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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Letras
Maria Clara Maciel de Araújo Ribeiro
A ESCRITA DE SI: DISCURSOS SOBRE
O SER SURDO E A SURDEZ
Belo Horizonte
2008
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Maria Clara Maciel de Araújo Ribeiro
A ESCRITA DE SI: DISCURSOS SOBRE O
SER SURDO E A SURDEZ
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Lingüísticos da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Lingüística.
Área: Lingüística do Texto e do Discurso
Linha de pesquisa: Análise do Discurso
Orientadora: Profª. Drª. Glaucia Muniz Proença Lara
.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2008
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Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos
Dissertação aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________
Profª. Drª. Glaucia Muniz Proença Lara
Faculdade de Letras/UFMG - Orientadora
_______________________________________
Profª. Drª. Maria Lucia Castanheiras
Faculdade de Educação/UFMG
_______________________________________
Profª. Drª. Maralice de Souza Neves
Faculdade de Letras/UFMG
______________________________________
Prof. Dr. Luiz Francisco Dias
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos
Faculdade de Letras/UFMG
12
Ao meu marido Otto, pelo amor e
incentivo, e às nossas filhas, Ana Bela e
Malu, por darem sentido à minha vida.
13
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pela bolsa de pesquisa.
À minha orientadora, Glaucia Muniz Proença Lara, pela competência, agilidade e
dedicação com a qual me orientou nesse percurso. Com carinho e amizade, agradeço
pela confiança e pelo interesse na temática surda.
À professora Ida Lucia Machado, pela generosidade de ter visto potencial em mim e no
meu projeto de pesquisa, incentivando-me a ir além.
Ao professor Antônio Carlos Soares Martins, pela valiosa orientação na pesquisa de
Iniciação Científica.
Aos colegas que dividiram comigo momentos inesquecíveis durante o Mestrado no
PosLin: Josely, Kelly, Letícia, Manuela, Mariana, Maria de Fátima, Rafaela, Viviane e
tantos outros. Em especial, agradeço a Josely, pelo apoio e pelas produtivas conversas
que mantivemos.
Aos funcionários do PosLin, sempre tão atenciosos e gentis.
Às intérpretes de Libras, Gildete Amorim e Kellen Dolejal, pelo profissionalismo e
compromisso com o qual aplicaram os questionários que possibilitaram a formação do
corpus da presente pesquisa.
Ao meu companheiro de sempre, Otto, pai das minhas filhas e esposo querido, pelo
cuidado com as crianças na minha ausência e pelo incentivo e amor que me fazem
sempre ir adiante.
Às minhas filhinhas queridas, Bebel e Malu, agradeço por serem como são e por me
fazerem querer ser uma pessoa cada dia melhor.
À minha e, Miriam, pelo exemplo na lida com as palavras e por ter despertado em
mim o gosto pela pesquisa.
14
À minha irmã Bianca e ao meu cunhado Ian, pela acolhida familiar em BH e pelos bons
momentos musicais compartilhados.
Aos meus queridos irmãos Ráfel, Harmony e Luccas, pela força da torcida.
Ao amigo Beto Guedes, pelo desejo de colaborar.
Por fim, aos sujeitos surdos que partilharam comigo seus discursos e imagens. Sem eles,
esta pesquisa não teria sido possível.
A todos o meu carinho e os meus sinceros agradecimentos.
15
Nós surdos somos...
...não nos importa que nos marquem como refugos, como excluídos, como anormais.
Importa-nos quem somos, o que somos e como somos. A diferença será sempre
diferença. Não tentem colocar todos os capitais do mundo para declarar-nos diversos
porque não é isso que estamos significando. Continuamos a ser diferentes em nossas
formas. Continuamos a nos identificar como surdos. Continuamos a dizer que somos
normais com nossa língua de sinais, com o nosso jeito de ser surdos.
[...]
...então um grupo cultural à parte. Um grupo que realmente investe na decisão de ser
diferente. De transformar o anormal em normal no cotidiano da vida. É um jogo
perverso que se instaura. Jogo entre o que é nossa invenção e o que inventaram sobre
nós. Porque jogo inventado? É próprio do modernismo criar uma alteridade para o
outro e obrigá-lo a segui-la. Neste ponto, a universalização e a historicização se
confrontam num afrontamento em que riscos estão presentes num movimento sinuoso
que envolve.
[...]
...os diferentes dos não-surdos, dos surdos implantados ou dos deficientes auditivos. A
estes grupos não interessa nossas lutas, elas lhes dizem de outras paragens sem
interesse, sem encanto. A nós isto é importante. Compreendemos os choques culturais.
Conhecemos de norte a sul as necessidades destes outros grupos, nós as recomendamos
e damos a eles os exemplos de nossas resistências para que prossigam nas suas
conquistas. E os informamos de nossas lutas não acabadas.... O triste espaço da
deficiência foi o álibi para nos manterem “baixas do progresso”. Usurparam nossa
diferença e disso sequer poderíamos sair pelos cadeados colocados aqui e ali.
[...]
..... mártires destas jornadas pela diferença, poucos de nós conseguimos
pular para dentro do veículo do progresso e com afinco trazer para as páginas de
espaços acadêmicos novas posições, novos achados científicos longe daquelas palavras
que sustentam a farsa sobre nós e que impõem a dita anormalidade.
Gladis Perlin (2007).
16
RESUMO
A partir da análise do discurso de tendência francesa e, sobretudo, dos estudos
desenvolvidos por Dominique Maingueneau (1998, 2005, 2006), objetivamos, nesta
dissertação, analisar discursos sobre o ser surdo e a surdez produzidos na condição de
surdez, buscando, assim, depreender as imagens da surdez discursivamente produzidas
por sujeitos surdos. Para tanto, 21 questionários respondidos em português escrito por
surdos universitários foram analisados. Com base na tríade universo, campo e espaço
discursivo, apresentada por Maingueneau (2005), foi-nos possível projetar o campo
discursivo da surdez, constituído por um espaço em que se confrontam duas formações
discursivas (FDs) uma clínica, outra lingüístico-antropológica. A partir da primeira
FD podem-se vislumbrar um discurso de fundamentação ouvintista (DFO),
caracterizados pelo princípio de que o surdo é um “ouvinte incompleto”, que pode
“aperfeiçoar-se” por meio de condutas específicas. A partir da segunda FD origina-se
um discurso de fundamentação surda (DFS) que determina uma conduta de vida
pautada pela riqueza da “experiência visual”, postulando que ser surdo é uma questão
vivencial, que se baseia em uma língua e em uma comunidade específicas. As análises
partem da compreensão desse “embate de FDs” que se institui no espaço discursivo por
nós recortado. Constatamos, nas análises, maior ocorrência do DFS no corpus da
pesquisa (81%). Apenas 19% dos discursos analisados se mostraram condizentes com o
DFO. Entre as inúmeras imagens da surdez delineadas nos discursos, encontramos as
seguintes oposições: no DFS, a surdez é vista a partir dos semas normalidade surda /
comunidade / independência e liberdade / afirmação de felicidade, ao passo que no
DFO, ela é vista a partir dos semas deficiência ouvinte / solidão e exclusão /
subordinação à tentativa de adequação/ afirmação de sofrimento.
PALAVRAS-CHAVE: Surdez; imagem; discurso; analise do discurso; formação
discursiva.
17
RESUMÉ
À partir de l’analyse du discours de tendance française et, surtout, des études
dévéloppés par Dominique Maingueneau (1998, 2005, 2006) nous voulons, dans cette
dissertation, analyser des discours sur l’être sourd et la surdité produits dans la
condition de surdité, cherchant ainsi déduire les images de surdité produites par des
sujets sourds. Pour ça, 21 questionnaires répondus em portuguais écrit par des sourds
universitaires ont été analysés. Basé sur la tríade univers, champ et espace discoursif,
présentée par Maingueneau (2005), a été possible projecter le champ discursif de la
surdité, constitué par um espace s’affrontent deux formations discursives (FDs)
une clinique, l’ autre linguistic-anthropologique. À partir de la première FD on peut
apercevoir un discours de fondement de l’ auditeur (DFA), caracterisé par le principe
que le sourd est um “auditeur incomplet” que peut se “perfectionner” à travers conduites
spécifiques. À partir de la deuxième FD s’origine un discours de fondement sourde
(DFS) qui déterminent une conduite de vie réglée par la richesse de “l´expérience
visualle”, em disant qui être sourd est une question de vie, basée sur une langue et une
communauté spécifiques. Les analyses partent de la comprehension de ce choc des FDs
qui se forment dans l’espace discoursif, recoupé par nous. Nous constatons, dans les
analyses, um plus grand incident du DFS au corpus de l’enquête (81%). Seulement 19%
des discours analysés se sont montrés assortis du DFA. Parmi les nombreuses images de
la surdité ébauchées dans le discours, nous avons trouvé les oppositions suivantes: dans
le DFS, la surdité est aperçue à partir des semes normalité sourde / communauté /
indépendence et liberte / affirmation du bonheur, tandis que dans le DFA, elle est
aperçue à partir des semes handicap auditeur / solitude et exclusion / subordination à
l’essai d’adaptation / affirmation de souffrance.
MOTS-CLÉS: Surdité; image; discours; analyse du discours; formation discursive.
18
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................11
CAPÍTULO 1: DISCURSOS SOBRE A SURDEZ: DAS CONDIÇÕES
HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO À POLÊMICA CONSTITUTIVA
1.1. Situando e problematizando a relação dos surdos com a linguagem: dos primórdios
à contemporaneidade ......................................................................................................16
1.2. Perspectivas atuais: cultura e identidades surdas.....................................................24
1.3. Discursos sobre a surdez: formações discursivas em embate..................................30
1.4. Notas sobre a escrita de surdos................................................................................46
CAPÍTULO 2: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
2.1. A constituição do corpus .........................................................................................54
2.2. A Análise do Discurso como referencial teórico-metodológico..............................62
2.3. Discutindo alguns conceitos ....................................................................................66
2.4. Contribuição dos Estudos Surdos............................................................................88
CAPÍTULO 3: COMO OS SURDOS SE EXPRESSAM EM PORTUGUÊS
ESCRITO SOBRE O SIGNIFICADO DE SER SURDO?
3.1. Delimitando o corpus...............................................................................................91
3.2. Procedimentos de análise.........................................................................................93
3.3. O que dizem da surdez aqueles que a vivenciam?...................................................94
19
3.3.1. As palavras e os sentidos......................................................................................96
3.3.2. Controle e contracontrole ................................................................................... 111
3.3.3. Um rito de passagem: de deficientes auditivos a surdos ....................................118
3.3.4. Um cenário cinza e um cenário cor-de-rosa .......................................................129
3.3.5. Diferentes formas de ser surdo ...........................................................................135
3.4. Discussão dos resultados .......................................................................................149
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 163
REFERÊNCIAS..........................................................................................................168
ANEXOS .....................................................................................................................175
20
INTRODUÇÃO
Saber consiste, pois, em referir a linguagem à linguagem. Em
restituir a grande planície uniforme das palavras e das coisas. Em
fazer tudo falar. Isto é, em fazer nascer, por sobre todas as
marcas, o discurso segundo do comentário. O que é próprio do
saber, não é nem ver, nem demonstrar, mas interpretar. (Michel
Foucault, 1986).
Na epígrafe acima, Foucault nos indica que “o que é próprio do saber não é
nem ver, nem demonstrar, mas interpretar”. Vemo-nos, então, diante do desafio de
escrever ao lado das palavras dos surdos as nossas próprias palavras, não em uma
sobreposição de vozes, mas em uma atividade interpretativa que nos leve a desaguar em
águas discursivas comuns.
É preciso ressaltar que o que estará em evidência aqui serão as palavras
primeiras a partir das quais as nossas irão se debruçar. Neste estudo, pretendemos
analisar os discursos sobre o ser surdo e a surdez produzidos por sujeitos surdos,
buscando depreender a(s) imagem(ns) da surdez discursivamente produzida(s) pelos
sujeitos e refletindo sobre a constituição e o funcionamento de tais discursos
1
. Para
tanto, não nos contentaremos em descrever ou demonstrar, será preciso, aqui,
interpretar, formular e lançar o discurso segundo do comentário, como nos fala
Foucault.
Para que se compreenda a nossa motivação neste estudo é preciso
compreender, primeiramente, que o entendimento acerca da surdez vem se modificando
ao logo do tempo. Surdos já não vivem mais recatados, enclausurados em escolas
1
Visando a contribuir para o desenvolvimento de pesquisas sobre a escrita de surdos, o corpus da
pesquisa foi constituído por textos escritos em português por surdos universitários (coletados a partir da
aplicação de questionário) sobre o significado da surdez.
21
especiais, longe dos olhos e da consciência da sociedade. Hoje eles estão ao nosso lado,
nas escolas e nos empregos, na política e na arte e ainda vão além: produzem uma arte
própria e se engajam em movimentos políticos voltados para o reconhecimento do
grupo.
A integração dos surdos nos diversos segmentos sociais parece coincidir com o
fortalecimento político da comunidade surda, uma vez que a coesão do grupo promove a
inclusão social. Apesar da aparente contradição (entre a coesão e a dispersão do grupo),
parece ser possível afirmar que quanto mais fortalecidos e unidos enquanto grupo, mais
considerados e respeitados os surdos são enquanto cidadãos.
Mas nem sempre foi assim: a história dos surdos é vista por muitos como uma
história de dominação (SKLIAR, 1998, PERLIN, 2003, STROBEL, 2007). Sob o
pretexto da deficiência, surdos foram vistos como dementes, como incapacitados
legalmente e como usuários de uma linguagem perversa que os distanciaria da
aprendizagem da língua oral. Eles foram proibidos de utilizar a língua de sinais e
“incentivados” a treinar duramente a fala, em uma tentativa de normalização. Durante
muito tempo, os surdos foram compreendidos a partir do campo da saúde.
Na contemporaneidade, no entanto, a surdez tem sido deslocada do campo
médico para o campo lingüístico e cultural, tanto no universo acadêmico, quanto nas
práticas sociais. Na universidade, por exemplo, o interesse pelo povo surdo fez crescer a
incidência de pesquisas em áreas diversas, como a da lingüística, a da psicologia, a da
sociologia, a das artes, etc. Na prática social, o lugar de ocupação surda comprova esse
deslocamento teórico: vemos os surdos se deslocarem das APAEs e das Escolas
Especiais para as escolas comuns; das poltronas das clínicas médicas e fonoaudiológicas
para as cadeiras das universidades. Como pode ser percebido, esse deslocamento parece
acontecer em rede, ocasionando rupturas e realocações outras, reorganizando as relações
22
de saber-poder do povo surdo consigo mesmo e com a sociedade. A partir daí, parece-
nos, então, que os discursos sobre a surdez, veiculados pelos próprios surdos, não
apenas acompanham os movimentos da história, mas também os engendram.
É buscando compreender melhor os movimentos discursivos sobre a surdez
que nos propomos, no presente estudo, a delinear a(s) imagem(ns) da surdez
produzida(s) por sujeitos surdos. Para tanto, do ponto de vista teórico-metodológico,
situamo-nos na chamada Análise do Discurso de tendência francesa, privilegiando, neste
trabalho, os estudos desenvolvidos por Dominique Maingueneau (1998, 2005, 2006,
2006b). Mais especificamente, as análises partem da tríade universo, campo e espaço
discursivo, apresentada por Maingueneau (2005), o que nos permitirá projetar o campo
discursivo da surdez e nele “recortar” espaço(s), focalizando o “diálogo” que se
estabelece entre diferentes formações discursivas (FDs).
As análises do corpus partem, portanto, da compreensão desse embate
discursivo” para delinear a(s) imagem(ns) do ser surdo e da surdez, produzida(s) pelos
próprios sujeitos surdos. Nessa perspectiva, examinaremos: a) a construção do ethos
discursivo e pré-discursivo, buscando compreender a constituição social e histórica dos
sujeitos surdos, assim como o “jogo de imagens” no qual eles se inserem; b) a
semântica global de cada discurso, verificando a existência de grupos de textos regidos
pela mesma semântica discursiva, refletida sobre a rede interdiscursiva articulada no
intradiscurso, assim como as temáticas que o sistema de restrições semânticas exclui em
cada FD; c) a dita “inabilidade” de escrita dos surdos, problematizando essa premissa ao
estabelecer argumentos que corroborem a idéia de que o plano de conteúdo não é
substancialmente prejudicado pelos “desvios” no plano de expressão na escrita dessa
população.
23
Para atingir os objetivos descritos acima, estruturamos o presente trabalho em
três capítulos. O Capítulo 1, que se subdivide em quatro seções, focalizará desde as
condições históricas de produção dos discursos sobre a surdez até a polêmica
constitutiva que os atravessa. Na primeira seção, apresentaremos uma visão panorâmica
da história dos surdos, vislumbrando como a relação desses sujeitos com a linguagem
tem sido considerada ao longo do tempo. Na segunda seção, discorreremos sobre as
perspectivas atuais e os avanços da modernidade em relação ao passado. Na terceira,
buscaremos compreender, em termos discursivos, como os profissionais que lidam com
a surdez e como os próprios surdos concebem essa “condição”, apreendendo as
formações discursivas a partir das quais os sujeitos enunciam. Na última seção,
abordaremos a escrita de surdos e especificaremos a base epistemológica a partir da
qual consideramos essa questão em nossa pesquisa.
O Capítulo 2, que trata do aparato teórico-metodológico, também se subdivide
em quatro seções e relatará, primeiramente, como se deu a constituição do corpus da
pesquisa, para, posteriormente, explicitar a filiação teórica do nosso estudo. Em seguida,
conceitos como semântica global; universo, campo e espaço discursivo; interdiscurso e
ethos (MAINGUENEAU, 1998, 2005, 2006, 2008) serão discutidos, visando à
construção de uma base a partir da qual as análises do capítulo três poderão se
desenrolar. Por fim, apresentaremos as contribuições dos Estudos Surdos para a
presente pesquisa.
O terceiro e último capítulo trata da análise do corpus, recebendo várias
subdivisões. Após explicitarmos os mecanismos a partir dos quais delimitamos o
corpus, apresentaremos os procedimentos que seguiremos nas análises, com base em
um roteiro prévio. A partir daí, focalizaremos o que dizem da surdez aqueles que a
vivenciam. Por fim, os resultados da análise serão sistematizados e discutidos, de forma
24
a melhor delinear a(s) imagem(ns) da surdez desvelada(s) em nosso estudo, o que nos
encaminhará para os comentários finais.
25
CAPÍTULO 1 - DISCURSOS SOBRE A SURDEZ: DAS
CONDIÇÕES HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO À POLÊMICA
CONSTITUTIVA
Pretendemos aqui contextualizar a relação entre surdez e linguagem, da
Antigüidade aos tempos atuais. Veremos como essa relação tem sido compreendida ao
longo da história, refletindo sobre a influência de determinados eventos históricos para a
construção e a desconstrução de mitos sobre questões de linguagem na surdez.
Abordaremos de que forma(s) um novo olhar e um novo discurso sobre a surdez
começaram a ser construídos a partir de conquistas pontuais, fazendo com que o espaço
de atuação surda, em conseqüência disso, fosse largamente ampliado na sociedade.
Quem é, afinal, o sujeito surdo? Como ele se constituiu ao longo da história?
São questões como essas que buscaremos responder ao longo deste capítulo. Para tanto,
após olharmos de relance para eventos que marcam a história do povo surdo,
abordaremos os posicionamentos discursivos sobre a surdez correntes no meio surdo,
focalizando a polêmica constitutiva que os atravessa. Apresentaremos, assim, os
principais discursos sustentados tanto pelos profissionais que lidam com surdos, quanto
pelos próprios sujeitos surdos que, longe de estar apenas apresentando posicionamentos,
estão revisitando, através da palavra, a sua própria vida.
1.1 Situando e problematizando a relação do surdo com a linguagem: dos
primórdios à contemporaneidade
Ao longo da história, a surdez tem sido vista e conceituada de diferentes
maneiras. Da Antigüidade aos tempos atuais, a concepção de surdez vem sofrendo
26
alterações e constantes revisões. Na contemporaneidade, essa noção costuma ser
(re)definida e (re)interpretada a partir do campo de conhecimento em que é abordada e
da perspectiva teórica assumida, determinando escolhas, rejeições ou reformulações.
Na Antigüidade, acreditava-se que o pensamento era possibilitado e organizado
pela fala. Filósofos da Idade Clássica, como Aristóteles, acreditavam que, para atingir a
consciência humana, os objetos deveriam ser conhecidos a partir dos órgãos do sentido,
sendo a audição o canal mais importante para o aprendizado. Era comum, naquela época,
a crença de que o pensamento era possibilitado e organizado pela fala, como nos indica
Guarinello (2004, p. 15). A ausência dela, em um mundo teocêntrico, caracterizava os
surdos como seres desprovidos de pensamento, certamente por obra de alguma
“maldição divina”. A partir desse pressuposto, aqueles que não ouviam costumavam
viver trancafiados como bichos ou loucos.
Com o passar do tempo, o atributo de maldição foi se perdendo na história.
Apesar disso, poucas mudanças práticas foram observadas. Na Idade Média, por
exemplo, surdos ainda não possuíam direitos legais e, por isso, não podiam votar nem se
casar, tampouco adquirir bens ou heranças. Eram tomados como seres infra-humanos,
impossíveis de ser educados, e eram mantidos em exclusão dos processos sociais. Os
poucos registros da Antigüidade que abordam a surdez e que chegaram aos nossos dias
fazem referência prioritária a “curas inexplicáveis ou milagrosas que, subitamente,
devolviam a condição de humanidade aos que não ouviam, como relatam Lane (1997) e
Lacerda (1998).
Se a pré-história corresponde ao período da história que antecede a invenção da
escrita, talvez o breve relato acima possa ser caracterizado como a pré-história da
surdez”, ou seja, o período que antecede ao reconhecimento dos surdos como seres
humanos, passíveis de ser educados. Como vimos, até então, não há registros que
27
abordem os surdos de maneira ampla e diversificada, mas, sim, uma homogeneização
quanto à condição de subumanidade que era atribuída aos que não ouviam.
A possibilidade de instruir e educar pessoas surdas surgiu a partir do início da
Idade Moderna. Nessa época, o nascimento de surdos na nobreza passa a ser a força
motriz dos primórdios da educação de surdos: alguns professores se dispuseram a
educá-los, e isso pode ser considerado, na conjuntura da época (século XVI), um
expressivo avanço.
No entanto, poucos são os registros desses primórdios, pois era comum, na
época, manter em sigilo o modo como essa educação era conduzida. Além disso, os
professores trabalhavam isoladamente e não havia o hábito da troca de experiências.
Lacerda (1998), citando Shánces (1990), relata, por exemplo, que Heinicke, importante
educador alemão que foi professor de surdos, costumava comentar que ninguém
conhecia o seu método de educação, com exceção do seu filho. Alegava ter passado por
tantas dificuldades sozinho que não pretendia dividir as conquistas do seu método com
ninguém. Dessa maneira, muito foi perdido e pouco dos primórdios da educação de
surdos pôde ser reconstituído. Mas é a partir dessa época que se começa a admitir que
os surdos podem aprender através de procedimentos pedagógicos adequados, sem que
haja, para tanto, interferências sobrenaturais, como a “cura” súbita da surdez.
Muitos autores, como Shánces (1990) e Lane (1998), fixam como marco
fundador da educação de surdos o trabalho desenvolvido pelo monge beneditino
espanhol Pedro Ponce de Leon, no século XVI
2
. Como relata Lodi, (2005, p. 411), o
2
Diversos eram os métodos utilizados pelos primeiros professores de surdos. Tais métodos variavam
quanto à maior ou menor utilização de métodos visuais, como a dactologia (representação manual das
letras do alfabeto) e alguns sinais da LS nativa da região. Porém, o principal objetivo da maioria desses
professores, como Pedro Ponce de Leon, era o desenvolvimento da fala e da escrita, uma vez que era
prevista a possibilidade de o surdo tornar-se cidadão legal, respondendo por si próprio e podendo
administrar negócios e heranças, se pudesse se comunicar pela fala e/ou pela escrita (SOUZA, 1998,
p.129).
28
trabalho desse educador não apenas influenciou profundamente métodos posteriores,
mas desestabilizou os argumentos médicos e religiosos da época sobre a incapacidade
dos surdos para o desenvolvimento da linguagem e, portanto, para toda e qualquer
aprendizagem.
No século XVIII, escolas públicas especializadas em educar surdos começaram
a ser fundadas, como, por exemplo, o Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris,
primeira escola pública para surdos na Europa, fundada pelo abade Charles Michel de
l’Epée (SOUZA, 1998). Nesse período, sem contar ainda com o reconhecimento
lingüístico da língua de sinais (LS), o treino da fala era considerado como “metodologia
de ponta” na educação de surdos
3
.
L’Epée reconheceu que os surdos possuíam uma forma de comunicação eficaz
e que a linguagem utilizada por eles poderia ser útil no processo de instrução. No
entanto, consoante às idéias lingüísticas e filosóficas de sua época, o abade acreditava
que seria preciso, primeiramente, “organizar” e dotar de gica a língua dos surdos de
Paris, imputando-lhe regras claras e elementos faltantes, com base na gramática da
língua francesa, considerada como o centro organizador.
Dessa forma, ele criou os “sinais metódicos”, como ficou conhecido o
(des)arranjo de L’Epée na língua dos surdos parisienses. Grosso modo, o abade
submeteu aquela língua de sinais (LS) à gramática da língua francesa, considerada
completa e melhor, criando sinais “faltantes” (como conectivos e flexões) e inventando
elementos morfêmicos capazes de, a partir da segmentação de determinados sinais,
originar outros. O fim último seria o de conferir aos surdos a capacidade de
3
Consta que, por volta de 1760, um movimento de surdos contra a ideologia verbal começa a se
delinear no Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris (LODI, 2005, p. 413). Os estudantes
protestavam contra a imposição das práticas oralizadoras, que se obstinavam em fazê-los falar. É provável
que a aglomeração de surdos nessa escola tenha favorecido o desenvolvimento e o fortalecimento de uma
língua de sinais e, com isso, feito aflorar o sentimento de grupo e a vontade de uma maior participação
dos surdos na condução de sua educação e de suas vidas.
29
compreender o mundo a partir dessa linguagem artificial, que deveria ser compreendida
e traduzida em escrita. L’Epée criou tantos sinais, no afã de dotá-los de semelhanças
com as palavras francesas, “que sua linguagem algumas vezes era tão desfigurada que
se tornava incompreensível” (BEBIAN, 1984, citado por SOUZA 1998, p.150).
Assim, tal método conseguiu apenas tornar os surdos bons decodificadores,
pois consistia, sobretudo, no exercício de ditar perguntas e respostas a partir dos “sinais
metódicos”, cabendo aos surdos decodificá-los em forma de registro escrito, o que não
garantia a compreensão do que estava sendo decodificado, tampouco possibilitava a
criação individual de novas sentenças, fossem elas em sinais ou em linguagem escrita.
Com a ampliação da educação de surdos e com o passar do tempo,
divergências teórico-metodológicas quanto aos métodos utilizados pelos professores
acabaram culminando no I Congresso Mundial de Professores de Surdos, congregando
profissionais de diferentes países em Milão, em 1880
4
. Ressaltamos aqui a importância
histórica do congresso de Milão, como ficou registrado esse evento na história, para a
constituição identitária dos surdos. Ainda hoje, mais de um século depois, os
desdobramentos desse congresso ainda são discutidos pelas comunidades surdas do
mundo inteiro, pois ele pode ser caracterizado como um acontecimento que fez
retroceder – e estagnar – em muito as conquistas dessa população.
De maneira sucinta podemos dizer que tal retrocesso pode ser caracterizado
pela conclusão a que chegaram os congressistas naquela ocasião: ficou decidido que,
dali em diante, os surdos deveriam ser ensinados através da ngua oral, de terapias que
4
De acordo com Souza (1998, p. 88), esse congresso foi organizado, patrocinado e conduzido
principalmente por renomados e ardorosos defensores do “oralismo” (princípio que busca desenvolver a
fala dos surdos). Eles haviam se empenhado, antes do congresso, em fazer prevalecer o método oral
puro no ensino de surdos e contavam, para tanto, com o prestígio político e econômico de cientistas que
apregoavam o controle e até a proibição da LS na educação de surdos. Por fim, decidiu-se, em uma
assembléia geral realizada no congresso (da qual os profissionais surdos foram proibidos de participar),
pela adoção universal do método oral puro, que consistia em treinar a fala e a audição, proibindo, para
tanto, o uso das línguas de sinais.
30
estimulassem o desenvolvimento da fala. A LS, vista naquela época ainda como uma
linguagem artificial e desprovida de gramática, foi considerada como um possível
empecilho para o desenvolvimento do surdo, sendo, portanto, proibida a sua utilização
nos espaços escolares. Assim, Lodi (2005, p. 416) nos informa que, durante quase um
século (1880 a 1960), o discurso dominante sobre a surdez centrou-se na tentativa de
eliminar as diferenças, de abafar e inferiorizar a surdez, de proibir a LS e de buscar
meios para o desenvolvimento da linguagem oral nos surdos, a partir de técnicas
mecânicas e descontextualizadas de treino articulatório.
Esse quadro, contudo, vinha dando sinais de fraqueza, tanto frente à
resistência surda, que não aceitou a “mordaça” passivamente
5
, quanto em relação aos
baixos resultados obtidos pelos professores que, inclusive, começaram a fazer uso de
outros métodos de comunicação
6
. Foi quando, em 1957, o lingüista Willian Stokoe da
Gallaudet College, em Washington, lançou a hipótese de que a língua utilizada pelos
surdos poderia ser uma língua genuína, natural, constituindo-se, portanto, como um
instrumento lingüístico propriamente dito (LODI, 2004, p. 282).
Assim, ao descrever a ngua de Sinais Americana (American Sign Language -
ASL), o grupo de lingüistas liderado por Stokoe chegou à conclusão de que o sistema de
comunicação utilizado pelos surdos americanos era realmente um sistema lingüístico
natural e articulado (QUADROS & KARNOPP, 2004). Foi a partir desses estudos que a
LS passou a ser vista como “uma estrutura multiarticulada e multinivelada, com base
nos mesmos princípios gerais de organização que podem ser encontrados em qualquer
5
Apesar de terem sofrido até mesmo agressão sica em nome do “perigo” que a LS representava (
relatos de surdos freqüentando escolas com as mãos amarradas), a LS não pôde ser contida, continuando a
se desenvolver, ainda que na clandestinidade, como a língua dos surdos.
6
O principal deles foi a Comunicação Total, forma pela qual ficou conhecida a estratégia de comunicação
com os surdos, que acabou se desdobrando em filosofia educacional, a partir da mescla de distintos
sistemas semióticos, como desenhos, palavras, mímicas, sinais da LS, etc. O objetivo, nesse caso, seria o
de fazer com que a comunicação se estabelecesse de maneira eficiente, sendo o digo de veiculação um
problema secundário.
31
língua” (BEHARES, 1993, citado em LODI, 2005). A partir de então, a relação dos
surdos com a linguagem começa a deixar de ser vista, definitivamente, como deficitária.
Pode-se dizer que, a partir da década de 1980, a ngua de sinais passou
finalmente a ser reconhecida, pelo menos pelos pesquisadores da área, como a língua
materna e natural da população surda, reservando-se à língua oral majoritária no país
um estatuto de segunda língua.
Foi a partir dessa primeira conquista que outras puderam ser firmadas. Quando
se compreendeu, de maneira definitiva, que os surdos não apresentavam desvantagem
lingüística em relação aos ouvintes, um novo olhar e um novo discurso sobre a surdez
começaram, enfim, a ser constituídos, fazendo com que o espaço de atuação surda fosse
ampliado.
Com base no que foi exposto, pode-se concluir que a história dos surdos,
sobretudo de sua educação, é marcada pelo etnocentrismo e pela colonização dos surdos
pelos ouvintes, com o devido apoio da tradição oralista, como afirma Skliar (1999),
inspirado em Bhabha (2000). Isso encobriu, por muito tempo, aspectos lingüísticos (e
culturais) próprios à surdez, por serem considerados “desvios”. Encobriu, sobretudo, a
possibilidade de desenvolvimento do povo surdo, que tinha o seu espaço de atuação
determinado e limitado pelo olhar restritivo que a eles era imputado.
Na contemporaneidade, entre muitas divergências teóricas, alguns consensos
puderam ser firmados. O mais importante deles determina que, no ser surdo, inexiste
qualquer tipo de deficiência cognitiva ou lingüística. Segundo Rocha et al. (2007), a
literatura tem mostrado, até o momento, que os circuitos neurais para as línguas de
sinais funcionam de maneira semelhante ao processamento cerebral das línguas orais: o
processamento das LS também ocorre do lado esquerdo do cérebro. Lacerda (1998),
citando Bellugi (1980), relata que pesquisas realizadas com surdos afásicos, no The Salk
32
Institut for Biological Studies, na Califórnia, demonstram que, se, por um lado, todo
sinal (elemento lexical das LS) é um gesto, nem todo gesto é um sinal, uma vez que
lesões no lado esquerdo do cérebro levam a diferentes graus de comprometimento
sintático da LS, embora não se observe prejuízo em outros tipos de gestos, como os
gestos não-lingüísticos.
Nessa mesma esteira, determina-se ainda que a modalidade de língua “oral-
auditiva” não é o modelo maior e supremo a partir do qual se pode articular um sistema
de comunicação lingüística. As pesquisas sobre as línguas de sinais têm demonstrado
isso. Quadros & Karnopp (2003, p. 29) lembram que o gerativista Noam Chomsky
(1995, p. 434), por exemplo, reconhece as pesquisas sobre as línguas de sinais quando
afirma que
o termo ‘articulatório’ é o restrito que sugere que a faculdade da
linguagem apresenta uma modalidade específica, com uma relação especial
aos órgãos vocais. Os trabalhos nos últimos anos em línguas de sinais
evidenciam que essa concepção é muito restritiva
7
.
É preciso que se esclareça, no entanto, que um possível atraso na aquisição e
desenvolvimento da linguagem pode ocorrer devido exclusivamente a questões
contextuais, não neurofisiológicas. Referimo-nos a casos extremos, ainda recorrentes
em cidades pequenas e zonas rurais, em que a criança surda não é previamente exposta a
um input lingüístico apropriado (seja através da língua de sinais, seja através da língua
oral, por meio de terapias fonoaudiológicas), não se encontrando, portanto, imersa em
um ambiente social propício à aquisição da linguagem. Com a criança alheia à
sinalidade e sem meios para atingir a língua dos pais, a força da natureza propicia,
muitas vezes, a convenção de “sinais caseiros”, de caráter provisório, criados e
veiculados no âmbito familiar. Em casos como esses, a aquisição de um sistema
lingüístico formal costuma ocorrer no início da fase escolar, quando a criança começa a
7
Tradução das autoras citadas.
33
ter contato com outras crianças surdas ou com o profissional fonoaudiólogo da escola.
O que existe, então, de fato, é uma real diferença (no sistema lingüístico de
comunicação, na aquisição da linguagem e nos modos de socialização) que acaba sendo
(ou não) interpretada como deficiência. Mas podemos pensar que a linguagem é, ao
mesmo tempo, algo tão comum e tão complexo, que não conseguimos nos livrar dos
ditames culturais e contextuais para pensar em uma língua de existência quase concreta,
que se articula no espaço e se movimenta diante dos nossos olhos. Vale a pena, para esta
reflexão, evocar o mestre genebrino, que, citando Whitney, diz:
É por acaso e por simples razões de comodidade que nos servimos do
aparelho vocal como instrumento da língua; os homens poderiam também
ter escolhido os gestos e empregar imagens visuais em lugar de imagens
acústicas (SAUSSURE, 1995, p. 17).
Isso nos leva a pensar que os caminhos da evolução poderiam ter nos levado a
outros meios de comunicação que não necessariamente a oral. Podemos pensar, por
exemplo, nos primórdios da comunicação humana, quando os desenhos e os gestos
fizeram parte da história da evolução dos sistemas de comunicação.
Não sendo mais a surdez vista como deficiência (ainda que se conserve essa
idéia em alguns setores), o ser surdo
8
passa a se alicerçar na diferença; diferença
sobretudo lingüística, mas calcada em questões culturais, identitárias e políticas.
1.2. Perspectivas atuais: culturas e identidades surdas
Atualmente, muitos são os autores, como Gesueli (2006), Moura (2000),
(2002), Pinto (2001), Skliar (1998, 1999) e Perlin (1998, 2003, 2003b) que apresentam
8
O termo ser surdo tem sido utilizado por autores surdos, como Perlin (2003), como uma categoria que
visa a substituir a gasta “surdez”, que estaria em uma esfera clínica, já estereotipada.
34
a surdez (muitas vezes, agora, com /s/ maiúsculo)
9
como lugar de cultura e identidade
específicas. A concepção socioantropológica da surdez na pós-modernidade define os
surdos como pertencentes a uma comunidade lingüística minoritária ainda
discriminada – que utiliza e compartilha uma língua visual e apresenta modos de
socialização próprios, assim como costumes e hábitos específicos porque fundados
na/pela surdez. Segundo esses autores, a experiência de vida estritamente visual, não-
auditiva, funda uma forma outra de perceber a vida.
Isso pode ser expresso em esquemas perceptivos e interpretativos diversos
“segundo os quais um grupo produz o discurso de sua relação com o mundo”
(PONCHES, 1996 citado por SANTANA & BERGAMO, 2006), relação essa que é
perpassada pela escolha de vida entre os seus iguais, pelo uso da língua visual e até
mesmo por hábitos lingüísticos que se posicionam na fronteira entre a língua e a
cultura
10
.
Mas a noção de cultura surda não é unanimemente aceita. Skliar (1998) e
(2002) relatam o incômodo e a incompreensão de alguns diante dessa noção. Segundo
os autores, aqueles que apresentam argumentos contrários a essa noção costumam se
basear principalmente em uma concepção de cultura universal noção definitivamente
negada pelos Estudos Culturais, principal embasamento teórico daqueles que tomam os
surdos como um grupo culturalmente específico.
Autores como Santana & Bergamo (2005), por exemplo, buscam fragilizar o
conceito de cultura surda, apresentando questionamentos que se voltam para a discussão
acerca da real soberania da ngua nas relações culturais (apenas a língua definiria a
9
A dicotomia surdez/Surdez será explorada no decorrer deste trabalho.
10
Sobre as relações entre língua e cultura, na língua brasileira de sinais, ver RUDNER, A. A relação entre
polidez e cultura surda na língua brasileira de sinais (em desenvolvimento). Doutorado em Letras.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
35
cultura?) ou para a cisão social entre surdos e não-surdos que costuma ser subentendida
pelo conceito (existiria, assim, uma cultura ouvinte e outra surda, dividindo a
civilização entre surdos e não-surdos?). Alegam ainda que tal conceito tenciona
reordenar relações de poder, proporcionando poder social para os surdos e poder
acadêmico – para os pesquisadores.
Para (2002) e Skliar (1998), o que importa nessa querela não é apenas
compreender as manifestações culturais específicas do povo surdo, face à cultura
hegemônica, mas compreender também que a representação dessa cultura no imaginário
social a toma como uma cultura patológica, como uma subcultura, uma vez que a
resistência e a diferença não costumam ser interpretadas positivamente.
