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EDUARDO COSTA PINTO
AS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E A
DESARTICULAÇÃO SOCIAL E SETORIAL NO BRASIL
SALVADOR
2005
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EDUARDO COSTA PINTO
AS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS DO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO E A DESARTICULAÇÃO SOCIAL E SETORIAL
NO BRASIL
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado
em Economia da Universidade Federal da Bahia,
como requisito para obtenção do grau de mestre
em Economia
.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Balanco
SALVADOR
2005
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Ficha Catalográfica – Biblioteca Central da UFba
Pinto, Eduardo Costa.
As dimensões constitutivas do capitalismo contemporâneo e a
desarticulação setorial e social no Brasil / Eduardo Costa Pinto. –
Salvador, 2005.
190 p.
Orientador: Paulo Balanco
Dissertação (mestrado) – Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal da Bahia, 2005
1. Economia Política. 2. Capitalismo Contemporâneo. 3. Crise.
4. América Latina. 5. Desarticulação Social e Setorial – Brasil. I Pinto,
Eduardo Costa
CDD 000.00
A Maria Isabel,
companheira nas alegrias e nas agruras.
A Maria Clara,
filhinha amada que está por vir.
Aos meus pais,
João e Clemilvia.
Aos meus irmãos,
Ricardo e Ana Paula.
AGRADECIMENTOS
São tantos e tão especiais...
Ao meu professor orientador, Paulo Balanco, pela paciência, pela compreensão,
pelas valiosíssimas reflexões, pela receptividade e por ter sido bem mais que um
orientador ou um professor.
Ao Mestrado em Economia da UFBA, pelo apoio, a infra-estrutura, a qualidade
de seus funcionários e, especialmente, aos professores que contribuíram para
minha formação.
Ao Núcleo de Conjuntura Econômica (NEC - FCE/UFBA), que, além do apoio
financeiro concedido através de bolsa de pesquisa, me permitiu refletir acerca do
cenário econômico-político nacional e internacional, por meio dos debates
sistemáticos com professores e com estudantes de graduação e de pós-graduação.
Agradeço, em especial, aos professores integrantes desse núcleo: prof. Luís
Filgueiras, prof. Plínio e profª. Celeste.
Aos meus colegas de mestrado (turma de 2002), pela amizade e pelos debates
travados dentro e fora da sala de aula. Pessoas que jamais cairão no meu
esquecimento.
Ao professor Nelson de Oliveira, com quem tenho “dívidas” que remontam desde
meu tempo de graduação, por ter, de modo tão generoso, concedido seu tempo
precioso e posto à minha disposição seus conhecimentos e críticas na consecução
desta dissertação. Professor cujos ensinamentos transcendem o campo acadêmico,
sendo, para mim, um referencial a ser seguido por toda vida.
A Maria Isabel, por tudo: pela paciência, por compreender as intermináveis horas
que passei em frente ao computador, ausentando-me de todas as decisões
domésticas, pela firmeza nas horas difíceis, pela leitura, em várias fases, de toda
dissertação, pelo companheirismo, enfim, sem palavras...
É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de
observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com
nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias.
(Lênin - Que fazer?)
RESUMO
Esta dissertação teve como objetivos (i) “radiografar” as transformações
socioeconômicas recentes do modo de produção capitalista, procurando situá-las
como resultados do processo dialético de produção e reprodução do capital em
sua busca contínua por novos espaços acumulativos; e (ii) analisar o
aprofundamento contemporâneo da dependência estrutural dos países latino-
americanos - principalmente a partir da realidade brasileira desarticulada setorial e
socialmente - provenientes dos movimentos das frações capitalistas nacionais e
internacionais durante a década de 1990. A pesquisa teve um caráter exploratório,
tendo alocado os objetos destacados em uma dialética materialista histórica.
Nesse sentido, se afirmou que as modificações capitalistas hodiernas - associadas
à reestruturação produtiva, à globalização financeira e ao novo papel dos
Estados nacionais - foram introduzidas pelos representantes do capital como
estratégias de retomada do controle social e da recuperação dos níveis de
acumulação, abalados pela crise estrutural do capital dos anos 70. Tais
transformações, por um lado, propiciaram a retomada do controle social do
capital, em virtude do processo de fragmentação da classe trabalhadora e da
desvalorização da força de trabalho, e, por outro, criaram limitações à
acumulação, as quais foram precariamente contornadas por intermédio da
ampliação da acumulação em bases financeiras. Contudo, esse novo padrão de
acumulação, centrado nas finanças, vem consubstanciando um aumento da
dependência econômica e um aprofundamento do quadro social desigual,
principalmente nos países periféricos, haja vista a conformação de um “novo
imperialismo”, sob a égide norte-americana. No que concerne à atual
configuração socioeconômica da América Latina, foram identificadas as razões
que conduziram à posição de degradação social e econômica trilhada pela grande
maioria dos países latino-americanos desde os anos 70 até os dias atuais,
principalmente com a adoção dos ajustes estruturais neoliberais na década de
1990. No que diz respeito à realidade brasileira atual, foram apresentados – por
meio dos movimentos e das alianças entre as frações dominantes nacionais e
forâneas e seus rebatimentos na atual configuração do Estado nacional e na
adoção de determinadas políticas econômicas - os efeitos deletérios do ajuste
estrutural brasileiro (Plano Real) na estrutura setorial (especialização regressiva
do aparelho produtivo) e social (redução do peso dos salários na economia,
desestruturação do mercado de trabalho e ampliação da desigualdade social). Na
verdade, a implantação do Plano Real ampliou a desarticulação social e setorial
no Brasil, já marcado, desde sua formação histórica, por ser uma das economias
mais socialmente desarticuladas do mundo capitalista, que se materializa pela sua
ingente e histórica exclusão social.
Palavras-chaves: Crise; Saídas “internas” e “externas”; Capitalismo
contemporâneo (reestruturação produtiva e globalização financeira); Novo
imperialismo; América Latina – dependência e ajuste estrutural neoliberal; Brasil
– desarticulação setorial e social e Plano Real.
ABSTRACT
This research has as objectives (i) to evaluate the recent social and economic
transformations in the capitalist production to point out the dialectic process of
production and reproduction of the capital in its continuous search for new
accumulatiou spaces; e (ii) to analyze the current deepening of the structural
dependence of the Latin American countries - mainly from the sectoral
disarticulated Brazilian reality and socially - proceeding from the movements of
the national and international capitalist fractions during the decade of 1990. The
research had an exploratory character, having placed detached objects in a
historical materialistic dialectic. In this direction, if it affirmed that the
contemporaneous capitalist modifications - associates to the productive
reorganization, the financial globalization and the new paper of the national States
- had been introduced by the representatives of the capital as strategies of retaken
of the social control and the recovery of the accumulation levels, shaken for the
structural crisis of the capital of years 1970. Such transformations, on the other
hand, had propitiated the retaken one of the social control of the capital, in virtue
of the process of spalling of the diligent classroom and of the depreciation of the
work force, and, for another one, they had created limitations to the accumulation,
which had been precariously contouring for intermediary of the magnifying of the
accumulation in financial bases. However, this new standard of accumulation,
centered in the finances, comes configuring an increase of the economic
dependence and a deepening of the different social picture, mainly in the
peripheral countries, has seen the conformation of a “new imperialism”, under
command North American. In that it concerns to the current socioeconomic
configuration of Latin America, the reasons that had lead to the position of social
and economic degradation trod by the great majority of the Latin American
countries since years 70 until the current days, mainly with the adoption of the
new liberal structural adjustments in the decade of 1990 had been identified. In
that it says respect to the current Brazilian reality, the deleterious effect of the
Brazilian adjustment had been presented - by means of the movements and of the
alliances between the national and forâneas dominant fractions and its striking in
the current configuration of the national State and in the adoption of determined
economic policies - structure (Real Plan) in the sectorial structure (regressive
specialization of the productive device) and social (reduction of the weight of the
wages in the economy and magnifying of the social inequality). In the truth, the
implantation of the Real Plan extended the social and sectorial disarticulation in
Brazil, already marked, since its historical formation, for being one of the
economies more socially disarticulated of the capitalist world that can concretely
be translated by its grandiosity and historical social exclusion.
Word-keys: Crisis; “Internal” and “external” alternatives; Contemporary
Capitalism (productive reorganization and financial globalization); New
imperialism; Latin America - dependence and new liberal structural adjustment;
Brazil - sectoral and social disarticulation and Real Plan.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12
Objetivos do estudo: uma leitura à luz da economia política..............................................17
CAPÍTULO I
OS “ANOS DOURADOS” DO CAPITALISMO E A CRISE DA DÉCADA DE 1970:
DA HARMONIZAÇÃO AO AUMENTO DA CONTRADIÇÃO ENTRE CAPITAL E
TRABALHO............................................................................................................................23
1.1. Do capitalismo “concorrencial” ao monopolista.........................................................23
1.2. Os anos dourados do capitalismo planejado: a busca da harmonia entre capital e
trabalho........................................................................................................................30
1.3. A crise dos anos 70 em perspectivas e suas saídas “internas” e “externas”:
impedimentos à acumulação ou à dominação? Um debate contraditório....................42
CAPÍTULO II
O CAPITALISMO PÓS-ANOS 70 E SUAS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS:
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA E AS
TRANSFORMAÇÕES DAS RELAÇÕES INTERESTATAIS..........................................62
2.1. Reestruturação produtiva e reafirmação do capital: fragmentação do trabalho com
centralização e concentração do capital........................................................................63
2.2. A Globalização das finanças: o papel dos Estados Unidos na ampliação da
acumulação financeira..................................................................................................68
2.3. Economia política internacional contemporânea: alguns aspectos do debate acerca do
Estado-nação, do “Império” de Hardt e Negri, das instituições “supranacionais’ e das
dimensões e contradições do “novo imperialismo”......................................................76
2.3.1. A morte do Leviatã e o “Império” de Hardt & Negri: visões distorcidas das
relações estatais.................................................................................................80
2.3.2. As relações entre as instituições “supranacionais” (FMI, Banco Mundial e
OMC) e o capital estadunidense e europeu.......................................................88
2.3.3. As contradições do projeto de império mundial dos Estados Unidos e as
dimensões do “novo imperialismo”..................................................................91
CAPÍTULO III
O CAPITALISMO DEPENDENTE LATINO-AMERICANO À LUZ DAS
TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS................................................................104
3.1. O capitalismo dependente latino-americano: do modelo agro-exportador ao fim do
Modelo de Substituição de Importações num breve panorama..................................106
3.2. O endividamento estrutural latino-americano e a “década perdida” dos anos 1980: a
“pavimentação social” para a assunção do neoliberalismo.........................................111
3.3. A integração passiva latino-americana dos anos 1990: impactos dos ajustes estruturais
neoliberais...................................................................................................................117
CAPÍTULO IV
A DESARTICULAÇÃO SETORIAL E SOCIAL BRASILEIRA: DIMENSÕES
CONSTITUTIVAS E AMPLIAÇÕES RECENTES PÓS-PLANO REAL.....................130
4.1. O conceito de (des)articulação setorial e social.........................................................130
4.2. Do Império ao Estado Novo: do domínio irrestrito das oligarquias agrárias regionais
ao surgimento de novas frações dominantes ligados aos interesses urbano-
industriais....................................................................................................................136
4.3. As peculiaridades da industrialização desarticulada brasileira: a instável aliança entre
as frações dominantes e a saída autoritária.................................................................146
4.4. Alguns elementos da crise dos anos 80 e o ajuste estrutural neoliberal brasileiro
(Plano Real): ampliação da desarticulação setorial e social a partir dos movimentos
das frações dominantes nacionais e forâneas..............................................................160
CONCLUSÃO.......................................................................................................................180
REFERÊNCIAS....................................................................................................................184
LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS
Gráfico 3.1 - Variações do PIB e do PIB per capita entre 1990 e 2002 - América Latina.....123
Tabela 4.1 - PIB, PIB per capita,Transferência liquida de recursos e Inflação na década de 80
– Brasil....................................................................................................................................161
Tabela 4.2 - PIB, Inflação e Taxa de desemprego na década de 90 – Brasil..........................167
Tabela 4.3 - Transações Corrente, Balança Comercial, Serviço e Renda, Taxa de juros e
Transferência líquida na década de 90 – Brasil......................................................................172
Gráfico 4.1 - Remuneração do trabalho como porcentagem do PIB a preços de mercado –
Brasil.......................................................................................................................................177
Tabela 4.4 - Distribuição da renda urbana no Brasil, segundo os decis: 1960-2001..............178
12
INTRODUÇÃO
O padrão de acumulação keynesiano/fordista dos anos dourados do capitalismo proporcionou
um dos mais longos períodos de contínua expansão das economias capitalistas. Para muitos
cientistas sociais, atrelados ao reformismo do Welfare State, o capitalismo planejado estaria
conformando uma nova sociabilidade centrada na harmonia social entre o capital e o trabalho.
Tal otimismo “harmonicista” começa a se diluir à medida que os primeiros sinais de
esgotamento do padrão de acumulação surgem nos anos finais da década de 1960. As
diruptivas do modelo vão se aprofundando a partir de três elementos, quais sejam: i)
intensificação das contradições entre os capitalistas e os movimentos operários; ii)
acirramento da concorrência intercapitalista; iii) elevação dos preços das matérias-primas no
mercado mundial. A confluência desses elementos, tendo o primeiro o papel mais importante,
provocou, em meados dos anos 1970, uma grande instabilidade econômica e política, alçando
o capitalismo a uma condição de crise estrutural.
Com a crise estrutural, o sistema econômico passou a conviver com uma significativa redução
da lucratividade e dos níveis de acumulação produtiva, proporcionados, num primeiro
momento, pelo aumento da contradição entre capital e trabalho e, num segundo momento,
pelas próprias estratégias voltadas à retomada do controle social (saída “interna”:
reestruturação produtiva e globalização financeira). Em paralelo, como conseqüências típicas
desse processo crítico, ocorreu uma redução nas taxas de investimento e de crescimento
acompanhadas de resultados sociais amplamente negativos, tais como, o aumento do
desemprego em seu caráter crônico nos mais diversos espaços nacionais - Europa ocidental,
América Latina e outros países periféricos e, inclusive, nos Estados Unidos.
Neste cenário, no qual esteve presente uma combinação de queda de lucro e instabilidade
hegemônica do capital e do Estado norte-americano, os representantes do capital acabaram
por orientar o sistema em direção a novas formas de acumulação que, por sua vez,
necessariamente estiveram condicionadas a transformações profundas no âmbito intra e
interestatal atreladas ao plano da produção e da circulação. A dificuldade cada vez maior em
13
viabilizar a acumulação a taxas crescentes de valor novo no plano da produção, fez o
capitalismo se voltar acentuadamente para alternativas de acumulação centradas em
fundamentos financeiros. Ao se deslocar da produção, passou a privilegiar o universo do
capital-dinheiro em um grau de autonomia muitas vezes superior àquele que se manifesta
quando o capital portador de juros atua somente como um apêndice da esfera produtiva.
As transformações capitalistas hodiernas (reestruturação produtiva, globalização financeira e
regulação institucional neoliberal) consubstanciaram a retomada do controle social pelo
capital. Entretanto, geraram efeitos colaterais problemáticos tanto no plano da realização das
mercadorias, em virtude da queda na demanda agregada, como no plano político inter e intra-
estatal, haja vista a elevação das tensões provocadas pelas (i) modificações nas relações de
coerção e controle entre os Estados Unidos e os demais países capitalistas centrais e
periféricos - a partir da ruína do sistema monetário regulado de Bretton Woods, em 1973, e da
política Volcker do dólar “forte” implementada em 1979 – e pelos (ii) conflitos intra-estatais
provenientes das novas estratégias públicas configuradas a partir dos novos conflitos e
articulações entre as frações capitalistas, principalmente com a supremacia dos segmentos
financeiros, em suas inter-relações com os Estados nacionais e com os segmentos dominados.
Neste contexto de alargamento de novos espaços para a acumulação do capital, o Estado-
nação se apropriou das armas mais poderosas (funções repressivas e ideológicas) para garantir
a reprodução e a ampliação de novos eixos de acumulação tanto produtivos como financeiros.
Para garantir a máxima rentabilidade do capital em sua forma financeira, em sua fuga à
tendência baixista da taxa de lucro, fez-se mister a introdução de mecanismos de
potencialização da sua mobilidade dentro de determinados parâmetros inerentes à relação
espaço-tempo, enquanto em sua forma produtiva elevou-se, desmesuradamente, a coerção
sobre o trabalho, haja vista o processo de reestruturação produtiva que promoveu o aumento
do “exército industrial de reserva”
1
e a fragmentação do trabalho. Neste sentido, as amplas
medidas de desregulamentação dos fluxos financeiros (globalização financeira) e comerciais e
1
“A adequação do número de trabalhadores às necessidades do capital, através da constituição de Exército
Industrial de Reserva, significa duas coisas: 1) o capital sempre tem, a sua disposição, uma oferta regular de
trabalhadores, necessitados de venderem a força de trabalho pela impossibilidade de garantirem a sobrevivência
através do trabalho por conta própria; e 2) essa massa de trabalhadores “supérfluos” funciona como regulador do
nível salarial, uma vez que modera as exigências dos trabalhadores que estão empregados e enfraquece o poder
dos sindicatos” (MARX apud FILGUEIRAS & PINTO, 2003, p. 39).
14
os ajustes estruturais que os Estados centrais, sobretudo os Estados Unidos, passaram a impor
– por meio das agências “supranacionais” - aos Estados nacionais em geral, e mais
especificamente aos países periféricos, configuraram um novo quadro de regulação
institucional neoliberal.
De fato, o capital, em suas frações, buscou, a partir da crise estrutural dos anos 1970, expandir
seus espaços de acumulação em virtude da necessidade de manutenção dos condicionantes
materiais necessários à implantação do processo de produção e à realização completa de seu
ciclo. Tal expansão dos eixos de acumulação capitalista influenciou direta ou indiretamente as
diversas realidades nacionais da economia-mundo capitalista – do Sudão à França; de Guiné
Bissau à Inglaterra; do Haiti aos Estados Unidos; do Brasil ao Japão – devido à integração,
cada vez maior, dos espaços nacionais aos movimentos de produção e reprodução capitalista.
Contudo, os efeitos das reconfigurações socioeconômicas internacionais materializaram-se
diferenciadamente nos espaços nacionais e regionais, a depender de sua posição hierárquica
de “comando” no sistema-mundo capitalista.
Apesar da integração capitalista contemporânea centrada na consolidação do mercado
mundial, verifica-se que tal totalidade não leva a convergências, nem ao estado de paz
perpétua idealizado por Kant, em 1795, nem muito menos ao Império de mil platôs
construídos recentemente por Hardt e Negri. Na verdade, a expansão do mercado mundial não
matou o Leviatã estatal hobbesiano, pelo contrário, o Estado-nação continua como elemento
de “regulação” institucional fundamental aos eixos de produção e reprodução do capital, em
suas frações, nos mais diversos espaços mundiais. Além de não eliminar o Leviatã, a
ampliação atual do mercado mundial cria e estende uma totalidade desigual na qual a relação
entre centro e periferia acontece dentro de um universo (economia-mundo) explicitamente
definido por relações integradas entre Estados-nações capitalistas centrais e periféricos.
Contudo, tanto agora como antes, apresenta-se, de forma bem definida, uma hierarquia, que
traduz relações de domínio, dependência e subordinação, vinculada à produção e reprodução
dos movimentos dialéticos da acumulação espacial do capital. Portanto, a dinâmica
capitalista, ao longo de seus períodos históricos, vai conformando trajetórias distintas
espacialmente que tendem a não se reproduzir de forma igualitária nos espaços nacionais.
Encontram-se assim, dentro deste processo, duas expressões marcantes do capitalismo, a
saber, a expansão geográfica e a conseqüente dominação territorial. Sem dúvida não seria
15
possível a materialização do mercado mundial sem a produção de ações e movimentos
relativos aos espaços nacionais. E, evidentemente, a trajetória do capitalismo, nestes termos,
está fortemente associada ao colonialismo e ao imperialismo em suas diversas conjunturas
históricas, desde o imperialismo clássico das potências capitalistas, na virada do séc. XIX,
descrito por Lênin, até o “novo imperialismo” unipolar estadunidense configurado a partir da
queda do muro de Berlin e da dissolução da União Soviética nos anos finais da década de
1980.
Com a implosão do bloco socialista, as transformações estruturais, iniciadas em decorrência
da crise dos anos 1970, foram aceleradas, uma vez que se consubstanciaram iniciativas
agressivas e amplas, por parte dos países capitalistas centrais, de integração completa dos
países periféricos ao mercado mundial. Nesse contexto, a América Latina integrou-se
passivamente, ao longo dos anos 1990, por meio dos ajustes estruturais liberais
2
, aos circuitos
de produção e reprodução do capital, “acreditando” que este seria o único caminho para a
“modernização” da região, uma vez que, nesses países, a crise dos anos 1980 pavimentou o
caminho para a implantação dos ajustes. A prosperidade não chegou, pelo contrário, o que se
verificou foi uma ampliação da dependência
3
e da subordinação latino-americana às potências
centrais capitalistas, no transcurso da década de 1990, gerando, com isso, a ampliação do
legado histórico de concentração de riquezas e das mazelas sociais do capitalismo dependente
regional.
A cristalização de um recente quadro latino-americano deletério - marcado pelas crises
financeiras, maior instabilidade socioeconômica, baixo crescimento do produto regional,
aumento do desemprego e queda dos rendimentos reais dos trabalhadores – teve como
elementos constitutivos o processo estrutural de reprodução da dependência e da crise
associados ao endividamento, conformado ao longo dos anos 1980, e à ampliação da
2
Os países latino-americanos, em quase sua totalidade, adotaram os ajustes estruturais em virtude das suas
restrições provenientes de seus endividamentos de caráter estruturais. Estes foram potencializados a partir da
elevação das taxas de juros norte-americanas, em 1979, e da crise dos anos 1980 em toda América Latina. Os
ajustes estruturais aqui implementados foram pautados pela busca da estabilidade monetária, do equilíbrio fiscal
e da competitividade internacional. Assumiu-se que o excessivo intervencionismo estatal e os déficits fiscais do
estado criavam dificuldades para os países latinos alcançarem a “modernização”.
3
Apesar da subordinação histórica da América Latina aos movimentos de produção e reprodução das frações do
capital forâneo, a dependência latino-americana não pode ser caracterizada como integralmente reflexa dos
condicionantes externos, uma vez que determinadas relações socioeconômicas intra-regionais influenciam no
maior ou menor grau de dependência ou de certa autonomia relativa ao longo de vários momentos históricos.
16
desarticulação setorial e social nos países da região, haja vista a aplicação dos ajustes
estruturais neoliberais da década de 1990. Vale ressaltar que os movimentos de desarticulação
socioeconômica se processaram de forma diferenciada e com diferentes graus de intensidade,
em virtude das particularidades das relações de produção dos espaços nacionais da região.
O Brasil foi retardatário, dentre os países da América Latina, na substituição do modelo
desenvolvimentista, de origem cepalina, pelo modelo de “desenvolvimento” centrado no
ajustamento estrutural liberal. Tal relutância em adotar o modelo neoliberal no final do
Governo Sarney, entre os anos finais de 1980 e início da década de 1990, esteve atrelado à
falta de definições ou de articulações das frações capitalistas nacionais (capital industrial,
comercial, agrário e financeiro) quanto aos eixos a serem seguidos pelo capitalismo
dependente brasileiro. Com o fim das indefinições das frações nacionais do capital,
materializaram-se, a partir do governo Fernando Henrique, as estratégias de
“desenvolvimento” liberal (Plano Real) pautadas na abertura comercial e financeira, na
competitividade e na estabilidade monetária.
Transcorrido mais de uma década do ajuste estrutural brasileiro (Plano Real), o otimismo fácil
dos primeiro anos do ajuste foi substituído pelo pessimismo, uma vez que o tão sonhado
caminho da “modernidade” não foi alcançado. Muito pelo contrário, o que se verificou, ao
longo da década de 1990, foi o alargamento da miséria, do desemprego e das graves crises
econômicas. Na verdade, a implantação do ajuste liberal ampliou a desarticulação social e
setorial no Brasil, já marcado, desde sua formação histórica, por ser uma das economias mais
socialmente desarticuladas do mundo capitalista, que pode ser traduzido concretamente pela
sua ingente e histórica exclusão social, bem como pela elevadíssima desigualdade.
Esse quadro socioeconômico brasileiro contemporâneo representa a configuração de antigos e
novos eixos de acumulação conformados a partir das novas formas de relacionamento entre os
Estados centrais e periféricos. Estas relações, por sua vez, são, na verdade, o reflexo dos
conflitos e das articulações das frações dos capitais nacionais em suas interações com o
capital internacional e com o Estado brasileiro.
17
Objetivos do estudo: uma leitura à luz da economia política
Esta pesquisa tem como objetivos (i) “radiografar” as transformações socioeconômicas
recentes do modo de produção capitalista, procurando situá-las como resultados do processo
dialético de produção e reprodução do capital em sua busca contínua por novos espaços
acumulativos; e (ii) analisar o aprofundamento da dependência estrutural dos países latino-
americanos - principalmente a partir da realidade brasileira desarticulada setorial e
socialmente - provenientes dos movimentos das frações capitalistas nacionais e internacionais
durante a década de 1990.
A abordagem aqui adotada tem um caráter exploratório, centrado na descrição e nas análises
dos processos socioeconômicos através de dados e informações de natureza secundária,
coletados em trabalhos acadêmicos, em periódicos, em documentos e em bancos de dados de
órgãos oficiais nacionais e internacionais. Em decorrência do grau de complexidade que cerca
a problemática desta pesquisa, metodologicamente, alocaram-se os objetos destacados em
uma dialética
4
materialista histórica. Poulantzas define os objetivos do método materialista
histórico da seguinte forma:
O objetivo do materialismo histórico é o estudo das diversas estruturas e
práticas ligadas e distintas (economia, política e ideologia), cuja combinação
constitui um modo de produção e uma formação social: podemos
caracterizar estas teorias como teorias regionais. O materialismo histórico
compreende, de igual modo, teorias particulares [...], cuja legitimidade está
baseada na diversidade de combinações das estruturas e práticas, que
definem modos de produção e formações sociais distintas (POULANTZAS,
1977, p. 12).
Ao adotar tal metodologia buscou-se distinguir os processos reais dos processos de
pensamento e ressaltar a primazia do ser sobre o pensamento. Segundo Poulantzas (op. cit., p.
12), “no sentido rigoroso do termo, apenas existem objetos reais, concretos e singulares. O
processo de pensamento tem como fim último o conhecimento destes objetos”. Sendo assim,
4
A abordagem dialética considera que o processo social tem que ser entendido nas suas determinações e
transformações dadas pelos sujeitos. Compreende uma relação intrínseca de oposição e complementaridade entre
o pensamento e a base material. Advoga também a necessidade de se trabalhar com a complexidade, com as
especificidades e com as diferenciações que os problemas e/ou ‘objetos sociais’ apresentam (SOUZA, s/d).
18
intenta-se apreender as dimensões do real-concreto
5
a partir de informações e noções acerca
do real.
O eixo condutor desta pesquisa, em forma de ensaio livre, está centrado em quatro elementos
explicativos fundamentais, a saber: i) os movimentos das lutas e das articulações entre as
classes e suas frações; ii) as crises estruturais e suas saídas “internas” e “externas”; iii) o papel
do Estado-nação e de suas interações inter e intra-estatais; e iv) a desarticulação setorial e
social dos países dependentes. Para um melhor entendimento desse fio condutor, achou-se
conveniente empreender uma conceituação sintética prévia dos termos classes sociais, crise
estrutural, Estado e (des)articulação setorial e social
6
, aqui adotados, tendo em vista a
diversidade de interpretações acerca de tais termos, a freqüência com que são utilizados e a
relevância que desfrutam nesta pesquisa.
O conceito de classes e luta de classes, adotado ao longo desta pesquisa, tende a se aproximar
da perspectiva marxista a partir da leitura de Poulantzas (op. cit., p. 65), para quem
“a classe social é um conceito que indica os efeitos do conjunto das estruturas [relações
econômicas, políticas e ideológicas] [...] sobre os agentes que constituem os seus suportes;
esse conceito indica pois os efeitos da estrutura global de dominação das relações sociais”. No
que se refere à luta de classes, Poulantzas destaca:
A relação conflitante, a todos os níveis, das práticas das diversas classes, a
“luta” de classes, a existência mesmo das próprias classes, são o efeito das
relações entre as estruturas, a forma que as contradições entre as estruturas
revestem nas relações sociais: elas definem, a todos os níveis, relações
fundamentais de dominação e de subordinação das classes – das práticas de
classe – que existem como contradições particulares. Trata-se, por exemplo,
da contradição entre práticas que visam à realização do lucro e as que visam
ao aumento dos salários – luta econômica -, entre as que visam a
manutenção das relações sociais existentes e as que visam a sua
transformação – luta política [...] (op. cit., 1977, p. 83-84).
5
Segundo Marx (1996, p. 39-40) o real-concreto apresenta as seguintes características: “O concreto é concreto
porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no pensamento como
processo de síntese, como resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e,
portanto, também, o ponto de partida da intuição e da representação. No primeiro caso, a representação plena é
volatilizada numa determinação abstrata; no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do
concreto pela via do pensamento”.
6
Cabe ressaltar que tais termos serão conceituados de forma mais aprofundada ao longo dos capítulos seguintes.
19
Quanto ao conceito de crise estrutural, deu-se, nesta abordagem, um caráter amplo,
incorporando os elementos econômicos e políticos problemáticos à acumulação do capital. Na
verdade, admite-se aqui a existência da crise estrutural somente quando há elementos que
desestabilizam a hegemonia
7
da classe dominante, permitindo, por sua vez, a possibilidade de
rupturas sociais além do eixo da acumulação capitalista. Desse modo, a crise, vinculada aos
fenômenos problemáticos da realização das mercadorias originários do aumento das luta de
classes, assume um caráter amplo, abarcando todo o conjunto das relações sociais (culturais,
políticas, éticas, intelectuais, ideológicas e morais). A crise estrutural, portanto, só se
materializa a partir do momento histórico em que os “de baixo” não estiverem mais dispostos
a se subordinar, pelos menos conjunturalmente, aos movimentos do capital, em concomitância
com a perda de certa capacidade de manutenção da dominação/hegemonia dos “de cima”.
No que se refere ao Estado, adota-se, neste trabalho, um enfoque antideterminista, concebido
como uma estrutura permeada de interesses de classes conformados dialeticamente, ou seja, o
Estado não é reduzido deterministicamente a um “instrumento” da classe dominante, nem, por
outro lado, a uma instituição que detém o poder autônomo de determinar a realidade
socioeconômica. Desse modo, a intervenção estatal (políticas públicas) é o reflexo da
correlação de forças políticas em momentos históricos determinados. Segundo Oliveira,
[...] o processo de intervenção estatal, está sempre pressuposta uma
correlação de forças políticas ou ideológicas, que implica uma permanente
relação entre estruturas de representação de interesses e os poderes públicos;
prática de intervenção estatal entendida mais concretamente como aquela
definida no confronto entre interesses organizados em determinados
contexto histórico (OLIVEIRA, 2001, p. 15).
No que tange ao conceito de (des)articulação social e setorial, adota-se aqui a visão de
Teubal (2000-2001) e de Janvry (1981), para os quais tal conceito está associado ao grau de
influência das rendas salariais na dinâmica dos “setores chaves” que conformam e
7
Existe uma diversidade de perspectivas para o entendimento do conceito de hegemonia, muitos deles
associados à lógica da força. Tal compreensão torna-se restrita à medida que restringe as dimensões do
convencimento nos processos sociais. O conceito de hegemonia gramsciano abarca essas duas dimensões (força
e convencimento), sendo assim faz-se necessário adotá-lo ao longo deste trabalho. A hegemonia, segundo
Gramsci, é a manutenção da coesão de todos os grupos sociais que compõem uma sociedade em torno de valores
políticos, econômicos, sociais, morais e culturais, obtidos através de uma conjunção de coerção com
consentimento. Nessa construção admiti-se a possibilidade de formação de uma nova hegemonia a partir de uma
outra direção cultural que as classes subalternas possam dar.
20
influenciam, em grande medida, a estrutura produtiva de determinadas economias, inclusive
no balanceamento entre os departamentos de produção e de consumo. Segundo Teubal (2000-
2001), a análise dos efeitos da maior/menor participação das rendas salariais na dinâmica
econômica e nas cadeias produtivas perpassa o entendimento dos mecanismos atrelados à taxa
de exploração – que depende dos conflitos entre as classes e suas frações - e à importância das
rendas salariais na demanda efetiva kaleckiana.
Para Janvry (1981) as relações desiguais entre os Estados centrais e periféricos, a estrutura
econômica doméstica e a estrutura das classes e de suas frações são os fatores determinantes
da desarticulação setorial e social das economias periféricas. Tais economias tendem a se
configurar historicamente como desarticuladas, tendo em vista suas posições subalternas na
dinâmica da economia-mundo e a grande dificuldade interna das classes dominantes nacionais
e de suas frações em construir hegemonias amplas
8
. Dessa maneira, a desarticulação setorial e
social é proveniente tanto de fatores externos como internos aos espaços nacionais.
Para desenvolver as idéias preliminarmente expostas nesta introdução, dividiu-se esta
dissertação em quatro capítulos e numa última seção que se procura alinhavar algumas idéias
conclusivas.
No primeiro capítulo, é efetuada uma análise das características do padrão de acumulação
“regulado” dos anos dourados do capitalismo e das dimensões constitutivas das crises
estruturais de suas saídas “internas” e “externas”. Mostra-se que as transformações
econômicas, culturais e institucionais do capitalismo planejado dos anos dourados, que
concediam certas benesses à classe trabalhadora, funcionaram, na verdade, com estratégias
defensivas do capital diante da segunda crise estrutural, provocada, em grande medida, pela
ofensiva operária anti-sistêmica, principalmente após a Revolução Russa. Tais estratégias
centradas no compromisso keynesiano/fordista e no Welfare State buscaram harmonizar a
contradição entre as classes; contudo, esta continuou viva e voltou a se intensificar com a
8
A hegemonia ampla, na formulação gramsciana – adotada ao longo deste trabalho -, ocorre quando a classe
dominante ou uma de suas frações ocupa um lugar decisivo no padrão de acumulação num determinado
momento histórico e, a partir de seus interesses econômicos, políticos e ideológicos, consegue uma unidade
orgânica entre as demais frações do capital, de forma consentida, articulando, ao mesmo tempo, seus interesses
aos das classes dominadas. Desse modo, essa hegemonia ampla, de uma fração do capital, se estabelece sobre o
conjunto da sociedade (dominantes e dominados).
21
deterioração do padrão de acumulação “regulado”. Além disso, adentra-se, também, pelos
meandros teóricos e concretos das dimensões socioeconômicas da crise estrutural do capital
iniciada no final da década de 1960. Para tanto, fez-se necessário debater, a partir de alguns
eixos teóricos, as origens e as saídas “internas” e “externas” das crises.
O segundo capítulo, a partir das constatações realizadas no capítulo precedente, busca enfocar
os elementos do capitalismo contemporâneo (reestruturação produtiva, globalização
financeira e regulação institucional neoliberal) que funcionaram como estratégias voltadas à
retomada do controle social do capital e à recuperação dos níveis de acumulação. Mostra-se,
ainda, que tais estratégias conseguiram restabelecer o controle, mas provocaram efeitos
negativos à acumulação produtiva, tornando-se necessário, ao capital, abrir novos espaços
para a acumulação, pautada pelas finanças. Tais transformações provocaram o acirramento
dos conflitos intra e interestatais, pois, no âmbito internacional, ocorreu uma elevação das
tensões devido às modificações nas relações de coerção e controle entre os Estados Unidos e
os demais Estados capitalistas avançados e periféricos (“novo imperialismo”) e, no contexto
intra-estatal, verificou-se também a ampliação dos conflitos provenientes das novas
estratégias públicas frente ao novo poder das finanças. Desse modo, procura-se evidenciar que
a idéia de morte do Leviatã (Estado) não passa de visões distorcidas da realidade, uma vez
que o Estado-nação persiste como instituição fundamental do capitalismo contemporâneo,
mesmo com a ampliação dos “tentáculos” das empresas transnacionais e das instituições
“supranacionais”.
No terceiro capítulo, discute-se o aprofundamento recente da dependência estrutural das
economias latino-americanos à luz das características históricas da região em sua articulação
com o movimento geral do capitalismo. Para tanto, fez-se necessário: (i) apresentar as
características peculiares do capitalismo dependente, tanto no período agrário-exportador
como no momento de industrialização após a crise de 1929; (ii) discutir o endividamento
estrutural latino-americano, conformado ao longo dos anos 1970 e 1980, mostrando seus
efeitos socioeconômicos deletérios para a região; e, por fim, (iii) analisar a integração passiva
da América Latina ao mercado mundial, configurada a partir da implantação do ajustes
estruturais neoliberais na década de 1990. Tais ajustes, na verdade, aprofundaram a
desarticulação setorial e social já existente na região. Isso, por sua vez, provocou o aumento
da degradação socioeconômica e da dependência estrutural.
22
No quarto capítulo, pretende-se compreender os elementos constitutivos da realidade
socioeconômica brasileira e, principalmente, as transformações recentes no Brasil, associados
ao ajustamento estrutural neoliberal (Plano Real) da década de 1990, através dos movimentos
das classes e de suas frações, enfatizando as alianças e os conflitos entre as frações
dominantes nacionais e internacionais e seus desenlaces tanto na configuração do Estado
nacional e na adoção de determinadas políticas públicas, mais especificamente as políticas
econômicas, como na ampla exclusão social da classe trabalhadora. Para tanto, utiliza-se o
instrumental teórico da (des)articulação setorial e social, uma vez que este engloba os
elementos da demanda efetiva e da taxa de exploração, a qual é conformada a partir das lutas
e dos movimentos das classes e de suas frações setoriais e regionais.
E, finalmente, na última seção, busca-se articular as idéias desenvolvidas nos capítulos
anteriores e, principalmente, apontar para novas possibilidades de pesquisas teóricas e
históricas acerca do capitalismo contemporâneo e da realidade socioeconômica brasileira.
23
CAPÍTULO I
OS “ANOS DOURADOS” DO CAPITALISMO E A CRISE DA DÉCADA DE 1970:
DA HARMONIZAÇÃO AO AUMENTO DA CONTRADIÇÃO ENTRE CAPITAL E
TRABALHO
1.1. Do capitalismo concorrencial ao monopolista
O século XIX foi marcado pela transição do capitalismo concorrencial ao capitalismo
monopolista. O primeiro abrangeu, aproximadamente, o período entre 1800 e 1870
9
, enquanto o
segundo se consolidou após uma transição conflituosa marcada pela crise agrária de 1872, a qual
se estabeleceu como a primeira crise estrutural do capitalismo maduro. Ainda, o capitalismo
monopolista apresentou, como características mais relevantes, entre outras, a ascensão e
solidificação da grande indústria como a forma predominante da acumulação capitalista e a
subsunção real do trabalho ao capital. E, no final do século XIX,
[...] confirmava-se o movimento determinante da reprodução do capital a partir da
atuação da grande empresa transnacional e, com isso, o surgimento de novas
formas de concorrência, sobretudo aquelas que expressavam o domínio do
monopólio (BALANCO, 1999, p. 14).
Naqueles anos finais do séc. XIX constituíram-se forças produtivas especificamente
capitalistas à medida que se verificava uma separação econômica e técnica, cada vez maior,
entre os departamentos de meios de consumo e de produção, principalmente nos países
europeus desenvolvidos. Já em alguns países periféricos se verificou simultaneamente o início da
destruição das relações de produção pré-capitalistas, conjugadamente a um processo de
industrialização embrionário. Tais transformações de grande envergadura foram impulsionadas
pela extraordinária ampliação da escala de produção atrelada às mudanças tecnológicas,
originárias da 2ª revolução industrial, e por novas formas organizacionais da empresa
9
Não existe consenso no tocante à periodização do capitalismo, muito embora seja dispensável entrar nos termos dessa
polêmica no escopo deste trabalho.
24
capitalista, tanto no âmbito da gestão
10
, que buscou integrar a classe trabalhadora, quanto na
estrutura da propriedade através da consolidação das sociedades anônimas (TAVARES &
BELLUZO, 2004; BALANCO & PINTO & MILANI, 2004; BALANCO, 1999).
Essas transformações no âmbito da produção e da reprodução capitalistas, observadas no séc.
XIX, estiveram eminentemente ligadas às relações inter e intra-estatais e à supremacia da
Inglaterra no sistema mundial que consubstanciou uma Ordem Liberal Burguesa, assentada na
prática e na ideologia do livre-comércio multilateral, principalmente, a partir da segunda
metade do século XIX, com o Tratado de Comércio Anglo-Francês. Antes disso, a Grã-
Bretanha, unilateralmente, manteve seu mercado interno aberto aos produtos forâneos. Esse
livre-comércio associado à expansão territorial ultramarina e ao desenvolvimento da indústria
e das finanças na Inglaterra, possibilitou a consolidação da supremacia deste país em toda
economia mundial. Tal poderio inglês foi alcançado em virtude (i) da sua liderança na
primeira revolução industrial, (ii) do seu pioneirismo em consolidar uma “revolução
financeira” que possibilitou ao Estado uma transformação do crédito público (sistema de
dívida pública e de tributos), (iii) da derrota das pretensões imperiais de Napoleão Bonaparte
e (iv) de seu controle quase monopolista dos meios de pagamentos aceitos
internacionalmente, o que fazia da libra a “moeda mundial” (ARRIGHI, 1996; FIORI, 1997 e
2004a).
A ordem liberal, sob domínio inglês, num ambiente de Segunda Revolução Industrial, que
espraiou a industrialização além das fronteiras inglesas, abriu brechas para que alguns países
capitalistas retardatários (EUA, Japão e Alemanha) emergissem ao largo das relações
comerciais e financeiras próprias da supremacia liberal inglesa como novas potências
industriais. Esses países retardatários alçaram-se à condição de “novas potências” (Estados
soberanos) em virtude da presença ativa de seus respectivos Estados nacionais que
propugnaram políticas indústrias articuladas aos seus sistemas bancários. Estes passaram a
financiar não apenas as operações de financiamento da dívida pública e o giro dos negócios,
10
Entre o final do século XIX e início do século XX, a utilização da gestão da produção taylorista teve como
objetivo integrar ao processo produtivo uma classe trabalhadora que tinha sido proletarizada muito recentemente.
Naquele momento o operariado industrial, em sua grande maioria, era originário da agricultura e, por
conseguinte, não estava habituado nem treinado para lidar com a maquinaria moderna. Assim, o taylorismo
consolidou-se pressupondo que os trabalhadores fossem incapazes de compreender mais que uma operação de
trabalho. Isso possibilitou elevados ganhos em escalas materiais e o aumento da acumulação oriundo do
incremento da mais-valia relativa (BERNARDO, 2000).
25
mas também novos empreendimentos e fusões de empresas já existentes (TAVARES &
BELLUZO, 2004).
Isso possibilitou o surgimento e o desenvolvimento, naqueles países retardatários, de grandes
corporações associadas, pelo menos até a depressão dos anos 30, sob controle dos grandes
Bancos (finanças). Inclusive, pode-se afirmar que esse processo engendrado no território
norte-americano se constituiu no embrião da posterior “multinacionalização” do grande
capital aos moldes da empresa monopolista americana.
Pouco a pouco todos os setores industriais foram dominados por grandes
empresas, sob o comando do capital financeiro. O movimento de
concentração do capital produtivo e de centralização do comando capitalista
tornou obsoleta a figura do empresário frugal que confundia o destino da
empresa com sua própria biografia. O magnata da finança é o herói e o vilão
do mundo que nasce (TAVARES & BELLUZO, 2004, p. 114).
Esse “magnata da finança”, que surge no final do século XIX nos países retardatários,
principalmente nos Estados Unidos, já havia ascendido à posição de supremacia na Inglaterra,
desde 1870, em função da importância dos ganhos de senhoriagem do capital financeiro para
a manutenção da burguesia inglesa no controle mundial. Londres (City) havia se tornado o
centro financeiro mundial.
A estrutura financeira, tanto inglesa quanto dos países capitalistas retardatários, orientou-se,
no momento inicial do processo de industrialização, ao financiamento do capital industrial.
Esta estrutura atuava como componente da divisão do trabalho entre diferentes modalidades
funcionais do capital, configurando-se como a representação do capital portador de juros, o
qual, por sua vez, se originava do capital industrial. Apesar da existência desses vínculos
orgânicos entre capital industrial e financeiro, a superestrutura financeira tem, desde então,
uma tendência à aquisição de certa autonomia relativa. Isto se tornava possível mediante a
instalação de um aparato creditício-financeiro, constituído pioneiramente como aporte à esfera
produtiva geradora da mais-valia, e à aquisição de meios de controle e centralidade (poder)
decorrente da posse da operação da máquina monetária das sociedades capitalistas à medida
que avançava a concentração do capital produtivo (MARX, 1986).
26
A centralização da esfera financeira está baseada na categoria capital financeiro, que segundo
Hilferding (1985) e Lênin (1979), representa um fundamento estrutural fixado na economia
capitalista entre o final do século XIX e inicio do século XX, principalmente nos países
centrais da Europa, mediante a interpenetração entre a propriedade dos meios de produção e
as instituições bancárias por intermédio das sociedades por ações. Corresponde a um processo
de fusão entre banco e indústria, possibilitando a constituição de uma nova “esfera financeira”
(finance) cujo objetivo é a maximização da lucratividade por intermédio de operações de
lançamento e compra e vendas de ações, potencializando, por conseguinte, o aspecto fictício
do capital envolvido nesse movimento de valorização.
A impulsão do capital financeiro à posição central na disputa entre frações da classe
dominante ocorre em momentos de enfrentamento de crises - barreiras à valorização do valor
– que se reflete em conflitos inter e intra-estatal dos diversos países que compõem o sistema
mundial. A acumulação fictícia pode muitas vezes funcionar como uma válvula de escape à
crise, pelo menos temporariamente. Não foi por acaso que o capital financeiro inglês se
consolidou no sistema mundial nas últimas décadas do século XIX marcadas pela crise agrária
de 1872, que se prolongou por duas décadas.
Aquela Grande Depressão representou muito mais do que um percalço conjuntural
11
do
sistema capitalista, como apregoava Alfred Marshal, um dos economistas liberais mais
importantes à época. A crise, na verdade, teve um caráter estrutural, pois se vinculava à
própria dinâmica do capitalismo, o qual, naquele período, atravessava um esgotamento do
padrão de acumulação “concorrencial”, em virtude (i) da transição tecnológica de 1873-1893
e seus desdobramentos nos processos de trabalho e de valorização do capital; (ii) do aumento
dos conflitos sociais atrelados à maior organização e nitidez ideológica dos trabalhadores
(“classe para si”), que, inclusive, à época, intentavam estratégias anti-sistêmicas de caráter
socialista; e (iii) da incapacidade do Estado liberal, dentro de seus marcos regulatórios, de
11
Os economistas liberais à época consideravam aquela crise como um fenômeno temporário associado às fortes
quedas nos preços das matérias primas e dos alimentos. Nessa perspectiva, a crise não se constituiria num
obstáculo ao curso equilibrado da dinâmica econômica, uma vez que deveria ser garantida a vigência plena do
laisser-faire. Entrementes, “a crise – agrária ou de um padrão tecnológico – contribuiu não só para demonstrar o
quanto eram falaciosas certas posturas até então identificadas como progresso ilimitado ou ininterrupto, na
vigência de um pleno laisser-faire; como também para revelar não tanto a imprecisão conceitual mas a própria
inadequação estrutural do chamado mercado auto-regulável em face de sua própria incapacidade de conter a
escalada depressiva dos preços”(OLIVEIRA, 2004, p.107)
27
controlar as manifestações de descontentamento, abrindo espaço para a lei do mais forte. Um
perigo para o sistema naquele momento, uma vez que a classe trabalhadora ganhava força e
poderia subverter as relações de dominação (OLIVEIRA, 2004).
O avanço das forças produtivas capitalistas, ao longo do séc. XIX, consolidou a dinâmica
social sob a égide do capital; contudo, tal avanço propiciou, se bem que a contragosto dos
capitalistas, o avanço da organização e da consciência da classe trabalhadora. “A organização
da classe trabalhadora cresceu com o capitalismo, que produziu a classe, o sentimento de
classe e o meio físico de cooperação e comunicação” (HUBERMAN, 1979, p. 220 apud
CALVETE, 2003, p. 11).
Os movimentos operários, em certa medida, principalmente a partir de meados do séc. XIX,
não se preocupavam apenas com as reivindicações salariais, mas também haviam se inserido
no processo da luta de classes em virtude do avanço da consciência de classe. A passagem
abaixo, do livro A era das Revoluções de Hobsbawm, expressa muito bem esse processo:
O verdadeiramente novo no movimento operário do princípio do século XIX
era a consciência de classe e a ambição de classe. Os ‘pobres’ não se
defrontavam com os ‘ricos’. Uma classe específica, a classe operária,
trabalhadores ou proletariado, enfrentava a dos patrões ou capitalistas
(HOBSBAWM, 1977, p. 230).
Apesar das divergências históricas entre as correntes (anarquistas, socialistas e comunistas) do
movimento operário, estas, percebendo a dimensão da luta de classes à época, se articularam,
em 1864, em prol da formação de uma união internacional permanente dos trabalhadores, a
Primeira Internacional, buscando aumentar o poder da classe trabalhadora diante do capital.
À medida que aumentavam as barreiras ao processo de valorização do valor, o capital
materializava formas para derrubá-las e, conseqüentemente, se manter hegemônico. Uma das
estratégias de enfrentamento da crise de valorização foi a busca de ganhos financeiros de
senhoriagem através do deslocamento do capital produtivo à esfera financeira, principalmente
na Inglaterra. Para a burguesia inglesa a ampliação das finanças garantiu, pelo menos até o
final da 1ª guerra mundial, sua supremacia na economia-mundo. Outra estratégia utilizada
pelos representantes do capital, principalmente pelas burguesias dos países capitalistas
28
retardatários, foi a centralização e a concentração do capital em determinados espaços
territoriais através da defesa dos monopólios e, conseqüentemente, das burguesias nacionais,
mediante políticas estatais protecionistas.
O modelo ideológico liberal do laisser-faire pautado no Estado não-interventor, centrado no
modelo idealizado da Inglaterra, tornava-se cada vez menos funcional à reprodução sistêmica,
naquela conjuntura de insurgência, de boa parte da classe trabalhadora e de aumento da
concorrência entre capitais nacionais cada vez mais monopolistas.
Desse modo, materializou-se o surgimento de uma nova etapa do capitalismo, iniciada no
final do século XIX, se estendendo até o final da década de 30 do século XX, denominada de
capitalismo monopolista ou imperialismo, que esteve associada à concentração e centralização
do capital industrial e financeiro em determinados espaços. Isso, por sua vez, provocou um
acirramento das disputas entre a Inglaterra e as potências retardatárias por espaços para a
realização e reprodução do valor, culminando nas guerras mundiais imperialistas.
A competição entre eles [Inglaterra e potências retardatárias] foi a grande
responsável pela recolonização européia do mundo, na segunda metade do
século XIX, mas também levou a Europa às duas guerras mundiais, que
desmontaram o império inglês e a superioridade mundial européia (FIORI,
2001a, p. 68).
A Primeira Guerra Mundial, fruto da agudização da concorrência interimperialista, reafirmou
a incapacidade do modelo institucional liberal de regular as diferenças dos mais diversos
interesses socioeconômicos que vinham se materializando desde a crise de 1872. Ao final
daquele conflito não apenas a regulação da concorrência capitalista era preocupação da classe
dominante, mas também a nova correlação de forças entre o capital e trabalho que emergiu
após a revolução socialista russa de 1917. Tal evento político estimulou o crescimento do
movimento operário em boa parte da Europa ocidental. O capital não se acomodou diante de
tal conjuntura “negativa” e partiu para o contra-ataque, uma vez que delegou às forças da
própria monopolização o direcionamento dos padrões de concorrência e, no plano
microeconômico, buscou se reafirmar diante das lutas de classes através de novas
possibilidades de controle social (OLIVEIRA, 2004).
29
Naquele contexto de aumento dos conflitos inter (capital versus trabalho) e intraclasses
(capital versus capital), as barreiras impostas ao processo de valorização se tornaram mais
robustas e elevadas, principalmente, com o acirramento da luta de classes, a qual representa o
principal componente crítico. Tal dinâmica socioeconômica conflituosa, por sua vez, alçou o
capital a uma segunda crise estrutural - iniciada nos anos de 1929 e concluída com advento da
II guerra - que atingiu a totalidade do mundo capitalista, provocando (i) forte deflação de
ativos; (ii) crises bancárias recorrentes; (iii) intensa queda dos preços das mercadorias; (iv)
desvalorizações competitivas das moedas nacionais; (v) a ruptura do padrão-ouro; (vi) o
colapso da produção industrial; e (vii) a forte elevação do desemprego que chegou até a 40%
da população economicamente ativa em alguns países centrais.
O epicentro da crise foram os EUA onde ocorreu o crack da bolsa de Nova York, provocado,
segundo Belluzo (1997) e Tavares & Belluzo (2004) pelo “estouro” da bolha especulativa
(inflação de ativos), em virtude da mudança de sinal da política monetária americana. Desse
modo, para tais autores, a crise foi gerada pelas fraquezas institucionais do modelo de
regulação do Estado liberal que impedia a coordenação e o controle da anarquia da produção,
por parte do agente estatal, na nova etapa monopolista do capitalismo. Cabe ressaltar que o
fato gerador da crise, como apresentado pelos autores supracitados, demonstra o caráter
limitado de suas análises, na medida em que estes deixaram de lado a luta de classes - origem
do processo crítico – que representa a principal restrição imposta à continuidade do processo
de acumulação, e enfocaram apenas os problemas institucionais da regulação da concorrência
intercapitalista. Percebe-se, na verdade, que tais autores não penetram nos meandros
econômicos e políticos da contradição entre capital e trabalho e seus efeitos para as crises. Em
seção à frente retomar-se-á o debate sobre as origens das crises à luz de algumas correntes
teóricas.
