faculdade ambígua que, desempenhando um duplo papel (mimético e extático), está
simultaneamente ligada à mais baixa e à mais alta faculdade do homem. Também no
pensamento de Aristóteles pode ser encontrada semelhante atitude de ambigüidade e
desconfiança perante a imaginação
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. Conforme ressaltou Cornelius Castoriadis, em “A
descoberta da imaginação”, Aristóteles descobre (em De anima III, 9-11) uma imaginação
situada numa camada mais profunda que subverte o modo como o próprio estagirita (em De
anima III, 3) anteriormente havia pensado a imaginação. Tal subversão se deve ao fato de essa
“imaginação primeira” implicar “um elemento que não se deixa apreender nem no espaço
definido pelo sensível e pelo inteligível, nem ─ o que é bem mais importante ─ no espaço que
se define pelo verdadeiro e falso, e, por trás destes, pelo ser e pelo não-ser” (CASTORIADIS,
prejudica a parte superior ou racional da alma (cf. KEARNEY, 1997, p.16s). Entretanto, conforme salientou R.
Kearney seguindo as análises de Bundy, “juntamente com esta definição negativa da imaginação como ilusão
mimética surge, das margens da metafísica platônica, uma outra noção da imaginação como faculdade extática”
(1997, p.18): trata-se de “um segundo modo de imaginação capaz de ter imagens dos objetos ideais da
contemplação da alma superior” (BUNDY, 1927, p.21 apud KEARNEY, 1997, p.19). Tais imagens não são
imitações das Idéias, mas as próprias Idéias que vêm ao homem por meio de um processo de inspiração através
do qual imagens visionárias permitem, por um lado, que se transcenda o mundo empírico na direção do mundo
trans-empírico; por outro, que o mundo eterno se encarne no mundo inferior do sensível. Em outros termos, a
imaginação anteriormente rejeitada por Platão se apresenta agora como sendo a faculdade que pode, inspirada
por uma luz transcendente, atingir visões para além da razão. Contudo, como ressalta Kearney, “esta descoberta
da imaginação extática é formulada por Platão de um modo imperfeito; é mais esboçada do que articulada”
(1997, p.21).
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As análises empreendidas por Aristóteles no De anima, num primeiro momento, situando a imaginação entre as
potências pelas quais a alma julga e conhece um ser qualquer e apresentando-a como distinta da sensação,
embora a ela ligada, propõe a definição da imaginação “como movimento que sobrevém a partir da sensação”,
sendo que, enquanto tal, em função de sua ligação com a sensação, ela é susceptível tanto de verdade como de
erro, dependendo do gênero de sensação do qual ela se origina Assim, em De anima III, 3, a imaginação é
apresentada como o par supérfluo da sensação e parece possuir apenas a estranha função de multiplicar
consideravelmente as possibilidades de erro inerentes a determinados tipos de sensações (cf. CASTORIADIS,
1987, p.348s). Castoriadis denomina essa concepção de imaginação extraída de De anima III, 3 de “imaginação
segunda ou secundária” e assinala que a mesma está na base da concepção de imaginação vigente na maioria dos
filósofos ocidentais (imaginação meramente reprodutiva). Contudo, um pouco mais adiante do mesmo livro III
do De anima, Castoriadis chama a atenção para o fato de Aristóteles inserir, repentinamente e sem advertência,
uma outra modalidade de imaginação, apresentada como condição de possibilidade para o pensamento. A essa
outra modalidade de imaginação proposta pelo estagirita, o filósofo denomina de “imaginação primeira”. De
acordo com Castoriadis, essa outra modalidade de imaginação “não tem, por assim dizer, nada a ver com a que
foi definida ex professo na aparente sedes materiae, em III, 3. Sua relação com ela é somente de homonímia;
suas determinações e funções não apenas excedem as da outra mas parecem ser incompatíveis com elas” (1987,
p.346). Assim, após apresentar as dificuldades da “doutrina convencional” da imaginação elaborada por
Aristóteles em De anima III, 3, Castoriadis passa a examinar a reviravolta provocada pelas análises aristotélicas
desenvolvidas nos capítulos 9-11 no mesmo livro III da referida obra, onde aparece a proposta aristotélica de que
“a alma jamais pensa sem fantasia”. Examinando a referida proposta, o filósofo francês assinala que a
imaginação “é condição de pensamento, posto que apenas ela pode apresentar ao pensamento o objeto, como
sensível sem matéria. E ela é condição do pensamento, igualmente, na medida em que separa, na forma do
objeto, os diferentes “momentos” dessa forma e consegue apresentá-los como abstratos, subtraídos ao resto”
(CASTORIADIS, 1987, p.356).