Pensando no extremo oposto, Chiella (2007) reflete sobre casos em que o tema
da cultura acaba se tornando aliado na busca pela “verdade surda”. A autora demonstra
preocupação diante o fato de a língua de sinais e a cultura surda estarem sendo
banalizadas, desgastadas ou reduzidas uma à outra, na tentativa, por parte de alguns, de
definir a “essência surda”. Atualmente, tem-se falado mais em “marcas surdas”, como o
faz a própria Chiella, no intuito de demonstrar marcas culturais que são constituídas nos
espaços de vida
surda.
O tema da cultura, nos estudos surdos, quase sempre aparece vinculado à
problemática das identidades. O termo “identidades surdas” tem ganhado terreno
sobretudo no espaço de interseção com a lingua(gem), lugar onde ele se constrói por
excelência. Para Perlin (1998, p. 52), “a identidade é algo em questão, em construção,
uma construção móvel que pode freqüentemente ser transformada ou estar em
movimento, e que empurra o sujeito em diferentes posições”. De maneira bastante
simplificada e bem genérica, poder-se-ia dizer que “identidade surda” diz respeito
principalmente ao processo de reconhecimento e de identificação do surdo com os seus
36
iguais; ao uso da língua de sinais e, para alguns, ao direito de querer ser surdo. Pode ser
percebida, ainda, em algumas de suas facetas, através de práticas sociais específicas,
como a resistência frente à presença hegemônica ouvinte ou o percurso de lutas do
movimento surdo. Nas palavras da pesquisadora surda Gladis Perlin:
Se nos consideramos surdos, não significa que temos uma paranóia.
Significa que estamos sendo o outro com nossa alteridade. Somos o surdo, o
povo unânime reunido na auto-presença da ngua de sinais, da linguagem
que evoca uma diferença de outros povos, da cultura visual, do jeito de ser.
Somos alteridades provadas pela experiência, alteridades outras. Somos
surdos! (PERLIN, 2003b, p.92)
Perlin (1999, p. 51), inaugurando as pesquisas sobre “identidades surdasno
Brasil, ressalta que, em diversos momentos, precisou contestar teorias sobre os surdos,
cunhadas por sujeitos ouvintes, pelo simples fato de ela focalizar o seu universo (surdo)
a partir de uma ótica interna. Para apresentar a concepção de sujeito surdo que alicerça
suas pesquisas, diz ter sido necessário, inicialmente, lutar para se desprender das
crenças que lhe ensinaram a assumir a respeito do ser surdo, particularmente as crenças
propagadas pelo campo da medicina e da audiologia que, de maneira geral, tendem a ver
a surdez como uma anomalia. A visão “normalizadora” sobre os surdos, segundo ela,
não pode jamais fomentar discussões acerca da problemática da diferença, do sujeito e
do poder. Aliás, revelam, sim, o “poder administrativo” do ouvinte sobre o surdo.
Segundo Skliar (1999), a forma mais presente desse poder se através do
ouvintismo como ideologia dominante. O ouvintismo é um reflexo das representações
estereotipadas dos ouvintes sobre os surdos e a surdez. Pode ser visto como um
dispositivo de controle disciplinar da sociedade, como “um conjunto de representações
dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se
fosse ouvinte.” (SKLIAR, 1998, p. 15). As representações dos ouvintes sobre a surdez,
de forma geral, refletem um posicionamento histórico que a enquadra no campo da
37
doença. No caso dos surdos ouvintizados, estes passam a aceitar a estereotipia forjada
para eles no senso comum. Essa ótica pode tornar-se, assim, avassaladora e destituidora
de identidades.
Para Perlin (1999), o ouvintismo deriva de uma proximidade particular que se
entre surdos e ouvintes, na qual o ouvinte está sempre em uma situação de
superioridade. A ideologia ouvintista é tão forte, segundo ela, que muitas vezes não
permite ao surdo desenvolver uma identidade própria ou, no mínimo, uma consciência
oposicional. É como se o surdo estivesse condenado a se considerar eternamente uma
cópia imperfeita dos seres que ouvem.
Skliar (1999) chama a atenção para o fato de que o ouvintismo – ou o oralismo,
sua forma institucionalizada não deve ser compreendido somente como um conjunto
de idéias e práticas simplesmente destinadas a fazer com que os surdos falem e sejam
como os ouvintes. Os pressupostos que fundamentam e originam essas idéias precisam
ser compreendidos como a base epistemológica que autoriza tais práticas. Para o autor,
tais pressupostos podem ser: a) lingüístico-filosóficos, quando tomam o oral como
abstração e a gestualidade como concretude e obscuridade de pensamento; b) religiosos,
quando se prioriza a confissão através da palavra vocalizada; c) pseudocientíficos,
quando se afirma que a audição é imprescindível para o desenvolvimento humano; d)
políticos, demonstrados pela tentativa de controlar, ter sob domínio as minorias
lingüísticas ou sociais.
Voltando aos estudos sobre as identidades surdas, Perlin (1999) identifica,
entre múltiplas categorias possíveis, cinco diferentes facetas de identidades que podem
ser facilmente encontradas nos sujeitos surdos. Em termos discursivos, poder-se-ia dizer
que a construção das identidades surdas irá depender da relação que esses sujeitos
mantêm com o discurso de fundamentação ouvintista, por um lado, e com o discurso de
38
fundamentação surda, por outro. Tais discursos serão examinados em seus pormenores
na próxima seção.
Na surdez, tais identidades parecem constituir-se nos espaços fronteiriços entre
as culturas, as línguas e as comunidades surdas e ouvintes, podendo, segundo Perlin
(1999), ser classificadas como: 1) identidade surda em si: aquela que se sobressai pela
militância e consciência de definir-se politicamente diferente. É facilmente verificada
em surdos filhos de pais surdos; 2) identidade surda híbrida: costuma ser atribuída a
surdos que nasceram ouvintes e que, com o tempo, tornaram-se surdos. Apesar de a
autora referir-se apenas a casos que, como o dela
11
, foram em direção à formulação de
uma identidade surda, é preciso ressaltar que o oposto também pode ocorrer, ou seja,
existem aqueles que se voltam para a construção de identidades refletidas nos ouvintes;
3) identidade surda de transição: manifesta-se em surdos que viveram sob o domínio da
cultura ouvinte, em geral, os surdos oralizados, mas que posteriormente foram inseridos
na comunidade surda, passando pelo processo de “desouvintização” da representação da
identidade; 4) identidade surda incompleta: verificada em indivíduos que vivem sob a
dominação latente da ideologia ouvintista, negando as possibilidades de identidades
surdas e considerando os ouvintes como o padrão a ser seguido; 5) identidade surda
flutuante: apresenta-se onde os surdos vivem e se expressam a partir da hegemonia
ouvinte (de forma consciente ou não), não demonstrando, no entanto, satisfação ou
integração a nenhum dos seguimentos, nem o surdo, nem o ouvinte.
12
11
A autora tornou-se surda aos treze anos.
12
Pontuamos aqui que as tipologias de identidades acima, apresentadas por Perlin (1998), costumam ser
problematizadas. Vale ressaltar que identidades são complexas, heterogêneas e estão em constante
movimento, como nos revela Neves (2006).
39
1.3. Discursos sobre a surdez: formações discursivas em embate
As pessoas que ouvem jamais mudaram por nós. Sempre nos estigmatizaram
e rebaixaram a uma deficiência da vida, a uma inferioridade marginal numa
sociedade que designam dominada por eles. Então temos duas escolhas
apenas. Podemos escolher nos submeter ou podemos escolher não nos
submeter. Os surdos submissos seguem a trilha da cura de sua deficiência,
da “reabilitação”, da assunção da identidade do “colonizador”, da
mutilação de seus corpos em prol da adaptação ao ideal daquele que
coloniza o ouvinte. Os surdos não submissos reagem. Se auto afirmam como
o que são e sempre foram, enaltecem o orgulho e a auto estima por serem o
que são e resistem bravamente até o fim, firmes em seus objetivos de serem
aceitos e reconhecidos pelo que são. Depoimento de surdo militante citado
por Rezende & Pinto (2007, p. 207)
13
A epígrafe acima pode ser considerada como uma amostragem do que veremos
neste trabalho: distintos posicionamentos discursivos sobre a surdez. No texto acima, a
oposição se entre surdos ouvintizados (tidos como submissos) e surdos não-
ouvintizados (não-submissos e, portanto, reativos). Poder-se-ia dizer que a oposição do
texto acima estabelece uma relação orgânica entre discursos antigos e modernos sobre a
surdez.
Como podemos perceber, os discursos sobre a surdez vêm se movimentando e
alterando ao longo do tempo. É possível dizer que essa “nova” concepção de surdez,
cultural, identitária e não-patológica, foi inicialmente fundamentada e possibilitada pelo
reconhecimento tanto político quanto lingüístico da LS como língua genuína, de
expressão e vivência do povo surdo e, posteriormente, pela ascensão da filosofia
bilíngüe na educação de surdos. Foi, principalmente, a partir da década de 1980 que a
politização e o fortalecimento da comunidade surda conseguiram conferir uma nova
representatividade ao Movimento Surdo. Nessa época, as pesquisas sobre as LS já havia
13
Esse discurso foi colhido pelos autores no site de relacionamentos Orkut da comunidade Surdos
Oralizados.
40
consolidado o valor de ngua de tais línguas e a filosofia de educação bilíngüe
14
para
surdos ganhou força e expressão renovada.
Toda essa dicotomia entre línguas e culturas faz emergir da surdez discursos
diversos que nos mostram que “o significado de ser surdo tem mudado ao longo do
tempo”, como nos diz Perlin (2003). Ser surdo significou, em um passado nem tão
distante, apenas se desenvolver como o avesso da norma. Era aceitar o espaço e o lugar
que lhe eram atribuídos, convalecendo-se de sua própria existência. Certamente, se
perguntássemos a um surdo comum do culo XIX ou do início do século XX sobre o
significado de ser surdo, sobre o significado da sua experiência de vida surda, a sua
resposta, provavelmente, não destoaria dos saberes sociais e científicos em relação à
surdez difundidos em sua época, e sua experiência de vida não poderia, em
contrapartida, estar à frente daqueles saberes. Em outras palavras: um surdo, naquela
época, dificilmente poderia interpretar a sua “diferença” como igualdade e completude,
uma vez que esses saberes (e essa vivencia) ainda não eram difundidos em seu tempo.
Nas últimas décadas, no entanto, assistimos à reinvenção da surdez, e
certamente o significado de ser surdo vem sendo alterado por ela: como pudemos
observar, os surdos têm sido deslocados do campo clínico para o campo lingüístico e
cultural, tanto no universo acadêmico, quanto nas práticas sociais. Na universidade,
pode-se dizer que o interesse por questões relacionadas à surdez cresceu
horizontalmente (quantitativamente), fazendo aumentar a incidência de pesquisas em
14
Para Sánches (1990), o modelo de educação bilíngüe parte do reconhecimento de que os surdos estão
em contato com duas nguas e que uma delas é a língua de sinais. Cabe ressaltar que o bilingüismo não
traz apenas implicações lingüístico-pedagógicas, mas também conotações políticas e ideológicas em
relação ao reconhecimento e ao respeito ao povo surdo. A importância da filosofia bilíngüe deriva do fato
de que ela não supõe apenas o convívio pacífico das duas modalidades de língua (língua oral e língua de
sinais) no ambiente escolar. Supõe, antes de tudo, compreender que quando se aceita uma língua, se
aceita também a cultura na qual essa língua está inserida, assim como as imagens identitárias do povo que
a vivencia. O bilingüismo supõe heterogeneidade e multiculturalismo no contexto escolar, não apenas
sistemas lingüísticos diversos.
41
diversas áreas, como a educação, a lingüística, a psicologia e a sociologia,
demonstrando, nesses espaços, crescimentos agora verticalizados, isto é, qualitativos.
Na prática social, o lugar de ocupação surda tem comprovado esse
deslocamento teórico: os surdos têm se deslocado das APAEs e das Escolas Especiais
para as escolas comuns, das clínicas fonoaudiológicas para as cadeiras das
universidades. Esse deslocamento parece acontecer em rede, ocasionando rupturas e
realocações outras, reorganizando as relações de saber-poder da surdez na sociedade e
da surdez consigo mesma.
Contudo, pode-se observar que discursos modernos e tradicionais sobre os
surdos coexistem lado a lado, tanto entre os profissionais que lidam com o grupo,
quanto entre os próprios sujeitos, demonstrando assim que a surdez não é um “objeto”
uno, tampouco homogêneo.
Para que se compreendam os discursos sobre a surdez correntes no meio
surdo
15
, é preciso levar em conta, antes de mais nada, que conceituar a surdez tem
gerando certa polêmica (discursiva) entre diferentes áreas de conhecimento: certamente,
não há exatamente um consenso teórico entre as ciências da saúde, a educação, a
antropologia e as ciências da linguagem sobre o “objeto” surdez.
Se para alguns ela é tecida pela rede da identidade lingüística e cultural, tendo
como implicação aceitar a sua ausência de sons e elevar a língua de sinais a um lugar
privilegiado nas relações lingüísticas, educacionais e sociais que envolvam os surdos,
para outros, ela passa pelo crivo do direito à “igualdade” (fisiológico-auditiva) e da
reabilitação para a inclusão. Por esse prisma, os surdos precisam desenvolver suas
potencialidades oral-auditivas como forma de garantir sucesso sócio-educacional. Trata-
15
“Meio surdo” refere-se aqui ao universo discursivo que lida com a surdez, seja entre os profissionais da
área, entre os próprios surdos, ou no senso-comum.
42
se de formações discursivas (FDs)
16
que se opõem e que emanam, muitas vezes, da
própria “imagem” da surdez discursivamente construída na própria surdez, ou seja, os
próprios surdos (e não apenas pesquisadores e educadores) elegem para si determinadas
concepções de surdez. Enquanto alguns a rejeitam, outros fazem dela a sua força.
Apesar da polêmica, seria possível promover uma tentativa de sistematização
de tais discursos sobre tal “objeto”, dividindo-os em pelo menos dois grandes blocos
ou duas FDs –, aos quais os diferentes grupos de profissionais das áreas citadas irão se
filiar, promovendo as adaptações necessárias e especificando a sua relação com o objeto.
A primeira formação discursiva (FD) pode ser considerada como originária do
domínio clínico. Nela, apresentam-se conjecturas e propostas baseadas em posturas e
terapias capazes de fazer com que o surdo “supere”, contorne a surdez, como forma de
alavancar o seu desenvolvimento lingüístico e social. Assume-se, assim, um discurso
que pode ser considerado de fundamentação ouvintista. Práticas oralistas, que visam a
levar o surdo a “falar” e a treinar a audição, podem ser consideradas as premissas
básicas (mas não únicas) dessa FD. Resta compreender que princípios ou filosofias
estão por detrás de tais práticas. Denominamos, assim, FD clínica ou de fundamentação
ouvintista aquela que concebe a surdez como uma patologia que precisa ser tratada.
A segunda formação discursiva que, por sua vez, pode ser considerada como
oriunda do domínio lingüístico-antropológico, postula que os surdos podem viver e se
desenvolver na/pela surdez, sem combatê-la. Tal FD se ancora em princípios
lingüísticos, culturais e identitários que especificam os povos surdos, ostentando um
discurso que pode ser considerado de fundamentação surda. Denominamos, pois, FD
lingüístico-antropológica ou de fundamentação surda aquela que compreende a surdez
16
A noção de formação discursiva, que será retomada no capítulo 2, foi primeiramente apresentada por
Foucault e, posteriormente, reelaborada por Pêcheux no quadro da Análise do Discurso. Comumente
define-se uma FD como o que pode e o que deve ser dito em uma dada conjuntura, determinando, ao
mesmo tempo, certa regularidade e certa dispersão de sentidos.
43
a partir de seu reconhecimento lingüístico e cultural. Antropológica deve-se ao fato de
que aqui os surdos são vistos a partir da sua condição humana (de povo específico) e
não a partir da sua condição acústico-fisiológica. Fundamentação surda, por sua vez,
deve-se ao fato de que esse discurso parece buscar o reconhecimento da surdez a partir
dela mesma, isto é, é desejo de seus locutores ressignificar esse conceito na sociedade.
Para tanto, partem de si e se fundamentam mais em questões relativas ao funcionamento
interno do grupo do que em questões externas a ele.
Apesar da descrição das FDs acima evocar, em alguma medida, a dicotomia
oralistas versus bilingüistas no quadro educacional da surdez, cabe ressaltar que tais
discursos não partem de princípios educacionais, mas de filosofias que definem uma
concepção de surdez, seja na educação, seja na lingüística ou mesmo no senso comum,
o que, por sua vez, irá determinar a semântica global de cada discurso.
Ressaltamos ainda que o discurso do bilingüismo, em voga na atualidade, vem
se transformando em modismo vazio e costuma ser usado sempre que a língua de sinais
se faz presente na educação de surdos, fato que não é suficiente para caracterizar tal
prática. De forma análoga, diante das “marcas de agressão” deixadas na comunidade
surda pelo oralismo, dificilmente algum profissional se apresenta como adepto a ele,
apesar de a práxis pedagógica ou discursiva às vezes revelar exatamente o contrário.
Diante dessas evidências, dizemos aqui que dados discursos são de
fundamentação ouvintista ou de fundamentação surda, e não oralistas ou (bi)lingüistas
em si mesmos.
Reconstituindo a rede interdiscursiva e as determinações sócio-históricas e
ideológicas que atravessam essas FDs poderemos levantar hipóteses sobre a filiação de
dado discurso a essa ou aquela base, ainda que seus locutores não o admitam
explicitamente, uma vez que, na perspectiva teórica que assumimos para este trabalho
44
a da chamada análise do discurso de tendência francesa –, os não-ditos também
significam.
Com base em Skliar (1999, p. 9), esclarecemos ainda que a temática da surdez
na atualidade configura-se como um território de representações que não podem ser
facilmente delimitadas em “modelos sobre a surdez”. Como alerta o autor, é preciso
pensar não apenas nas oposições decorrentes dos “modelos clínicos” e dos “modelos
antropológicos”, mas “também nos matizes, nos espaços vazios, nos interstícios, nos
territórios intermediários que não estão presentes nesses modelos,” transitando e
flutuando entre eles, “como por exemplo as significações lingüísticas, históricas,
políticas e educacionais”.
Isso implica que, apesar de o modelo clínico ser compreendido como “o
disciplinamento do comportamento e do corpo para produzir surdos aceitáveis para a
sociedade dos ouvintes”, em algumas representações ditas antropológicas o discurso
parece ser exatamente o mesmo. A língua de sinais, em ambos os casos, parece ser um
meio eficaz de resolver a questão da oralidade dos surdos, mas não, por exemplo, “um
caminho para a construção de uma política das identidades surdas”. Da mesma maneira,
determinadas representações sobre a educação bilíngüe se apresentam como uma
ferramenta conservadora e politicamente eficaz que reproduz uma prática voltada para o
monolingüismo: “utilizar a primeira ngua do aluno para acabar rapidamente com ela,
com o objetivo de alcançar a língua oficial”. (SKLIAR, 1999, p. 10). O que almejamos,
ao recortar determinado espaço discursivo no campo discursivo
17
da surdez não é,
portanto, buscar “modelos definidos de surdez”, encontrando a “verdade” por detrás
deles, mas justamente deslindar os diferentes matizes, os possíveis interstícios, os
17
As noções de campo e espaço discursivo, bem como outras noções a que se faz referência nesta seção,
como, por exemplo, a de semântica global, a de interincomprensão ou a de interdiscurso, serão
reapresentadas e discutidas no capítulo 2, que trata da fundamentação teórica.
45
entrelugares discursivos que podem ser apreendidos a partir do sujeito surdo,
vislumbrando significações lingüísticas, históricas e político-ideológicas de base.
Dizendo de outra maneira, refletiremos sobre as manifestações discursivas desse espaço,
partindo do princípio da interdiscursividade e de uma semântica global
(MAINGUENEAU, 2005) que controlaria todas as dimensões do discurso, funcionando
como uma rede de restrições e determinando as possibilidades discursivas de cada
posicionamento.
Voltando à questão dos discursos sobre a surdez, cabe-nos inquirir (antes de
focalizar nosso objeto de estudo: os discursos construídos pelos surdos) quais seriam as
concepções de surdez para os profissionais que lidam com surdos, uma vez que eles são
responsáveis, em grande medida, pela difusão e propagação de discursos sobre a surdez
em diversas esferas sociais (incluindo aí, porque não, a própria comunidade surda).
Podemos responder a essa questão olhando mais de perto para o congresso do
INES Instituto Nacional de Educação de Surdos realizado em 2005, no Rio de
Janeiro.
O INES é um órgão do Ministério da Educação que tem 151 anos de existência
e pode ser considerado um centro de referência nacional na área da surdez
18
. Os anais
do congresso, ocorrido em 2005, podem ser tomados como uma amostragem
interessante, uma vez que os títulos dos trabalhos podem nos indicar posicionamentos
discursivos e ideológicos. Conferências como “Conseqüências da privação auditiva no
18
Em 1857, durante o Império de D. Pedro II, o professor francês surdo Hernest Huet fundou no Brasil,
com o apoio do imperador, o Imperial Instituto de Surdos Mudos. Na época, o Instituto era um asilo, onde
eram aceitos surdos do sexo masculino (cf. www.ines.org.br). Atualmente, o INES é um órgão do
Ministério da Educação que objetiva produzir, desenvolver e divulgar conhecimentos científicos e
tecnológicos na área da surdez no território nacional. Devido ao seu tempo de existência, o INES
presenciou vários dos desdobramentos da história dos surdos, assistindo à construção e à desconstrução
de inúmeras “verdades” sobre a surdez.
46
processo evolutivo” ou “Implante coclear
19
certamente são subordinadas à FD clínica
ou de fundamentação ouvintista, ao passo que trabalhos como “LIBRAS nas
Universidades” ou “Comunicando e expressando com o teatro surdo”, são condizentes
com a FD lingüístico-antropológica ou de fundamentação surda.
Explicamos uma vez mais: os adeptos da primeira FD acreditam que a surdez
(falta de audição) é o grande problema dos surdos, e que, portanto, os sujeitos que não
ouvem precisam ser reabilitados, “consertados” e “polidos”, de forma a se aproximarem
o máximo possível do padrão de “normalidade”, que é a audição. Os estudos realizados
nessa vertente versarão, portanto, sobre o não-ouvir e os problemas e/ou soluções que
derivam desse estado. Os que se inserem na FD lingüístico-antropológica ou de
fundamentação surda, por sua vez, não discutem a surdez (falta de audição), mas ao
contrário, postulam uma “nova” surdez, que definiria um povo, uma cultura e uma
língua. Os trabalhos se voltarão, portanto, para questões que tentarão definir os surdos
como um povo específico, com identidade própria, que não vê na surdez um problema e
que busca a melhor forma de se encaixar no mundo com essa surdez. Trata-se de
formações discursivas que se opõem, o que nos permite postular um “espaço
discursivo”, como será definido mais adiante.
E quanto ao grupo de enunciadores possíveis em cada formação discursiva?
Quem fala e de onde fala? Seria arriscado dizer que apenas determinados profissionais
enunciam do primeiro grupo e apenas outros, do segundo. O mais apropriado seria dizer
que os enunciadores picos da primeira FD são profissionais da saúde (médicos ou
fonoaudiólogos, por exemplo) e alguns educadores que apregoam modelos clínicos para
19
O implante coclear é um aparelho eletrônico, implantado na parte interna do ouvido, que é capaz de
oferecer informação sonora a indivíduos com perda auditiva profunda. Alguns segmentos surdos o
caracterizam como o fim do “direito de ser surdo”, enquanto outros o caracterizam como uma
contribuição possível à reabilitação.
47
o “tratamento” da surdez, seja na linguagem, seja na educação
20
. Por seu turno, os
enunciadores típicos da segunda FD seriam profissionais que centram suas atividades
mais na diferença (lingüística e cultural) e menos na dita “deficiência”, como sociólogos,
lingüistas, alguns psicólogos e demais educadores.
Observemos os exemplos abaixo, extraídos do Congresso mencionado
anteriormente:
A -
Se considerarmos que a expressão do pensamento depende muito das
palavras e que a comunicação interpessoal de hoje em dia é do tipo
audiovisual, bem podemos entender o dano enorme que a perda auditiva
produz no menino SURDO. O OUVIDO, realmente, veicula informações
essenciais na imagem que o menino vai construindo da sua própria pessoa,
do mundo ao seu redor e da sua integração com esse mundo.
(CESÁRIO,
2005, p. 24, grifos do original).
B - O teatro surdo é muito mais que uma “prova” de que sujeitos
“deficientes” possam realizar façanhas superiores [...] uma vez que os
olhares voltados para os alunos surdos são olhares com as visões política e
cultural da surdez. (FARIA, 2005, p. 149).
No excerto A, as figuras do “ouvido imperioso” e do “ouvido doente” são
evocadas quando o autor sugere que as informações essenciais ao sujeito são
acessíveis através do ouvido e, portanto, das palavras faladas. Se são acessíveis por
esse meio, o suposto déficit se destaca: “ouvido” e “palavra” aparecem aqui como as
principais figuras na comunicação. Considerando a expressão do pensamento como
dependente das palavras (e não dos signos, que podem ser orais ou visuais) o locutor,
médico (otorrinolaringologista), compreende, assim, a surdez como um processo danoso
ao sujeito, filiando-se, portanto, ao discurso de fundamentação ouvintista e, muito
provavelmente, mostrando-se supostamente coerente com os discursos de sua classe
profissional. O excerto A, bem como o restante do texto, mostra-se alheio à existência
das línguas visuais. No entanto, é através da LS que o sujeito surdo constrói a imagem
20
Essas parecem ser, aliás, concepções que também circulam no discurso do senso comum (aqui
entendido como o discurso dos leigos), como veremos mais adiante.
48
da
sua própria pessoa, do mundo ao seu redor e da sua integração com esse mundo.
Trata-se de uma substituição, não de uma falta.
O excerto B, ao contrário, não concebe a surdez como deficitária, o que é
condizente com a ideologia que subjaz à FD lingüístico-antropológica. Usando de ironia,
o locutor do excerto B recupera, de alguma forma, termos empregados pelo discurso
contrário (o discurso ouvintista). Recupera para negá-los, como revelam, por exemplo,
as aspas em termos como “prova” e “deficiente”, marcando a alteridade, a “voz” do
outro. Isso quer dizer que, quando se pensa no nível das possibilidades semânticas,
admite-se um espaço de troca, e não de identidade fechada, como veremos adiante.
É lançando mão de uma competência interdiscursiva que os falantes
reconhecem a incompatibilidade semântica das formações do espaço discursivo que
constituem o seu outro, da mesma forma que interpretam, traduzem esses enunciados
nas categorias de seu próprio sistema de restrições (MAINGUENEAU, 2005). Isso quer
dizer que aqueles que enunciam de cada uma das FDs em jogo parecem não conclamar
o “outro”, senão para estabelecer com ele uma relação polêmica.
Pode-se perceber, assim, que cada grupo de enunciadores irá tratar os temas
relacionados à surdez segundo a sua própria semântica global e o sistema de restrições
que emana dela. Em relação aos discursos produzidos pelos próprios surdos, o mesmo
poderá ser percebido. A diferença fundamental, no entanto, é que agora a discussão não
se dará sobre o outro (como no caso dos profissionais que falam do surdo e da surdez),
mas sobre o próprio sujeito que vivencia a surdez e sobre as suas escolhas de vida.
Tomemos, por exemplo, este trecho de uma entrevista concedida à Revista
Sentidos
21
pelo acadêmico deficiente auditivo
22
Bruno Galante:
21
A Revista Sentidos (www.sentidos.uol.com.br) é uma revista eletrônica mensal, cujo subtítulo explicita
o seu conteúdo: Revista Sentidos - a inclusão social da pessoa com deficiência”. Em suas páginas pode-
49
P. Acha importante para um deficiente auditivo a língua de sinais?
C - R: Eu não acho importante, muito menos necessário, pois isso faz com
que o deficiente auditivo faça mais parte do mundo de deficientes do que do
mundo normal. É por isso que rejeição e discriminação. A Libras
dificilmente é aceita pelos ouvintes e por isso os deficientes auditivos m
que se contentar com um mundo criado para eles: ter apenas amigos com
a mesma deficiência, sofrer com as rejeições e com as dificuldades impostas
pelo mundo. Ninguém entende uma pessoa que só se comunica em Libras. A
partir daí, começa a se sentir solitário por não existir alguém que o
compreenda. Já os empregos, em geral, buscam apenas essas pessoas por
causa da diversidade, o que é um preconceito. Por isso que eu prefiro o
oralismo que abre inúmeras portas em igualdade de oportunidades.
Nesse trecho, encontramos um posicionamento discursivo que claramente se
filia ao discurso de fundamentação ouvintista. Se pensarmos nas categorias de
identidades surdas apresentadas por Perlin (1998), poderíamos classificar a identidade
apresentada acima como identidade surda incompleta, ou seja, caso em que os surdos,
com suas especificidades, são negados em prol de uma tentativa de aproximação e
igualdade para com a sociedade ouvinte. Partindo de sua experiência para desconsiderar
a importância da Libras para os demais surdos, o sujeito parece generalizar a sua
experiência como a mais adequada para o grupo, sugerindo ainda que a rejeição e a
discriminação são decorrentes do uso da Libras e não da intolerância, quando diz que
ela “faz com que o deficiente auditivo faça mais parte do mundo de deficientes do que
do mundo normal. É por isso que há rejeição e discriminação”.
O entrevistado ainda toma o mundo como cindido em duas partes: o “mundo
dos deficientes” e o “mundo dos normais”, apresentando a Libras como o elemento
divisor. Diante dos universos cindidos, apresenta argumentos que demonstram a sua
intenção de fazer parte do mundo “classe A” dos normais: a Libras dificilmente é
se ler em língua portuguesa, assistir em Libras ou ouvir em forma de locução matérias que priorizam a
inserção dos deficientes nos mais diversos setores da sociedade.
22
“Deficiente auditivo” é a forma pela qual a revista caracteriza o estudante. É ainda a forma como o
próprio entrevistado se qualifica.
50
aceita
pelos ouvintes”, “ninguém entende uma pessoa que se comunica em Libras”,
“Já os empregos, em geral, buscam apenas essas pessoas por causa da diversidade, o
que é um preconceito”, demonstrando implicitamente (vide parte sublinhada) que as
questões que o fazem optar pelo “mundo dos normais” não estão nos deficientes, mas
nas percepções e imposições dos ouvintes. Esse último fragmento nos permite perceber
ainda que ele já não se considera como pertencente ao grupo dos chamados deficientes
(“essas pessoas”), mas integrado ao mundo dos ouvintes, e isso tudo, dirá ele, graças ao
“oralismo que abre inúmeras portas em igualdade de oportunidades”.
Ao apresentar um discurso muito próximo daquele que pessoas leigas
costumam construir sobre a surdez, por um lado, e, por outro, em consonância com o
discurso de fundamentação ouvintista, esse sujeito deixa transparecer a rede
interdiscursiva milenar que sustenta o seu discurso. Se atentarmos para a seleção lexical
que compõe o seu texto, perceberemos um léxico que há décadas, para não dizer séculos,
permeia o discurso do senso comum sobre a surdez, classificando-a como um quesito de
sofrimento: “rejeição”, “sofrer”, “deficiência”, “solitário”.
Percebemos, no excerto apresentado, o empenho do sujeito entrevistado na
construção de um efeito de sentido de objetividade, que generaliza e amplia
(apresentando escolhas como “verdades”, falando de “outros” e não de si). Porém, no
trecho final, resgata-se o caráter subjetivo que também abriu o seu turno de fala, o que
nos faz lembrar que suas colocações são resultantes de suas escolhas, não de verdades.
O acadêmico ainda projeta sobre si uma imagem de sujeito “bem resolvido” (ele se diz
oralizado, ou seja, usuário da língua portuguesa) quando atribui aos surdos, usuários de
Libras, sentimentos como os expressos em “começa a se sentir solitário por não existir
alguém que o compreenda”, “sofrer com as rejeições”, “Ninguém entende uma pessoa
que só se comunica em Libras”.
51
Por outro lado, podemos encontrar, na comunidade surda, posicionamentos
discursivos radicalmente opostos ao que foi mostrado acima, como ilustra o fragmento a
seguir, retirado da página pessoal de uma surda, na época, universitária
23
:
D - Eu tive de passar por muita coisa para ter identidade própria, a de ser
surda, tive de lutar, combater para chegar aqui, antes eu era mais como
“cópia de ouvinte”, muito submissa no poder dos ouvintes, estas histórias de
ouvintes que acham que ali e aquilo é certinho para o surdo, por exemplo, é
preciso falar bem e ler lábios para ter o mesmo “patamar” que os ouvintes,
justamente por isso que a educação de surdos no Brasil e no mundo andam
tão mal, tudo isso porque os surdos são muito sacrificados para serem
“reabilitados”, os surdos são “medicalizados”. Por mais absurdo que seja, o
objetivo da maioria das “escolas especiais” de surdos é reabilitar e não
educar.
Esse fragmento, condizente com o discurso de fundamentação surda, indica
uma identidade surda considerada militante e consciente. Não aborda o tema do trabalho,
como faz o fragmento anterior, mas apresenta o percurso semântico de luta lutar,
combater, submissa, poder e de vitória “Eu tive de passar por muita coisa para ter
identidade própria [...] combater para chegar aqui”.
Nesse fragmento, a recorrência das aspas, enquanto marcas da heterogeneidade
mostrada, chamou a nossa atenção. No dizer de Maingueneau (2008, p. 159), o locutor
24
delega ao destinatário, através das aspas, “a tarefa de compreender o motivo pelo qual
está chamando assim a sua atenção e abrindo uma brecha no seu próprio discurso”.
Acreditamos que em discursos politicamente marcados, como podem ser considerados
os discursos sobre a surdez, o emprego das aspas pode mostrar-se como uma estratégia
eficaz de persuasão, uma vez que elas mobilizarão o destinatário no exercício do papel
de “co-enunciador”, levando-o a preencher as lacunas, o que contribuirá para a
construção de sentidos do texto, implicando, quem sabe, uma adesão a eles. E para que
23
http://www.geocities.com/HotSprings/7455/patricia.html. Acesso em: junho de 2008.
24
Nessa obra, Maingueneau emprega o termo enunciador. De nossa parte, para evitar confusões com a
distinção que Ducrot faz entre locutor e enunciador, distinção essa que o próprio Maingueneau assume
em outros momentos, preferimos utilizar aqui o termo “locutor”.
52
as lacunas sejam preenchidas corretamente, alerta Maingueneau (2008), é necessária
alguma conivência entre as partes, ou seja, por um lado, será a partir da representação
que faz de seus destinatários que o locutor construirá seus argumentos e deixará brechas
preenchíveis; por outro, o destinatário precisará construir certa representação do
universo ideológico do locutor para co-enunciar ao seu lado.
Lançamos algumas possíveis interpretações para a primeira expressão entre
aspas do excerto: “cópia de ouvinte”, projetando diferentes leitores para diferentes
lugares interpretativos. Se imaginarmos que, a princípio, o leitor-modelo seria alguém
que parece transitar com desenvoltura entre os universos surdo/LS e ouvinte/LP,
poderíamos supor que as aspas demarcariam, ainda que intuitivamente, o universo em
que tal expressão pode ter se originado ou, pelo menos, aquele em que ela certamente
circula com maior propriedade: o universo surdo/LS. As aspas denotariam, então, uma
expressão oriunda da Libras e muito comum no universo surdo, cuja tradução em
português se deu provavelmente de maneira direta, despretensiosa (em Libras, seria a
junção do sinal COPIAR + o sinal OUVINTE).
Na mesma linha de raciocínio, poder-se-ia dizer ainda que se destacou tal
expressão por ela ser demasiadamente conhecida, cristalizada em dada comunidade
de fala, e isso poderá evocar sentidos prévios, pondo em cena a memória discursiva
dessa comunidade. O leitor-modelo, por essa via interpretativa, seria, portanto, o
próprio povo surdo. Por via interpretativa complementar, podemos também supor que se
destaca tal expressão justamente por antever que nem todos os leitores serão capazes de
resgatar os desdobramentos de sentidos possíveis, sinalizando que se trata de uma
expressão usual e projetando agora um leitor-modelo iniciante nas questões surdas.
Essa última hipótese poderia justificar os enunciados seguintes, que mais parecem
algum tipo de esclarecimento para a expressão enunciada.
53
Nas próximas quatro palavras/expressões aspeadas do excerto, o locutor faz
uso da ironia para compor sua argumentação. Em “patamar”, “reabilitados”,
“medicalizados” e “escolas especiais” percebemos uma espécie de “divisão interna da
instância da enunciação” (MAINGUENEAU, 2008, p. 178), pois aquilo que o locutor
assume, no plano do enunciado, é negado por um enunciador no plano da enunciação,
ou seja, o locutor subverte a sua própria enunciação, ao apontar nela elementos
estranhos que remetem a uma outra “voz”, a um outro discurso a que se opõe (ou, mais
precisamente, a cujo simulacro se opõe). Em outras palavras, o locutor assume as
palavras, mas não o ponto de vista que representam (que deve ser atribuído a um outro
“espaço enunciativo”). Na última expressão, “escolas especiais”, as aspas parecem
também representar um comentário implícito do locutor sobre a sua própria enunciação,
o que poderia ser chamado de uma “não-coincidência do discurso consigo mesmo”, no
dizer de Authier-Revuz (1998), ou seja, substituindo as aspas poderíamos encontrar uma
expressão como as chamadas escolas especiais. Nesse caso, a ausência da expressão em
destaque (substituída pelas aspas) não acarreta perdas significativas de sentido.
Por fim, é apresentada a temática da educação como um desdobramento da
discussão em torno da expressão “cópia de ouvinte”. Ao atribuir a qualidade da
educação de surdos no Brasil e no mundo à reabilitação, o locutor se coloca como um
conhecedor dos problemas da educação de surdos não do seu país, mas do mundo,
construindo uma imagem de autoridade e sabedoria diante das questões que pontuou.
Se focalizarmos a cena enunciativa como um todo, entenderemos que a
motivação de fala dos sujeitos se relaciona ao ingresso na universidade. Na entrevista,
esse tema pode ser apreendido desde o subtítulo da matéria: “Estudante de comunicação
na FAAP, deficiente auditivo, afirma que o mais importante é acreditar em si mesmo”
(grifos nossos), enquanto, na página pessoal da estudante surda, esse mesmo tema pode
54
ser percebido em suas narrativas autobiográficas.
Pode-se dizer que ambos os fragmentos (C e D), como recortes de textos
maiores, apresentam, portanto, “receitas para o sucesso”, que é visto aqui como o
ingresso na universidade. Enquanto o primeiro sujeito acredita que o caminho é manter-
se em conformidade com os padrões esperados (os dos não-surdos), alcançando, assim,
melhores “oportunidades”, o segundo acredita que a vitória deve vir da ruptura com essa
“submissão” que, no seu entender, seria justamente querer-dever estar em conformidade
com os padrões mencionados, ignorando a possibilidade de criação de uma nova norma,
no caso, a norma surda.
