis chama a atenção para o fato de Aristóteles inserir, repentinamente e sem advertência,
uma outra modalidade de imaginação, apresentada como condição de possibilidade para o pensamento. A essa
outra modalidade de imaginação proposta pelo estagirita, o filósofo denomina de “imaginação primeira”. De
acordo com Castoriadis, essa outra modalidade de imaginação “não tem, por assim dizer, nada a ver com a que
foi definida ex professo na aparente sedes materiae, em III, 3. Sua relação com ela é somente de homonímia;
suas determinações e funções não apenas excedem as da outra mas parecem ser incompatíveis com elas” (1987,
p.346). Assim, após apresentar as dificuldades da “doutrina convencional” da imaginação elaborada por
Aristóteles em De anima III, 3, Castoriadis passa a examinar a reviravolta provocada pelas análises aristotélicas
desenvolvidas nos capítulos 9-11 no mesmo livro III da referida obra, onde aparece a proposta aristotélica de que
“a alma jamais pensa sem fantasia”. Examinando a referida proposta, o filósofo francês assinala que a
imaginação “é condição de pensamento, posto que apenas ela pode apresentar ao pensamento o objeto, como
sensível sem matéria. E ela é condição do pensamento, igualmente, na medida em que separa, na forma do
objeto, os diferentes “momentos” dessa forma e consegue apresentá-los como abstratos, subtraídos ao resto”
(CASTORIADIS, 1987, p.356).
12
1987, p.370). Entretanto, afirma o autor, essa “imaginação primeira” que não rompe a
ordenação lógica do De anima, mas provoca a implosão da própria ontologia aristotélica
não recebe de Aristóteles uma elaboração mais profunda. Perguntando sobre as razões dessa
ocultação da “imaginação primeira” na obra daquele mesmo que a descobrira, Castoriadis
constata que “tudo se opunha, no pensamento filosófico em vias de constituição, a um
reconhecimento do papel da imaginação [primeira]” (1992, p.244): a verdade, imediatamente
associada ao logos, não podia ser encontrada no domínio da doxa, remetida às impressões do
sentido e aos produtos da imaginação.
Assim, pelo que pode ser extraído dessas breves anotações, bem cedo no ocidente, no
plano da busca da verdade, a imaginação foi colocada sob suspeita. Além disso, cassou-se-lhe
também o poder criador, reduzindo-o, no melhor dos casos, à ficção. Para Castoriadis, os
intérpretes de Aristóteles e os filósofos subseqüentes serão marcados pela obstinação de
sufocar o “escândalo metafísico” provocado pela “imaginação primeira”, encobrindo-a com
uma imaginação meramente imitativa, reprodutiva e associativa (cf. 1992, p.245;1987,p. 372).
É o que nos revela o estudo feito por Jeanne Bernis em L’imagination. Na primeira parte do
mesmo, é-nos oferecido um brevíssimo resumo das desventuras da imaginação do
sensualismo epicurista até a psicanálise. De acordo com o que ali encontramos assinalado,
para as mais antigas tradições sensualistas, “tudo o que vem da imaginação é proveniente da
ação dos objetos sobre os nossos sentidos, ação de emissão continua, deformável, redutível a
movimentos e a choques nos nossos órgãos” (BERNIS, 1987, p.11). Ressaltando que, em
geral, a filosofia escolástica nada acrescenta à definição de imagem como espécie de
simulacros dos objetos que, conservando as qualidades sensíveis dos mesmos, os mantinham
no espírito humano através das impressões deixadas pela percepção, J. Bernis assinala que
“Descartes e os cartesianos debatem-se com uma dupla função da imaginação: ora, como
afeição ou conexão do corpo, ela é uma temível causa de erro; ora, quando representa por
13
figuras quantidades abstratas, torna-se auxiliar preciosa do entendimento” (1987, p.12).
Malebranche, por exemplo, segue essa dupla teoria cartesiana acerca da imaginação. Para ele,
antes da queda, a imaginação pode ajudar o entendimento através da figuração dos
pensamentos abstratos. No entanto, segundo o oratoriano, essa não é a situação da imaginação
na realidade concreta de uma humanidade decaída. Nesse caso, conforme encontramos em
várias análises malebranchianas, a imaginação está essencialmente ligada aos sentidos, sendo,
no plano intelectual, uma reconhecida fonte de erros e conhecimentos confusos e, no plano
moral, uma ameaça nefasta a ser determinantemente esconjurada da alma humana
3
.
Mesmo que o cartesianismo (do qual o malebranchismo é uma variante), no fim do
século XVII, tenha perdido espaço, no plano metafísico e gnosiológico, para o empirismo, a
sorte da imaginação e de seus produtos não melhorou. Como diz Sartre: “A imagem não se
transformou em nada, não sofreu nenhuma modificação enquanto o céu inteligível
desmoronava, pela simples razão de que ela era, em Descartes, uma coisa(2008, p.21
itálico do autor). De fato, considerando somente a passividade do espírito frente às excitações
oriundas dos objetos, o empirismo vai fazer da imagem um sucedâneo da percepção.
Distinguida da sensação unicamente devido a uma diferença de intensidade, as imagens são
apenas cópias enfraquecidas das impressões originais, meras revivencências atenuadas da
3
No § XIII da Entretiens sur la métaphisique, após reafirmar no parágrafo anterior que idéias claras e
distintas advêm somente da Razão, Malebranche passa a descrever “as ilusões e os fantasmas de uma imaginação
revoltada contra a Razão, sustentada e animada pelas paixões”. Para ele, a imaginação encontra mais realidade
nos espectros que ela mesma produz do que nas idéias necessárias e imutáveis da verdade eterna. Inteiramente
oposta à razão, a imaginação é “une folle qui se plaît a faire la folle, une volage qu’on a tant de peine à fixer, une
insolente qui ne craint point de nous interrompre dans nos plus serieux commerces avec la Raizon”. Perigo não
apenas do plano intelectual, para Malebranche, a imaginação é também nefasta no domínio da moral. Assim
sendo, no capitulo XII da primeira parte de seu Traité de Morale, cujo objetivo é explicar em que consiste
precisamente a virtude e os meios para adquiri-las, ele apresenta a imaginação como um obstáculo para a
consecução da virtude. Para o filósofo, sentidos, imaginação e paixões andam sempre juntos. Todavia, para ele, a
imaginação apresenta uma “malignidade particular”: ela lança a perturbação em todas as idéias da alma pelos
fantasmas que produz. Por isso, Malebranche afirma repetidamente: “é preciso fazer calar a imaginação”, já que
visando apenas o bem do corpo em detrimento da Razão, ela dissipa todas as verdadeiras idéias, corrompendo
assim o homem, que suscita no coração dele o desregramento da concupiscência e a excitação das paixões
desenfreadas, impedindo, por conseqüência, a prática da virtude, na medida em que essa, segundo o filósofo,
consiste no amor habitual e dominante pela ordem imutável.
14
sensação
4
. Portanto, mesmo com o advento do empirismo, manteve-se o mesmo postulado
básico em relação à imagem: a identidade de natureza da mesma com a sensação (cf
SARTRE, 2008, p.17ss). Esse postulado permanecerá inalterado mesmo no incipiente
pensamento psicológico do fim do século XIX.
Taine, visando à constituição de uma psicologia cientifica, considera que “tudo o que,
no espírito, ultrapassa a ‘sensação bruta’ resume-se a imagens, isto é, a repetições espontâneas
da sensação” (apud SARTRE: 2008, p.28). Ribot, mesmo censurando a noção tainiana de
“psicologia cientifica”, mantém a existência de sensações e de imagens ligadas entre si por
leis associativas. Bergson fervoroso crítico do associacionismo , embora tenha distinguido
percepção e imagem-lembrança, ao sustentar que a imaginação reduz-se à memória, não
consegue libertar a imagem de seu papel subalterno que a psicologia clássica lhe fazia
desempenhar. Sartre, em L´imagination, lança-lhe uma contundente crítica: “um exame atento
das concepções de Bergson mostra-nos que ele aceita, apesar do uso de uma terminologia
nova, o problema da imagem em seu aspecto clássico e que a solução oferecida por ele não
traz absolutamente nada de novo” (2008, p.41). Assim sendo, de acordo com as análises
sartrianas, no início do século XX mesmo com as modificações que um número variado de
4
Assim sendo, por exemplo, para Hobbes, "imaginação nada mais é portanto que uma sensação diminuída (...)
mas quando queremos exprimir a diminuição e significar que a sensação é evanescente, antiga e passada,
denomina-se memória. Assim a imaginação e a memória são uma e a mesma coisa, que por razões várias, têm
nomes diferentes" (HOBBES, 2004, p. 33s). As associações imaginativas, ou seja, os encadeamentos de
pensamentos e de representações que constituem o discurso mental ou discurso da imaginação, apresentam uma
coerência fundada na coerência da sucessão de sensações: "Quando o homem pensa seja no que for, o
pensamento que se segue não é tão fortuito como poderia parecer (...) assim como não temos uma imaginação da
qual não tenhamos tido antes uma sensação (...), do mesmo modo não temos passagem de uma imaginação para
outra se não tivermos tido previamente o mesmo nas nossas sensações" (HOBBES, 2004, p.39). Enfim, no nível
do discurso verbal, é uma composição de idéias ou de fantasmas que respondem à composição dos nomes e lhes
assegura uma significação (Cf. ZARKA, 1992, p. 20s; ZARKA, 1999, pp. 27-30). A partir da análise
lexicográfica do termo "fantasma", pode-se concluir que, na perspectiva hobbesiana, imaginação liga-se à
sensação e confunde-se com a memória. Sob essa perspectiva, a teoria da imaginação em Hobbes se alinha às
epistemologias de inclinação empirista. Isso é mais verdade ainda quando consideramos a posição hobbesiana
que assinala a impossibilidade de imaginação e razão trabalharem juntas na produção do saber. Nesse sentido,
encontramos em The elements of law a referência a uma "imaginação poderosa" capaz de descobrir "similitudes
inesperadas nas coisas", isto é, ligações inéditas e surpreendentes expressas na forma de miles, metáforas e
outros tropos. Contudo, esses produtos da imaginação são apresentados como potencialmente manipuladores e
enganosos; enquanto que o juízo/discernimento é apresentado como fonte do conhecimento verdadeiro. Por isso,
no âmbito do pensamento hobbesiano consignado na obra acima citada, sustenta-se que fantasia e discernimento
são faculdades opostas, não podendo haver um acordo entre ambas na construção de uma ciência verdadeira.
15
trabalhos, de inspiração e natureza diversas, vão trazer para o problema da imagem , o
posicionamento perante imaginação permanece fundamentalmente o mesmo dos grandes
sistemas filosóficos do século XVII. Para Sartre, isso se deve ao fato de o ponto de partida
não ter mudado: postula-se a identidade fundamental da imagem e da percepção. Assim, após
dirigir uma sólida crítica à ontologia ingênua que perpassa a teoria clássica da imagem como
duplo mnésico da percepção, isto é, como duplicado remanescente da sensação, tendo também
criticado a doutrina bergsoniana por reduzir a imaginação à memória e confundir assim o
imaginado com o rememorado, Sartre assevera que a maioria das teorias pré-
fenomenológicas, “coisificam” a imagem e rompem com o dinamismo da consciência, o que
as impede de conhecer a verdadeira estrutura e significado da imaginação.
No capítulo 4 de L´imagination, vislumbrando nas Ideen as bases para uma teoria das
imagens inteiramente nova que verdadeiramente supere as concepções clássicas e seus
problemas, Sartre passa a preconizar a necessidade de se abordar a imaginação pela via
fenomenológica inaugurada por Husserl. Embora reconheça que este pensador tenha tratado
do problema da imaginação apenas de passagem e que, por isso mesmo, suas análises
necessitem de efetivas complementações, Sartre conclui que nenhum estudo da imagem pode
negligenciar o caminho aberto pela fenomenologia husserliana
5
(cf 2008, p.122;134). Por isso
mesmo, pouco tempo depois, na obra L’imaginaire, Jean-Paul Sartre tenta uma descrição
fenomenológica da estrutura “imagem”. Embora o mérito incontestável do exame
empreendido em L´imaginaire tenha sido a tentativa de descrever o funcionamento específico
da imaginação, distinguindo-o do comportamento perceptivo e mnésico, Sartre foi fiel a
5
Do ponto de vista fenomenológico, “a primeira característica da imagem (...) é que ela é uma consciência e, por
conseqüência, como qualquer consciência, é antes de mais transcendente. A segunda característica da imagem
que diferencia a imaginação dos outros modos de consciência é que o objeto imaginado é dado imediatamente no
que é, enquanto o saber perceptivo se forma lentamente por aproximações sucessivas (...) uma terceira
característica: a consciência imaginante “concebe o seu objeto como um nada”; o “não ser” seria a categoria da
imagem, o que explica a sua última característica, ou seja, a sua espontaneidade; a imaginação bebe o obstáculo
que a opacidade do real percebido constitui, e a vacuidade total da consciência corresponde a uma total
espontaneidade” (DURAND, 1989, p.18).
16
essa perspectiva, de acordo com a análise crítica de Gilbert Durand, nas primeiras ginas da
obra que publicara em 1940 (cf. 1989, p.19). Confundindo, numa nulificação geral, a
afirmação perceptiva ou conceitual do mundo e as fantasias irrealizantes da imaginação, a
fenomenologia sartriana da imaginação resvala para uma descrição em que o imaginário é
apresentado como exemplo significativo da vacuidade essencial da consciência humana, de tal
forma que nas três partes finais de L’imaginaire reaparece a clássica degradação do saber que
a imagem representa. Por ter tomado sempre a imagem como índice de irrealidade e por ter se
limitado a uma aplicação restrita do método fenomenológico, sem uma abertura para o
patrimônio imaginário da humanidade constituído pela poesia e pela morfologia das religiões,
a imaginação, nas análises sartrianas, permanece tão desvalorizada quanto naqueles que
outrora criticou. “Finalmente, [como diz G. Durand] a crítica que Sartre dirigia às posições
clássicas em L’imagination, censurando-as por “destruírem as imagens” e por “fazerem uma
teoria da imaginação sem imagens”, volta-se contra o autor de L’imaginaire.” (1989, p.19)
Nota-se que a teoria clássica da imaginação vigente na tradição filosófica ocidental
não deixa de impor seus ditames, mesmo em autores que pretenderam romper com ela, como
era a pretensão original de Jean-Paul Sartre. O fracasso sartriano em L’imaginaire só reforça o
fato de a filosofia contemporânea, em especial a de expressão francesa, ter sido calcada na
herança de uma tradição que remonta ao século XVII (Descartes, Malebranche, Pascal), que
via a imaginação como mestra do erro e da falsidade”, “soberba potência inimiga da razão”,
atividade meramente produtora de ficções, cuja legitimidade ficou restrita ao campo da arte.
Em função do que acaba de ser assinalado, uma abordagem filosófica dos domínios da
imagem e da imaginação não será, de início, objeto privilegiado pela filosofia contemporânea
(cf. WUNNENBUGER, 2007, p.16). Entretanto, apesar deste “relativo eclipse do problema da
imaginação na filosofia contemporânea”, ao longo do século XX, assistiu-se, devido ao
vertiginoso desenvolvimento da informática e das técnicas de telecomunicação, à edificação
17
de uma efetiva “civilização da imagem”, matriz dessa verdadeira “iconosfera” que nos
envolve neste início de século XXI.
Esse “paradoxo do imaginário no ocidente”, para usarmos uma expressão de Gilbert
Durand, não deixa também de intrigar aquele que visa elaborar um discurso filosófico sobre a
imaginação. Buscando uma inteligibilidade para tal paradoxo, o próprio Durand, em algumas
de suas análises
6
, chamou a atenção para o fato de que, no nível de sua filosofia fundamental,
o ocidente, como regra geral, sistematicamente desqualificou a imagem, desvalorizou a
imaginação e reprimiu o imaginário mediante a rarefação do simbólico, em benefício dos
fatos materiais e dos signos objetivos; enquanto que, no vel das técnicas e das tecnologias,
viabilizou a explosão da influência das imagens na vida cotidiana, “cancerizando” assim a
imaginação criadora mediante a inflação patológica de imagens destituídas de qualquer valor
hermenêutico (cf. 1998, p.7). Entretanto, a inflação patológica de imagens proporcionada
pelos avanços tecnólogicos e a desqualificação das mesmas pela tradição filosófica dominante
são as duas faces de uma mesma desconfiança iconoclasta endêmica que perpassa as várias
etapas da formação do pensamento ocidental
7
(cf. DURAND,1995, p. 26). Esse “iconoclasmo
6
Pode-se, por exemplo, citar o seguinte texto de Durand traduzidos no Brasil: “O Paradoxo do imaginário no
ocidente” in O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro, Difel, 1998.
7
Responsável pelo lento e gradativo processo de erosão do papel da imaginação na filosofia e epistemologia
ocidentais, esse “iconoclasmo endêmico” remonta ao aristotelismo averroísta e ockamista predominante na
filosofia escolástica do século XII. Tal concepção filosófica, fazendo apologia ao “pensamento direto” e ao
“conceitualismo”, provocou o deslizamento definitivo do pensamento oficial para o mundo do realismo
perceptivo e, por conseqüência, o repúdio do “pensamento indireto” e a extinção da mediação simbólica através
da substituição das grandes imagens visionárias pela argumentação conceitual da razão. Desde então, a partir
dessa depreciação da imaginação simbólica, que desencadeou uma redução conceitualista do sentido e a correlata
perda da pregnância semântica, o sentido figurado teve que ceder seu espaço ao sentido próprio, ou seja, passou-
se a negligenciar o significado para se apegar apenas à epiderme do sentido, o significante. Esse primado do
“semiológico” entranhou-se ainda mais no regime oficial do pensamento ocidental com o advento da filosofia
cartesiana. Para Descartes, a Razão é o único meio de legitimação e acesso à verdade, e somente a exploração
científica do mundo tem direito ao título de conhecimento verdadeiro. Assim sendo, no universo mental
engendrado pela proposta deste filósofo, não espaço para a abordagem poética do mundo, e o imaginário está
definitivamente excluído dos processos intelectuais. Ao rigor iconoclasta do racionalismo cartesiano, no século
XVIII, será acrescentado o empirismo que impõe o fato como obstáculo ao imaginário cada vez mais confundido
com o irracional. Frutos do casamento entre o factual dos empiristas e o rigor dos racionalistas, o positivismo e o
historicismo, no século XIX, acabarão por desvalorizar por completo o domínio do imaginário: as visões dos
místicos, os devaneios dos poetas, as obras de arte serão recalcados, depreciados e relegados ao plano do
irracional e do não-científico, ao lado das alucinações e dos delírios dos doentes mentais. Cf. DURAND, A
Vitória dos Iconoclastas ou O Avesso dos Positivismos” in ______ A Imaginação Simbólica, São Paulo, Edusp,
1988, pp. 23-39.
18
endêmico triunfante” será a concepção oficial das universidades ocidentais, especialmente da
universidade francesa, filha mais velha de Augusto Conte e neta de René Descartes (cf.
DURAND, 1988, p. 26; 1998, p.13), de tal modo que, ainda seguindo a opinião de Gilbert
Durand, “o pensamento ocidental e especialmente a filosofia francesa tem por constante
tradição o desvalorizarem ontologicamente a imagem e psicologicamente a imaginação,
‘fautora de erros e falsidades’” (1989, p. 17).
Por fim após termos apresentado uma amostra do modo como a imaginação foi
tratada ao longo da história da filosofia, após termos feito referência a alguns dos obstáculos,
paradoxos e fracassos que relegaram a imaginação a um relativo eclipse no pensamento
contemporâneo e após termos buscado uma hipótese explicativa para tal situação na idéia de
“iconoclasmo endêmico” desenvolvida por Gilbert Durand , somos obrigados a concordar
com Paul Ricoeur, para quem a filosofia da imaginação é um verdadeiro “campo de ruínas”
(cf. 1986, p.241). Entretanto, em meio aos escombros, à margem da ortodoxia universitária e
da ciência oficial, do lado dos heréticos e dos malditos, portanto na clandestinidade,
desenvolveram-se, ao longo dos séculos, movimentos de resistência ao iconoclasmo ocidental.
2. A reabilitação da imaginação
As raízes dos movimentos que, no alvorecer do século XX, propiciaram uma
reabilitação da imaginação remontam, para não irmos muito longe, ao primeiro romantismo
alemão
8
. Certamente, os contributos da filosofia crítica kantiana ajudaram também a romper
com a tradicional avaliação negativa da imaginação, restabelecendo a dignidade filosófica da
8
“No norte da Europa, desde 1749 a grande visão de Swedenberg tinha restabelecido o papel transcendente da
imaginação humana, dirigida para ‘detetar’ (sic) o sentido oculto da Escritura. Mas foi o primeiro romantismo
alemão que deu o sinal da ressurgência hermenêutica: em 1762, Harmann reconhecia a superioridade heurística
das imagens, enquanto que de 1795 a 1813, com seus três Essais sobre o sonho, Jean-Paul iniciava a linha
romântica de restauração do imaginário que, passando por Troxler, Carus, Baader, Arnim e Novalis, deveria
desembocar em Poe e Baudelaire.” (DURAND, 1995,p. 32).
19
mesma
9
. Todavia, como ressalta Gilbert Durand, “a princípio é entre os artistas românticos
que o imaginário e seus poderes são revalorizados” (1995, p.33). Assim sendo, por exemplo,
Coleridge poeta, filósofo e crítico literário da primeira geração do romantismo inglês
colocou claramente a problemática moderna do imaginário em todos os seus matizes
terminológicos. Para ele, de acordo com as análises durandianas, há duas faculdades
frequentemente confundidas: a fantasia vulgar (fancy) e a imaginação poética. A primeira,
enquanto mera justaposição e reprodução de imagens, não passa de uma imaginação passiva
sem significação; a segunda, apresenta um grau primário que propicia a unificação objetiva da
percepção e um grau secundário que propicia o reencontro da unidade do mundo e do seu
sentido para além das multiplicidades, possibilitando assim o acesso a uma nova ordem de
realidades. Coleridge percebeu que a imaginação, não sendo o duplo mnésico das sensações,
tem o papel de rebater o mundo banal dos “filósofos do lado concreto das coisas” (cf.
DURAND, 1995, p. 33-34).
Embora o Romantismo ressaltando o poder poiético da criatividade em-si tenha
proporcionado um novo patamar de revalorização da imaginação, o fato desse movimento ter
ensaiado formas de um imaginário irracional, bem como ter assimilado o delírio, a
infantilidade e a loucura à imaginação, ou seja, o fato de não ter apontado critérios de
balizamento epistêmicos e críticos do imaginário favoreceu que a revalorização romântica da
fantasia imagética caísse rapidamente em descrédito (cf. SILVA, 2003, p.306s). Por isso
mesmo:
foi apenas na reflexão filosófica do último século que, mercê ainda do contributo da Antropologia
Cultural no estudo dos Mitos e da imaginação na mentalidade primitiva, da Psicanálise ou da
Psicologia das profundidades, sobretudo no estudo dos sonhos e dos estados de fantasia e delírio,
bem assim da lingüística e doutros (sic) domínios em que se valorizou a metáfora e os regimes da
utopia, se concedeu pleno direito de cidadania à questão do Imaginário do âmbito da Filosofia
(SILVA: 2003, p.309)
9
Mais adiante, no item 1.2.2.1, vamos ter oportunidade de abordar o problema da imaginação na primeira
Crítica kantiana mostrando como, mesmo no filósofo de Könisberg, hesitações quanto ao estatuto da
imaginação.
20
Do que acaba de ser citado, ressaltemos a tentativa de reabilitação da imaginação
promovida por duas novas disciplinas que se consolidaram nas primeiras décadas do século
XX: a psicanálise e a antropologia cultural (etnologia). Elas têm em comum o fato de
apresentarem a pretensão de serem ciências e ao mesmo tempo colocarem como objeto de
suas pesquisas os conteúdos imaginários do sonho, do delírio ou do mito, instalando-os como
objetos válidos para a ciência. Contudo, os contributos dos pesquisadores ligados a essas
disciplinas ainda estão presos a um pano de fundo geral positivista, de tal modo que as
pesquisas oriundas desses dois importantes ramos de conhecimento valorizam a
imaginação para integrá-la na sistemática intelectualista dominante. Assim sendo, apesar de a
psicanálise e a etnologia ao revelarem que uma boa parte das representações do individuo
ocidental, normal e civilizado tem algo em comum com as representações dos neuróticos e
dos “primitivos” terem rompido com oito séculos de repressão e coerção do imaginário e
contribuído para que nossa época redescobrisse a importância das imagens na vida mental e a
centralidade dos conteúdos imaginários do sonho, do delírio e dos mitos como objetos válidos
para as ciências humanas, vão ser as investigações de Cassirer, Jung e Bachelard que, ao
retomarem por diferentes caminhos a distinção de Coleridge entre a imaginação passiva e a
ativa, contribuirão decisivamente para a aceitação dos produtos da imaginação como
expressões válidas do ser humano e para a consolidação das pesquisas sobre o imaginário em
meados do século XX (cf. DURAND, 1995, p.35; 1988, p.41ss).
Embora preso ao cientificismo de seu tempo, o grande mérito de Cassirer foi o de
“haver polarizado todo o pensamento do homem em torno da noção de símbolo”
10
. Seu
10
Ernst Cassirer tenta uma ampliação da crítica transcendental kantiana, procurando torná-la extensiva à
totalidade do universo do discurso humano, isto é, visando transformá-la numa critica da cultura (cf.
GARAGALZA, 1990, p.127). Entendendo a cultura como sendo um universo simbólico, em sua obra Ensaio
sobre o homem que é uma introdução à filosofia da cultura humana , Cassirer assinala que o mundo humano
é qualitativamente diferente do círculo funcional do animal. Essa característica distintiva da vida humana es
diretamente ligada à aquisição do sistema simbólico, que, situado entre o sistema receptor e o efetuador, dá ao
homem um novo método de adaptação ao ambiente, de tal modo que ele não apenas vive numa realidade mais
ampla, mas vive em uma nova dimensão da realidade (Cf. CASSIRER, 1997, p.47). Assim sendo, para Cassirer:
21
trabalho, por ter colocado a imagem simbólica no centro de interesse da filosofia, pode ser
considerado um prefácio à psicologia analítica de Jung e à fenomenologia de Bachelard.
O grande contributo de Jung, na avaliação de Gilbert Durand, foi o de restaurar a
dignidade criadora não-patológica da função simbólica da imaginação. Para o pensador de
Zurique
11
, arquétipos e símbolos enquanto mediadores da energia psíquica põem em
evidência o papel da imaginação no processo de individuação, isto é, no processo de
florescimento do indivíduo em sua totalidade pessoal. No entanto, ainda seguindo a avaliação
durandiana, o pensador suíço propõe uma concepção demasiado larga da imaginação
simbólica: ele não distingue a potencialidade criadora da imaginação presente nos contos de
“não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em universo simbólico. A linguagem, o mito,
a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da
experiência humana (...) O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente (...) Em vez de
lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo.
Envolveu-se de tal modo em formas lingüísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos que não
consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial(1997, p.48) A partir
desse ponto de vista, mesmo admitindo que “a racionalidade é um traço inerente a todas as atividades humanas”,
Cassirer propõe que se corrija a definição clássica do homem como sendo um animal racional. Para ele, “a razão
é um termo muito inadequado com o qual compreender as formas da vida cultural do homem em toda a sua
riqueza e variedade. Mas todas essas formas são formas simbólicas. Logo, em vez de definir o homem como
animal racionale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum” (1997, p.50). De acordo então com o ponto de
vista cassireriano, é o símbolo que, com sua universalidade, validade e aplicabilidade geral, acesso ao mundo
especificamente humano. Como o símbolo não se reduz a um mero sinal, pois enquanto este faz parte do mundo
físico, aquele pertence ao âmbito do significado, as diversas formas simbólicas estão ligadas à significação,
donde que o “mito e a arte, a linguagem e a ciência são criações que formam o ser: elas não são simples cópias
de uma realidade existente, mas representam, ao invés, as linhas gerais do movimento espiritual, do processo
ideal no qual, para nós, o real se constitui como unidade e pluralidade, como multiplicidade das configurações
que, entretanto, afinal são unificadas através de uma unidade de significação” (2001:64). Tomadas como um
todo, as diversas formas simbólicas que constituem a cultura humana apontam para uma progressiva
autolibertação do homem. A linguagem, a arte, a religião e a ciência são as várias fases desse processo. Em todas
elas, o homem descobre o poder de construir um mundo próprio. Entretanto, Cassirer sustenta que “a ciência é a
última etapa do desenvolvimento mental do homem, e pode ser vista como a mais alta e mais característica
façanha da cultura humana” (1994:336).
11
Carl Gustav Jung ao contrário de Freud, para quem toda imagem deveria ser reduzida a uma causalidade
inconsciente ligada ao conflito instalado em torno da sexualidade humana insere a imagem numa perspectiva
teleológica, a partir de sua concepção da “psique como um ‘sistema auto-regulado’ que manifesta uma tendência
prospectiva à realização de todas as suas potencialidades” (BARRETO, 2006, p.91). Apesar de sua terminologia
(complexos, arquétipos, imagens arquetípicas, símbolos) ser uma das mais confusas e flutuantes, a teoria de Jung
acerca das imagens, conforme avalia Durand, é uma das mais profundas (cf. 1988, p.60). Grande parte da
inovação junguiana no campo da psicologia se deve à postulação da existência de estruturas invariantes da
imaginação (arquétipos), cujo conjunto das mesmas forma o inconsciente coletivo. São nesses “arquétipos do
inconsciente coletivo” que se enraízam as imagens simbólicas presentes na psique humana. Conforme alertou
Nise da Silveira, o arquétipo não se confunde com idéias ou imagens inatas. Antes, “são possibilidades herdadas
para representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações
análogas ou semelhantes tomam forma” (1997, p.68). Nesse sentido, o arquétipo é caracterizado por Jung como
sendo “um sistema de virtualidades” que, funcionando como um “nódulo de concentração de energia psíquica”,
estrutura e organiza as imagens, segundo um “centro de força invisível”.
22
fadas, nos mitos, nas artes e nas religiões das produções imaginárias de um modo geral, sejam
as oriundas dos sonhos de pessoas normais, sejam as que advêm dos delírios e aberrações
mentais. Além disso, ressaltando apenas o funcionamento sintético da imaginação simbólica
no âmbito do processo de individuação, Jung acaba resvalando num “otimismo do
imaginário” (cf. DURAND,1988, p.64).
Ao distinguir três setores nos quais a função simbólica da imaginação deverá receber
tratamentos bem distintos o setor da ciência objetiva, onde ela é impiedosamente proscrita
por meio de uma “psicanálise objetiva” que restitua a limpidez e a precisão do signo; o setor
dos sonhos e dos delírios, onde uma “psicanálise clássica” deve libertar a consciência do
domínio dos sintomas, aos quais a imaginação simbólica foi reduzida; o setor da palavra
humana, sobretudo da linguagem poética, onde a imaginação simbólica tem o privilégio de
ser a fonte de uma produtividade psíquica que se exprime através de metáforas e devaneios
poéticos , Gaston Bachelard, diferentemente de Jung, delimita o bom e o mau uso da
imaginação simbólica, assinalando que o sonho, o delírio, a doença mental permanecem
aquém da produtividade psíquica; e, diferentemente de Cassirer, Bachelard propõe que a
ciência é apenas um dos pólos da vida psíquica, reivindicando assim o direito a um “estudo
sistemático da representação” sem qualquer exclusão. A partir de uma fenomenologia
dinâmica e amplificadora que lhe permite através da dupla operação assinalada pelo par
ressonância-repercussão extrair a potencialidade criadora de cada imagem concreta, G.
Bachelard vai propor que a imaginação é a força fundamental da atividade psíquica. Nesse
sentido, a amplificação poética dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo) leva-o a afirmar o
caráter irredutível e primitivo das imagens poéticas, o que impede a confusão das mesmas
com as imagens oriundas da percepção do mundo exterior. Por isso mesmo, considerando a
imaginação um dinamismo organizador que funciona como fator de homogeneidade na
representação, Bachelard vai propor que essa não é a faculdade de formar imagens, mas uma
23
potência dinâmica que deforma” as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção de acordo
com a perspectiva criadora do espírito em ação na poesia. Esta, por sua vez, na concepção
bachelardiana, é uma “palavra querida” antes de ser “palavra falada’. Ou seja, a poesia se
forma no reino da vontade, antes de aparecer no âmbito da sensibilidade. É no âmbito da
vontade que se deve buscar, portanto, o sentido da ontogênese poética. Por isso mesmo, para
Bachelard, imaginação e vontade se reúnem e formam uma síntese: a vontade poética, que,
seja como vontade imaginante ou como imaginação querente, é expressão do ato criador do
espírito humano
12
.
Com Jung e, sobretudo, com Bachelard, a imaginação retoma seu lugar de força
mediatriz central da alma humana. Na esteira dos trabalhos de ambos, por vias diferentes e até
mesmo divergentes, seguem-se, na segunda metade do século XX, atendo apenas ao âmbito
da filosofia contemporânea de expressão francesa, as contribuições fundamentais de Gilbert
Durand
13
, Henry Corbin
14
e Paul Ricoeur. É o aporte deste último à filosofia da imaginação
12
Sobre a imaginação em Bachelard, dentre outros, pode-se consultar: Vera Lucia G. FELÍCIO, A imaginação
Simbólica nos quatro elementos bachelardianos, SP, Edusp, 1994; Richards KEARNEY, “The poetical
imagination (Bachelard)” in _________ Poetics of Imagining, NY, Fordahan University Press, 1998.
13
Para Durand, como ele próprio afirma, “a imaginação, enquanto função simbólica, não é mais relegada, como
nas concepções clássicas, a ser um ficit, uma pré-história do pensamento sadio como é ainda o mito em
Cassirer ou, então, a ser um fracasso do pensamento adequado , como para Freud. Ela também não é, como para
Jung, o único momento de um raro sucesso sintético, no qual o esforço de individuação mantém em contato
harmônico o sinn e bild. Ela não é apenas a reequilibração da objetivação científica através da poética, tal como
aparece em Bachelard. A imaginação se revela o fator geral de equilibração psicossocial” (1988, p.77). Esse
fator geral de equilibração que, segundo Durand, anima todo imaginário se manifesta sob a aparência de três
esquemas de ação (distinguir; reunir,confundir) que correspondem aos três grupos de estruturas (esquizomorfas,
sintéticas e místicas) que se arraigam em três sistemas reflexo-dominantes (dominante postural; dominante
copulativa dominante digestiva;). Assim, na perspectiva durandiana, as imagens se enxertam num trajeto
antropológico que abarca tanto o plano neurobiológico, como o plano cultural/espiritual. Gilbert Durand sustenta
que a expressão privilegiada de imagens se encontra no mito, por isso mesmo propõe uma “mitodologia”
(mitocrítica e mitoanálise) que visa captar as configurações de imagens de um indivíduo, de um grupo social, de
determinada época, detectando as figuras míticas dominantes, identificando sua tipologia e procurando ciclos de
transformação da mesma. Elaborando uma teoria geral do imaginário, Durand destaca-se como uma das maiores
autoridades contemporâneas sobre o assunto (cf. WUNENBURGER, 2007, p.19s). Para um maior
aprofundamento pode-se consultar, dentre outros: G. DURAND, As estruturas antropológicas do imaginário:
introdução à arquetipologia, Presença, 1989; Denis D BADIA, Imaginário e Ação Cultural: As contribuições de
Gilbert Durand e da Escola de de Grenoble. Dissertação de Mestrado. ECA-USP, São Paulo, 1993.
14
Aplicando a fenomenologia husserliana à consciência religiosa voltada para o supra-sensível, e tomando como
objeto de pesquisa os relatos das experiências místicas e visionárias dos persas zoroastras e dos mulçumanos
xiitas, Henry Corbin põe em evidência uma forma de imaginação metapsicológica através da qual a consciência
humana pode experimentar o imaginal, isto é, o mundo de imagens autônomas que, ultrapassando as imagens
oriundas de uma imaginação psicofisiológica produtora de ficções irreais, desvelam realidades imateriais mas
24
que pretendemos pôr em relevo na presente dissertação.
3. Objetivos, Justificativas e Plano da Dissertação.
A obra de Paul Ricoeur, com seus múltiplos desvios e dada à imensa cultura filosófica
nela consignada, pode desorientar quem queira examiná-la com rigor. O estilo filosófico de
Ricoeur, caracterizado por ele mesmo como sendo uma “espécie de esquizofrenia controlada”,
fez com que sua obra fosse constituída a partir de “resíduos”, isto é, questões deixadas em
aberto numa obra anterior e que foram deslocadas para o proscênio em publicações
posteriores. Assim, aqueles que desejam entender o desenvolvimento do pensar ricoeuriano se
deparam com uma sucessão de temáticas aparentemente desconexas, tais como a vontade, a
simbólica, a psicanálise, a metáfora, a narrativa, a ação, a identidade, o justo e, mais
recentemente, a memória, o reconhecimento e a tradução.
Tendo em vista essa multiplicidade de temas e a complexidade das conexões internas
do pensamento ricoeuriano, preliminarmente, foi necessário, visando uma melhor delimitação
do trabalho de pesquisa que fundamentou a presente dissertação, proceder dois “recortes”. O
primeiro foi de ordem temática: elegeu-se como fulcro de nossa pesquisa a questão da
imaginação no pensamento de Paul Ricoeur
15
. Embora Ricoeur não tenha dedicado nenhuma
de suas grandes obras à explicitação sistemática deste tema, verifica-se que a imaginação
sensíveis. Segundo essa perspectiva, entre o mundo inteligível do Uno divino e o mundo sensível no qual
estamos encarnados, existe o mundo imaginal, realidade intermediária que permite a manifestação do mundo
inteligível através de realidades imaginais (seres, paisagens, espaços), que não são representações imaginárias do
Absoluto divino, mas manifestações indiretas do mesmo. (cf WUNENBURGER, 2007, p.23ss). Uma exposição
dos principais contributos de H. Corbin para a filosofia da imaginação encontramos em Christian JAMBET, A
lógica dos orientais: Henry Corbin e a ciência das formas, Ed. Globo, 2006.
15
François Dosse, na obra cujo tema é o itinerário intelectual de Paul Ricoeur, além da referência a um curso
sobre a imaginação ministrado pelo filósofo em Chambon, no ano de 1947 (cf. p.106), destaca também a
importância da imaginação no pensamento ricoeuriano a partir dos anos 70, ressaltando que essa temática foi
abordada em dois seminários conduzidos pelo filósofo na Sorbonne durante os anos letivos de 1973-1974 e
1975-1976. Dosse destaca a importância destes e de outros seminários como sendo uma espécie de trabalho
subterrâneo que alimenta a obra de Paul Ricoeur (cf. DOSSE, 1997, p. 498). Ainda quanto à importância da
temática da imaginação na produção filosófica de Ricoeur nas décadas de 70 e 80, pode-se fazer referência ao
testemunho do próprio filósofo dado numa aula magistral ministrada em Barcelona (em 2001) e recolhido por
JERVOLINO (2002: p.78). Diz Ricoeur: "A linguagem tornara-se, nos anos 1970-1980, o lugar de todas as
confrontações. Sem perder o fio da minha pertença ao movimento fenomenológico e hermenêutico, eu me
concentrei sobre o aspecto criador da linguagem: como significações novas são formadas? Pode-se chamar este
problema como sendo o problema da imaginação semântica (...)”.
25
apresenta-se como um fio condutor que atravessa as diversas fases do pensar ricoeuriano
16
.
Mesmo reconhecendo a transversalidade da imaginação ao longo das várias etapas de
desenvolvimento da filosofia de Ricoeur, circunscreveu-se a perscrutação da mesma a uma
determinada fase de seu pensamento. Isso implica que foi preciso proceder a um segundo
recorte, agora de ordem cronológica: essa dissertação focaliza, sobretudo, o trabalho
filosófico elaborado por Ricoeur nos anos 1970-1990. Assim sendo, o cerne de nossa
pesquisa, estudando o tema da imaginação nas principais obras do filósofo publicadas neste
período, organiza-se em torno da seguinte questão: Qual o estatuto atribuído à imaginação
na hermenêutica do texto, na hermenêutica da ação e na hermenêutica do Si elaboradas
por Ricoeur? Desse modo, conforme já anunciamos, a presente dissertação visa oferecer
alguma contribuição à tentativa de explicitar e sistematizar o tema da imaginação no
pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur elaborado entre 1970 e 1990. Para a
operacionalização desse objetivo geral senecessário inquirir o papel central da imaginação
no discurso metafórico e narrativo e a sua extensão à esfera da ação e ao campo da ética. Por
isso mesmo, os objetivos específicos da presente dissertação são os seguintes:
16
Vários autores têm colocado em evidência a importância da temática da imaginação para o pensamento
ricoeuriano. Pelo que nos consta, SCHALDENBRAND, num artigo publicado em 1979, tem o mérito de
explicitar e sistematizar este tema desde Le Volontaire et l’Involontaire (1950) até La Métaphore vive (1975)
(cf. SUMARES 1987, nota 28, p.45). Manuel SUMARES, em sua obra O sujeito e a cultura na Filosofia de
Paul Ricoeur (1987), discutindo a questão do possível, diz que este surge pela imaginação que é o cruzamento
entre a necessidade e o querer (cf. pp.45; 73). Na mesma perspectiva, encontramos na obra de ll
SKÚLASON, Le cercle du sujet dans la philosophie de Paul Ricoeur, uma referência à imaginação enquanto
“potência do possível e da esperança”. Este mesmo autor ressalta também a importância da imaginação para a
articulação da visada fenomenológica nas duas primeiras pesquisas ricoeurianas. Mais recentemente, na tese de
doutorado defendida na Universidade dos Açores (Portugal), Imaginação em Paul Ricoeur, Maria Gabriela
Azevedo e Castro procurou mostrar que a imaginação é o fio condutor da unidade da obra de Paul Ricoeur.
Partindo da hipótese de que existe uma alteração progressiva na radicalidade da compreensão desta noção ao
longo das diversas etapas do pensamento do filósofo francês, esta autora chega à conclusão de que a imaginação
é uma realidade implícita e funcional ao longo de todo o percurso reflexivo de Ricoeur e que ele, ciente da
importância desta temática, só não desenvolveu de modo mais sistematizado uma filosofia da imaginação por
inoportunidade contextual no seu itinerário filosófico (cf. CASTRO, 2002: 291ss). Assim, considerando o
resultado da pesquisa de Castro (2002) segundo a qual a imaginação em Ricoeur vai "ganhando conteúdo, num
caminhar intelectual progressivo da simples reprodução para a posição de sustentação absoluta no domínio da
criatividade" (2002: 293), retomamos aquilo que Sumares afirma: “[para Ricoeur] a imaginação não é apenas
uma faculdade que reúne as imagens da experiência ou que projecta (sic) um nada ao fugir da realidade
presente, mas (...) é produtora e operativa...” (cf. SUMARES, 1987, p.46). Por isso tudo, com M. COSTA, autor
da apresentação ao público português de A metáfora viva, podemos dizer que a revisão crítica do conceito de
imaginação e da sua função heurística na redescrição da realidade é uma das condições de inteligibilidade desta e
de outras obras do filósofo francês (cf. RICOEUR, 1983, Introdução, p. XX).
26
1. Explicitar o estatuto da imaginação na hermenêutica do texto, analisando, no
âmbito das reflexões desenvolvidas em La Métaphore Vive (1975), aquilo que Paul
Ricoeur denominou de “o problema da imaginação semântica”;
2. Aclarar o estatuto da imaginação na hermenêutica da ação, discutindo a partir da
relação entre narrativa, imaginação e ão explicitada por Ricoeur em Temps et
Récit I, II e III (1983-85) a proposta ricoeuriana defendida em Du texte à
l’action (1986), segundo a qual, "embora primordialmente pertencente à esfera
do discurso, a imaginação pode ser generalizada à esfera da ação";
3. Relacionar a hermenêutica do si explicitada em Soi-même comme un autre (1990)
com a questão da imaginação, explorando a proposta ricoeuriana, segundo a qual
“uma imaginação ética se alimenta de imaginação narrativa”.
Em função do que acaba de ser assinalado, o presente trabalho está dividido em três grandes
momentos:
1. O PROBLEMA DA IMAGINAÇÃO SEMÂNTICA
2. EXTENSÃO DA IMAGINAÇÃO SEMANTICA À ESFERA DA AÇÃO
3. NARRATIVA, IMAGINAÇÃO E ÉTICA NA HERMENÊUTICA DO SI
Por fim, acolhendo as indicações metodológicas de Johan Michel propostas na
abertura de seu amplo estudo dedicado à filosofia prática de Paul Ricoeur (cf. 2006, p.14s),
sustentamos que o exame do tema da imaginação na hermenêutica ricoeuriana, de acordo com
o foi apresentado no elenco dos objetivos específicos desta dissertação, demanda a utilização,
em graus variáveis, de quatro estratégias metodológicas: primeiramente, será necessária uma
“abordagem intratextual” que privilegie uma leitura analítica das obras que Paul Ricoeur
publicou nos anos 1970-1990, não visando fazer uma análise exaustiva das mesmas, mas
objetivando rastrear nelas o estatuto que a imaginação detém no pensamento ricoeuriano
desenvolvido nesta etapa de seu itinerário filosófico; em seguida, em consonância com o
modo como Ricoeur elaborou alguns de seus principais textos (a partir de “resíduos” de obras
anteriores) e em sintonia com o estilo de seu pensamento (múltiplos desvios), será necessário
27
articular o pendor analítico, que visa uma leitura dos textos de Ricoeur a partir da temática da
imaginação, com uma leitura mais abrangente, cujo objetivo é mostrar as articulações internas
do pensamento ricoeuriano, ou seja, trata-se de levar em conta aquilo que Johan Michel
denominou de “intertextualidade interna” que privilegia a interpretação recíproca do todo e
das partes, propiciando a articulação entre as dimensões sincrônicas e diacrônicas do
pensamento ricoeuriano. Além do sugerido nos dois passos metodológicos anteriores, dado
que P. Ricoeur não hesita em dialogar com os seus contemporâneos e considerando que sua
obra é povoada de história da filosofia, faz-se necessária tal qual Johan Michel propôs
uma leitura do pensamento filosófico de Ricoeur que evidencie a sua “intertextualidade
externa”. Assim sendo, nos limites de uma dissertação de mestrado, procuraremos nos
esforçar para situar a teoria ricoeuriana da imaginação no quadro mais amplo da tradição
filosófica, por um lado, recuperando, as marcas indeléveis que Kant deixou na abordagem
ricoeuriana da imaginação; por outro, explicitando outros contributos filosóficos que Ricoeur
convoca diretamente em apoio à sua argumentação. Tudo isso deve ser finalmente
complementado, quando for necessário, com uma última estratégia metodológica sugerida por
J. Michel: atenção à recepção filosófica da obra ricoeuriana
17
.
17
A recepção filosófica do pensamento de Paul Ricoeur não é homogênea. Johann Michel menciona, por
exemplo, a existência de um “conflito de interpretações” no que tange ao estatuto da modernidade no
pensamento ricoeuriano: para alguns de seus críticos (como Rochlitz e Bouchindhomme), a filosofia de Paul
Ricoeur apresenta uma vertente anti-moderna, com matizes tradicionalistas, servindo-se de pressupostos
herdados do cristianismo; outros autores (como O. Mongin) situa o pensamento ricoeuriano numa órbita mais
neo-kantiana e universalista, por fim, existem aqueles (como F. Dastur e B. Stevens) que chegam a remeter a
filosofia de Ricoeur para o horizonte heideggeriano e até mesmo para o horizonte desconstrutivo (cf. MICHEL,
2004, p.643).
28
1 – O PROBLEMA DA IMAGINAÇÃO SEMÂNTICA
"A linguagem tornara-se, nos anos 1970-1980, o lugar de todas as confrontações.
Sem perder o fio da minha pertença ao movimento fenomenológico e hermenêutico,
eu me concentrei sobre o aspecto criador da linguagem: como significações novas
são formadas? Pode-se chamar este problema como sendo o problema da imaginação
semântica (...) É neste vasto campo do imaginário semântico que eu talhei dois
domínios bem delimitados: de um lado, a formação da linguagem poética na esteira
das expressões metafóricas (...) de outro lado, a formação da linguagem narrativa na
esteira da lingüística estrutural aplicada à narrativa”. (RICOEUR, 2002, p.78 )
O presente capítulo visa examinar a teoria semântica da imaginação que Ricoeur
elabora em A metáfora viva. Para tanto, em primeiro lugar, mostramos como o filósofo,
servindo-se da teoria moderna da metáfora, elaborada em ngua inglesa por I. A. Richards,
Max Black, Monroe Beardsley, delimita o problema da inovação semântica e da referência
metafórica. Em seguida, apresentamos a análise ricoeuriana dessas duas questões, à luz das
quais emerge a reflexão do filósofo acerca do estatuto da imaginação no âmbito da metáfora.
A retomada da abordagem ricoeuriana sobre o fenômeno de inovação semântica que ocorre
em enunciados metafóricos, tendo como pano de fundo a discussão acerca da necessidade de
uma reformulação do caráter icônico da semelhança a fim de que a imaginação mesma se
torne um momento propriamente semântico do enunciado metafórico, conduzir-nos-á após
a passagem pelo exame do momento “icônico” da metáfora à soleira da concepção kantiana
de imaginação produtiva. Diante disso, faz-se necessária uma tematização, mesmo que
introdutória, de alguns elementos da teoria kantiana sobre a imaginação, a fim de se
compreender melhor a proposta ricoeuriana de um “esquematismo da atribuição metafórica”.
a retomada do exame empreendido por Ricoeur da relação entre metáfora e referência
exigirá o acompanhamento da defesa que ele faz da tese segundo a qual a suspensão da
função referencial, na linguagem poética, é a condição negativa para o surgimento de um
modo mais fundamental de referência. Na seqüência, seremos conduzidos ao exame do modo
como o filósofo demonstra que as expressões metafóricas não se limitam a uma criação de
sentido, baseada numa nova pertinência semântica, mas, em virtude da correspondência entre
29
um ver-como no plano da linguagem e um ser-como no plano ontológico, contribuem também
para uma redescrição da realidade. Por fim, sintetizamos os principais elementos de uma
teoria semântica da imaginação que podem ser extraídos das análises precedentes.
Antes de desenvolvermos a reflexão que acaba de ser delineada, para melhor
contextualizá-la, propõe-se uma análise do percurso que conduziu Ricoeur de uma
hermenêutica centrada na interpretação de símbolos à hermenêutica dos textos.
1.1 - DO SÍMBOLO AO TEXTO
Embora tecido por uma multiplicidade temática e marcado por certa descontinuidade,
o pensamento de Paul Ricoeur não é um confuso e sincrético conjunto de idéias. Seguindo a
opinião de F. DOSSE (cf. 1997, p.20s), postulamos que, para além de seus múltiplos desvios,
uma dinâmica interna particularmente forte atravessa a totalidade da obra ricoeuriana.
Também consideramos que, dando primazia à vertente hermenêutica do pensamento de Paul
Ricoeur, o labor filosófico deste autor admite ser organizado, basicamente, em duas grandes
fases: a fase pré-hermenêutica e a fase hermenêutica propriamente dita
1
.
Na primeira articulando a filosofia reflexiva francesa, a filosofia da existência de
Marcel e Jaspers e o método fenomenológico husserliano visa-se captar as estruturas
existenciais do “eu sou”, superando assim a idéia cartesiana de um cogito puro fechado sobre
ele mesmo. Neste primeiro momento de seu itinerário filosófico, Ricoeur concebendo a
existência humana como abertura e possibilidade frente à realidade objetiva do mundo, como
poder de decisão e afirmação originária inaugura, com a publicação de Le Volontaire et
1
De acordo com JEVORLINO (cf. 2000, p.30), é o próprio Ricoeur, num artigo colocado na abertura de Du
Texte à l'action, que sugere uma periodização de seu trabalho, distinguindo uma primeira e uma segunda fase do
mesmo. Há, contudo, outras propostas mais detalhadas de organização do pensamento ricoeuriano. Por exemplo,
BERTI e VOLPI em Storia della Filosofia: Ottocento e novecento classificam a sucessão de temas em
Ricoeur em quatro ciclos: Fenomenologia da vida prática (1950-1960); Hermenêutica da cultura (1960-
1975); Conhecimento e narração (1975-1985); Hermenêutica do si (a partir de 1985). Já THOMASSET,
em Paul Ricoeur: une poétique de la morale, propõe a seguinte trajetória: 1) 1950-1960: Do cogito Reflexivo à
descoberta da hermenêutica; 2) 1960-1975: Abordagem do conflito das interpretações; 3) 1975-1985:
Abordagem da criatividade da linguagem (metáfora e Narração); 4) a partir de 1985: Hermenêutica do si e a
ontologia do agir. Trata-se de uma questão aberta ao debate (cf MONGIN, 1994).
30
I´involontaire (1950), o projeto de uma filosofia da vontade
2
. Nessa obra, ele busca construir,
mediante a abstração da realidade do mal e da transcendência, uma eidética do ato voluntário
que desemboca numa reflexão filosófica sobre os limites do querer livre
3
.
Contudo, quando Paul Ricoeur, em 1959, publica o artigo “Le Symbole donne à
penser”, anunciava-se uma forte guinada no percurso intelectual do filósofo francês. Essa
transformação seria confirmada, um ano mais tarde, na segunda parte de Finitude et
Culpabilité. De fato, enquanto L´Homme Faillibre, primeira parte da obra de 1960, está em
plena consonância com a perspectiva delineada pelo jovem Ricoeur em sua tese de doutorado,
a segunda parte La Symbolique du mal operacionaliza um deslocamento metodológico
fundamental: passa-se de uma fenomenologia eidética para uma fenomenologia hermenêutica.
Ricoeur, no prefácio de Finitude et culpabilité, assinala que o discurso filosófico centrado
sobre o tema da falibilidade, isto é, sobre a fraqueza constitucional que faz com que o mal seja
possível na realidade humana, representou um alargamento da perspectiva antropológica de
sua primeira obra, então mais estreitamente centrada na estrutura da vontade. Ricoeur também
assinala que essa antropologia filosófica, dominada pelas idéias de desproporção, de
polaridade do finito e do infinito e de intermediário ou mediação, recebe da simbólica do mal
um novo impulso e um enriquecimento considerável. Visando compreender melhor a
falibilidade humana, Ricoeur decide examinar o regime empírico (isto é: concreto e histórico)
da vontade através da linguagem da confissão e dos mitos.
2
Inicialmente, Ricoeur concebeu esse projeto abrangendo três grandes partes: uma eidética, uma empírica e uma
poética da vontade. As duas primeiras partes da filosofia da vontade foram elaboradas em Le Volontaire et
I´involontaire (1950) e Finitude et Culpabilité (1960), respectivamente. Quanto à poética da vontade, Ricoeur
jamais a concretizou numa obra sistemática.