A segunda crise estrutural de valorização do valor representou a ocorrência de um evento
complexo com manifestações paradoxais. A redução das restrições à acumulação só foi
alcançada devido à profilaxia drástica e amplamente destrutiva de mercadorias, de capitais e
de força de trabalho, originárias da Segunda Guerra Mundial, e à nova forma de controle
social pautada pela regulação do Estado social (Welfare State), planejador e produtor. Estes
fatores engendraram certa harmonização (1945-1970) no âmbito das relações entre capital e
30
trabalho. Assim, foi possível o estabelecimento de uma nova plataforma de relançamento da
acumulação.
Em linhas gerais, a crise de 1929, sem dúvida, desempenhou um papel central no reforço de
uma nova institucionalidade, tanto no âmbito do capitalismo, em sua generalidade, quanto no
do Estado. Essas mudanças refletiram alterações políticas ocorridas nos mercados capitalistas
em virtude do grau mais elevado de socialização do capital até então. A busca de alternativas
para conter os efeitos da crise – desemprego e deflação – tendeu a reforçar as mudanças no
plano institucional e na determinação das políticas em seu todo.
As novas alianças de classe que se articulam tendo em vista o enfrentamento
da crise – New Deal, Planificação Nazista, Front Populaire... - aos poucos
vão forjando aquilo que se pode caracterizar como a forma alternativa mais
concreta ao Estado liberal [...]: o Estado social [Welfare State]”
(OLIVEIRA, 2004 p. 197).
1.2. Os anos dourados do capitalismo planejado: a busca da harmonia entre capital e
trabalho
A retomada da acumulação, no pós-crise de 1929, deve ser identificada como o ponto de
partida do longo boom pós-II Guerra. O programa de recuperação da economia americana
(New Deal
12
), e seus correlatos em outros espaços nacionais, inauguraram uma nova
macroestrutura sócio-econômica capitalista, cuja marca decisiva foi a forte presença estatal
em termos normativos e também como esfera (ramo) de produção (Estado planejador e
produtor), articulada à nova forma de controle social assentado no Welfare State,
principalmente nos países centrais. Esta acentuada inflexão relacionada às atribuições
socioeconômicas designadas ao Estado capitalista baseou-se em dois elementos fulcrais, quais
sejam, (i) um inquestionável aparato de regulação com o propósito principal de
enquadramento do capital financeiro e seu direcionamento para o financiamento da produção
através do planejamento, considerado necessário à própria dinâmica do capital naquele
12
“A essência do New Deal era a idéia de que os grandes governos deveriam gastar com liberdade para
conquistar a segurança e o progresso. Assim, a segurança do após-guerra exigiria certa liberdade de desembolsos
por parte dos Estados Unidos, a fim de superar o caos criado pela guerra. [...] A ajuda aos [...] países pobres teria
o mesmo efeito dos programas de bem-estar social dentro dos Estados Unidos – dar-lhes-ia segurança para
superar o caos e impediria que eles se transformassem em revolucionários violentos” (SCHURMANN, 1974, p.
67 apud ARRIGHI, 1996, p. 285).
31
momento histórico; e (ii) uma acomodação das contradições entre capital e trabalho por meio
de certas concessões, por parte do capital, aos trabalhadores dos países centrais (compromisso
keynesiano/fordista ou estratégia de harmonização) e de forte coerção, por parte das ditaduras
militares, dos frágeis movimentos operários dos países periféricos.
Embora o New Deal tenha sido implementado já no início da década de 1930, pode-se afirmar
que essa nova macroestrutura e seus efeitos sobre a retomada da acumulação só se
consolidaram realmente ao final da II Guerra
13
, a partir de um novo reordenamento
internacional, qual seja: a materialização de um novo sistema monetário internacional (padrão
dólar-ouro) e de instituições internacionais de coordenação e controle (Fundo Monetário
Internacional, Banco Mundial e GATT), baseado nos acordos de Bretton Woods, sob a égide
irrestrita da nova supremacia, quer dizer, dos Estados Unidos, que se constituiriam
posteriormente numa hegemonia mundial no sentido gramsciano até meados da década 1970.
A adoção da estratégia de recuperação sócio-econômica foi assentada, por um lado, no
princípio da economia da demanda efetiva, configurada no programa do New Deal e
consolidada com o acordo de Bretton Woods e com o Plano Marshall, e, por outro lado, na
busca de harmonização entre as classes capitalista e trabalhadora. Tal estratégia somente se
consubstanciou em virtude de determinados fenômenos, a saber: (i) redução da influência dos
condicionantes externos - cooperação antagônica - sobre as políticas macroeconômicas
domésticas dos países capitalistas, principalmente após o começo da Guerra Fria em 1947; (ii)
repressão financeira, ou seja, a “regulação”, por parte das autoridades monetárias estatais,
sobre a moeda de crédito, capital a juros, através do processo de monetarização da dívida
pública; (iii) “mediação” estatal entre o empresariado e os trabalhadores, através de suas
representações sindicais, objetivando articular o aumento dos salários reais aos ganhos de
produtividade e dos preços e integrar o trabalhador ao âmbito dos processos decisórios da
produção. Quando a mediação não funcionava o Estado utilizava seu poder coercitivo,
principalmente nos primeiros anos após o final da Segunda Guerra; (iv) incorporação de
13
O programa de recuperação americana (New Deal) não conseguiu retomar inicialmente (1933/1938) os
investimentos privados no montante esperado, em virtude das baixas expectativas de expansão dos mercados.
Configurando-se em um fracasso parcial num primeiro momento. Na verdade, a retomada da acumulação nos
Estados Unidos teve forte vinculação à economia de guerra e ao processo de reconstrução da Europa no pós-
guerra (MANDEL, 1985). Apesar de certo fracasso inicial, as diretrizes do New Deal de maior intervenção e
regulação estatal sobre os mercados, além de uma nova forma de controle social, tornaram-se o eixo da
acumulação capitalista entre o pós-II Guerra e a crise da década de 1970.
32
investimentos diretos e das transferências de seguridade social como componentes basilares
da demanda e do controle social (BELUZZO, 1999; GUTTMANN, 1998; MEYER, 2000;
BALANCO & PINTO, 2004).
O sistema monetário de Bretton Woods (padrão dólar-ouro), um dos elementos importantes da
estratégia de recuperação, configurou-se a partir de três elementos fundamentais: 1) taxas
fixas de câmbio, mas ajustáveis, em virtude de “desequilíbrios fundamentais” associados aos
balanços de pagamentos; 2) a aceitação do controle dos fluxos de capitais internacionais; e 3)
a criação do FMI para monitorar as políticas nacionais e oferecer financiamento para
equilibrar os balanços de pagamentos com desequilíbrios. Segundo Eichengreen (2000, p.
132) apenas “os controles de capital constituíram-se no único elemento que funcionava mais
ou menos segundo o planejado”. Esse controle de capitais afrouxou os vínculos entre as
políticas econômicas domésticas e externas – redução dos condicionantes externos -,
possibilitando aos governos espaços para a adoção de políticas macroeconômicas voltadas ao
pleno emprego (EICHENGREEN, 2000).
Essa ordem financeira e monetária internacional, em que o dólar passou a funcionar como
moeda de circulação internacional, foi construída sob a égide norte-americana em virtude de
sua posição de superioridade diante de outros países centrais no pós-II Guerra. O poderio dos
EUA esteve atrelado, naquele momento, à sua posição de prestamista para todos os países
aliados e às suas reservas em ouro que totalizavam quase que integralmente as reservas
mundiais. Nesse cenário de assimetria de poder, quando do encontro de Bretton Woods, a
delegação dos Estados Unidos - que tinha no Plano White seu programa de diretrizes -, impôs
a maior parte de suas deliberações à delegação da Inglaterra - que através do Plano Keynes
vislumbrava certa contenção do poderio americano - e às delegações dos outros países
vencedores e derrotados da Segunda Guerra. Os acordos firmados ao final daquele encontro
permitiam a manutenção de controles sobre movimentos de capitais e a limitação do volume
de financiamento para os países que apresentassem balanço de pagamento deficitário. Essa
resolução garantiu grande poder para os países superavitários que naquele momento
correspondia solitariamente aos EUA. Assim, mesmo com algumas concessões que
permitiram o controle de capitais, os Estados Unidos consolidaram-se como o centro da
ordem capitalista pós-II Guerra (EICHENGREEN, 2000; MATTOS, 2000; SERRANO,
2004).
33
Apesar dos EUA apareceram como o espaço capitalista pioneiro de desenvolvimento do New
Deal, também a Europa e o Japão conheceriam a aplicação dos seus principais elementos
constitutivos, sobretudo quando da imposição americana ao financiar suas reconstruções
depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Em particular, deve-se destacar a afinidade do
Plano Marshall, aplicado à reconstrução dos países capitalistas da Europa Ocidental, ao
modelo de demanda efetiva e seus enquadramentos institucionais. Por conseguinte, essa
orientação, como um dos elementos que visava à recolocação da economia capitalista nos
trilhos da expansão da acumulação, é introduzida principalmente naquele núcleo de países que
passaria a ser considerado como o núcleo orgânico do sistema no plano mundial.
O acordo de Bretton Woods não conseguiu sanar os graves problemas da Europa, pois a
limitação de empréstimos para os países deficitários no balanço de pagamentos – naquele
momento todos os países europeus - restringia a possibilidade de sua reconstrução. A
instabilidade econômica (crise da libra esterlina em 1947) e política na Europa criaram um
terreno fértil para a possibilidade da tomada do poder estatal por partidos comunistas, o que,
por sua vez, poderia provocar um alinhamento de alguns países europeus ocidentais ao bloco
socialista. Certamente este resultado potencial ampliaria o poder da União Soviética no
âmbito da Guerra Fria que se iniciou em 1947, e, principalmente, poderia elevar o poder da
classe trabalhadora numa nova correlação de forças entre o capital e o trabalho. Entrementes,
antes de possíveis vitórias da classe trabalhadora socialista em território europeu ocidental, os
Estados Unidos adotaram a estratégia da “exportação de capital”, em grande monta, através
do Plano Marshall para reduzir a instabilidade sócio-econômica européia e para ampliar os
tentáculos da grande empresa hierarquizada e “verticalizada” norte-americana. Segundo
Arrighi (1996, p. 306) o “Plano Marshall iniciou a reconstrução da Europa Ocidental à
imagem norte-americana e, direta e indiretamente, deu uma contribuição à ‘decolagem’ da
expansão do comércio e da produção mundiais da década de 1950 e 1960”.
Para Brenner (2003) a expansão econômica do pós-guerra (1950-60) vinculou-se à capacidade
do núcleo de países capitalistas avançados realizarem e sustentarem altas taxas de lucro
14
,
produzindo superávits relativamente elevados a partir do uso de capital fixo/estoque de capital
(instalações e equipamentos). No entanto, Brenner (2003) não apresenta, ou apenas
14
Entre 1950 e 1970, a taxa de lucro líquido do setor manufatureiro, em média anual, foi de 24,3% nos EUA, de
23,1% na Alemanha e de 40,4% no Japão (BRENNER, 2003).
34
tangencia, os novos elementos institucionais que proporcionaram aos países centrais a
capacidade de sustentar a taxa de lucro nos anos 50 e 60, delegando à política, portanto, em
sua análise, um caráter secundário.
Na verdade, a sustentabilidade das taxas de lucro em um patamar elevado só foi factível a
partir de um renovado arranjo político, articulado ao final da II Guerra, ou seja, uma nova
institucionalidade, tanto em níveis inter e intra-estatais quanto no plano gerencial-
administrativo da produção. Com isso, a tarefa de regulação da concorrência intercapitalista e
de arrefecimento da contradição entre capital e trabalho nos espaços nacionais foi facilitada
pelo novo controle social estruturado em certas concessões aos trabalhadores. Na Europa
empregou-se o reformismo social-democrata assentado da “participação” dos trabalhadores
em “associação” com os capitais, já nos Estados Unidos configurou-se uma racionalização
fordista/taylorista que possibilitava ganhos salariais aos trabalhadores.
A intensa acumulação de capital ocorrida nos anos dourados aconteceu a partir do núcleo
funcional composto pela grande empresa, aprofundando sua penetração nacional e
internacional, e do Estado planejador e produtor, mediante forte intervencionismo e
“regulação”. Entretanto, essa mesma receita pouco contribuiu para que os países periféricos
lograssem diminuir o fosso que os separavam do núcleo orgânico do sistema, confirmando o
desenvolvimento desigual e hierarquizado do capitalismo.
A expansão da atuação da grande empresa
15
americana no pós-II Guerra, para além dos
espaços nacionais que as sediavam originariamente, caracterizou uma nova etapa da
“exportação de capital”: num primeiro momento, por meio de gastos militares e do Plano
Marshall; e num segundo momento, após o Plano, pela internacionalização do capital privado
americano, financeiro e principalmente industrial, para a Ásia e a América Latina.
Tornou-se
possível, com isso, um reordenamento na divisão internacional do trabalho, já que a revolução
tecnológica então experimentada permitiu um avanço da integração dos países
subdesenvolvidos ao mercado mundial de tal forma a elevá-los também à posição de
15
A grande empresa teve, ao longo de quase todo séc. XX, o binômio taylorista/fordista como a expressão
dominante da gestão da produção e seus respectivos processo de trabalho. Tal arranjo da produção estava
baseado na produção em massa de mercadorias mais homogeneizadas e na estrutura organizacional
“verticalizada” (ANTUNES, 1999).
35
produtores de bens acabados. Emerge, então, um novo quadro que apenas confirmaria a
inexorável atuação das leis econômicas do capitalismo como fatores de impulsão ao
deslocamento dos capitais entre os diversos espaços geográficos do planeta. No interior desse
processo, os novos interesses das empresas multinacionais européias e, principalmente,
americanas nas regiões atrasadas do planeta levaram-nas, por conseguinte, a ampliar o espaço
de vigência das relações capitalistas de produção (PINTO & BALANCO, 2004).
As elevadas taxas de lucro alcançadas pelas economias avançadas no pós-IIGuerra
propiciaram a manutenção de altos índices de investimentos, gerando uma aceleração da
produtividade, associados a um crescimento rápido dos salários reais sem ameaçar os lucros.
Nesse período, a maioria das economias capitalistas avançadas, e algumas subdesenvolvidas,
vivenciaram um longo boom econômico. Materializaram-se altas taxas de crescimento do
investimento (privado
16
e estatal), da produção
17
, da produtividade
18
e dos salários
19
nunca
vistos historicamente, enquanto constatavam-se pequenos níveis de desemprego
20
e de
inflação
21
e processos recessivos mínimos (BRENNER, 2003).
O crescimento econômico dos anos dourados foi materializado a partir da articulação entre
crescimento das taxas de lucro e dos salários reais - economia da demanda efetiva – a partir
de uma nova institucionalidade voltada à harmonização das relações entre capital e trabalho.
Essa articulação harmonizadora tornou-se viável, conjunturalmente, em virtude de
determinados eventos políticos, quais sejam, a Segunda Guerra Mundial e a posterior
16
Verificou-se um crescimento relevante do estoque de capital (economia das empresas privadas), entre 1960 e
1969, de 3,9% nos Estados Unidos (estoque líquido), de 11,3% no Japão (estoque bruto), de 6,6% na Alemanha
(estoque bruto), e de 4,8% no G-7 (estoque bruto) (BRENNER, 2003, p.93).
17
Entre 1950 e 1973, a economia mundial cresceu 4,9%, em média anual, recorde histórico. Tal crescimento foi
puxado pela França e Alemanha, na Europa, que cresceram 5,0% e 6,0%, respectivamente; pelo Japão, na Ásia,
que cresceu 9,2%; e pelo Brasil, na América Latina, que cresceu 6,8% (GONÇALVES, 2002, p. 108).
18
As taxas de produtividade da mão-de-obra dos países centrais (PIB/trabalhador) alcançaram seus maiores
crescimentos entre 1960 e 1969. Naquele período ocorreu um alto crescimento nos Estados Unidos, no Japão, na
Alemanha, na União Européia e no G-7 de 2,5%, 8,6%, 4,3%, 5,2% e 4,8%, respectivamente (BRENNER, 2003,
p. 93).
19
Os salários reais, entre 1960 e 1973, elevaram-se fortemente nos países centrais. Nos Estados Unidos, no
Japão, Alemanha e na União Européia ocorreram crescimentos dos salários de 2,8% (por hora), 7,7% (por
pessoa), 5,4% (por pessoa) e 5,6% (por pessoa), respectivamente (BRENNER, 2003, p. 90).
20
Na década de 1960, as taxas de desemprego alcançaram os menores índices do século XX.
21
As baixas taxas de inflação dos anos dourados podem ser consideradas, em certa medida, surpreendentes num
contexto de altas taxas do produto e do emprego. Na verdade, a estabilidade de preços teve como fatores
relevantes o regime de cambio quase fixo de Bretton Woods e o controle, por parte dos norte-americanos, do
petróleo do Oriente Médio. Isso, por sua vez, garantia a estabilidades dos preços das commodities negociadas
internacionalmente, inclusive o petróleo (SERRANO, 2004)
36
consolidação do bloco socialista, conformando a divisão do mundo em dois pólos. No pólo
capitalista os Estados Unidos buscaram configurar o êxito econômico para seus aliados e
concorrentes como uma forma de consolidar a ordem capitalista – um mundo seguro para a
livre empresa – e combater o regime comunista. Nesse cenário, o Estado imperialista
americano, já consolidado como hegemônico, arquitetou uma cooperação antagônica entre os
principais países capitalista, ou seja, uma cooperação entre Estados capitalistas concorrentes
(THALHEIMER apud MEYER, 2000), alçando o crescimento econômico e o progresso a
uma questão de segurança nacional e de manutenção da ordem capitalista regulada.
O processo de expansão mundial não ocorreu de forma simultânea no núcleo dos países
avançados. Na verdade, os EUA, pelas suas condições econômicas e materiais no final da
Segunda Guerra Mundial, saíram na frente no processo de expansão, provocando um
crescimento temporalmente desigual entre os Estados Unidos, Europa e Japão. Quando a
Europa e o Japão atravessaram os seus auges expansionistas a economia doméstica americana
já vivenciava um processo de declínio relativo. Essa dinâmica mundial diacrônica garantiu a
contínua vitalidade das forças dominantes dentro dos Estados Unidos, pois o desenvolvimento
mais tardio, após a II Guerra, da Europa e do Japão, em relação ao norte-americano,
representou, por um lado, oportunidades de expansões externas para as empresas
multinacionais e os bancos americanos, configurando canais de lucratividade para os seus
investimentos diretos. Por outro lado, significou o crescimento das exportações dos
produtores internos americanos que necessitavam de uma demanda estrangeira de crescimento
acelerado (BRENNER, 2003).
O êxito econômico estadunidense, como centro da economia-mundo capitalista, portanto,
esteve atrelado ao sucesso de seus concorrentes e aliados capitalistas e à manutenção da
ordem capitalista regulada. Isto propiciou, ainda que sob hegemonia dos Estados Unidos, um
maior grau de cooperação e coordenação internacional – Plano Marshall e sistema financeiro
internacional “regulado”: Bretton Woods -, marcado por altos níveis de apoio político-
econômico dos norte-americanos a seus aliados e concorrentes. Nesse período a hegemonia
americana foi exercida através de um comportamento dual, coercitivo e persuasivo, com o
aspecto persuasivo ocupando maior destaque na política internacional norte-americana
(MEYER, 2000).
37
Sem dúvida, tornava-se muito claro que o capitalismo resolvera adotar um modelo de
desenvolvimento de inquestionável inspiração keynesiana
22
, portanto, privilegiando o
princípio da demanda efetiva como norma teórica tanto no plano econômico como no cultural.
Coube ao Estado o papel de controle do ciclo econômico e de disseminação da cultura
burguesa
23
do consumo e da eficiência aos moldes norte-americanos (American Way of Life)
através do consumo de massa e das transformações ideológicas dos indivíduos – um novo tipo
humano. À medida que as organizações trabalhistas assimilavam tal cultura aumentava a
integração passiva dos trabalhadores aos rumos assumidos pelo movimento do capital em sua
globalidade.
Um desses mecanismos estatais, no plano econômico, foi a estrutura de regulação da moeda e
do sistema de crédito adotada por Roosevelt
24
. Assim, constituiu-se uma nova ordem
monetária em que as autoridades monetárias do Estado (Bancos Centrais) podiam interferir na
oferta de moeda tanto de forma direta, alterando a quantidade de moeda em circulação, quanto
de forma indireta por meio da regulação das atividades de criação monetária dos bancos
comerciais. Isso possibilitou a criação de uma oferta elástica de moeda a juros baixos através
do aumento das despesas financiadas pelo endividamento. Esse processo originou uma
“monetização” das dívidas e permitiu financiar, simultaneamente, os déficits orçamentários
crônicos do Estado previdenciário, os investimentos necessários à difusão de tecnologias da
produção fordista e as normas de consumo sociais de consumo de massa de bens mais caros,
tais como automóveis e casas (GUTTMANN, 1998).
A justificativa para a intervenção estatal na economia, sob influência do planejamento, em
boa medida, foi explicada em vista da profunda destruição econômica causada pela Grande
Depressão de 1929 e pela II Guerra. Nesse cenário deletério seria uma quimera acreditar que
22
A leitura keynesiana, como apresentada neste trabalho - a mesma defendida por Oliveira (2004) -, não se reduz
apenas ao plano econômico: adoção, por parte do Estado, de políticas ativas de criação de demanda agregada e
de instrumentos passivos (regulação) de natureza monetária buscando a simples reativação do controle do ciclo;
mas também ao plano cultural, na medida em que o Estado disseminou a cultura burguesa do consumo e
eficiência através do consumo de massa (Oliveira, 2004).
23
O acesso aos bens e serviços representaria a felicidade individual e para tanto os envolvidos na produção
deveriam se comprometer com a eficiência.
24
A regulação do sistema financeiro americano pós-crise de 1929 esteve assentado na Glass-Steagall Act (1933)
e pelo Securities Exchange Act (1934) e estruturou-se “em três princípios: a) proteção estatal que incluiu o
sistema de seguro dos depósitos e mecanismos de supervisão; b) restrição à competição exacerbada entre
instituições financeiras; c) intenção de dar transparência na gestão dos negócios” (Braga e Cintra, 2004, p. 257).
Essas medidas tinham como objetivo regular a interação creditícia e especulativa inter-organizações financeiras e
entre bancos e indústria.
38
semelhante situação poderia ser revertida rapidamente apenas com base nos mecanismos
espontâneos do mercado e da livre-iniciativa. A destruição econômica e eventos do plano
político - intensificação da luta de classes na Europa e a construção do “socialismo real”
soviético - forçaram o engendramento, por parte do capital, de estratégias contra-ofensivas de
caráter preservativo pautadas na harmonização entre as classes através de algumas
concessões
25
aos trabalhadores: o chamado compromisso keynesiano/fordista. Quanto maiores
fossem os poderes dos movimentos operários nacionais, maiores eram as concessões por parte
dos gerentes e representantes do capital. Assim, tal arranjo institucional “harmonicista” foi
assumindo características bastante distintas em cada país, face ao nível nacional de correlação
de força entre as classes. Isso explica, até certo ponto, as formas diferenciadas da
harmonização implantadas nos Estados Unidos e na Europa e a predominância da coerção aos
movimentos trabalhistas nos países periféricos.
Na Europa ocidental, ou na Europa que continuaria capitalista depois dos acordos de
coexistência pacífica firmados entre EUA, Inglaterra e URSS ao final da Segunda Guerra, o
compromisso keynesiano/fordista, como estratégia de harmonização, teve que assumir um
caráter mais amplo denominado “pacto social”
26
, o qual também foi transplantado tanto para o
plano macroestrutural (regulação institucional: Welfare State) quanto para o da produção
(certa “participação” dos trabalhadores nos processos organizacionais e ganhos salariais
reais), haja vista a grande insurgência das organizações dos trabalhadores europeus.
Nos Estados Unidos o compromisso keynesiano/fordista voltou-se, prioritariamente, ao
âmbito da produção mediante a racionalização taylorista/fordista. Esse processo proporcionou
ingentes ganhos de produtividade, os quais foram em parte repassados aos salários dos
trabalhadores norte-americanos. A maior intermediação, nos Estados Unidos, das instâncias
políticas e ideológicas no processo de harmonização não se fez necessária face à pequena
articulação dos movimentos operários estadunidenses – sindicalismo reformista à semelhança
25
Vale ressaltar que essas concessões visavam contornar a ofensiva operária sem, no entanto, atingir a
legitimidade do domínio do capital.
26
A “concertação” do “pacto social”, que perpassava pelo consenso negociado e pela harmonização das relações
sociais entre capital e trabalho sob orientação social-democrata, assentou-se numa nova aliança de classe que
concedia aos trabalhadores certas benesses em troca do fim das lutas mais radicais orientadas ao deblacê do
sistema capitalista. A classe capitalista só aceitou fazer certas concessões em virtude do aumento, no primeiro
quartel do século XX, das constantes insurgências, greves e revoluções da classe trabalhadora contra a ordem
vigente nos países europeus industrializados e do “perigo” comunista que rondava o ocidente (Oliveira, 2004).
39
das trade unions inglesas - e suas reivindicações de caráter muito mais salarial dos que anti-
sistêmico.
Gramsci, no seu ensaio Americanismo e Fordismo, fora um dos primeiros a perceber a
relevância da gestão taylorista/fordista para o processo de harmonização social nos EUA. Para
ele, o ganho com essa nova gestão da produção viabilizou
[...] racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força
(destruição do sindicalismo operário de base territorial) com a persuasão
(altos salários benefícios sociais diversos, propaganda ideológica e política
habilíssima) para, finalmente, basear toda a vida do país na produção. A
hegemonia [do capital] vem da fábrica e, para ser exercida, só necessita de
uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da
ideologia (GRAMSCI, 1978, p. 381-2).
Nos países periféricos a relação entre os representantes do capital e os movimentos operários
não assume a forma de compromisso keynesiano/fordista e sim de maior coerção, uma vez
que tais economias dependentes estruturavam-se num modelo de capitalismo desarticulado -
voltado para exportação ou para o consumo interno de bens de luxo - e alicerçado na
“superexploração” do trabalho. Tal dinâmica capitalista dependente conformava um grande
“exército industrial de reserva”, o que, em certa medida, restringia a ampliação das bases das
organizações operárias. Com a correlação de força pendendo fortemente a favor do capital
não se fazia necessária à harmonização de classes nos países periféricos. A coerção foi a arma
principal do capital para se impor como dominação. Ao sinal de “subversão” dos
trabalhadores à “superexploração” e, por conseguinte, ao sistema estabelecido, os
representantes das frações dos capitais nacionais articulavam-se entre si
27
, com os
representantes das forças armadas, com parte das classes médias locais e com o grande capital
forâneo para manter a ordem estabelecida. O instrumento de manutenção da acumulação e,
conseqüentemente, dessa ordem capitalista dependente, fora o golpe militar e a respectiva
implantação de regimes ditatoriais, pois estes facilitavam a extração de mais-valia dos
trabalhadores através da repressão dos salários e da coerção da organização livre dos
movimentos operários. A “ajuda” estrangeira para manutenção da ordem, geralmente, vinha
dos organizadores do sistema capitalistas (EUA), quer seja através de intervenções militares
27
Em momento de possíveis rupturas sistêmicas as frações das classes dominantes deixam de lado, pelo menos
temporariamente, os seus conflitos, associados à apropriação e à repartição da riqueza, em prol de instrumentos
de manutenção da hegemonia do capital.
40
violentas (Coréia, Vietnã, e República Dominicana), quer seja incitando e sustentando política
e economicamente golpes militares e ditaduras ao redor do mundo (Brasil, Chile, Argentina,
Grécia, Uruguai etc.). Ao utilizar tais instrumentos, o Estado norte-americano estava
buscando proteger os interesses de suas empresas multinacionais (grande capital) e, por
conseguinte, defender sua posição central na economia mundo capitalista, além, é claro, da
hegemonia do capitalismo como sistema social.
Em linhas gerais, a arquitetura de regulação e coordenação, sob controle norte-americano,
seria ainda ampliada à dimensão internacional. O capitalismo colocou em prática um
mecanismo “regulatório” direcionado para o controle das relações entre países, abarcando,
dessa maneira, os fluxos financeiros e de mercadorias. Os acordos de Bretton Woods
resultaram na substituição definitiva do padrão-ouro pelo padrão dólar-ouro e na construção
de uma estrutura institucional baseada em organismos como o FMI, o Banco Mundial e o
GATT, sob a égide dos EUA. A principal preocupação vinculava-se à necessidade de evitar
mudanças bruscas e imprevisíveis, amenizando a autonomia dos fluxos financeiros
especulativos e potencialmente portadores de elementos desestabilizadores. Depois de 1944,
quando os acordos de Bretton Woods foram firmados, prevaleceu até 1971 um controle
relativo que acabou por privilegiar os fluxos de mercadorias e de investimento direto
mediante um sistema de taxas de câmbio fixas fortemente administrado.
O excesso de liberdade para os movimentos dos capitais, das duas primeiras décadas do séc.
XX, daria lugar a uma condução econômica estatal planejada de perfil anti-cíclico associada
ao controle social via harmonização. Dessa forma, o papel da demanda agregada, no plano
socioeconômico, passou a ser decisivo, o que implicou na elevação para o primeiro plano de
dois elementos desta macroestrutura, a saber, os gastos em consumo privado e as despesas
público-estatais. No que diz respeito à função do consumo neste modelo, tornou-se necessário
estabelecer uma estrutura institucional de “reforçamento” dos rendimentos do trabalho e de
elevação do nível de emprego.
O redimensionamento do Estado configurou-se como um dos principais componentes
estruturais do padrão de acumulação colocado em prática naquele período. Este
redimensionamento, por um lado, expressou os novos componentes de controle social
supracitado e, por outro, atribuiu ao Estado o papel de esfera produtiva no interior da divisão
41
social do trabalho da economia. Todavia, não corresponde integralmente, e nem poderia, ao
conceito de esfera produtiva tal qual aquela da categoria capital industrial como teorizado por
Marx (1986) em sua interpretação da reprodução capitalista. No padrão de desenvolvimento
dos anos dourados o Estado cumpre uma atuação de inspiração keynesiana, o que significa
dizer que, no plano econômico, o mesmo passa a se responsabilizar direta e indiretamente
pela efetivação de uma determinada taxa de investimento, constituindo-se, por conseguinte,
em fonte de estabilidade cíclica.
Além disso, o Estado passa a ser fonte de financiamento fundamental ao capital produtivo.
Tendo em vista a atrofia da esfera financeira e seu descolamento relativamente à esfera
produtiva, tal como se apresentou no período anterior à grande depressão, as amplas reformas
introduzidas pelo New Deal, e propagadas para a Europa e Japão, levaram a uma modificação
drástica da estrutura de financiamento da economia. Isso significou uma ampliação da atuação
estatal neste campo, uma vez que bancos, agências de financiamento e organismos de fomento
de caráter público/estatal foram criados. O próprio segmento privado do setor financeiro
passou por um processo de saneamento, ficando sujeito a legislações voltadas ao estímulo das
atividades produtivas. Esses dispositivos de ampliação do financiamento do setor produtivo
constituíram-se na outra faceta relacionada à importância adquirida pelo endividamento
público, como instrumento que possibilitava a consecução de políticas fiscais expansionistas
(déficit orçamentário) voltadas ao controle dos ciclos econômicos.
Neste contexto, o gasto público assume um significado relevante à dinâmica capitalista. Sem
sombras de dúvida, em meio à fase de prosperidade experimentada pelos países centrais, a
dívida pública torna-se um dos componentes da acumulação produtiva. Ao lado dos elementos
favoráveis à acumulação de capital, entre eles, o arrefecimento da luta de classes, a inovação
tecnológica e organizacional, o padrão de consumo de massas e a introdução das relações
capitalistas em novos espaços geográficos do planeta, a dívida pública cumpriu seu papel a
contento ao se transformar em fonte de estabilidade cíclica e de acumulação. Portanto, a
transferência de parte da riqueza e da renda para o Estado - e sua redistribuição sistêmica
integradora de um mecanismo reprodutivo favorável aos capitais privados na esfera não
financeira - foi tolerada sem maiores questionamentos até que o padrão de acumulação
começasse a se esgarçar. Isso começou a ocorrer no final da década de 1960.
42
Os primeiros sinais de reversão da expansão de cerca de três décadas surgem ao final da
década de 1960. Desde então, a economia capitalista passou a conviver com uma significativa
inflexão da taxa geral de lucro e dos níveis de acumulação gerados por uma grave crise. Em
paralelo, como conseqüências típicas dos processos recessivos, a redução das taxas de
investimento e crescimento foi acompanhada de resultados sociais amplamente negativos.
Destaca-se assim, entre outros, o aumento do desemprego e seu caráter crônico,
principalmente, nos países avançados da Europa ocidental e nos EUA (BRENNER, 1998).
Assim fica muito claro que o dispositivo “regulatório” tanto “harmonicista” quanto coercitivo
aplicado ao mundo do trabalho nos mais diversos países reduziu as resistências dos
trabalhadores à exploração, o que viabilizou a retomada do processo de acumulação e, por
conseguinte, dos níveis de lucratividade que o capitalismo veria desaparecer com a eclosão da
crise na década de 1970.
1.3. A crise dos anos 70 em perspectivas e suas saídas “internas” e “externas”:
impedimentos à acumulação ou à dominação? Um debate contraditório
Por volta do final dos anos 60 o boom econômico “virtuoso” dos anos dourados começou a se
deteriorar. O padrão de acumulação assentado em normas “regulatórias”, no planejamento
econômico e na harmonização entre as classes apresentava sinais de esgotamento. Assim,
como na crise agrária de 1873 e na crise de 1929, fortes restrições se impuseram à
continuidade do processo de acumulação da ordem capitalista regulada e “harmonicista”.
O esgotamento desse padrão criou um contexto socioeconômico de instabilidade e incerteza
quanto à trajetória societal. Tal fenômeno “problemático” suscitou diversas perspectivas para
sua explicação e soluções. Será que o sistema capitalista estaria atravessando um
ciclo/momento econômico e/ou institucional ou tecnológico desfavorável? A partir de um
determinado diagnóstico tal ciclo poderia ser corrigido mediante (i) políticas
macroeconômicas de regulação e planejamento de inspirações keynesianas e kaleckianas; ou
(ii) um novo modo de regulação institucional pautado no regulacionismo francês; ou (iii) a
conformação de um novo paradigma tecnológico de origem neo-schumpeteriana; ou ainda (iv)
novos rearranjos privados auto-regulados (“teóricos da especialização flexível”) ou regulados
43
por um Estado liberal, sob uma perspectiva neoclássica. Ou será que se estaria vivenciando
uma terceira crise estrutural
28
, como defendido por correntes marxistas, que poderia ser
solucionada, pelo lado do trabalho, por uma ruptura anti-sistêmica ou, pelo lado do capital,
por transformações socioeconômicas de grande envergadura que propugnaria um novo padrão
de acumulação?
Para os neoliberais
29
- liberais que não admitiam intervenções do Estado na atividade
produtiva -, a crise da década de 1970 não teve origem em problemas na demanda, mas, sim,
no poder excessivo dos sindicatos, que pressionavam tanto as empresas por maiores salários
quanto o Estado pelo aumento dos benefícios sociais. Isso, por sua vez, levaria à compressão
dos lucros, corroendo as bases da acumulação das empresas e acelerando a inflação. A partir
desse diagnóstico as propostas e ações neoliberais vão todas no intuito de desestruturar o
compromisso keynesiano/fordista dos anos dourados e engendrar uma nova forma de Estado.
Para tanto, fazia-se necessário (i) romper com o poder dos sindicatos, buscando restaurar a
taxa “natural de desemprego”; (ii) desregulamentar os diversos mercados, principalmente o
financeiro e o de trabalho; e (iii) reduzir as intervenções estatais no campo econômico e
social, ou seja, substituir a regulação keynesiana pela “livre concorrência”, com o Estado
assumindo uma dimensão mínima e forte para manter a ordem e a livre iniciativa.
Apesar da apregoada oposição dos diversos pensamentos teóricos supracitados, quase todos
eles, a exceção dos neoliberais e de algumas correntes marxistas,
[...] se baseavam nas evidências conjunturais [da crise dos anos 70], cujos
registros estavam fundados essencialmente nas dificuldades de realização
das mercadorias produzidas. Desse modo, terminava por rodar em círculos e
a construir identidades problemáticas: não realiza porque não há renda, ou
não há renda porque não realiza (OLIVEIRA, 1999, p.58).
28
Para Marx a crise real só pode ser explicada pelo movimento real e dialético da produção, materializado na
contradição entre capital e trabalho, e do conflito intercapitalista configurado a partir da concorrência e do
crédito capitalista.
29
O neoliberalismo nasceu na Europa, logo após a 2
a
Guerra Mundial, e teve como texto seminal o livro O
caminho da servidão de Friedrich Hayek. A Sociedade de Mont Pélerin foi o eixo de resistência dos pensadores
neoliberais os anos dourados do capitalismo, uma vez que tais ideólogos se reuniam de dois em dois anos, com o
intuito de reforçar o combate ao keynesianismo e ao solidarismo, buscando preparar as bases para um
capitalismo sem regulação estatal.
44
Por outro lado, o diagnóstico da crise baseado na insuficiência de demanda, como formulado
pelos kaleckianos e keynesianos, não se chocava completamente com o que postulava os
liberais intervencionistas que admitiam certas correções voltadas ao equilíbrio entre demanda
e oferta via rearranjos privados auto-regulados ou regulados por um Estado liberal (agências
reguladoras). Mesmo algumas correntes marxistas, em certa medida, para direcionarem
alternativas à crise, depois de efetuarem diagnósticos assentados em leituras d’ O capital, no
que se refere à lei da tendência decrescente da taxa de lucro e ao problema de realização,
adotaram uma mescla da estrutura teórica de Keynes e Kalecki (OLIVEIRA, 1999).
No campo liberal, os teóricos da especialização flexível, associaram a crise dos anos 70 à
insuficiência de demanda, diferentemente da visão neoliberal. Piore & Sabel, principais
representantes dessa visão, enxergavam a crise a partir da falta de demanda dos bens de
consumo duráveis, ou seja, crise do regime de acumulação fordista. Para eles a crise foi
provocada por dois elementos, quais sejam: (1) os choques exógenos e (2) a limitação da
procura por produtos padronizados. Os choques exógenos (acidentes ou erros), vinculados às
crises do petróleo de 1973 e 1979 e às políticas econômicas equivocadas, destruíram a
regulação da inflação e desestimularam o investimento, ocasionando a queda da produtividade
e do emprego. O segundo aspecto crítico, segundo tais autores, refere-se ao próprio
esgotamento da demanda, que se dá, por um lado, pela falência da possibilidade de
manutenção de uma procura por produtos com pouca opção de escolha e, portanto, altamente
massificados ou padronizados, e, por outro lado, pelo aumento da concorrência no mercado
internacional, provocado pela entrada de novos países industrializados. Dessa forma, tanto os
choques exógenos como os próprios limites da demanda contribuíram para a sua redução.
Emerge daí, portanto, uma procura por produtos artesanais, mais elaborados e exclusivos,
como opção aos produtos padronizados ofertados até então (PIORE & SABEL, 1984).
Para tal corrente, a crise poderia ser sanada pela assunção da especialização flexível baseada
em novas formas organizacionais e produtivas, vinculadas à diferenciação de produtos; à
introdução de técnicas de produção flexível; à descentralização interna da grande empresa; à
configuração de sistemas autônomos de PME´s; e às mudanças nos padrões de territorialidade
ligados a alocação de recursos. Ainda neste eixo, Corò (2001) observa que os sistemas de
pequenas e médias empresas, localmente circunscritas, especializadas em produtos ou
processos industriais singulares, não constituem apenas um fenômeno de natureza
45
conjuntural, ou uma anomalia da organização produtiva predominante. Ao contrário, é cada
vez mais forte, segundo Corò (2001), a idéia de que tais sistemas produtivos localizados,
especialmente os distritos industriais marshallianos (DIM’s), poderiam representar uma saída
para o impasse da produção em massa. Portanto, os DIM’s seriam uma das formas mais
adequadas da organização da produção pós-fordista. Garofolli (1994) também destaca o papel
do sistema baseado em PME’s, considerando-o como o modelo de desenvolvimento endógeno
alternativo à crise. Assim, os modelos de acumulação flexível, baseados em PME’s, como o
caso da terceira Itália, são, para tais autores, muito mais que casos particulares, mas uma
tendência à superação da rigidez fordista.
Em suma, para os “teóricos da especialização flexível”, o desenvolvimento endógeno, ou
desenvolvimento de “baixo para cima”, seria a saída mais viável e representaria um novo
modo de acumulação assentado em sistemas locais de produção que teriam capacidade de
agregar valor ao processo produtivo através da produção artesanal, da sinergia entre
trabalhadores e empresários, e das externalidades geradas pela aglomeração, resultando numa
contínua ampliação do emprego, do produto e da renda local.
A alternativa à crise, dessa visão liberal, portanto, seria construída através de um novo
rearranjo privado - ao molde pensado por Marshall - que levaria ao bem-estar social das
regiões, crendo, piamente, na capacidade, nas vontades e nas iniciativas dos atores de uma
comunidade empreendedora e solidária, que teria autocontrole sobre o seu destino e poderia
promover uma governança virtuosa (BRANDÃO, 2002 e 2004).
Na verdade, esta perspectiva é uma idealização do particular e do local e, em certa medida,
um retorno às idéias liberais marshallianas construídas em uma estrutura capitalista
concorrencial completamente diferentes da estrutura monopolista atual. Portanto, essa
alternativa à crise funciona muito mais como uma espécie de slogan destinado a criar um
sentimento de pseudocomunidade, como compensação da derrocada e da desintegração de
lugares importantes e significativos com as transformações em curso, do que uma alternativa
viável a um novo padrão de acumulação (BUSATO & PINTO, 2004 e 2005).
46
Para os neo-schumpeterianos
30
a crise seria uma manifestação periódica (ciclos ou ondas
longas), autodeterminada e autogerada associada ao esgotamento de um determinado
paradigma tecnológico, a força motriz do capitalismo. Tal interpretação da crise assenta-se no
velho empirismo que tem como um de seus principais representantes o economista russo N.
D. Kondratieff, que a partir da análise dos movimentos de preços de atacados em vários países
industrializados, detectou uma cronologia das flutuações longas. Para os schumpeterianos e
neo-schumpeterianos as ondas longas de ascendência e descendência (crise) seriam
determinadas pelas transformações do paradigma tecnológico.
A saída da crise, segundo os neo-schumpeterianos, dar-se-ia, pelo lado da oferta, a partir da
configuração de um novo paradigma tecnológico, tendo em vista que o paradigma da
microeletrônica não conseguiu reverter a queda da lucratividade do sistema econômico. Tal
paradigma novo proporcionaria uma nova fase de expansão do investimento e do produto.
Para eles, a via “revolucionária” de superação da crise seria a biotecnologia, ou a
bioeletrônica
31
, já que, através da engenharia genética, poder-se-ia ocorrer uma ruptura do
fluxo circular, tanto em termos das técnicas utilizadas como em termos de suas aplicações,
viabilizando a criação de novos organismos a serviço da produção de riquezas (PEREZ,
1986). Assim sendo, a biotecnologia, como inovação estrutural, levaria a uma fase de
obtenção de lucros acima do normal pelas empresas inovadoras e atrairia empresas
imitadoras, resultando na elevação do nível de riqueza.
Essa visão tem um caráter pragmático à medida que confunde, em linhas, a crise como uma
manifestação periódica, autodeterminada e autogerada. Percebe-se um esforço de
neutralização das principais determinações da crise, sendo esta um fenômeno estritamente
ligado ao paradigma tecnológico. Para tal corrente a ciência e a tecnologia (paradigma
30
A concepção neo-schumpteriana – que tem como principais representantes Fremann, Dossi, Winter e Carlota
Perez - está pautada na obra de Schumpeter, que interpreta o ciclo econômico a partir da inovação e da difusão, a
qual apresenta a seguinte dinâmica: em um determinado momento “inicial” todos os empresários estariam
obtendo “lucro normal” (reprodução simples), essa situação só seria modificada se um deles, através do seu
“instinto inovador”, implementasse determinada inovação. Desse modo, ele conseguiria obter lucros acima do
normal; tal atitude seria imitada pelos demais empresários, desencadeando uma onda de difusão via imitação
(fase de ascendência do ciclo) e, por conseguinte, ocorreria a expansão do investimento, incentivada por rendas
temporárias de monopólio obtidas pelo empresário inovador. Quando a difusão da inovação chegasse a seu
máximo, o lucro do setor tende a retornar a zero. Isso ocorria devido à sobre-capacidade engendrada pelo grande
número de imitadores, caracterizando a fase de declínio do ciclo econômico (SCHUMPETER, 1984).
31
A bioeletrônica é objeto de crescente interesse no desenvolvimento de novas tecnologias, via fabricação de
“biochips”, através da utilização de células com capacidade de memória cem mil vezes maior que os chips atuais
e maior velocidade de operação.
47
tecnológico) teriam uma lógica autônoma e apresentariam uma trajetória independente. No
entanto, a ciência e a tecnologia estão vinculadas às condições sociais do sistema econômico e
dependem do seu movimento reprodutivo.
O maior dilema da ciência moderna é que o seu desenvolvimento esteve
sempre vinculado ao dinamismo contraditório do próprio capital. Além do
mais [...] a ciência moderna não pode deixar de ser orientada para a
implantação, a mais efetiva possível, dos imperativos objetivos que
determinam a natureza e os limites inerentes ao capital, assim como seu
modo necessário de funcionamento sob as mais variadas circunstâncias. [...]
A obtenção da justa disjunção entre ciência e as determinações capitalistas
destrutivas é concebível somente se a sociedade como um todo tiver sucesso
em sair fora da órbita do capital e proceder um novo patamar – com
princípios de orientação diferentes (MÉSZÁROS apud ANTUNES, 1999, p.
122-123).
Para Lipietz (1989), um dos principais representantes da Escola da Regulação Francesa, a
crise seria um fenômeno orgânico do capitalismo em virtude do seu caráter intrínseco atrelado
ao movimento e ao funcionamento contraditório do sistema. A contradição estaria no âmago
da relação salarial, já que, sendo a taxa de exploração muito acentuada, existiria a ameaça de
uma crise de superprodução. Ao contrário, se a taxa é muito fraca, a possibilidade de sub-
investimento poderia se efetivar.
Nesse arquétipo teórico, a crise emergiria em virtude do descompasso temporal/histórico entre
as estruturas econômicas e os seus elementos de regulação
32
. Dessa maneira, a crise do regime
de acumulação fordista
33
, da década de 1970, delineou-se à medida que surgiram dificuldades
para a manutenção da estrutura macroeconômica keynesiana/fordista, em vista da queda da
produtividade, do aumento dos salários reais e do aumento da concorrência do setor
manufatureiro, elementos estes geradores da redução dos lucros (LIPIETZ, 1989). Para
Aglietta (1979), as condições gerais da crise somente são apreendidas a partir das leis de
regulação do capitalismo, pois estas satisfazem o princípio da invariabilidade e conformam
historicamente uma determinada relação salarial, implicando, por conseguinte, que a crise do
32
O modo de regulação inclui, entre outras coisas, as formas de determinação dos salários diretos e indiretos, de
concorrência e de coordenação interempresas e da gestão da moeda.
33
O regime de acumulação fordista foi estruturado a partir de acordos salariais coletivos, que viabilizaram a
demanda efetiva para produtos padronizados, e de um novo sistema de proteção social, que tinha como objetivo
manter o status de consumidor aos trabalhadores desempregados.
48
regime de acumulação fordista estaria associada à contestação dos fundamentos do modo de
regulação.
Vejamos os sinais do esgotamento apontados por Aglietta (1979): 1) A evolução da
organização do trabalho que, em sua aplicação cada vez mais mecânica, tendeu a provocar o
esgotamento das potencialidades produtivas e a renovar a insatisfação dos trabalhadores ao
processo de trabalho fordista; 2) O aumento da dependência do consumo do governo para
manter o nível de demanda em virtude da estabilização do consumo de massa; 3) A elevação
dos gastos sociais dos Estados provenientes de uma maior pressão social; e 4) A incapacidade
das políticas econômicas em conter a debilidade monetária manifestada através da inflação.
Os regulacionistas franceses delegam papel importante ao processo histórico para a apreensão
das crises. Para Boyer (1999) as crises maiores se sucedem; contudo, jamais se repetem
quanto ao seu formato, já que o capitalismo evolui em espiral, nunca passando pela mesma
configuração. As crises e conflitos, nesta dinâmica capitalista “inovativa” contemporânea,
marcada por uma notável irreversibilidade, são os momentos oportunos para reajustamentos
das formas institucionais. Assim, cada crise estrutural tende a ser original no exato
entrelaçamento das causas e mecanismos de transmissão.
Nesta linha, a saída da crise, segundo Aglietta (1979), passaria por uma nova forma de
institucionalidade - novo modo de regulação: neofordismo - criada a partir de uma nova
“relação salarial” coerente com as transformações das estruturas econômicas contemporâneas.
Isso só seria possível se a nova forma de regulação proporcionasse uma articulação entre os
custos sociais da força de trabalho - base da acumulação intensiva - e uma reestruturação do
consumo por meios coletivos. Boyer (1999) e Lipietz (1989) passam a incorporar, com maior
ênfase, o âmbito internacional, no processo de construção de um novo modo de regulação
articulado nacional e internacionalmente. Para eles, a crise poderia ser sanada a partir da
regulação das finanças internacionais, articulando-as aos compromissos nacionais voltados
para o crescimento econômico assentado na demanda doméstica. Para tanto, far-se-ia
necessário construir uma nova agenda política (modo de regulação), completamente renovada,
num duplo sentido: i) domesticar novamente as finanças e o mercado que devem se tornar
meios para garantir o bem-estar das sociedades; e ii) estabelecer novos compromissos
49
institucionalizados para engendrar o crescimento vinculado à exportação e ao mercado
interno.
A formulação regulacionista apresenta, em certa medida, os conflitos e os choques de
interesses de grupos organizados como delineadores da dinâmica do sistema capitalista de
produção, destacando as diferenças entre os aspectos econômicos e sociais e o caráter
intrínseco das crises a partir de um processo histórico. Para tal eixo teórico, a crise, apesar de
sua regularidade, poderia ser eliminada, pelo menos temporariamente, através de controles
instrumentais baseados no modo de regulação como peça-chave para contornar a crise, ao
mesmo tempo preservando o padrão atual das relações sociais. Desse modo, as relações
sociais contraditórias capitalistas deixam de ser um impedimento à continuidade sistêmica, do
que se pode deduzir que esta escola, ao delinear suas alternativas à crise, torna-se funcional
para a dinâmica excludente do capital, na medida em que busca a harmonização para a
retomada da acumulação, colocando a luta de classes num papel secundário (OLIVEIRA,
2004; BRAGA, 2003). Essa funcionalidade da teoria da regulação francesa ao capital foi
muito bem expressa por Braga:
Sinteticamente, a Teoria da Regulação apresenta, desde as origens, sua
vocação: representar, do ponto de vista teórico, o suposto destino dos
trabalhadores em colaborar inevitavelmente com a burguesia. Por intermédio
do reprodutivismo teórico, as determinações políticas da classe trabalhadora
são sacrificadas no altar das “necessidades sistêmicas” capitalistas. O
formalismo da análise expulsa, progressivamente, as referências aos
antagonismos sociais, eliminado a contradição: a relação salarial assume o
espaço da luta de classe (BRAGA, 2003, p. 228).
De outro lado, as leituras marxistas, no que tange à reflexão da crise do capital e suas
alternativas, podem ser divididas em dois grandes grupos: 1) os que a entendem apenas como
uma crise de acumulação; e 2) os que a compreendem como uma crise de dominação.
Vejamos os eixos dessas duas perspectivas.
Alguns dos que apreendem a crise do capital sob um eixo apenas da acumulação tende a
realizar leituras textuais d’ O capital sobre a lei da tendência decrescente da taxa de lucro e
sobre o problema de realização das mercadorias. Os partidários desse tipo de leitura, em certa
medida, “quase sempre se afastaram para uma linha de reflexão que privilegiava, sobretudo,
50
as saídas internas; [acabando por] reforçar as linhas de harmonização em vista das retomadas
de crescimento [e, por conseguinte, da dinâmica do capital]” (OLIVEIRA, 1999, p. 62).
As leituras marxistas, que apreendem a crise apenas a partir de problemas na acumulação,
argumentam que a crise ocorreria em virtude (i) das dificuldades de realização das
mercadorias, associadas ao subconsumo ou à superprodução, provocadas por desproporção
intersetorial, ou pela queda nas taxas de lucro médias da economia, e (ii) da leitura textual e
naturalizada da lei tendencial decrescente da taxa de lucro
34
. Tais análises críticas partem
quase sempre de uma lógica derivada do próprio capital.
Os problemas na realização das mercadorias (superprodução ou subconsumo), como um dos
processos originários da crise de acumulação, estariam associados a dois elementos, que não
necessariamente estariam interligados, a saber: (1) a desproporção
35
entre os setores
produtivos; e (2) a queda nas taxas de lucros médias na economia.
O primeiro elemento problemático à realização, a desproporção entre os vários ramos da
produção, seria originário do caráter não-planificado ou “anárquico” da produção capitalista.
Se algum ramo produtivo ampliasse a oferta de mercadorias acima do nível da demanda,
ocorreria uma superprodução setorial. Tal ramo, por sua vez, restringiria suas compras de
mercadorias dos outros setores, provocando uma superprodução também nestes últimos e
assim sucessivamente, gerando uma crise geral de superprodução (MIGLIOLLI, 1986;
TUGAN-BARANOWSKY apud SWEEZY, 1976). A origem desse tipo de crise poderia ser
eliminada pelo planejamento capitalista que funcionaria como uma saída “interna” à crise, o
que permitiria a moderação dos conflitos em prol do crescimento econômico e,
conseqüentemente, manteria a hegemonia do capital. Inclusive Sweezy, no trecho abaixo,
34
Alguns eixos marxistas ao adotarem uma visão naturalizada e mecânica da lei tendencial decrescente da taxa
de lucro foram levados a assumir a idéia de autodestruição do capital, ou seja, a teoria do colapso catastrófico.