Como podemos perceber a partir dos exemplos apresentados, ouvintistas
(surdos ou profissionais) defenderão um “tratamento” para a surdez, verão a língua de
sinais como acessória (uma vez que o mais importante será o aprendizado da língua
portuguesa) e tomarão a educação como uma espécie de terapia que irá melhorar o
sujeito. O sistema de restrições dessa FD indicará temáticas silenciadas, como a questão
da cultura. Em contrapartida, aqueles que partem de um discurso de fundamentação
surda verão na surdez um fator identitário, elegendo a língua de sinais como a língua
natural e advogando em favor de uma educação que, calcada nessa modalidade de
língua, ofereça ao surdo condições de desenvolvimento específicas à surdez. Os temas
silenciados serão aqueles
relacionados a uma visão clínica da surdez.
O esquema a seguir sintetiza as idéias mais recorrentes em cada FD e o
tratamento que cada uma delas confere a determinadas temáticas:
55
Temas
1 – FD clínica 2 – FD lingüístico-
antropológica
Surdez
Tratamento, reabilitação Identidade
Língua de Sinais
Fator acessório,
metodológico
Constitui o sujeito e é a 1ª
língua
Educação
Modelo terapêutico Questão desvinculada da
Educação Especial
Língua portuguesa
Oral e escrita Escrita
Cultura e Identidade
Silenciamento Específicas e
fundamentadas na surdez
Reabilitação e terapia
Diminuem os efeitos da
surdez
Silenciamento
Quadro 1
A partir do quadro I, podemos perceber como quase antagônicas as abordagens
que cada FD confere às temáticas acima, ocasionando, por vezes, entre os partidários de
cada discurso, o fenômeno da interincompreensão discursiva. Mas é possível que tais
formações, não sendo consideradas fechadas em si mesmas, possam imbricar-se e
reorganizar-se em determinados pontos, dando origem a outras FDs, a posicionamentos
fronteiriços e a interstícios preenchidos pelas mais variadas vivências e crenças.
Verificaremos, adiante, como essas questões se estabelecem no corpus da pesquisa.
1.4. Notas sobre a escrita de surdos
Como vimos, a LS é considerada a primeira língua (L1) da população surda.
No contexto brasileiro, ao português é reservado um estatuto de segunda ngua (L2);
ele é considerado uma língua estrangeira (LE)
25
para os surdos, enquanto a língua
brasileira de sinais (Libras) é reconhecida como a língua materna e natural do povo
surdo. A distinção entre L1 e L2 não diz respeito aqui apenas à seqüência temporal de
25
A exemplo de Ellis (1998), usaremos segunda língua (L2) e língua estrangeira (LE) indistintamente.
56
aquisição lingüística. Para muitos autores, a LS sempre terá o status de L1 para o surdo,
ainda que a sua apropriação tenha ocorrido posteriormente à aquisição da língua oral. A
explicação não podia ser mais simples: a LS constitui-se como a língua viável aos
surdos, tanto em relação aos processos articulatórios (os olhos captam a mensagem e as
mãos a produzem), quanto em relação aos processos cognitivos e criativos, uma vez que,
em LS, o surdo se vê capaz de criar e agir sobre o sistema lingüístico.
Em relação à constatação do estatuto de segunda língua do português na surdez,
comumente se costuma pensar que surdos estariam em uma condição privilegiada para o
processo de aprendizagem da L2, uma vez que eles dividem com os falantes nativos da
língua o mesmo espaço social, ou seja, os surdos estariam imersos em um ambiente
propício a aquisição dessa língua.
Mas, ao contrário do que se pode supor, conforme relata Quadros (1997), os
surdos não se encontram imersos em um ambiente natural e propício para a aquisição da
língua oral. Nas palavras da autora:
Pensando na realidade dos surdos brasileiros, poder-se-ia supor que o
ambiente fosse caracterizado como natural, pois quase todas as pessoas com
quem eles convivem usam a língua portuguesa, isto é, os surdos estão
“imersos” no ambiente em que a língua é “falada”. No entanto, a condição
física das pessoas surdas não lhes permite o acesso à língua portuguesa de
forma natural. Na verdade, nestes casos não “imersão”, no sentido em
que o termo é empregado nas propostas de aquisição de L2 com base no
enfoque natural (programas de imersão). Portanto, o ambiente de
aquisição/aprendizagem da L2 para os surdos não é natural. (QUADROS,
1997, p. 15).
Por não estarem “imersos” na comunidade de fala da língua portuguesa,
adquirindo tal língua apenas na modalidade escrita, sem referência à sua existência
fonético-acústica e partindo de uma língua de modalidade visual-espacial como
referência, a aquisição da linguagem escrita
26
tem-se revelado um processo árduo para
26
“Leitura/escrita” e “fala” são habilidades distintas e independentes. No Brasil, por exemplo, em muitas
escolas especiais, o aprendizado da leitura e da escrita da LP costumava ocorrer concomitantemente ao
57
os aprendizes-surdos e como um desafio teórico e prático para educadores e lingüistas.
A maioria dos surdos, como os congênitos ou os pré-lingüísticos, terão acesso
satisfatório à língua oral (no nosso caso, o português) através da escrita; será por esse
único meio que eles passarão pela experiência da enunciação em uma língua de
modalidade oral-auditiva, daí a complexidade e a importância dessas questões.
Assim, os surdos trazem para o processo de escrita marcas específicas,
advindas tanto da sua língua sinalizada quanto do seu padrão correspondente de
processamento lingüístico-cognitivo. Ao longo do tempo, na literatura especializada,
marcas surdas
27
na escrita têm sido compreendidas de diferentes maneiras, elencamos
algumas delas: a) como conseqüência de processos educacionais e/ou metodologias
ineficientes; b) como característica do estágio de aprendizagem em que o sujeito se
encontra, manifestando distintos estágios de interlíngua; c) como “problemas” ou
“desvios” de escrita.
Discutiremos, de maneira sucinta, os vieses teóricos apresentados acima,
pontuando as implicações de ordem prática decorrentes de cada um deles. Buscaremos
discutir mais detalhadamente a letra c, pois esta ainda é a posição mais recorrente e,
como se verá, a mais inadequada das três.
O primeiro viés (letra a) compreende as características da escrita surda como
resultantes, em grande medida, de práticas pedagógicas ineficientes, que podem ser
decorrentes, por exemplo, da concepção de educação e de sujeito correntes nas escolas
especiais. Essas escolas foram vistas como um misto de “clínicas” e de “instituições de
ensino”, culpabilizadas, portanto, pelo fracasso escolar dos surdos, sendo a sua validade
aprendizado da fala, fato que acarretava prejuízos à aquisição da escrita. Nas chamadas “escolas
inclusivas”, e em muitas escolas especiais modernas, essa prática já não existe.
27
Marcas surdas referem-se aqui às características de escrita que podem (ou não) aparecer em textos
escritos por surdos, como, por exemplo, verbos no infinitivo, ausência de preposições, etc.
58
educacional por vezes colocada em dúvida. Comumente se diz que nessas escolas o
ensino não protagoniza a história vivenciada pelo sujeito, mas divide a cena com
práticas terapêuticas que visam à sua [do sujeito] “normalização”. Com isso, o tempo
destinado a práticas de letramento e ao ensino-aprendizagem de conteúdos curriculares
fica drasticamente reduzido.
A partir da ascensão da chamada educação inclusiva, reflexões sobre a
inclusão de alunos surdos no ensino regular têm lançado novas luzes às pesquisas sobre
educação de surdos no Brasil. E, após a estabilização dessa conquista, muitos estudos
têm realizado um balanço da situação.
Autores como Souza & Góes (1999) e Lacerda (2006), por exemplo, examinam
o processo de inclusão de surdos com criticidade e responsabilidade, revelando, entre
outras coisas, que muitas escolas ditas inclusivas desconhecem implicações
educacionais básicas relativas à surdez
, fato que se observa tanto frente à não-
ocorrência de adaptações curriculares (que seriam necessárias), quanto em relação à
ausência ou inadequação de estratégias metodológicas direcionadas aos surdos, o que
proporciona, na verdade, a exclusão educacional do aluno surdo na sala de aula dita
inclusiva. Por esse viés, questões de ensino determinariam os níveis de leitura e escrita
dos surdos, levando-os ao sucesso ou ao insucesso no processo de aprendizagem.
O segundo viés (letra b) compreende a especificidade da escrita surda a partir
de teorias da aquisição lingüística, considerando que a apropriação de uma segunda
língua não acontece de maneira imediata, mas como um processo que se desenvolve em
etapas sucessivas e ao longo do tempo.
Assim, autores como Brochado (2003, p. 174) argumentam que a língua
utilizada pelos sujeitos no período de aprendizagem da LE costuma ser caracterizada
por “marcas de instabilidade” que demonstram que uma língua não é aprendida
59
mecanicamente, mas que o sujeito se mobiliza no uso de estratégias várias na
construção de hipóteses sobre a língua-alvo (BROCHADO, 2003, p. 174). Tais “marcas
de instabilidade” caracterizam, portanto, uma língua paralela e provisória que se
sustenta em um período da aquisição da LE.
Essa “língua” instável, com estrutura gramatical própria, que não pertence nem
à língua-fonte, nem à língua-alvo, pode ser chamada, entre outros nomes, de interlíngua,
como propôs Selinker (1972, citado por BROCHADO, 2007). Para autores como
Figueiredo (2005), a interlíngua é um processo natural que evidencia o desenvolvimento
lingüístico do aluno entre a língua-fonte e a língua-alvo, uma vez que ela reflete padrões
sistemáticos de estratégias e erros que virão a desaparecer se o aluno receber um input
suficiente e adequado.
A partir daí, Brochado (2003) & Quadros e Schiedt (2006) sustentam que na
escrita de surdos podem ser observados distintos estágios de interlíngua. Reconhecer
esse fenômeno pode resultar em novos investimentos no ensino de línguas a essa
população, uma vez que, segundo esse viés teórico, as marcas surdas na escrita são
compreendidas como transitórias e características da fase de aprendizagem em que o
sujeito se encontra.
O terceiro e último viés (letra c) compreende a escrita de surdos como
“problemática” e a caracteriza como errônea. Nos primeiros estudos sobre questões de
escrita na surdez, era essa a perspectiva mais recorrente e, ainda hoje, ela se mostra
produtiva. Comumente buscam-se descrever “os problemas de escrita” dos surdos,
discutindo as implicações educacionais a eles relacionadas. É o que fizeram, por
exemplo, Fernandes (1990) e Góes (1996), no Brasil.
Coube a Góes (1996) nos alertar que, de maneira geral, mesmo após anos de
escolarização, pessoas surdas continuam apresentando “sérias dificuldades” no uso da
60
modalidade escrita da língua portuguesa. Coube a Fernandes (1990) descrever e
enumerar alguns “problemas de escrita” comumente encontrados nas produções de
surdos. Estudos como os citados foram de fundamental importância para a compreensão
da linguagem escrita na surdez e contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento de
uma concepção lingüística desse fenômeno.
No estágio em que estamos, no entanto, descrever e apontar supostos “erros”
ou “problemas” não é mais suficiente. As pesquisas que o fizeram desempenharam um
papel de pioneirismo, como podem ser considerados no Brasil os estudos citados acima.
A nosso ver, é preciso considerar essa fase como superada. Os novos estudos
sobre a escrita de surdos precisam abordá-la a partir de novas perspectivas, precisam
fazer girar a engrenagem do tempo. Não se trata aqui de desmerecer os estudos que
compreendem as características da escrita surda como “dificuldades de escrita”, mas de
buscar compreender o processo de evolução das pesquisas sobre tal fenômeno.
As pesquisas sobre fenômenos lingüísticos na/da surdez parecem acompanhar
o processo de desenvolvimento das pesquisas sobre questões sócio-culturais e políticas
do grupo. A concepção de erro, por exemplo, parecia fazer sentido no quadro
epistemológico da “deficiência”. Se o sujeito apresenta um déficit (sensorial),
naturalmente apresentará, como conseqüência, “problemas”, “dificuldades” e
“inadequações” de ordens diversas. Por outro lado, conceber os povos surdos como
grupos cio culturalmente estabelecidos é um convite aberto a novas formas de se
compreenderem as manifestações lingüísticas desses grupos.
Karnopp (2005) e Pereira (2003) aceitam esse convite quando sustentam a
idéia de que a produção escrita dos surdos é estigmatizada. Para Karnopp (2005), uma
das maiores contribuições que lingüistas e educadores podem prestar atualmente é
61
“varrer” a ilusão da “deficiência verbal” atribuída à escrita surda, apresentando noções
mais adequadas sobre as relações entre língua portuguesa e língua de sinais.
É a partir da perspectiva dos autores citados que propomos a nossa forma de
conceber a escrita de surdos no presente trabalho. Nele, atravessaremos o plano de
expressão (verbal) do texto para estudar mais detidamente o plano de conteúdo
28
(o
discurso), que nosso objetivo é chegar à imagem de surdez construída
discursivamente pelos próprios sujeitos surdos através da escrita. É nosso desejo
demonstrar que o que chamamos de “escrita surda” não supõe apenas uma forma de
expressão (a ser avaliada e corrigida pela modalidade “padrão” da língua escrita), mas
também um conteúdo (um discurso) que não pode, pois, ser ofuscado pelo ideal da
escrita “higienizada”.
Considerando que uma língua é um objeto pluriforme e multifacetado,
tomaremos a escrita surda como uma variedade lingüística entre outras. O que estamos
propondo, portanto, é que se compreenda a escrita surda no âmbito da variação
lingüística.
O fenômeno da diversidade e da variação no interior de uma língua não é
novidade e não causa estranhamento. Tal fenômeno, no entanto, parece restringir-se à
modalidade oral. Isso quer dizer que, geralmente, admitem-se variações na fala, desde
que a escrita procure espelhar o “bom uso” da língua. É essa postura que contestamos
aqui. Assumir a tese da variação implica execrar a noção de erro, de insuficiência e de
incapacidade lingüística do surdo na língua escrita. Implica também repensar as práticas
pedagógicas que, implícita ou explicitamente, partem desse princípio. Não nos
deteremos nessa questão, pois não se trata do nosso objetivo no presente estudo.
28
Conforme propõe a semiótica greimasiana, todo texto é dotado de um plano de conteúdo (o do discurso,
em que se projetam as idéias) e de um plano de expressão (em que os conteúdos são manifestados
verbalmente ou não). Ver a esse respeito Fiorin (1995).
62
Lançamos, no entanto, a semente de uma posição lingüística – e política que pode (ou
não) mostrar-se fértil futuramente, posição essa que será considerada por nós na análise
dos textos apresentada no Capítulo 3.
Nesse sentido, reafirmamos que a escrita surda não é nem menos correta nem
menos elegante do que outras variedades (sobretudo a padrão), mas apenas específica, já
que se prende a um dado grupo social (o dos surdos), com características próprias.
Dizendo de outra maneira: neste estudo, consideraremos a escrita surda como uma
variedade sócio-cultural específica, como o socioleto
29
dos surdos do Brasil. Com isso
queremos propor, como faremos no Capítulo 3, que o movimento de compreensão da
escrita surda ocorra do plano de conteúdo para o plano de expressão, privilegiando mais
o que está sendo dito do que a forma de dizê-lo, pois, como afirmamos, muitas vezes as
especificidades encontradas no plano de expressão não comprometem o plano de
conteúdo. Esse movimento pode acontecer também no ensino, isto é, antes de se
preocuparem em ensinar formas corretas aos surdos, os professores deveriam se
preocupar em desenvolver o raciocínio e elaboração de argumentos nos alunos, mas isso
é discussão para um outro momento (um outro trabalho).
Em síntese, acreditamos que insistir nos chamados “erros” e relegar a um
segundo plano as idéias que subjazem ao texto pode estar sendo uma tarefa inócua para
muitos professores. Não queremos dizer com isso que os supostos “erros” devam ser
ignorados, pois, muitas vezes, eles prejudicam a coerência e, conseqüentemente, a
construção de sentidos do texto. O que estamos dizendo (e que procuraremos
demonstrar mais adiante) é que a atividade de escrita mobiliza habilidades que vão
muito além da adequação ou inadequação formal à variedade padrão da língua.
29
De acordo com Barthes (1998), socioleto é a variedade de língua falada por dada classe ou dado grupo
social. Nisto, diferencia-se do dialeto, que é a variedade peculiar a uma certa região.
63
CAPÍTULO 2 - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
2.1- A constituição do corpus
O corpus do presente estudo foi constituído de textos escritos por surdos
universitários. Entre outros motivos, esse nível de ensino foi escolhido pela importância
histórica, política e social da chegada dos surdos à universidade
30
. Assim, pretendemos
delinear a imagem da surdez produzida por surdos universitários, averiguando como ela é
discursivamente produzida em português escrito, de modo a buscar compreender o(s)
posicionamento(s) de uma “nova” classe de surdos (os surdos universitários) sobre a
condição da surdez.
Devido em grande medida a políticas de expansão do ensino superior e a
programas de apoio à inclusão educacional, a expressão surdos universitários tem-se
tornado uma realidade em ascensão no Brasil. Surdos que, décadas, mal sabiam ler e
escrever, hoje freqüentam faculdades e formam-se como professores, advogados,
dentistas, etc. Integram-se a programas de mestrado e doutorado e produzem ciência.
Gladis Perlin, atualmente professora do Departamento de Educação da UFSC e a
primeira surda a doutorar-se no Brasil em 2003, tornou-se uma figura histórica – diríamos
mesmo, lendária para os surdos brasileiros. Um exemplo a ser sempre citado e seguido
pelas comunidades surdas do Brasil.
A nosso ver, pelo menos três conquistas parecem ter contribuído para a chegada
dos surdos à universidade: a) a melhoria da educação básica; b) a expansão do ensino
30
As inúmeras dificuldades encontradas na coleta de dados também contribuíram para essa escolha.
Mesmo assim, como se verá adiante, nossa tarefa não foi cil. Se tal “recorte”, por um lado, delimitou o
corpus, tornando nossa pesquisa mais restrita, por outro, nos forneceu dados relevantes para compreender
melhor o discurso do povo surdo ou, pelo menos, de uma parte significativa dele. De qualquer forma, o
campo permanece aberto para pesquisas mais abrangentes e/ou profundas.
64
superior; e c) a politização das comunidades surdas.
A primeira delas está intimamente relacionada ao uso e à difusão da língua de
sinais (LS) nas escolas, sejam elas inclusivas, exclusivas para surdos ou especiais. O
incremento consistente da LS nas escolas (através do profissional intérprete) representou
uma via de acesso ao conhecimento para os alunos surdos, além de ter proporcionado um
melhor aproveitamento das suas potencialidades intelectuais. A segunda conquista foi
possibilitada pela expansão do ensino superior no Brasil, representada pelo crescimento
do setor privado nesse domínio e pelo conseqüente aumento do número de vagas. Soma-
se a essas duas questões o fortalecimento político do povo surdo que, agora mais
consciente de si e do mundo, se engaja em movimentos classistas pelo reconhecimento,
às vezes aparentemente contraditório, de seus direitos e de sua “normalidade
31
”. Apesar
de o número de surdos universitários no Brasil ser provavelmente baixo, não podemos
nos esquecer de que ele é historicamente significativo.
Nessa perspectiva, para apreender os discursos que nos permitiriam chegar à(s)
(auto)imagem(ns) do ser surdo na condição de surdez, optamos por aplicar um
questionário a surdos universitários. Como se verá, trata-se de um questionário semi-
aberto, ou seja, com duas questões fechadas e uma aberta. A opção pelo questionário
como fonte de dados deve-se, principalmente, ao fato de não haver manifestações
discursivas de surdos universitários disponíveis a priori.
É preciso registrar aqui que a constituição do corpus foi uma etapa difícil da
pesquisa: foi necessário, inicialmente, fazer um levantamento da localização e da
concentração de surdos universitários no Brasil. Pensamos em delimitar uma região
31
Contraditório porque, ao mesmo tempo em que o povo surdo espera poder um dia se livrar do estigma
da “deficiência”, defendendo a co-existência de uma “civilização surda” no mundo, eles lutam também
pela defesa de seus “direitos surdos”; direitos que os enquadram no rol das deficiências. Para alguns
líderes surdos, esse duplo movimento não é contraditório, mas visa equilibrar uma balança historicamente
desequilibrada.
65
específica para a coleta de dados, como o estado de Minas Gerais, por exemplo, mas
comprovamos a inadequação dessa variável ao iniciar os contatos com as instituições,
pois algumas delas não manifestaram interesse algum pela pesquisa. Uma delas, inclusive,
após meses de negociação, disse que a nossa entrada não havia sido autorizada pela
administração, mas que a própria instituição poderia se encarregar de aplicar e recolher os
questionários. Como era de esperar, esse esquema não deu certo por inúmeros fatores,
que não cabe aqui elencar, e os questionários nunca chegaram às nossas mãos.
Assim, delimitar uma região específica não nos pareceu nem necessário nem
pertinente, pois as chances de sucesso na coleta de dados dependeriam mais do apoio da
instituição do que da região em que ela se localiza. Por fim, chegamos à conclusão de que,
diante das limitações de tempo determinadas para uma dissertação de mestrado, o mais
produtivo seria procurar instituições que promovessem programas de apoio à inclusão
educacional, uma vez que ali poderíamos encontrar uma maior concentração de surdos
por instituição, o que agilizaria o processo de coleta de dados e, ao menos
hipoteticamente, permitiria contar com algum apoio institucional.
Com isso, iniciamos os contatos com duas instituições conhecidamente
engajadas na inclusão de alunos surdos, uma localizada na cidade do Rio de Janeiro (RJ)
e a outra, em Canoas (RS). Por motivos éticos, asseguramos anonimato às instituições e
aos sujeitos participantes na exposição dos dados. Esse quesito foi, sem dúvida, um
fator determinante para a colaboração das instituições, uma vez que elas não poderiam
se responsabilizar pelos discursos dos sujeitos e temiam comprometer, de alguma forma,
a sua imagem institucional Além disso, como o número de surdos universitários no
Brasil ainda é relativamente baixo, preservar a instituição significa preservar também os
sujeitos.
66
Contatar IES engajadas na inclusão de alunos surdos, no entanto, não se
revelou mais vantajoso, pois, se por um lado, a recepção do nosso estudo foi calorosa,
por outro, questões burocráticas acabaram protelando por meses a aplicação dos
questionários. Ilustramos isso relatando que, antes de podermos entrar em uma das IES
escolhidas, foi necessário ter o nosso projeto de pesquisa cadastrado e aprovado na
instituição para, somente depois, serem iniciadas as negociações sobre a dinâmica da
coleta de dados. Além dessa questão, preocupava-nos ainda pensar como seríamos
recebidos pelos estudantes surdos, uma vez que, em um breve estudo de sondagem,
realizado por nós na cidade de Belo Horizonte, cujo principal objetivo foi testar a
formulação do questionário, pudemos perceber que alguns sujeitos o se sentiam
seguros ou à vontade diante da figura incógnita de um “pesquisador”. Faziam perguntas
e nos olhavam com desconfiança. O que fazer, então, diante desses impasses?
Foi, então, que pensamos em uma figura fronteiriça, que lida com surdos
diariamente, intermediando a comunicação no ambiente educacional: o intérprete de
Libras. No estudo de sondagem, percebemos que a simples presença do intérprete
educacional no momento da apresentação do questionário parecia prover segurança aos
sujeitos (na maioria das vezes, nos dirigíamos diretamente aos surdos, sem a intervenção
do intérprete).
Diante dessas evidências, ocorreu-nos a idéia de contar com a participação de
intérpretes de Libras para a aplicação dos questionários. Entramos em contato com
inúmeros profissionais e escolhemos aqueles que têm ou tiveram algum envolvimento
com pesquisa. Um deles, inclusive, atuava na própria instituição onde os dados deveriam
ser coletados.
Assim, coube a Gildete da Silva Amorim, fonoaudióloga, intérprete de Libras e
mestranda em Ciências da Educação pela Universidade Plínio Leite, e a Kelen Munari
67
Dolejal, graduanda em Letras/Libras pela UFSC e intérprete profissional, a tarefa de
aplicar e recolher os questionários.
Pelo menos uma das intérpretes realizou a coleta institucionalmente
32
, ou seja,
após a resolução dos trâmites burocráticos, ela entrou na instituição e entregou o
questionário diretamente aos alunos, coletando, ao fim de duas semanas (do mês de maio
de 2008), cerca de 25 questionários respondidos.
Apesar de a segunda instituição não ter levado adiante a negociação referente a
uma coleta de dados institucional, a outra intérprete, por trabalhar justamente na IES
escolhida, teve a oportunidade de entregar pessoalmente o questionário a todos os
sujeitos com os quais ela tem contato (profissional ou pessoal) na instituição, coletando,
ao fim de duas semanas (também no mês de maio de 2008), cerca de 17 questionários
respondidos
33
.
No referido questionário, os sujeitos deveriam responder às seguintes questões:
1 – Você se classifica como:
A ( ) surdo B ( ) deficiente auditivo
C ( ) parcialmente surdo D ( ) ouvinte
2 – Em relação ao uso das línguas, você se considera:
A ( ) usuário de Libras
B ( ) não-usuário de Libras
C ( ) parcialmente usuário de Libras
D ( ) usuário de Língua Portuguesa
A ( ) oralizado
B ( ) não-oralizado
C ( ) parcialmente oralizado.
32
“Coleta institucional” está sendo compreendida aqui como o tipo de coleta em que a instituição se vê,
de alguma forma, envolvida no processo.
33
Esclarecemos que cerca de cinco informantes preferiram receber o questionário por e-mail,
respondendo-o, portanto, através do computador.
68
3 - Escreva livremente sobre a questão a seguir:
Para você, qual é o significado de ser surdo? O que você tem a dizer
a respeito da surdez na sua vida? Escreva sobre a experiência de vida
surda.
Cumpre esclarecer que o foco da análise estasobretudo na questão 3. Será a
partir dos textos produzidos pelos sujeitos que vislumbraremos os discursos sobre o ser
surdo e surdez. Para elaborar tal questão, partimos de três requisitos indispensáveis: a) o
enunciado deveria ser redigido de forma simples, podendo ser compreendido por sujeitos
com diferentes níveis de leitura; b) o enunciado deveria ser amplo e abrangente, de
forma a minimizar ou excluir quaisquer possíveis direcionamento de respostas,
estimulando o sujeito a manifestar idéias próprias; c) o enunciado deveria ser redigido de
forma a encorajar o sujeito a escrever, sem a determinação de gênero, de tipo textual ou
de qualquer outro tipo de formatação prévia.
Tais aspectos foram pensados a partir de características comumente encontradas
em surdos, sejam universitários ou não. Muitos ainda apresentam reação à escrita, seja
devido a práticas pedagógicas falidas, seja devido a uma crença – propagada pelos
professores e absorvida pelos sujeitos sobre “dificuldades de escrita” na surdez. O fato
é que, cientes disso, buscamos minimizar um possível estranhamento ou
descontentamento do sujeito em relação ao questionário. A expressão “escreva
livremente”, que fornece instrução à resposta da questão 3, por exemplo, visou
justamente mostrar que não havia um modelo de texto esperado, ou seja, que a nossa
preocupação era, primeiramente, com o discurso apresentado.
Apesar de o nosso foco de análise estar centrado, sobretudo, na questão 3,
justificamos que as duas primeiras questões foram elaboradas como forma de subsidiar as
análises dos dados fornecidos pela questão 3, uma vez que elas nos fornecem
informações relevantes sobre os sujeitos produtores: eles usam Libras? Consideram-se
69
surdos? São oralizados? Tais informações compõem um quadro que nos permiti
compreender melhor a semântica global dos discursos em análise. Além disso, elas
servirão para endossar ou refutar algumas posições correntes sobre a surdez, tanto no
meio surdo quanto no meio acadêmico, como, por exemplo, aquela que afirma que o
sujeito oralizado dispensa a Libras e que não se considera surdo, ou ainda a que diz que a
expressão “deficiente auditivo” é desprezada pela maioria dos surdos engajados.
De acordo com os dados obtidos no quadro 2, os sujeitos informantes, em sua
maioria, consideram-se “surdos”, são usuários de Libras e, em alguma medida, oralizados
(apenas dois sujeitos informaram não ser oralizados)
34
. É importante considerar ainda que
quatro sujeitos não responderam à questão referente à oralização, provavelmente por
distração ou por razões específicas, como, por exemplo, um eventual descontentamento
diante da questão, seja devido à não-compreensão de sua pertinência, seja devido ao
desejo de resguardo.
Esclarecemos que a opção “parcialmente surdo” da questão 1 objetivou
justamente averiguar se os sujeitos estariam preocupados, em alguma medida, com a
classificação clínica da surdez, isto é, se fariam referência ao seu índice de audição. No
entanto, nenhum sujeito marcou essa opção, fato que sugere, portanto, que as respostas
fornecidas (às perguntas 1 e 2) baseiam-se em questões identitárias. Nas análises que
virão, poderemos averiguar se existem (ou não) características comuns aos locutores de
cada FD e se os “mitos” apontados acima se mantêm.
34
Dada a faixa etária dos informantes da pesquisa (certamente acima dos vinte anos), ser em alguma
medida oralizado é um fato previsível, uma vez que o fortalecimento da Libras e a popularização do
profissional intérprete são conquistas recentes. Além disso, normalmente, ser oralizado (ou não) não é, a
princípio, uma escolha do sujeito, uma vez que é ainda em tenra idade que tal prática se inicia.
70
Quadro 2
Ressaltamos ainda que estudantes de pós-graduação
37
também foram aceitos
como informantes, uma vez que ser graduando ou pós-graduando não nos pareceu uma
35
A partir de critérios de restrições específicos (que serão explicitados adiante) foi possível delimitar,
para as análises, um subcorpus constituído por 21 questionários respondidos.
36
Não respondeu.
37
Dos 42 questionários coletados, três foram respondidos por estudantes de pós-graduação.
Questões 1 e 2 do questionário
35
1 - Você se classifica como: 2 - Quanto ao uso das línguas, você se considera:
Textos
Surdo Defici.
auditivo
Parc.
surdo
Ouvinte Usuário
de Libras
Não-
usuário
de Libras
Parci.
usuário
de Libras
Usuário
de LP
Oralizado
Não-
oralizado
Parc.
Oralizado
A
X X X
B
X X X X
C
X X X
D
X X X
E
X X X
F
X X X
G
X X X
H
X X X
I
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J
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K
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L
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M
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N. R.
36
N
X X X
N. R.
O
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X
P
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N. R.
Q
X X
X
R
X X
X
S
X X
X
T
X X
N. R.
U
X X X
71
diferenciação determinante para os objetivos da pesquisa.
Informamos, por fim, que atendendo às exigências do Comitê de Ética em
Pesquisa com Seres Humanos da UFMG, todos os sujeitos informantes assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (vide modelo em anexo), cedendo as
informações fornecidas para uso em pesquisa.
2.2. A Análise do Discurso como referencial teórico-metodológico
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo
diante de seus próprios olhos. Michel Foucault (2006, p. 48).
Neste estudo, trabalharemos com esse objeto que “reverbera verdades” de que
nos fala Foucault: o discurso. Faremos brotar por sobre as palavras dos surdos a palavra
segunda do comentário. A Análise do Discurso será o suporte teórico através do qual
pensaremos a linguagem e as relações (inter)discursivas estabelecidas nos discursos sobre
a surdez que serão analisados.
Inicialmente, é preciso determinar a qual “análise do discurso” nos referimos,
uma vez que tal expressão, de acordo com Maingueneau (2006b, p. 46)
38
, pode apontar,
atualmente, para diferentes definições: algumas muito amplas, costumam considerá-la
genericamente como correlata a “estudos do discurso”, podendo, assim, referir-se à
“análise da conversação”, à “etnografia da comunicação”, à “sociolingüística
interacional”, enfim, a diferentes disciplinas que tomam o discurso como objeto de
análise; outras definições, mais apropriadas e restritivas, no entanto, reservam tal
expressão para uma disciplina específica.
Quanto à constituição dessa disciplina, Maingueneau (2006, p. 9-10) defende
38
Trata-se do verbete “Análise do discurso”, apresentado pelo autor no dicionário organizado por ele e
por Patrick Charaudeau (2006).
72
que a Análise do Discurso (AD) apresenta a particularidade de não se referir a um gesto
fundador pois para ela não houve um Durkheim ou um Saussure –, mas a “reavaliação
de práticas de análise textual mais antigas e a convergência progressiva nos anos 1980 e
1990 de correntes européias e anglo-saxãs”. Convergência, esclarece o autor, não no
sentido de uma homogeneização, mas no sentido daconstituição de um verdadeiro
campo”.
Apesar de, segundo Maingueneau (2006), não ser possível falar em teorias ou
autores fundadores, julgamos relevante pontuar que Michel Pêcheux tem sido
considerado, por vários pesquisadores, como a principal figura na história da AD. É o
caso, por exemplo, de Ferreira (2007, p. 16), que aponta Pêcheux como fundador da AD
francesa. Controvérsias à parte, julgamos suficiente reservar a ele um lugar de destaque
na história da disciplina.
Apesar de estar se tornando cada vez mais difundida em todo o mundo, em
várias áreas do conhecimento, a AD ainda luta para se livrar de alguns atributos que
põem em questão o seu estatuto disciplinar. De acordo com Maingueneau (2006b, p. 46),
sabe-se que alguns costumam vê-la como um “espaço transitório”, um “campo
parasitário” de ciências como a lingüística, a sociologia ou a psicologia. É comum
também pensá-la como um “espaço crítico”, “lugar de interrogação e reformulação”
para o qual podem confluir os problemas que outras disciplinas, como as citadas, podem
encontrar. Mas “tanto em um caso quanto no outro, trata-se menos de uma verdadeira
disciplina do que de um espaço de problematização”, contesta o autor (p. 46). Todavia,
ao longo dos anos, a Análise do Discurso vem demarcando com propriedade a sua
especificidade conceitual e garantindo o seu estatuto de disciplina consolidada, pois a
sua história, desde os anos 1960, comprova a sua solidificação, como afirma
Maingueneau (2006b p. 46):
73
Se é indiscutível que, no seu início, ela teve, sobretudo, um olhar crítico,
progressivamente alargou seu campo de estudo para o conjunto das produções
verbais, desenvolveu um aparelho conceitual específico, fez dialogarem cada
vez mais suas múltiplas correntes e definiu métodos distintos daqueles da
análise de conteúdo ou das abordagens hermenêuticas tradicionais. [...] Pela
primeira vez na história, a totalidade dos enunciados de uma sociedade,
apreendida na multiplicidade de seus gêneros, é convocada a se tornar objeto
de estudo.
Dentro desse quadro, a expressão escola francesa de Análise do Discurso
designa a corrente da análise do discurso dominante na França nos anos 1960 e 1970,
tendo como expoente máximo a figura de Michel Pêcheux. Fortemente inspirada na
releitura de Marx feita por Althusser e na de Freud proposta por Lacan, além da
releitura de Saussure realizada pelo próprio Pêcheux, essa escola foi claramente
marcada por influências psicanalíticas e classistas na ordem do discurso. A esse
“sentido estrito” da Análise do Discurso, Maingueneau (2006, p. 10) irá opor um outro,
mais abrangente, chamado por ele de tendências francesas da Análise do Discurso.
“Tendências francesas”, a nosso ver, agregariam estudos que são, de alguma
forma, tributários dos primeiros estudos em análise do discurso, mas que se dissociam
deles quando apresentam proposições renovadas e verdadeiramente abrangentes sobre o
objeto discurso. “Tendências francesas”, para Maingueneau (2006b, p. 202), pode referir-
se, de maneira ampla, a estudos interessados em: a) examinar corpora relativamente
restritos, onde se cristalizam embates históricos; b) analisar propriedades da língua, não
apenas das funções discursivas das unidades; c) apreender relações privilegiadas com as
teorias da enunciação lingüística; d) compreender o papel central do interdiscurso,
refletindo “sobre os modos de inscrição do sujeito em seu discurso”, entre outras
possibilidades.
Quanto à relação entre as duas correntes, o autor relata que, a partir dos anos
1980, a primeira corrente da AD, em sua forma originária, foi sendo progressivamente
“marginalizada”, de forma que atualmente “não se pode mais falar em escola francesa”,
74
segundo ele, mas, sim, em tendências francesas da análise do discurso (pag. 202).
Recebemos tal posição com alguma desconfiança, pois, com isso, a impressão
que temos é que a “escola francesa de Análise do discurso” ficou restrita ao passado, sem
correspondência ou uso no presente. Se, por um lado, essa pode ser a realidade na França,
por outro, no Brasil, existem núcleos de pesquisa de cunho pecheteano fortemente
alicerçados na prática que caracterizou os estudos franceses das décadas de 1960 e 1970
(como muitos estudos realizados no âmbito da UFRG ou da UNICAMP, por exemplo).
Esses estudos costumam filiar-se explicitamente à “escola francesa de análise do
discurso”, sem demonstrar tensões ou apresentar maiores explicações, uma vez que tal
expressão é corrente em estudos de base pecheteana no Brasil.
Além das correntes francesas, ainda a análise do discurso de origem anglo-
saxã (Critical Discourse Analysis), que se posiciona mais no terreno da antropologia do
que no terreno da lingüística. Essa prática analítica, fortemente marcada por
engajamentos políticos e ideológicos na ordem do discurso, vem sendo designada no
Brasil de “Análise Crítica do Discurso” (PAGANO; MAGALHÃES, 2005) ou “Análise
de Discurso Crítica” (MAGALHÃES, 2005), visando a garantir a sua especificidade
tanto prática quanto teórica, dissociando-se, assim, em certa medida, das demais
“análises” do discurso. Fairclough (1992) pode ser considerado como um dos maiores
nomes nessa corrente de estudos.
Como se pode perceber, apesar de tais correntes convergirem para a criação de
um campo de estudo específico, elas não são homogeneizadas por ele, conservando traços
ao mesmo tempo comuns e singularizadores. A abertura de um diálogo entre as diferentes
correntes da AD e entre as diferentes disciplinas que trabalham com o discurso tem
ocasionado uma descompartimentalização das pesquisas em AD. Com isso, os corpora
do campo têm se tornado progressivamente diversificados. Apesar disso, seria possível,
75
no dizer de Maingueneau (2006b, p. 45), distinguir alguns “grandes pólos” de estudos
nesse campo, como: (1) trabalhos que tomam o discurso prioritariamente como interação
social; (2) estudos que priorizam as situações de comunicação e os gêneros; (3) trabalhos
que visam à articulação entre os funcionamentos discursivos, as condições de produção e
os posicionamentos ideológicos; 4) trabalhos que priorizam o estudo da organização
textual e das marcas de enunciação.
Considerando a complexidade das questões discutidas acima e, ao mesmo tempo,
visando a simplificar a nossa opção teórico-metodológica, esclarecemos que os princípios
que sustentam o presente trabalho situam-se, principalmente, nos estudos desenvolvidos
por Maingueneau (1998, 2005, 2008), contemplando a vertente (3) descrita acima. O
autor, ao que tudo indica, dá preferência à segunda denominação – “tendências francesas”
na atualidade, o que contraria, de certa forma, a posição assumida por ele em trabalhos
anteriores (ver, por exemplo, a obra Novas tendências em análise do discurso, publicada,
no Brasil, em 1993).