3
As diversas obras publicadas por P. Ricoeur nas duas primeiras décadas da segunda metade do século XX, em
especial a primeira parte de sua filosofia da vontade, podem ser caracterizadas como brilhantes análises de
antropologia filosófica. Aliás, pode-se dizer que Ricoeur jamais abandonará a questão da antropologia
filosófica, dado que ela permanece subjacente a qualquer um dos seus grandes trabalhos posteriores. À
propósito, uma breve reflexão sobre as várias possibilidades referentes à caracterização do conjunto do projeto
filosófico ricoeuriano, pode ser encontrada no final da introdução do livro Hermenêutica e Ontologia em Paul
Ricoeur (cf. HELENO, 2001, p. 32ss). Por exemplo, segundo afirma o autor deste livro, para JEVORLINO, o
verdadeiro ponto de referência da obra de Ricoeur é a existência concreta, temporal e histórica destes seres
humanos que sofrem e agem. Na mesma linha, o autor faz referência à opinião de M. MACEIRAS, para quem a
preocupação única de Ricoeur é a compreensão do homem, sendo que tal projeto antropológico inicia-se com Le
Volontaire et l’Involontaire e perpassa a totalidade da obra ricoeuriana.
31
Essa decisão marca o início da fase hermenêutica do pensamento ricoeuriano: uma vez
que a linguagem que traduz o homem na sua falibilidade não é direta ou unívoca, mas
figurada e equivoca, ou seja, simbólica, Ricoeur assinala que o sujeito não se conhece a si
mesmo diretamente, mas unicamente por meio dos símbolos depositados em seu imaginário
pelas grandes culturas. Assim, ao incorporar à análise da vontade a interpretação dos símbolos
da mancha, do pecado e da culpabilidade, expressões indiretas da consciência do mal, ocorre,
como destaca o filósofo, uma verdadeira revolução metodológica representada pelo recurso às
regras de deciframento aplicadas ao mundo dos símbolos (cf. RICOEUR, 1960, pp. 11-12).
Essa revolução metodológica não representou, contudo, uma separação estanque entre
fenomenologia e hermenêutica. Tratou-se antes de uma renovação e de uma complexificação
destes dois campos, explicitadas por Ricoeur através da imagem do enxerto do problema
hermenêutico no método fenomenológico (cf. RICOEUR, 1969, p.7). No entanto, a variante
hermenêutica proposta por Ricoeur, aos olhos dos adeptos ortodoxos de uma fenomenologia
transcendental animada pelo ideal de uma autofundação radical, aparece como sendo uma
espécie de heresia, uma vez que coloca em xeque as principais pressuposições do idealismo
husserliano
4
.
A guinada hermenêutica no pensamento de Ricoeur exigiu do filósofo não apenas um
posicionamento crítico perante a fenomenologia husserliana, mas também o obrigou a
repensar a influência que recebera da filosofia reflexiva francesa. De fato, nos inícios dos
4
O essencial da crítica ricoeuriana à fenomenologia de Husserl encontra-se em “Phénoménologie et
herméneutique: en venant de Husserl”. No referido estudo, Paul Ricoeur deixa claro que a hermenêutica
questiona não a totalidade do empreendimento fenomenológico, mas somente a interpretação idealista
husserliana do mesmo. Assim sendo, após apresentar as teses esquemáticas do idealismo husserliano, Ricoeur
sustenta que é possível opor a hermenêutica a cada uma delas: o ideal de cientificidade entendida como
justificação última, encontra seu limite fundamental na condição ontológica da compreensão; à exigência
husserliana de retorno à intuição se opõe a necessidade de toda compreensão ser mediatizada por uma
interpretação; de tal forma que a promoção da subjetividade ao nível do transcendental como lugar da
intuitividade plena deixa de ser uma verdade indubitável; a hermenêutica axiada sobre a coisa do texto, e não
sobre a intenção do autor, é uma maneira radical de questionar o primado da subjetividade, uma vez que coloca
em xeque a teoria idealista da constituição do sentido na consciência; Assim sendo, a hermenêutica convida a
fazer da subjetividade não a origem radical, mas o destino último de uma teoria da compreensão (cf. 1986, p.
43ss).
32
anos 60, o filósofo tomando distância a respeito de uma consciência de si imediata,
transparente e direta e defendendo a necessidade de um desvio pelos signos e pelas obras
desdobradas no mundo da cultura assume uma perspectiva filosófica que acentua a
necessidade da mediação lingüística contra as filosofias do imediato. Essa concepção de
reflexão indireta já está acionada em La Symbolique du Mal: na medida em que no símbolo há
uma zona de opacidade que escapa à consciência imediata, o desvio pela simbólica ajuda a
romper com o “charme pernicioso de uma consciência narcisicamente centrada em si mesma
e possibilita quebrar o cogito em sua pretensão de autoposição e reinstalá-lo numa ontologia
existencial da finitude. Em outras palavras, o desvio pelos símbolos descentraliza a
consciência e esvazia as pretensões de um cogito exaltado. De acordo com as palavras do
próprio Ricoeur:
É então finalmente como índice da situação do homem no coração do ser no qual ele age e deseja
que o símbolo nos fala. Desde então a tarefa do filósofo guiado pelo símbolo será de romper o
recinto encantado da consciência de si, de quebrar o privilégio da reflexão. O mbolo a pensar
que o Cogito está no interior do ser e não o inverso (1960, p.331).
Conforme acabamos de expor e o próprio Ricoeur confirma em sua autobiografia
intelectual a primeira definição ricoeuriana de hermenêutica, condicionada pelas
investigações desenvolvidas em La symbolique du Mal, foi expressamente concebida como
deciframento dos símbolos (cf. 1985, p.31). Influenciado pela fenomenologia da religião que
considerava o símbolo “a linguagem do sagrado, o verbo das ‘hierofanias’” (1965, p.23), Paul
Ricoeur, analisando as três zonas de emergência do simbólico (cósmico, onírico e poético),
salienta que é no universo da linguagem que essas realidades ganham dimensão simbólica.
Mais especificamente, de acordo com a abordagem ricoeuriana, o simbólico se insere no
âmbito das expressões lingüísticas de duplo sentido: “há símbolo quando a linguagem produz
signos de grau composto onde o sentido, não contente em designar algo, designa um outro
sentido que será atingido na e por sua visada” (1965, p.25). Dessa forma, em suma, a
interpretação, na perspectiva da primeira hermenêutica ricoeuriana, é a inteligibilidade do
33
duplo sentido.
Desde a publicação de La Symbolique du mal em 1960, Ricoeur, conforme ele mesmo
atesta em sua autobiografia intelectual, empreendeu uma leitura relativamente exaustiva da
obra de Freud. Assim, ele descobriu rapidamente que era uma abordagem do símbolo oposta à
sua que Freud tinha inaugurado em A interpretação do sonho (cf. 1995, p. 35). A partir dessa
confrontação com o fundador da psicanálise, Ricoeur publica fruto dos vários cursos
ministrados na Sorbonne e das conferências dadas na universidade de Yale (outono de 1961) e
na universidade de Louvain (outono de 1962) a famosa e polêmica obra De
l´interprétation: essai sur Freud (1965)
5
. Nela, o filósofo francês tem como preocupação
central examinar a consistência do discurso freudiano, segundo uma vertente epistemológica
(na medida em que aborda a questão referente à natureza da interpretação psicanalítica);
reflexiva (na medida em que coloca a questão: qual a nova compreensão de Si que resulta
dessa interpretação, e que Si, assim, se compreende?) e dialética (a interpretação freudiana
exclui todas as demais? Se não, como coordená-la com outras interpretações?) (cf. 1965, p. 8).
Para o que nos interessa neste momento, ressaltamos que Ricoeur abre suas análises
destacando que o confronto com Freud se situa no horizonte do grande debate relativo à
linguagem:
Parece-me que ela [a linguagem] é um domínio sobre o qual se recortam hoje todas as investigações
filosóficas. É aí que se cruzam as investigações de Wittgenstein, a filosofia lingüística dos ingleses,
a fenomenologia oriunda de Husserl, as investigações de Heidegger, os trabalhos da escola
5
Deve-se ressaltar a influência hegeliana neste projeto ricoeuriano, no qual o autor defende a necessidade de se
pensar a problemática da subjetividade, por um lado, renunciando a uma filosofia e psicologia imediata da
consciência para aceder à ela como tarefa, por outro, seguindo o método reflexivo que parte do movimento
objetivo das figuras do Espírito. Em função disso, o filósofo propõe que se articulem dialeticamente as duas
hermenêuticas dos símbolos culturais, isso é, a progressiva (fenomenologia do espírito) e a regressiva,
(arqueologia do inconsciente) (cf. .MATTEO, 2005). Contudo, deve-se ressaltar também que, considerando a
totalidade de seu itinerário filosófico, as relações de Ricoeur com a filosofia hegeliana, conforme assinala
Vincenzo Di Matteo, são tardias, complexas e ambivalentes: “Tardias, porque o pensamento de Hegel está
ausente na sua tese de doutorado, como ele próprio reconhece. O enfoque do voluntário era demasiadamente
subjetivista, quase solipsista. Era confrontado apenas com o corpo e o mundo, faltando uma confrontação que é
essencial para Hegel: o encontro de uma vontade com outra vontade, segundo o modelo do mestre e do escravo,
e o da liberdade com as instituições. Complexas, porque suas posições com relação a ela são flutuantes e o
próprio Ricoeur admite que houve um período que parece ter cedido ao que ele chama de ‘tentação hegeliana’.
Ambivalentes, por se sentir fascinado e repelido por ele, um hegeliano e um anti-hegeliano” (MATTEO, 2005).
34
bultmaniana e das demais escolas de exegese neo-testamentaria, os trabalhos de história comparada
das religiões e de antropologia sobre o mito, o rito, e a crença, enfim a psicanálise. (1965, p.13)
Inicialmente, a psicanálise entra neste debate sobre a linguagem não apenas a título de
interpretação da cultura, mas também como técnica de interpretação das narrativas de sonhos,
onde a palavra se articula com o desejo; e como técnica de interpretação dos lapsus, através
dos quais o desejo faz fracassar a palavra. Em outros termos, a psicanálise centra-se na
interpretação de todas as produções psíquicas que pertencem à semântica do desejo, enquanto
semântica do duplo sentido, do equivoco, isto é, do querer dizer outra coisa que aquilo que se
diz. Assim, o trabalho psicanalítico se inscreve numa região da linguagem que se apresenta
como o lugar das significações complexas onde um outro sentido, ao mesmo tempo, se dá e se
esconde num sentido imediato. Ou seja, na vasta esfera da linguagem, o lugar de inserção da
psicanálise é o âmbito do simbólico, entendido como sendo expressões lingüísticas de duplo
sentido. Entretanto, a temática referente à linguagem de duplo sentido não é exclusividade da
psicanálise. Também a fenomenologia da religião se debruçou sobre essa questão:
O problema da fenomenologia da religião [contudo] não é de inicio a dissimulação do desejo no
duplo sentido; ela não conhece inicialmente o símbolo como distorção da linguagem; ele é para ela
a manifestação de outra coisa que aflora no sensível, na imaginação, no gesto, no sentimento, a
expressão de um fundo do qual se pode dizer também que ele se mostra e se esconde. (RICOEUR:
1965, p.17)
Está instaurado, portanto, um verdadeiro conflito de interpretação em torno das
expressões lingüísticas de duplo sentido: o mostrar-esconder do duplo sentido é sempre
dissimulação daquilo que o desejo quer dizer ou é manifestação, revelação de um sagrado?
(cf. 1965, p.17) Todo problema hermenêutico, tal qual Ricoeur o concebe em meados dos
anos 60, procede desta dupla possibilidade. Deste modo, o trabalho hermenêutico em torno do
símbolo não goza de uma unidade: de um lado, uma hermenêutica entendida como a
manifestação e a restauração de um sentido, cuja interpretação é comandada pela fé/crença de
que uma verdade dos símbolos; de outro, uma hermenêutica baseada na desmistificação e
na redução de ilusões, apresentando-se como um efetivo exercício de suspeita.
35
Paul Ricoeur situa seu próprio trabalho hermenêutico no primeiro front, ao lado
daqueles que vêem a hermenêutica como sendo uma experiência de captação do sentido. Para
ele, Freud, numa primeira abordagem, está do outro lado do campo de batalha. Juntamente
com Marx e Nietzsche, o fundador da psicanálise é um dos mestres da suspeita. Os três, não
apenas através de uma crítica destrutiva, mas pela invenção de uma arte de interpretar,
descortinam um horizonte para uma palavra mais autêntica. Todavia, a “escola da suspeita”,
apesar desta convergência positiva, apresenta-se como sendo uma contestação do mítico-
poético da imaginação: diante da “função fabuladora”, a hermenêutica desmistificante propõe
a rude disciplina da necessidade. Porém, Ricoeur rebate essa contestação do nó mítico-poético
da imaginação com o seguinte questionamento: “a essa disciplina do real, a essa ascese do
necessário, não falta a graça da imaginação, o surgimento do possível? E esta graça da
imaginação, não tem qualquer coisa a ver com a Palavra como Revelação?” (1965, p.44).
Mesmo após a travessia por Freud, a hermenêutica ricoeuriana ainda permanece
centrada sobre as estruturas semânticas de duplo sentido (símbolos). Todavia, o confronto
com o estruturalismo, sistema de pensamento que demandava um tratamento objetivo de
todos os sistemas de signos, acabaria por levar Ricoeur, no início dos anos 1970, a uma
redefinição da tarefa hermenêutica.
Em Le Conflit des interprétation: essais d´herméneutique, publicado em 1969, Paul
Ricoeur reúne textos em que discute a relação entre hermenêutica e a perspectiva estrutural
vinda de Saussure e desenvolvida no campo antropológico por Lévi-Strauss. Deve-se
sublinhar que, nestes textos produzidos ao longo dos anos 60, o filósofo se posiciona a
favor da singularidade de um dizer por meio do qual a língua se produz. Neles, Ricoeur
salienta também a abertura da linguagem para o extralingüístico, procurando mostrar que não
se pode apenas tratá-la como um sistema fechado de signos, passíveis de serem inventariados
em arranjos combinatórios, a partir de relações de oposição. Assim sendo, de acordo com a
36
perspectiva ricoeuriana, não se pode reduzir a busca do sentido à explicitação de um mero
ordenamento sintático, tal qual Lévi-Strauss preconiza. Todavia, no artigo “Structure et
Herméneutique”
6
, Ricoeur assinala claramente que seu intuito não é o de opor de maneira
simplista estruturalismo e hermenêutica. Para ele, o estruturalismo – visando pôr em distância,
objetivar, separar da equação pessoal do pesquisador a estrutura de uma instituição, de um
mito, de um rito é a abordagem mais rigorosa e mais fecunda no âmbito das ciências
humanas, constituindo-se como etapa necessária de toda inteligência hermenêutica, cuja
visada é a apropriação do sentido suspenso na simbólica (Cf. RICOEUR, 1969, p. 33s).
Após o debate com o estruturalismo, em especial após o confronto crítico com as
propostas de Lévi-Strauss, Ricoeur assumiu determinados pontos de vistas que influenciaram
o desenvolvimento posterior de sua obra. Uma das mudanças mais significativas se deu em
relação à hermenêutica dos símbolos. Embora reconheça que a sua primeira hermenêutica
tenha contribuído para dissipar a ilusão de um conhecimento intuitivo de si, impondo à
compreensão de si o desvio pelos símbolos transmitidos pelas culturas, Ricoeur sublinha
numa análise retrospectiva de seu itinerário filosófico que tal concepção hermenêutica
tornara-se então bastante estreita. Para ele, dado que o simbolismo pode desdobrar seus
recursos de plurivocidade na escala de um texto inteiro e que o conflito de interpretação, no
qual o simbolismo se insere, se desdobra numa escala textual, a hermenêutica não poderia
mais ser definida somente pelo deciframento de símbolos, mas deveria também abarcar a
6
Este artigo apareceu inicialmente num número da Revista Esprit de 1963 dedicado ao estruturalismo. Neste
número encontramos também a reprodução taquigráfica de um debate, ocorrido numa das reuniões do “Groupe
Philosophique” de Esprit, no qual Ricoeur dirige seus questionamentos diretamente a Lévi-Strauss: “A primeira
questão refere-se à intransigência do método, à sua compatibilidade ou incompatibilidade com outras
modalidades de compreensão. A questão do método me é diretamente inspirada pela mediação mesma dos seus
exemplos: perguntei-me até que ponto o êxito do método do senhor não seria facilitado pela área geográfica e
cultural em que ele se apóia, a saber, a do antigo totemismo, a da “ilusão totêmica”, caracterizada justamente
pela extraordinária exuberância dos arranjos sintáticos e talvez, em troca, pela grande pobreza de conteúdos; não
será este contraste que explica a facilidade com que o estruturalismo triunfa, no sentido de que ele triunfa quase
sem resíduo? Minha segunda questão é saber se há uma unidade do pensamento mítico, se não há outras
fórmulas do pensamento mítico que se prestariam menos ao estruturalismo. Esta vida me leva à terceira
questão: em que se torna a relação estrutura-evento, sincronia-diacronia, em função de outros modelos? Num
sistema em que a diacronia é mais inteligível, a sincronia surge como perturbação, fragilidade; (...) mas se
refletirmos sobre as organizações de pensamento dependentes não de uma relação diacronia-sincronia, tradição-
evento, o que acontece é de ordem inteiramente diversa (...)” (Esprit, nº 11, nov/63).
37
mediação pelos textos. Assim, de acordo com Paul Ricoeur, a hermenêutica entendida como
um trabalho de compreensão que visa decifrar os símbolos pode ser conservada a título de
uma etapa intermediária entre o reconhecimento geral do caráter lingüístico da experiência e
uma definição técnica da hermenêutica como interpretação dos textos (cf. 1986, p.34).
1.1.1 - A hermenêutica do texto
De acordo com Paul Ricoeur, “o texto é um discurso fixado pela escrita” (1986,
p.154). Antes de caracterizarmos essa “fixação pela escrita” constitutiva do texto, abordemos
a reflexão ricoeuriana sobre a efetuação da linguagem como discurso.
Essa reflexão aparece em diversas publicações do filósofo. Aqui, seguiremos mais de
perto as análises consignadas no ensaio “Linguagem como discurso” que abre a obra Teoria
da Interpretação (1987). Dentro do horizonte investigativo ricoeuriano, essa obra é a
contribuição mais sistemática à busca de uma filosofia compreensiva da linguagem que possa
explicar as múltiplas funções do ato humano de significar e todas as suas inter-relações.
No referido ensaio, ao discutir o problema da linguagem, que em si não é novo
7
, Paul
Ricoeur procura levar em conta a metodologia e as descobertas da lingüística moderna.
Retomando a distinção fundamental entre linguagem como langue e linguagem como parole,
proposta por F. Saussure no seu famoso Curso de lingüística geral
8
, Ricoeur contrapõe-se a
uma abordagem unidimensional da linguagem que, privilegiando a linguagem como langue,
analisa-a somente como sendo um sistema auto-significante de relações internas, onde um
elemento, graças à ação recíproca das oposições e diferenças constitutivas, remete apenas a
outros elementos do mesmo sistema. Ricoeur propõe uma abordagem bidimensional da
linguagem fundada na distinção entre signos e frases. Assim, para ele, uma lingüística
7
Platão já o discutiu no Crátilo (verdade das palavras), no Teeteto e no Sofista (como o erro é possível);
Aristóteles também em sua obra Da interpretação.
8
Parole é uma mensagem particular produzida a partir de um determinado código (langue) e situa-se na
dimensão diacrônica do tempo, sendo, portanto, contingente e arbitrária. A linguagem enquanto langue está no
tempo como um conjunto de elementos contemporâneos, ou seja, como um sistema sincrônico, constituindo um
inconsciente estrutural e cultural, apresentando-se de modo compulsório para uma dada comunidade lingüística.
38
semiótica (que se ocupa do signo), isto é, uma lingüística da forma. Mas também uma
lingüística semântica, ou seja, uma lingüística da significação, que se ocupa da frase enquanto
genuíno acontecimento da fala. Para Ricoeur, "a distinção entre semântica e semiótica é a
chave de todo o problema da linguagem" (1987, p.20).
Situando-se do lado da lingüística que se ocupa da frase enquanto genuíno
acontecimento da fala, Ricoeur estabelece que a linguagem se efetua como discurso
9
. O
discurso é a contrapartida daquilo que os lingüistas denominaram sistema ou código
lingüístico, ou seja, é o evento da linguagem que se realiza temporalmente no presente,
remetendo, através de um conjunto complexo de indicadores, a um locutor singular que,
fazendo referência a um mundo que se pretende descrever, exprimir ou representar, dirige-se a
um determinado interlocutor. Caracterizado deste modo, pode-se dizer que um discurso, em
suma, “é constituído por um conjunto de frases onde alguém diz alguma coisa a alguém a
propósito de alguma coisa” (RICOEUR, 1986, p.123). Analisando essa definição, o próprio
Ricoeur assinala que o discurso se apresenta como lugar de interseção de três problemáticas:
“aquela da mediação pelo império objetivo dos signos (...) também aquela do reconhecimento
do outro implicado no ato de interlocução, enfim a problemática da referência ao mundo e ao
ser implicado na visada referencial do discurso” (1995, p.41).
Como um discurso, enquanto efetuação de nossa competência lingüística em
performance, é algo fugidio e transitório, então o que pode ser retido dele, de acordo com a
reflexão ricoeuriana, não é outra coisa senão sua própria significação. Ou seja: para
permanecer, um discurso deve deixar-se ultrapassar enquanto evento na e pela significação.
9
É importante destacar a influência de E. Benveniste nessa tomada de posição de Ricoeur frente à lingüística
saussuriana. O autor de Problèmes de linguistique génerale apresenta motivos suficientes para manter a
referência (ao eu, ao outro e ao mundo) como o caráter fundamental da linguagem. Ele propõe a unidade entre
langue e parole. O discurso, cuja unidade básica é a frase, se apresenta como atos discretos e únicos pelos quais
a língua se atualiza em fala por um locutor. Ou seja, a linguagem começa quando a língua se atualiza em frases
predicativas que, no entanto, não podem ser reduzidas ao significado dos signos que as compõem, pois, através
de uma série específica de mecanismos, remetem a um sujeito falante e a seus interlocutores situados no mundo.
Assim, a lingüística do discurso de Benveniste ressalta a definição mesma do homem como sendo um falante no
mundo, um homem que fala com outro homem. A linguagem está inserida na natureza do homem (cf. FAFIAN
E BARRERA, s/d: 145ss)
39
É necessário entender por significação do ato de discurso, ou por noema do dizer, não somente o
correlato da frase, no sentido estreito do ato proposicional, mas também aquele da força ilocucionária e
mesmo aquele da ação perlocucionária, na medida em que esses três aspectos do ato de discurso são
codificados e regulados segundo paradigmas, na medida então em que eles podem ser identificados e
re-identificados como tendo a mesma significação. (RICOEUR, 1986, p.119)
De acordo com a citação que acaba de ser feita, deve-se destacar que Ricoeur propõe
uma acepção larga do termo significação’. Tal acepção é capaz de realçar que a
ultrapassagem do evento na e pela significação atesta a intencionalidade da linguagem, isto é,
atesta que a linguagem é uma visada significante. Ela é também capaz de abarcar todos os
aspectos e todos os níveis da exteriorização intencional do dizer no dito. Assim sendo,
verifica-se que, para aclarar a distanciação do dizer no dito, Ricoeur recorre à teoria do
Speech-Act. Segundo os proponentes dessa teoria, um ato de fala é constituído por uma
hierarquia de atos subordinados e distribuídos em três níveis: um ato de fala diz algo
(dimensão locucionária), faz algo ao dizer (dimensão ilocucionária ou performativa) e produz
efeito por dizer (dimensão perlocucionária). Ricoeur salienta que a extração do significado do
discurso não deve se restringir apenas à expressão lingüística, isto é, a dimensão locucionária
de um discurso, que se exterioriza em uma proposição, apresentada como enunciação
suscetível de ser transferida a outros com determinado sentido. Deve-se também, na busca da
significação de um discurso, considerar a força ilocucionária, exteriorizada graças aos
paradigmas gramaticais facilmente identificáveis, e os resultados que um ato de fala obtém no
mundo graças a sua ação perlocucionária, que, enquanto estímulo que afeta as emoções e as
disposições afetivas do interlocutor, é o aspecto menos suscetível de apresentar índices
externos (cf. 1986, p.118s).
De acordo com as considerações que acabam de ser apresentadas, quando um discurso
é fixado pela escrita, não apenas se retém as marcas materiais que transportam a mensagem.
Com a escrita não apenas uma fixação material da mensagem, ou seja, não uma mera
alteração no canal de comunicação do discurso. Deste, o que é efetivamente fixado pela
escrita é o "dito" da fala, ou seja, o “noema” do ato de falar. Portanto, um texto é a fixação
40
‘noemática’ da intenção ‘noética’ do dizer (cf. SUMARES, 1987, p.143). Em suma, a
escritura fixa a significação do evento lingüístico e não o evento enquanto tal. A escrita na
medida em que realiza aquilo que existe em estado virtual e incoativo na fala, a saber: a
separação da significação em relação ao evento apresenta-se como a plena manifestação do
discurso.
A fixação do discurso pela escrita afeta também a relação do mesmo como o locutor.
Na fala, a capacidade de o discurso se referir ao sujeito falante apresenta um caráter de
imediaticidade: na situação de interlocução dialógica, a intenção subjetiva do locutor e a
significação do discurso estão sobrepostos um ao outro. No entanto, com o discurso escrito,
essa sobreposição não ocorre mais. O que passa a existir é uma autonomia semântica do
texto
10
, gerada exatamente por essa desconexão entre a intenção mental do autor e o
significado verbal do texto. Assim sendo, o texto mediante sua autonomia semântica, isto é,
devido à desconexão entre aquilo que o autor quis dizer e aquilo que o texto significa livra-
se do horizonte finito do autor. Nesse sentido, o discurso fixado pela escrita deve ser visto
como uma espécie de partitura musical chamada a ser atualizada a partir do seu estado virtual.
Ao sustentar que “aquilo que o texto significa não coincide mais com aquilo que o
autor quis dizer” (1896, p.124), Ricoeur está assumindo um posicionamento diferente do que
é proposto pela hermenêutica romântica. A tarefa da hermenêutica, para ele, não mais se
define pela capacidade de se tornar contemporâneo à genialidade de um autor. A objetivação
do discurso num texto implica a despsicologização da interpretação. Contudo, pode-se
questionar: renunciar a atingir a alma de um autor significaria restringir a tarefa hermenêutica
apenas à reconstrução da estrutura de um texto? Ao evitar cair na ilusão romântica de um elo
de co-genialidade entre duas subjetividades (a do autor e a do leitor), estaria Ricoeur
10
O conceito "autonomia semântica" é extremamente importante para a hermenêutica, de acordo com a
opinião de Paul Ricoeur. Esse conceito, alertando para o fato de que o autor de um texto não está disponível,
aqui e agora, para ser interrogado, impede que se caia em posições extremas como a falácia intencional
(intenção do autor como critério para qualquer interpretação válida do texto) ou a falácia da hipostasiação do
texto (texto como uma entidade sem autor).
41
resvalando para uma ilusão positivista de uma objetividade textual firmada sobre si mesma e
independente de toda subjetividade?
De fato, Paul Ricoeur ressalta que, ao se considerar o discurso como obra isto é,
como totalidade finita e fechada pertencente a determinado gênero literário e dotada de uma
configuração única , o mesmo passa a ter caracteres objetivos de organização e de estrutura,
passíveis de serem analisados por métodos estruturais inicialmente aplicados às entidades
lingüísticas mais curtas que a frase. Todavia, se por um lado a explicação baseada na análise
estrutural torna-se um caminho obrigatório da compreensão; por outro, ressalta Ricoeur, a
objetivação do discurso em uma obra estruturada não suprime o fato de a linguagem visar
outra coisa que a si mesma. Servindo-se da reflexão de G. Frege que propõe a distinção entre
sentido (o que é dito) e referência (aquilo de que se fala), Ricoeur assinala que o sentido de
uma proposição é puramente imanente ao discurso, enquanto que sua referência é o seu valor
de verdade, a sua pretensão de atingir a realidade, fazendo com que, como ressaltamos, a
linguagem saia de si mesma. Ou seja, devido a seu poder referencial, o discurso visa às coisas,
se aplica à realidade, exprime o mundo (cf.1986, p.126). E o filósofo ainda acrescenta: “a
própria referência é um fenômeno dialético; na medida em que o discurso se refere a uma
situação, a uma experiência, à realidade, ao mundo, em síntese, à extralingüística, ele se refere
também a seu próprio locutor por meio de procedimentos essencialmente de discurso e não de
língua” (2000, p.121). Assim, levando em conta a dimensão referencial da significação de um
discurso, conclui-se que a busca do significado de um texto está impedida de se exaurir
apenas na estrutura do mesmo.
Com base no que acaba de ser apresentado, Ricoeur apresenta uma dupla tarefa da
hermenêutica, intimamente ligada ao par sentido-referência: 1) reconstruir a dinâmica interna
que preside a estruturação de um texto; 2) restituir ao texto a capacidade de se projetar fora de
si mesmo e de engendrar um mundo que será verdadeiramente a “coisa” do texto (cf. 1986,
42
p.36). Esse duplo aspecto da tarefa hermenêutica, na verdade, articula dialeticamente o
tradicional dualismo metodológico entre explicação e compreensão: “explicar e compreender
não constituem os pólos de uma relação de exclusão, mas os momentos relativos de um
processo complexo que se pode denominar interpretação” (1986, p.180).
Para um melhor entendimento desta dupla tarefa hermenêutica proposta por Ricoeur,
faz-se necessário, a nosso ver, apresentar o modo como a fixação escrita do discurso afeta sua
capacidade de se referir ao mundo. Sabe-se que o alcance referencial da fala é a possibilidade
de, no aqui e agora determinado pela situação interlocutória, mostrar a coisa referida por
indicação ostensiva ou descrição. Ricoeur enfatiza que a escrita, além de libertar o discurso de
seu autor, de seu auditório original
11
e da estreiteza da situação dialógica, liberta-o também da
referência real, mediante a abertura de um hiato entre a identificação e a mostração. De fato,
explica o filósofo, quando o texto assume o lugar da situação dialogal, concomitantemente o
movimento que vai da referência à mostração é interceptado. O texto, então, fica
provisoriamente suspenso, fora do mundo ou sem um mundo.
A partir dessa epokhé das referências situacionais e ostensivas, pode-se fazer uma
primeira espécie de leitura que, mantendo o rompimento das relações com um mundo que se
possa mostrar e com subjetividades com as quais se possa dialogar, trata o texto como um
texto sem mundo e sem autor. Neste caso, ler significa transferir-se para a clausura deste lugar
sem mundo, onde o texto se converte num mero sistema fechado de signos, sendo possível,
portanto, estender ao objeto literário toda a atitude explicativa derivada da lingüística
semiológica que está na origem do modelo estruturalista. Dessa forma, os procedimentos
estruturalistas de explicação constituem uma etapa necessária do processo de interpretação,
11
A fixação do discurso em texto implica também transformações no pólo da relação entre a mensagem textual e
o leitor. Um texto é dirigido a um leitor desconhecido e não a um "tu" como na situação dialogal. A escrita
provoca uma universalização do auditório: o texto, à parte as limitações sociais, dirige-se potencialmente a
quem saiba ler. Faz parte da significação de um texto estar aberto a um número indefinido de leitores e, por
conseguinte, de interpretações. Essas múltiplas leituras possíveis de um texto é a contrapartida dialética de sua
autonomia semântica. Tudo isso leva P. Ricoeur a afirmar belamente que "a hermenêutica começa onde o
diálogo acaba", isto é, a dinâmica total da interpretação se pela articulação do direito do texto com o direito
do leitor, sendo que ambos são liberados pela superação do contexto dialógico proporcionado pela escrita.
43
pois permitem a reconstrução da dinâmica interna que preside a estruturação de um texto,
primeiro pólo da tarefa hermenêutica.
Contudo, se a análise estrutural, por um lado, não nos deixa identificar a compreensão
com a apreensão da intenção subjacente ao texto, por outro lado, levando em conta a
dimensão referencial do discurso, devemos ultrapassá-la na direção da compreensão do
sentido do texto como sendo a injunção de um novo modo de olhar as coisas e de um novo
modo de o leitor compreender a si mesmo. Para tanto, urge ressaltar que o texto vai além de
apontar e mostrar o que existe. A partir de referências não-ostensivas e não-descritivas,
referências de segundo grau que atingem o mundo o mais no nível dos objetos
manipuláveis, mas no nível daquilo que Heidegger denominou de ser-no-mundo, o texto fala
de um mundo possível e de um modo possível de alguém nele se orientar, criando um novo
modo de ser. Em outros termos, o texto revela que a verdadeira destinação do discurso é a de
projetar um mundo, é a de estender diante do leitor um mundo que se distancia da realidade
cotidiana e no qual o leitor pode projetar um de seus “possíveis mais próprios”. Em
consonância com o que acaba de ser dito, interpretar é, ultrapassando a clausura do texto,
explicitar essa nova forma de ser-no-mundo desdobrada pelo texto (cf. 1986, p.127s; 157;
211s).
Como o discurso não tem somente uma espécie de referência intencional, que se
reporta a uma realidade extralingüística, mas apresenta também uma referência reflexiva,
voltada para os interlocutores (cf. 1972, p.96s), Ricoeur também considera que “é o texto,
com seu poder universal de desvelamento de um mundo, que fornece um Si mesmo ao ego”
(1987, p.106), ou seja, ele considera que a metamorfose do mundo proporcionada pela
suspensão da referência ostensiva implica também uma metamorfose do ego do leitor. A
partir de minha situação de leitor, eu me ofereço a mim mesmo um modo possível de ser no
mundo que o texto abre e descobre para mim. Assim sendo, ao contrário da hermenêutica
44
romântica, a interpretação de um texto não é uma mera província da compreensão. Para
Ricoeur, a interpretação não se define por uma determinada espécie de objetos (signos
inscritos). Trata-se antes de um processo específico de apropriação, onde um sujeito, que não
encontra no curto-circuito da reflexão imediata o sentido de sua existência, recebe através da
mediação do texto um si mais vasto, correspondente à proposição de mundo descortinada pelo
texto.
À luz daquilo que até agora assinalamos, algumas observações se impõem como
necessárias:
1) De acordo com as análises ricoeurianas, a interpretação torna-se a apreensão das
proposições de mundo abertas pelas referências não ostensivas do texto. Este modo de
entender a interpretação implica um deslocamento decisivo em relação ao modo como a
tradição romântica entende a noção de “círculo hermenêutico”. Com essa noção, pensadores
românticos queriam expressar que a compreensão de um texto não podia ser um processo
objetivo, mas implicava necessariamente uma pré-compreensão, através da qual uma espécie
de circularidade se produz entre a compreensão do texto e a compreensão de si mesmo. Para
Paul Ricoeur, duas correções devem ser feitas a este modo de compreender o “círculo
hermenêutico”. Primeiramente, não se pode entendê-lo como um círculo entre duas
subjetividades, a do autor e a do leitor. Não uma fusão de consciências. Aquilo que se
apropria não é uma experiência estranha ou uma intenção distante, mas o horizonte de um
mundo descortinado pela obra. Em segundo lugar, o círculo hermenêutico não está
adequadamente compreendido enquanto projeção da subjetividade do leitor na leitura
enquanto tal. Ricoeur prefere dizer que o leitor se compreende em face ao texto.
Compreender-se diante do mundo da obra é totalmente diferente de o leitor se projetar, com
suas próprias crenças e pré-juizos, na leitura. Pelo contrário, na leitura, deve-se deixar que a
obra e seu mundo alarguem o horizonte da compreensão que se tem de si mesmo. Assim, o
45
círculo hermenêutico não é negado, mas deslocado de um nível subjetivista para um plano
ontológico: ele se entre o modo de ser do leitor e o modo de ser aberto e descoberto pelo
texto enquanto mundo da obra.
2. Ao invés de dizer que um sujeito dirige sua própria maneira de ser no mundo e a
projeta como o a priori de sua leitura, Ricoeur sustenta que a interpretação é o processo pelo
qual a descoberta de novos modos de ser, de novas formas de vida, dá ao sujeito uma
renovada capacidade de se conhecer a si próprio. Para se referir a essa abertura de
possibilidades novas que é o trabalho mesmo da “coisa” do texto sobre o leitor, Paul Ricoeur
toma emprestado de Husserl a expressão “variações imaginativas do ego”: “O ego deve
assumir por si mesmo as ‘variações imaginativas’ pela quais ele poderia responder às
‘variações imaginativas’ sobre o real que a literatura de ficção e de poesia, mais que todas as
outras formas de discurso, engendram” (1986, p.60s). Essa expressão indica, de acordo com
Ricoeur, um fenômeno fundamental:
É na imaginação que de início se forma em mim o ser novo. Eu digo bem imaginação e não a vontade.
Pois o poder de se deixar atingir por novas possibilidades precede o poder de se decidir e de escolher. A
imaginação é essa dimensão da subjetividade que responde ao texto como poema. Quando a
distanciação da imaginação responde à distanciação que a “coisa” do texto cava no coração da
realidade, uma poética da existência responde à poética do discurso (...) inicialmente o texto fala à
minha imaginação, propondo-lhe os ‘figurativos’ de minha libertação. (1986, p.148)
3. De acordo então com as análises ricoeurianas, pode-se pôr em relevo a seguinte
constatação: em todo texto se efetua uma provocação ao imaginário possível. Se o “mundo do
texto” é o mundo do ‘poder ser’, então ele se nos apresenta como sendo o laboratório das
possibilidades antropológicas. Em outros termos, o “mundo do texto”, enquanto um welt
projetado pelas referências não-ostensivas de todos os textos que teríamos lido, compreendido
e amado, é uma provocação ao imaginário criador em todos os âmbitos antropológicos,
abrindo assim novas dimensões de realidade e novas possibilidades referenciais na
experiência ordinária. Conforme teremos oportunidade de abordar mais detalhadamente logo
a seguir, Paul Ricoeur propõe que a ficção é o caminho privilegiado da redescrição da
46
realidade e que a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera a mimèsis da
realidade” (1986, p.129). Ao romperem com a referência direta da linguagem ordinária, a
literatura de ficção e a literatura poética abrem novas possibilidades de ser-no-mundo, não
mais visando o ser sob a modalidade do ser-dado, mas visando-o sob a modalidade do poder-
ser.
1.2 – O PROBLEMA DA IMAGINAÇÃO SEMÂNTICA EM A METÁFORA VIVA
Acabamos de expor a teoria geral da interpretação que Paul Ricoeur conforme ele
mesmo propõe no artigo “La métaphore et le problème central de l’herméneutique”, publicado
em 1972 pretende transportar dos textos, enquanto seqüências longas de discurso, à
metáfora, compreendida como “um poema em miniatura” (cf. 1972, p.93).
No referido artigo, Ricoeur assinala que para quem deseja religar os problemas
colocados à hermenêutica pela interpretação de textos e os problemas retóricos, semânticos e
estilísticos apresentados pela metáfora a primeira tarefa deve ser a de encontrar um terreno
comum à teoria do texto e à teoria da metáfora. Apesar de os textos serem identificados a
partir de um comprimento máximo (que pode ir de um parágrafo a um capítulo, a um livro ou
até ao corpus de uma obra completa) e as metáforas, a partir de uma extensão mínima
(palavra), ambos estão sob a égide do discurso. Contudo, um primeiro obstáculo se nos
apresenta: a definição clássica de metáfora (transposição afetando os nomes) coloca-a numa
categoria lingüística menor que a frase e, portanto, num nível incompatível com o discurso
12
12
De fato, no primeiro estudo de A metáfora viva (OBS.: as referências à obra La Métaphore vive serão feitas
a partir da tradução brasileira publicada pela Ed. Loyola em 2000), Ricoeur constata que o exame que Aristóteles
faz da metáfora, situando-a no cruzamento de duas disciplinas (retórica e poética), define-a sobre a base de uma
semântica que toma a palavra ou o nome como unidade básica: “A metáfora é a transferência para uma coisa do
nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para a o gênero, ou da espécie de uma para o gênero
de outra, ou por analogia” (ARISTÓTELES, Poética: 1457 b 6-9 citado por RICOEUR, 2000, p.24).
Examinando mais de perto essa definição clássica, Ricoeur extrai os seguintes traços da metáfora: 1) é algo que
acontece ao nome; 2) trata-se de um movimento de transposição: a epiphorá de uma palavra é descrita como
uma sorte de deslocamento de... para...; 3) é a transposição de um nome estranho (allotrios) implicando: a) a
idéia de desvio em relação ao uso ordinário da palavra; b) a idéia de empréstimo a um domínio de origem; c) a
idéia de substituição em relação a uma palavra comum ausente mas disponível, ou seja, a palavra metafórica
toma o lugar de uma palavra não-metafórica; 4) é uma transgressão da estrutura lógica da linguagem, na medida
em que viola uma ordem já constituída por gêneros e por espécies, e por um jogo já regrado de relações
(subordinação, coordenação, proporcionalidade) (cf. 2000, p. 24-38).
47
(cf. 1972, p.97).
No terceiro estudo de A Metáfora Viva A metáfora e a semântica do discurso ,
Paul Ricoeur procura sobrepujar essa dificuldade. Sem nos alongarmos muito, evitando entrar
no âmago dos minuciosos exames desenvolvidos pelo autor nesta parte de sua obra
13
,
procurando acompanhar o esforço do filósofo para situar a metáfora no nível da semântica da
frase, focalizaremos algumas das estratégias utilizadas pelo filósofo para delimitar o problema
da inovação semântica e da referência metafórica, à luz dos quais emerge a questão da
imaginação no âmbito da metáfora.
1.2.1 - Delimitação do problema da inovação semântica e da referência metafórica
Servindo-se da distinção leibniziana entre definição nominal e definição real, Ricoeur
inicia o terceiro estudo de A metáfora viva dizendo que a definição de metáfora como
transposição do nome é uma definição que apenas permite identificá-la e classificá-la entre os
tropos. Neste sentido, ela é apenas uma definição nominal de metáfora. A explicitação de
como se a produção do sentido metafórico vai exigir, segundo o filósofo, uma definição
real de metáfora em termos de enunciado como meio contextual no qual a transposição de
sentido tem lugar.
Ao ressaltar que a metáfora constitui uma mudança contextual de significação,
Ricoeur assume um ponto de vista crítico perante os postulados que constituem o modelo
retórico da tropologia
14
. Em contrapartida, coloca-se em acordo com a teoria moderna da
13
Além das análises consignadas no referido capítulo de A Metáfora Viva, deve-se também ter em mente as
análises ricoeurianas desenvolvidas em dois artigos: “La métaphore et le problème central de l’herméneutique
(1972) e “Symbole et Métaphore” (1975). Além dessas referências, pode-se consultar, para uma compreensão
mais detalhada da obra em questão, as seguintes publicações: Anacleto R. da. SILVA. Uma estética da
linguagem: Leitura de "A Metáfora Viva" de Paul Ricoeur. Dissertação de Mestrado, Belo Horizonte, UFMG,
1990; Emílio C. Pereira. RESENDE. A Constituição Metafórica Originária da Linguagem e do Ser: uma
Expansão Ontológica da Tese de Ricoeur em “A metáfora viva”. Tese de Doutorado, Belo Horizonte, UFMG,
2001.
14
No início do segundo estudo, encontramos um elenco de postulados cujo conjunto constitui o modelo
implícito da tropologia: postulado do próprio e do impróprio (figurado); postulado da lacuna semântica;
postulado do empréstimo; postulado do desvio; postulado do caráter paradigmático do tropo; postulado da
informação nula; axioma da substituição e caráter decorativo do tropo (cf. 2000, p. 78-82).
48
metáfora, tal qual ela foi elaborada em língua inglesa por I. A. Richards, Max Black, Monroe
Beardsley.
Paul Ricoeur ressalta os contributos desses autores para uma teoria da metáfora-
enunciado: I. A Richards restabelece o direito do discurso a expensas dos da palavra. Essas,
na medida em que não possuem um sentido em si mesmas, não são portadoras de uma
significação própria, de tal modo que o sentido deve ser dado pelo discurso tomado como um
todo. Richads liga essa concepção contextual da significação com a teoria da interpenetração
das partes do discurso que, por sua vez, servirá de base para a teoria da interação de palavras
no enunciado metafórico, segundo a qual a metáfora não é um simples deslocamento de
palavras, mas a interação de dois pensamentos diferentes no seio de uma palavra ou de uma
expressão simples. Na metáfora, esses dois pensamentos estão desnivelados, no sentido de
que se descreve um sob os traços do outro. Richards denominou de “conteúdo” (tenor), a idéia
subjacente, e “veículo” (vehicle), a idéia sob cujo signo a primeira é apreendida. Já a teoria de
M. Black distinguindo, no interior do enunciado metafórico, um fenômeno de focus para
designar a palavra particular cuja presença justifica a metaforicidade de um enunciado e um
fenômeno de Frame (quadro) para designar o restante da frase permite entender melhor a
interação entre o sentido indiviso do enunciado e o sentido focalizado da palavra. Como o
foco opera não em virtude de significações lexicais, mas a partir de um sistema de lugares
comuns (opiniões e preconceitos), a metáfora, por um efeito de “filtro”, deve suprimir certos
aspectos e acentuar outros. É assim que ela confere, mediante o deslocamento de caracteres de
um tema subsidiário para um tema principal, um novo insigth sobre este último (por exemplo,
sobre o homem, caso a metáfora fosse: o homem é um lobo). Quanto a Beardsley, Paul
Ricoeur ressalta que este autor assume um ponto de partida idêntico ao de Richards e de
Black: a metáfora é um caso de atribuição que requer a articulação, segundo sua terminologia,
49
de um “tema” e um “modificador”. O que diferencia esse autor dos demais é a ênfase no papel
do “absurdo lógico” enquanto meio para liberar uma significação secundária do enunciado
metafórico e o papel preponderante do leitor na elaboração das conotações do modificador
capazes de fazer sentido. Em suma, segundo o próprio Ricoeur, ele está de acordo com esses
teóricos no seguinte ponto fundamental:
as palavras recebem uma significação metafórica em contextos específicos no interior dos quais elas
são opostas a outras palavras tomadas literalmente; esse deslocamento na significação resulta
principalmente de uma colisão entre significações literais, que exclui o emprego literal da palavra
em questão e índices para achar uma significação nova capaz de concordar com o contexto da
frase e de torná-la significante no contexto considerado (1972, p.99).
Embora as investigações de Richards, Black e Beardsley já tenham colocado a análise
da metáfora nos trilhos de uma semântica do discurso a ponto, por exemplo, de já podermos
reconhecer o primeiro par contrastado constitutivo de um discurso (acontecimento e sentido)
em ação num enunciado metafórico, na medida em que nele a ação contextual cria uma nova
significação que tem exatamente o estatuto de um acontecimento, já que só existe nesse
contexto, mas, ao mesmo tempo, podendo ser identificada como sendo a mesma, uma vez que
sua construção pode ser repetida , Ricoeur detecta a necessidade de aprofundar sua reflexão
sobre a metáfora a partir das lacunas deixadas pelas teorias acima apresentadas.
Da exposição que faz da teoria sobre a metáfora elaborada por I.A. Richards, dentre
outros aspectos, Ricoeur salienta que o teorema do sentido contextual proposto por esse autor
permite falar de uma apreensão metafórica da realidade. Entretanto, como a análise de
Richards não está orientada para o problema das relações entre metáfora e realidade, não se
explorou o alcance ontológico da linguagem metafórica (cf. 2000, p. 132s). Não obstante os
grandes méritos da teoria de M. Black, sua maior dificuldade, ressalta Ricoeur, é que a
explicação da interação pela evocação do sistema associado de lugares comuns não conta
do processo de criação de sentido inerente às metáforas de invenção. Em outras palavras, a
questão da emergência do sentido metafórico, isto é, o problema da emergência de uma nova
significação para além de toda regra estabelecida não é contemplado pela teoria de Black
50
(cf. 2000, p. 140ss). A teoria de Beardsley, ao conferir ao absurdo lógico um papel
preponderante, acentua o caráter de invenção e de inovação do enunciado metafórico, e
resolve, assim, algumas das dificuldades deixadas em aberto por Max Black. Contudo, de
acordo com o ponto de vista ricoeuriano, ela não explica de onde vêm as significações
segundas na atribuição metafórica (cf. 2000, p. 152ss). Para Paul Ricoeur, “uma única
resposta é possível: é necessário tomar o ponto de vista do ouvinte ou do leitor e tratar a
novidade de uma significação emergente como obra instantânea do leitor” (2000, p.155)
15
.
A indicação das “questões que permanecem sem repostas” em cada uma dessas teorias
constitui, como pôde ser observado, um passo estratégico importante para a delimitação dos
problemas que mobilizarão os três últimos estudos de A Metáfora viva, a saber: a questão da
inovação semântica e a da referência metafórica. No que segue, apresentaremos a análise
ricoeuriana dessas duas questões, à luz das quais emerge a reflexão do filósofo acerca do
estatuto da imaginação no âmbito da metáfora.
1.2.2 - O problema da inovação semântica
O problema da inovação semântica é discutido no sexto estudo de A Metáfora Viva
intitulado “O trabalho da semelhança”. No referido estudo, como o próprio título indica, para
dar conta do aspecto criador da linguagem, Ricoeur aciona a noção de semelhança. Ao fazer
isso, uma tarefa se lhe apresenta: reinterpretar o papel da semelhança na linha da teoria da
interação exposta anteriormente (cf. 2000, p. 267). Diante desse desafio, o filósofo então
pergunta: “pode ser desfeito o pacto estabelecido no curso da história da retórica entre
substituição e semelhança?” (2000, p. 288).
Assumindo a função de defensor da semelhança perante aqueles que lhe negam um
papel decisivo da explicação da metáfora, Ricoeur assinala que o trabalho da semelhança é
15
Esse aspecto não será suficientemente abordado no âmbito das investigações desenvolvidas em A metáfora
viva. Paul Ricoeur vai aprofundá-lo melhor em Temps et Récit, conforme teremos oportunidade de mostrar mais
abaixo (cf. infra, p. 108)
51
um fator mais necessário ainda em uma teoria da tensão que em uma teoria da substituição
(cf. 2000, p. 296). Para ele, erram aqueles que acreditam que as noções de tensão, interação e
contradição tornam supérfluo o papel da semelhança na explicação da metáfora. Na opinião
de Ricoeur, esses termos referem-se à forma do desafio semântico contido numa metáfora,
nesse sentido dizem respeito ao problema da “impertinência semântica” que uma metáfora
coloca. O sentido metafórico enquanto tal é a nova pertinência semântica que é gerada no
interior de um enunciado metafórico. É nessa mutação de sentido que a semelhança
desempenha seu papel, mas esse papel aparece quando se volta para o aspecto semântico
da semelhança, isto é, para a sua função na atribuição dos predicados, gerando uma
proximidade semântica entre os termos a despeito de sua distância. É este efeito estritamente
predicativo da semelhança de “des-afastar” que gera uma nova pertinência semântica e,
portanto, guia e produz o enunciado metafórico. Nesse sentido, a metáfora pode ainda ser
concebida como epífora (transposição), implicando um processo unitivo (assimilação entre
idéias estranhas, distanciadas), resultante de uma apercepção (insigth) que é da ordem do ver.
Ricoeur recupera um comentário do estagirita tirado da Poética (1459 a 4-8): “(...) bem saber
descobrir as metáforas significa bem se aperceber das semelhanças” (apud RICOEUR, 2000,
p. 41), para logo concluir: “A metáfora ou, melhor, o metaforizar, isto é a dinâmica da
metáfora, repousaria então na apercepção do semelhante” (2000, p. 41), ou seja, bem
metaforizar é ver contemplar, lançar um golpe de vista para o semelhante (cf. 2000, p.
299).
Em seguida, ainda intercedendo pela semelhança perante aqueles que a acusam de ser
portadora de uma fraqueza lógica, Ricoeur contra-argumenta salientando que a estrutura
conceitual da semelhança opõe e une a identidade e a diferença, e isso é revelado no próprio
enunciado metafórico, onde o “mesmo” opera apesar do “diferente”. A metáfora, na medida
em que se fala de uma coisa nos termos de outra que se lhe assemelha, é um erro categorial
52
calculado, ou seja, a metáfora rompe com uma categorização anterior a fim de estabelecer
novas fronteiras gicas sobre as ruínas das precedentes. Nesse sentido, o enunciado
metafórico apresenta abertamente, através de um encontro conflitual entre identidade e
diferença, o processo que engendra campos semânticos novos por fusão das diferenças na
identidade.
Nessa altura de sua argumentação em defesa do papel da semelhança na explicação do
processo metafórico, Paul Ricoeur acrescenta a seguinte pergunta: “Não teria a imaginação
alguma relação com o conflito da identidade e da diferença?” (2000, p. 305, grifo nosso)
Sigamos os desdobramentos da reflexão ricoeuriana acerca desta questão, tendo em vista que,
por essa via, seremos remetidos ao âmago da relação entre imaginação e inovação semântica,
cuja explicitação é o objetivo do presente capítulo.
Situada no âmbito da defesa da semelhança promovida por Ricoeur, a abordagem que
ele faz da relação entre inovação semântica e imaginação tem como pano de fundo a
discussão acerca da necessidade de uma reformulação do caráter icônico da semelhança a fim
de que a imaginação mesma se torne um momento propriamente semântico do enunciado
metafórico (cf. 2000, p. 305s).
Nessa discussão, o filósofo salienta que se deve abordar, por primeiro, o estatuto da
semelhança como apresentação figurada, como imagem que representa relações abstratas. Ele
recorda que a raiz dessa abordagem encontra-se na observação aristotélica acerca do poder da
metáfora de “pôr sob os olhos”
16
. Esse aspecto da figurabilidade metafórica, já explicitada por
Aristóteles, é aprofundada por Paul Henle no exame que faz do momento “icônico” da
metáfora. Para este autor, o que especifica a metáfora entre todos os tropos é o seu caráter
icônico. Levando-se em consideração que o modo icônico de significar é constituído pela
16
No estudo que abre A metáfora Viva, em suas observações sobre o uso retórico da metáfora, Ricoeur já havia
assinalado que essa capacidade de a metáfora “fazer imagem” (pôr sob os olhos) não é algo acessório para a
compreensão da mesma: através deste poder, a metáfora faz ver o abstrato sob os traços do concreto, ela mostra
o inanimado como animado (cf 2000, p. 60)
53
capacidade de levar a pensar em alguma coisa considerando alguma coisa semelhante, Henle
defende que através da apresentação icônica pode-se “apontar para semelhanças inéditas, seja
de qualidade, de estrutura, de localização, seja ainda de situação, seja enfim de sentimento
(Apud RICOEUR, 2000, p.291). Como acaba de ser ressaltado, em virtude da semelhança
pode-se operar com novas situações, de tal modo que, para Paul Henle, se a metáfora não
acrescentar nada à descrição do mundo, ao menos ela tem uma função poética que é a de
ampliar nossas maneiras de sentir, infundindo no coração da situação simbolizada os
sentimentos ligados à situação que simboliza. Ricoeur lamenta essa oposição entre o sentir e o
descrever que fez a análise de Henle resvalar para uma teoria emocionalista na metáfora,
porém, ressalta que a teoria deste autor tem méritos. Um deles é o de não ter conduzido a
teoria da metáfora ao impasse de uma teoria da imagem, no sentido humiano de uma
expressão sensorial enfraquecida. Ao contrário, a prudência de Henle, que Ricoeur abona, o
faz ficar restrito ao campo da linguagem. Ou seja, o elemento icônico da metáfora não é
mostrado em imagens sensoriais, mas apenas descrito. Retomando uma observação de Henle,
“o que é apresentado é uma fórmula para construção de ícones”, Ricoeur liga então toda essa
reflexão sobre o caráter icônico da metáfora à concepção kantiana de imaginação produtiva:
“Pensa-se, assim, na imaginação “produtiva” que Kant distingue da imaginação “reprodutora”
por identificá-la ao esquema, que é um método para construir imagens” (cf. 2000, p. 290). Em
seguida, ele assinala que a única maneira de abordar o problema da imaginação semântica é
começar pelo plano da imaginação produtiva, colocando entre parênteses o núcleo não-verbal
da imaginação, isto é o plano da imaginação reprodutiva (cf. 2000, p. 305).