Kautsky, por exemplo, escreveu, em 1891, que as “forças econômicas irresistíveis levam, com a certeza do
destino, a produção capitalista ao naufrágio. A substituição da ordem social existente por uma nova já não é
simplesmente desejável – tornou-se inevitável” (KAUTSKY, 1910 apud SWEEZY, 1976, p. 220). Esse viés, ao
adotar tal visão, incorreu numa perspectiva fortemente positivista e determinista, deixando de lado o método
materialista histórico e dialético que é a essência da perspectiva de Marx.
35
Tugan-Barnowsky foi um dos primeiros a utilizar os esquemas de reprodução expostos por Marx para provar
que a crise seria provocada pela desproporcionalidade setorial. No entanto, Tugan pode ser considerado um
“revisionista” de Marx, pois ele se utilizou de tal instrumental para rejeitar as explicações de Marx para a crise
(
SWEEZY, 1976).
51
critica, de forma irônica, a idéia de Tugan e seus discípulos de que a crise seria provocada
apenas pela desproporção setorial:
[...] se as crises são realmente causadas apenas pelas desproporções no
processo produtivo, então a ordem social existente parece estar a salvo, pelo
menos até que as pessoas se tornem suficientemente bem educadas e
moralmente evoluídas para desejarem uma ordem melhor. Enquanto isso,
não só não há necessidade de um colapso no capitalismo, como muito se
pode fazer [através do planejamento], mesmo sob o capitalismo, para
eliminar as desproporções, causa de muito sofrimento (SWEEZY, 1976, p.
188-189).
A queda na taxa de lucro média da economia, como outra leitura do problema crítico da
acumulação, seria derivada do próprio movimento do capital, pois à medida que ocorresse um
declínio da taxa média de lucro, proveniente principalmente do aumento da concorrência
intercapitalista, consubstanciar-se-ia uma redução do investimento que acabaria por provocar
uma redução nos níveis de emprego e salários, afetando a demanda por mercadorias e
deflagrando a crise de superprodução.
A visão de Robert Brenner sobre a crise dos anos 70, em seu ensaio A crise emergente do
capitalismo mundial... e no seu livro O boom e a bolha, coloca-o na perspectiva crítica de
acumulação atrelada à queda na taxa de lucro média, muito embora rejeite o fundamento da
lei marxista representado pelo crescimento da composição orgânica do capital. Para ele, a
crise seria proveniente da queda secular da lucratividade, oriunda do excesso de capacidade e
produção do setor manufatureiro mundial. Tal compressão dos lucros desse setor teria origem
no acirramento da competição internacional, pois à medida que os produtores da Europa
ocidental e do Japão começam a suprir frações cada vez maiores do mercado mundial,
inclusive com bens similares àqueles que já eram produzidos pelos Estados Unidos, surgem
redundância e excesso de capacidade e de produção. Para Brenner, o problema tendeu a se
agravar com a crise monetária internacional e com o colapso da ordem de Bretton Woods,
entre 1971 e 1973, uma vez que tanto o Japão quanto a Alemanha foram obrigados a enfrentar
uma maior concorrência internacional, haja vista as elevadas valorizações de suas moedas
frente ao dólar. Isso, por sua vez, gerou reduções em suas taxas de lucro, aprofundando ainda
mais a contração dos lucros do setor manufatureiro internacional. À medida que se
consubstanciava a redução das taxas de acumulação de capital, materializava-se a queda dos
níveis de investimento e, conseqüentemente, do emprego. Isso provocou uma queda na
52
demanda, o que, por sua vez, agravou o problema da realização, ampliando o problema do
excesso de capacidade e de produção (BRENNER, 1999 e 2003).
Ainda na perspectiva de Brenner, a explicação da crise acaba por recair no problema de
insuficiência da demanda atrelada à redução da taxa de lucro. O epicentro da crise seria
conformado no plano da concorrência do setor manufatureiro, principalmente, nos países
centrais; há, então, o deslocamento da luta de classes como o elemento principal do problema
enfrentado pelo capital. Ao deslocá-la para uma posição secundária do movimento crítico,
assumi-se a concorrência intercapitalista como fator causal da crise, abrindo novamente
possibilidades de saídas “internas” à mesma. Tais saídas podem ser representadas (i) por
arranjos nacionais e internacionais de controle da concorrência capitalista que estimulem a
demanda e (ii) por novos processos distributivos que levem à harmonização entre as classes;
garantindo assim, elementos de sustentação do domínio do capital.
Ainda numa perspectiva de crise de acumulação, algumas leituras marxistas utilizam a lei
tendencial decrescente da taxa de lucro de forma textual e naturalizada, uma vez que a crise
ocorreria em virtude da busca obsessiva dos capitalistas por mais-valia, tanto relativa quanto
absoluta. Na busca pela valorização, o capital, no âmbito da concorrência intersetorial, é
levado a reduzir ao máximo o uso da força de trabalho por meio do rebaixamento dos custos.
Então, a tendência à queda da taxa de lucro seria originária da crescente exploração do
trabalhador face aos ditames da concorrência intercapitalista. À medida que aumenta a
extração de mais-valia (exploração) maior seria a resistência dos trabalhadores; em vista dessa
maior resistência, ocorreria uma diminuição da mais-valia. De outro lado, esta situação amplia
a possibilidade de utilização de novas tecnologias, que resultará na ampliação da mais-valia
apenas à medida que haja uma diminuição da resistência dos trabalhadores. Atrelada a esta
dinâmica há uma tendência ao aumento da relação entre as máquinas e a mão-de-obra direta
(composição orgânica do capital) no processo produtivo. Isso, por sua vez, tenderia a
provocar uma retração relativa da própria mais-valia, gerando assim uma crise. Em suma, a
crise seria fruto de um crescimento mais elevado da composição orgânica do capital em
relação ao crescimento da taxa de mais-valia (SWEEZY, 1976).
Geralmente, em tal perspectiva do entendimento da crise, a concorrência ganha precedência
sobre a resistência dos trabalhadores ao processo de exploração. Ao adotar tal primazia do
53
elemento concorrencial, a crise tornar-se-ia auto-impulsionada pelos fatores econômicos. Isso
conduz a um determinismo e a uma naturalização da lei tendencial decrescente da taxa de
lucro. Essa visão inclusive abre margens para formulações mecanicistas e positivistas
extremadas de autodestruição do capital (teoria do colapso catastrófico) (OLIVEIRA, 1999).
Alguns marxistas, ao adotarem essa perspectiva de crise autogerada, esqueceram que Marx
(1986) ao lado da formulação da lei tendencial decrescente da taxa de lucro também
enumerou elementos “contrabalançadores” ou de contra-tendências - tais como, o
barateamento dos elementos do capital constante, a elevação da intensidade da exploração, a
compra da força de trabalho por um preço abaixo do seu valor-de-troca, dentre outros – que
podem manter reduzida a composição orgânica do capital ou elevar a taxa de mais-valia. As
contra-tendências podem, portanto, impedir ou anular a queda da taxa de lucro. Assim, tal lei
problemática ao capital assume um caráter tendencial.
Nenhuma lei em economia política pode deixar de ser tendencial, na medida
em que é obtida isolando um certo número de elementos e deixando de lado,
portanto, as forças contrapostas. Seguramente, será necessário distinguir um
grau maior ou menor de tendencialidade e, enquanto geralmente o adjetivo
“tendencial” subentende-se como óbvio, insistindo-se nele, pelo contrário, a
tendencialidade converte-se em uma característica organicamente relevante
(como neste caso, no qual a queda da taxa de lucro é apresentada como o
aspecto contraditório de outra lei, a da produção de mais-valia relativa, na
qual uma tende a suprimir a outra com a previsão de que a queda da taxa de
lucro será predominante). [...] Quando se pode imaginar que a contradição
chegará ao nó górdio, insolúvel normalmente, mas que exija a intervenção de
uma espada de Alexandre? [...] Quando a contradição econômica
transforma-se em contradição política e resolve-se politicamente [,através da
luta de classes,] em uma inversão da práxis (GRAMSCI, 1977, p. 1.279 apud
BRAGA, 2003, p. 216).
Será, então, que o capitalismo se perpetuaria como sistema social, em virtude dos elementos
de contra-tendência que proporcionariam saídas “internas” à crise? Gramsci, na passagem
acima, responde essa questão mostrando que a crise ao ganhar uma dimensão de totalidade
(contradições econômicas e políticas) abre a possibilidade de saídas “externas” à sociabilidade
construída pelo capital por meio da inversão de práxis.
Em suma, a visão marxista de crise do capital, como apenas uma crise de acumulação,
associada aos problemas de realização (subconsumo e/ou superprodução) ou vinculada à
54
leitura naturalizada e mecânica da lei de tendência decrescente da taxa de lucro, tende a
deslocar do eixo crítico da luta de classes, tornando-a uma variável externa, dependente e
passiva à dinâmica do capital. Isso acaba descartando a necessidade de transformação social
“para além do capital”. Ao adotar tal trajetória, essa leitura marxista se tornar economicista à
medida que privilegia o formalismo nas interpretações da crise em detrimento das análises das
contradições.
Abdicar da luta de classe como fonte originária [da crise] abria caminhos
para a busca de soluções orgânicas através do planejamento da repartição, da
harmonia intersetorial com a interveniência do capital financeiro e da
distribuição de rendas [...]. No fundo, o que se procurava deslocar como
anacrônico era a idéia mesma de uma revolução como alternativa, em nome
das reformas graduais. Não por acaso, estas paulatinamente ocupam esse
espaço, quando a aposta intelectual se desloca para a possibilidade de
eliminar a revolução pelo planejamento e pelos consensos possíveis, mesmo
que ao custo da exclusão dos setores de base (OLIVEIRA, 1999, p. 62-63).
Em outra direção, considerando-se agora a leitura do segundo grande grupo marxista, a crise
somente ocorre quando existem elementos problemáticos à dominação do capital. Ou seja,
uma crise de dominação, que deve ser tomada como uma categoria mais ampla do que a da
crise de acumulação, na medida em que incorpora a luta de classes como principal elemento
crítico, articulando-a aos fenômenos problemáticos à realização das mercadorias. Essa leitura
assume caráter, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo, com interações dialéticas, já que a
crise surge objetivamente no âmbito das relações de produção, associada à lei da tendência
decrescente da taxa de lucro, ampliando-se para todo o conjunto das relações societais
(culturais, políticas, éticas, intelectuais, ideológicas e morais), atingindo a dimensão de uma
crise de dominação do capital. Cabe ressaltar que a crise de dominação pode atingir graus,
formas e temporalidades diferenciadas em cada país face à correlação de força entre as classes
no nível nacional – haja vista o grau de desenvolvimento das forças produtivas, o nível de
intercâmbio interno e as estruturas políticas de cada país – e, também, ao grau de
hierarquização entre Estados nacionais mais fortes e mais fracos.
Ao alcançar o patamar de crise de dominação, esta adquire um caráter estrutural, isto é, de
totalidade à medida que desestabiliza, em certa medida, a hegemonia das classes dominantes,
abrindo a possibilidade de rupturas sociais e, por conseguinte, de novas alternativas
“societárias” fora do eixo do capital. Para Braga (2003, p. 215), apoiado em Gramsci, “a crise
[de dominação], nesse sentido, aponta uma ruptura, por vezes violenta, dos vínculos que
55
atavam as classes subalternas a todo um ambiente intelectual e moral [das classes
dominantes]. Um verdadeiro movimento de erosão das bases do consentimento”.
Na perspectiva marxista de crise de dominação, como uma crise do capital em sua totalidade,
a luta de classes assume papel fulcral tanto no movimento da crise como em suas saídas
“externas”, pois ela representa uma das principais restrições à acumulação e, também, pode
funcionar como o elemento propulsor de novas trajetórias sociais. Segundo Oliveira (1999, p.
62) “fora o próprio Marx quem já alertara para o fato de que as maiores restrições impostas à
continuidade do processo de acumulação são de natureza essencialmente política”, na medida
em que depende “da correlação de forças que se expressa na luta marcada pela resistência dos
trabalhadores à exploração”. Desse modo, a luta de classes está “na origem do processo
crítico e, em perspectiva, é dela que vai depender o seu desfecho, não havendo, portanto, nada
de natural ou mecânico no seu desenrolar”.
Assim, a efetivação da crise de dominação do capital só pode ser apreendida a partir de uma
dualidade, qual seja, ela se constitui quando os “de baixo” (classe trabalhadora) não quiserem
mais se subordinar à dinâmica do capital e os “de cima” (classe dominante) perdem certa
capacidade e instrumentos para manterem-se como dominação/hegemonia. Com isso,
materializa-se um ambiente de incerteza quando as trajetórias sociais.
Os ciclos/momentos econômicos desfavoráveis que adquirem dimensão de crise de
acumulação, vinculados à lei tendencial decrescente da taxa de lucro, são condições
necessárias, mas não suficientes para o surgimento de uma crise de dominação. Dito de outra
maneira, para que ela exista faz-se necessário que os elementos econômicos objetivos,
elevação do conflito distributivo entre lucro e salário, transbordem ao campo das contradições
políticas da luta de classes.
A possibilidade de um processo diacrônico, entre as dimensões críticas da economia e da
política, está vinculada à dificuldade, por parte do capital, em determinados momentos
históricos, em articular instrumentos de coerção e consentimento socioeconômicos
36
que, ao
36
Tais instrumentos ideológicos, culturais, intelectuais, morais e éticos, no âmbito da superestrutura, e de
controle do trabalho, no nível estrutural, viabilizam a integração passiva do trabalho à dinâmica do capital. A
56
mesmo tempo, eliminem os problemas na realização das mercadorias e reduzam a intensidade
da luta de classes. Numa situação como esta a classe trabalhadora é mantida numa condição
de “classe em si”, impedindo assim que se constitua numa “classe para si”. Quando o capital
consegue engendrar tal articulação estaria por eliminar, pelo menos temporariamente, a crise
em sua totalidade, quer dizer, tanto na dimensão da acumulação como da dominação.
A construção do arranjo institucional do compromisso keynesiano/fordista do pós-II Guerra
permitiu a eliminação da crise estrutural de 1929 em sua totalidade, já que criou um ambiente
de harmonização da luta de classes e engendrou um novo modelo de acumulação assentado na
demanda efetiva. Tal saída interna à crise do capital, de 1929, levou a um novo período de
elevada taxa de acumulação capitalista.
Em suma, a análise da crise do capital sob apenas uma das suas dimensões, a da acumulação,
acaba por privilegiar, em certa medida, as resoluções dos problemas de realização. Ao adotar
tal caminho subordinam o movimento da sociedade à dinâmica do capital e, em alguns
momentos, acabam por viabilizar alternativas socioeconômicas para o próprio capital. Em
outro campo, os que apreendem a crise do capital como um processo crítico de dominação
tendem a adotar saídas “externas” à sociabilidade ditada pela lógica do capital ainda que estas,
às vezes, não se evidenciem como uma possibilidade em determinados momentos históricos.
Os que se detiveram na crise como ruptura de um ciclo de dominação nem
sempre estiveram colocados à construção dos arranjos institucionais e de
outra natureza em vista da recomposição dos espaços do capital. Estiveram
sim bem mais atentos aos caminhos da revolução como necessidades
históricas ainda que esta, às vezes, não se evidenciasse como uma
possibilidade (OLIVEIRA, 1999, p. 62-63).
Após essa incursão nos eixos teóricos de apreensão da crise, faz-se necessário engendrar uma
análise sobre o fenômeno crítico do capital iniciado no final da década de 1960 e suas
dimensões atuais. Existe certo consenso, dentre as diversas correntes teóricas supracitadas, de
que a década de 1970 foi marcada por um esgotamento do modelo de acumulação. Esse
consenso deixa de existir no que se refere à duração dessa crise. Para muitos analistas críticos,
a crise estaria presente até os dias atuais. Será que existe uma crise estrutural do capital no
implementação desses são propugnados pelo Estado, pelos meios de “comunicação de massa”, pela “indústria
cultural” e por novas formas de organização da produção e de controle do trabalho.
57
momento presente? Parte-se aqui do constructo de que não existe hoje uma crise estrutural do
capital, como uma crise de dominação, mais sim o que existe é uma crise de acumulação,
associada ao problema de realização das mercadorias que teve início na década de 1960 e
perdura hodiernamente.
A crise, atrelada ao esgotamento do padrão de acumulação dos anos dourados, foi se
ampliando e transbordou, no fim de 1960, ao âmbito político da luta de classes,
principalmente, nos países centrais do capitalismo. Naquele momento, a crise deixava de se
configurar apenas como de acumulação para se materializar como de dominação, ganhado
assim um caráter estrutural e de totalidade em vários espaços nacionais. Os representantes do
capital nesses territórios, ao perceberem o momento de instabilidade de sua hegemonia,
contra-atacaram engendrando transformações socioeconômicas de grande envergadura que
acabaram por contornar a crise de dominação, por volta do início dos anos 80, através da
redução do poder da classe trabalhadora. Vale ressaltar que a cronologia histórica e as
dimensões da crise assumem características bastante diferenciadas nos países periféricos, pois
nestes a crise de acumulação, em certa medida, foi adiada pelas ditaduras militares, em
virtude de instrumentos de achatamento dos salários que retardaram temporariamente, até
finais dos anos 70, a queda da lucratividade. Ademais, nessa região a crise de acumulação não
se propagou para a dimensão de crise de dominação.
As amplas transformações construídas conseguiram arrefecer a crise de dominação, mas não a
crise em sua totalidade, uma vez que outros impedimentos à acumulação, atrelados
principalmente à concorrência capitalista inter e intra-setores, continuaram e continuam até os
dias atuais. A continuidade da crise decorre da dificuldade de fixação de um novo padrão de
acumulação que incorpore os diversos interesses organizados, em virtude das próprias
transformações (regulação liberal e reestruturação produtiva) engendradas pelo capital para
contornar a luta de classes. Vejamos, a seguir, de forma mais detalhada a dinâmica prática da
crise.
Por volta do final dos anos de 1960, as contradições do padrão dos anos dourados vão sendo
reforçadas à medida que (i) se elevava a contradição entre as classes, através da rearticulação
dos movimentos operários diante da redução do “exército industrial de reserva”; (ii) se
acirrava a concorrência inter e intra-setorial dos capitais, principalmente nos países centrais
58
(EUA, Alemanha e Japão) pela busca de apropriação dos segmentos mais lucrativos, o que
acabou gerando um excesso de produção e de capacidade; (iii) ocorreram aumentos nos
preços das matérias-primas, associados à redução dos investimentos da indústria petrolífera e
à maior pressão da OPEP por reajustes de preços que estavam defasados em valores reais,
provocando a elevação dos custos de produção (CLAUDIN, 1977 apud OLIVEIRA, 1999).
Esses foram os três fatores determinantes da queda observada nas taxas de lucro, a partir da
década de 1970, na origem da qual está o aumento da contradição de classes no âmbito da
produção, principalmente, entre o final da década de 1950 e início da década de 1980.
Naquele período, os movimentos operários (classe trabalhadora) rearticularam-se em
decorrência da redução do “exército industrial de reserva” provocada pelo crescimento
econômico dos anos dourados. Em boa parte do planeta os movimentos trabalhistas
realizaram uma ofensiva ao capital com características bastante peculiares. Dentre estas,
destaca-se a construção de movimentos/greves de base operária autônoma e, por conseguinte,
independentes, em certa medida, das instituições sindicais social-democratas que naquela
altura ainda “representavam” os trabalhadores na arquitetura do compromisso
keynesiano/fordista (consenso estabelecido entre a burocracia sindical e os patrões). Tais
iniciativas dos trabalhadores foram denominadas, num primeiro momento, de greves
“selvagens”, ficando depois conhecidas como movimentos autônomos. Não foram poucas as
ocupações das empresas por parte dos trabalhadores buscando remodelar as relações
tayloristas/fordistas
37
de trabalho e sua respectiva disciplina empresarial. Boa parte do
movimento grevista esteve em luta contra esta forma de organização da produção e sua rígida
hierarquização (BERNARDO, 2000; ANTUNES, 1999).
A contradição entre as classes se elevou, em maior ou menor grau, tanto na Europa,
principalmente nos países industrializados centrais, quanto na América, à época. Pelos idos de
1968, as ações dos movimentos trabalhistas de deslegitimação destes processos de trabalho
autoritários e avessos a formas democráticas de participação atingiram um dos seus pontos
culminantes. Passou-se a questionar alguns pilares constitutivos do capital, tanto no âmbito da
produção quanto, em certa medida, da superestrutura, particularmente aqueles relacionados ao
37
Segundo Antunes (1999, p. 37), esse processo produtivo caracteriza-se “pela mescla da produção em série
fordista com o cronômetro taylorista, além da vigência de uma separação nítida entre elaboração e execução.
Para o capital, tratava-se de apropriar-se do savoir-faire do trabalho, ‘suprindo’ a dimensão intelectual do
trabalho operário, que era transferida para as esferas da gerência científica”.
59
controle social. A ampliação da luta de classes e do poder do operariado, nos países
capitalistas desenvolvidos, perturbou seriamente o funcionamento do sistema capitalista,
constituindo-se no fator mais importante no desencadear da crise estrutural do capital. À
medida que o conflito distributivo passava a uma dimensão de luta de classes, verificava-se o
aumento da resistência dos trabalhadores à exploração que, por sua vez, provocava a queda da
taxa de lucro.
A crise transbordara ao âmbito das contradições políticas da luta de classes, ao longo da
década de 1970, tanto no plano da fábrica, quanto além dela, em menor grau, através dos
movimentos estudantis, dos grupos em luta por direitos humanos, da oposição à guerra do
Vietnã e dos movimentos de contracultura. À época verificava-se certa contestação da ordem
estabelecida, ou seja, o capital atravessava uma crise estrutural em sua totalidade equivalente
a uma crise de dominação. Vale ressaltar que a mesma foi menos intensa do que as crises
estruturais pretéritas, em função da influência social-democrata no interior dos movimentos
proletários e da absorção, por parte dos trabalhadores, da cultura e da ideologia burguesa do
american way of life.
Além da intensificação da luta de classes, outros dois fatores provocaram a redução na taxa de
lucro. O primeiro deles foi a elevação dos preços das matérias primas, principalmente, como
já mencionado, do petróleo. A OPEP começou, a partir de 1971, a pressionar por reajustes no
preço internacional do petróleo que estavam defasados. Os EUA aceitaram um reajuste de
cerca de 50% no preço internacional do petróleo, entre 1971 e 1973, buscando manter
relações estáveis com os países árabes e, principalmente, para viabilizar a indústria petrolífera
norte-americana cujos custos haviam se elevado. Em 1973, a guerra entre os países árabes e
Israel foi o estopim de um elevado aumento dos preços do petróleo, que quase quadruplicou
(SERRANO, 2004). Desse modo, os custos das matérias-primas se elevaram provocando uma
compressão nos lucros.
O segundo deles diz respeito ao acirramento da concorrência inter e intra-setorial,
principalmente, entre os capitais americanos, alemães e japoneses, a partir da segunda metade
da década de 1960, uma vez que os produtores da Europa ocidental e do Japão começaram a
suprir frações cada vez maiores do mercado mundial, inclusive com bens similares àqueles
que já eram produzidos pelos Estados Unidos. Tal situação acabou por reduzir ainda mais as
60
taxas de lucro que vinham se comprimindo em virtude da elevação da luta de classes. Assim,
havia se tornado difícil repassar aos preços a elevação dos custos de produção, face ao
excesso de produção. Com a intensificação da concorrência capitalista ocorreu a elevação do
grau de atrito entre os Estados nacionais industrializados (EUA, Alemanha e Japão), gerando
inclusive, a ruptura do arranjo institucional do sistema monetário de Bretton Woods
construído nos anos dourados.
Nesse contexto de desarranjo institucional cresciam os conflitos entre os Estados
desenvolvidos ao longo dos anos 70. A cooperação antagônica se desestruturou. O
acirramento das tensões dentro do bloco capitalista esteve eminentemente vinculado à
contestação da supremacia norte-americana no sistema-mundo capitalista por parte dos
capitais japoneses e alemães. Muitos analistas, na década de 1970, das mais diversos matizes,
afirmaram que a supremacia dos EUA estaria chegando ao seu fim e que estaria por emergir
um novo centro capitalista. Tais previsões não se confirmaram; ao contrário, o que se
verificou foi uma forte retomada da supremacia dos Estados Unidos, principalmente, no final
dos anos de 1970 com a política Volcker do “dólar forte”. Mais recentemente, pós-dissolução
do pacto de Varsóvia e do fim da União Soviética, os Estados Unidos têm ampliado seu
poderio econômico, político, militar e cultural.
Em suma, a crise foi conseqüência de um conjunto de manifestações econômicas e políticas
que caracterizaram um determinado período histórico, a saber: o aumento da contradição entre
as classes, articulado ao aumento da concorrência intercapitalista entre países, a partir da
década de 1960, e à elevação dos preços das matérias-primas. Tal processo crítico assumiu a
dimensão de crise de dominação a partir da ampliação dos movimentos de contestação, em
certa medida, da ordem capitalista estabelecida. Os representantes do capital, face à crise
estrutural (dimensão econômica e política), engendraram estratégias contra-ofensivas de
caráter preservativo, em seus diversos espaços nacionais, principalmente, nos países
desenvolvidos, pautadas principalmente na coerção e no controle sobre a classe operária,
provocando um intenso processo de desvalorização da força de trabalho, diferentemente da
estratégia “harmonicista” (compromisso keynesiano/fordista) adotada como alternativa à crise
de 1929. As estratégias de reação à crise, implementadas pelo capital, tanto no plano micro
(reestruturação da produção) quanto no macro (modelo de regulação liberal), em associação
61
com a dificuldade dos movimentos operários em construir um projeto hegemônico
38
contrário
ao capital, acabaram por arrefecer a crise de dominação. Como resultado, houve um
arrefecimento da luta de classes decorrente, sobretudo, da desvalorização da força de trabalho
e de sua contrapartida, o aumento do “exército industrial de reserva”, além do combate aos
sindicatos. No entanto, não ocorreu a eliminação da crise em sua totalidade, permanecendo no
plano econômico, uma vez que, por um lado, o processo de reestruturação produtiva, ao criar
um maior contingente de desempregados, acabou por reduzir a demanda agregada e, por
conseguinte, gerou problemas na realização das mercadorias. Por outro lado, a adoção do
modelo de regulação liberal (neoliberalismo) dificultou, e continua dificultando, a
consolidação de um novo padrão de acumulação que consiga incorporar os diversos interesses
organizados, ainda mais com a assunção dos rentistas à posição central na disputa entre
frações da classe dominante.
A regulação neoliberal, na verdade, ampliou a concorrência capitalista intra e intersetores e
abriu brechas para a assunção das finanças como importante motor da dinâmica capitalista,
provocando profundas transformações na natureza dos ciclos econômicos, tornando-os cada
vez mais curtos e instáveis, gerando crises financeiras recorrentes.
38
Os movimentos operários tiveram dificuldade em construir um projeto societal hegemônico contrário, face à
dificuldade de reduzir a influência do sindicalismo social-democrata no interior do proletariado e a dificuldade
de transbordar, com maior intensidade, a luta contra o controle e a hierarquia da produção fordista/taylorista para
a luta contra o capital (ANTUNES, 1999).
62
CAPÍTULO II
O CAPITALISMO PÓS-ANOS 70 E SUAS DIMENSÕES CONSTITUTIVAS:
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA, GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA E
TRANSFORMAÇÕES DAS RELAÇÕES INTERESTATAIS.
A instabilidade socioeconômica fora a marca da década de 1970. O capitalismo mergulhara
numa crise estrutural (de dominação) que significou um abalo nos mecanismos de controle
social e de acumulação. Em tal contexto crítico, o capital engendrou, nos mais diversos
espaços nacionais, principalmente onde a crise estrutural assumiu maior intensidade, uma
série de importantes transformações estruturais de grande envergadura, tanto no âmbito da
produção quanto no plano superestrutural do Estado e da ideologia.
Muito embora a globalização (transformações estruturais) seja apresentada pelos círculos
conservadores como o ingresso da humanidade em uma definitiva e abrangente era de
progresso e evolução inexoráveis, na verdade, contraditoriamente, ela nada mais representa do
que a síntese de elementos que tem por finalidade combater a crise estrutural do capital. Quer-
se afirmar, com isso, que a crise estrutural que concilia aumento da luta de classes e queda de
lucro acabou orientando os representantes do capital a buscarem meios alternativos de
enfrentamento da crise através do estabelecimento de um processo de desvalorização da força de
trabalho - arrefecendo assim a luta de classes - e do ajuste voltado à determinação de novas formas
de acumulação. Portanto, importantes modificações produtivas, socioeconômicas e institucionais
foram lançadas tendo em vista o enfrentamento da intensificação da luta de classes e, por
conseguinte, da queda da taxa de lucro.
O enfrentamento da crise estrutural processou-se a partir de duas dimensões que se articulam,
quais sejam: (i) no plano da produção, pela reafirmação do capital diante das lutas de classes
através da fragmentação da produção e, conseqüentemente, do trabalho, associado ao
processo de centralização e concentração do capital. Isso foi viabilizado pela reestruturação da
produção - que teve como balizadores a acumulação flexível e a adoção de novas formas de
organização das empresas - e pelas mudanças institucionais no âmbito nacional e
63
internacional; e (ii) no plano institucional, pela assunção do modelo de regulação neoliberal
que trouxe subsídios ao processo de fragmentação da produção e ao processo de retomada da
supremacia pelos Estados Unidos. Este modelo neoliberal centrou-se e centra-se na
liberalização dos fluxos comerciais e financeiros, na desregulamentação dos mercados de
trabalho, no forte ataque à estrutura sindical, na diminuição dos gastos públicos sociais e na
redução da intervenção estatal na economia (privatizações). Esta nova regulação institucional
abriu espaço para a globalização financeira e, por conseguinte, para o favorecimento do
rentista, principalmente nos EUA, elevando seus beneficiários a uma posição central na
disputa entre as frações da classe dominante nacional e internacional pela apropriação da
renda e da riqueza.
2.1. Reestruturação produtiva e reafirmação do capital: fragmentação do trabalho com
centralização e concentração do capital
No ambiente de acirramento da luta de classes (crise de dominação) da década de 1970, os
movimentos autônomos trabalhistas demonstraram a capacidade relativa dos trabalhadores de
controlar diretamente os movimentos reivindicatórios. Ficou patente, naquele processo de
luta, que os trabalhadores não possuíam apenas força bruta – como havia dito Taylor ao
estudar os tempos e movimentos do processo produtivo no final do séc. XIX -, mas que eram
dotados de inteligência e capacidade organizacional. No entanto, os instrumentos da nova
organização dos trabalhadores acabaram sendo transformados, pelos capitalistas, em meios
para a própria reestruturação produtiva. A nova forma de organização do trabalho, agora sob a
égide do capital, em associação com novas tecnologias eletrônicas e computacionais
(microeletrônica), se convertera na base para a reorganização capitalista sob novas formas de
gestão do trabalho, tais como, o toyotismo, a produção “enxuta”, a qualidade total, entre
outras formas similares de gestão do trabalho associadas ao padrão da acumulação flexível.
Tal processo teve por objetivo retomar o controle social - abalado pelo questionamento da
hierarquia e controle da produção fordista por parte dos trabalhadores -, abafando as lutas de
classes e restabelecendo níveis elevados de lucratividade.
A passagem abaixo, do livro Transnacionalização do capital e fragmentação dos
trabalhadores de João Bernardo, expressa muito bem esse processo:
64
Os capitalistas compreenderam então que, em vez de se limitarem a explorar
a atividade muscular dos trabalhadores, privando-os de qualquer iniciativa e
mantendo-os enclausurados nas compartimentações estritas do
taylorismo/fordismo, podiam multiplicar o seu lucro explorando-lhes a
imaginação, os dotes organizativos, a capacidade de cooperação, todas as
virtualidades da inteligência. Foi com esse fim que se desenvolveram a
tecnologia eletrônica e os computadores e que se remodelaram os sistemas
de administração de empresas, implantando-se o toyotismo, a qualidade total
e outras técnicas similares de gestão (BERNARDO, 2000, p. 29).
Além das novas formas de gestão/organização do trabalho, a reestruturação produtiva
vinculou-se também às transformações da produção tanto no âmbito setorial quanto nas
estruturas organizativas das empresas. Tais modificações consubstanciaram estratégias
defensivas, diante da crise estrutural, voltadas ao aumento da concentração e da centralização
do capital, articuladas a descentralização das operações (fragmentação da produção).
O processo de acumulação flexível, estruturado a partir de formas novas da gestão do
trabalho
39
, em associação com a introdução ampliada de novos padrões de automação
informatizada (base microeletrônica) e da teleinformática
40
, possibilitou o surgimento de
novas formas de organização industrial, combinando a desconcentração espacial da produção
tanto nacional como internacionalmente. Também faz parte dessa combinação a estrutura
mais horizontalizada da grande firma e a integração entre a grande empresa e as diversas
unidades menores subcontratadas em redes hierarquizadas, processo este denominado de
terceirização. Nesse contexto, as empresas, por um lado, necessitam de menor contingente de
força de trabalho e, por outro, apresentam maiores índices de produtividade (CHESNAIS,
1996; ANTUNES, 1999). Na verdade, estas mudanças de gestão da produção permitiram
aumentar a extração de mais-valia, tanto relativa quanto absoluta.
Esses novos elementos, relacionados tanto à gestão do trabalho quanto às novas formas de
organização industrial (“empresa-rede”), possibilitaram às multinacionais (empresas e bancos)
um maior controle e expansão de seus ativos em escala internacional. Ao mesmo tempo,
39
As novas técnicas de gestão do trabalho foram consubstanciadas a partir “do trabalho em equipe, das ‘células
de produção’, dos grupos ‘semi-autônomos’, além de requerer, ao menos no plano discursivo, o ‘envolvimento
participativo’ dos trabalhadores, em verdade uma participação manipuladora e que preserva, na essência, as
condições do trabalho alienado e estranhado” (ANTUNES, 1999, p 52).
40
“A teleinformática surgiu da convergência entre novos sistemas de telecomunicações por satélite e a cabo, as
tecnologias de informatização e a microeletrônica” (CHESNAIS, 1996, p.28).
65
também serviram para reforçar a ampliação das operações dessas firmas no âmbito mundial
por meio do crescimento, tanto das relações de terceirização entre firmas localizadas a
milhares de quilômetros umas das outras quanto da “deslocalização” de tarefas rotineiras nas
indústrias. Esta dinâmica, por um lado, levou a uma maior concentração e centralização do
capital, uma vez que os investimentos internacionais cruzados e as fusões-aquisições entre as
multinacionais, principalmente nos EUA, Japão e Alemanha, consubstanciaram uma elevada
concentração da oferta mundial, e, por outro lado, possibilitou a fragmentação de processo de
trabalho e as novas formas de “trabalho em domicílio” (CHESNAIS, 1996).
A centralização do capital é uma característica histórica e necessária ao padrão de
desenvolvimento capitalista. No entanto, em momentos de crise esse fenômeno tende a se
intensificar em vista das estratégias defensivas dos representantes do capital. Verifica-se que
tal tendência vem se materializando a partir dos anos 80, na medida em que se observa uma
grande elevação de fusões e aquisições, ampliando a concentração e a centralização dos mais
diversos ramos produtivos
41
. As indústrias já oligopolistas em seus espaços nacionais
ampliaram seu espaço de atuação internacionalmente. Para tanto, utilizaram os investimentos
externos diretos (IED) como forma de integrar, tanto horizontal quanto verticalmente, as
novas bases industriais nacionais separadas e distintas (op. cit., 1996).
Desse modo, verifica-se hodiernamente que os setores produtivos estão articulados
internacionalmente, ou seja, a partir de diversos espaços nacionais, diferentemente do que
ocorreu nos anos dourados do capitalismo, principalmente nos países centrais (EUA,
Alemanha e Japão), onde, grande parte da produção, era setorialmente articulada
internamente. Quer dizer que existia um maior balanceamento entre o departamento de
produção e de consumo dentro dos espaços nacionais. Vale ressaltar que o processo atual de
fragmentação da produção não significou redução no poder dos Estados centrais, já que o
controle do processo produtivo continuou ali instalado. Na verdade, quem perdeu poder foi a
classe trabalhadora, pois tal dinâmica fragmentou os processos de trabalho e,
conseqüentemente, provocou um rebaixamento dos preços da força de trabalho e um
arrefecimento da luta de classes. Chesnais, em seu livro A Mundialização do Capital, mostra,
41
Nessa nova fase, a concentração não ficou restrita apenas aos setores já historicamente concentrados, tais
como, a indústria de petróleo, a extração de metais não-ferrosos, petroquímica, dentre outros, e ampliou-se para
as indústrias de alta intensidade de P&D. Isso acabou reforçando o peso dos custos fixos dessas empresas, o que,
por sua vez, gerou uma necessidade de mercados cada vez maiores.
66
na passagem a seguir, como o capital se impôs diante do trabalho, num cenário de
fragmentação da produção:
Agora o capital está à vontade para pôr em concorrência as diferenças no
preço da força de trabalho entre um país – e, se for o caso, uma parte do
mundo – e outro. Para isso, o capital concentrado pode atuar, seja pela via do
investimento seja pela via da terceirização [...] (op. cit., 1996, p.27).
À medida que avançava o processo de reestruturação produtiva, o capital ficava cada vez mais
à vontade para se impor diante do trabalho. Esse maior poder do capital não pode ser
associado apenas ao plano da produção, mas também ao campo da institucionalidade, uma vez
que a assunção da regulação neoliberal - engendrada, no final da década de 1970, pelos novos
governantes Reagan nos EUA, Thatcher na Inglaterra e Khol na Alemanha - teve um papel
preponderante na viabilização da reorganização da produção ao combater os sindicatos e ao
implantar o processo de abertura dos fluxos financeiros e comerciais. De fato, a abertura
significou um elemento de fundamental importância à promoção da integração entre as bases
empresariais nos diversos países - quer seja através dos IED quer seja por meio das maiores
facilidades às importações e às exportações intra-firmas – e, por outro lado, abriu o caminho
às alternativas de lucros centradas em fundamentos financeiros.
As mudanças da estrutura produtiva, articuladas à regulação neoliberal foram estruturadas a
partir de(a): (i) uma enorme desregulamentação dos direitos do trabalho; (ii) grande
“precarização” e terceirização da força de trabalho, num cenário de aparecimento de
desigualdades salariais; (iii) destruição dos sindicatos classistas.
Para a classe operária e as massas trabalhadoras, o que o capital tende a
restaurar é o regime do “tacão de ferro” [...] [a partir] do ressurgimento de
formas agressivas e brutais de procurar aumentar a produtividade do capital
em níveis macroeconômicos, a começar pela produtividade do trabalho. Tal
aumento baseia-se no recurso combinado às modalidades clássicas de
apropriação da mais-valia, tanto absoluta quanto relativa, utilizadas sem
nenhuma preocupação com as conseqüências sobre o nível de emprego, ou
seja, o aumento brutal do desemprego (op. cit., 1996, p. 16-17).
Chesnais, em trecho acima, parece não perceber a funcionalidade e a importância do aumento
do nível de desemprego para o restabelecimento do controle social do capital. Na verdade, o
aumento da exploração ocorre em articulação com a redução do emprego da força de trabalho,
67
pois a reconstrução do “exército industrial de reserva” propiciou uma queda no valor trabalho,
possibilitando a ampliação da extração de mais-valia.
O crescimento espetacular do desemprego na Europa com conseqüências
semelhantes para algumas regiões periféricas, como aconteceu na América Latina,
enquanto em outras, como o foi o caso dos Tigres Asiáticos, via-se surgir uma
nova industrialização; quer dizer, reconstrução do exército de reserva de
trabalhadores nos países centrais e utilização deste mesmo exército historicamente
presente nos países atrasados com o objetivo de estabelecer a queda do valor do
trabalho (BALANCO, 1999, p. 18).
A reconstrução do exército de reserva de trabalhadores, associada à pujança da ideologia
neoliberal - centrada no individualismo e na liberdade burguesa – desarticulou as formas
clássicas de solidariedade. Isso, por sua vez, provocou fraturas nos vínculos classistas entre os
trabalhadores, implicando na precarização das ações coletivas e num engajamento
personalista e “egoísta”. Com isso, os trabalhadores, em boa medida, acabaram perdendo sua
identidade de classe, o que levou a um arrefecimento do processo de luta.
Por outro lado, as medidas voltadas à desvalorização da força de trabalho geraram efeitos
colaterais à acumulação produtiva, já que tais medidas provocaram uma redução na massa de
salários e, conseqüentemente, consubstanciaram uma redução da demanda agregada, tanto
pelo lado do consumo das famílias como dos investimentos, gerando assim, problemas na
realização das mercadorias. Tal dificuldade em realizar a produção criou limites à acumulação
produtiva. Para compensar essa limitação, os representantes do capital buscaram alternativas
nas finanças. Deslocando-se da produção, os capitalistas passaram a privilegiar o universo do
capital-dinheiro em um grau de autonomia muitas vezes superior àquele que se manifesta
quando o capital portador de juros atua somente como um apêndice da esfera produtiva.
Em suma, o processo de reestruturação produtiva (centralização e concentração do capital e
fragmentação do trabalho), vinculado à implantação da regulação estatal neoliberal,
consolidada nos anos finais da década de 1970, principalmente nos países centrais do
capitalismo, arrefeceu a luta de classes. O capital retomara o controle social. Entrementes, os
mecanismos utilizados para tal “feito”, provocaram restrições à acumulação no âmbito da
produção, o que levou a adoção, por parte dos capitalistas, de alternativas de acumulação
pautadas nas finanças.
68
2.2. A Globalização das finanças: o papel dos Estados Unidos na ampliação da
acumulação financeira
Desde o início da década de 1970, em meio a um cenário marcado pela crise estrutural, as
taxas de acumulação produtiva do capital nos países avançados começaram a apresentar
trajetórias de desaceleração. Nem mesmo as estratégias, no âmbito da produção, voltadas ao
aumento da produtividade, propiciaram a retomada da acumulação aos níveis pretéritos. Nesse
contexto de aumento das barreiras à valorização do valor originadas do aumento do conflito
entre capital e trabalho, configurou-se um excesso de capacidade e de produção no setor
manufatureiro, em decorrência da maior confrontação intercapital. Os preços do setor
manufatureiro mundial não foram capazes de se elevar na mesma proporção dos custos diretos
de produção. Essa dinâmica acabou gerando, ao longo da década de 1970, a desaceleração das
taxas de crescimento do produto
42
, da produtividade
43
e dos lucros nas economias capitalistas.
O avanço econômico do Japão e da Alemanha, nos anos de 1970, começou a confrontar a
supremacia econômica estadunidense no pólo capitalista, ameaçando a posição do dólar como
moeda de reserva internacional, entre 1977 e 1978. Ademais, a derrota no Vietnã, a crise dos
mísseis em Cuba e o fortalecimento militar da União Soviética e da China colocaram à prova
a força geo-política estadunidense. Diante de um quadro crítico estrutural, que se revelou
reticente no que se refere à recuperação das taxas de lucros do setor produtivo e no que tange
à expansão econômica e geopolítica dos Estados Unidos, importantes transformações
estruturais foram introduzidas com o objetivo de recolocar o capital norte-americano no
centro da economia-mundo. O processo de retomada da supremacia norte-americana foi
consubstanciado, por um lado, pelo processo de globalização financeira e, por outro, pela
“diplomacia das armas”, atrelada ao aumento da corrida armamentista e ao programa “guerra
nas estrelas” (TAVARES, 1997).
42
As taxas de crescimento da economia mundial desaceleraram fortemente. Entre 1958-73 e 1973-82, a taxa de
crescimento mundial, em média anual, caiu de 5,0% para 2,8% haja vista a queda na taxa de crescimento do PIB
em quase todos os países e regiões a exemplo dos Estados Unidos (de 4,3% para 2,0%), da Alemanha (de 4,9%
para 1,6%), da França (5,3% para 2,4%), do Japão (9,8% para 3,5%), da Oceania (4,9% para 2,2), da África
(4,7% para 3,5) e da América Latina (5,4% para 3,7%) (GONÇALVES, 2002, p. 111).
43
As taxas médias anuais de crescimento da produtividade, entre 1960 e 1973, nos Estados Unidos, no Japão, na
Alemanha, França e no Reino Unido, foram 2,1%, 9,2%, 5,0%, 5,0%, 2,9%, respectivamente. Estas taxas
desaceleraram fortemente na década de 1970. Entre 1974 e 1979, tais taxas caíram para 0,3%, nos EUA, para
3,0%, nos Japão, para 2,7%, na Alemanha, para 2,8%, na França, e para 1,1%, no Reino Unido (GONÇALVES,
2002, p. 90).
69
Os cânones keynesianos, implementados nos anos dourados do capitalismo, deveriam ser
quebrados para promover uma nova rota de acumulação, assentada na abertura de espaços à
acumulação financeira e no aumento da extração de mais-valia, tanto relativa quanto absoluta,
por meio da flexibilização do trabalho e da reestruturação produtiva conforme descrito na
seção anterior.
As amplas transformações introduzidas no plano da produção, conforme já descrito, não foram
capazes de alavancar a retomada da acumulação produtiva nos níveis dos anos dourados. Nesse
contexto, a superestrutura financeira envereda por uma trajetória de descolamento atrofiado
relativamente à esfera produtiva, destacando-se as alternativas de realização do lucro
financeiro, primeiro na forma de capitais de empréstimos e, depois, como capitais voláteis
especulativos, configurando-se a partir desse momento uma dinâmica de acumulação
predominantemente financeira (BALANCO & PINTO, 2004).
A nova superestrutura financeira levantada depois dos anos 1970 viabilizou a chamada
financeirização, quer dizer, a diminuição acentuada das restrições com as quais as empresas
se deparavam para obter um diferencial de rentabilidade positiva ao privilegiar as aplicações
financeiras em detrimento dos investimentos produtivos (SALAMA, 2000). A aplicação
financeira dos capitais é agora possibilitada por um universo multifacetado de ativos, agentes
e instituições creditício-financeiras que se constituíram em uma notável inovação frente aos
tradicionais agentes participantes desta esfera. Trata-se agora de corporações e governos,
representando um conjunto de agentes e instituições negociadores de papéis, remuneradoras
dos investidores a partir de uma riqueza não previamente existente, ressaltando, portanto, o
caráter acentuadamente especulativo em seu interior (McNALLY, 1999).
Vejamos agora de forma detalhada como a assunção do padrão de acumulação
predominantemente financeiro esteve associada à crise estrutural da década de 1970 e às
estratégias de saídas “internas” da mesma.
A economia norte-americana, ao final dos anos 60, enfrentava déficits astronômicos e
persistentes no balanço de pagamentos, em virtude dos investimentos externos crescentes,
associados ao Plano Marshall e aos gastos militares no exterior com a Guerra do Vietnã. Esses
70
dois elementos, e mais a ingente elevação da quantidade de petrodólares no mercado
financeiro europeu, produziram um forte aumento na liquidez do dólar nos mercados
internacionais, provocando a “crise do dólar” na década de 1970. Na verdade, desde o início
dos anos 60, o padrão cambial do dólar-ouro, firmado em Bretton Woods, começava a dar
sinais de precariedade. Segundo Eichengreen (2000, p. 160), em 1960, “pela primeira vez o
passivo monetário dos Estados Unidos no exterior ultrapassou as reservas norte-americanas de
ouro” e, em 1963, “o passivo norte-americano junto a autoridades monetárias externas”
também ultrapassou suas reservas em ouro. A paridade estabelecida entre o ouro e dólar
estabelecida em Bretton Woods estava sob suspeita.
Desde 1947, o economista Robert Triffin já vinha alertando para a instabilidade dinâmica do
sistema de Bretton Woods à medida que aumentava, nos Estados Unidos, a geração de
reservas mediante a acumulação de passivos oficiais no exterior sobre cada vez menos ouro.
Isso causava uma instabilidade no padrão dólar-ouro, conhecida como “dilema de Triffin”, já
que
[...] acumular reservas em dólares era algo atraente apenas na medida em que
não houvesse dúvidas sobre sua conversibilidade em ouro. Mas, depois que
os saldos em dólares do exterior cresceram muito em relação às reservas
norte-americanas de ouro, a credibilidade desse compromisso poderia ser
colocada em dúvida. [...] Se alguns credores estrangeiros procurassem
converter suas reservas, as decisões destes poderiam produzir o mesmo
efeito de uma fila de correntistas às portas de um banco. Outros entrariam na
fila por temer que elas fossem fechadas (op. cit., 2000, p. 160).
O crescimento do comércio e da renda nos principais países europeus - que passaram à
condição de superavitários -, a conversibilidade das contas correntes e a gradativa redução das
restrições à mobilidade de capitais levaram a uma encruzilhada, a saber, as políticas
econômicas nos Estados Unidos deveriam preservar a paridade dólar-ouro ou garantir as
medidas internas expansionistas. Diante de tal tensão, os EUA não hesitaram em eleger os
interesses domésticos como prioridade (CUNHA, 2003; EICHENGREEN, 2000).
Em face disso, tornou-se inevitável a ruína do sistema monetário de Bretton Woods, de
relativa rigidez das taxas de câmbio e de taxas de juros fixadas em patamares reduzidos. Tal
resultado possibilitou ao governo norte-americano praticar políticas monetárias expansionistas
e keynesianas de déficits orçamentários “visando, de uma só vez, estimular o crescimento
71
doméstico, desvalorizar o dólar para ajudar na competitividade do setor manufatureiro e
depreciar as reservas de dólares mantidas no exterior por governos e indivíduos estrangeiros”
(BRENNER, 2003, p. 69).
O financiamento dos déficits, tanto orçamentários quanto no balanço de pagamentos, do
governo norte-americano, foram realizados a partir do aumento da dívida pública. Para tanto,
foi de fundamental importância o crescimento da mobilidade de capital com o intuito de
captar capitais forâneos e repatriar parte do capital dos Estados Unidos que haviam se
deslocado para a Europa. O aumento da dívida pública norte-americana, nesse primeiro
momento, facilitou os planos produtivistas de retomada do crescimento da economia e, ao
mesmo tempo, fortaleceu os interesses financeiros domésticos dos principais bancos do país.
As economias avançadas, principalmente a dos Estados Unidos, em meados da década de
1970, recorreram uma vez mais, agora excepcionalmente, aos déficits keynesianos, em larga
escala, que geraram intenso crescimento da dívida pública, possibilitando a superação pelo
menos temporária da crise do petróleo através do subsídio à demanda. Contudo, o remédio
keynesiano não limpou o caminho para novas expansões, pois perpetuou o excesso de
capacidade de produção combinada com elevação de preços, gerando estagflação.
Nos anos finais da década de 1970, mais especificamente entre 1977 e 1978, o dólar
apresentava sinais evidentes de sua fragilidade como unidade de reserva de valor em escala
mundial. As estratégias norte-americanas, ao longo dos anos 70, de incorrerem em sempre
maiores déficits orçamentários e em conta corrente para garantir a expansão e a elevação da
competitividade do setor manufatureiro, geraram uma forte desvalorização do dólar, chegando
ao ponto crítico de questionamento da própria posição do dólar como moeda-chave da
estrutura financeira internacional (OLIVEIRA, 2004; BRENNER, 2003).
Nesse contexto crítico de “crise do dólar”, o presidente Carter decidiu adotar uma mudança de
sinal na sua política interna e externa por meio de medidas monetaristas voltadas ao aperto da
base monetária e aos ajustes do “lado da oferta”. A valorização do dólar, em 1979,
implementada de forma unilateral pelo governo dos EUA, a denominada política Volcker,
teve como objetivo estratégico enquadrar os países sócios e os principais competidores
72
econômicos do mundo capitalista. Tal política foi centrada na elevação das taxas de juros dos
Estados Unidos que propiciou um direcionamento dos fluxos de capitais da Europa, Japão e,
principalmente dos países subdesenvolvidos, para os Estados Unidos, já que outrora este era o
principal exportador de capitais. Esta ação permitiu o equilíbrio do balanço de pagamentos,
posto que o fluxo de capital oriundo do exterior mostrou-se suficiente para cobrir os déficits
crescentes. Por essa razão, a valorização do dólar em 1979, como um típico ato de força,
acabou por repercutir sobre os mais diversos espaços nacionais, atingindo diferentes
instancias “regulatórias” regionais. A política Volcker, por exemplo, praticamente decretou o
default da maioria dos países latino-americanos na década de 1980.
O (des)arranjo institucional entre Estados - provocado pelo fim do sistema financeiro
internacional “regulado”, em 1973, e pela política do dólar forte adotada, em 1979 – acabou
abrindo espaço para o reflorescimento daquela fração da classe dominante do sistema
capitalista, os rentistas, que fora mantida sob controle relativo durante o padrão de
acumulação dos anos dourados. Isto porque, o novo ambiente estabelecido para a recuperação
do controle social e da acumulação, muito embora se apresentasse eficiente de per se, ao
mesmo tempo abrira caminho inapelavelmente para a prevalência da acumulação em seu
caráter financeiro, o que, por sua vez, passou a limitar a acumulação mediante a reativação do
capital produtivo.
Características inéditas relevantes foram consolidadas como elementos dessa nova arquitetura
financeira, principalmente nos EUA na década de 1990. A primeira delas, relacionada à
tomada de decisão dos proprietários do capital e dos consumidores de alta renda, corresponde
ao fenômeno denominado por Chesnais de “efeito mercado acionário”: este tem dois
componentes, a saber, um “efeito-renda”, que financia o consumo com base em dividendos e
juros, e um efeito “posse de patrimônio”, que patrocina despesas apoiadas em antecipações de
ganhos financeiros futuros (CHESNAIS, 2001).
Nesta nova fase do capitalismo, a liquidez absoluta adquire status de meta exclusiva dos
investidores, assegurando, por isso, um comportamento distintivo relativamente ao mercado
financeiro tradicional. Se, no passado, o interesse primordial era o recebimento de dividendos,
no presente se busca a liquidez a mais ampla possível. Este propósito é viabilizado por
intermédio da apropriação de excedentes bursáteis mediante alternativas amplas de escolhas
73
das aplicações, as quais podem ser encaminhadas instantaneamente para os mais diferentes
espaços intra e internacionais. É por essa razão que as finanças exigem mercados financeiros
amplos, onde as transações ocorram livremente em busca de revalorização de títulos e
recomposição de portfólios (op. cit., 2001).