Em função disso e para evitar maiores delongas, esclarecemos que, em nosso
trabalho, não nos furtaremos a estabelecer um diálogo entre as diferentes vertentes da
área, sendo a designação “escola francesa” ou “tendências francesas” uma questão de
menor importância. Assim, procuraremos, num primeiro momento, em apresentar e
discutir os conceitos que se mostram pertinentes para o desenvolvimento deste trabalho
para, em seguida, buscar aplicá-los nos discursos que compõem o corpus da pesquisa.
2.3 Discutindo alguns conceitos
Refletindo sobre a gênese e o funcionamento dos discursos, Maingueneau (2005,
p. 79) sustenta que o discurso, na multiplicidade de suas dimensões, é regido por uma
76
semântica global. Pensando na depreensão de sentidos, pode-se dizer que um
procedimento analítico que se funda nesse conceito não privilegia um plano em
detrimento de outro, mas os enlaça em um mesmo movimento. Isso implica dizer que os
sentidos não se encontram em uma parte específica do texto, mas emanam do conjunto
(temas, ethos, vocabulário, dêixis enunciativa, etc.) e são organizados de acordo com um
mesmo conjunto de regras: a semântica global. Essa coerência geral entre todas as
dimensões do discurso tornará o sistema (discursivo) relativamente simples para os
sujeitos falantes: a competência discursiva se relaciona justamente à simplicidade do
sistema.
Em outras palavras, a partir do conceito de semântica global o autor irá opor-se à
idéia de se definir um plano discursivo como sendo o lugar em que a “essência” do
discurso se condensaria de maneira privilegiada. Ao contrário, para ele o é apropriado
distinguir o “fundamental” do “superficial”, o “essencial” do “acessório” no sistema
discursivo. Além de levar a um impasse de difícil resolução analítica, essa posição
poderia ainda levar a falsas impressões sobre determinado discurso justamente por
compreendê-lo a partir de planos e não do conjunto.
Apesar de se referir a “sistema” ou a “regras” em alguns momentos de sua
reflexão, Maingueneau (2005) esclarece que em seus estudos não está sendo proposta
uma “gramática do espaço discursivo” até porque, para ele, não existe uma “língua”
específica para um discurso, mas enunciados de uma dada língua que obedecem a certas
restrições semânticas que fazem com que eles integrem um dado discurso e não outro.
Acreditamos que restrições de ordem semântica corroboram com a construção identitária
do discurso e podem ser de origens diversas (histórica, política etc.) sendo, muitas vezes,
responsáveis pela instauração/determinação de uma formação discursiva (FD) específica.
77
Restrições visam ainda definir “operadores de individuação” em uma mesma FD, como é
o caso, por exemplo, de vertentes diferentes em um mesmo discurso.
Esse sistema de restrições semânticas e o princípio de uma semântica global
darão corporeidade à noção complementar de competência discursiva: os sujeitos,
inseridos em dada formação discursiva, colocam em cena uma capacidade de interpretar
e de produzir enunciados inéditos, assim como reconhecer enunciados como não
integrantes do seu discurso. Maingueneau (2005, p. 53) sugere que talvez essa noção
possa resolver, de alguma maneira, a problemática do assujeitamento
39
, uma noção
clássica da “escola francesa”. A partir do conceito de competência discursiva os sujeitos
não seriam mais vistos como “ceras moles” que se deixariam dominar por um discurso
“todo-poderoso” (como poderia sugerir a noção de assujeitamento), mas como sujeitos
capazes de interiorizar a complexidade e o funcionamento de dado discurso, sendo este
imposto pelo laço que parece existir “entre a natureza desse discurso e o fato de pertencer
a tal grupo ou classe”. A competência discursiva, então, permite que os sujeitos
compreendam, internalizem e produzam enunciados compatíveis com o funcionamento
dos discursos correntes em seu meio, assimilando inclusive as incompatibilidades
semânticas do espaço discursivo do seu outro.
Vale dizer que, no curso de sua vida, o indivíduo pode inscrever-se em
competências discursivas distintas, às vezes até mesmo de maneira sucessiva e/ou
simultânea, isto é, a possibilidade de abandonar determinados discursos, assumindo
outros, também é prevista na teoria. Isso se evidencia quando pensamos que “os sujeitos
estão tanto menos presos a um ‘paradigma’ quanto mais o acesso a um novo paradigma
discursivo é formalmente fácil” (MAINGUENEAU, 2005, p. 55). Mas não se pode
39
Noção corrente na “escola francesa”. Nas palavras de Araldi (2005): “o processo pelo qual o indivíduo
reconhece e aceita o pré-construído como sendo seu sentido, chama-se assujeitamento, o qual é condição
necessária para que o indivíduo torne-se sujeito”.
78
pensar que tal competência é uma questão de crença ou descrença em dado discurso; é
preciso compreendê-la como um fato discursivo. É necessário considerar a natureza
interdiscursiva dessa competência, levando-se em conta as regularidades historicamente
definidas.
Trazendo essa discussão para a presente pesquisa e levando em conta a relação
polêmica que se estabelece entre os discursos sobre a surdez (como vimos no Capítulo 1),
podemos supor que, compreendendo a semântica global do seu próprio discurso, os
sujeitos lancem mão de uma competência interdiscursiva e reconheçam a
incompatibilidade semântica das formações do espaço discursivo que constituem o seu
outro, da mesma forma que interpretam, traduzem esses enunciados nas categorias de seu
próprio sistema de restrições. Em outras palavras: os atores de cada subconjunto de FDs
(ou espaço discursivo) parecem não conclamar o outro senão para estabelecer com ele
uma relação negativa, uma negação polêmica, como pôde ser verificado na análise
ilustrativa feita no Capítulo 1.
No corpus da pesquisa a discussão acima alicerçará as seguintes questões: como
funcionaria a semântica global de cada FD apreendida? Seria possível formar grupos de
textos, segundo a forma como estes se filiam à semântica global das FDs propostas?
Podem-se perceber contradições e/ou incompatibilidades semânticas em determinados
discursos? Quais seriam as temáticas que o sistema de restrições semânticas exclui em
cada FD?
Até agora, a noção de formação discursiva vem sendo utilizada em nosso
trabalho sem nenhuma problematização (embora tenha sido rapidamente explicada na
nota 15 do Capítulo 1). Cumpre-nos, agora, esclarecer os motivos pelos quais esse termo,
tão característico da escola francesa, vem sendo empregado em nosso estudo.
79
Característico de tal escola por um lado, mas amplamente usado em todas as correntes do
campo e até mesmo fora dele, é preciso ressaltar.
Maingueneau (2006, p. 09) esclarece que a noção de FD, embora muito
valorizada na história da AD francófona, demonstrou um claro declínio a partir dos anos
1980, sem, no entanto, se apagar. Apesar de ainda muito produtiva, tal noção apresenta,
desde a sua origem, segundo o autor, um estatuto que não é muito claro, de difícil
determinação. Comumente remete-se ao primeiro postulado de Foucault (1986, p. 136)
sobre o conceito, na tentativa de defini-lo:
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e
no espaço, que definiram, em uma dada época, e para uma área social,
econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função
enunciativa
.
Reinterpretadas por Pêcheux, no campo da AD, como componentes das
formações ideológicas, as formações discursivas “determinam o que pode e o que deve
ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de
lugares, no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes”
(PÊCHEUX; FUCHS, 1990, p. 166-167).
Mas a noção de FD apresenta um alto nível de maleabilidade conceitual.
Maingueneau (2006b, p. 242), por exemplo, a define como aquilo que permite designar
“todo conjunto de enunciados sócio-historicamente circunscrito que pode relacionar-se a
uma identidade enunciativa”, como o discurso comunista, o discurso dos patrões ou da
administração, por exemplo.
Na verdade, várias seriam as formas de definir tal noção (dentre as quais
citamos duas, no quadro da AD). Toda essa plasticidade conceitual, no dizer de
Maingueneau, acaba por empobrecer tal noção. Percebemos, no próprio autor, certa
80
inconstância em relação ao uso e à teorização das FDs: pode-se perceber em seus
diversos momentos teóricos um misto de encantamento e de aversão a essa noção. Apesar
de ser um conceito muito requisitado na obra Gênese dos discursos (edição francesa:
1984), por exemplo, Maingueneau irá justificar em nota à edição brasileira (2005) que tal
conceito foi usado de maneira frouxa na obra e que hoje ele usaria, preferencialmente, o
termo posicionamento no lugar do controverso conceito de formação discursiva.
A mesma intenção é colocada no verbete que define tal conceito no dicionário
que co-dirigiu com Patrick Charaudeau, onde claramente se a noção de FD sendo
substituída pela de “posicionamento”. Em Cenas da Enunciação, no artigo Unidades
tópicas e não-tópicas, onde o autor retoma e refina a noção de FD, refletindo sobre os
amplos, diversificados e até inconsistentes empregos dessa noção, o autor admite que
Esse embaraço não é próprio de um ou outro pesquisador; quando redigi o
verbete “formação discursiva” para o Dictionnaire d’analyse du discours, co-
dirigido com P. Charaudeau, eu mesmo substituí “formação discursiva” por
“posicionamento”, devido à incapacidade em que me encontrava de atribuir-
lhe um estatuto bem claro. (MAINGUENEAU, 2006, p. 14).
Apesar da discussão acerca da noção de FD, reafirmamos que essa categoria
apresenta-se operatória em nossa pesquisa, seja devido à falta de um conceito melhor,
seja devido à sua maleabilidade conceitual. Atualmente, afirma Maingueneau (2006b, p.
242), “tende-se a empregá-la, sobretudo, para posicionamentos de ordem ideológica”, isto
é, fala-se mais facilmente de FD em discursos políticos ou religiosos do que em discursos
publicitários ou administrativos.
Como podemos perceber, no estágio atual de suas teorias, Maingueneau tem
revisitado tal noção. Em Cenas da Enunciação (2006), no artigo referido, ele ressalta que,
para que seja possível atribuir um estatuto mais claro à noção de FD, é necessário,
inicialmente, levar em consideração o conjunto dos termos e das categorias (relacionadas
81
a esse conceito) com as quais a AD trabalha. Para tanto, ele se propõe a distinguir duas
unidades discursivas: a) as unidades tópicas e b) as unidades não-tópicas.
As unidades tópicas podem ser dividas em unidades territoriais e em unidades
transversais. Unidades discursivas territoriais correspondem a espaços
predeterminados pelas práticas verbais, podendo tratar-se de determinados tipos de
discurso atribuídos a certas atividades sociais, como o discurso pedagógico, o discurso
político, o acadêmico, etc. São tipos de discurso correntes na sociedade. Tais tipos são
vistos ainda em sua relação com os seus gêneros. As unidades transversas, por sua vez,
“são aquelas que atravessam o texto realçando os múltiplos gêneros do discurso”
(MAINGUENEAU, 2006, p. 15). São, portanto, registros definidos a partir de critérios:
lingüísticos, funcionais ou comunicacionais. Como não enfocaremos, em nosso estudo,
unidades discursivas tópicas, limitamo-nos a apresentá-las de maneira sucinta.
As unidades não-tópicas são aquelas que o se apresentam previamente
estabelecidas pelas práticas verbais, mas são construídas pelo pesquisador (distinguindo-
se, assim, das unidades territoriais), agrupando enunciados inscritos profundamente na
história (fato que as distingue das unidades transversas). Para o autor, as FDs são um tipo
de unidade não-tópica, uma vez que elas têm as suas fronteiras estabelecidas pelos
pesquisadores que trabalham com esse conceito, devendo ser delimitadas historicamente.
Unidades discursivas como “o discurso racista” ou “o discurso patronal”, no
dizer do autor, “não parecem poder ser delimitadas por outras fronteiras senão aquelas
estabelecidas pelo próprio pesquisador”, devendo ser, para tanto, historicamente
argumentadas (p. 16). É justamente para esse tipo de unidade (as unidades não-tópicas)
que a noção de FD será especialmente requisitada, na visão do autor.
Em alguns estudos com unidades não-tópicas, é possível perceber que, por trás
da diversidade de posicionamentos que aparentemente se apresenta no corpus da pesquisa,
82
parece operar a “onipresença” de um “sentido único” (nem sempre consciente) que rege a
fala dos locutores. É o caso, por exemplo, de pesquisas sobre “o discurso racista”, onde
muito provavelmente os dados indicarão uma vocalidade única, um mesmo princípio
escondido (nesse caso, o racismo) em todos os textos. Existem ainda casos opostos, em
que as formações discursivas não são estabelecidas a partir de um único foco, mas se
ligam por diversas outras razões; razões que devem ser devidamente explicitadas pelo
analista. Acreditamos que este seja o caso do nosso estudo: distintas formações
discursivas que se encontram no espaço discursivo da surdez, sendo a primeira uma FD
clínica (ou de fundamentação ouvintista) e a segunda, uma FD lingüístico-antropológico
(ou de fundamentação surda), como explicamos no Capítulo 1.
Assim, para o estudo das unidades não-tópicas, Maingueneau (2006, p. 17)
propõe discutir dois tipos de FD: as unifocais (o discurso racista, por exemplo) e as
plurifocais (as manifestações discursivas sobre a surdez, por exemplo). Essa posição
teórica está claramente vinculada à polifonia bakhtiniana e algumas incursões por ela
podem ser requisitadas mais adiante.
Ressaltamos que entre “discurso racista” e “discursos sobre a surdez” uma
distinção fundamental: no primeiro caso, percebe-se de antemão a convergência dos
posicionamentos para questões racistas, ou seja, determinadas pela escolha lexical
(racista); uma unifocalização típica, pelo menos a princípio. Por outro lado, em
“discursos sobre a surdez” não se pode perceber convergência alguma, e a escolha lexical
não diz muito de antemão (surdez). Concordamos, no entanto, que o caráter plurifocal
também não está dado; será exatamente o estudo do corpus que confirmará a
plurifocalidade ou unifocalidade em nossos estudos. Por outro lado, se no lugar de
“discursos sobre a surdez” apresentássemos a expressão “discursos surdos”, certamente
estaríamos conduzindo a nossa pesquisa ao estudo de FDs unifocais, uma vez que é
83
sabido que, quando o termo “surdo” adjetiva algum substantivo (escrita surda, arte surda,
discurso surdo, etc.), o objetivo é justamente demarcar um lugar de enunciação que parte
do Movimento Surdo, entendido aqui como um movimento social que visa a promover
melhorias político-sociais para o grupo, equilibrando as relações de poder entre surdos e
não-surdos, ou seja, seria uma posição homogeneizadora.
Voltando ao estudo dos dois tipos de FD, constatamos que Maingueneau (2006,
p. 18) alerta que, para que seja possível falar de FDs plurifocais, é preciso ir além da
simples comparação de conjuntos discursivos. É a orientação dada à pesquisa que i
determinar se se trata de uma simples comparação ou de uma verdadeira plurifocalização.
Na nossa pesquisa, quando estabelecemos um espaço discursivo constituído por
unidades não-tópicas, não era nosso objetivo simplesmente verificar e comparar a
ocorrência de distintos posicionamentos no campo discursivo da surdez, mas, ao
contrário, queríamos justamente compreender de que forma esses discursos e esses
saberes se relacionam nesse campo, como de delimitam, se evocam e se refutam naquele
espaço discursivo.
Se, por um lado, abordar unidades discursivas não-tópicas (unifocais ou
plurifocais) possibilita ao pesquisador trabalhar com discursos que, embora não estejam
previamente delimitados por práticas sociais específicas, atravessam a sociedade e
possibilitam algum grau de liberdade do pesquisador em sua organização, por outro, é
bom lembrar que a construção desse percurso o se submete apenas aos caprichos do
pesquisador, uma vez que existe “um conjunto de princípios, de técnicas que regulam
esse tipo de atividades hermenêutica” (MAINGUENEAU, 2006, p. 22).
Assim, ainda segundo Maingueneau (2006, p. 20), para que o trabalho com
unidades discursivas não-tópicas seja bem sucedido, é preciso colocar em primeiro plano
as interrogações inicialmente produzidas pela pesquisa, uma vez que tais unidades
84
mostram que o pesquisador parece justamente “construir uma certa configuração de
textos para constranger o universo do discurso a responder às questões que ele elaborou.”
Dessa maneira, refletindo sobre o corpus, surge a questão: como poderíamos
operacionalizar e organizar as manifestações discursivas (unidades não-tópicas) que serão
estudadas neste trabalho? Uma das maneiras de responder a essa questão aponta para a
tríade universo, campo e espaço discursivo, apresentada por Maingueneau (2005).
Valeremo-nos desses três conceitos complementares para conceber discursivamente o
corpus da presente pesquisa.
Segundo Maingueneau (2005) em meio a um dado universo discursivo
40
, isto é,
em meio a um conjunto de discursos de todos os tipos que interagem em uma conjuntura
dada, é possível construir, via recorte, domínios susceptíveis de ser estudados pelo
analista: os campos discursivos, em que posicionamentos diversos encontram-se em
concorrência e se delimitam, portanto, em determinada região do universo discursivo.
Concorrência deve ser entendida aqui, alerta Maingueneau (2005, p. 36), em seu sentido
amplo, incluindo tanto o confronto aberto quanto a aliança ou a neutralidade aparente
entre discursos que, possuindo a mesma função social, divergem apenas sobre o modo
pelo qual ela deve ser preenchida. Pode se tratar do campo devoto (MAINGUENEAU,
2005) ou do campo da ngua (LARA, 2008), entre outros. O recorte em campos não
define zonas insulares, mas estabelece uma abstração necessária que deve permitir abrir
múltiplas redes de troca. A constituição dos discursos no interior de campos
determinados precisa acontecer em termos de operações regulares sobre formações
discursivas já existentes.
40
Maingueneau (2005, p. 35) esclarece que “universo discursivo” refere-se a um conjunto sempre finito,
ainda que a sua apreensão pelo pesquisador não seja possível. Tal conceito “é de pouca utilidade para o
analista e define apenas uma extensão máxima, o horizonte a partir do qual serão construídos domínios
susceptíveis de serem estudados, os ‘campos discursivos’”.
85
Assim, torna-se necessário ao analista isolar, em um dado campo discursivo,
subconjuntos de FDs: os espaços discursivos, constituídos por pelo menos duas FDs ou
dois posicionamentos discursivos distintos que mantêm relações privilegiadas, relações
essas que o analista julga pertinentes para o seu propósito.
Pensando nas categorias acima, podemos projetar, para a presente pesquisa, o
campo da surdez, no qual várias formações discursivas se encontram em concorrência e
delimitam-se reciprocamente. Nesse campo discursivo, julgamos oportuno recortar um
espaço discursivo constituído por dois subconjuntos de FDs que se opõem: uma FD
clínica (de fundamentação ouvintista) e uma FD lingüístico-antropológica (de
fundamentação surda), compreendendo a primeira FD, conforme foi visto no Capítulo 1,
como manifestações do discurso da “deficiência”, da “falta”, do “desvio”, enquanto na
segunda, percebemos o discurso da “diferença”, da “identidade”, da “língua e da cultura
específicas”. Veremos, então, as manifestações discursivas que dialogam no campo da
surdez ser reordenadas a partir do espaço discursivo da surdez como deficiência ou como
diferença, dizendo de maneira simplificada.
Vale lembrar que a delimitação do universo em campos e em seus respectivos
espaços não é de forma alguma fixa ou evidente, mas obedece a objetivos específicos,
tornando-se maleável à interpretação de cada analista. O espaço discursivo construído
para esta pesquisa, por exemplo, não era previamente dado, mas resultou de escolhas e
hipóteses guiadas, sobretudo, por observações e análises prévias, registradas no Capítulo
1. Se, por um lado, tal espaço não era previamente dado, tampouco foi estabelecido, de
forma aleatória, pelo analista, cabe ressaltar. O analista não estabelece, não “inventa” o
espaço, mas o coloca em evidência ao tentar compreender o seu funcionamento
discursivo, segundo determinados critérios.
Para Maingueneau (2005), quando se recorta em dado campo um espaço
86
discursivo, é preciso ainda pensar quais outros discursos do campo podem ser citados ou
recusados pelo discurso primeiro e/ou segundo, ou seja, a delimitação em espaço não
exclui outras referências discursivas, mas ao contrário, as evidencia. Isso quer dizer que,
quando se pensa “no nível das possibilidades semânticas”, admite-se um espaço de troca,
não de identidade fechada. Nas palavras do autor:
Na medida em que, cronologicamente, é o discurso precisamente chamando
“segundo” que se constitui através do discurso primeiro, parece lógico pensar,
então, que esse discurso primeiro é o Outro do discurso segundo, [mas] o
discurso primeiro não permite a constituição de discursos segundos sem ser
por eles ameaçado em seus próprios fundamentos. (MAINGUENEAU, 2005,
p. 41)
Lara (2008, p. 113-114), referindo-se aos estudos desenvolvidos por
Maingueneau, ressalta que não cabe “estudar as diferentes formações discursivas que
atravessam um dado discurso de forma independente e isolada, mas, sim, apreendê-las
nas relações que estabelecem umas com as outras”, ou seja, “a identidade discursiva se
constrói na interação com o Outro”. No espaço que delimitamos para esse estudo,
lançamos a hipótese de que o discurso primeiro é o da deficiência, cientificamente” e
historicamente determinado, reservando ao discurso segundo, o da diferença, o lugar da
reação e da resistência contra o discurso da deficiência. Observaremos, portanto, em que
medida tais discursos são reorganizados, refutados ou endossados nos dados coletados.
Ao apresentar os conceitos de universo, campo e espaço discursivo,
Maingueneau (2005) procura mostrar que eles podem substituir, ou pelo menos
operacionalizar, a noção de interdiscurso, tornando-a menos vaga. De acordo com
Maingueneau (2006b p. 286), em um sentido restritivo, o interdiscurso “é também um
espaço discursivo, um conjunto de discursos (de um mesmo campo discursivo, ou de
campos distintos) que mantêm relações de delimitação recíproca uns com os outros”.
Nesse sentido restritivo, a constituição de um discurso se a partir de diálogos
87
estabelecidos no interior de um campo particular ou entre campos afins. Isso quer dizer
que as relações interdiscursivas não são estabelecidas de qualquer maneira, mas se dão ou
no interior de campos discursivos específicos ou através das relações estabelecidas entre
eles.
Essa não é, no entanto, a definição mais corrente dessa noção. Comumente ela é
definida de maneira mais ampla, sem referência à questão dos espaços ou campos. Mais
amplamente, o interdiscurso é entendido como um conjunto de unidades discursivas com
as quais um discurso estabelece relação explícita ou implícita. Por essa via, a natureza ou
funcionamento dessas relações parecem não ser devidamente explicitadas.
Apesar de a definição ampla ser a mais corrente, acreditamos que a definição
restritiva apresente vantagens sobre ela, pois, quando pensamos a interdiscursividade a
partir de diretrizes específicas, não nos vemos diante de um “vale-tudo discursivo”, mas
cientes do percurso que articula e engendra os discursos. Em nossa pesquisa, portanto,
será a partir desse sentido restritivo de interdiscurso que pensaremos as relações
dialógicas entre os discursos.
Tendo estabelecido as diferenças entre a concepção ampla e a concepção
restritiva de interdiscurso, cumpre-nos, agora, apresentar definições mais específicas
sobre as operações que possibilitam a ocorrência desse fenômeno.
Compreendendo o discurso como estrutura e como acontecimento, Pêcheux
(1990) relaciona o interdiscurso à memória discursiva, a um conjunto de dizeres coletivos
que sustentam todo ato enunciativo. É como se os sujeitos estivessem filiados a um saber
discursivo que não se aprende, mas que os constitui e produz efeitos nas tramas
discursivas.
O interdiscurso, assim, recupera o pré-construído e o já-dito.
Os pré-construídos
correspondem ao “sempre-já-aí”, pois os sujeitos falam sempre a partir de posições
88
formuladas, ou, nas palavras de Possenti (2003, p. 255), “algo sempre fala antes e
alhures”, quer dizer, estamos sempre expostos a uma contínua “enunciação comunitária”,
a um conjunto de dizeres que constituem e são constituídos pela sociedade, cuja produção
e absorção individual acontecem de maneira não-consciente.
Para Possenti (2003, p. 253), o princípio da interdiscursividade pode aparecer
sob diversos nomes polifonia, dialogismo, heterogeneidade, intertextualidade cada
um implicando um viés específico, mas fazendo sempre referencia à problemática do
outro no discurso. É nesse sentido que Silva (2007, p. 30) afirma que os discursos já
nascem imbricados em relações dialógicas e interdiscursivas com o seu outro. O que
parece central, então, nessa discussão, é como o outro constitui o mesmo.
A questão da interdiscursividade aponta para uma conhecida tese da AD: o
primado do interdiscurso sobre o discurso, elegendo-se, pois, o interdiscurso como a
unidade de análise pertinente. A afirmação de tal primado, em nossa pesquisa, exclui
colocar em contraste formações discursivas consideradas independentemente uma das
outras, como afirma Lara (2008), uma vez que “a identidade de um discurso é
indissociável de sua emergência e (de) sua manutenção através do interdiscurso”,
completa Maingueneau (2006b, p. 286).
A metáfora do coro ilustra com propriedade esse conceito: o discurso parece ser
composto por um emaranhado de vozes distintas, apresentadas em uníssono e nem
sempre claramente recuperáveis, fato que dissimula o reconhecimento das partes, ou seja,
o interdiscurso é dissimulado no intradiscurso, entendido aqui como a relação entre os
constituintes de um mesmo discurso, um simulacro material do interdiscurso.
Impossível seria pensar o interdiscurso dissociado da noção de heterogeneidade
do discurso. Os discursos quase nunca são homogêneos, como nos diz Maingueneau
(2006b, p. 261). Geralmente, podem-se perceber neles diversos tipos de seqüência
89
textuais, modalizações, registros de língua e de gêneros discursivos variados.
O fenômeno da heterogeneidade nos mostra que os ingredientes lingüísticos de
cada discurso (palavras, enunciados, etc.) carregam a memória de outros discursos, são
atravessados por várias formações discursivas, o que nos levará a buscar, no nosso objeto
de estudo, tanto a heterogeneidade constitutiva, quanto a mostrada, sobretudo a marcada
(ironia, uso de aspas, discurso relatado, pressuposição, etc.), considerando que é nela que
se apreende, de forma clara e inequívoca, a “voz” do outro. Maingueneau (1998, p. 75),
inspirado em Authier-Revuz, afirma que a heterogeneidade mostrada “incide sobre as
manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de
enunciação”, enquanto a constitutiva “aborda uma heterogeneidade que não é marcada
em superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso,
a propósito da constituição de uma formação discursiva”.
Lembramos que essas duas formas de heterogeneidade do discurso a
constitutiva e a mostrada –, embora representem duas ordens de realidades diferentes, são
articuláveis e solidárias entre si. Assim, nas análises, a ocorrência de algumas marcas da
heterogeneidade (mostrada) serão verificadas, como, por exemplo, os índices de polifonia,
os marcadores de pressuposição, a negação, o discurso relatado, as palavras entre aspas, a
parafrasagem, etc; além de algumas formas da heterogeneidade mostrada (não marcada),
como a ironia, por exemplo. Essas noções serão discutidas de acordo com sua ocorrência
nos dados analisados.
Na presente pesquisa o interdiscurso, como fenômeno da heterogeneidade
enunciativa, poderá ser revelador de uma rede discursiva existente antes de os sujeitos
informantes se manifestarem, mas certamente exposta à contínua reformulação da
história, dos sistemas ideológicos e do poder.
90
Isso nos remete a Foucault (2006), autor que muito influenciou a AD. Para ele, o
poder se dá através da palavra, do discurso. Palavra às vezes controlada e delimitada,
como pode ser considerada a voz do povo surdo. Para esse autor, o discurso pode ser
objeto de desejo. O discurso não seria, assim, “simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar” (FOUCAULT, 2006, p. 10, grifos nossos).
Aos surdos, então, talvez reste o desejo de sustentar os discursos, saberes e
poderes em relação ao seu próprio grupo. Surdos manifestando-se cientificamente sobre
“questões surdas”, uma prática nova no Brasil que nos permite refletir sobre as tramas da
autoria e da política na ciência, ilustra com propriedade esse desejo. Certamente, a
entrada de surdos na chamada “comunidade científica”, através de programas de
mestrado e doutorado, possibilitou a alguns membros do grupo sustentar discursos ditos
científicos sobre si mesmos. Mas é preciso lembrar que essa operação não se de
maneira simples, pois, em termos discursivos, nem tudo parece ser previamente
legitimado ou permitido. A produção do discurso não é totalmente livre, mas, em alguma
medida, controlada, como nos diz Foucault (2006, p. 9):
Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade
(FOUCAULT, 2006, p. 9).
O controle na produção do discurso pode ser ilustrado por aquilo que Foucault
(2006) chamou de “procedimentos de exclusão”. O mais evidente e familiar seria a
interdição, seguida da separação e da rejeição. O primeiro procedimento nos lembra que
nem tudo pode ser dito por qualquer um. É o caso de se pensar o que a sociedade
reconhece como legítimo de ser sustentado por um surdo. Um surdo pode sustentar os
saberes sobre o seu grupo? Pode-se tornar-se um pensador? Criticar a sociedade?
91
Em relação à separação e à rejeição, Foucault pensa mais precisamente na
oposição razão versus loucura e na palavra nula dos loucos, rejeitada tão logo proferida.
Ora, o mesmo verifica-se em relação aos surdos, logo tachados de mudos
41
, aqueles que
não podem falar ou nada têm a dizer, ou, se considerados falantes, são falantes menores.
Os loucos de Foucault começam a ser ouvidos, pelo menos pela medicina, a partir do
século XVIII. E os surdos, quando é que começam a ser ouvidos?
Mas é preciso lembrar que “é sempre na manutenção da censura que a escuta se
exerce” (p. 13). Seriam hoje os surdos ouvidos (se ouvidos) apenas a partir da grelha da
“diversidade”? Do “politicamente correto”? De onde o povo surdo enuncia e qual é o
jogo de imagens suscetível de ser construído por essa enunciação?
Ainda no que diz respeito aos procedimentos de exclusão, Foucault (2006, p. 10)
propõe que pensemos na oposição entre o verdadeiro e o falso e na vontade de verdade
relacionada à vontade de saber. Ora, as “verdades” sobre os discursos da surdez, até
muito pouco tempo atrás, estavam alocadas exclusivamente nos tratados de medicina e de
audiologia. O deslocamento e a relativização dessas “verdades” abalaram a hegemonia do
poder ouvinte sobre os surdos. E como nos sugere a lógica nietzscheana, o que está em
jogo por trás de todo saber é a luta pelo poder, ou seja, o saber vai se constituindo pelo
signo do poder. Ora, surdos graduados, pós-graduados, tornam-se, por essa via, “donos de
seu próprio nariz”; conquistam um poder oportunizado pelo saber. Constroem e
professam uma imagem de si que pode ser radicalmente diferente da representação da
surdez no/pelo senso comum.
Por séculos os surdos foram disciplinados a reconhecerem em si um mal
orgânico que os colocava na linha da insuficiência perante os não-surdos. Esses eram os
41
Cabe ressaltar que surdos não são mudos. Primeiramente por que os surdos falam, não a língua oral-
auditiva, mas a sua, visual-espacial. Segundo, porque não existe na surdez qualquer característica
fisiológica que impeça a expressão oral.
92
saberes difundidos como verdadeiros em uma época nem tão distante da nossa. Médicos,
filósofos, educadores e familiares (re)produziam esse discurso e, aos surdos, em seus
lugares de “mudos”, só restava aceitar. O que queremos dizer com isso é que a imagem
da surdez produzida pelos surdos, há algumas décadas, parecia estar em consonância com
os saberes sobre os surdos dominantes naquela época. Com a instauração paulatina de um
novo discurso sobre a surdez é possível que a imagem de si, produzida pelo grupo, tenha
não apenas acompanhado esse novo caminho, como também possibilitado a sua
construção, pois é também a partir da observação da realidade empírica que os saberes se
constituem.
É o caso de se pensar na(s) imagem(ns) que o surdo constrói de si mesmo nas
manifestações discursivas que analisaremos adiante. É importante que se pense em tal
imagem, não apenas no nível do enunciado (o que o surdo diz de si mesmo), mas também
no nível da enunciação (ethos), do “tom” do discurso. Qual seria, então, a imagem de si
duplamente construída (no nível do enunciado e no da enunciação) por surdos
universitários em seu discurso? Seria possível depreender a construção de uma “imagem
coletiva”, de um “ethos comum”?
O ethos é entendido como a imagem de si que o locutor constrói no seu discurso.
Originada da retórica aristotélica, essa noção foi retomada e reelaborada no campo da AD
principalmente nos estudos desenvolvidos por Dominique Maingueneau (1998, 2005b,
2008).
Em suas origens, tal noção faz parte da trilogia aristotélica dos meios de prova
retórica, juntamente com as noções de “pathose de “logos”, sendo considerada como a
mais importante das provas. A prova pelo ethos consiste em engendrar o discurso (logos)
de forma a se causar boa impressão e empatia (pathos), podendo, assim, convencer o
auditório da “causa” defendida (EGGS, 2005, p. 29).
93
Em Aristóteles, o ethos apresenta um sentido duplo: o primeiro estabelece que
características morais (como a prudência, a virtude e a benevolência) podem garantir
credibilidade ao orador, colaborando sobremaneira para a adesão do auditório. O
segundo sentido assume uma dimensão social, postulando que o orador é mais
convincente quando se exprime de modo apropriado ao seu tipo social, como afirma
Maingueneau (2006b, p. 220).
O ethos estudado pela análise do discurso, é preciso que se esclareça, não é
exatamente o mesmo ethos aristotélico. Se, por um lado, na AD ele conservou o seu
traço originário de convencimento e adesão, de ser construído na e pela enunciação, por
outro, ele foi aqui reelaborado dentro de problemáticas que extrapolam os limites da
retórica.
No quadro da AD, especificamente nos estudos de Maingueneau (2005b, 2008b),
questões de ethos não são pensadas apenas a partir de discursos orais ou marcadamente
eloqüentes, mas se estabelecem em toda troca verbal, tanto oral quanto escrita, uma vez
que toda manifestação discursiva possui uma vocalidade específica que permite
relacioná-la a determinada fonte enunciativa que apresenta certo caráter e certa
corporalidade. Isso significa que o ethos se deixa apreender também como uma voz e um
corpo, ou seja, a enunciação leva o co-enunciador a conferir um ethos, uma imagem ao
seu fiador, dando-lhe um corpo.
Apesar de o ethos ser construído na e pela enunciação, de acordo com
Maingueneau (2008b, p. 15), é preciso levar em conta que o auditório também pode
construir representações do locutor antes mesmo que ele fale. Trata-se da noção de ethos
pré-discursivo (ou prévio), entendida pelo autor como a imagem de si que o locutor
“desperta” no auditório antes mesmo do seu turno de fala. A produção de imagens
prévias do locutor, como manifestação da memória discursiva do auditório, parece
94
apoiar-se nas estereotipias que determinado grupo ou classe social pode evocar. É o caso
de se pensar, no nosso estudo, se, em alguma medida, os discursos analisados visam
combater algum ethos prévio despertado pela figura do surdo.
Como se pode perceber, o ethos, desenvolvido por Maingueneau, no quadro da
AD, não está explícito no enunciado. São imagens evocadas e construídas a partir da
enunciação. Se, por exemplo, por alguma razão, um sujeito quer se mostrar culto, narrar
alguns trechos de obras clássicas da literatura latina certamente será muito mais eficaz do
que dizer “eu sou culto”. No entanto, não podemos perder de vista que o dito (o
enunciado) também se articula ao dizer enunciação) na construção da imagem de si,
projetada no discurso, razão pela qual abordaremos o ethos de sujeitos surdos não só pelo
viés da enunciação, mas também pelo do enunciado, alargando, assim, a aplicabilidade
dessa noção.
Talvez seja possível pensar que a projeção do ethos no discurso carrega em si
aparatos ideológicos isso, pelo menos, é o que nos parece diante dos discursos das
minorias. É a partir de determinado sistema de crenças que o sujeito julga apropriado
apresentar-se desta ou daquela maneira, visando, como fim último, à adesão do auditório.
Em nosso estudo, questões de ordem ideológica poderão ser eventualmente
consideradas, mas sempre a partir de sua versão pós-marxista. Conceito por vezes
controverso, a ideologia é considerada por muitos como o carro-chefe da AD de 1960 e
1970, compreendida, sobretudo, a partir da releitura althusseriana de Marx.
Para Brandão (2004, p. 20), o termo ideologia aparece em Marx com uma
carga semântica negativa, restritiva e particular, e se reduz a uma simples categoria
filosófica de ilusão ou mascaramento da realidade social, ditada sempre pela classe
dominante. A ideologia a que ele se refere é um instrumento de dominação.
95
em Ricoeur (1985), o conceito de ideologia aparece, em alguns momentos,
pretensamente desvinculado de Marx, sem endossá-lo ou criticá-lo explicitamente. De
acordo com Arend (2003), o estudo da ideologia em Ricoeur se insere no momento da
preocupação em considerar os efeitos das representações na formação do “si mesmo” e
da compreensão do outro. Ela está ligada à necessidade, para um grupo social, de
conferir-se uma (auto)imagem, de representar-se, no sentido teatral do termo, de
representar e encenar.
Para esse autor, a ideologia desempenha a função geral de integração e seu
estatuto não é primordialmente reflexivo, mas operatório (RICOEUR, 1985). Nesse
sentido, a ideologia opera “atrás de nós”, nos guia, nos move, e não o contrário, isto é,
não se trata apenas de um sistema de idéias explícitas, mas de uma ação que nos move
no mundo. É a partir dela que pensamos e agimos, sem, necessariamente, trazê-la ao
nível da consciência. Ao questionarmos sujeitos surdos sobre a condição da surdez,
buscamos exatamente trazer à tona questões ideológicas vivenciadas pelo povo surdo.
Esses sujeitos tentarão traduzir em palavras a ideologia que, pelo menos em tese,
governa suas vidas.
Brandão (2004, p. 27), comentando sobre a função geral da ideologia em
Ricoeur, afirma que
A ideologia é dinâmica e motivadora. Ela impulsiona a práxis social,
motivando-a, e “um motivo é ao mesmo tempo aquilo que justifica e que
compromete”. Por isso, “a ideologia argumenta”, estimula uma práxis social
que a concretiza. Nesse sentido, ela é mais do que um simples reflexo de uma
formação social, ela é também justificação (porque sua práxis é movida pelo
desejo de demonstrar que o grupo que a professa tem razão de ser o que é) e
projeto (porque modela, dita as regras de um modo de vida). (grifos da autora).
Diante do que nos propomos a fazer neste trabalho, o conceito de ideologia
proposto por Ricoeur (1985, p. 75) parece ser o que melhor nos atende. Interessa-nos,
96
em especial, a função de integração e prática social, o “desejo de demonstrar que o
grupo que a professa tem razão de ser o que é”.
Pêcheux & Fuchs (1990, p. 163-179) também contribuem com a nossa
discussão através do conceito de formação ideológica (FI), articulado à noção de FD.
Uma FI é, assim, considerada “como um conjunto de representações que não são nem
‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos a posições de classe
em conflito umas com as outras” (grifo dos autores), sendo “materializada” pelas FDs
que a constituem.
Lembra Fiorin (1988) que, embora haja numa formação social tantas FIs
quantas forem as classes que a compõem, a ideologia socialmente dominante é a da
classe dominante: é ela que impõe seus valores, idéias, conceitos e preconceitos como
se fossem os melhores para a todos. Assim, pensaremos a ideologia pelo viés da coesão
de um dado grupo: o dos surdos (universitários), sem perder de vista a ideologia
dominante na sociedade atual, isto é, será preciso focalizar não apenas a imagem de si
que os sujeitos projetam em seus discursos, mas também o jogo de imagens
intercambiadas entre surdos e não-surdos.
Para pensar o jogo de imagens estabelecido nas relações discursivas na surdez,
adotamos as contribuições de Pêcheux (1998). No seu entender, o discurso não deve ser
visto como uma simples transmissão de informações, mas como efeito de sentidos entre
A e B, que são lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares esses
que estão representados por uma série de formações imaginárias: a imagem que o
falante tem de si, a que tem do seu ouvinte, etc. Portanto, para Pêcheux (1998, p.82),
“existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção que
estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições
(representações dessas situações)”.
97
É verdade que todo processo discursivo parece pressupor esse jogo de imagens,
mas o maior ou menor grau de pertinência dessa instância para a compreensão de dado
evento discursivo parece depender das condições sociais postas previamente pelos
sujeitos produtores e receptores, além, é claro, dos objetivos de cada pesquisa.
O quadro abaixo, adaptado de Pêcheux (1998, p. 83), sintetiza uma parte do
que podemos explorar em nossas análises:
Formação imaginária Questão implícita
Imagem do lugar de A para o sujeito
colocado em A
“Quem sou eu para lhe falar assim?”
Imagem do lugar de B para o sujeito
colocado em A
“Quem é ele para que eu lhe fale assim?
Imagem do lugar de B para o sujeito
colocado em B
“Quem sou eu para que ele lhe fale assim?”
Imagem do lugar de A colocado para o
sujeito B
“Quem é ele para que me fale assim?”
42
Quadro 3
Tal jogo de imagens é revelador de uma rede imaginária subjacente que
também determina a produção discursiva, ou seja, que intervém nas condições de
produção do discurso. Para a nossa análise, de primordial importância se“a imagem
do lugar de A para o sujeito colocado em A”, o que se relaciona à projeção do ethos
discursivo, como foi dito anteriormente.
2.4. Contribuição dos Estudos Surdos
Além da Análise do Discurso, contaremos ainda, para a compreensão e a análise
dos dados, com a contribuição dos Estudos Surdos, definidos como uma recente área do
conhecimento para a qual confluem os estudos realizados acerca do “objeto” surdez nas
42
Esse “jogo de imagens” inclui também o referente (o contexto, a situação na qual aparece o discurso),
uma vez que se trata de um objeto imaginário” e não da realidade física (cf. PÊCHEUX, 1998, p. 82).
Entretanto, como já dissemos, privilegiaremos, em nossa análise, a imagem que o sujeito constrói de si no
discurso.
98
Ciências Humanas, partindo sempre do reconhecimento sócio-político dos surdos na
sociedade.
Os Estudos Surdos são compreendidos como uma área interdisciplinar de
estudos que tem como grande área os Estudos Culturais, estabelecendo-se, de maneira
ampla, como um percurso teórico que estuda, nas comunidades de surdos, questões de
ordem lingüística, educacional, histórica, comunicacional, política, etc.
No Brasil, os Estudos Surdos têm-se desenvolvido, sobretudo, a partir da
ancoragem no campo da educação, motivo que leva Skliar (1998, p. 5) a definir tal área
como “um programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas, os
projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são
focalizadas e entendidas a partir da diferença, a partir de seu reconhecimento político”.
Como se pode perceber, os Estudos Surdos moldaram a concepção de surdez
que assumimos neste trabalho. O primeiro capítulo, por exemplo, valeu-se, em grande
medida, desse referencial teórico, razão pela qual nos eximimos de reapresentar, aqui,
seus princípios e conceitos.
Os Estudos Surdos nos apresentaram os caminhos teóricos que têm tomado as
pesquisas sobre os surdos e a surdez no Brasil, englobando postulações lingüísticas,
sociais e educacionais, entre outras. Para essa condução pelo mundo surdo, elegemos
alguns autores como norteadores:
43
Ana Cláudia B. Lodi (2004, 2005); Carlos B. Skliar
(1998, 1999); Nídia L. (2006); Ronice M. Quadros (1997; 2004;) e Gladis Perlin
(1998, 2003), entre outros. Esses profissionais, além de produtivos, encontram-se todos
explicitamente engajados no Movimento Surdo. A partir deles, é possível pensar: a)
43
Todos os autores escolhidos são brasileiros (com exceção de Carlos B. Skliar argentino radicado no
Brasil). Apesar de certamente haver inúmeros nomes estrangeiros que poderiam figurar na lista, a escolha
de brasileiros deve-se ao fato de que cada realidade e cada povo surdo apresentam, de alguma forma,
especificidades em relação à sua história e ao seu desenvolvimento, embora, certamente, haja pontos
comuns entre os vários povos surdos do mundo.
99
relações lingüísticas e discursivas na surdez, ou seja, questões relacionadas à relação dos
surdos com as práticas lingüísticas e discursivas; b) relações sociais e educacionais, isto é,
em que medida questões de ordem educacional e/ou social determinam a relação do surdo
com a surdez; c) relações culturais-identitárias, revelando aspectos sócio-antropológicos
teoricamente difundidos no meio acadêmico, que poderão ser citados, refutados ou
ignorados nos dados coletados.
100
CAPÍTULO 3 - ANÁLISE DOS DADOS: COMO OS SURDOS SE
MANIFESTAM EM PORTUGUÊS ESCRITO SOBRE O
SIGNIFICADO DE SER SURDO?
3.1 – Delimitando o corpus
Conforme relatamos no capítulo anterior, para a realização da presente
pesquisa, 45
44
questionários respondidos chegaram às nossas mãos. Diante das
dificuldades iniciais decorrentes da coleta de dados, a quantidade de questionários
coletados superou a nossa expectativa.
No entanto, como se trata de uma pesquisa de natureza qualitativa e não
quantitativa –, julgamos não ser viável analisar todos os textos coletados. Nessa
perspectiva, fatores relacionados ao tempo e aos objetivos da pesquisa nos obrigaram a
fazer escolhas. Elaboramos, portanto, dois critérios que contribuíram para a delimitação
e a operacionalização do corpus. A partir deles, pudemos eliminar os textos que se
revelaram pouco úteis à pesquisa. Eliminamos, portanto:
Os questionários cujas respostas não satisfizeram às questões
propostas
45
;
Os questionários cujas respostas não se mostraram claras ou
coerentes para a pesquisa
46
.
44
42 questionários foram aplicados a partir de intérpretes de Libras. Outros três questionários, no entanto,
chegaram às nossas mãos por vias distintas (como e-mail, por exemplo), a partir do interesse dos sujeitos
diante da pesquisa.
45
Eliminamos aqui os questionários cujas respostas se mostraram muito aquém (não contemplando,
assim, de maneira satisfatória a questão proposta) ou muito além (extrapolando e desviando-se, portanto,
da questão proposta).
46
Eliminamos aqui os questionários cujas respostas não nos permitiram realizar um trabalho de
compreensão satisfatório, fato esse que poderia comprometer as análises.
101
A partir desses critérios, foi possível chegar a um corpus formado por 21
questionários. Será a partir deles que buscaremos delinear a imagem do ser surdo e da
surdez produzida no âmbito da surdez. Esclarecemos que nossa análise se concentrará,
sobretudo, em “recortes” feitos a partir desses 20 questionários, isto é, trechos que nos
pareceram mais pertinentes para responder às perguntas inicialmente propostas. No
entanto, o “movimento da análise” consistirá num vaivém dos trechos selecionados para
os textos completos, que serão reproduzidos no final (ver anexo).
No que se refere às decisões tomadas para a composição do corpus, lembramos,
com Greimas (1976, p. 7), que a relação do analista com o texto, que ele interroga e
manipula, não é jamais inocente, e a ingenuidade das perguntas que ele o analista
faz ao texto não passa de dissimulação. Isso nos remete à questão de que a leitura de um
dado discurso não escapa ao “olhar” próprio e peculiar de cada leitor e que, portanto, a
análise que faremos será marcada, num certo sentido, pela nossa subjetividade.
Também no que tange à opção por analisar principalmente trechos (e não
textos completos), assumimos que tais “recortes”, na medida em que não são dados a
priori, mas produzidos por nós, não se esquivam, portanto, da nossa subjetividade.
Entretanto, como destaca Fiorin (1988, p.19), ao contestar a neutralidade científica, não
se trata de uma subjetividade pura, que qualificaria apenas um dado indivíduo, mas de
uma subjetividade objetiva, resultante de condicionamentos sociais e, portanto,
exteriores à consciência individual, que fundam uma visão de mundo. Assim, na
realidade, o que estamos propondo é uma leitura, entre outras possíveis, do material que
nos chegou às mãos; leitura essa condicionada pela nossa (do nosso grupo social) visão
de mundo.
A exemplo de Fiorin, Possenti (1988, p. 6) reafirma a subjetividade como
inerente a toda e qualquer investigação. Como bem observa o autor, a objetividade
102
absoluta é impossível visto que
não se estudam fenômenos, mas dados, entendendo-se por fenômeno o que
ocorre efetivamente no mundo, e por dado o que é previamente circunscrito
e determinado enquanto tal por um certo ponto de vista, vale dizer, por uma
determinada assunção teórica e metodológica.
Diante do que foi exposto, parece legítimo concluir que as decisões tomadas, a
partir da nossa subjetividade, não se mostram problemáticas, mas características de uma
análise entre outras possíveis.
3.2. Procedimentos de análise
Partindo das questões teóricas discutidas no Capítulo 2 e das proposições
relativas ao “universo surdo” apresentadas no Capítulo 1, os dados foram analisados
tendo em vista os objetivos que estabelecemos para esta pesquisa (ver Introdução).
Assim, elaboramos um roteiro que determina alguns procedimentos analíticos que
foram seguidos na pesquisa. Não se trata de um esquema fechado, mas de uma base a
partir da qual as análises foram construídas. Em muitas ocasiões, o texto analisado nos
conduziu a lugares não previstos nesse roteiro. O que apresentamos, então, não é um
roteiro estático, fechado em si mesmo, mas, antes, um “objeto” flexível, dotado de
movimento. Nos discursos, focalizamos principalmente:
1. as relações interdiscursivas, pensadas a partir da delimitação em campos e
espaços discursivos, verificando a ocorrência (ou não) da oposição
discursiva determinada para tal espaço e buscando apreender as “marcas” da
presença do “outro” em cada uma das FDs consideradas;
2. a construção da imagem de si (ethos) projetada nos discursos, assim como a
possível ocorrência de um ethos prévio que se busca combater ou, ao
contrário, confirmar;
3. o tratamento temático e lexical;
103
4. os principais aspectos ideológicos defendidos e combatidos nesses discursos;
5. a presença de um discurso hegemônico nos textos coletados, considerando-
se os discursos hegemônicos que circulam em nossa sociedade;
6. a forma como tais discursos visam equilibrar as relações de poder entre
surdos e não-surdos;
7. a semântica global de cada discurso, verificando a existência de grupos de
textos regidos pela mesma semântica discursiva, bem como as temáticas que
o sistema de restrições semânticas exclui em cada FD.
3.3. O que dizem da surdez aqueles que a vivenciam?
Nos capítulos precedentes, apresentamos a construção de um campo discursivo
da surdez, formado por um espaço constituído por duas unidades discursivas não-
tópicas uma FD clínica ou de fundamentação ouvintista e uma FD lingüístico-
antropológica ou de fundamentação surda. Defendemos, ainda, a ocorrência de uma
semântica global que agencia todas as dimensões do discurso, não permitindo que os
sentidos se condensem em um plano específico, mas que se construam a partir da
interação entre os planos
47
. A validade e a aplicabilidade dessas questões, no tocante ao
corpus da pesquisa, poderão endossar ou refutar as hipóteses que construímos até aqui.
A primeira delas diz respeito à polêmica constitutiva que percebemos na base
dos discursos sobre os surdos e a surdez, a exemplo da análise realizada no Capítulo 1
(ver item 1.3). Tal hipótese foi construída a partir de teorias discursivas e de um
47
Os planos apresentados por Maingueneau, no livro Gênese dos Discursos (2005), são: a
intertextualidade, o vocabulário, os temas, o estudo do estatuto do enunciador e do destinatário, o modo
de enunciação e o modo de coesão. O autor ressalta que esses são alguns dos planos possíveis, e não os
únicos ou os mais importantes.
104
conhecimento empírico (social) sobre os surdos. Resta-nos, agora, compreender em que
intensidade essa mecânica discursiva opera (e se realmente opera) nos dados coletados.
Outra questão que merece destaque é o esclarecimento da utilização da noção
de semântica global. O recurso a tal noção, no presente estudo, não parte da intenção de
utilizá-la tão somente como uma ferramenta analítica. Entendemos a semântica global
como um princípio discursivo, um modo de se conceber a produção de sentidos em um
discurso. Refletir textualmente a partir dela implica eliminar pretensões como a de se
atingir a “significação exata”, a “verdade de Descartes” dos discursos, uma vez que os
sentidos serão construídos a partir da associação de várias hipóteses, ou melhor, a partir
da interação de vários planos discursivos.
A nosso ver, o recurso a essa noção possibilita um modelo de análise ao
mesmo tempo abrangente e específico. Abrangente porque, como foi dito, recusa a idéia
de se pensar que a “essência” do texto pode estar em um plano específico que mereça,
portanto, investimentos analíticos reforçados. E específico porque, ao postular tal
caráter “democrático” para a análise textual, não se pretende, com isso, realizar uma
análise exaustiva e minuciosa de todos os planos discursivos, mas prever que a análise
pode partir de um plano ou de outro, ir até ali ou avançar até acolá, de acordo com o que
nos demanda o próprio texto. Além disso, a interação de dois planos poderia confirmar
hipóteses, sem que haja a necessidade de comprová-la em muitos deles. Com isso,
esclarecemos que o roteiro de análise que elaboramos para esse trabalho não será
seguido à exaustão, ou seja, não é porque a noção de ethos, por exemplo, o compõe que
ela deverá constar em todas as análises. O texto fala e nos indica caminhos analíticos a
ser seguidos. A nossa tarefa, aqui, será ouvi-lo.
Lembramos que, em decorrência das características do corpus e das razões já
apresentadas no item 3.1., não julgamos oportuno examinar textos completos (salvo
105
exceções). A nosso ver, as análises tenderiam a se tornar repetitivas, mostrando, assim,
pouca produtividade para atender aos objetivos propostos. Assim, estudaremos os textos
a partir de um tipo de organização temática que visa delinear as imagens do ser surdo e
da surdez construídas nos discursos.
3.3.1 – As palavras e os sentidos
Pensando em um dos feixes constitutivos da polêmica discursiva, o
posicionamento
48
, realizamos uma primeira leitura mais abrangente do corpus e
observamos que a grande maioria de seus textos parece filiar-se ao discurso de
fundamentação surda (doravante DFS), assumindo os poucos textos restantes uma
conduta discursiva condizente com o discurso de fundamentação ouvintista (doravante
DFO). Análises mais atentas e o decorrer da pesquisa, contudo, poderão nos dizer mais
sobre essa impressão inicial. Essa primeira constatação não invalidaria a hipótese do
espaço discursivo (polêmico) que configuramos anteriormente, visto que a presença do
outro no discurso pode não estar evidente, devendo ser explicitada por mecanismos
analíticos específicos ao domínio da AD. É o que acontece com o fragmento 01 (a
seguir), que pode ser tomado como uma manifestação discursiva (quase explícita) do
DFO.
As análises que seguem focalizarão o comportamento das palavras nos
discursos, a forma pela qual os signos podem se revestir de ideologia e compor um
discurso. Do ponto de vista do rculo de Bakhtin, as palavras nunca são
ideologicamente neutras e nunca apresentam uma significação estável ou unitária. Para
Bakhtin/Voloshinov (2006, p. 36), a palavra é o fenômeno ideológico por natureza.
48
Posicionamento pode ser entendido como a instauração e a manutenção de certa identidade enunciativa.
106
Cereja (2007, p. 204), refletindo sobre os estudos desses teóricos, afirma que “palavra é
também história, é ideologia, é luta social, que ela é a ntese das práticas discursivas
historicamente construídas”. Dessa maneira, focalizar, inicialmente, as palavras e as
suas possibilidades semânticas em determinado discurso parece-nos um ponto de partida
interessante, uma vez que será principalmente a partir delas que constataremos
posicionamentos discursivos e ideológicos, compreendendo melhor as formações
discursivas
49
. Observemos o trecho a seguir:
01. Ser surdo é ter um mundo meu, é conviver com a “solidão” permanentemente, é ter
como companheiro o silêncio que muitas vezes é opressor, deprimente, sufoca, que revolta,
outras vezes é calmo, acalenta, faz com que eu pondere sobre minhas atitudes. (Texto A)
50
No trecho acima, a palavra “silêncio” parece ser o eixo do que se enuncia. A
partir dela, derivam-se outros atributos de vida, como a solidão permanente e o mundo
meu. A solidão a que o sujeito se refere não parece ser nem física nem afetiva, mas,
sim, sensitiva, uma solidão de sons, ocasionada pela companhia do silêncio, que acaba
por manter o sujeito em um mundo só seu. O lexema solidão, aqui, não foi usado apenas
em razão de suas virtualidades de sentido na língua, mas em razão de seus efeitos de
sentido no campo, ou, mais especificamente, na formação discursiva referente ao DFO.
As aspas podem nos indicar a intenção de se produzir um sentido específico, que destoa,
em certa medida, do seu emprego usual.
49
É preciso observar, contudo, que não estamos dizendo que uma FD pode ser definida pelo vocabulário.
Não sentido em dizer que um discurso possui um vocabulário específico a ele, até porque, muitas
vezes, discursos opostos dividem o mesmo vocabulário, cada um conferindo a ele um tratamento
específico, como ressalta Maingueneau (2005, p. 85).
50
Como analisaremos os discursos principalmente a partir de seus trechos, julgamos oportuno indicar,
através de uma enumeração que seguirá as letras do alfabeto, as partes que compõem um texto na íntegra.
Por exemplo, todos os trechos do texto A (alguns textos foram divididos em dois trechos, poucos, em
três), contarão com essa letra para identificá-los e assim por diante. Quando o texto aparecer na íntegra,
essa informação acompanhará a identificação por letras. Esclarecemos também que reproduzimos os
textos dos sujeitos “ipsis litteris”, isto é, tal como foram produzidos originalmente.
107
O mesmo parece ocorrer com a palavra silêncio, entendida nessa FD como
disfórica, ou seja, como um objeto de valor negativo que é opressor, deprimente, sufoca,
que revolta, embora o sujeito se apresse em esclarecer que ele outras vezes é calmo,
acalenta, faz com que eu pondere sobre minhas atitudes. Essa ressalva, no entanto, não
impede que o sujeito se mantenha isolado, no seu próprio mundo, o que confirma, de
certa forma, a conotação negativa do enunciado anterior.
O sentido (basicamente negativo) que tal lexema assume nessa FD não parece
generalizar-se no campo, contudo. Como afirma Maingueneau (2005, p. 83), “o mais
freqüente é que haja explorações semânticas contraditórias das mesmas unidades
lexicais por diferentes discursos”, isto é, discursos opostos até podem fazer uso das
mesmas unidades lexicais, cada um explorando, no entanto, uma faceta de suas
possibilidades semânticas.
A semântica global (e seu sistema de restrições) poderá determinar os ângulos
de exploração semântica de cada lexema, de acordo com a FD em que o discurso se
insere. No trecho a seguir (02), por exemplo, observamos o lexema “silêncio”
produzindo um efeito de sentido diferente, estabelecendo uma relação de oposição com
o texto (01).
02. Ser surdo significa pertencer ao mundo do silêncio, mas com cultura e identidades
próprias, tendo também a Libras como língua materna que possa se expressar em tudo: nas
comunicações do dia a dia, piadas, política, moda, etc... (Texto B)
Nesse discurso, o locutor afirma pertencer ao “mundo do silêncio”,
demonstrando, ao mesmo tempo, as virtudes desse mundo, como cultura e identidade
específicas, além de uma língua materna que lhe permite expressar-se. Isso desconstrói
no leitor um saber (inter e pré) discursivo que poderia levá-lo a entender tal mundo (do
silêncio) como um objeto de valor negativo. Sendo assim, o silêncio, nesse fragmento,
108
não é solitário, como no fragmento anterior (01), mas povoado pelo tema da cultura, da
identidade e da língua própria, opondo-se, portanto, ao silêncio do texto (01), que
mantém o sujeito em um mundo seu. É interessante notar, ainda, que o sujeito se
apressa em esclarecer que, com a Libras, ele pode tanto contar piadas quanto discutir
política, sugerindo que a versatilidade das línguas também incide sobre a Libras e
demonstrando, assim, o desejo de desconstruir no destinatário uma suposta imagem
prévia que qualificaria as LS como restritas.
Pensando ainda no uso das palavras, o texto abaixo, continuação do trecho (01),
pode nos indicar uma oposição de termos que resulta de uma forma específica de
compreender o lexema “normal” no DFO:
03. A surdez é uma deficiência invisível, que ao mundo não é notada, como a deficiência
física ou visual, talvez por isso seja dada menos importância pelas pessoas, exemplo disso é
o direito ao passe livre nos ônibus as pessoas ficam olhando para o deficiente auditivo,
tentando saber o porque deste direito se aos olhos dos outros você é uma pessoa “normal”.
(Texto A)
Percebemos, no trecho acima, que o sujeito constrói uma clara oposição entre
os termos “deficiente” e “normal”, sendo possível atribuir ao último lexema a mesma
rotina interpretativa realizada para o termo “silêncio”, isto é, aqui também parece existir
uma oposição entre “sentido da língua”/“sentido da FD”, uma vez que parecem existir
distinções quanto ao uso do termo “normal” nessas duas instâncias.
O mesmo não poderia ser dito, contudo, em relação a “deficiência”, isto é, não
parece ser possível projetar efeitos de sentido distintos para tal lexema em cada uma das
FDs (a de fundamentação ouvintista e a de fundamentação surda), pois, a princípio,
veicular tal termo já seria suficiente para caracterizar um discurso como filiado ao DFO,
uma vez que o sistema de restrições do DFS busca tanto negar quanto excluir a temática
da deficiência de seu sistema, como veremos adiante. Acreditamos, portanto, que seja
109
possível conferir a esse termo o valor de “signo de pertencimento” ao DFO, para usar
um termo de Maingueneau (2005, p. 85), ou seja, a simples inserção desse lexema pode
caracterizar um discurso como integrante do DFO. Veremos, contudo, como se essa
hipótese se comporta no decorrer da análise.
Quanto ao termo “normal” e seus efeitos de sentido em cada FD, observemos
as ocorrências a seguir, como manifestações discursivas do DFS (todos os grifos são
nossos):
04. A vida pessoal minha é verdade viver difícil mas é normal como outros. (Texto C)
05. É muito importante para o surdo, os surdos são igualdade ouvintes.
É isso importante da vida tem respeito para os surdos.
A surda tem a voz e tem fala é normal igual ouvinte, não tem diferente ouvinte e surdo.
(Texto D)
06. Ser surdo é que não ouve, mas falar sim. Na vida surda é normal como outra pessoa
ouvinte, capaz fazer qualquer coisa. (Texto E)
07. Eu sou surda é normal como ouvinte mas nossa diferença mas só tem um problema
ouvindo, surdo e ouvinte são iguais. (Texto F)
08. Pra mim surdo é como comum como nós humano, acho entre ouvinte e surdo são quase
iguais. Como menos ouvir. Somos humano. (Texto U)
09. Sou surda normal não tem diferença como ouvinte somos iguais, porque que não podia
ouvir mas tenho os olhos (visual). [...] Essas as pessoas não entende porque ser surdo e acha
que ele (surdo) o problema e defeito como as pessoas “deficiente”, esse eu não concordo
precisamos respeitar que o surdo somos iguais é diferença da audição, não o corpo defeito
e capaz estuda e trabalhar normal como ouvinte. (Texto G)
A figura “normal”, nos fragmentos acima, parece estar sendo utilizada em sua
faceta de comparação, visando evidenciar o caráter “comum”, de mesmo “peso e
medida”, de “igualdade” dos sujeitos. Os locutores buscam reafirmar essa valoração
igualitária. Observemos que a conjunção comparativa “como” ou o adjetivo “igual”
110
sempre acompanham tal lexema, no intuito de reforçar esse efeito de sentido de
equivalência (vide grifos).
No excerto (03), em contrapartida, congruente com o DFO, o termo “normal”
apresenta um efeito de sentido contrário. As aspas sugerem que ele está sendo utilizado
no sentido de reafirmar a diferença, não a igualdade. Diferença observamos com
valoração negativa, como insuficiência, como negação do preceito de igualdade. O
sujeito que se expressa em (03) quer ser visto como deficiente, não como “igual”, pois a
igualdade a que ele se refere está no domínio da alteridade, está entre aspas, é
inatingível, pertence aos outros, como ilustra o fragmento se aos olhos dos outros você é
uma pessoa normal” [apesar de não ser]. O enunciado que colocamos em colchetes é
meramente ilustrativo e visa apenas demonstrar que essa poderia ser uma continuação
desse fragmento, uma vez que esse é o efeito de sentido que construímos quando o
locutor diz, com algum pesar, que as pessoas nem sempre o vêem como “deficiente
auditivo”, mas como uma pessoa “normal”. Partindo daí, ele constrói sobre si uma
imagem de “deficiente”, diferente dos “normais”, que quer ser reconhecido como tal,
recebendo da sociedade a devida “importância” pela sua “deficiência”. De tal modo, ele
projeta sobre si um ethos de “sofredor” e de “coitado”, que aceita as nossas
condolências
51
. Nesse caso, ele confirma o ethos prévio da deficiência que sujeitos
surdos poderiam supostamente evocar. A imagem de surdez construída nesse discurso é
a da desolação, que necessita da compaixão alheia.
Examinando, mais de perto, a ocorrência do lexema “normal” nos trechos de
(04) a (09), acreditamos que os sujeitos produtores possivelmente anteciparam a
51
É interessante notar que, na questão 01 do questionário, o sujeito afirma considerar-se deficiente
auditivo. Afirma ainda ser parcialmente usuário de LS e parcialmente usuário de LP. Essas informações,
associadas ao texto produzido pelo sujeito, podem nos indicar uma identidade surda flutuante, de acordo
com a tipologia de Perlin (1998).
111
representação que, hipoteticamente, ouvintes em geral fazem dos surdos; representação
que costuma ser estereotipada e que se baseia no DFO, uma vez que esse discurso é o
mais difundido socialmente.
As temáticas da “normalidade” e da “deficiência” parecem, pois, surgir nos
textos a partir do desejo de os sujeitos se afirmarem como “normais”, negando-se, ao
mesmo tempo, como “deficientes".
Pensando nas contribuições de Pêcheux (1998) em relação à estrutura das
formações sociais e no jogo de imagens intercambiadas entre surdos e não-surdos,
damo-nos conta de que a imagem de A para o sujeito colocado em A é diferente da
imagem de A para o sujeito colocado em B, ou seja, não-surdos não vêem os surdos da
mesma forma que os próprios surdos se em. Cientes disso, os sujeitos precisarão
desconstruir a representação que supostamente o outro faz dele. Se estamos falando de
imagens prévias, parece-nos que os fragmentos acima visam combater justamente o
ethos
52
prévio (coletivo) da deficiência que poderia ser imputado aos surdos pela
sociedade em geral.
Comparando o excerto (03) com os excertos de (04) a (09), podemos concluir
que, no primeiro, a normalidade é vista como inatingível, enquanto nos últimos ela é
considerada como dada a priori.
Mas a temática da igualdade não parece ser, a princípio, um tema importante
no DFS, podem pensar com razão alguns. A era do “pós” (pós-modernismo, pós-
colonialismo...) nos brinda com esforços renovados em direção à compreensão das
52
Quanto a essa categoria, é importante esclarecer que não nos parece adequado compreendê-la como um
traço momentâneo que o orador incorpora. O ethos depende da semântica global que direciona o discurso
a esse ou aquele lugar, quer dizer, é por estar inserido na FD clínica ou de fundamentação ouvintista que o
sujeito se apresenta como “deficiente”. Não se trata, portanto, de um traço momentâneo e intencional,
mas de uma “imposição” da FD. Como afirma Possenti (2008, p. 150), “a semântica global de um
discurso também define um etho
s característico (doce, duro, irônico...) e, em decorrência, em boa medida,
seu léxico, que, por sua vez, é um dos elementos que dão concretude ao ethos”.
112
múltiplas formas do outro. Estamos em um momento político-acadêmico em que o
conceito de diferença tem sido ressignificado, sobretudo nos estudos culturais. Por que,
então, esses sujeitos, a partir da FD lingüístico-antopológica, exaltam a igualdade? Eles
realmente ostentam um discurso de fundamentação surda? Como podemos explicar a
insistência do preceito da igualdade nos fragmentos acima? Professa-se a igualdade
perante quem? Faz-se necessário compreender melhor essa conduta discursiva.
O poético prefácio escrito por Perlin (2007) em Estudos Surdos II (e
reproduzido como epígrafe do presente estudo) nos ajuda a entender que normalidade é
essa, reivindicada pelos sujeitos ao mesmo tempo em que a diferença também o é:
Continuamos a ser diferentes em nossas formas. Continuamos a nos
identificar como surdos. Continuamos a dizer que somos normais com nossa
língua de sinais, com o nosso jeito de ser surdos. [...] então um grupo
cultural à parte. Um grupo que realmente investe na decisão de ser diferente.
De transformar o anormal em normal no cotidiano da vida. (grifos nossos).
Inicialmente, é preciso compreender que a normalidade ou o caráter de “ser
comum” reivindicado pelos surdos é reafirmado perante os ouvintes, o “outro” dos
surdos, os colonizadores que se julgam (ou, pelo menos, se julgaram) superiores.
Notemos, todavia, que a afirmação de igualdade, nos discursos sobre a surdez, não
parece querer eliminar as diferenças. Como veremos no decorrer deste estudo, diversos
serão os momentos em que o tema da diferença (surda) será requisitado.
O que a autora nos declara na citação acima, portanto, é que a diferença surda
não deve ser vista como anormalidade. Ela nos fala sobre a normalidade da diferença e
sobre a diferença na normalidade. Para um surdo, normal pode significar poder ser
surdo, utilizar a LS, conviver com quem a utiliza, fazer uso de intérpretes e de legendas
na TV, etc.
A autora sugere que olhemos o surdo a partir do próprio surdo, a partir do que
113
nos diz a sua “norma surda”, de forma a “transformar o anormal em normal no cotidiano
da vida”. Chiella & Lopes (2005, p. 03) concordam com essa posição e defendem que
seria a partir do entendimento de uma “norma surda” que se poderia produzir algum
padrão a partir da qual seria possível avaliar” e determinar aqueles que se enquadram
dentro (ou fora) do que o grupo entende como normal, problemático, anormal, etc.
Assim, os fragmentos acima parecem querer determinar que a “normalidade surda” é
equivalente à “normalidade ouvinte”.
E se nos trechos acima os sujeitos se antecipam como normais, é justo
perguntar se alguém os acusou do contrário. A partir desse questionamento, chegamos a
uma segunda hipótese interpretativa. Complementando a hipótese do “jogo de imagens”,
defendemos agora que os fragmentos em análise, de (04) a (09), constituam um
contradiscurso, um tipo de contra-argumentação antecipada. Se nos lembrarmos que o
espaço discursivo deve ser considerado como uma rede de interação semântica e que o
DFO se baseia, sobretudo, em preceitos médicos sobre a surdez que tomam o não ouvir
como uma disfunção, veremos que os fragmentos acima contra-argumentam o discurso
de fundamentação ouvintista
53
, uma vez que, como afirma Maingueneau (2005, p. 41),
“na medida em que, cronologicamente, é o discurso precisamente chamando ‘segundo’
que se constitui através do discurso ‘primeiro’”, parece lógico supor, então, que esse
discurso primeiro (DFO) é o outro do discurso segundo (DFS).
Mas ainda assim seria justo pensar: ao afirmar a igualdade, não se estaria
negando a diferença? Mas a diferença que é negada pelos locutores é a diferença como
53
Seguem alguns exemplos de manifestações discursivas (médicas) do DFO. Todos os grifos são nossos:
I - “Protetizar os deficientes auditivos [...] para que os portadores dessa patologia sejam efetivamente
beneficiados com a última tábua de salvação que a equipe tem a oferecer” (CARVALHO, 2003).
II - “...o sentido da audição, sem o qual o é possível qualquer contato verdadeiramente humano.
Simpático ou antipático, [o surdo] é uma pessoa que sofre por tão humilhante patologia(CARVALHO,
2002).
III - “O surdo-mudo congênito tem a face pálida, a physionomia morta, o olhar fixo, a caixa toráxica
deprimente...” (LEITE, 1881, p. 04).
114
anormalidade, haja vista o texto que citamos de Perlin. “A normalidade surda e a
normalidade ouvinte são equivalentes, não diferenças que nos coloquem na linha da
insuficiência”. É isso que os fragmentos de (04) a (09) buscam dizer. E se
confrontarmos essa posição enunciativa com os desdobramentos históricos sobre a
surdez (vide Capítulo 1), entenderemos a importância de se mostrar normal, no sentido
humano da equivalência. Refutam-se, portanto, a partir da tradução feita pelo DFS, os
traços que o DFO atribui aos surdos, nesse caso, o traço da anormalidade.
Em (04), por exemplo, refuta-se que dificuldades de vida possam decorrer da
surdez quando se afirma que a vida pessoal minha é verdade viver difícil mas é normal
como outros. Em (05), refuta-se a falta ao afirmar que a surda tem a voz e tem fala é
normal igual ouvinte”. Em (06), a refutação incide sobre uma suposta incapacidade
gerada pela surdez, ao afirmar que o surdo é capaz fazer qualquer coisa. Em (07),
refuta-se que as diferenças vão além do não-ouvir, pois nossa diferença [...] tem
um problema ouvindo. Em (09), refuta-se a diferença como falta quando o sujeito diz
que apesar de não ouvir, tem os olhos (visual), assim como o defeito do corpo e a
incapacidade para o estudo ou trabalho são negados, determinando que precisamos
respeitar que surdos somos iguais (...) não o corpo defeito e capaz estuda e trabalhar.
Foi a partir da “tradução” do DFO que tais enunciados foram construídos. Por
enquanto, a nossa hipótese de se conceber o termo “deficiência” e seus derivados como
um “signo de pertencimento” ao DFO tem sido confirmada. Vemos, por exemplo, que
em (09), uma variação do termo aparece, mas vinculado ao discurso contrário (o DFO).
Os sujeitos negam, assim, as postulações do seu outro no espaço discursivo.
Antecipam-se como “iguais” para negar o caráter “anormal” que, pelo menos
hipoteticamente, costuma ser evocado por esse outro. O outro, aqui, claro, é o discurso
de fundamentação ouvintista, que aloca o ser surdo em lugares desprivilegiados.
115
Na relação que se estabelece entre discurso tradutor e discurso traduzido,
Maingueneau (2005) propõe que se distinga discurso-agente de discurso-paciente,
reservando ao primeiro termo a posição de tradutor e, ao segundo, a de traduzido. Vale
lembrar que é sempre a partir do discurso chamado primeiro (na presente pesquisa,
DFO) que se exerce a atividade tradutória, uma vez que foi a partir dele que o discurso
segundo (DFS) se constituiu.
É preciso não perder de vista, no entanto, que as afirmações que o DFS
(discurso-agente) combate não são as afirmações empíricas produzidas pelo DFO
(discurso-paciente). Combate-se uma tradução, um simulacro (entendido como uma
“representação”) do discurso contrário, pois “para construir e preservar a sua identidade
no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o outro como tal, mas somente
com o simulacro que constrói dele” (MAINGUNEAU, 2005, p. 103).
Produzir enunciados competentes na sua FD e não compreender o outro são,
portanto, facetas do mesmo fenômeno, ou seja, para se produzirem enunciados
condizentes com as regras da sua FD é preciso entender o outro a partir da sua própria
competência discursiva. Segundo Lara (2008), a tradução e a construção de simulacros
são mecanismos necessários, ligados à própria constituição das FDs. Não se trata, assim,
de um arranjo isolado, mas de um dispositivo que faz parte da gênese dos discursos.
Sobre esse processo de tradução do outro, esclarece a autora, inspirada em
Maingueneau:
O que ocorre, então, é que cada discurso interpreta os enunciados de seu Outro ou
do simulacro que dele constrói através da sua própria “grelha semântica”. Tenderá,
pois, a “traduzir” esses enunciados nas categorias do registro negativo de seu
próprio sistema, mostrando-se, dessa forma, a “tradução” como um mecanismo
necessário e regular, ligado à própria constituição das FDs (LARA, 2008, p. 115).
Em curso ministrado no XVIII Instituto de Lingüística da ABRALIN, realizado
pela Faculdade de Letras/UFMG, em março de 2007, o professor Sírio Possenti assim
116
apresentou o processo de tradução do outro e da construção de simulacros entre
discursos que dividem o mesmo espaço discursivo: se o discurso S1 fala A e o discurso
S2 fala B, por exemplo, S1 tenderá a ler B como um não-A explícito, isto é, como a
negação de seu próprio princípio, donde se pode concluir que cada FD concebe o outro
a partir de si mesmo, postulando que “se o outro não está por mim, está contra mim” e
deverá, pois, ser combatido. Ilustrando com a nossa própria pesquisa, podemos supor
que quando o DFO classifica o surdo como portador de patologia”, por exemplo,
adeptos do DFS traduzirão essa informação como uma acusação de “anormalidade”, de
“aberração”, um quesito de “não-humanidade” que precisa ser combatido.
Nos trechos a seguir, de (10) a (12), essa relação pode ser percebida pelo
caráter conflituoso dos enunciados, que parecem querer negar algum tipo de afirmação
(anterior) ou conhecimento partilhado. Dessa vez, a negação se tornará explícita através
do uso do operador de negação (um índice de polifonia, como explica Ducrot, 1987).
Vejamos:
(10) Ser surdo é a pessoa não ouve porém sente feliz. Ser surdo não é subhumano como
exemplo os animais. A vida dos surdezes essa faz parte classe superior por que existe a
inteligência e a sabedoria [...].
O que acontece minha prosperidade sou estudante no ensino superior até sou orador isso não é a
pessoa falta QI ou inferioridade. (Texto C)
(11) Para mim o significado de ser surdo é aquele que não se preocupa com o preconceito,
ficar imitando aos ouvintes, ir sempre para a clínica, etc. Ser surdo é orgulhosamente
respeitado e um cidadão como todos. (Texto H)
(12) Minha opinião, significado de ser Surdo a diferença Surdo. Surdo é não tem direito
língua
54
, ausência de sons, clínica, obrigação método oral, incapacidade para articular a
palavra. Surdo é significado viver mundo organizado, mas transformado, de um diferente, não
é deficiência, sim, diferença. (Texto I)
54
Esse enunciado pode induzir a erros interpretativos, se não for compreendido a partir das características
formais da escrita surda. O texto na íntegra, assim como a compreensão de sua semântica global e algum
conhecimento sobre a Libras, permitem-nos entender que o locutor procurou realizar uma dupla negação
no enunciado que abre o texto, no caso, “ser surdo [não] é não ter direito...” .
117
Defendemos, nas ocorrências acima, como nhamos procedendo, que o
discurso agente (DFS) determina, ao mesmo tempo em que combate, o simulacro de seu
outro (DFO) segundo a sua própria “grelha semântica”, para usar aqui um termo
empregado por Lara (2008). A autora ainda esclarece que a compreensão do discurso do
outro é feita a partir das “categorias do registro negativo de seu próprio sistema”, como
ilustrou o exemplo apresentado por Possenti (2007).
Esse processo de tradução do outro caracteriza com propriedade o fenômeno da
interincompreensão, proposto por Maingueneau e retomado por Lara (2008). Tal
fenômeno pode ser compreendido como a própria condição de possibilidade das
diversas posições enunciativas”, como nos diz Maingueneau (2005, p. 103), uma vez
que enunciar em conformidade com as regras de sua própria FD e de não ‘compreender’
o discurso de outrem são “duas facetas do mesmo fenômeno”, estão interligadas e são
interdependentes. Como temos percebido, a polêmica discursiva que apresentamos aqui
(DFS versus DFO) se baseia nesse princípio.
Nesse processo de “tradução”, notemos que o ser surdo, nos trechos acima – de
(10) a (12) pode ser definido por seu avesso, ou seja, por aquilo que ele não é, ou
melhor, pela negação daquilo que o ser surdo parece ser (pelo menos por meio do
simulacro produzido pelo DFS) no DFO: subhumano, imitando os ouvintes, ir sempre
para a clínica, falta QI ou inferioridade, obrigação método oral, etc.
Mas ao expor o seu “não-ser”, negando traços do DFO, os locutores acabam
por definir o seu “ser”, apresentando traços que compõem o seu próprio discurso:
humano, original, que não se “trata”, inteligente e igual, usuário de sinais, etc.
Ora, semanticamente, quando digo o que não sou, atesto o que sou. Tal
estratégia discursiva mostra que os conteúdos implícitos à negação não constituem, em
princípio, o verdadeiro objeto do dizer, e é essa característica que dota os enunciados de
118
eficácia argumentativa. O “ser surdo” não está aqui exposto de maneira direta, mas pode
ser recuperado a partir de uma manobra semântica relativamente simples.
Compreendemos, assim, que a surdez, nos discursos acima, é definida, sobretudo, pela
conduta do sujeito diante dela, isto é, o ser surdo aqui é definido como um cidadão
como todos, que estabelece a sua vida a partir da sua diferença, que não procura viver
como se fosse ouvinte e tampouco se importa com o preconceito. A imagem que se
constrói a partir desses fragmentos é a imagem de sujeitos independentes e libertos de
amarras sociais que possam ditar comportamentos.
Enquanto (10) e (12) parecem querer combater o discurso sobre o surdo
corrente na sociedade, investindo contra uma representação social que costuma se
alicerçar em saberes médicos, como em não é subhumano (10) ou não é deficiência (12),
o trecho (11), ao contrário, busca “golpear” um discurso sobre o surdo corrente no
próprio grupo. Nesse trecho, o locutor combate uma forma de ser surdo que estaria em
consonância com o DFO, que seria aquele que se preocupa com o preconceito, ficar
imitando aos ouvintes, ir sempre para a clínica, etc. Aqui, o surdo projeta um outro
para si, não apenas para o seu discurso.
Notemos, portanto, que os trechos acima se ancoram na negação de
proposições que parecem ser, de alguma forma, previamente conhecidas, senão pelos
interlocutores, pelo menos pelo locutor.
Ducrot (1987, p. 203), como afirmamos acima, apresenta a negação a partir da
polifonia, que, por sua vez, compõe a noção de heterogeneidade discursiva, nesse caso,
a de heterogeneidade mostrada (marcada).
De acordo com esse autor, é preciso distinguir, em um enunciado negativo,
duas proposições, ou dois pontos de vistas opostos (atribuídos, portanto, a
119
enunciadores
55
distintos): o primeiro, positivo, e um outro, que o nega. Daí o caráter
polifônico do fenômeno.
Numa primeira formulação, Ducrot (op. cit.) divide a negação em descritiva,
que representa um estado de coisas, “sem que o autor apresente sua fala como se
opondo a um discurso contrário”, e polêmica, “destinada a opor-se a uma opinião
inversa”, para ficarmos apenas na parte da teoria que nos interessa neste momento. Nas
ocorrências de (10) a (12) notamos, portanto, que a negação pode ser considerada
polêmica, uma vez que o enunciador refuta enunciados (virtuais) contrários, como
sabemos, advindos do DFO.
Em (11), apesar de o operador negativo incidir diretamente apenas sobre o
primeiro termo da enumeração (é aquele que não se preocupa com o preconceito, ficar
imitando os ouvintes, ir sempre para a clínica, etc), pode-se perceber que o efeito de
sentido negativo se estende também sobre os demais termos da enumeração. Tais
termos, isoladamente, poderiam ser considerados enunciados afirmativos; inseridos no
discurso, no entanto, eles se tornam discursivamente negativos “[não é] ficar imitando
os ouvintes”, “[não é] ir sempre para a clínica”.
O mesmo fenômeno pode ser percebido em (12): após apresentar o que a
surdez no DFS não é [não é] ausência de sons, [não é] ir para a clínica, [não é]
obrigação método oral apresenta-se o que ela é: surdo é significado viver mundo
organizado, mas transformado, de um diferente, não é deficiência, sim, diferença. A
figura da “diferença” aparece aqui como oposta a “deficiência”, sendo considerada
como um argumento positivo para a compreensão da surdez.
55
Lembramos que, para Ducrot (1987, p. 192-193), o locutor é o responsável pelo enunciado, enquanto
os enunciadores são perspectivas, pontos de vista com os quais o locutor se identifica ou não.
120
3.3.2 – Controle e contracontrole
56
Pensando na refutação, cumpre-nos compreender, agora, porque alguns temas
do DFO se mostram mais ameaçadores do que outros para os locutores do DFS, dignos,
portanto, de ser combatidos. Indagamo-nos acerca dos motivos pelos quais alguns feixes
do discurso-paciente merecem ser refutados mais do que outros. A não-normalidade,
vista como inferioridade, por exemplo, parece ser um deles. Algo mais pode estar por
trás desse embate discursivo? O crescimento ou fortalecimento social do DFO poderia
acarretar perdas ou desvantagens para os defensores do DFS?
Supomos que sim. Perguntando-nos acerca da serventia do conceito de
normalidade, ou melhor, questionando-nos sobre o interesse social de se querer
“normalizar” corpos e consciências, encontramos em Pfeifer (2003, p. 55) parte da
resposta. Para ela, “o conceito de normalidade tem uma única serventia: a de ser uma
justificativa para que se exerça poder sobre os corpos dos ‘desviantes’”.
Ora, a polêmica discursiva que aqui apresentamos parece encerrar-se na
definição de quem são os surdos: se são seres que precisam de tratamento, devendo,
assim, ser conduzidos pela soberania de outros (ouvintes), ou se se trata de seres
“prontos” e autônomos, uma cultura outra e paralela capaz de conduzir-se no mundo, ou
até mesmo conduzir o próprio mundo. O que está em jogo, aqui, é definir os papéis dos
sujeitos no mundo; e tais papéis podem ser cerceados ou autorizados pela prática
discursiva que os legitima.
Este parece ser o centro propulsor do embate discursivo que aqui presenciamos:
as relações de poder entre surdos e ouvintes (ou entre surdos e deficientes auditivos,
como veremos a seguir). Aqueles que propagam o DFS querem ser vistos como normais,
56
Como define Skinner (1982), “o contracontrole ocorre quando os controlados escapam ao controlador,
pondo-se fora do seu alcance” (SKINNER, 1982 apud WEBER, 1989).
121
no sentido de ser e estar no mundo como cidadãos de mesmo valor e até mesmo, em
alguns momentos, como superiores aos não-surdos.
Aqueles que enunciam a partir do DFS vêem no discurso contrário, de certa
forma, uma ameaça a sua soberania e independência; vêem o controle e o
disciplinamento como uma guilhotina constante sobre suas cabeças; vêem sua verdade
sob risco de exílio. Em termos discursivos, seu procedimento é optar pela negação dos
enunciados que lhe parecem mais ameaçadores.
Como afirma Lara (2008), o discurso, simultaneamente, responde aos golpes
que, com freqüência, recebe de outro(s) discurso(s) e golpes, escolhendo responder
aos enunciados que lhe parecem os mais ameaçadores (pois “abalam” sua própria
identidade). Nesse sentido, concentra-se em torno de alguns pontos-chave (como a
oposição normalidade/deficiência ou ainda deficiência/diferença), que constituem para
Maingueneau (2005, p. 113), “pontos de imbricação semântica que abrem um acesso
privilegiado à incompatibilidade global dos discursos”.
Em termos sociais (e discursivos), o que está em jogo, aqui, é, portanto, a luta
pelo poder. E assim como o DFO precisa dele para manter sob controle os “desviantes”,
o DFS precisa dele para ver decretada, de vez, a sua “carta de alforria”, como fica
sugerido no excerto (18), que será analisado mais adiante.
O poder, em Foucault (2006), é visto como uma relação de forças que se
estabelece em todas as partes. Para ele, o poder não somente reprime, mas também
produz efeitos de verdade e de saber, constituindo práticas e subjetividades que
governam os sujeitos, determinando, inclusive, o “direito de fala” de cada um. Os
efeitos de verdade sobre a surdez, como sabemos, foram sentidos na pele pelos surdos,
pois a sociedade conferiu aos profissionais da saúde o poder de conduzir, segundo seus
122
princípios, saberes e valores, a vida dos surdos
57
. Atualmente, nos grandes centros pelo
menos, esse poder tem sido aos poucos transferido a intelectuais surdos, líderes que se
engajam em movimentos acadêmicos e sociais que visam renovar e reconstruir saberes
sobre a surdez, apresentando um movimento de independência que busca um
contracontrole, que deseja ampliar na sociedade o “direito de fala” do povo surdo.
Sobre o controle no direito de fala, Silva (2004, p. 169-172) argumenta que, na
sociedade, parece haver “uma política de silenciamento” daquilo que oferece “perigo”,
que transgride a norma, que abala o conceito de normalidade. Aquilo que ameaça a
ordem deve ser controlado, disciplinado, ou seja, o disciplinamento pode ser um
instrumento de controle que serve ao poder. Para esse autor, tal instrumento trabalha os
corpos, fabrica e manipula comportamentos, produzindo um tipo de sujeito adequado ao
funcionamento da sociedade. O indivíduo acaba, assim, se tornando uma fabricação do
poder.
O DFS pode ser considerado como uma forma de tentativa de esquiva desse
controle, uma forma de reação a esse poder. Pode ser considerado como um
investimento na instauração de um novo poder: o poder surdo.
É preciso que se especifique, no entanto, que não estamos falando aqui de uma
disputa maniqueísta onde o monopólio dos poderes e saberes está sendo duramente
pleiteado entre surdos e ouvintes, devendo pertencer a apenas um pólo, como nos
lembra Teske (2008). O poder a que nos referimos pode estar em coisas simples, como
o direito de querer-se surdo, por exemplo, de não ser ideologicamente “obrigado” a se
ouvintizar, ou de não causar estranhamento ao dizer que, como surdo, acharia bom se
seus filhos também o fossem.
57
Dizemos isso porque cabia (ou ainda cabe, em alguns casos) a equipes da área da saúde determinar a
condução da vida do sujeito: tipo de escola em que ele deve estudar, companhias que deve ter (surdos ou
ouvintes), tipos de “tratamentos” que deve seguir (psicológicos, fonoaudiológicos, neurológicos, etc.),
além de procederem a uma constante avaliação da “evolução” sujeito.
123
Esse último exemplo a que nos referimos foi retirado de uma reportagem
publicada na BBC, em março de 2008, intitulada “Casal britânico quer direito de
escolher embrião surdo” (ver anexo). A reportagem nos revela que o casal (que tem
uma filha surda) passaria em breve pelo processo de fertilização artificial e que gostaria
de ter o direito de selecionar um embrião que desse origem a um bebê surdo. A posição
do casal fomentou um grande debate sobre muitas questões filosóficas, mas, sobretudo,
causou estranhamento em muitas pessoas. Diversos são os sites que os acusam de
eugenia, ao passo que certamente ninguém acusaria um casal ouvinte que quisesse
escolher um filho nas mesmas condições.
O poder pode ainda estabelecer-se através da linguagem, ou ser cerceado por
ela, isto é, através da linguagem cria-se um sistema de imagens e referências que de fato
pode imputar (ou limitar) poder a outrem.
Rezende & Pinto (2007, p. 200), pesquisadores surdos, relatam, por exemplo,
uma ocasião em que as professoras da UFSC, Ronice Quadros, ouvinte, e Gladis Perlin,
surda (ambas doutoras), foram convidadas a proferir palestra em uma universidade
federal, recebendo, no entanto, tratamento diferenciado: a primeira era tratada por
“doutora”, enquanto a segunda, por “senhora”. Ora, o poder acadêmico conferido a
“doutora” certamente não é o mesmo que conferido a “senhora”. Tratando-a por
“senhora” e não por “doutora”, roubam-lhe a autoridade acadêmica e destituem de
legitimidade o seu dizer, ao mesmo tempo em que “folclorizam” a surdez por dotá-la de
certa exoticidade, numa representação cujos efeitos se refletem nas tramas do poder. A
questão aqui é que a “senhora” participava do evento a partir do seu papel de
“professora doutora”, bem mais do que do seu papel de surda. Através da linguagem,
naquele momento, a professora surda foi prejudicada em sua relação de poder com o
saber acadêmico.
124
No corpus da pesquisa pudemos verificar que alguns sujeitos, propagando um
DFS, se mostram preocupados com a forma pela qual são designados. Encontramos
ocorrências em que a designação, para os sujeitos, parece alterar a referência e, quem
sabe, o poder que se estabelece a partir dele:
(13) Quero as pessoas falam certo “Surdo”, não quero que as pessoas falam “Deficiência
auditiva (DA), surdo-mudo, mudinho...mas tudo natural. (Texto F)
Os trechos acima nos indicam que a designação pode ser uma questão relevante
para os sujeitos. Ao relatar o seu incômodo diante dos termos deficiência auditiva,
surdo-mudo e mudinho, o locutor de (13) nos indica que o “certo” a se dizer, para ele, é
Surdo. No decorrer do texto F (ver anexo), ele nos narra sua história de vida, mas não
esclarece sua conduta discursiva, isto é, não nos indícios de que Surdo é esse de que
nos fala.
O locutor de (14) revela que para ele a única coisa ruim na surdez não se
relaciona com ela, mas com o comportamento dos outros diante dela. Classificando a
expressão “surdo-mudocomo desrespeitosa (fato que subentende que outra designação
seria mais respeitosa), o sujeito sugere que o desconhecimento alheio e a folclorização
da LS ocasionem desrespeito e preconceito, impedindo-o de sentir-se bem.
O trecho (15), por sua vez, pode elucidar em parte a ocorrência do termo Surdo
colocado em (13). Ao se mostrar farto do enquadramento social dos surdos no rol das
(14) O que me sinto ruim na minha vida surdez é a falta de respeito aos surdos por chamar de
surdo-mudo e debochar a língua de sinais (LIBRAS). O que é preciso para nos sentir bem e
igualado? É respeitar os diferentes e conhecer algumas comunidades. (Texto J)
(15) Eu tenho cansado, sempre sociedade fala palavra deficiência, não é deficiência é
diferente sua língua, precisa divulgar comunidade, lugares, e tal, poderá despertador clarezer
palavra “Surdo”. Eu acordo Sacks e também Skliar afirma surdez é clínica, fonoaudiologia,
médico, implante coclear, diferença Surdez, tem direito identidade Surda, não é modelo surdo,
sim, identidade língua do surdo. (Texto I)
125
deficiências, o locutor de (15) afirma que a surdez é uma diferença (sobretudo
lingüística) e não uma deficiência, reafirmando o que ele havia dito no trecho (12) que
compõe o mesmo texto. Para ele, divulgar essa máxima pode despertar alguns e
esclarecer o que vem a ser a palavra “Surdo”. Ele ainda nos apresenta uma interessante
dicotomia entre surdez (com /s/ minúsculo) e Surdez (com /s/ maiúsculo), reservando à
primeira versão o lugar da deficiência, e à segunda, o lugar da diferença, para sermos
sucintos
58
.
Duas importantes questões se colocam aqui. A primeira refere-se à semântica
global do DFS. O sistema de restrições dessa FD procura eliminar tudo o que pode vir a
diminuir socialmente o grupo, ou melhor, tal princípio faz parte da competência
discursiva dos sujeitos falantes que se filiam a essa FD. Assim, segundo suas regras, os
locutores devem “demolir” as imagens do grupo tidas como negativas (deficiência-
auditiva, surdo-mudo, mudinho) o tema da deficiência, assim, é eliminado. Ao
instituir uma nova Surdez e estabelecer um paralelo entre ela e outras possíveis o
locutor busca erigir um novo sujeito surdo a partir dela. Como fim último, pretende ver
dissipado do agora o sistema de representação de outrora. Almeja que a imagem
soberana do Surdo e da Surdez sobrepuje as demais.
A segunda questão refere-se ao sistema de referência que se estabelece a partir
da linguagem. Certamente distinções sociais entre um sujeito referenciado como
deficiente auditivo, como surdo-mudo ou como mudinho. Seria possível projetar um
referente específico (baseado em representações sociais) para cada uma dessas acepções.
Seria possível ainda imaginar em que lugares e momentos cada uma dessas definições
58
A dicotomia Surdez/surdez é apresentada em autores como Moura (2001) com o intuito de diferenciar a
referência clínica da referência sociológica, digamos. Inicialmente, vista com desconfiança por muitos
pesquisadores (devido à hipótese de que a letra maiúscula teria surgido em decorrência de um erro de
tradução em um livro muito conhecido no meio), recentemente, no entanto, o /s/ maiúsculo tem sido
empregado por muitos autores, como, por exemplo, Perlin & Strobel (2006).
126
seria plausível de ocorrer, refletindo sobre os efeitos de sentido nas ranhuras da história
e nos sistemas ideológicos.
Refletindo sobre o relato de Rezende & Pinto (2007), podemos supor ainda que
as relações de poder do surdo na sociedade podem ser repensadas a partir das imagens
que os termos “deficiente-auditivo”, “surdo-mudo” ou “mudinho” podem evocar. Assim,
ao primeiro termo, reservar-se-ia o poder das “cotas”, da folclorização da “diversidade”
e do “controle social” que essas manobras podem permitir. Ao segundo termo, reserva-
se o poder conferido aos “menores”, cedido pela compaixão àqueles que apresentam a
“mente silenciosa”, uma vez que o vocábulo “mudo”, para autores como Lane (1997, p.
24), evoca também a imagem da “fraqueza da mente”. Ao terceiro termo, por fim,
reserva-se o poder conferido aos “bobos da corte”, destinados a ser esdrúxulos,
esquisitos, tendo o seu papel de anormal assegurado pelos demais.
Por outro lado, o poder que agora se institui a partir do S
urdo e da Surdez aloca
o grupo no campo político e dissipa a sua folclorização, alterando a relação da
sociedade com a chamada diversidade. Tal redirecionamento tem levado o grupo a
produzir ciência
59
sobre si mesmo, movimentando-se em direção às decisões do seu
próprio destino, isto é, ao produzir saberes sobre si, o grupo não precisa mais se sujeitar
apenas às “verdades” do outro sobre si.
O trecho (15) pode ser visto como a manifestação de uma vontade de verdade,
para usar um termo de Foucault. Ao transparecer a dicotomia Surdez/surdez, o locutor
fundamenta-se em citações indiretas, deixando transparecer um discurso acadêmico que
confere autoridade ao seu dizer, ou seja, trazendo a voz daqueles autores para o seu
próprio texto, por meio da intertextualidade, o locutor atesta a sua verdade por sugerir
59
Rezende & Pinto (2007) pensam os surdos a partir do seu advento na s-graduação e na pesquisa,
concebendo-os como intelectuais específicos que produzem saber a partir de si mesmos.
127
que ela não parte apenas dele, mas de duas conhecidas figuras do universo surdo
60
. Em
termos globais, a citação, como fenômeno da intertextualidade, será definida pelo
sistema de restrições da FD e, sobretudo, pela semântica global que a governa, isto é,
para a inserção dessa citação nesse discurso, foi preciso primeiramente eleger o
conjunto dos citáveis naquela FD e fazer o recorte específico, conferindo-lhe o
tratamento necessário no âmbito do discurso citante.
3.3.3 – Um rito de passagem: de deficientes auditivos a surdos
A semântica global determina em um discurso não o que deve ser dito, mas
também o que não deve ser dito, conforme vimos. Como sabemos, tal procedimento se
instaura através do estabelecimento de um sistema de restrições semânticas.
Suponhamos, por exemplo, que dada semântica discursiva imponha à produção de certo
discurso que “surdez” não seja uma categoria discutível, isto é, que não ela não possa ou
deva ser colocada em evidência naquela FD. O sistema de restrições, assim, irá operar
sobre tudo aquilo que se refere a tal temática de maneira direta, restando ao texto o
artifício de ter de significar-se a partir de não-ditos e de silenciamentos.
Conforme dissemos no Capítulo 2, na perspectiva teórica que assumimos neste
trabalho os não-ditos também significam, ou melhor, às vezes eles podem significar
mais do que palavras. Orlandi (1995) critica o fato de muitas teorias lingüísticas
excluírem o silêncio enquanto matéria significante, uma vez que “o silêncio e também o
interdito constituem-se como condições estruturantes e constitutivas para a existência da
60
Os autores citados são Oliver Sacks e Carlos Skliar. O primeiro é um neurologista britânico que
publicou o best-seller Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos, livro que apresenta a surdez a
partir de uma perspectiva que desconstrói o senso comum sobre ela. O segundo é professor da UFRG,
autor de inúmeros livros sobre surdez e educação, sendo considerado um dos maiores nomes dos Estudos
Surdos no Brasil.
128
linguagem” (TFOUNI, 2008, p. 356).
É o caso de refletirmos sobre o texto (16) abaixo, no qual vemos que o sujeito,
questionado acerca do significado da surdez, produz um texto esquivando-se dela
61
.
(16) Às vezes, eu sofro preconceito de pessoas que se afastam.
As pessoas às vezes tem problemas: são antipáticas, ciúme, sentimentos tristes.
Eu gosto de me cercar de pessoas educadas, simpáticas, isso é, famílias, parentes e amigos de
verdade.
O mais importante é que Deus é fiel, ele ajuda as pessoas que possuem amor no coração.
(Texto K na íntegra)
Não diríamos que no texto acima a surdez seja uma temática silenciada, uma
vez que ela “fala” de maneira indireta a partir de subtemas como o “preconceito”, por
exemplo. Diremos, contudo, que a temática da surdez, no texto (16), sofre interdições
através de silenciamentos variados.
Notemos a importância da figura “pessoas” no texto acima. A surdez aqui
parece ser definida a partir de uma rede de interação existente (ou inexistente). O tema
da rejeição, por exemplo, aparece de maneira implícita (pessoas se afastam), sendo
justificada por problemas alheios ao sujeito surdo, portanto, da ordem do “outro”
(pessoas têm problemas). As pessoas que não se afastam são pessoas educadas (...)
famílias, parentes e amigos de verdade. Projetando no intradiscurso um (inter)discurso
religioso (cristão) o locutor a entender que não se importa em demasia com as
questões acima (o mais importante é que...), pois a “ajuda divina” incide sobre as
pessoas que possuem amor no coração, no caso, o próprio locutor, deixando
subentender, com isso, que nem todos o possuem, como provavelmente, as pessoas que
se afastam.
61
Apesar de aparentemente o texto (16) parecer não responder às questões propostas no item 3 do
questionário (fato que o excluiria do nosso corpus), compreendemos tal texto como uma tentativa de
expressão interditada, que produz sentidos sobre a surdez a partir de ltiplos silenciamentos, o que pode
ser característico de alguma vertente do DFO.
129
É possível ainda pensar que o tom cristão, que parece atravessar o texto, pode
ser responsável por alguns dos silenciamentos previstos, pois, apesar de manifestar
discordância perante algumas situações, o locutor não chega a manifestar indignação ou,
pelo menos, o faz de maneira muito atenuada, o que é condizente com uma cenografia
62
religiosa. Com isso, ele fortalece a imagem de “merecedor da ajuda divina”, pois se
contém perante o “pecado da palavra”, projetando sobre si um ethos de ponderação
63
.
Voltando à definição do ser surdo, podemos pensar que nem todo surdo
“nasce” surdo, isto é, não estamos falando do processo fisiológico que determina a falta
de audição desde o nascimento biológico, mas estamos dizendo que aqueles que se
consideram surdos (nem deficientes auditivos, nem surdos-mudos, nem mudinhos) e
professam um DFS, certamente não nascem com essa identidade, ou melhor, não a
herdam geneticamente, tampouco no seu contexto social imediato. Uma ressalva pode
ser feita aos surdos filhos de pais surdos, uma outra questão a se discutir. O que estamos
trazendo para discussão aqui é a forma pela qual o sujeito se torna identitariamente
surdo; como ele se “descobre” como tal e passa a assumir determinada identidade
discursiva. Pensar nessa problemática se torna importante quando nos damos contas de
que cerca de 95% dos surdos brasileiros (segundo dados obtidos em QUADROS, 1997)
nascem em famílias ouvintes. Como acontece, então, essa transição do universo ouvinte,
em que o sujeito nasceu, para o universo surdo, no qual ele será inserido? Esse
questionamento só se faz importante perante os sujeitos que apresentam um DFS.
O momento de transição entre viver como um ouvinte, apenas em meio a
também ouvintes e de (re)conhecer-se como surdo, convivendo com os seus iguais,
62
De acordo com Maingueneau (2005b, p. 96), a cenografia é, “ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o
discurso e aquilo que um discurso engendra; ela legitima um enunciador que, em troca deve legitimá-la,
deve estabelecer que a cenografia da qual vem a fala é, precisamente, a cenografia necessária para contar
uma história, denunciar uma injustiça, apresentar a sua candidatura em uma eleição, etc.
63
Este sujeito respondeu considerar-se “deficiente-auditivo”, conforme informa o quadro 2 da página 62.
130
aparece no corpus, refletindo um DFS, e é relatado como sendo um momento epifânico,
de descobertas e realizações, como ilustram os fragmentos abaixo:
(17) Antes de conhecer os surdos, eu me considerava deficiente auditivo por não saber da
existência da comunidade surda, do significado da surdez e da cultura surda. [...] eu sempre
tentei ser incluído, respeitado e valorizado, mas sofri muita humilhação nas barreiras de
comunicação nas escolas, na família e na roda de amigos. A partir de 19 anos, comecei a
frequentar a Associação de Surdos, fui aprendendo a Libras e conhecimento a cultura surda no
meio de convivência com os surdos. Hoje já consciente e resolvido, eu tenho a minha
identidade surda que me auto valoriza. Eu sou surdo bilíngüe. (Texto L)
(18) Minha experiência na vida teve muitos sofrimentos proibindo o uso de Libras e foi
obrigatoriamente oralizar e fazer leitura labial me sentindo um “OUVINTE ARTIFICIAL E
FALSO”. Depois de participar nas comunidades surdas me senti livre e tive a corrente
arrebentada e tirando os pesos nas costas, aprendendo a Libras naturalmente e crescendo
independentemente. (Texto H)
(19) No início era um pouco difícil, não entender muitas coisas, eu fiz muitas fono e
psicóloga para encontrar a melhor escola [...] então eu estudava numa escola regular, mas
nessa escola que eu estudava os meu amigos fizeram sacanagem comigo, até que o dia que eu
passei a estudar em uma escola de surdo.
Quando eu mudei de escola, eu fui numa escola que era eu tinha que estar antes, então entrei
nessa escola a minha vida mudou muito, e conheci muitas pessoas que era igual eu que
também não entendia muitas coisas e também fez muitas fonos e foi com elas que eu entendi
que era surda [...].
Foi com os surdos que comecei fazer novos amigos e aprender como e o jeito de surdos, das
brincadeiras e usar a legenda na TV, e também usar a língua de sinais.
Então hoje na minha vida melhorou muito agora eu já sei muitas coisas e aprendi muitos
agora já sei Libras [...].
É surda que eu me sinto muito feliz e contente. (Texto M)
Temos percebido que o DFS supõe um locutor muitas vezes militante ou
ardoroso, que mantém uma relação privilegiada com o saber moderno sobre o ser surdo.
Tal locutor se coloca como integrado a uma comunidade e veicula certa dimensão
institucional no seu dizer, tematizando, muitas vezes, de maneira direta ou indireta, a
coletividade. O trecho colocado em (19), por exemplo, nos indica um locutor cuja vida
melhorou muito após seu ingresso na comunidade surda, tanto no nível social quanto no
educacional. A “voz” que nos fala parece ser alegre, denotando uma pessoa plenamente
131
satisfeita com o rumo que tomou a sua vida e projetando um ethos de satisfação consigo
mesmo. Ser surdo, nesse trecho, só é possível entre os seus iguais.
Apesar de curto, o trecho (18) pode ser considerado como o mais contundente
dos três. O recurso do locutor à letra maiúscula em UM OUVINTE ARTIFICIAL E
FALSO parece indicar o desejo de expressar, de maneira veemente, seu repúdio àquela
tentativa de normalização que acabou por subverter a sua natureza surda, fazendo-o
sentir-se uma farsa. A vitória, que será alcançada a partir da idéia (implícita) de luta,
será expressa pelas metáforas corrente arrebentada e tirando os pesos nas costas, que
nos remetem, respectivamente, a um estado de clausura, submissão e controle
vivenciado pelo sujeito na sua tentativa de ser ouvinte e à sua futura libertação, ao alívio
de ser independente e de ter auto-decretado a sua “carta de alforria”.
Temos, aqui, um ethos de firmeza e determinação que pode ser percebido
através do tom pungente a partir do qual o trecho é narrado. A impressão que temos é
que se trata de uma voz forte e enfática. E importante frisar que o sujeito caracteriza a
proibição da Libras
64
e a conseqüente obrigatoriedade da leitura labial e da oralização
como quesitos de sofrimento na sua vida, justamente por fazê-lo situar-se fora de si
mesmo.
Semelhante representação pode ser encontrada no texto (20). A partir da
temática da ngua, o locutor classifica falar” (por oposição a “sinalizar”), como uma
atividade que exige tensão e desconforto, fazendo-o sentir-se alheio a si mesmo:
64
Até algum tempo atrás, muitas escolas acreditavam que o uso da LS deixava o surdo acomodado e
preguiçoso diante da língua oral. Por esse motivo, o uso da Libras era proibido e a prática de oralização,
reforçada, uma vez que se acreditava (e alguns ainda acreditam) que ela contribuía para a aquisição da
escrita. A proibição da Libras pode vir também como uma orientação (ou imposição) da própria família.
132
(20) [...] sou oralizada e considero isso um ponto positivo porque durante a minha vida
escolar, do segundo grau até a faculdade, precisei fazer muito o uso da fala, que naquela
época não existia intérpretes para me auxiliar. O ponto negativo é que tem momentos que fico
cansada de “falar” e quero ser eu mesma, ficar à vontade para me expressar em Libras,
relaxadamente. Gosto de ser surda e tenho orgulho disso! (Texto B).
O ponto positivo da prática da fala, no trecho acima, foi a interação
comunicacional em uma época em que praticamente não existiam intérpretes escolares
(se existissem, então, talvez a “fala” fosse dispensável). Nesse trecho, diferentemente de
outros, como no (18), por exemplo, a oralização não chega a ser considerada como um
fator de ouvintização, isto é, apesar de oralizado, o locutor não se deixou ouvintizar
completamente, tendo na Libras a sua forma de comunicação genuína e saudável e,
dessa forma, considerando-se satisfeito e orgulhoso diante da sua surdez. A LS, aqui, é
um fator de identidade que promove o encontro do sujeito consigo mesmo; longe dela,
no entanto, a alteridade parece sobrepor-se à sua identidade.
Voltando à trinca de trechos de (17) a (19) –, é possível considerá-los como
susceptíveis de ser divididos em um “antes” e um “após” o ingresso dos sujeitos no
universo surdo. Nessa dinâmica social, no primeiro quadro temos um cenário de
sofrimento e desolação, enquanto, no segundo, de crescimento e felicidade. Há uma
passagem fundamental, de um “cenário” ao outro, que dota os indivíduos de qualidades.
Essa imagem nos remete aos conhecidos “ritos de passagem”. Tais ritos, no entanto,
tradicionalmente marcam mudanças de status de um indivíduo no seio de sua
comunidade (haja vista os ritos indígenas ou tribais), enquanto nos trechos acima, é a
mudança de comunidade que favorecerá a “evolução” de tais sujeitos. Os trechos acima
descrevem não apenas o ingresso dos sujeitos no universo surdo, mas também a sua
recepção (aceitação) nesse quadro social.
133
A passagem que sugerimos pode ser compreendida como a “ascensão” atingida
pelos sujeitos quando estes passam de “deficientes auditivos” a “surdos”, como foi
expresso em (17) Antes de conhecer os surdos, eu me considerava deficiente auditivo
por não saber da existência da comunidade surda [...]. Hoje consciente e resolvido,
eu tenho a minha identidade surda que me auto valoriza. Eu sou surdo bilíngüe e
sugerido no trecho (18) e (19).
Percebemos, aqui, que entre deficiente auditivo e surdo um “critério de
avaliação ideológica” determinante (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006). Para o
primeiro termo, reserva-se a primeira parte da história, ou seja, quando o cisne (surdo),
por pensar-se como pato (ouvinte) esquisito, e por assim ser visto por todos, acaba por
ser rechaçado. Ao descobrir-se cisne (surdo), os problemas decorrentes desse equívoco,
como humilhação, sofrimentos ou não entender muita coisa, não são mais vivenciados.
No dizer de Bakhtin/Voloshinov (2006, p. 31), um produto ideológico, que faz
parte de dada realidade, reflete ou refrata uma outra realidade, que lhe é exterior, uma
vez que “tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de
si mesmo”. Partindo dessa posição, podemos pensar que a distinção entre surdo e
deficiente auditivo apresentada em (17) e sugerida nos outros trechos –, reflete um
acontecimento ideológico reiterável na comunidade surda, ao passo que refrata um fazer
dito científico em curso, senão na sociedade como um todo, pelo menos na área da
saúde. Em outras palavras: enquanto os manuais de audiologia definem os surdos a
partir de decibéis, surdos se definem a partir da sua conduta perante a vida.
Esclarecendo um pouco mais: nos manuais de audiologia as diferenças entre surdos e
deficientes auditivos se devem ao grau de perda auditiva, ou seja, define-se como surdo
aquele que apresenta uma perda severa ou profunda, e como deficiente auditivo, aquele
que apresenta perdas leves ou moderadas.
134
Em muitas comunidades surdas, no entanto, surdos são considerados aqueles
que utilizam a LS e constroem em torno de si aquilo que pode ser chamado de
comunidade. Deficientes auditivos seriam aqueles que não utilizam (ou pouco utilizam)
a LS, privilegiando a leitura labial e a articulação de palavras da língua oral e optando
por não coexistirem na comunidade surda, isto é, eles não convivem com os demais
surdos, não freqüentam a Associação de Surdos e tampouco se reconhecem como
surdos (muitas vezes, preferem ser chamados de deficientes auditivos). A questão 1 do
questionário visou justamente verificar se a resposta dos informantes, associada ao teor
dos textos, poderia confirmar ou negar, ao menos no âmbito do corpus, esse
conhecimento empírico, ou seja, visávamos saber, por exemplo, se aqueles que
ostentam um DFO se classificariam como deficientes auditivos. No corpus da presente
pesquisa, contudo, essa relação não de estabeleceu de maneira direta, ou seja, nem todos
os locutores que assumem um DFO se classificam como “deficientes auditivos”, assim
como nem todos os que assumem um DFS se consideram surdos (ver quadro 2).
A distinção entre surdos e deficientes auditivos, sugerida nos textos (17), (18) e
(19), é indicada com clareza no texto a seguir:
(21) Surdo é o termo apropriado da comunidade surda, pois significa que o surdo possui a sua
língua própria – Libras e identidade cultural.
Distingue o termo “deficiente auditivo” que é usado pela sociedade, fonoaudiólogos, para
eles, são oralizados, que não sabem a Libras e nem convivem nas comunidades surdas.
(Texto N)
O trecho acima confirma a distinção entre surdos e deficientes auditivos,
estabelecida pela comunidade surda, deixando transparecer ainda um tom de
assertividade que pode assemelhar-se ao tom utilizado em discursos acadêmicos ou
científicos. As palavras termo e distingue parecem caracterizar uma cenografia
135
acadêmico-científica, que pode ter sido engendrada a partir do desejo de se produzir um
efeito de sentido de objetividade e imparcialidade. Confirmando a nossa hipótese, o
locutor diz mais adiante: uma lingüista da UFRJ me convidou para fazer especialização,
e acabei ficando até ingressar como professora (e pesquisas) de Libras em 1997 e sou
efetiva e concursada. O discurso acima é, portanto, proferido por uma professora surda
universitária, hoje cursando mais uma graduação (em Letras/Libras), fato que pode
esclarecer o efeito de sentido de objetividade empregado no texto.
O intuito de se instaurar uma cenografia acadêmico-científica, no texto cima,
pode dever-se tanto ao fato de se querer projetar uma atmosfera de “verdade” (se
considerarmos que a ciência na academia assume, muitas vezes, esse caráter), quanto à
intenção de demarcar e revestir de autoridade o lugar de onde o sujeito enuncia: a
própria academia.
Mas o importante a se reter desse texto é o fato de ele também estabelecer uma
espécie de “fronteira identificatória”, para usar um termo de Maher (2001), entre si
(surdo) e o outro (deficiente auditivo). A fronteira, nesse caso, parece ser a língua
própria - Libras e a identidade cultural. A LS aparece, mais uma vez, como um
elemento de união da ordem da identidade.
Encontramos em Rezende & Pinto (2007, p. 206) a constatação de que a
discussão em torno dos termos “deficiente auditivo/surdo” reflete uma preocupação que
ultrapassa as fronteiras de nossa pesquisa, tendo como ponto de partida (ou de chegada)
o discurso científico sobre o ser surdo:
Nos últimos anos de nossa história, sempre estudamos, lutamos para que a
nomenclatura “deficiência auditiva” fosse uma peça de roupa para se guardar
no baú. E conseguimos lutar para a classificação nossa de surdos, de ser
surdo, culturalmente aceito e bem traçados os contornos dos nossos
personagens muito estigmatizados pelos dogmas do oralismo. Da
“deficiência auditiva” para “surdez” e desta para o ser surdo foi um caminho
árduo e cheio de obstáculos (REZENDE & PINTO, 2007, p. 206).
136
O texto acima é revelador de uma luta não apenas teórica, mas também social,
que tem no termo “deficiente auditivo” apenas a ponta de seu iceberg, ou seja, questões
ainda mais profundas e complexas parecem estar na base dessa discussão. A autora
apresenta uma hierarquia crescente de termos ao longo da história, partindo do
retrogrado “deficiência auditiva”, passando pela conhecida “surdez” e chegando ao
moderno ser surdo. Ser surdo, então, parece ser uma categoria que visa substituir a
gasta surdez com a propriedade de proporcionar a ênfase devida no lugar devido: o ser,
aqui, é que está em evidência, não o seu estado fisiológico
65
. Como vimos, por meio de
uma tentativa de esquiva dos significados vagos e estereotipados que incidem sobre o
termo surdez, autores como Moura (2000) e Strobel (2007) têm apresentado tal termo a
partir de um revestimento político e ideológico que busca ressignificá-lo a partir do “s”
maiúsculo. A “nova” Surdez não se reportaria mais à falta de audição, mas a uma
maneira de existência, como vimos na análise do texto I (trechos 12 e 15).
Voltando à hipótese da “passagem” de um universo a outro (que transforma
deficientes auditivos em surdos), percebemos que ela não acontece de maneira gratuita,
mas a partir de um elemento de união entre surdos e (outros) surdos. Em (17) e (18), o
elemento que favorece a união e possibilita a passagem é a Associação de Surdos, como
se afirma respectivamente em a partir de 19 anos, comecei a freqüentar a Associação
de Surdos e depois de participar nas comunidades surdas me senti livre (...). Em (19), o
elemento de ascensão foi a escola de surdos, como ilustra o fragmento então entrei
nessa escola a minha vida mudou muito. Pode-se depreender daí a importância da
Associação de Surdos ou da escola de surdos para o grupo.
Se pensarmos nos aspectos ideológicos defendidos nesses textos, a idéia da
superação, mudança e renovação atribuída à transformação de deficiente auditivos em
65
Ser surdo tem sido a terminologia preferida por autores surdos como Perlin. Tal categoria busca ser
uma alternativa à noção de “surdez”, considerada como estereotipada pelo uso médico.
137
surdos é proeminente. Deficientes auditivos, então, segundo o texto (17), seriam aqueles
que aceitam (ou querem) ser ouvintizados, informação que se mostra de acordo com a
denominação geralmente corrente no meio surdo. Do lado de da linha, como aspectos
ideológicos a ser combatidos, fica a idéia de não ser bom, para o surdo, viver como se
fosse ouvinte, ou tentar igualar-se a ele.
A partir das imagens de si construídas nos/pelos discursos, seria possível
projetar um ethos comum aos três textos, reservando, no entanto, nuanças específicas a
cada um deles: o mesmo tom de superação e de orgulho atravessa os três trechos. A voz
que nos fala se autovaloriza, é independente, feliz e contente e isso pode ser apreendido
não apenas no nível da enunciação, mas também no nível do enunciado, a partir da
materialidade lingüística, como acabamos de demonstrar. Trata-se, pois, de alargar a
noção de ethos discursivo para abarcar não só o mostrado (pelo dizer, pela enunciação),
mas também o dito (pelo enunciado), como propõe Maingueneau em trabalho recente,
no qual retoma a noção de ethos e a problematiza (MAINGUENEAU, 2008b, p. 19)
66
.
Ao mesmo tempo, pode ser apreendida alguma amargura em relação ao
período de clausura de si” (vivenciada em meio a ouvintes), fato que enaltece ainda
mais a vitória. Tal amargura, se bem analisada, deságua no sentimento de injustiça,
comum aos três trechos.
Tudo isso se relaciona à questão que colocamos anteriormente: “como acontece,
então, essa transição do universo ouvinte, em que o sujeito nasceu, para o universo
surdo, no qual ele será inserido?Acontece, via de regra, a partir da insatisfação e do
desconforto que o surdo sente em estar isolado de seus pares (outros surdos),
esforçando-se, ao mesmo tempo, para se tornar um ouvinte – desajustado. É exatamente
66
No artigo A propósito do ethos (2008, p. 19) [ver referências completas no final], o autor fala em “ethos
efetivo”, que comportaria duas dimensões: um ethos pré-discursivo (prévio) e um ethos discursivo. Este,
por sua vez, se desdobraria em um ethos dito (nível do enunciado) e um ethos mostrado (nível da
enunciação).
138
a partir da experiência negativa de ser uma anomalia” no mundo dos ouvintes que ser
“normal” no universo dos surdos se torna uma descoberta tão marcante. Em (17), por
exemplo, apesar de declarar seu esforço para ser incluído, respeitado e valorizado, o
locutor confessa ter sofrido muita humilhação nas barreiras de comunicação nas
escolas, na família e na roda de amigos. Em (18) relatos de sofrimentos proibindo o
uso de Libras e a obrigatoriedade imposta ao sujeito de se oralizar e fazer leitura labial.
Em (19), relatos de dificuldades, de não-compreensão e de possíveis maus tratos na
escola regular, pois nessa escola que eu estudava os meu amigos fizeram sacanagem
comigo.
Aos poucos se vai construindo, ao longo dos textos, um ethos firme,
determinado, que remete a sujeitos conscientes e bem-resolvidos, que passaram por
dificuldades, mas que acabaram por superá-las, pois conseguiram “chegar lá”. No fim, a
tensão entre a injustiça e a superação se resume na sensação de vitória que os locutores
buscam transmitir.
3.3.4 – Um cenário cinza e um cenário cor-de-rosa
Em relação ao rito de passagem – ou à metáfora do “patinho feio” a que
recorremos anteriormente e levando em conta as duas cenas que projetamos para o
“antes” e o “depois”, pode-se perceber, em alguns textos, a ocorrência apenas da
primeira cena, ou seja, do quadro de sofrimento que parece ser decorrência do
afastamento dos sujeitos do seu meio natural de convivência.
Os textos abaixo (22) e (23) manifestam um DFO e nos deixam com sensação
de falta, de desejo de continuidade. Quando os comparamos aos trechos anteriores,
perguntamo-nos sobre o segundo momento (o do sucesso):
139
(22) Minha mãe nasceu surda natural fala sobre médico sem doente nada. Mas surdo estar não
doente acontecer nada mal saúde bem nunca fumar, CIGARRO, não beber, CERVEJA. Surda
natural bem.
Eu estou trabalho problema sobre peoceinto é surda mas porque não conseguir difícil tão não
comunicar pessoas gerente ou família. Eu estou pouca sofre. (Texto O na íntegra)
(
23) Eu sou surda, mãe nasceu uma filha é surda e minha família não entenderam comuniação
menina é surda e minha mãe leve surda na escola e evolução aprende Libras no Ines. Agora
minha mãe entendeu comunicação com eu e só isso. (Texto P na íntegra)
Diferentemente do que ocorre nos trechos de (17) a (19), não verificamos nos
textos acima a “descoberta” do sentido de ser surdo. Indagados sobre o significado de
ser surdo e sobre a sua experiência de vida surda (como consta no item 3 do
questionário), os locutores mobilizam a temática do nascimento, demonstrando ou a sua
inconformidade por ter nascido surdo (como em 22) ou a inconformidade da sua família
(metonimicamente representada pela mãe), diante desse fato (como em 23).
Nessa perspectiva, os discursos acima podem ser considerados como uma
manifestação do DFO. Tal filiação se deve ao fato de os sujeitos se mostrarem presos ao
sistema de poder que apregoa o modelo de vida ouvinte como supremo, fato que
esclarece o motivo pelo qual temos em (22) um locutor que se preocupa em esclarecer
os motivos da sua surdez, justificando ter sido um fato natural, que não decorreu, por
exemplo, do descuido da sua mãe (nunca fumar, nunca beber). Nesse trecho, a seleção
lexical privilegia palavras de um campo semântico negativo, como doente, problema e
sofre.
Em tom de desabafo, o locutor, num salto temporal do seu nascimento ao seu
ambiente de trabalho, denuncia o preconceito e a dificuldade de comunicação com o
gerente ou com a família, esclarecendo no termo família, o motivo do salto temporal: o
fato acontecido anos atrás (o seu nascimento como surdo sem nenhuma razão aparente)
140
o colocou hoje em uma situação de sofrimento e inconformidade vivenciada tanto
no emprego, quanto na família.
No texto (23), evidencia-se a dificuldade de nascer surdo em um lar ouvinte. O
sentimento de não-aceitação pode ser resgatado no texto, uma vez que o primeiro
questionamento do item 3 do questionário (sobre o significado de “ser surdo”) parece
ter sido negligenciado em prol do último (sobre a “experiência de vida surda”). Narra-se,
assim, a experiência da dificuldade e da melhora; uma melhora relativa que não vem do
envolvimento com o grupo, mas da aceitação ou da aproximação da figura materna:
agora minha mãe entendeu comunicação com eu e só isso. O último trecho desse
enunciado, “só isso”, pode nos indicar que o que interessava ser expresso pelo locutor
o foi, isto é, o silenciamento do sujeito diante de outros fatos pode indicar que a
experiência narrada foi tão pungente e importante que dispensa outros relatos. É
importante notar ainda que, de acordo com o quadro 2 apresentado no Capítulo II
(página 61), o informante do texto P (23) considera-se, ao mesmo tempo, “surdo” e
“deficiente auditivo” (as duas opções foram marcadas), revelando, talvez, a indefinição
do sujeito diante da surdez.
Em ambos os textos (22 e 23), o resgate temático do nascimento pode indicar
que a instalação da surdez, a partir do nascimento, ainda é uma questão pertinente aos
sujeitos, quer dizer, ainda é um fato discutível (e preocupante).
Nos trechos acima a surdez é compreendida como uma característica custosa
aos sujeitos, que gera inconformidade e desentendimento, que faz da vida uma longa
cena desbotada, em preto e branco. A imagem que se constrói, assim, é a imagem da
doença.
O corpus revela, ainda, a ocorrência de situações distintas: aquelas em que não
nem a “passagem” de um estado a outro, nem a inconformidade da família ou do
141
próprio sujeito diante da surdez. Os textos abaixo são reveladores de sujeitos nascidos
em meio a surdos, que manifestam um discurso de fundamentação surda e demonstram
contentamento diante desse fato:
(24) Surdo significado é não ouvir. Eu fico feliz ser surda porque toda minha família é surda
então não fui problema nenhuma pois temos comunicar a LIBRAS mas apenas tem uma
problema na sociedade tem muito prenconceito. E também os surdos não combinam nada para
estudar dentro da escola inclusiva porque é outra língua. (Texto Q na íntegra; grifos nossos).
(25) Uma cidadã. Cumpro meus direitos e deveres como qualquer cidadão. Venho de uma
família de mãe e irmãos surdos e a experiência tem sido boa, não pelo fato do meu mundo
SER COR DE ROSA e sim um aprendizado muito chique, pois vejo cada dia mais o
crescimento que tenho tido (Texto R; grifos do original).
No trecho (24) ocorre o fenômeno da negação e da polifonia como índice de
heterogeneidade –, sendo revelador de um discurso subliminar, pois a partir da negação
(toda a minha família é surda então não fui problema nenhuma, pois temos comunicar
a LIBRAS) instaura-se um subentendido: surdo, em família ouvinte, acaba virando um
problema, e o motivo relaciona-se ao estabelecimento da comunicação. O “problema”
da surdez advém aqui dos não-surdos, que apresentam preconceito, e da problemática da
inclusão escolar. Vemos então que o “problema” relativo à surdez, segundo o locutor do
texto P, é exterior a ela.
O início do trecho (25) denota reação do sujeito diante da questão proposta no
questionário. É como se nos dissesse, com uma tênue ironia, que acima da surdez está a
sua condição cívica e humana que o leva a cumprir seus direitos e deveres como
qualquer cidadão. Ser surdo, assim, não faria muita diferença em um mundo onde
direitos e deveres cívicos regulam a vida. A ironia, que compõe a noção de
heterogeneidade mostrada (mas não marcada), evidencia um ponto de vista que busca
afirmar o óbvio como novidade, em uma estratégia que poderíamos qualificar de
agressiva para com o interlocutor.
142
No decorrer do fragmento, o fenômeno polifônico se evidencia no trecho em
letras maiúsculas: SER COR DE ROSA. Em conformidade com Ducrot (1987),
poderíamos dizer que existem pelo menos dois enunciadores distintos no texto acima:
um que afirma que o mundo do locutor é cor-de-rosa e outro que nega essa (suposta)
afirmação; enunciador com o qual o locutor se identifica. Por que o seu mundo seria
“cor de rosa” e por que é preciso negar essa informação com veemência? Os textos
analisados até aqui nos indicam que pode não ser fácil para um surdo nascer em meio a
ouvintes. Quem tem pais surdos, então, se comparado com quem não os tem, estaria em
uma situação privilegiada, estaria em um “mundo cor-de-rosa” metáfora que
simboliza beleza e facilidade, ou ainda, ausência de problemas esta seria a asserção
afirmativa que o locutor se apressa em negar. Construímos aqui a imagem de que nascer
em meio a surdos é uma questão, de certa forma, ambicionada pelos sujeitos na
comunidade, uma vez que, como vimos, o locutor se adianta em rebater a “acusação” de
ser privilegiado, isto é, de ter nascido em um mundo cor-de-rosa, por ser filho de pais
surdos. Mas apesar de, segundo ele, seu mundo não ser cor-de-rosa, considera que a
experiência de ser surdo, com mãe e irmãos surdos, tem sido boa, pois isso lhe
proporciona aprendizado e crescimento.
Da mesma forma que em outras ocorrências do corpus, o locutor estabelece
aqui uma relação interdiscursiva com outro discurso justamente para negá-lo (nega-se a
afirmação segundo a qual o seu mundo seja cor-de-rosa). No trecho em análise, todavia,
não se negam manifestações do discurso contrário (advindo de uma outra FD), mas de
um discurso que poderia partir da própria FD do locutor: surdos, filhos de pais ouvintes,
filiados ao DFS, poderiam veicular um discurso como esse. Isso nos faz refletir sobre a
ocorrência de diferentes vertentes dentro de uma mesma FD, fato previsto e plenamente
aceitável, uma vez que, embora uma FD determine a seus falantes o que pode e o que
143
deve ser dito, buscando uma homogeneidade discursiva, ela não é um bloco compacto,
mas uma realidade heterogênea por si mesma, o que significa que seu fechamento é
fundamentalmente instável, deslocando-se em função dos embates da luta ideológica
(COURTINE, 1981, p. 49).
Para ilustrar esse fenômeno, podemos pensar, por exemplo, em um partido
político, o Partido dos Trabalhadores (PT). Ora, um partido como esse apresenta uma
identidade discursiva que apresenta certa regularidade (em meio à dispersão) de
sentidos, o que nos permite concebê-lo como uma FD específica. É inegável, no entanto,
que existam tendências, vertentes distintas no interior da FD ligada a esse partido, ou
seja, ela não é homogênea, tampouco um bloco fechado e compacto. Podemos pensar,
por exemplo, na ex-senadora Heloísa Helena, que, partindo da fundamentação
discursiva de seu próprio partido, pôde opor-se a ele. Obviamente, tal fenômeno
(diferentes vertentes discursivas em uma mesma FD) parece dotado de mais vigor no
exemplo político acima do que na ocorrência (25) do corpus deste trabalho. Mas pode-
se dizer, no entanto, que o discurso veiculado e negado em (25) promove uma nova
oposição, isto é, uma hierarquização não mais entre “surdos e ouvintes” ou entre
“surdos e deficientes auditivos”, mas entre surdos (com familiares surdos) e surdos (em
meio a ouvintes). Criar uma bipolarização entre surdos e surdos (integrantes da mesma
FD) poderia ser um fator de identificação de alguma tendência discursiva dita
“renovada”, que ostenta uma posição, em alguma medida, distinta de outras. O que
temos visto até aqui, portanto, indica para uma necessidade de bipartição, seja entre
surdos e ouvintes, entre surdos e deficientes auditivos, ou, como vimos agora, entre
surdos e surdos.
144
3.3.5 – Diferentes formas de ser surdo
Pensando na heterogeneidade própria de uma FD, encontramos no corpus
alguns textos que, apesar de filiados ao DFS, apresentam uma semântica global que os
aproximaria, em certa medida, do DFO. Observemos:
(26) O significado de ser surdo:
*Não acordar com despertador
*Não ouvir a mãe chamar enquanto toma banho
*Não entender nada que o homem da padaria me pergunta
*Não saber nada da notícia que disse na Tv.
*Ter que perguntar para meus irmãos falar o que esta acontecendo na novela, jornal e
etc. (Texto M)
O trecho acima, deslocado de seu co-texto (e de sua continuação), poderia ser
considerado como difusor do DFO, de base clínica, uma vez que o locutor parece
elencar situações em que a falta da audição é, pelo menos, desconcertante para ele. A
surdez, à primeira vista, poderia ser aqui compreendida como um problema, uma
lástima na vida do sujeito, tendo em vista as situações desagradáveis que propicia.
É de se esperar, assim, que a continuação desse texto, a exemplo de outros
discursos de fundamentação ouvintista, interprete as situações acima como no mínimo
sofridas. Contudo, o restante do texto nos surpreende, pois a sua continuação é o trecho
colocado em (19), onde vemos a surdez ser redescoberta e ressignificada a partir da
comunidade surda. Assim, o início do texto (reproduzido em 26), se comparado ao seu
desenrolar (reproduzido em 19), poderia parecer um contra-senso.
No entanto, poderíamos postular que as situações de desconforto colocadas em
(26) são resquícios do tempo em que o sujeito foi “vitimado” pelo ouvintismo, antes do
seu envolvimento com a comunidade surda. Isso não nos parece ser, contudo, suficiente
para esclarecer a posição colocada em (26). Ainda que tais posições sejam fruto do
145
tempo em que o sujeito, cercado apenas de ouvintes, freqüentava fonoaudiólogos e
psicólogos, como que em busca de “cura” para o seu “mal”, isso não explica, de
maneira satisfatória, o fenômeno discursivo (quase bipartido) que se coloca diante de
nós. Lembremo-nos de que o sujeito teve a oportunidade de experimentar os dois
mundos, para concluir, ao final: É surda que me sinto feliz e contente (19).
Defendemos, portanto, que a posição discursiva de se considerar feliz e
contente como surdo (e não como tentativa de ouvinte) e, ao mesmo tempo, a de
mostrar que dadas situações de vida são consideradas desconfortáveis diante da falta de
audição compõem um discurso que, apesar de eleger a surdez como opção de vida, não
deixa de perceber – e de manifestar – os seus efeitos em meio à vida entre os ouvintes.
Trocando em miúdos: estamos diante de uma outra vertente do DFS; uma
vertente que não se abstém de apresentar os efeitos da surdez em meio à vida ouvinte,
afinal, ainda que o sujeito conviva em comunidade, com outros surdos, ele ainda faz
parte de uma família e de um mundo ouvinte. Tal vertente não se abstém, também, até
mesmo de classificá-la como uma deficiência, embora estabeleça para esse vocábulo um
estatuto diferenciado, como veremos na ocorrência (27).
É importante observar, contudo, que a posição de considerarmos, a partir da
perspectiva de uma semântica global, alguns discursos como reveladores de vertentes
pouco esperadas numa dada FD baseou-se na ocorrência de aparentes contradições
(como a veiculação do termo deficiência) que pareciam aproximar tais vertentes de seu
discurso contrário, apesar de eles certamente estarem alocados no DFS, como podemos
observar em:
(27) Adimiro, o movimento surdez prosperar ainda mais, professores, doutores, motoristas,
etc... como ver nada problema deficiência. (Texto C)
146
(28) Ser surda é o que me pergunto agora. Sinto uma pessoa normal igual aos ouvintes,
tenho uma deficiência nos meus ouvidos. Mas ser surda me fez ser grande pessoa para a
comunidade surda e acho que nasci pra isso, ajudar os outros. [...] Sendo surda, nunca me
senti muitos limites e sempre fui muito determinada ao fazer as coisas que os outros surdos
achavam incapazes. [...] Por estar no século XXI, agora as coisas são mais fáceis para ser
resolvidas. Conheço muitos surdos que tem idade avançada tiveram muitas dificuldades
.
[...]
A minha experiência na vida surda, para contar isso tem que ser um livro, pois lutei muito
pela causa surda e me considero uma dos militantes da comunidade surda e vou contar umas
principais experiências. [...]. A minha família sabe a língua de sinais, isso foi fundamental
para que eles puderem ajudar a lutar. [...]. Aos meus onze anos comecei a ter a liderança na
comunidade surda como fundar o grêmio estudantil da escola, ir aos movimentos e protesto.
O pior movimento de luta foi quando tinha 16 anos, o governo não quis colocar o ensino
médio na escola Eldorado
67
(...). Ano passado realizei grande encontro de jovens surdos em
Rio Vermelho
68
foi muito sucesso, o maior sucesso na minha carreira de liderança na
comunidade surda. Hoje eu sou professora de Libras e ainda luto muito pelos direitos.
(Texto S)
(29) Ser surdo, não acho ruim ser surdo; me sinto igual aos outros ouvintes, deficientes
diferentes formas mesmo tendo diferenças de comunicação, cor, formas físicas etc... (Texto J)
Como podemos perceber, nos trechos acima, a tematização da deficiência não
se apresenta como uma “questão proibida” que deva ser combatida por ser representante
do discurso contrário, o DFO. Relativizamos, assim, uma hipótese que construímos no
início dessa investigação (relativa ao texto A): havíamos atribuído ao termo
“deficiência” um valor de “signo de pertencimento” ao DFO. Contudo, pudemos
averiguar que, quando se focalizam discursos em um campo ou em um espaço
específico, o importante realmente não é a ocorrência ou não de dado tema ou vocábulo,
mas, sim, o tratamento semântico que a ele se dá, como afirmam Pêcheux (1997) e
Maingueneau (2005), ou ainda como propõe Orlandi (1998, p. 43): “as palavras não têm
um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que
se inscrevem”.
67
Escola fictícia para preservar o anonimato do informante.
68
Cidade também fictícia.
147
Assim, é possível pensar que quando um tema aparentemente “imposto” pelo
campo
69
e dificilmente compatível com o sistema de restrições globais de dada FD
acaba sendo integrado a ela, ainda que marginalmente, será preciso então tratá-lo de
acordo com a sua própria semântica global, ou seja, conferir-lhe um tratamento
condizente com as regras de sua FD.
O texto C, por exemplo completo nas ocorrências (04), (10) e (27) não se
esquiva ou nega o tema da deficiência, mas o redimensiona em seu discurso, tratando-o
de acordo com a sua semântica global. Busca-se, assim, reconstruir o valor semântico
do lexema “deficiência”, a partir da negação do simulacro construído pela sua própria
FD, ou seja, é desconstruindo o simulacro que o DFS faz do termo deficiência, como
subhumanidade ou inferioridade, que o texto constrói uma nova significação para ele
desconsiderando também, obviamente, a significação do termo no DFO. Assim, nega-se
o simulacro da deficiência como inferioridade e atesta-se tal negação com um exemplo
próprio, o de ser orador da turma da faculdade (10), ainda que surdo. Ao fim (27),
arremata-se dizendo que, como o próprio interlocutor pôde perceber, a deficiência não é
um problema, ou seja, não é o que pensam”, haja vista os exemplos dados no texto
(surdos professores e doutores), alcançados pelo crescimento do movimento, o que
desestabiliza a significação de tal termo tanto no DFO, quanto no DFS.
No trecho (28) o caráter de deficiência é bem localizado nos ouvidos – , nada
mais. Mas aqui ele ocorre (ao passo que em outros discursos do DFS ele costuma ser
negado) e é preciso compreender essa ocorrência.
69
Maingueneau (2005, p. 87) considera que alguns temas possam ser impostos pelo campo. Segundo ele:
“Por definição, os temas que não são impostos pelo campo discursivo podem estar ausentes de um
discurso, mas aqueles que são impostos podem estar presentes de maneiras muito variadas: um tema
imposto que é dificilmente compatível com o sistema de restrições globais será integrado, mas
marginalmente, enquanto que um tema imposto fortemente ligado a esse sistema será hipertrofiado”.
148
Ao falar de si, o sujeito colocado em (28) parece colocar os outros surdos em
lugares desprivilegiados. O locutor se projeta como alguém que nasceu para ajudar os
outros, que nunca sentiu muitos limites e sempre foi muito determinada ao fazer as
coisas que os outros surdos achavam incapazes. Ora, se os “outros” precisam ser
ajudados, não são determinados e se acham incapazes, é preciso que alguém “acima da
média” milite na comunidade para levá-los adiante. O que vemos aqui, de maneira
subliminar, mais uma vez, é a bipolarização entre surdos e (outros) surdos, ou seja,
existem os surdos que militam pela causa surda, que ajudam, e existem os surdos que
precisam ser ajudados. É essa (dupla) imagem que se constrói. Dessa vez, o conceito de
deficiência parece querer enaltecer as qualidades que o locutor confere a si mesmo, ou
seja, “apesar de deficiente” eu sou desta e daquela maneira e posso colaborar com os
outros que não o são.
Uma relação interdiscursiva com a história aparece no intradiscurso quando o
locutor aponta melhoras para os surdos no presente, em comparação com o passado
(Por estar no século XXI, agora as coisas são mais fáceis para ser resolvidas. Conheço
muitos surdos que tem idade avançada tiveram muitas dificuldades). O “eu-aqui-agora”,
assim, se mostra vantajoso em relação ao “ele-lá-então”. Demonstrando esse saber (ou
tirando essa conclusão), o sujeito se coloca não apenas como conhecedor da história do
seu povo, mas também como um sujeito “antenado” nas relações entre passado/presente,
fazendo jus ao seu papel de “líder”.
A partir de tal conduta discursiva, o locutor projeta sobre si um ethos de
competência e dedicação que pode ser percebido não apenas no nível da enunciação, por
meio do tom de satisfação consigo mesmo que atravessa seu discurso, mas também no
nível do enunciado, quando ele se coloca como uma grande pessoa para os outros, por
exemplo. E apesar de querer se mostrar “acima da média” na comunidade, o locutor
149
procura usar um tom moderado ao se descrever, tom esse que condiz com o seu papel
manso e forte de líder, de “condutor de ovelhas” na comunidade surda.
O texto S (28), assim, filiado ao DFS, evoca, explicitamente, a temática da luta
(que fica implícita no trecho 18), ao apresentar seu locutor como alguém engajado no
movimento surdo, enfatizando diversas vezes a sua participação em “movimentos de
luta” em prol da comunidade, como em: pois lutei muito pela causa surda [...]; o pior
movimento de luta foi quando [...] e e ainda luto muito pelos direitos. Luta supõe
embate e confronto, mas também empenho e esforço. O esforço aqui não nos parece ser
apenas em prol dos direitos surdos, mas também em prol da sua própria carreira de
liderança na comunidade surda, ou seja, em seu próprio benefício.
E quando falamos em luta no âmbito social, não há como escapar de adentrar o
espaço das “lutas de classes”, caracterizadas pelo confronto entre opressores e
oprimidos, ou entre os beneficiados e os injustiçados. Muitos consideram a luta de
classes como a força motriz por trás das grandes revoluções na história.
Se pensarmos na oposição surdos/ouvintes e na postulação segundo a qual “a
ideologia dominante é a da classe dominante”, como nos diz Fiorin (2006, p. 26),
podemos supor que a luta pelos direitos é também uma luta pela representação dos
sujeitos na sociedade, quer dizer, o movimento político pode redesenhar a imagem da
surdez na sociedade. Pode pressionar a “ideologia dominante”, pode enfraquecê-la ou
evidenciar a sua limitação. A luta de que nos fala o trecho (28) é, portanto, uma luta em
busca do poder, pelo menos em uma das vertentes do DFS.
Apesar de tratarmos aqui de diferentes vertentes do DFS, o que atesta, antes de
mais nada, a heterogeneidade própria de uma FD, não julgamos oportuno nomeá-las,
aprofundá-las ou descrevê-las sistematicamente no presente estudo, uma vez que, além
de estarmos trabalhando com um corpus relativamente pequeno para isso (mas
150
apropriado a uma pesquisa de mestrado), não temos a pretensão de esgotá-lo, nem de
apresentar verdades sobre ele, como foi dito anteriormente. Contentaremo-nos, contudo,
em apresentar, na discussão dos resultados, um tratamento estatístico que objetiva
simplesmente organizar as informações que estão sendo construídas.
A hipótese da dispersão das FDs procura apenas mostrar que alguns discursos,
apesar de aparentemente apresentarem contradições, indicam uma semântica global que
os aloca no DFS. Afinal, como afirmamos, não podemos supor que as FDs resultem
em discursos compactos e homogêneos que se distingam de outros de uma vez por todas.
Não podemos perder de vista a complexidade inerente aos sistemas discursivos, como
nos alerta Maingueneau (2005).
O texto a seguir, por exemplo, pode ser considerado como mais um exemplo
do que acabamos de dizer, pois apesar de estarmos certamente diante de um discurso
engajado, em prol do povo surdo, percebemos nele marcas contraditórias, que poderiam
aproximá-lo do DFO:
(30) Ser Surda-muda é uma rica constituição do ser como pessoa surda-muda. Agradeço a
Deus todos os dias por me dar os dons de ser como pessoa surda-muda. Com esta constituição
eu posso utilizar a língua de sinais que é tão expressiva e emocionante como todas as outras
línguas. Posso usar os meus olhos para ver, observar, olhar, “sentir os sons inimagináveis”,
usando os potenciais, percepções visuais, onde todos os signos lingüísticos podem ser
transformados em signos visuais, decodificando cada parte em um todo até transformar o todo
em partes. Posso utilizar todos os aparatos visuais até no processo mental em diversos
discursos na interpretação e tradução em qualquer língua da modalidade escrita. Amo demais
a minha “experiência visual” e não posso viver sem ela. Os meus olhos são as minhas luzes
do meu caminho. A minha surdez é uma experiência visual e sou feliz com ela, independente
da terminologia que a surdez carrega. [...] A surdez é o sinônimo da “experiência visual” e
isso eu posso usar esta terminologia para desmitificar os significados negativos que
personificam sobre eles. A “experiência visual” é tão importante e rica em todos os sentidos.
Amo a minha experiência visual [...]. (Texto T).
Partindo da semântica global, percebemos que todos os planos discursivos do
trecho (30) parecem convergir de forma a situá-lo no DFS. A surdez é apresentada
151
como uma dádiva, como uma forma única e imanente de constituição daquele ser.
Dotado de considerável eloqüência e de perceptível emoção, o texto acima evoca uma
“voz” branda e verdadeira que nos confidencia a sua paixão pela surdez. O tom de
agradecimento e satisfação que atravessa o texto parece conferir a alguns enunciados
“ares de louvor” que os aproximam do discurso religioso (agradeço a Deus todos os
dias por me dar os dons de ser como pessoa surda-muda; amo demais a minha
“experiência visual” e não posso viver sem ela; os meus olhos são as minhas luzes do
meu caminho).
Nessa atmosfera, o locutor, valendo-se do pathos mais do que do ethos ou do
logos
70
, relata as dádivas que a surdez pôde lhe oferecer, como a língua de sinais e as
percepções visuais, que lhe permitiram fazer dos seus olhos canais abertos de
comunicação com o mundo, levando-o até mesmo a sentir os sons inimagináveis, em
um processo sinestésico que parece reconfigurar os sentidos, revelando que aparatos
visuais realmente lhe possibilitam uma experiência de vida através dos olhos.
A repetição da expressão “experiência visual”, que aparece cinco vezes no
trecho acima, pode ser justificada a partir do significado que o locutor lhe atribui:
sinônimo de surdez. Constantemente veiculada nos textos acadêmicos sobre surdos (em
todo o mundo), tal expressão pode ser caracterizada como um “signo de pertencimento”
ao DFS, tamanha é a sedimentação de seus sentidos nessa FD, ou seja, “experiência
visual”, por si só, já diz mais que dezenas de palavras. E apesar de enunciados como a
minha surdez é uma experiência visual ou a surdez é o sinônimo da “experiência
visual” terem sido possivelmente “destacados” de algum “lugar” na memória discursiva
do sujeito falante, dificilmente poderíamos prever a sua origem, tamanha é a sua
70
Ao valor demonstrativo do discurso o pólo do logos – a retórica aristotélica ajunta dois outros
componentes: o caráter ou os hábitos (conduta, moral) do orador o ethos e a disposição ou estado
passional do auditório: o pathos. Os três los co-ocorrem no discurso, mas podem ter pesos diferentes.
(cf. ADAM, 1999).
152
utilização. Nós mesmos nos valemos de enunciados similares no primeiro capítulo deste
estudo, sem conseguir precisar a fonte exata.
Nos estudos desenvolvidos por Maingueneau (2006, p. 72), enunciados como
os citados acima poderiam ser compreendidos como “enunciados destacados”, isto é,
como enunciados que funcionam como uma espécie de “fórmula” destacada de um
texto/discurso para marcar um posicionamento específico. Nesse caso, é importante
considerar as condições que permitem que dados enunciados ou mesmo expressões
sejam “destacáveis”, e outros(as) não. A expressão “experiência visual”, acreditamos,
tem a sua característica de “destacabilidade” garantida devido ao fato de ela ser capaz
de condensar, de forma curta e precisa, o ponto de vista do locutor sobre as questões da
surdez, isto é, aqui ela não é de antemão um estado, nem uma condição, ela é uma
experiência de vida através dos olhos, dando destaque ao valor da experiência como
algo singular, que uns têm e outros não.
Para o sujeito que a enuncia, tal expressão pode desmitificar os significados
negativos que incidem sobre o termo “surdez”, ou seja, percebemos aqui a defesa de que
a vida pode ser experimentada tanto pelos ouvidos, quanto pelos olhos, sem distinção.
“Surdez”, assim, seria o estado de vida que possibilita a interação do sujeito com o
mundo através dos olhos. Uma forma outra de ser e estar no mundo. Parece-nos que
para o texto (T), como afirmam Perlin & Miranda (2003, p. 219), ser e estar sendo surdo
é um aspecto vivencial, “ser surdo é uma questão de vida”. Argumento radicalmente
contrário à concepção de surdez como “deficiência”.
Mesclado ao tom de louvor, o locutor manifesta ainda um tom de sabedoria,
quando o uso de jargões acadêmicos como signos lingüísticos, processo mental,
interpretação e tradução sugerem que a voz que nos fala não ressoa apenas da
comunidade surda, mas da própria academia, indicando um saber específico que deriva
153
do seu papel de doutoranda (atualmente sou doutoranda em educação), como nos dirá
na continuação do texto (T) – vide anexos.
Embora a locutora de (30) certamente manifeste um DFS, surpreendemo-nos
diante da forma pela qual ela se auto-referencia em seu discurso: surda-muda. Vimos
que nos Estudos Surdos tal expressão costuma ser compreendida como pejorativa, e os
trechos (13) e (15) convergem para essa idéia. Diante dessa expressão, uma hipótese
simplista seria dizer que tal uso demonstra ignorância diante das questões surdas ou que
pode ser indício de filiação ao DFO. Todavia, diante de um texto que “louva” a
“experiência visual”, como o (30), tal hipótese não se sustentaria. Como explicar, então,
tal ocorrência?
Aqui se justifica o nosso investimento na questão da dispersão das FDs (e na
posição de nos valermos também dos Estudos Surdos, no processo de análise).
Acreditamos que o uso do termo acima parta de uma tendência do DFS que considera
importante, para os surdos, resgatarem o seu caráter de mudo. Trata-se de um saber
defendido em uma vertente, e não na FD como um todo. Recentemente, Campello
(2008)
71
tem feito uso dessa terminologia, justificando que omitir o vocábulo “mudo”
em “surdo-mudo” é querer normalizar os surdos diante dos ouvintes, ou seja, a
expressão “surdo-mudo”, para a pesquisadora, visa esclarecer que os surdos podem, sim,
portar-se como mudos diante da língua oral. A ideologia que governa esse preceito nos
indica uma conduta de vida que busca reagir à oralização, pelo menos segundo a visão
da autora:
71
Pesquisadora surda.
154
A questão da terminologia surda-muda é uma questão de identidade e dos
sinais convencionados pela comunidade Surda-Muda. No tempo do
colonianismo, com a idéia do Congresso de Milão e da propagação do
“oralismo” dividiu muitas identidades das pessoas surdas-mudas. A palavra
composta e sua essência Surda-Muda foi retirada (Muda) para entrar no
espaço de “normalidade” Esse espaço da normalidade nunca existiu entre nós.
Fomos subjugados, forçados a ser normais, mas continuamos sinalizando sem
usar o recurso da fala ou da oralização. Na verdade, os surdos-mudos m
orgulho de serem chamados assim. O próprio ouvintismo criou a imagem de
estereótipo para dissimular que a oralização é importante para a comunidade
surda-muda, o que não é verdade. O oralismo é uma ilusão. Assim como os
“brancos” que tentam reverter a cultura dos “negros”. (CAMPELLO, 2008, p.
18).
O que a autora nos indica na citação acima é que a mudez dos surdos,
perante a palavra vocalizada, não deve ser vista como um defeito a ser consertado.
Assim, o termo “surdo”, sem o “mudo”, pode ser entendido como uma manobra dos
oralistas, visando à entrada dos surdos no espaço da normalização.
No nosso entender, é preciso usar tal expressão com muita cautela.
Primeiramente porque sentidos prévios, ligados à nossa memória discursiva, costumam
ser evocados por ela, pois ainda que a mudez evocada pela autora se restrinja à palavra
vocalizada, tal caráter o é evidenciado a priori. É preciso esclarecer aqui que, quando
o lexema “mudo” se associa a “surdo”, tal mudez acaba sendo entendida por muitos
como silêncio da mente e do espírito; como incapacidade de exteriorização da palavra
que, pretensamente mal concebida, pode também ser mal manifesta, ou seja, o termo
“mudo” acaba por simbolizar uma suposta incapacidade para linguagem de maneira
geral, incluindo aí a língua de sinais. Com isso, a LS acaba sendo reduzida por alguns a
um conjunto de gestos, sem valor lingüístico. Por essas razões, sustentamos que o surdo
realmente não é mudo, quando consideramos que ele se exprime (“fala”) por meio da
LS, que é uma forma genuína de expressão lingüística, tanto quanto a expressão oral,
“vocalizada”.
Todavia, acreditamos que é no embate de idéias e saberes que o conhecimento
se constrói. É a partir da postulação de novas (ou velhas) idéias que a reflexão acontece
155
e o saber avança. O discurso (30) pode ser considerado como uma vertente mais radical
do DFS; uma vertente que se alimenta de saberes produzidos pelos próprios sujeitos
surdos, pois é possível dizer que o texto (30) delineia, no intradiscurso, postulações
advindas de uma relação interdiscursiva estabelecida com a autora citada Campello (e
com a vertente que ela representa), indicando um desejo de redefinir questões tidas
como definidas.
A partir da hipótese das diferentes vertentes no DFS podemos supor que parece
não existir uma essência surda a ser projetada, uma única e verdadeira forma de ser
surdo pretendida pelo grupo. As imagens construídas nesse percurso de vida são muitas
e fragmentadas entre si. E apesar de não ter sido possível refletir sobre as diferentes
vertentes discursivas apresentadas pelo DFO, devido sobretudo ao baixo número de
ocorrência dessa FD no corpus desta pesquisa, certamente o mesmo fenômeno se
estabeleça por lá, uma vez que estamos diante de uma propriedade que caracteriza os
discursos de maneira geral, não apenas o DFS.