Através da referência ao exame que P. Henle faz do momento icônico da metáfora, o
percurso analítico seguido por Ricoeur para enquadrar a imaginação como um momento
semântico do enunciado metafórico chega ao limiar da teoria kantiana sobre a imaginação.
Antes de prosseguir acompanhando os desdobramentos das análises ricoeurianas contidas no
54
sexto estudo de A Metáfora Viva, passemos em revista o modo como Kant concebe a
imaginação na Critica da Razão Pura.
1.2.2.1 - Excursus: A imaginação em Kant
Tomemos como ponto de partida a doutrina kantiana das faculdades apresentada no §
XI da Primeira Introdução à Crítica do Juízo. Em seguida, focalizaremos o modo como Kant
insere a imaginação em seu arcabouço sistemático.
No texto supracitado após operar a distinção entre introdução propedêutica (aquela
que, apresentando os conhecimentos prévios necessários, a partir de outras doutrinas ou
ciências já existentes, prepara a uma doutrina a ser exposta) e introdução enciclopédica
(aquela que, pressupondo a idéia de um sistema, insere uma questão no mesmo, indicando
assim o seu lugar no conjunto das doutrinas com as quais está em conexão) Kant assevera
que as faculdades do espírito são três: Faculdade de conhecimento, sentimento de prazer e desprazer,
faculdade de desejar; ao lado das quais se colocam respectivamente as seguintes faculdades
superiores: Entendimento, Juízo e Razão. Cada uma dessas faculdades superiores apresenta
princípios próprios a priori para a sua respectiva faculdade do espírito: a legalidade é o
princípio formal do entendimento, apresentando a natureza como produto; o princípio formal
do juízo é a finalidade que tem como produto a arte; e a finalidade que é ao mesmo tempo lei
(obrigatoriedade) é o principio formal da razão, cujo produto são os costumes (cf. KANT,
1995 p.80ss). Assim, de acordo com o próprio Kant:
a natureza, portanto, funda sua legalidade sobre princípios a priori do entendimento como uma
faculdade de conhecimento; a arte orienta-se em sua finalidade a priori segundo o Juízo, em
referência ao sentimento de prazer e desprazer; por fim, os costumes (como produto da liberdade)
ficam sob a idéia de uma tal forma de finalidade, que se qualifica a lei universal, como fundamento-
de-determinação da razão quanto à faculdade-de-desejar. Os juízos, que desse modo se originam de
princípios a priori que são próprios a cada faculdade fundamental da mente, são juízos teóricos,
estéticos e práticos. (1995, p.82 )
Seguindo essa divisão das faculdades da alma, o sistema kantiano estrutura-se em três grandes
campos, aos quais o filósofo de Könisberg dedicou cada uma de suas três Críticas: a primeira,
Crítica da Razão Pura, examina o saber teórico; a segunda, Crítica da razão prática,
55
investiga o saber prático ou a ética; a terceira, Crítica da Faculdade de Juízo Estética, estuda
o juízo estético e teleológico. Tendo em mente essa visão geral do arcabouço sistemático
kantiano, perguntemos como nele se insere a temática da imaginação.
Sob o ponto de vista das faculdades enquanto fonte de produtos (representações e
atividades mentais) sabe-se que Kant admite dois tipos irredutíveis de representação: intuições
e conceitos, cujas fontes são, respectivamente, a Sensibilidade e o Entendimento. Das idéias,
enquanto conceitos aos quais nenhuma intuição correspondente pode ser encontrada, o
filósofo indica a Razão como fonte. Às regras de determinação da intuição para sua subsunção
sob conceitos, Kant denomina de esquemas. E à própria subsunção das intuições sob
conceitos, ele chama de juízos. Para o filósofo, Esquemas e Juízos são atividades mentais,
cujas fontes são, respectivamente, a Capacidade de imaginação e a Capacidade de Julgar.
Segundo Frias (2006), a abordagem kantiana da capacidade de imaginação ocorre no
âmbito da análise do juízo determinante (na “Analítica Transcendental”) e do juízo
reflexionante (na Critica da Faculdade de Juízo Estética) e do ponto de vista pragmático (na
Antropologia do Ponto de Vista Pragmático) (cf. FRIAS, 2006, p.10;13). Dado que as
funções empíricas da imaginação não nos interessam neste momento, nosso foco se volta para
o aspecto de produtividade da capacidade de imaginação, tal qual podemos encontrar nas
análises kantianas consagradas aos juízos determinantes e reflexionantes.
Para Kant, numa perspectiva transcendental, a facultas imaginandi tem como tarefa a
exibição, isto é, a apresentação do objeto do conceito na intuição. A exibição, assim sendo, é
um estágio necessário para a aplicação/associação de um conceito a um múltiplo da intuição,
tratando-se, em suma, do processo de pôr ao lado do conceito uma intuição que lhe
corresponda. A exibição é uma tarefa sob a responsabilidade da imaginação, uma vez que é
essa capacidade que realiza a ntese pura e produz esquemas e símbolos, elementos sem os
quais a exibição não se realizaria. Pelo que acaba de ser assinalado, são dois os modos pelos
56
quais a imaginação realiza a exibição: 1) por um processo demonstrativo e direto através de
esquemas e 2) por um processo analógico e indireto através de símbolos. O primeiro modo de
exibição (exibição esquemática) se dá no âmbito dos juízos determinantes (opera do universal
para o particular visando compreender uma intuição em um conceito), mediante a regulação
da imaginação pelo entendimento; o segundo modo (exibição simbólica) ocorre no âmbito dos
juízos reflexionantes, no qual a imaginação é auto-ativa, espontânea, capaz de “livre jogo”
com entendimento.
Uma vez que é à noção kantiana de imaginação produtiva desenvolvida na primeira
Crítica que Paul Ricoeur recorre para dar consistência à sua proposta de uma imaginação
semântica, restringiremos nossa abordagem à analise da capacidade de imaginação na sua
função de exibição esquemática.
Na Crítica da Razão Pura, tal qual ela chegou anós
17
, o tema da imaginação está
17
Como Heidegger chamou a atenção em Kant y el problema de la metafísica, Kant, na segunda edição da
Crítica da razão Pura, recuou em relação ao lugar proeminente que havia concedido à imaginação na primeira
edição. Nessa obra de 1929, Martin Heidegger visa empreender uma nova interpretação da obra kantiana
fundamental: procura mostrar a Crítica da Razão Pura como fundamentação de uma metafísica, enfocada como
ontologia fundamental. Considerando que Kant relaciona a “origem” de nosso conhecimento com as duas fontes
fundamentais do espírito (sensibilidade e entendimento) e que o conhecimento será exatamente antese original
destas fontes fundamentais, tidas como os dois ramos do conhecimento humano que quiçá se originam de uma
raiz comum desconhecida por nós (cf.HEIDEGGER, 1954, pp.38-40), Heidegger, na terceira parte de seu
estudo sobre o problema da metafísica em Kant “La fundamentación de la metafísica en su originareidad”
busca estabelecer exatamente a fundamentação da metafísica nesta sua originariedade em princípio desconhecida
para nós. Segundo a interpretação heideggeriana da obra kantiana fundamental, a imaginação transcendental é o
centro formativo do conhecimento ontológico. A argumentação que ele utiliza para sustentar essa opinião é
extensa e minuciosa, de tal forma que não podemos reproduzi-la aqui nos seus detalhes. Resumidamente, apenas
podemos dizer que para Heidegger, a imaginação, interpretada como faculdade transcendental, não é apenas uma
faculdade entre a intuição e o conceito, um laço exterior que une dois extremos. A imaginação, com a
sensibilidade e o entendimento, é uma faculdade fundamental, propiciadora da unidade original de ambos. Ou
seja, ela é uma função indispensável da alma, sem a qual não conhecimento (cf. 1954, p.117). Entretanto,
Heidegger detecta o caráter problemático presente nesta definição da imaginação transcendental como terceira
faculdade da alma. Inicialmente ele destaca que a inserção da imaginação no rol das faculdades fundamentais
contrapõe-se às declarações explícitas que Kant, na segunda edição da sua primeira Crítica, faz sobre a
existência de apenas duas fontes fundamentais de conhecimento; destaca-se, em seguida, o fato de a imaginação
não ter, digamos assim, uma “casa própria” no conjunto da investigação transcendental kantiana: ela não é
abordada na “Estética Transcendental”, na qual, como faculdade da intuição, verdadeiramente teria lugar; figura,
entretanto, na “Lógica Transcendental”, onde a rigor o deveria estar. Diante destas questões e impasses,
Heidegger aventa a hipótese de a imaginação transcendental ser exatamente aquela “desconhecida raiz comum”
dos dois ramos, esclarecendo que a imaginação transcendental, como raiz das duas faculdades fundamentais do
conhecimento significa, acima de tudo, que a estrutura destas faculdades está arraigada na estrutura da
imaginação transcendental, sendo que o próprio imaginar se em unidade estrutural com a sensibilidade e
com o entendimento (cf. 1954, p.120). Heidegger passa então a aclarar a conexão específica que há entre
imaginação pura e intuição pura. Para ele, a totalidade do intuído na intuição não extrai do conceito a unidade da
57
inserido no capitulo I O esquematismo transcendental da “Analítica dos princípios”. A
“analítica dos princípios” é a segunda parte da “Analítica transcendental”, que por sua vez é a
primeira divisão da “Lógica Transcendental”. Essa, juntamente com a “Estética
Transcendental”, compõe a “Teoria dos Elementos”, cujo objetivo é apresentar os elementos
formais, isto é, as formas a priori do conhecimento que condicionam toda a experiência.
Para Kant, o conhecimento resulta da conjunção das intuições e dos conceitos,
fazendo-se necessário o concurso tanto da sensibilidade quanto do entendimento. Assim, para
que haja experiência não é suficiente a organização das sensações sob as formas a priori da
sensibilidade. Faz-se necessário a atuação do entendimento transformando o diverso da
sensibilidade em uma nova síntese a priori. Em outros termos, as intuições sensíveis
informadas pelo espaço e tempo, para serem elevadas ao plano do conhecimento intelectual,
necessitam ser enlaçadas numa unidade superior. Isso se mediante a atividade unificadora
que opera a síntese das diversas representações. É a imaginação que operacionaliza uma
primeira síntese que recolhe as diversas sensações para formar um conteúdo. Todavia, essa
primeira ntese não proporciona ainda conhecimento: é preciso que o entendimento
universalidade, essa não surge na “síntese do entendimento”, mas numa unidade previamente capturada na
imaginação. Ou seja, o intuído na intuição pura como tal é um ens imaginarium, donde a afirmação
heideggeriana de que, no fundamento de sua essência, a intuição pura é imaginação pura. Por conseguinte, o
espaço e tempo (enquanto formas da pré-formação na intuição) são igualmente portadores de um caráter
imaginativo. No que tange ao vínculo entre imaginação transcendental e razão teórica, Heidegger indica que o
esquematismo puro baseado na imaginação transcendental é o ser originário do entendimento. O que parece ser
a função independente do entendimento (pensar a unidade com a ajuda de esquematismos) é um ato fundamental
puro da imaginação transcendental. O nosso “pensar” originário (formar e projetar algo livre, mas não
arbitrariamente) é um imaginar puro (cf. 1954, p.130). Pelo que ficou estabelecido acima, a imaginação
transcendental é o fundamento essencial tanto da sensibilidade quanto do entendimento. A constituição
originária da essência humana está enraizada na imaginação transcendental (cf. 1954, p.137). Todavia, apesar de
encontrar fortes indícios da plausibilidade de tal conclusão na primeira edição da Crítica da Razão Pura,
Heidegger observa que Kant (na segunda edição desta mesma obra) retrocedeu diante da imaginação
transcendental e esse retrocesso se em favor do entendimento. Isso porque a intensa claridade da razão pura
seduziu Kant, contribuindo assim para ocultar novamente o estatuto original e fundamental da imaginação,
salvaguardando a supremacia da razão. Assim, de “função indispensável da alma” e de “terceira faculdade
fundamental”, a imaginação passa a ser “função do entendimento”, isto é, deixa de ser uma faculdade própria
para ser produto do entendimento: a síntese transcendental da imaginação é um efeito do entendimento na
sensibilidade (cf. 1954, p.139), a imaginação fica sendo apenas o nome da ntese empírica, da síntese relativa à
intuição. Enfim ela perde seu estatuto de faculdade fundamental, independente, transcendental; fica desalojada,
sem grande parte de sua autonomia e poder, restrita ao papel de simples ajudante de ordens, mera executante do
poder do entendimento.
58
intervenha para reduzir a percepção imaginativa ao conceito, mediante a imposição das
formas a priori do entendimento (categorias). Entretanto, qual a condição para o uso das
categorias, isto é, para aplicar aos fenômenos as categorias do entendimento? Kant assinala
que deve haver uma representação mediadora que, por um lado, tenha uma dimensão pura,
intelectual, e por outra, sensível. Tal representação Kant denomina de esquema
transcendental. É o esquema, operacionalizando uma síntese do heterogêneo, que permite o
relacionamento entre os conceitos e os objetos. Sem o confundir com as imagens
18
propriamente ditas, Kant define o esquema como sendo uma “regra de síntese da
imaginação”, um procedimento geral da imaginação para procurar a um objeto sua imagem.
Conforme acabamos de assinalar, síntese e esquematismo apresentam-se intimamente
vinculados à capacidade de imaginação produtiva. Como a espontaneidade do nosso
pensamento exige que o múltiplo indiferenciado fruto da capacidade de receptividade
sensível de abarcar mais de uma sensação seja primeiro perpassado, acolhido e ligado, a
fim de que, em seguida, este material sinóptico oriundo da capacidade de receber diferentes
impressões possa ser transformado em conhecimento, para Kant, síntese é um processo
mental de acrescentar diversas representações umas às outras e de conceber sua
multiplicidade num conhecimento. Já a teoria do esquematismo em Kant tem por objetivo
mostrar como os conceitos podem ser aplicados aos fenômenos em geral. O esquematismo é o
mecanismo da capacidade de imaginação que, especialmente em sintonia com requerimentos
do entendimento, possibilita que os conceitos sejam aplicáveis ao múltiplo da intuição. Ou
seja, é através da projeção do esquematismo sobre as intuições sensíveis que Kant resolverá a
problema da heterogeneidade aparentemente intransponível entre conceitos e impressões.
Nesse sentido, o esquema de um conceito é o método da capacidade de imaginação para
representar um conceito em sua imagem correspondente. Entretanto, o esquema não se
18
Deve-se ter em mente que, para Kant, imagens (Bilder) não se reduzem a dados visuais; mas são conjuntos de
dados sensíveis organizados de modo a permitir a compreensão através de conceitos.
59
confunde com uma delineação pálida e esvaída do objeto empírico real, mas é uma espécie de
modelo (arquétipo) dos possíveis objetos da experiência. O esquema não é uma imagem, mas
o processo que torna possível as imagens. Enquanto tal, ele é um procedimento universal
(regra) da capacidade de imaginação para proporcionar a um conceito uma representação
intuitiva que de algum modo funcione como seu ícone. O esquema não é uma entidade mental
(como conceitos e intuições), mas a regra diretriz das sínteses. É um modo de proceder que
promove pela regulação da imaginação pelo entendimento a determinação que dirige as
operações da imaginação de modo a possibilitar a produção de imagens que estejam
relacionadas aos conceitos do entendimento e desse modo permita a cognição.
Por fim, para caracterizar satisfatoriamente a capacidade de imaginação produtiva em
Kant, deve-se ter claro que ela não se confunde com a fantasia (esta se refere às imagens
mentais involuntárias e figura entre os fenômenos empíricos, por isso Kant a estuda na
Antropologia do ponto de vista pragmático) e nem com a capacidade de imaginação
reprodutiva (aquela que encadeia representações seguindo leis empíricas da associação e que
apresenta uma significação puramente psicológica). É enquanto procedimento de síntese que a
imaginação se insere no arcabouço teórico kantiano da primeira Crítica, apresentando-se
como a responsável pelo intercâmbio entre os dois tipos irredutíveis de representação
(intuições e conceitos), que se operacionaliza pela exibição esquemática. Entretanto, no
âmbito da primeira Crítica, a facultas imaginadi também não é criadora, ou seja, não é dotada
de poder para engendrar uma representação que jamais foi dada inicialmente à nossa
faculdade sensível. Enfim, a fixação da imaginação entre a apreensão intuitiva do sensível e
as leis imutáveis do entendimento faz com que ela não seja portadora de uma capacidade de
fundação imagética da realidade, mas mera potência de produzir esquemas transcendentais.
Como diz Jambet, “a imaginação é, pois, o poder de síntese, com a ressalva de nada imaginar,
de ser tudo exceto o poder criador de imagens” (2006, p.61).
60
1.2.2.2 – O esquematismo da atribuição metafórica
À luz deste parêntese explicativo sobre a teoria kantiana da imaginação desenvolvida
na primeira Crítica, retomemos o fio de nossa apresentação através de uma breve
recapitulação. Análise da relação entre inovação semântica e imaginação, situada no âmbito
maior da recuperação da semelhança para explicação da metáfora, passa pela reformulação do
caráter icônico da semelhança. Tal reformulação, por sua vez, exigiu de Ricoeur uma
retomada da discussão aristotélica acerca da figurabilidade da metáfora (poder da metáfora de
fazer imagem) e uma referência ao aprofundamento que Henle faz desta questão, mostrando
como o poder de fazer imagens da metáfora está articulado com modo icônico de significar e
como este momento icônico da metáfora deve ser visto não como uma apresentação de
imagens sensoriais, mas como um método de construir imagens. Diante disso, Ricoeur
assinalou a necessidade de tratar o ver o semelhante (Aristóteles) e o momento icônico da
metáfora (Henle) à luz da imaginação produtiva (Kant).
Assim sendo, conforme vimos, no âmbito da imaginação produtiva, Kant grande
importância ao esquema. É exatamente esse aspecto que Ricoeur coloca em evidência através
da noção de “esquematismo da atribuição metafórica”. Segundo suas próprias palavras:
A metáfora surge então como o esquematismo no qual se produz a atribuição metafórica. Tal
esquematismo faz da imaginação o lugar de emergência do sentido figurativo no jogo da identidade e
da diferença. E a metáfora é o lugar no discurso em que esse esquematismo é visível, porque identidade
e diferença não são confundidas, mas afrontadas (2000, p. 306).
A idéia de esquematismo da atribuição metafórica permite compreender que, assim
como o esquema é a matriz da categoria, o momento icônico da metáfora é matriz da nova
pertinência semântica que nasce do desmantelamento das áreas semânticas sob o choque do
conflito entre identidade e diferença. Além do mais, é o esquema que faz aparecer a atribuição
enquanto processo predicativo que faz ver, isso é, que produz imagens, o como “perceptos
desbotados”, mas como lugar das significações nascentes. Assim, fazendo um balanço de sua
argumentação em favor da semelhança, dentro da qual está situada sua reflexão sobre a
61
relação entre imaginação e inovação semântica, Paul Ricoeur reconhece que:
[houve] certa reabilitação do momento icônico da metáfora, mas essa reabilitação não foi além do
aspecto verbal do ícone, nem além de um conceito lógico da semelhança, concebida como a unidade
da identidade e da diferença. É verdade também que com o momento icônico retornou certo
conceito de imaginação, mas tal conceito foi prudentemente restrito à imaginação produtiva
kantiana; nesse sentido, a noção de um esquematismo da atribuição metafórica não transgride os
limites de uma teoria semântica, isto é, de uma teoria da significação verbal. (2000, p.318)
A análise ricoeuriana sobre a imaginação na metáfora, até agora, incorporou o aspecto
verbal da imagem, enquanto esquema da síntese do idêntico e do diferente, mas colocou entre
parênteses o núcleo não-verbal da imaginação, isto é, o plano da imaginação reprodutiva.
Como então acrescentar ao esquematismo metafórico o aspecto propriamente sensível da
imagem?
Considerando o esquematismo da atribuição metafórica o ponto de ancoragem do
imaginário em uma teoria semântica da metáfora, na última parte (Ícone e imagem) do sexto
estudo de A Metáfora Viva, Ricoeur se propõe a examinar a questão acima apresentada à luz
dos contributos de Marcus B. Hester acerca da junção entre “dizer” e “ver como”.
Para Hester, segundo Ricoeur, o “ver como” é um fator revelado pelo ato de ler. É
importante ressaltar que Hester “compara a leitura à epokhé husserliana que, ao suspender
toda posição de realidade natural, libera o direito original de todos os data, pois a leitura,
também ela, é uma suspensão de todo real e uma “abertura ativa ao texto”” (2000, p.321).
Nesse sentido, o “ver como” é o “ato-experiência de caráter intuitivo, pelo qual se escolhem,
no fluxo quase sensorial do imaginário que se tem ao ler a metáfora, os aspectos apropriados
deste imaginário” (HESTER, The Meaning of Poetic Metaphor, 1967, p. 180 apud
RICOEUR, 2000, p. 326). Assim, na medida em que o “ver-como” acionado pela leitura
assegura a junção do sentido verbal com a plenitude imaginária, ele exerce o papel do
esquema que une o conceito vazio e a impressão cega, de tal forma que o verbal e o não-
verbal estão estreitamente unidos no seio da função imaginante da linguagem (cf. 2000, p.
327).
62
Ricoeur declara que “ver X como Y implica que X não é Y” e que, portanto, as
“fronteiras de sentido são transgredidas, mas não abolidas” (cf. 2000, p. 327). De acordo com
o ponto de vista ricoeuriano, a fusão do sentido e do imaginário, explicitado pelo “ver como”
metafórico, é a contrapartida necessária de uma teoria semântica que enfatiza a tensão entre os
termos do enunciado metafórico. Isso porque, a despeito da colisão semântica, o sentido
metafórico é a nova pertinência que se forma na espessura do imaginário liberado pela
mediação não-verbal do enunciado metafórico. Segundo Paul Ricoeur assinala, caberá a uma
fenomenologia da imaginação
19
, como a de Gaston Bachelard, se estender para além da
descrição do “ver como”, seguindo o fio da “ressonância” da imagem poética na profundidade
da existência (cf. 2000, p. 329)
.
1.2.3 - A função referencial da metáfora
Quase no final do artigo La métaphore et le problème central de l’herméneutique”,
Ricoeur pergunta: “por que tiraríamos significações novas de nossa linguagem, se não
tivéssemos nada de novo a dizer, nenhum novo mundo a projetar? As criações de linguagem
seriam destituídas de sentido, se elas não servissem ao projeto geral de deixar novos mundos
emergir pela graça da poesia...” (1972, p.112). Para Ricoeur, conforme acaba de ser
assinalado, a temática da inovação semântica está intimamente ligada à análise que o filósofo
faz da função referencial do enunciado metafórico.
Ele discute este assunto principalmente no penúltimo estudo de A metáfora viva. Ali, a
partir da transição do ponto de vista semântico para o hermenêutico
20
, ou seja, situando-se não
mais no âmbito da frase, mas do discurso propriamente dito (poema, narração, ensaio, etc.), o
filósofo deseja responder ao seguinte questionamento: “o que diz o enunciado metafórico
19
Para uma discussão mais ampla sobre este assunto pode-se consultar: Jocelyne LEBRUN, “Pour une
phénoménologie de l´imagination poétique”, in Archives de Philosophie 51, 1988, pp. 195-211.
20
Sobre essa temática: cf. Jean-Luc PETIT, “Herméneutique et sémantique chez Paul Ricoeur”, in Archives de
Philosophie 48, pp. 575-589.
63
sobre a realidade?” (cf. 2000, p. 331).
Na busca de uma resposta para essa questão, uma primeira dificuldade é detectada por
Ricoeur: “O desejo de verdade que faz avançar do sentido para a denotação é
expressamente atribuído por Frege aos enunciados da ciência, e parece justamente ser
recusado aos da poesia” (2000, p.338). Diante desse obstáculo, a primeira tarefa da reflexão
ricoeuriana é transpor essa limitação da denotação aos enunciados científicos. Para tanto,
Ricoeur necessita desvencilhar-se da argumentação que defende uma concepção não-
referencial do discurso poético, seja porque o poema intercepta a referência e, no limite, anula
a realidade, seja porque a linguagem poética não é descritiva (que fornece informações sobre
o fato), mas uma linguagem emocional, isto é, sentida exclusivamente no “interior” do sujeito
e não é referida de qualquer modo que seja a alguma coisa no exterior do sujeito.
Diante dessa argumentação contra a referência poética, que, por sua vez, implica a
impossibilidade de o enunciado metafórico ter alguma pretensão à verdade, Ricoeur defende a
seguinte tese: “a suspensão da referência, no sentido definido pelas normas do discurso
descritivo, é a condição negativa para que seja liberado um modo mais fundamental de
referência, que é tarefa da interpretação explicitar” (2000, p. 349). Mais especificamente, ele
propõe o seguinte:
Por sua estrutura própria, a obra literáriadesvela um mundo sob a condição de que se suspenda a
referência do discurso descritivo. Ou, para dizer em outras palavras: na obra literária, o discurso
desvela sua denotação como uma denotação de segunda ordem, graças à suspensão da denotação de
primeira ordem do discurso (...) É possível, com efeito, que o enunciado metafórico seja
precisamente aquele que mostra com clareza a relação entre referência suspensa e referência
desvelada. (2000, p. 338)
Para o filósofo francês, essa sua tese encontra apoio na noção de “hipótese poética” de N.
Frye: o poema não é verdadeiro ou falso, mas hipotético, no sentido de ser a proposição de um
mundo imaginativo, fictício. Nesse sentido, a suspensão da referência real é a condição de
acesso à referência num modo virtual, de tal forma que, em última instância, a função da
poesia é fazer nascer um outro mundo que corresponda a outras possibilidades de existir que
64
sejam, por sua vez, os nossos mais próprios possíveis. Mais um indício confirmador de sua
tese, Ricoeur encontra nesta outra proposta de Frye: a unidade de um poema é a unidade de
um estado de alma (mood). Para Ricoeur, a noção de mood (estado de alma) introduz um fator
extralingüístico que deve ser entendido como índice de um modo de se estar no meio da
realidade, cuja condição é a suspensão da realidade natural pela linguagem poética, dando
origem a um mundo a partir do estado de alma que o poeta articula (cf. 2000, p. 350).
Ainda buscando apoio para a sua tese de que a suspensão da função referencial, na
linguagem poética, é a condição negativa para o surgimento de um modo mais fundamental de
referência, Ricoeur se serve da noção de “referência duplicada” elaborada por Roman
Jakobson. Seguindo as análises deste autor, ele salienta que na poesia não ocorre uma
supressão da função referencial, mas sua alteração profunda pelo jogo da ambigüidade, de tal
modo que “a uma mensagem de duplo sentido correspondem um emissário duplicado, um
destinatário duplicado e, além disso, uma referência duplicada” (2000, p. 343). Dessa forma,
mais adiante, Ricoeur acrescenta que o modo de constituição do sentido metafórico é a chave
da duplicação da referência: sabe-se que o sentido metafórico é suscitado pelo fracasso da
interpretação literal. Essa autodestruição do sentido literal, sob o peso da impertinência
semântica, condiciona, por sua vez, o desmoronamento da referência primária. Contudo, a
interpretação metafórica, ao fazer surgir uma nova pertinência semântica alicerçada nas ruínas
do sentido literal, suscita, graças à abolição da referência primária (correspondente à
interpretação literal do enunciado), um novo objetivo referencial (cf. 2000, p. 351). A este
argumento de proporcionalidade que faz corresponder uma metaforização da referência à
metaforização do sentido, Paul Ricoeur acrescenta uma sugestão advinda do estudo semântico
da metáfora: como bem metaforizar é ver o semelhante, isto é, instaurar uma proximidade
entre significações afastadas, pode-se conceber que essa proximidade no sentido é, ao mesmo
tempo, uma proximidade nas coisas mesmas, da qual brota uma nova maneira de ver, ou seja,
65
um “ver como”, através do qual um novo estado de coisas é percebido na espessura do estado
de coisas deslocado pelo erro categorial (cf. 2000, p.352).
Para encorpar ainda mais a sua proposta de que a referência metafórica é uma
referência duplicada, Ricoeur necessita “ultrapassar a oposição entre denotação e conotação e
inscrever a referência metaforizada em uma teoria da denotação generalizada(2000, p.352).
Para esse empreendimento, ele se apóia na teoria de Nelson Goodman que insere a totalidade
das operações simbólicas no quadro de uma única operação: a função de referência. Para este
autor, a universalização da função referencial está assegurada pela universalização da
potência organizacional da linguagem, ou seja, pela universalização da potência da linguagem
de reorganizar o mundo em termos de obras e as obras em termos de mundo (cf. 2000, p.
353).
Aplicando à poética do discurso a perspectiva e as categorias de Goodman, Ricoeur
propõe que a poesia comporta, enquanto sistema simbólico, uma função referencial igual à do
discurso descritivo. Por isso mesmo, os sons, imagens e sentimento que aderem ao sentido
poético, uma vez que pertencem às coisas mesmas, não são menos reais que os traços
descritivos articulados pelo discurso científico. No entanto, ressalta Ricoeur, devido ao
pragmatismo e ao nominalismo de fundo da teoria de Goodman
21
, os seguintes aspectos ainda
não são contemplados pela proposta deste autor: a epokhé da referência descritiva como
estratégia própria do discurso poético; o poder de o discurso poético visar a realidade ao pôr
21
Para este autor, “a metáfora é uma aplicação insólita, isto é, a aplicação de uma etiqueta familiar, cujo uso tem
por conseqüência um passado, a um objeto novo que, primeiramente, resiste, mas depois cede” (2000, p. 359).
Conforme analisa Ricoeur, a escolha do termo “etiqueta” condiz bem com o nominalismo convencionalista de
Goodman, pois ressalta a ausência de essências fixas doadoras de sentido, facilitando assim a teoria da metáfora,
pois é mais modo deslocar uma etiqueta, cuja única resistência é o costume, que reformar uma essência. Além
disso, segundo o filósofo, a teoria de Goodman retém a idéia de erro categorial (cf. Ryle), de tal modo que o erro
na aplicação das etiquetas corresponde à reatribuição de uma etiqueta, de tal forma que a falsidade literal, devido
à atribuição incorreta, é convertida em verdade metafórica por reatribuição de etiqueta. A partir dessas
considerações, Ricoeur chama a atenção para o fato de essa concepção de metáfora abarcar tanto um conjunto de
etiquetas (esquema) como um conjunto correspondentes de objetos (reino). Assim, a metáfora apresenta um
poder de reorganizar a visão das coisas quando um “reino” inteiro é transposto para um “reino” estrangeiro,
sendo que o uso de etiquetas no novo campo de aplicação é regulado pela prática anterior. “O nominalismo de
Goodman comenta Ricoeur o impede de procurar afinidades na natureza das coisas ou em uma constituição
eidética da experiência” (2000, p.361).
66
em jogo “ficções heurísticas”; a manifestação e criação de um novo modo de ser das coisas
pelo discurso metafórico (cf 2000, p. 364s). É a partir da “teoria dos modelos” elaborada por
Max Black que Ricoeur tentará ultrapassar essas lacunas deixadas pela teoria de Nelson
Goodman.
De acordo com Paul Ricoeur, Max Black, em Models and Metaphors, estabelece o
parentesco no plano heurístico entre o funcionamento da metáfora nas artes e o dos modelos
nas ciências: “o argumento central é que a metáfora é para a linguagem poética o que o
modelo é para a linguagem cientifica quanto à relação com o real (...) um instrumento
heurístico que visa, por meio da ficção, destruir uma interpretação inadequada e traçar o
caminho para uma interpretação mais adequada” (2000, p. 366). Complementando as análises
de Black com as de Mary Hesse, Ricoeur vai assinalar que o modelo é um instrumento de
redescrição.
À pergunta acerca do benefício, para a teoria da metáfora, dessa passagem pela teoria
dos modelos, Ricoeur responde, primeiramente, salientando que “o choque retroativo do
modelo sobre a metáfora revela novos traços desta, que a análise anterior não percebera”
(2000, p. 371): a metáfora é o processo retórico pelo qual o discurso libera o poder que
algumas ficções têm de redescrever a realidade. Em seguida, ele destaca que se deve
compreender a relação entre mythos e mimèsis, na poíesis trágica, de modo semelhante à
relação entre ficção heurística e redescrição que a teoria dos modelos pôs em relevo
22
. Assim,
22
Para um entendimento melhor desse aspecto, deve-se ter como pano de fundo a leitura que Paul Ricoeur faz da
Poética de Aristóteles no § 5 do Estudo I de A Metáfora Viva. Ali, após relembrar que a tragédia comporta seis
elementos Mythos (enredo ou intriga), ethe (caracteres), lexis (elocução), dianóia (pensamento), ópsis
(espetáculo) e mélopoia (canto) Ricoeur salienta que eles formam uma rede na qual tudo gira em torno de um
fator dominante que é o mythos. Como a tragédia é a mimèsis dos homens agindo”, o mythos da tragédia vai ser
a construção do enredo que constitui a mimèsis das ações. Diante disso, o filósofo tece dois comentários: 1)
alertando para não reduzir os traços da mimèsis aos de uma simples pia que repetiria a natureza, Ricoeur
destaca então que mimèsis onde um “fazer”. Assim, “se a mimèsis comporta uma referência inicial ao
real, essa referência designa o próprio reino da natureza sobre toda produção. Mas esse movimento de referência
é inseparável da dimensão criadora. A mimèsis é poíesis, e vice-versa” (Ricoeur, 2000, p.69); 2) na tragédia,
diferentemente da comédia, a imitação das ações humanas é uma imitação que engrandece. Assim, o mythos
não é somente uma reordenação das ões humanas em uma forma mais coerente, mas uma composição que
sobreleva, e por isso a mímesis é a restituição do humano, não apenas segundo o essencial, mas maior e mais
nobre” (ibidem). Feitas essas observações, Paul Ricoeur prossegue aplicando-as à metáfora: referida à imitação
67
basicamente, ele propõe que a metaforicidade enquanto traço do próprio mythos, consiste em
“descrever um domínio menos conhecido a realidade humana em função de relações de
um domínio fictício mais bem conhecido o enredo trágico” (2000, p. 373). Quanto à
mimèsis lembrando que a “tragédia ensina a “ver” a vida humana “como” aquilo que o
mythos mostra” Ricoeur destaca que ela constitui a dimensão “denotativa” do mythos,
sendo então o verdadeiro nome da “referência metafórica”. Valendo-se de D. Berggrem, ele
passa a mostrar como a referência metafórica conjuga “os esquemas poéticos da vida interior”
e a “objetividade das texturas poética”. Essencialmente, Ricoeur defende que o verbo poético
“esquematiza” metaforicamente os sentimentos descrevendo as “texturas do mundo” que se
tornam verdadeiros “retratos da vida interior”. Em suma, aplicando a junção entre ficção e
redescrição também ao sentimento poético, Ricoeur conclui que também ele “desenvolve uma
experiência de realidade em que inventar e descobrir deixam de opor-se e na qual criar e
revelar coincidem” (2000, p. 376).
Todo esse percurso analítico desencadeado pela aplicação da teoria dos modelos às
metáforas conduziu Ricoeur às seguintes conclusões: a função poética visa redescrever a
realidade pela via indireta da ficção heurística; Dentro da função poética, a metáfora é a
estratégia de discurso pela qual a linguagem abre mão da descrição direta para poder liberar
sua função de descoberta; o poder de redescrição da linguagem poética apresenta uma
intenção “realista” que nos permite falar em termos de “verdade metafórica”.
Na análise que faz do problema da verdade metafórica, Ricoeur constata que é
necessário, à luz da concepção tensional da metáfora, inserir a tensão no ser metaforicamente
afirmado. Assim, o lugar da metáfora não é o nome, a frase ou o discurso, mas a cópula do
verbo ser, ou seja, metafórico é o “é” que articula, ao mesmo tempo, o “não é” e o “é
das melhores ações, ela é, ao mesmo tempo, submissão à realidade (um quadro do humano) e composição
original (invenção de uma intriga); restituição do humano e um deslocamento para o alto (sobrelevação). Ele
também ressalta que essa sobrelevação se aplica também à kártasis, que poderá ser entendida como a
sobrelevação do sentimento (cf. 2000, p. 62ss)
68
como”
23
. Em outros termos, a tensão característica da enunciação metafórica incide na cópula
“é”, de tal forma que o “ser-como” explicitado pela metáfora implica o ser e o não ser, o “isto
era e não era”. Paul Ricoeur acrescenta, na análise em que busca a explicitação ontológica do
postulado da referência, que o “ser-como” articula-se à capacidade metafórica, explicitada por
Aristóteles, de “pôr sob os olhos” (fazer imagem).
Retomando a observação do estagirita de que “pôr sob os olhos” é “significar as coisas
em ato”, Ricoeur assevera que, ao recorrer a uma categoria da “filosofia primeira”, Aristóteles
convida a empreender a explicitação ontológica da referência a partir de uma retomada
especulativa das significações do ser (cf. 2000, p. 470). Assim sendo, Paul Ricoeur aponta
três direções possíveis de como se pode entender a fórmula “significar as coisas em ato”: 1)
ver as coisas como ações; 2) ver as coisas ao modo de uma obra de arte; 3) ver as coisas como
nas eclosões naturais, isto é, não impedidas de advir. (cf. 2000, p. 473) Essa última opção nos
remete à tese apresentada por Ricoeur nas páginas finais do primeiro estudo de A metáfora
viva: “nenhuma exegese da mímesis, fundada sobre sua ligação com o mythos, suprimirá o
fato maior de que a mesis é mímesis physeos (2000, p. 71). Neste caso, é função do
conceito de physis servir como índice para a dimensão da realidade que não se manifesta na
simples descrição do que nela é dado. Essa referência à physis permite, sobretudo, que a
função referencial do discurso poético se ligue à revelação do Real como ato. Entretanto, dado
que a referência à natureza não exerce uma determinação sobre a composição do poema, um
vasto leque de possibilidades é preservado, podendo-se falar também em termos de imitações
das ações. Assim, “apresentar os homens “agindo” e todas as coisa “como em ato”, tal bem
poderia ser a função ontológica do discurso metafórico. Nele, toda potencialidade adormecida
23
Com isso, emerge um paradoxo incontornável vinculado a um conceito metafórico de verdade: se pode
falar de verdade metafórica incluindo o “aguilhão crítico” do “não é” literalmente na veemência ontológica do
“é” metaforicamente. Ignorar o “não é” implica ceder à ingenuidade ontológica. Reduzir o “é” metafórico a um
mero “como se” significa deixar-se prender pelos critérios verificativos de verdade. Ao defender a tese da
verdade metafórica (ser-como), Ricoeur assume uma posição de distanciamento tanto em relação a um
“fideísmo” ontológico de uma metaforicidade que revelaria plenamente a verdade da realidade, como do
ceticismo frente à nossa capacidade de forçar a fronteira ontológica (cf. CASTRO, 2002: 260).
69
de existência aparece como eclodindo, toda capacidade latente de ação, como efetiva” (2000,
p. 75).
Acabamos de verificar como Paul Ricoeur demonstra que as expressões metafóricas
não se limitam a uma criação de sentido, baseada numa nova pertinência semântica, mas
também contribuem para uma redescrição do real e, mais especificamente, para uma
redescrição de nosso ser-no-mundo, em virtude da correspondência entre um ver-como no
plano da linguagem e um ser-como no plano ontológico.
Após termos acompanhado o desenrolar da argumentação ricoeuriana em A metáfora
viva, o que podemos reter da mesma para temática da imaginação em Ricoeur? Encerremos
essa primeira parte da dissertação tentando responder a essa questão.
1.2.4 – Uma teoria semântica da imaginação
Em “L’imagination dans le discours et dans l’action”, à questão: “Qual novo acesso a
teoria da metáfora oferece ao fenômeno da imaginação? (cf. 1986, p.241), Paul Ricoeur
responde argumentando que é uma nova posição do problema que a teoria da metáfora
oferece ao fenômeno da imaginação: ao invés de abordá-lo pelo viés da percepção,
perguntando se é possível passar da percepção à imagem, e como se processa essa passagem,
a teoria da metáfora desenvolvida por Paul Ricoeur convida a articular a imaginação ao
fenômeno da inovação semântica que caracteriza o uso metafórico da linguagem (cf. 1986,
p.241). Em outros termos: no lugar de se ater à concepção de que a imagem é um resíduo ou
um apêndice da percepção, Ricoeur vai propor que “nossas imagens são faladas antes de
serem vistas”. É precisamente neste ponto que a teoria da metáfora interessa à filosofia da
imaginação: a explicação ricoeuriana acerca do funcionamento da dinâmica metafórica ajuda-
nos a compreender como a imagem deriva da linguagem e não da percepção.
Para Ricoeur, conforme assinalamos, é no âmbito da inovação semântica, isto é, no
momento de emergência de uma nova significação para além da ruína da predicação literal
70
que a imaginação oferece sua mediação especifica. Através das análises anteriores, verificou-
se que a metáfora viva é o exemplo mais nítido do poder da linguagem de criar sentido através
da aproximação inesperada de campos semânticos afastados, de tal modo que uma nova
pertinência semântica vem à tona apesar da inconsistência semântica e lógica no vel do
sentido literal (cf. 1995, p.45). Nesse processo de criação de sentido, isto é, de emergência de
uma nova pertinência semântica, a imaginação exerce papel preponderante: é a capacidade de
imaginar que está atuando na metamorfose de sentido presente na metáfora viva. Em outros
termos, a semelhança figurativa que desfaz a tensão semiótica e possibilita a captação da nova
produção significativa é uma dinâmica da imaginação. É ela, enquanto apercepção de uma
nova pertinência predicativa, que possibilita o preenchimento do vazio que a transposição de
sentido deixa em aberto. De tal forma que, em suma, “imaginar é, em primeiro lugar,
reestruturar os campos semânticos” (RICOEUR, 1986, p.243).
A inteligibilidade dessa dinâmica da imaginação presente no fenômeno da inovação
semântica passa pela teoria kantiana do esquematismo. Assim como o esquematismo é um
método para dar uma imagem a um conceito, a imaginação acionada pela metáfora na
medida em que é uma operação para apreender o semelhante por uma assimilação predicativa
que responda ao choque semântico inicial também é mais um método do que um conteúdo,
cuja essência é dar uma imagem a uma significação emergente. Por isso que, ao invés de uma
percepção evanescente, a imagem é uma significação emergente. Quanto ao aspecto não-
verbal da imagem, (dimensão quase sensorial, na maioria das vezes quase ótica), este se
explica devido ao fenômeno de ressonância da significação emergente na experiência da
leitura. Como diz Ricoeur: “esquematizando a atribuição metafórica, a imaginação se difunde
em todas as direções, reanimando experiências anteriores, acordando lembranças
adormecidas, irrigando os campos sensoriais adjacentes” (1986, p. 244).
Contudo, conforme assinala Ricoeur, o papel mais importante da imagem na metáfora
71
não é apenas esse de difundir o sentido nos diversos campos sensoriais, para o filósofo:
uma das funções da imaginação é a de conferir uma dimensão concreta à suspensão própria da
referência dividida. A imaginação não se limita a esquematizar a assimilação predicativa entre os
termos pela sua intuição sintética acerca das semelhanças; nem se limita a retratar o sentido graças
à apresentação de imagens despertas e controladas pelo processo cognitivo. Pelo contrário, ela
contribui para a suspensão da referência comum e para a projeção de novas possibilidades de
redescrever o mundo. A imagem, enquanto ausência, constitui o lado negativo da imagem, enquanto
ficção... As ficções dirigem-se às potencialidades da realidade profundamente enraizadas, na medida
em que estão ausentes das condições reais com as quais lidamos na vida quotidiana sob o modo do
controle empírico e da manipulação (RICOEUR, 1978, p. 154s apud PHILIBERT, 1999, p. 77s)
Assim sendo, o mais importante é o efeito de neutralização produzido pela
imaginação, graças ao qual a dinâmica metafórica é inserida num estado de não-engajamento
com o mundo da percepção, o que lhe permite abrir e desdobrar novas dimensões da
realidade. Estamos aqui diante de um paradoxo: a anulação da percepção permite uma
ampliação da nossa visão das coisas, ou seja, a imaginação cria um não-lugar em relação ao
real no qual um livre jogo com as possibilidades permite ensaiar idéias e valores novos,
enfim, permite ensaiar novas maneiras de ser-no-mundo. Em outros termos, a ação
neutralizante exercida pela imaginação é a condição negativa para que seja liberada uma força
referencial mais primordial, que nos coloca “na presença de um real imaginário, do mundo da
ficção e da literatura que nos abre, pela imaginação, à constituição de uma referência segunda,
indireta ou poética, intrinsecamente ligada ao poder criador da linguagem” (CASTRO, 2002,
p. 262). Assim, em virtude do poder da imaginação, tem-se a possibilidade de se fazer a
experiência de um referente inédito e escondido sob os escombros do referente empírico.
Através da suspensão da referência “real”, ou seja, imediata, ostensiva, direta, a imaginação
faz emergir o “ver como” do enunciado metafórico, ao qual corresponde um “ser como” de
ordem extralingüística (cf. 1995, p.47). A anulação da percepção apresenta-se então como
condição primeira do alargamento de nossa imaginação para além da esfera do discurso, tema
que exploraremos a seguir.
72
2 – A EXTENSÃO DA IMAGINAÇÃO SEMÂNTICA AO CAMPO DA AÇÃO
A concepção de imaginação, posta em ação numa teoria da metáfora centrada na
noção de inovação semântica, deixar-se-á generalizar além da esfera do discurso à
qual ela pertence a título primordial? (RICOEUR, 1986, p. 235)
Este segundo capítulo visa aclarar a proposta ricoeuriana de elaboração de uma teoria
geral da imaginação mediante extensão da imaginação semântica ao campo da ação. Para
tanto, pretendemos acompanhar as principais etapas analíticas deste processo consignadas no
ensaio L’imagination dans les discours et dans l’action”
1
, que tomaremos como base da
presente reflexão. Assim sendo, à luz da função de charneira que Temps et Récit desempenha
no pensamento ricoeuriano e examinando de perto o modelo de articulação entre a experiência
aporética do tempo e a inteligibilidade narrativa que Ricoeur denomina de ‘a tríplice
mimèsis’, procuraremos explicitar a função mimética da imaginação como sendo um primeiro
passo da generalização da imaginação semântica para além da esfera do discurso. Entretanto,
conforme Paul Ricoeur nos instrui no ensaio supracitado, esse primeiro passo da imaginação
semântica rumo à esfera prática é ainda limitado, pois, como teremos oportunidade de
verificar, restringe a imaginação apenas a participar de uma atividade mimética que
redescreve uma ação prévia. Daí a necessidade de se avançar na direção de uma poética da
ação cuja base é a convicção de que não existe ação sem imaginação , explicitando outras
funções da imaginação inerentes ao dinamismo do agir humano. Por isso mesmo, na
seqüência do presente capítulo procurar-se-á aclarar como a imaginação está implicada no
1
Num certo sentido, esta dissertação pode ser entendida como um comentário ao artigo L’imagination dans le
discours e dans l’action”, na medida em que nela: a) desdobramos aquilo que Ricoeur ali apresenta de modo
excessivamente sucinto; b) retomamos e reconstruímos a argumentação desenvolvida em outras obras do filósofo
com o intuito de fundamentar as teses apresentadas no referido artigo; c) recorremos, quando necessário, ao
subsídio de outros autores para explicitar a teoria geral da imaginação proposta por Ricoeur. Assim sendo, os
dois primeiros tópicos da introdução desta dissertação desenvolvem uma citação retirada da abertura do artigo
em foco, colocada como epigrafe de nossa introdução. Nosso primeiro capítulo, sobretudo no item 1.2, retoma e
desenvolve o primeira parte (L’imaginationa dans le discours) do artigo supracitado. os picos 2.2 e 2.3 do
presente capítulo visam explicitar e fundamentar a proposta de generalização da imaginação semântica tal qual
Ricoeur sustenta na segunda parte (L’imagination à la charnière du theorique et pratique) do artigo. À última
parte do mesmo (L’imaginaire social) é dedicada o item 2.4 do presente capítulo. O próximo capítulo, bem como
os demais itens desta dissertação não mencionados anteriormente, tem a finalidade de articular a temática da
imaginação com o conjunto da reflexão ricoeuriana desenvolvida entre 1970 e 1990.
73
agir individual e intersubjetivo. Para tanto, em primeiro lugar, teremos que retomar, embora
resumidamente, algumas das reflexões desenvolvidas por Ricoeur em sua fenomenologia da
vontade, já que nela encontramos o momento inaugural de uma fenomenologia do agir
individual que coloca em evidência a função projetiva da imaginação. Em seguida,
retomaremos a leitura ricoeuriana da teoria da intersubjetividade elaborada por Husserl na
quinta Meditação cartesiana, explicitando a função empática da imaginação, isto é, como ela
participa da apreensão analógica do outro. Antes de dar o passo decisivo na direção do
imaginário social, será necessário acompanhar o modo como Paul Ricoeur articula a
imaginação à análise das condições de possibilidade da experiência histórica em geral à luz
dos desdobramentos que Alfred Schütz à teoria da intersubjetividade husserliana. Por fim,
instruídos pela reflexão proposta por Ricoeur na parte final do ensaio “L’imagination dans les
discours et dans l’action”, segundo a qual “a verdade de nossa condição é que o elo analógico
que faz de todo homem o meu semelhante nos é acessível através de certo número de
práticas imaginativas, tais como a ideologia e a utopia”, procuraremos, após explicitarmos
as funções e significados atribuídos por Ricoeur à ideologia e à utopia, mostrar como para o
filósofo um entrecruzamento necessário entre esses dois fenômenos no plano social do
imaginário.
Acreditando que o processo de extensão da imaginação semântica para o campo da
prática está assentado no deslocamento do pensar ricoeuriano do texto para a ação,
iniciaremos o presente capítulo com uma retomada do itinerário que culmina na reconquista
da preeminência do prático pela filosofia de Paul Ricoeur.
74
2.1 – DO TEXTO À AÇÃO
Durante os anos 1970, constata-se a existência de um interesse crescente de Paul
Ricoeur pela teoria da ação
2
. Ainda que o filósofo confesse a fascinação pela escritura e pela
textualidade que caracteriza suas obras publicadas nesta época (cf. 1995, p.59), ele reconhece
que em sua hermenêutica do texto o liame mimético entre o ato de dizer e o agir efetivo,
embora tenha se tornado mais complexo e mais indireto, jamais fora inteiramente rompido (cf.
RICOEUR, 1986, p. 8). Além disso, gradativamente, o foco do interesse de Ricoeur na análise
dos textos passou a ser o caráter paradigmático das configurações textuais no que tange a
estruturação do campo prático onde os homens figuram como agentes e pacientes. Assim,
pode-se dizer que o itinerário filosófico ricoeuriano, a partir dos anos 70 do século passado,
empreendeu uma reinscrição progressiva da teoria do texto na teoria da ação, de tal modo que,
indubitavelmente, o trajeto analítico seguido por Ricoeur conduziu-o a uma reversão de
prioridade em favor da dimensão prática inicialmente obliterada pelo fascínio da textualidade.
Essa reconquista da preeminência do prático é construída em vários ensaios do
filósofo, dentre os quais queremos destacar inicialmente o artigo “Le modele du texte: action
sensée considerée comme um texte”, publicado em 1971. Nele, Ricoeur faz o giro para a
problemática da ação, sem deixar, contudo, que a noção de texto perca seu caráter
paradigmático.
2
Nas reflexões feitas em sua autobiografia intelectual, o filósofo francês assinala que o interesse crescente pela
teoria da ação, por um lado, liga-se a seu propósito inicial de fazer do campo prático o domínio privilegiado pela
fenomenologia do voluntário e do involuntário; por outro lado, tal interesse se relaciona também com a
necessidade de integrar em sua hermenêutica a distinção entre semântica e pragmática das frases de ação,
oriunda dos contributos de Austin e Searle. Ricoeur também explica a atenção gradativa dada à ação mostrando
que como o agir constitui o núcleo do ser-no-mundo que o discurso explicita foram as próprias exigências
da textualidade que conduziram seu pensamento hermenêutico a uma espécie de deportação para o fora do texto
por excelência que é o agir humano (cf. 1995,p. 52s; 60). No que tange a esse último aspecto, o filósofo destaca
dois modos diferentes através dos quais o deslocamento para a ação é suscitado pelo próprio texto: primeiro,
enquanto discurso, o texto apresenta uma relação intersubjetiva que o reorienta para o mundo prático do leitor
que ele redescreve ou refigura; segundo, a própria força de redescrição do texto faz com que ele tenha uma
pretensão referencial que o remete ao primado do ser agindo e padecendo. Subjaz ao problema da
intersubjetividade e ao problema da referência inerentes ao texto a convicção de que “o discurso não é somente
para a sua própria glória, mas visa, em todos os seus usos, trazer à linguagem uma experiência, um modo de
habitar e de ser no mundo que o precede e demanda ser dito” (1995,p.60).
75
O filósofo inicia o referido artigo retomando as principais características de um
discurso fixado pela escrita, cuja análise tivemos oportunidade de efetuar no item 1.1.1
desta dissertação
3
. Logo em seguida, questiona: em que medida pode-se dizer que o objeto
das ciências humanas se conforma ao paradigma do texto?” (1986, p. 213). Para poder
encaminhar uma resposta a esse questionamento, assumindo a definição weberiana de que o
objeto das ciências humanas é “a conduta orientada de maneira significativa”
4
, o filósofo se
propõe a aplicar os quatro critérios da textualidade (fixação da significação; dissociação da
significação em relação à intenção mental do autor; desdobramento das referências não
ostensivas; inventário universal dos destinatários do texto) ao conceito de “ação
significativa”. A este respeito, o próprio Ricoeur, num estudo sobre a semântica da ação,
apresentou a seguinte síntese programática:
a ação significativa é como um texto que se oferece à leitura, a várias leituras, e que a dialética entre
explicação e compreensão implicada na leitura e na interpretação de um texto nos convida
igualmente a buscar na interpretação das ações dos homens uma alternativa semelhante entre
compreender e explicar. Mas tal analogia do texto deverá elaborar-se com grande cuidado (1988,
p.25).
Para desenvolver o programa que acaba de ser delineado, Paul Ricoeur, em “Le
modele du texte: action sensée considerée comme um texte”, começa por traçar essa
cuidadosa analogia entre texto e ação. Para tanto, ele ressalta que, do mesmo modo como a
interlocução sofre uma transmutação quando fixada pela escrita, também a interação no plano
prático é afetada pelas situações em que a ação pode ser tratada com a mesma objetividade de
um texto. Graças a esta objetivação, a ação passa a ter uma configuração que exige ser
interpretada em função de suas conexões internas. O que permite essa objetivação da ação é a
3
cf. supra pp.36ss
4
Ricoeur assinala que, de acordo Max Weber, a ação se distingue de um simples comportamento pelo fato de
poder ser interpretada em termos de significações visadas, alegadas ou não. Desse modo, por ação entende-se
todo comportamento humano para o qual o sujeito atribui uma significação subjetiva exteriorizada ou não.