A segunda característica, neste novo padrão, diz respeito ao papel crucial da ampliação do
endividamento do setor público – que outrora fora importante instrumento da acumulação
produtiva - para a consolidação do padrão de acumulação financeira. A elevação, na década
de 1980, do endividamento público do Japão (72,1% do PIB), da União Européia (63,0% do
PIB) e, principalmente, dos EUA (68,7% do PIB) pode ser explicada à luz da importância da
dívida pública na manutenção e ampliação da acumulação capitalista. Nesse contexto,
verificou-se um forte crescimento da participação dos títulos do Tesouro norte-americano na
formação da riqueza financeira - em virtude da grande liquidez de que são dotados -
demandados por agentes privados estadunidenses, como também de outros países
(BELUZZO, 1999).
A recuperação da acumulação, via finanças, não fica apenas restrita aos espaços nacionais
centrais, estendendo-se também aos países periféricos, conformando uma nova relação entre
as nações. A nova arquitetura das finanças internacionais, correspondente a esta lógica,
estrutura uma nova face da chamada “exportação de capitais”. Por conta da adoção dos
procedimentos “desregulatórios” de estirpe neoliberal, o movimento dos excedentes de
capitais, cujos proprietários optam por não transformá-los em investimentos produtivos,
torna-se muito mais fácil. Parcela significativa da chamada liquidez financeira do mercado
internacional flui sem obstáculos entre os países centrais e os países atrasados, sobretudo, na
forma de aplicações especulativas.
Ao mesmo tempo, praticando a arbitragem, tais capitais especulativos não estabelecem prazos
nem critérios definidos para sair dos mercados nacionais, principalmente dos países
periféricos. E quando o fazem, em função de melhores oportunidades em outras regiões do
planeta ou em decorrência da deterioração das contas externas dos países onde se encontram,
deixam um rastro de ataques especulativos que provocam crises econômico-financeiras
agudas. Esta realidade é enfrentada não apenas pelos países latino-americanos, mas também
74
por outros países ditos emergentes, como foi o caso da crise de 1997 nos novos países
industrializados do sudeste asiático.
Neste ambiente, a continuidade do pagamento do serviço da dívida e, ao mesmo tempo, a
remuneração generosa do capital estrangeiro especulativo, colocam os países periféricos numa
posição funcional ímpar no escopo da reprodução da acumulação financeira. Esta
funcionalidade os obrigam a implementar políticas de ajuste macroeconômico de forte
contensão do nível interno de atividade, haja vista as elevadíssimas taxas de juros reais
necessárias para manter tal modelo. Paralelamente, o crescimento do endividamento interno,
mediante a oferta de títulos públicos a juros generosos ao capital financeiro, se transformou
em uma componente cotidiana deste processo.
O avanço dessa acumulação financeira provocou a desaceleração do nível de atividade da
economia mundial, inclusive nos países capitalistas avançados, tais como, Japão e União
Européia, que enfrentaram taxas de crescimento reduzidas durante as décadas de 1980 e 1990.
A exceção ficou por conta dos EUA, particularmente na segunda metade dos anos 90, em
virtude dos seus ganhos de senhoriagem sobre o capital financeiro nacional e internacional,
das políticas keynesianas parciais configuradas a partir de gastos bélicos e, principalmente, da
“bolha” do mercado acionário norte-americano que alimentou o boom econômico – o
denominado “efeito mercado acionário”. À época, boa parte do mainstream econômico
acreditava que a hipótese de “bolha” financeira era uma falácia e que, por sua vez, o
crescimento econômico era fruto dos elevados ganhos de produtividade da “Nova
Economia”
44
que estaria propiciando o aumento das rendas – inclusive dos lucros - e, por
conseguinte, impactando na elevação dos preços das ações. Inclusive, até o Presidente do
FED, Alan Greenspan, um dito keynesiano, foi seduzido pela idéia da Nova Economia e
declarou, em 1999, que:
Algo especial aconteceu à economia americana [...] As sinergias que se
desenvolveram, em especial entre as tecnologias de microprocessamento, de
laser, fibras óticas e satélites, dramaticamente elevaram as taxas potenciais
44
A “Nova Economia” estruturava-se a partir das novas tecnologias de comunicação e de informação e de suas
respectivas indústrias (TIC). Em meados da década de 1990, muitos economistas apologéticos acreditavam que
essa nova estrutura econômica estaria criando uma nova forma estrutural de acumulação capitalista, na qual a
riqueza não mais seria originária do trabalho manual e sim do trabalho intelectual que teria na ciência, na
tecnologia e no capital humano suas fontes geradoras.
75
de retorno em todos os tipos de equipamento incorporando ou utilizando
essas novas tecnologias. Além disso, as inovações em tecnologia de
informação começaram a alterar a maneira como fazemos negócios e
criamos valor, com freqüências de forma que não eram de imediato
previsíveis menos de cinco anos atrás (GREENSPAN apud BRENNER,
2003, p. 244).
O otimismo a respeito da Nova Economia como desencadeadora de uma nova era econômica
não durou muito. A dura realidade do “estouro” da bolsa de Nova York, em 2000,
desmanchou no ar a riqueza criada de forma fictícia
45
. Na verdade, a expansão norte-
americana, da segunda metade da década de 1990, não foi sustentada pelos ganhos de
produtividade do setor de tecnologia e sim pela “exuberância irracional” da criação de capital
fictício no mercado acionário dos Estados Unidos e de seus efeitos sobre o consumo e o
investimento privado. “O mercado de ações veio a exercer [...] um maior impacto na
economia real do que a economia real no mercado de ações [...]. Mas a economia podia
desafiar a atração gravitacional dos retornos reais sobre o investimento apenas por um tempo”
(BRENNER, 2003, p. 253).
Marx, já em sua época, desenvolvera uma análise sobre o processo de fetichização extremada
do dinheiro, proveniente da criação de capital fictício. Segundo ele, isso acontece quando o
capital financeiro assume certa autonomia, pelo menos temporária, em relação ao capital
produtivo – único capaz de gerar a mais-valia. Nas palavras de Marx este processo ocorre
[...] porque o aspecto dinheiro do valor é sua forma independente e tangível,
que a forma D-D’, cujo ponto de partida e de chegada são o dinheiro real,
expressa de modo mais tangível a idéia de ‘fazer dinheiro’, principal motor
da produção capitalista. O processo de produção capitalista aparece somente
como um intermediário inevitável, um mal necessário para produzir
dinheiro. É por isso que todas as nações submetidas ao modo de produção
capitalista são tomadas periodicamente da vertigem de desejarem produzir
dinheiro sem a intermediação do processo de produção (MARX apud
CHESNAIS, 2001, p. 56).
45
“Ao final de 2001, o índice Nasdaq dominado por empresas de tecnologia e de Internet, sede central da
disparada das ações, tinha decrescido em 60% de seu pico do início de 2000. O S&P 500 era território de
especulação, caindo em mais de 20% de seu ponto alto. Cinco trilhões em ativos desfizeram-se como fumaça”
(BRENNER, 2003, p. 315).
76
O boom da economia norte-americana da década de 1990, sustentado pelo capital fictício do
mercado acionário na Nova Economia, foi mais uma vertigem dos capitalistas em suas
tentativas de criar dinheiro sem a presença da produção. Tal vertigem começou a se dissipar
com o colapso da bolsa Nasdaq em 2000. Com o “estouro da bolha” acionária iniciou-se um
processo de recessão nos Estados Unidos em virtude da queda dos investimentos, haja vista a
inversão do efeito propriedade (redução nos gastos e dos empréstimos das empresas e das
famílias) e o excesso de capacidade, legado da economia da bolha (BRENNER 2003;
SERRANO, 2004).
A desaceleração da economia mundial, a partir dos anos 1970 até os dias atuais, a exceção dos
Estados Unidos na década de 1990, o caráter errático do crescimento do PIB mundial e as
crises financeiras foram características econômicas do padrão de acumulação dominado pelas
finanças. Outra característica marcante fora as transformações políticas no âmbito das
relações entre os Estados-nações em vista do maior controle dos Estados Unidos sobre os
demais países e dos conflitos intra-nacionais devido aos novos rumos das estratégias públicas
frente ao novo poder das finanças.
2.3. Economia política internacional contemporânea: alguns aspectos do debate acerca
do Estado-nação, do “Império” de Hardt e Negri, das instituições “supranacionais’ e das
dimensões e contradições do “novo imperialismo”
A compreensão da economia política internacional atual perpassa pela análise das dimensões
constitutivas das relações entre os Estados-nações num contexto capitalista de globalização
das finanças e de reestruturação produtiva. Na verdade, as relações entre os Estados são
configuradas a partir da posição hierárquica em que cada Estado se insere na economia-
mundo. Tal posicionamento de “comando” depende da configuração intra-estatal das forças
produtivas, da divisão do trabalho e do intercâmbio interno. Marx e Engels, em passagem a
seguir do livro Ideologia alemã, já tinham alertado para a importância das formações sociais
distintas intra-estatal como fator fulcral no entendimento das relações inter-estatais:
As relações entre umas nações e outras dependem do estado de
desenvolvimento em que se encontra cada uma delas no que concerne às
forças produtivas, à divisão do trabalho e ao intercâmbio interno. Tal
princípio é em geral conhecido. Entretanto, não apenas a relação de uma
77
nação com outras, mas também toda estrutura interna desta mesma nação,
dependem do grau de desenvolvimento de sua produção e de seu intercâmbio
interno e externo. O quanto as forças produtivas de uma nação estão
desenvolvidas é mostrado da maneira mais clara pelo grau atingido pela
divisão do trabalho [...] (MARX & ENGELS, 1999, p.28-29).
Antes de analisar as relações interestatais contemporâneas, faz-se necessário, em primeiro
lugar, apreender uma breve análise do papel e das funções do Estado-nação no modo de
produção capitalista. Tal intento se constitui numa tarefa, em certa medida complexa, mesmo
sendo um breve panorama da problemática do Estado. Lênin em conferência alertara sobre a
dificuldade do entendimento sobre tal problemática:
[...] A questão do Estado é uma das mais complexas, mais difíceis e, talvez,
a mais embrulhada pelos eruditos escritores e filósofos burgueses. [...] Todo
aquele que quiser meditar seriamente sobre ela e assimilá-la por si, tem de
abordar essa questão várias vezes e voltar a ela uma e outra vez, considerar a
questão sob diversos ângulos, a fim de conseguir uma compreensão clara e
firme (LÊNIN apud CODATO & PERISSINOTTO, 2001, p. 01).
A compreensão da realidade (modo de produção capitalista) passa pelo entendimento das
contradições de classe, do papel ativo que o Estado tem na regulação dos conflitos de classes
e das relações entre a classe capitalista e o Estado. Tarefa bastante complexa é que não se
pretende esgotar aqui, uma vez que este não é o eixo central desta pesquisa. Para tanto, adota-
se neste trabalho a concepção marxiana de Estado assentada num enfoque antideterminista,
isto é, uma relação dialética entre as relações de produção e o Estado (um dos elementos da
superestrutura), entrelaçados num todo, com a centralidade das relações sociais de produção
configurada pela luta de classes. Dessa forma, em Marx, o Estado não é reduzido a uma
estrutura econômica, nem, por outro lado, o Estado tem o poder de determinar, de forma
autônoma plena, a realidade social de produção. Na verdade, para Marx e Engels, a estrutura e
a função do Estado são reflexos das lutas e contradições históricas entre as classes capitalistas
e trabalhadoras e suas respectivas frações. Sabe-se que ao adotar tal concepção de Estado
marxiana está-se adentrando por um dos debates “mais pantanosos do marxismo”. O cuidado
aqui é o de não ficar preso nesse emaranhado teórico sobre o papel do Estado.
Apesar do aparente antagonismo, ao longo da história, entre o capital e o Estado, esta disputa
só é realmente conflituosa quando os capitalistas são considerados de forma individual.
Efetivamente, o que existe é uma dialética “virtuosa e feliz” entre Estado e capital, na medida
78
em que o Estado, desde sua formação, entre outras coisas, funcionou e funciona como
regulador precípuo da acumulação capitalista através da regulamentação e controle da
circulação do dinheiro, do emprego/desemprego da força de trabalho, da dívida pública e da
garantia da propriedade privada. Para Marx e Engels (1998, p. 03) “o executivo no Estado
moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”.
Isto quer dizer que o Estado, embora contrarie, às vezes, os interesses imediatos dos
capitalistas individuais, atua em prol, no longo prazo, dos capitalistas como coletividade.
Funciona, assim, como um aparelho de regulação e coerção dos conflitos tanto entre as
frações da classe dominante quanto entre as classes capitalista e proletária.
Tal dialética virtuosa assume diferentes formas ao longo das diferentes fases do capitalismo.
Na fase da acumulação originária, pré-capitalista, entre os séculos XV e XVIII, o Estado
absolutista europeu presidiu formas de violência extra-econômicas para abrir espaços para o
capitalismo através da expropriação e expulsão de parte do povo do campo. Quer seja,
transformando “os pequenos camponeses em trabalhadores assalariados, e seus meios de
subsistência e de trabalho em elementos materiais do capital”, quer seja criando, “ao mesmo
tempo, para esse último seu mercado interno”, separando radicalmente os produtores
campesinos dos seus meios de produção (MARX, 1985, p.283). O Estado funcionou, também,
como garantidor do contrato social/propriedade privada por meio do seu poder de polícia,
ensejando sustentar e ampliar a acumulação capitalista.
Ao longo das mudanças históricas e do contexto reconhecidamente diferente das condições
analisadas por Marx e Engels, o debate acerca do papel do Estado no marxismo foi assumindo
duas tendências diferenciadas: uma ótica instrumentalista (funcionalista) e outra
estruturalista, ambas derivadas de uma ampla gama de posições. Na perspectiva
instrumentalista o Estado funciona como um “instrumento nas mãos das classes dominantes,
ou, mais concretamente, de suas variadas frações burguesas”, por outro lado, na ótica
estruturalista, o Estado “como nada mais do que algo postado acima dos conflitos de classes,
ou como instância dotada de total autonomia diante deles” (OLIVEIRA, 2004, p.216).
A discussão teórica desses dois eixos marxistas a respeito do papel do Estado se renovou, ao
longo dos anos 1970 e início de 1980, a partir do debate analítico entre a visão estruturalista e
a perspectiva da luta de classes, configurado através do conhecido debate entre Poulantzas
79
(estruturalista) e Miliband (luta de classes)
46
. Para Poulantzas (1977) o Estado teria a função
de coerção social e corresponderia aos interesses políticos da classe dominante. Entretanto,
para ele, o Estado tem uma autonomia relativa no que tange às classes e frações de classe do
bloco de poder. Noutra perspectiva, Miliband (1970) considera uma fraqueza a idéia de
Poulantzas de autonomia relativa, já que existe um “superdeterminismo estrutural”. Segundo
Bonefeld, as “estruturas [, dentre elas o Estado,] devem ser vistas como modo de existência
‘do antagonismo de capital e trabalho’ e então como resultado e premissa da luta de classes”
(BONEFELD, 1992 apud MOLLO, 2001, p. 353).
No decorrer dos anos 1970 e 1980 emergem, a partir do viés estruturalista, algumas correntes
renovadas desse eixo, uma delas foi a escola de regulação. Nessas novas correntes
estruturalistas a
[...] luta de classes representa [...] papéis especificamente secundários –
ainda que importantes – no desenrolar do processo de tomada de decisão,
tolhida que está por leis objetivamente dadas. Sua influência nesse modelo é
secundária, resumindo-se ao papel de instâncias meramente condicionadora
– da aceleração ou do retardamento de processos – sem que, em qualquer
momento, constitua num desafio ao desenvolvimento do capital em si
mesmo (OLIVEIRA, 2004, p. 224).
Desse modo, as estruturas capitalistas acabariam definindo os condicionantes da luta de
classes e de suas orientações. “A luta de classes perde o caráter de motor da história, em nome
da autonomia relativa da estrutura hegemônica” (BONEFELD apud OLIVEIRA, 2004, p.
225).
Codato & Perissinotto (2001) identificam nas obras de Marx o papel reprodutivo do Estado,
num nível mais geral e abstrato. Segundo tais autores, o Estado “é a ‘forma política’ da
sociedade burguesa e o ‘poder de Estado’ identifica-se plenamente como o poder de classe” e
que a autonomia que o Estado adquire “em determinadas situações históricas não faz delas
uma força social ‘autônoma’ ou ‘descolada’ da sociedade”. Ainda segundo eles, o Estado,
numa análise mais “conjuntural”, em que se configuram “as lutas políticas de grupos, facções
e frações de classe”, pode ser percebido como uma instituição dotada de “capacidade de
46
Uma resenha detalhada do debate entre Poulantzas e Miliband pode ser encontrada no artigo A concepção
marxista de Estado:... de Maria de Lourdes Rollemberg Mollo (2001)
80
decisão” e de “capacidade de iniciativa” (CODATO & PERISSINOTTO, 2001, p. 17). Assim,
segundo Codato & Perissinotto, é possível pensar o “poder de Estado” separado do “poder de
classe”, mas em constante relação conflituosa quando apreendido numa perspectiva
“conjuntural”.
Muitos cientistas sociais estariam se perguntando os porquês de se analisar o papel do Estado
no momento em que se anunciam os funerais teóricos do Leviatã (Estado-nação). A
importância de tal análise reside no fato de que o Estado continua a desempenhar papéis
significativos na dinâmica da reprodução capitalista e que as visões de fim do Estado são
perspectivas apressadas e disformes da realidade contemporânea intra e interestatal. Nelson
Oliveira, em trecho abaixo, do seu livro Neocorporatismo e política pública: ..., reafirma a
importância do Estado nacional no capitalismo contemporâneo:
O Estado nacional não só não foi eliminado como instância estratégica como
continuou a desempenhar papéis importantes na reconstrução dos espaços
mais atingidos pela crise dos anos 70-80. As novas formas institucionais que
passam a responder pela regulação do ciclo reprodutivo do capital no âmbito
internacional mais parece reforçar do que negar alguns de seus papéis
históricos fundamentais. Não se trata, apenas, de papéis tradicionais
enquanto fonte de legitimação e coerção, mas de sua inserção mesmo como
instância necessária à transformação das dinâmicas internas nos espaços
nacionais como componente do processo de acumulação internacional
(OLIVEIRA, 2004, p. 233-234).
2.3.1. A morte do Leviatã e o “Império” de Hardt & Negri: visões distorcidas das
relações estatais
As transformações contemporâneas nas relações intra e interestatais têm suscitado diversos
entendimentos sobre o atual papel do Estado. Para muitos, inclusive das mais diversas matizes
ideológicas, o Leviatã teria ou estaria por se sucumbir diante de uma nova “ordem
capitalista”. Esta nova configuração teria eliminado ou restringindo a soberania nacional dos
Estados-nações, extinguindo assim, a sua principal prerrogativa histórica. As visões de “fim”
do Estado não ficaram restritas apenas ao campo dos liberais e se espraiaram por distintas
perspectivas desde as heterodoxas até as mais a esquerda. Os ultraliberais globalistas,
representantes da ciência política norte-americana, sustentam que a internacionalização
produtiva e financeira libertou o capital das correntes do Leviatã e que a “mão invisível” iria
81
conduzir a uma convergência internacional. Outros arquétipos advogam que as questões
políticas, administrativas e econômicas que antes seriam prerrogativas dos Estados-nações
teriam sido transferidas para a esfera supranacional, quer seja para órgãos ou instituições
“supranacionais”, tais como, as Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio
(OMC), o Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), quer seja para os
mercados financeiros privados (“Governo Mundial”).
Por outro lado, procurar-se-á demonstrar que as idéias propaladas da decadência, fim ou
transcendência do Estado-nação são visões distorcidas da realidade capitalista hodierna, uma
vez que este continua como um fator central na política, sendo o lócus do poder de classe,
mesmo com a assunção das empresas transnacionais e das instituições “supranacionais”. Não
se defende aqui a idéia de que “nada mudou” nas relações entre Estados. Na verdade, parti-se
do constructo de que o Leviatã continua vivo e robusto só que mais restrito aos espaços
estadunidenses e de alguns países europeus. Isso, por sua vez, tende a restringir, em certa
medida, o exercício de soberania nacional dos Estados mais frágeis. Tais redefinições de
hierarquias e de graus de autoridade no exercício das soberanias nacionais - alçando os EUA
ao posto de país com maior poder soberano - estão associadas ao aumento das tensões tanto
externas, provocadas por modificações nas relações de coerção e controle entre os Estados,
quanto internas, em virtude dos novos rumos das estratégias públicas controladas por frações
da classe dominante.
Rosecrance, um dos principais expoentes da escola globalista norte-americana, sustenta “a
hipótese de total internacionalização do capital, libertando-se definitivamente das amarras dos
Estados-nação” (ROSECRANCE apud VIGEVANI et al, 1994, p. 22). Ele argumenta que o
único regulador possível do sistema internacional seriam as relações econômicas (“mão
invisível”). Estas, inclusive, deveriam ter, no máximo, uma ligação tênue com a sua base
territorial, não se apoiando na existência do Estado. Nessa perspectiva o mundo do futuro
pertenceria às nações comerciais, o que permitiria um crescimento maior da riqueza, caso
houvesse uma economia mundial mais livre.
Para Vigevani et. al., os teóricos norte-americanos globalistas depositam absoluta confiança
no mercado, haja vista suas crenças e, principalmente, devido “a idéia de que os Estados
82
Unidos ainda possuiriam vantagens comparativas no sistema internacional, o que lhe daria
sustentação para melhorar sua própria posição” (VIGEVANI et. al., 1994, p.22).
Até mesmo um teórico como Giovani Arrighi, que se aproxima do arquétipo de economia-
mundo
47
de Fernand Braudel e de Immanuel Wallerstein, em que haveria um sistema político
estruturado a partir de Estados soberanos distribuídos em diferentes níveis de soberania, vem
defendendo recentemente que os Estados-nações estão perdendo a capacidade de controlar as
finanças. Segundo Arrighi et. al. “à medida que esse sistema [interestatal] ganhou âmbito
global, [...], a maioria dos Estados perdeu prerrogativas historicamente associadas à soberania
nacional. Até nações poderosas, [...] têm sido descritas como ‘semi-soberanas’”(ARRIGHI et.
al., 2001, p.103). De acordo com tais autores, a desintegração da ordem mundial bipolar
provocou uma fissão das duas fontes de poder mundial: militar e financeiro. O poder eficaz de
violência (militar) concentrou-se ainda mais nos EUA, potência vencedora da guerra fria,
enquanto o poder financeiro dispersou-se pelos múltiplos rivais, concentrando-se nas mãos de
agentes empresariais transnacionais. Essa bifurcação entre militar e financeiro, no âmbito da
economia política global, segundo eles, vem diminuindo a capacidade dos Estados de
controlar o processo de acumulação do capital globalizado.
Alguns teóricos que lutam contra o domínio do capital
48
, também, embarcaram nessa “onda”
de “nova ordem mundial” de negação do Estado-nação. A obra Império de Hardt & Negri é
um exemplo rico e paradigmático dessa nova linha de luta da “multidão” contra o “Império”,
estágio este que, segundo tais autores, o capital teria destruído os limites entre o “interior” e o
“exterior” e, por conseguinte, eliminado qualquer resquício de Estado-nação. Vejamos agora
de forma mais detalhada os principais conceitos e enlaces da obra dos últimos autores
mencionados que tem suscitado amplo debate crítico.
47
A economia-mundo é uma estrutura social que tem fronteiras, grupos integrantes e uma legitimação social, no
qual existem forças conflituosas que o mantêm unido. Tal estrutura socioeconômica centra-se em três eixos, a
saber: i) um sistema econômico integrado mundialmente, tendo um centro polarizador da dinâmica econômica;
ii) um sistema político alicerçado em Estados soberanos e com diferentes hierarquias de autonomias e poder; iii)
e, fim, um modelo cultural que legitime e dê coerência ao sistema (BRAUDEL 1994; WALLERSTEIN, 1985).
48
“A militância atual é uma atividade positiva, construtiva e inovadora. Esta é a forma pela qual nós e todos
aqueles que se revoltam contra o domínio do capital nos reconhecemos como militantes. Militantes resistem
criativamente ao comando imperial. Em outras palavras, a resistência está imediatamente ligada ao investimento
constitutivo no reino biopolítico e à formação de aparatos cooperativos de produção e comunidade” (HARDT &
NEGRI, 2001, p. 437).
83
Hardt & Negri (2001, p. 325) sustentam que “a mudança do paradigma de produção para o
modelo de rede fomentou o poder crescente das empresas transnacionais, além e acima das
tradicionais fronteiras dos Estados-nações”. Quer dizer que estes perderam soberania e
autonomia política, tornando-se incapazes de regular as permutas econômicas e culturais
agora articuladas em rede. Para tais autores, a rede, equivalente a uma infra-estrutura de
informação, por sua característica imanente, estaria alterando a base econômica e social da
sociedade
49
, reforçando o poder das empresas transnacionais e, por conseguinte, teria
reduzido a zero a autonomia política dos Estados nacionais. Por isso, segundo Hardt & Negri,
o fim do Estado-nação teria eliminado o imperialismo moderno no sentido leninista. O mundo
teria transitado do imperialismo para um “Império” pós-moderno, do “não lugar”
50
, em que a
soberania estaria agora circunscrita ao patamar dos organismos supranacionais. Tais autores
deixam isso bastante claro, na passagem abaixo, no início de sua obra:
O império está se materializando diante de nossos olhos. Nas últimas
décadas, [...] quando as barreiras soviéticas ao mercado do capitalismo
mundial finalmente caíram, vimos testemunhando uma globalização
irresistível e irreversível de trocas econômicas e culturais. Juntamente com o
mercado global e com circuitos globais de produção, surgiu uma ordem
global, uma nova lógica e estrutura de comando - em resumo, uma nova fase
de supremacia. O império é a substância política que, de fato, regula essas
permutas globais, o poder supremo que governa o mundo.[...] Os fatores
primários de produção e troca – dinheiro, tecnologia, pessoas e bens –
comportam-se cada vez mais à vontade num mundo acima das fronteiras
nacionais (HARDT & NEGRI, 2001, p.11).
É preciso ressaltar que, nessa visão, as funções do Estado-nação e seus elementos
constitucionais não desapareceram, mas sim, deslocaram-se ao plano da dominação dos
“organismos nacionais e supranacionais”. “O declínio da soberania dos Estados-nação,
entretanto, não quer dizer que a soberania como tal esteja em declínio” (Hardt & Negri, 2001,
p.12). Portanto, segundo eles, a soberania se revestiria de uma nova forma – englobando
organismos internacionais e supranacionais, regidos por uma lógica única – que levaria à
constituição do poder em nível supranacional: o Império.
49
No auge da produção contemporânea, a informação e a comunicação são as verdadeiras mercadorias
produzidas e a rede, em si, é o lugar tanto da produção quanto da circulação (HARDT & NEGRI, 2001).
50
Nesta perspectiva, não existiria mais a diferença entre os países do primeiro e do terceiro mundo, já que estas
realidades tornar-se-iam híbridas, na qual o primeiro mundo poderia ser encontrado no terceiro e vice-versa. Essa
concepção está vinculada à metáfora da “aldeia global” cujas diferenças entre países e regiões (territórios) teriam
se deslocado para o espaço virtual (rede).
84
O poder, nessa nova arquitetura supranacional, seria representado de forma piramidal, a saber:
i) no topo: os organismos internacionais e o organismo nacional norte americano; ii) no meio:
as redes de empresas transnacionais e os organismos nacionais subordinados ao poder destas
empresas; e iii) na base: a Mídia, a Igreja, os organismos nacionais e, principalmente, as
ONGs que representariam os interesses populares: a multidão. Apesar da existência destes
três níveis, na pirâmide de poder no Império, não haveria uma hierarquia entre esses níveis
nem um equilíbrio funcional de poder, pois existiria uma hibridização entre os poderes, o que,
por sua vez, abriria espaço para a assunção da multidão, possibilitando as modificações
estruturais através das lutas políticas contra o império. Para tais autores, o avanço do trabalho
imaterial
51
teria modificado a estrutura de poder conformando uma sociedade biopolítica
52
que se aproximaria da idéia foulcaultiana de poder. Tal perspectiva teria eliminado as classes
e, conseqüentemente, a contradição entre capital versus trabalho (HARDT & NEGRI, 2001).
A luta política que se consubstanciava no âmbito do Estado-nação, portanto, teria se findado e
deslocado ao âmbito do “não lugar” e do lócus do digital, onde ocorreria o conflito político
entre a “multidão” e o “Império” devido às novas configurações produtivas. Assim, a
comunicação e a informação, como novos elementos centrais do modo de produção, teriam
fomentado, por um lado, a vitória das empresas transnacionais sobre os Estados-nações e, por
outro lado, estariam propiciando a diminuição da subsunção do trabalho pelo capital, pois
com a ascensão do trabalho imaterial abrir-se-ia a possibilidade de auto-valorização do valor,
em certa medida, independente do capital.
Cérebros e corpos ainda precisam de outros para produzir valor, mas os
outros de que eles necessitam não são fornecidos obrigatoriamente pelo
capital e por sua capacidade de orquestrar a produção. A produtividade, a
riqueza e a criação de superávits sociais hoje em dia tomam a forma de
interatividade cooperativa mediante lingüísticas, de comunicação e afetivas.
Na expressão se suas próprias energias criativas, o trabalho imaterial parece,
51
Para Hardt e Negri (2001) o trabalho imaterial vincula-se à produção de serviços, bens culturais,
conhecimentos ou comunicação, tornando indispensável à presença das tecnologias da comunicação e do
computador nas atividades laborais. Uma análise crítica consistente do conceito de trabalho imaterial adotado
por Hardt e Negri pode ser encontrada em Prado (2003)
52
“O poder se torna inteiramente biopolítico, todo corpo social é abarcado pela máquina do poder e
desenvolvimento. Essa relação é aberta, qualitativa é expressiva que vai até os gânglios da estrutura social e seus
processos de desenvolvimento, reage como um só corpo” (NEGRI & HARDT, 2001, p. 43). Dessa forma, para
eles, o poder estaria disperso, mais “democrático” e imanente ao campo social, na medida em que estaria
distribuído por corpos e cérebros dos cidadãos. Nessa visão o poder aparece como uma dimensão biológica que
perpassa pela dimensão individual sendo associado à produção e à reprodução da própria vida.
85
dessa forma, fornecer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e
elementar (HARDT & NEGRI, 2001, p. 315).
Essas múltiplas teses, que vêm diagnosticando o fim ou declínio do Estado-nação, quase
sempre apresentam relações problemáticas, já que elas partem de relações sem mediações, o
que, por sua vez, implica em um reducionismo da política à economia (“economicismo”) ou
da política a uma síntese biotecnológica
53
(Hardt & Negri, Castells, dentre outros).
Na visão economicista liberal parte-se do pressuposto que a expansão e a centralização do
capital, no espaço mundial, estariam provocando a restrição, quase que total, da esfera política
nacional, delegando as livres forças do mercado à regulação socioeconômica que levaria a
convergência entre os espaços. Assim, uma “nova ordem global” estaria adoçando os
costumes e, com o fim da Guerra Fria, aproximando o mundo da “paz perpétua”. A velha
retórica liberal smithiana, ricardiana e kantiana abstrata retornando mais viva do que nunca
para legitimar o contexto atual.
Na perspectiva reducionista da política a uma síntese biotecnológica, de forte influência
fulcotiana e spinosiana, desenvolvida por Hardt e Negri e outros autores dessa linha, ocorre
um fetichismo da comunicação e da informação, na medida em que os bites e os átomos, os
instrumentos, estariam modificando os atores da sociedade: os homens. Na verdade, a
construção do Império e do contra-império de Negri & Hardt, que busca, explicitamente, a
ruptura com determinados padrões de dominação na sociedade, não consegue se liberar de
uma visão utópica de emancipação, posto que, através da tese da imanência do indivíduo
acabam por formular uma leitura pouco profícua das verdadeiras contradições de classes que
perduram na sociedade atual.
Além desse fetiche verificam-se vários elementos problemáticos “aos mil platôs” do Império
de Hardt & Negri como destacado por Eleutério Prado, em seu artigo Pós-grande indústria:
53
“A revolução da produção da comunicação e da informação transformou práticas laborais a tal ponto que todas
elas tendem ao modelo das tecnologias de informação e comunicação. Máquinas interativas e cibernéticas
tornaram-se uma nova prótese integrada a nossos corpos e mentes, sendo uma lente pela qual redefinimos nossos
corpos e mentes” (HARDT & NEGRI, p.312). Verifica-se claramente, nesse trecho e ao logo de toda obra, que
tais autores advogam da idéia que, em última instância, a mudança tecnológica estaria modificando o homem,
um ser biológico, alçando assim, o sistema a novos padrões socioeconômicos.
86
trabalho imaterial e fetichismo..., e por Jacques Bidet, em seu artigo A multidão perdida no
império. Segundo Eleutério Prado, Hardt & Negri ao preverem a dissolução do Estado-nação
e a emergência de uma nova soberania global (Império) não teriam percebido os verdadeiros
movimentos de poder nas relações inter-estatais. Para ele, “o que se vê emergir atualmente é o
Império Americano que hierarquiza os Estados nacionais e que põe o próprio Estado
americano no topo, o que pode ser encarado, talvez, como um estágio superior do
imperialismo” (PRADO, 2003, p. 130).
A visão distorcida de Hardt e Negri ocorreu em virtude das suas perspectivas de Estado
capitalista como uma ordem jurídica e política de dominação sem levar em conta a influência
das dimensões contraditórias do modo de produção. O Estado, além de suas dimensões
jurídica-política, “deve ser derivado das contradições entre a aparência e a essência do modo
de produção capitalista” (FAUSTO apud PRADO, 2003, p.130).
Nessa mesma linha crítica à Hardt e Negri, Bidet argumenta que
não haveria, sem dúvida alguma, nada a objetar ao “império” se ele não se colocasse
como substituto no campo conceitual à estrutura de classe e ao sistema-mundo, que
– em seu tempo – foram a força crítica do marxismo, frente às questões de uma
alternativa e de “uma outra mundialização”. [...] Ora, é preciso objetar [a idéia de
fim do] Estado-nação, ao contrário, [ele] cresce vertiginosamente em potência
(BIDET, 2004, p. 100).
Aceitar a idéia de deslocamento do poder para o âmbito supranacional seria admitir que as
empresas transnacionais não tivessem uma base nacional. Não obstante, tais empresas têm um
alcance global, mas sua propriedade encontra-se numa base nacional que legisla e protege
estes capitais. Na verdade, o constructo de Império de Hardt e Negri tende a perceber a
realidade de forma distorcida, haja vista a idéia de transformação a partir da imanência
individual e do caráter fetichista do biopoder e da sociedade de controle. Isso desencadeia,
por sua vez, uma leitura disforme dos acontecimentos históricos recentes, obliterando o
crescimento do controle do Estado-nação norte-americano sobre os demais Estados. Portanto,
o Estado-nação atualmente, como outrora, continua operando como um agente de controle e
hierarquização em favor do capital diante do trabalho.
87
Ao relermos a história das relações conflituosas e, até certo ponto, complementares entre o
Estados-nações e o desenvolvimento internacional do capitalismo pode-se compreender
melhor que a crise contemporânea da maioria dos Estados não deriva do fenômeno de que
eles sejam hoje menos soberanos do que sempre foram diante do poder do capital ou das
grandes potências. Na verdade, as modificações do capitalismo hodierno não eliminaram as
funções dos Estados nacionais. O que agora ocorre é a redefinição de suas hierarquias e de
seus graus de autoridade no exercício de suas soberanias (FIORI, 1997).
Apesar das transformações do padrão de acumulação verificadas nas últimas três décadas, não
podemos afirmar que o capital e os mercados financeiros se tornam independentes do poder
político. Segundo Chesnais, “a globalização entendida como a mundialização do capital não
apaga a existência de Estados nacionais, nem as relações de dominação e de dependência
entre eles. Ao contrário, acentuam os fatores de hierarquização entre países...” (CHESNAIS,
1997, p. 22).
O Estado-nação, na figura dos Estados Unidos, se robustece e se apropria de armas mais
poderosas, de funções repressivas, para garantir a assunção da acumulação rentista. Sendo
assim, o capital e os mercados financeiros não se desvinculam do poder político, uma vez que
este continua sendo uma condição indispensável à multiplicação da lucratividade. Na verdade,
o que se altera não é o papel do poder político, mas sim suas formas de atuação e proteção dos
espaços nacionais econômicos garantidos para seus capitais.
Em suma, as transformações do padrão de acumulação verificadas nas últimas três décadas
conformaram modificações nas relações entre espaços nacionais, contudo não se extingui o
Estado nacional, nem mesmo as relações de dominação entre eles. Na verdade, o que se
verifica é que após a crise da macroestrutura definida pelos acordos de Bretton Woods, os
organismos “supranacionais”, entre os quais se destacam o FMI, o Banco Mundial e a OMC
(ex-GATT), são utilizados como peças chaves das novas formas de integração dos espaços
nacionais à dinâmica do capital. Isto acaba facilitando o processo acelerado de centralização
acima observado, cujo rebatimento mais importante é a ampliação do poder econômico e
político num espaço restrito, qual seja, o Estado norte-americano. Estas agências, na verdade,
colaboram para a cristalização de uma nova configuração interestatal com a elevação da
88
hierarquização entre países, a qual apresenta o Leviatã estatal americano desfrutando de uma
ascendência inaudita sobre os demais Estados nacionais.
2.3.2. As relações entre as instituições “supranacionais” (FMI, Banco Mundial e OMC) e
o capital estadunidense e europeu
Mais do que nunca as instituições criadas pelos acordos de Bretton Woods revelam sua
importância para a integração do capital tanto financeiro, quanto produtivo. O Fundo
Monetário Internacional (FMI) foi um dos principais elementos dessa nova integração
capitalista, uma vez que impôs e vem impondo aos países periféricos um conjunto de
reformas que incluíam e incluem como pilares a desregulamentação financeira e comercial e a
flexibilização do trabalho. Tais medidas visam a atender a novas perspectivas da remuneração
do capital dinheiro, amplamente especulativo, e a subsidiar as mudanças na estrutura da
organização da produção e do trabalho (reestruturação produtiva) voltadas à ampliação da
mais-valia.
Para asseverar a acumulação financeira do capital, em sua estratégia alternativa às limitações
na acumulação produtiva, e ampliar as taxas de exploração no âmbito da produção, tornou-se
necessário a introdução de mecanismos de potencialização da mobilidade do capital
financeiro, da liberalização comercial e da desmesurada coerção e controle sobre o trabalho.
Para tanto, os EUA e as potências européias, passaram a impor - via Banco Mundial (BM),
FMI e Organização Mundial do Comércio (OMC), haja vista seu forte controle sobre estas
instituições – os ajustes estruturais. Isso, por sua vez, conformou um novo quadro político-
econômico que se materializou na aplicação do chamado receituário neoliberal.
Não surpreende, portanto, que com a crise e com suas saídas “internas”, o Banco Mundial, o
FMI e a OMC, instituições econômicas “supranacionais”, tenham se fortalecido, uma vez que
elas continuam a desempenhar, só que agora de forma ampliada, funções relevantes para o
ajuste integrativo dos espaços mundiais à luz das novas condições de produção e reprodução
do capital. Fica patente a preocupação embutida nos principais movimentos efetuados por
estas instituições, estreitamente identificadas com os seguintes eixos dominantes: i)
capitalismo como eixo da esfera econômica; ii) democracia liberal no campo político; iii)
89
valores culturais coerentes com as perspectivas liberais. Este ideário torna-se uma quase
obrigação a ser comprida pelos países que disputam empréstimos ou ajuda financeira,
principalmente, nos momentos em que enfrentam dificuldades de captação de recursos para
projetos produtivos ou crises cambiais, associados a problemas nos balanços de pagamentos
(OLIVEIRA, 1998).
Com o intuito de consolidar este ideário neoliberal, o FMI e o Banco Mundial impõem os
ajustes estruturais aos países que enfrentavam e enfrentam dificuldades. Em linhas gerais,
existe uma concordância entre FMI e Banco Mundial nas principais estratégias das reformas
institucionais. Vejamos, em cada item seguinte, primeiro as “recomendações” e seus
respectivos objetivos que conformam os ajustes estruturais: i) liberalizar o comércio, revisar
políticas de preços e diminuir os subsídios com o objetivo de permitir a operacionalização das
vantagens comparativas; ii) eliminar restrições ao investimento externo e alentar a
intermediação financeira com taxas de juros reais positivas com o intento de remover a
repressão financeira e fomentar a livre circulação de capitais; iii) redefinir o papel do setor
público em atividades econômicas, reduzir os programas sociais “universalizantes”, eliminar
subsídios aos bens e serviços públicos objetivando estimular a iniciativa privada, estabelecer
prioridade de investimentos sociais (políticas focalizadas) e desalentar gastos improdutivos
que pesem no déficit fiscal (LICHTENSZTEJN & BAER, 1987).
Ademais, o Banco Mundial, em parceria ideológica com o FMI, continua a desempenhar
papéis a que sempre se propôs desde sua criação como parte dos acordos de Bretton Woods. E
nunca foram, como agora, tão explícitas e declaradas as funções atribuídas às principais peças
da sua holding, formada pelo BIRD (Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento), encarregado do financiamento de projetos de infra-estrutura do capital de
um modo geral; pela CFI (Corporação Financeira Internacional), dirigida para o
fortalecimento do capital privado, com mais ênfase nos países com maior intervenção estatal
até recentemente; e pela AID (Agência Internacional para o Desenvolvimento), esta última
voltada para empréstimos aos países mais pobres (OLIVEIRA, 1998).
Os países centrais e, mais especificamente, os EUA sempre tiveram claro predomínio na
concepção e implementação tanto do FMI quanto do BM. Hoje, como outrora, os Estados
Unidos são o principal país membro (poder de votos) das duas instituições. O controle norte-
90
americano não se restringe apenas aos aspectos organizativos. Cabe destacar, também, que o
Tesouro estadunidense exerce grande influência na estrutura de poder do Fundo e do Banco
(LICHTENSZTEJN & BAER, 1987).
Além do Banco Mundial e do FMI, as novas formas de integração capitalista se sustentam,
também, através da OMC. Estas instituições formam um tripé “virtuoso” para a produção e
reprodução do capitalismo. Após a Rodada Uruguai e a criação da OMC, as economias
nacionais foram obrigadas a adotar uma nova regulação comercial do investimento, dos
serviços e da propriedade intelectual. Essas regras, da OMC, de enquadramento a respeito de:
ações antidumping, subsídios e medidas compensatórias, agricultura, têxteis e propriedade
intelectual, facilitaram e facilitam as práticas monopolistas das grandes empresas
internacionais, ao mesmo tempo em que não impedem o protecionismo e a regulação nacional
das grandes potências. Na verdade, essas regras, não têm qualquer outra razão econômica, a
não ser os interesses de um conjunto limitado de grupos poderosos nos países industrializados
(TAVARES & BELLUZO, 2002).
A OMC não apresenta um poder amplo para que suas deliberações e propostas de retaliações,
no âmbito do comércio mundial, se efetivem. Na verdade, as medidas de retaliações
encaminhadas pela OMC fornecem um respaldo importante, na esfera legal, para os países
poderosos, nos processos de conflito comerciais com os países fracos. Isso já não acontece no
sentido inverso, pois as queixas consubstanciadas pelos países em desenvolvimento e
reconhecidas pela OMC, têm pouca funcionalidade quando o adversário é uma potência
mundial (GONÇALVES, 2000). Assim, a OMC, da mesma forma que o FMI e o Banco
Mundial, se transformou em utensílio relevante da política econômica externa de países
desenvolvidos, particularmente dos Estados Unidos.
Em linhas gerais, observa-se claramente que o novo papel das instituições “supranacionais”
é viabilizar novos processos integrativos do capital nos espaços mundiais. Isto, na verdade,
acaba facilitando o processo de aceleração e centralização do capital já observado, cujo
rebatimento mais importante é a ampliação do poder econômico e político em espaços
restritos, quais sejam, os Estados Unidos e as potências européias. Estas agências, com isso,
colaboram para a cristalização de uma nova configuração interestatal com a elevação da
91
hierarquização entre países, a qual apresenta o Leviatã estatal americano desfrutando de uma
forte ascendência sobre os demais Estados nacionais – um novo imperialismo.
2.3.3. As contradições do projeto de império mundial dos Estados Unidos e as dimensões
do “novo imperialismo”
Contemporaneamente, existe um grande debate a respeito da nova configuração das relações
entre os Estados-nações e da configuração da política externa norte-americana, após os
atentados de 11 de setembro de 2001. Para muitos, a passagem do governo Clinton ao
governo republicano neoconservador de George W. Bush, em associação com os atentados às
torres gêmeas, teria gerado a transição de uma política norte-americana de consenso a uma
política de coerção no âmbito internacional. Nessa perspectiva, a reação aos atentados de 11
de setembro seria o divisor de águas na virada da política externa estadunidense. Segundo
Emir Sader,
[...] a nova doutrina do governo George W. Bush representaria uma virada
histórica significativa da política externa norte-americana. [...] Mais do que
uma virada de linha na política externa, trata-se de uma nova doutrina
estratégica, em que desembocam as concepções que foram sendo
amadurecidas pela oposição republicana ao governo Clinton (SADER, 2003,
p. 34 e 41).
Emir Sader e outros autores, ao considerarem a reação aos atentados de 11 de setembro como
o marco da nova política externa estadunidense, deixaram de perceber que as mudanças nas
estratégias norte-americanas já vinham se processando, ao longo da década de 1990, após a
queda do muro de Berlim e da dissolução da União Soviética (fim da Guerra Fria). A partir
do desaparecimento do perigo comunista, delineou-se, desde 1991, uma estratégia norte-
americana orientada por uma visão unipolar direcionada à construção de um império mundial
(Estado internacional) que ficou mais bem codificado com as reações aos atentados de 11 de
setembro e no relatório intitulado “Estratégia para a segurança nacional dos Estados Unidos”,
distribuído em 20 de setembro de 2002.
Com o fim da União Soviética, uma nova ordem estaria se consubstanciando segundo uma
versão atualizada da ideologia liberal. As fronteiras nacionais estariam se extinguindo e um
império mundial norte-americano estaria se erguendo. O ideal liberal, “de que o mundo inteiro
92
não fosse mais do que um só povo, ao interior do qual as nações fossem como pessoas”
(NORTH apud FIORI, 1997, p. 87), renasce contemporaneamente assentado nas raízes mais
utópicas e profundas do liberalismo do séc. XVII. Alguns cientistas sociais, atualmente,
inclusive “chegaram a pensar, como Montesquieu, que depois do annus mirabilis de 1989 esta
nova ordem global já estaria ‘adoçando os costumes’ e, com o fim da Guerra Fria,
aproximando-se o mundo da ‘paz perpétua’ de Kant” (FIORI, 1997, p.87).
Desde 1991, os Estados Unidos vêm adotando uma conduta cultural, econômica e diplomática
imperial, pois este cada vez mais se orienta por uma visão unipolar do mundo. Tal condução
dessa nova ordem mundial, no transcurso dos anos de 1990, anunciada por George Bush (pai)
e conduzida por Bill Clinton, ampliou o poder e a economia estadunidense, enquanto gerou
nos demais Estados uma perda de legitimidade e de poder dos governantes diante de suas
populações, haja vista a estagnação econômica, o desemprego e a insatisfação social (FIORI,
1997). Portanto a virada na política externa norte-americana começa a se configurar com a
dissolução da União Soviética, ficando mais visível com os eventos de 11 de setembro de
2001.
Mészáros defende que não houve mudança significativa nas doutrinas militar e econômica dos
Estados Unidos após o 11 de setembro. Na verdade, para ele, o presidente democrata Clinton
adotava as mesmas políticas de seu sucessor republicano (Bush filho) só que de forma
camuflada (MÉSZÁROS, 2003).
Na mesma linha de Mészáros, José Luís Fiori, em seu artigo O poder global dos Estados
Unidos:..., também deixa muito claro que não existem incongruências entre o governo de
Clinton e de Bush (filho) - apesar de tais governantes utilizarem retóricas diferentes - no que
se refere à estratégia de longo prazo norte-americana de construção de um império mundial.
Na década de 1990, difundiu-se a crença que o “poder pacífico dos mercados” e “a força
econômica convergente da globalização” consolidariam finalmente o “império mundial
cosmopolita, pacífico e democrático, sob a liderança benevolente dos Estados Unidos”. Não
obstante essa retórica liberal, a administração Clinton “manteve um ativismo militar sem
precedentes, apesar de sua retórica globalista [humanitária] que propunha uma ‘convivência
pacífica pelo mercado’. Desde que fossem respeitadas as regras do novo império”
(FIORI, 2004a, p. 97). Configurando-se, portanto, um unilateralismo implícito. A vitória do
93
republicano Bush (filho) significou apenas uma mudança na retórica dominante da política
externa dos Estados Unidos, que agora assume uma linguagem bélica e um unilateralismo
explícito, uma vez que o discurso do liberalismo econômico não foi abandonado e o projeto
de construção do império ficou às claras (FIORI, 2004a). O trecho abaixo do artigo
supracitado de Fiori sintetiza muito bem esses elementos:
Parece cada vez mais claro que depois do fim da Guerra do Golfo - a
despeito das diferenças retóricas e de estilo - formou-se um grande consenso,
entre republicanos e democratas, a respeito dos objetivos de longo prazo dos
Estados Unidos. Como no início do século XIX, agora também é possível
distinguir e identificar dois grandes grupos dentro de política externa
americana: “aqueles que advogam a dominação americana irrestrita e
unilateral do mundo, e aqueles que defendem um imperialismo com
objetivos ‘humanitários’.” (Johnson, 2004: 67). Mas do ponto de vista
estratégico e de longo prazo, o objetivo é um só, e aponta na direção de um
império mundial [Estado internacional] (FIORI, 2004a, p.98).
O sonho de um império mundial liberal, sob o controle norte-americano, não é uma
característica histórica nova, na verdade, muitos historiadores e analistas internacionais
identificam a origem do projeto imperial americano através da guerra hispano-americana de
1889 e das medidas do governo Roosevelt
54
. Recentemente Henry Kissinger afirmou que “os
Estados Unidos enfrentaram, em 1991, pela terceira vez na sua história [1918 e 1945], o
desafio de redesenhar o mundo à sua imagem e semelhança [...]” (FIORI, 2004a, p. 94;
FIORI, 2001a). Tal sonho do império mundial estadunidense sofre certa influência dos ideais
“cosmopolitas” liberais kantianos, expressos na obra À paz perpétua, editada em 1795.
Para Immanuel Kant seria possível, por intermédio do direito internacional e da ampliação do
comércio livre, construir uma liga de alguns povos, tendo um Estado central que se ampliaria,
num primeiro momento, e, conseqüentemente, evitaria a eclosão de hostilidades até o
estabelecimento, num segundo momento, de uma paz perpétua, eliminando assim, os conflitos
entre as nações e as diferenças culturais sob a alegação de que a pátria de todos os homens é o
mundo. Isso, por sua vez, criaria uma verdadeira liberdade e igualdade entre os homens. Tal
Estado central, segundo ele, deveria ser regulado pelas normas do direito internacional. A
54
O governo norte-americano de Roosevelt ao adotar sua política de expansão da supremacia internacional
utilizava-se da retórica da liberdade para todos e da idéia de um “destino” universal. Roosevelt declarou, em
discurso pronunciado em 1936, que “uma civilização melhor que a que sempre conhecemos está reservada para a
América e, por meio de nosso exemplo, talvez para o mundo. O destino aqui parece ter se detido longamente”
(ROOSEVELT apud MÉSZÁROS, 2003, p. 37).
94
inexistência do conflito entre a política e a moral no âmbito objetivo (na teoria) - apesar de tal
conflito ocorrer na dimensão prática -, segundo Kant, abriria a possibilidade de criação de um
estado de paz perpétua muito além dos tratados de armistícios entre povos. Tendo o direito
público (estabelecimento de leis universais), nesse processo, o papel de eliminar o conflito em
sua dimensão prática associadas ao comércio (KANT, 1989).
Kant argumenta, ainda, que a paz perpétua deveria ser um caminho a ser seguido pela
humanidade, uma vez que esta poderia realizar o seu intento. O trecho abaixo de sua obra
reflete esse ideal liberal utópico:
Se há um dever, se há ao mesmo tempo uma esperança de tornar efetivo o
estado de um direito público, embora somente em aproximação que progride
ao infinito, então a paz perpétua, que sucede aos até aqui falsamente assim
denominados tratados de paz (propriamente armistícios) não é uma idéia
vazia, mas uma tarefa que, solucionada pouco a pouco, aproxima-se
continuamente de seu fim (KANT, 1989, p. 79-80).
Algumas dessas idéias kantianas retornaram com grande força, sejam em dimensões de
retórica ou de práticas, em função da nova tentativa de construção de um império liberal,
tendo o Estado norte-americano como centro. Tal configuração sociopolítica levaria à paz
perpétua (fim da história). Um império liberal, teoricamente, pode ser caracterizado: i) pela
ausência de fronteiras e pelo poder ilimitado do império; ii) por uma ordem que suspende a
história e determina, para sempre, o estado de coisas existentes; iii) pela busca de uma paz
perpétua e universal fora da história, apesar das práticas de guerra do império. Tais guerras,
na verdade, seriam justas e legítimas em virtude dos seus fins, a saber: a paz perpétua.
Para muitos pensadores norte-americanos a consecução do império mundial liberal, sob o
controle estadunidense, seria possível, inclusive estaria numa rota acelerada. “Daí que os
Estados Unidos não só são a primeira e a única verdadeira potência global, senão que,
provavelmente, serão também a última” (BRZEZINSKI apud AYERBE, 2002, p. 33).
Esse tipo de perspectiva de formação de algum tipo de federação cosmopolita e pacífica
(Império mundial liberal ou um Estado internacional) não tem nenhuma sustentação a partir
da análise histórica do sistema mundial, nem se percebe nenhum indício efetivo da
95
conformação de um novo sistema desse tipo. Portanto, mostrar-se-á que o projeto de império
mundial cosmopolita dos Estados Unidos é um objetivo inatingível em virtude de suas
contradições e limitações. Apesar da impossibilidade de consecução plena de um império
mundial, a busca de tal objetivo pelos norte-americanos, a partir de 1991, acabou modificando
as relações entre os diversos Estados nacionais. Uma vez que os EUA, conforme detalhado
nas subseções anteriores, vêm ampliando sua capacidade autônoma para determinar políticas
internas e estabelecer a dominação externa sobre Estados nacionais mais poderosos e débeis,
o que, por sua vez, possibilita o processo de integração do capital nacional norte-americano.
Nesse contexto internacional, o imperialismo, como categoria de análise, não pode ser
desprezada na apreensão das relações inter e intra-estatais, muito pelo contrário. Na verdade,
pretende-se demonstrar que a atual configuração internacional do capitalismo está assentada
numa “nova fase do imperialismo”, influenciada pelo grande poderio do Leviatã
estadunidense e pelo seu projeto de construção de um império mundial.
Em decorrência, a tese da impossibilidade de construção de um império mundial (Estado
internacional) liberal de paz perpétua será analisada tanto sob a perspectiva “politicista” de
Luís Fiori quanto sob a visão classista de István Mészáros.
Fiori argumenta que a marcha norte-americana rumo ao poder global será restringida pelo
próprio movimento de tal objetivo, à medida que este alimenta “a contratendência
‘nacionalizante’ dos demais Estados que bloqueiam sua marcha em direção ao poder global”
(FIORI, 2004a, p. 58). Nesse contexto, os limites intransponíveis ao poder global estão
associados à impossibilidade de uma paz perpétua num cenário de expansão das economias
nacionais capitalistas e à incapacidade estrutural de uma Grande Potência praticar, de forma
permanente, uma política coercitiva voltada apenas a preservar seu status quo (FIORI 1999,
2004a, 2004b). Sendo assim,
[...] historicamente, os “estados-imperiais” ou “grandes potências” sempre
recriaram seus concorrentes e adversários, logo depois de submeter ou
destruir o concorrente anterior. Exatamente como na concorrência
capitalista, onde o próprio capital recria sem cessar as suas novas formas de
competição, por que perderia capacidade de acumulação se ocorresse uma
monopolização completa dos mercados (FIORI 2004b, p. 102-103).
96
Para István Mészáros, o elevado poder dos Estados Unidos diante de outras potências rivais
tende a provocar uma situação perigosa, haja vista a tentativa de tal país assumir a função de
“Estado do sistema do capital em si”. Segundo ele, apesar da impossibilidade de tal objetivo,
por um período longo de tempo, verifica-se que isso “não inibe as forças que buscam
implacavelmente sua realização” (MÉSZÁROS, 2003, p. 41).
Tal impossibilidade de construção de um Estado internacional, a partir dos EUA, está
associada à separação estrutural entre capital transnacional e os Estados nacionais originária,
na verdade, da própria natureza das redes de contradições subjacentes ao sistema capitalista.
Para Mészáros (2003, p. 19) a raiz das contradições pode ser
encontrada no “antagonismo
inconciliável entre capital e trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de
subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao capital”, mesmo quando são elaboradas
mistificações que intentam camuflar tal antagonismo. Ainda, segundo Mészáros:
A idéia de um governo mundial viável implicaria, como base material
necessária, que se eliminassem da constituição global do sistema do capital
todos os antagonismos materiais significativos, e a conseqüente
administração harmoniosa da reprodução do metabolismo social por um
monopólio global incontestado, que abrangeria todas as facetas da
reprodução social com a alegre cooperação da força de trabalho global –
uma verdadeira contradição em termos; ou que um único país imperialista
hegemônico governasse todo o mundo permanente e autoritariamente e,
sempre que necessário, violentamente, uma forma insustentável e absurda de
governar a ordem mundial (MÉSZÁROS, 2003, p. 101)
Ao se constatar que a idéia de construção de um império mundial vincula-se a visões pouco
profícuas das interações estatais internacionais, faz-se necessário desenvolver a análise das
relações entre Estados nacionais à luz das dimensões do “novo imperialismo”. Para tanto,
serão incorporados elementos do conceito de imperialismo desenvolvido por Lênin, no
primeiro quartel do século XX. Segundo ele, o imperialismo ou “estágio superior do
capitalismo” estava associado à luta, entre nações industrializadas, por posições dominantes,
tanto no mercado mundial quanto no controle de matérias-primas. Fora ele um dos primeiros a
perceber a importância da exportação de capitais para legitimação dos poderes imperialistas
dos Estados centrais capitalistas:
O imperialismo é o capitalismo chegando a uma fase de desenvolvimento
onde se afirma a dominação dos monopólios e do capital financeiro, onde a
97
exportação dos capitais adquiriu uma importância de primeiro plano, onde
começou a partilha do mundo entre trustes internacionais o onde se pôs
termo à partilha de todo o território do globo, entre as maiores potências
capitalistas (LENIN, 1979, p.88).
A concentração e centralização do capital são características inerentes à acumulação
capitalista. Tal processo contemporaneamente tem sido comandado pela ampliação do capital
financeiro que na forma de acumulação atual predomina sobre as órbitas produtiva e
mercantil. Na análise da configuração mundial recente, acrescenta-se um elemento
importante, não desenvolvido por Lênin, tendo em vista sua limitação histórico-temporal, qual
seja: o extraordinário poder que um único país adquiriu diante dos outros Estados nacionais.
Desse modo, a estratégia norte-americana de construção de um Estado imperial mundial
liberal, apesar de sua impossibilidade construtiva, nos remete a um quadro complexo das
interações estatais que conformam um novo imperialismo. Vejamos agora de forma mais
detalhada suas características.
Nesse novo imperialismo, um único Estado-nação (Estados Unidos), exerce um domínio
preponderante sobre os demais países. Tal exercício de poder norte-americano é sustentado a
partir das diversas formas de dominação, a saber: i) política; ii) cultural e ideológica; iii)
econômica; e v) a ocupação militar territorial. Todo esforço norte-americano se volta,
portanto, à manutenção e à ampliação do controle do mercado mundial, das fontes de
matérias-primas e da ideologia mundial, já que os estadunidenses sonham em construir um
mundo a sua semelhança.
Os Estados Unidos exercem sua dominação política através de seu controle direto e indireto
sobre as principais instituições supranacionais (FMI, BM, ONU, OTAN, OMC). Tais
instituições se voltam ao direcionamento de novos processos de integração do capital nos
mais diversos espaços mundiais sob a égide estadunidense, conforme detalhado na subseção
anterior.
Quanto à dominação cultural e ideológica, os Estados Unidos vêm utilizando os mais diversos
meios para disseminar a economia de mercado, a democracia pluralista norte-americana e os
valores culturais consumistas. Arrisco-me a dizer que este é um dos principais instrumentos
de dominação e controle, pois a ideologia dos dominantes tende a ocultar e esconder dos
98
dominados as contradições e as barbáries da economia capitalista. A disseminação da
ideologia norte-americana é consubstanciada por meio das agências “supranacionais” e pela
mídia global (televisão, cinema, etc.) sob controle estadunidense. Para Baber (2003, p. 41) “a
cultura mundial americana – a cultura McWord” tem como objetivo central construir “uma
sociedade universal de consumo que não seria composta nem por tribos nem por cidadãos,
todos maus clientes potenciais, mas somente por essa nova raça de homens e mulheres que
são consumidores”. Ainda segundo ele, a Music Television (MTV), a McDonald’s, a
Disneylândia e Hollywood funcionam, antes de tudo, como ícones da cultura norte-americana,
“cavalos de Tróia dos Estados Unidos imiscuindo-se nas culturas das outras nações”
(BABER, 2003, p.42).
Robert Mcchesney - em seu texto: Mídia global, neoliberalismo e imperialismo - apresenta de
forma detalhada a relação entre o sistema de mídia global e seus enlaces com o imperialismo
norte-americano atual. Para ele, quando as grandes firmas vendem seus produtos ao redor do
mundo elas estão vendendo a cultura popular estadunidense, sua pretensa prosperidade e seu
imaginário. “O sistema de mídia global pode ser bem entendido como aquele que defende
valores e interesses corporativos e comerciais [estadunidense] e denigre ou ignora os que não
podem ser incorporados à sua missão” (MCCHESNEY, 2003, p. 238).
O sistema de mídia global anuncia aos quatros cantos sua autonomia e sua liberdade de
imprensa, entretanto, defendem diretamente ou indiretamente interesses comerciais,
ideológicos e culturais demarcados. Mcchesney, em trecho abaixo, expressa muito bem essa
falsa ilusão da ausência de censura:
Na verdade, o gênio do sistema mídia comercial é a ausência geral de
censura aberta. Como observou George Orwell em sua introdução não
publicada de A revolução dos bichos (Animal Farm), a censura nas
sociedades livres é infinitamente mais sofisticada e completa do que nas
ditaduras, porque “idéias pouco populares podem ser silenciadas e fatos
inconvenientes ocultados sem nenhuma necessidade de proibição oficial”
(ORWELL apud MCCHSNAY, 2003, p. 236).
No âmbito econômico, a dominação estadunidense é originária do seu domínio do comércio
internacional e dos mercados financeiros e, também, da função exercida por sua moeda, uma
vez que o dólar americano funciona como unidade de conta, meio de troca e reserva de valor
99
internacionalmente (padrão monetário dólar flexível). O manejo do comércio internacional e
dos mercados financeiros – que tem nos títulos da dívida pública dos EUA os ativos líquidos
de última instância na economia mundial - permite aos Estados Unidos incorrerem,
constantemente, em déficits externos em conta corrente sem desestabilizar o dólar como
moeda internacional. Tais déficits funcionam como uma bomba de sucção da poupança
mundial, possibilitando expansões da economia doméstica estadunidense, em função dos seus
níveis negativos atuais de poupança interna. O mundo, principalmente a Ásia, financia o
padrão consumista da sociedade norte-americana. Tavares e Belluzo, em trecho abaixo,
sintetizam esse processo:
Os EUA, a despeito do monumental déficit em transações correntes, não
precisaram se preocupar com o risco de uma fuga do dólar. A demanda pela
moeda americana nasce hoje do papel dos Estados Unidos como economia
dominante no comércio internacional e nos mercados financeiros onde
continua a atração dos títulos públicos como ativos líquidos de última
instância na economia global. Enorme vantagem para quem tem um déficit
de transações correntes da ordem de US$ 550 bilhões. Com um déficit dessa
magnitude, qualquer outro país teria sofrido um ataque contra sua moeda. No
entanto, apesar dos augúrios, não parece provável uma derrocada do dólar. A
demanda de não-residentes por títulos do governo americano, especialmente
a que nasce dos saldos comerciais e enormes reservas dos países asiáticos,
vem permitindo a expansão do crédito e sustentação do preço dos ativos no
mercado financeiro americano. Enquanto isso, as famílias se endividam
ainda mais para adquirir produtos baratos oriundos dos “produtivistas” da
Ásia (TAVARES & BELLUZO, 2004, p. 134).
No que concerne à ocupação militar de territórios, os Estados Unidos, desde 1991, vêm
exercendo um ativismo militar sem precedentes, haja vista a ampliação de suas bases militares
nos mais diversos países e, principalmente, as ocupações recentes do Afeganistão e do Iraque
- nesta última os norte-americanos passaram por cima do suposto “poder supranacional da
ONU”. Mészáros já tinha alertado, antes mesmo das ocupações territoriais recentes, que o
imperialismo contemporâneo também está vinculado a ocupações de territórios. Segundo ele,
[...] os que sustentam que hoje o imperialismo não implica a ocupação
militar de territórios não apenas subestimam os perigos que nos esperam,
mas também aceitam as aparências mais superficiais e enganadoras como as
características substantivas definidoras do imperialismo de nosso tempo,
ignorando tanto a história quanto as tendências contemporâneas de
desenvolvimento (MÉSZÁROS, 2003, p. 55).
100
Os Estados Unidos reafirmaram e ampliaram sua posição de organizadores desse novo
imperialismo, a partir da regência do processo de globalização financeira e produtiva atrelado
a sua política externa pós-queda da União Soviética. Tal política ficou explícita a partir do
documento: “Estratégia para a segurança nacional dos Estados Unidos” distribuído após os
atentados de 11 de setembro de 2001. Naquele documento, os norte-americanos se reafirmam
onipresentes em escala mundial, uma vez que o mundo todo, pelo menos no plano da
segurança interna, participa da América. Nessa nova ordem, segundo o documento, a luta não
é mais contra um estado totalitário forte (bloco socialista), já que as forças da liberdade
venceram (democracia, liberdade e livre empreendimento). Segundo o referido documento,
todas as nações deverão garantir a liberdade econômica e política e os direitos humanos para
assegurar a prosperidade de seus povos. Os inimigos estadunidenses agora são os pequenos
Estados e grupos não-estatais que ainda resistem à penetração da moral política americana em
suas nações. Neste processo, os Estados Unidos devem atuar no sistema internacional como
agentes desta liberdade através do bom relacionamento entre as nações amigas - Estados
nacionais que se ajustam às posições e não oferecem perigo contra-hegemônico - e ajudar o
povo das nações inimigas a “restabelecer o caminho da prosperidade” mediante a implantação
da liberdade econômica e política.
As we defend the peace, we will also take advantage of an historic
opportunity to preserve the peace. Today, the international community has
the best chance since rise of the nation-state in the seventeenth century to
build a world where great powers compete in peace instead of continually
prepare for war. Today, the word’s great powers find ourselves on the same
side – united by common dangers of terrorist violence and chaos. The United
State will build on these common interests to promote global security. We
are also increasingly united by common values. [...] The United States will
use this moment of opportunity to extend the benefits of freedom across the
globe. We will actively work to bring the hope of democracy, development,
free markets, and free trade to every conrer of the world (THE
NATIONAL..., 2002, p. 02).
Os Estados Unidos proclamam-se convencidos de uma “missão” divina de estender ao
mundo, de maneira generosa e desinteressada, o modelo de liberdade, de democracia e dos
direitos humanos estadunidenses. Tal liberdade deveria se configurar como um valor
universal, inserindo-se assim, como um elemento categórico da construção de uma moral
kantiana que sobrepõe o poder. Desse modo, a liberdade, ao molde estadunidense, seria o
conjunto de regras que as sociedades deveriam seguir para alcançar um estado de paz
perpétua que seria configurado a partir do império mundial sob a égide norte-americano.
101
Entrementes, as estratégias adotadas pelos norte-americanos provocam um estado de guerra
intermitente, pois há uma imposição do “regime democrático”, através das armas, nas mais
variadas regiões do globo. Isto, na verdade, gera uma incompatibilidade à construção do
Império mundial liberal e, por conseguinte, do estado de paz perpétua devido à incongruência
entre subordinação ideológica e consentimento ativo. Apesar da busca insana para a
configuração do Império mundial liberal, desde 1991, verifica-se a impossibilidade de sua
construção, na medida em que isto exigiria a obtenção da hegemonia no sentido gramsciniano
(consentimento ativo), transladado para o âmbito internacional ao invés de um transformismo
(subordinação ideológica).
O que há subjacente nesta iniciativa norte-americana de construção de uma paz perpétua é a
ampliação de sua capacidade de controlar e coagir os mais diversos estados nacionais através
de uma nova dominação imperialista atrelada aos elementos econômicos, culturais, políticos,
comunicacionais e, principalmente, bélicos. Os Estados Unidos, com o pretexto de alcançar
um estado de paz no futuro conseguem ampliar seu controle econômico e ideológico
auferindo, cada vez mais, poder no sistema internacional e mantendo-se como centro
econômico e político. Portanto, a projeção das idéias kantianas para a organização de uma
nova estrutura internacional funciona, na verdade, como um instrumento ideológico de
dominação, uma vez que cria no imaginário coletivo dos povos a possibilidade dos mesmos
alcançarem um estado final de igualdade e solidariedade mundial dentro do sistema
capitalista.
Na verdade, o que existe contemporaneamente é uma organização imperialista, em grande
medida, articulada por meio de instituições globais, tais como, FMI, Banco Mundial e OMC,
que são dominadas eficazmente, tanto administrativa quanto politicamente pelas potências
centrais, principalmente, pelos Estados Unidos (McNALLY, 1999). Quando estas instituições
não conseguem integrar determinados países ao sistema mundial, através da cultura, da
política e do comércio, a potência imperialista, utiliza-se de ações militares -
consubstanciadas por determinadas agências “supranacionais” como as Nações Unidas e a
OTAN
55
- para integrá-los, com a retórica de que estariam estendendo ao mundo, de forma
55
“Within international institutions, such as the United Nations, or military structures such as NATO, the
hierarchy of powers is very strict. The US control to a large extent the military power of Europe, and make
constant efforts to secure such a coordinated military efficient order in various regions of the world, as in South
America” (DUMÉNIL & LÉVY, 2003, p.6)
102
abnegada, a liberdade, como foi recentemente confirmado com as invasões do Afeganistão e
do Iraque. Portanto, como afirma Katz:
Es también incorrecto conceptualizar la agresión como un acto del ‘imperio’
en el sentido de Negri y Hardt asignan a este término. Los marines no
actuaron al servicio de un capital transnacionalizado, globalizado e
indiscriminado, sino a pedido de las corporaciones norteanericanas, a fin de
apuntalar la competitividad de estas conpañías frente a sus rivales europeos
(KATZ, 2003, p. 4).
Em suma, o projeto de império mundial norte-americano perpassaria por uma hegemonia
consentida, que implicaria na transformação do terreno ideológico anterior e na criação de
uma visão de mundo nova que serviria de princípio unificador da nova vontade coletiva
(consentimento ativo). Conforme, descrito anteriormente, este não é o cenário hodierno, já
que a soberania política, via Estado-nação, garante a hierarquização do regime de acumulação
capitalista e a dimensão do controle e coerção se sobrepõe ao consentimento. Ademais, existe
ainda a possibilidade de ampliação do poderio da Europa a partir da União Européia. Isso, por
sua vez, provocaria uma maior tensão entre os capitais daquele continente frente aos seus
competidores norte-americanos que dependeriam, cada vez mais, da capacidade do Estado
norte-americano de traduzir seus avanços militares em dominação política e econômica,
abrindo, com isso, novos mercados.
Assim, as supostas novidades progressistas, tanto econômicas quanto políticas, tais como: (i)
as formulações radicalmente liberais (globalismo e projeto de império mundial) - que
aplaudem a extensão da livre-iniciativa como sinônimo de bem-estar geral – e (ii) as
elaborações da “nova esquerda” - que apregoam a evolução do capitalismo a uma nova
superestrutura política, em parte reunidas em torno do conceito de Império de Hardt & Negri,
que possibilitaria a superação do capital - não se sustentam à luz de uma análise mais rigorosa
que parte das contradições fundamentais do modo de produção capitalista. Na verdade,
verifica-se uma tentativa de homogeneização, em andamento, da superestrutura mundial, a
partir dos EUA que tenta universalizar seus valores culturais. Estes funcionariam como
instrumentos ideológicos voltados à legitimação das mudanças produtivas e financeiras,
centradas no novo imperialismo, facilitando, com isso, o aumento das taxas de extração de
mais-valia e da acumulação rentista nos mais diversos espaços nacionais.
103
Para Mészáros o novo imperialismo, sob o comando norte-americano, estaria
consubstanciando uma grande instabilidade nos cenários nacionais e internacionais que
poderia, inclusive, gerar um estado de barbárie mundial. Segundo ele nós
[...] entramos na fase mais perigosa do imperialismo em toda história; pois o
que está em jogo hoje não é o controle de uma região particular do planeta,
não importando o seu tamanho, nem a sua condição desfavorável, por
continuar tolerando as ações independentes de alguns adversários, mas o
controle de sua totalidade por uma superpotência econômica e militar
hegemônica, com todos os meios – incluindo os mais extremamente
autoritários e violentos meios militares – à sua disposição. É essa a
racionalidade última exigida pelo capital globalmente desenvolvido, na
tentativa vã de assumir o controle de seus antagonismos inconciliáveis
(MÉSZÁROS, 2003, p. 53-54).
Este novo imperialismo, na verdade, afeta diretamente todas as realidades espaciais da
economia-mundo capitalista, desde a África, à Ásia, ao Oriente Médio, à América Latina até a
Europa, em virtude da forte integração das diversas regiões ao modo de produção capitalista.
Apesar dos efeitos mundiais dessa nova configuração política internacional, verifica-se que
tais impactos materializam-se de forma diferenciada nos espaços nacionais e regionais. Tal
diferenciação espacial ocorre em virtude da própria característica desigual e hierarquizada da
economia-mundo capitalista - um sistema econômico mundial integrado de forma
polarizadora e hierarquizada em diversos níveis que tem uma economia central
“comandando” a dinâmica mundial. Neste contexto, a dinâmica capitalista vai sendo
construída a partir de trajetórias distintas espacialmente que conformaram capitalismos
periféricos e centrais, tendo em vista o nível hierárquico político-econômico que determinada
região assume na economia-mundo. A partir daqui, serão analisados os impactos das
mudanças da dinâmica do capitalista contemporâneo supracitadas sobre os espaços regionais
dependentes, mais especificamente na América Latina e em particular no Brasil.
104
CAPÍTULO III
O CAPITALISMO DEPENDENTE LATINO-AMERICANO À LUZ DAS
TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos
dias, tudo de transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e
como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder.
Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minérios, os homens e sua
capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos
(GALEANO, 1978, p. 14).
A América Latina foi forjada pelo capitalismo nascente por meio do processo de expansão
comercial do século XVI. Desde seu “descobrimento” até os dias atuais essa região se
desenvolveu de forma atrelada - em menor ou maior grau a depender do contexto histórico –
aos movimentos do capitalismo internacional sob o auspício de uma determinada potência
capitalista. Em seus primórdios, o ouro e a prata pilhados dos países da região, na fase
colonial, foram utilizados na acumulação originária do capital industrial europeu,
principalmente inglês, possibilitando a expansão dos meios de pagamentos, o que, por sua
vez, permitiu a expansão do capital comercial e bancário na Europa. Num segundo momento,
entre 1850 e 1930, a América Latina se inseriu num processo de divisão do trabalho definida
pelos países capitalistas centrais europeus em que a região cumpria a função de fornecedora
de alimentos (bens-salários) e matérias-primas para os países centrais (modelo agro-
exportador latino-americano), comprando dos países centrais produtos manufaturados. É a
partir desse momento histórico que ocorre a configuração da dependência, apreendida como
uma relação de subordinação entre países formalmente independentes. Entre os anos 1930 e
final dos anos 1980, os Estados nacionais latino-americanos experimentaram um período
atípico de sua história, na qual foi possível obter uma maior margem de manobra interna no
exercício e no manejo de políticas socioeconômicas, o que, por sua vez, possibilitou a
configuração do processo de industrialização latino-americano assentado no modelo de
“substituição de importações”. Vale ressaltar que tal industrialização se estruturou em bases
diferenciadas do que foi verificado nos países centrais do capitalismo. Mesmo com aquela
relativa maior autonomia regional, o capital forâneo, principalmente o norte-americano,
continuou presente entre nós durante todo esse período, haja vista o processo de “exportação
de capitais” (investimento direto estrangeiro) para a região, principalmente produtivo,
105
consolidado através do avanço das multinacionais estadunidenses sobre o continente
americano, com o intuito de ampliar os espaços de produção e reprodução do valor e da
dominação estadunidense (D-M-D’).
Dessa forma, todas as riquezas – recursos naturais e humanos - latino-americanas têm-se
acumulado até hoje nos distantes centros de poder. “A chuva que irriga os centros do poder
imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema”. E ao mesmo tempo propiciam “o bem-
estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a
maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de besta de carga” (GALEANO, 1978,
p. 14). Essa conformação histórica deixou um legado pesado de elevada concentração da
riqueza e de mazelas sociais recalcitrantes.
Tal cenário de concentração de riquezas e de mazelas sociais históricas na região não se
modificou a partir dos anos 1990, pelo contrário, verifica-se uma ampliação dos problemas
históricos em virtude da inserção passiva da região ao processo de globalização financeira e
reestruturação produtiva. A América Latina a partir daquele período passaria a funcionar
como um espaço de acumulação do capital financeiro, por meio da ampliação dos títulos da
dívida pública locais, e como um mercado consumidor de produtos manufaturados norte-
americanos. Nessa nova fase, o “novo imperialismo” estadunidense, com o patrocínio do
capital produtivo e, principalmente, financeiro – bancos privados e, principalmente, fundos
mútuos e de pensão – ampliou seus tentáculos sobre a região, ao mesmo tempo, que limitou a
capacidade dos Estados nacionais latino-americanos de construírem políticas econômicas
autônomas.
Assim, a degradação social e econômica vivenciada pelos países da América Latina, durante
as duas últimas décadas, não consegue ser explicada pela tese da herança cultural, associada à
suposta incompatibilidade, entre os valores ibéricos tradicionais, o pluralismo político e a
liberdade de mercado. Na verdade, as crises socioeconômicas recorrentes, o crescimento da
instabilidade e da vulnerabilidade, o retrocesso e a ampliação da desarticulação social
configurados a partir das décadas de 1980 e de 1990, só conseguem ser apreendidos, em sua
totalidade, a partir da percepção das modificações atreladas à dinâmica da acumulação
capitalista atual e das características particulares das dimensões constitutivas do capitalismo
dependente latino-americano estruturalmente marcado pela desarticulação setorial e social.
106
3.1. O capitalismo dependente latino-americano: do modelo agro-exportador ao fim do
modelo “desenvolvimentista industrializante” num breve panorama
A América Latina, entre 1850 e 1930, foi levada a engendrar o modelo de desenvolvimento
primário-exportador que teve como eixo dinâmico a economia do setor externo, mais
especificamente a exportação de apenas um ou dois produtos primários – desenvolvimento
“para fora”. Naquela perspectiva, as exportações funcionavam como uma variável exógena
responsável pela maior parte da renda nacional e pela quase exclusividade do seu dinamismo
e as importações funcionavam como fonte flexível de suprimentos dos vários tipos de bens e
serviços que atendem grande parte da demanda interna (TAVARES, 1983; TAVARES,
2000). Em um arcabouço liberal tal desenvolvimento “para fora” latino-americano, assentado
em produtos primários, poderia ser explicado pela divisão do trabalho associada à teoria das
vantagens comparativas
56
do comércio internacional de David Ricardo.
A divisão internacional do trabalho, na verdade, foi sendo imposta pelo processo histórico de
desenvolvimento do capitalismo – assunção da grande indústria -, em suas especificidades
espaciais, na configuração e integração do mercado mundial. O espaço latino-americano,
naquele período, surgia como o principal fornecedor de alimentos e matérias-primas aos
países industrializados, impulsionando a oferta mundial de alimentos. Ruy Mauro Marini, em
seu artigo clássico Dialética da dependência, ressalta que essa função da América Latina vai
muito além do que uma simples resposta aos requerimentos físicos da acumulação dos países
centrais, uma vez que a maior oferta mundial de bens primários (bens-salários) possibilitou o
aumento da mais-valia relativa nos países centrais.
A oferta mundial de alimentos, que a América Latina contribuiu a criar e que
alcança seu auge na segunda metade do século XIX, será um elemento
decisivo para que os países industriais confiem ao comércio exterior a
atenção de suas necessidades de meios de subsistência. O efeito dessa oferta
(ampliada pela depressão dos preços dos produtos primários no mercado
mundial) será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países
56
Para Ricardo quanto mais livres forem as fronteiras dos estados, mais eficiente seria a alocação do mercado no
âmbito internacional, já que a alocação produtiva nacional dependeria apenas da sua maior produtividade
marginal em determinados produtos com relação aos produtos forâneos. Tal divisão engendraria o bem estar no
sentido paretiano beneficiando o conjunto das nações.
107
industrializados, permitindo assim que o incremento da produtividade se
traduza ali em cotas de mais-valia cada vez mais elevadas. Em outras
palavras, mediante sua incorporação ao mercado mundial de bens-salários, a
América Latina desempenha um papel significativo no aumento da mais-
valia nos países industriais (MARINI, 2000, p. 115-116).
Tal processo foi marcado por uma profunda contradição, a saber: o subsídio da economia
primário-exportadora latino-americana na ampliação da extração da mais-valia relativa nos
países industriais, só foi possível a partir de uma acumulação interna centrada na
“superexploração”
57
do trabalhador (op. cit., 2000).
Na economia primário-exportadora latino-americana a capacidade interna de consumo -
concentrada no consumo do trabalhador - pouco interferia na realização de grande parte da
produção, uma vez que o grosso da produção destinava-se ao mercado forâneo. Verifica-se,
portanto, desde então, uma grande desarticulação interna entre os departamentos de consumo
e de produção. Com essa desarticulação o consumo individual do trabalhador não interfere na
realização do produto, diferentemente dos países centrais industrializados em que o fundo de
consumo do trabalhador é um dos componentes fundamentais da demanda efetiva e, por
conseguinte, do processo de realização do valor. Em outras palavras, uma desvalorização ou
uma valorização das mercadorias da economia exportadora latino-americana não afeta
substancialmente o valor da força de trabalho. Em conseqüência, de tal fenômeno
característico das economias dependentes latinas, materializou-se uma tendência de
exploração máxima da “força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições
para que este a reponha, sempre que seja possível substituí-lo mediante a incorporação de
novos braços ao processo produtivo”, tal tendência tornou-se possível, à época, haja vista “a
existência de reservas de mão-de-obra indígena (como no México) ou os fluxos migratórios
derivados do deslocamento de mão-de-obra européia” (op. cit., p. 134).
No que se refere à circulação interna das mercadorias nos países latino-americanos, observou-
se que o modelo exportador criou uma estratificação do mercado interno em virtude da
separação entre o consumo dos trabalhadores (salários) e dos capitalistas (mais-valia não
57
“A superexploração do trabalho representa um regime de acumulação em que a força de trabalho sofre uma
queda permanente de seus preços em relação ao seu valor. Esta queda se manifesta por três formas principais:
pelo aumento da jornada de trabalho sem a elevação dos preços da força de trabalho correspondente ao seu maior
emprego; pelo aumento da intensidade de trabalho sem a equivalência salarial correspondente ao seu maior
desgastes; e pela redução do fundo de consumo do trabalhador” (MARINI apud MARTINS, 1999 p. 02).
108
acumulada) no âmbito das esferas de circulação. Marini, em trecho abaixo, apresenta tal
diferenciação entre as esferas de circulação:
Enquanto a esfera “baixa”, em que participam os trabalhadores – que o
sistema se esforça para restringir -, se baseia na produção interna, a esfera
“alta” de circulação, própria dos não trabalhadores – que é a que o sistema
tende a ampliar -, se entronca com a produção externa, através do comércio
de importação (op. cit., p. 135).
O modelo exportador desarticulado setorialmente e socialmente provocou uma cisão profunda
na esfera da circulação de bens-salários e dos bens associados ao consumo capitalista. Tal
separação influenciou de maneira decisiva nos modelos de desenvolvimento latino-
americanos posteriores (“substituição de importações” e modelo neoliberal).
A crise capitalista de 1929 provocou uma redução da demanda mundial, principalmente por
produtos agrícolas, e uma queda nos níveis de preços. Isso, por sua vez, criou impedimentos à
acumulação, baseada na produção para o mercado externo, que teve que se deslocar para a
indústria. Nascia a partir daí o processo de industrialização dependente latino-americano.
Com a crise e com seu posterior desfecho, a América Latina, entre 1930 e início dos anos 70,
conseguiu experimentar uma maior margem de manobra no exercício e no manejo de suas
políticas econômicas, facilitando, em certa medida, a consecução de políticas destinadas ao
processo de industrialização. Essa maior autonomia esteve vinculada, no primeiro momento, à
crise de 29 e às duas guerras que desestruturaram as bases econômicas e geopolíticas
internacionais. Tais fatos, por sua vez, provocaram, pelo lado político, certo vácuo de poder
no ponto hierárquico mais alto do sistema-mundo capitalista – transição da supremacia
inglesa à norte-americana – e, pelo lado econômico, crises no comércio exterior que
diminuíram a capacidade de importação dos países da região. Isso, por sua vez, levou vários
governos a adotarem medidas de estímulo a atividades internas. Num segundo momento,
mesmo com a hegemonia norte-americana consolidada, a maior autonomia latino-americana
esteve vinculada a maior benevolência estadunidense com os países da região alinhados ao
eixo capitalista devido à conformação do bloco socialista – arranjo geopolítico internacional
bipolar.
109
A industrialização latino-americana se conformou a partir de bases bastante distintas do
processo de industrialização clássica dos países centrais, uma vez que a industrialização
dependente “nasce para atender a uma demanda já constituída e se estruturará em função das
exigências de mercado procedentes dos países avançados”, não criando, portanto, sua própria
demanda (op. cit., p. 140). O que se verificou foi um deslocamento da esfera “alta” da
circulação, que antes se voltava ao consumo de produtos importados, para a produção interna
de produtos suntuários. Em tal modelo
[...] já não é a dissociação entre a produção é a circulação de mercadorias em
função do mercado mundial que opera, mas a separação entre a esfera alta e
a esfera baixa da circulação no interior mesmo da economia [...] Dedicada à
produção de bens que não entram ou entram muito escassamente na
composição do consumo popular, a produção latino-americana é
independente das condições de salário próprias dos trabalhadores (op. cit., p.
141-142).
Desse modo, o recurso da superexploração do trabalhador também foi utilizado, de forma
específica, na economia industrial dependente, já que a dinâmica econômica industrializada
continuou dissociada dos salários dos trabalhadores. Para suprir os problemas vinculados à
pequena demanda interna originária do consumo dos trabalhadores, o capitalismo dependente
“encontra três formas possíveis” de solucionar tal problemática: “a exportação de mercadorias
e de capitais; o consumo estatal e o aprofundamento do consumo suntuário” (MARTINS,
1999, p.8),
O boom econômico do pós-II Guerra, na América Latina, assumiu características bastante
diferenciadas da dos países centrais, em virtude da sua condição de economia industrial
dependente – desarticulação entre os departamentos de produção e consumo. Nessa condição,
não se verificou na região, a consolidação de uma economia de demanda efetiva ampla como
nos países centrais do capitalismo, pois a construção da industrialização não significou uma
forte elevação dos níveis salariais, nem tão pouco numa ampla redução do exército industrial
de reserva, apesar da elevação ingente dos índices de crescimento do investimento, de
produção e de produtividade na região.
Portanto, a dinâmica do crescimento regional, nos anos dourados, foi atrelada à substituição
do modelo de desenvolvimento “para fora” (primário-exportador) pela acumulação industrial.
110
A industrialização dependente só conseguiu se consolidar através da ampliação do consumo
das camadas médias e do esforço para aumentar a mais-valia absoluta e relativa
(superexploração do trabalho), condição necessária para baratear as mercadorias.
Configurando assim, na região, um modelo incompleto de demanda efetiva (MARINI, 2000).
A nova configuração econômica e política internacional de cooperação e coordenação
internacional, sob a égide norte-americana, - Plano Marshall, sistema financeiro internacional
“regulado”, apoio político-econômico norte-americano aos seus aliados e concorrentes e até
mesmo uma maior conivência com o protecionismo dos Estados periféricos aliados - abriu a
possibilidade de expansão da industrialização dependente, principalmente do México, Brasil e
Argentina, através da importação de capitais forâneos, sob a forma de financiamento e de
investimentos diretos na indústria. Esse afluxo de capitais estrangeiros, na região, ocorreu,
principalmente, a partir do término da reconstrução européia (Plano Marshall) e japonesa,
uma vez que as grandes corporações financeiras e não-financeiras estadunidenses e européias
– que nesse momento apresentavam grande liquidez de capital – necessitavam de novos
espaços de valorização e de realização, buscando assim, garantir a manutenção das taxas de
lucro. Naquele período, as firmas multinacionais, principalmente as estadunidense,
perceberam que a “periferia” deveria ser um novo eixo de expansão, principalmente, do
capital industrial.
A alta lucratividade do capital forâneo, investido no setor industrial dos países periféricos, era
garantida pelo mecanismo de “superexploração” do trabalho na indústria periférica e pela
necessidade, por parte dos países centrais, de exportar equipamentos e maquinarias obsoletos
não amortizados completamente, devido ao acelerado progresso técnico. Na verdade,
verificou-se que “a industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão
internacional do trabalho, em cujo âmbito se transferem aos países dependentes etapas
inferiores da produção industrial” (op. cit., p.145).
As contradições do capitalismo dependente, em associação com a crise da década de 1970,
empurraram a América Latina para o esgotamento do modelo de substituição de importação.
Ficara clara que as estratégias de crescimento econômico dos países latino-americanos nos
anos 70, pautadas no endividamento externo e na redução do controle das importações, não
poderiam ter fôlego longo. Na verdade, tais estratégias consubstanciaram desequilíbrios
111
socioeconômicos, configurando, com isso, o caminho à bancarrota dos países latino-
americanos na década de 1980. Essa
[...] configuração desequilibrada das economias latino-americanas, com
marcada preponderância da indústria de bens suntuários e a restrição de seus
mercados, determinada primariamente pela superexploração do trabalho e
expressada em uma concentração crescente de ingresso, as empurrava de
fato para a crise, não deixando-lhes outra alternativa senão – paralelamente à
tentativa de abrir novos campos ao investimento estrangeiro, o que
reproduzia de maneira ampliada a contradição inicial – o esforço por
conseguir mercados preferenciais, sem prejuízo de que se acusasse a
tendência ao protecionismo comercial (op. cit., 2000, p. 274)
3.2. O endividamento estrutural latino-americano e a “década perdida” dos anos 1980: a
“pavimentação social” para a assunção do neoliberalismo
A crise estrutural da década de 1970 e as medidas tomadas, por parte do capital, para sua
reversão promoveram profundas transformações socioeconômicas e políticas no âmbito das
relações entre países centrais e periféricos. Desde então, os países e regiões dependentes que
participam do sistema do capital passaram a enfrentar profundas mudanças, as quais, na maior
parte das vezes, representaram um retorno do grau de desenvolvimento a períodos pretéritos,
aprofundando, com isso, o quadro social amplamente desigual conhecido desde a superação
do período colonial. Em particular, os países latino-americanos adentraram em um período
marcado profundamente por crises recorrentes, crescimento da instabilidade, retrocesso e
ampliação da desarticulação social - característica histórica do capitalismo dependente. Para
estes países, a cristalização deste quadro deletério deu-se mediante a fixação de um processo
estrutural de reprodução da dependência associado à conformação do endividamento
estrutural.
O declínio da taxa de lucratividade das empresas, os déficits ingentes no balanço de
pagamento estadunidense e a forte elevação da quantidade de petrodólares no mercado
financeiro da Europa provocaram, na década de 1970, o aumento dos fluxos de capitais na
forma financeira. Em face desse excedente crescente, verificou-se que parcela significativa da
chamada liquidez financeira do mercado internacional foi transferida para os países atrasados,
em particular os da América Latina, na forma de empréstimos. Estes passaram a priorizar o
endividamento como estratégia principal de desenvolvimento econômico, o qual, por sua vez,
112
se transformou em um dos elementos mais significativos da estrutura contemporânea da
reprodução capitalista.
Naquele novo contexto, a dívida dos países latino-americanos ocupou o lugar da política de
desenvolvimento nacional baseada na “substituição de importações” que havia sido adotada
desde os anos 1930. Isto quer dizer que essas economias tiveram que passar por uma primeira
reestruturação produtiva no interior da qual o esforço exportador passou a ser a variável mais
importante em detrimento da expansão do mercado interno. A dívida foi formada, sobretudo,
entre 1965 e 1985, passando, então, a ser administrada como fator de reprodução da
rentabilidade do capital financeiro oriundo dos países centrais. Naquele período, a principal
mudança foi a adequação dos Estados nacionais ao processo de constituição da dívida. Os
governos latino-americanos, por conseguinte, internalizaram um volume imenso de recursos
financeiros reciclados pela banca internacional mediante políticas de desenvolvimento que em
alguns casos, e por um período limitado, viabilizaram taxas de crescimento acima daquelas
verificadas historicamente ao longo da década de 1970, mesmo com crescentes déficits
fiscais, na conta corrente e no balanço de pagamento.
Acontece que aquela montanha de dinheiro, que fluiu para a região, foi contratada para
começar a vencer em períodos relativamente curtos e a taxas de juros flutuantes (LIBOR e
prime rate americana). Evidentemente, com o aumento ingente das taxas de juros
internacionais, em 1979, proveniente da mudança de sinal da política interna e externa norte-
americana (política Volcker), os países latino-americanos não foram capazes de viabilizar
excedentes necessários ao pagamento regular do serviço da dívida e passaram a adotar o
regime de financiamento Ponzi
58
, caracterizado pela extrema fragilidade a choques externos.
Assim, o choque dos juros internacionais provocou, sobretudo nos países endividados, crises
cambiais e fiscais intensas configurando um quadro de iminente desmoronamento dos
sistemas monetários nacionais (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).
Não demorou muito para a América Latina sentir o impacto da política Volcker norte-
americana. O primeiro grande país da região a cair foi o México que entrou em crise em 1982,
decretando moratória. Os impactos da bancarrota mexicana se espalharam aos outros países
58
Segundo Minsky essa etapa corresponde ao processo de endividamento em que a tomada de novos créditos
decorreu da necessidade de se cobrir o serviço da dívida passada.
113
latino-americanos, já que, com a decretação do default, minguaram os fluxos de capitais para
a região
59
. Logo toda a região foi guiada à crise da dívida, haja vista os problemas no balanço
de pagamentos, aprofundados pela recessão mundial e pela ampliação da deterioração dos
termos de troca. A América Latina, então, adentra numa fase que passou a ser conhecida
como a “década perdida”. Sendo assim, denominada em face do peso da dívida relativamente
ao tamanho do produto interno e das baixas taxas de crescimento da formação bruta de capital
e do produto
60
.
Um outro agravante, naquele contexto de crise, fora a iminente insolvência das empresas e
bancos privados latino-americanos nos anos finais da década de 1970. Tal insolvência esteve
relacionada ao aumento do endividamento externo privado em moeda estrangeira “forte” e à
redução das expectativas de lucros esperados num contexto de recessão econômica. Para
evitar a bancarrota do setor privado, os Estados latino-americanos, entre 1978 e 1979,
assumiram os passivos externos privados em moeda estrangeira; cabendo, então, às
instituições privadas pagar suas dívidas em moeda nacional aos seus governos, tendo estes
que assumir o ônus dessa diferença cambial. Este fenômeno foi denominado: “estatização da
dívida externa”. Tal
[...] procedimento tinha amparo porque a maioria dos Estados não tinha
dólares disponíveis para saldar aqueles compromissos. Com isso, os Estados
nacionais inflacionaram seus gastos com juros e correção cambial da dívida
externa, agravando ainda mais sua crise fiscal (CANO, 2000, p. 31).
À medida que as taxas de juros internacionais iam aumentando a partir de 1979, ampliaram-se
as obrigações da dívida externa dos Estados latino-americanos, levando-os literalmente à
bancarrota. Destarte, o processo de estatização da dívida externa aprofundou a crise fiscal do
Estado, uma vez que se fez necessário expandir a venda de títulos da dívida pública interna
com vistas à obtenção de receitas que possibilitassem a compra de divisas para o pagamento
de juros e de parte das amortizações da dívida externa. Os governos contraíram dívidas no
mercado interno para amortizarem dívidas externas, criando assim, uma verdadeira ciranda
59
Entre 1984 e 1989, o saldo da conta de capitais em porcentagem do PIB, na região – média entre Colômbia,
Chile, Peru, Argentina, México e Brasil – foi negativo em 1,6%, ou seja, existiu transferência líquida para o
exterior (CEPAL, 2002b).
60
A crise do endividamento provocou uma forte redução das taxa de crescimento do PIB regional (de 5,6%, nos
anos de 1970, para 1,2%, na década de 80, na média anual) (CEPAL, 2002b).
114
financeira que provocou ingente elevação do endividamento do setor público e pressões
altistas nos níveis de preços. Cano (2000), em passagem abaixo, descreve esse processo:
Dado o risco e baixa credibilidade no Estado, a dívida interna era negociada
a altos juros e com vencimentos efetivos diários na rede bancária, o que a
convertia em quase moeda. Com isso, a ampliação da dívida pública interna
inflacionava ainda mais o gasto público, agora com mais juros e correções
monetárias aos credores nacionais. Estava criada, assim, uma geminalidade
financeira entre as duas dívidas, aumentando ainda mais as pressões altistas
no sistema de preço [, em virtude da criação da quase moeda] (CANO, 2000,
p. 31).
Tal tipo de financiamento da dívida externa, em associação com a fuga de capital da região a
partir da moratória mexicana, provocou um estrangulamento tanto na obtenção de divisas
quanto na geração de recursos fiscais. Naquele cenário de estrangulamento ficara claro que
seria impossível cumprir, ainda que parcialmente, os serviços da dívida. Diante disso, quase
toda região teve que buscar empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao
Banco Mundial (BM) para financiar a conta de transações correntes. A contrapartida
requerida por estas instituições foi a implementação de políticas de ajustes macroeconômicos
voltadas a exportação. Tais políticas constituíam-se dos seguintes pontos: i) políticas fiscais e
monetárias restritivas; ii) controle dos níveis salariais objetivando a redução dos salários reais.
A conjunção desses dois elementos provocou a queda do consumo interno e dos
investimentos; e iii) desvalorizações cambiais recorrentes, como forma de incentivar as
exportações e reduzir as importações, buscando aumentar os superávits comerciais com o
objetivo de reduzir os déficits em transações correntes. As políticas de desvalorizações
possibilitaram o ajuste exportador, em contrapartida, provocaram uma forte elevação dos
níveis de preço, em virtude da inflação de oferta originária da elevação dos preços dos
produtos importados (BALANCO & PINTO & MILANI, 2003; CANO, 2000).
Na verdade, essas políticas tinham com único propósito criar receitas em divisas estrangeiras
necessárias ao pagamento do serviço da dívida. Vale ressaltar que o pagamento dos juros aos
credores absorveu uma parcela significativa da elevação das exportações nos anos de 1980.
Entrementes, o esforço exportador, pós-1985, realizado na região, foi, em grande parte,
115
corroído, em função da deterioração dos termos de troca
61
, em especial, no que se refere às
commodities agrícolas e industriais.
Os países da região passaram, portanto, a implementar um esforço exportador desmesurado
com o único propósito de criar receitas em divisas estrangeiras necessárias ao pagamento do
serviço da dívida. Tal esforço só poderia ser viabilizado a partir da redução da absorção
interna, o que, por sua vez, remetia a aplicação de uma recessão econômica de longo
alcance
62
. Esse ajuste exportador não surtiu os efeitos desejados nas contas do setor externo
na primeira metade da década de 1980, já que, entre 1980 e 1985, as importações, na média
anual, reduziram-se em 8,1% e as exportações praticamente não cresceram (0,8 % na média
anual). As contas externas só começaram a melhorar na segunda metade da década de 1980
(entre 1986 e 1990), em virtude do afrouxamento da demanda interna, das desvalorizações
cambiais e das renegociações da dívida externa. As importações voltaram a crescer numa
taxa de 9,7%, em média anual, e as exportações, também, cresceram cerca de 5,8%, em média
anual. Apesar disso, a participação da região nas exportações mundiais encolheu de 5,5% para
3,9%, entre 1980 e 1990, o que, por sua vez, comprova a inserção marginal da América Latina
nos fluxos comerciais mundiais (CEPAL, 2002a).
Os grandes países da América Latina, Argentina, Brasil e México, em diferentes momentos da
década de 1980, enfrentaram crises internas agudas cujas características principais foram a
recessão e a inflação galopante e recorrente
63
, uma vez que tanto a política de desvalorização
cambial quanto a criação da quase moeda do processo de financiamento da dívida externa
provocavam pressões altistas no nível geral de preços.
61
Na década de 1980 ocorreu uma deterioração dos termos de troca para a América Latina. Tal indicador caiu
de 130 para 95,6, entre 1980 e 1993 (CEPAL, 2002a).
62
As medidas de contenção da absorção interna do ajuste macroeconômico exportador, da década de 80,
impactaram negativamente no nível de atividade regional. Entre 1980 e 1985, taxa de crescimento do PIB foi
ínfima, cerca de apenas 0,6 %, ao ano, em média. A mesma tendência de crescimento baixo foi verificada, entre
1985 e 1990, tendo o PIB se incrementado em apenas 1,9%, ao ano (CEPAL, 2002a e 2002b).
63
A taxa média anualizada de inflação, no conjunto da América latina, elevou-se para 84,4%, entre 1980 e 1984,
e aumentou ainda mais, entre 1985 e 1989, alcançando o patamar de 229,8% (CEPAL, 2002a).
116
No geral, embora tivessem parcialmente superado os efeitos mais deletérios, no momento em
que os efeitos mais graves de seus respectivos choques particulares foram amenizados, a dura
realidade do endividamento já se tornara estrutural
64
.
Nesta altura, a dependência crucial dos capitais de financiamento para
garantir a reprodutibilidade da própria dívida, e possibilitar pequenos
períodos de recuperação limitada, constituíra-se como inexorável e seria
decisivo no novo ambiente que se formaria entre o final dos anos 80 e início
dos anos 90 do século passado (BALANCO & PINTO & MILANI, 2003, p.
05).
Percebe-se, portanto, que o endividamento constituído no período 1965-1985 tornou-se, em si
mesmo, um obstáculo ao crescimento e, ao mesmo tempo, fonte principal da instabilidade
crônica e de processos recessivos permanentes nos quais ingressaram os países da América
Latina. No período contemporâneo, iniciado na segunda metade da década de 1980, este fator
estrutural conduziu estes países a uma posição de dependência crucial frente ao capital
externo. Como afirma Salama (2000),
[...] em geral a política de taxas de juros altas é [...] um freio ao
desenvolvimento e pesa muito sobre o serviço da dívida interna dos Estados,
aprofunda rapidamente os déficits orçamentários destes e é fonte de
ceticismo crescente quanto à política econômica do governo (SALAMA,
2000, p.36).
Em suma, o ajustamento dos anos 80, na região, patrocinou a reestruturação corrente e
patrimonial do grande capital; em contraponto, provocou desequilíbrio do setor público. A
preservação dos lucros e do patrimônio do setor privado e o certo re-equilíbrio em conta
corrente foram conseguidos a custas de altos níveis inflacionários, da precarização da situação
cambial e do agravamento da vulnerabilidade fiscal do setor público e de suas respectivas
empresas estatais (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).
As crises, que se sucederam, em diversos países da região, serviram como uma pavimentação
social para a assunção social do modelo de desenvolvimento liberal na década de 1990. Os
64
As elevadas taxas de juros, que serviram de instrumento na captação recursos via emissão de títulos da dívida
pública interna, funcionaram como agente da desestruturação das contas públicas – agravando fortemente os
déficits orçamentários em virtude dos pagamentos dos serviços da dívida - dos Estados latino-americanos. O
montante da dívida externa bruta desembolsada passou de US$ 222,7 bilhões para US$ 468,3 bilhões, entre 1980
e 1990 (CEPAL, 2002b).
117
ajustes macroeconômicos heterodoxos, da década de oitenta, não conseguiram compatibilizar
o ajustamento do balanço de pagamentos e o reordenamento das finanças públicas. Na
verdade, o conflito distributivo na América Latina, que foi modelado pelo regime monetário
inflacionário dos anos 80, significou a primeira etapa da renúncia da soberania monetária dos
Estados, já que estes delegaram, em grande parte, ao FMI e ao Banco Mundial as estratégias
econômicas regionais. Tais estratégias acabaram voltando-se para os que enriqueceram com
os títulos da dívida e para legitimação do ideário neoliberal (PEREIRA, 2001).
3.3. A integração passiva latino-americana dos anos 1990: impactos dos ajustes
estruturais neoliberais
A década de 1990 foi marcada por profundas transformações no âmbito das relações entre
países centrais e periféricos, em virtude da: i) implosão do mundo socialista e da posterior
estratégia estadunidense de busca de construção de um império liberal, conforme descrito em
capítulo anterior; ii) forte desaceleração nas economias desenvolvidas, com a exceção dos
EUA, principalmente na segunda metade da década; iii) queda das taxas de juros
internacionais em comparação com as taxas dos anos 1980; iv) integração de novos espaços à
dinâmica do capital através da reestruturação das dívidas externas; v) reestruturação produtiva
das multinacionais nos espaços periféricos; e vi) busca estadunidense de mercado externo
para seus novos excedentes exportáveis.
As economias dos países centrais, sobretudo o Japão e o Estados Unidos, atravessaram, no
início dos anos de 1990, situações econômicas restritivas. Os EUA sofreram uma forte
recessão, entre 1990 e 1992, enquanto no Japão ocorreu o “estouro” de uma bolha
especulativa financeira. Isso provocou uma deflação da riqueza mobiliária e imobiliária nos
mercados globalizados. Numa situação como aquela os Bancos Centrais daqueles países
reduziram suas taxas de juros fortemente, buscando assim, equalizar os desequilíbrios tanto
correntes quanto do balanço patrimonial de empresas, bancos e famílias (BELLUZZO &
ALMEIDA, 2002; BRENNER, 2003).
118
As reduções dos juros nos países centrais provocaram uma grande elevação da liquidez
internacional. Parte deste capital direcionou-se à América Latina
65
, engajando-a assim em um
novo ciclo de absorção de capitais externos. A região se configurou como um novo porto
bastante rentável para os capitais forâneos. Isso representou uma reviravolta em relação aos
anos de 1980, momento em que a região praticamente não participou da rápida expansão dos
fluxos financeiros na economia internacional daquela década. Na verdade, aquele afluxo de
capital, inclusive com períodos de superabundância, potencializou a integração da região à
dinâmica de acumulação do capital. Quer seja como espaço de reprodução da acumulação
financeira ou como espaço de realização das mercadorias do setor manufatureiro norte-
americano por meio do ajuste importador realizado pela América Latina ao longo de boa parte
dos anos noventa.
A maior liquidez internacional, em associação com a abertura comercial e financeira e com a
reestruturação das dívidas externas por meio do Plano Brady, potencializou o afluxo de
capital para os países latino-americanos. Além da abertura da conta de capital, a dinâmica
financeira foi impulsionada pela securitização das dívidas externas e internas através da
emissão de bônus negociáveis no mercado financeiro norte-americano e das inovações
financeiras (derivativos, mercados futuros, etc.). Nesse novo contexto, a América Latina sai
da posição de exportador líquido de capitais para se tornar receptor, principalmente, de
capitais de curto prazo (hot-money).
A expansão da integração da América Latina ao mercado mundial, através da retomada das
“exportações de capitais”, especulativos e voláteis em sua grande maioria, dos países centrais
para os países dependentes, ao longo da década de 1990, aprofundou ainda mais o
endividamento estrutural. A impossibilidade de se desatrelar deste endividamento permanente
foi cristalizada mediante a aplicação dos ajustes estruturais de corte neoliberal.
A intensa abertura comercial e financeira regional, na década de 1990, também esteve atrelada
à estratégia comercial norte-americana voltada para a recuperação da competitividade das
65
A partir de 1990, o continente (média entre Colômbia, Chile, Peru, Argentina, México e Brasil) se inseriu no
mercado internacional como receptor de investimentos de portfólio e o saldo da conta de capitais foi de 1,4% do
PIB (UNCTAD, apud MEDEIROS, 1997, p. 293). Dessa forma, o crédito interno, entre 1988 e 1993, aumentou
de 22% para 30 % do PIB, enquanto o índice dos preços dos valores negociados em bolsa incrementou-se mais
de três vezes e meia.
119
suas exportações. A desvalorização do dólar em relação ao iene, entre 1992 e 1995 (queda de
mais de um terço na relação dólar/iene) e a redução das barreiras tarifárias dos países latino-
americanos possibilitaram a abertura de mercados na região para os diversos tipos de produtos
manufatureiros norte-americanos. Portanto, a análise de tal estratégia comercial faz-se
necessário para o entendimento das mudanças macroeconômicas na década de 1990
(MEDEIROS, 1997; BRENNER, 2003).
O ingresso de capitais na região propiciou a ampliação da acumulação produtiva e,
principalmente, financeira do capital norte-americano. Pelo lado da acumulação financeira,
verificou-se que os capitais especulativos forâneos foram recompensados com altas taxas de
juros (D-D’). Pelo lado do capital produtivo estrangeiro, a entrada de capitais, em
consonância com a abertura comercial, possibilitou a equalização dos déficits na balança
comercial originados pelo aumento das importações provenientes da sobrevalorização
cambial. Essa equalização, por sua vez, possibilitou o aumento das exportações de produtos
manufaturados norte-americanos para a região. Portanto, o intenso processo de abertura
financeira e econômica da América Latina esteve e está associado às estratégias
estadunidenses voltadas às suas altas finanças e ao seu capital manufatureiro.
Nesse contexto, os Estados Unidos ampliaram sua capacidade de influenciar nas políticas
internas e externas dos Estados nacionais mais débeis por meio da imposição do modelo
neoliberal aos países devedores, já que estes foram constrangidos por seus endividamentos
estruturais. O FMI e o Banco Mundial foram peças chaves na implantação de tal modelo,
conforme descrito no capítulo anterior.
Entre o final dos anos 1980 e início da década de 1990, a grande maioria dos países da região
abraçou, se bem que seletivamente e com diferentes graus de intensidade, os ajustes
estruturais, que consistiam, sinteticamente, nas privatizações e desregulamentações; na
flexibilização do mercado de trabalho; na diminuição do papel do Estado; e na abertura
comercial, como estratégias para alavancagem do desenvolvimento. Assumiu-se, portanto, a
retórica de que o excessivo intervencionismo estatal e seus déficits fiscais eram os principais
empecilhos para os países latinos adentrarem numa nova fase de prosperidade. Nessa
perspectiva liberal, a estabilidade monetária, o equilíbrio fiscal e a competitividade
internacional seriam os elementos para a modernização da periferia. O modelo de
120
“desenvolvimento” neoliberal, aplicado na região, assentou-se no binômio da abertura e da
competitividade atrelado à estabilidade inflacionária.
O combate à inflação dos anos 1990 foi a pedra de toque da construção do modelo neoliberal,
uma vez que boa parte da sociedade latina, nos mais diversos países, entendia que os
problemas internos (estagnação econômica, deterioração dos serviços estatais e da infra-
estrutura do Estado e o empobrecimento generalizado da população) estariam associados,
basicamente, à hiperinflação, que estaria vinculada, principalmente, aos déficits do setor
público. Segundo Sader (2003), esse diagnóstico liberal da crise dos anos 1980, na América
Latina, e sua aceitação por grande parte da população possibilitaram a implantação dos ajustes
estruturais liberais em quase todo território latino-americanos. O imposto inflacionário e a
intervenção econômica do Estado, que provocaria déficits públicos, deveriam ser debelados a
qualquer custo.
Esta aquiescência da população ao ideário neoliberal foi reforçada nos momentos iniciais da
implementação dos ajustes estruturais neoliberais, na medida em que se verificou uma rápida
redução da inflação
66
e um aumento do crédito. Isso, por sua vez, possibilitou um aumento do
consumo e um crescimento da produção e do emprego. A estabilidade monetária se converteu
no principal bem público da América Latina e garantiu a eleição e a reeleição de vários
presidentes, dentre eles: Carlos Menem na Argentina, Fernando Henrique Cardoso no Brasil,
Alberto Fujimori no Peru e a manutenção do partido governista no México. Ademais, os
Ministros da Fazenda e presidentes de Bancos Centrais que consubstanciaram a austeridade
fiscal e monetária foram saudados como heróis pelos investidores estrangeiros, que trouxeram
quantidades de capital sem precedentes para a região. No entanto, o crescimento logo se
mostrou efêmero, diante dos problemas surgidos pela própria operacionalização do modelo
neoliberal, a saber, deterioração das contas externas e das finanças públicas e a elevadíssima
dependência de capital especulativo forâneo.
66
As políticas econômicas ortodoxas conseguiram alcançar seu intento monetário: conter a inflação. No México
a inflação se reduziu de 60,9%, na média entre 1980-95, para 5,1% em 1995. No Brasil e na Argentina essa
redução foi ainda maior, de 2.862,4%, em 1990, para 6%, em 1995, e de 2.314,0%, em 1990, para 3,4 %, em
1995, respectivamente (CEPAL, 2003).
121
Além disso, o ciclo de absorção de capital externo, iniciado nos anos de 1990, apresenta
características particulares, o que contribui, inclusive, para dificultar a prospecção dos riscos
envolvidos em seu momento inicial. Nas décadas de 1970 e 1980 os empréstimos e
financiamentos eram as principais formas de ingresso de capital na América Latina e,
portanto, a dívida externa constituía uma aproximação razoável do passivo externo total dos
países da região. Recentemente, isso já não é mais verdade, uma vez que os investimentos
diretos, muitas vezes resultantes de operações de privatização, ou os investimentos de
portfólio (aplicações em bolsa de valores) constituem parte substancial do capital que vem do
exterior. Como esses passivos não são contabilizados na dívida externa, os dados referentes ao
estoque e ao serviço da dívida, assim como suas relações com as exportações ou PIB,
subestimam significativamente a extensão do problema e os indicadores de vulnerabilidade
externa (NOGUEIRA, 1997).
Vejamos de forma detalhada como o modelo macroeconômico neoliberal, com livre
mobilidade de capital e câmbio fixo ou quase fixo, que foi utilizado na maioria dos países da
América Latina, em boa parte dos anos 90, criou situações econômicas insustentáveis no
longo prazo. Tal modelo apresentava a seguinte dinâmica: a entrada de capitais forâneos,
viabilizada pela liquidez internacional e pelos spreads exigidos pelos investidores
estrangeiros, num primeiro momento, proporcionava o aumento das reservas internas devido
ao câmbio fixo ou quase fixo. Isso provocava a expansão da base monetária interna e, por
conseguinte, do crédito que poderia provocar aumentos nos níveis de preços. Para reverter
essa possível situação, os Bancos Centrais utilizavam políticas de esterilização, ou seja,
enxugavam a liquidez interna por meio da venda de títulos públicos. Para tanto, fazia-se
necessário elevar a taxa de juros com o intuito de atrair compradores para os títulos públicos
da dívida. A política de esterilização elevou a dívida interna e o pagamento de juros da
mesma, acentuando assim, o déficit orçamentário. Ademais, a valorização cambial, nos países
da região, consubstanciou déficits comerciais recorrentes e intensos
67
ao longo da década de
1990.
67
As políticas de valorização cambial e a abertura comercial provocaram aumentos nas importações que
excederam fortemente as exportações. Entre 1990 e 2000, o déficit comercial, com relação ao PIB, foi de 0,9% e
o déficit da conta capital foi de 2,6% do PIB, ambas em média anuais. Isto demonstra o aumento da
vulnerabilidade externa na economia Latino América (CEPAL, 2003).
122
Os déficits na balança comercial foram financiados pelo lado da conta de capital e financeira
do balanço de pagamentos através da entrada contínua de capitais forâneos voláteis, em
grande monta, enquanto, os déficits orçamentários foram financiados por meio da emissão de
novos papeis da dívida pública. Evidentemente, para que esse modelo se tornasse viável, o
movimento de entrada e saída dos capitais nos espaços nacionais teria que ser o mais amplo
possível. Daí, o caráter volátil que o capital-dinheiro passou a ter, o que, por sua vez, ampliou
a vulnerabilidade dos países recebedores destes tipos de capital. Aqui se revelara novamente,
sob outras condições, o papel da dívida
68
como componente estrutural decisivo. Os novos
capitais passaram a entrar por períodos relativamente curtos, sem compromisso com a
alteração da estrutura produtiva interna, quando muito, os mesmos passaram a ser utilizados
nos pagamentos das obrigações do serviço da dívida externa. Ao mesmo tempo, praticando a
arbitragem, estes capitais, agora especulativos, não tiveram prazos nem critérios definidos
para sair dos países da região e quando o fizeram, em função de melhores oportunidades em
outras regiões do planeta (taxas de juros mais elevadas), ou por conta da deterioração das
contas externas dos países onde se encontravam, abriam-se ataques especulativos, que, por
sua vez, geraram crises agudas nos países da região, tais como, no México em 1994, no Brasil
em 1999 e na Argentina em 2001, dentre outras crises.
Naquele modelo, as taxas de juros reais assumiram um caráter basilar, já que estas
funcionavam como instrumento de atração de capitais forâneos em abundância naquele
momento. Neste contexto, a política de manutenção de altas taxas de juros fora utilizada para
atrair capitais forâneos e para consubstanciar as políticas de esterilização.
As taxas reais não podem ser reduzidas abaixo de determinados
limites estabelecidos pelos spreads exigidos pelos investidores
estrangeiros para adquirir e manter em carteira um ativo denominado
em moeda fraca, artificialmente valorizado (BELLUZZO &
ALMEIDA, 2002, p. 367).
A combinação de déficit externo, taxa de câmbio apreciada e déficit orçamentário
constituíram-se numa política insustentável na América Latina, pois a qualquer sinal
68
A dívida externa bruta da América Latina saltou de U$ 460,9 para U$ 727,8 bilhões, entre 1991 e 2001. A
Argentina e o Brasil desembolsaram mais de 40% de sua riqueza nacional em pagamentos da dívida. Entre 1991
e 2001 a dívida externa bruta desembolsada saltou de 32,3% para 52%, na Argentina, e de 30,4% para 43,4%, no
Brasil (CEPAL, 2000a).
123
desfavorável aos mercados verificava-se uma saída maciça dos capitais voláteis,
comprometendo assim, a conversibilidade da moeda: crise financeira. Desse modo, as
contradições internas do modelo neoliberal (impossibilidade de redução da taxa de juros a
certo nível imposto pelo capital financeiro) provocaram ingentes elevações na dívida pública
69
e impediram qualquer possibilidade de se engendrar um crescimento sustentável que pudesse
levar a melhoria na distribuição de renda regional, já que a busca de “credibilidade” para os
mercados, uma vez conquistada, cobra um preço alto pela sua fidelidade. A manutenção das
altas taxas de juros restringiu o crescimento econômico nos anos 1990 na América Latina. O
máximo que este modelo gerou, ao longo da década, foram crescimentos espasmódicos - os
denominados “vôos de galinha” – e mesmo assim quando o cenário internacional era bastante
favorável (ver Gráfico 3.1).
Gráfico 3.1 - Variações do PIB e do PIB per capita entre 1990 e 2002 - América Latina
- 0,6
- 2,4
3,3
1,5
2,8
1,1
3,4
1,6
5,1
3,3
1,1
- 0,6
3,8
2,1
5,1
3,4
2,2
0,6
0,5
- 1,1
3,7
2,2
0,4
- 1,1
- 0,6
- 2,0
1990
19
91
1
992
199
3
1
994
199
5
19
96
199
7
19
98
1999
20
00
2
001
200
2
PIB PIB per capita
Fonte: CEPAL
Os movimentos de curto prazo, de aceleração e desaceleração da economia latino-americana,
caracterizaram o nível de atividade regional. Nem mesmo as mudanças dos regimes cambiais,
nem as políticas de metas inflacionárias, nem os regimes fiscais mais draconianos,
69
As elevadas taxas de juros do modelo neoliberal provocaram uma forte elevação da dívida pública regional. A
dívida externa bruta saltou de U$ 460,9 para U$ 727,8 bilhões, entre 1991 e 2001, tendo a Argentina e o Brasil
desembolsado mais de 40% de sua riqueza nacional em pagamentos da dívida em 2001. Entre 1991 e 2001 a
dívida externa bruta desembolsada saltou de 32,3% para 52%, na Argentina, e de 30,4% para 43,4%, no Brasil
(CEPAL 2002a e 2002b).
124
engendrados no final dos anos 1990 e início dos 2000, em diversos países da região,
conseguiram reverter, de forma estrutural, a vulnerabilidade externa e a fragilidade financeira
do setor público.
Vejamos agora, de forma bastante sintética, algumas características do processo de
conformação e de implantação dos ajustes estruturais nas maiores economias latino-
americanas: Argentina, México e Brasil.
No México, a gravidade da crise da dívida de 1982 adiou o início das reformas liberalizantes
salvo o programa de desestatização. As reformas liberais foram aprofundadas, entre 1989 e
1995, com assunção no governo do tecnocrata Salinas que governou o México, entre 1988 e
1994, imbuído da missão de concluir a abertura e a desregulamentação e de consolidar a
integração da economia mexicana à dos Estados Unidos, com a inserção do país à NAFTA
(Área de Livre Comércio da América do Norte), alçando assim o México ao “Primeiro
Mundo”! As privatizações foram conduzidas gradualmente, tendo em vista a difícil
negociação com trabalhadores, sindicatos e Congresso, para obter emendas constitucionais e
novas leis que fossem retirando do Estado ou do capital nacional a exclusividade das
atividades econômicas locais. A consolidação da abertura comercial, em 1987, e a valorização
cambial a partir de 1988 formaram as vigas mestras para a política de estabilização praticada
entre 1987 e 1989. A desregulamentação financeira e as crescentes entradas de capitais de
curto prazo expandiram o crédito ao setor privado, financiando as crescentes importações,
privatizações e a especulação bursátil. A integração mexicana à NAFTA, atrelou o país, cada
vez mais, à dinâmica da economia norte-americana. Na verdade, o México vem funcionando
como um departamento de produção estadunidense no exterior, em incessante busca de
trabalho barato. A dinâmica produtiva mexicana configurada pós-NAFTA, implicou, num
primeiro momento, na desarticulação interna da cadeia produtiva e, num momento seguinte,
na articulação entre indústrias norte-americanas e mexicanas - substitui-se com importações
crescentes dos Estados Unidos o que antes era fornecido pela produção interna mexicana –
sob o comando do capital estadunidense através das indústrias maquiladoras - a legislação
mexicana permite que sejam controladas em até 100% por capital estrangeiro (CANO, 2000).
Na Argentina, a hiperinflação de 1989 consubstanciou um processo de desorganização
econômica e social, a saber: produção paralisada, redução drástica dos salários reais,
125
incremento da miséria e do descontentamento social. Na campanha eleitoral Carlos Menem
assume um programa tipicamente peronista de incremento salarial e de “revolução” produtiva.
Após vitória eleitoral, Menem muda radicalmente o programa peronista e implementa o mais
severo programa de ajuste estrutural da América Latina - uma “terapia de choque” ao estilo
monetário ortodoxo de Chicago. Em 1991, o Ministro da Economia Domingo Cavalo
implanta o Plano de Conversibilidade, o que, por sua vez, limitava as funções do Banco
Central a uma caixa de conversão (Currency Board). Aquela política teve como o objetivo
essencial garantir o pagamento dos débitos externos, um interesse que se atrelava fortemente
aos interesses financeiros argentinos e internacionais. A manutenção da Lei de
Conversibilidade por mais de dez anos, os sucessivos ajustes fiscais, as privatizações de todo
o patrimônio público, as reduções do valor dos salários e das aposentadorias aprofundaram as
dificuldades e jogaram a crise para adiante, que estourou em 2001. Paul Cooney, em seu
artigo Argentina at the Abyss, apresenta, na passagem a baixo, algumas das principais causas
da crise Argentina de 2001:
The economic and social crisis that Argentina has been experiencing clearly
has a number of causes. As I tried to argue, a significant historical process
that began under the dictatorship of the late 1970s is that of
deindustrialization, and more recently ‘agriculturalization’ of the Argentine
economy. This has come about from a range of mainly neoliberal policies
strongly pursued by the military government and the Menem administration.
It is clear that Argentina has become much more vulnerable to the processes
of globalization and the oscillations of the world market, having eliminated
many of its controls for trade, finance, etc. Undoubtedly, the pegging of the
peso to the dollar became a problem by the mid to late 1990s. The need for a
currency correction was building up and as years went by took on a political
aspect (COONEY, 2003, p. 11).
O Brasil foi um dos últimos países da região a substituir o modelo de Substituição de
Importação pelo modelo de desenvolvimento neoliberal. Isto não acontece por acaso. Na
verdade, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, não se tinha ainda clara a rota a
ser tomada pelo capitalismo dependente brasileiro. Havia, naquele período, certa disputa de
poder entre o capital industrial, comercial, agrário e financeiro com vistas ao controle
hegemônico das estratégias de desenvolvimento nacional. Os governos Sarney e Collor foram
marcados pela representação desse interregno hegemônico de uma fração de classe
consolidada no plano interno. À medida que vão se rearticulando os interesses das finanças,
do agronegócio e do capital comercial inicia-se a conformação das estratégias de
“desenvolvimento” liberal (Plano Real) assentadas na abertura e na competitividade, tendo
126
como suposto a estabilidade inflacionária. Tais medidas provocaram uma mudança
desfavorável no padrão de comércio internacional, haja vista a perda de competitividade das
exportações manufatureiras e a expansão das exportações de produtos agrícolas, refletindo na
“reprimarização” das exportações. Os ganhos de competitividade brasileiros vincularam-se à
expansão dos produtos agrícolas, o que, na verdade, gera uma incerteza crítica no processo de
ajustamento das contas externas, uma vez que essa alternativa tende a ampliar as trocas
desiguais. As modificações na estrutura socioeconômica brasileira na década de 1990 serão
detalhadamente aprofundadas e analisadas no capítulo seguinte.
Do ponto de vista estrutural verificou-se, na América Latina, uma mudança desfavorável no
padrão do comércio internacional, o que, por sua vez, levou ao aumento na participação dos
produtos com baixo valor agregado nas exportações. Isso aconteceu fortemente no Brasil e na
Argentina e com muito menos intensidade no México, em virtude das características
especificas das maquiladoras na estrutura produtiva desse país. O baixo dinamismo das
exportações manufatureiras com maior conteúdo tecnológico nesses dois países, dentre outras
coisas, demonstra o desmantelamento e/ou a desnacionalização do aparelho produtivo
atribuído especialmente à apreciação cambial e às baixas taxas de investimento
(GONÇALVES, 2000; TEUBAL, 2000-2001; SALAMA, 2002 e 2003).
Os ajustes estruturais implantados na maioria dos países latino-americanos proporcionaram
“enormes transferências de renda, poder e riqueza para o establishment político e econômico”.
Implicando a “marginalização e exclusão da maioria da população” e a desvalorização das
políticas sociais universalizantes (TEUBAL, 2000-2001, p. 461). Tais ajustes liberais
provocaram (i) um incremento na exploração do trabalho, evidenciado através da redução dos
salários reais dos grupos de rendimentos mais baixos; (ii) uma maior “regressividade” na
distribuição da renda; e (iii) uma elevação do desemprego em suas várias formas. A adoção de
tal modelo ampliou a desarticulação setorial e social – uma característica histórica do
capitalismo dependente -, provocando, com isso, a deterioração das condições sociais das
populações.
Os programas de ajustes estruturais na América Latina, em certa medida, não tiveram como
componente principal o avanço tecnológico, que provocaria o aumento da taxa de mais-valia
relativa. Na verdade, a busca pela lucratividade, no âmbito produtivo, na região, esteve
127
assentada mais fortemente no aumento da mais-valia absoluta devido à redução dos salários
reais e ao aumento da jornada de trabalho provenientes do processo de flexibilização do
mercado de trabalho (TEUBAL, 2000-2001).
Com a acumulação da região assentada na flexibilização das relações trabalhistas e na
valorização financeira, materializa-se um aumento da heterogeneidade no continente, tanto
interno a cada país quanto entre diferentes países, pois a renda vem sendo distribuída de
forma cada vez mais regressiva. Desse modo, a desigualdade, nos países latino-americanos, se
acentuou
70
, tanto nos países que tiveram êxito nos ajustes estruturais quanto nos menos
exitosos. O abismo entre os mais abastados e os mais pobres cresceu de forma acentuada nos
países latino-americanos que adotaram as políticas liberalizantes. Dentre os países principais,
a evolução do salário mínimo real urbano mostrou a superação dos níveis salariais de 1990 -
com exceção do México e Uruguai. Entrementes, no cotejo entre os níveis de 1980 e de 2000,
verificaram-se reduções significativas: no Brasil (-5,42%), na Argentina (-32,80%), na
Venezuela (-98,47%), no México (-235,27%) e no Peru (-460,51%) (CEPAL, 2003).
O baixo crescimento econômico, juntamente com abertura comercial, as privatizações das
empresas estatais e a fragilização dos sindicatos, na América Latina, implicaram diretamente
e indiretamente no aumento das taxas de desemprego e contribuíram para a desestruturação do
mercado de trabalho
71
, com a substituição de ocupações mais estáveis e de melhor qualidade
70
A distribuição da renda encontra-se em níveis piores hoje, na maioria dos países do continente, do que nas
décadas de 80 e 90. Segundo a Cepal (2003), os 20% mais pobres e os 20% mais ricos da população detinham,
respectivamente, em porcentagem da renda total: na Argentina, 6,8 e 45,3, em 1980, e 6,0 e 56,0 no ano de 1999;
no Brasil, 3,3 e 59,2 , em 1980, e 3,5 e 61,9, em 1999. Neste país, apesar de certa melhora na renda dos mais
pobres, ocorreu um aumento na renda dos mais ricos, com um provável descolamento de renda das classes
médias brasileiras para as classes mais pobres e mais ricas, o que não se configura como melhor forma para
obtenção de equidade na renda; 7,8 e 41,2, em 1984, e 6,7 e 49,0, em 2000, no México, uma das piores
evoluções na distribuição de renda, só perdendo para a Venezuela. Uma das poucas exceções foi o Chile e a
Colômbia que lograram uma melhora dos índices de equidade social. No conjunto da América latina a herança
da desigualdade social e suas conseqüências continuam sendo levadas às futuras gerações. A pobreza e a
indigência da população urbana, entre 1994 e 1999, diminuíram de 32% e 12% para, respectivamente, 30% e
9%. Embora se perceba uma pequena melhoria neste período, a pobreza ainda manteve-se muito acima dos
níveis de 1980 (25% e 9%), enquanto a indigência urbana se manteve na mesma posição. Com a população rural,
o quadro é ainda pior: entre 1994 e 1999, a pobreza e a indigência caíram de 56% para 54% e de 34% para 31%,
respectivamente; em relação a 1990, ambas também pioraram (CEPAL, 2003).
71
A taxa de desemprego urbano aberto, em média ponderada, da América Latina, ao longo da década de 1980, se
reduz de 6,1 a 5,8, entre 1980 e 1990 apesar de todo colapso das várias políticas macroeconômicas e da crise do
endividamento na região. No decorrer dos anos 90 a taxa de desemprego eleva-se, de 5,8 para 8,4, no cotejo
entre 1990 em 2001, confirmando que as políticas neoliberais tendem a acentuar o desemprego, seja pelo seu
aspecto estrutural, seja pela sua dimensão conjuntural. A maior era a da Argentina (passa de 2,6 em 1980 para
7,4 em 1990, e mais do que dobra, 17,4, em 2001); vale ressaltar que este foi o país que implementou de forma
mais intensa o ajuste; a do México, embora fosse uma das mais baixas (por problemas metodológicos), cai de 4,5
128
por outras mais precárias. O que existe subjacente a este processo é a busca por parte das
empresas multinacionais e nacionais, aqui implantadas, em aumentar a taxa de exploração do
trabalho, mais-valia relativa e absoluta, viabilizada pela flexibilização do mercado de trabalho
na América Latina.
Nesse contexto, de aumento do desemprego e queda da renda das famílias, em justaposição
com a piora dos serviços públicos sociais (saúde e educação, principalmente) que vêm se
configurando, no decurso dos últimos vintes anos, na América Latina, conforma uma
contraface de profunda deterioração social hodiernamente associada à prostituição, à
violência, ao tráfico e à corrupção que atinge praticamente todos os espaços urbanos e parte
do rural da América Latina, variando apenas em grau entre diferentes países (CANO, 2000).
Na análise efetivada neste capítulo, procurou-se identificar as razões que conduziram à
posição degenerescente trilhada pela América Latina desde os anos 70 do século passado,
principalmente, no âmbito das relações entre a região e as potências capitalistas. E as razões
profundas explicativas dessa situação só podem ser descortinadas se procedermos a uma
análise totalizadora na qual a América Latina seja compreendida como parte inelutável do
sistema capitalista internacional. Dessa forma, pode-se concluir que o quadro econômico e
social presenciado nos países latino-americanos, de forma quase homogênea, nada mais
significa do que a expressão de novos eixos de valorização do capital associados às
transformações nas relações de poder entre os Estados nacionais. Tais mudanças são, na
verdade, o reflexo dos conflitos das frações capitalistas (agrária, industrial, comercial e
financeira) e das contradições entre capital e trabalho, tanto no âmbito dos países centrais
quanto periféricos, cuja origem centra-se na busca da construção da hegemonia de
determinadas frações do capital.
A análise dos conflitos e das alianças das frações intercapitalistas no conjunto latino-
americano não foi efetivada, neste capítulo - apesar de sua relevância explicativa à
compreensão dos fenômenos socioeconômicos latinos -, uma vez que seria necessária uma
em 1980 para 2,7 em 1990, mantendo-se praticamente estável 2,5 em 2001; a taxa do Brasil, também apresenta
problemas metodológicos, passa de 6,3 em 1980 para 4,3 em 1990, elevando-se para 6,2 em 2001. A queda do
desemprego no México e a certa estabilidade do Brasil são explicadas em grande parte pela violenta precarização
e informalização dos seus mercados de trabalho, na medida em que se empregam cada vez mais pessoas sem
vinculo empregatício e com relações de trabalhos precários (CEPAL, 2003).
129
pesquisa profunda e complexa das mais diversas realidades dos países que compõem a região.
Tal investigação ampla transbordaria ao escopo deste trabalho. Portanto, nesta análise
socioeconômica da América Latina utilizou-se apenas uma das características do instrumental
teórico da (des)articulação social e setorial, quais sejam, os elementos da demanda efetiva em
detrimento das análises das configurações da estrutura econômica interna e de suas classes
sociais. No entanto, pretende-se, em certa medida, no capítulo seguinte, apreender as
transformações socioeconômicas do Brasil à luz das relações classistas - mais especificamente
entre as frações dominantes nacionais em suas interações com o Estado nacional e como o
capital internacional - através do instrumental teórico da (des)articulação setorial e social,
tanto em seus elementos vinculados à demanda efetiva como, principalmente, em seus
aspectos relativos à estrutura de classes e seus respectivos efeitos sobre a taxa de exploração.
130
CAPÍTULO IV
A DESARTICULAÇÃO SETORIAL E SOCIAL BRASILEIRA: DIMENSÕES
CONSTITUTIVAS E AMPLIAÇÕES RECENTES PÓS-PLANO REAL
4.1. O conceito de (des)articulação setorial e social
72
A análise das dimensões constitutivas do capitalismo dependente brasileiro e suas
configurações recentes - após a implementação do Plano Real, em 1994, (ajuste estrutural
neoliberal) até o final do segundo governo Fernando Henrique Cardoso, em 2002 - serão
realizadas, neste capítulo, por meio do referencial teórico da (des)articulação setorial e social,
dando um enfoque maior aos movimentos das classes e, principalmente, das frações da classe
dominante. Portanto, faz-se necessário, antes de qualquer análise do caso brasileiro,
aprofundar a discussão a respeito de tal conceito.
O conceito de (des)articulação social e setorial foi desenvolvido no intuito de descrever e
explicar as diferenças estruturais entre os países centrais e periféricos, inclusive, no que se
refere à maior exploração do trabalho e à maior pobreza e exclusão social dos países
periféricos em relação aos centrais. Segundo Teubal, a (des)articulação
[...] on the one hand, it refers to the degree or rate de exploitation prevailing
in different economies [maior ou menor taxa de mais-valia, que depende dos
conflitos entre as classes e suas frações]. But then it also includes important
demand elements [importância da renda salarial na demanda agregada
kaleckiana], which are complementary to the rate of exploitation but not
exhausted by that concept (TEUBAL, 2000-2001, p.463).
72
O conceito de (des)articulação foi sendo construído, ao longo das décadas de 1960, de 1970 e de 1980, a partir
de trabalhos desenvolvidos por Celso Furtado, Samir Amin, Alain de Janvry, Miguel Teubal, entre outros. Cabe
ressaltar que a depender da vertente teórica desses autores o conceito de (des)articulação empregado por eles
pode se voltar apenas aos elementos da demanda em detrimento da análise da taxa de exploração. Esse foi, por
exemplo, o viés adotado por Furtado. Aqui será adotada uma perspectiva particular para o entendimento da
(des)articulação das economias nacionais, que tende a se aproximar da de Teubal (2000-2001) e da de Janvry
(1981), na medida em que estes incorporam, em certa medida, alguns elementos da exploração.
131
Tendo por base esse conceito, analisam-se os efeitos da maior/menor participação dos salários
dos trabalhadores na dinâmica de setores-chaves e na estrutura econômica
((des)balanceamento entre departamentos de produção e de consumo) de determinados países,
haja vista a maior/menor dificuldade interna da classe dominante nacional ou de uma de suas
frações em consubstanciar hegemonias amplas, ou por assim dizer, uma hegemonia que
consiga incorporar ao mesmo tempo a unidade contraditória no interior do bloco no poder
73
e
fora do bloco no poder (classes dominadas). Essa maior/menor dificuldade em formar uma
hegemonia ampla, em regra geral, tende a se correlacionar com a ausência/construção de
projetos nacionalistas de criação de um sistema econômico nacional que, inclusive, definam
os limites constitutivos dos Estados nacionais. Portanto, a não-formação de uma hegemonia
ampla impediu a construção de estruturas e dinâmicas produtivas internas que conseguissem
integrar as diversas frações das classes (dominantes e dominados), ou por assim dizer,
bloqueou a construção de economias articuladas setorial e socialmente.
A formação e o desenvolvimento histórico dos países capitalistas retardatários (Estados
Unidos, Alemanha, França e Japão) nos dão uma boa sinalização desse processo. Nesses
países, em suas especificidades, verificou-se, ao longo do séc. XIX, um constante conflito
interno entre as frações oligárquicas ou feudais agrárias - em grande parte articuladas aos
interesses do capital comercial e financeiro inglês - e a nascente burguesia industrial. Tais
73
Poulantzas, em passagem bastante elucidativa do seu livro Poder político e classes sociais, explicita muito
bem o conceito de bloco no poder que será adotado aqui: “O bloco no poder constitui-se uma unidade
contraditória de classes e frações politicamente dominantes sob a égide da fração hegemônica. A luta de classe,
a rivalidade dos interesses entre as frações sociais, encontra-se nele constantemente presente, conservando esses
interesses a sua especificidade antagônica [...]. A própria hegemonia, no interior deste bloco, de uma classe ou
fração, não é devido ao acaso: ela tornou-se possível [...] através da unidade própria de poder institucionalizado
do Estado capitalista. Esta, corresponde à unidade particular das classes ou frações dominantes, isto é, estando
em relação com o fenômeno do bloco no poder, faz precisamente com que as relações entre essas classes ou
frações dominantes não possam consistir, como acontecia com outros tipos de Estado, em uma ‘repartição’ do
poder de Estado – ‘igualdade de poder’ daqueles. A relação entre o Estado capitalista e as classes ou frações
dominantes funciona no sentido da sua unidade política sob a égide de uma classe ou fração-hegemônica. A
classe ou fração hegemônica polariza os interesses contraditórios específicos das diversas classes ou frações no
bloco no poder, constituindo os seus interesses econômicos em interesses políticos, representando o interesse
geral comum das classes ou frações do bloco no poder: interesse geral que consiste na exploração econômica e
na dominação política. [...]. O processo de constituição da hegemonia de uma classe ou fração difere, consoante
essa hegemonia se exerce sobre as outras classes e frações dominantes – bloco no poder -, ou sobre o conjunto de
uma formação, inclusive, portanto, sobre as classes dominadas.[...]. O interesse geral, que a fração hegemônica
representa em relação às classes dominantes repousa, em última análise, no lugar de exploração que elas detêm
no processo de produção. O interesse geral que esta fração representa em relação ao conjunto da sociedade, em
relação, portanto, às classes dominadas, depende da função ideológica da fração hegemônica. [...] Essa
concentração da dupla função de hegemonia em uma classe ou fração, inscrita no jogo das instituições do Estado
capitalista, não é senão uma regra geral cuja realização depende da conjuntura das forças sociais”
(POULANTZAS, 1977, p. 233-234-235)
132
disputas, entre classes ou frações dominantes, resultaram, em grande medida, em rupturas
profundas e em guerras civis (Guerra de Secessão estadunidense, Revolução Meiji no Japão e
as Guerras de unificação do Estado prussiano), as quais, na maioria das vezes, provocaram um
fortalecimento das frações industriais em detrimento do poder político e econômico das forças
agrárias e, por conseguinte, da influência dos capitais comerciais e financeiros forâneos.
Naquele contexto de fragilidade das forças agrárias, as frações industriais consolidaram-se
como poder econômico e político, engendrando, por sua vez, projetos nacionais de
industrialização. Cabe destacar que os poderes das forças industriais não foram construídos
apenas pela coerção, diante de outras frações de classes, mas também pelo consentimento,
uma vez que o processo de industrialização naqueles países criou uma unidade contraditória
econômica, política e, em certa medida, ideológica, possibilitando, com isso, a construção de
um sistema econômico nacional.
A construção de uma hegemonia ampla, nos países capitalistas retardatários, não foi
configurada ao acaso, nem muito menos foi fruto exclusivo das guerras civis supracitadas. Na
verdade, tal unidade teve como elemento fulcral a construção de um Estado nacional forte,
atrelado aos projetos nacionais da burguesia industrial, ou seja, o Estado nacional funcionou
como uma unidade política e, muitas vezes, ideológica, em prol da construção de um sistema
econômico nacional. Além do que a própria dinâmica econômica dos países retardatários, sob
a hegemonia das frações industriais
74
, gerava ganhos econômicos (i) para as frações
financeiras locais, haja vista a necessidade de construção de uma estrutura nacional voltada ao
financiamento das inversões industriais; e (ii) para as frações agrárias em decorrência do
aumento da produtividade e da demanda de produtos agrícolas direcionados ao consumo dos
trabalhadores industriais (bens-salários). Pelo lado dos dominados, a industrialização, nos
países capitalistas retardatários, apresentou uma função ideológica fundamental, a saber: a
integração dos trabalhadores ao mundo do consumo capitalista em virtude da redução dos
preços das mercadorias. No entanto, esta foi decorrente do próprio aumento da exploração do
trabalho pela via da mais-valia relativa. Desse modo, o consumo dos trabalhadores, além de
criar uma demanda necessária à realização das mercadorias, funcionou também como um
74
A burguesia industrial, como uma fração ou uma classe dominante, é a única força, após as mudanças
socioeconômicas provenientes da revolução industrial, capaz de articular os mais diversos segmentos sociais a
partir de uma hegemonia ampla, haja vista que a constituição de seus interesses particulares pode representar
interesses gerais dentro do bloco no poder e, ainda, que tal fração apresenta uma função ideológica forte sobre as
classes dominadas – fora do bloco no poder -, diferentemente das frações comerciais, financeiras e agrícolas que
são consideradas, pelos dominados, como frações usurárias ou arcaicas.
133
elemento ideológico fundamental de consentimento da classe dominada aos padrões de
dominação capitalista.
O conceito de (des)articulação setorial e social não foi ainda completamente delimitado. Aqui
se pretende usá-lo como eixo articulador dos elementos constitutivos da taxa de exploração
(mais-valia), vinculados às disputas das frações de classes e às configurações institucionais, e
seus rebatimentos na maior/menor importância dos ganhos salariais na conformação da
demanda efetiva e, por conseguinte, na estrutura setorial da economia. Dessa maneira,
pretende-se incorporar tanto os elementos da produção como da circulação das mercadorias
articulando-os aos elementos institucionais. Vejamos os elementos constitutivos da
(des)articulação.
No que se refere aos elementos da demanda, o conceito de (des)articulação volta-se para a
análise da maior/menor influência dos rendimentos salariais na demanda de produtos dos
ramos-chaves da economia e, conseqüentemente, na configuração e na interligação dos
setores produtivos nacionais, principalmente, no que se refere ao (des)balanceamento dos
departamentos de consumo e de produção.
Nas economias mais articuladas (países centrais), a renda salarial é, em grande parte,
responsável pela expansão da demanda dos setores chaves da economia, o que, por sua vez,
contribui para uma maior homogeneidade da estrutura produtiva – um maior balanceamento
entre os departamentos de produção (I) e de consumo (II) – haja vista a maior produção de
serviços e bens-salários destinados ao consumo dos trabalhadores. Com isso, o circuito do
capital, em suas fases de produção e de realização, tende, na grande maioria dos ramos
produtivos chaves, a se completar no mesmo espaço nacional. Dessa forma, o trabalho
is simultaneously a cost and benefit for capital: a cost in that all wage
payments are a subtraction form profits, and a benefit in that the mass of
wages paid creates “the necessary effective demand for the products to be
sold and for capital to return to the form of money” (JANVRY &
SADOULET apud TEUBAL, 2000-2001, p. 469).
Por outro lado, nas economias mais desarticuladas, verifica-se que a maior parte da demanda
dos ramos dinâmicos é proveniente do consumo de grupos de alta renda - não vinculados aos
134
rendimentos salariais - e/ou do consumo forâneo. Com isso, a produção dos setores dinâmicos
tende a se voltar aos “bens de luxo” e/ou aos bens para exportação - inclusive no que se refere
aos investimentos, produzindo um forte desbalanceamento entre os departamentos I e II -,
uma vez que o rendimento da força de trabalho representa uma pequena parcela do Produto
Interno Bruto e do consumo. Existe, portanto, nas economias desarticuladas, uma ingente
estratificação entre o consumo da esfera “alta” (mais-valia não acumulada dos capitalistas) e
da esfera “baixa” (salários dos trabalhadores). Desse modo, o trabalho, em economias
desarticuladas setorial e socialmente,
is only a cost to capital. Non-workers’ incomes create both the source of
savings and the expanding final demand for the key growth sectors. “Growth
finds its roots in increasing inequality, and the only limit to inequality is the
relative power of labor versus other classes” (JANVRY & SADOULET
apud TEUBAL, 2000-2001, p. 469).
Como os salários dos trabalhadores não se configuraram como um dos principais
componentes da realização do valor nas economias desarticuladas e sim como apenas um
custo de produção, verifica-se uma tendência de redução do preço da força de trabalho devido
à possibilidade de manutenção de grandes “exércitos industriais de reserva” sem que isto afete
fortemente a realização das mercadorias produzidas pelos setores dinâmicos das economias
nacionais desarticuladas. Tais características socioeconômicas tendem a criar grandes
desigualdades sociais, tanto de renda como de riqueza, configurando, com isso, um processo
de exclusão social histórico que se retroalimenta, podendo inclusive se ampliar à medida que,
em determinadas conjunturas históricas, os ganhos dos trabalhadores perdem ainda mais
importância no processo de realização interna das mercadorias – aumento do grau de
desarticulação social e setorial.
De fato, a desvalorização da força de trabalho nas economias nacionais desarticuladas (países
periféricos), quando comparados com os países centrais, está associada ao maior grau de
exploração que pode ser empregado em diferentes economias em vista das particularidades
das relações de produção de determinados espaços nacionais. Nos países periféricos, tal
procedimento pôde e pode ser adotado em virtude dos menores níveis de desenvolvimento
75
75
O termo desenvolvimento não é adotado aqui num sentido evolutivo, configurado a partir de diversos estágios
ou etapas, como empregado por diversos economistas evolucionários.
135
das forças produtivas e dos intercâmbios internos e externos (economias desarticuladas) que
tendem a produzir elevados níveis de desemprego ou de ocupações precárias.
A desarticulação social e setorial das economias periféricas, na verdade, tem origem nas
realidades históricas específicas dos circuitos (processos de produção e realização) de
acumulação do capital controlados por frações dominantes nacionais - tanto no âmbito setorial
e regional quanto na esfera dos seus conflitos e alianças com frações forâneas - que não se
consolidaram, em nenhum momento, numa hegemonia ampla nacional que conseguisse
consolidar, ao mesmo tempo, um Estado nacional forte e estratégias nacionais voltadas à
construção de um sistema econômico nacional, ou seja, de uma economia articulada
setorialmente. A dificuldade em construir uma hegemonia ampla nas economias
desarticuladas periféricas esteve e está associada ao poder das frações agrárias (oligarquias
fundiárias) e das frações dominantes forâneas, ao longo da história, uma vez que a dinâmica
econômica e/ou política destes segmentos tendem a criar uma estrutura interna desarticulada.
Nem mesmo a forte redução do poder econômico da agricultura (oligarquias fundiárias) - em
alguns países periféricos - em decorrência do processo de industrialização substitutiva,
representou a construção de uma hegemonia ampla a partir das frações industriais nacionais,
já que a redução do poderio econômico não significou uma diminuição do poder político:
capacidade estratégica de controle social territorializado que as oligarquias exerciam sobre
todos que viviam em seu entorno.
A confrontação direta entre as nascentes burguesias industriais periféricas e a oligarquias
agrárias poderia significar uma desordem interna, provocando, inclusive, o avanço de
reivindicações reformistas das classes dominadas. Isso poderia desestabilizar as condições de
superexploração do trabalho que se configuraram historicamente nos países periféricos. Desse
modo, as frações industriais nacionais preferiram construir alianças com as oligarquias
fundiárias – possibilitando, assim, o avanço gradual e seguro da industrialização periférica
sem sobressaltos à superexploração –, ao invés de engendrar um processo de configuração de
uma hegemonia ampla.
Em suma, a análise das economias desarticuladas setorial e socialmente perpassa (i) pela
compreensão das dificuldades das frações dominantes em se consolidar como uma hegemonia
ampla impedindo, com isso, a construção de um Estado nacional forte e de um projeto
136
nacional voltado à construção de uma economia articulada; e (ii) pela apreensão do controle
de uma das frações da classe dominante e, também, das alianças interclasses e seus
rebatimentos na consecução das políticas públicas e mais especificamente nas políticas
econômicas. Vejamos agora as dimensões constitutivas e as mudanças recentes da realidade
socioeconômica brasileira por meio do instrumental da (des)articulação setorial e social.
4.2. Do Império ao Estado Novo: do domínio irrestrito das oligarquias agrárias regionais
ao surgimento de novas frações dominantes ligados aos interesses urbano-industriais
A formação socioeconômica brasileira, ao longo do século XIX até a década de 1930, em seus
diferentes momentos e contextos - do Império à Velha República –, esteve vinculada
fortemente aos movimentos de valorização dos capitais em nível mundial e, por conseguinte,
aos ciclos conjunturais do comércio internacional e ao avanço do processo de industrialização
dos países capitalistas centrais. Os processos de acumulação em andamento no plano interno,
em diferentes regiões brasileiras, centrado em alguns cultivos especializados (alimentos e
matérias-primas) voltados a demandas forâneas, em certa medida, viabilizaram avanços do
ciclo produtivo industrial dos países centrais, em virtude da ampliação do fornecimento de
alimentos básicos (bens-salários) - fundamentais à reprodução da força de trabalho industrial -
e de matérias-primas - reduzindo os custos referentes a este insumo. Nem mesmo as diferentes
configurações sócio-produtivas das regiões brasileiras funcionaram como barreiras à
integração nacional ao circuito do capital internacional. Pelo contrário, o país se utilizou de
suas diferentes potencialidades regionais como importante elemento de inserção internacional
passiva em diversos ciclos dominantes de acumulação no plano mundial. Para Oliveira os
ciclos conjunturais de comércio foram determinantes para o movimento de
capitais nos diferentes espaços regionais [brasileiros] e que as tendências da
acumulação de capitais acompanharam de perto esses movimentos cíclicos,
sofrendo os impactos das trajetórias internacionais, quase sempre
impossibilitado de reagir às suas principais determinações. No geral, todas as
alternâncias observadas nos padrões de acumulação refletiram, de um modo
ou de outro, no âmbito interno, as formas de integração de seus diferentes
espaços produtivo ao capitalismo mundial. Em função disso, cada momento
conjuntural de mudanças nos ciclos dominantes da reprodução social, ou de
reformulação nos referidos padrões de acumulação interna, sempre
expressou um etapa de convivência contraditória entre interesses. [...] [Esse
padrão de acumulação interna], não só propaga novas relações sociais, como
gera pontos de conflito dos diferentes espaços [...]. Há uma tendência a esses
espaços serem potencializados a cada momento do ciclo, como resultado da
137
conformação de frações de capital que, além de se diferenciarem, caminham
sempre em busca da constituição de autonomia reprodutiva e de hegemonia
(OLIVEIRA, 2004, p. 297).
As diferentes potencialidades produtivas de cultivos regionais, ao longo do séc. XIX e início
do séc. XX, – tais como: São Paulo, exportando café; a Bahia exportando cacau e açúcar, o
Maranhão, algodão, a Amazônia borracha, dentre outras regiões – articuladas diretamente aos
espaços forâneos, criaram e reforçaram heterogeneidades entre as regiões, haja vista (i) as
trajetórias distintas do processo de acumulação regionais e seus efeitos nas instituições locais;
e (ii) o reduzido fluxo de bens e serviços intra-regiões decorrente da ligação local direta aos
mercados internacionais. Portanto, as regiões brasileiras, como espaços diferenciados de
acumulação, não se articulavam nacionalmente e configuravam-se como “ilhas isoladas”.
O grande isolamento entre as regiões do território brasileiro, até praticamente os anos 1930,
na verdade, foi uma conseqüência dos padrões de acumulação do modelo agrário-exportador
em seus rebatimentos com o poder político, controlado, principalmente, pelas oligarquias
fundiárias locais a partir da aquiescência do poder central, seja no Império ou na República
Velha. Naquela estrutura econômica ingentemente desarticulada internamente, cada região
engendrava produtos primários, com pouco valor agregado, e vendia-os ao mercado mundial,
principalmente aos países capitalistas centrais, já que aqueles espaços funcionavam como
fornecedores de quase todos os produtos industrializados consumidos na região. Naquele
contexto de ampla desarticulação institucional e produtiva, as províncias - a partir de suas
elites e institucionalidades locais, e não do poder central - definiam, em grande medida, a
ligação com os espaços produtivos industriais externos. Vale destacar que tal ligação sempre
esteve completamente condicionada à dinâmica econômica internacional e suas oscilações.
Apesar das formações sociais distintas - que criavam elementos de conflitos inter e intra-
regionais, em virtude de interesses diferenciados das oligarquias agrárias escravocratas
regionais -, a unidade nacional foi mantida, após a ruptura do pacto colonial, por meio da
articulação entre as frações regionais e o poder central do império, diferentemente da
desintegração verificada na colônia hispano-americana. Segundo Fiori (2003, p. 115-6) a
preservação, após a ruptura do pacto colonial brasileiro, do “sistema local de controle do
sistema produtivo herdado da colônia” possibilitou a organização de “alianças políticas
internas que permitiram definir as fronteiras e estabilizar uma forma relativamente eficaz de
138
dominação, que assegurava suas relações com o exterior”. Esse arranjo sócio-político
configurado “mediante a confederação dos vários grupos sociais e regionais da antiga
colônia” sustentou a constituição do poder central imperial.
De fato, a aliança entre as frações dominantes regionais, principalmente a cafeeira e
açucareira, e o poder estatal do império só pôde ser construída a partir de um eixo em comum
entre os diversos processos de acumulação regional, qual seja: a manutenção da escravidão. O
mercado de escravos, por um lado, funcionou como minadouro principal dos volumosos
rendimentos auferidos pelos grandes intermediários comerciais e, por outro, possibilitou a
oferta de mão-de-obra à agricultura exportadora, àquela altura altamente dependente do
trabalho servil. Desse modo, a escravidão articulava os interesses das oligarquias agrárias e do
capital comercial nacional e internacional (OLIVEIRA, 2005).
A aliança entre as frações regionais e o movimento de centralização do poder imperial não foi
consolidada facilmente. Inclusive materializaram-se diversas rebeliões locais contra o poder
do império, em quase todo território brasileiro, tais como, a Setembrada e a Novembrada, em
Pernambuco (1831); a Cabanagem, no Grão-Pará (1834); a Balaiada, no Maranhão (1838); a
Revolta Farroupilha, no Rio Grande do Sul (1835); a Sabinada, na Bahia (1835). Quase todas
essas rebeliões encamparam o ideário de constituição de “pátrias” locais e, inicialmente,
quase sempre, foram sustentadas por forças oligárquicas locais que buscavam ampliar seus
poderes socioeconômicos e político. No entanto, à medida que algumas dessas rebeliões
foram fugindo ao controle e assumindo uma radicalidade social a partir do questionamento do
latifúndio e da escravidão, verificou-se um recuo das elites locais em seus projetos de
“pátrias” locais. Segundo Lessa (2001, p. 262) “o principal fator de coesão foi de fato o temor
das oligarquias com os movimentos sociais: sua manifestação fazia as elites recuarem para
negociar uma nova aliança com o poder imperial”.
Apesar da aliança, entre as diversas oligarquias regionais e o Império, voltada à manutenção
do controle social, havia uma disparidade muito grande entre os interesses oligárquicos
regionais haja vista as particularidades socioeconômicas de cada espaço. Assim, os laços
dessa aliança não eram resistentes, nem tornava possível a ampliação de tal acordo a uma
condição de hegemonia ampla. Como os interesses locais não tinham um caráter de conotação
nacional, verificou-se uma total ausência de projeto nacional ao longo do Império e também
139
da Velha República. Isso, por sua vez, influenciou na configuração do poder estatal central.
Nelson Oliveira, em passagem abaixo, descreve como a não-configuração de um projeto
nacional claro durante o Império afetou na constituição do Estado e de suas políticas
econômicas:
Submetido a pressões aleatórias e sem um projeto claro de constituição da
nação, na ausência de uma hegemonia política o poder estatal tende a se
defrontar, como ocorrera durante todo o Império, com as mais inusitadas,
ainda que freqüentes, crises financeiras, decorrentes muito menos de ações
orientadas para fins reprodutivos de classes sociais no plano econômico que
de defesa da unidade imperial. Atitudes com as de expandir, então, ou de
restringir a circulação monetária não se articulam a nenhum projeto mais
consistente. Na ausência de mecanismos arrecadatórios estruturados, que
ensejem uma mínima previsibilidade de gastos, tende a predominar, quase
sempre, o momento das finanças como critério para a tomada de decisões.
Quando as pressões regionais eram mais intensas, se a situação das finanças
era também promissora atendia-se com mais facilidade aos reclamos; se não,
recorria-se a empréstimos ou emissão, de que decorriam freqüentes e
incontrolados déficits orçamentários. [...] As políticas fiscais não eram
discricionárias [...] (OLIVEIRA, 2004, p. 337-338).
Em linhas gerais, o padrão de acumulação regionalizado da economia agro-exportadora
brasileira, ao longo do Império e da Velha República, controlado pelas oligarquias agrárias
locais, em suas particularidades e conflitos, configurou uma das economias nacionais mais
desarticuladas setorial e socialmente, haja vista a profunda separação espacial da produção
nacional e de sua realização (circulação) - que se efetivava completamente no âmbito do
mercado mundial - e seus efeitos na organização interna do trabalho, ao qual nesse tipo de
dinâmica econômica enquadrava-se apenas como um custo de produção, não tendo, portanto,
nenhuma influência no processo de realização das mercadorias. Com isso, as estruturas
produtivas agrícolas especializadas das províncias se relacionavam diretamente com o
mercado mundial que determinava os fluxos e refluxos das econômicas regionais. A passagem
do trabalho servil ao “trabalho livre”
76
da economia agro-exportadora, não significou
nenhuma mudança estrutural na dinâmica econômica, uma vez que as características
prevalecentes não se modificaram. A diferença maior fora que no modelo agrário-exportador,
76
Com a interrupção brasileira do tráfico de escravos (Lei Eusébio de Queiroz), após forte pressão da Inglaterra,
a mão-de-obra escrava tornou-se pouco atraente aos latifundiários em relação ao trabalho imigrante assalariado,
já que o custo de reposição do escravo elevou-se fortemente, inviabilizando, por sua vez, o prolongamento da
jornada de trabalho do escravo além dos seus limites fisiológicos admissíveis. Por outro lado, a forte imigração
européia possibilitou o aumento da oferta de força de trabalho “livre”, garantindo, com isso, grande contingente
de força de trabalho a custos reduzidos (MARINI, 2000).
140
centrado no “trabalho livre”, as despesas relativas à utilização do trabalho deixam de ser
configuradas como um custo fixo de produção, como assim o fora no modelo de “trabalho
servil”, para se configurar como um custo variável de produção. Entretanto, a implantação do
trabalho assalariado não representou uma mudança no perfil de circulação interna da
economia, já que as rendas salariais pouco influenciavam na realização das mercadorias no
âmbito interno.
De fato, a economia continuou desarticulada uma vez que a dinâmica agro-exportadora, com
trabalho livre, não modificou a estrutura interna de consumo anterior; apenas reiterou a forte
heterogeneidade dos padrões de consumo entre os segmentos sociais, haja vista a não
relevância do consumo dos trabalhadores na realização dos produtos agrícolas especializados.
Sendo assim, tornou-se possível explorar ao máximo a força de trabalho “livre”, sem a
preocupação com o seu processo de reposição, em virtude da possibilidade da incorporação de
novos trabalhadores originários da forte imigração européia. Na verdade, o fim da escravidão
significou o fim da aliança entre as oligarquias locais e o poder estatal imperial.
A erosão paulatina do Império, a partir da década de 1870, culminou com a Constituição da
República em 1889. Tal mudança na forma de governo, na verdade, representou o
amadurecimento dos conflitos entre os interesses de classe da oligarquia cafeeira de São
Paulo
77
- região mais dinâmica brasileira - e sua tentativa de afirmação ampla no contexto
nacional. A centralização do Império e suas medidas econômicas não discricionárias já não
mais traziam benefícios às frações agrícolas, principalmente, a cafeeira. O fim da escravidão
representou o ponto final na aliança entre o poder estatal imperial e as oligarquias agrárias.
Não obstante, a passagem do trabalho servil ao trabalho assalariado na produção agro-
exportadora, principalmente, nas regiões mais dinâmicas produtivamente, a exemplo da região
do café, não alterou substantivamente o eixo de organização socioeconômica, uma vez que,
desde 1850, as oligarquias agrárias foram construindo um conjunto de medidas antecipatórias
que impossibilitavam mudanças estruturais com o fim da escravidão, dentre elas destacam-se:
77
A partir meados do séc. XIX, a expansão da economia cafeeira (ciclo do café) em São Paulo começou a
deslocar o eixo dinâmico do modelo agrário-exportador para a economia paulista. Entre 1821 e 1897, a
participação do café nas exportações passa de 18,4% para 67,6%. As oligarquias cafeeiras paulistas estavam,
cada vez mais, influenciando nas políticas do governo nacional (ALBUQUERQUE; VILELLA & SUZIGAN
apud OLIVEIRA, 2004).
141
i) a Leis de Terras de 1850
78
; e ii) os incentivos à imigração européia (OLIVEIRA, 2005;
FIORI, 2003).
A República representou, portanto, a afirmação maior das autonomias locais, sobretudo das
províncias mais ricas ligadas aos interesses agromercantis do café, diante da centralidade
administrativa do Império. As oligarquias regionais tinham tornado o federalismo uma
reivindicação que se materializou na Constituição “liberal-federativa” de 1891. Assim como
nos momentos iniciais do Império, também se verificaram, no início da República, momentos
de instabilidades haja vista a falta de articulação, entre as oligarquias das regiões mais
dinâmicas e atrasadas economicamente, em prol de uma aliança. Tal aliança só foi construída,
no governo de Campo Salles, através da “política dos governadores” que tinha a seguinte
diretriz: “os poderes locais e central se sustentavam mutuamente, segundo regras de não-
intervenção em suas respectivas áreas de influência atuação”, além do que nesse pacto”
reconhecia a supremacia de São Paulo e Minas, mas preservava o poder relativo das demais
oligarquias”, uma vez que estas possuíam “ampla autonomia política e financeira perante o
governo central” (FIORI, 2003, p. 118). Agora em lugar da manutenção da escravidão, o
interesse comum que criava a possibilidade de uma nova aliança entre as oligarquias agrárias
regionais fora a preservação da estrutura fundiária que mantinha, por conseguinte, o poder
político nas mãos das classes dominantes locais.
Nos momentos iniciais da Velha República, o poder estatal central configurou-se de forma
frágil, mas estável, assumindo um apego a ideologias liberais das oligarquias do café e, em
certa medida, um pluralismo liberal. Entretanto, no transcurso da Velha República, aos
poucos, o poder central vai incorporando instrumentos de intervenção voltados à defesa dos
interesses do café, sem que o poder central pudesse a rigor se configurar em um poder estatal
78
“A primeira, entre um conjunto de medidas antecipatórias que seriam editadas no país, foi a Lei de Terras de
1850, promulgada três décadas antes da libertação legal dos escravos. Foi a primeira medida editada com tal
objetivo, e a mais exemplar de uma proposta de contra-reforma agrária, por seu caráter, ao mesmo tempo
restritivo, por impossibilitar legalmente, e na prática, a uma gama muito ampla de futuros produtores o acesso
livre a terras públicas, e repressivo, por funcionar como o primeiro instrumento legal que impunha sanções
bastante explícitas a quem ousasse infringir seus mandamentos. Foi por isto o primeiro documento legal de
caráter fundiário que se arvorou a reorganizar o campo e definir prioridades, e que se preocupou em deslocar
antecipada e preventivamente dessas prioridades categorias sociais oprimidas e exploradas, pondo no primeiro
plano das atenções empresários e futuros imigrantes europeus. Seu caráter de medida legal contra-reformista é
reforçado a cada momento. Em seu corpo legal antecipa-se uma noção que será doravante utilizada por quase
todos os legisladores, a estes conferindo o privilégio do julgamento sobre quem é ou não é capaz como indivíduo
produtor, com base simplesmente em preconceitos de classe, à época transfigurados em preconceitos de cor”
(OLIVEIRA, 2005, p. 101).
142
de cunho nacional, uma vez que as políticas econômicas concentravam-se apenas nos eixos da
economia da agricultura cafeeira de exportação e sua defesa nos mercados internacionais. A
maior utilização de instrumentos de intervenções coordenadas do poder central estatal nascem
a partir (i) da maior influência dos setores cafeeiros no Estado central e na consecução de suas
políticas econômicas, em virtude dos problemas de realização do café no mercado
internacional; e (ii) da saída do Brasil do Padrão-Ouro que permitiu ao Estado central arbitrar
discricionariamente o valor do dinheiro no mercado interno (FIORI, 2003; OLIVEIRA,
2004).
O forte dinamismo da economia agro-exportadora cafeeira começara a mostrar sinais de
arrefecimento desde os anos finais do séc. XIX, tendo como pontos de estrangulamentos
máximos a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial. Com a redução dos preços
internacionais do café, a partir de 1883, o Estado central, sob forte influência das oligarquias
cafeeiras, adota diversas medidas, a saber: i) subvenções à imigração que representou um dos
primeiros processos de socialização dos custos de empreendimentos privados; ii) políticas de
desvalorização cambial e uma reforma tributária que, na verdade, buscavam garantir os níveis
de renda dos cafeicultores. A desvalorização cambial garantiu a renda dos produtores de café,
no curto prazo. Entretanto, tal medida estimulou novos plantios de café, gerando, com isso,
uma superprodução do produto no Brasil, o que, por sua vez, provocou uma maior depressão
dos preços internacionais, haja vista a posição brasileira de maior produtor mundial; e, por
fim, (iii) as políticas aduaneiras e o programa de “valorização do café” (Convênio de
Taubaté
79
, em 1906), que tinham como intuito defender os interesses dos cafeicultores através
da criação de excedentes fiscais por meio da manipulação das diferenças cambiais.
As medidas de proteção do café criaram oportunidades para a implantação de um processo de
industrialização nascente. A desvalorização cambial, empregada no final do século XIX,
permitiu a emergência do processamento de matérias-primas produzidas localmente por
segmentos industriais emergentes haja vista a elevação dos preços internos dos produtos
importados com a desvalorização da moeda nacional. Além do que, no âmbito do programa
79
Segundo Furtado (1987, p. 179) o programa de “valorização do café” consistia das seguintes medidas: “a) com
o fim de restabelecer o equilíbrio entre oferta e procura de café, o governo interviria no mercado para comprar os
excedentes; b) o financiamento dessas compras se faria com empréstimos estrangeiros; c) o serviço desses
empréstimos seria coberto com um novo imposto cobrado em ouro sobre cada saca de café exportado; d) a fim
de solucionar o problema a mais longo prazo, os governos dos Estados produtores deveriam desencorajar a
expansão das plantações”.
143
de “valorização do café”, fazia-se necessário aumentar a exportação de café para garantir,
através dos impostos aduaneiros, o pagamento dos empréstimos estrangeiros que foram
contraídos para a formação de estoques de café pelo Estado. Para garantir o aumento das
exportações fez-se necessário ampliar a infra-estrutura (portos, ferrovias, urbanização, etc.).
Isso contribuiu com o aumento da demanda efetiva e do nível de emprego em outros setores
da economia. As políticas de manutenção do preço do café na região Sudeste, em articulação
com as restrições as importações, criaram o cenário favorável para o desabrochar consistente
do processo de industrialização de bens de consumo final no Brasil (TAVARES, 1983;
FURTADO, 1987).
A industrialização brasileira, portanto, não nasceu por meio de pressões de instituições
organizadas de interesses industriais e sim como reflexo das políticas estatais voltadas aos
interesses das oligarquias agrárias paulistas. Para Oliveira (2004) a formação desse processo
de industrialização evidência duas tendências:
[...] a primeira delas, relacionada com a ausência de uma política explícita de
apoio à industrialização, no vazio institucional de pressões organizadas nesse
sentido, a denotar uma continuidade hegemônica – ainda que pouco explícita
– de classes agrocomerciais sobre o Estado; enquanto a segunda é mais
afeita às formas pelas quais, nos próprios interstícios do processo decisório,
vão se criando as oportunidades para a implantação de novas indústrias no
país (OLIVEIRA, 2004, p. 343)
.
A Primeira Guerra Mundial aprofundou a deterioração em curso da economia agro-
exportadora brasileira, centrada no café. Tal conflito mundial alterou os fluxos financeiros e
comerciais, atingindo fortemente a capacidade brasileira de exportar e, principalmente, de
importar. À época, as compras externas era a principal forma de suprir a demanda interna de
bens de produção e de consumo duráveis, uma vez que a industrialização brasileira naquele
momento era incipiente e se concentrava apenas nos bens não-duráveis. As restrições
externas, originárias da própria vulnerabilidade da dinâmica agrário-exportadora,
aprofundam-se com o primeiro conflito mundial, e afetaram os mecanismos internos de
financiamento e, conseqüentemente, provocaram modificações no padrão de vida das
populações rurais e urbanas. Naquele momento de instabilidade socioeconômica, afloraram os
conflitos latentes entre as oligarquias regionais - que estiveram sob controle a partir da aliança
proposta na “política dos governadores” -, e, também, surgiram novos conflitos provenientes
144
do aparecimento de novos segmentos sociais ligados aos processos de industrialização-
urbanização.
O aumento dos conflitos sociais no Brasil, principalmente na década de 1920, não aconteceu
por acaso. Em um momento de crise econômica, ou por assim dizer, de “encolhimento do
bolo”, como aquele, verificou-se um acirramento do conflito distributivo político-econômico
entre as frações setoriais e regionais das classes dominantes e também, em certa medida, entre
os dominantes e os novos segmentos sociais que estavam emergindo. Fiori apresenta alguns
dos elementos, ao longo dos anos 1920, que refletem a tensão decorrente da instabilidade
socioeconômica, tais como,
[...] as pressões sociais, manifestadas nas greves operárias e nos quebra-
quebras que sacudiram Rio de Janeiro e São Paulo, em 1917 e 1918; a
surpreendente votação urbana obtida por Rui Barbosa nesse mesmo
momento; a intensificação dos conflitos intra-oligárquicos explicitados, de
forma mais clara na eleição tensa e no governo repressivo de Arthur
Bernardes; além da sublevação tenentistas que irrompe a partir de 1922
dividindo os militares (FIORI, 2003, p. 125).
A instabilidade socioeconômica brasileira dos anos 1920 potencializou-se nos anos finais da
década, em virtude dos rebatimentos internos da crise mundial de 1929, principalmente no
que tange ao financiamento interno da atividade econômica. Segundo Bastos (2004), as
dificuldades de financiamento na economia brasileira ao longo dos anos 1930, agravadas pela
Grande Depressão de 1929, estiveram associadas a dois fatores, a saber: i) a redução drástica
dos investimentos diretos externos provenientes tanto da retração dos lucros e dos fundos
acumulados pelas matrizes como pelo aumento da incerteza no que se refere à rentabilidade e
à disponibilidade futuras de divisas para repatriação de lucros para as matrizes; e ii) a redução
de empréstimos aos países periféricos haja vista o forte abalo do sistema financeiro
internacional, em decorrência da crise de 1929, e as posteriores moratórias e renegociações da
dívida externa de diversos países periféricos devedores.
A situação crítica interna deteriorou-se ainda mais com a depressão mundial de 1929,
atingindo completamente tanto a capacidade da dinâmica econômica do modelo agro-
exportador como as formas nacionais de regulação estatal. Tais movimentos provocaram a
ruptura do pacto entre as oligarquias regionais, culminando com a “Revolução de 30” e a
145
adoção posterior, em 1937, do Estado Novo. A regulação estatal de cunho liberal-pluralista
80
,
limitada por contingenciamentos regionais e locais, que perpassou grande parte do Império e
da Velha República, não dava mais conta daquela nova configuração nacional que ia se
formando a partir de novos grupos de interesses atrelados aos setores urbano-industriais, num
momento de graves problemas de financiamento interno.
A instituição do governo provisório
81
, após a “Revolução de 30”, e a configuração posterior
do Estado Novo, e do seu novo arcabouço “regulatório”, configurado a partir de novas
instituições estatais
82
, representaram a configuração de um Estado que passou a abarcar
também outros segmentos e setores sociais além das oligarquias cafeeiras paulistas. À medida
que o Estado passou a incorporar também interesses industrial-urbanos, que começava a
requisitar mais fortemente espaços no direcionamento das políticas econômicas
83
, este
começou a assumir características nacionais (OLIVEIRA, 2004).
A “Revolução de 30” - também denominada a “Revolução Burguesa Passiva Brasileira” - e
seus desdobramentos no Estado Novo traduziram a agregação de novos interesses no
80
Na perspectiva liberal-pluralista, o sistema político seria um mercado, no qual as decisões dos eleitores seriam
baseadas em suas utilidades políticas, pois o Estado seria neutro – o reflexo do mercado econômico e, por
conseguinte, dos seus intercâmbios impessoais, competitivos e livres - e um servidor do eleitorado. Ou seja, o
Estado tornar-se-ia uma “arena” onde os diversos grupos da sociedade competiriam entre si, em suposta
igualdade, de acordo com as regras do jogo estabelecidas “tecnicamente” pelo Estado. Dessa forma, a
configuração estatal funcionaria, na verdade, como um “espelho da sociedade” (BORON, 1994, cap. 8;
MILIBAND, 1970, introdução).
81
O Governo Provisório, constituído entre 1930 e 1937, teve como tática inicial buscar o restabelecimento dos
compromissos com credores externos, preparando, com isso, um contexto para a retomada de empréstimos
estrangeiros. “Mesmo quando a conjuntura de escassez de divisas forçou a aplicação de novos controles
cambiais, em setembro de 1931, a necessidade de selecionar usos prioritários para as divisas se fez para
satisfazer a capacidade de pagamento de parte da dívida publica externa. Isto implicava escassez de recursos para
finalidades comerciais e protegia atividades manufatureiras substitutivas — mais como subproduto da força das
articulações e interesses financeiros [forâneos] do que como uma política deliberada de proteção contra
importações manufatureiras concorrentes, pelo menos de início” (BASTOS, 2004, p. 290).
82
Dentre as principais mudanças no padrão regulatório destaca-se aqui: i) a criação do Conselho Federal do
Comércio Exterior, da Caixa de Mobilização Bancária e da regulamentação da Carteira de Redesconto do Banco
do Brasil que fizeram parte de um elenco de iniciativas voltadas à criação e viabilização de financiamento das
atividades produtivas; ii) a instituição do salário mínimo oficial; iii) a criação da Comissão Nacional de
Siderurgia; e iv) a constituição da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, do Conselho Nacional do Café e do
de Reajustamento Econômico dos Agricultores. De fato, tais mudanças institucionais refletiram, por um lado, um
cenário em trânsito, no qual existiam pressões tanto dos setores oligárquicos agrários como dos novos segmentos
industriais, e, por outro, a configuração de um Estado que gradualmente vai se distanciando dos particularismos
e imediatismos, inclusive com certas medidas - como a criação do salário mínimo e da Comissão de Siderurgia
supracitadas – que pareceram antecipar aos dados de realidade (OLIVEIRA, 2004).
83
Alguns dos elementos importantes, à época, da política econômica foram a política cambial e o controle de
importações. Para tanto, o governo utilizou-se do procedimento da desvalorização e do monopólio do câmbio,
com taxas diferentes para determinados grupos de produtos (câmbio múltiplo) (CANO, 2000).
146
agrupamento das classes, ou frações de classe, dominantes sem que, entretanto, fossem
expropriados os mananciais de poder dos velhos interesses oligárquicos. Isso impossibilitou a
constituição de uma hegemonia ampla sob a égide da burguesia industrial local. Aquela nova
configuração das relações entre a classe dominante, apesar de não consubstanciar uma fração
hegemônica, conformou uma Estado com dimensões nacionais e, também, uma forma de
governo autoritária (Estado Novo). A dificuldade de arbitragem e regulação socioeconômica,
num contexto novo de ampla heteregoneidade entre as frações dominantes, sem que nenhuma
delas tenha, ao mesmo tempo, poder econômico, político e ideológico, potencializou a
configuração de um governo autoritário (Estado Novo), regulador desses conflitos, voltado ao
processo de industrialização. Para Bastos (2004), se
de um lado este processo de agregação de interesses conferia à cúpula
presidencial [primeiro governo de Getúlio Vargas] a possibilidade de se
apresentar como a única representante do interesse geral da nação
(dividindo-a para reinar na cúpula), também fragmentava e limitava o escopo
possível da centralização de recursos decisórios e financeiros, à medida que
as reivindicações setoriais pressionavam recursos escassos (BASTOS, 2004,
p. 309).
Um novo eixo socioeconômico industrializante, portanto, vai se delineando, gerando, com
isso, uma estrutura brasileira mais heterogênea, não vinculada apenas a uma base
agromercantil - único eixo estruturante ao longo de todo Império e da Velha República. Nos
momentos iniciais dessa nova direção socioeconômica industrial, principalmente na fase de
industrialização de bens não-duráveis, configurada até 1955, as frações industriais nacionais -
que iam se estruturando em virtude das políticas econômicas discricionárias do Estado
voltadas à indústria - controlavam, em grande parte, o novo direcionamento adotado. O
capital industrial forâneo até aquele momento ainda tinha um papel minoritário no novo rumo
industrializante brasileiro.
4.3. As peculiaridades da industrialização desarticulada brasileira: a instável aliança
entre as frações dominantes e a saída autoritária
O processo de industrialização substitutiva brasileiro, sob controle majoritário do capital
nacional, até os anos finais da década de 1940, esteve basicamente concentrado em ramos de
bens de consumo não-duráveis (setores “leves”). A partir daquele período a dinâmica
147
produtiva teria que caminhar na direção da sua segunda etapa, a saber: a industrialização
“pesada” voltada à produção de bens de capital e de consumo duráveis. Entretanto, profundas
barreiras sócio-econômicas estavam postas ao prosseguimento da industrialização, sob o
comando do capital industrial nacional, haja vista a grande monta de recursos necessários à
construção dessa segunda fase. A possibilidade de continuidade da industrialização
substitutiva, sob o controle dos segmentos nacionais, era mínima, à época, em virtude da
grande escassez internacional de financiamento e da dificuldade de financiamento interno no
âmbito de um mercado financeiro nacional incipiente.
A consecução da industrialização “pesada”, sob a égide da burguesia nacional, só poderia ser
realizada a partir de um descolamento maciço e irrestrito de recursos internos ao processo de
industrialização através de reformas financeiras e tributárias radicais, o que era impossível
politicamente àquela altura haja vista o poder político e ainda econômico de outros segmentos
sociais, especificamente as oligarquias agrárias cafeeiras
84
. Dessa maneira, o avanço da
industrialização brasileira após os anos 1950, principalmente a partir do governo Juscelino
Kubitschek (JK), significou uma associação entre a fração industrial nacional e o grande
capital forâneo, tendo o primeiro segmento um papel de sócio menor nessa aliança. Portanto,
as medidas econômicas e institucionais implementadas acabaram funcionando como base à
retomada do processo de acumulação no pós-II Guerra, de acordo com os padrões definidos
pelo grande capital internacionalizado. Cabe aqui ressaltar que essas articulações e
movimentos entre as frações dominantes nacionais e internacionais voltados à industrialização
substitutiva brasileira não apresentaram um caráter monolítico. Muito pelo contrário, o que se
verificou, à época, principalmente no início década de 1960, foram resistências e conflitos
entre as diversas frações dominantes e, também, entre os dominantes e os movimentos
populares que reivindicavam por reforma agrária e por controle do capital estrangeiro. Nem as
conjunturas favoráveis, do governo JK, conseguiram eliminar os conflitos entre as frações
dominantes; ao contrário, uma vez que os mecanismos utilizados para potencializar o
crescimento ampliaram o conflito distributivo já no final daquele governo. A não-
configuração de um hegemonia ampla, sob a égide dos segmentos nacionais ligados à
indústria, impediam que os conflitos fossem sanados. Com a não-configuração de uma
hegemonia ampla e o aumento das pressões dos setores populares e de esquerda, no início da
84
A agricultura, à época, ainda era a principal “fonte geradoras de divisas necessárias à importação de insumos
demandados pelo setor industrial”. Sendo assim, verifica-se que as “organizações representativas ainda dispõem
de força e representatividade para exigir políticas de amparo à agricultura” (OLIVEIRA, 2004, p. 348-349).
148
década de 1960, as frações dominantes sentiram-se ameaçadas e vislumbraram nas Forças
Armadas o único meio de manutenção do controle social e de “arbitragem” dos conflitos
distributivos intra-classe dominante.
De fato, a década de 1950 significou uma nova fase para o capitalismo brasileiro, período este
que demarcou um novo padrão de acumulação qualitativa e quantitativamente distinto do
anterior em virtude do predomínio da participação da indústria na renda interna, a partir de
1956, e do aumento substantivo de uma realização parcial interna crescente da produção
nacional. A partir daí novos espaços socioeconômicos e organizativos são abertos em
decorrência da nova correlação de forças sociais, sob o controle setorial da indústria, que
provocou modificações nas políticas econômicas e nas instituições estatais, destacando dentre
as modificações, a regulamentação dos fatores de produção, principalmente, no que concerne
ao preço da força de trabalho e a criação das condições institucionais necessárias à ampliação
de atividades econômicas voltadas ao mercado interno (OLIVEIRA, 2003; OLIVEIRA,
2004).
Diferentemente do padrão de acumulação agrário-exportador - que fora ditado completamente
pelos movimentos de expansão e retração do mercado mundial -, o novo padrão de
acumulação brasileiro, pautado na industrialização, não representou apenas um reflexo do
contexto externo, mas uma conjunção de fatores externos e internos haja vista o aumento da
heterogeneidade, tanto das frações dominantes como dos diversos segmentos trabalhadores,
produzida pelo processo de industrialização. Na verdade, o período compreendido entre a
primeira e segunda guerra mundial - marcado por profundas crises mundiais de realização
comercial, pela Revolução Russa e pelo interregno de poder no centro capitalista da economia
mundo decorrente da transição da supremacia inglesa à estadunidense – funcionou como uma
brecha espaço-tempo para modificações na até então vigente divisão intencional do trabalho.
Novas articulações econômicas, políticas e institucionais, voltadas ao processo de
industrialização substitutiva, abriram-se ao Brasil, uma vez que este contava com
determinantes estruturais que possibilitavam esse novo padrão de acumulação. Francisco de
Oliveira, em trecho abaixo de uma de suas obras clássicas Crítica à razão dualista, apresenta
a importância dos fatores internos - as lutas nacionais inter e intra-classes - para a
configuração e consolidação da industrialização brasileira:
149
[...] a expansão capitalista [industrial] no Brasil foi muito mais resultado
concreto do tipo e do estilo da luta de classe interna que um mero reflexo das
condições imperantes no capitalismo mundial. Em outras palavras, com a
crise dos anos 1930, o vácuo produzido tanto poderia ser preenchido com
estagnação – ocorreu em muitos países da América Latina - como
crescimento; este, que se deu no Brasil, pôde ser concretizado porque do
ponto de vista das relações fundamentais entre atores básicos do processo
existiam condições estruturais, intrínsecas, que poderiam alimentar tanto a
acumulação como a formação do mercado interno (OLIVEIRA, 2003, p. 74-
75).
O avanço da industrialização “pesada” no Brasil e a consolidação do controle socioeconômico
das frações industriais permaneceram, em certa medida, indefinidos desde o suicídio de
Getúlio Vargas até a eleição de Juscelino Kubitschek. Essa indefinição socioeconômica foi
sanada no governo JK, uma vez que este conseguiu configurar um processo de aceleração da
acumulação industrial brasileira, consolidando o capital industrial como o eixo chave da
economia nacional. O lema do governo de avançar “cinqüenta anos em cinco” demonstrava o
projeto de ampliação da industrialização. Para alcançar tal intento foi elaborado e executado,
em grande parte, um Plano de Metas que teve como objetivos incentivar a implantação de
ramos industriais “pesados”, voltados à produção de bens não-duráveis, intermediários e de
capital, e a ampliação dos investimentos públicos em infra-estrutura. O Plano de Metas de JK
teve como pontos estratégicos: (i) estimular a indústria automobilística, a construção naval, a
mecânica pesada, a produção de cimento e de papel e celulose; ii) ampliar a capacidade da
siderurgia; e iii) elevar os investimentos públicos destinados à construção e à melhoria da
infra-estrutura básica (rodovias, produção de energia elétrica, armazém e silos, portos), além
da construção de Brasília. Quase todos os objetivos estabelecidos pelo Plano de Metas foram
alcançados e alguns deles suplantados ao final do mandato de JK (OLIVEIRA, 2003).
Como fora possível, num contexto de elevadas restrições socioeconômicas
85
, alcançar êxito
tão grande na consecução de um Plano de Metas grandioso que requeria elevadas inversões
privadas e públicas? Na verdade, tal êxito esteve associado à habilidade de seus formuladores
em perceberem, ao mesmo tempo, que “o país não podia desperdiçar oportunidades abertas
pela nova conjuntura internacional, marcada pelo deslocamento espacial de capitais em busca
85
As restrições internas ao êxito do Plano de Metas eram elevadas haja vista a deterioração das contas externas,
decorrente de quedas no preço do café - que ainda representava uma fonte de divisas importantes -; a baixa
capacidade nacional de autofinanciamento da industrial; e o aumento dos conflitos entre as diversas frações das
classes dominantes, e entre estas e as diversas categorias de trabalhadores que vinham se consolidando.
150
de valorização internacional” e “que era necessário integrar o estado mais positivamente nesse
processo, conferindo um perfil mais dinâmico às suas estruturas decisórias” (OLIVEIRA,
2004, p. 353). Assim, o Plano foi configurado a partir dos investimentos externos diretos das
grandes empresas multinacionais e da capacidade do Estado em realizar inversões na infra-
estrutura e dar suporte aos setores industriais emergentes.
Naquele contexto do Plano de Metas, em que domínio da dinâmica socioeconômica passa às
mãos do capital industrial, fez-se necessário engendrar reformulações no padrão de
intervenção estatal no sentido da modernização dos processos decisórios e da acomodação dos
diversos interesses das frações dominantes, haja vista o peso específico no plano político das
oligarquias agrícolas. Essa nova realidade vai configurando, aos poucos, uma nova
institucionalidade estatal dual que se utiliza de critérios diferenciados voltados à acomodação
dos diversos interesses. Por um lado, deu-se privilégio a conformação de organismos
paraestatais que funcionavam como estruturas planejadoras e interlocutoras – tais como, o
grupo executivo da indústria automobilística e as diversas coordenações ad hoc - dos
segmentos do capital industrial, àquela altura o mais dinâmico e sob forte influência do capital
forâneo; e, por outro, manteve-se quase intactos determinados instrumentos tradicionais de
intervenção estatal que beneficiavam os segmentos menos dinâmicos sob o controle de
determinadas oligarquias regionais (OLIVEIRA, 2004). Vale ressaltar que o apoio ao Plano
de Metas, centrado na ideologia desenvolvimentista-cepalina, não ficou restrito apenas aos
velhos e novos segmentos dominantes, sendo inclusive apoiado por forças populares e de
esquerda
86
.
Além de tentar acomodar os interesses setoriais das classes dominantes nacionais, a nova
institucionalidade estatal teve que atender e absorver, também, os novos segmentos do capital
industrial estrangeiro. Desse modo, as reformulações na forma de intervenção estatal
mantiveram os velhos compromissos, ao mesmo tempo em que adequou uma estrutura estatal
moderna voltada à dinâmica industrial, cujo controle dos setores dinâmicos estava sob
domínio do capital forâneo. Segundo Fiori (2003, p. 156), a ampliação do capital industrial
86
“As esquerdas em geral sempre tiveram muita dificuldade de perceber as especificidades de um processo de
desenvolvimento que tem no atraso, por exemplo, não um limite mas um potencial de dominação”. Naquele
contexto, “a esquerda fingia desconhecer esses condicionantes e especificidades históricas. Insistia em ver na
burguesia uma classe com perfil revolucionário”. Propondo inclusive “um projeto para o capital, sem qualquer
exigência [...] de tomada de poder previamente” (OLIVEIRA, 2005, p. 108-109).
151
estrangeiro criou “um pólo híbrido, com interesses internos e externos a serem defendidos
segundo uma lógica de reprodução que escapa, às vezes, às possibilidades de controle por
parte do Estado nacional”.
No que tange aos problemas de financiamento da industrialização, o ingresso de
investimentos externos direto das grandes empresas multinacionais, principalmente a partir de
1956, funcionou como uma solução parcial as dificuldades crônicas de mobilização de capital.
Cabe ressaltar que tais investimentos privados externos ingressaram no Brasil não apenas
pelos benefícios decorrentes da instrução 113 da SUMOC
87
(Superintendência da Moeda e
Crédito) e dos reduzidos preços da força de trabalho local mais, também, pela capacidade do
Estado em realizar elevados investimentos em infra-estrutura e, conseqüentemente, gerar uma
demanda agregada necessária à realização interna da produção dos novos ramos industriais.
Assim, as inversões forâneas alteraram, significativamente, a problemática do financiamento
da industrialização, entretanto, modificaram a trajetória política da acumulação capitalista
haja vista o papel de sócio minoritário que o capital industrial passa a ter na dinâmica
econômica brasileira (FIORI, 2003).
No que concerne aos amplos recursos necessários aos investimentos públicos programados
pelo Plano de Metas, o governo utilizou-se de fundos fiscais especiais e, principalmente, dos
ágios e bonificações cambiais e de operações cambiais e financeiras de swaps. Ao adotar tais
caminhos para o financiamento dos investimentos, o governo optou por não alterar a base
tributária herdada do governo Vargas, uma vez que uma reforma tributária poderia romper as
alianças estabelecidas entre as diversas frações dominantes. No entanto, esse tipo de
financiamento do investimento estatal agravou fortemente o desequilíbrio cambial e,
principalmente, o de preço, desencadeando, por sua vez, um processo inflacionário (CANO,
2000).
Destarte, o problema do financiamento para o avanço da industrialização foi resolvido, pelos
menos temporariamente, a partir de uma trajetória heterodoxa que combinava investimento
externo direto e inflação. O Estado, portanto, utilizou-se do seu poder de redefinir o valor do
dinheiro ensejando alcançar os objetivos estratégicos do Plano, ou seja, valeu-se da inflação
87
A Instrução 113 da SUMOC tinha como objetivo atrair investimentos estrangeiros diretos. Tal instrução
permitiu às indústrias recém instaladas a importar equipamentos sem a necessidade de cobertura cambial.
152
como instrumento básico para o financiamento do desenvolvimento industrial. Entretanto, o
processo inflacionário ampliou a disputa entre as diversas frações dominantes e, inclusive,
entre os dominantes e as diversas categorias de trabalhadores, principalmente, no final do
governo JK e nos governos de Jânio Quadros/João Goulart (FIORI, 2003). Jose Luís Fiori, em
passagem abaixo de sua obra O vôo da coruja, ressalta como a inflação ampliou os conflitos
entre as frações de classes:
[Com a inflação] [...] abria-se uma nova e fatídica arena de luta entre as
várias frações. Tencionando entre o seu poder e a única solução possível
para a heterogenidade, o Estado opta pela inflação, fazendo dela causa e
solução das sucessivas crises financeiras e institucionais que acompanharão
o novo padrão de acumulação liderado pelo capital industrial. Enquanto
mecanismo heterodoxo de financiamento, a inflação explicita a luta
permanente relativa à distribuição dos recursos da produção e, por derivação,
da riqueza e da renda. Luta-se em torno à política econômica, procurando
balizar o câmbio e a moeda, instrumentos centrais na determinação do
movimento dos preços e das taxas de lucro. [...] Os capitalistas necessitam
da inflação, mas, ao mesmo tempo, a temem, na medida em que não têm
assegurado o controle do seu momento político, que passa pela condução
instável dos negócios do Estado (FIORI, 2003, p. 152-153).
De fato, o novo padrão de acumulação brasileiro, consolidado nos anos 50, - em que se
verificou a internacionalização da industrialização dos ramos “dinâmicos” – aprofundou ainda
mais a heterogeidade entre as estruturas produtivas e, por conseguinte, entre as frações
dominantes, haja vista a descontinuidade de interesses dificilmente integráveis que vinham se
materializando desde o início do processo de industrialização. Nem mesmo com domínio
econômico e político do capital industrial foi possível consolidar uma hegemonia ampla, pois
as oligarquias agrárias continuavam com certo poder político e o avanço da industrialização
esteve sob forte influência do capital forâneo. Dessa maneira, assim como ao longo do
Império e da Velha República, as frações dominantes forjam novas alianças a partir do
predomínio dos segmentos ligadas ao capital industrial, nacional e estrangeiro.
A não-consolidação de uma hegemonia ampla pelas frações industriais nacionais e a
manutenção do poder político das oligarquias regionais acabaram criando uma estrutura
econômica fortemente heterogênea formada por estruturas de produção fortemente
diferenciadas no que se refere à produtividade, à organização e ao grau de concentração. A
dinâmica de industrialização brasileira vai se configurando a partir da convivência dialética
entre setores produtivos “modernos” - ligados à indústria de bens de consumo duráveis – com
153
alta produtividade e fortemente monopolizado e setores “atrasados” atrelados à agricultura
“latifundista” que tinham reduzida produtividade. A oposição formada (dualidade) entre os
setores “atrasados” (agricultura) e “modernos” (indústria), conforme desenvolvido pela
corrente cepalina, esteve longe de existir no Brasil, uma vez que a agricultura não foi um
empecilho à indústria. Pelo contrário, contribuiu para o seu crescimento através (i) do
fornecimento maciço de contingentes populacionais que foram criando um “exército de
reserva” urbano, possibilitando o aumento da exploração do trabalho na indústria; e (ii) do
aumento do fornecimento de excedentes alimentícios aos mercados urbanos, em vista do
avanço da fronteira agrícola, principalmente no centro-oeste (Goiás, oeste do Paraná, sul do
Mato Grosso), que possibilitaram a redução do custo da reprodução da força de trabalho
urbano (OLIVEIRA, 2003). Francisco de Oliveira, em trecho a seguir, mostra muito bem a
dialética integrativa entre indústria e agricultura no Brasil:
Não é simplesmente o fato de que, em termos de produtividade, dos dois
setores – agricultura e indústria – estejam distanciando-se, que autoriza a
construção do modelo dual; por detrás dessa aparente dualidade, existe uma
integração dialética. A agricultura, nesse modelo, cumpre um papel vital
para as virtudes de expansão do sistema; seja fornecendo os contingentes de
força de trabalho, seja fornecendo os alimentos [...], ela tem uma
contribuição importante na compatibilização dos processos de acumulação
global da economia. De outra parte, ainda que pouco represente como
mercado para a indústria, esta, no seu crescimento, redefine as condições
estruturais daquela, introduzindo novas relações de produção no campo, que
torna viável a agricultura comercial de consumo interno e externo pela
formação de um proletariado rural. Longe de um crescente e acumulativo
isolamento, há relações estruturais entre os dois setores que estão na lógica
do tipo de expansão capitalista [...] (OLIVEIRA, 2003, p. 47-48).
Na verdade, o atraso de alguns setores produtivos nacionais não fora um limite ao
desenvolvimento. Em certa medida, funcionaram como um potencial de dominação,
possibilitando, com isso, a manutenção das condições de superexploração do trabalho no
Brasil. Não é para menos que as frações industriais nacionais e forâneas preferiram construir
alianças com os setores tradicionais das oligarquias fundiárias a construir com segmentos
progressistas, diferentemente do que ocorrera na industrialização dos países capitalistas
centrais. No entanto, as alianças entre as frações dominantes tornaram-se, cada vez mais,
instáveis devido à dificuldade em agregar interesses em comum num contexto de aumento
inflacionário decorrente da elevação do conflito distributivo, principalmente, a partir do final
do governo Juscelino Kubitschek. Agora, além da preservação da estrutura fundiária, a aliança
154
entre as classes dominantes teve que incorporar a salvaguarda do capital industrial
estrangeiro.
Nos anos finais da década de 50, a aliança entre as frações dominantes novamente mostra-se
em suspensão em vista do aumento dos seus conflitos internos decorrente da desaceleração do
crescimento econômico
88
, além do que se verificou, também, à época, uma tentativa de
afirmação dos espaços dos trabalhadores através da organização sindical de diversas
categorias. Tais elementos geraram uma forte elevação do conflito distributivo proveniente
tanto do aumento da disputa entre as frações dominantes pelos lucros como pelas
reivindicações dos sindicatos por maiores salários. Isso, por sua vez, provocou um descontrole
inflacionário, demonstrando, portanto, que a inflação tinha deixado de ser um instrumento
eficiente ao processo de acumulação industrial. Ruy Marini, em passagem a seguir de seu
artigo Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil, descreve muito bem a elevação dos
conflitos aquela altura:
Era impossível continuar financiando a industrialização através de
poupanças forçadas, quando tinha-se o nível de vida popular comprimido ao
máximo (graças à erosão constante a que haviam estado submetidos os
salários) e um movimento sindical em melhores condições para defender-se.
Paralelamente à disputa entre as classes dominantes pelos lucros originados
no aumento da produtividade [...], essas classes tinham que se confrontar
agora com a resistência oposta pelas massas populares [...]. [O] processo
inflacionário se converteu em luta de morte entre todas as classes da
sociedade brasileira pela própria sobrevivência, e não poderia terminar de
outra maneira senão colocando a sociedade ante à necessidade de uma
solução de força [ Regime Militar] (MARINI, 2000, p. 28).
Além das reivindicações salariais, os movimentos populares, lastreado em setores da
população urbana e algumas frações da população rural, consubstanciaram um projeto
nacional-reformista que tinha como eixo estratégico as reformas de base, que compreendiam
as reformas agrária, tributária, financeira, administrativa e educacional e o controle do capital
88
A desaceleração econômica a partir de 1961 esteve vinculada a um novo tipo de crise econômica cíclica
própria do avanço industrial – fase de descenso do ciclo econômico conforme descrito por Kalecki. “Se, antes, as
crises no setor externo que afetavam a capacidade de financiamento interno [...] a partir de agora os descensos
cíclicos da expansão industrial passariam também a contribuir para as novas crises políticas e financeiras”.
Sendo assim, “a exaustão do primeiro ciclo de investimento promovido pelo Plano de Metas gerou uma crise
recessiva endógena e reacelerou os conflitos internos à classe dominante, disparando a inflação” (FIORI, 2003,
p. 161).
155
forâneo. Dentre as propostas das reformas de base, duas despertaram as maiores resistências
entre as classes dominantes: a da reforma agrária e do controle do capital estrangeiro (CANO,
2000; FIORI, 2003).
Com o avanço progressivo do projeto nacional-reformista de caráter popular e com a elevação
das disputas entre as frações dominantes, verificou-se que estas perderam, em certa medida,
os instrumentos de controle social sobre os dominados, tendo seu ponto maior de descontrole
no momento em que o governo Goulart – que assumira após renúncia de Jânio Quadros –
encampou as reformas de base como eixo. No entanto, ao sinal do perigo maior, as frações
dominantes reaglutinaram-se em prol da manutenção das estruturas de dominação. A
consciência de classe dos dominantes fora maior do que muitos esperavam. A saída interna à
crise, à época, não seria possível pelo convencimento das classes dominadas - haja vista a
dificuldade histórica das frações dominantes em consolidar uma hegemonia ampla ainda mais
num período de desaceleração econômica – e sim pela forte coerção. Para tanto, as frações
dominantes buscaram nas Forças Armadas a direção autoritária – Regime Militar que durou
aproximadamente 20 anos (entre 1964 e 1984) - para arbitrar seus conflitos e rechaçar
fortemente os movimentos populares reformistas e as reivindicações salariais dos sindicatos.
Segundo Fiori (2003), as Forças Armadas, que antes funcionavam como um recurso de última
instância no que tange ao controle social, aquela altura, tinham sido convocadas, pelas classes
dominantes, para comandar a “fuga para frente” do ponto de vista socioeconômico. Desse
modo, ao longo de todo o Regime Militar, o crescimento econômico e o progresso tornaram-
se questões de segurança nacional.
O golpe militar em abril de 1964 dá início a configuração de um longo período de governos
militares pautados num estado de exceção
89
, principalmente a partir do Ato Institucional nº 5
de 1968. A partir daí, materializaram-se atos de exceção política e de controle social pela via
da coerção (autoritarismo). No entanto, tais procedimentos coercitivos só tiveram
sustentabilidade durante tanto tempo em virtude dos programas e medidas socioeconômicos
dos governos militares que consubstanciaram fortes crescimentos econômicos. O crescimento
89
Dentre os vários atos de exceção implementados pelo regime militar destacam-se aqui: a cassação dos direitos
políticos de centenas de pessoas; a eleição indireta dos governos militares através do Congresso Nacional sob
completo controle dos militares haja vista a liquidação dos partidos políticos e a instituição do bipartidarismo
(ARENA, governista, e MDB, de oposição); prisões e torturas, à margem da lei, empregadas pelos aparelhos
oficiais de repressão aos movimentos contrários ao regime (CANO, 2000).
156
foi o sustentáculo do regime militar, uma vez que a partir dele foi possível estabilizar os
velhos conflitos entre as classes dominantes e, ao mesmo tempo, controlar com mão-de-ferro
as reivindicações dos movimentos populares.
Apesar dessas características gerais dos governos militares ao longo de vinte anos, cabe aqui
apresentar algumas diferenciações entre os programas socioeconômicos implantados no início
do golpe militar e após a configuração do Ato Institucional nº 5, em 1968. Inicialmente o
regime militar, sob o governo do general Castelo Branco (entre 1964 e 1968), assume uma
postura econômica de corte liberal e uma perspectiva política semidemocrática. No campo
econômico, o governo Castelo Branco adota o Plano de Ação Econômica do governo (PAEG)
voltado à estabilização monetária. Segundo a equipe Campos-Bulhões, responsável pelo
PAEG, o descontrole inflacionário tinha origem no excesso de demanda decorrente dos
aumentos salariais populistas do governo anterior. A partir de tal diagnóstico de corte liberal,
o governo utilizou instrumentos clássicos de estabilização, tais como: corte nos gastos
públicos, arrocho salarial, contenção dos meios de pagamentos e aumento da carga tributária.
Tais medidas provocaram uma recessão prolongada – onda de falências de empresas pequenas
e médias e forte aumento da capacidade ociosa das grandes empresas –, aprofundando a crise
econômica que se configurara desde 1962. Nesse contexto de recessão, os velhos problemas
reapareceram: aumento dos conflitos entre frações dominantes e o ressurgimento, em
1967/1968, de greves e de manifestações estudantis contra a política econômica e a repressão.
Para conter aquelas manifestações, o regime militar aumenta a repressão e abandona o
discurso econômico liberal, voltando-se a um projeto de desenvolvimentismo conservador. A
partir do golpe dentro do golpe, em 1968, o crescimento econômico passou a ser enquadrado
como uma questão de segurança nacional (FIORI, 2003; OLIVEIRA, 2003; BELUZZO,
1984).
Dessa maneira, os governos militares depois de 1965, e em particular, após 1968, passaram a
adotar políticas econômicas que estimulavam a demanda por meio do aumento do crédito e
dos gastos públicos. Os principais instrumentos daquelas políticas estiveram pautados na
estruturação do mercado de capitais, numa reforma fiscal e no controle salarial mais estrito
90
.
Segundo Francisco de Oliveira, tais políticas voltadas ao crescimento procuraram
90
Tais instrumentos foram construídos a partir das seguintes mudanças institucionais: i) reforma do sistema
monetário e financeiro que criou elementos para o financiamento de médio e longo prazo da economia – criação
157
transferir às classes de rendas baixas o ônus do combate [a inflação],
buscando que as alterações no custo da reprodução da força de trabalho não
se transmitam à produção, ao mesmo tempo que deixa galopar livremente a
inflação que é adequada à realização da acumulação, através da instituição
da correção monetária, a prática, já iniciada em períodos anterior, de fuga
aos limites da lei da usura. A circulação desse excedente compatibiliza os
altos preços dos produtos industrializados com a realização da acumulação,
propiciada por um mercado de altas rendas, concentrados nos estratos da
burguesia e das classes médias altas (OLIVEIRA, 2003, p. 94-95).
As reformas institucionais e as políticas econômicas de ampliação da demanda
proporcionaram um acelerado crescimento econômico entre os anos de 1967 e 1974
91
. A
partir daí afirmou-se definitivamente a supremacia do capital monopolista internacionalizado
no comandando das indústrias dinâmicas que comandaram o ciclo de expansão industrial e a
centralidade do Estado no que se refere à produção e à regulação socioeconômica. Nem
mesmo a desaceleração econômica a partir de 1974 e a grave crise internacional da década de
1970 - conforme descrita anteriormente - foram capazes de parar o avanço da industrialização
pesada, já que a manutenção do crescimento econômico era condição necessária à
manutenção do controle social coercitivo adotado pelos governos militares e ao apoio dado ao
regime pelas frações dominantes. Por isso, o governo do general Geisel não titubeou ao
primeiro sinal de desaceleração econômica e adotou um programa econômico, denominado II
Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), voltado a complementar a cadeia produtiva
nacional e a criar um novo padrão de industrialização. Segundo Cano (2000), os principais
objetivos do II PND foram: i) a expansão e a modernização da agropecuária destinada à
exportação; ii) ampliação e diversificação da indústria de bens de capital e de insumos
básicos; iii) elevação das exportações; iv) tentativa de maior absorção de tecnologia moderna;
e v) desconcentração industrial. Apesar da ampliação absoluta dos investimentos, financiado
em grande medida por empréstimos estrangeiros e pelo aumento da dívida interna, o II PND
de Fundos Fiscais e de Bancos de Investimentos-, novos títulos financeiros, mecanismo de correção monetária
sobre títulos públicos e privados e novos órgãos reguladores como o Conselho Monetário Nacional e o Banco
Central; ii) reforma fiscal assentada no lançamento de títulos públicos com correção monetária que
possibilitaram novas formas de financiamento do investimento público; iii) novas políticas de trabalho e de
reajuste salarial que eliminaram estabilidade no emprego, substituindo-o por um pecúlio para o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), e, também, criaram instrumentos que serviram para corroer ao longo do
tempo o salário médio real do trabalhador; e iv) uma deliberada expansão e reestruturação do crédito agrícola
destinado ao processo de modernização da agricultura, principalmente a voltada à exportação (CANO, 2000).
91
No período de recuperação econômica, entre 1967 e 1970, o PIB cresceu 9,9%, ao ano, em media anual. No
momento de maior aceleração econômica, entre 1970 e 1974, o crescimento médio anual do PIB foi de 11,3%
(CANO, 2000).
158
não implicou em mudanças no padrão de acumulação do período do Plano de Metas. Ricardo
Carneiro, em passagem a seguir de seu livro Desenvolvimento em crise, descreve os efeitos do
II PND na estrutura econômica brasileira:
Embora o II PND não tenha se materializado como instrumento da
realização da pretendida diversificação adicional da matriz industrial na
escala proposta inicialmente e tampouco tenha logrado a implantação
definitiva dos setores mais avançados da indústria, ele preservou o processo
de diferenciação da estrutura produtiva em direção à indústria pesada
observado desde meados dos anos 50. Assim, cabem aqui algumas
considerações acerca das limitações à maior diversificação da estrutura
observada no período. Esses obstáculos manifestaram-se com intensidade na
indústria de bens de capital, pois, nos segmentos produtores de bens
intermediários e energia, o processo avançou substancialmente
(CARNEIRO, 2002, p. 68).
O aumento da complementaridade entre ramos industriais foi bastante significativo; contudo,
um novo padrão de industrialização e, por conseguinte, de acumulação não pôde ser
efetivado, tendo em vista a necessidade de alterações estruturais do consumo e do
investimento que necessariamente só poderiam ser realizadas por meio da consolidação de
uma hegemonia ampla do capital industrial nacional. Àquela altura, uma realidade pouco
factível em virtude do avanço do capital forâneo.
O forte crescimento na taxa de acumulação de capital provocou profundas modificações
socioeconômicas no Brasil ao longo da década de 1970. No que concerne aos aspectos
econômicos, verificou-se a consolidação definitiva da indústria de bens de consumo durável e
de capital, em grande parte, controlada pelas empresas estatais e/ou pelas empresas
multinacionais. Para Fiori (2003, p. 173), o processo de industrialização brasileira dos anos
1970 consolidou “um pólo moderno e altamente concentrado dos pontos de vista econômico e
regional, e se completa a montagem de uma estrutura industrial relativamente complementar e
auto-sustentável”. Pode-se assim dizer que o processo de industrialização brasileiro, em certa
medida, reduziu o grau de desarticulação social e setorial do país devido à criação de um
mercado consumidor nacional - por meio das políticas econômicas voltadas à elevação da
demanda - e ao maior balanceamento entre os departamentos de produção (I) e de consumo
(II) provenientes da consolidação da indústria pesada.
159
No entanto, o país não conseguiu transpor a barreira da desarticulação, uma vez que a maior
parte da produção dos ramos industriais dinâmicos continuaram se destinando aos grupos de
renda alta e média e à exportação. Na verdade, os salários dos trabalhadores continuaram a
não se configurar como um elemento fundamental na realização das mercadorias dos setores
industriais mais dinâmicos. Isso, por sua vez, possibilitou o avanço da industrialização
nacional, por meio do aumento da exploração do trabalho, sem que isso afetasse a realização
das mercadorias dos setores dinâmicos. Por outro lado, os setores industriais nacionais
“tradicionais” (calçados, tecidos e vestuário) que dependiam mais fortemente da demanda de
estratos de rendas baixas apresentavam constantes problemas de realização que eram sanados
por políticas governamentais que subsidiavam a exportação desses tipos de produtos. Nessa
estrutura, o trabalho é enquadrado apenas como um custo de produção. Por isso, a dinâmica
socioeconômica de industrialização brasileira foi sendo configurada através da exclusão e da
ingente concentração de renda.
Para Fiori (2003, p. 156-157), a industrialização pesada funcionou “segundo padrões
capitalistas modernos, altamente monopolizados, com baixa capacidade de emprego industrial
e segundo uma dinâmica fundada na hiperconcentração de renda”. Tal dinâmica gerou “uma
urbanização acelerada e reproduziu, permanentemente, uma massa de desempregados e
subempregados que vegetam nos bolsões de marginalidade urbana e miséria rural, ampliando
as bases de um sistema social excludente”. Dessa maneira, a exclusão e a superexploração do
trabalho fizeram parte do padrão de acumulação brasileiro, sob o controle do capital
industrial.
Os fluxos de investimento gerados pelos projetos do II PND conseguiram amortecer a queda
das taxas de crescimento decorrente do esgotamento do ciclo de expansivo de 1968/74.
Entretanto, após o segundo choque do petróleo, a ampliação da recessão mundial e,
principalmente, a partir da elevação das taxas de juros internacionais decorrentes da política
Volcker, em 1979, o Estado não consegue mais manter níveis elevados de investimentos
públicos, haja vista a insolvência interna e externa. Além do que, o país teve que recorrer ao
FMI e, conseqüentemente, acabou adotando um plano de estabilização recessivo conforme
acordado com tal instituição. Destarte, a desaceleração econômica não representou um ciclo
recessivo curto, mas sim uma crise socioeconômica profunda que se arrastou ao longo de toda
década de 1980.
160
Com a desaceleração do crescimento reaparecem tanto os velhos conflitos dentro das classes
dominantes pela maior apropriação dos lucros como as reivindicações dos movimentos
operários decorrente da forte corrosão dos salários reais iniciada desde os anos finais da
década de 1960. Progressivamente, o regime militar ia perdendo seus principais apoios
ligados às frações dominantes e parte da classe média. “Nestas horas, como sempre, renasceu
a luta interna da classe dominante com virulência e por suas brechas cresceu, de forma
autônoma, um movimento social amplo que exigia melhores condições de vida e maior
participação política” (FIORI, 2003, p. 173).
Cabe ressaltar que além das frações dominantes que se configuraram a partir do Plano de
Metas – especialmente o capital industrial forâneo –, a nova etapa de industrialização,
consolidada pelo regime militar, abriu espaço para emergência de novas frações dominantes
vinculadas às finanças – haja vista a reforma fiscal e financeira, entre 1964 e 1968, que
ampliou a financeirização da economia a partir da vasta utilização dos títulos públicos e de
ampliação do crédito ao consumidor - e à agricultura industrializada (agronegócio) destinada
à exportação – uma decorrência de políticas governamentais destinadas à modernização da
agricultura. Portanto, a heterogeidade entre as frações dominantes ampliou-se ainda mais,
ficando visível, principalmente, em contexto de recessão econômica. Não é para menos que a
luta interna da classe dominante pela maior fatia dos lucros, nos últimos anos da década de
1970, reapareceram com grande virulência, mantendo-se intensa ao longo dos anos 80, ainda
mais com a dificuldade de construir uma hegemonia ampla com projeto voltado à
configuração de um sistema econômico nacional articulado setorial e socialmente.
4.4. Alguns elementos da crise dos anos 80 e o ajuste estrutural neoliberal brasileiro
(Plano Real): ampliação da desarticulação setorial e social a partir dos movimentos das
frações dominantes nacionais e forâneas
A implementação do II PND possibilitou ao Brasil uma sobrevida ao ciclo de expansão
econômica, iniciada pelo “milagre econômico” (1968/1976), até os anos finais da década de
1970, mesmo num cenário de crise internacional ao longo dos anos 70. No entanto, com a
política de elevação das taxas de juros praticadas pelos Estados Unidos, em 1979, não foi
mais possível manter o crescimento econômico pautando-se pela aceleração do financiamento
externo como tivera ocorrido no II PND, uma vez que se materializou uma forte escassez de
161
recursos destinados ao financiamento dos países periféricos. A partir daí, a crise capitalista da
década de 1970 penetrou pela porta da frente no Brasil através da “crise da dívida”, pois esta
reduziu a capacidade do Estado em manejar políticas econômicas destinadas ao crescimento,
em função da elevação da sua dívida pública e a sua fragilização financeira. Isso, por sua vez,
gerou uma situação de estagnação econômica, de aceleração inflacionária, decorrente da
defesa das taxas de lucro média num contexto de pequeno crescimento, e de exportação de
capitais (Tabela 4.1) (FILGUEIRAS, 2000; OLIVEIRA, 2002).
Tabela 4.1 - PIB, PIB per capita, Transferência liquida de recursos e Inflação na década
de 80 - Brasil
ANO
Taxa de crescimento
do PIB (%) (preços
constantes de 1990)
Taxa de crescimento do
PIB per capita (%)
(preços constantes de
1990)
Transferência liquida
de recursos*
Inflação
(IPCA) (%)
1981
- 4,3 - 6,4 2.123,5 95,6
1982
0,8 - 1,3 -1.831,9 104,8
1983
- 2,9 - 5,0 -3.904,1 164,0
1984
5,4 3,2 -4.329,8 215,3
1985
7,9 5,7 -11.483,5 242,2
1986
7,5 5,4 -9.667,5 79,7
1987
3,5 1,6 -7.848,0 363,4
1988
- 0,1 - 1,9 -14.986,3 980,2
1989
3,2 1,4 -12.655,3 1.972,9
1981-89
2,3 0,3 -7.175,9 468,7
Fonte: CEPAL; IpeaData; * (em milhões de dólares)
O crescimento econômico, que tivera sido o eixo de legitimação do regime militar, não tinha
mais como ser sustentado. Logo, o regime vai perdendo força à medida que a crise aprofunda-
se, uma vez que não era mais possível manter o controle social coercitivo num contexto de
baixo crescimento econômico e de ampliação das reivindicações de diversas categorias de
trabalhadores, notadamente a partir das greves operárias no ABC paulista nos anos finais dos
anos 1970. Os caminhos para a “democratização” começam a ser abertos. “A ditadura sentia o
momento; as classes dominantes também”, tanto é assim, que os “empresários, em documento
de 1977, deixam claro o que entendem por democracia: o fortalecimento do capital, ameaçado
pela crise a cada dia mais impossível de ser controlada pela via tão só repressiva por eles
claramente apoiada.” (OLIVEIRA, 1999, p. 53).
162
A “crise da dívida” brasileira se aprofundou no primeiro qüinqüênio da década de 1980,
principalmente com a moratória do México, em 1982, que aprofundou a fuga de capitais da
América Latina. Naquele contexto de aceleração da dívida externa, a fuga de capitais
provocou um estrangulamento no balanço de pagamentos brasileiro, tornando impossível o
comprimento dos pagamentos dos serviços da dívida externa. Diante daquilo, o Brasil teve
que recorrer a empréstimos junto ao FMI para financiar seus déficits. Tal crise brasileira teve
características próximas ao conjunto da América Latina, conforme descrito no terceiro
capítulo.
A “ajuda” do FMI ao Brasil esteve condicionada à consecução do “ajuste monetário do
balanço de pagamentos”, conforme descrito em capítulo anterior, que se voltava
primordialmente à criação de divisas estrangeiras necessárias ao pagamento do serviço da
dívida aos credores internacionais. Tal ajuste só foi alcançado a partir da redução da demanda
agregada, via redução dos investimentos e gastos públicos e do consumo das famílias. Na
verdade, o FMI ao exigir a adoção de políticas econômicas restritivas estava defendendo os
interesses do capital financeiro internacional, principalmente o estadunidense, uma vez que
este era o principal credor do Brasil, à época. Desse modo, a política governamental brasileira
começa a privilegiar novas demandas do capital financeiro, principalmente, o forâneo.
As políticas econômicas restritivas implementadas no governo do general Figueiredo, a partir
do acordo com o FMI, provocaram uma forte recessão econômica, entre 1981 e 1983. O
regime não tinha mais sustentáculo, uma vez que os movimentos reivindicatórios dos
trabalhadores se ampliavam e os segmentos de classes médias e dos dominantes (empresários)
retiraram o apoio ao regime. A queda era inevitável. Entretanto, isso não aconteceu de forma
abrupta. Configurou-se uma transição democrática gradual negociada entre as classes
dominantes. Nenhuma mudança estrutural na dominação de classe brasileira, fortemente
excludente, foi efetivada; na verdade, as alterações ficaram circunscritas às representações
políticas. Essa configuração construída “por cima” foi facilitada pela ambigüidade, à época,
dos movimentos das ruas e das lutas dos trabalhadores voltadas principalmente aos objetivos
salariais. Segundo Nelson de Oliveira,
os movimentos de rua sempre tiveram por objetivo deslegitimar o regime
militar, o que não significa que tenham ameaçado, em nenhum momento, a
163
efetiva dominação das classes sociais [dominantes] [...]. Não dá para
mensurar o repúdio real das ruas às formas mais espúrias de dominação do
capital quando simplesmente se propunham seus protagonistas mais
importantes a simplesmente desmontar um circo no qual essas forças eram
tão-só representadas [...]. Pode-se afirmar, sem muito temor, que as ruas não
queriam conquistar: queriam ser conquistadas. A burguesia brasileira parece
ter muito cedo percebido isto. O rugido das massas não a perturbou. Em
certo momento, pelo contrário, chegou a encantá-la pelo que ensejava de
oportunidade. As ruas não acossavam, muito menos quando o que se pedia
era tão pouco: alterar representações, expressão maior de um fingimento
democrático, para qual ela sempre demonstrou grande propensão
(OLIVEIRA, 2002, p. 12).
No momento em que o regime militar não conseguiu mais manter elevadas taxas de
crescimento, nem muito mesmo arbitrar o conflito distributivo entre as frações dominantes,
ocorreu sua deslegitimação como eixo de comando da “fuga para frente”. A partir de 1985
assume a presidência da república um governante civil: José Sarney; enquanto as Forças
Armadas voltam a sua condição de recursos de última instância para a manutenção do
controle social. Naquele quadro de baixo crescimento econômico, reaparecem, com bastante
virulência, as disputas entre frações dominantes pela maior apropriação dos lucros, ainda mais
com a ampliação da heterogeneidade entre o condomínio do poder, haja vista a manutenção
das frações existentes e a emergência e configuração de novos segmentos sociais, tanto
nacionais quanto forâneos, atrelados às finanças e ao agronegócio. A aliança entre as diversas
frações dominantes, que tivera sido mantida pelo crescimento, se desfez, criando, com isso,
uma grande instabilidade no âmbito socioeconômico, proveniente, principalmente, da não-
supremacia de nenhuma fração dominante como eixo da dinâmica socioeconômica. O reflexo
dessa disputa distributiva acirrada, sem um equilíbrio de poder, ao longo de toda década de
1980, foi a hiperinflação. É necessário ressaltar que apesar da grande disputa entre as frações
dominantes no âmbito da acumulação, construiu-se uma aliança entre os dominantes no
âmbito das representações políticas “democráticas” com objetivo de consubstanciar uma
transição democrática sem sobressaltos, nem mudanças estruturais ao controle social
efetivado pelo capital. Para Nelson Oliveira - em trecho abaixo de seu artigo Um país
privado: os dilemas conjunturais de uma oposição -,
enquanto as representações se esmeram em construir a farsa, o eixo real de
poder se digladia [...]. A inflação refletia o desequilíbrio de poder.
Hegemonias indefinidas facilitavam os augúrios: a hiperinflação era o
destino. [...] Os mesmos grupos que pareciam tão condescendentes no campo
das alianças representativas não abdicavam de seu principal objetivo: a
defesa de suas margens de lucro, tanto mais quanto estas, se não eram
164
ameaçadas no geral ameaçavam porém comprometer segmentos importantes
do capital por suas tendências cada vez mais instáveis [, em decorrência do
avanço da globalização financeira] (OLIVEIRA, 2002, p. 13).
Ao longo de toda década de 1980 até os primeiros anos da década de 1990 não existia uma
supremacia clara de uma fração do capital, seja nacional ou internacional, dentre os
segmentos dominantes. Na verdade, aquele período fora marcado por uma forte disputa
econômica, política e ideológica entre os segmentos sociais dominantes de caráter industrial –
com vestígios de perspectivas nacionalistas - e os de caráter financeiro – articulados a uma
visão cosmopolita - que vinha ganhando força com o processo de globalização financeira. O
primeiro grupo, em reposta a crise dos anos 1980, tentava consubstanciar um projeto
neodesenvolvimentista
92
voltado à redefinição e à reforma do padrão de acumulação pautado
no Modelo de Substituição, ensejando manter o Estado com funções de planejamento e
implantação de investimentos estratégicos e acalentando a idéia de ampliação dos mercados
internos. O segundo grupo tinha como proposta de desenvolvimento uma integração passiva
aos movimentos de globalização dos espaços, buscando aproveitar algumas brechas existentes
para a promoção de alguns setores dinâmicos da economia (FILGUEIRAS, 2005;
OLIVEIRA, 1999).
O Plano Cruzado (1986) e os planos subseqüentes (Cruzado II, Plano Bresser e Plano
Verão)
93
, implementados no governo Sarney, em certa medida, foram tentativas heterodoxas
de saída da crise que buscavam conciliar estabilização de preços com aumento do consumo no
curto prazo. Tais planos, na verdade, intentaram consubstanciar um padrão de acumulação
neodesenvolvimentista, entretanto, não foram exitosos devido, principalmente, ao contexto
internacional de baixa liquidez internacional e, por conseguinte, de extrema dificuldade de
obtenção de financiamento externo aos desequilíbrios no balanço de pagamentos brasileiros
92
Esse projeto neodesenvolvimentista se direcionava no seguinte eixo:“... reforma do sistema financeiro,
subordinando-o ao financiamento do desenvolvimento; controle público das empresas estatais, ‘preservando a
capacidade produtiva dos setores estratégicos fundamentais (insumos básicos, energia, petroquímica, mineração
e telecomunicações), cujo desempenho eficiente é fundamental para expansão do parque industrial brasileiro’ e
fechando as estatais deficitárias; uma política industrial que privilegiasse os setores capazes de irradiar novas
tecnologias e permitisse avançar no processo de substituição de importações; uma política de investimentos
estatais que maximizasse a geração de empregos; e ‘uma nova atitude na renegociação da dívida externa’”
(Documento dos Doze de 1983 BIANCHI apud FILGUEIRAS, 2005, p.5).
93
O congelamento de preços foi uma das principais medidas adotadas nos planos heterodoxos. Uma
apresentação detalhada dos elementos constitutivos dos planos heterodoxos da década de 1980 pode ser
encontrada em Cano (2000), Filgueiras (2000) e Beluzzo & Almeida (2002).
165
ampliados pelo aumento da demanda interna decorrente dos efeitos do Plano Cruzado. Para
Filgueiras (2000, p. 82), a
queda das exportações, decorrente do crescimento da demanda interna e da
sobrevalorização do câmbio, com a conseqüente ampliação do déficit na
conta de transações correntes do balanço de pagamentos, implicou a queda
drástica das reservas e levou o país à beira de uma crise cambial,
desembocando na decretação de uma moratória no início de 1987. Com a
desvalorização cambial efetuada, e com ela a retomada da aceleração dos
preços, extinguiu-se formalmente o Plano [Cruzado] (FILGUEIRAS, 2000,
p. 82).
Com a derrocada dos Planos heterodoxos do segundo qüinqüênio dos anos 1980,
principalmente do Cruzado, ocorreu um aprofundamento da crise econômica em vista do
quadro de estagnação econômica com hiperinflação (ver tabela 4.1). O governo Sarney se
arrasta até o seu último dia de forma trágica, assim como a transição democrática se finda de
maneira melancólica. Naquele contexto, o projeto de re-configuração do MSI, defendido por
parte das frações industriais nacionais, ficava cada vez mais desacreditado como alternativa
de combate à crise brasileira; enquanto as estratégias defendidas pelos segmentos sociais
dominantes, vinculados aos interesses financeiros nacionais e internacionais, iam ganhando
força à medida que projetava no imaginário coletivo a idéia de que a inserção brasileira ao
processo de globalização provocaria a melhoria das condições de vida da população. Os
segmentos sociais atrelados às finanças de “forma paulatina e bem estruturada, combinando
instrumentos os mais distintos, midiáticos, repressivos e ideológicos”, foram conseguindo
“lançar para os ares sonhos de transformação social ou de melhoria das condições de vida da
população, destruir o emprego, a organização dos trabalhadores, ou qualquer ensaio de
construção do novo, afirmando-se ultimamente como a apoteose” (OLIVEIRA, 2002, p. 11-
12).
Apesar do avanço do ideário neoliberal nos anos iniciais da década de 1990 com o governo
Collor (o “caçador de marajás”) – que deu os primeiros passos na adoção de reformas
estruturais assentadas na privatização, na abertura comercial e financeira -, não havia ainda
uma definição clara quanto ao projeto de desenvolvimento a ser seguido no Brasil. A
supremacia de uma fração dominante dentre as que compunham o condomínio do poder
brasileiro ainda não estava definida, apesar do poder, cada vez maior, das frações financeiras.
O governo Collor, com suas medidas ambíguas e voluntaristas, foi, em certa medida, a
166
representação dessa indefinição das frações dominantes, uma vez que seu modelo de gestão
persistia distante de qualquer referencial claramente definido, mesmo com a maior influência
das frações financeirizadas nas políticas governamentais. Luiz Filgueiras, em passagem
abaixo do seu artigo Projeto político e modelo econômico neoliberal no Brasil..., descreve a
indefinição das frações dominantes durante o governo Collor:
A ascensão de Collor marcou o início da fase decisiva que levaria à vitória
do projeto neoliberal no interior das classes dominantes. Produto de uma
aguda crise de hegemonia, no conjunto da sociedade e mesmo no interior do
bloco dominante, num momento de forte presença política das classes
trabalhadoras, o Governo Collor – cujo programa contou, àquela altura, com
a concordância da maioria das diversas frações do capital - foi a solução
possível (bonapartista), momentânea, para essas distintas frações no seu
embate contra a esquerda e as classes trabalhadoras (NEC, 1991; Oliveira,
1990). Apesar disso, e do fato do MSI, naquele momento, já estar
desacreditado para as diversas frações do capital, o projeto neoliberal ainda
continuava a ser uma grande interrogação. Configurava-se, então, [uma
momento no] [...] qual o “velho” não tinha mais possibilidade de continuar
existindo e o “novo” não podia ainda nascer (FILGUEIRAS, 2005, p. 11).
Para controlar a hiperinflação, o governo Collor adotou, em 16 de março de 1990, um Plano
econômico (Plano Collor I) que se apoiou numa reforma monetária – substituição da velha
moeda (Cruzado Novo) pela nova (Cruzeiro), com preços e salários convertidos ao par - e no
bloqueio das aplicações financeiras. Tais medidas tinham como objetivo reduzir a liquidez da
economia para cerca de 10% do PIB, já que os formuladores do Plano acreditavam que acima
deste patamar os recursos financeiros se destinariam a transações especulativas e não a
produção e a venda de mercadorias. Os índices de inflação despencaram inicialmente (1991)
haja vista a recessão econômica decorrente do forte aperto da liquidez, mas com abertura das
“torneiras da liquidez” (remonetização da economia) a inflação retornou a patamares elevados
(Tabela 4.2) (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).
167
Tabela 4.2 - PIB, Inflação e Taxa de desemprego na década de 90 – Brasil
ANO
Taxa de crescimento do PIB
(%)
Inflação (IPCA)
(%)
Taxa de desemprego aberto
(PME) – Brasil*
1981-89 2,3 468,7 5,31
1990 - 4,4 1.621,0 4,28
1991 1,0 472,7 4,83
1992 - 0,5 1.119,1 5,66
1993 4,9 2.477,2 5,32
1994 5,9 916,5 5,06
1990-94 1,7 1.651,6 6,29
1995 4,2 22,4 4,65
1996 2,7 9,6 5,43
1997 3,3 5,2 5,67
1998 0,1 1,7 7,60
1999 0,8 8,9 7,58
2000 4,4 6,0 7,14
2001 1,3 7,7 6,23
2002 1,9 12,5 7,14
1995-02 2,3 9,2 6,43
Fonte: IBGE; IPEA; * seis regiões metropolitanas (SAL, SP, RJ, REC, BH, PA).
Além da tentativa de controle de inflação pela via recessiva, através do bloqueio das
aplicações financeiras, o governo Collor adotou as seguintes medidas estruturais, que deram
início ao projeto de “desenvolvimento” neoliberal no Brasil: (i) programa de privatizações das
empresas estatais e de reforma administrativa do Estado; ii) reforma do comércio exterior
pautada por uma política de liberalização drástica das importações; iii) instituição do “câmbio
livre” que passaria a ser fixado pelo mercado, por meio de agentes econômicos credenciados
pelo Banco Central a operarem nesse tipo de mercado; iv) ajuste fiscal que tinha como
objetivo a obtenção de superávit operacional de 2% do PIB, através, principalmente, da
redução dos gastos e investimentos públicos e da extinção de incentivos fiscais (BELLUZZO
& ALMEIDA, 2002; FILGUEIRAS, 2000).
O fracasso das estratégias de estabilização dos preços, a brutal recessão econômica e a
incapacidade estatal em arbitrar os distintos interesses das frações dominantes, associados às
denúncias de corrupção generalizada na campanha eleitoral, provocaram o isolamento político
do governo Collor diante de todos os segmentos sociais (empresários, trabalhadores, elites e
classe média). As ruas clamaram pelo impeachment que o Congresso Nacional aprovou em
setembro de 1992. Novamente, assim como na luta contra o regime militar nos anos 1980,
168
as ruas falavam. Queriam ser reconquistadas, ouvidas... Queriam o seu
dinheiro de volta. Tardiamente, demonstram um drama de consciência, sem
uma consciência clara do próprio drama. A solução da crise é sua própria
alimentação. A hiperinflação já fora atenuada com o impedimento dos
saques das poupanças. A estabilidade clamava por um governo legítimo.
Como se a farsa fosse tão-somente o prelúdio. Menos do que um governo, se
questiona a figura: a representação. A saída de Collor passa a ser um ato
puramente formal. As ruas despacham a figura mas não a figuração. O vazio
persiste (OLIVEIRA, 2002, p.13).
Com o impeachment, Itamar Franco, vice de Collor, assume o governo sem um projeto
definido, tendo no combate à inflação a alternativa legitimadora de seu governo. Para tanto,
consubstanciou um programa de estabilização monetária e de reformas institucionais e
administrativas (Plano Real) iniciado em dezembro de 1993. Tal plano, no âmbito da
estabilização, foi constituído de três fases distinta e sucessiva: o ajuste fiscal, tendo como
principal iniciativa a criação do Fundo Social de Emergência (FSE); a criação da Unidade
Real de Valor (URV) que funcionou como um superindexador; e a configuração de uma nova
moeda (o Real), em julho de 1994. No que diz respeito às reformas, o Plano Real continuou e
aprofundou as medidas estruturais, de cunho neoliberal, iniciadas no governo Collor. Cabe
ressaltar que o Plano se valeu da grande liquidez internacional, à época, para alcançar êxito no
combate da inflação, condição completamente diferenciada da verificada no momento da
implementação do Plano Cruzado.
De forma resumida, o Plano Real (ajuste estrutural neoliberal), iniciado no governo Itamar e
consolidado nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), teve como objetivos
fundamentais: i) a estabilização dos preços, buscando criar instrumentos para o cálculo
econômico de longo prazo; ii) a ampliação da abertura comercial - iniciada por Collor -,
impondo uma maior concorrência aos produtores internos e, por conseguinte, forçando-os a
elevarem sua produtividade. O câmbio valorizado teve um papel fundamental na consecução
da política comercial; iii) o alargamento do processo de privatização e o estímulo ao
investimento forâneo
94
, ensejando melhorar a eficiência industrial e reduzir os gargalos infra-
estruturais; iv) a liberalização da conta de capitais do balanço de pagamentos, objetivando
94
Dentre as principais medidas de incentivo ao investimento externo, pode-se destacar o “fim da discriminação
constitucional em relação às empresas de capital estrangeiro”; “autorização para o Estado passar a conceder o
direito de exploração de todos os serviços de telecomunicações (telefone fixo e móvel, exploração de satélites,
etc.) a empresas privadas”; e aprovação de “lei complementar regulando as concessões de serviços públicos para
a iniciativa privada já autorizada pela Constituição (eletricidade, rodovias, ferrovias, etc.)” (SALLUM, 2000, p.
142).
169
atrair as poupanças externas para financiar os déficits de transações correntes decorrentes da
política de câmbio valorizado; e v) a consecução de políticas sociais focalizadas voltadas à
eliminação da “pobreza”. Destarte, o Plano Real não buscava apenas a estabilização de
preços. Na verdade, ele constitui-se num modelo de “desenvolvimento” liberal assentado no
binômio da abertura e da competitividade, construído a partir da estabilidade inflacionária
(BELLUZZO & ALMEIDA, 2002; OLIVEIRA, 2002; FILGUEIRAS, 2000). O grande
“saque” do Plano foi:
Apostar num ajuste, aceitando plenamente a regra do jogo dos grandes
capitais globais e valendo-se da liquidez internacional e da busca de novas
oportunidades de valorização pelos referidos capitais. O preço cobrado não
seria baixo. Para este, contudo, valia a pena. Para o governo, o campo das
ilusões era imenso. No imaginário popular, que fora responsável pela
derrubada de dois governos, em 1985 e em 1992, a estabilização tinha o
maior peso do que qualquer outra reestruturação que reformulasse o status
quo. O governo conta com isso. Está bem informado. As ruas já o haviam
demonstrado (OLIVEIRA, 2002, p.16).
Aquela altura as frações dominantes financeiras e financeirizadas mundiais se declaram no
poder e por meio das instituições “supranacionais”, sob forte influência estadunidense e das
potências européias, exigem políticas de estabilização para os países latino-americanos. O
Plano Real se inseriu na família de planos de estabilização adotado em toda América Latina
ao longo dos anos 1990. De fato, o ajuste estrutural brasileiro (Plano Real) nasceu com uma
necessidade construída a partir de exigências globais delimitadas pelo movimento de
globalização financeira e reestruturação produtiva; contudo, tal plano só se tornou viável a
partir da adesão das frações dominantes brasileiras ao mito da “modernidade” proveniente da
utopia da globalização. O condomínio do poder brasileiro havia definido o projeto de
desenvolvimento a ser seguido: o modelo neoliberal de integração passiva aos movimentos da
globalização. A partir daí iniciou-se, no Brasil, um novo padrão de acumulação capitalista
pautado (i) pela ampliação da acumulação financeira por meio, principalmente, da expansão
da dívida pública brasileira; (ii) pela redução da realização interna da produção nacional que
havia se ampliado durante a industrialização “pesada” do Modelo de Substituição das
Importações; e (iii) pelo aumento da “superexploração” do trabalho, como decorrência do
processo de desregulamentação desse mercado.
170
Nesse novo padrão acumulativo, as frações dominantes financeiras e financeirizadas
95
, tanto
do capital financeiro e produtivo internacional quanto dos grandes grupos econômico-
financeiros nacionais, assumiram a supremacia entre as frações dominantes brasileiras. Cabe
ressaltar aqui que as frações nacionais se inseriram de forma subordinada aos movimentos do
capital financeiro forâneo. Nessa nova configuração de poder das frações dominantes, fazem
parte:
[...] o capital financeiro internacional - expresso na movimentação dos
fundos de pensão, dos fundos mútuos de investimentos e dos grandes bancos
dos países desenvolvidos -; os grandes grupos econômico-financeiros
nacionais, que conseguiram sobreviver, até aqui, ao processo de
globalização, em função de sua capacidade competitiva ou através da
associação (subordinada) com capitais estrangeiros; e o capital produtivo
multinacional (associado ou não ao capital nacional); todos eles tendo
aumentado suas respectivas influências [...] [no condomínio do poder]
(FILGUEIRAS, 2005, p. 7).
A supremacia das frações financeiras, principalmente internacionais, no comando da dinâmica
do novo padrão de acumulação brasileiro impede qualquer possibilidade de consolidação de
uma hegemonia ampla que incorpore ao mesmo tempo os interesses dos dominantes e dos
dominados. Na verdade, a assunção dessa fração dominante eliminou de vez qualquer
“sonho” de construção de um sistema econômico nacional como aventado por alguns
segmentos da burguesia nacional e de alguns intelectuais neodesenvolvimentistas, ao longo da
década de 1980.
A nova correlação de forças sociais nacionais, sob a égide financeira, principalmente forânea,
potencializou e configurou o ajuste estrutural neoliberal no Brasil (Plano Real),
95
Segundo Filgueiras (2005, p. 8), “é importante distinguir entre a lógica financeira - que se constitui na lógica
mais geral do capital, desde sempre, e que caracteriza a atual fase do desenvolvimento capitalista em escala
nacional e internacional, imprimindo, de forma dominante, a dinâmica do modo de produção e influenciando as
mais diversas esferas das sociedades e dimensões da vida social – das formas institucionais assumidas pelo
capital financeiro, que definem os sujeitos que comandam concretamente esse processo, articulando os mais
diversos interesses, a partir do domínio, controle e propriedade de instituições financeiras. Desse modo, embora
todos os grupos econômicos e as frações do capital estejam, hoje, financeirizados – no sentido de estarem
subordinados à lógica financeira e aplicarem seus excedentes no mercado financeiro, em particular nos títulos da
dívida pública -, apenas aqueles que se articulam organicamente com a esfera financeira, através do controle e
propriedade de uma ou mais instituições financeiras, são os sujeitos fundamentais dessa lógica, que subordina
inclusive o Estado, a política econômica e social e a ação política em geral. Assim, apesar da maioria dos
grandes grupos econômicos, no Brasil, não estar ligada, organicamente, ao capital financeiro – através de um
banco ou outro tipo de instituição financeira de propriedade do grupo -, esses grupos também se beneficiam da
especulação e do financiamento da dívida pública, ganhando também com as elevadas taxas de juros”.
171
transformando profundamente as políticas econômicas e as estruturas industriais e
institucionais brasileiras, principalmente, a partir do governo FHC que contou com o apoio
dos mais diversos segmentos sociais. Dentre as principais modificações destacam-se aqui: (1)
a política macroeconômica liberal; (2) a especialização regressiva da estrutura industrial; e (3)
o aumento da superexploração do trabalho, decorrente da redução do preço da força de
trabalho e da elevação do desemprego em suas várias formas.
No que diz respeito à gestão da política econômica brasileira durante o Plano Real, a
estabilidade inflacionária, durante o primeiro mandato de FHC, foi alcançada por meio da
combinação entre câmbio valorizado, juros elevados e abertura comercial e financeira que,
por sua vez, provocaram uma explosão da dívida pública, a deterioração da contas externas e
um ritmo de crescimento baixo. A queda da inflação, nos momentos iniciais do Plano (entre
julho de 1994 e março de 1995), propiciou um círculo virtuoso de aumento do consumo e
crescimento da produção e do emprego, em decorrência do fim do imposto inflacionário e da
ampliação do crédito (Tabela 4.2). No entanto, tal dinâmica econômica teve fôlego curto, haja
vista que o modelo macroeconômico neoliberal brasileiro, com câmbio valorizado e fixo ou
quase fixo – conforme descrito no capítulo III para o conjunto da América Latina -, criou e
ampliou os problemas nas contas externas e nas finanças públicas do país. Quanto à
deterioração da contas externas, verificou-se que a conta de transações correntes do balanço
de pagamentos passou a apresentar, ano a ano, déficits elevados e crescentes provenientes dos
déficits recorrentes da balança comercial, que passara da posição de superavitária para
deficitária, e a elevação dos déficits da balança de serviços. Isso implicou aumento dramático
da vulnerabilidade externa, pois o país, cada vez mais, dependia da entrada de capitais
forâneos, principalmente voláteis (Tabela 4.3). A rápida deterioração das contas externas
determinou, ao mesmo tempo, uma crescente piora das finanças do setor público, apesar da
existência de equilíbrio ou pequenos déficits fiscais primários, uma vez que a permanente
política de taxas de juros elevadas – para assegurar a entrada e permanência de capitais
estrangeiros - elevou a dívida líquida do setor público sistematicamente, tanto em termos
absolutos quanto como proporção do PIB
96
(FILGUEIRAS & PINTO, 2005; FILGUEIRAS,
2000).
96
A dívida líquida do setor público se elevou de R$ 153,7 bilhões (30% do PIB), em dezembro de 1994, para R$
385,9 bilhões (41,7% do PIB), ao final do primeiro governo FHC, em dezembro de 1998 (FILGUEIRAS &
PINTO, 2005).
172
Tabela 4.3 - Transações Correntes, Balança Comercial, Serviço e Renda e Transferência
líquida na década de 90 – Brasil
ANO
Transações Correntes
(US$ Bilhões)
Balança Comercial
(US$ Bilhões)
Serviços e Renda
(US$ Bilhões)
Transferência
liquida de recursos
(US$ milhões)
1990 -3,78 10,75 -15,37 -7.310,5
1991 -1,41 10,58 -13,54 -8.570,1
1992 6,11 15,24 -11,34 584,3
1993 -0,68 13,30 -15,58 -1.632,6
1994 -1,81 10,47 -14,69 -723,0
1990-94 -0,39 15,08 -17,63 -4.413,0
1995 -18,38 -3,47 -18,54 19.950,7
1996 -23,50 -5,60 -20,35 19.397,1
1997 -30,45 -6,75 -25,52 5.862,7
1998 -33,42 -6,57 -28,30 7 257,0
1999 -25,33 -1,20 -25,83 - 1 335,0
2000 -24,22 -0,70 -25,05 4 076,0
2001 -23,21 2,64 -27,49 6 777,0
2002 -7,64 13,13 -23,27 - 10 193,0
1995-02 -23,27 -1,07 -24,29 6 474,1
Fonte: Bacen; Cepal
As políticas econômicas, a abertura comercial e as privatizações, implementadas no Plano
Real, criaram uma situação de baixo dinamismo econômico e de ampliação do desemprego
(Tabela 4.2). Além do que provocou a desestruturação e/ou desnacionalização de importantes
cadeias produtivas, haja vista as vendas e as fusões de empresas nacionais, quer sejam
privadas ou públicas, para e com o capital estrangeiro ou a reconversão de suas atividades
para montagem de componentes importados. Desse modo, ocorreu uma especialização da
estrutura produtiva
97
brasileira, na medida em que se verificou uma menor diversificação dos
ramos produtivos e uma maior desarticulação das cadeias produtivas nos segmentos
industriais mais dinâmicos, intensivos em capital e tecnologia. O processo de especialização
ocorreu mais fortemente nos setores mais intensivos em tecnologia e capital, enquanto que os
menos afetados foram os intensivos em mão-de-obra, vinculados, principalmente, ao ramo de
recursos naturais (CARNEIRO, 2002; FILGUEIRAS, 2005). Ricardo Carneiro, em seu livro
Desenvolvimento em crise, a partir da análise de diversos índices de coeficientes de
penetração e de abertura da indústria brasileira (por categoria de uso, por intensidade de fator,
por setores), chegou a seguinte conclusão:
173
A combinação das informações setoriais – por uso e intensidade de fator –
permitiu concluir que a abertura acompanhada da valorização do câmbio
promoveu uma reestruturação produtiva de grande significado na economia
brasileira. Setores de alta intensidade de tecnologia e de capital, via de regra
localizados nos segmentos produtores de bens de capital, intermediários
elaborados ou consumo duráveis, realizaram uma expressiva especialização.
Apenas uma parcela desses mesmos segmentos produtivos foi preservada e
ampliou sua inserção externa. Ao revés, os setores intensivos em recursos
naturais e trabalho, predominantemente produtores de bens de consumo
correntes e intermediários convencionais, mantiveram-se mais diversificados
e ampliaram moderadamente a inserção externa. Em resumo, há claras
indicações de uma especialização regressiva na economia brasileira com a
ampliação do peso dos setores intensivos em recursos naturais e trabalho e
redução da importância – com exceções – dos intensivos em tecnologia e
capital (CARNEIRO, 2002, p. 320).
Assim, a mudança desfavorável no padrão de comércio internacional – perda de
competitividade das exportações manufatureiras e expansão dos produtos agrícolas para
exportação
98
–, na década de 1980, ocorreu em razão da reprimarização das exportações
decorrente da especialização da estrutura produtiva nacional. Para Gonçalves (2000, p. 118), o
baixo dinamismo das exportações manufatureiras demonstra o “desmantelamento do aparelho
produtivo” atribuído “especialmente à apreciação cambial e às baixas taxas de investimento”.
Isto, na realidade, sugere que a reestruturação produtiva com o crescimento medíocre da
produção representou uma adaptação regressiva do aparelho produtivo.
O modelo macroeconômico de câmbio valorizado fixo ou quase fixo tornou-se insustentável,
culminando na grande crise cambial de 1999 e gerando uma forte desvalorização da moeda
nacional (Real). Apesar da mudança do regime cambial, a vulnerabilidade externa do país e a
fragilidade financeira do setor público continuaram a dificultar, por sua vez, o crescimento do
produto, a redução das taxas de desemprego e a gestão das políticas macroeconômicas e,
principalmente, sociais. A desvalorização do real impediu o aprofundamento da deterioração
do balanço de pagamentos do país e reduziu, conjunturalmente, a grande vulnerabilidade
externa. No entanto, isto ocorreu, principalmente, em virtude do baixo crescimento
econômico do país durante o segundo governo de FHC (Tabela 4.2. e 4.3). Pelo lado das
finanças públicas, ocorreu uma piora, apesar dos reiterados superávits fiscais primários, nos
97
A especialização da estrutura produtiva, segundo Carneiro (2002), pode ser comprovada pela elevação do
coeficiente de importação de 5,7%, em 1990, para 20,3%, em 1998.
98
A participação na receita de exportação, em porcentagem, de produtos manufaturados caiu de 55,1%, entre
1999-94, para 53,1%, entre 1995-98. Já a participação dos produtos agrícolas se elevou de 29,8%, entre 1999-94,
para 33,8%, entre 1995-98 (GONÇALVES, 2000, p.95).
174
quatro anos do segundo governo FHC, em função da elevação da dívida líquida do setor
público que chegou ao patamar de R$ 881,1 bilhões, correspondendo a 56,5% do PIB, em
dezembro de 2002 (FILGUEIRAS & PINTO, 2005).
Os serviços da dívida interna e externa do setor público brasileira transferem, a cada ano, uma
massa cada vez maior de recursos para a órbita financeira local e internacional. Nesse
contexto, as altas taxas de juros (política monetária) vêm funcionando como o instrumento de
transferência de renda e riqueza dos assalariados e da população em geral para as frações
dominantes financeiras, sustentando vultosas e especulativas operações cambiais, dentre
outras modalidades de acumulação financeira. Na verdade, as políticas monetárias e o
financiamento do Estado brasileiro
99
, através dos títulos públicos, são instrumentos cada vez
mais identificados com a dinâmica de acumulação, sob a égide financeira, que beneficia
especialmente grandes instituições financeiras ou financeirizada (MINELLA, 2002).
A mudança do regime cambial no início de 1999, a política de metas inflacionárias e um
regime fiscal mais draconiano não conseguiram reverter, de forma estrutural, a
vulnerabilidade externa da economia, a fragilidade financeira do setor público e a
especialização da estrutura produtiva, não abrindo espaço, portanto, para a retomada
sustentada do crescimento. A experiência vem demonstrando que o câmbio flutuante, apesar
de atenuar os efeitos internos das crises cambiais, não tem conseguido isolar a política
monetária e dar-lhe uma maior autonomia; a cada ataque especulativo contra o real, as
autoridades monetárias, tanto em função da fuga de capitais quanto de seus impactos sobre a
inflação, terminam por elevar a taxa de juros, com todas as conseqüências conhecidas sobre o
nível de atividade, o emprego, a renda e a dívida pública (CARVALHO, 2003; CARNEIRO,
2003, FILGUEIRAS & PINTO, 2005).
Em suma, as políticas econômicas liberais – pautadas pelas restrições nos gastos públicos e
pelo processo de privatizações - adotadas durante os dois governos de FHC não conseguiram
99
Desse modo, o financiamento do Estado, por meio dos títulos públicos, segue atualmente uma lógica pautada
em grande parte pelos condicionados do mercado, ou por assim dizer, “das grandes instituições ou grupos
financeiros nacionais e também pelos bancos estrangeiros, que intermediam o processo, através da chamada
‘indústria de fundos’. As decisões sobre os tipos e os prazos dos títulos, sobre as garantias e as taxas de juros,
estão constrangidas ou condicionadas àquilo que estas grandes instituições estão dispostas a aceitar”
(MINELLA, 2002, p. 07).
175
reverter o baixo crescimento que prevaleceu ao longo de toda década de 1980 e início nos
anos 90 (Tabela 4.1), tendo em vista a redução dos investimentos (formação bruta de capital)
tanto público quanto privados em novas construções de infra-estrutura, potencializando o
aparecimento de gargalos nas áreas estratégicas de energia e transporte. O setor industrial,
durante os dois mandatos de FHC, apresentou taxas pífias de crescimento e uma deterioração
do tipo de crescimento industrial. Ademais, o acúmulo de desequilíbrios externos
transformados em fragilidade financeira interna do setor público e a inserção brasileira
passiva no âmbito internacional semearam na economia o germe da crise financeira que vem
acompanhado da ameaça recessiva. Nem mesmo a mudança do regime cambial, no início de
1999, conseguiu reverter esses elementos problemáticos (FILGUEIRAS & PINTO, 2005;
BELLUZZO & ALMEIDA, 2002).
A configuração do novo padrão de acumulação brasileiro ampliou a superexploração do
trabalho, principalmente pela via da mais-valia absoluta devido à redução dos salários reais e
ao aumento da jornada de trabalho decorrentes do processo de desestruturação do mercado de
trabalho. Luis Filgueiras sinaliza as principais características dessa desestruturação do
mercado de trabalho:
A reestruturação produtiva e as políticas neoliberais mudaram o perfil e a
composição das classes trabalhadoras no Brasil: houve uma redução do peso
relativo dos assalariados e dos trabalhadores industriais, tendo como
contrapartida o crescimento da informalidade, com uma maior fragmentação
da classe trabalhadora (Oliveira, 2003). Em resumo, uma maior fragilidade e
heterogeneidade da classe trabalhadora e, portanto, uma menor identidade
entre os seus diversos segmentos, com redução de sua capacidade de
negociação. Isto tudo se deu em razão da desestruturação do mercado de
trabalho, acompanhada por um processo de desregulamentação das relações
trabalhistas (Krein, op.cit), que levou ao crescimento do desemprego e ao
aprofundamento da precarização do trabalho e das formas de contratação
(cooperativas, terceirização, etc) (FILGUEIRAS, 2005, p. 42)
Apesar das mudanças organizacionais (reestruturação), introduzidas na década de 1990, no
Brasil, terem provocado uma forte elevação da intensidade do trabalho, tais mudanças não
foram suficientes para acompanhar a sucção do valor absorvido pelo setor financeiro. Desse
modo, a superexploração do trabalho se manifestou pela via do rebaixamento dos salários,
uma vez que a desarticulação do setor produtivo (especialização produtiva regressiva) e a
desregulamentação das leis trabalhistas ampliaram o excedente da força de trabalho (aumento
176
do exército industrial de reserva), criando as condições materiais para pressionar os preços da
força de trabalho para baixo (MARTINS, 1999).
As mudanças na base técnico-material do processo produtivo, associadas à absorção crescente
de tecnologia intensiva em ciência e subjetividade do paradigma microeletrônico, também
têm contribuído para a depreciação do preço da força de trabalho, uma vez que tal tecnologia
substitui dispêndio físico e industrial de força de trabalho. Portanto, “a maior produtividade
trazida pelas novas tecnologias transforma-se em grande parte em desemprego aberto ou
oculto sob a forma do desalento ou da precarização do trabalho” (MARTINS, 1999, p. 15).
O novo padrão de acumulação brasileiro, configurado na década de 1990, assentado no
modelo de “desenvolvimento” neoliberal, sob o domínio das frações financeiras, ampliou a
desarticulação setorial e social da economia nacional que havia diminuído durante a
consolidação da indústria “pesada” (II PND). A ampliação da desarticulação teve origem nas
políticas econômicas neoliberais e nas reformas estruturais, uma vez que tais medidas
consubstanciaram (i) um processo de reestruturação da indústria nacional (especialização
regressiva da estrutura produtiva, conforme descrito anteriormente), que causou uma maior
desbalanceamento entre os departamentos de produção e consumo; (ii) uma redução da
importância do mercado interno na realização dos produtos dos setores dinâmicos da
economia nacional; e uma queda, ao longo de quase toda década de 1990, tanto das rendas do
trabalho como de sua participação no Produto Interno Bruto, que chegou ao patamar de 36,1%
do PIB, em 2002 (Gráfico 4.1).
Gráfico 4.1 - Remuneração do trabalho como porcentagem do PIB a preços de mercado
- Brasil
34,7
38,4
45,4
41,6
43,5
45,1
40,1
38,3
38,5
37,5
38,9
38,2
37,9
37,0
36,1
30,0
32,0
34,0
36,0
38,0
40,0
42,0
44,0
46,0
1
9
80
1
9
85
1
9
90
1
9
91
1
9
92
1
9
93
1
9
94
1
9
95
19
96
19
97
19
98
19
99
20
00
20
01
20
02
Fonte: Conta Nacionais 2004/Cepal
177
À medida que os salários dos trabalhadores foram perdendo, ao longo dos anos 1990,
relevância na realização da produção brasileira, quer seja pela ampliação do consumo de luxo
e/ou das exportações ou até mesmo pelo processo de desendustrialização nacional, verificou-
se uma forte desvalorização da força de trabalho, em função da ampliação do “exército
industrial de reserva” decorrente do baixo crescimento econômico e da reestruturação
organizacional. Essas características - do novo padrão de acumulação brasileiro desarticulado
social e setorialmente - aprofundaram ainda mais as desigualdades sociais (Tabela 4.4),
ampliando, por um lado, o processo de exclusão social histórico brasileiro e, por outro, a
transferência de renda e riqueza para as frações dominantes, principalmente, pela via dos
títulos públicos e pelo aumento da superexploração do trabalho.
Os dados da Tabela 4.4 a seguir mostram de forma detalhada a evolução temporal da
desigualdade no Brasil e seus aprofundamento após uma década de ampliação da
desarticulação setorial e social dos anos 1990. A grande diferença entre as rendas urbanas dos
mais ricos e dos mais pobres no Brasil, ao longo dos últimos 40 anos, foi o reflexo da
desarticulação da economia brasileira, que se traduz mais concretamente na exclusão social.
Nem mesmo nos períodos de menor desarticulação, como o ocorrido ao final do II PND
(1980), verificou-se uma melhoria nas desigualdades sociais, uma vez que, entre 1960 e 1980,
ocorreu uma piora na desigualdade de renda urbana, pois a participação dos 10% mais pobres
na renda manteve-se inalterada (1,2%), enquanto a participação dos 10% mais ricos aumentou
de 39,7% para 47,9%. Desse modo, a renda média dos 10% mais ricos, que era 33,9 vezes a
dos 10 % mais pobres aumento para 40,6 vezes em 1980. A situação se agravou ainda mais
nos anos 1980, pois a renda urbana dos 10% mais ricos alcançou 60,1 vezes a renda dos 10%
mais pobres em 1990. Isso ocorreu em virtude da crise socioeconômica que se prolongou por
toda década com a crise (GONÇALVES, 1999). Nos anos 1990, com a implementação do
ajuste estrutural neoliberal, ocorreu um grande salto concentrador, uma vez que a renda
urbana dos 10 % mais ricos chegou a 78,3 vezes a renda dos 10% mais pobre em 2001.
178
Tabela 4.4 - Distribuição da renda urbana no Brasil, segundo os decis: 1960-2001
(em porcentagem)
Decil 1960 1970 1980 1990 2001
Primeiro 1,17 1,16 1,18 0,78 0,66
Segundo 2,32 2,05 2,03 1,64 1,53
Terceiro 3,42 3,00 2,95 2,37 2,27
Quarto 4,65 3,81 3,57 3,19 3,06
Quinto 6,15 5,02 4,41 4,16 4,00
Sexto 7,66 6,17 5,58 5,50 5,19
Sétimo 9,41 7,21 7,17 7,22 6,82
Oitavo 10,85 9,95 9,88 10,29 9,53
Nono 14,69 15,15 15,36 16,37 15,29
Décimo 39,66 46,47 47,89 48,47 51,69
Fonte: Gonçalves (1999, p. 66) para os anos de 1960,1970 e 1980 e Cepal para os anos de 1990 e 2001.
Ao longo da história brasileira não se configurou, em nenhum momento, nem mesmo na fase
de industrialização “pesada brasileira”, uma hegemonia ampla que conseguisse construir um
projeto nacionalista de criação de uma economia articulada setorial e socialmente. A não-
formação dessa estrutura de poder impediu a construção de estruturas institucionais (Estado
nacional forte ou “prussiano”) e dinâmicas produtivas nacionais que conseguissem integrar as
diversas frações das classes (dominantes e dominados), por meio de um sistema econômico
nacional. Atualmente, a possibilidade de construção de um sistema econômico nacional
articulado é bastante reduzida devido à supremacia das frações financeiras internacionais no
processo de acumulação brasileiro que, na verdade, tem gerado a ampliação da desarticulação
da economia nacional. Francisco de Oliveira, em passagem do Ornitorrinco, descreve com
bastante pessimismo a atual configuração socioeconômica do Brasil:
O ornitorrinco [Brasil] é isso: não há possibilidade de permanecer como
subdesenvolvido e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial
proporcionava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação
digital-molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão
aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as
“acumulações primitivas”, tais como as privatizações propiciaram: mas
agora como o domínio do capital financeiro, elas são apenas transferências
de patrimônio, não são, propriamente falando “acumulação”. O ornitorrinco
está condenado a submeter tudo à voragem da financeirização, uma espécie
de “buraco negro” [...]. O ornitorrinco capitalista é uma acumulação
truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão. (OLIVEIRA, 2003, p.
150).
179
CONCLUSÃO
Esse estudo não teve como objetivo chegar a conclusões definitivas a respeito da atual
configuração do capitalismo (pós-década de 1970), nem da realidade socioeconômica
brasileira. Na verdade, buscou-se aqui muito mais apontar para novas pesquisas teóricas e
históricas do que chegar a resultados conclusivos acerca do contexto nacional e internacional
hodierno. Não obstante, é possível apresentar algumas formulações da realidade
contemporânea a partir dos elementos desenvolvidos ao longo desta pesquisa.
Sendo assim, procurou-se ao longo deste trabalho mostrar que os elementos constitutivos do
capitalismo contemporâneo, assentados na reestruturação produtiva e na globalização
financeira, em articulação com a (des)regulação neoliberal e com o “novo imperialismo”,
propiciaram a retomada do controle social pelo capital em virtude do processo de
fragmentação da classe trabalhadora e da desvalorização da força de trabalho. Entretanto, tais
modificações criaram impedimentos à acumulação produtiva, já que reduziram a demanda
agregada, tanto pelo lado do consumo dos trabalhadores como pelo dos investimentos. A
situação problemática à dinâmica da acumulação capitalista foi contornada fragilmente
através da ampliação da acumulação centrada nas finanças viabilizada pelos Estados nacionais
centrais.
O padrão de acumulação predominantemente financeiro foi e é posto em prática num contexto
de “convivência” com os problemas de realização das mercadorias e, principalmente, com o
aprofundamento do quadro social desigual entre os países (“novo imperialismo”). Este padrão
provocou transformações na natureza dos ciclos econômicos, tornando-os cada vez mais
curtos e erráticos, gerando assim, crises econômicas recorrentes, principalmente, nos países
periféricos. Destacam-se entre estes os latino-americanos, que se integraram, um a um,
passivamente à dinâmica financeira através dos programas de ajustes neoliberais que abriram
espaço para os movimentos de capitais especulativos e voláteis na região.
As medidas postas em prática visando ao enfrentamento da queda da taxa de lucro, decorrente da
crise estrutural da década de 1970, estão inscritas em iniciativas de contra-tendência. Entretanto,
180
longe de redirecionar o sistema para uma nova era de prosperidade, o que se presencia são
transformações econômicas e políticas que espelham o impasse em questão e, por isso, são
portadoras de conteúdos profundamente conservadores e regressivos. As supostas novidades
progressistas da utopia da globalização, tanto econômicas quanto políticas, não se sustentam à
luz de uma análise mais rigorosa que parte das contradições fundamentais deste modo de
produção.
Dados os elementos presentes na configuração do capitalismo atual, não existem elementos
suficientes que ensejem fortes potenciais de agravamento ou explosão (crise de dominação),
pois a luta de classes, principal alternativa de saídas “externas” ao capital, foi arrefecida ao
longo dos anos 80 e 90. Contudo, existe uma crise no plano econômico, atrelada aos
problemas na acumulação produtiva, que poderia, em algum momento, alcançar um estágio
político de ruptura. Este seria uma projeção não muito clara para o curto-prazo, em virtude da
grande penetração da ideologia burguesa neoliberal no imaginário dos operários e de seus
movimentos. Isso, por sua vez, vem dificultando fortemente a configuração de movimentos
dos trabalhadores, impedindo, com isso, que a “classe em si” possa se constituir numa “classe
para si”.
No que concerne a atual configuração da América Latina, a análise aqui efetivada procurou
identificar as razões que conduziram à posição de degradação social e econômica trilhada pela
grande maioria dos países latino-americanos desde os anos 70 do século passado. E as razões
profundas explicativas dessa situação só puderam ser descortinadas ao se proceder a uma
análise totalizadora na qual a América Latina foi compreendida como parte inelutável do
sistema capitalista internacional. Dessa forma, pode-se concluir que o quadro econômico e
social presenciado nos países da região, de forma quase homogênea, nada mais significa do
que a expressão do novo padrão de acumulação capitalista sob a égide das finanças.
É preciso ressaltar que as transformações nas relações de poder entre países centrais e
periféricos foram e são fruto de um “novo imperialismo”, que vem ampliando a
hierarquização entre os países e elevando, com isso, o poder econômico e político dos países
centrais, mais especificamente dos Estados Unidos. Assim, os EUA, desde meados dos anos
1980, têm procurado reforçar sua posição de supremacia do sistema-mundo capitalista,
181
através de fundamentos políticos, militares e ideológicos, principalmente após a derrocada da
União Soviética e, mais recentemente, após o atentado de 11 de setembro de 2001.
Assim, como parte do novo padrão de acumulação capitalista, a integração da América Latina
à nova dinâmica do capital deu-se, principalmente, através da constituição de um
endividamento ao mesmo tempo crônico e estrutural, através da retomada das “exportações de
capitais” dos países centrais para os países dependentes, as quais adquiriram duas formas, a
saber, primeiramente, os empréstimos externos – na década de 1970, e, depois, já no início da
década de 1990 – após a escassez do financiamento externo provocada pela crise da dívida
latino-americana dos anos 1980-, os movimentos de capitais especulativos e voláteis. A
impossibilidade de se desatrelar do endividamento permanente foi cristalizada mediante a
aplicação dos ajustes estruturais neoliberais emanados dos países centrais, medida esta que
garantiram a reprodução do endividamento como elemento estrutural da acumulação.
No que tange à realidade brasileira atual, a apreciação aqui realizada procurou mostrar - a
partir dos movimentos e das alianças entre as frações dominantes nacionais e forâneas e seus
rebatimentos na atual configuração do Estado nacional e na adoção de determinadas políticas
econômicas - os efeitos deletérios do ajuste estrutural brasileiro (Plano Real) na estrutura
setorial (especialização regressiva do aparelho produtivo) e social (redução do peso dos
salários na economia, desestruturação do mercado de trabalho e ampliação da desigualdade
social). Para tanto, utilizou-se do referencial teórico da (des)articulação setorial e social, uma
vez que este instrumental possibilitou a vinculação entre os elementos da demanda efetiva e
das disputas e das relações de poder entre as classes e suas frações.
Na verdade, o novo padrão de acumulação brasileiro dominado pelas finanças, configurado na
década de 1990, ampliou a desarticulação setorial e social - que havia se reduzido com a
consolidação da indústria “pesada” brasileira -, provocando, com isso, enormes transferências
de renda e riqueza da maioria da população para as frações dominantes, sobretudo, as
financeirizadas. A atual dinâmica socioeconômica expandiu ainda mais a ingente e histórica
exclusão social no Brasil, além de neutralizar qualquer possibilidade de configuração de um
sistema econômico nacional articulado. Cabe ressaltar que a dificuldade histórica do Brasil
em construir uma economia articulada setorial e socialmente esteve e está atrelada à não-
configuração de uma hegemonia ampla nacional que conseguisse integrar as diversas frações
das classes (dominantes e dominados).
182
Dentre os novos eixos de pesquisas teóricas e históricas a respeito do entendimento e dos
rumos do capitalismo e da realidade socioeconômica brasileira, que não puderam ser
realizados neste trabalho, tendo em vista o tamanho limitado deste tipo de pesquisa e as
limitações do próprio pesquisador, podem-se destacar:
i) Em que medida o “trabalho imaterial” estaria modificando os processos produtivos e as
relações sociais de produção, configurando uma nova sociabilidade?
ii) Até que ponto a utilização do conceito de (des)articulação social e setorial, aqui adotado,
poderia ajudar no entendimento da capitulação do primeiro governo de esquerda da história
brasileira (Lula: eleito em 2002) diante das elites dominantes brasileiras e forâneas?
iii) E qual seria a possibilidade construtiva atual de uma nova sociabilidade “além do
capital”?
Por fim, é preciso ressaltar que atual configuração socioeconômica brasileira e mundial nos
remete a uma situação de profunda letargia e de pessimismo quanto aos rumos da sociedade.
Entretanto, precisamos continuar sonhando e acreditando nos nossos sonhos, sem perder de
vista a realidade concreta. “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de
observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar
escrupulosamente nossas fantasias” (LÊNIN - Que fazer?).
183
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