Embora não seja possível apresentar a “verdade sobre a surdez”, é preciso
admitir que essa possibilidade impulsiona alguns sujeitos na busca pela “essência surda”,
tida como única e verdadeira, diante da qual outras formas se mostrariam fantasiosas,
como nos indica o excerto abaixo:
Evocando a imagem do Deus (cristão) que veio para dissipar os deuses pagãos,
o texto (I) apresenta uma única e verdadeira forma de ser surdo, a saber, Surdo como
sujeito não-ouvintizado, envolvido com a comunidade e usuário de sinais, haja vista os
trechos (12) e (15) que o complementam. Os “escolhidos”, assim, são grafados com o
(31) Lembrei de falar uma coisa, tenho lhe mostrar por exemplo Deus é único verdadeiro,
deuses é imagem outros, igual “Surdo”. (Texto I)
156
“s” maiúsculo que, simbolizando questões de ordem ideológica, seria uma espécie de
marca gráfica que os separaria dos demais. Vemos aqui, uma vez mais, a polarização
entre surdos e (outros) surdos e, novamente, a presença de um discurso religioso no
interdiscurso.
Nesse ponto, podemos supor que é na relação com diferentes “outros” (ouvinte
/ deficiente auditivo / Surdo) que o surdo constrói visões específicas e modos de ser
particulares que acabam por constituí-lo. Assim, como afirma Maher (2001), a
identidade (discursiva) seria um construto sócio-histórico por natureza e, por isso
mesmo, um fenômeno essencialmente político, ideológico e em constante movimento.
Chegando ao fim de uma análise pormenorizada do corpus dados mais
generalizados e sistemáticos serão apresentados na discussão dos resultados
concluímos que a primeira impressão que tivemos do corpus no início desta
investigação realmente se sustenta: a maioria dos textos que compõem o corpus da
pesquisa filiam-se ao DFS, enquanto uma pequena parcela filia-se ao DFO, em um
indício claro de enfraquecimento do discurso de fundamentação ouvintista. Isso não
exclui, por outro lado, a presença de enunciados de uma FD no âmbito da outra, como
também vimos no decorrer da análise, dada a heterogeneidade constitutiva de uma FD.
Por fim, é importante demonstrar que independentemente da forma de ser
surdo, a maioria dos locutores do DFS busca demonstrar satisfação e contentamento
diante da condição que os fez experimentar a vida através dos olhos. Mais de 50% dos
textos apresentam pelo menos um enunciado (quase sempre como fechamento) no qual
o tema da felicidade se apresenta. Os trechos abaixo nos revelarão desde um
agradecimento a Deus pela condição da surdez até um contentamento tal que
proporciona ao sujeito força interna diante da discriminação:
157
(
32) Gosto de ser surda e tenho orgulho disso! (Texto B)
(33) Se surdo é a pessoa não ouve porém sente feliz. (Texto C)
(34) [...] comecei convivi com os surdos, eu descobri sou identidade surda, sou uma pessoa
muito feliz. (Texto F)
(35) Para mim esta bem a vida não tenho problema ser surda. Isso foi difícil por na rua que a
pessoa se zomba e discrimina e excluir mas eu dou a força para mim porque eu estou feliz que
já tem comunidade surda do Brasil. (Texto G)
(36) E surda que eu me sinto muito feliz e contente. (Texto M)
(37) Eu fico feliz ser surda porque toda minha família é surda (Texto Q)
(38) [...] sou feliz por surda. (Texto R)
(39) A minha surdez é uma experiência visual e sou feliz com ela. (Texto T)
(40) Sou surda, sou feliz! Foi que Deus me criou, obrigada. (Texto U)
Os discursos acima veiculam emoção (procuram agir sobre o interlocutor,
sobretudo pelo viés do pathos), podendo ser caracterizados como detentores de uma
estratégia argumentativa muito eficaz, uma vez que, se bem conduzida, tal estratégia
pode “desarmar” os interlocutores, diminuindo resistências prévias e colaborando para a
aceitação de argumentos e imagens construídas pelo locutor. Vemos a imagem de
sujeitos “bem-resolvidos”, construída em muitos textos, erigir-se agora volumosa diante
de nós, a partir do argumento cabal da felicidade. A felicidade pode ser o argumento
mais eficaz dos locutores do DFS. Afinal, contra a felicidade, que argumento se pode
apresentar? Talvez o de Quintana: “Quantas vezes a gente, em busca de aventura/
Procede tal e qual o avozinho infeliz:/ Em vão, por toda parte, os óculos procura/
Tendo-os na ponta do nariz!”.
158
3.4. Discussão dos resultados
Na seção anterior, os dados foram analisados em função dos recortes que
julgamos pertinente realizar a partir dos objetivos propostos. Agora, resta-nos
sistematizar os principais resultados das análises, compreendendo melhor o corpus da
pesquisa como um todo e estabelecendo relações mais explícitas entre ele e as questões
teóricas levantadas anteriormente.
Compreendendo os vinte e um textos que compõem o corpus (ver anexo) a
partir da perspectiva de uma semântica global, é possível concluir que dezessete deles se
fundamentam em uma FD lingüístico-antropológica ou de fundamentação surda
enquanto apenas quatro parecem advir, de fato, de uma FD clínica ou de fundamentação
ouvintista, em um indício claro de enfraquecimento dessa última FD no campo em
análise. Esse resultado, de certa forma, não nos surpreende se considerarmos que os
textos foram escritos por surdos com maior grau de escolaridade (universitários) que,
pelo menos em tese, são mais “esclarecidos” no que tange à sua própria condição. A
figura 1, a seguir, ilustra esses dados.
81%
19%
DFS DFO
Figura 1 – Distribuição das FDs
159
Supomos que, no futuro, com tal enfraquecimento, o DFO venha a desaparecer.
O DFS se veria, assim, diante da necessidade de reordenar a sua existência no campo,
reconfigurando seu modo de funcionamento, pois, atualmente, a sua existência (como
discurso segundo) depende, em grande medida, da existência do DFO (como discurso
primeiro), conforme vimos.
Embora a maioria dos discursos analisados se filie ao DFS, muitos deles, de
alguma forma, resgatam o DFO, pois pode se dizer que é a partir de uma relação
interdiscursiva (polêmica) com o DFO que muitos deles se constituem. O intradiscurso,
assim, pensado a partir do campo discursivo (da surdez), possibilita, através do “outro”,
a constituição do “mesmo”, evidenciando entre as FDs do espaço discursivo por s
recortado, uma fronteira porosa que possibilita trocas.
É a partir da possibilidade de uma “fronteira porosa” (que permeia as FDs em
jogo) que alguns discursos do DFS apresentam a propriedade de evocar temas ou
vocábulos que seriam próprios do discurso contrário. Isso nos indica, de antemão, que a
“imagem” do ser surdo produzida por essa FD não é una, mas multifacetada.
Sem a pretensão de exatidão ou de exaustão, poderíamos dizer que, no presente
estudo, o DFS parece subdividir-se em pelo menos cinco vertentes: a primeira (e mais
recorrente nesse estudo) define a surdez a partir da negação do seu outro, ou seja, a
partir daquilo que ela não é (textos C, D, E, F, G, H, I, N, U); a segunda a define como
lugar de identificação e conforto (textos B, L); a terceira a considera um privilégio
advindo de uma condição familiar, por isso mesmo bem-vinda e facilitadora (textos Q e
R); a quarta não deixa de perceber os efeitos da surdez em meio à vida ouvinte, sem
excluir ou problematizar explicitamente o termo “deficiência”, apesar de apresentar uma
visão renovada para ele (textos J e M ); por fim, a quinta e última pode ser considerada
como uma vertente de alguma forma mais radical, seja quando a surdez como arena
160
de luta sócio-ideológica, seja quando a “louva” ao mesmo tempo em que investe na
tentativa de apagar eventuais marcas ouvintistas de suas paragens (textos S e T).
Contudo, é bom não perder de vista que tais vertentes “comunicam-se” entre si, isto é,
uma vez que fazem parte de uma mesma FD apresentam uma movimentação fluida e
constante.
Serão os pontos de precisão entre as várias vertentes (como, por exemplo, a
posição de se considerar a surdez como um “motivo de felicidade”), associados à
instauração de certa identidade discursiva que nos mostrarão que uma FD contém em si
o princípio de sua coerência, isto é, que ela unifica discursos de alguma forma distintos,
ao mesmo tempo em que preserva tal heterogeneidade, o que é, aliás, próprio de uma
FD. Lembremos que, embora uma FD determine o que pode e o que deve ser dito, ela
constitui uma realidade heterogênea por si mesma, o que significa que seu fechamento é
fundamentalmente instável, deslocando-se em função dos embates da luta ideológica
(COURTINE, 1981, p. 49). No entanto, uma FD pode “mostrar”, deixar entrever toda a
heterogeneidade que está na base mesma da sua constituição (ou seu dialogismo, como
propõe o Círculo de Bakhtin), criando um efeito de sentido de polifonia (como em um
“embate” de vozes) ou, ao contrário, buscar apagá-la, construindo um efeito de sentido
de monofonia (as vozes se ocultam sob a aparência de um discurso único, de uma única
voz), como propõe Barros (1997, p. 35) na sua releitura de Bakhtin/Voloshinov.
Assim, a partir do postulado das vertentes, podemos considerar a FD
lingüístico-antropológica ou de fundamentação surda como polifônica ou plurifocal (no
dizer de Maingueneau), confirmando uma hipótese que levantamos no capítulo II, ao
sugerir que, provavelmente, estaríamos, neste trabalho, diante de FDs plurifocais
máxima que pôde ser constatada em relação ao DFS, como ilustra a figura abaixo:
161
52%
12%
12%
12%
12%
vertente 1
Vertente 2
Vertente 3
Vertente 4
vertente 5
Figura 2 – Composição da FD de fundamentação surda
Como podemos perceber, a partir da figura acima, a maioria dos discursos
(vertente 1) da FD de fundamentação surda (ou lingüístico-antropológica) investe na
posição de definir-se a partir da negação do seu outro no espaço discursivo. A minoria
(vertente 5) parte de uma postura dita radical (se comparada a outras vertentes),
buscando a luta social ou a redefinição de espaços e fronteiras.
Como vimos, a presença do outro, no corpus da presente pesquisa, pôde ser
percebida, sobretudo, a partir de uma heterogeneidade constitutiva, em uma clara
indicação do predomínio do interdiscurso sobre o discurso, como propõem
Maingueneau e Courtine, entre outros autores.
Mas diversas foram também as manifestações da heterogeneidade mostrada no
presente estudo, evidenciando formas distintas de incidência e localização do “outro” no
“mesmo”. Marcas como a polifonia (através da presença de distintos enunciadores na
“fala” de um mesmo locutor), a citação (de especialistas), o uso de aspas (sinalizando a
alteridade da palavra), a ironia (como índice de polifonia) e principalmente a negação
(que desconstrói, ao mesmo tempo em que desconstrói), revelam aqui não apenas
formas de se localizar o “outro” no “mesmo”, mas também o modo de funcionamento
do discurso, indicando um comportamento versátil dos surdos na LP. Em outras
162
palavras: a possibilidade de distintos arranjos interdiscursivos, na escrita dos surdos,
indica fios intradiscursivos bem tecidos e, por isso mesmo, bem tramados.
Em relação ao tratamento temático e lexical apreensível nos discursos, vimos a
importância de se compreender o discurso a partir de sua semântica global, o que nos
permitiu verificar que a simples ocorrência de um vocábulo ou de um tema não
determina, por si só, o posicionamento discursivo. Pensar nesses itens (léxico e temas) a
partir de outras categorias (como o ethos e o interdiscurso, por exemplo) possibilita ao
analista vislumbrar melhor os fatores que garantem a coerência de um discurso e que, ao
mesmo tempo, supõem a competência (inter)discursiva dos sujeitos. Categorias como
“deficiência”, “normalidade” e “silêncio” puderam assim ser reconstruídas a partir das
especificidades de cada FD.
Se formos apontar um macro-tema determinante em cada discurso, chegamos,
facilmente, aos temas da “normalidade na diferença”, no DFS, e da “rejeição”, no DFO.
Em tais temáticas, os semas /conformidade/, /identidade/, /coletividade/ e /felicidade/
parecem melhor caracterizar o primeiro discurso, enquanto o segundo pode ser
caracterizado pelos semas /inconformidade/, /solidão/ e /sofrimento/. Silenciamentos de
ordens diversas ainda aparecem no DFO, caracterizando, provavelmente, algum
desconforto dos sujeitos diante da temática da surdez, o que resulta em uma espécie de
censura que impede a circulação dos sentidos localmente.
A partir daí, pensando nas possíveis formas de ser surdo no DFS e na projeção
de imagens do ser surdo e da surdez apreensíveis, de acordo com as análises do corpus
realizada no item anterior, é possível chegar às seguintes possibilidades:
163
Quadro 4
1. Formas de ser surdo no DFS
Questão/imagem evocada
1.1 A “normalidade surda” busca impor-se
perante a “normalidade ouvinte”.
Desejo de imposição social de uma norma
surda
1.2 A partir da definição do que não são,
os surdos constroem, por oposição, o que
são.
Constituição do “ser” (surdo) a partir da
recusa do “não ser” (ouvinte ou
ouvintizado).
1.3 Surdo é a forma pela qual os sujeitos
preferem ser tratados. Outras formas são
tomadas como pejorativas e produzem
efeitos negativos nas tramas do poder.
Vinculação entre a designação e as
relações de poder estabelecidas entre os
surdos e a sociedade.
1.4 “Descobrir-se surdo” significa não ser
subjugado pela “normalidade” alheia,
transformando-se em surdo liberto.
Imagem da “desouvintização da
identidade”, ao se considerar melhor ser
um surdo completo do que um ouvinte
desajustado.
1.5 Ser filho de surdo(s) costuma ser
considerado um privilégio.
Posição de que entre os surdos a surdez é
o padrão ambicionado.
1.6 Na comunidade, líderes encabeçam um
movimento de luta.
Focalização do embate sócio-ideológico e
do desejo de poder.
1.7 A “experiência visual” é uma dádiva,
que precisa ser agradecida.
Consideração da vantagem surda sobre os
não-surdos.
1.8 Satisfação diante da surdez.
Imagem da felicidade na surdez
2. Formas de ser surdo no DFO
Questão/imagem evocada
2.1 Os sujeitos se vêem como isolados,
presos no silêncio.
Imagem de solidão.
2.2 Interdições de ordem distintas podem
causar silenciamentos.
Imagem de censura sobre a surdez.
2.3 A surdez pode ser vista como uma
característica que causa inconformidade e
sofrimento.
Imagem de amargura e de sofrimento
164
Assim, ser surdo no DFS é balizar-se por uma “norma surda”, recusando
representações ouvintistas e fomentando o desejo de respeito e de ascensão ao poder, no
âmbito social, através do tema da luta. Ser surdo, no DFO, é sentir-se solitário e
censurado (talvez por si mesmo) diante da temática da surdez, indicando que
sofrimentos são causados por ela.
Como podemos perceber, as questões evocadas por um e por outro discurso
parecem opor-se, sendo determinadas, em certa medida, pela construção de um locutor
típico em cada um deles. Assim, refletindo sobre o estatuto que o locutor confere a si
mesmo (e ao seu interlocutor) para legitimar o seu dizer, em cada discurso, chegamos,
no DFS, a um locutor muitas vezes militante ou ardoroso, que mantém uma relação
privilegiada com o saber moderno sobre o ser surdo. Tal locutor se coloca como
integrado a uma coletividade e veicula certa dimensão institucional ao seu dizer.
A forma de ser (surdo) pode ser definida a partir de uma maneira específica de
se colocar no discurso. Maingueneau (2008), inspirado em Barthes, define a noção de
ethos, como uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser. Para pensar aqui
numa espécie de ethos coletivo dos sujeitos que enunciam a partir da DFS, podemos
supor que os discursos analisados partem de um tom de apresentação e de explicação
que colabora para o clima de construção e de desconstrução de imagens que se
estabelece nos discursos. Os textos se mostram objetivos e passam tal segurança
enunciativa que a impressão que temos, realmente, é de estarmos diante de verdades,
pelo menos, verdades que governam a vida dos sujeitos. O ethos que se projeta nesse
discurso é o de sujeitos bem resolvidos.
Tais sujeitos se portam, pois, como uma espécie de ator coletivo, que enuncia
de um lugar específico e bem definido: a comunidade surda. Lembramos que, para a
AD, a instituição discursiva é composta por duas faces, uma social, outra lingüística.
165
Existe, assim, um “lugar enunciativo” previsto pela topografia social que determina “de
onde” o texto fala. No presente caso, ele parece ressoar diretamente da coesão de uma
comunidade. Nesse sentido, não seria demais dizer que em alguns momentos o locutor
típico do DFS pode transparecer a pretensão de se portar como porta-voz de uma
coletividade
A partir daí, os textos se apresentarão como um processo de comunicação entre
tal comunidade e demais pessoas não-versadas nas questões surdas, ou melhor, não
versadas nas questões do DFS, visto que, muitas vezes, o texto parece pressupor um
interlocutor conhecedor do discurso contrário, o DFO, fato que leva o locutor a
argumentar a partir da desconstrução de imagens supostamente prévias (ethos pré-
discursivo).
Ao locutor do DFO, ao contrário, não é possível atribuir nenhum tipo de
inscrição social, uma vez que ele se apresenta quase sempre como um ser solitário e
sofrido que expõe a sua angústia, seja através do desejo de se ver objeto de compaixão,
seja através dos interditos que silenciam temáticas em seu discurso. Nessa segunda FD,
espera-se do co-enunciador um papel de confidente que apenas ouve e compreende.
Aqui, o ethos apreendido é o da amargura.
Como se pode perceber através do quadro 4, as imagens produzidas pelos
locutores do DFS mostram-se mais complexas do que as imagens produzidas pelos
locutores do DFO. Refletir sobre as implicações práticas e sociais relacionadas a isso,
no entanto, é assunto para uma outra pesquisa. Por ora, ficaremos apenas no campo da
construção imagética e discursiva. O quadro a seguir ilustra a oposição de imagens que
pode ser construída a partir do confronto dos dois discursos.
166
Quadro 5
O que vemos, então, é a representação (teatral, mesmo) de uma coletividade
sendo regida pelo viés da ideologia. É a partir de questões de fundo ideológico que os
sujeitos, em cada FD, se representam dessa ou daquela maneira. É por experimentar a
vida através dos olhos (no caso do DFS), em conjunto com os seus parceiros
lingüísticos, que os locutores podem vivenciar uma ideologia voltada para questões
pertinentes a si e ao grupo. Nesse caso, a ideologia deixou de ser apenas operatória, não-
temática, como propõe Ricoeur (1987), para se tornar também objeto de reflexão.
Assim, a ideologia, nos discursos analisados, parece-nos ser constituída
primordialmente por uma forma de viver no mundo, mais do que por uma forma de ver
o mundo.
A título de síntese, reproduzimos a seguir o roteiro de análise, apresentado no
início deste capítulo, elencando os principais resultados obtidos a partir dele. No
presente estudo, analisamos:
Oposição de imagens
Discurso de Fundamentação Surda
Discurso de Fundamentação Ouvintista
Normalidade surda
Deficiência ouvinte
Noção de comunidade
Solidão e exclusão
Independência e liberdade
Subordinação à tentativa de adequação
Afirmação de felicidade
Afirmação de sofrimento
Ethos de sujeitos bem resolvidos
Ethos de sujeitos amargurados
167
As relações interdiscursivas, pensadas a partir da delimitação em campos
e espaços discursivos, verificando a ocorrência (ou não) da oposição
discursiva determinada para tal espaço e buscando apreender as
“marcas” da presença do outro em cada uma das FDs consideradas.
A hipótese da interação polêmica entre as FDs do espaço discursivo determinado
para este estudo pôde ser confirmada, evidenciando que é sobretudo a partir do DFO
que o DFS se constitui. Além da interação polêmica (e interdiscursiva) observada entre
elas, observamos ainda que outras formações discursivas “atravessam” o espaço em
questão. Trata-se de uma FD religiosa, uma FD do senso comum sobre a surdez e uma
FD acadêmico-científica. A FD acadêmico-científica aparece apenas no DFS,
interagindo com ele de maneira harmônica, na medida em que dota de autoridade e de
efeitos de verdade os discursos produzidos.
De maneira semelhante, a FD religiosa atravessa os dois discursos do espaço,
mantendo com eles uma relação de conformidade e de complementaridade. Quanto à
FD do senso comum, é possível dizer que dadas às suas semelhanças com a FD
clínica/de fundamentação ouvintista, a interação daquela com esta se dá de maneira
pacífica, complementar, ao passo que o “diálogo” com o DFS se dará de maneira
conflituosa (polêmica). Acreditamos poder afirmar que, no presente estudo, a FD
clínica/de fundamentação ouvintista e a FD do senso comum se imbricam de tal maneira
que a primeira parece constituir a segunda, ou ser absorvida por ela. Sem dados
suficientes para determinar os limites de cada uma dessas FDs (ouvintista e do senso
comum) neste estudo, apenas pontuamos aqui a ocorrência de uma possível
sobreposição entre elas. Por fim, nos discursos em questão, marcas como a polifonia, a
citação, o uso de aspas, a ironia e a negação ainda foram encontradas e consideradas
como posições oriundas do domínio da alteridade.
168
A construção da imagem de si (ethos) projetada nos discursos, assim como a
possível ocorrência de um ethos pré-discursivo que se busca combater ou,
ao contrário, confirmar.
No DFS, foi verificado um conflito entre o ethos pré-discursivo e o ethos
discursivo, uma vez que o ethos construído duplamente pela enunciação (mostrado) e
pelo enunciado (dito) o coincide com o ethos pré-discursivo possivelmente cristalizado
na memória discursiva dos interlocutores. Para edificar uma “nova” imagem de si, os
locutores do DFS combatem então o ethos pré-discursivo da fraqueza, da incapacidade e
da anormalidade, características que supostamente comporiam a imagem de sujeitos
“deficientes”. Foi possível observar aqui a construção de um ethos coletivo de sujeitos
“bem resolvidos”, que pretende dotar o povo surdo de feições específicas e vantajosas. O
DFO, ao contrário, em alguns momentos tenta justamente confirmar o ethos prévio da
deficiência; em outros, independentemente do desejo do locutor, o ethos prévio é
reafirmado diante da imagem de sofrimento e de inconformidade apreensível nos
discursos. O ethos pré-discursivo, nesses casos, harmoniza-se com o ethos discursivo.
O tratamento temático e lexical.
Os macro-temas determinantes de cada FD foram “normalidade na diferença”, no
DFS, e “rejeição”, no DFO. Confirmando o postulado de autores como Maingueneau
(2005), Pêcheux (1998) e Orlandi (1998), vimos que o léxico e o tema, por si sós, não
definem as FDs. No DFS, apareceram lexemas como silêncio, normal e deficiência
revestidos por um valor semântico condizente com a semântica global da FD em questão.
Do mesmo modo, vocábulos como solidão são reconfigurados no DFS. O mesmo pode
ser dito sobre os temas. Um tema, por si, não define uma FD. Isso pôde ser ilustrado, na
nossa pesquisa, a partir da veiculação do tema da deficiência nas duas FDs.
169
Os principais aspectos ideológicos defendidos e combatidos nesses discursos
e a presença de um discurso hegemônico nos textos coletados,
considerando-se os discursos hegemônicos que circulam em nossa sociedade.
Como principais aspectos ideológicos defendidos no DFS, vemos a ocorrência
de uma ideologia surda, que se fundamenta tanto em princípios libertários do direito de
escolha quanto em questões filosóficas que questionam o conceito de norma. Com isso,
combatem-se o discurso e a ideologia hegemônicos na sociedade, que tende a dividir a
humanidade hierarquicamente entre normais e anormais. No DFO, em contrapartida, a
concepção de surdez como doença parece retomar a ideologia e o discurso dominantes
na sociedade, como observamos, fazendo, portanto, dialogarem a ideologia do senso
comum e o sistema ideológico constituído (da FD clínica), como propõe a teoria
bakhtiniana, cada uma dessas formas de ideologia alimentando e reforçando a outra. A
comprovação dessa hipótese, no entanto, depende, como também já afirmamos, de
informações de que não dispomos aqui. Essa questão fica, portanto, em aberto para
novas investigações.
A forma como tais discursos visam equilibrar as relações de poder entre
surdos e não-surdos.
A luta pelo poder parece ser a “mercadoria” em jogo nos discursos analisados. E
se, por um lado, os defensores não-surdos do DFO precisam dele para manter sob
controle os “desviados”, por outro, os locutores surdos do DFS precisam dele para
proclamar, de vez, a sua “independência”. O DFS, assim, pode ser visto como uma
tentativa de ver reordenadas as relações de força e de poder entre surdos e não-surdos,
pois investe na tentativa de instauração de um novo poder: o poder surdo. O DFO, por
sua vez, não parece alterar as relações de força e poder entre surdos e não-surdo; ao
170
contrário, parece reforçar e perpetuar o “poder administrativo” dos não-surdos sobre os
surdos.
A semântica global de cada discurso, verificando a existência de grupos de
textos regidos pela mesma semântica discursiva, bem como as temáticas que
o sistema de restrições semânticas exclui em cada FD.
No DFS foi possível observar grupos de textos regidos pela mesma semântica
discursiva – apesar de todos eles fazerem parte de uma mesma FD –, o que caracterizou o
fenômeno das diferentes vertentes do DFS. Vimos que o sistema de restrições semânticas
opera com o intuito de instaurar uma identidade enunciativa específica. No caso do DFS,
excluem-se temáticas relacionadas a uma visão clínica da surdez. Quando elas são
impostas pelo campo, recebem tratamento adequado à sua existência naquela FD. No
DFO, privilegiam-se temáticas que discutem as conseqüências da surdez e excluem-se
temáticas que a abordem de maneira direta, fazendo operar silenciamentos múltiplos. São
as restrições semânticas que possibilitam a construção de operadores de individuação em
cada FD. Assim, apesar de as FDs em questão pertencerem ao mesmo campo discursivo,
isto é, apesar de elas cumprirem a mesma função social (produzirem discursos sobre a
surdez), vemos que a diferença se estabelece apenas na maneira de preenchê-la.
Por fim, quanto às questões 1 e 2 do questionário [ver quadro 2], informamos
que não foi possível identificar características comuns aos locutores do DFO ou do DFS.
Ao cruzar o resultado dessas questões com o discurso dos locutores de cada FD, nenhuma
característica marcante pôde ser encontrada – a não ser o fato de que, entre os três
sujeitos que se consideraram “deficientes auditivos”, pelo menos dois (textos A e P)
assumem um discurso de fundamentação ouvintista, corroborando, de certa forma, a
hipótese segundo a qual aqueles que se consideram deficientes auditivos não participam
do movimento surdo. Vemos, portanto, confirmado um estereótipo corrente no meio
171
surdo: “surdo” é a designação preferida pelos sujeitos que se engajam no movimento
social assumido pela comunidade surda, isto é, o movimento surdo.
Como foi dito anteriormente, os sujeitos informantes da presente pesquisa, em
sua maioria, consideram-se “surdos”, usuários de Libras e, em alguma medida, oralizados.
Assim, vemos refutado o argumento segundo o qual a oralização promove a ouvintização,
ou o abandono da Libras, uma vez que muitos dos defensores do DFS se consideram
oralizados, ao mesmo tempo em que se apresentam como usuários de Libras.
Em suma: o levantamento feito a partir das respostas dos sujeitos às questões 1 e
2 do questionário (ver quadro 2 ) permitiu-nos constatar (pelo menos no âmbito da
presente pesquisa) que o primeiro estereótipo levantado no item 2.1. (Constituição do
corpus) sobre a relação dos surdos oralizados com a Libras não se sustenta, enquanto o
segundo (sobre a baixa ocorrência da designação “deficiente auditivo” entre surdos
engajados) pôde ser, em alguma medida, confirmado.
172
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando demos início a esta pesquisa, muitos foram os que nos perguntaram:
“por que coletar dados em língua portuguesa e não em Libras?” Diziam-nos que seria
mais confortável para os sujeitos falarem de si a partir de sua própria língua. A nossa
resposta não visava dissuadi-los do contrário, pois concordamos com essa posição.
Queríamos fazê-los entender, contudo, que era preciso compreender como a projeção do
“eu” aconteceria na língua do outro, visto que o português é a segunda língua dos
surdos. Era preciso averiguar como os surdos se comportariam diante de uma questão
ao mesmo tempo tão profunda e tão trivial: falar de si, mas em uma ngua alheia. Não
seria necessário apenas falar de si a partir da língua do outro, mas seria necessário
também organizar as suas idéias e a sua escrita para o outro. Alguns informantes
questionaram, mas muitos responderam, diríamos, com satisfação. E nenhum se
intimidou. Expressaram a “verdade” que governa as suas vidas, o saber que os constitui
como seres surdos. Descortinaram suas crenças diante de nós.
Como nos dirá Revuz (2001), escrever em uma segunda língua pode perturbar
aquilo que está escrito em nós com as palavras da nossa primeira língua. Quem é o eu
que escreve em língua estrangeira? O eu que se expressa em língua estrangeira não é,
jamais, completamente o mesmo da primeira língua, responde a autora. No caso dos
surdos, estes passam de seres completos que se expressam com plenitude em língua de
sinais, a seres aprendizes que se esforçam para se comunicarem em uma língua que não
é a sua, da mesma forma como acontece com todos nós quando nos vemos diante da
necessidade de sermos “nós mesmos” em uma língua outra (estrangeira).
173
E para se haver com o outro, em uma língua outra, será preciso também tornar-
se outro. Para Revuz (2001), aprender uma nova língua é sempre um pouco “tornar-se
outro”. É experimentar o mundo a partir de olhos alheios, mas com movimentos
próprios. E nesse estado, (re)aprendemos a articular nossos pensamentos a partir do
novo, esforçando-nos para que tal alteridade não sobrepuje nossa identidade.
O depoimento abaixo ilustra com propriedade o sentimento de uma surda
diante da sua relação com a escrita do português. O estranhamento de que nos fala
Revus, está bem delineado no texto abaixo e nos indica que o processo de tornar-se
outro parece ser percebido pelo sujeito, levando-o inclusive a questionar a propriedade
do que está sendo dito na segunda língua:
Não sei se o que escrevo são palavras minhas, elas são exteriores, não fazem
parte de meu contexto. Parecem não cair bem na frase, parece que a escrita
do pensamento não ditar o que quero dizer. Vezes sem conta parece-me dizer
coisas sem sentido”. [surda de 40 anos] (PERLIN, 1998).
É diante da autonomia e das habilidades lingüísticas do sujeito em Libras que a
atuação em LP língua não apenas segunda, mas também de modalidade distinta se
torna tão “descontextualizada” para os sujeitos, como nos indica a citação acima. O
contexto, na verdade, é realmente outro. Em LP, as palavras parecem não ter a mesma
consistência que em Libras, os sentidos não estão à mão, e a espontaneidade pode ceder
espaço a uma fiscalização mais ativa do processo de escrita, questões que acabam por
impor alguns limites à atividade de escrita em língua estrangeira.
Mas apesar de toda a complexidade que envolve o processo de escrita na língua
estrangeira e a tradução intersemiótica que subjaz a esse processo (no caso da escrita de
surdos), os textos do corpus se mostraram reveladores de discursos bem formados e
bem posicionados, representantes autênticos do imaginário sócio-discursivo da
174
comunidade surda, haja vista o diálogo teórico que pôde ser estabelecido com autores
surdos a partir dos textos analisados.
E ainda que o eu surdo tenha se tornado um pouco outro diante da escrita do
português; ainda que a posição de estar “entre o desejo de um outro lugar e o risco do
exílio”, como nos fala Revuz (2001), tenha redimensionado o seu dizer e ainda que a
sua performance lingüística tenha sido abreviada na língua estrangeira, neste estudo
estivemos diante de discursos que não sobrevivem apenas enquanto virtualidade, mas
que reverberam como acontecimento sempre reiterável na vida dos sujeitos.
Além disso, foi possível confirmar uma hipótese levantada por nós no item 1.4
do Capítulo 1, quando defendemos que as características formais da escrita surda não
seriam prejudiciais ao plano do conteúdo. Pudemos comprovar com o nosso estudo que,
apesar das características sociodialetais da escrita surda (apreensíveis no plano da
expressão verbo-visual), o texto “funciona” muito bem, o seu recado no plano do
conteúdo e possibilita ao analista, sem prejuízos, entremear os “fios” que o discurso vai
tecendo.
A experiência de ser surdo em português mostrou-se, para os sujeitos da
pesquisa, como um exercício de reflexão de si a partir de um ponto que pode até
descentrá-lo, mas que não permite a fuga daquilo que lhe é mais precioso: o ser que é o
surdo.
E supondo que seja na relação com diferentes “outros” (ouvinte / deficiente
auditivo / surdo) que o surdo se constitui como sujeito, podemos supor também que seja
a partir do convívio em comunidade (e na solidificação do uso da LS) que ocorra o
encontro do sujeito consigo mesmo. Assim, é preciso retificar aqui uma afirmação que
fizemos no item 1.3 do Capítulo 1, quando consideramos “práticas oralistas” como a
base da FD ouvintista. Chegando ao fim da trajetória da nossa pesquisa, pudemos
175
perceber que o fundamento da FD clínica está, sobretudo, na opção de seus adeptos em
não conviver com os demais surdos. Essa primeira escolha (ou circunstância) determina
o porvir. Surdos que convivem com surdos tomam a LS como sua e discutem questões
pertinentes à classe, desenvolvendo, em torno do grupo, tradições, visões e hábitos de
vida que determinam uma cultura e os faz celebrar a normalidade da diferença. Ao
contrário, surdos que optam por viver apenas em meio a ouvintes, necessitam falar e
agir como tais, apesar de não sê-lo, manifestando, em conseqüência disso, sentimentos
de exclusão e sofrendo com as diferenças.
Ouvintização, portanto, como as análises nos indicaram, é muito mais do que o
ceder às práticas oralistas; é ceder, principalmente, a um modelo de vida ouvinte, que
surge através do desejo de (con)viver principalmente em meio à nata da normalidade”
(os ouvintes), recusando a forma de vida surda. Como o texto (17) sugere, é possível até
mesmo oralizar-se sem ouvintizar-se, uma vez que o que ouvintiza, na verdade, parece
ser a falta de contato com os povos surdos e, em conseqüência disso, com a ideologia
que os move.
Por fim, afirmamos que quando estabelecemos, em nossa pesquisa, um espaço
discursivo constituído por unidades discursivas não-tópicas, não era nosso objetivo
simplesmente verificar e comparar a ocorrência de distintos posicionamentos no campo
discursivo da surdez, mas, ao contrário, queríamos justamente compreender de que
forma esses discursos e esses saberes se relacionam, como se delimitam, se evocam e se
refutam naquele espaço discursivo e, sobretudo, que imagens poderiam ser projetadas a
partir daí.
Acreditamos ter cumprido nossos objetivos e, com isso, dado nossa modesta
contribuição para a análise do discurso e para os estudos sobre surdez, ainda que esta
pesquisa tenha se debruçado sobre uma parte apenas desse universo: o dos surdos
176
universitários. No fim da jornada, deixamos em destaque um engajamento político
apreensível no DFS (que visa equilibrar as relações de poder entre surdos e não-surdos)
e que pode ser representado por um desejo de poder que não visa oprimir, mas deixar de
ser oprimido; que não almeja dominar, mas deixar de ser dominado e que deseja fazer
ecoar no espaço uma sinalização forte e melodiosa: é surda que eu me sinto muito feliz
e contente.
177
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Psicologia Argumento, ano VIII, n. IX, p. 29-39, 1989.
184
ANEXO 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu, _____________________________, aceito participar da pesquisa “A escrita de si:
discursos sobre o ser surdo e a surdez”, realizada pelos pesquisadores da Universidade
Federal de Minas Gerais, Glaucia Muniz Proença Lara e Maria Clara Maciel de A.
Ribeiro, respondendo ao questionário que me foi apresentado. Estou ciente de que a
pesquisa tem por objetivo analisar os discursos sobre o ser surdo e a surdez produzidos
na condição de surdez, com a finalidade de contribuir com os estudos que buscam
compreender o que dizem sobre a surdez aqueles que a vivenciam. Também estou ciente
de que os dados coletados poderão ser utilizados em produções acadêmicas, como
dissertações de mestrado, artigos, etc. Além disso, sei que tenho assegurada a minha
privacidade, que os dados serão utilizados sem a minha identificação, e a garantia de
que em qualquer momento da pesquisa, antes e durante o seu curso, eu tenho a liberdade
de recusar a minha participação ou retirar o meu consentimento.
Belo Horizonte, ___ de ______________, de 2008
___________________________________
Glaucia Muniz Proença Lara – (31) 9992 1955 gmplara@gmail.com
Maria Clara Maciel de A.Ribeiro (38) 8821 5601 [email protected]
Comitê de Ética em Pesquisa – UFMG (31) 3409 4592 [email protected].br
185
ANEXO 2
Casal britânico quer direito de escolher embrião surdo
12 de março, 2008 - 14h26 GMT (11h26 Brasília)
Um casal britânico de surdos iniciou uma polêmica ao afirmar que quer selecionar
um bebê com a mesma característica no processo de fertilização artificial ao qual
deve se submeter.
Tomato e Paula Lichy se transformaram em ícones do movimento dos portadores de
deficiência auditiva na Grã-Bretanha, que não considera a surdez uma deficiência, mas
sim o primeiro passo para uma cultura rica, com sua própria linguagem, história e
tradições.
O casal já tem uma filha portadora de deficiência auditiva e quer ter uma outra criança.
Paula, que já tem mais de 40 anos, provavelmente precisará de um tratamento de
fertilização.
A Lei de Embriologia e Fertilização Humana da Grã-Bretanha não permite que casais
que passem por tratamentos do tipo escolham os embriões que possam desenvolver
algum problema, anormalidade ou condição médica, deixando de lado os embriões
considerados normais.
"A questão central é que o governo afirma que pessoas surdas não são iguais às pessoas
que ouvem", disse Lichy à BBC.
Polêmica
Segundo a lei britânica, se o casal se submeter ao tratamento e produzir apenas
embriões portadores de deficiência auditiva, eles poderão implantar um destes - mas é
pouco provável que não seja produzido nenhum embrião considerado normal.
Se o casal pedir para que os embriões sejam testados, eles serão obrigados a escolher o
que não é portador da deficiência auditiva.
O teste dos embriões não é obrigatório, e o casal pode simplesmente apostar na sorte de
que um embrião portador de surdez seja o escolhido.
Um dos argumentos de Tomato Lichy é que a surdez não é uma deficiência. Para o
ativista, a inabilidade para ouvir é uma parte integral de sua identidade e aqueles que
conseguem ouvir é que estão em desvantagem em seu mundo.
186
Mas o argumento dele não é aceito por uma das organizações que faz campanha pelos
portadores de deficiência auditiva na Grã-Bretanha, o Instituto Real para Pessoas
Surdas.
"A surdez é uma deficiência e passamos muito tempo fazendo campanha para melhorar
as vidas das pessoas que têm o problema. Com certeza não é um insulto aos surdos
afirmar que é melhor criar uma criança que vai enfrentar menos dificuldades, quando se
pode fazer uma escolha", afirmou o diretor-executivo da organização, Jackie Ballard.
Uma pesquisa da Universidade de Leeds, na Grã-Bretanha, descobriu que a grande
maioria das pessoas surdas pesquisadas não tinha preferência - ficariam felizes se
tivesse um filho surdo ou normal.
Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080312_paissurdosivffn.sh
tml
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