Radica aqui o famoso individualismo metodológico weberiano. A ação é social na medida em que não apenas é
significativa para o indivíduo que age, mas é orientada para o outro, isto é, leva em consideração o
comportamento de outros indivíduos, sendo, desta forma, influenciada no seu desenrolar. Neste caso a conduta
de um indivíduo entra numa modalidade de ação plural, marcada pela existência de uma probabilidade de que
um determinado curso da ação terá lugar, estabelecendo assim relações sociais estáveis (cf. RICOEUR, 1986, p.
328ss).
76
existência de alguns traços que a aproxima da estrutura do ato de linguagem, transformando o
fazer numa espécie de enunciação. Assim sendo, a ação, por um lado, tem a estrutura de um
ato locucionário, isto é, apresenta “um conteúdo proposicional suscetível de ser identificado e
reindentificado como sendo o mesmo”, possibilitando a explicitação da “estrutura noemática
da ação” enquanto aspecto que pode ser fixado e destacado do processo de interação para se
tornar um objeto de interpretação. No entanto, o que é fixado pela ação é mais do que seu
conteúdo proposicional. A ação apresenta também uma força ilocucionária que a torna uma
ação marcante, isto é, uma ação que deixa sua marca no tempo (cf. 1986, p. 214ss). Esse
aspecto faz com que a ação da mesma maneira que um texto em relação a seu autor se
desate de seu agente, e desenvolva suas próprias conseqüências. Essa autonomização da ação
possibilita a inserção da mesma no âmbito dos fenômenos sociais, cujos efeitos duráveis
fazem-se presentes mediante a emergência de configurações persistentes, transformadas em
documentos da ação humana recolhidos por esse grande dossiê que é a história, essa “quase
coisa” sobre a qual a ação humana deixa sua impressão (cf. 1986, p.218). A ação significativa,
tornando-se ação social mediante a inserção no arquivo da história, obtém um grau de
institucionalização que a emancipa de seu contexto inicial, possibilitando o desenvolvimento
de significações passiveis de serem atualizadas ou preenchidas num novo contexto social. Em
outros termos, uma ação significativa apresenta uma pertinência durável e, em certos casos,
até mesmo onitemporal (cf. 1986, p.219). Por isso mesmo, a ação analogamente a um texto
considerado como obra, que não reflete apenas seu tempo, mas desenvolve novas referências
e constitui novos mundos oferecidos a quem quer que saiba ler é uma obra endereçada a
uma série indefinida de leitores” possíveis e, portanto, aberta às interpretações ulteriores, ou
seja, tal qual num texto, os contemporâneos de uma ação não tem um privilégio particular no
processo de interpretação da mesma (cf. 1986, p. 220).
Construída a analogia entre texto e ação, à qual acabamos de nos referir
77
sinteticamente, Ricoeur se propõe a mostrar a fecundidade metodológica da mesma. A fim de
realizar esse empreendimento, ele retoma a questão hermenêutica da relação entre explicar e
compreender. Considerando que para Dilthey há uma dicotomia entre esses dois pólos
5
,
Ricoeur, por seu turno, se propõe a estabelecer o caráter dialético da relação entre ambos a
partir do paradigma da interpretação textual (cf. 1986, p.221). Para tanto, em primeiro lugar,
ele analisa a dialética entre conjuntura e validação e, em seguida, a relação entre análise
estrutural, semântica profunda e apropriação de um texto, situando-as como figuras modernas
da dialética entre explicar e compreender. Por fim, procura mostrar o valor paradigmático
dessas dialéticas para o campo da ação.
Para demonstrar como a dialética entre conjuntura e validação constitui-se num
equivalente moderno da dialética entre explicar e compreender, Paul Ricoeur, posicionando-
se criticamente diante da tradição romântica em hermenêutica, sustenta a existência de uma
indisponibilidade contemporânea da intenção do autor, o que impossibilita a resolução do
problema da significação pela simples retomada da experiência psíquica do mesmo. Além do
mais, um texto, tal qual um individuo, permite uma aproximação por vários lados, e, tal qual
um volume no espaço, apresenta devido ao fato de os diversos temas presentes nele não
apresentarem a mesma altitude um relevo. A partir dessas características do texto, o
filósofo sustenta que uma unilateralidade está sempre implicada no ato de interpretar,
transformando a busca da significação de um texto em um processo de reconstrução
perspectivista do mesmo. Tal processo apresenta sempre um caráter conjectural, pois
nenhuma necessidade ou evidência se vincula à determinada interpretação. Contudo,
apoiando-se nas análises de Hirsch em Validity in Interpretation, Ricoeur faz a seguinte
constatação: se não existe regras para se fazer boas conjecturas, pelo menos métodos para
5
Para uma visão mais detalhada do ponto de vista diltheyniano acerca da relação entre explicar e compreender,
pode-se consultar o artigo de Paul Ricoeur: “La tâche de l´herméneutique: en venant de Schleiermacher et de
Dilthey” in Du texte à l’action, ed. du Seuil, 1886, pp. 83-112.
78
validá-las. (cf. 1986, p. 225s). Como os procedimentos de validação das conjunturas
pertencem à gica da probabilidade, diante de um conflito das interpretações, uma
interpretação válida não deve ser apenas provável, mas mais provável que outra. Por isso, diz
Ricoeur:
se é verdade que existe sempre mais de uma maneira de construir um texto, não é verdade que todas
as interpretações são equivalentes (...) O texto é um campo limitado de construções possíveis. A
lógica de validação permite-nos evoluir entre os dois limites do dogmatismo e do ceticismo. É
sempre possível advogar a favor ou contra uma interpretação, confrontar interpretações, arbitrar
entre elas, visar um acordo, ainda que este acordo permaneça fora do alcance (1986, p. 226).
Visando responder ao questionamento acerca do valor paradigmático da dialética entre
conjuntura e validação para o âmbito do agir humano, Ricoeur articula a plurivocidade
especifica do texto e a plurivocidade analógica da ação humana, recorrendo à relação entre as
dimensões intencionais e motivacionais da ação. Lembrando que se compreende o que se
teve intenção de fazer, se houver possibilidade de explicar o porquê de determinada ação, isto
é, lembrando que “o caráter intencional de uma ação é plenamente reconhecida quando a
resposta à questão quê? é explicada em função de uma resposta à questão por quê?” (1986,
p.227) e considerando que apenas as respostas que enunciam um motivo compreendido como
razão de, e não como causa, dão sentido ao “que” da ação, Ricoeur salienta: o modo como se
conta dos motivos da ação pelo agente prefigura uma lógica da argumentação concernente
ao significado de uma ão. Assim sendo, uma mesma ação pode ser explicada de diferentes
modos, conforme a multiplicidade de argumentos aplicados ao seu pano-de-fundo
motivacional para explicitar o seu “caráter de desejabilidade”, isto é, para explicitar o quanto
se desejou ou se quis realizá-la. Essas múltiplas explicações possíveis de uma mesma ação
justificam a extensão do conceito de “conjuntura” ao campo prático (cf. 1986, p.227ss). No
que tange a aplicação do conceito de “validação” à esfera da ação, Ricoeur faz menção ao
raciocínio jurídico como sendo o elo fundamental entre a validação no campo da textualidade
e a validação no campo das ciências sociais. Para ele, é o modo como se imputam ações aos
79
agentes no âmbito dos procedimentos jurídicos que deve ser tomado como referência do
caráter polêmico do processo de validação:
Diante do tribunal, a plurivocidade comum aos textos e ões é trazida ao dia sob a forma de um
conflito das interpretações, e a interpretação final aparece como um veredicto do qual é possível
apelar. Como as sentenças legais, todas as interpretações no campo da crítica literária e no das
ciências sociais podem ser contestadas (1984, p. 231).
Após ter situado a dialética entre conjuntura e validação como uma das figuras
modernas da dialética entre explicar e compreender, e após ter evidenciado a sua pertinência
paradigmática para o âmbito das ações humanas, Ricoeur encerra sua reflexão sobre a
fecundidade metodológica da analogia entre texto e ação examinando outra figura moderna da
dialética entre explicar e compreender: a dialética entre análise estrutural e semântica
profunda de um texto.
Se anteriormente, em seu exame da relação entre conjuntura e validação, o movimento
analítico partia da compreensão rumo à explicação, o exame da dialética entre análise
estrutural e semântica profunda de um texto vai assumir o sentido inverso. Como se sabe
6
,
Ricoeur concebe o ato de ler como uma interação dialética na qual se articulam duas
possibilidades: permanência num estado de suspensão a respeito de toda espécie de mundo
visado e abertura para a efetuação, numa nova situação, das referências potenciais não
ostensivas desdobradas pelo texto. À primeira possibilidade, conecta-se a atitude explicativa
oriunda das diferentes escolas estruturais; à segunda, uma semântica profunda que constitui o
objeto próprio da compreensão. Para o filósofo, essa segunda figura da dialética entre explicar
e compreender também apresenta um caráter paradigmático válido para todo o campo das
ciências humanas.
Na seqüência, Ricoeur apresenta então alguns fatores que justificam o valor
paradigmático da relação entre análise estrutural e semântica profunda para o campo da ação.
6
cf. supra, pp.42s
80
Em primeiro lugar, faz referência ao fato de o modelo estrutural não ter sua aplicação limitada
aos signos lingüísticos, mas poder ser estendido aos fenômenos sociais, que estes podem
também ser considerados sistemas semiológicos; em seguida, faz menção ao fato de as
estruturas sociais apresentarem uma dimensão referencial que as remete às perplexidades e
aos conflitos profundamente encravados na existência humana. Sendo essa dimensão
referencial o objeto que uma interpretação profunda da ação deseja apreender, Ricoeur
salienta que tal apreensão se mediante um engajamento pessoal análogo ao de um leitor
que se apropria de um texto
7
.
No ensaio “Le modele du texte: l’action sensée considerée comme un texte, de
acordo com o que acabamos de acompanhar, encontramos a primeira tentativa ricoeuriana de
reinscrição da teoria do texto na teoria da ação, mediante a aplicação da objetividade textual
ao domínio da ação significativa. No referido ensaio, a noção de texto foi apresentada como o
paradigma apropriado às ciências sociais, donde a proposta ricoeuriana de extensão dos
modelos epistemológicos oriundos da hermenêutica ao conjunto destas mesmas ciências.
Certamente a transferência metodológica do domínio dos textos para o campo da ação
suscitou muitas objeções
8
. Uma delas refere-se ao fato de Paul Ricoeur, no artigo supracitado,
permanecer excessivamente preso aos aspectos epistemológicos da proposta de extensão do
objeto da hermenêutica ao campo da práxis. Talvez devido à unilateralidade dessa primeira
abordagem, na seqüência de seu labor filosófico, Ricoeur tenha sentido a necessidade de
complementá-la, retomando a mesma questão a partir de outros prismas.
7
O filósofo não negligencia o caráter problemático da inserção do conceito de apropriação às ciências sociais.
No entanto, assevera: “a solução não é negar o papel do engajamento pessoal na compreensão dos fenômenos
humanos, mas de precisá-lo” (1986, p. 236). Essa ponderação implica a retificação da noção de engajamento
pela aceitação de que a compreensão de uma ação é mediatizada pelo conjunto de procedimentos explicativos,
não consistindo, portanto, numa apreensão imediata de uma vida psíquica estranha ou numa identificação
emocional com uma intenção mental. Implica também que não se deve renunciar à convicção de que o ato final
de apropriação impede que a dialética entre explicar e compreender aplicada ao mundo da ação humana se torne
um círculo vicioso.
8
Uma pequena resenha delas é feita por Johan Michel, retomando as críticas do sociólogo Louis Quéré (cf.
2006, p.243ss; 256).
81
Assim, no ensaio “Hegel e Husserl sur l’intersubjectivité” publicado em 1977 de
acordo com a opinião de Johan Michel , Ricoeur consegue contornar o viés metodológico
assumido no ensaio de 1971 analisado nos parágrafos anteriores, mobilizando os recursos da
fenomenologia e da sociologia compreensiva. Esse artigo de 1977 sobre a intersubjetividade
desempenha um papel preponderante na transição do objeto da hermenêutica do texto para a
ação, embora nele por não recorrer ao método estrutural como outrora fizera Ricoeur
deixe vaga a determinação do estatuto da explicação nas ciências sociais
9
(cf. MICHEL, 2006,
p.255s). Por isso mesmo, segundo agora a opinião de Ivanhoé A. Leal, vai ser no ensaio “La
raison pratique” (1979) que efetivamente se realizado o deslocamento do pensamento
ricoeuriano para o campo da ação (cf. 2002, p.129). Neste ensaio de 1979 após examinar as
noções de ‘razão de agir’ e de ‘raciocínio prático’ a partir dos contributos da teoria
contemporânea da ação, e após analisar as noções de ‘regras de ação’ e ‘conduta submetida a
regras’ à luz da sociologia da compreensão herdeira de Weber Ricoeur retoma a noção de
‘ação significativa’ a partir do conceito kantiano de ‘razão prática’ e do conceito hegeliano de
‘vida ética concreta’. Para evitar sucumbir à ‘tentação hegeliana’ de englobar a ação
significativa no campo da razão especulativa, Ricoeur questiona o Espírito absoluto hegeliano
e recusa a objetividade forjada pela hipóstase do Estado (cf. RICOEUR, 1986, p. 261ss;
LEAL, 2002, p. 118ss, 129). Diante disso, a partir da análise empreendida por Husserl em sua
quinta Meditação cartesiana, Ricoeur propõe a constituição do outro numa relação
intersubjetiva como alternativa para se engendrar a objetividade de uma comunidade
histórica. Dado que as instituições aparecem como objetivações ou até reificações das
relações intersubjetivas, Ricoeur sustenta que o destino da razão prática passa a ser decidido
9
Para J. Michel vai ser apenas com a publicação do primeiro tomo de Temps et Récit, em 1984, que Ricoeur
proporá um modelo de explicação válido para o conjunto das ciências sociais, baseado na proposta weberiana de
“imputação causal singular”: De acordo com Paul Ricoeur: “a imputação causal singular é o procedimento
explicativo que faz a transição entre a causalidade narrativa a estrutura do ‘um pelo outro’ que Aristóteles
distinguia do ‘um após o outro’ e a causalidade explicativa que, no modelo nomológico, não é distinguida da
explicação pelas leis” (1983:322).
82
exatamente no âmbito desses processos de objetivação e de reificação que ameaçam a
dialética recíproca entre liberdade e instituição, sem a qual não ação significativa. Nesse
sentido, o filósofo atribui um estatuto de mediação à razão prática e a define como “o
conjunto de medidas tomadas para preservar ou para instaurar a dialética da liberdade e das
instituições” (1986, p.285). Assim sendo, uma vez que as mediações institucionais podem ser
transformadas em algo estranho ao desejo de satisfação dos indivíduos, a razão prática,
segundo Ricoeur, exerce também a função critica de “desmascarar os mecanismos
dissimulados de distorção pelos quais legítimas objetivações do laço comunitário tornam-se
alienações intoleráveis” (1986, p.286). É neste ponto, segundo Ricoeur, que a “crítica das
ideologias”, enquanto ataque às raízes das distorções sistemáticas que impedem o indivíduo
de conciliar a autonomia de sua vontade com as exigências resultantes da mediação
institucional, pode ser incorporada à razão prática, como explicitação concreta de sua função
critica. Ricoeur termina sua reflexão sobre a razão prática fazendo uma rápida alusão ao papel
da utopia: segundo o filósofo, a idéia moral de autonomia funciona como energia utópica de
toda critica das ideologias (cf. 1986, p.288).
A nosso ver, a análise da ação significativa à luz da problemática da razão prática, que
acaba de ser retomada sucintamente, embora nos ofereça um quadro programático dos
grandes temas relacionados com o campo prático sobre os quais o filósofo se debruçou ao
longo dos anos 70 do século passado, ainda não foi suficiente para remeter nossa reflexão
para o horizonte ético-político do agir humano, fim último de filosofia prática ricoeuriana (cf.
MICHEL, 2006, p.285). Para cruzar esse limiar, uma tarefa importante ainda resta a cumprir:
a travessia das reflexões desenvolvidas em Temps et Récit.
Temps et Récit, ressaltemos desde já, no conjunto da produção intelectual
desenvolvida por Ricoeur entre 1970 e 1990, apresenta-se, conforme teremos oportunidade de
verificar a seguir, como a verdadeira charneira do pensamento ricoeuriano. Por um lado,
83
através da noção de ‘inovação semântica’, Temps et Récit se articula à poética desenvolvida
em A metáfora viva. Por outro, por meio da noção de ‘identidade narrativa’, a mesma obra se
articula à perspectiva prática desenvolvida em Soi-même comme un autre. No primeiro caso,
ela se integra à hermenêutica do texto. No segundo, deslinda a possibilidade de uma
hermenêutica do agir humano. Além disso, as reflexões desenvolvidas em Temps et Récit
comprovam que a convergência entre a teoria do texto e a teoria da ação, até mesmo no nível
da metodologia, não é algo fortuito: a articulação entre texto e ação justifica-se não devido
ao fato de a noção de texto, como foi mostrado mais acima, apresentar-se como um bom
paradigma para a ão humana, mas também porque a ação de acordo com o que nos é
imediatamente sugerido pelo exame do gênero narrativo do discurso empreendido em Temps
et Récit se apresenta como um bom referente para toda categoria de textos (cf. 1986, p.
195). De fato, conforme teremos oportunidade de verificar com maiores detalhes logo a
seguir, Ricoeur considerando a narrativa o texto por excelência (cf. 1995, p.49), e evocando
a Poética de Aristóteles que aproxima muthos, mimèsis e práxis vai assinalar que ela (a
narrativa) é, essencialmente, uma representação criadora dos homens agindo, de tal modo que
“o transfert do texto à ação cessa inteiramente de aparecer como uma analogia arriscada, na
medida em que se pode mostrar que ao menos uma região do discurso [a narrativa] tem como
tema a ação, refere-se a ela, redescreve-a e a refaz” (RICOEUR, 1986, p.196).
Pelo que acaba de ser mencionado, Temps et Récit apresenta-se como uma etapa
fundamental do deslocamento do pensamento de Ricoeur de uma hermenêutica do texto para
uma hermenêutica do agir humano, impondo-se como uma passagem obrigatória para a
realização dos propósitos desta dissertação
10
.
10
Além disso, Temps et Récit é importante também por ter sido a obra que consagrou Paul Ricoeur como um dos
mais eminentes pensadores contemporâneos. Embora Ricoeur, até o final dos anos 70, tenha animado na
Sorbonne um famoso seminário no qual acolhia grande número de pesquisadores franceses e estrangeiros, pode-
se dizer que, neste período, o filósofo permanecia essencialmente relegado às fronteiras, dividindo seu
magistério entre a França e os Estados Unidos Quando então publica, em 1983, o primeiro volume de Temps et
84
2.2 - A IMAGINAÇÃO ENTRE O POÉTICO E PRÁXICO EM TEMPS ET RÉCIT
O tema filosófico que perpassa a totalidade dos três volumes de Temps et cit,
conforme Ricoeur ressalta em Réflexion faite, é a problemática do tempo. Contudo, ele
confessa também que só conseguiu escrever sobre esta questão quando percebeu uma conexão
significativa entre a “função narrativa” e a “experiência humana do tempo” (cf. 1995, p.63).
Em outros termos, Ricoeur pôde enfrentar a aporética questão do tempo pelo viés de seu
interesse pela narratividade
11
. Mas, se a narrativa é o acesso para o exame filosófico da
temporalidade, esta não deixa de impor também sua marca em todas as considerações
ricoeurianas sobre o discurso narrativo, de tal modo que a idéia diretriz de Temps et Récit
será a existência de uma relação de condicionamento tuo entre narratividade e
temporalidade. Conforme afirma o próprio Ricoeur:
existe entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana uma
correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural.
Ou para o dizer diferentemente: que o tempo torna-se tempo humano na medida em que está
Récit, terminava para Ricoeur o longo eclipse ao qual seu pensamento fora submetido desde os “eventos de
Nanterre”. A publicação desta obra e os debates que se sucederam marcam, enfim, o retorno do filósofo à cena
intelectual francesa e internacional. Uma “redescoberta” do pensamento ricoeuriano estava em curso no início
dos anos 1980 quando vários congressos começaram a ser promovidos em torno da obra de Ricoeur. Por
exemplo, em 1983, o Instituto Mundial de Altos Estudos Fenomenológicos organizou na Sorbonne um colóquio
sobre o pensamento de Ricoeur. Dois encontros memoráveis sobre o filósofo francês foram organizados, em
1987, pelas universidades de Granada e de Madrid, graças à P. C. Galan e M. Maceiras. Jornadas destacando a
importância da contribuição ricoeuriana para interrogação contemporânea sobre a política, a ética e o religioso
foram organizadas pelo grupo da Revue Esprit. A quase totalidade das intervenções feitas na jornada de 1987
foram publicadas nos números 140-141 da Revue Esprit. Em agosto de 1988, foi organizado em Ceresy-la-salle
onde foram celebrados colóquios de suma importância para cultura atual um congresso sobre a
hermenêutica de Paul Ricoeur, abordando seu pensamento desde 1960 até aquela data. Conforme destaca F.
Dosse, “ele [Ricoeur] é enfim reconhecido como aquele que, longe dos fogos midiáticos, simplesmente
prosseguiu um trabalho exigente que finalmente se impunha a todos” (1997, p.566).
11
O próprio filósofo reconhece que as fontes e as razões de seu interesse pela narratividade são diversas e
heterogêneas: além dos próprios traços da narrativa enquanto estrutura lingüística distinta, ele apresenta como
fontes de seu interesse pela narrativa: a descoberta de uma epistemologia do conhecimento histórico que
relaciona explicação histórica e estrutura narrativa (epistemologia narrativista); o ensinamento da filosofia
analítica acerca do funcionamento da “frase narrativa”; as incursões intermitentes no campo da exegese bíblica
(cf. RICOEUR, 1995,p. 64s). Quanto ao tempo, a preocupação com o seu sentido e suas relações com o mito, a
verdade, a história, a linguagem e o ser do homem caracteriza-se como uma das vertentes da reflexão
ricoeuriana, conforme salientou Constança M. César num artigo que trata exatamente de “expor a presença
dessa temática nos escritos do filósofo, bem como de seguir seu desdobrar e aprofundamento” (cf. CESAR, C.
“O problema do tempo” in ______. Paul Ricoeur: ensaios, Paulus, 1998, pp.27-37). Pode-se dizer que a reflexão
ricoeuriana sobre a narrativa e sobre o tempo seguiram cada uma seu próprio curso até a sugestiva proposta de
articulação dessas duas temáticas na primeira parte de Temps et Récit I.
85
articulado sobre um modo narrativo, e que a narrativa atinge sua significação plena quando ela torna
uma condição da existência temporal (1983, p.105).
Esta tese da correlação entre narratividade e temporalidade apóia-se na seguinte intuição: a
narrativa termina seu curso na experiência do leitor da qual ela refigura a experiência
temporal. Nos três volumes de Temps et Récit, em certa medida, Paul Ricoeur nada mais faz
senão desenvolver essa intuição. Para tanto, como ponto de partida, ele efetua o cruzamento
entre a noção de distentio animi, desenvolvida no livro XI das Confissões de Santo Agostinho,
e a teoria do Muthos, proposta por Aristóteles na Poética. O resultado de tal cruzamento é a
construção de um modelo de articulação entre a experiência aporética do tempo e a
inteligibilidade narrativa intitulado de ‘a tríplice mimèsis’.
2.2.1 – Narrativa, imaginação e ação na tríplice mimèsis
Temps et Rècit é uma apropriação dos conceitos maiores da Poética de Aristóteles,
mediante a reinscrição dos mesmos no âmbito da narratividade
12
. Da leitura que faz desta
obra do estagirita, Ricoeur retém, sobretudo, o conceito de muthos articulado ao de mimèsis..
Essa é a célula melódica que assumirá a função-diretriz da reflexão ricoeuriana desenvolvida
na famosa trilogia. O par muthos-mimèsis dado que o termo poièsis imprime seu dinamismo
a todos os conceitos da Poética, acentuando neles o aspecto da produção, da construção e do
dinamismo deve ser inserido no âmbito das operações e não no das estruturas. Assim,
muthos, que Ricoeur traduz por “mise en intrigue”
13
, é o processo de agenciamento dos fatos
12
Cf. P. RICOEUR, “Uma retomada da Poética de Aristóteles” In _________ Leituras 2, SP, Loyola, 1996, pp.
329-343. Neste artigo, publicado em 1992, o filósofo esclarece qual foi a “estratégia de apropriação” da Poética
utilizada por ele em Temps et Rècit: “a primeira fase dessa estratégia começa com a maior proximidade possível
da leitura do texto de Aristóteles; ela consiste na reconstrução de um ternáriosico, cujos termos marcantes são
mímesis, mythos, katharsis. A fase seguinte procede da questão de saber até onde se estende a capacidade de
retomada e de reaplicação desse ternário em campos culturais distanciados daqueles da Grécia clássica e em
gêneros literários cada vez mais distantes da tragédia grega. A manobra estratégica decisiva consiste
essencialmente em reinscrição do ternário em questão no campo do narrativo em geral” (p.329)
13
A escolha de Ricoeur é por traduzir muthos como “mise en intrigue”. Às vezes, ao longo de Temps et Récit,
ele simplesmente utiliza o termo “intrigue” (intriga) ou ainda “Récit” (narrativa) para se referir a muthos. E o
próprio Ricoeur alerta que opta por não entender muthos no sentido de ficção em oposição a história. Em
português, a expressão mise en intrigue é traduzida por “tessitura da intriga” (savaguardando o sentido dinâmico
86
em sistema, e mimèsis é o processo ativo de imitar ou representar. De acordo com Ricoeur, há
uma quase identificação entre esses dois conceitos na Poética: o agenciamento dos fatos
(muthos) é, sobretudo, uma representação da ação (mimèsis praxêos). Isso significa que a
representação da ão é uma atividade mimética que, pela composição da intriga (tessitura da
intriga), produz um agenciamento dos fatos em sistema. Fazendo uso de um vocabulário
husserliano, Ricoeur salienta que a ação emerge, então, como sendo o “construído” da
construção mimética, ou seja, ela é o representado, o correlato noemático da atividade
mimética (cf. 1983, p.73).
Certamente, como tão bem ressaltou K. Blamey, “Ricoeur é atraído pelo tratado
aristotélico acerca das artes poéticas, especialmente por causa da ênfase que o seu autor
coloca na categoria da prática, da ação” (1999, p.92). Para o estagirita, segundo a leitura
ricoeuriana, a mimèsis é representação não de homens, mas do agir dos mesmos, ou seja,
uma prevalência da ação sobre os agentes, de tal forma que na Poética ao contrário da Ética
a Nicômaco onde o sujeito precede a ação na ordem das qualidades morais , a composição
da ão pelo poeta rege a qualidade ética dos personagens. Ainda na leitura que faz da
Poética, Ricoeur encontra indícios de que a expressão mimèsis praxêos funciona como uma
ligação entre a poética e a esfera da práxis, uma vez que, a partir de seu próprio fundo
cultural, o poeta não encontra uma categorização implícita do campo prático, um pré-saber
da ação, cujos traços éticos ele toma emprestado, mas também uma primeira formação
narrativa deste mesmo campo. Embora seja um tratado consagrado à composição, também
podem ser encontrados na Poética de Aristóteles indícios de que a estruturação da intriga é
um processo cujo termo se dá, não na clausura do texto, mas no “prazer próprio” da leitura,
através da qual ocorre a interseção entre a obra e o público (cf. 1983, p.94ss).
Assim sendo, a partir do exame que faz da Poética de Aristóteles, Paul Ricoeur acena
que Ricoeur atribui ao termo muthos) ou por “pôr em intriga” (preservando a literalidade com a expressão
francesa).
87
para a necessidade de se propor uma significação do termo mimèsis que salvaguarde a
referência ao ponto de partida e ao ponto de chegada da composição poética e, ao mesmo
tempo, assegure à mimèsis-criação a função de pivô em relação à totalidade do processo
mimético (cf. 1983, p.93ss). Diante disso, a proposta de Ricoeur, segundo ele mesmo afirma,
é esta: “o sentido mesmo da operação de configuração constitutiva da mise en intrigue resulta
de sua posição intermediária entre as duas operações que chamo mimèsis I e mimèsis III e que
contituem o montante e o jusante de mimèsis II” (1983, p. 106). O constructo ricoeuriano
denominado de “a tríplice mimèsis” indica que os limites configurativos da tessitura da intriga
devem ser ultrapassados em direção ao ponto de partida da prefiguração e ao ponto de
chegada da refiguração, ou seja, “a compreensão de uma intriga implica tanto a compreensão
do mundo concreto da ação precedendo a composição textual, quanto os efeitos da narrativa
sobre a ordem da ação, sucedendo às operações configurantes” (LEAL, 2002, p.45).
Estando fora de nossos propósitos uma discussão minuciosa das questões técnicas
envolvidas na intrincada argumentação ricoeuriana desenvolvida em Temps et Rècit
14
,
apresentaremos a seguir unicamente com o intuito de elaborar uma moldura teórica na qual
inseriremos a temática da imaginação um lineamento geral do percurso que vai de mimèsis
I a mimèsis III passando por mimèsis II.
2.2.1.1 - Mimèsis I: o mundo da ação como âmbito anterior originário da narrativa
O primeiro ato mimético dado que somos originariamente mergulhados no mundo e
14
Uma discussão minuciosa do conceito de história implicado na teoria da narratividade de Paul Ricoeur pode
ser encontrada em Ivanhoé Albuquerque LEAL, História e Ação na teoria da narratividade de Paul Ricoeur, RJ,
Relume-Dumará, 2002. Um exame da leitura que Ricoeur faz dos Romances Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf,
A montanha mágica, de Thomas Mann, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, como “fábulas do
tempo” pode ser encontrado em Hélio Salles GENTIL, Para uma leitura poética da modernidade: uma
aproximação à arte do romance em Temps et Récit de Paul Ricoeur, SP, Loyola, 2004. Essas duas obras,
originariamente teses de doutorado, tomadas em conjunto, abordam aspectos de Temps et Récit que não foram
contemplados nesta dissertação.
88
considerando que o muthos é mimèsis praxêos indica que a composição da intriga está
enraizada nas estruturas inteligíveis, nos recursos simbólicos e no caráter temporal do mundo
da ação, que constituem, para P. Ricoeur, a base sobre a qual se erguerá a composição da
intriga.
Assim sendo, inicialmente, faz-se necessária a competência de utilizar de modo
significativo a rede conceitual que distingue a ação de um mero movimento físico, o que
requer, por sua vez, a capacidade de identificar os traços estruturais que explicitam o “que”, o
“porque”, o “quem”, o “como” e o “com ou contra quem” da ação em geral. Em outros
termos, faz-se necessário que se tenha uma compreensão apropriada do campo prático que
explicite o fato de as ações humanas implicarem objetivos, reenviarem a motivos,
necessitarem de agentes, os quais podem ser responsáveis por certas conseqüências de seu
agir, que se dá, basicamente, num contexto interativo de cooperação ou competição com
outrem (cf. RICOEUR, 1983, p. 109s). Respaldada numa semântica da ação, essa
compreensão prática articula-se a uma compreensão narrativa mediante uma relação de
pressuposição e de transformação. De fato, dado que a frase narrativa mínima é uma frase de
ação do tipo “X faz A em tais ou tais circunstancias e tendo em conta que Y faz B em
circunstancias idênticas ou diferentes” (1983, p.111), somos chamados a considerar que a
narrativa pressupõe uma familiaridade com os conceitos estruturais do campo prático (agente,
objetivo, meios, circunstâncias etc). Todavia, como a narrativa não é uma simples seqüência
de frases de ação, a compreensão da mesma não se limita a pressupor uma familiaridade com
a rede de conceitos constitutivos da semântica da ação, mas implica uma transformação dos
mesmos mediante a aplicação das regras de composição narrativa. Tais regras efetuam uma
comutação da ordem paradigmática da ação numa ordem sintagmática da narrativa através da
qual os elementos constituintes de uma semântica da ação adquirem integração e atualidade
(cf. 1983, p.112)
89
A composição narrativa não pressupõe e transforma a rede conceitual da ão, mas
está ancorada também nos próprios recursos simbólicos do campo prático. Isso significa, de
acordo com a opinião de Paul Ricoeur, que a possibilidade de uma ação ser narrada deve-se
ao fato de a mesma estar previamente mediatizada simbolicamente. Essa noção de mediação
simbólica utilizada por Ricoeur inspirada nas pesquisas de Geertz e de Cassirer é de
natureza cultural e diz respeito às formas de significação exteriores decifráveis pelos atores
sociais, ou seja, não se trata de uma operação psicológica situada no interior do espírito
humano, mas de uma articulação significante de caráter público capaz de oferecer um
contexto de descrição para ações particulares. A mediação simbólica fornece às ações não
somente regras de interpretação que lhes concedem uma primeira legibilidade, mas também as
normas de regulação social programas de comportamento que dão forma, ordem e direção á
vida em função das quais a ação recebe uma estimação axiológica. Assim, como diz
Ricoeur: “em função das normas imanentes a uma cultura, as ações podem ser estimadas ou
apreciadas, isto é, julgadas segundo uma escala de preferência moral” (1983, p.116), donde a
convicção ricoeuriana de que a qualidade ética da ação está originariamente à montante da
ficção.
A configuração narrativa, além de pressupor uma familiaridade com a rede conceitual
e com as mediações simbólicas da ação, pressupõe também uma retomada dos traços
indutores da narrativa, já presentes no mundo da ação. Essas estruturas indutoras da narrativa
são captadas mediante a extração dos traços temporais implícitos na semântica da ação. Nesse
processo, o mais importante, destaca Ricoeur, não é a elaboração de uma correlação entre
certas categorias da ação e as dimensões temporais tomadas uma a uma, mas a mutação
efetiva que a ação faz aparecer nas dimensões temporais, ou seja, o que deve ser evidenciado
é o modo como a práxis cotidiana ordena o tríplice presente explicitado pelas análises
agostinianas. Faz-se necessário, então, que as estruturas temporais sejam deslocadas do plano
90
interior da alma (da estrutura discordante-concordante subjetiva da distentio animi explicitada
pelas análises agostinianas) para o plano da práxis. Para efetuar esse deslocamento, P. Ricoeur
recorre à noção heideggeriana de intra-temporalidade, justificando ser essa a estrutura mais
apropriada para caracterizar a temporalidade da ação, pois permite estabelecer a
temporalidade dentro do agir cotidiano, sem, contudo, confundi-la com o tempo cronológico.
Ou seja, seguindo Heidegger, Ricoeur ressalta que a estrutura temporal inerente à ação é
irredutível a uma representação linear da temporalidade e está assentada numa ontologia do
tempo, de tal forma que “é sobre o alicerce da intra-temporalidade que se edificarão
conjuntamente as configurações narrativas e as formas mais elaboradas da temporalidade que
lhe correspondem” (1983, p.124).
De acordo com o que acaba de ser apresentado, Muthos como Mimèsis praxêos
implica inicialmente uma pré-compreensão das estruturas semânticas, simbólicas e temporais
do agir humano. Assim que o mundo da ação, onde se encontram as estruturas pré-
narrativas, é o âmbito anterior originário de onde procede a configuração narrativa não
pode haver uma mera projeção da literatura sobre a vida. Para Ricoeur, devido ao fato de a
vida humana estar previamente embrulhada em histórias, a tessitura da intriga é sempre uma
retomada das histórias não contadas, nas quais a mimética textual-literária própria da tessitura
da intriga se apóia para poder instaurar o reino do como-se, o reino da configuração
imaginada, que Ricoeur denomina mimèsis II.
2.2.1.2 - Mimèsis II: a narrativa como configuração imaginada do mundo da ação
A análise que Ricoeur faz do segundo nível do trajeto mimético põe em evidência, por
um lado, a função de mediação e integração exercida pela tessitura da intriga; por outro, a
importância da esquematização e da tradicionalidade como traços constitutivos do ato
configurante que, quando reativados pela leitura, asseguram a transição para mimèsis III.
91
De acordo com Paul Ricoeur, a passagem da ação para o texto é um processo de
integração e mediação. Segundo o filósofo, a intriga apresenta um caráter de mediação porque
ela é a operação que: 1) extrai uma configuração de uma simples sucessão, mediante a
articulação de uma série de eventos ou de incidentes individuais na totalidade de uma história
significativa; 2) uma configuração narrativa aos diversos componentes explicitados pela
semântica da ação (agentes, objetivos, meios, interações, circunstâncias etc) e 3)
operacionaliza uma síntese do heterogêneo a partir dos caracteres temporais implícitos na
ação. No que tange a este último aspecto da ação mediadora exercida pela mímésis II, o
filósofo observa que nele se situa o pleno sentido do conceito de concordância-discordante
que caracteriza o muthos
15
, uma vez que a dinâmica da intriga reflete o paradoxo agostiniano
do tempo e, ao mesmo tempo, operacionaliza uma solução poética do mesmo. Por um lado, a
intriga combina, em proporções variáveis, a dimensão cronológica e a dimensão não-
cronológica do tempo, criando uma totalidade temporal, oriunda da ação configurante da
narrativa que toma conjuntamente os diversos eventos e os transforma em história. Por outro
lado, a intriga enquanto ato poético que extrai uma configuração de uma sucessão
oferece-se ao auditório ou ao leitor como uma história apta a ser seguida (followability).
Para Ricoeur, “é essa capacidade da história em ser seguida que constitui a solução
poética do paradoxo de distensão-intensão. Que a história se deixe seguir converte o paradoxo
em dialética viva” (1983, p.130). Assim, o ato de narrar, refletido no ato de seguir uma
história, torna produtivo os paradoxos que inquietaram Santo Agostinho, pois, de um lado, a
15
A teoria do muthos trágico elaborada pelo estagirita, de acordo com ponto de vista ricoeuriano, emerge como
uma réplica às aporias instauradas pela distentio animi agostiniana, na medida em que o muthos trágico
aristotélico acentua sutilmente o jogo da discordância no interior da concordância. Conforme diz Ricoeur: “o
modelo trágico não é puramente um modelo de concordância, mas de concordância discordante. É por aqui que
ele oferece um vis-à-vis à distentio animi (1983, p.86). Isto quer dizer que toda “mise en intrigue” é um
processo dinâmico caracterizado por uma concorrência entre a exigência de concordância (cujos traços são:
concordância, totalidade e extensão apropriada) e fatores de discordância (por exemplo: a reversão da fortuna
para o infortúnio na tragédia e o inverso na comédia). Isso implica que todo evento narrativo tenha uma
estrutura instável, de tal modo que aquele que uma narrativa deve ser confrontado a uma forma de incerteza,
de cuja qualidade depende o interesse, o charme e o sucesso de uma narrativa (cf. GILBERT, 2001, p.69s).
92
dimensão episódica da narrativa está fundada na sucessão de eventos exteriores constituintes
de uma série aberta de episódios que se seguem um ao outro de acordo com a ordem
irreversível do tempo comum aos eventos sicos e humanos; por outro, a dimensão
configurativa do ato de narrar transforma a sucessão em totalidade significante, impondo à
seqüência indefinida dos incidentes “o sentido do ponto final” e permitindo que, pela
possibilidade de uma leitura à rebours do tempo que rompe com a ordem natural do mesmo,
uma temporalidade qualitativamente diferente emirja (tempo narrativo), como nos revelam as
“fábulas do tempo” analisadas por Ricoeur no segundo tomo de Temps et Récit.
Paul Ricoeur prossegue sua análise da mimèsis II, examinando os dois traços
constitutivos do ato configurante: a esquematização e a tradicionalidade. É importante notar,
desde já, que é através do exame desta dupla característica do ato configurante que seremos
devolvidos ao fulcro dessa dissertação que é o tema da imaginação no pensamento
hermenêutico de Paul Ricoeur
16
.
Para explicar a esquematização inerente ao ato configurante, Ricoeur mais uma vez
recorrendo à Kant aproxima a produção do ato configurante narrativo da imaginação
produtora kantiana. Lembrando que a imaginação produtora constitui a matriz geratriz de
todas as regras e que a esquematização das categorias do entendimento é obra dela, Ricoeur
traça o seguinte paralelo:
[assim como] a imaginação produtora tem fundamentalmente uma função sintética. Ela religa o
entendimento e a intuição engendrando sínteses ao mesmo tempo intelectuais e intuitivas. A
tessitura da intriga, igualmente, engendra uma inteligibilidade mista entre aquilo que já se
denominou a ponta, o tema, o “pensamento” da história narrada e a apresentação intuitiva das
circunstâncias, dos caracteres, dos episódios e das mudanças da fortuna que fazem o desfecho. É
assim que se pode falar de um esquematismo da função narrativa (1983, p.132).
Esse esquematismo da função narrativa, que conforme acabamos de verificar caracteriza o
trabalho da inteligibilidade própria da intriga, é constituído por tipologias narrativas
aprendidas por nós somente quando refletimos sobre a auto-estruturação de nossa tradição
16
Cf. infra p. 105ss
93
narrativa. Por isso mesmo, uma narrativa singular é o produto da imaginação produtiva,
segundo um esquema potencial definido no campo da tradição narrativa. Assim sendo, de
acordo com Ricoeur, o esquematismo narrativo é constituído por uma história que tem todos
os caracteres de uma tradição, entendida como “a transmissão viva de uma inovação
suscetível de ser reativada por um retorno aos momentos mais criadores do fazer poético” (cf.
1983, p.133s).
Considerando que a tradicionalidade da narrativa deve ser remetida a um jogo
constante entre inovação e sedimentação, o filósofo explica a observação feita no parágrafo
anterior do seguinte modo: a tradição narrativa foi constituída pela sedimentação não da
forma de concordância discordante e do gênero trágico, mas também pela sedimentação dos
tipos engendrados por obras singulares. A essa sedimentação, produzida em múltiplos níveis,
devem ser reportados os paradigmas constituintes da tipologia da tessitura da intriga, os quais
nascem, por sua vez, da inovação promovida pelo trabalho da imaginação produtora nos
diversos níveis de sedimentação. É essa ação da imaginação que possibilita a composição de
uma obra nova (poema, drama, romance) que é sempre, enquanto obra singular, uma
produção original, uma existência nova no reino da linguagem. Contudo, assevera Ricoeur, “o
trabalho da imaginação não nasce do nada. Ele se religa de uma maneira ou de outra aos
paradigmas da tradição” (1983, p.135). São eles que fornecem regras para a experimentação
no campo narrativo, de tal modo que, inscrevendo-se na relação entre paradigmas
sedimentados e obras efetivas, a inovação é sempre uma conduta governada por regras. Dessa
forma, é a variedade de aplicações reguladas do paradigma narrativo que vai conferir ao
esquematismo, proporcionado pela atuação da imaginação produtiva no âmbito narrativo, uma
história que engendra uma tradição, ou seja, que torna possível, conforme já foi assinalado no
inicio deste parágrafo, a transmissão viva de uma inovação suscetível de ser reativada por um
retorno aos momentos mais criadores do fazer poético.
94
São esses dois traços do ato configurante (esquematização e tradicionalidade), cuja
apresentação acabamos de fazer, que, quando reativados pela leitura, asseguram a transição
para o terceiro ato mimético, denominado por Ricoeur de mimèsis III
17
.
2.2.1.3 - Mimèsis III: intersecção do mundo configurado pela narrativa e o mundo do leitor
É na leitura, que o dinamismo de configuração (mimèsis II) termina seu percurso. No
entanto, é além da leitura, na ação efetiva instruída pelas obras recebidas, que a configuração
do texto se transmuta em refiguração. Assim sendo, mimèsis III assinala a intersecção entre o
mundo do texto e o mundo do leitor, intersecção, portanto, entre o mundo configurado pela
narrativa e o mundo concreto no qual a ação efetiva se desdobra e desdobra sua própria
temporalidade (cf. 1985, p.287).
O ato de leitura prolonga e conduz à sua plena realização o dinamismo próprio da
mimèsis II: a leitura reativa o esquematismo e a tradicionalidade inerentes à configuração
narrativa, fazendo-os funcionar como pivô da interação entre o mundo do texto e o mundo do
leitor:
De um lado, os paradigmas recebidos [do texto] estruturam as expectativas do leitor e o ajudam a
reconhecer a regra formal, o gênero e o tipo exemplificados pela história narrada. Eles fornecem
linhas diretrizes para o reencontro entre o texto e seu leitor. Em suma, são eles que regulam a
capacidade da história se deixar seguir. De outro lado, é o ato de ler que acompanha a configuração
da narrativa e atualiza sua capacidade de ser seguida. Seguir uma história é atualizá-la em leitura
(1983, p. 145)
Pode-se então afirmar, de acordo com abordagem ricoeuriana, que a obra escrita é um esboço
para a leitura, é um conjunto de instruções que o leitor executa de maneira passiva ou criativa.
É o leitor de acordo com Ricoeur que, praticamente abandonado pelo texto, carrega sobre
seus ombros o peso da tessitura da intriga. Com sua habilidade, o leitor deve preencher as
17
O trajeto analítico percorrido por Ricoeur para explicitar a mimèsis III é rapidamente esboçado no final da
primeira parte do tomo I de Temps et Récit (cf. 1983: 136-162) e desenvolvido com maior profundidade nos 5
primeiros capítulos da segunda seção (Poétique du Récit: histoire, fiction, temps) do último volume da trilogia.
Um exame acurado da argumentação ricoeuriana desenvolvida nestas páginas demandaria tempo e espaço que
não dispomos. Assim, no que segue, nossa pretensão é apresentar um lineamento geral da análise ricoeuriana
sobre o terceiro ato mimético, fazendo-a convergir para temática que nos interessa nesta dissertação.
95
zonas de indeterminação, jogar com as coações narrativas, efetuar os distanciamentos, tomar
parte no combate entre romance e anti-romance e, enfim, experimentar o prazer do texto (cf.
1983, p.146). Por tudo que acaba de ser dito, não há como negar que “o leitor é o operador por
excelência que assume por seu fazer ação de ler a unidade do percurso de mimèsis I à
mimèsis III através da mimèsis II” (1983, p.107).
Considerando que “aquilo que um leitor recebe, é não somente o sentido da obra, mas,
através de seu sentido, sua referência, quer dizer, a experiência que ela traz à linguagem e, a
título último, o mundo e sua temporalidade que ela desdobra diante dela” (1984, p.148),
Ricoeur propõe então a tese da refiguração da experiência temporal pela tessitura da intriga.
Assim, para o filósofo, explicitar mimèsis III, em última instância, implica examinar os
recursos de criação pelos quais a atividade narrativa responde a aporética da temporalidade,
isto é, trata-se de elucidar a seguinte questão: quais os recursos que uma poética da narrativa
dispõe para enfrentar as aporias do tempo? A resposta para tal questionamento deve levar em
conta, dentre outros aspectos, os problemas específicos oriundos da divisão do discurso
narrativo em duas grandes classes: narrativas históricas e narrativas de ficção.
De acordo com análise ricoeuriana, as narrativas históricas respondem às aporias da
fenomenologia do tempo através da elaboração de um tempo híbrido o tempo histórico
propriamente dito que fazendo uso de procedimentos de conexão realiza a reinscrição do
tempo vivido sobre o tempo cósmico. Ou seja, tal qual o próprio filósofo sintetizou:
a história revela uma primeira vez sua capacidade criadora de refiguração do tempo pela invenção e
uso de certos instrumentos de pensamento tais como o calendário, a idéia de seqüência de gerações
e aquela conexa, do triplo reino dos contemporâneos, dos predecessores e dos sucessores, enfim e
sobretudo pelo recurso aos arquivos, documentos e rastros. Esses instrumentos de pensamento têm
de observável que eles exercem o papel de conectores entre o tempo vivido e do tempo universal. A
este título, eles atestam a função poética da história, e trabalham a solução das aporias do tempo
(1985, p.189 itálico do autor).
Já as narrativas de ficção superam as aporias da temporalidade mediante a produção de
uma experiência ficcional do tempo através de procedimentos de variação imaginativa desta
96
reinscrição, no plano da história, do tempo vivido sobre o tempo do mundo. A neutralização
do tempo histórico é apresentada por Ricoeur como sendo a condição negativa para a variação
imaginária constitutiva do tempo ficcional. O tempo da narrativa de ficção está liberado das
coações que exigem a sua reversão ao tempo do universo, tornando desnecessária a busca de
conectores entre o tempo fenomenológico e o tempo cosmológico. Por isso, a experiência
ficcional do tempo pode criar mundos singulares, incomparáveis e não totalizáveis que
propiciam a emergência de recursos do tempo fenomenológico ainda inexplorados ou inibidos
pela narrativa histórica. Desse modo, a narrativa ficcional pode apresentar-se como uma
reserva de variações imaginativas aplicadas à temática do tempo fenomenológico (cf. 1985,
p.231). Um dos procedimentos de variação imaginativa é a mistura de personagens históricos,
eventos datados ou datáveis e lugares geográficos conhecidos com personagens, eventos e
lugares imaginados. Esse procedimento, ao contrário de inserir o tempo ficcional no espaço
gravitacional do tempo histórico, esvazia as referências aos eventos históricos reais de sua
função de representância a respeito do passado histórico, fazendo-as doravante gravitar em
esferas temporais heterogêneas, a partir das quais traços não-lineares do tempo
fenomenológico podem emergir (cf. 1985, p. 231ss).
Após indicar os modos distintos pelos quais história e ficção respondem às aporias da
temporalidade, Ricoeur considerando que a chave do problema da refiguração não reside
nas soluções isoladas que história e ficção oferecem a aporética do tempo, mas no modo como
ambas, tomadas conjuntamente, podem constituir uma poética da narrativa que realmente
ofereça uma réplica consistente à aporética do tempo (1985, p.181) passa a construir a
complementaridade entre história e ficção. Para tanto, ele se engaja na discussão do problema
da referência no âmbito da narrativa, procurando mostrar apesar da dessimetria entre as
visadas históricas e fictícias a existência de um entrecruzamento entre os dois campos
narrativos.
97
Assim sendo, do lado da história, o problema consiste em saber o que quer dizer a
palavra “realidade” aplicada ao passado. Ou seja, trata-se de explicitar a ontologia subjacente
às formulações do históriador que têm a pretensão de ser reconstrução aproximada daquilo
que um dia foi real (cf. 1985, p. 182s). Para dar conta dessa difícil tarefa, Ricoeur retoma a
noção de rastro, ponto de chegada do exame que empreendera da história no âmbito de sua
investigação sobre a configuração narrativa, e tenta extrair a função mimética dessa noção.
Considerando que o rastro está no lugar de algo que aconteceu no passado, o filósofo
destaca que ele exerce então uma função de lugar-tenente (lieutenance) ou de representância
(representence) em relação ao real passado. Com essas noções, consegue-se nomear o modo
referencial indireto que constitui o conhecimento histórico por rastro, contudo elas ainda não
nos oferecem uma inteligibilidade da questão ontológica em jogo. Paul Ricoeur sustenta que a
inteligibilidade da ontologia subjacente à história é obtida pela problematização através dos
“grandes gêneros” do Mesmo, do Outro e do Análogo do conceito de “realidade” aplicado
ao passado: “dizemos algo de significativo sobre o passado pensando-o sucessivamente sob o
signo do Mesmo, do Outro, do Análogo” (1985, p.255). Sob a égide do Mesmo, a história é
restabelecimento do passado no presente. Nesse sentido a operação histórica implica uma
“des-distanciação” que permite uma identificação com aquilo que foi. Ricoeur toma a
análise realizada por Collingwood
18
acerca do trabalho do históriador como exemplo dessa
concepção identitária do pensamento passado. Reagindo ao idealismo inerente à proposta
18
Collingwood filósofo e historiador inglês, crítico do positivismo e das teses realistas contrárias ao idealismo
inspira-se numa concepção “poética” e “histórica” da experiência humana . Para ele, a história contrapõe-se ao
atomismo das historiografias positivistas e ao sentido hipertrofiado do documentalismo. Assim sendo,
Collingwood põe em evidência a ação da imaginação na interpretação dos dados documentários. Para ele é o
desvio pela imaginação histórica que define a especificidade da história. Ele também o hesita em falar de
“imaginação a priori para significar que o historiador é o juiz de suas fontes e não o contrário. Assim, a
construção histórica é obra da imaginação a priori. Contudo, diferentemente do romancista, o historiador, além
de construir uma imagem coerente e portadora de sentido, deve construir uma imagem das coisas tal como elas
foram realidade e dos eventos tal como eles realmente aconteceram. Para tanto, ele deve localizar todas as
narrativas históricas nas mesmas coordenadas espaço-temporais, isto é, deve situar as narrativas históricas num
único mundo histórico, fazendo a concordância da “pintura imaginaria do passado” com os documentos
conhecidos. Isso não acontecendo, a pretensão de verdade do conhecimento histórico não seria satisfeita.
Todavia, de qualquer modo, dentro da concepção identitária da história, o passado é reefetuado, recriado no
próprio espírito humano.
98
deste autor, para quem a construção histórica é obra da imaginação a priori, muitos
históriadores contemporâneos, defendem que a pesquisa histórica é orientada por um
afastamento em relação ao passado. Restituindo o valor da distância temporal no pensamento
da história, autores como Pierre Nora, Michel de Certeau, Paul Veyne, dentre outros
mencionados por Ricoeur, concebem a relação entre passado e o presente como uma
alteridade insuperável. Salientando que um equivalente lógico da alteridade do passado
histórico em relação ao presente é a noção de diferença, Ricoeur conclui que a ênfase na
alteridade aponta para a direção de uma ontologia negativa do passado (cf. 1985, p.256-271)
Diante dessas duas posições extremas (concepção identitária da história e ontologia
negativa do passado), Ricoeur se propõe a conjugá-las, pensando a história sob o signo do
Análogo. Considerando que esta noção aparece na Retórica de Aristóteles com o título de
“metáfora proporcional”, também denominada de analogia, Ricoeur questiona em que medida
uma teoria dos tropos pode ser útil na articulação conceitual da representância (cf. 1985,
p.273). Para encaminhar uma resposta, o filósofo recorre às análises de Hayden White
19
.
Graças ao aporte tropológico deste autor, o “ter-sido” do evento passado pode ser trazido à
linguagem, possibilitando uma interpretação analógica da representância, na qual o termo
“realmente” presente na expressão “os fatos tais como eles realmente foram passados”
tem sua significação ligada ao termo “tal como”, entendido à luz do processo de
metaforização do ser anunciado pela expressão “ser-como” correlativa do “ver-como”, de
acordo com o que foi explicitado nos últimos estudos de A metáfora viva (cf. 1985, p.280s).
19
De acordo com esse teórico, a obra histórica apresenta uma estrutura verbal em forma de discurso narrativo em
prosa que visa ser um modelo, um ícone das estruturas e dos processos do passado, em vista de explicar
representando-os aquilo que tais processos foram de fato (cf WHITE, 1973:3 apud RICOEUR, 1985,p.274),
de tal forma que “o trabalho do historiador consiste em fazer da estrutura narrativa um modelo”, um “ícone” do
passado, capaz de o “representar”” (1985,p.274). Para representar aquilo que realmente aconteceu no passado, o
historiador deve prefigurar o conjunto dos eventos reportados nos documentos, ou seja, deve, diante de uma
massa documentária indiscriminada, desenhar itinerários possíveis e dar um primeiro contorno aos objetos
possíveis de conhecimento. É aqui que entra o papel dos tropos: vão ser os quatro tropos fundamentais da
retórica clássica (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) que oferecerão uma variedade de figuras de discurso
necessárias para o trabalho de prefiguração, de tal modo que o protocolo lingüístico pré-conceitual utilizado pelo
historiador será caracterizado segundo o modo tropológico no qual foi forjado. Essa estrutura tropológica da
consciência histórica constitui a estrutura profunda da imaginação histórica.
99
Assim sendo:
na caça do ter-sido, a analogia não opera isoladamente, mas em ligação com a identidade e a
alteridade. O passado é aquilo que, de início, é reefetuado sobre o modo identitário: mas ele o é
na medida em que também é o ausente de todas as nossas construções. O Análogo, precisamente,
retém em si a força da reefetuação e da distanciação já que o ser como, é ser e não é ser (1985,
p.281)
Baseado nas análises de H. White, Ricoeur convida a perceber aquilo que é ficcional
em todas as representações realistas do mundo, rompendo-se deste modo com um conceito
ingênuo de realidade passada. Para o filósofo, uma crítica simétrica ao conceito não menos
ingênuo de irrealidade aplicado às produções fictícias necessita também ser elaborada a fim
de que uma sutura entre o “real” da narrativa histórica e o “irreal” da narrativa de ficção possa
ser realizada (cf. 1985, p.285).
De acordo com o ponto de vista defendido por Ricoeur, considerar a irrealidade das
ficções significa apenas ressaltar o seu aspecto negativo. Ele concebe que as mesmas
apresentam também efeitos que exprimem uma função positiva de revelação e de
transformação da vida e dos costumes. De acordo com a abordagem ricoeuriana, esses efeitos
“positivos” da ficção são essencialmente efeitos de leitura. É através desta mediação, que a
narrativa de ficção obtém a sua significância completa. Assim, é seguindo a trilha de uma
teoria da leitura que Ricoeur se propõe a explorar os meios pelos quais a narrativa de ficção
retorna à vida, isto é, retorna ao campo práxico e pático da existência (cf. 1985, p.184).
Para explicitar o papel da leitura como mediação necessária da refiguração, Ricoeur
percorre inicialmente algumas teorias que colocam o acento do ato de ler no pólo do autor.
Neste caso esclarece Ricoeur à luz dos contributos da retórica da ficção de Wayne Booth
(cf. 1985, p.288ss) e dos contributos da retórica da leitura de Michel Charles (cf. 1985,
p.297ss) a leitura está ligada a procedimentos retóricos pelos quais o autor visa persuadir
seu leitor, estando também ligada aos estratagemas inscritos no texto, através dos quais o
próprio leitor é construído no/pelo texto. Assim, de acordo com essa perspectiva teórica,
pode-se falar que o autor cria seus leitores. Em seguida, diante dos limites da abordagem que
se fixa no autor, Ricoeur se debruça sobre as teorias da leitura que se articulam em torno do
leitor considerado em si mesmo, seja como leitor individual (W. Iser), seja como público
receptor (H-R. Jauss). Essas duas vertentes da abordagem que se centra no leitor se cruzam
numa estética da leitura, entendida como exploração das múltiplas maneiras pelas quais uma
obra, ao agir sobre o leitor, afeta o mesmo. Uma análise da estética da leitura deve levar em
conta os contributos de uma fenomenologia do ato de ler como a elaborada por Roman
Ingarden para o exame da recepção do texto enquanto experiência que integra em si mesma
uma passividade e uma atividade (cf. 1985, p. 303).
R. Ingarden, de acordo com Paul Ricoeur, defende que um texto é sempre inacabado,
oferecendo diferentes “vias esquemáticasque o leitor é chamado a concretizar através de
uma atividade imaginante, ou seja, aquilo que o texto oferece são esquemas para guiar o
imaginário do leitor. Nesse sentido, o inacabamento do texto implica que ele é como uma
partitura musical passível de execuções diferentes (cf. 1985, p.305). Num outro sentido, o
texto é inacabado porque ele propõe um mundo capaz de abrir perspectivas que o leitor pode
acolher no horizonte próprio de suas expectativas. Assim, na medida em que o leitor viaja
pelo texto, este tem o poder de modificar as expectativas daquele e de abri-las para novas
perspectivas em vista de futuras modificações. Esse processo movediço de modificações de
expectativas constitui a concretização imaginante das vias esquemáticas oferecidas pelo texto.
Os contributos de Ingarden para uma fenomenologia do ato de ler, segundo assinala Ricoeur,
são retomados e aprofundados por W. Iser.
Deste, o filósofo francês retém o desenvolvimento do conceito de “ponto de vista de
viajante”, segundo o qual o texto não pode ser apreendido inteiramente ao mesmo tempo, mas
somente através de um processo sintético que avança de frase em frase, na medida em que
viajamos no texto. Além disso, retém também o conceito de despragmatização dos objetos
emprestados do mundo empírico. A partir desses traços, Ricoeur procura mostrar como a
leitura trabalha o texto. Inicialmente, ele ressalta que a leitura, para além de toda estratégia de
desorientação utilizada pelo autor, é uma busca de coerência. A boa leitura é aquela que
estabelece o equilíbrio na busca de coerência, tornando-se uma experiência viva. Essa
experiência viva consiste numa verdadeira dialética mediante a qual o autor visa atingir seu
leitor, primeiro, partilhando com ele um repertório familiar e, segundo, praticando uma
estratégia de desfamiliarização em relação a todas as normas que a leitura acredita facilmente
poder reconhecer e adotar.
Contudo, agora seguindo Jauss, Ricoeur assinala que se deve levar em conta não o
efeito atual, mas a história dos efeitos de uma determinada obra literária, isto é, ele assinala
que a significação de uma determinada obra literária deve repousar no dialogo instaurado, a
cada época, entre ela e seu público. Esse processo requer que a obra seja remetida ao
horizonte de expectativa no qual ela anteriormente pertenceu. Por seu turno, isso implica
reencontrar o jogo de questões para as quais essa obra propõe uma resposta. Não se pode,
dentro dessa perspectiva, compreender uma obra a não ser compreendendo a que ela
responde. Todavia, uma obra não é apenas uma resposta oferecida a uma questão anterior,
mas é também uma fonte de novas questões (cf. 1985, p.313s). Dessa forma, de acordo com
Ricoeur, “o momento onde a literatura atinge a sua mais alta eficiência é talvez aquele no qual
ela insira o leitor numa situação de receber uma solução para a qual ele mesmo deve encontrar
as questões apropriadas, aquelas que constituem o problema estético e moral postos pela
obra” (1985, p.317). Os efeitos estéticos e morais de uma obra literária são então
desencadeados por essa lógica da questão e da resposta acionada pelo ato de leitura.
Feitas essas considerações acerca do modo como história e ficção seja pela
representância, seja pelos efeitos da leitura
remete ao mundo do agir humano,
considerações essas que foram precedidas pela análise do modo como cada uma das
modalidades de narrativa se posicionam perante as aporias do tempo (mediante a elaboração
de um “terceiro tempo” pela reinscrição do tempo vivido sobre o tempo cósmico, no caso da
história; por meio de procedimentos de variações imaginativas do tempo histórico, no caso da
ficção), Paul Ricoeur coloca em relevo os aspectos que apontam para a necessidade de se
construir uma sutura entre o “real” histórico e o “irreal” ficcional.
Por um lado, ele detecta que uma teoria da leitura não interessa apenas à recepção de
textos literários, mas também à recepção de textos historiográficos. Nesse sentido, o
alargamento dessa teoria cria um espaço comum para o intercâmbio entre história e ficção que
possibilita a superação da assimetria inicialmente detectada entre esses dois âmbitos da
narratividade. Por isso, para Ricoeur, a constituição dialética da teoria da leitura que
“[partiu] do pólo do autor implicado e de sua estratégia de persuasão, depois atravessou a
zona ambígua de uma prescrição da leitura que ao mesmo tempo coage o leitor e o torna livre,
para enfim aceder a uma estética da recepção, que coloca a obra e o leitor numa relação de
sinergia” (1985, p. 325) não é estranha à dialética do Mesmo, do Outro e do Análogo no
âmbito da representância do passado. Conforme ele mesmo sustenta:
a retórica da ficção coloca em cena um autor implicado que, por ardis de sedução, tenta tornar o
leitor idêntico a ele mesmo. Mas, quando o leitor, descobrindo seu lugar prescrito pelo texto, se
sente não seduzido, mas aterrorizado, resta-lhe como último recurso o se colocar à distância do
texto e tomar a mais viva consciência do intervalo entre as perspectivas que o texto desenvolve e
suas próprias expectativas, enquanto individuo devotado à cotidianidade, e enquanto membro do
publico cultivado, formado por toda uma tradição de leituras (...) Para além dessa alternativa entre
confusão e alienação, a convergência entre escritura e leitura tende a estabelecer, entre as
expectativas criadas pelo texto e aquelas trazidas pela leitura, uma relação analogizante, semelhante
àquela na qual culmina a relação de representância do passado histórico (1985, p.326)
Por outro lado, Ricoeur verifica que a invenção de um terceiro tempo, embora analisado no
âmbito das narrativas históricas, deve ser também estendido ao conjunto de suas análises
sobre a narratividade fictícia. Dessa forma, a atividade mimética como um todo pode ser
caracterizada como sendo a invenção de um tempo híbrido, cuja produção deve dar-se pelo
entrecruzamento das visadas referenciais da história e da ficção (cf. 1985, p.441).
Essas observações apontam para a existência de uma estrutura fundamental
ontológica e epistemológica em virtude da qual história e ficção concretizam suas
respectivas intencionalidades apenas mediante o empréstimo da intencionalidade da outra. Em
outros termos, o que foi assinalado no parágrafo anterior aponta para a existência de um duplo
processo de ficcionalização da história e de historização da ficção, através do qual o
imaginário se incorpora, sem enfraquecer a visada realista da história, no ter-sido inerente à
passadidade do passado e o “como se fosse passado” se incorpora à configuração imaginada
da narrativa de ficção. É no âmbito desse entrecruzamento entre história e ficção que ocorre
uma refiguração efetiva do tempo. Conforme sustenta o próprio Ricoeur:
O entrecruzamento entre a história e a ficção na refiguração do tempo repousa, em última análise,
sobre esta usurpação recíproca, o momento quase histórico da ficção trocando de lugar com o
momento quase fictício da história. Desse entrecruzamento, dessa usurpação recíproca, dessa troca
de lugares procede aquilo que se convencionou chamar tempo humano, onde se conjugam a
representância do passado pela história e as variações imaginativas da ficção, sobre o pano de
fundo das aporias da fenomenologia do tempo (1985, p.347s)
No que tange ao processo de ficcionalização da história, Ricoeur aclara as
modalidades de imaginário que respondem à exigência de figuratividade da imaginação
histórica, isto é, que respondem à função representativa da imaginação histórica. Uma
primeira modalidade consiste no empréstimo à função metafórica do ver-como”. A aplicação
desta função ao passado entrelaça ficção e história, sem enfraquecer o projeto de
representância das narrativas históricas. Cria-se assim um “efeito de ficção” que possibilita
ler um livro de história como romance. Contudo, as estratégias retóricas de leitura amplificam
esse “efeito de ficção” mediante a utilização de recursos que estabelecem uma relação de
cumplicidade entre a voz narrativa e o leitor implicado, a ponto deste, diminuindo suas
resistências críticas, aceitar como plausíveis os discursos inventados pelo históriador que
confundem o “ver-como” (representação metafórica do passado) com o “crer-ver” (ilusão
fantasista do passado). Outra modalidade de ficcionalização da história se no nível dos
eventos marcantes que têm o poder de fundar ou reforçar a consciência de identidade de uma
comunidade. Seja no caso dos eventos marcantes que geram admiração ou no caso daqueles
que geram horror, de acordo com Paul Ricoeur, a ficção está a serviço daquilo que não pode
ser esquecido (inoubliable), permitindo à história fazer-se memória
20
.
Tendo aclarado o modo como a imaginação se imiscui na ficcionalização da visada da
representância do passado, Paul Ricoeur passa a examinar os índices de uma historização da
ficção. Dado que narrar implica contar algo como se fosse passado, o filósofo francês ressalta,
inicialmente, que as narrativas de ficção são narradas em um tempo passado. O tempo verbal
de expressões como “era uma vez” constitui um sinal endereçado por um locutor a um
auditório, convidando-o a receber e decodificar a mensagem de determinado modo. Tais
expressões servem para advertir o leitor: ‘trata-se de uma narrativa’. Assim, o tempo verbal na
narrativa não orienta o leitor para eventos passados reais ou irreais, mas sugere-lhe uma
atitude de distensão que lhe permite explorar aspectos não-lineares do tempo. Nesse sentido, o
caráter de quase-passadidade de uma ficção permite que ela se torne “o detector dos possíveis
escondidos no passado efetivo”, ou seja, a “irrealidade” das ficções narrativas exerce uma
função libertadora em relação às coações do tempo histórico, liberando as potencialidades não
efetuadas do passado.
Por fim, Ricoeur denomina esse entrecruzamento entre o “real” passado e o “irreal”
ficcional de “refiguração cruzada”, referindo-se “aos efeitos conjuntos da história e da ficção
no plano no agir e do sofrer humano” (cf. 1985, p.184s).
Com a concretização do trabalho de refiguração da práxis pela narrativa que acabamos
de apresentar, chega-se ao fim deste longo itinerário cujo objetivo foi explicitar a teoria da
20
Vemos anunciado aqui o núcleo temático que foi retomado com maestria por Ricoeur, quase 15 anos depois,
em La mémoire, L’histoire, L’oubli. Nesta monumental obra publicada no ano 2000, tendo como ponto de
partida a discussão da representação do passado no plano da memória e da história, Ricoeur elabora uma
fenomenologia da memória (1ª Parte), uma epistemologia da história (2ª Parte) e uma hermenêutica da condição
histórica (3ª Parte), fazendo culminar sua reflexão após abordar a problemática do esquecimento como uma
inquietante ameaça que se perfila como pano de fundo de toda tentativa de representação do passado numa
espécie de escatologia da memória, da história e do esquecimento à luz do espírito de perdão (Epílogo).
narratividade desdobrada pelo constructo ricoeuriano denominado tríplice mimèsis. As três
fases miméticas propostas por Ricoeur, mais que uma circularidade, apontam para a
existência de um movimento espiral-ascendente, posto que originam possibilidades outras de
configurações e refigurações. Diante disso, a tarefa hermenêutica é redefinida por Ricoeur
como sendo o esforço para “reconstruir o arco inteiro das operações pelas quais uma obra se
eleva sobre o fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dada por um autor a um leitor
que a recebe e assim muda seu agir” (1983, p.106). Ou seja, o trajeto da atividade
hermenêutica “deve poder ter em conta e reconstruir o processo da obra em questão desde a
sua inserção no mundo da vida até a realidade (cultural) recriada por ela e o conseqüente
efeito que afeta o horizonte e o agir do leitor, passando justamente por uma análise da sua
lógica interna” (SUMARES, 1987, p.237).
No que segue, à luz do conjunto das considerações que acabamos de apresentar,
encerraremos este tópico da dissertação aclarando o aporte das mesmas para a questão que
estamos a elucidar neste capítulo, qual seja: a extensão da imaginação semântica ao campo
práxico.
2.2.2 – A função mimética da imaginação semântica
Mais acima, tivemos oportunidade de acompanhar a análise ricoeuriana da
esquematização e da tradicionalidade, traços característicos da configuração narrativa
(mimèsis II)
21
. É a partir da referida análise, conforme destacamos na oportunidade, que
somos devolvidos ao fulcro dessa dissertação que é o tema da imaginação no pensamento
hermenêutico de Paul Ricoeur. Recapitulemos: o filósofo explica a esquematização inerente
ao ato configurante recorrendo à noção de imaginação produtora kantiana. Para ele: “o poder
de esquematização atribuído à imaginação produtora desdobra-se dentro das ‘configurações
estáveis e repetidas’ da tradição narrativa a que se sujeita espontaneamente a imaginação, mas
21
Cf. supra p. 92ss
que acrescenta e enriquece pelo princípio de ‘criatividade regulada’ e pela livre variação da
‘infinita variedade das histórias contadas pela humanidade’ que colocam dum modo
específico a experiência humana do tempo”
22
.
Tal qual numa metáfora viva, reencontramos a imaginação, agora no âmbito da
narrativa, igualmente ligada ao fenômeno da inovação semântica. Isso nos induz a reconhecer
que “na generalidade, a função da imaginação na inovação semântica, presente na metáfora e
na narrativa, é a mesma e obedece às mesmas influências do esquematismo kantiano”
(CASTRO, 2001, p.268). De fato, a inovação semântica na metáfora, conforme tivemos
oportunidade de detalhar no capítulo anterior
23
, é a produção de uma nova pertinência
semântica por meio de uma atribuição impertinente. Na narrativa, a inovação semântica se
pela invenção de uma intriga, que realiza a síntese de objetivos, causas, acasos, sob a unidade
temporal de uma ação total e completa (cf. 1983, p. 9). Em ambas, trata-se de uma síntese do
heterogêneo que faz surgir o novo, o inédito na linguagem: a “metáfora viva” enquanto uma
nova pertinência da predicação; a “intriga fingida” enquanto uma nova congruência no
agenciamento dos incidentes. Assim como a inovação semântica que produz uma metáfora
viva pode ser reportada ao funcionamento da imaginação produtora, também a produção da
intriga numa narrativa enquanto operação sintética que integra numa história inteira e
completa eventos múltiplos e dispersos igualmente pode ser reportada à imaginação
produtora. Se no caso da metáfora, a imaginação produtora entra em jogo como
esquematização da operação sintética de reaproximação de campos semânticos distantes, de
tal forma que a imaginação é a competência de produzir novas espécies lógicas através da
assimilação predicativa; no caso da intriga, algo de comparável a essa assimilação predicativa
nos é revelado, na medida em que também ela é uma síntese que integra fatores heterogêneos
22
P. Ricoeur, “pour une théorie du discours narratif”, in Narrativité, CNRS, Paris, 1980, p. 63 Apud M.
Sumares, O sujeito e a cultura da filosofia de Paul Ricoeur, Escher, 1987, p.246
23
cf. supra, pp.50ss
(como as circunstâncias, os caracteres com seus projetos e seus motivos, as interações
implicando ajuda ou impedimento, cooperação ou hostilidade, e os acasos) numa história.
Além do mais, no âmbito das narrativas, a imaginação que produz segundo regras se exprime
também na construção de intrigas singulares, através da dialética entre a conformidade e o
desvio em relação às normas paradigmáticas inerentes à toda tipologia narrativa. Assim
sendo, as análises de Temps et Récit empreendidas nas páginas anteriores não deixam dúvidas
acerca do quanto a famosa trilogia está em continuidade com as reflexões desenvolvidas em
A Metáfora Viva: embora separadas por um lapso de tempo relativamente grande, elas foram
concebidas juntas, e os efeitos de sentido produzidos por cada uma delas dizem respeito ao
mesmo fenômeno central de inovação semântica
24
. Por isso, Ricoeur afirma
peremptoriamente: A Metáfora Viva e Temps et Récit são duas obras gêmeas” (1983, p.9) e
conclui: “a metáfora viva e a produção de uma intriga são como duas janelas abertas sobre o
enigma da criatividade” (1986, p. 24).
Entretanto, na medida em que também corrige e aprofunda as lacunas deixadas pelos
estudos sobre a metáfora, a trilogia publicada no início dos anos 1980 avança o pensamento
ricoeuriano na direção do campo prático, deslindando, além daquelas anteriormente
apontadas, outras funções para a imaginação semântica. No que segue, à luz do papel de
charneira desempenhado por Temps et Récit no conjunto do pensamento ricoeuriano, visamos
aclarar o passo dado por Ricoeur nesta obra na direção da extensão da imaginação semântica
ao campo da práxis.
Conforme mencionamos no capítulo anterior, diante da teoria de Beardsley que
acentua o caráter de invenção e de inovação do enunciado metafórico, mas não explica de
24
É preciso sempre ter em mente que Temps et Récit e La Métaphore Vive, assim como La Symbolique du mal,
são obras que estão na linha de uma poética, entendida não como meditação sobre a criação originária, mas
como investigação das modalidades múltiplas da criação regrada ilustrada pelos mitos sobre a origem do mal e
pela inovação semântica, isto é, a produção de um sentido novo pelos procedimentos ligados à linguagem
representados pelas intrigas narrativas e pelas metáforas poéticas (cf. 1995,p.26).
onde vêm as significações segundas na atribuição metafórica, Paul Ricoeur admite a
necessidade de assumir o ponto de vista do ouvinte ou do leitor e tratar a novidade de uma
significação emergente como obra instantânea do leitor. Porém, conforme observamos na
oportunidade
25
, o filósofo não desenvolve essa intuição no âmbito de A metáfora viva. Em sua
autobiografia intelectual, Ricoeur assinala que detectou a ausência de um elo intermediário
entre a referência, enquanto visada pertencente ao enunciado metafórico, e o ser-como
detectado por esse último. Ele então reconhece novamente que este elo intermediário é
exatamente o ato de leitura: como o ato do poeta é abolido no poema proferido, quem pode se
referir a algo, enquanto interlocutor do ato de linguagem, é o leitor. Assim, é o ato do leitor
que faz a metáfora atingir uma nova pertinência semântica; é para o leitor que um ser-como
inédito faz face ao ver-como suscitado pelo enunciado metafórico e, finalmente, aquilo que é
redescrito não é qualquer real, mas aquele que pertence ao mundo do leitor (cf. 1995, p.48).
Aplicando essas observações ao âmbito das narrativas, Ricoeur defende que, é sempre o
mundo do leitor que é oferecido à refiguração (cf. 1995, p.73). Através da mediação da
leitura, os enunciados narrativos visam re-figurar a realidade do leitor, desvelando-lhe
dimensões dissimuladas da experiência humana e transformando sua visão do mundo. Nesse
sentido, a refiguração proporcionada pela narrativa constitui uma ativa reorganização de
nosso ser-no-mundo, conduzida pelo leitor, ele mesmo convidado pelo texto a tornar-se leitor
de si mesmo. A imaginação apresenta-se exatamente como o segredo da capacidade de seguir
o contar de uma história e de reconstruir a sua rede de ligações, permitindo que a narrativa
exerça uma influência no imaginário de quem recebe e segue a história.
Para Ricoeur, a função mimética da narrativa é uma aplicação particular do problema
da referência metafórica à esfera do agir humano. Todavia, enquanto a redescrição metafórica
reina no campo dos valores sensoriais, “páthicos”, estéticos e axiológicos que fazem do
25
cf. supra p. 50, nota 14.
mundo um mundo habitável, a função mimética das narrativas é exercida preferencialmente
no campo da ação e de seus valores temporais, de tal modo que as intrigas que nós
inventamos constituem meios privilegiados pelos quais a experiência temporal confusa,
informe e muda é reconfigurada. É nessa capacidade de re-figurar a experiência temporal que
reside a função referencial-mimética da narrativa (cf. 1983, p.12). A narrativa, remodelando
as estruturas e dimensões da ão humana, segundo a configuração imaginária da intriga,
refaz a realidade práxica, intervindo assim no mundo da ação para transfigurá-lo.
O funcionamento desta operação de transfiguração do real, no caso das narrativas
fictícias, implica, num primeiro momento, a suspensão da referência, de tal modo que o
mundo da ficção se transforma numa espécie de “laboratório de formas nas quais ensaiamos
configurações possíveis da ação para provar a consistência e a plausibilidade das mesmas”
(1986, p.20). No entanto, como explica P. Ricoeur, a suspensão da referência é apenas um
momento intermediário entre a pré-compreensão do mundo da ação e a transfiguração da
realidade cotidiana operada pela ficção, que ocorre exatamente a partir do momento em que o
mundo do texto entra em colisão com o mundo real para refazê-lo, seja pela confirmação, seja
pela negação do mesmo. A imaginação é a força motriz que põe em movimento todo esse
mecanismo de refiguração do real proporcionado pelas narrativas. É a atuação mediadora da
imaginação que torna possível suspender e reformular a realidade, possibilitando a ruptura
com o estabelecido. Pelo seu poder esquematizante, a imaginação, através da estruturação
de paradigmas de ação que preparam a formulação de novos projetos, mediatiza a extensão da
força de estruturação da linguagem para o domínio prático da ação, criando uma zona mista
onde se entrecruzam a qualidade mimética da narrativa e as possibilidades práticas, isto é,
criando uma zona mista onde a capacidade de seguir uma história intercepta a capacidade de
elaboração de projetos futuros. Pela mediação da imaginação, instaura-se uma dialética entre
projeto e narrativa: “o projeto tomando da narrativa o seu poder de estruturação e a narrativa
recebendo do projeto a sua capacidade de antecipação” (1986, p.249).
Essas observações permitem situar as reflexões ricoeurianas sobre a função da
imaginação na refiguração mimética da realidade no pórtico da transição do teórico ao
prático: para o filósofo, a elaboração de uma representação ficcional da ação humana no
âmbito da narrativa é o primeiro modo pelo qual o homem tenta compreender e dirigir o
diverso do campo prático. Por conseguinte, a imaginação implicada na operação de mimèsis
do real já constitui um primeiro passo da generalização da imaginação semântica para além da
esfera do discurso. Entretanto, esse primeiro passo da imaginação semântica rumo à esfera
prática é ainda limitado, pois restringe a imaginação apenas a participar de uma atividade
mimética que redescreve uma ação prévia. De acordo com Paul Ricoeur, faz-se necessária
uma poética da ação que, ultrapassando a mera reconstrução descritiva do agir humano,
possibilite, para além de sua função mimética aplicada à ação, a emergência de uma função
projetiva da imaginação que pertença ao dinamismo mesmo do agir (cf. 1986, p.249).
2.3– A IMAGINAÇÃO IMPLICADA NO AGIR INDIVIDUAL E INTERSUBJETIVO
Segundo P. Ricoeur, dá-se um passo na direção de uma poética da ação, quando se
compreende que não existe ação sem imaginação (cf. 1986, p.249). O presente tópico visa
elucidar essa proposta ricoeuriana. Assim sendo, o ponto de partida para o exame da
imaginação implicada na ação vai ser a retomada de algumas reflexões desenvolvidas por
Ricoeur em sua fenomenologia da vontade, que nela encontramos o momento inaugural de
uma fenomenologia do agir individual (2.3.1). Entretanto, dado que a imaginação transcende
os caracteres individuais da ação e faz-se presente também nas relações intersubjetivas,
tomando como referencial a teoria da intersubjetividade elaborada por Husserl na quinta
Meditação cartesiana, verificaremos como as reflexões de Paul Ricoeur realçam, dentre
outros aspectos, a imaginação implicada na experiência de constituição analógica do outro
(2.3.2). Por fim, antes de dar o passo decisivo na direção do imaginário social (2.3.3), faz-se
necessário acompanhar o modo como Paul Ricoeur articula a imaginação à análise das
condições de possibilidade da experiência histórica em geral à luz dos desdobramentos que
Alfred Schütz dá à teoria da intesubjetividade husserliana (2.3.2.1).
2.3.1 – A função projetiva da imaginação à luz da fenomenologia do agir individual
No artigo programático “Méthode et taches d’une phenomenologie de la volonté”,
originalmente publicado em 1951, Ricoeur assinala que seu propósito é o de averiguar se a
análise das estruturas noético-noemáticas pode ser aplicada com fecundidade ao campo dos
vividos afetivos e volitivos (cf 1993, p.113). A inteligibilidade do ato do querer implica a
descrição analítica das intencionalidades da consciência querente (noésis da vontade) nas
formas do querido (noema da vontade). Através da indicação esquemática do ato da
consciência querente e do objeto correlato que lhe corresponde (o querido), apresentemos um
rápido esboço dessa análise intencional aplicada ao âmbito afetivo e prático da consciência
26
.
Debruçando-se sobre o voluntário, Ricoeur distinguirá três manifestações fenomenais
do querer: o decidir, o agir e o consentir. Decidir, de acordo com Ricoeur, implica: abrir a
possibilidade de realização de uma ação que depende do sujeito; assumir a
responsabilidade dessa realização e legitimá-la com razões e motivos. Quando se decide,
decide-se fazer qualquer coisa, decidir é querer realizar um projeto. Nesse sentido, o querido,
de início, vai designar aquilo que se decide, isto é, o projeto através do qual se designa “em
vazio” uma ação futura que depende do sujeito. Através do projeto, a consciência querente se
transcende em direção de algo a fazer. Como o “a fazer” está em marcha para o fazer efetivo,
a estrutura intencional do querer se manifesta também como um agir que opera no presente,
cujo noema é o pragma, o “feito por mim”. O efetivamente feito é a inscrição real do projeto.
26
A análise mais completa encontra-se em Le volontaire et l´involontaire, obra ricoeuriana que inaugura o
projeto de uma filosofia da vontade.
Contudo, para a viabilidade deste, e sua realização pelo agir, a vontade deve concordar com a
necessidade pelo consentimento. O consentir apresenta-se então como o ato da vontade que
aquiesce à necessidade. Através deste ato da vontade, a necessidade, no sujeito e fora dele, é
adotada ativamente por este, tornando-se a sua condição de existir como ser querente no
mundo. Nesse sentido, “consentir é tomar sobre si, assumir, fazer seu”. Mediante o que
acabamos de indicar, projeto, pragma e consentimento constituem diferentes aspectos do
“querido”, constituem os três pilares da estrutura noemática da consciência querente, cujos
correlatos noéticos são o decidir, o agir e o consentir.
À luz desse esboço da análise intencional aplicada ao âmbito afetivo e prático da
consciência, perguntemos como a imaginação se articula à análise ricoeuriana do ato volitivo
enquanto momento inaugural de uma fenomenologia do agir individual.
Seguindo de perto as observações de Maria Gabriela Azevedo e Castro sobre a
imaginação na fenomenologia da vontade
27
, salientamos que, no âmbito da análise ricoeuriana
do ato volitivo, a imaginação situa-se quase exclusivamente na instância do decidir, uma vez
que é “a decisão em si [que] requer a imaginação na sua actividade produtiva de idéias
mentais e a sua respectiva projecção imagética” (CASTRO, 2002, p.44). Como a decisão é
designação no vazio do que está projetado pelo sujeito da ação, “o decidir é intencionalmente
projectar, e projectar é antecipar o futuro pelo seu visionamento possível, é abrir a fronteira
dos possíveis no mundo, o que implica a pré-figuração imaginária” (CASTRO, 2002, p.45).
Por meio dessa pré-figuração imaginária pode-se criar uma quase-realidade projetiva,
motivadora da ação e possibilitadora da invenção de um real hipotético, dentro do qual a
realização humana possível é projetada. Pela imaginação, através do papel que desempenha
na dinâmica da decisão, pode-se entender o homem como projeto de si mesmo, na medida em
que cada um de nós é livre para ser aquilo que for capaz de visionar imageticamente. Nesse
27
Cf. CASTRO, M. G. Azevedo. “A imaginação e a Vontade” in: _________ A imaginação em Paul Ricoeur.
Lisboa, Inst. Piaget, 2002, pp. 23-105
sentido, a imaginação, no nível originário do agir humano que é a decisão, apresenta-se, em
suma, como tendo uma função projetiva e uma força práxica.
À junção da função projetiva e da força práxica da imaginação, Ricoeur denomina
“imaginação antecipadora do agir” mediante a qual se ensaia diversos cursos eventuais da
ação e se “joga” com os possíveis práticos (cf. 1986, p.249). É neste domínio que a
imaginação entra em composição com a motivação (figurabilidade dos desejos) e com o
próprio poder de fazer (variações imaginativas do “eu posso”).
No que tange ao papel que desempenha na motivação de uma ão, explica Ricoeur, a
imaginação oferece uma espécie de espaço comum de comparação e mediação entre motivos
heterogêneos como os desejos e as exigências éticas. Ou seja, é no plano imaginário, antes
mesmo que no âmbito da linguagem, que se cria a condição de figurabilidade para que o
desejo possa ser representado praticamente como elemento motivacional de uma ação. No que
se refere ao poder de fazer, Ricoeur esclarece que é no imaginário que, por primeiro, um
sujeito atesta a si mesmo que ele é o agente de sua própria ação. se toma posse da certeza
imediata acerca de meu poder de fazer através das variações imaginativas que mediatizam
essa certeza (cf. 1986, p.249s).
Em suma, no âmbito de uma fenomenologia do agir individual, Ricoeur destaca a
existência de uma progressão desde a esquematização dos projetos até as variações
imaginativas do eu posso” que aponta para a idéia da imaginação como função geral do
possível prático
28
.
28
Uma relevante reflexão sobre o tema do possível no pensamento de Paul Ricoeur pode ser encontrada na
seguinte obra de Manuel Sumares: Para além da necessidade: o sujeito e a cultura na filosofia de Paul Ricoeur.
Nesta obra, como o próprio titulo indica, o autor defende que a filosofia ricoeuriana caracteriza-se por ser uma
tentativa de remeter a experiência humana para além da necessidade. De acordo com Sumares, desde os
primeiros trabalhos de Ricoeur estabelece-se “uma tensão dialética onde o lo da negação, representado pelo
involuntário e pela necessidade, se assimila numa afirmação originária, pólo do possível, cuja potência se
conhece reflexivamente (SUMARES, 1988, p.8). Nesse sentido, para M. Sumares, Ricoeur deve ser considerado
“um filosofo do HÁ-DE VIR”, ou seja, um pensador cujo leitmotif de seu filosofar se identifica com o paradigma
de regeneração pelo possível. Contudo, o acesso a essa dimensão do possível em Ricoeur se dá pela travessia
2.3.2 – A função empática da imaginação à luz da fenomenologia do agir intersubjetivo
A elaboração de uma teoria geral da imaginação deve transcender não somente o
âmbito dos exemplos literários de ficção aplicados à ação, mas também o da fenomenologia
da vontade enquanto princípio da ação individual. Para tanto, faz-se necessário discernir em
que medida a imaginação está implicada no agir intersubjetivo. Tal tarefa exige uma retomada
do exame que Paul Ricoeur faz da quinta Meditação cartesiana de E. Husserl (cf. 1993,
p.251).
No início do ensaio “Edmund Husserl: La cinquième méditation cartesianne”
29
,
Ricoeur salienta que a meditação em foco atesta a importância do problema do outro na
fenomenologia husserliana. Segundo o filósofo francês, o que verdadeiramente está em jogo
na referida meditação não é a questão psicológica de como podemos conhecer os outros
homens. Para ele, trata-se antes de saber como uma filosofia tal qual a de Husserl que tem o
ego do Ego Cogito Cogitatum como princípio e fundamento dá conta do outro enquanto um
eu semelhante a mim mesmo, e de tudo aquilo que depende dessa alteridade fundamental (ex.
o mundo enquanto pluralidade de sujeitos, a realidade de comunidades históricas edificadas
sobre a interação de homens reais). Assim sendo, no referido ensaio, Paul Ricoeur examina
sucessivamente os seguintes pontos: a posição do problema do outro a partir da objeção do
solipsismo; a decisão metodológica husserliana de reduzir toda transcendência à esfera do
da necessidade, na qual pode ser surpreendida uma dimensão possibilitante subjacente e mais originária do que
as condições do necessário (cf. 1988, p.9). Sumares salienta também que, de acordo com P. Ricoeur, o possível
surge pela imaginação, que funciona como núcleo criador tanto no nível da vontade quanto no nível da cultura.
Por isso, segundo este autor, Ricoeur concebe o imaginário como sendo o espaço onde se efetua a reformulação
da realidade pela submissão desta a um processo de recriação que, além do impulso à afirmação originária e do
desejo de ser e do esforço por existir do sujeito, decorre também do poder da imaginação poética de aplicar-se à
cultura. De acordo com o que M. Sumares defende em sua obra, o tema do possível, no pensamento de Ricoeur,
articula-se não com a temática da imaginação, mas também com o da esperança. Para ele, a esperança, o
possível e a imaginação são noções coimplicativas em Ricoeur (cf. 1988, p.201). É a imaginação, associada
implicitamente com a esperança, que resiste ao aspecto trágico e fatal da necessidade, fazendo emergir o possível
mediante a recuperação do âmago criador da cultura. Dessa forma, ressalta o intérprete português de Ricoeur, o
tema do possível articula-se também à questão das práticas imaginárias capazes de resistir à reificação dos laços
sociais através da promoção da personalização das relações inter-humanas, isto é, capazes de revelar o
fundamento intersubjetivo do curso da história.
29
Este texto apareceu na obra A L’École de la Phénoménologie, publicada em 1986 pela Librairie
Philosophique J. Vrin. As referências ao mesmo serão feitas a partir da terceira edição de 1992.
próprio; a explicitação da existência do outro por meio da analogia; a explicitação da natureza
como correlata da comunidade das mônadas; a explicitação da história como comunidade
monádica de grau superior (cf. 1993, p.197s). Para o que nos interessa neste tópico da
dissertação, fixaremos nosso foco na apresentação que Ricoeur faz da proposta husserliana de
explicitação analógica do outro.
A objeção solipsista, segundo a qual o outro não se como um objeto psico-físico
situado na natureza, mas como um sujeito de experiência tal qual eu mesmo o sou, coloca
para a fenomenologia de Husserl a exigência de constituir o sentido do alter ego (cf. 1993,
p.198ss). Diante de tal desafio, o fenomenólogo de Friburgo segundo Ricoeur toma uma
decisão audaciosa e mais paradoxal ainda que o problema a ser resolvido: para clarificar o
sentido do outro é necessária uma “redução à esfera do próprio” (cf. 1993, p.200). Reduzir à
esfera do próprio, conforme explica Ricoeur, não constitui uma dissolução do outro em mim,
também não se refere à busca de uma gênese cronológica do outro em mim mesmo, como se a
minha experiência precedesse no tempo a experiência do outro. Trata-se antes de uma
“filiação de sentido”: “o sentido “outro” é emprestado do sentido “eu”, isto é, o sentido “eu”
se transfere de mim ao outro, pois é preciso dar sentido ao “mim” e ao “meu próprio” para
poder dar sentido ao “outro” e ao “mundo do outro” (cf. 1993, p.201). Trata-se então de
constituir o outro como outro “em” e “a partir de” mim mesmo, primeiro pela constituição em
mim do sentido do ego e , em seguida, pela transferência desse sentido a outrem. Como então
efetuar tal transferência? Como passar da “redução ao próprio’ para a constituição do outro? É
neste ponto que intervém o tema central da quinta meditação cartesiana: a constituição
analógica de outrem como um outro eu.
Dado que um estranho não é “presentado” diretamente, mas “apresentado” por seu
corpo, é a partir da corporeidade que se deve buscar a chave para o entendimento da
“apreensão analógica” do outro. Ricoeur lembra que, para Husserl, a encarnação é uma das
relações que a consciência entretem com o mundo: através dela torna-se possível identificar-
se com uma determinada porção da natureza que é o corpo físico, tornando-o corpo próprio. É
também através da encarnação que se é incorporado na natureza, possibilitando que se tenha
uma auto-apercepção mundanizante. Diante dessas colocações, Ricoeur assinala que a tarefa
husserliana torna-se mais precisa: como relacionar a apresentação mediata de outrem em seu
corpo com a apercepção de si mesmo como realidade mundana (cf. 1993, p.207).
De acordo com o ponto de vista ricoeuriano, a análise que Husserl efetua dessa
questão se articula em três graus. Primeiramente, “a significação ego passa de meu corpo,
apercebido no mundo, ao corpo do outro que apresenta uma outra vida, através de uma
espécie de analogia que opera de corpo a corpo, de carne a carne. É graças a essa analogia
que o sentido “ego” é transferido de meu corpo àquele corpo percebido longe” (1993,
p.207). Essa “transferência aperceptiva”, ou “apreensão analogizante”, mesmo pertencente a
um procedimento geral que reenvia uma experiência nova a uma experiência originária na
qual aquela encontra seu modelo ou seu tipo, apresenta uma especificidade: nela ocorre um
emparelhamento que permite reconhecer na presença carnal do outro a analogia de minha
própria mundanização, e atribuir a este outro o estatuto de ser também um “eu”, ainda que
somente minha experiência viva tenha um caráter originário. Contudo, o que garante que o
outro não seja um segundo exemplar de meu corpo próprio? Como conferir plenitude ôntica à
“apreensão analogizante” do outro? (cf. 1993, p.208s).
Perante esses questionamentos, o segundo passo da proposta husserliana de
constituição analógica de outrem como um outro eu é a análise do modo como a
representação da carne do outro em minha esfera própria de experiência se faz apresentação,
fora de mim, do vivido do outro. Trata-se de evidenciar a maneira pela qual se confirma a
suposição de uma vida outra que a minha. Essa confirmação se pela concordância de
expressões, de gestos, enfim, de comportamento. É o recurso a uma decifração perceptiva das
expressões de comportamento que preenche as antecipações oriundas de uma apreensão
indireta da vida de outrem a partir da minha, desde que se tenha visado um outro eu, isto é,
um eu semelhante a mim (cf. 1993, p.209s).
Como eu apreendo outro, não somente em minha experiência efetiva-perceptiva, mas
também em minha experiência potencial-imaginativa, o último passo na direção na libertação
do outro em relação à minha esfera primordial liga-se necessariamente à imaginação do “se eu
estivesse lá”: através da imaginação pode-se coordenar os outros lugares e perspectivas com o
lugar e a perspectiva onde nos situamos. Nesse sentido o “lá”, podendo ser o aonde eu posso
ir, torna-se o meu aqui” potencial: o é onde eu poderia estar se me deslocasse na direção
do outro. Assim, pela transferência em imaginação, isto é, imaginando aquilo que poderia ser
visto se se estivesse na posição do outro, penetra-se mais profundamente na existência do
outro que está afastado de mim. Dessa forma, a visada analogizante do outro, preenchida
pelas livres criações da imaginação, ganha não apenas a vivacidade imaginária, mas também
uma libertação no que tange à minha própria perspectiva atual, de tal modo que o que era uma
espécie de analogia gica, torna-se transporte, em imaginação e simpatia, para uma outra
vida (cf. 1993, p. 211): “dizer que você pensa como eu, que experimenta tristeza e prazer
como eu, é poder imaginar aquilo que eu pensaria e experimentaria, se estivesse em seu
lugar. Essa transferência em imaginação do meu “aqui” ao seu “aí” é a raiz daquilo que
chamamos intropatia (Einfühlung), que tanto pode ser ódio como amor” (1986, p.253).
Todavia, na medida em que imaginar estar no lugar de alguém é efetivamente o
estar lá, a transferência em imaginação revela, por contraste, aquilo que de único na
posição de outrem. Nessa perspectiva, a transferência em imaginação é sempre hipotética,
suspensa e, em última instância, neutra em relação a toda posição de existência. Por isso, o
“como” da expressão “como eu” não tem uma significação lógica de um argumento num
raciocínio, nem implica anterioridade cronológica da própria experiência sobre a experiência
do outro. Essa expressão significa que o sentido primeiro do ego deve ser constituído, de
início, na vida do próprio sujeito e transferido analogicamente ao estranho, de tal maneira que
uma segunda pessoa significa uma outra primeira pessoa: “Aqueles que eu conheço e aqueles
que eu não conheço são também “eus” como eu. O homem é o meu semelhante, mesmo
quando não está próximo de mim, sobretudo quando está distante de mim” (cf. 1986, p. 326).
Nesse sentido, para Paul Ricoeur, a imaginação implicada na constituição analógica do outro
funciona como o esquematismo kantiano na experiência objetiva:
esta imaginação é o esquematismo próprio à constituição da intersubjetividade na apercepção
analógica. Esse esquematismo opera à maneira da imaginação produtora na experiência objetiva, a
saber, como nese de novas conexões. A tarefa desta imaginação produtora é, particularmente,
manter vivas todas as espécies de mediações que constituem o elo histórico (...) (RICOEUR, 1986,
p.253)
Para dar conta dessa tarefa, a imaginação produtora deve combater, no anonimato das relações
mútuas em sociedades burocráticas, a “distorção sistemática da comunicação”, não deixando
fechar o diálogo (o que significaria a queda na violência) e deve também combater a
reificação do processo social que confunde para lembrarmos Buber o tu com o isto.
Nesse sentido, diz Ricoeur: “a imaginação tem por competência preservar e identificar a
analogia do ego, em todas as relações com os nossos contemporâneos, os nossos antecessores
e os nossos sucessores” (idem). Em suma, no âmbito de uma fenomenologia da
intersubjetividade, a tarefa da imaginação produtora é lutar contra a entropia das relações
humanas, conservando a diferença entre o curso da história e o curso das coisas (cf. 1986,
p.253).
2.3.2.1 – Imaginação e a condição de possibilidade da experiência histórica
A imaginação emerge então, para Ricoeur, como uma componente fundamental da
constituição do campo histórico (cf. 1986, p.252). Para a abordagem deste aspecto, o filósofo
recorre aos desdobramentos que Alfred Schütz
30
deu à teoria da intersubjetividade
husserliana, que aparecem no quarto capítulo da principal obra de Schütz publicada em vida.
No referido capítulo após ter recolhido de Weber o ponto de vista segundo o qual as
ciências sociais, ocupando-se da ação social enquanto ação significativa orientada para os
outros, devem ser compreensivas, isto é, devem compreender o significado subjetivo da ação
social (cap. I), após ter recorrido a Husserl para estabelecer um conceito mais sólido de
significado (cap. II) e, finalmente, após ter abordado o problema específico da compreensão
do que é outro ou estranho a nós mesmos (questão da intersubjetividade) Schütz propõe que
a ação intersubjetiva integra um mundo mais vasto (o mundo social), constituído por uma
intricada rede de dimensões, relações e modos de conhecimento. Para ele, a forma como nos
relacionamos com os outros depende do “mundo social” que este outro habita: o outro pode
pertencer ao mundo da realidade social diretamente vivenciada (umwelt), neste caso ele é um
“consociado” com o qual tenho uma “orientação-tu” que pode elevar-se, quando
reciprocidade, a uma “relação-nós” marcada pelo face a face; o outro pode não ser percebido
diretamente por mim, neste caso, ele pode pertencer a três “mundos” específicos: o “mundo
dos meus contemporâneos”(Mitwelt); o “mundo dos meus predecessores” (Vorwelt) e o
“mundo dos meus sucessores” (Folgewelt). Embora coexistam comigo no tempo, os
contemporâneos não podem ser percebidos em sua simultaneidade real, com eles se pode
ter uma relação a distância, uma relação-eles abstrata, possível pelo uso de tipos-ideiais. Para
Schütz, existem diferentes graus de concretude do outro, segundo a “região” que este ocupa
no “reino dos contemporâneos”. Na análise que faz do “mundo dos predecessores”, o
30
No início do século XX, quando ainda ecoavam os debates metodológicos desencadeados por W. Dilthey
acerca da especificidade das ciências do espírito, Alfred Schütz procurou fundamentar as categorias próprias da
realidade social, vinculando a sociologia compreensiva de M. Weber com a fenomenologia transcendental de E.
Husserl. Interessado, desde o início de sua carreira intelectual, na tentativa weberiana de estabelecer um
fundamento metodológico coerente para as ciências sociais, o pensador austríaco logo detectou ambigüidades no
conceito de significado com o qual Weber caracterizava a ação humana. Ao buscar uma teoria coerente do
significado, deparou-se com a proposta fenomenológica husserliana. Ao aplicar à ação o conceito de significado
oriundo da fenomenologia, Schütz acabou por reformular os fundamentos da sociologia compreensiva, conforme
testemunha sua obra principal, publicada em 1932: A Construção significativa do mundo social (obs.
Consultamos a edição argentina publicada em 1972 pela Paidos, intitulada Fenomenologia del mundo social).
pensador austríaco insere sua reflexão sobre o passado como uma dimensão do mundo social.
Reconhecendo que a linha divisória entre realidade social presente e passada é muito fluida,
ele define predecessor como sendo uma pessoa do passado, cujas experiências não se
recobrem com as minhas, donde que o “mundo dos predecessores” é o mundo que existia
antes do meu nascimento. Contudo, as experiências sociais passadas, enquanto parte de um
mundo no qual não tomei parte, podem ser apreendidas por mim no contexto subjetivo
presente de significado de uma pessoa que, aqui e agora, por exemplo, recorda sua juventude.
Pode-se também ter acesso ao mundo de meus predecessores por meio dos registros e
monumentos que têm o status de signos das vivências passadas. Quanto ao “mundo dos
sucessores”, Schütz dedica-lhe apenas o último parágrafo, tão somente para sustentar que
nenhuma chave pode abrir as portas deste reino. Quanto mais este está distante do aqui e
agora, menos confiáveis são as antecipações e interpretações do mesmo (cf. SCHÜTZ, 1972,
p.169ss).
Essas observações sobre o modo como Schütz, a partir da matriz fenomenológica-
husserliana, desdobra a questão da intersubjetividade tornam mais clara a seguinte observação
de Paul Ricoeur:
o princípio analógico não vale apenas para os meus contemporâneos, mas estende-se aos meus
antecessores e aos meus sucessores, segundo relações complexas de contemporaneidade e de
sucessão ascendente e descendente suscetíveis de ordenar os fluxos temporais, uns em relação aos
outros. É precisamente quando alargo o seu império a outros que eu não poderia conhecer
diretamente, que o princípio revela toda a sua força não empírica (1986, p.326)
Ao se dizer que existe uma igualdade da significação “eu” extensiva tanto aos que aqui estão
comigo, quanto aos outros, antes ou depois de mim, defende-se que, como eu, meus
contemporâneos, bem como os que vieram antes de mim e os que virão depois podem dizer
“eu”. É devido a esta analogia entre os múltiplos campos temporais que se pode afirmar que
estamos historicamente religados uns aos outros. Nesse sentido, a história emerge como um
fluxo temporal englobante, na medida em que, por uma relação de acoplamento, um fluxo
temporal pode acompanhar outro fluxo, possibilitando que um campo temporal ligue-se a
outro. No ato inicial de acoplamento entre diversos campos temporais está a analogia do ego,
pela qual qualquer um pode exercer a função do “eu” e imputar a si mesmo a sua própria
experiência. Na analogia implicada no acoplamento faz-se presente o trabalho da imaginação,
cuja competência é “preservar e identificar a analogia do ego, em todas as relações com os
nossos contemporâneos, os nossos antecessores e os nossos sucessores” (1986, p.253),
mantendo vivo o laço histórico, a transmissão de tradições e a possibilidade de comunicação
inter-geracional. Por fim, Ricoeur ressalta: é a imaginação que permite o alargamento de
nossa capacidade de permanecer expostos aos efeitos da história, condição de possibilidade de
uma experiência histórica em geral (cf. 1986, p.253).
2.4 – IDEOLOGIA E UTOPIA: EXPRESSÕES DO IMAGINÁRIO SOCIAL
Paul Ricoeur abre a parte final do ensaio L’ imagination dans le discours et dans
l’action” admitindo que a capacidade de se oferecer em imaginação aos “efeitos da história” é
tão escondida e tão esquecida que constitui apenas uma idéia no sentido kantiano do termo, ou
seja, um conceito ao qual não pode ser dado qualquer objeto da realidade sensível (cf. 1986,
p.254). Por isso, para o filósofo francês:
a verdade de nossa condição é que o elo analógico que faz de todo homem o meu semelhante só nos
é acessível através de certo número de práticas imaginativas, tais como a ideologia e a utopia (...)
Daí resulta que a imaginação produtora, evocada anteriormente e que nós considerávamos como o
esquematismo deste elo analógico , pode ser restituída a si mesma através da crítica das figuras
antagonistas e semi-patológicas do imaginário social (RICOEUR,1986, p.254 itálico do autor).
Admitindo que ideologia e utopia geralmente são definidas a partir de um ponto de vista
polêmico e pejorativo que ressalta a função negativa, mais ou menos patológica, de ambas
(ideologia como uma espécie de mentira social e utopia como uma espécie de ficção científica
aplicada à política), Ricoeur pretende desentranhar a função positiva das mesmas,
apresentando-as como práticas imaginativas que contribuem para a constituição da ligação
analógica entre o sujeito e seu semelhante. Ele almeja também explicitar que ideologia e
utopia “desempenham um papel decisivo no modo como nós nos situamos na história para
ligar as nossas expectativas dirigidas para o futuro, as nossas tradições herdadas do passado e
as nossas iniciativas no presente” (1986, p.417).
Para concretizar a abordagem que se propõe a fazer da relação entre ideologia e
utopia, Paul Ricoeur, nos vários textos em que trata deste tema
31
, segue o seguinte
procedimento: inicialmente, ele põe em ordem significações e funções distintas reconhecidas
a cada uma destas duas modalidades do imaginário social; em seguida, traça um paralelo entre
os níveis de uma com os veis da outra; por fim, ele procura uma correlação mais profunda
no nível mais fundamental de cada uma delas (cf. 1986, p.418). Assim, no que segue, nosso
intuito será o de apresentar a reflexão ricoeuriana acerca das funções e significados da
ideologia e da utopia, para em seguida r em relevo o entrecruzamento de ambas no plano
social do imaginário.
2.4.1 – Funções e significados da ideologia e da utopia segundo Paul Ricoeur
Paul Ricoeur assinala a existência de uma relação polar entre ideologia e utopia que
permite compreender as funções e significações de cada uma dessas expressões do imaginário
social. Entretanto, ele reconhece que um tratamento simultâneo das especificidades da
ideologia e da utopia é algo difícil e desafiador, pois enquanto a utopia tem uma existência
literária que nos permite reconstituir sua história a partir dos nomes de seus inventores, a
ideologia é marcada pelo anonimato. Além disso, uma sociologia da utopia e uma crítica
(marxista e pós-marxista) das ideologias apresentam-se relativamente desvinculas uma da
outra. Daí a proposta ricoeuriana, na esteira de Karl Mannheim, de estabelecer a diferença
entre ideologia e utopia a partir de um critério comum: a não-coincidência em relação à
realidade histórica e social (cf. 1986, p. 255; 257).
31
Principalmente os seguintes ensaios recolhidos em Du Texte à l’action: “Science et idéologie”; “idéologie et
utopie: deux expressions de l’imaginaire”; a terceira parte (L’imaginaire Social) de “L’imagination dans le
discours e dans action”. Além destes, aqueles outros recolhidos em Lectures on Ideology and Utopia.
No que tange ao fenômeno ideológico, a partir de um método regressivo que parte do
sentido aparente para chegar ao sentido mais profundo
32
, Ricoeur enfatiza três funções da
ideologia: a função dissimuladora da realidade, a função legitimadora da autoridade e a
função integradora da sociedade. É importante ressaltar que o filósofo francês constrói sua
análise do fenômeno ideológico a partir de conceitos retirados da tradição filosófica,
conforme testemunham as lições proferidas na Universidade de Chicago no outono de 1975 e
recolhidas, onze anos mais tarde, em Lectures on ideology and utopia
33
. Assim sendo, na
busca das camadas constitutivas da ideologia, Ricoeur parte da “interpretação simplificante do
marxismo” não para refutá-la, mas para integrá-la no conjunto de outras interpretações. O
primeiro nível da ideologia analisado por Ricoeur é então aquele que foi popularizado pelos
escritos do jovem Marx, nos quais, a partir da metáfora da inversão da imagem numa câmara
escura, aplicada por Feuerbach especificamente ao âmbito da religião, a ideologia é
apresentada como tendo a função de produzir uma imagem invertida da realidade, ou seja, ela
é apresentada como exercendo a função de distorção-dissimulação da práxis. Segundo Paul
Ricoeur, com Marx, a ideologia passa a ser o procedimento geral pelo qual o processo da vida
real (práxis) é falsificado pela representação imaginária que os homens fazem dela. Enfim,
neste primeiro nível, “a ideologia é uma imagem deformada, uma inversão, uma dissimulação
da vida real” (cf. 1986, p.420). Paul Ricoeur, contudo, problematiza:
Se se admite que a vida real a práxis precede, de direito e de fato, a consciência e as suas
representações, não se compreende como é que a vida real pode produzir uma imagem de si mesma
32
Nas observações conclusivas de Lectures on ideology and utopia (OBS.: As referências a esta obra serão feitas
a partir da tradução francesa publicada em 1997 com o tulo de Ideologie e Utopie), Ricoeur explica que sua
análise da utopia e da ideologia é uma análise regressiva da significação, ou seja, “ela não é uma análise dos
tipos-ideais, mas sobretudo uma fenomenologia genética no sentido proposto por Husserl nas Meditações
cartesianas. Este método nos permite atingir o nível da descrição sem nos situar fora das conexões que religam a
ideologia e a utopia. Uma fenomenologia genética se esforça para cavar sob a superfície da significação aparente
até as significações mais fundamentais” (1997, p.408).
33
Nesta obra, conforme assinala Marcelo F. TURA, em As fontes e implicações da questão da ideologia em
Ricoeur, a análise de filósofo francês parte de Marx e passa por Althusser para evidenciar o sentido mais comum
e aparente do fenômeno ideológico; tem como ponto de virada a abordagem de Manhnheim e apóia-se em Weber
para explicitar uma segunda concepção de ideologia; utiliza conceitos de Habermas para submeter a ideologia ao
crivo da crítica e inspira-se em Geertz para estabelecer uma compreensão mais profunda do fenômeno ideológico
(cf. 1999, p.84).
e, ainda mais, uma imagem invertida. se pode compreender isso se se distinguir, na própria
estrutura da ação, uma mediação simbólica que pode ser pervertida. Por outras palavras, se a ação
ainda não está penetrada de imaginário, não se como é que uma imagem falsa poderia nascer da
realidade. (...) É preciso, portanto, compreender em que sentido o imaginário é coextensivo ao
próprio processo da práxis (1986, p.421)
Considerando essa opinião do hermeneuta francês que acabamos de retomar, o contributo de
Marx para a especificação da ideologia pressupõe então outras camadas mais englobantes do
fenômeno ideológico, formadas a partir do fundo prévio de uma constituição simbólica do elo
social em geral e da relação de autoridade em particular (cf. 1986, p. 346).
É através do exame do fenômeno da autoridade que Ricoeur vai explicitar uma
segunda camada da ideologia, da qual emerge a sua função de justificação e legitimação da
dominação. Paul Ricoeur assinala a impossibilidade de se conceber uma sociedade que não se
projete e não se dê uma representação de si mesma sem recorrer às figuras e tropos da
retórica, na medida em que a retórica é a fornecedora de idéias pseudo-universais. Assim, de
acordo com o ponto de vista ricoeuriano, esse é o funcionamento normal da linguagem
quando articulada à práxis. O problemático é quando a retórica é posta a serviço do processo
de legitimação da autoridade, ou seja, quando ela ajuda as idéias da classe dominante a se
passarem por idéias universais. Para explicitar melhor esse uso ideológico da retórica,
Ricoeur socorre-se em Weber para demonstrar que a relação assimétrica entre governantes e
governados requer dispositivos de persuasão que limitem o uso da força para imposição da
ordem, que a pretensão à legitimidade de uma autoridade ultrapassa a legitimidade que os
membros da comunidade estão dispostos a lhe conceder. Ricoeur ressalta que não é possível
chegar ao grau zero do processo de legitimação, ou seja, não é possível apreender o momento
inaugural do fenômeno da autoridade. Entretanto, para ele, pode-se compreender quais são as
bases mais profundas sobre as quais tal fenômeno está assentado (cf 1986, p.423).
Na busca de uma fundamentação da ideologia num nível mais profundo, Paul Ricoeur
põe em relevo a função integradora da mesma. Para o filósofo, inspirando-se na antropologia
de Clifford Geertz, a ideologia é, antes de tudo, um elemento integrador da sociedade.
Partindo da hipótese de que não existem sociedades sem ligação a acontecimentos inaugurais,
Ricoeur, levando em conta a estrutura simbólica da memória social na difusão da convicção
de que tais acontecimentos fundadores são constitutivos da própria identidade da comunidade,
salienta que a repetida representação do momento fundante de determinado grupo social é um
ato ideológico essencial. Nesse contexto,
a função da ideologia é, então, servir de ligação à memória coletiva, para que o valor inaugural dos
acontecimentos fundadores se torne objeto da crença do grupo inteiro. Daí resulta que o próprio ato
fundador só pode ser revivido e reatualizado por meio de interpretações que não cessam de o
remodelar; e que o próprio acontecimento fundador se represente ideologicamente à consciência do
grupo (1986, p.424).
Assim, é no âmbito do processo de retomada e re-atualização de um evento fundador, que o
fenômeno ideológico aparece em toda a sua originalidade. A ideologia, perpetuando a energia
inicial para além da efervescência do momento inaugural, torna-se mobilizadora do grupo
social. Com base nisso, Ricoeur salienta que a ideologia, enquanto desempenhando uma
função integradora, apresenta a seguinte caracterização: a) ela é um dinamismo motivador da
práxis social, na medida em que é também portadora de um caráter “generativo”, isto é, de um
poder fundador de segundo grau, capaz de justificar e mobilizar a ação no âmbito das
instituições componentes de determinada sociedade; b) ela é simplificadora e esquemática,
pois para aumentar sua eficácia social, a ideologia necessita assumir um caráter “codificado”
que lhe permita mediatizar não somente as memórias dos atos fundadores, mas também os
próprios sistemas de pensamento, que devem ser transformados em sistemas de crença; donde
que o nível epistemológico da ideologia é o da crença (caráter dóxico da ideologia); c) ela é
operatória, no sentido de que “opera nas nossas costas antes de a termos como um tema aos
nossos olhos”, ou seja, o código interpretativo da ideologia é algo em que os homens habitam
e pensam, ainda que não pensem nele. Assim sendo, a ideologia apresenta um caráter não-
reflexivo e não-transparente, no qual radica os processos ideológicos de dissimulação do real;
d) ela é obturação do possível, que, tendo que perpetuar um evento fundador através da
representação do mesmo, uma clausura ideológica e até mesmo uma “cegueira ideológica são
produzidas mediante um estreitamento do campo interpretativo do momento fundante de um
grupo social, de tal modo que uma “orto-doxa” e uma “orto-práxis” são constituídas no
interior do grupo social, gerando uma recusa em relação ao “novo” capaz de ameaçar
gravemente a identidade cristalizada que a comunidade foi capaz de constituir a partir das
histórias que contou a propósito de si próprio (cf 1986, p.340ss).
É à luz das considerações que teceu acerca da ideologia e que foram retomadas por
nós nos parágrafos anteriores , que Paul Ricoeur procura compreender as funções e
significados da utopia. Conforme assinala G. H. Taylor na introdução que redigiu a Lectures
on Ideology and Utopia, “Ricoeur é o primeiro, desde Mannheim a abordar a ideologia e a
utopia no seio de uma mesma moldura conceitual” (1997, p.8). Assim sendo, do que ficou
assinalado mais acima, depreende-se que “a ideologia reforça, reduplica, preserva e, neste
sentido, conserva o grupo social tal como é. [De tal forma que] compete à utopia projetar a
imaginação para fora do real, para algures que é também nenhures. Reside o primeiro
sentido da palavra “utopia”: um lugar que é um outro lugar, um algures que é um nenhures”
(1986, p.427).
Procurando traçar um paralelo entre os níveis da ideologia com os, da utopia, Ricoeur
assinala primeiramente que enquanto a ideologia, no seu sentido fundamental, preserva e
conserva a realidade a utopia, fundamentalmente, põe-na em questão, minando por dentro
todas as formas de ordem social. Diante disso, a função primordial da utopia é de subversão
social. Como diz Ricoeur: “a história das utopias mostra-nos que nenhum domínio da vida em
sociedade é poupado pela utopia: ela é o sonho de um outro modo de existência familiar, de
uma outra forma de se apropriar das coisas e de consumir os bens, de uma outra forma de
organizar a vida política, de uma outra forma de viver a vida religiosa” (cf. 1986, p.427). Ou
seja, a utopia é a forma através da qual se repensa radicalmente todas as instituições que
exprimem uma ordem social cristalizada, nesse sentido, ela é uma severa contestação
“daquilo-que-é”, pois lança um novo olhar sobre a realidade, abrindo, para além do real
sedimentado, o campo do possível (cf. 1986, p.258). Essa é a função mais positiva da utopia:
a exploração do possível. É essa função que permite à utopia desafiar e transformar a ordem
social vigente.
No entanto, essa capacidade das utopias de instituir novos modos de vida, num
momento ou noutro, conforme constata Ricoeur, culmina no oferecimento de um modo
alternativo de exercício do poder, seja na família, na vida econômica, política ou religiosa.
Confirma-se então o fato de que o tema do poder é a problemática central de todas as utopias,
o que pode ser testemunhado pelas fantasias sociais e políticas de caráter literário ou pelas
tentativas de concretizar a utopia em micro-comunidades ocasionais ou permanentes (cf.
1986, p.259). Nesse sentido, as utopias, enquanto variações imaginativas sobre o poder,
constituem uma veemente contraposição ao processo ideológico de legitimação da autoridade:
enquanto a ideologia visa preencher o vazio sobre o qual se ergue determinado sistema de
autoridade, a utopia expõe a lacuna do mesmo e desmascara a pretensão de legitimidade do
poder estabelecido.
Embora a utopia projete na sociedade o sonho de um outro mundo possível como
alternativa à ordem existente e ofereça-se como crítica ao poder estabelecido, expondo o fosso
que entre as reivindicações da autoridade e as crenças dos cidadãos no sistema de
legitimação vigente conforme acaba de ser salientado , o fenômeno utópico apresenta
também um funcionamento negativo e patológico, essencialmente ligado à ausência de uma
reflexão de caráter prático e político acerca dos suportes que a mentalidade utópica deveria
buscar no real existente. Em seu funcionamento negativo, a utopia se apresenta como uma
quimera, uma fuga para o irrealizável, enfim, uma ruptura total entre o presente histórico e o
futuro sonhado. Nesse sentido, pode-se dizer que a utopia é regida por uma lógica
esquizofrênica do tudo ou nada e por um desprezo pela lógica da ação, o que impede que se
dê, a partir dos recursos disponíveis em determinada conjuntura, um primeiro passo em
direção à concretização do sonho possível. Assim, ao contrário da ideologia que se apresenta,
no nível superficial e patológico, como uma dissimulação que visa reforçar o real, a utopia,
numa visão negativa, consiste num processo de desvanecimento do real em função de
esquemas perfeccionistas, muitas vezes irrealizáveis, que tomam a forma de sonhos futuristas,
reveladores de uma nostalgia do paraíso perdido (cf. 1986, p.260).
Tendo acompanhado esse percurso analítico através do qual Paul Ricoeur, em diversos
textos, põe em ordem significações e funções da ideologia e da utopia, e traça um paralelo
entre os níveis de uma com os níveis da outra, é necessário ainda explicitar o modo como ele
estabelece, no plano social do imaginário, uma correlação mais profunda no nível mais
fundamental de cada uma delas. No horizonte desta dissertação, a questão chave, então, é
saber como a imaginação está implicada na função integradora da ideologia e na função
libertadora da utopia.
2.4.2 – O entrecruzamento necessário entre ideologia e utopia no imaginário social
A chave da reinterpretação da ideologia e da utopia operacionalizada por Ricoeur, que
lhe permite reuni-las numa mesma moldura conceitual para pensá-las conjuntamente, é a
proposta de considerá-las dois aspectos constitutivos do imaginário social. É o que o próprio
Ricoeur assinala na abertura de sua “Leçon d’introduction” dedicada a esclarecer o propósito
de suas análises sobre a ideologia e a utopia: “Eu me proponho reunir numa mesma moldura
conceitual essas duas noções, ordinariamente tratadas separadamente. A hipótese subjacente é
que a conjunção de dois aspectos assim opostos, ou de duas funções complementares, é um
exemplo daquilo que poderíamos denominar uma ‘imaginação social e cultural’” (1997, p.17).
Essa hipótese ricoeuriana acerca da imaginação social permite retomar, num plano
particular, a maior parte das dificuldades e ambigüidades que constituem o “campo de ruínas”
da filosofia da imaginação, de tal modo que a aposta ricoeuriana é que “a dialética entre
ideologia e utopia possa trazer alguma luz à questão não-resolvida da imaginação como
problema filosófico” (1997, p.17).
No início do ensaio “L’imagination dans le discours e dans l’action”, tentando
organizar “o campo de ruínas que constitui hoje a teoria da imaginação”, P. Ricoeur faz
referência a uma equivocidade radical do termo ‘imagem’, que apresenta, no mínimo, quatro
empregos diferentes: 1) imagem como evocação arbitrária de coisas ausentes, mas existentes,
sem que essa evocação implique confusão da coisa ausente com as coisas presentes aqui e
agora; 2) imagem como produção pictórica (os retratos, quadros, desenhos, diagramas etc.)
dotada de existência física própria e cuja função é ocupar o lugar da coisa que ela representa;
3) imagem como ficção que evoca algo inexistente; 4) imagem como domínio das ilusões, isto
é, das representações que, embora se dirijam a algo ausente ou inexistente, fazem crer na
realidade de seu objeto. Diante desta equivocidade radical do termo ‘imagem’, a tradição
filosófica desenvolveu teorias rivais acerca da imaginação. Ricoeur esclarece que tais teorias
podem ser organizadas segundo dois eixos de oposição: do lado do objeto, o eixo da presença
e da ausência; do lado do sujeito, o eixo da consciência fascinada e da consciência crítica.
Assim sendo, numa extremidade do eixo noemático, temos as teorias da imaginação
reprodutora, nas quais a imagem é referida à percepção; noutra extremidade, temos as teorias
da imaginação produtora, na qual a imagem pictórica, o sonho ou a ficção reenviam a uma
realidade ausente ou inexistente. No eixo noético, do lado da consciência crítica nula, tem-se a
confusão da imagem com o real; do outro lado, a consciência que não confunde o real com o
imaginário, mas que se serve deste como instrumento de crítica do real (cf. RICOEUR, 1986,
p. 239s).
Para Ricoeur, o imaginário social não difere fundamentalmente daquilo que
conhecemos do imaginário individual, de tal sorte que, segundo a hipótese ricoeuriana, a
imaginação, no plano sócio-cultural, também trabalha em duas direções diferentes:
De uma parte, ela pode funcionar para garantir uma ordem. Neste caso, sua função é de colocar em
cena um processo de identificação que reflete a ordem. A imaginação toma aqui a aparência de um
quadro. De outro lado, todavia, ela pode ter uma função perturbadora: ela opera então à maneira de
uma ruptura. Neste caso, sua imagem é produtiva: ela imagina alguma coisa de outro, um alhures
(...) a ideologia representa a primeira forma de imaginação: ela funciona como uma garantia, uma
salvaguarda. A utopia representa, ao contrário, a segunda forma de imaginação: ela é sempre um
olhar que vem de outra parte (RICOEUR, 1997, p. 350)
Conforme acabamos de verificar, a polaridade existente entre ideologia e utopia no plano
social do imaginário permite ilustrar a dupla vertente da imaginação, de tal modo que
ideologia e utopia podem ser situadas, respectivamente, como figuras da imaginação
reprodutora e da imaginação produtora. Ricoeur também destaca que tudo se passa como se o
imaginário pudesse exercer sua função de reduplicação do real por meio da ideologia e
pudesse exercer sua função crítica através da utopia.
Contudo, que se reconhecer, aliás como o faz Myriam Revault d’Allonnes no
prefácio à edição francesa de Lectures on Ideology and Utopia, a existência de um paradoxo
constitutivo do imaginário social em Ricoeur: a denúncia das ilusões engendradas pela
ideologia e pela utopia enquanto práticas imaginativas, quaisquer que sejam essas ilusões, não
abole a verdade posta em ato pela ideologia e pela utopia no plano social do imaginário. Em
outros termos: só se apreende o poder criador do imaginário no plano social numa relação
crítica com suas formas patológicas, isto é, numa relação crítica com as duas figuras de
“consciência falsa” que são a distorção ideológica do real e a fuga utópica irrealizante (cf.
1997, p. 16). Daí a proposta ricoeuriana de curar a enfermidade da ideologia com a
componente da utopia e vice-versa, e, por conseguinte, a defesa ricoeuriana da existência
de uma espécie de complementaridade das funções constitutivas de cada uma dessas
expressões do imaginário social: a contestação do real e projeção num alhures radical, por
parte da utopia; a integração social e conservação da identidade, por parte da ideologia.
Por fim, de acordo com Paul Ricoeur, quando se cava fundo na busca das significações
mais profundas da ideologia e da utopia, ultrapassando-se as significações superficiais das
mesmas, atinge-se a camada onde a imaginação é constituinte da própria realidade social (cf.
1997, p.19). É neste nível que a ideologia enquanto confirmação simbólica do passado e a
utopia enquanto abertura simbólica para o futuro articulam-se num substrato simbólico
indispensável para a constituição da identidade de um grupo social. Assim sendo, segundo
Ricoeur, a estrutura simbólica da identidade assenta-se naquilo que é, mas também no que
deveria ser. Ou seja, os símbolos que regulam nossa identidade não provêem somente do
presente, da realidade atual, mas também do passado e de nossas expectativas acerca do
futuro. A partir desta abertura para o futuro representada pela utopia, o que nós denominamos
“nós mesmos” deve incorporar aquilo que esperamos e aquilo que não somos ainda às
histórias que contamos sobre nós mesmos a partir de uma interpretação incessante das
tradições recebidas. Em outros termos, a partir da polaridade constitutiva do imaginário
social, articuladas no nível mais profundo da constituição simbólica da realidade, propõe-se a
sutura entre a identidade prospectiva e a identidade narrativa de determinado grupo ou
indivíduo (cf. 1997, p. 408).
No próximo capítulo, aprofundando a temática da identidade narrativa que acaba de
emergir, procuraremos explicitar a possibilidade de articulação entre imaginação e ética no
âmbito da hermenêutica do si elaborada por Ricoeur em Soi-même comme un autre,
encerrando assim o percurso analítico que foi proposto no inicio da dissertação.
3 - NARRATIVA, IMAGINAÇÃO E ÉTICA NA HERMENÊUTICA DO SI
(...) a teoria narrativa ocupa, no percurso completo de nossa investigação, uma
posição de charneira entre a teoria da ação e a teoria ética (RICOEUR,1990, p.180)
(...) narrar, observamos, é desenvolver um espaço imaginário para experiências de
pensamento em que o julgamento moral se exerce de modo hipotético
(RICOEUR,1990, p.200)
Nas ginas anteriores, procurou-se explicitar a emergência do problema da
imaginação semântica no seio das reflexões ricoeurianas sobre a metáfora (cap. I) e como essa
mesma imaginação semântica a partir da função mimética que desempenha no âmbito da
narrativa pode ser estendida ao campo da ação (cap. II). As análises desenvolvidas nos
capítulos precedentes demonstraram, a nosso ver, o quanto que a temática da imaginação é
uma chave de leitura pertinente para a compreensão do pensamento de Paul Ricoeur
consignado nos estudos sobre a metáfora e na trilogia que aborda a articulação entre
temporalidade e narratividade. Contudo, no decorrer da pesquisa que originou a presente
dissertação, uma questão adicional passou a nos desafiar: a temática da imaginação como
chave de leitura do pensamento de Paul Ricoeur permanece válida também para as análises
desenvolvidas pelo filósofo em Soi-même comme un autre? Dois fatores levam-nos a propor
esse questionamento. Por um lado, nesta obra de 1990, mais ainda do que nas anteriores, o
tema da imaginação aparece sutilmente encravado à argumentação mobilizada por Ricoeur,
impedindo, numa primeira leitura, a visualização da importância do mesmo para a referida
obra. Por outro lado, a proposta da temática do homem capaz como sendo o “tênue fio” que
perpassa a totalidade da reflexão ricoeuriana, tal qual o próprio filósofo salientou na Lectio
Magistralis dada em Barcelona no ano de 2001, parece embotar a proposta de dar à
imaginação uma centralidade no pensamento de Ricoeur. Assim sendo, diante desses desafios,
urge aclarar a importância da imaginação também para as reflexões ricoeurianas
desenvolvidas na obra de 1990. Dessa forma, o presente capítulo objetiva relacionar a questão
da imaginação à hermenêutica do si explicitada em Soi-même comme un autre, explorando a
proposta ricoeuriana de que uma imaginação ética se alimenta de imaginação narrativa. Em
função disso, num primeiro momento, com o intuito de contextualizar as reflexões que se
seguirão, apresentaremos uma visão geral da hermenêutica do si que Ricoeur elabora na obra
supracitada, ressaltando a fenomenologia do homem capaz que lhe subjaz, a problemática da
atestação que lhe perpassa e a noção de identidade narrativa que lhe serve de pivô. Em
seguida, a partir da teoria narrativa da identidade elaborada por Ricoeur, nos deteremos no
exame que o filósofo faz das implicações éticas da narrativa. É no seio deste exame que se
localiza, sutilmente encravada numa nota de rodapé, a proposta ricoeuriana de “uma
imaginação ética que se alimenta de imaginação narrativa”. Ressaltando que através desta
proposta a temática da imaginação emerge nas análises desenvolvidas em Soi-même comme
un autre, conectando assim as reflexões ricoeurianas acerca da hermenêutica do si com a
problemática da imaginação, tema principal da presente dissertação, nosso passo final será a
explicitação da referida proposta, apoiando-nos em alguns comentadores do egrégio filósofo
francês (em especial: Richard Kearney e Alain Thomasset). Por fim, encerramos nossas
análises sugerindo que a articulação entre imaginação e ética é um dos pressupostos do
projeto ético ricoeuriano desenvolvido nos estudos 7,8 e 9 de Soi-même comme un autre, ou
seja, propomos que a “pequena ética” ricoeuriana supõe uma poética.
3.1 - O RETORNO AO SI PELA VIA DA FENOMENOLOGIA DO HOMEM CAPAZ
Durante os anos 70 e 80, o pensamento de Paul Ricoeur foi marcado por uma
investigação filosófica conduzida em várias direções. Quando o hermeneuta francês, em 1986,
foi convidado a dar as Gifford Lectures na Universidade de Edimbourg, a questão que lhe foi
proposta, naquela ocasião, versava sobre a existência de uma unidade em sua produção
filosófica. Quinze anos depois numa aula magistral dada na Universidade de Barcelona
Ricoeur confessaria: foi na contramão de suas preferências que ele teve que propor uma chave
de leitura do conjunto de sua obra a seu auditório de Edimbourg (cf. JEVORLINO, 2002,
p.81). Como se sabe, cada obra do filósofo trata de uma questão delimitada, demandando um
tratamento distinto, em vista de conclusões precisas circunscritas à temática abordada, o que
dificulta a busca de uma unidade sistemática no pensamento ricoeuriano. Apesar disso, de
acordo com aquilo que o próprio filósofo afirmou na Lectio Magistralis ministrada em
Barcelona, no ano de 2001, as múltiplas questões que emergiram ao longo de seu itinerário
filosófico podem ser reagrupadas em torno da temática do homem capaz
1
expressa pelo verbo
modal “eu posso” (cf. JERVOLINO, 2002, p.81). Um ano antes, num prefácio escrito para
uma obra dedicada a seu pensamento, o próprio Ricoeur já tinha assinalado que:
à primeira vista, minha obra é muito dispersa. Ela aparece assim porque cada livro se organiza em
torno de uma questão limitada: o voluntário e o involuntário; a finitude e o mal; as implicações
filosóficas da psicanálise; a inovação semântica em ação na metáfora viva; a reflexividade e seus
estados. É somente nos últimos anos que eu pensei poder colocar a variedade dessas abordagens sob
o título de uma problemática dominante: eu lhe dei como título, o homem agindo ou o homem capaz
[...]. Inicialmente, é a potência de recapitulação do tema do homem capaz que me apareceu, por
contraste com a aparência de dispersão de minha obra, como um fio condutor aparentado àquele que
tanto admirei em Merleau-Ponty (...): o tema do “eu posso” (apud JERVOLINO, 2002, p.44)
A experiência do “eu posso” caracteriza de acordo com as análises merleau-
pontyanas retomadas por Ricoeur no exame que faz do presente histórico em Temps et Récit
III a inserção do sujeito agindo no mundo como raiz do “eu sou” (cf 1985, p.416s). Além
disso, segundo essas mesmas análises, o “eu posso” assenta-se numa filosofia da carne que
designa o corpo próprio como mediador entre o curso do vivido e a ordem do mundo,
superando a dicotomia entre a interioridade reflexiva e a exterioridade cósmica, entre o
psíquico e físico. É nessa descrição do “eu posso”, dependente de uma fenomenologia da
existência, que Ricoeur vai apoiar a retomada das principais vertentes de seu pensamento
consignadas em quatro registros fenomenológicos do agir humano: falar/fazer/narrar/imputar.
Na “Resposta a Ted Klein”, Ricoeur salienta que tentou alargar o sentido do “eu
1
Assim sendo, a temática do homem capaz ou do “eu posso” é o tênue fio que perpassa a obra ricoeuriana desde
Le Volontaire et l´invontaire (onde o tema do “eu posso” aparece ligado à análise do projeto) até La mémoire,
l´histoire, l´oubli (onde o lembrar-se é colocado como um dos poderes do homem capaz). Na obra Parcours de
la reconaissance (2004), mais exatamente na segunda seção do segundo estudo, Ricoeur oferece uma reflexão
mais sistematizada sobre essa temática.
posso” para além da esfera da ação enquanto tal. Para o filósofo, as múltiplas utilizações do
“eu posso” poder de se autodesignar como locutor de suas próprias palavras; o poder de se
autodesignar com agente de suas próprias ações; o poder de se autodesignar como
protagonista na sua própria história de vida e o poder de se autodesignar como responsável de
seus atos tornam-no co-extensivo à noção de si (cf. RICOEUR, 1999, p.216). De fato, a
problemática do si, tal qual Ricoeur propõe em Soi-même comme un autre, emerge a partir do
exame dos várias modalidades do agir: falar, fazer, narrar, imputar. Além do mais, no âmbito
de uma fenomenologia hermenêutica, a investigação sobre o si é guiada por uma rede de
interrogações organizadas em torno da questão “quem? Quem é o sujeito do discurso?
Quem é o sujeito do fazer? Quem é o sujeito da narrativa? Quem é o sujeito da imputação
moral? cuja resposta é sempre o si. Ou seja, sob essa ótica, interroga-se sobre o si, todas as
vezes que se pretende responder a uma questão em “quem?” e não em “quê?” ou em “por
quê?” (cf. RICOEUR, 1995, p.94). Conforme assinala Ricoeur, todas essas questões
colocadas sob a égide do “quem” “podem ser reformuladas no vocabulário da capacidade:
capacidade de se designar como locutor, capacidade de se reconhecer como autor de suas
ações, capacidade de se identificar como personagem de uma narrativa de vida, capacidade de
se imputar a responsabilidade de seus próprios atos” (1995, p.110), de tal modo que são essas
diversas figuras do homem capaz que tornam acessível uma hermenêutica fenomenológica do
si.
3.1.1 – A proposta de uma hermenêutica do si em Soi-même comme un autre
Na hermenêutica do si, elaborada por Ricoeur a partir da temática do homem capaz,
isto é, a partir dos desdobramentos do “eu posso”, questões relativas à filosofia da linguagem,
à filosofia da ação, à teoria narrativa e à filosofia moral são discutidas pelo viés da
confrontação entre a abordagem analítico-objetiva e a abordagem reflexiva-subjetiva. Assim
sendo, já no prefácio da obra gestada a partir das “Gifford Lectures” pronunciadas em
Edimbourg, em 1986, e dos ensinamentos sobre ética dados na Universidade de Roma La
Sapienza em 1987, nosso autor sustenta que um dos traços maiores da hermenêutica do si
está relacionado com o desvio da reflexão pela análise (cf. RICOEUR, 1990, p.28). Em
função disso, em Soi-même comme un autre, Paul Ricoeur constrói sua argumentação a partir
de uma concorrência, que pouco a pouco se transforma em complementaridade, entre a
filosofia analítica e a hermenêutica.
À luz do que acaba de ser exposto, os quatro estudos iniciais da obra de 1990 estão
alicerçados em concepções oriundas da vertente analítica da filosofia. Nos dois primeiros, é
pela confrontação entre semântica e pragmática que o filósofo extrai os contributos da
filosofia da linguagem para a hermenêutica do si. A confrontação entre semântica e
pragmática no âmbito da filosofia da linguagem
2
conduziu Ricoeur à proposta de articulação
entre a preocupação com referência identificante e a preocupação com reflexividade da
enunciação. Contudo, na medida em que o “eu” se autodesigna ancorado num corpo, isto é,
como alguém capaz de agir, a análise ricoeuriana é remetida para o âmbito da ação. Para
Ricoeur, “a filosofia da ação é, em sua fase analítica, uma semântica das frases de ão e, em
sua fase reflexiva, uma investigação dos modos de se dizer agente, de se reconhecer
verbalmente autor de seus próprios atos” (1995, p.95). Assim sendo, confrontando-se com D.
Davidson, no terceiro estudo de Soi-même comme un autre, o filósofo aborda a face objetiva
da teoria da ação, religando-a ao evento ocorrido na realidade física, resultante de uma
causalidade psíquica observável. De acordo com Ricoeur, esse tipo de análise opera um
2
Na aproximação semântica, confrontando-se com Strawson, a pessoa emerge como um particular de base, isto
é, como um desses particulares aos quais devemos nos referir quando falamos, tal qual o fazemos quando nos
referimos aos demais componentes do mundo. Em suas análises, Ricoeur aponta como insuficientes as tentativas
de se reduzir a função identificante da linguagem ao nível dos particulares de base, concluindo que “a pessoa
ainda não é um si neste nível de discurso na medida em que ela não é tratada como entidade capaz de designar-se
a si mesma. É uma das coisas a respeito das quais falamos, isto é, uma entidade à qual nos referimos” (1996,
p.170). Na abordagem pragmática, pondo em relevo o contexto de interlocução do qual o significado das
proposições depende, o filósofo destaca o fato de que estamos implicados naquilo que enunciamos. Ao deslocar
o foco do enunciado para a enunciação, Ricoeur sustenta que, por fim, “a questão será a de saber como o “eu-tu”
da interlocução se pode exteriorizar num “ele” sem perder a capacidade de se designar a si mesmo, e como o
“ele/ela” da referência identificante pode interiorizar-se num sujeito que se diz ele mesmo” (1990, p.56).
desvio pelo “quê” e pelo “porquê” da ação que oculta a questão “quem?”. As análises
ricoeurianas salientam que a obliteração da questão “quem?justifica a ausência no âmbito
de uma abordagem semântica da ação de um exame da noção de “agente”. A partir de uma
confrontação com Ascombe em torno da problemática da intenção, Ricoeur se esforça para
mostrar a necessidade de se compreender a ação a partir do agente que age, ou seja, a partir da
“orientação consciente” que alguém é capaz de imprimir às suas ações (cf. HELENO, 2001,
p.228). Para tanto, tal qual em suas análises sobre a linguagem, Paul Ricoeur se propõe passar
do plano semântico para o plano pragmático. Ele efetua essa transição, pondo em evidência a
implicação do agente na ação. Assim, no quarto estudo, exatamente intitulado “Da ação ao
agente”, Paul Ricoeur, servindo-se de Aristóteles para corrigir as concepções unilaterais
defendidas por Davidson e por Ascombe, vai mostrar que “a atribuição consiste precisamente
na reapropriação pelo agente de sua própria deliberação”. Contudo, o fenômeno da atribuição
é apenas, ressalva Ricoeur, uma determinação parcial da questão do si, donde a tese
ricoeuriana de que a teoria da ação exerce apenas uma função propedêutica em relação à
hermenêutica do si.
Os primeiros quatro estudos de Soi-même comme un autre, aos quais acabamos de
fazer uma breve referência, estão alicerçados, conforme salientamos, em concepções
oriundas da vertente analítica da filosofia, com sua característica preocupação com o rigor e a
objetividade da descrição, de tal forma que o conjunto dos mesmos constitui o pólo descritivo
da interpretação do si. Ricoeur considera que a limitação maior de tais estudos localiza-se na
ocultação da dimensão temporal da ação e do si, donde a necessidade de se mudar de método
filosófico a fim de se elaborar uma adequada hermenêutica do si. Essa transição metodológica
se pelo desenvolvimento da dialética entre ipseidade e mesmidade segundo eixo
temático da hermenêutica do si proposta por Ricoeur , mediante a retomada e
aprofundamento da teoria narrativa elaborada em Temps et Récit . Entretanto, conforme
afirma Morgado Heleno:
Ao retomar Temps et Récit, Ricoeur quer agora deslocar o “pôr em intriga” que sintetizava o agir
humano para o campo das personagens. Doravante, é a identidade da personagem enquanto
dialéctica entre a mesmidade e a ipseidade que o preocupa. Se o modelo da
concordância/discordância tinha sido útil para a compreensão do agir humano, originando uma
“síntese do heterogêneo”, o propósito é agora o de mostrar que a narrativa permite fixar a
personagem como uma singularidade (concordância) ao mesmo tempo em que vários tipos de
ruptura não cessam de a ameaçar (discordância) (2001, p.231)
Assim sendo, a dialética entre mesmidade e ipseidade propõe o desvio pela questão da
identidade narrativa, segundo a qual o sujeito da ação narrada é o que ele fez e sofreu. O
exame do poder de se narrar empreendido por Ricoeur nos estudos V e VI de Soi-même
comme un autre, dos quais faremos um exame mais acurado logo abaixo permitiu que o
filósofo francês integrasse os resultados de seus trabalhos anteriores sobre a narrativa no vasto
círculo das capacidades humanas, isto é, permitiu que ele fizesse da narratividade uma das
dimensões constitutivas do homem capaz. Além disso, a teoria narrativa da identidade
funciona como pivô no conjunto da obra publicada em 1990, propiciando a transição da teoria
da ação para a teoria ética.
Considerando então que devemos ultrapassar o nível narrativo da hermenêutica do si
para entrarmos no pólo prescritivo da mesma, nos estudos VII-IX, denominados de “pequena
ética”, o filósofo defende a necessidade de uma mediação entre ética (bom) e moral
(obrigatório), porém sem deixar de propor o primado da visada ética visada da “vida boa”
com e para o outro em instituições justas
3
em relação ao “crivo da moral”
4
, enquanto
3
Na primeira parte do artigo “Abordagens da pessoa” (1996), Ricoeur esclarece o sentido de cada uma das
expressões componentes da intenção ética. Primeiramente, ele destaca que a “visada da ‘vida boa’” refere-se à
aspiração a uma vida realizada (cuja expressão completa se pelo seguinte voto: Ah! Se eu pudesse viver
bem, sob o horizonte de uma vida realizada, e, nesse sentido, feliz!”), o que inscreve a ética na profundeza do
desejo, sublinhando o caráter de anseio, de optativo, anterior a todo imperativo (cf.1996, p.164). Assinalando
que existe um sujeito responsável quando se pode estimar a si mesmo como sendo capaz de agir
intencionalmente e de inserir suas intenções no curso dos acontecimentos do mundo por meio de iniciativas,
Ricoeur propõe como elemento ético da aspiração à “vida boa”, a noção de “estima de si”. O si, ao qual se dirige
a estima, enquanto termo reflexo de todas as pessoas gramaticais, possibilita que o tu e o ele também se
designem como autores de intenções e iniciativas no mundo, isto é, como portadores de estima de si, tal qual eu
mesmo (cf 1996, p.165). Em seguida, Ricoeur assinala que o segundo termo da intenção ética marcado pela
expressão “com e para o outro” aponta para o necessário movimento do si na direção do outro. Mesmo
aceitando o valor das análises de Lévinas que acentuam a força da interpelação ética do si pelo outro, para
Ricoeur, a relação do si com o seu outro se na busca de uma igualdade moral através das diversas vias do
ordem dos imperativos, das normas e das proibições. Ademais, conforme assinala Johan
Michel (cf. 2006, p.77), é no âmbito da análise das determinações éticas e morais da ação que
se efetua a introdução do referencial intersubjetivo na argumentação ricoeuriana através do
exame das várias nuanças que enriquecem a idéia de alteridade: o outro como corpo-próprio;
o outro enquanto outrem (interlocutor no plano do discurso ou protagonista/antagonista no
plano da ação) e o outro enquanto foro interior/consciência moral. É a partir do exame da
terceira figura do outro (foro interior/consciência moral) que se dá o retorno de si a si-mesmo.
Todavia, segundo Ricoeur, é como um outro que o si retorna a si-mesmo (cf. RICOEUR,
1995, p.77). Em suma, a análise das determinações ético-morais da ação conduz à
“compreensão de si mesmo como um outro”, desvelando, dessa forma, a dialética existente
entre a ipseidade e a alteridade, terceiro eixo temático da hermenêutica do si (Cf. RICOEUR,
1990, p.28).
3.1.1.1 - Hermenêutica do si e atestação
Conforme destacamos mais acima, os diversos modos de se colocar a questão
“Quem?” ‘Quem fala de quê?’; ‘Quem faz o quê?’; ‘De quem e de que se faz narração?’;
reconhecimento, cuja mola secreta é a reciprocidade, de tal modo que para o filósofo: “a petição ética mais
profunda é a da reciprocidade que institui o outro como meu semelhante e eu mesmo como o semelhante de
outro” (1996, p.165). Por fim, o filósofo analisa o “almejo de viver em instituições justas”. Sustentando ser
legítimo conceber toda instituição como um esquema de distribuição de direitos e deveres, obrigações e
encargos, vantagens e desvantagens, responsabilidades e honras, Ricoeur evocando, evidentemente, a análise
aristotélica da justiça distributiva, insere no âmbito institucional a possibilidade de uma relação com o outro que
não goza da intimidade própria das relações de amizade, mas que é marcada pelo “cada um” de uma distribuição
justa. Este “cada um”, embora irredutível ao outrem, não é um anônimo, mas uma pessoa distinta, com a qual
entro em contato pelos canais da instituição.
4
Segundo as análises ricoeurianas, a transição entre ética (teleológica) e moral (deontológica) se impõe devido
às situações de conflito e violência. Partindo da Fundamentação da Metafísica dos Costumes e da vertente
deontológica que se define neste texto, Ricoeur defende a necessidade de “esclarecer o que se entende por
vontade, liberdade, dever, autonomia e fins para que a própria ética possa sair enriquecida e fortalecida por
intermédio da reflexão sobre a moral” (HELENO, 2001:232). Contudo, o exame que Ricoeur faz da moral
kantiana leva-o a questionar a proposta de universalização da máxima como critério seguro da legitimidade e da
validade moral de uma ação. Para Ricoeur, em suma, ao universalizar-se a máxima corre-se o risco de se perder
o respeito pelos outros enquanto seres diferentes, isto é, a pluralidade das pessoas pode ser obliterada pela idéia
de humanidade (cf. 1990, p.308). São as dificuldades inerentes ao exercício do critério de universalização das
máximas que conduzem do nível abstrato da obrigação ao nível concreto da sabedoria prática, isto é, do
formalismo do imperativo categórico à premência de se decidir em situações concretas, singulares e de incerteza.
No âmbito de uma sabedoria prática, Ricoeur reencontra as fórmulas de conselho, de deliberação em comum e
de tomada de decisão em situação que Aristóteles colocou sob a égide da Phronesis.
‘Quem é moralmente responsável de quê? —, indicam que o si está implicado de modo
refletido nas diversas operações citadas. Devido ao estatuto indireto da posição do si, isto é,
considerando-o uma realidade mediatizada, verifica-se que a hermenêutica do si
necessariamente é uma hermenêutica construída a partir de desvios laboriosos. Dessa forma,
Soi-même comme un autre, mostrando a importância do “si” e da sua distinção em relação ao
“eu”, defende o primado da mediação reflexiva em relação à posição imediata do sujeito.
Entretanto, essa postura não significa uma derrocada total da noção de sujeito. Embora
critique a exaltação do cogito por Descartes, Ricoeur pretende igualmente se distanciar do
outro extremo proposto por Nietzsche. Assim sendo, a hermenêutica ricoeuriana do si ocupa
um lugar epistêmico situado para além da alternativa entre cogito e anticogito. Nela, além de
desconstruir a imediaticidade do cogito, Paul Ricoeur critica também a reivindicação da
certeza como critério de verificação dos saberes objetivos. Em função disso, ele propõe a
noção de atestação como sendo a categoria mais apropriada para caracterizar o modo
“aléthico” típico da hermenêutica do si mediato (Cf. RICOEUR, 1990, p.33).
A noção de atestação enquanto auto-afirmação do homem capaz emerge da análise que
Ricoeur faz do ser humano enquanto “ser-capaz-de-agir”. De acordo com próprio filósofo,
essa noção “é a modalidade prática da crença e da confiança que tenho no meu ser capaz, da
qual o oposto não é a vida, mas a suspeita. Acreditar, aqui, significa ter confiança de que
posso” (P. Ricoeur, “Resposta a Ted Klein” in Hahn, 1999, p.216). Assim, a atestação, para
usarmos uma expressão de Jean Greisch, está no coração da hermenêutica do si (cf. 2001,
p.379). O próprio Ricoeur a caracterizou como sendo o mot de passe da obra de 1990,
desempenhando, portanto, um papel fundamental na inteligibilidade da mesma. Através desta
noção, Ricoeur designa:
a espécie de crença ou de confiança que se liga à afirmação de si como ser agente (ou sofrente) (...)
esse crédito, essa fiança não se encaminha para a opinião numa escala do saber objetivo, no qual a
doxa seria menor que a episteme. A atestação se compreende por oposição a seu contrário, a
suspeita, cujo bom uso não é de modo algum negado. Mas é apesar de... apesar da suspeita, que eu
creio em meu poder de fazer (1995, p.99)
Conforme acaba de ser assinalado, a atestação na medida em que se apresenta como uma
espécie de crença não-dóxica, isto é, baseada não no “eu creio-que”, mas no “eu creio-em” ou
“eu creio-para” acena para um novo tipo de certeza que caracteriza a originalidade
epistêmica da hermenêutica do si. A atestação se apresenta, neste sentido, próxima do
testemunho, na medida em que é através da palavra da testemunha que se crê. Todavia, a
atestação carece, devido a sua inerente fragilidade, de uma garantia absoluta, sendo
permanentemente ameaçada pela suspeita. Diante da suspeita faz-se necessária uma atestação
ainda mais fiável. Por fim, a atestação é fundamentalmente atestação de si em todos os seus
níveis: lingüístico, práxico, narrativo e ético. Admitindo que a problemática do agir constitui a
unidade analógica de todos os desdobramentos do si, Ricoeur afirma que a atestação pode se
definir como a garantia de ser si-mesmo agindo e sofrendo” (RICOEUR, 1990, p. 35).
De acordo com a análise ricoeuriana, a atestação não só faz parte das diferentes
capacidades que manifestam a idéia de homem capaz, mas, num certo sentido, é ela mesma
que define o ser deste homem capaz. O próprio Ricoeur assinala que “a questão da atestação
(e aquela, conexa, da veracidade) abre lentamente o seu caminho de estudo em estudo, antes
de ser abordada de frente no décimo estudo” (1990, p. 92 nota). Destarte, percorrendo Soi-
même comme un autre, pode-se perceber como esta noção intervém, implícita ou
explicitamente, em cada uma das quatro camadas constitutivas do “eu posso”
5
.
Nos dois primeiros estudos da obra que Ricoeur publicou em 1990, centrados na
questão da linguagem, há uma ocultação da questão do si e, por conseguinte, um silêncio
acerca do fenômeno da atestação. Contudo, algumas pistas que remetem para a problemática
5
Para a explicitação, no parágrafo seguinte, do modo como a noção de atestação faz-se presente em cada um dos
estudos de Soi-même comme un autre, seguimos de perto as análises que J. Greisch faz deste assunto em
“L´attestation au coeur de l´herméneutique du soi” in J. Greisch, Paul Ricoeur. L´itinérance du sens, Grenoble,
Ed. J. Millon, 2001, pp. 379-392.
mais vasta da atestação podem ser encontradas quando, por exemplo, Ricoeur faz referência à
adscrição
6
dos predicados psíquicos a uma entidade pessoal. Como diz J. Greisch: “desde o
primeiro estudo, tudo se passa como se a adscrição fosse o fenômeno semântico sobre o qual
poderá vir se enxertar uma teoria mais explicita da atestação” (2001, p.382). O conceito de
auto-referência que emerge no segundo estudo ainda não é capaz de tirar a atestação do
anonimato, pois a “reflexividade” inerente à enunciação não pode ser confundida com a
consciência de si. Marcas mais visíveis do fenômeno da atestação podem ser encontradas na
análise ricoeuriana do “poder fazer”. Contra a precipitação ontológica de Heidegger, Ricoeur
opta por um desvio pelo “quê” e pelo “porquê” da ação através de uma longa análise da rede
conceitual do agir e das relações complexas que ligam as ações aos agentes. Vai ser
precisamente no âmbito do debate sobre a natureza da ação intencional (terceiro estudo) que o
filósofo vai mostrar que a “intenção de” é uma forma tênue de “atestação de si”, na medida
em que me remete para o futuro e compromete-me a mim mesmo com algo a fazer. No
estudo seguinte, Ricoeur destaca que o elo que une a ação ao agente reenvia a “um fato
primitivo”: a “potência de agir”, cuja expressão prática é a iniciativa. Esta, ancorada numa
fenomenologia do “eu posso”, remete, em última instância, a uma ontologia do “corpo
próprio”, dentro da qual se insere o estatuto ontológico da atestação. Novamente então a
noção de adscrição vem à tona. Ricoeur a retoma para caracterizar a possibilidade de o agente
se reapropriar da deliberação. Na seqüência, nos estudos consagrados à capacidade de se
identificar como personagem de uma narrativa de vida, embora o termo “atestação” não seja
pronunciado, as análises ricoeurianas ressaltam que o fato de narrar a história de um
personagem é inseparável da certeza que esta narrativa atesta: há, subjacente a ela, um certo
grau coesão de vida. Para se aceder a essa certeza, contudo, faz-se necessário o rompimento
6
Para Paul Ricoeur, conforme ele mesmo esclarece em Percurso do reconhecimento, “o termo “adscrição
salienta o caráter específico da atribuição quando esta diz respeito ao vínculo entre a ação e o agente, do qual se
diz também que ele a possui, que ela é “sua”, que ele se “apropria dela”. A adscrição visa (...) à capacidade de o
próprio agente designar a si mesmo como aquele que faz ou que fez.” (2008, p.113)
com a suspeita de que a identidade pessoal seja apenas uma ilusão. na “pequena ética” que
Ricoeur desenvolve nos estudo 7-9, o fenômeno da atestação reveste-se de grande
importância, deixando sua marca em todas as fases do desdobramento da concepção ética
ricoeuriana. Ou seja, a atestação intervém no âmbito da proposta do primado da visada ética,
na passagem da visada ética pelo crivo da norma moral e do imperativo categórico, bem como
também na proposta de uma sabedoria prática como saída dos dilemas da moral. No plano
ético, é a estima de si que se apresenta como a nova figura da atestação. A estima de si, não
tendo uma evidência imediata e não podendo ser observada do exterior, repousa sobre
convicções íntimas, estabelecidas a partir de nossas experiências, ou seja, ela resulta de um
incessante trabalho de interpretação de nossas ações, ideais, realizações, sucessos e fracassos.
Submetendo-se a visada ética à prova da universalização exigida pela norma moral, a estima
de si torna-se respeito de si. Nessa passagem, a atestação subjacente às experiências
reveladoras da estima de si não é renegada, apesar da mudança de ótica exigida pelo ponto de
vista moral. Ao contrário, para Ricoeur, a forma especifica da atestação em sua dimensão
moral vai ser encontrada exatamente no fato de o sujeito dar à si mesmo a lei de seu agir. A
exigência de universalização inerente à moral de obrigação gera conflitos que deverão ser
geridos por uma sabedoria prática através de um juízo moral em situação que produza
convicções, cuja fonte é a visada da vida boa. Essas convicções bem pesadas constituem a
última face da atestação no âmbito da “pequena ética” ricoeuriana. Por fim, após ter discutido
as diferentes facetas da função epistêmica da atestação, cabe dizer que no último estudo de
Soi-même comme un autre, intitulado “Vers quelle ontologie?”, a noção de atestação recebe
um reforço especulativo ao se apoiar na noção de ser como ato-potência (cf. 1995,p.99).
Mediante um processo de reapropriação da noção aristotélica do ser como ato e potência e por
meio de uma reinterpretação do ser enquanto ato como horizonte de atestação, os quatro
registros fenomenológicos do agir humano (falar/fazer/narrar/imputar) ganham então um
aprofundamento ontológico, na medida em que emerge um fundo ontológico a partir do qual o
si pode ser dito agindo (Cf. Ricoeur, 1990, p.357).
3.1.1.2 – Hermenêutica do si e identidade narrativa
No âmbito de uma apresentação geral da hermenêutica do si que Ricoeur elabora em
Soi-même comme un autre, tendo ressaltado a fenomenologia do homem capaz que lhe subjaz
e a problemática da atestação que lhe perpassa, vamos agora nos deter na noção de identidade
narrativa que lhe serve de pivô.
Cabe lembrar, de início, que o primeiro encontro de Ricoeur com o tema da identidade
narrativa se dá nas conclusões de Temps et Récit, quando do questionamento acerca da
existência de uma experiência fundamental capaz de integrar os dois modos narrativos
analisados por ele ao longo daquela obra. Para o filósofo, no nível da pessoa individual ou de
uma comunidade histórica, a resposta a esse questionamento é a identidade obtida através da
narrativa que responde à questão: “quem fez tal ação?” ou “quem é seu autor/agente?”.
Retomando H. Arendt, segundo a qual responder à questão “quem?implica narrar a história
de uma vida, Ricoeur assinala que a história narrada diz o quem da ação, de tal forma que a
identidade do quem não é outra senão uma identidade narrativa” (1985, p.443). Assim sendo,
a identidade própria de indivíduos e comunidades é construída pelo acolhimento de relatos
que ancoraram a história efetiva de ambos. Ou seja, na esfera da subjetividade individual, tal
qual a experiência psicanalítica põe em relevo
7
, uma pessoa se reconhece na história que
conta sobre si mesma; no âmbito da história das culturas e das mentalidades, tal qual a história
bíblica de Israel o atesta, um povo torna-se uma comunidade histórica com um nome próprio,
em parte, devido à recepção dos textos que ele mesmo produziu e que conservam os
7
De acordo com P. Ricoeur, a psicanálise “é um laboratório particularmente instrutivo para uma investigação
propriamente filosófica sobre a noção de identidade narrativa” (1985,p.444). Um aprofundamento desta tese
ricoeuriana pode ser encontrada na seguinte obra de Muriel GILBERT: L’identité narrative: une reprise à partir
de Freud de la pensée de Paul Ricoeur, Paris: Labor et Fides, 2001.
testemunhos dos eventos fundadores de sua própria história. Contudo, o próprio Ricoeur o
reconhece, a identidade narrativa não é uma identidade estável e sem falhas. Assim como
existe a possibilidade de compor várias intrigas a partir dos mesmos incidentes, igualmente é
possível tramar intrigas diferentes e até mesmo opostas acerca da própria vida. Diante disso,
pode-se conceber que a identidade narrativa está inserida num contínuo processo de
construção e reconstrução. Ainda no âmbito de sua primeira aproximação à concepção
narrativa de identidade, Paul Ricoeur acrescenta que tal concepção, na medida em que
repousa sobre uma estrutura temporal resultante da composição poética de um texto narrativo,
pode ser apresentada como uma saída para o seguinte dilema: ou se postula um sujeito
idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados; ou assume-se, seguindo Hume e
Nietzsche, que este sujeito idêntico é apenas uma ilusão substancialista
8
. É a partir deste
ponto, que essas brilhantes intuições em torno da concepção narrativa de identidade serão
posteriormente retomadas e aprofundadas por Ricoeur: no artigo “L’identité narrative”
publicado na Revue Esprit em 1988; no quinto estudo “L’identité personnelle et l’identité
narrative” de Soi-même comme un autre (1990) e na primeira parte “L’identité narrative
et la dialectique de l’ipséité et la mêmeté” do sexto estudo desta mesma obra.
No início do artigo supracitado, Ricoeur assinala:
Desde a publicação de Temps et Récit III, eu tomei a medida das dificuldades consideráveis
associadas à questão da identidade enquanto tal. Eu adquiri agora a convicção que uma defesa mais
forte e mais convincente pode ser proposta em favor da identidade narrativa, se puder ser mostrado
que essa noção e a experiência que ela designa contribuem para a resolução das dificuldades
relativas à noção de identidade pessoal, tal como ela é atualmente discutida em amplos círculos
filosóficos, em particular na filosofia analítica de língua inglesa (1988, p.296).
Para o filósofo, as dificuldades que obscurecem a questão da identidade pessoal resultam de
8
Pode-se dizer que a noção de identidade narrativa, em última instância, revela o esforço do filósofo em abordar
de maneira não subjetivista a questão da identidade. Nesse sentido, o uso do si reflexivo, acenando para a
tentativa ricoeuriana de evitar o uso do vocabulário do sujeito historicamente marcado pelo imperialismo do
“eu”, leva Ricoeur a distanciar-se da tradição idealista que funde as filosofias do sujeito em “primeira pessoa”
(Descartes, Kant e Husserl) com o idêntico enquanto imutável. Ricoeur propõe então um outro sentido de
identidade, não mais marcado pela existência de um substrato imune às transformações. Trata-se do idêntico
enquanto aquele que, apesar de suas próprias transformações, mantém-se numa obrigação. Idêntico é então o
ipse, que responde à questão “quem eu sou?”.
uma falta de distinção entre dois usos principais do termo identidade: identidade como
mesmidade (identidade-idem) e identidade como idêntico a si mesmo (identidade-ipse). De
acordo com a proposta defendida por Ricoeur, a mesmidade não se confunde com a ipseidade,
embora exista uma zona de convergência entre ambas. A determinação desta zona de
recobrimento entre identidade-idem e identidade-ipse será de grande importância na análise
ricoeuriana do problema da identidade pessoal (cf 1988, p.296).
Em vista disso, Ricoeur apresenta primeiramente uma análise conceitual da
identidade-idem. A partir das categorias kantianas, ele aponta as componentes principais da
mesmidade (cf 1988, p.296s; 1995, p.140ss): 1) identidade numérica: a partir da experiência
de duas ocorrências de uma coisa designada por um nome invariável, trata-se de reidentificar
o mesmo, isto é, reconhecer que se trata de uma e mesma coisa (unicidade) e não duas ou
mais (pluralidade); 2) identidade qualitativa: nas experiências em que a reidentificação do
mesmo suscita hesitação, dúvida ou contestação, apela-se para a semelhança extrema entre
duas ocorrências, a partir da qual pode haver uma substituição entre ambas sem perda
semântica, isto é, tais ocorrências são de uma mesma pessoa e não de alguém diferente dela;
3) identidade-continuidade ininterrupta no desenvolvimento de um ser entre o primeiro e o
último estágio de sua evolução: diante de experiências nas quais a grande distância no tempo
enfraquece o critério de similitude (semelhança extrema), inserindo fatores de
descontinuidade no processo de identificação, faz-se necessário apelar para uma série
ordenada de discretas mudanças que, tomadas uma a uma, ameaçam a semelhança sem a
destruir (ex. o retrato de nós mesmos em idades sucessivas); 4) identidade-permanência no
tempo: a ameaça que o tempo representa para a identidade é debelada quando se coloca na
base da similitude e da continuidade ininterrupta um princípio de permanência no tempo que
se aproxima da idéia de estrutura que subsiste às mudanças. Para Ricoeur, “toda a
problemática da identidade pessoal vai girar em torno dessa busca de um invariante
relacional, dando-lhe a significação forte de permanência no tempo” (1995, p.142s).
A permanência no tempo, segundo Ricoeur, é a zona de convergência entre
mesmidade e ipseidade. Diante disso, o problema que se lhe apresenta é o de mostrar como se
a intersecção entre o mesmo e o si. Para tanto, faz-se necessário defender que a ipseidade
implica uma permanência no tempo não redutível à determinação de um substrato (questão
“que?”), mas ligada à questão “quem?”, ou seja, que ela implica uma forma de permanência
no tempo que responda à questão “quem sou eu?”, e não à questão “que sou eu?(cf. 1988,
p.298). Ricoeur passa a examinar então dois modelos de permanência no tempo, o caráter e a
palavra dada, nos quais mesmidade e ipeseidade interagem.
Embora inicialmente ressalte em consonância com os resultados de suas primeiras
pesquisas sobre a polaridade do voluntário e do involuntário e sobre a não-coincidência entre
finitude e infinitude que o caráter, enquanto conjunto das marcas distintivas que permitem
reidentificar um indivíduo humano como o mesmo”, apresenta uma natureza imutável,
designando assim de modo emblemático a mesmidade da pessoa (cf 1995, p.144ss), Ricoeur,
em Soi-même comme un autre, na medida em que procura interpretar o caráter em função de
seu lugar na problemática da identidade, questiona a imutabilidade do mesmo, e propõe que
se evidencie sua dimensão temporal, compreendendo-o como o conjunto das disposições
duráveis com que reconhecemos uma pessoa” (1995, p.146 itálico do autor). Assim, seja
enquanto hábito (que confere ao caráter uma permanência no tempo que Ricoeur interpreta
como sendo o recobrimento do ipse pelo idem), seja enquanto conjunto das identificações
adquiridas (que integra aos traços do caráter, as preferências, apreciações e estimações, ou
seja, os aspectos valorativos), o caráter, como conjunto das disposições duráveis, revela que
“não podemos pensar até o fim o idem da pessoa sem o ipse, mesmo quando um recobre o
outro” (1995, p.147), de tal modo que paradoxalmente “a identidade do caráter exprime uma
certa aderência do o quê? ao quem?. O caráter é verdadeiramente “o quê?” do “quem”
(cf.1995, p.147).
O outro modelo de permanência no tempo analisado por Ricoeur é o da palavra
mantida na fidelidade à palavra dada, ou seja, é o modelo da promessa. Em oposição ao que
ocorre com o caráter, a palavra mantida afirma uma manutenção de si que não se deixa
inscrever no “que”, mas unicamente no “quem” (cf. 1995, p.148), revelando uma conjunção
fundamental entre a questão da permanência no tempo e a do si, na qual ipseidade e
mesmidade deixam de coincidir. Uma vez que o ipse coloca a questão de sua identidade sem a
ajuda e o apoio do idem, dissolvem-se assim todos os equívocos relativos à problemática da
identidade pessoal. No entanto, ressalta Ricoeur, a oposição entre mesmidade do caráter e
manutenção de si na promessa abre um intervalo de sentido, que pode ser preenchido por
uma mediação de ordem temporal.
A explicitação, que acabamos de fazer, destes dois modelos de permanência no tempo
oferece uma contextualização para a dupla tese enunciada por Ricoeur: “a primeira é que a
maior parte das dificuldades que afligem a discussão contemporânea sobre a identidade
pessoal resulta da confusão entre duas interpretações da permanência no tempo; a segunda é
que a noção de identidade narrativa oferece uma solução às aporias concernentes à identidade
pessoal” (1988, p.298)
No que tange a primeira tese acima apresentada, mais do que se deter numa revisão
dos questionamentos do postulado da substancialidade do eu, desde Locke e Hume (cf 1995,
p.150-155), Ricoeur opta por enfrentar as críticas à crença num princípio de identidade
pessoal que Derek Parfit desenvolve em Reasons and Persons
9
. Embora se contraponha à
9
Para Ricoeur, a importância desta obra de Parfit situa-se no fato de ela tirar todas as conseqüências de uma
metodologia que autoriza apenas uma descrição impessoal da problemática da identidade. Assim, de acordo com
esse ponto de vista reducionista, o que se convencionou denominar de “identidade pessoal” consiste somente
numa série de fatos particulares que podem ser descritos sem pressupor até mesmo a existência da pessoa. Para
Parfit, enfim, a identidade pessoal não é o que importa. De acordo com esse posicionamento, ainda que sejamos
entidades existindo separadamente (isto é, distinta de nosso cérebro, de nosso corpo e de nossas experiências), a
identidade pessoal é apenas um “fato suplementar” (cf. 1988, p.299). Parfit é então um temível adversário da tese
perspectiva defendida nessa obra, Ricoeur tem uma razão importante para levar a sério o seu
autor: o uso sistemático que o mesmo faz dos puzzling-cases (casos embaraçantes) tirados da
ficção científica
10
. A partir dessa estratégia, Parfit faz aparecer o caráter ilusório do princípio
de identidade pessoal. Para o autor de Reasons and Persons, a existência pessoal se resume à
existência de um cérebro e de um corpo e na ocorrência de uma série de acontecimentos
físicos e mentais ligados a eles. Desse modo, a identidade, objetivamente examinada, reduz-se
a um processo psicofísico que não se apóia num substrato que se chamaria “eu”. Tornando
ilusória a importância que se atribui à identidade pessoal, a teoria de Parfit desemboca numa
despossessão do eu, ou numa indiferença em relação ao eu
11
. Entretanto, interroga Ricoeur,
“um momento de desapossamento de si não é essencial à autêntica ipseidade?”. Assim, para o
filósofo, “o que a reflexão moral de Parfit provoca é finalmente uma crise interna à
ipseidade” (1990, p.166). Contudo, essa situação de crise da ipseidade não poderia conduzir a
uma descoberta mais profunda do si? Essa questão coloca-nos na rota das análises
ricoeuriana da identidade narrativa, uma vez que, além de se colocar exclusivamente no plano da mesmidade,
excluindo toda a dialética possível entre identidade-idem e identidade-ipse, ele critica radicalmente as crenças
ordinariamente subjacentes à reivindicação da identidade pessoal, a saber: 1) a existência separada de um núcleo
de permanência definidor da identidade; 2) a convicção de que sempre é possível dar uma resposta determinada
referente à existência de tal permanência, isto é, que a questão da identidade é sempre determinável; 3) a
importância da resposta à questão da identidade para que a pessoa reivindique o status de sujeito moral (cf 1990,
p.156).
10
Embora sejam experiências irrealizáveis do ponto de vista técnico, os puzzling-cases de Parfit são inteiramente
concebíveis e baseiam-se em três experimentações imaginárias: o transplante de cérebro, a bissecção do cérebro
e a fabricação de uma réplica do cérebro. Ricoeur se detém num caso de teletransporte apresentado por Parfit,
resumindo-o assim: “Suponhamos que seja feita de meu cérebro e de toda informação contida no restante de meu
corpo uma réplica tão exata que ela seja indiscernível de meu cérebro e de meu corpo reais. Suponhamos que
minha réplica seja enviada à superfície de algum planeta e que eu seja “teletransportado” ao encontro de minha
réplica. Suponhamos que no decorrer da viagem meu cérebro seja destruído e eu não encontre minha réplica ou
ainda que unicamente meu coração seja danificado e que eu encontre minha réplica intacta, a qual me promete
cuidar de minha família e de minha obra depois de minha morte” (1988, p.300). Diante da situação descrita
acima, a questão embaraçosa, num e noutro caso, é saber se se sobrevive na réplica. De acordo com Ricoeur,
Parfit, considerando o rebro “o lugar privilegiado das ocorrências nas quais a pessoa é mencionada, sem que
sua existência distinta seja explicitamente reivindicada” (1990, p.162), defende que é impossível decidir se se
sobrevive ou não. Por sua vez, para este autor, a indecidibilidade da resposta a esse puzzling-case aponta para a
vacuidade da questão da identidade. De tal forma que, dentro dessa perspectiva, a busca de uma fórmula estável
da identidade deixa então de ser algo importante.
11
O pano de fundo da proposta de Parfit, segundo observa Ricoeur, é “o problema da racionalidade da escolha
ética colocada pela moral utilitarista predominante no mundo de língua inglesa” (1990, p.164). Crítico da versão
mais egoísta desta moral, Parfit propõe que nos preocupemos menos conosco mesmos e que nos interessemos
mais pelas experiências em si mesmas do que com a pessoa que as tem. Lutando contra o egotismo que alimenta
a tese do interesse próprio, este autor defende que “as razões válidas da escolha ética passam pela dissolução das
falsas crenças sobre o estatuto ontológico das pessoas” (RICOEUR: 1990, p.164).
ricoeurianas dos contributos da identidade narrativa para a constituição do si que retomaremos
na conclusão deste item
12
.
De acordo com a segunda parte da tese ricoeuriana mencionada no final do penúltimo
parágrafo, a noção de identidade narrativa oferece uma solução às aporias concernentes à
identidade pessoal. Ou seja, a despeito das dificuldades explicitadas por Parfit de se achar um
substrato identificativo, Ricoeur defende que a narrativa tem a virtude de manifestar a
identidade pessoal. Diante disso, a primeira preocupação do filósofo é a de sustentar que a
narratividade oferece uma solução alternativa à questão da identidade. Para tanto,
inicialmente, Ricoeur procura mostrar “como o modelo específico de conexão entre
acontecimentos que constitui o pôr em intriga permite integrar à permanência no tempo
aquilo que parece ser o contrário sob o regime da identidade-mesmidade, a saber, a
diversidade, a variabilidade, a descontinuidade, a instabilidade” (1990, p.167).
Para Paul Ricoeur, uma compreensão narrativa da identidade pessoal pode ser
elaborada tendo como parâmetro a constituição da identidade do personagem no âmbito dos
textos literários. Por sua vez, a inteligibilidade da identidade do personagem ocorre mediante
a transferência para ele da operação de intriga primeiramente aplicada à ação narrada. Essa
derivação da identidade do personagem a partir da identidade no plano da intriga, acenada
em Temps e Récit, é explicitada no início do sexto estudo de Soi-même comme un autre. Nas
linhas dedicadas a este assunto (cf. 1990, p.168ss), o autor, após mostrar como a
concordância-discordante própria de toda composição narrativa desenvolve um conceito
completamente original de identidade dinâmica que concilia a dispersão episódica do que é
narrado e o poder de unificação desenvolvido pela configuração narrativa
13
, assinala que “o
passo decisivo em direção de uma concepção narrativa da identidade pessoal é dado quando
12
Cf infra p. 153s
13
Para uma análise mais pormenorizada pode-se ler com proveito: Ricoeur, P. “O texto como identidade
dinâmica” in ______. A hermenêutica bíblica, São Paulo: Loyola, 2007, p. 117-129.
passamos da ação ao personagem” (1990, p.170). Em seguida, tendo examinado de qual
maneira a teoria narrativa explica a correlação entre ação e personagem, Ricoeur defende que
resulta dessa mesma correlação uma dialética interna ao personagem (o personagem tem uma
identidade singular retirada da totalidade temporal de sua vida que, por sua vez, é ameaçada
pelo efeito de ruptura dos acontecimentos imprevisíveis que a pontuam), que é o exato
corolário da dialética de concordância e de discordância desenvolvida pela intriga da ação (cf.
1990, p.171-175). Em suma, dado que a intriga sintetiza o heterogêneo dos acontecimentos
narrados e como esses acontecimentos são essencialmente ações humanas, a intriga tem como
efeito identificar personagens que são os atuantes dessas ações. Assim, um entrelaçamento
da história narrada com as qualidades ou características das personagens que agem na história,
de tal modo que a personagem passa a refratar em si a dialética da concordância-discordancia
que define a intriga. Desse modo, não existe uma identidade narrativa do personagem
indistinta das experiências que este faz na sua história, ou seja, é a identidade da história que
constitui a unidade do personagem.
Ainda com a preocupação de sustentar a tese segundo a qual a narratividade oferece
uma solução alternativa à questão da identidade, Ricoeur procura mostrar que a dialética do
personagem, engendrada pela transposição da noção de pôr em intriga da ação aos
personagens da narrativa, é claramente uma dialética entre a identidade-mesmidade e a
identidade-ipseidade (cf. 1990, p.168). Considerando que mesmidade situa-se do lado do
caráter, representando um pólo de estabilidade e de constância, e que a ipseidade, enquanto
livre manutenção de si, um pólo de inovação e imprevisibilidade, o desafio, de acordo com o
filósofo, é “mostrar como a dialética do personagem vem inscrever-se no intervalo entre esses
dois pólos da permanência do tempo para fazer mediação entre eles” (1990, p.176). Para dar
conta desse desafio, Ricoeur recorre às variações imaginativas da identidade, não
toleradas, mas engendradas pela própria narrativa. Nesse sentido, para o filósofo francês:
a literatura revela-se um vasto laboratório para experiências de pensamento onde são postos à prova
da narrativa os recursos de variação da identidade narrativa. O benefício dessas experiências de
pensamento é tornar manifesta a diferença entre as duas significações da permanência no tempo,
fazendo variar a relação de uma com a outra. Na experiência cotidiana, tem-se dito que elas tendem
a se recobrir e a se confundir; (...) Na ficção literária, o espaço de variação é imenso. Numa
extremidade, o personagem é um caráter identificável e reidentificável como mesmo: é quase o
estatuto do personagem dos contos de fadas e do folclore. Quanto ao romance clássico (...) podemos
dizer que explorou o espaço intermediário de variação onde, através de transformações do
personagem, a identificação do mesmo decresce sem desaparecer. Aproximamo-nos do pólo inverso
com o romance dito de aprendizagem e, mais ainda, o romance do movimento de consciência. A
relação entre intriga e personagem parece então inverter-se (...) [de tal modo que] a identidade desse
último, escapando ao controle da intriga e de seu princípio de ordem, é posta verdadeiramente à
prova. Alcança-se desse modo o pólo extremo de variação, onde o personagem deixou de ser um
caráter (1990, p.176)
Através do recurso à variação imaginativa da identidade promovida pela narrativa, Ricoeur,
conforme acabamos de verificar, mostra como a identidade-ipseidade percorre um espectro de
significações desde um pólo extremo onde ela recobre a identidade do mesmo, simbolizado
pelo fenômeno do caráter, até outro pólo extremo onde se dissocia dela inteiramente
14
. Assim
sendo, pergunta Ricoeur: “onde se situa finalmente a identidade narrativa nesse espectro de
variações entre o pólo da ipseidade-mesmidade do caráter e o pólo de pura ipseidade da
manutenção de si?(1990, p.195). Para o filósofo, a resposta é clara: o lugar da identidade
narrativa aparece como o meio-termo entre a mesmidade (o caráter) e ipseidade (a
manutenção de si) (cf. 1995, p.196). A identidade narrativa coloca em relação dialética os
dois pólos constitutivos da identidade pessoal.
14
De acordo com a análise ricoeuriana, é no ponto extremo desse processo de variação imaginativa acima
descrito que emergem os casos embaraçantes propostos pelas ficções literárias acerca da perda de identidade-
mesmidade do personagem. Para ilustrar essa situação extrema de perda da identidade do personagem, Ricoeur
evoca a obra O homem sem qualidades, de R. Musil. Segundo a análise de Ricoeur, um dos efeitos do eclipse da
identidade do personagem nesse romance corresponde à gradativa decomposição da forma narrativa, a ponto de
transpor essa obra literária para a vizinhança do ensaio. (cf 1990, p.177). Esses casos-limites da ficção literária,
onde a ipseidade torna-se desprovida do suporte da mesmidade, apontam para as situações extremas em que a
questão da identidade pessoal se torna confusa, inominável e até mesmo indecifrável e constituem ocasião
propícia para um confronto com os puzzling cases de D. Parfit. A comparação feita por Ricoeur entre os casos-
limites da ficção literária e os puzzling cases da ficção cientifica revela que os primeiros são variações
imaginativas em torno de uma invariante: a condição corporal vivida como mediação existencial entre o si e o
mundo. Nesse sentido, as ficções literárias tem por horizonte incontornável a nossa condição terrestre, isto é, o
nosso ser-no-mundo. nos casos embaraçantes oriundos da ficção científica ocorre exatamente o contrário: a
condição corporal e terrestre, intransponível para as ficções literárias, torna-se a variável afetada pelas
manipulações imaginárias do cérebro. Nesse sentido, de acordo com Ricoeur, a ficção científica viola a condição
existencial sob a qual existem regras, leis, fatos.
Essas observações extraídas da esfera narrativa incidem no domínio da refiguração do
si cotidiano e concreto. Conforme Paul Ricoeur, no trajeto da aplicação da literatura à vida
ocorre uma transposição da dialética do idem e do ipse para o âmbito da exegese de nós
mesmos. Nessa transposição reside a virtude purgativa das experiências de pensamento
operacionalizadas pela literatura, não no plano da reflexão teórica, mas também no plano
existencial. Nesse sentido, a narrativa, mesmo quando é fictícia, e não fala diretamente de seu
leitor, nunca é neutra, que a leitura que se pode fazer dela é, na verdade, uma reescrita da
mesma, na qual o leitor se identifica, identificando-se com o autor ou com os personagens do
texto. Em outros termos, o leitor busca sua própria identidade nos reflexos de si mesmo e
daquilo que se empenha em fazer, que ele encontra na narrativa. De acordo com o que acaba
de ser assinalado, a mimèsis III descrita no capítulo anterior, não implica apenas uma
refiguração do real, mas também a possibilidade de transposição da identidade do personagem
da narrativa à identidade pessoal do leitor. Desse modo, uma das finalidades da narrativa é
retornar à vida mesma e transformar as identidades pessoais.
Antes de avançarmos, pode-se perguntar: qual o ganho principal deste exame da
identidade narrativa para as análises ricoeurianas desenvolvidas em Soi-même comme un
autre? A reflexão final deste tópico visa responder esse questionamento.
Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que, além de aproximar a poética da
narrativa da problemática do si vinculando a hermenêutica do si ao processo de apropriação
por um sujeito real (no caso o leitor) das significações vinculadas ao personagem de uma ação
fictícia, mediante a exposição às variações imaginativas acerca da identidade do personagem,
que se tornam variações imaginativas sobre si mesmo a identidade narrativa fornece um
suporte estável para a salvaguarda da possibilidade de imputação moral
15
, já que, na
15
Como vimos mais acima, Ricoeur não aceita o esvaziamento da questão da identidade promovida por Parfit,
ou seja, ele não se alinha com a empreitada radical de nadificação da identidade pessoal promovida por este
autor e pela corrente de pensamento que ele representa. A razão desta recusa situa-se no fato de esta perspectiva
perspectiva ricoeuriana, o que possibilita reunir a multiplicidade das experiências vividas não
é uma “substância”, uma “alma” ou um “puro eu”, mas a inteligibilidade que damos à
narrativa de nossa vida. Ou seja, para o filósofo, é quando se exprime sob a forma de uma
identidade narrativa governada pela dialética da concordância-discordante que a identidade
pessoal pode se salvar do caos, da multiplicidade e da dissonância, que ganha um sentido,
uma inteligibilidade e uma unidade (cf MICHEL, 2006, p.83).
Em segundo lugar, a noção de identidade narrativa é importante por favorecer a
articulação da hermenêutica do si com a questão ética. Em outros termos, se Ricoeur, em Soi-
même comme un autre, faz da ética o horizonte inultrapassável de toda hermenêutica do si,
isso só é possível devido a análise prévia que ele faz da identidade narrativa, uma vez que esta
noção propicia a superação da oposição entre descrição (fato) e prescrição (valor)
16
. Enfim,
graças à temática da identidade narrativa, Ricoeur pôde consolidar uma hermenêutica do si,
cujo fecho é a sua “pequena ética”, de tal modo que, conforme sustenta Mongin, a identidade
narrativa é uma componente conceitual indispensável à constituição de uma ética em Paul
Ricoeur (cf. 1994, p.37).
3.2 – IMAGINAÇÃO À LUZ DA ARTICULAÇÃO ENTRE NARRATIVIDADE E ÉTICA
Nas ginas anteriores deste capítulo, com o intuito de contextualizarmos as reflexões
que ora se iniciam, procuramos apresentar uma visão geral da hermenêutica do si elaborada
por Ricoeur em Soi-même comme un autre, ressaltando a fenomenologia do homem capaz que
impossibilitar a responsabilidade individual. Daí todo esforço ricoeuriano para encontrar um suporte estável para
salvar da derrocada a possibilidade de imputação moral. Como sustenta Johan Michel, mais do que na moldura
fenomenológica do corpo-próprio, foi nos recursos da narrativa que Ricoeur procurou construir um princípio de
permanência que servisse de suporte para a identidade pessoal e, por conseguinte, para imputação moral (cf.
2006, p.80).
16
Na opinião de Johan Michel devido aos limites da teoria narrativa ricoeuriana, calcados na diferença
mesma entre narrativa e vida (O que pode assegurar que o sentido narrativo corresponde realmente ao vivido,
uma vez que a narrativa de uma vida é um discurso onde podem se alojar mentiras, justificações e dissimulações
e uma vez que as reconstruções narrativas não cessam de se modificar ao longo da vida?) “o modelo narrativo
de Ricoeur se mostra mais prescritivo que descritivo, mais próximo de uma ética narrativa que de uma teoria
narrativa geral” (2006, p.90).
lhe subjaz, a problemática da atestação que lhe perpassa e a noção de identidade narrativa que
lhe serve de pivô. Nossas análises, mesmo sumárias, permitem verificar o quanto a obra
supracitada exerce um papel específico na economia do pensamento ricoeuriano: ela torna
possível compreender a significação dos vários desvios existentes no percurso filosófico de
seu autor, permitindo esclarecer também o sentido do árduo trabalho realizado por ele nas
duas décadas anteriores à publicação de 1990, quando deslocou a tarefa hermenêutica do texto
para a ação (cf. MONGIN, 1994, p.164ss). Nesse sentido, Soi-même comme un autre reagrupa
os diversos pólos de interesse da pesquisa ricoeuriana, apresentando-os como níveis de uma
hermenêutica do si, a partir da qual o autor edifica seu projeto ético (como uma “pequena
ética”), que até então, devido ao acento colocado na reflexão sobre a linguagem e na questão
do sentido, permanecera em segundo plano
17
.
No que segue, vamos nos deter no modo como Paul Ricoeur articula narratividade e
ética. Para tanto, acompanharemos a argumentação através da qual o autor mostra como a
narrativa ocupa, no percurso completo da investigação desenvolvida em Soi-même comme un
autre, uma posição de charneira entre a teoria da ação e a teoria ética, de um lado, por operar
uma expansão do campo prático, de outro, por estar prenhe de implicações éticas (3.2.1). Em
seguida, vamos explorar à luz dos contributos de Alain Thomasset e Richard Kearney
algumas conseqüências da proposta ricoeuriana de que “uma imaginação ética nutre-se numa
imaginação narrativa” (3.2.2).
3.2.1 – A expansão do campo prático pelas narrativas e implicações éticas das mesmas
Antes de abordar diretamente a problemática da determinação ética (bom) e moral
17
Para uma visão geral do problema ético em Paul Ricoeur vide o artigo de Maria Villela-Petit: “Vissé éthique et
quête du sens chez Paul Ricoeur” in VVAA Hommage à Paul Ricoeur (1913-2005). Paris, UNESCO, 2006. No
referido artigo, Villela-Petit, embora constatando a inexistência, entre as obras de Ricoeur, de um tratado
inteiramente consagrado à ética, defende que não vidas de que a preocupação ética está no coração do
pensamento ricoeuriano, não se restringindo à “pequena ética” formulada nos estudo 7-9 de Soi-même comme un
autre. Revisando as escolhas temáticas de Ricoeur, a autora procura mostrar como a visada ética se mostra
inseparável de uma busca do sentido empreendida por Ricoeur ao longo de sua carreira filosófica.
(obrigatório) da conduta humana, Ricoeur se propõe a desenvolver a tese segundo a qual a
teoria narrativa ocupa, no percurso completo da investigação desenvolvida em Soi-même
comme un autre, uma posição de charneira entre a teoria da ação e a teoria ética (cf. 1990,
p.180). Em outros termos, ele procura mostrar como a narratividade exerce a mediação entre o
ponto de vista descritivo (estudos 1-4 ) e o ponto de vista prescritivo (estudos 7-9 ) da ação.
Para tanto, segundo Ricoeur, faz-se necessário, por um lado, defender que “o campo prático
coberto pela teoria narrativa é mais vasto que aquele coberto pela semântica e pela pragmática
das frases de ação, por outro lado, que as ações organizadas em narrativa apresentam traços
que só podem ser elaborados tematicamente no quadro de uma ética” (1990, p.139).
De acordo com o programa que acaba de ser apresentado, urge explicitar, inicialmente,
a ampliação do campo prático empreendida pela própria estrutura do ato de narrar. Para
Ricoeur, a relação da intriga com o personagem só ilumina a relação entre a ação e seu agente
sob a condição de haver uma extensão do campo prático para além dos segmentos de ação
inscritos nas frases de ão e para além das cadeias de ação dependentes de uma praxeologia.
Isso exige que através de uma hierarquia de unidades práxicas, cada qual comportando um
princípio de organização especifico o conceito de ação seja estendido ao nível da
configuração narrativa desenvolvida na escala de uma vida, (cf. 1990, p.181). Mostrando que
as ações de base se tornam significantes quando se encaixam em unidades mais vastas
como as práticas (ofícios, artes, jogos), as quais, por sua vez, se encaixam nos planos de vida
(vida profissional, vida familiar) que tendem a se unificar naquilo que MacIntyre denomina
“unidade narrativa de uma vida”, Ricoeur põe em relevo que é a narrativa que dá a uma vida a
configuração de um projeto, permitindo assim qualificá-la de “boa” ou “bem-sucedida”. Em
outros termos, de acordo com a análise de Paul Ricoeur, é o conjunto da vida de um indivíduo
que serve de suporte à avaliação ético-moral de sua conduta.
Além de mostrar que a narrativa suscita uma extensão do campo prático, tal qual foi
acenado acima, Ricoeur procura apontar também de que maneira, não sendo eticamente
neutra, a narrativa se apresenta como o “primeiro laboratório do julgamento ético” (cf. 1990,
p.167). Com essa finalidade, o filósofo desenvolve um argumento que acena para os
desdobramentos éticos da tríplice mimèsis (cf. 1990, p.193s). Assim, para ele, ainda no
âmbito da mimèsis I (prefiguração narrativa), o próprio enraizamento da narrativa literária no
solo da oralidade permite entender que a função narrativa apresenta implicações éticas.
Recorrendo à observação feita por W. Benjamim segundo a qual “a arte de narrar é a arte de
trocar experiências”, e considerando que por experiências deve-se entender o “exercício
popular da sabedoria prática”, Ricoeur assinala que “na troca de experiências que a narrativa
opera, as ações não deixam de ser aprovadas ou desaprovadas, e os agentes, de ser elogiados
ou censurados” (1990, p.194), de tal forma que a narrativa comporta apreciações que recaem
no rol das categorias teleológicas e deontológicas próprias dos julgamentos ético-morais.
Dessa forma, para o filósofo francês, mesmo no plano da mimèsis II (configuração narrativa),
a narrativa literária apresenta determinações éticas que não são embotadas pelo prazer estético
que ela suscita. Como diz magistralmente Ricoeur:
O prazer que temos em seguir o destino dos personagens implica certamente que nós suspendamos
todo o julgamento moral real, ao mesmo tempo que pomos em suspenso a ação efetiva. Mas, no
recinto irreal da ficção, não deixamos de explorar novas maneiras de avaliar ações e personagens.
As experiências de pensamento que conduzimos no grande laboratório do imaginário o também
explorações exercitadas no reino do bem e do mal. Supervalorizar, e mesmo desvalorizar, é ainda
avaliar. O julgamento moral não é abolido, ele é, antes, ele mesmo, submetido às variações
imaginativas próprias da ficção (1990, p.194).
A partir desses exercícios de avaliação executados no plano do imaginário, também na esfera
da mimèsis III (refiguração da ação pela narrativa), a narrativa pode desempenhar sua função
de descoberta e de transformação no que tange o sentir e o agir do leitor, pois uma narrativa
de ficção, impondo ao leitor uma visão de mundo que não é eticamente neutra, induz o
mesmo, implícita ou explicitamente, a uma nova avaliação do mundo e de si próprio; neste
sentido, a narrativa já pertence ao campo ético em virtude da pretensão, inseparável da
narração, à justeza ética. Cabe ao leitor, enquanto agente, isto é, iniciador da ão, escolher
entre as múltiplas proposições de justeza ética veiculadas pela narrativa. Assim sendo,
mediante o que acaba de ser retomado da análise ricoeuriana, pode-se concluir que “a
literatura é um vasto laboratório onde são testadas estimações, avaliações, julgamentos de
aprovação e de condenação pelos quais a narrativa serve de propedêutica à ética” (1990,
p.139).
Segundo P. Ricoeur, também as narrativas históricas trazem em seu bojo implicações
éticas. Assim, ele encerra suas considerações sobre o nexo entre narratividade e ética
explicitando o aporte das narrativas históricas para a reflexão ética. Basicamente, Ricoeur
sustenta que descrever uma época passada consiste em evocar as esperanças e os códigos
morais dos homens daquele tempo, mas cujas vidas continuam a nos falar. Nesse sentido, a
narrativa histórica é uma reconstrução do passado que faz reviver pela imaginação maneiras
de ser e de avaliar pertencentes a uma outra época, mas que continuam presentes em nossa
humanidade profunda. A narrativa histórica, portanto, com a ajuda da ficção, trabalha e
simboliza a emoção (admiração ou de horror), contribuindo para compor uma sensibilidade
ética comum àqueles que compartilham dessas narrativas (cf. RICOEUR, 1990, p.194;
THOMASSET, 1996, p.180).
Tendo apresentado os apoios e antecipações que a teoria narrativa propõe à
interrogação ética, Ricoeur inverte os termos do problema e interroga acerca dos
complementos que as determinações éticas da imputação moral da ação a seu agente oferecem
à componente narrativa da compreensão de si (cf. 1990, p.180; 194). Em outros termos, tendo
explicitado as implicações éticas da narrativa, Paul Ricoeur apresenta a necessidade de se
ressaltar as dimensões narrativas da reflexão ética
18
. Para justificar esse empreendimento, o
18
Para um entendimento maior dessa proposta, a mesma deve ser contextualizada no âmbito do debate travado
entre Ricoeur e Kemp em torno da relação entre narratividade e ética na hermenêutica ricoeuriana. Peter Kemp,
em 1986, no artigo “Éthique et narrativité”, foi um dos primeiros a explorar o problema da relação entre
filósofo, numa nota de rodapé, defende o ponto de vista segundo o qual as narrativas oferecem
tantos suportes ao julgamento moral, conforme foi constatado acima, devido ao fato de o
próprio julgamento moral necessitar da arte de narrar para esquematizar sua visada. Conforme
assinala o filósofo nesta mesma nota, a visada da verdadeira vida que tem o primado sobre
as regras, normas, obrigações e legislações que constituem a moral , para se tornar visão,
deve investir nas narrativas pelas quais se ensaia os diversos cursos de ação em jogo. Assim, a
este respeito, para Ricoeur, pode-se falar em termos de “uma imaginação ética que se nutre de
imaginação narrativa” (cf. 1990, p.194s nota 2 - grifo nosso).
Neste ponto, o que foi desenvolvido nas páginas precedentes deste capítulo entrecruza-
se com a questão da imaginação, assumida por nós como fio condutor da leitura dos textos
ricoeurianos que servem de base para a presente dissertação. Na seqüência, tentaremos
explicitar essa proposta ricoeuriana de uma imaginação ética que se nutre de imaginação
narrativa.
3.2.2 – “Uma imaginação ética que se nutre de imaginação narrativa”
Conforme acabamos de acompanhar, a argumentação ricoeuriana em favor da
articulação entre narratividade e ética desembocou na proposta de “uma imaginação ética que
se nutre de imaginação narrativa”. Todavia, essa proposta, apresentada por Ricoeur numa
narratividade e ética em Paul Ricoeur. No referido artigo, extraindo as implicações éticas de cada um dos níveis
da tríplice mimèsis e pondo em evidência a importância ética do conceito de identidade narrativa, Kemp defende
a coincidência entre identidade ética e identidade narrativa, uma vez que, para ele, a ética nada mais é que a
configuração narrativa da verdadeira vida (cf. THOMASSET, 1996, p. 181). Um ano depois, o próprio Ricoeur
ofereceu uma resposta ao artigo de P. Kemp. Após reconhecer os méritos da “leitura ética” que o seu ex-aluno
faz de Temps et Récit, Ricoeur apresenta um posicionamento crítico perante o projeto de tratar a ética em termos
de configuração mimética, tal qual defendida por Kemp. Para o filósofo francês, a especificidade não-narrativa
dos imperativos deontológicos o impede de apoiar a tese de uma completa narrativação da ética. Apesar desse
posicionamento ricoeuriano (defesa de que a lei moral deve ser considerada sob a forma de uma regra abstrata e
não na forma de uma narrativa), num outro artigo “Pour une éthique narrative: un pont entre l’éthique et la
réflexion narrative chez Ricoeur” Kemp insiste em demonstrar que a narratividade é indispensável à ética
ricoeuriana. Para tanto, ele contra-argumenta defendendo que a idéia de um fundamento narrativo da ética não
exclui a idéia de um princípio ético fundamental e universal, desde que este princípio seja entendido não como a
lei moral kantiana, mas como uma atitude ética fundamental que só pode se exprimir em função de nossa
competência narrativa para compreender nossas ações e padecimentos (cf. KEMP, 1991:38).
nota, não é diretamente aprofundada pelo autor nos estudos restantes de Soi-même comme un
autre. Para aclará-la, somos obrigados a acionar a última das quatro estratégias metodológicas
apresentadas na introdução dessa dissertação. Trata-se, conforme sugeriu Johan Michel, de
levar em conta, nesse ponto específico de nosso trabalho, a recepção filosófica da obra
ricoeuriana
19
. Em virtude disso, para obtermos uma maior inteligibilidade da proposta de
“uma imaginação ética que se nutre de imaginação narrativa” recorreremos às análises que
Alain Thomasset e Richard Kearney fazem da mesma.
No capítulo de sua tese em que explicita o contributo da narratividade na constituição
da teoria ética ricoeuriana, Alain Thomasset convida-nos a adentrar de modo exploratório na
“pequena ética” elaborada por Ricoeur
20
, salientando a dimensão narrativa implicada em cada
de suas componentes (intenção ética, normas morais e sabedoria prática). Aqui, não
reproduziremos o conjunto da análise de Thomasset, mas nos fixaremos apenas na articulação
entre visada ética, narratividade e imaginação proposta por este autor. Assim, no que segue,
explicitaremos a dimensão narrativa de cada um dos aspectos integrantes da intenção ética
(visada da vida boa,/ com e para o outro,/ em instituições justas) e o modo como a imaginação
faz-se presente em cada uma delas.
No que tange à primeira das componentes da intenção ética, ou seja, a visada da vida
boa (desejo de viver no horizonte de uma vida realizada e feliz que se expressa na noção de
“estima de si”), o referido autor, lembrando que, para Ricoeur, o sujeito eticamente
responsável deve ser capaz de estimar a si mesmo como sendo capaz de agir segundo razões
refletidas (capacidade de agir intencionalmente) e deve ser capaz de inscrever suas ações no
curso dos eventos do mundo (capacidade de iniciativa), assinala inicialmente que a estima de
19
Cf. supra p.27
20
Mais acima, no âmbito de uma apresentação geral da hermenêutica do si desenvolvida em Soi-même comme
un autre, fizemos uma primeira referência à “pequena ética” ricoeuriana. Agora voltamos à mesma temática
com o intuito específico de salientar a dimensão narrativa implicada na tríplice marche da reflexão ética
elaborada por Ricoeur. É a partir desta análise exploratória que poderemos explicitar como uma imaginação ética
se nutre de uma imaginação narrativa.
si é o momento reflexivo da práxis, pois é avaliando nossas ações que nós nos avaliamos
como autor das mesmas. A ligação estabelecida entre estima de si e práxis permite que a
teoria narrativa ofereça uma contribuição fundamental à ética, que a estima de si
acompanha toda a série hierarquizada dos planos de ações que a teoria narrativa permitiu
desenvolver.
Conforme já foi assinalado mais acima, sob a pressão da narratividade, o campo
práxico recebeu uma extensão considerável que vai desde as práticas até a unidade narrativa
de uma vida, passando pelos planos de vida. O contributo de uma visada ética herdeira da
reflexão aristotélica consiste precisamente em integrar esses diferentes veis da ação sob a
idéia da “vida boa”. Para o estagirita, o homem sábio é aquele que é capaz de deliberar
corretamente sobre o que é bom e vantajoso, não somente acerca de um aspecto parcial da
existência, mas para a totalidade da mesma, ou seja, o “phronimos” busca saber que espécies
de coisas conduzem à vida realizada. Assim sendo, segundo a perspectiva aristotélica, a vida
boa/realizada é o fim último de nossa ação. Colocando-se na escola de Aristóteles, Ricoeur
lembra-nos Thomasset retoma os diversos níveis práxicos desdobrados pela narrativa à luz
da visada ética integradora da vida boa. Deste modo, de acordo com a análise ricoeuriana, as
práticas têm por princípio unificador uma regra constitutiva que significação ao conjunto
das operações que a compõe. Essas regras não são regras éticas, mas regras de sentido. A
qualificação propriamente ética das práticas provém dos padrões de excelência que são regras
de comparação fundadas a partir dos ideais de perfeição. São esses padrões de excelência que
permitem dar um primeiro ponto de apoio ao momento reflexivo da estima de si, já que é
apreciando nossas ações que apreciamos a nós mesmos. No que tange aos Planos de vida, são
eles que permitem a integração de nossas ações em projetos globais. É neste nível da prática
que o homem sábio pode fazer uso da sabedoria/prudência (phronésis) para concretizar os
ideais de “vida boa”, que é nele que incide as vantagens e inconveniências das escolhas
num determinado plano de vida. Por fim, no âmbito da unidade narrativa de uma vida,
opera-se uma junção narrativa entre as avaliações aplicadas à ação e as avaliações referentes
aos atuantes da ação. Graças a essa unidade narrativa, o sujeito ético é o mesmo sujeito
portador de uma identidade narrativa.
Alain Thomasset continua sua argumentação salientando que, de acordo com a análise
ricoeuriana, na busca de uma adequação entre aquilo que parece ser o melhor para o conjunto
de nossa vida e as escolhas preferenciais que dirigem a nossa prática, a ação e o si-mesmo
emergem como objetos de um incessante trabalho de interpretação. Essa emergência do ponto
de vista hermenêutico no âmbito da reflexão ética desenvolvida por Ricoeur, por um lado,
evidencia em virtude da interação entre a idéia de vida boa e as decisões mais marcantes
nos diversos planos de vida a existência de um círculo hermenêutico entre a visada da vida
boa e nossas escolhas particulares, à luz do qual nossas ações podem ser interpretadas como
um texto. Por outro lado, dado que “interpretar o texto da ação é para o agente interpretar a si
próprio”, evidencia que, no plano ético, a interpretação de si aproxima-se da estima de si. Essa
aproximação faz com que a estima de si tenha uma dupla valência: para as demais pessoas, ela
apresenta apenas o valor epistêmico de uma plausibilidade; aos olhos do próprio agente, ela
vale como uma convicção de se estar agindo bem, a partir do horizonte da “vida boa”.
Após ter mostrado recordando o modo como Ricoeur articula os diversos âmbitos da
práxis distendidos pela narrativa com a visada ética, e apresentando a reflexão ricoeuriana
sobre o incessante trabalho de interpretação da ação e do agente da ação como uma sinergia
entre narratividade e visada da vida boa é estabelecida pelo pensamento de Ricoeur, Alain
Thomasset passa a explicitar como a imaginação se faz presente neste primeiro domínio da
visada ética.
Para este autor, é a própria visada ética que convida a uma análise da imaginação nela
implicada, uma vez que a visada da vida boa
que orienta e integra o conjunto de nossas
ações para um fim último não pode deixar de fazer apelo à imaginação, que “vida boa”
não é propriamente um conceito claro e distinto, mas uma espécie de “nebulosa de ideais e
sonhos” a partir dos quais uma vida pode ser tida como mais ou menos realizada. Como no
âmbito da visada da vida boa, a ética é uma visão e uma intuição de modelos de ação, de
acordo com Thomasset, a articulação entre ética e imaginação deve ser situada no horizonte
das relações entre imaginação e ação. O autor supracitado, amparando-se então no modo
como Ricoeur relaciona ação e imaginação
21
, defende que a estima de si noção fundamental
deste primeiro estágio da reflexão ética ricoeuriana apóia-se nas capacidades do imaginário
acionadas pela narrativa. Quais são essas capacidades do imaginário a que o autor faz
referência? À luz da análise ricoeuriana da imaginação implicada no agir individual, pode-se
dizer que elas se relacionam com a função projetiva e a força práxica da imaginação. Desse
modo, levando-se em conta que essa “imaginação antecipadora do agir” (mediante a qual se
ensaia diversos cursos eventuais da ação e se “joga” com os possíveis práticos) permite que a
imaginação entre em composição com a motivação (figurabilidade dos desejos) e com o
próprio poder de fazer (variações imaginativas do “eu posso”), para Thomasset, a certeza de
que somos portadores da dupla capacidade implicada pela estima de si (capacidade de agir
intencionalmente e capacidade de iniciativa no mundo) nos é dada pela imaginação narrativa,
isto é, pela imaginação operando no âmbito da narrativa. Por isso mesmo, ele sustenta, por um
lado, que a tomada de consciência de nossos motivos e projetos é proporcionada pela mise-en-
intrigue dos mesmos pela narrativa e, por outro, que se pode aceder à idéia de iniciativa
com o concurso da função projetiva da imaginação.
Após ter explicitado o modo como a imaginação se faz presente no âmbito da visada
da vida boa, primeira componente da perspectiva ética defendida por Ricoeur, Thomasset se
pergunta sobre o papel da imaginação na constituição da solicitude, segundo elemento da
21
No item 2.3.1 “A função projetiva da imaginação à luz da fenomenologia do agir individual” da presente
dissertação já analisamos essa questão. Cf. supra p. 111ss.
reflexão ricoeuriana sobre a ética. Para tanto, ele retoma a idéia de que a solicitude é a
expressão da dimensão dialogal da estima de si, implicando um movimento de si para o outro
que impele para o desejo de viver uma vida boa com e para o outro. Através da solicitude,
Ricoeur lembra-nos Thomasset propõe que a demanda ética mais profunda é aquela da
reciprocidade instituinte do outro como meu semelhante e de mim mesmo como semelhante
de outro. Neste segundo momento, então, a reflexão ética de Paul Ricoeur se abre ao apelo do
outro, reconhecendo-o portador da mesma capacidade de agir intencionalmente e tomar
iniciativas inerentes ao sujeito ético, isto é, reconhecendo que o outro também é sede de uma
estima de si à qual minha solicitude responde. Instaura-se assim uma mutualidade na troca
entre pessoas que se estimam, baseada na seguinte formulação: ‘tu podes também dizer “eu” e
ser autor responsável de teus atos’. A reflexão ética elaborada por Ricoeur confere ao outro
um valor insubstituível, uma vez que ele exerce a mediação entre a minha capacidade de agir
e me estimar e a efetuação da mesma no campo prático. Nesse sentido, pode-se dizer que o
outro é a pressuposição de minha ação. Ainda de acordo com a análise ricoeuriana, retomada
por Alain Thomasset, o segredo da solicitude está na reciprocidade dos insubstituíveis, cujo
exemplo magno está na amizade. Tendo feito essa recapitulação acerca do papel ético do
reconhecimento do outro, no seio da reflexão ética proposta por Ricoeur, Thomasset passa
então a explicitar como a imaginação se insere. Em suma, ele propõe a seguinte questão:
como imaginação e solicitude se relacionam?
A resposta a esse questionamento, segundo o autor, nos remete à capacidade de se
colocar no lugar do outro em imaginação e simpatia evidenciada pelo exame que Paul
Ricoeur faz da teoria da intersubjetividade, tal qual foi esboçada por Husserl na meditação
cartesiana, e desenvolvida pelos trabalhos de Schütz.
22
De acordo com esse exame, o
22
Na presente dissertação, já fizemos menção a essa problemática no item 2.3.2 – A função empática da
imaginação à luz da fenomenologia do agir intersubjetivo. Cf supra p. 114ss.
princípio da analogia implicado no acoplamento dos campos temporais dos contemporâneos,
dos sucessores e dos predecessores é um princípio transcendental de grau superior que
assinala que todos os outros após, antes ou comigo são como eu. Como eu mesmo, eles
podem exercer a função “eu”, podem se imputar a si mesmos sua própria experiência. De
acordo com o princípio de analogia, a e pessoas são também pessoa. Numa referência
ao esquematismo kantiano, essa capacidade de transferência em imaginação do meu aqui ao
aí do outro, faz da imaginação o esquematismo próprio à constituição da intersubjetividade na
apercepção analógica, estando não na raiz da intropatia, mas também na raiz da
possibilidade da experiência histórica, uma vez que ela mantém vivas as mediações que
constituem a ligação histórica. Thomasset acrescenta que essa transferência em imaginação
para o lugar do outro nutre-se em experiências fecundadas pela imaginação narrativa.
Segundo ele, a freqüentação às narrativas permite que nos reconheçamos como possíveis
pacientes e não somente agentes da história. O relato histórico ou a narrativa fictícia de
situações de sofrimento desperta em nós sentimentos espontaneamente dirigidos ao outro que
sofre, raiz da solicitude.
Por fim, Thomasset explora o modo como o terceiro pólo da visada ética, tal qual
proposta por Ricoeur, também pressupõe a imaginação. Esse terceiro pólo introduz na
reflexão ética ricoeuriana a referência a outrem que não se deixa apreender na relação de
amizade, ou seja, integra na perspectiva ética o outro cujo rosto não está ao nosso alcance e
que, portanto, deve ser apreendido como sendo o “cada um” de uma distribuição em
instituições justas. Lembrando que para Ricoeur instituições são estruturas do “viver junto” de
uma comunidade histórica, caracterizadas, antes de tudo, por um ethos comum, Thomasset
assinala que o primado ético do “viver junto” em relação às regras coercitivas ligadas aos
sistemas jurídicos e políticos é fundamental para o pensamento ético de Paul Ricoeur, pois
permite mostrar que a justiça está ligada ao desejo de viver bem e à solicitude pelo outro,
antes de se tornar uma lei que interdita na esfera da moralidade. Nesse sentido, as narrativas
de eventos que assinalam, no calor da história, o desejo de uma comunidade de querer viver e
agir junto tem grande importância para o enraizamento do político na visada ética. Quer se
trate de narrativas de eventos fundadores ou de narrativas de eventos testemunhando o
surgimento de um poder popular, é a reinterpretação das mesmas que permite ao “viver junto”
durar e renovar-se, contribuindo, desse modo, para constituição do imaginário social de uma
comunidade política. No que concerne à noção de justiça aplicada às instituições, ela se
enraíza no solo mítico e religioso de nossa cultura. Além disso, nosso senso de justiça se
enraíza nas experiências concretas de injustiça: a observação do déficit de justiça, ou seja, do
que é injusto em nosso mundo coloca em movimento nosso senso de justiça. Assim, de
acordo com essa perspectiva, relatos de situações injustas são meios possantes para
desencadear a busca pela justiça. Dessa forma, antes de se formalizar em leis e argumentos
jurídicos, a justiça é um sentimento do justo e do injusto resultante de nossas experiências e
de nossas heranças culturais. Mediante essas colocações, Thomasset propõe que a reflexão
sobre a justiça, desenvolvida no âmbito da visada ética, seja articulada à análise do imaginário
social empreendida por Ricoeur (cf. 1996, p.205)
O imaginário social, tal como foi discutido no capítulo anterior
23
, estrutura-se a
partir da ideologia e da utopia, duas formas concorrentes que visam respectivamente a
justificação e a subversão da sociedade. Ricoeur, após a análise dos aspectos positivos e
negativos inerentes a cada uma dessas expressões o imaginário social, salienta que ambas não
só atuam paralelamente, mas se implicam mutuamente. Para o filósofo, a dialética entre
ideologia e utopia é essencial para a constituição simbólica do corpo social e para a fundação
imaginaria do poder. Diante disso, Alain Thomasset defende que a visada ética da justiça no
plano social das instituições pode se enraizar nessa tensão viva da consciência histórica
23
No item 2.4 - Ideologia e utopia: expressões do imaginário social. Cf. supra p.122ss.
1
67
entre o horizonte de expectativa no qual nós nos projetamos (utopia) e o espaço de
experiência no qual estamos concretamente inseridos (ideologia). Nesse sentido, para ele, a
imaginação social resultante da dialética entre ideologia e utopia alimenta o sentido de justiça
que vivifica relações humanas eqüitativas no plano institucional. Certamente a ideologia e a
utopia, enquanto práticas imaginativas nutridoras do sentido da justiça, não se expressam
obrigatoriamente sob a forma narrativa, contudo, esta é a mediação mais frequentemente
privilegiada pelas utopias. Neste caso, elas exprimem, sob forma de uma configuração
narrativa, a imaginação de novas possibilidades da vida em comum.
Após ter articulado a visada da vida boa à função projetiva da imaginação, a solicitude
à função empática da imaginação e o sentido de justiça à função social da imaginação
desempenhada pela ideologia e pela utopia, Thomasset conclui sua reflexão sobre as
dimensões narrativas da intenção ética explicitando como a imaginação narrativa alimenta a
imaginação ética, isto é, como o exercício da imaginação no domínio da narrativa alimenta o
exercício da imaginação no âmbito da ética. Basicamente, ele sustenta os seguintes pontos: a
imaginação narrativa permite assegurar-nos de nossa capacidade de ação e, deste modo, é ela
que torna possível nos estimar a nós mesmos como agentes ativos no seio da história; a
imaginação em ação na tessitura da intriga nos permite examinar nossos projetos, tomar
consciência de nossas motivações e, por conseguinte, torna possível reconhecer-nos como
capazes de iniciativa. Assim sendo, a imaginação narrativa contribui para que nos
consideremos sujeitos éticos responsáveis. Conforme foi salientado, a ficção se nos
apresenta como laboratório de juízos avaliativos, no qual as ações humanas são examinadas e
pesadas. Por isso mesmo a narratividade desempenha um papel essencial no plano
preparatório das escolhas singulares no nível do cotidiano, na medida em que as variações
imaginativas operadas pelas narrativas ficcionais abrem inúmeras possibilidades de ação.
Entretanto, salienta Thomasset, esse poder da imaginação narrativa não se restringe às ações
isoladas, mas incide também nas grandes decisões estratégicas da existência humana, que a
narrativa possibilita unificar a vida humana e submetê-la à perspectiva da vida boa. No que
tange a segunda vertente da visada ética, a imaginação narrativa nos impulsiona a tomar
consciência do outro como insubstituível e como digno de respeito. Dado que a minha história
está conectada à, do outro, este se torna necessário à minha felicidade. As narrativas abrem
nossos olhos para essa reciprocidade da ação. Por fim, no plano sócio-institucional, a
interpretação das narrativas dos eventos fundadores ou dos momentos simbólicos da história
de um grupo humano assegura a unidade narrativa de uma identidade coletiva, alimentando
assim a dimensão ética do “querer viver junto”. Em suma, conclui Thomasset:
As narrativas são então os mediadores que nos permitem apropriar de modo criativo das tradições
da vida boa que estão à nossa disposição. Elas nos educam em nossas disposições afetivas e morais.
Elas contribuem para a constituição de nossas atitudes fundamentais e de nossas convicções, tanto
no plano da relação a nós mesmos, como naquele da relação direta com outrem e da relação a cada
um no seio das instituições sociais. As narrativas inspiram nossa visada ética, alimentando-a com as
riquezas de nosso imaginário individual, intersubjetivo e social (1996, p.211)
Richard Kearney é o outro autor que recorremos para aclarar a proposta ricoeuriana de
que “uma imaginação ética se alimenta de imaginação narrativa”. No artigo “L’imagination
herméneutique et le postmoderne”, ele assinala que a genealogia ocidental do conceito de
imaginação mostra que esta sempre foi marcada por dois traços fundamentais: o poético e o
ético. Embora o modo como essas duas vertentes da imaginação se relacionam tenha variado
em diferentes períodos históricos, esses dois traços da imaginação sempre permaneceram
intimamente ligados. Assim sendo, perante os desafios colocados pela “civilização pós-
moderna da imagem”, Kearney propõe que novamente se reative a dialética entre poiésis e
ethos no âmbito da imaginação (cf. 1991, p.366). Para tanto, faz-se necessário que tal qual
propõe Paul Ricoeur reabilitemos a imaginação narrativa em nossa cultura pós-moderna, e
a articulemos com os desafios éticos atualmente existentes.
Assim sendo, inspirando-se em Ricoeur, Kearney assinala que uma imaginação
narrativa alimenta a imaginação ética na medida em que é tarefa da narrativa, em sua forma
poética, prover-nos, pelas vias específicas da imaginação, de mecanismos através dos quais os
aspectos morais do comportamento humano podem ser interligados ao horizonte ético da vida
boa. Considerando que a imaginação narrativa fornece-nos variações imaginárias ou
experiências de pensamento que nos familiarizem com as causas e conseqüências da conduta
humana, para Kearney, a imaginação narrativa é capaz de constituir um “universal poético” a
um grau abaixo que o universal do pensamento lógico ou teórico. Contudo, mesmo situados
numa escala inferior, os universais oriundos da imaginação narrativa são mais apropriados à
ética uma vez que eles se ajustam melhor à singularidade da experiência humana. Nesse
sentido, assinala Kearney, a imaginação narrativa vívida daquilo que diz respeito ao bom e do
que resulta dele toma a forma daquilo que Ricoeur denomina “compreensão fronética”.
Além do “caráter fronético”, o autor irlandês, faz referência à função catártica
desempenhada pela imaginação narrativa. Sabe-se que a narrativa nutre juízos morais, seja
pelo encorajamento para simpatizar-nos com o caráter da ão imitada e configurada
narrativamente, seja provocando uma atitude crítica de retirada. Em outros termos, pela
dialética entre piedade e medo, a imaginação narrativa efetua uma purgação de nossas
emoções induzindo às atitudes paradoxais de empatia e afastamento.
No que tange ao horror ligado a determinados acontecimentos que jamais devem ser
esquecidos (por exemplo, o holocausto), Kearney chama a atenção para o fato de que a
narrativa dos mesmos também assume um caráter ético, uma vez que, através desta narrativa,
somos conduzidos a nos identificar empaticamente com as vítimas de tais acontecimentos.
Entretanto, se a imaginação narrativa universaliza nossa identificação com as vítimas, ela
também pode singularizá-la, de tal forma que a função ética da rememoração exerce também
uma função de individuação em nossa consciência histórica do caráter único de eventos como
Holocausto, Hiroshima etc. Assim sendo, ao preservar a especificidade do sofrimento
histórico e ao restaurar nossa dívida para com os mortos, a imaginação narrativa previne que
uma historiografia abstrata resvale para uma neutralização da injustiça
24
.
Finalmente, após salientar também que a imaginação narrativa coloca-nos em contato
com figuras exemplares capazes de guiar e motivar o comportamento humano através dos
ideais de paz e justiça por eles defendidos, Richard Kearney encerra sua reflexão sobre o
potencial ético da imaginação narrativa pondo em evidência que uma imaginação ética nutre-
se de imaginação narrativa na medida em que esta possui também o poder de revelação da
alteridade, poder esse inerente à habilidade ética básica de imaginar si-mesmo como outro e o
outro como um si-mesmo. Nesse sentido, Kearney defende que a preocupação com a
alteridade presente na ética existe igualmente na poética. Inspirando-se novamente na poética
da narrativa elaborada por Ricoeur, ele assinala que o imaginário de um texto liberta o eu do
autor e do leitor de sua identidade fixa, projetando-os para outro horizonte de sentido
possível. Assim, a experiência proporcionada pela imaginação poética no âmbito da narrativa
opera uma transgressão da identidade egológica baseada no princípio da não-contradição e
conduz para uma “lógica poéticamais inclusiva e tolerante que permite a coexistência de
não-conciliáveis. O retorno a si após a travessia do mundo do texto se revela uma experiência
na qual a imaginação poética possibilita que a alteridade imprevisível do sentido convide o
sujeito a se desapropriar de si mesmo, a abandonar suas certezas fixas. Além disso, a
imaginação poética nos conduz ao pórtico da ação ética na medida em que abala nossa
complacência para conosco, abrindo-nos ao apelo do outro. Contudo, a passagem para a ação
efetiva é tarefa de uma imaginação ética. É ela que entrelaça o rosto do outro com meus
projetos de ação, obrigando-me a decidir aqui e agora. A imaginação ética coloca-me perante
o outro que exige de mim uma resposta ética concreta. Contudo, sublinha R. Kearney, se por
24
Não se recomenda aqui, alerta Kearney, um cisma entre narrativa e ciência histórica, uma divisão entre narrar
imaginativamente e explicar cientificamente. A função narrativa da identificação empática não se contrapõe à
abordagem objetiva dos fatos “como eles realmente aconteceram”. O que se propõe é que a teoria das leis e
fatos históricos necessitam ser suplementados com uma phronesis das narrativas singulares. Somente uma dupla
abordagem narrativa e empírica da dor humana poderá evitar que a história caia no “culto pós-moderno do
presente superficial” no qual a guerra e o sofrimento são dissolvidos nos jogos midiáticos de hiper-realidade.
um lado é a imaginação ética que impulsiona a responder, a decidir e a agir concretamente,
por outro, é a imaginação poética que garante que ela o faça de modo a permanecer sempre
atenta ao diferente de si.
Mediante o que foi assinalado ao longo deste tópico final, pode-se dizer que, por
diferentes vias, as reflexões de Alain Thomasset e de Richard Kearney ajudam-nos a perceber
que a imaginação está interligada aos diversos níveis da reflexão ética elaborada por Ricoeur
e que essa imaginação ética necessita sempre da “recriação” poética proporcionada pela
imaginação narrativa. Por fim, da nossa parte, se essas observações estiverem corretas,
podemos concluir que também em Soi-même comme un autre a imaginação é uma importante
chave de leitura, pois, seguindo os desdobramentos da proposta ricoeuriana de que “uma
imaginação ética nutre-se de imaginação narrativa”, compreende-se em que medida a
articulação entre imaginação e ética é um dos pressupostos do projeto ético ricoeuriano
desenvolvido nos estudos 7, 8 e 9 de Soi-même comme un autre, ou seja, compreende-se que a
“pequena ética” ricoeuriana supõe também uma poética.
CONCLUSÃO
(...) continuo a deixar lugar para a esperança. Uma esperança construída sobre o
quê?(...) minha esperança está na linguagem, a esperança de que haverá sempre
poetas, de que haverá sempre pessoas para refletir sobre eles e pessoas para querer
politicamente que essa palavra, que essa filosofia da poesia, produza uma política
(RICOEUR, 2002a, p. 66)
O intuito maior desta dissertação foi o de oferecer alguma contribuição à tentativa de
explicitar e sistematizar o tema da imaginação no pensamento de Paul Ricoeur consignado nas
principais obras do filósofo publicadas entre 1970 e 1990. Tendo em vista esse propósito, o
cerne de nossa pesquisa organizou-se em torno da seguinte questão: Qual o estatuto atribuído
à imaginação na hermenêutica do texto, na hermenêutica da ação e na hermenêutica do Si
elaboradas por Ricoeur? Antes de recapitularmos os principais elementos explicitados pelas
análises precedentes que devem ser apresentados como resposta à questão supracitada, faz-se
necessário tecermos algumas considerações finais de ordem mais geral.
Assim sendo deixando-nos inspirar pela modéstia metodológica sugerida por
Lebrun, quando, referindo-se ao escopo da investigação desenvolvida em Kant e o fim da
metafísica, sustentou que “não é portanto nem uma nova interpretação, nem um novo
comentário que nós nos propomos, mas no máximo um exercício de leitura” (1993, p.8) —,
deve-se esclarecer que, ao longo destas páginas que chegam ao seu final, tentou-se realizar
um “exercício de leitura” de algumas obras de Paul Ricoeur, tendo como fio condutor a
temática da imaginação. Esse “exercício de leitura”, contudo, revelou-se mais complicado do
que parecia.
Na busca de uma compreensão para as dificuldades enfrentadas no decorrer do
itinerário que nos propusemos seguir, lembramo-nos de que, em certa ocasião, Jeanne Marie
Gagnebin caracterizou A metáfora viva como sendo um “livro difícil, às vezes de leitura
ingrata” (1997, p.265). Em nossa opinião, esse parecer de Gagnebin, bem como a justificativa
apresentada para o mesmo, deve ser estendido para as demais obras examinadas nesta
dissertação: Temps et Récit e Soi-même comme un autre podem igualmente ser consideradas
obras difíceis e de leitura ingrata, pois, assim como em A metáfora viva, também nelas
Ricoeur, além de dialogar com a tradição filosófica clássica e com autores adeptos da filosofia
analítica, desenvolve “discussões técnicas agudas”, alinhavando nesses textos conceitos
oriundos dos mais diversos ramos das ciências humanas. Assim, uma aproximação à obra
ricoeuriana resulta sempre uma tarefa muito árdua. Não poderia ter sido diferente com o nosso
“exercício de leitura”: nos capítulos que compõem esta dissertação, em vista de melhor
contextualizar a reflexão de Ricoeur acerca da imaginação em cada uma das obras
examinadas, além de acompanhar a densa argumentação mobilizada pelo filósofo para
defender suas teses, constatamos aquilo mesmo que Morgado Heleno assinalara no início de
sua tese: “escrever sobre Ricoeur é percorrer a história da filosofia, o que significa pensar não
só a história da hermenêutica, mas também a história da filosofia em sua generalidade”
(HELENO, 2001, p.17). Realmente, perante a vasta erudição filosófica de Paul Ricoeur, quem
deseja penetrar no pensamento deste filósofo deve estar preparado para atravessar com ele a
história da filosofia e se confrontar com autores tão diferentes quanto distantes no tempo.
Entretanto, aquilo que de início constituía um desafio, gradativamente se transformou
num ganho: a “diferença de potencial” entre Ricoeur e a maioria de seus leitores, acaba por
enriquecer estes últimos. A erudição filosófica de P. Ricoeur, um dos fatores que justifica a
introdução do mesmo no rol dos grandes pensadores da segunda metade do século XX, não
apenas propicia ao leitor uma ampliação do cabedal de suas referências bibliográficas, mas,
sobretudo, oferece-lhe um determinado estilo de filosofar: Ricoeur arquitetou, em mais de
meio século de labor intelectual, uma filosofia dialógica, construída pela escuta e pela
reapropriação crítica de autores clássicos e contemporâneos. Assim sendo, conforme pôde ser
atestado ao longo da presente dissertação, não apenas fomos enriquecidos com as pertinentes
leituras que Ricoeur fez de Aristóteles (Poética e Ética a Nicômaco), Agostinho (Livro XI das
Confissões), Kant (Metafísica dos Costumes) e Husserl (Meditações Cartesianas), mas
também com o exame que ele fez de obras de autores contemporâneos tais como: N.
Goodman, Max Black, N. Frye, C. Bremond, R. Ingarden, Strawson, MacIntyre, Derek
Parfit, dentre outros. Além disso, pudemos testemunhar também o esforço ricoeuriano de
articular, em sua argumentação, a precisão oriunda da filosofia analítica com a tradição
fenomenológica e hermenêutica, de tal modo que o pensamento de Paul Ricoeur já foi
caracterizado como sendo uma espécie de “conversação triangular” entre a filosofia reflexiva
francesa, a filosofia fenomenológico-hermenêutica alemã e a filosofia analítica anglo-
saxônica.
Em função de seu estilo filosófico, Ricoeur emerge no cenário intelectual da segunda
metade do século XX não como um pensador da ruptura, mas como um filósofo que, em meio
às grandes tendências da filosofia contemporânea, foi capaz de articulações conceituais
surpreendentes. Se por um lado, essa estratégia filosófica dificulta a inserção do pensamento
ricoeuriano na taxionomia filosófica usual, acarretando o risco de confundi-lo com um
sincretismo filosófico; por outro, esse esforço de integrar tradições filosóficas, em princípio
estranhas umas às outras, constitui uma relevante e original contribuição à questão da
linguagem no pensamento filosófico contemporâneo. De fato, olhando por esse prisma, a obra
A metáfora Viva pode ser considerada a inauguração de uma assimilação, totalmente inédita
no contexto filosófico francês dos anos 70, dos trabalhos da filosofia analítica anglo-saxônica,
o que nos permite dizer que Ricoeur, a partir dessa obra, procurou construir uma ponte
ligando a chamada “filosofia analítica” à chamada “filosofia continental” (cf. DOSSE 1997,
p.428). Com essa sua tentativa, ele navegou contra a corrente, que, segundo Richard Rorty,
“um dos fatos notáveis sobre a filosofia contemporânea é que os filósofos não-anglófonos não
lêem muita filosofia anglófona, e vice-versa”. O pensador norte-americano lamenta isso, pois
acredita que “o trabalho mais interessante que vem sendo feito nas duas tradições apresenta
consideráveis interseções” (cf. RORTY, 2000, p.55).
À luz do que acabamos de mencionar, confirma-se, portanto, como disse Olivier
Mongin, a existência de “uma presença contemporânea da obra de Ricoeur”. Essa “presença
contemporânea” de Ricoeur é garantida não só pelo fato de sua produção filosófica ter sido
encerrada muito recentemente ou por ele ter discutido, ao longo de mais de meio culo de
produção intelectual, os principais problemas filosóficos de nosso tempo, e travado
interessantes debates com os principais pensadores do século XX, mas, a nosso ver, sobretudo
porque Paul Ricoeur juntamente com Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer é
um dos expoentes da hermenêutica filosófica contemporânea, cuja obra contribuiu
significativamente para que a filosofia entrasse na “idade hermenêutica da razão”.
A originalidade, consistência e pertinência da hermenêutica elaborada por Ricoeur foi,
uma vez mais, confirmada pela presente dissertação, dado que a necessidade de contextualizar
a temática da imaginação no percurso filosófico ricoeuriano, exigiu uma árdua travessia pelas
várias etapas do itinerário hermenêutico de Paul Ricoeur. Esse itinerário tem como ponto de
partida a hermenêutica centrada sobre as estruturas semânticas de duplo sentido (símbolos),
entendida como uma etapa intermediária entre o reconhecimento geral do caráter lingüístico
da experiência e uma definição da hermenêutica como interpretação dos textos. Ao longo
desse trajeto, Ricoeur diverge do que é proposto pela hermenêutica romântica
(Schleiermacher), assumindo que a tarefa da hermenêutica não mais se define pela capacidade
de se tornar contemporâneo à genialidade de um autor; ele acolhe criticamente os contributos
da análise estrutural, ao defender que a objetivação do discurso em uma obra estruturada não
suprime o fato de a linguagem visar outra coisa que a si mesma. Nosso filósofo incorpora
também a reflexão de G. Frege que propõe a distinção entre sentido (o que é dito) e referência
(aquilo de que se fala), para finalmente sustentar que a hermenêutica, tal como Ricoeur a
entende, apresenta uma dupla tarefa intimamente ligada ao par sentido-referência: 1)
reconstruir a dinâmica interna que preside a estruturação de um texto; 2) restituir ao texto a
capacidade de se projetar fora de si mesmo e de engendrar um mundo que será
verdadeiramente a “coisa” do texto.
Através desta dupla tarefa da hermenêutica, conforme tivemos oportunidade de
mostrar, Ricoeur articula dialeticamente o tradicional dualismo metodológico entre explicação
e compreensão. Por um lado, ressaltando a função positiva atribuída à noção de
distanciamento em relação à experiência de pertença, o que legitima, por sua vez, as
abordagens objetivantes do texto. Por outro lado, evidenciando que o acesso ao sentido pleno
de um texto se quando o mesmo é atualizado na vida dos leitores que se apropriam do
horizonte de experiência possível projetado pelo próprio texto. Através de um apelo à
imaginação do leitor, o texto, aumentando a capacidade do leitor de ver o mundo
diferentemente e de refazer a realidade, convoca-o a oferecer seu mundo como espaço
ontológico das operações de sentido e referência/ configuração e refiguração. Assim, para
Ricoeur, a significação de um texto advém da interseção entre o mundo do texto e o mundo de
seus leitores. Por isso mesmo, de acordo como a proposta ricoeuriana, o trabalho da
interpretação visa “reconstruir o arco inteiro das operações pelas quais uma obra se eleva
sobre o fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dada por um autor a um leitor que a
recebe e assim muda seu agir” (1983, p.106), de tal forma que, à luz da tríplice mimèsis
elaborada pelo autor em Temps et Récit, a tarefa hermenêutica acaba sendo a de articular o
mundo por trás do texto (mimèsis I), o mundo configurado pelo texto ( mimèsis II) e o mundo
adiante do texto (mimèsis III), tarefa essa que permanece eminentemente existencial, que
desemboca numa apropriação do mundo do texto pelo leitor.
Como pôde ser notado também ao longo desta dissertação, há um processo de
alargamento da concepção ricoeuriana de hermenêutica. O paradigma desta concepção mais
ampla de hermenêutica é a noção de texto, não só restrita ao discurso escrito, mas enquanto
susceptível de ser estendida a outras realidades. Para Ricoeur a compreensão da realidade
humana é mediatizada pelos textos, sobretudo os narrativos. Assim, de acordo com o ponto de
vista do filósofo, tudo o que é passível de ser compreendido pode ser considerado como um
texto. Em outros termos, para ele, compreende-se a ação humana, a história, a identidade na
medida em que essas realidades podem também ser tratadas como um texto. Mesmo centrada
no paradigma textual, o objetivo último de todo processo hermenêutico é eminentemente
existencial, uma vez que culmina numa hermenêutica do si, cuja condição é a crítica às
ilusões do sujeito. Dessa forma, para Ricoeur, a hermenêutica, em suma, é uma teoria das
operações da compreensão em sua relação com a interpretação de texto, cujo termo é a
interpretação de si por um sujeito que é permanentemente desafiado pela busca de si mesmo.
O itinerário hermenêutico ricoeuriano foi percorrido por nós, ao longo dessa
dissertação, visando inquirir o estatuto da imaginação no mesmo. Nosso “exercício de leitura”
revelou que a imaginação desempenha um papel-chave na hermenêutica ricoeuriana, uma vez
que ela é aproximada do dinamismo criador que opera tanto na esfera da poética, quanto no
campo da ação, incidindo também na reflexão ética elaborada por Ricoeur no âmbito da
hermenêutica do si. Assim sendo, no que segue, apresentamos uma breve recapitulação dos
principais elementos caracterizadores da imaginação que foram explicitados pelas análises
desenvolvidas nos capítulos precedentes.
Iniciemos a retomada dos principais traços da imaginação que podem ser extraídos das
análises empreendidas nos capítulos precedentes, lembrando que a teoria da metáfora
elaborada por Ricoeur ofereceu-nos um novo acesso ao problema da imaginação: convidando-
nos a articulá-lo ao fenômeno da inovação semântica que caracteriza o uso metafórico da
linguagem, Ricoeur propõe que a imagem não é um resíduo ou um apêndice da percepção, ao
contrário, para ele, “nossas imagens são faladas antes de serem vistas”. Em outros termos, a
explicação ricoeuriana acerca do funcionamento da dinâmica metafórica ajudou-nos a
compreender como a imagem deriva da linguagem e não da percepção. Possibilitou-nos
também verificar que Ricoeur se posiciona num front contrário ao daqueles que, ao longo dos
séculos, anatematizaram a imaginação e desqualificaram-na como sendo “a louca da casa”.
De acordo com o que tivemos oportunidade de mostrar no primeiro capítulo desta
dissertação, a “metáfora viva” é o exemplo mais nítido do poder da linguagem de criar sentido
através da aproximação inesperada de campos semânticos afastados, de tal modo que uma
nova pertinência semântica vem à tona apesar da inconsistência semântica e lógica no nível
do sentido literal Nesse processo de criação de sentido, isto é, de emergência de uma nova
pertinência semântica, a imaginação exerce papel preponderante: é a capacidade de imaginar
que está atuando na metamorfose de sentido presente na metáfora viva, de tal forma que, em
suma, “imaginar é, em primeiro lugar, reestruturar os campos semânticos” (RICOEUR, 1986,
p.243). A inteligibilidade dessa dinâmica da imaginação presente no fenômeno da inovação
semântica, conforme tivemos oportunidade de explicitar, passa pela teoria kantiana do
esquematismo: assim como o esquematismo é um método para dar uma imagem a um
conceito, a imaginação na medida em que é uma operação para apreender o semelhante por
uma assimilação predicativa que responde ao choque semântico inicial também é mais um
método do que um conteúdo, cuja essência é dar uma imagem a uma significação emergente.
Por isso que, ao invés de uma percepção evanescente, a imagem é uma significação
emergente. Além disso, destacamos também que o esquematismo da atribuição metafórica se
encarrega de difundir o sentido nos diversos campos sensoriais. Entretanto, o “exercício de
leitura” de A metáfora viva à luz do problema da imaginação revelou-nos também que a
imaginação contribui para a suspensão da referência comum e para a projeção de novas
possibilidades de redescrever o mundo. Assim sendo, pôde-se evidenciar o efeito de
neutralização produzido pela imaginação, graças ao qual a dinâmica metafórica é inserida
num estado de não-engajamento com o mundo da percepção, através do qual a imaginação
cria um não-lugar em relação ao real onde um livre jogo com as possibilidades permite
ensaiar idéias e valores novos, enfim, permite ensaiar novas maneiras de ser-no-mundo.
Assim, em virtude do poder da imaginação em ato no processo metafórico, tem-se a
possibilidade de se fazer a experiência de um referente inédito e escondido sob os escombros
do referente empírico, de tal forma que a anulação da percepção apresenta-se então como
condição primeira do alargamento de nossa imaginação para além da esfera do discurso.
Tendo feito uma apresentação da teoria semântica da imaginação desenvolvida por
Ricoeur, procurou-se, no segundo capítulo desta dissertação, examinar em que medida a
mesma poderia ser alargada ao campo da ação. Se por um lado, as análises de Temps et Récit
empreendidas nas páginas anteriores não deixam dúvidas acerca do quanto a famosa trilogia
está em continuidade com as reflexões desenvolvidas em A Metáfora Viva, de tal modo que
“na generalidade, a função da imaginação na inovação semântica, presente na metáfora e na
narrativa, é a mesma e obedece às mesmas influências do esquematismo kantiano”
(CASTRO, 2001, p.268), por outro, a trilogia publicada no início dos anos 1980 avança o
pensamento ricoeuriano na direção do campo prático, deslindando, além daquelas
anteriormente apontadas, novas funções para a imaginação semântica. Defendendo que,
através da mediação da leitura, os enunciados narrativos visam re-figurar a realidade do leitor,
desvelando-lhe dimensões dissimuladas da experiência humana e transformando sua visão do
mundo, Ricoeur propõe que a refiguração proporcionada pela narrativa constitui uma ativa
reorganização de nosso ser-no-mundo, conduzida pelo leitor, ele mesmo convidado pelo texto
a tornar-se leitor de si mesmo. Para o filósofo, a imaginação apresenta-se exatamente como o
segredo da capacidade de seguir o contar de uma história e de reconstruir a sua rede de
ligações, permitindo que a narrativa exerça uma influência no imaginário de quem recebe e
segue a história. Considerando que a função mimética da narrativa é uma aplicação particular
do problema da referência metafórica à esfera do agir humano, o filósofo francês assinala que
a função mimética das narrativas é exercida preferencialmente no campo da ação e de seus
valores temporais, de tal modo que as intrigas que nós inventamos constituem meios
privilegiados pelos quais a experiência temporal confusa, informe e muda é reconfigurada. A
narrativa, remodelando as estruturas e dimensões da ação humana, segundo a configuração
imaginária da intriga, refaz a realidade práxica, intervindo assim no mundo da ação para
transfigurá-lo. Conforme foi detectado, a imaginação é a força motriz que põe em movimento
todo esse mecanismo de refiguração do real proporcionado pelas narrativas. Pelo seu poder
esquematizante, a imaginação, através da estruturação de paradigmas de ão que preparam a
formulação de novos projetos, mediatiza a extensão da força de estruturação da linguagem
para o domínio prático da ação, criando uma zona mista onde se entrecruzam a qualidade
mimética da narrativa e as possibilidades práticas, isto é, criando uma zona mista onde a
capacidade de seguir uma história intercepta a capacidade de elaboração de projetos futuros.
Pela mediação da imaginação, instaura-se uma dialética entre projeto e narrativa: “o projeto
tomando da narrativa o seu poder de estruturação e a narrativa recebendo do projeto a sua
capacidade de antecipação” (1986, p.249). Assim sendo, num primeiro momento, a partir de
um “exercício de leitura” da obra Temps et Récit, ressaltou-se a função mimética da
imaginação semântica, permitindo-nos situá-la no pórtico da transição do teórico ao prático,
de tal modo que, segundo Paul Ricoeur, a elaboração de uma representação ficcional da ação
humana no âmbito da narrativa é o primeiro modo pelo qual o homem tenta compreender e
dirigir o diverso do campo prático. Por conseguinte, concluímos então que a imaginação
implicada na operação de mimèsis do real constitui um primeiro passo da generalização da
imaginação semântica para além da esfera do discurso.
Entretanto, para Ricoeur, de acordo com o que pôde ser evidenciado na seqüência do
segundo capítulo da presente dissertação, a imaginação não se restringe a participar de uma
atividade mimética que redescreve uma ação prévia. Ultrapassando a mera reconstrução
descritiva do agir humano, as análises ricoeurianas, para além desta função mimética da
imaginação aplicada à ação, possibilitaram explicitar a existência de uma poética da ação.
Explorando a tese segundo a qual não existe ação sem imaginação, as análises ricoeurianas
mediante uma breve retomada da análise fenomenológica do agir individual evidenciaram a
existência de uma função projetiva e de uma força práxica da imaginação, pertencentes ao
dinamismo mesmo do agir humano. O exame desta “imaginação antecipadora do agir”
mostrou que, no âmbito de uma fenomenologia do agir individual, a análise ricoeuriana
aponta para a existência de uma progressão desde a esquematização dos projetos até as
variações imaginativas do “eu posso”, realçando a importância da imaginação como função
geral do possível prático. Ainda na linha de uma poética da ação, a análise fenomenológica do
agir intersubjetivo elaborada a partir do exame ricoeuriano da proposta husserliana de
constituição analógica do outro revelou que a imaginação desempenha também uma função
empática. Para Paul Ricoeur, a imaginação implicada na constituição analógica do outro
funciona tal qual o esquematismo kantiano na experiência objetiva, ou seja, operando na
gênese de novas conexões, a imaginação é o esquematismo próprio à constituição da
intersubjetividade na apercepção analógica, tendo como finalidade manter vivas todas as
espécies de mediações que constituem o elo histórico, mediante o combate, no anonimato das
relações mútuas em sociedades burocráticas, à “distorção sistemática da comunicação”, ao
fechamento do diálogo e à reificação do processo social. Dessa forma, a imaginação se liga às
condições de possibilidade da experiência histórica, uma vez que ela tem por competência
preservar e identificar a analogia do ego, em todas as relações com os nossos
contemporâneos, os nossos antecessores e os nossos sucessores. Entretanto, conforme foi
analisado no último item do segundo capítulo, para Ricoeur, o elo analógico que faz de todo
homem o meu semelhante nos é acessível através de determinadas práticas imaginativas,
tais como a ideologia e a utopia. Essa observação remeteu nossa análise para o exame
ricoeuriano das significações e funções específicas a cada uma destas duas modalidades do
imaginário social, a fim de explicitarmos o modo como a imaginação está implicada no nível
mais profundo de cada uma delas, ou seja, a fim de apontarmos como a imaginação está
implicada na função integradora da ideologia e na função libertadora da utopia, o que nos
permitiu aclarar a função sócio-cultural da imaginação. Além disso, pudemos verificar que,
segundo as análises empreendidas por Ricoeur, a dialética entre ideologia e utopia ilumina a
questão não-resolvida da imaginação como problema filosófico. Para o filósofo, o imaginário
social não difere fundamentalmente daquilo que conhecemos do imaginário individual. Assim
sendo, os dois pólos do imaginário social permitem ilustrar a dupla vertente da imaginação,
ou seja, ideologia e utopia podem ser situadas, respectivamente, como figuras da imaginação
reprodutora e da imaginação produtora.
No terceiro capítulo após termos explicitado a emergência do problema da
imaginação semântica no seio das reflexões ricoeurianas sobre a metáfora e como essa mesma
imaginação semântica (a partir da função mimética que a imaginação desempenha no âmbito
da narrativa; da função projetiva que faz dela uma força antecipadora no domínio do agir
individual; da função empática oriunda da participação da imaginação na constituição
analógica do outro na esfera do agir intersubjetivo e da função sócio-cultural desempenhada
pela imaginação presente no par ideologia-utopia na esfera do imaginário social) articula-se
ao campo da ação, procurou-se mostrar como a imaginação faz-se presente no âmbito da
hermenêutica do si elaborada por Ricoeur em Soi-même comme un autre. Pelo que ficou
assinalado no referido capítulo, tendo como moldura a articulação entre narratividade e ética
sugerida por Ricoeur e considerando a proposta ricoeuriana de que uma imaginação ética se
alimenta de imaginação narrativa, existe uma poética subjacente ao projeto ético ricoeuriano
consignado nos estudos 7, 8 e 9 de Soi-même comme un autre. Conforme pôde ser
demonstrado a partir dos contributos de Thomasset e Kearney, a imaginação está interligada
aos diversos níveis da reflexão ética elaborada por Ricoeur, sendo que essa imaginação ética
necessita sempre da “recriação” poética proporcionada pela imaginação narrativa.
Ao término da recapitulação dos principais traços da imaginação que podem ser
extraídos das análises precedentes, pode-se afirmar que indubitavelmente a imaginação é uma
realidade implícita e funcional que perpassa a totalidade do itinerário hermenêutico
ricoeuriano percorrido entre 1970 e 1990, ou seja, a imaginação está subjacente ao percurso
que vai da hermenêutica do texto à hermenêutica do si, passando pela hermenêutica da ação.
Assim sendo, pode-se afirmar que, embora dispersa nas várias obras publicadas no período
supracitado, uma filosofia da imaginação em Paul Ricoeur, que tentamos sintetizar nesta
dissertação. Essa filosofia da imaginação, em última análise, liga-se à poética da vontade
anunciada por Ricoeur no início de sua carreira filosófica.
O jovem Ricoeur, conforme foi lembrado no inicio desta dissertação, concebeu em sua
tese de doutorado um projeto muito amplo e ambicioso: tratava-se não de elaborar uma
análise eidética e uma investigação empírica da vontade, mas estava previsto também a
elaboração de uma poética da vontade. Na proposta ricoeuriana inicial, lembra-nos Michel
Philibert, um dos primeiros comentadores franceses da obra de Paul Ricoeur, o terceiro tomo
projetado constituiria uma poética da vontade que formularia as condições da libertação, da
regeneração, da re-efetuação de nossa liberdade alienada na falta. Contudo, constata Philibert,
mais de vinte anos após a aparição de Le volontaire et l’involontaire , a elaboração de tal
poética da vontade parecia tão distante quanto no primeiro dia em que foi proposta (cf. 1971,
p.46). De fato, situados agora no final do itinerário filosófico percorrido por Ricoeur,
podemos afirmar que, concebida inicialmente como sendo um discurso sobre a vontade
liberada e reconciliada, cujas raízes estariam fincadas na criatividade constituinte do ser
humano, a poética da vontade anunciada por Ricoeur jamais foi concretizada pelo filósofo
numa obra sistemática. Procurando uma explicação para essa inconcretude do projeto
filosófico inicial de Ricoeur, Maria Gabriela Azevedo e Castro, em sua tese de doutorado,
assinala que o autor de Le volontaire et l’involontaire , desde o início de sua produção
filosófica, tem consciência da força que a imaginação possui na constituição do homem,
apresentando-a como a dimensão capaz de libertar o homem e colocá-lo na abertura de seus
possíveis. De acordo com essa perspectiva, a geração de um querer livre é obra da
imaginação. Assim, para a professora portuguesa, é em função deste lugar proeminente dado à
imaginação, desde o alvorecer de seu pensamento, que Ricoeur promete uma poética da
vontade. Contudo, ainda segundo Castro (2002), a publicação de Finitude et culpabilité levou
o filósofo francês a se afastar de seu projeto inicial, deslocando definitivamente o seu
itinerário filosófico para o domínio da linguagem, o que implicou uma inoportunidade
constante de se debruçar de um modo sistemático sobre a imaginação. Para a professora
portuguesa, caso Ricoeur tivesse se colocado, de imediato, na vertente da imaginação, teria
sido possível, então, a elaboração de uma poética da vontade, onde a imaginação criadora
seria a força geradora de um querer livre. Como pôde ser detectado nesta dissertação, somente
quando Ricoeur passou a sublinhar sobretudo a partir de seus estudos sobre a metáfora e a
narrativa , o poder criativo da linguagem e a força práxica da imaginação, é que elementos
dessa poética puderam ser explicitados. Ou seja, como também foi evidenciado na presente
dissertação, somente a partir de 1970, Ricoeur pôde dar passos na vertente poética de seu
projeto filosófico, em função de ter feito da imaginação a dinâmica originária do poético, não
apenas do poético restrito à produção artística, mas do poético articulado à ação. Dessa forma
na medida em que Ricoeur, mesmo que não tenha sido de forma sistemática, numa obra
específica, procurou articular a imaginação à criatividade regulada atuante na metáfora e na
narrativa e à criatividade presente no domínio das possibilidades inerentes às ações humanas
, pode-se inferir que o estatuto da imaginação no pensamento ricoeuriano é o de um
operador que viabiliza a articulação entre criatividade poética e a dimensão prática da
realidade humana, articulação essa que se desdobra num convite a pensar junto na linha de
uma complementaridade de abordagens que se alimentam mutuamente, sem confusões de
métodos o agir e o poético , o ético e o poético, contribuindo também para explicitar que o
poder criador da imaginação é o motor do processo pelo qual o homem torna-se si mesmo (cf.
DOSSE:1997, p.34s).
Por fim, visando arrematar a explicitação desta proposta ricoeuriana de articulação
entre criatividade poética e o domínio prático do agir humano, fazemos referência à entrevista
a Edmond Blattchen, na qual Paul Ricoeur propôs como símbolo de seu fazer filosófico um
quadro de Rembrandt intitulado “Aristóteles contemplando um busto de Homero”.
Analisando o referido quadro, ele observa que “o filósofo” aparece com vestimentas utilizadas
na época de Rembrandt, dado que a filosofia é sempre contemporânea” (2002a, p. 52),
enquanto que “o poeta” está imobilizado numa estátua, que “o poeta está de algum modo
recolhido em sua obra escrita que é sempre representada por um busto” (2002a, p.52). Além
de Aristóteles, figura do filósofo, e de Homero, figura do poeta, também uma terceira
personagem que representa “o político”: trata-se de Alexandre, o grande, figurado no
medalhão preso na roupa daquele que fora seu preceptor. De acordo com a análise
ricoeuriana, no quadro de Rembrandt, na verdade, Aristóteles propriamente não contempla o
busto de Homero, mas o toca. Isso significa que o filósofo não começa do nada, nem mesmo
começa a partir da filosofia, ou seja, a obra filosófica, tal qual Ricoeur a compreende, começa
a partir do poético. Referindo-se ao significado da medalha com a face de Alexandre que
Aristóteles conserva junto de si, Ricoeur assinala que “o político está sempre silenciosamente
presente, discretamente presente, no pano de fundo da relação entre poética e filosofia (...).
Essa medalha está para nos lembrar que a filosofia não pode continuar sua obra de reflexão
sobre uma palavra que não é a sua, a palavra poética, a não ser que ela continue a manter uma
relação ativa com a política, da qual está encarregada” (2002a, p.54). Entretanto, no quadro de
Rembrandt, o filósofo que toca o poético e está encarregado de pensar o político tem o
seu olhar orientado para outro lugar. Ricoeur não nomeia esse outro lugar para o qual o olhar
filosófico se dirige. Aqui se situa a última lição que queremos reter deste exercício de
leitura” que, imantado pela temática da imaginação, teve como objeto o pensamento
hermenêutico ricoeuriano elaborado entre 1970 e 1990: o logos filosófico deve ter diante de si
um horizonte permanentemente aberto a fim de acolher “tudo o que se puder imaginar”, ou
seja, o logos filosófico deve se orientar para o possível, enquanto aquilo que se pode
imaginar.
BIBLIOGRAFIA
1
Obras de Paul Ricoeur
RICOEUR, Paul. Finitude et Culpabilité. Paris, Ed. du Seuil, 1960
______. De l’interprétation: essai sur Freud, Paris, Ed. du Seuil, 1965
______. Le Conflit des interprétations: essais d’ heméneutique, Paris, Ed du Seuil, 1969
______. La métaphore et le problème central de l'herméneutique". Revue Philosophique de
Louvain, tome 70, n., février 1972, pp. 93-112.
______. La Métaphore vive. Paris: Éd. du Seuil, 1975. [tradução brasileira: A metáfora viva.
São Paulo: Loyola, 2000
]
______. Le Discours de l’action. La semantique de l’action. Paris: Press du CNRS, 1977.
______. “The Metaphorical Process as Cognition, Imagination and Feeling”. Critical Inquiry,
vol. V, nº 1, outono de 1978, pp. 143-59.
______. “La bible et l’imagination”. Revue d’histoire et de philosophie religieuses, vol 62,
4, octobre-décembre de 1982, pp. 339-360
______. Temps et Récit I. Paris: Éd. du Seuil, 1983. (col. Points. Essais)
______. Temps et Récit II. Paris: Éd. du Seuil, 1984. (col. Points. Essais)
______. Temps et Récit III. Paris: Éd. du Seuil, 1985. (col. Points. Essais)
______. Du Texte à l’action. Essais d’Herméneutique II. Paris: Ed, Du Seuil, 1986. (col.
Points. Essais)
______. Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação. Lisboa, Ed. 70,
1987
______. "L'identité narrative". Esprit, nº 140-141, Juillet-Août/1988, p. 295-304
______. “L’identité narrative” in P. Bühler et J.F. Habermacher (org.) La narration. Quand le
récit devient communication, Genéve, Labor et Fides, 1988a, pp. 278-300
______. “Mimèsis, référence et refiguration dans ‘Temps et récit”. Études
phénoménologiques, tomo VI, n. 11, pp. 29-40, 1990a.
______. Soi-même comme um autre. Paris: Éd. du Seuil, 1990.
1
A bibliografia aqui apresentada não pretende reunir a totalidade dos textos de P. Ricoeur. Reunimos apenas as
obras do autor que serviram de suporte direto para esta dissertação, bem como outras obras e artigos de Ricoeur
e textos de comentadores que foram, de algum modo, utilizados por nós. Para uma recolha bibliográfica
exaustiva deve-se consultar: D. VANSINA, Paul Ricoeur. Bibliographie systématique de sés écrits et des
publications consacrées à as pensèe (1935-1984), Leuven, Éditions de l´Institut superieur de philosophie, 1985 e
do mesmo autor, “bibliographie de Paul Ricoeur (compléments jusqu’em 1990” . Revue philosophique de
Louvain 89 (1991). Muitos textos de Ricoeur de “difícil acesso estão sendo disponibilizados em:
http://www.fondsricoeur.com.fr. Neste mesmo site pode ser encontrada a bibliografia secundária mais recente
sobre o filósofo francês, além de gravações (áudio) de suas entrevistas, dentre outros materiais de difícil acesso.
Em tempo, o “Fonds Ricoeur” funciona junto à Faculdade Protestante de Paris, para onde, após a morte de
Ricoeur, foi destinada a biblioteca particular do filósofo. Para essa instituição foram encaminhados também os
manuscritos das obras publicadas por Ricoeur.
______. “’Soi-même comme un autre’. Entretien avec Gwendoline Jarczyk”. Rue Descartes,
n. 1-2, 1991, pp. 225-237.
______. A L´Ècole de la Phénonénologie. 3. ed. Paris: J. Vrin, 1993
______. La critique el la conviction: entretien avec François Azouvi e Marc de Launay. Paris,
Calmann-Lévy, 1995a.
______. Réflexion Faite: Autobiographie intellectuelle. Paris: Éditions Esprit, 1995.
______. L’ideologie et l’utopie. Paris: Ed du Seiul, 1997
______. “Resposta à Ted Klein” in HAHN, Lewis Edwin. A Filosofia de Paul Ricoeur,
Lisboa, Ed. Instituto Piaget, 1999
______. La mémoire, l’histoire e l’oubli. Paris: Seuil, 2000
______. “Lectio Magistralis” in JERVOLINO, D. Paul Ricoeur: une herméneutique de la
condicion humnaine. Paris, Ed. Ellipses , 2002
______. Paul Ricoeur: o único e o singular/. Tradução Maria Leonor F. R. Loureiro. São
Paulo: Ed UNESP; Belém , PA: Ed. da universidade Estadual do Pará, 2002a.
______. Parcours de la reconnaissance Trois études. Paris, Éditions Stock, 2004.
[Tradução brasileira: Percurso do reconhecimento. São Paulo, Loyola, 2006]
______. “O texto como identidade dinâmica” in ______. A hermenêutica bíblica, São Paulo:
Loyola, 2007, p. 117-129.
Sobre Paul Ricoeur
ABEL, Olivier et PORÉE, Jérôme. Le vocabulaire de Paul Ricoeur, Paris, Ed. Ellipses, 2007
ALMEIDA, Danilo. Consciência de si em Paul Ricoeur. Consciência de si e o sentido da
ação. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Univ. Metodista de SP, 1992.
ANDRADE, Abrahão Costa. Elementos de uma Filosofia da experiência na obra de Paul
Ricoeur, Tese de Doutorado, São Paulo, USP, 2001.
ANDRADE, Abrahão Costa. O POTE E A RODILHA: Tempo e imaginação como história
por fazer segundo o pensamento de Paul Ricoeur. Natal, EDUFRN - Editora da
UFRN, 2006, 134p.
BASANGUKA, A. Marcel Madila. "Étique et imagination chez Paul Ricoeur". Revue d'etique
et de theologie moral. 2005
BLAMEY, Kathleen. Do ego ao si: um itinerário filosófico” in HAHN, Lewis Edwin. A
Filosofia de Paul Ricoeur, Lisboa, Ed. Instituto Piaget, 1999.
BORDINI, M. G. "Tempo e Narrativa". Veritas, Porto Alegre, V. 4, nº 162 (2), p. 335-347
CASTRO, Maria Gabriela Azevedo. Imaginação em Paul Ricoeur. Lisboa: Instituto Piaget,
2002, 321pp.
CESAR, Constança M. (org.) Paul Ricoeur: ensaios. São Paulo, Paulus, 1998.
______. Le Problème du temps chez Paul Ricoeur”. Il Protagora (1986), n
os
9 e 10, pp. 65-
72.
______ “ Responsabilidade e Cosmos”, Revista Reflexão, Campinas, n.69, pp. 1997.
______ “A ontologia hermenêutica de Paul Ricoeur”, Revista Reflexão, Campinas, n. 71, pp.
1998.
______ “Ética e Hermenêutica: a crítica do Cogito em Paul Ricoeur”. Revista Reflexão,
Campinas, n. 63, 1995.
______ A hermenêutica Francesa: Paul Ricoeur. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002
COSTA, Miguel D. “A lógica do sentido na filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur”. Revista
Portuguesa de Filosofia, Lisboa, tomo XLVI, fasc. 1, pp. 143-168, 1990.
DOSSE, F. Paul Ricoeur. Le Sens d’une vie. Paris, Éditions la Decouverte, 1997.
ESPRIT, “Spécial Paul Ricoeur”, Julho-Agosto, 1988.
FARIA, Nilton Júlio de. A Tragédia da Consciência: Fragmentos filosóficos sobre a
descentralização do “cogito” , Dissertação de Mestrado, Campinas, PUCCAMP, 1995.
FRANCO. Sérgio de Gouvêa. Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul Ricoeur, São
Paulo, Edições Loyola, 1995.
FOESSEL, M. e MONGIN, O. De l´homme coupable à homme capable. Paris, adpf, 2005
(disponível em www.adpf.asso.fr)
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur”. Estudos
Avançados, São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da USP, vol. 11, n. 30, pp. 261-
272, maio/agosto 1997.
GERHART, Mary, “Imagination and history in Ricoeur’s interpretation theory”. Philosophy
today, 23, nº1, Spring, 1979, pp. 255-284.
GILBERT, S.J., P. “Paul Ricoeur: réflexion, ontologie et action”, NRT 117, pp. 339-363; 552-
564, 1985.
GILBERT. Muriel. L’identité narrative: une reprise à partir de Freud de la pensée de Paul
Ricoeur, Paris: Labor et Fides, 2001.
GREISCH, J. e KEARNEY, R. Paul Ricoeur: Les metamorphoses de la raison
herméneutique, Paris: Les Éditions du Cerf, 1991.
GREISCH, J. Paul Ricoeur: L’itinérance du sens. Grenoble, Ed. Millon, 2001
HAHN, Lewis Edwin. A Filosofia de Paul Ricoeur, Lisboa, Ed. Instituto Piaget, 1999.
HAKER, H. "Narrativa e identidade moral na obra de Paul Ricoeur". Conciliun, Petropólis,
2000,
HELENO, José M. Morgado. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Lisboa: Instituto
Piaget, 2001, 428pp.
JAVET, Pierre. “Imagination et réalité dans la philosophie de Paul Ricoeur”. Revue de
théologie et de philosophie, n.5, pp. 481-497, 1966-1967.
JERVOLINO, D. Paul Ricoeur: une herméneutique de la condicion humnaine. Paris, Ed.
Ellipses , 2002
_____ "La question de l'unité de l'oeuvre de Ricoeur à la lumière de ses derniers
développentents: Le paradigme de la traduction". Archives de Philosophie, 67, 2004,
pp. 559-668
KEARNEY, R. (ed.) Paul Ricoeur: The Hermeneutics of Action, Londres: Sage publications,
1996.
_____ “L’imagination herméneutique et le postmoderne” in GREISCH, J. e KEARNEY, R.
Paul Ricoeur: Les metamorphoses de la raison herméneutique, Paris: Les Éditions du
Cerf, 1991.
KEMP, P. “Pour une éthique narrative: un pont entre l’éthique et la réflexion narrative chez
Ricoeur” in GREISCH, J. e KEARNEY, R. Paul Ricoeur: Les metamorphoses de la
raison herméneutique, Paris: Les Éditions du Cerf, 1991.
LEAL, Ivanhoé Albuquerque. História e ação na teoria da narratividade de Paul Ricoeur.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
MAGALHÃES, Theresa C. “Tempo e Narração: A proposta de uma poética da narração em
Ricoeur”, Síntese, n. 39, pp. 25-39, 1987.
MARTÍNEZ, T. e CRESPO, R. (eds) Paul Ricoeur: Los caminos de interpretación, actas del
Symposium Internacional sobre el Pensamiento Filosófico de Paul Ricoeur, Granada,
23-27 de Novembro de 1987, Barcelona: Editorial Anthropos, 1991.
MATTEO, Vincenzo Di. “Fenomenologia do Espírito e Psicanálise: Aproximações” in
Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, Ano - N.º 02 Junho de 2005 (acesso em
20/09/2008).
MICHEL, Johann. "Le modernisme paradoxal de Paul Ricoeur", Archives de Philosophie, nº
67, 2004, pp. 643-657.
______ Paul Ricoeur: une philosophie de l´agir humain, Paris, Éditions du CERF, 2006
MONGIN, O. Paul Ricoeur, Paris, Éditions du Seuil, 1994
PETIT. Jean-Luc. "Herméneutique et Sémantique chez Paul Ricoeur". Archives de
Philosophie, 48, 1985, p. 575-589.
PHILIBERT, Michel. Paul Ricoeur ou la liberté selon l'esperance, Paris, Ed. Seghers, 1971.
______. “Imaginação filosófica: Paul Ricoeur como cantor de ruínas” in HAHN, Lewis
Edwin. A Filosofia de Paul Ricoeur, Lisboa, Ed. Instituto Piaget, 1999.
PIVA, Edgar Antônio. A Justiça das Instituições. Ética e política em Paul Ricoeur,
Dissertação de Mestrado, Belo Horizonte, UFMG, 1997.
RENAUD, M. “Fenomenologia e Hermenêutica. O projeto filosófico de Paul Ricoeur”.
Revista Portuguesa de Filosofia, Lisboa, tomo XLI, fasc. 4, pp. 405-442, 1985.
RESENDE, Emílio C. Pereira. A Constituição Metafórica Originária da Linguagem e do Ser:
uma Expansão Ontológica da Tese de Ricoeur em “A metáfora viva”. Tese de
Doutorado, Belo Horizonte, UFMG, 2001.
SCHALDENBRAND, Mary. “Metaphoric imagination: Kinship thorough conflict”. In
REAGAN, Charles E., (ed.) Studies in the philosophy of Paul Ricoeur. Athens, Ohio:
Ohio University Press, 1979, pp. 57-81.
SILVA, Anacleto R. da. Uma estética da linguagem: Leitura de "A Metáfora Viva" de Paul
Ricoeur. Dissertação de Mestrado, Belo Horizonte, UFMG, 1990.
SKÚLASON, Páll. Le cercle du Sujet dans la philosophie de Paul Ricoeur. Paris,
L’Harmattan, 2001.
STEVENS, B. “Action et narrativité chez Paul Ricoeur et Hannah Arendt”. Études
Phenoménologiques, tomo I, 2, pp.93-109, 1985.
SUMARES, M. Para além da necessidade - O Sujeito e a Cultura na Filosofia de Paul
Ricoeur. Braga: Escher, 1987.
THOMASSET, Alain. Paul Ricoeur: une poétique de la morale. Leuven: Leuven University
Press, 1996.
TILLIETE, Xavier. "Reflexion et symbole: l'entreprise philosophique de Paul Ricoeur" .
Archives de Philosophie, nº 24, 1961, pp. 574-588.
TROMBETTA, Luís Carlos. Teoria do texto e hermenêutica em Paul Ricoeur. Dissertação de
Mestrado, Porto Alegre, PUCRGS, 1997.
TROTIGNON, P. “Au pays de la dissemblance - en hommage à Paul Ricoeur pour sa
contribuition à une philosophie de l’imaginaire”, Revue de Métaphisique et de Morale,
Tomo 89, nº 1, pp. 1-10, 1984.
TURA, Marcelo Félix. As fontes e implicações da questão da ideologia em Paul Ricoeur.
Londrina, Ed. UEL, 1999.
VALDÉS, M. (ed.) A Ricoeur Reader: Reflection and imagination. Toronto: University of
Toronto Press, 1991.
VANSINA, Dirk F. “Esquisse, orientation et signification de l’entreprise philosophique de
Paul Ricoeur”, Revue de Métaphisique et de Morale, 2 (1964), pp. 179-208 e 3,
305-321.
VVAA. Hommage à Paul Ricoeur (1913-2005). Paris, UNESCO, 2006
OUTROS TEXTOS
ARAÚJO, Alberto F. e BAPTISTA, Fernando P. (orgs) Variações sobre o imaginário:
Domínios, Teorizações e Práticas hermenêuticas. Porto, Instituto Piaget, 2003, 672pp.
ARISTÓTELES. De Anima. São Paulo: Ed. 34, 2006
________ Poética. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996
________ Ética a Nicômaco. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996
AZÚA, Javier Bengoa Ruiz de. De Heidegger a Habermas: Hermenéutica y
fundamentación última en la filosofia contemporánea. Barcelona: Herder, 1992.
BARRETO, Marco Heleno. A imaginação criadora na estética de Gaston Bachelard.
Dissertação de mestrado, UFMG, Belo Horizonte, 1994
______. Símbolo e sabedoria prática: Carl Gustav Jung e o mal-estar da modernidade. Tese
de doutorado, UFMG,Belo Horizonte, 2006.
BERNIS, Jeanne. A imaginação: Do sensualismo epicurista à psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1987
BLEICHER, J. Hermenêutica contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1992.
CANTO-SPERBER, M. "Le rôle de L'imagination dans la philosophie aristotélicienne de
action". In: ROMEYER-DHERBEY, G. e VIANO, C. Corps et âme: sur le De Anima
d'Aristote. Paris: J. Vrin, 1996, 555pp.
CASTORIADIS, C. “A descoberta da imaginação” In ______. Os domínios do homem: as
encruzilhadas do labirinto II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 335-372
______. “Imaginação, imaginário, reflexão” In ______. Feito e a ser feito: as encruzilhadas
do labirinto V. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, pp. 241-295
______. Imaginário e imaginação na encruzilhada” In ______. Figuras do Pensável: as
encruzilhadas do labirinto VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, pp. 125-154
CASSIRER, Ernst..Ensaio sobre o homem. São Paulo: Ed Martins Fontes, 1997.
______. A filosofia das formas simbólicas: A linguagem. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001
______. A filosofia das formas simbólicas: fenomenologia do conhecimento. São Paulo: Ed.
Martins Fontes, 1994
COÊLHO, Ildeu M. “A leitura sartreana de Husserl: o capítulo 4 de L’imagination”, Revista
Reflexão, Campinas, nº 87, 2005, pp. 11-30
DILTHEY, W. Origine et developpement de l'herméneutique. In: _____. Le Monde de
l'Esprit, tome I, Paris, 1947, pp.
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Introdução a uma arquetipologia
geral. Lisboa: Editorial Presença, 1989.
______. A imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1988.
______. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro:
Difel, 1999.
FAFIAN, M. e BARRERA J.T. La hermenéutica contemporánea. Madrid: Editorial cincel,
s/d
FELICIO, Vera Lúcia G. A Imaginação nos Quatro Elementos Bachelardianos. São Paulo,
Edusp, 1994.
FRIAS, Lincoln. A produtividade da capacidade de imaginação em Kant: as relações entre a
“Crítica da Faculdade de Juízo Estética” e a “Analítica Transcendental”. Dissertação
de Mestrado, UFMG,Belo Horizonte, 2006
FRÈRE, J. "Fonction représentative et représentation: ΦΑΝΤΑΣΙΑ ΕΤ ΦΑΝΤΑΣΜΑ selon
Aristote". In: ROMEYER-DHERBEY, G. e VIANO, C. Corps et âme: sur le De Anima
d'Aristote. Paris: J. Vrin, 1996, 555pp.
GADAMER, H-G. Verdade e Método: grandes linhas de uma hermenêutica filosófica.
GARAGALZA, L. La interpretación de los símbolos: Hermenêutica y lenguaje en la filosofia
actual. Barcelona, Editorial Anthropos, 1990.
GREISCH, J. L'age herméneutique de la raison. Paris, Ed. Du CERF, 1985.
______. Le cogito herméneutique: l'herméneutique philosophique et l'heritage cartésien.
Paris, Vrin, 2000, 282p.
HEIDEGGER, M. “La fundamentación de la metafísica en su originareidad” IN.: ________
Kant y el problema de la metafísica, México, Fondo de Cultura Económica, 1954.
HOBBES, T. O Leviatã. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2004.
HUSSERL, E. Meditações Cartesianas: Introdução à fenomenologia. São Paulo: Madras
Editora, 2001.
JAMBET, Christian. A lógica dos orientais: Henry Corbin e a ciência das formas. São Paulo:
Globo, 2006.
KANT, Immanuel. “Primeira Introdução à Crítica do Juízo” in ______. Crítica da Faculdade
de Juízo Estética. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1995 (Col. Os pensadores)
______. Crítica da Razão Pura. Trad. V. Rohden e U. Moosburger; São Paulo: Ed. Nova
Cultural, 1999. (Col. Os pensadores)
KEARNEY, R. Poetics of imagining: modern to pos-modern. New York: Fordhan University
press, 1998, 260p.
______. Poética do possível: Fenomenologia hermenêutica da figuração. Lisboa, Ed,
Instituto Piaget, s/d
LÉBRUN, G. Kant e o fim da metafísica, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1993
NABERT, Jean. “La philosophie reflexive” in: Encyclopedie Française, tomo XIX, 1957.
OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea.
SP, Loyola, 1996.
ORTIZ-OSES, Andrés. Mundo, Hombre y Lenguage Critico: Estúdios de filosofia
hermeneútica. Salamanca, Ed. Sígueme, 1976.
PESANHA, José Américo Motta. “Bachelard: as asas da imaginação” in: BACHELARD, G.
O direito de sonhar, SP, difel, 1986, pp. v-xxxi
PASSOS, Izabel Christina F. A filosofia da imaginação radical de Cornelius Castoriadis.
Dissertação de Mestrado, UFMG, Belo Horizonte, 1992.
RORTY, R. Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2000.
SANTOS, Leonel R. dos. Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano.
Lisboa: Edição Fundação Caloste Gulbenkan, s/d.
SARTRE, J-P. A imaginação. Porto Alegre: L&PM, 2008
______. L’Imaginaire: Psychologie phénoménologique de l’imagination, Paris, 1940.
SCHLEIERMACHER, F.D.E. Hermenêutica: Arte e técnica da interpretação. Petrópolis:
Vozes, 2000.
SHARIAT, ALI. "Regard sur la notion et la fonction de l'imagination créatrice dans la
Theosophie iranienne: Henry Corbin et l'imaginal". Diogène, 156, out-dez/1991.
SILVA, Carlos H. do C. “O imaginário na Filosofia” in ARAÚJO, Alberto F. e BAPTISTA,
Fernando P. (orgs) Variações sobre o imaginário: Domínios, Teorizações e Práticas
hermenêuticas. Porto, Instituto Piaget, 2003.
SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997.
VATTIMO. G. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. Philosophie des images, 2ª ed, Paris: PUF, 2001, 322p.
______ La vie des images. Grenoble: Press Universitaire de Grenoble, 2002, 275p.
______. O imaginário. São Paulo: Loyola, 2007, 103p.
ZARKA, Y.C "Le vocabulaire de l'apparaître: le champ sémantique de la notion de
Phantasma" in ZARKA, Y. C (coord.) Hobbes e son vocabulaire. Paris: J. Vrin, 1992.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo