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Silvana Assis Freitas Pitillo
A personagem vicentina:
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A personagem vicentina:
uma representação do
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Portugal dos Quinhentos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
2002
20022002
2002
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Silvana Assis Freitas Pitillo
A personagem vicentina: uma representação
do Portugal dos Quinhentos
Dissertação apresentada ao curso de
Pós-graduação em História da Universidade
Federal de Uberlândia, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
em História.
Linha de pesquisa: História e Cultura.
Orientadora: Professora Drª Rosângela
Patriota Ramos.
UBERLÂNDIA
UBERLÂNDIA UBERLÂNDIA
UBERLÂNDIA –
– MG
MG MG
MG
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
2002
20022002
2002
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Pitillo, Silvana Assis Freitas, 1964.
A personagem vicentina: uma representação do Portugal dos
Quinhentos. Uberlândia, 2002.
f.: 195 il.
Orientadora: Profª Drª Rosângela Patriota Ramos.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Curso
de Mestrado em História.
Bibliografia: f. 190 – 195.
1. História e Cultura – Teses. 2. Teatro – Teses. 3. Gil Vicente –
Literatura Portuguesa – Teses. I. Universidade Federal de
Uberlândia. Curso de Mestrado em História. II. Título.
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PÁGINA DE APROVAÇÃO
Dissertação defendida e aprovada em __________ de
_________________________ de 2002, pela banca examinadora constituída
pelos professores:
Profª Drª Rosângela Patriota Ramos – Orientadora
Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento
- 16 -
Prof. Dr. Alcides Freire Ramos
- 17 -
À Giovanni pela dedicação, paciência e
companheirismo, e ao meu filho Pedro
Vinícius, pela inspiração do ato
criador.
- 18 -
AGRADECIMENTO
À professora Drª Rosângela Patriota Ramos, que com
carinho e dedicação orientou a realização deste trabalho.
Ao professor Dr.Alcides Freire Ramos, que generosamente
contribuiu para o desenvolvimento das minhas pesquisas,
fazendo observações pertinentes no exame de qualificação, que
foram de fundamental importância para a conclusão do mesmo.
Meus agradecimentos à professora Drª Kênia Maria de
Almeida Pereira, que com muita acuidade e delicadeza, auxiliou-
me no campo da teoria e crítica literárias, participando também
no exame de qualificação.
Aos meus colegas do Núcleo de Estudos em História
Social da Arte e da Cultura (NEHAC), que muito contribuíram
para o meu amadurecimento intelectual e acadêmico, através
das discussões e debates sobre história e arte.
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Aos meus tios Genny e Vanda, um agradecimento todo
especial, por terem, com amor e dedicação, possibilitado a
minha formação intelectual.
À professora Drª Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha, por
ter me indicado o caminho.
E, finalmente, à Déborah Melo Ferreira, pela competência
e disponibilidade.
- 20 -
Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz
que anda buscando algüa cousa que se lhe perdeo: e logo
após elle hum homem, vestido como pobre, este se chama
Ninguem, e diz.
Ninguém
Que andas tu hi buscando?
Tod. Mil cousas ando a buscar:
Dellas não posso achar,
Porém ando perfiando.
Por quão bom he perfiar.
Nin. Como has nome, cavaleiro?
Tod. Eu hei nome todo o Mundo,
E meu tempo todo inteiro
- 21 -
Sempre he buscar dinheiro,
E sempre nisto me fundo.
Ninguem
Eu hei nome Ninguem,
E busco a consciencia.
Ber. Esta he boa experiencia:
Dinato, escreve isto bem.
Din. Que escrevei, companheiro?
Ber. Que Ninguem busca consciencia,
E Todo o Mundo dinheiro (Vicente).
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal mostrar, através de três
autos de Gil Vicente o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca do
Purgatório e o Auto da Barca da Glória os valores preconizados pelo
dramaturgo, o seu compromisso político com o Estado absolutista
português e suas opções estéticas que lhe permitiram condenar ou salvar,
e até mesmo deixar a vagar, as personagens que desfilaram diante das
embarcações divinal e infernal.
Para tanto, demonstramos através dos diálogos destas figuras com
o Anjo e com o Diabo, dos símbolos, das vestimentas que estas portam, o
significado que adquiriram no processo de condenação ou salvação das
mesmas. Construídas como personagens-tipo, representam os mais
diversos segmentos sociais, profissionais ou cargos existentes na
sociedade quinhentista portuguesa. Daí a necessidade de contextualizar
cada um dos grupos que aparecem nas obras, simbolizados pelas figuras-
tipo.
Estas peças vicentinas apresentam uma crítica à conduta dos vários
segmentos de uma sociedade que passa por profundas transformações em
todos os níveis: político, econômico, social e cultural. Para realizá-la o
dramaturgo português utiliza-se de uma estética medieval. Sendo a
Sátira o baluarte estético destes três autos, aliada à tipificação no
processo de construção das personagens e à farsa, enquanto princípio
temático, somando-se aí a presença do riso popular.
- 23 -
SUMÁRIO
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Capítulo I: A BARCA DO INFERNO . . . . . . . . . . . . . . . 46
O Fidalgo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
O Onzeneiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
A Alcoviteira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
O Sapateiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
O Frade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
O Enforcado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
O Corregedor e o Procurador . . . . . . . . . . . 105
O Taful . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Capítulo II: A BARCA DO PURGATÓRIO . . . . . . . . . . . 117
O Lavrador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
O Pastor e a Pastora . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
A Regateira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Capítulo III: A BARCA DA GLÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . 149
O Parvo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
O Menino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154
Os Quatro Cavaleiros . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
As Outras Personagens . . . . . . . . . . . . . . . 159
Capítulo IV: O JUDEU . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
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Desde os tempos mais remotos a história vem sendo escrita sob diversas formas de
gênero: crônica, memória política, tratados de antiquários e outras. No entanto, a forma
tradicional dominante tem sido a narrativa dos acontecimentos políticos e militares,
apresentada como a história dos grandes feitos realizados pelos grandes homens: chefes
militares e reis. Contudo, este tipo de narrativa começou a ser questionada e contestada
pela primeira vez durante o Iluminismo.
Peter Burke, em seu livro A Escola dos Annales – A Revolução Francesa da
Historiografia, afirma que em meados do século XVIII, um certo número de escritores
intelectuais na Escócia, França, Itália, Alemanha e outros países, começaram a se
preocupar com o que denominava a “história da sociedade”. Uma história que não se
limitava às guerras e à política, mas se preocupava com as leis e o comércio, a moral e os
costumes.
Embora, segundo o autor, Leopold Von Ranke, juntamente com seus discípulos,
tenham marginalizado ou “re-marginalizado” a história sociocultural, devido à ênfase que
deram às fontes dos arquivos, fazendo os historiadores que trabalhavam com a história
sociocultural parecessem meros “dilletanti”; algumas vozes se levantaram contra este tipo
de fazer história. Dentre elas estão Michelet e Burckardt,
que escreveram suas histórias sobre o Renascimento mais ou
menos na mesma época, 1865 e 1860, respectivamente, tinham uma
visão mais ampla da história do que os seguidores de Ranke.
Burckhardt interpretava a história como um campo em que
interagiam três forças – o Estado, a Religião e a Cultura – enquanto
Michelet defendia o que hoje poderíamos descrever como uma
‘história da perspectiva das classes subalternas’, em suas próprias
palavras ‘a história daqueles que sofreram, trabalharam,
definharam e morreram sem ter a possibilidade de descrever seus
sofrimentos’” (BURKE; 1997: 19).
Merece destaque também Marx que ofereceu um paradigma histórico alternativo ao
de Ranke (para aquele as causas fundamentais da mudança na história deveriam ser
encontradas nas tensões existentes no interior das estruturas socieconômicas). Assim como
os historiadores econômicos que foram os opositores mais bem organizados da história
política.
Daí tornou-se possível realizar uma investigação histórica, utilizando-se novos
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documentos, como a obra de arte, por exemplo. Esta possibilidade se encontra presente
em Langlois e Seignobos, em seus escritos sobre a Introdução aos Estudos Históricos,
apesar deste último ter sido alvo de críticas severas, em especial do economista François
Semiand que atacou o que chamou de os ídolos dos historiadores (“o ídolo político”, “o
ídolo individual” e “o ídolo cronológico”) e ter-se transformado no símbolo de tudo aquilo
que os reformadores da história se opunham. Na realidade, ele não era apenas um
historiador político, pois escreveu também sobre a civilização. E tanto Seignobos como
Langlois demonstraram ser possível utilizar outros documentos, como as obras literárias,
por exemplo, poemas épicos, romances e peças de teatro, para elucidar períodos e fatos
onde falta documentação abundante; desde que o historiador analise criticamente este tipo
de documento, destruindo todas as combinações do autor, eliminando todas as formas
literárias, para chegar à construção do “fato puro”, que deve ser elaborado em linguagem
absolutamente simples.
Dessa forma, o processo não é ilegítimo, mas segundo Langlois e Seignobos, o
historiador deve estar atento para os seguintes questionamentos: primeiro, a concepção
moral ou estética de um documento exprime, quando muito, o ideal pessoal do autor
(LANGLOIS e SEIGNOBOS, 1946: 136), não podendo concluir que pertence à moral ou
ao gosto estético do seu tempo. Segundo, “pode a descrição dos fatos materiais resultar de
uma combinação pessoal do autor, produzida em sua imaginação com elementos tirados
da realidade(LANGLOIS e SEIGNOBOS, 1946: 136). Neste caso é lícito afirmar a
existência separada de cada elemento irredutível, forma, matéria, cor, número. Terceiro, a
concepção de um objeto ou de um ato, prova que ele existiu, mas não que tenha sido
freqüente: talvez se trate de um objeto ou de um ato único, ou pelo menos, adstrito a um
pequeno círculo; os poetas e romancistas têm o hábito de servir-se de modelos tirados de
um mundo excepcional(LANGLOIS e SEIGNOBOS, 1946: 136). E finalmente, os fatos
conhecidos por este processo não estão localizados, nem no tempo, nem no espaço; o
autor pode havê-los tomado em outra época ou em país que não seja o seu(LANGLOIS
e SEIGNOBOS, 1946: 136).
Porém, foi no início do século XX, com Johan Huizinga nos brindando com o seu
livro O Declínio da Idade Média, que o leque de possibilidades se abriu ainda mais, para
que o historiador realizasse investigações, lançando mão de outras fontes e documentos
que pudessem permitir uma melhor compreensão do período histórico estudado.
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A presente obra do historiador holandês é um estudo das formas de vida,
pensamento e arte na França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. Este período
mostrou-se como um fecho da Idade Média quando o autor procurava chegar a uma análise
genuína da arte dos irmãos Van Eyck e dos seus contemporâneos, apreendendo o seu
significado em relação com todo o conjunto de uma época. O que lhe permitiu perceber
que o fato comum às várias manifestações daquele momento histórico se revelou inerente,
mais aos elos que as ligavam ao passado do que aos germes que continham o futuro.
Desta forma, o autor, utilizando-se também de outras fontes históricas, como
documentos além dos tradicionais, aqueles encontrados nos arquivos as obras de artes
plásticas e literárias, chegou à conclusão que o significado, não dos artistas, mas
também dos teólogos, poetas, cronistas, príncipes e estadistas, podia ser mais bem
apreciado se fossem considerados não como precursores de uma cultura vindoura, mas
como agentes de aperfeiçoamento e conclusão de uma cultura antiga” (HUIZINGA;
s/d:7).
No entanto, foi graças às contribuições da Escola dos Annales e de historiadores
ingleses, alemães, norte-americanos e outros, que possibilitaram ao historiador condições
para pesquisar um instrumental teórico-metodológico que desse conta desses novos
objetos, tornando possível criar um conjunto de estratégias para combater a história
comumente denominada de positivista, preocupada somente com os fatos singulares,
sobretudo com os de natureza política, militar e diplomática, onde se toma como critério de
cientificidade a verdade dos fatos que poderia ser atingida mediante a análise de
documentos verdadeiros e autênticos. Contra esta história, Marc Bloch e Lucien Febvre
fundadores dos Annales opunham a chamada Nova História uma história
problematizadora do social, preocupada com as massas anônimas, seus modos de viver,
sentir e pensar. Uma história com ênfase no estudo das condições de vida material, não
reconhecendo a determinância do econômico na totalidade social.
O segundo momento desta escola tem o seu representante máximo em Braudel,
discípulo de Lucien Febvre, que expôs em seu livro O Mediterrâneo e o Mundo
Mediterrâneo na época de Philippe II, uma extraordinária pesquisa sobre economia e
sociedade na segunda metade do século XVI, e apresentou sua própria concepção de
história particularmente a sua problematização original do espaço e do tempo históricos.
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No tocante ao espaço, aprofundou o estudo sobre as relações entre o meio ambiente e a
vida material, chegando mesmo, no limite, a sugerir uma espécie de determinismo
geográfico na estrutura e dinâmica das sociedades. No tocante ao tempo, desenvolveu na
própria divisão da obra suas hipóteses sobre os diversos tempos que se cruzam na história
das sociedades” (VAINFAS; 1997:134).
Mas foi com a terceira geração dos Annales que se dedicou à história das
mentalidades que a historiografia francesa seguiu o caminho do “porão ao sótão”, isto é,
a mudança de preocupações da base sócio-econômica ou da vida material para os
processos metais, a vida do cotidiano e suas representações. Aqui, há uma mudança
considerável na noção de documento histórico, pois, para realizar este tipo de investigação,
os historiadores das mentalidades utilizam-se de tudo como fonte de pesquisa.
Para Le Goff, fazer história das mentalidades é, inicialmente, realizar alguma
leitura, de não importa qual documento. Tudo é fonte para este historiador. Porém, este
tipo de história tem suas fontes privilegiadas que conduzem melhores que outras à
psicologia coletiva das sociedades: a hagiografia, confissões de heréticos e processos de
inquisição, cartas de remissão concedidas a criminosos e outros, como também
documentos literários e artísticos. História não de fenômenos objetivos, porém da
representação desses fenômenos...” (LE GOFF; 1988: 75-76).
Aqui, diferentemente de Langlois e Seignobos, não é necessário destruir todas as
combinações do autor, toda forma literária; porque, para a história das mentalidades a
subjetividade, presente no texto literário ou nas artes, faz parte da fonte de pesquisa e pode
nos revelar muito do momento histórico que queremos investigar.
Segundo Lynn Hunt, na introdução do livro “A Nova História Cultural”, os
modelos de explicação que contribuíram para a ascensão da história social passavam por
uma importante mudança de ênfase, a partir do interesse cada vez maior, tanto dos
marxistas, quanto dos adeptos dos Annales, pela história cultural. Na história de
inspiração marxista, o desvio para a cultura estava presente na obra de Thompson
sobre a classe operária inglesa. Thompson rejeitou explicitamente a metáfora de base
superestrutura e dedicou-se ao estudo daquilo que chamava mediações e morais a
maneira como se lida com essas experiências materiais... de modo cultural (HUNT;
1995: 6). Quanto aos Annales, o desafio aos velhos modelos foi especialmente rigoroso. À
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medida que a quarta geração dos Annales passou a preocupar-se cada vez mais com as
mentalidades, a história econômica e social perdeu seu lugar privilegiado. Para Roger
Chartier e Jacques Revel o terceiro nível não é um nível, mas um determinante básico da
realidade histórica. Como afirmou Chartier,
a relação assim estabelecida não é de dependência das estruturas
mentais quanto às suas determinações materiais. As próprias
representações do mundo social são componentes da realidade
social. As relações econômicas e sociais não são anteriores às
culturais, nem as determinam; elas próprias são campos de prática
cultural e produção cultural o que não pode ser dedutivamente
explicado por referência a uma dimensão extracultural da
experiência” (HUNT; 1995:9).
Assim, as disciplinas hoje que andam lado a lado com a história são a antropologia
e a teoria literária, campos nos quais a explicação social não é tratada como ponto pacífico.
E, segundo Hunt, no momento o modelo antropológico reina supremo nas abordagens
culturais. Rituais, inversões carnavalescas e ritos de passagem estão sendo encontrados em
todos os países e em praticamente todos os séculos.
Daí, a modalidade antropológica de história partir da premissa de que a expressão
individual ocorre no âmbito de um idioma geral. Sendo assim, trata-se de uma ciência
interpretativa: seu objetivo é ler ‘em busca do significado o significado inscrito pelos
contemporâneos’. A decifração do significado, então, mais do que a interferência de leis
causais de explicação, é assumida como a tarefa fundamental da história cultural
(HUNT; 1995; p. 16).
No entanto, a autora pontua alguns problemas que foram discutidos por Roger
Chartier acerca da abordagem do antropólogo Clifford Geertz sobre as formas simbólicas
organizadas num sistema. Para o historiador francês, considerá-las como componente de
um sistema implica coerência e interdependência entre elas, o que pressupõe a existência
de um universo simbólico comum e unificado. Como então, pode um “idioma geral” ser
capaz de explicar todas as formas de expressão cultural. Por isso, Chartier questiona a
validade dessa busca de significado segundo o modo interpretativo geertziano, uma vez
que o mesmo tende a anular as diferenças na apropriação ou no uso das formas culturais.
Pois, o anseio por ver a ordem e o significado obscurece a existência de luta e de conflito.
Daí, Chartier
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enfatiza que os historiadores da cultura não devem substituir uma
teoria redutiva da cultura enquanto reflexo da realidade social por
um pressuposto igualmente redutivo de que os rituais e outras
formas de ação simbólica simplesmente expressam um significado
central, coerente e comunal. Tampouco devem esquecer-se de que os
textos com os quais trabalham afetam o leitor de formas variadas e
individuais. Os documentos que descrevem ações simbólicas do
passado não são textos inocentes e transparentes; foram escritos por
autores com diferentes intenções e estratégias, e os historiadores da
cultura devem criar suas próprias estratégias para lê-los. Os
historiadores sempre foram críticos em relação a seus documentos
e nisso residem os fundamentos do método histórico(HUNT; 1995;
p. 18).
Por seu turno, a teoria da literatura também apresenta uma gama variada de
influências literárias: algumas teorias enfatizam a recepção dos textos, outras a sua
produção ou escrita, outras a unidade e coerências do significado, outras dão destaque ao
papel da diferença e as maneiras pelas quais os textos funcionam no sentido de subverter
suas aparentes finalidades” (HUNT; 1995; p. 20).
Daí se depreende, a crítica literária tem abordagens dicotomizadas. Lynn Hunt
(1995) afirma que a abordagem do tipo da interpretação antiquada que pergunta ao texto o
que ele significa, enfatiza a unidade. Por outro lado, os mais recentes tipos de análise, que
perguntam como o texto funciona, destacam a diferença.
Por conseguinte, Jameson, diz a autora, conclui que a tensão entre a análise daquilo
que um texto significa e de como ele funciona é uma tensão inerente à própria linguagem.
Por isso, Hunt brilhantemente alerta os historiadores da cultura que a unidade não é
possível sem a percepção da diferença, da mesma forma que a diferença não pode ser
apreendida sem uma percepção contrária da unidade. Portanto, os historiadores da cultura
não têm de escolher entre unidade e diferença. “Assim como os historiadores não precisam
escolher entre sociologia e antropologia, ou entre antropologia e teoria da literatura para
conduzirem suas pesquisas” (HUNT; 1995: 21).
Embora as diferenças o dentro dos modelos antropológicos e literários sejam
perceptíveis, mas também entre eles; uma tendência fundamental de ambos parece prender
a atenção dos historiadores da cultura: o uso da linguagem como metáfora. Daí que a
analogia lingüística estabelece a representação como um problema que os historiadores não
pode mais evitar.
- 30 -
Tanto na história da arte quanto na crítica literária, a
representação é muito tempo reconhecida como o problema
central da disciplina: o que faz um quadro ou um romance, e como é
que o faz? Qual é a relação entre o quadro ou o romance e o mundo
que ele pretende representar? A nova história cultural faz o mesmo
tipo de perguntas; antes, porém, ela deve estabelecer os objetos de
estudo histórico como semelhantes aos da literatura e da arte
(HUNT; 1995: 22).
Diante da necessidade de compreender novos objetos, de novas abordagens e novos
temas, a história se viu obrigada a utilizar novas fontes historiográficas como documentos
e se aproximar de outras disciplinas sociologia, antropologia, teoria literária e outras
para dar conta de uma investigação que doravante se tornou muito mais complexa. A partir
daí o historiador lança mão de uma variada gama de documentação para poder realizar o
seu trabalho de detetive procurando vestígio em todo tipo de fonte, desde os documentos
escritos preservados em arquivos até as obras de artes.
Por isso, o trabalho que ora se apresenta pretende focalizar dois campos do saber,
História e Arte. Uma vez que ambos constituem uma trama tecida pelo mesmo fio o
discurso produzido pelo homem e, por isso, se apresentam intimamente dependentes.
Essa estreita ligação permite encontrar em ambos pontos congruentes cada vez
menos raros, que dão lugar a um campo de estudo histórico-teatral de vasta produtividade.
Nesse sentido, o discurso histórico, aliado ao discurso do teatro, se impregna de nuanças
representativas da fertilidade da criação humana.
Estabelecer um estudo mais aprofundado entre História e Teatro exige reflexões
acerca de algumas questões, dentre elas estão as dificuldades que encontramos ao longo do
trabalho. A primeira é de ordem literária. À diferença do seu colega que exuma uma peça
inédita de arquivo, o historiador, aqui, não é nunca o primeiro leitor do documento. Ele
aborda esse documento através de uma escala, um sistema de referências, uma história da
literatura, que separou o joio do trigo hierarquizando as escritas, as obras e os autores
(...)” (PARIS; Set-87/Fev-88: 84). A segunda dificuldade seria tratar o documento como
simples confirmação o que ele também pode ser ou como uma ilustração de
informação recebida das fontes tradicionais” (PARIS; Set-87/Fev-88: 84).
Uma outra consideração seria recuperar os debates e os conceitos que nortearam
a construção desta história específica História do Teatro colocando, assim, em xeque
- 31 -
sua periodização e seu ordenamento, por um lado. Por outro, o tratamento dado à
produção dos historiadores, que é esvaziada de suas contradições e debates, para tornar
pano de fundo, ou melhor, a realidade concreta, a partir da qual a arte elabora a sua
criação” (PATRIOTA; 1992:232).
Cabe também ao historiador a recuperação da história que informa a produção de
uma obra teatral, na concepção de texto, de interpretação, de encenação e de recepção;
bem como a construção de sua memória, que passará a ser História do Teatro. Enfim, este
complexo emaranhado de questões e de idéias é o universo no qual se dará qualquer
debate intelectual, que tende a ser profícuo, na interdisciplinaridade entre História e
Teatro” (PATRIOTA; 1992:232).
Finalmente, talvez o pressuposto mais importante dessa escolha – para o qual
Robert Paris nos chama a atenção, é que além de não podermos separar real e imaginário,
seria inútil atribuir a um ou a outro desses termos a função privilegiada de referencial ou de
fundamento.
Por isso, para realizar uma investigação deste porte, faz-se necessário estabelecer as
devidas conexões entre a obra, o espaço, o momento histórico em que foi produzida. Além
de tudo, tentar entender a construção do autor e de sua obra elaborada pelos críticos
literários e historiadores da literatura. Uma reflexão desta natureza não dispensa a ligação
entre o cultural, o econômico, o social, o político e o estético.
Ora, por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida,
ainda não se concluiu, a história mudou sua posição acerca do
documento: ela considera como sua tarefa primordial, não
interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é o seu
valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo; ela o
organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece
séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica
elementos, define unidades, descreve relações(FOUCAULT apud
PATRIOTA, 1999).
Rosângela Patriota afirma que ao realizar um estudo sobre Vianinha, tem como
objetivo contribuir para elucidar as possíveis conexões entre História e Teatro. E propõe
discutir momentos da história contemporânea brasileira à luz da dramaturgia de Oduvaldo
Vianna Filho, partindo do pressuposto de que a produção estética e, neste caso particular, a
dramaturgia, são momentos constituintes do processo histórico. Partindo desta premissa,
- 32 -
Vianinha e seus textos teatrais, primeiramente, serão analisados por meio das
interpretações sobre eles elaboradas e, posteriormente, discutidos no interior do processo
vivenciado, com o intuito de resgatar a contemporaneidade existente nas reflexões do
dramaturgo.
Segundo a autora, o material elaborado pelos críticos teatrais são documentos
utilizados como “vozes de autoridade” para justificar e posteriormente cristalizar
determinadas interpretações.
A autora levanta as seguintes questões: existem obras artísticas produzidas fora dos
processos históricos? A partir de que instante se pode dizer que estes processos estão
encerrados?
Segundo ela, indagações como estas permeiam todo o desenvolvimento do seu
trabalho, pois os historiadores não podem e nem devem furtar-se à evidência de que uma
das perspectivas de seus trabalhos é construir diálogos como agentes e documentos de luta.
Por isso, é possível afirmar que tanto o dramaturgo quanto os que escreveram sobre ele, ou
sobre o seu trabalho, estão consciente ou inconscientemente, comprometidos com o texto
produzido, isto é, há uma historicidade que propiciou a sua confecção.
O estudo aqui realizado aborda um tema que transita em duas áreas do
conhecimento estreitamente correlacionados: História e Teatro. Sua finalidade reside no
intuito de identificar nos autos de Gil Vicente, mais especificamente nas peças Auto da
Barca do Inferno (1517), Auto da Barca do Purgatório (1518) e Auto da Barca da Glória
(1519), os valores, o compromisso político e as opções estéticas do dramaturgo português,
no século XVI, que nortearam o processo de salvação e condenação das personagens nestes
três autos; através da análise do discurso das personagens e dos símbolos que elas portam.
Críticos de Gil Vicente buscaram nas suas peças resgatar as influências que ele
recebeu e que permitiram a confecção de sua obra. Cabe ao nosso trabalho tentar
reconstituir fragmentos da realidade da sociedade portuguesa nos primórdios do século
XVI, através de suas peças, fazendo emergir a contemporaneidade de nosso dramaturgo,
que tanto se empenhou em defender certos valores considerados por ele como os
“melhores” para que a sociedade portuguesa caminhasse em direção à sua “salvação”,
purgando-se de valores como a tirania, a prepotência, a bajulação e congêneres, que a
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levavam à “perdição” e, portanto, à “danação” uma sociedade que ser perdia por apostar
alto numa sociedade urbana e mercantilista, que desprezava os valores camponeses e
pastoris.
Dramaturgo da Corte portuguesa nas três primeiras décadas do século XVI, suas
peças foram feitas para as festividades da Corte, portanto, eram representadas
especialmente para os reis, rainhas, imperadores, papas, nobres e outras pessoas que
compunham o cimo da hierarquia social deste país, ou que de alguma maneira se
encontravam ligadas ao paço. No entanto, o autor fazia desfilar diante da Corte não apenas
personagens que representavam grupos privilegiados, pois no centro de suas peças estavam
aquelas que simbolizavam segmentos sociais menos privilegiados com seus valores, seus
códigos de comportamento; sem, contudo, provocar o estranhamento dos espectadores.
Estudar o teatro vicentino requer um mínimo de contextualização do autor e sua
obra em Portugal no século XVI, para podermos compreender suas opções políticas, seu
compromisso com o Estado Português e suas opções estéticas no ato da confecção de sua
obra, que vai de 1502 até 1536, registro da criação da última peça.
Entender a sociedade portuguesa quinhentista nos mais diversos aspectos político,
econômico, social e cultural nos permitirá trilhar os caminhos das transformações
profundas pelas quais passaram a Europa e em especial, Portugal, no crepúsculo da Idade
Média e no alvorecer dos tempos modernos, e percebê-las representadas no teatro de Gil
Vicente.
Neste contexto de profundas mudanças destaca-se a expansão marítima, uma vez
que o teatro vicentino coincide exatamente com o ápice dos descobrimentos portugueses e
a constituição do império colonial no além-mar. É graças às Grandes Navegações que
florescem, em Portugal, o Renascimento e o Humanismo, e o nosso dramaturgo capta todas
estas transformações, transmutando-as em uma obra de excepcional riqueza, marcando
para sempre o teatro português.
Portugal atinge seu apogeu econômico nos reinados de D. Manuel (1495-1521) e de
D. João III (1521-1557), período histórico em que Gil Vicente produz a sua obra. Vários
são os fatores que contribuíram para este desenvolvimento e, conseqüentemente, para o
florescimento do Humanismo e do Renascimento em território português.
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Neste processo de efervescência política, econômica e social, a velha cultura
clerical não consegue satisfazer as novas necessidades e aspirações culturais. Alguns
grandes acontecimentos, aparentemente súbitos, mas em verdade preparados por um longo
processo sócio-econômico, transformaram rapidamente a postura e os valores dos grupos
sociais mais dinâmicos.
A invenção da imprensa em meados do século XV, pressupunha a existência de um
público crescente para o qual já não era suficiente a reprodução manuscrita do livro.
O descobrimento de novas rotas de navegação em direção à Índia e à América
permitirá o encontro de civilizações desconhecidas como a chinesa, modificando crenças,
costumes e valores dos europeus e até a concepção destes em relação ao universo.
Além disso, outras invenções e aperfeiçoamentos técnicos, como a artilharia, os
novos processos de exploração de minas e similares, mostram as possibilidades de domínio
da natureza, abrindo caminhos para a ciência matemática e experimental.
É dentro deste quadro de desenvolvimento do capitalismo comercial e de toda uma
cultura ligada à sua experiência que coloca em dúvida a síntese doutrinária lentamente
elaborada pelo clero das universidades em séculos anteriores, que permite a emergência e o
florescimento do Humanismo e do Renascimento em Portugal: e um dos efeitos desta
situação é o alargamento da curiosidade a outros aspectos do patrimônio cultural antigo
em que, contrariamente à Escolástica, se dignificassem as atividades civis, o saber prático
ou especulativo sem diretrizes teológicas, o lucro e a operosidade mercantil, a inteligência
e até o corpo humano, a vida terrena” (SARAIVA & LOPES, 1975: 175).
Segundo José Antônio Saraiva e Oscar Lopes (1975), os promotores deste
movimento são os Humanistas, letrados cuja atividade se exerce geralmente fora da
hierarquia eclesiástica, e constituem um grupo cada vez mais numeroso. A palavra
humanismo com que se designou este movimento teve como base o conceito de humanitas
de Cícero: humanidade ou qualidade humana, como cultura e estrutura moral. Exprime a
crença num conjunto de valores morais e estéticos universalmente humanos, os quais se
acharam definidos tanto nas Escrituras e na Patrística como na cultura profana da
Antiguidade.
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O Humanismo em Portugal chegou inicialmente via Itália devido aos intensos
contatos econômicos com as cidades-estados, Gênova, Florença, Veneza. Através também
dos laços religiosos e culturais. O papa vivia na Itália e o Papado exigia constantemente
contatos diretos com clérigos e burocratas de toda a Europa. Além do mais, vivia-se num
século de concílios ecumênicos e nenhuma nação católica ousaria estar ausente. As
peregrinações à Roma e a outros santuários italianos atraíam numerosas pessoas. O
prestígio das universidades deste país atraíam uma multidão de estudantes portugueses. Por
conseguinte, professores italianos iam para Portugal ensinar os jovens aristocratas e até o
próprio rei.
Diversos estudiosos atestam também as influências indiretas vindas de outros países
europeus tais como França, Países Baixos, Inglaterra e Espanha, onde um bom número de
portugueses realizavam seus estudos, em meados e fins do século XV.
“A grande época do Humanismo nacional corresponde ao
período de 1520-50. Praticamente, todas as escolas ao nível médio e
superior sofreram a sua influência. Na universidade, nas muitas
escolas monásticas e catedrais, nos colégios recém-fundados e no
ensino particular, o número de professores preparados além-
fronteiras e a qualidade do seu magistério renovaram inteiramente
matérias e programas. Além disso, bom número de escolares
estrangeiros foram convidados pelo rei a ocupar variadas cátedras;
mencionem-se, entre os especialmente celebrados, Nicolau Clenardo,
natural dos Países Baixos, e o escocês George Buchanan
(MARQUES, 2001: 177).
Vários são os pesquisadores das diversas áreas humanas e, dentre eles, podemos
citar Oliveira Marques, Maria José Palla e José Antônio Saraiva e Oscar Lopes, que
reiteraram a idéia de mecenato na Corte portuguesa dos séculos XV e XVI. A começar por
subsídios fornecidos pelos monarcas a estudantes portugueses no exterior. Permitindo, com
isso, a formação intelectual de três grandes humanistas de reputação internacional e
pertencentes à mesma família (Gouveia) que sucederam-se como reitores do Colégio de
Santa Bárbara.
Em seu livro, A Palavra e a Imagem, Maria José Palla (1996) afirma que o primeiro
terço do século XVI é um grande momento de produção nas artes plásticas, com oficinas
nas principais cidades portuguesas: Lisboa, Coimbra e Viseu. Os artistas agrupam-se em
associações chamadas “parcerias”. Esta época de grande produção pictural é também uma
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época de conformismo, estando os artistas sujeitos a executar encomendas com programas
muito estritos. É uma pintura feita por encomenda, com uma carga simbólica e programas
iconográficos muito precisos e cuja temática é religiosa, reportando-se essencialmente às
cenas do Novo Testamento. Até a rainha D. Leonor, viúva do rei D. João II e irmã de D.
Manuel, encomendou, na oficina de Della Robbia, medalhões que podem, até hoje, ser
admirados no Museu de Arte Antiga em Lisboa, bem como no Mosteiro da Madre de
Deus, em Xabregas foi uma grande mecenas encomendando boa parte das peças de Gil
Vicente.
Não queremos com isso, assumir a postura de que o trabalho de Gil Vicente ficou
limitado devido ao mecenato. Sua obra se apresenta tão rica e complexa como o momento
histórico em que ele viveu. A discussão sobre os limites e as liberdades de sua criação
serão realizados no próximo capítulo quando trataremos este aspecto em profundidade ao
longo de toda a análise das peças. Por ora, nosso interesse está voltado para demonstrar
como se deram o Renascimento e o Humanismo em Portugal.
Estes desabrocharam em Portugal sob a égide da Coroa, sendo o Paço o principal
foco das artes em geral, mas em especial da cultura literária. Sob os governos de D.
Manuel e D. João III, verifica-se uma forte tendência para a intensificação da arte literária.
Na época de D. Manuel torna-se obrigatório para os jovens aristocratas o ensino da
gramática. Muitos destes jovens realizam a sua primeira aprendizagem literária na Corte.
Até as mulheres da aristocracia se vêem sacudidas pelos bons ventos desta cultura.
D. João III empreendeu uma reforma da Universidade pela
qual procurou desenvolver, dentro dos velhos cursos de Artes, os
estudos humanísticos; para esse fim transferiu-a para Coimbra e
subordinou-a ao mosteiro de Santa Cruz desta cidade, tendo
previamente mandado vir professores do estrangeiro (SARAIVA,
1975: 182).
Por seu turno, devido aos Descobrimentos marítimos, os portugueses
desempenharam um papel importante no Renascimento. As viagens ao longo da costa
africana exigiram aperfeiçoamentos, adaptações e invenções técnicas. O conhecimento dos
ventos e das correntes marítimas permitiu o descobrimento da rota que levaria os lusitanos
a dobrar o Cabo da Boa Esperança. As embarcações utilizadas nas navegações costeiras
tiveram de ser modificadas para atravessar os oceanos. A cartografia desenvolveu-se, pois
registrou novas terras. Além da linha do Equador os navegadores descobriram novas
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estrelas que permitiram regular as viagens ultramarinas.
Todo este caudal de conhecimentos e toda a tradição técnica
acumulada em poucas dezenas de anos, assim como a confiança que
elas inspiravam, possibilitaram um empreendimento como a viagem
de circum-navegação levada a cabo por Fernão de Magalhães em
1521 – porventura o mais importante acontecimento científico do
século” (SARAIVA, 1975: 183).
A influência humanista em Portugal faz surgir as primeiras gramáticas portuguesas
e, segundo José Antônio Saraiva e Oscar Lopes (1975), acompanhadas de uma exaltação
do idioma pátrio. Mas a influência do Humanismo vai além de manifestações eruditas.
Como exemplo desta, os autores afirmam que a leitura de Erasmo se faz sentir muito em
João de Barros e Gil Vicente. E podemos acrescentar, alguns estudiosos de Gil Vicente
apontam-no como discípulo direto deste pensador holandês.
O Humanismo como impulso criador e crítico anima, pode
dizer-se, a primeira metade do século XVI e atinge o seu apogeu
pouco antes de 1550 com o Colégio Real das Artes e magistério dos
humanistas a ele ligados, incluindo as representações acadêmicas de
teatro clássico. Neste meio ou perto dele se formam algumas
personalidades que virão a revelar-se na segunda metade do século,
como Camões, Antônio Ferreira, Jorge Ferreira de Vasconcelos e
Heitor Pinto. Mas entre as duas metades o contraste é flagrante: ao
otimismo, confiança e audácia dos homens da primeira corresponde o
sentimento de crise assumindo às vezes formas dramáticas dos
homens que escrevem até cerca de 1570; e o retraimento, produto da
prudência, do desânimo, por parte dos que se lhes seguem
(SARAIVA & LOPES, 1975: 185).
São responsáveis por esta situação dois fatos que ocorreram em Portugal depois da
segunda metade do século XVI: a Contra-Reforma e a união com a Espanha. Da primeira,
resultou o enfraquecimento das promessas do Humanismo, sendo um dos fatores a
instalação da Inquisição em Portugal. Dentre os autores proibidos ou amputados pela
censura está Gil Vicente. Da segunda, a conseqüência foi o desaparecimento da Corte de
Lisboa, único foco literário estimulante do país.
Faz-se igualmente necessário tecer considerações acerca da vida e da obra de Gil
Vicente. Para tanto, pontuaremos as polêmicas e lacunas que cercam sua biografia. Assim
como estabeleceremos os aspectos do desenvolvimento do teatro português e as heranças
que possibilitaram nosso dramaturgo criar suas peças e se transformar num marco desse
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teatro.
A tarefa é árdua, mas extremamente prazerosa, visto que a riqueza e a fecundidade
desta produção artística mantêm estreitos laços com o momento histórico em que foi
produzida, e obviamente, devido à sensibilidade do autor que soube se apropriar dos
diversos elementos sociais presentes e os lapidou, transformando-os em matéria para a
execução de uma obra tão grandiosa.
Da biografia de Gil Vicente pouco se conhece, biógrafos e estudiosos de sua obra
não podem afirmar com precisão a data e o local de seu nascimento, nem a data de sua
morte, devido à escassa documentação. Acredita-se que ele seja natural de Guimarães,
Barcelos, Lisboa e, quem sabe, de algum ponto da Beira. Possivelmente tenha nascido por
volta de 1460, 1465 ou 1470. Calcula-se que ele tenha morrido aproximadamente em 1537,
já que sua última peça, Floresta de Enganos apresentada em Évora, data de 1536.
Sabe-se com certeza que usufruiu, durante todo o período de vida ativa, do
mecenato dos reis D. Manuel e D. João III e foi o grande protegido da rainha D. Leonor
(viúva de D. João II); para ela escreveu e fez representar diversas peças. O que é também
indiscutivelmente seguro é que sua vida decorreu entre quatro reinados: D. Afonso V, D.
João II, D. Manoel e D. João III. Por isso, pôde vivenciar as mudanças profundas pelas
quais passou a sociedade portuguesa, desde o crepúsculo medieval até a poderosa empresa
da construção do império ultramarino.
Outro aspecto instigante de sua biografia, que provocou polêmica ao início deste
século, é a identificação de Gil Vicente, dramaturgo, com Gil Vicente ourives. Segundo
Spina (1970), dentre os documentos que falavam num Gil Vicente ourives, Brito Rebelo,
um estudioso deste dramaturgo, encontrou nos livros da chancelaria de D. Manuel uma
carta datada de 4 de fevereiro de 1513, constante do livro 42º, na qual figurava a nomeação
do mesmo para mestre interino da balança da Casa da Moeda de Lisboa; e junto deste
documento aparecia, encimando o registro da carta régia, o seguinte sumário escrito por
mão autorizada: Gil Vicente Trovador Mestre da Balança. A anotação feita num
documento régio, só poderia ter partido de pessoa idônea e com qualificação para isso.
De acordo com Spina (1970) está Maria José Palla (1996), que no seu estudo sobre
Gil Vicente afirma que ele era poeta-ourives da corte portuguesa e reitera que com raras
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exceções, a identificação do dramaturgo com o ourives é aceita pela maioria, e isso tem
contribuído decisivamente para a renovação dos estudos vicentinos. Por conseguinte,
muitos estudos vêm avançando no sentido de relacionar a arte dramática vicentina às
outras formas de arte contemporânea de Gil Vicente, tais como a arquitetura, a escultura e
a pintura.
Entretanto, José Antônio Saraiva e Oscar Lopes (1975) concordam que a existência
deste documento é muito importante, mas não suficiente para comprovar a identificação de
Gil Vicente dramaturgo com Gil Vicente ourives, pois a cultura artesanal de um ourives,
feita quase desde o berço nos quadros corporativos, não parece condizer com a cultura
literária revelada nos autos.
Contudo um dos aspectos mais importantes da biografia vicentina é sua formação
religiosa, que obviamente também é pontuada por polêmicas. Entretanto, Segismundo
Spina (1970) sintetiza-a de maneira esclarecedora. Para ele o fato de Gil Vicente ter
desfrutado de enorme prestígio na Corte Portuguesa nas três primeiras décadas do século
XVI deve-se ao fato de ter gozado da proteção de D. Leonor. Quando ele adentrou na
câmara de D. Maria, esposa de D. Manuel, que havia dado a luz ao futuro herdeiro do
trono lusitano, D. João III, recitando o Monólogo do Vaqueiro, sua primeira peça, lá estava
D. Leonor que ficou tão deslumbrada com a novidade que recomendou ao dramaturgo
repetir a apresentação nas matinas de Natal.
Todavia, não foi somente este fato que os ligou, poeta e rainha. Afirma Spina
(1970) que ambos estavam preocupados com a recuperação dos costumes nacionais e
atualmente, acredita-se, numa afinidade de ordem religiosa. O laço que os unia, neste
aspecto, era a heterodoxia que vinha do século XII, quando Joaquim de Fiore apareceu
com a sua heresia em que pregava a futura substituição da Igreja de Cristo pela Igreja do
Espírito Santo. Como se sabe, dessa doutrina dos Espirituais se tornou simpatizante uma
boa ala da ordem franciscana, e é curioso que em 1515, quando se publica a obra mística
intitulada Boosco deleytoso, vem ela oferecida à rainha D. Leonor, pertencente à ordem
Terceira de S. Francisco.
“‘Esta obra prega uma forma extremamente radical de vida
religiosa, que consistia num total desprendimento do mundo e da vida
como caminho para o contato direto com Deus ainda durante a
existência terrena’ diz Antônio José Saraiva nas suas inteligentes
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indagações acerca do pensamento religioso do Poeta, entroncado
num pré-reformismo peninsular de ascendência luliana. A tal
movimento, de origem na doutrina dos Espirituais e na metafísica de
Raimundo Lúlio, não esteve alheio Gil Vicente; e dele saíram
inúmeros adeptos de Erasmo. Daí as razões de se pensar num Gil
Vicente erasmista. Teófilo Braga chegou a apresentar o nosso autor
como um herege, corifeu da reforma protestante e até um precursor
de Lutero, tese que andou muito em voga até princípios deste século.
O erasmismo de Gil Vicente é propriamente um fenômeno fortuito:
mera coincidência de posição, pois não estamos em condições de
afirmar que o dramaturgo conhecesse diretamente as obras do
humanista neerlandês. Os dois entroncavam no mesmo movimento
pré-reformista de princípios do século XVI: combatiam a indisciplina
do clero, criticavam os jubileus, as bulas, as estações e as
indulgências; condenavam a prática da oração para fins utilitários
(SPINA, 1970: 15).
Na verdade, podemos perceber que por ter vivido no final do século XV e início do
século XVI, nosso dramaturgo pôde presenciar as profundas transformações pelas quais
passaram o conjunto da sociedade portuguesa, isto é, pôde sentir intensamente os ventos do
outono da Idade Média e ver as luzes da aurora do Renascimento, e isto lhe possibilitou
criar um teatro que marcou profundamente as artes cênicas portuguesas contemporâneas e
atravessar quatro séculos, num processo de evolução que nada teve de linear, mas que hoje
pode nos fazer senti-lo tão próximo a nós. Por isso, Gil Vicente continua a ser uma fonte
inesgotável para a compreensão do Portugal dos Quinhentos nos seus mais diversos
aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais. Uma vez que nosso dramaturgo não fez
refletir a realidade que o circundava. Pelo contrário foi como ele a viu, sentiu, percebeu e
respirou é que ele a recriou, interpretou e representou espetacularmente de maneira
criativa, dando origem a uma obra monumental nada deixando a desejar em relação aos
seus contemporâneos, que foram “canonizados” como marcos da literatura e do teatro
medievais e renascentistas, como Shakespeare, Rabelais, Racine, Molière e outros.
No entanto, isto gera uma grande questão: existiu ou o uma tradição teatral antes
de Gil Vicente? Alguns historiadores e críticos literários chegaram, no passado, a afirmar
que Gil Vicente foi o criador do teatro português, não contou o dramaturgo português com
uma tradição teatral peninsular como ocorreu no resto da Europa.
Contudo essa idéia se mostra bastante simplista e diversos estudiosos vicentinos
tentam provar que ele não criou o seu teatro do nada. Algo existiu antes dele. Mesmo que
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não tenha sido uma tradição teatral como ocorreu em outras partes da Europa,
testemunhos da existência na Península Ibérica e, em especial, em Portugal, de
manifestações teatrais que possibilitaram a Gil Vicente a criação de sua obra.
Segundo Francisco Rebello (1967), a moderna crítica literária colocou de lado a
tese romântica, na qual o teatro português teria nascido no início do século XVI, com Gil
Vicente. Aceita-se que Gil Vicente conferiu uma forma e um conteúdo literários a
elementos rudimentares até então dispersos, mas não que ele tenha sido o criador do teatro
português.
O autor usa dos seguintes argumentos para defender a existência de um teatro em
Portugal, ou pelo menos de manifestações teatrais, antes de Gil Vicente: primeiro, não
pode ser compreensível que as manifestações dramáticas características da Idade Média,
comuns a toda a Europa não houvessem chegado a Portugal. Segundo, como aceitar que
apesar da interdependência das literaturas portuguesa e espanhola, os ecos do teatro
medieval castelhano não tivessem repercutido em Portugal. Terceiro, as ordens religiosas,
de onde os mistérios e as moralidades emergiram, ao instalarem-se em Portugal, não
poderiam deixar de levar consigo esses fermentos que germinaram o teatro moderno.
Quarto, como admitir que jograis e trovadores nas suas peregrinações não incluíssem no
seu repertório a narração dialogada e mimada, de episódios burlescos, que tinham grande
popularidade noutros países e que embrionariamente já era teatro. E finalmente, será
inconcebível que o instinto mimético, a natural propensão lúdica, a espontânea tendência
imitativa, que se encontram na origem do teatro, durante os três séculos e meio que
decorreram desde a fundação da nacionalidade (1139) à representação do primeiro auto
(1502) não tenham se manifestado em Portugal.
O testemunho mais antigo de manifestações teatrais na Idade Média portuguesa
remonta ao ano de 1193: o “arremedilho” que foi a célula-mãe do teatro português. Trata-
se de uma representação elementar em que a declamação e a mímica se combinam para
tornar mais atraente e persuasiva a fábula contada pelos jograis ao seu auditório, que tanto
era composto de aldeões e camponeses, como de fidalgo em seu castelo ou rodeando o
monarca na corte.
O outro tipo de manifestação teatral é o “teatro litúrgico” de onde se infere a
existência do século XIII em diante, em conexão direta com a liturgia do rito católico. Na
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primeira metade do século XV encontram-se vestígios de uma das composições dramáticas
mais freqüentes na liturgia medieval.
O Pranto de Nossa Senhora, que dotado inicialmente de
autonomia, passou mais tarde a integrar-se nos mistérios sobre a
Paixão de Cristo. Um monge beneditino, sagrado bispo em 1408 pelo
papa Gregório II, escreveu pouco antes da sua morte um cancioneiro
cujo ardente, por vezes ingênuo, misticismo, não desdenha recorrer
eventualmente à forma dramática para se exprimir.Intitula-se o livro,
que data de 1435, Laudes e Cantigas Espirituais e Orações
Contemplativas do Muito Santo e Bom Deus Jesus, Rei dos Céus e da
Terra, e da Muito Alta e Gloriosa Sua Madre, sempre Virgem Santa
Maria, e é seu autor André Dias, bispo de Mégara e de Ajácio (1348-
1437?), que usou também os nomes de André Hispano, André Escobar
e André de Rendufe. Escritas em língua vulgar para serem (ele
próprio o diz) ‘em altas vozes cantadas, bailadas, dançadas, oradas e
tangidas’ no decurso de cerimônias religiosas, as laudes de André
Dias ao inspirar-se nos temas da Paixão abandonam semelhança
das laudi do frade italiano Jacopone da Todi, que notòriamente lhe
serviam de modelo) a estrutura monológica e assumem a forma
dialogal, como nas que denomina ‘Pranto breve que fazia Santa
Maria, a morte de Jesus’ e ‘Horas da Paixão e da Cruz’. Nelas a
angústia, o desespero e a dor de Maria ao ver o filho torturado e
crucificado deixam de ser evocados e passam a exprimir-se em
discurso directo: são, pròpriamente, representados. Assim se efectua o
trânsito da poesia lírica para a poesia dramática”.(REBELLO, 1967:
22).
No entanto, José Augusto Cardoso Bernardes (1996) faz algumas ressalvas e coloca
em dúvida a ligação direta entre o teatro religioso e o teatro vicentino. Aquele que, por
volta do século XV e XVI, se expandiu pela Europa do Centro e do Norte decalcava
visivelmente o ciclo litúrgico, centrando-se nas representações do Nascimento e da
Ressurreição de Cristo. Estes espetáculos eram direcionados às grandes massas e se
constituíam numa espécie de “catecismo vivo”, inserido no grande desígno de doutrinação
do público das cidades a quem, a par de uma nova consciência cívica e comunal, importava
também dotar de uma consciência religiosa e moral.
Comparados com este tipo de teatro os autos vicentinos apresentam diferenças
consideráveis. Uma delas se encontra assinalada pelas circunstâncias de nascimento:
orientado para um público mais circunscrito, o teatro vicentino é dotado de um maior
investimento na vertente artística, o que normalmente se traduz num decréscimo da
dimensão doutrinal. A outra grande diferença entre o teatro vicentino e o teatro catequético
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é de caráter quantitativo. Olhando a globalidade da obra do dramaturgo português podemos
perceber a importância relativa de que nela desfrutam as peças de temática religiosas. Os
textos que podem considerar-se de índole estritamente religiosa são escassos.
“...o que ocorre, na maior parte dos casos, é uma associação
de caráter retabular entre o campo do sagrado e o do profano
invariavelmente centrado na cena Presépio. E, embora essa cena
nuclear, tal como o autor a integra nos diferentes co-textos
dramáticos, revele potencialidades exemplares e inequívocas, a sua
natureza e o seu alcance resultam já de pressupostos distintos dos que
assinalavam a cena dos “grandes mistérios”. A própria variedade dos
esquemas de integração que subordinam a representação do Natal no
teatro de Gil Vicente é bem reveladora da intencionalidade artística
e não estritamente doutrinal que lhe está na base, com a
conseqüente associação com os modelos de expressão lírica...”
(BERNARDES, 1996: 56).
Apesar das ressalvas feitas por Bernardes quanto aos contributos do teatro religioso
ao teatro vicentino, não podemos negar que aquele forneceu a este alguns elementos, para
que Gil Vicente realizasse sua obra ou pelo menos algumas de suas peças. Dentre eles
podemos destacar a temática religiosa presente em alguns de seus autos.
Outra categoria dramática citada por Rebello, ao lado dos “arremedilhos” e das
representações litúrgicas, são os “momos” que assumem uma crescente importância nos
cem anos precedentes à aparição de Gil Vicente. Os “momos” eram divertimentos corteses
em que tomavam parte fidalgos, pajens e por vezes até o próprio monarca, encenados por
ocasião de festividades régias e extraindo os seus temas das novelas de cavalaria, cujos
episódios e personagens teatralmente transpunham mediante uma ação mimada, dançada e
eventualmente recitada.
Segundo Paul Teyssier (1982), os momos exigiam decorações complicadas e trajes
luxuosos. Uma espécie de intriga elementar inspirada nos romances de cavalaria permitia
apresentar e articular quadros vivos misturados com danças. A parte falada destes
espetáculos, porém, era escassa. Muitos destes elementos cênicos vão encontrar-se em Gil
Vicente, que os sintetiza e os transforma em um teatro de grande envergadura.
Todos estes documentos pré-vicentinos nos apresentam, por
um lado, espetáculos desprovidos de diálogo e, por outro lado, e
inversamente, diálogos desprovidos de espetáculo. O que lhe falta é
essa aliança indissociável de um texto e da representação do actor
- 44 -
porque é disso que constitui o verdadeiro teatro. O que se pode dizer,
dentro das limitações dos nossos conhecimentos, é, em suma, que
antes de Gil Vicente houve em Portugal elementos que permitiam a
criação de teatro, mas que tais elementos não se tinham conjugado
numa síntese efetiva...” (TEYSSIER, 1982, 36).
E é Bernardes (1996) que provas contundentes desta situação a qual se refere
Teyssier. Para o primeiro, os problemas apresentados a quem pretende definir com certo
rigor o conceito de teatro na Idade Média até o século XV têm se tornado obstáculos
para os investigadores entenderem as fronteiras que circunscrevem este conceito, sendo por
isso menos arriscado falar de teatralidade, enquanto noção antropológica de teor mais
específico, que abrange não apenas o que veio a se designar por teatro depois do século
XV, mas também uma verdadeira marca “epocal e civilizacional” que envolve uma
multiplicidade de atos que vão da esfera do cotidiano ao âmbito do ritual e do cerimonioso.
Devido a esta indistinção se firmar enquanto marca característica da época é que é
necessário reconhecer que o arremedilho
1
, enquanto tal, não pode ser considerado um
antecedente direto do teatro vicentino. Falta-lhe marcas de especificidade, em termos de
forma e de conteúdo, e falta-lhe sobretudo nexos de enquadramento histórico.
Por isso, Bernardes (1996) afirma que tendo em conta todo o acervo documental
referente à atividade dos jograis não parece de todo possível ver neles precursores diretos
de Gil Vicente. A não ser no que diz respeito a dois aspectos em relação ao Poder, ao
mesmo tempo dependendo dele e o criticando e à sociedade contemporânea que lhe
fornecia os elementos para tecer sua crítica.
Numa certa similitude de posição em relação ao Poder em
particular e à sociedade em geral tal como os jograis, Gil Vicente
inscrevia-se, ele próprio, nas estruturas que criticava, vivia delas e
com elas, numa relação que era simultaneamente de tensão e
privilégio; e na atitude conjugadamente satírica e lírica em que, de
fato, o autor das Barcas coincide com o que de melhor existe na
poesia jogralesca, em geral, e com alguns dos seus nomes mais
representativos em particular
(BERNARDES, 1996: 65-66).
1
Para Bernardes, a única conclusão sensata e fundamentada que se pode extrair é a de que a designação dos
“arremedilhos” está relacionada com o verbo “arremedar” que, muito provavelmente, abrange apenas a noção
de imitar com o intuito de divertir e que se prende com a atividade de remadores ou jograis de baixa condição
social. E a este propósito a professora italiana L. Stegagno Picchio invoca, com propriedade, alguns
exemplos de realizações contextuais da expressão até o século XVI. Cita, inclusivamente, um exemplo
colhido no teatro vicentino como o caso do Lopo que, de acordo com a indicação nica que figura na
Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela canta e “baila arremedando os da Serra” (BERNARDES, 1996:
60).
- 45 -
Uma outra forma de manifestação dramática presente em Portugal são os
entremezes de natureza e de importância diversas das dos momos, aparecem muitas vezes
citados, juntos com estes, a par nas histórias da literatura dramática. Segundo Maria José
Palla, este termo parece ter como origem a comida, a cerimônia ou divertimento que se
intercalava entre dois pratos durante um banquete. A palavra é de origem francesa e
aparece na Península Ibérica em 1373, com o sentido de “jogo” e “banquete”. No entanto,
sua existência data de 1175 na Provença, mas não se sabe ao certo a que corresponderia.
Na verdade ela passa da Provença para Catalunha e chega em Portugal revestido de um
caráter teatral, em 1399.
No texto vicentino o vocábulo “entremez” surge apenas uma vez, no momento da
argumentação do auto recitado pelo camponês Vasco Afonso. Nesta peça, o dramaturgo
emprega auto e entremez para designar a mesma coisa, afirma Maria José Palla:
“E hum Gil... hum Gil... Gil
(Que ma retentiva hei!)
Hum Gil... já não direi:
Que faz os aitos a el-rei,
Elle me fêz,
E tirou de minha aquella,
Muito inda emque me pez,
Que entrasse ca na capella
Previcar hum antremez.
Aito cuido dizia,
Eassi cuido que he,
Mas ja não aito, bofé
Como os aitos que fazia
Quando elle tinha comque.” (PALLA, 1996: 175).
Todavia, pontua Bernardes (1996), o fato da peça se apresentar designada como
“entremês” e como “aito”, não deve fazer esquecer a diferenciação que os últimos versos
sugerem entre as peças atualmente elaboradas e os autos feitos anteriormente. O autor
acredita que o nosso dramaturgo, na verdade, estabelece uma diferença entre o auto em
questão porventura mais sucinto e outros supostamente melhor elaborados. Daí então
se conclui que para Gil Vicente, entremez significava, essencialmente, auto de menos
fôlego.
Enfim, após termos demonstrado as formas primitivas do teatro português,
percebemos a dificuldade que os estudiosos ainda encontram para estabelecer exatamente
- 46 -
as fronteiras entre o paradramático e o teatro, o que é reforçado por Maria Palla, na citação
abaixo.
Pensamos que as cerimônias que acabamos de descrever
constituíam uma forma de teatro. A corte é o ponto de encontro destas
diversas formas de arte e é interessante notar a participação ativa do
rei. Desde o início do século XIV que a corte se apropria das
cerimônias religiosas e o rei é seu elemento mais dinâmico. Estas
festas cortesãs fazem apelo ao teatro como forma de cultura profana,
para fortificar a autoridade da monarquia. Assistimos à encenação do
poder real que, pouco a pouco, evolui para um poder cada vez mais
extraordinário” (PALLA, 1996:179).
Embora seja de fundamental importância percebermos a existência destas diversas
manifestações dramáticas em Portugal, que contribuíram em menor ou maior grau, para o
surgimento do teatro vicentino. Não é apenas em relação a elas que o nosso dramaturgo
contraiu uma certa dívida. A obra de Gil Vicente recebeu também influências externas, de
outras partes da Europa.
Segundo Teyssier (1982), o impulso criador inicial de Gil Vicente veio da Espanha.
As primeiras peças que ele concebeu são imitações das éclogas dos poetas de Salamanca,
Juan del Encina e Lucas Fernández, chegando a adotar a língua deles. Mas a partir daí, ele
foi construindo, por enriquecimentos sucessivos, uma obra de extraordinária diversidade.
Destes autores castelhanos a grande herança é a figura do Pastor, que se constituiu
num dos principais elementos inovadores na arte de Encina e de Fernández. Dentre tantas
inovações uma delas tem ampla repercussão em Gil Vicente, a associação entre o cômico e
o sério. Bernardes (1996) afirma que, enquanto personagem padronizada sob o ponto de
vista enunciativo e comportamental, o pastor torna-se muitas vezes alvo de riso por parte
da Corte. Entretanto, simultaneamente o pastor é portador de um discurso sério, que ora
não se coaduna com o cômico que o envolve, ora emerge dele através de um complexo
jogo de ligações contrastivas.
O dramaturgo português vai assumir uma opção muito clara em relação ao rústico
quando lhe concede um papel de destaque em seu teatro.
Outorgando ao rústico (e sobretudo ao pastor) um lugar
central no seu teatro [...] a verdade é que o dramaturgo português vai
potenciar enormemente as virtualidades estéticas da figura do rústico
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e da cultura do campo [...] e é por isso que o campo vicentino não se
identifica com o campo estilizado e acrônico da tradição clássica,
âmbito de que alguns pastores de Encina ainda parecem próximos;
não se identifica também, completamente, com a rusticidade lôbrega e
risível que comparece ainda em Encina [...] e, sobretudo, em
Fernández: no dramaturgo português , o campo é mais um espaço de
valores com uma configuração geográfica e histórica em que se
movem, por via de regra, vilões investidos de uma dignidade que,
podendo não ser imediatamente patente, acaba no entanto por vir ao
de cima, numa estratégia de nobilitação que os autores salamantinos
não levaram até as últimas conseqüências” (BERNARDES, 1996:
117-118).
Dois grandes gêneros do teatro francês e catalão que chegam até Gil Vicente são a
farsa e a moralidade. O primeiro assenta-se no desenvolvimento de situações que poderiam
oscilar entre o insólito e o verossímil, mas tendo sempre como tema a burla e o engano.
Situada em algumas cidades do Norte da França, a farsa acabaria por se generalizar por
todo o sul da Europa entre os séculos XIV e XV. Segundo Bernardes (1996), numa fase
de maturação bastante avançada na qual se fazem presentes tendências de
desenvolvimento do abstrato para o concreto e do puramente recreativo para
exemplaridade, que Gil Vicente vai incorporá-la ao seu teatro.
O segundo gênero, a moralidade, se aproxima do mistério pelas personagens que
dela participam (Anjos e Diabos) ou pela própria extensão do texto. Contudo, reitera
Bernardes (1996), enquanto o mistério se baseia na representação de Deus para a
edificação dos homens, a moralidade tem por objetivo mostrar o Homem, em termos de
essência e em termos de conduta. Embora ligado à farsa pela sátira, subsiste entre os dois
gêneros uma diferença fundamental enquanto a sátira farsesca incide sobre
circunstâncias concretas da vida, a moralidade pressupõe uma visão estilizada e
paradigmática do Homem, concebido à margem do Tempo. Assim se explica a importância
decisiva de que nela desfruta a alegoria...” (BERNARDES, 1996: 132-133).
Além destas heranças e influências, vale ressaltar as fontes que inspiraram o
teatro vicentino, que nos permitirá, ao longo deste trabalho, aliadas a outras questões,
demonstrar as opções estéticas, os substratos culturais, os valores preconizados e
defendidos pelo dramaturgo português, presentes na sua obra.
Segundo Teyssier (1982), dentre estas fontes inspiradoras, em especial encontram-
se as populares, que, transmitidas através do folclore e da literatura, certas lendas, certos
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escritos antigos sugeriram ao dramaturgo cenas inteiras.
A tradição popular é veículo, como se sabe, de um sem número de contos e
narrativas orais que mantêm durante séculos uma recôndita, passando de boca em boca na
seqüência de um caminho que se conserva geralmente subterrâneo raramente aflorando
à superfície da História. Gil Vicente encontrou nela várias vezes a sua inspiração. Um bom
exemplo que nos Teyssier (1982) é a Farsa de Inês Pereira (1523), esta se enviuvou
depois de uma experiência matrimonial desastrosa com um escudeiro, casa-se com um
lavrador, seu primeiro pretendente, decidida a enganá-lo. Na última cena da Farsa vai
procurar montada às costas do marido, um eremita, antigo apaixonado. Assim fez a
encenação de um provérbio: Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”.
Para levar à cena esta farsa Gil Vicente se inspirou numa narrativa popular: “O Conto de
Domingos Ovelha”.
Enfim, um traço marcante e de grande importância para a compreensão da obra
vicentina é que o autor, além de buscar nas fontes populares inspiração, lança sobre a
sociedade quinhentista um olhar crítico e satírico. Ele fustiga toda a sociedade de seu
tempo, desde o papa, o rei e o alto clero, até a mais baixa classe social: feiticeiros,
alcoviteiros e agiotas. A galeria de tipos é riquíssima e variada; os vícios da época são
incontáveis e de toda a espécie: ele ridiculariza a empírica dos médicos; as práticas da
feitiçaria; o relaxamento dos costumes clericais; a simonia; a corrupção da família; a
exploração da nobreza do trabalho alheio.
Para Spina (1970), o que torna imorredouro o teatro vicentino é a visão total de uma
época complexa e grande na história da cultura ocidental. O seu teatro é uma visão da
sociedade de seu tempo em todos os pormenores e é também a visão da vida do homem na
sua totalidade, desde os mais prosaicos problemas da vida doméstica às mais dramáticas
situações morais.
É por tudo isso que a análise das personagens que compõem os três autos pode nos
levar à percepção dos valores, dos códigos de conduta, do compromisso político e das
opções estéticas de Gil Vicente diante de um momento histórico de profundas mudanças e
transformações. Vivendo às expensas reais, produzindo para a Corte, tendo esta como
público alvo, Gil Vicente construiu um teatro cômico, crítico e de reflexão.
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Devemos lembrar também que nosso dramaturgo faz desfilar nos autos
personagens-tipo representando grupos sociais portugueses do século XVI. Há que se
discutir aqui o conceito de representação. Tomaremos emprestado o utilizado por Roger
Chartier: a representação dando a ver uma coisa ausente. Entretanto, não é somente por ter
feito desfilar diante da Corte Portuguesa figuras que representam as mais diversas camadas
sociais, que Gil Vicente utilizou o artifício da representação. Hoje, passados mais de quatro
séculos, podemos ver nestas três peças vicentinas figuras teatrais que, com seus gestos,
movimentos, objetos, vestimentas, nos apresentam e representam segmentos sociais, assim
como o riquíssimo ambiente cultural em que foram criadas.
Quando Chartier (1990) defende a possibilidade de uma história cultural do social e
que esta tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma dada realidade social é construída, pensada, dada a ler; ele lança mão do
conceito de representação. E estabelecê-lo é uma tarefa que diz respeito às classificações,
divisões e delimitações que organizam o social como categorias de percepção e de
apreciação do real. Estas são variáveis de acordo com os grupos sociais ou os meios
intelectuais e são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. É
por isso que o presente adquire sentido, o outro torna-se inteligível e o espaço é decifrado.
Embora as representações do mundo social aspirem à universalidade de um
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as
forjam; afirma o autor:
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar,
para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta
investigação sobre as representações supõe-nas como estando
colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para
compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe ou tenta
impor a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o
seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de
delimitações não é, portanto, afastar-se do social [...], muito pelo
contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais
decisivos quanto menos imediatamente materiais(CHARTIER, 1990:
17).
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Daí a análise dos autos vicentinos nos mostrar o universo social apreendido e
representado pelo artista, cuja concepção deste mundo se pretende dominadora, impondo
seus valores aos demais segmentos sociais. Tal situação se configura quando atentamos ao
fato de que o nosso dramaturgo era nada mais nada menos que um “funcionário” real e
vivia às expensas dos monarcas portugueses, D. Manoel e D. João III. Por isso, através dos
discursos das personagens pudemos detectar os valores defendidos e o compromisso
político estabelecido pelo artista com seu público e obviamente com seus mecenas. No
entanto, estas circunstâncias não limitam a sua criação e como toda obra de arte, o
dramaturgo nos apresenta uma certa liberdade no ato criador.
Assim, nossas reflexões tiveram como preocupação fundamental relacionar a
personagem construída artisticamente com o recurso da tipificação ao contexto que
envolve os grupos sócio-profissionais que esta representa. Pois acreditamos que a obra traz
as marcas do tempo em que foi produzida. Daí, a necessidade de fazer as devidas conexões
entre o teatro vicentino e o meio sócio-cultural que possibilitou o surgimento do mesmo.
Segundo Antônio Cândido (2000), o estudo da relação entre a obra e seu
condicionamento social tem seguido através dos tempos caminhos em direção oposta. No
século passado, procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam
do quanto de realidade ela conseguia exprimir. Esta visão foi desvalorizada e passou-se a
defender que a compreensão da mesma dependia das operações formais postas em jogo,
conferindo-lhe peculiaridades, tornando-a independente de quaisquer condicionamentos,
em especial, o social. Atualmente, sabe-se que a integridade de uma obra não permite
dissociar nenhuma dessas visões, e se pode entendê-la fundindo texto e contexto numa
interpretação dialética.
“... em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores
externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é
virtualmente independente, se combinam como momentos necessários
do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o
social) importa, não como causa, nem como significado, mas como
elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno” (CÂNDIDO, 2000: 6).
Por conseguinte, continua o autor, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou
da história sociológica, para alcançar um interpretação estética que assimilou a dimensão
social como fator de arte. Desta maneira o social se torna um dos muitos elementos que
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interferem na economia da obra, ao lado de outros tais como os psicológicos, religiosos,
lingüísticos e outros.
Nos deparamos, nos três autos, com as figuras representando segmentos sócio-
profissionais e conseqüentemente com a crítica vicentina às condutas destes no interior da
sociedade quinhentista portuguesa. O estudos destas peças nos levou a encontrar as opções
estéticas do dramaturgo, que, vivendo num momento de passagem do período medieval
para o moderno, utilizou-se essencialmente de elementos estéticos medievais, e, dentre
eles, a Sátira, baluarte dos três textos aqui trabalhados. Certamente, uma das razões para tal
opção, é que Gil Vicente escreveu para a Corte Portuguesa, ainda com valores medievais
muito arraigados: uma concepção elogiosa do mundo, a defesa de uma sociedade
hierarquizada, uma preocupação muito forte em preservar as instituições políticas e
religiosas, o gosto pelo coletivo e não pelo individual.
Haja vista que as três peças recebem a denominação de auto. De acordo com Spina
(1990), os autos, que assim foram chamadas estas representações teatrais peninsulares por
conterem um ato; eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou burlesco
- 52 -
mas preferencialmente devoto e com personagens alegóricas
2
. Os autos desenvolveram-se
ao longo da Idade Média e originaram-se do teatro religioso, adquirindo sua forma pica
na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI. Suas origens estão intimamente ligadas às
representações religiosas do teatro medieval (aos mistérios, aos dramas litúrgicos e às
moralidades), logo relacionadas ao teatro litúrgico europeu, embora, hoje, se tenha poucos
vestígios dessas representações anteriores a Gil Vicente, em Portugal e a Juan del Encina e
Lucas Fernandez, na Espanha.
Afirma o autor que, para se ter uma idéia da formação do auto e de sua evolução na
literatura peninsular, é necessário pensar na existência simultânea de um teatro profano,
cujos elementos vão-se infiltrando gradualmente no teatro litúrgico, propiciando a
transferência destas representações da igreja para a praça pública nos fins da Idade Média;
ampliando a primitiva feição religiosa do auto, contaminando-o de elementos satíricos.
2
A alegoria (grego allós = outro; agourein = falar) diz b para significar a. A Retórica antiga assim a
constitui, teorizando-a como modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou ornamento do discurso.
Retomando definições de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, entre tantos, Lausberg assim a redefine:
A alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do
pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo
pensamento” (HANSEN; 1986: 1).
Nesse sentido, ela é um procedimento construtivo, constituindo o que a Antiguidade clássica e cristã,
continuada pela Idade Média, chamou de “alegoria dos poetas”: expressão alegórica, técnica metafórica de
representar e personificar abstrações” (HANSEN; 1986: 1).
outra alegoria, contudo, que não se confunde com a dos poetas épicos greco-romanos e medievais
nem com a dos autores hebraicos no Velho Testamento. É a que se chamou “alegoria dos teólogos”,
recebendo muitas vezes as denominações de figura, figural, tipo, antítipo, tipologia, exemplo. A “alegoria
dos teólogos” não é um modo de expressão retórico-poética, mas de interpretação religiosa de textos
sagrados” (HANSEN; 1986: 1).
A rigor, portanto, não se pode falar simplesmente de a alegoria, porque duas: uma alegoria
construtiva ou retórica, uma alegoria interpretativa ou hermenêutica. Elas são complementares, podendo-se
dizer que simetricamente inversas: como expressão, a alegoria dos poetas é uma maneira de falar; como
interpretação, a alegoria dos teólogos é um modo de entender ” (HANSEN; 1986: 1).
Segundo Huizinga, a emoção religiosa tendia a transformar-se em imagens. O mistério parecia tornar-se
sensível quando revestido de uma forma representável. A necessidade de adorar o inefável sob formas
visíveis não cessava de criar novas figuras (HUIZINGA; s/d: 209).
Assim, todo o realismo, no sentido medieval, conduz ao antropomorfismo. Tendo atribuído uma
existência real a uma idéia, o espírito tem necessidade de vê-la viva, e consegue personificando-a. Desta
maneira, nasce a alegoria, que é diferente de simbolismo. Este exprime uma relação misteriosa entre duas
idéias, ao passo que a alegoria uma forma visível à concepção de tais relações. O simbolismo é uma
relação profunda do espírito, a alegoria é superficial. Ajuda o pensamento simbólico a exprimir-se, mas ao
mesmo tempo compromete-o, substituindo uma idéia viva por uma figura. A força do símbolo consome-se na
alegoria (HUIZINGA; s/d: 213).
De modo que em si mesma a alegoria implica, logo de início, a normalização, a projecção em
superfície, a cristalização. Além disso a literatura medieval tomou-a como um tema gasto da antiguidade
decadente (...) A alegoria raramente perde o ar de velharia e pedantismo. E no entanto o uso dela foi muito
do gosto do espírito medieval. De outro modo, como se explicaria a preferência que durante tanto tempo se
deu a essa forma?” (HUIZINGA; s/d: 213-214).
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Dentro deste quadro, segundo Spina (1990), Gil Vicente se manteve fiel à tradição
deste tipo de representação dramática. E o auge da carreira do dramaturgo corresponde aos
anos de 1517-1519, quando cria os autos das três barcas, do Inferno, do Purgatório e do
Paraíso e o Auto da Alma.
“...à medida que foi libertando da sugestão inicial do teatro de Juan del
Encina [...] Gil Vicente imprime uma tendência cômica ao seu teatro,
dando nascimento à farsa; em 1523, após palmilhar novas direções
estéticas, voltou à farsa novelesca para dar a sua mais acabada
criação artística com a Inês Pereira...” (SPINA, 1990: 18-19).
O teatro vicentino utiliza-se de uma estética medieval
3
para realizar a crítica à
sociedade portuguesa quinhentista. Desvendá-la e analisá-la faz parte deste trabalho, uma
vez que Gil Vicente, em plena “era” do Renascimento, opta por aquela e não por esta.
Refletir sobre a crítica dos textos vicentinos nos permitirá também desvendar o complexo
ambiente cultural em que eles foram produzidos.
Gil Vicente, não obstante vivesse em cheio na época renascentista, deixou-nos
3
Os autos vicentinos oscilam entre uma expressão gótica coerente e de pureza estreme, e, por outro
lado, uma acumulação de elementos heterogêneos dentro de quadros que os não integram funcionalmente,
como sucede no gótico flamejante, no plateresco e no manuelino” (SARAIVA & LOPES; 1975: 220).
A solenidade sagrada, cheia de sugestão litúrgica (Auto da Mofina Mendes), a força do pathos (o
arrependimento da Alma e as intervenções dos quatro Doutores), a majestade das invocações dos mistérios
divinos [...]; enfim, os contrastes admiravelmente conseguidos entre o espiritual e o carnal, segundo a
concepção da Idade Média [...] Entre todo o teatro medieval europeu, talvez esta faceta vicentina constitua a
mais elevada realização do ideal da arte gótica” (SARAIVA & LOPES; 1975: 220).
Se atentarmos, por outra banda, nos momentos realistas, notaremos o extraordinário vigor e certeza de
traço com que se desenham as personagens através de diálogos que vão direitos ao essencial.[...] E toda a
personalidade de Inês Pereira, ao longo da extensa peça a que serve de protagonista, resulta, além de
poderosamente saliente e definida, inexcedivelmente certa no seu comportamento psicológico. Os tipos agem
segundo a sua lógica e ritmo próprios, sem notas falsas. Notaremos também que a caricatura não é gratuita
nem artificiosamente conseguida: resulta da acentuação dos traços típicos. Da mesma forma, o cômico
nasce, naturalmente, quer dessa caricatura, quer do encontro das concepções diferentes e contraditórias
subjacentes ao comportamento de cada tipo social...” (SARAIVA & LOPES; 1975: 220-221).
Se considerarmos, enfim, a obra de Gil Vicente sob o aspecto poético, notaremos a sua diversidade de
tons, de temas, de atitudes e de gêneros. [...] No seu conjunto, os autos de Gil Vicente arrecadam um enorme
tesouro poético, resumindo toda a tradição peninsular nos seus diversos aspectos popular, clerical e cortês,
mas todos fundidos ao calor de uma sensibilidade enraizada na vida popular, aberta aos impulsos mais
pujantes da natureza e da sociedade” (SARAIVA & LOPES; 1975: 221).
Não obstante o uso do verso, Gil Vicente sugere toda a vivacidade da linguagem coloquial. O verso
não serve nele para marcar distância literária, a não ser em certas tiradas intencionalmente líricas ou
oratórias. Serve, sim, para valorizar a língua corrente, chamando a atenção do leitor para paralelismos ou
contrastes, enfim para tirar efeitos implícitos na fala quotidiana, tal como sucede com a maior parte dos
provérbios tradicionais.
Não se pode, aliás, falar de uma linguagem coloquial em Gil Vicente, antes de rias, de acordo com o
estilo das peças e com a condição social das personagens. Na época de Gil Vicente devia existir maior
diversidade idiomática, segundo não a diversidade das regiões, mas também a das condições sociais. O
dramaturgo acusa esta diversidade, variando a expressão fonética ou sintáctica, o vocabulário e as fórmulas
de tratamento conforme a origem social das personagens” (SARAIVA & LOPES; 1975: 222).
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também uma interpretação cristã do homem, tão evidente no sentido tradicionalista,
cavalheiresco e proselítico do seu teatro”. A esse respeito é Joaquim de Carvalho quem
escreve as melhores ginas sobre a índole espiritual do dramaturgo: sua concepção do
mundo foi teocêntrica; o seu ideal social hierárquico, e a sua ética a do asceta: desnudar
o homem e mostrar-lhe que a vida tem de ser sempre uma preparação par a morte
(SPINA, 1991: 78).
Ele teve a chance de entrar em contato senão direto, pelo menos indireto com a arte
renascentista, através de de Miranda que retornou da Itália em 1527 (e Gil Vicente
escreveu e estreou sua última peça em 1536), no entanto optou pela estética do teatro
medieval. Isto é, suas personagens não são na sua maioria indivíduos, exceto algumas:
como exemplo podemos citar Inês Pereira, farsa que recebeu o mesmo nome. Quase todos
os tipos representam grupos sociais.
Quanto ao enredo, não existe unidade dramática no teatro vicentino. Gil Vicente
não conseguiu encontrar a unidade dramática. No seu teatro abundam os tipos, não faltam
os caracteres, isto é: classes, mas não indivíduos, e sem indivíduos casos, mas não
problemas ou dramas [...] o indivíduo é criador, nele existe a perplexidade em face
de uma situação nova, só ele pode escolher entre alternativas” (SARAIVA, 1992: 115).
Entretanto, a estética medieval do teatro vicentino não foi utilizada por ele por falta
de opção. Esta tem história, foi elaborada num momento histórico preciso. E se o
dramaturgo português decide por ela e não pela estética renascentista, não foi por falta de
opção. Ele não vivia isolado sem a possibilidade de receber influências externas, Gil
Vicente o fez pelas razões que enumeramos acima. E, segundo Spina (1991), foi o
desprezo pelas categorias que deram a arquitetura e o equilíbrio do teatro clássico, a
sucessão das cenas como em teatro de revista, fazendo o público desfilar com todos os
seus vícios perante si mesmo, constituem todo o encanto da arte vicentina e as condições
necessárias para a sua perenidade” (SPINA. 1991: 86).
Desta maneira nossa análise volta-se também e como não poderia ser diferente
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para a Sátira
4
, pedra angular da construção dos textos vicentinos, e em especial a sua
presença na confecção das personagens dos três autos que aqui serão analisados.
Segundo José Augusto Cardoso Bernardes, o satirista, ao diagnosticar o
desconcerto do mundo, desloca os fatos do terreno do sério para o terreno do risível,
podendo inclusive recorrer ao riso como uma forma de diagnóstico e de desvelamento:
de fato, se se tiver em consideração que a desordem se define em
relação a um cosmos inteligível, regulado pela vontade de Deus, o riso
que incide sobre o caos recobre, afinal as alterações introduzidas pelo
Homem no plano do Criador. E, nessa medida, a sátira tanto serve
para desvelar o caos como para suscitar a lembrança do cosmos. É
neste último âmbito que o seu espaço de manobra se amplia,
permitindo-lhe uma gama muito ampla de práticas de denúncia, que
pode ir desde a representação mais ou menos documental até a
intervenção caricatural” (BERNARDES, 1996: 163).
Assim, no processo de elaboração das personagens vicentinas a técnica utilizada é a
tipificação. Enquanto realidade complexa, o indivíduo que é alvo de sátira tem um alcance
4
Modalidade literária ou tom narrativo, a sátira consiste na crítica das instituições ou pessoas, na
censura dos males da sociedade ou dos indivíduos. Vizinha da comédia, do humor, do burlesco e cognatos,
pressupõe uma atitude ofensiva, ainda quando dissimulada: o ataque é a sua marca indelével, a insatisfação
perante o estabelecido, a sua mola básica. De onde o substrato moralizante da sátira, inclusive nos casos em
que a invectiva parece gratuita ou fruto do despeito.
Não obstante a comédia grega primitiva ostentar traços de sátira [...], a sua criação deve-se aos Latinos
[...]. A princípio, empregava-se a prosa de mistura à poesia, e com Ênio a sátira passou a exprimir-se em
verso. Todavia, considera-se Lucílio o seu inventor, em razão de haver-lhe dado feição definitiva. Com
Horácio, a sátira adquire tons amenos, e, mais tarde, com Juvenal, envereda pelos caminhos do pessimismo,
ao mesmo tempo que atinge o ponto mais alto de sua evolução entre os Antigos: ambos forneceram os dois
modelos de sátira mais conhecidos doravante, a amena, sorridente, chamada horaciana, e a mordaz,
azeda, juvenaliana.
Identificada ao princípio com a poesia, ou o verso, posteriormente a sátira impregnou obras teatrais e a
prosa de ficção; a própria épica não escapou ao seu influxo. Durante a Idade Média, a cantiga de escárnio e
maldizer e o teatro popular atestam-lhe a presença. A partir do século XVI, o conto, a novela e o romance
entraram a cultivar a sátira, como na novela picaresca e de cavalaria, as narrativas filosóficas ou/e de
costumes, de Rabelais, Voltaire, Swift, Fielding e outros. O Romantismo, apesar do seu pendor para os
derramamentos sentimentais, permitiu o desabrochar de obras satíricas, mas com um à-vontade específico
das novas tendências em arte. E esta situação permanece até os nossos dias: a sátira continua a ser
cultivada, ainda que de maneira difusa e ocasional.
Em qualquer de suas variedades ou instrumentos, a sátira caracteriza-se por sua efemeridade: tende a
envelhecer e a perecer com os eventos que a suscitaram; obra de momento, desvanecida a conjuntura que
motivou o aparecimento, a sátira perde sentido e força à medida que o tempo passa. Raramente uma obra
satírica resiste ao desgaste dos anos: para tanto, é preciso que a causa do ataque satírico persista ao longo
de todas as transformações sociais, ou que a diatribe surpreenda uma falha inerente ao ser humano. Assim,
por exemplo, a tira dum Molière ou dum Gregório de Matos contra a hipocrisia da sociedade coeva
permanece viva numa série de aspectos.
Por outro lado, a postura satírica guarda o seu contrário: a sátira esconde um temperamento
hipersensível que se indigna contra tudo que ofenda as razões da sensibilidade e que a defende sob o escudo
da sátira; no interior do satírico sempre uma sensibilidade aguda que prefere a ofensiva ao recolhimento
para evitar de ressentir-se com o meio ambiente, ou que, malferida, se volta implacavelmente contra o
agressor” (MOISÉS; 1978: 469).
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perlocutivo limitado. Para tornar o tipo mais risível, é necessário despersonalizá-lo, afirma
Bernardes. Ou seja, é preciso reduzi-lo a um conjunto mínimo de traços constitutivos que
se centrem numa dimensão do seu ser: a profissão, um traço de caráter, uma tendência
de comportamento e outros.
É tendo em conta estes aspectos que deve ser analisada a expressão
da sátira no universo do teatro. Na medida em que aspira a funcionar
como forma de representação imediata do mundo, o teatro mostra-se
particularmente apto à incorporação de formas satíricas, denunciando,
repreendendo e, às vezes, propondo estratégias de rectificação em
nome de uma determinada norma. O teatro, tal como sempre o
conhecemos no Ocidente, terá mesmo nascido sob o signo da sátira
moralizante: na representação ridicularizada de costumes, nas
comédias da Grécia e de Roma, na inversão carnavalesca de valores
estabelecidos na Idade Média, na caricatura de certas figuras
estilizadas...” (BERNARDES, 1996: 165).
A Sátira vicentina não foge ao que foi exposto acima. Pois ele constrói um teatro
que pretende fazer rir, mas que ao mesmo tempo demonstra a intenção de incidir sobre a
realidade circundante, fazendo denúncias e propondo correções. Desta maneira, a Sátira
como base estética e postura política de nosso dramaturgo, nos permite, através da análise
das falas, dos comportamentos, dos símbolos, gestos e valores que elas portam, pontuar o
contexto sócio-cultural dos diversos grupos desprivilegiados como também das elites em
Portugal nas três primeiras décadas do século XVI.
Um outro ponto a ser destacado nos métodos de nossa análise, e que está
intimamente ligado à Sátira, é a farsa. Segundo Bernardes, no domínio da sátira o gênero
mais importante é, sem dúvida, a farsa,
“... o farsesco institui-se como uma espécie de princípio itinerante que
se associa livremente com traços genológicos muito diversos. E embora
devam destacar-se os efeitos muito particulares que resultam da sua
combinação com a sottie e com a moralidade, a farsa parece remeter,
por si só, para um idiolecto estético-ideológico muito próprio em que a
derisão e o sentido lúdico se aliam a uma particular obsessão pela
verdade dos valores e dos comportamentos (BERNARDES, 1996:
201).
Embora o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da
Barca da Glória não se constituem em farsa enquanto gênero e sim enquanto moralidades
(peças mais curtas cujas personagens são abstrações personificadas, com os vícios e
- 57 -
virtudes ou tipos psicológicos), estes autos contêm na sua estrutura pequenas farsas. Isto é,
apresentam uma série de tipos em desfile.
Além dessa importância da farsa para a nossa análise dos textos vicentinos,
devemos dar destaque à sua origem. Nascida na França nos finais do século XIV, a farsa se
firmou como gênero dramático mais pujante e definido de toda a Idade Média. Segundo
Bernardes, poucos gêneros como a farsa terão sido alvo de um processo de aferição
estética tão condicionado. Aparecendo ligada com um determinado tipo de gosto popular, a
farsa conheceu, no contexto da cultura européia, os sabores e os dissabores próprios desta
cultura. Seu apogeu coincidiu, em traços gerais, com um dos períodos em que a cultura
popular conheceu maior expressão.
O autor afirma que a prova disso está no fato dela ter sido um dos alvos
preferenciais dos ataques dos humanistas e renascentistas.
Os testemunhos dessa hostilidade, embora mais abundantes no
domínio da cultura francesa e italiana (naturalmente, por força da
dinâmica de ruptura de que se revestiu a afirmação dos novos padrões
estéticos nesses países) são também evidentes no domínio da cultura
peninsular, com casos como os de de Miranda que, a par de novos
metros e novas formas poéticas, tenta também empreender a renovação
das formas dramáticas” (BERNARDES, 1996: 201-202).
Para Bernardes (1996), a exata definição das características principais da farsa só
pode ser feita pressupondo a existência de uma farsa padrão, dada a amplitude da
variedade estrutural deste gênero. O suporte narrativo da ação, o pequeno número de
personagens, a curta extensão do texto, o vincado enquadramento das personagens na
realidade e, sobretudo, a importância do engano ou da burla. Contudo, dado à riqueza da
obra vicentina, a farsa se encontra associada a outros gêneros. Desta forma, ela se revela,
não enquanto gênero dramático rigorosamente delimitado,
mas enquanto princípio temático assente na representação codificada
de certas situações e na sua conseqüente derisão. De fato, parece lícito
concluir que, por inícios do século XVI e no contexto da dramaturgia
peninsular, a farsa não constituía um código técnico-dramático de
contornos rigorosos, mas funcionava essencialmente como um
princípio ordenador da disposição temática” (BERNARDES, 1996:
205-206).
Assim, a análise do teatro vicentino parte da Sátira enquanto opção estético-política
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do nosso dramaturgo e enquanto material para a confecção das personagens presentes nos
três autos, ligando-a com a farsa ou com as pequenas farsas presentes nestas peças, para
daí emergir os valores que perpassam o processo condenatório ou não das almas, tão
fortemente presentes na obra do dramaturgo português quinhentista.
A cultura popular, que por ter sua própria lógica, está aberta à heterogeneidade e
por isso permite que o sério se transforme em algo risível. Isto é, que os elementos que
constituem a cultura do Estado e da Igreja sejam destronados, rebaixados,
descaracterizados em seus temores. Possibilitando ao mesmo tempo a crítica e a reflexão
de uma sociedade que se no meio de profundas mudanças sociais, políticas, econômicas
e culturais.
Após estas considerações sobre o processo da realização de nossas análises,
apresentamos, agora, a composição geral deste trabalho.
Como foi visto, a Introdução se constitui em reflexões sobre as origens e
influências do teatro vicentino, considerando-o sob os diversos aspectos desde o indivíduo
Gil Vicente à sua opção estética e os valores por ele defendidos relacionados com o
compromisso político de nosso dramaturgo diante do Estado português.
O primeiro capítulo traz a análise das personagens. Compõe-se das figuras que são
condenadas às penas infernais.
No segundo capítulo continua-se a análise das personagens, mas neste, estão
aquelas às quais o nosso dramaturgo concede a possibilidade de salvação ficando, portanto,
no Purgatório, para purgar seus pecados e ascender, depois, ao Paraíso.
o terceiro capítulo se dedica à análise das personagens que embarcam no batel
divinal, conseguindo a eterna Glória.
O quarto capítulo é consagrado à análise da personagem, o Judeu, que, por o
encontrar nenhum lugar nos três espaços acima citados, vaga com seu bode às costas, sem
destino definido. Justificando assim, um capítulo específico para si.
Finalmente, apresentamos um sumário de conclusões, em que é possível constatar,
através das reflexões e análises feitas das personagens, os valores defendidos por Gil
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Vicente e o seu compromisso político com a Coroa portuguesa.
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ANÁLISE
DAS
PERSONAGENS
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CAPÍTULO I
A Barca do Inferno
Iniciaremos nossos estudos sobre os autos vicentinos tomando de empréstimo as
sensações de proximidade e de distanciamento de que fala Carlo Ginzburg (1987), em
relação a Menocchio: De vez em quando as fontes, tão diretas, o trazem muito perto de
nós: é um homem como nós, é um de nós... Mas é também um homem muito diferente de
nós” (GINZBURG, 1987: 12).
Ao analisarmos as peças de Gil Vicente às vezes o sentimos tão próximo de nós, tão
contemporâneo, que temos a certeza de que está escrevendo seus textos para serem
representados para nós. Mas em outros momentos ele se distancia tanto que se torna quase
ininteligível. E é tentando balisar estas sensações que começaremos nossas reflexões sobre
as personagens que desfilam nos três autos: O Auto da Barca do Inferno (1517), o Auto da
Barca do Purgatório (1518) e o Auto da Barca da Glória (1519).
Definir o que é um auto é algo bastante complexo, porque devemos levar em conta
uma vasta e rica produção teatral, que nenhuma teoria conseguiria de todo abarcar. A
intenção aqui não é a busca de uma definição, mas a pontuação de algumas características
que estruturam o atuo e que possibilitam uma melhor compreensão desta forma
dramatúrgica, que não foi criada por Gil Vicente, mas que ele a enriqueceu de tal maneira,
tornando impraticável qualquer designação definitiva que se possa pretender.
Segundo Aurélio Buarque de Holanda (1986), o auto é uma composição dramática
originária da Idade Média, com personagens geralmente alegóricas, como os pecados, as
virtudes e outros, e entidades como santos, demônio, etc, que se caracteriza pela
simplicidade da construção, ingenuidade da linguagem, caracterizações exacerbadas e
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intenção moralizante, podendo, contudo, comportar também elementos cômicos e jocosos
(HOLANDA, 1986: 202).
Entretanto, Maria Ema T. Ferreira afirma que, para Luciana Stegagno Picchio, a
nova invenção o auto a que se refere Garcia de Resende, é tanto para Gil Vicente como
para seu editor, um termo genérico que tanto designa as obras de caráter religioso quanto
as farsas mais profanas. “Mas ainda aprece estreitamente ligado à sua acepção original de
acto” (FERREIRA; 1965: 27).
Ao contrário de Picchio, Carolina Michäelis de Vasconcelos defende que a
designação auto ou aito como título de dramas, foi tirado por Gi Vicente das obras de dois
leoneses: “do aucto (grafia híbrida) del Repelón, de Juan del Encina e das Églogas III e IV
de Lucas Fernandez (pág. 51, 175 e 217) em que significa acção, movimento um diálogo
dramático representado” (VASCONCELOS; 1949: 472).
Spina (1990) está de certa forma de acordo com as considerações acima de Aurélio
Buarque de Holanda sobre auto. Para ele, os autos, que assim foram denominadas as
representações teatrais peninsulares por conterem apenas um ato,
eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou
burlesco (mas preferencialmente devoto e com personagens
alegorias), desenvolvidas ao longo da Idade Média, de cujo teatro
religioso se originaram, adquirindo sua forma típica na Península
Ibérica, entre os séculos XV e XVI. Suas origens se prendem às
representações religiosas do teatro medieval (aos ‘mistérios’, aos
‘dramas litúrgicos’ e às ‘moralidades’), portanto ligadas ao teatro
litúrgico europeu, embora não tenhamos hoje senão vestígios muito
imperfeitos dessas representações peninsulares anteriores a Gil
Vicente” (SPINA; 1990: 14-15).
Entretanto, Spina também concorda que a designação de auto utilizado por Gil
Vicente não era clara e a compilação da obra do dramaturgo de 1562 é imprecisa, muitas
vezes confusa, na nomenclatura das peças vicentinas. Fazendo eco a esta idéia está
Massaud Moisés (1978), afirmando que quando Gil Vicente denominava o Auto da Alma,
o termo auto era empregado como vocabulário genérico, equivalente à peça.
Diante disso, daremos destaques a alguns componentes comuns dos três autos que
fazem parte desta pesquisa. O primeiro deles é o tipo, Gil Vicente nos apresenta uma série
de tipos, alguns herdados da tradição, outros produtos da observação aguçado do
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dramaturgo.
Para Antônio José Saraiva (1992), o tipo
5
é definido segundo os atributos
específicos de um grupo,
abstraindo de qualquer variedade individual; o seu distintivo é
sempre exterior ao indivíduo: a linguagem – que distingue, por
exemplo, o negro ou a bruxa cigana; as frases de apoio
profissionais; o calão profissional que caracteriza alguns grupos;
certa maneira estereotipada de reagir... Em face de um mesmo
estímulo, a resposta de um tipo é invariável, visto que o distintivo de
classe é insusceptível de variação individual...(SARAIVA; 1992:
107).
Segundo o autor, os tipos graduam-se numa escala abaixo da qual está alegoria e
acima o caráter individual. Nas barcas do Inferno e do Purgatório, alguns destes tipos são
herança tradicional. O Parvo, a Alcoviteira, o Vilão, o Judeu, o Pastor e o Clérigo, estas
são recursos fáceis do cômico.
Além destes tipos tradicionais, encontramos no Auto da Barca da Glória,
excetuando as personagens que representam o Clero (o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o
Papa), tipos que representam os membros da alta nobreza (o Conde e o Duque) e da realeza
5
“Personagem convencional que possui características físicas, fisiológicas ou morais conhecidas de
antemão pelo público e constantes durante toda a peça: estas características foram fixadas pela tradição
literária (o bandido de bom coração, a boa prostituta, o fanfarrão e todos os caracteres da Commedia
dell’arte). Este termo difere um pouco daquele de estereótipo: do estereótipo, o tipo não tem nem a
banalidade, nem a superficialidade, nem o caráter repetitivo. O tipo representa se o um indivíduo, pelo
menos um papel característico de um estado ou de uma esquisitice (assim o papel do avarento, do traidor).
Se ele não é individualizado, possui pelo menos alguns traços humanos e historicamente comprovados.
1. criação de um tipo logo que as características individuais e originais são sacrificadas em benefício
de uma generalização e de uma ampliação. O espectador não tem a menor dificuldade em identificar o
tipo em questão de acordo com um traço psicológico, um meio social ou uma atividade.
2. O tipo goza de má fama: reprovam sua superficialidade e sua dessemelhança das personagens reais. Ele
é assimilado à figura cômica definida, dentro da perspectiva bergsoniana, como mecânica aplicada
sobre o vivo’ (BERGSON, 1899). Observa-se que as personagens trágicas possuem, quanto a elas, uma
dimensão muito mais humana e individual. Contudo, inclusive a personagem mais trabalhada se reduz
na verdade a um conjunto de traços, amesmo de signos distintivos, e não tem nada a ver com uma
pessoa real. E, inversamente, o tipo não é senão uma personagem que confessa francamente seus limites
e sua simplificação. Enfim, os tipos são os mais aptos a se integrarem à intriga e a servirem de objeto
lúdico de demonstração, na medida em que se caracterizam por sua idéia fixa que os põe em conflito
com as outras personagens (individualizadas ou típicas também).
3. As personagens tipos se encontram sobretudo nas formas teatrais de forte tradição histórica onde os
caracteres recorrentes representam grandes tipos humanos ou esquisitices com os quais o autor
dramático se às voltas. Historicamente, o surgimento dessas figuras estereotipadas se explica com
muita freqüência pelo fato de que cada personagem era interpretada pelo mesmo ator, o qual elaborava,
ao longo dos anos, uma gestualidade, um repertório de lazzi ou uma psicologia original. Certas
dramaturgias não podem se privar dos tipos (farsa, comédia de caracteres). Às vezes, a representação
do típico, isto é, do genérico, do ‘filosófico’, passa a ser uma reivindicação do dramaturgo” (PARIS;
1999: 410).
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(o Rei e o Imperador), certamente estes últimos foram criados através da observação
pessoal do autor.
Estes vários tipos saltam para o palco como personagens à procura
de um autor, buscando qualquer ocasião em que possam manifestar-
se. Um tipo, como foi dito, não é susceptível de criar um conjunto
dramático. O drama é o problema em que o indivíduo se debate; o
tipo é o hábito, a coisa feita, a condenação; é do indivíduo a parte já
petrificada, exteriorizada...” (SARAIVA; 1992: 111).
Além do tipo, os três autos aqui estudados apresentam personagens fixas como o
Anjo e o Diabo que comparecem também no Auto da Alma e no Auto da Feira.
Exercendo ambos a função de juízes implacáveis diante dos pecadores.
Da Costa, no livro O Teatro através da história, afirma que os diabos, tanto no
teatro medieval quanto na dramaturgia vicentina, não são personagens unívocas, fechadas e
inteiriças como representações do mal. São, ao contrário, abertas e ambíguas.
Falam dos desejos humanos e da aspiração ao conhecimento,
estimulam a rebeldia em relação à propriedade, às réguas e aos
interditos sociais. O Diabo diz ao homem simples: ‘Vai e toma o que
também te pertence a propriedade das riquezas e do saber não é
de ninguém’. Os anjos e as forças do bem dizem aos homens de
posses e de poder: ‘Distribui parte de tuas riquezas, não as queiras
como excessivo apego, piedoso e não oprimas os pobres
(NUÑEZ et alli; 1994: 37).
Sendo assim, o Diabo é a personagem que pronuncia as mentiras e os valores
falsos. O que se quer rejeitar deixa-se à defesa empreendida pelos diabos. Desta maneira, o
que o Diabo defende (em especial no Auto da Alma) é o que o bem condena.
Mas a técnica de composição trabalha com uma ambigüidade que
devia provocar efeito também ambíguo. A confirmação devota do
temor a Deus talvez convivesse, em alguma medida, com a aceitação
do desejo de felicidade terrena no modo como o público recebia
aqueles espetáculos, em parte religiosos, em parte profanos
(NUÑEZ et alli; 1994: 37).
Outro aspecto da estrutura do teatro vicentino e em especial, das três barcas é a
ausência de unidade dramática. Segundo Saraiva (1992), como no teatro de Gil Vicente
não indivíduos e sim tipos, não existem problemas, conseqüentemente, não dramas.
Pois o indivíduo é criador, nele existe a perplexidade em face de uma situação nova,
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só ele pode escolher entre alternativas.
Daí, o problema ser exterior às personagens. Assim, quando o problema do destino
eterno é posto nos autos das barcas, os tipos permanecem fiéis a si próprios e as respostas
aos estímulos sempre iguais. Desta maneira se confirma, segundo Saraiva (1992), que os
tipos se tornam insuscetíveis de uma reação individual, não estereotipada, variável. Para
eles, o problema que a situação de salvação e/ou condenação coloca, nem sequer existe,
porque só pretendem subsistir conservando, mesmo na vida pós-morte, a sua maneira típica
de ser. Nenhuma das personagens pensa em deixar de ser o que é.
O arrependimento, que é, no fundo, uma crise e uma mutação da
personalidade, não existe aqui, onde apenas aflora a decepção de
quem os cálculos errados. A questão suprema do Céu e do
Inferno não consegue despertar nestas criaturas o indivíduo, a
perplexidade, a responsabilidade e a consciência de um problema. O
problema existe para nós, leitores precisamente no jogo destas
personagens com o seu destino, a que elas permanecem cegas, de
certa maneira, à margem, incapazes de o viverem conscientemente
(SARAIVA; 1992: 122-123).
Quanto ao tempo, este é inerte e está paralisado. Visto que a ação que se desenrola
nos três autos se apresenta esquematicamente através da repetição. Pois o que se verifica é
um desfile de figuras, que sucessivamente comparece diante do Diabo e diante do Anjo,
respectivamente. A imobilidade destes autos tem dois eixos: o primeiro advém de um
resultado que está dado a priori (a condenação ou salvação). O segundo constitui-se sob
a forma de um tempo estático, definido em uma estrutura, em que cada novo movimento
engendra-se a partir do mesmo ponto no qual o anterior se instaura e no mesmo sentido
que ele percorrera” (NUÑEZ et alli; 1994: 37).
Por isso, a escolha destes três autos não se faz de maneira aleatória. Apesar da
especificidade de cada um, existem fios condutores que os ligam, possibilitando uma
compreensão maior dos mesmos quando são analisados concomitantemente. Primeiro, eles
foram produzidos consecutivamente (1517, 1518 e 1519), o que nos permite perceber e
pontuar estruturas semelhantes entre eles, e caracterizando-os como moralidades
6
.
Segundo, estas peças comportam uma geografia celestial presente no imaginário medieval
6
Segundo Wilhelm Creizenach, por “moralidades” os historiadores da literatura designam aqueles dramas do
final da Idade Média e da época da Reforma, em que os portadores da ão são exclusiva ou
predominantemente idéias abstratas personificadas (CREIZENACH apud FERREIRA, 1965: 35).
- 66 -
desde o século XII: Paraíso, Purgatório e Inferno. Terceiro, apesar do aspecto religioso
perpassar as mesmas, o que prevalece nelas são as críticas sociais aos diversos grupos,
profissões e cargos, representados pelas personagens-tipo. Quarto, a condenação ou
salvação das personagens estão intimamente ligadas aos valores, à postura política e à
escolha estética de Gil Vicente, na confecção de sua obra, por um lado. Por outro, nos
permite refletir acerca do medo, da esperança, dos comportamentos e atitudes dos diversos
segmentos sociais representados, num momento de profundas mudanças e
transformações. Quinto, nos três textos o movimento das figuras-tipo é praticamente o
mesmo. Inicialmente, elas dirigem-se à barca do Inferno, depois vão em direção à do
Paraíso. O terceiro movimento (de retorno) é que difere em relação a cada uma delas. No
Auto da Barca do Inferno, as personagens embarcam para a terra dos danados. Na do
Purgatório, elas não embarcam em nenhum dos batéis, purgando na ribeira seus pecados.
Finalmente, na terceira barca, a do Paraíso, elas são salvas por Cristo no último momento,
um pouco antes de adentrarem a barca do Inferno.
Portanto, a análise das personagens trilha um caminho que tenta desvendar estes
valores e o compromisso estético-político do nosso dramaturgo com o Estado Português.
Tentaremos perceber e pontuar tudo isso no processo de condenação/salvação das almas,
uma vez que os autos foram construídos sobre a noção de pecado e do destino destas.
Algumas personagens entrarão no batel que as conduzirá ao Inferno, outras ficarão no
Purgatório, e outras embarcarão em direção ao Paraíso.
Apesar da análise enfocar as personagens, para uma melhor compreensão de nossos
estudos sobre os autos, é importante que façamos um pequeno resumo de cada um deles.
No Auto da Barca do Inferno, as personagens desfilam, primeiro diante da barca dirigida
pelo arrais infernal, vão em seguida para a barca do Céu buscando a salvação, mas não a
encontrando, retornam à primeira barca. Todas elas portam objetos que representam os
diversos segmentos sociais aos quais pertenceram ou profissões que exerceram em vida,
todas elas ligadas ao universo citadino. Nesta peça, quase todos os indivíduos são
condenados ao “fogo eterno”, excetuando o Parvo e os Quatro Cavaleiros da Ordem de
Cristo que por isso serão estudados juntamente com o grupo das personagens do Auto da
Barca da Glória, na qual todas são salvas. Assim, interessa-nos avaliar as razões pelas
quais o autor coloca na mesma embarcação, sem nenhuma reserva, figuras representando
as diversas profissões e os diferentes segmentos sociais. Vale ressaltar uma terceira
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personagem, o Judeu, que a ela dedicaremos um capítulo, uma vez que não encontra lugar
definido em nenhuma das três barcas.
A segunda embarcação, a do Purgatório, nos apresenta personagens ligadas ao
tecido camponês. Nela todas as almas, igualmente à da barca primeira, portam objetos que
simbolizam profissões e grupos sociais.Mas, ao contrário da barca do Inferno, as
personagens vagam pela ribeira purificando-se para depois embarcarem para o Paraíso. No
entanto, duas personagens têm lugar definido: um Menino que por sua tenra idade e
conseqüentemente, por ser inocente, embarca no batel glorioso. E um Taful que ganha o
Inferno, sem que lhe dêem a possibilidade de salvação. A primeira figura será analisada
juntamente com os da Barca da Glória e a segunda comporá o grupo dos condenados às
penas infernais.
A terceira e última peça a ser analisada será o Auto da Barca da Glória, ela traz
alguns traços peculiares que a diferem das duas primeiras. As figuras que aqui desfilam
representam as camadas dominantes da sociedade portuguesa quinhentista como o Conde,
o Duque, o Rei, o Imperador, o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa. Estas personagens
são conduzidas pela Morte perante o Anjo e o Diabo, arrais das barcas do Céu e do
Inferno, respectivamente. Porém, ao contrário das outras duas e de qualquer expectativa de
leitura, todas as almas se salvam, apesar dos pecados cometidos por elas durante sua
existência na Terra e quem as salva não é nada menos que o próprio Cristo. Demonstrando,
assim, o compromisso do artista, Gil Vicente, com os mecenas que o patrocinaram, os reis
portugueses, D. Manuel e D. João III.
Por isso, nossa análise consistirá na constituição de quatro grandes grupos. O
primeiro deles, o dos condenados, será composto por todas as personagens que sofrerão
como castigo as penas infernais, por isso, englobará as seguintes figuras do Auto da Barca
do Inferno: o Fidalgo, o Onzeneiro, a Alcoviteira, o Sapateiro, o Frade, o Enforcado, o
Corregedor e o Procurador. A ordem de desfile destas personagens foi alterada, não
seguindo a que se apresenta no texto, devido às necessidades do estudo em questão.
Comporá também este quadro o Taful, que, mesmo não pertencendo à Barca do Inferno,
pois aparece na do Purgatório, mas devido sua condição de passageiro do batel que conduz
à terra dos danados, comparecerá junto a estes.
No segundo grupo, comparecerão todas as personagens do Auto da Barca do
- 68 -
Purgatório excetuando o Taful e o Menino. Haja vista que foi concedido a estas a
possibilidade de salvação; purgando seus pecados no Purgatório para só depois conquistar
a glória eterna. O terceiro grupo será daqueles que se salvam. São todas as personagens do
Auto da Barca da Glória, o Parvo e os Quatro Cavaleiros da Ordem de Cristo da Barca do
Inferno e o Menino do Auto da Barca do Purgatório.
E finalmente, o que seria o quarto grupo é na realidade apenas uma personagem, o
Judeu, que, dada a situação sócio-cultural, não encontra um lugar no interior de nenhuma
das três embarcações.
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O FIDALGO
No grupo de personagens condenadas, a primeira a adentrar o palco é o Fidalgo,
representante da nobreza feudal
7
, que denuncia sua posição de privilegiado logo no início
7
Os nobres, ao contrário do clero, formavam uma casta definida pelo nascimento. Havia vários graus de
nobreza: os grandes nobres que exerciam a autoridade sobre regiões mais ou menos extensas (também
denominados de ricos-homens); os infações, ainda considerados de alta estirpe; os cavaleiros, homens
nascidos nobres, mas muitas vezes sem fortuna e, como o deviam trabalhar por causa do privilégio de
nascimento, sua situação tornava-se bem difícil, precisando, portanto, de algum tipo de rendimento.
Segundo Oliveira Marques (1987), estes foram “classificados” como segundo grupo dentro da nobreza
na Pragmática de 1340 e persistiram como designação teórica e prática durante todo o século de
Quatrocentos. Eles formavam, na realidade, a espinha dorsal da nobreza. Os cavaleiros deviam, por princípio,
pertencer à Ordem da Cavalaria, isto é, ser armados como tais segundo um ritual que vinha de tempos
antigos. Se muitos o eram, por ação de outros cavaleiros ou do próprio rei, é lícito supor que grande parte,
senão a maioria, apenas o fosse em espírito ou por simples ato administrativo (MARQUES, 1987: 247).
Por conseguinte, a nobreza de uma forma geral necessitava de algum tipo de rendimento para viver.
Assim, ser nobre pressupunha a posse de um patrimônio e conseqüentemente do poder de mando.
Todo nobre em princípio, era um senhor, isto é, possuía um patrimônio fundiário mais ou menos
extenso sobre o qual tinha direitos próprios de jurisdição e de cobrança de rendas e impostos. Esse
patrimônio garantia-lhe, igualmente, uma população de dependentes nobre e não nobres, em proporções
variáveis (vassalos, criados, homens, cavaleiros de casa, escudeiros de casa) que lhe estava subordinada por
vínculos simultaneamente pessoais e econômicos e que lhe concedia o substrato de recrutamento militar,
sempre que necessário... Nobre havia, ainda, que não possuíam qualquer senhorio, nem sequer uma quinta
de dimensões reduzidas. Era o que se passava com os ínfimos escalões da nobreza, nomeadamente com
muitos escudeiros, fidalgos pobres, vivendo permanentemente em casa dos seus senhores e deles totalmente
dependentes” (MARQUES, 1987: 237).
Como é sabido, a lei feudal concedia à nobreza amplos privilégios, um dos quais o de exercer justiça
própria nos senhorios. Se essa justiça abrangia tanto os feitos cíveis como o crimes e a todos os níveis,
dizia-se que o senhor possuía o mero e misto império. No mero império ou soberania pura, sem restrições,
incluíam-se a faculdade de impor as penas de morte, mutilação e desterro, enquanto o misto império se
limitava à faculdade de estabelecer penas menores, mormente pecuniárias, conquanto permitisse decisões
finais em pleitos cíveis” (MARQUES, 1987: 238).
Embora a tradição portuguesa reservasse ao rei o direito de apelação, a justiça maior e outras regalias,
até o século XIV, a tendência fora sempre para não interferir nas terras privilegiadas e para deixar à nobreza
plena liberdade de jurisdição. No entanto, afirma Oliveira Marques (1987), que no final do reinado de D.
Denis, a Lei de 1317 censurou os senhores por impedirem as apelações para o rei. A partir de então, a política
repressiva da Coroa acentuou-se. Foram proibidas novas honras e novos coutos (terras senhoriais, de justiça
própria).
A Carta Régia de 1321 determinou às autoridades que desfizessem as honras e os coutos ilegalmente
constituídos, ‘e não sofrades que nenhum, por poderoso que seja, que lhes ponha dês aqui em diante sobre
esto embargo’. A de 1324 ordenou às justiças do rei que entrassem nas honras e nos coutos ‘para prender e
fazer i direito e justiça, como nos outros lugares que não são honrados’. D. Afonso IV, ao subir ao trono, fez
citar à Corte todos os privilegiados para que demonstrassem os seus direitos e obtivessem a indispensável
licença de confirmação, o que a muitos foi negado. A lei de 1331 reiterou a de 1317, suprimindo em geral
todas as apelações para o senhor, a não ser em casos excepcionais. Seguiram-se, no mesmo sentido, os
textos legislativos de 1334, 1335, 1341, 1343, etc. Simultaneamente, e sentindo-se apoiado pela política
régia, os procuradores do povo aumentavam, em todas as reuniões de Cortes, o teor das suas queixas contra
a jurisdição senhorial(MARQUES, 1987: 239).
Os senhores regiam como podiam contra a política repressiva dos monarcas através de protestos, faziam
resistência passiva e às vezes até violentas. Em alguns momentos conseguiram afrouxar os laços do domínio
régio, mas com o passar dos tempos os reis
conseguiram o domínio absoluto sobre todos os
grupos sociais,
inclusive sobre a nobreza.
- 70 -
do diálogo com o Diabo. Este diálogo segue um movimento ascendente de crítica. Inicia-se
com o Fidalgo ridicularizando a Barca infernal, passando pela arrogância com que ele se
dirige ao Anjo até chegar ao ponto de, quando retorna à primeira barca, o Diabo o ameaçar
de espancamento.
Fidalgo “Esta barca onde vai ora,
Qu’assim está apercebida?
Diabo Vai pera a Ilha perdida
E há de partir logo essora.
Fidalgo Pera lá vai a senhora?
Diabo Senhor, a vosso serviço.
Fidalgo Parece-me isso cortiço.
[...]
E passageiros achais
Pera tal habitação?” (VICENTE, 1965: 222)
E também quando se dirige ao Anjo não se faz de rogado, faz saber a este também
da sua importância social.
“Que me leixeis embarcar:
Sou fidalgo de solar,
He bem que me recolhais.” (VICENTE, 1965:223)
Neste texto, o poder senhorial do nobre é simbolizado pela cadeira que seu criado
carrega. Ela representa fundamentalmente os vícios e abusos que à sua sombra se
praticavam.
No desenrolar do diálogo com o Anjo, é que podemos perceber a denúncia de Gil
Vicente dos abusos praticados por este grupo social em relação aos camponeses. Vetando a
entrada no céu de um elemento deste grupo e justificando este veto, o dramaturgo
português critica os costumes, os valores desta camada privilegiada. É ao arrais do Paraíso
que cabe a sentença final.
Anjo: “Não vendes vós de maneira
Pera entrar neste navio
Esse’outro vai mais vazio
A cadeira entrará,
E o rabo caberá,
E todo o vosso senhorio.
Ireis lá mais espaçoso,
Vós e vossa senhoria,
Contando da tyrannia,
- 71 -
De que ereis tão curioso.
E porque de generoso
Desprezastes os pequenos,
Achar-vos-heis tanto menos,
Quanto mais fostes fumoso.” (VICENTE, 1965: 224)
Podemos destacar nesta passagem do texto, os indicadores da posição privilegiada
do nobre português, nos finais do século XV. A cadeira simboliza o poder exercido pelo
Fidalgo, o rabo denuncia a vestimenta suntuosa, que a nobreza ostentava; e o senhorio
significa as propriedades que a fidalguia detinha.
Segundo Oliveira Marques (1971), o conceito atual de moda surgiu no decorrer do
século XIII. Isto ocorreu porque a moda está em relação direta com as transformações
econômicas que o mundo ocidental conheceu a partir do século XI. Elas caracterizam-se
por um aumento do comércio dos países europeus com regiões mais distantes. Disso
decorre que em termos sociais assistiu-se o nascimento de uma classe, a burguesia. O
desenvolvimento das atividades mercantis leva a população a se concentrar nos centros
urbanos. Assim, vivendo nas cidades, nobres e burgueses contactavam constantemente,
com outros nobres e burgueses. Ao sair da Igreja, ao tomar assento na Assembléia
camarária e ao participar nas festividades da sua cidade o burguês sentia sempre o desejo
de superar o seu concidadão. Pretendia chamar atenção sobre si através da qualidade de
tecido que envergava. Por outro lado, o nascimento da vida da Corte pôs os nobres em
presença uns dos outros, suscitando neles a competição na aparência.
O autor afirma que a indumentária do nobre medieval não mudou, especialmente a
forma do manto dos séculos XIV e XV. Era uma longa veste que se envergava sobre todas
as outras peças do vestuário, ampla, servindo principalmente para o frio e para a chuva.
Mas, enquanto o manto do século XIV parece ainda fazer parte da indumentária normal, os
mantos do século XV eram usados sobretudo como traje de cerimônia e como adorno de
cavalaria, afora aquele fim prático referido.
O rabo a que se refere o Anjo, é o manto que o nobre ostenta como “divisa” de uma
condição privilegiada. Este privilégio refere-se à sua situação econômica como também ao
privilégio de nascimento, pois através deste a nobreza se difere de um outro grupo também
abastado, a burguesia.
Quanto à cadeira, ela era o mbolo do poder exercido pelo nobre. Também é
- 72 -
importante ressaltar que a nobreza portuguesa, no fim da Idade Média não era, e
certamente nunca fora, homogênea. O Fidalgo da Barca do Inferno constitui uma pequena
porcentagem dentro deste grupo. Esta personagem representa a elite da nobreza que
detinha as principais funções governamentais, administrativas e militares que
açambarcavam as mais extensas e rendosas propriedades fundiárias, além de outros
rendimentos. Daí o Anjo dizer ao Fidalgo que na barca do Paraíso não cabiam nem o seu
poder (a cadeira) e nem o seu senhorio (as propriedades e funções) que detinha.
Oliveira Marques (1987) diz que além de todos os privilégios já enumerados acima,
esta elite tinha o direito ao título de dom (“dominus”); significando o domínio que o nobre
exercia sobre o seu senhorio, composto de terras e homens, sendo estes servos e vassalos, e
mantendo com os últimos uma relação feudo-vassálica; na qual o senhor protegia e
alimentava os seus vassalos e recebia destes, a fidelidade. No início do Auto quando o
Diabo se dirige ao Fidalgo, ele se utiliza do título para chamar o nobre até sua barca “O
precioso Dom Anrique”. Esta solenidade de tratamento traz implícita uma refinada ironia:
o Diabo no seu discurso, mostra por um lado, a importância da personagem na sociedade e
por outro a intimidade permitida ao arrais do Inferno, devido a sua conduta em vida.
Assim, Gil Vicente condena a soberba e a prepotência portuguesas, diante dos
“pequenos”, ou seja, dos pobres, grupo de desprivilegiados e explorados. Pela ótica
religiosa estes nobres cometem terríveis pecados, não por terem privilégios, mas pela
forma como se utilizam deles, menosprezando os mais “humildes”. Entretanto, o
dramaturgo português é, além de homem religioso, um homem da Corte, que compartilha e
defende em certo grau, a visão política do Estado absolutista. A grande nobreza vivia neste
momento, de certo modo, em conflito com a Coroa, que grande parte dos rendimentos
que desfrutavam, como as funções públicas que exerciam, dependia do arbítrio da mesma.
Desta maneira Gil Vicente criticava o comportamento deste grupo que tentava se
desvencilhar do domínio do Estado português.
Segundo Oliveira Marques (1987), a lei feudal concedia à nobreza amplos
privilégios, um dos quais o de exercer justiça própria nos senhorios. No entanto, a partir
dos séculos XIV e XV, a Coroa aumentou as restrições dela, quanto a estes direitos.
Porém, os senhores reagiam como podiam contra a política repressiva dos monarcas.
Protestavam, por seu turno, em cortes e fora delas, contra abusos das autoridades régias.
- 73 -
Faziam resistência passiva e, quantas vezes, ativa também...” (MARQUES, 1987: 239).
Por isso, Gil Vicente, através do Anjo, condena a nobreza e apóia a Coroa. De tudo isso,
poderíamos levantar a seguinte questão: defendendo e protegendo os mais fracos, o Estado
português estaria tentando evitar o confronto entre a nobreza e o povo, evitando neste
momento uma onda de revoltas camponesas e urbanas, que pudesse por em risco o seu
grande projeto: a Expansão Marítima. Desta maneira, ele se tornaria mais forte, uma vez
que estes conflitos poderiam enfraquecer a Coroa, que fazia das grandes navegações um
projeto nacional. A paz interna era fundamental para que Portugal continuasse a conquista
no além mar.
Perry Anderson em seu livro Linhagens do Estado Absolutista demonstra que a
constituição do Estado absolutista no Ocidente não visava nem o equilíbrio de forças entre
dois grupos dominantes, burguesia e nobreza, e menos ainda era um Estado burguês, tal
qual o conhecemos hoje. Embora o absolutismo fosse essencialmente um “aparelho de
dominação feudal recolocado e reforçado”, destinado a sujeitar as massas camponesas à
sua posição social tradicional; este também através da coerção foi capaz de disciplinar
indivíduos ou grupos dentro da própria nobreza
8
.
Após o seu diálogo com o Anjo, o Fidalgo reconhece que não entrará na Barca do
Paraíso, portanto lhe resta retornar à primeira embarcação. Assim, ele se obrigado a
entrar nela. Entretanto, antes de embarcar, diz ao barqueiro que deve voltar à Terra para
ver sua amada que quer se matar por ele. Sem titubear, o Diabo levanta o véu que encobre
8
O feudalismo como modo de produção definia-se por uma unidade orgânica de economia e dominação
política, paradoxalmente distribuída em uma cadeia de soberanias parcelares por toda a formação social. A
instituição do trabalho servil, como mecanismo de extração de excedente, fundia a exploração econômica e
a coerção político-legal, no nível molecular da aldeia. O senhor, por sua vez, tinha normalmente o dever de
vassalagem e de serviço militar para com o seu suserano senhorial, que reclamava a terra como seu domínio
supremo. Com a comutação generalizada das obrigações, transformadas em rendas monetárias, a unidade
celular de opressão política e econômica do campesinato foi gravemente debilitada e ameaçada de
dissociação (o final deste processo foi o ‘trabalho livre’ e o ‘contrato salarial’). O poder de classe dos
senhores feudais estava assim diretamente em risco com o desaparecimento gradual da servidão. O
resultado disso foi um deslocamento da coerção político-legal no sentido ascendente, em direção a uma
cúpula centralizada e militarizada o Estado absolutista. Diluída no nível da aldeia, ela tornou-se
concentrada no nível nacional’. O resultado foi um aparelho reforçado de poder real, cuja função política
permanente era a repressão das massas camponesas e plebéias na base da hierarquia social. Entretanto,
esta nova quina política foi também, por sua própria natureza, dotada de uma força de coerção capaz de
vergar ou disciplinar indivíduos ou grupos dentro da própria nobreza. Assim, como veremos, o advento do
absolutismo nunca foi, para a própria classe dominante, um suave processo de evolução: ele foi marcado
por rupturas e conflitos extremamente agudos no seio da aristocracia feudal, cujos interesses coletivos em
última análise servia” (ANDERSON; 1995: 19-20).
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toda a hipocrisia e lhe mostra a verdade. Quando o Fidalgo se encontrava moribundo, a
mulher amada estava flertando com outro de posição social menos elevada do que a dele.
A dose de cinismo utilizada pelo Diabo é que transforma o quadro numa situação
especialmente divertida.
Diabo: “Que se quer matar por ti?
Fidalgo: Isto bem certo o sei eu.
Diabo: Ó namorado sandeu
O maior que nunca vi!
[...]
Pois estando tu spirando,
Se estava ella requebrando
Com outro de menos preço.” (VICENTE, 1965: 225)
Enfim, o ponto alto da crítica e da humilhação é o momento em que o Onzeneiro
(aquele que empresta dinheiro a juro) entra na barca infernal e se espanta com a presença
do Fidalgo naquele lugar.
Onzeneiro: “Sancta Joanna de Valdez!
Ca he Vossa Senhoria?
Fidalgo: Dá ó demo a cortezia”
Diabo: Ouvis? Fallae vós cortez.
Vós, fidalgo, cuidareis
Que estais em vossa pousada?
Dar-vos-hei tanta pancada
C’hum remo que arrenegueis”
(VICENTE, 1965: 228)
Note que o fato de um alto dignitário ser humilhado, criticado e satirizado pelo
Diabo, chegando mesmo a ser ameaçado de espancamento, cria uma situação cômica.
Provoca o riso de um público que, em certo grau e de certa maneira, se identifica com o
comportamento, com os valores, com as atitudes desta personagem.
que não temos senão vestígios do público que assistiu as encenações das peças
vicentinas, certamente este riu de si mesmo, pois Gil Vicente tinha como função na Corte
criar espetáculos, organizar festividades para o divertimento da mesma.
Partindo de tal pressuposto, podemos aventar a possibilidade de um público que ri
de si mesmo, que seus valores e atitudes sendo satirizados ao máximo e ainda ri e
aplaude o espetáculo, causa em nós um grande impacto num primeiro momento.
- 75 -
Cremos que temos diante de nós uma situação bem complexa. Para tentar explicitá-
la é preciso entender que há, aí, o ponto de interseção entre duas culturas, a popular e a
erudita, que pode desfazer, em nós, a sensação deste impacto. Para melhor elucidar esta
situação retomemos Antônio José Saraiva e Oscar Lopes (1975), na classificação dos autos
vicentinos. Para estes autores, o fato deles alinharem diversas estruturas dificulta a
classificação dos mesmos.
Todavia, apesar da complexidade e dificuldades encontradas, eles consideram
que o teatro religioso de Gil Vicente pode ser caracterizado pelos autos de moralidade. E
por ser um grupo vasto podemos dividi-lo em dois. Um, os autos que a propósito do
nascimento ou da ressurreição de Cristo. O outro tipo é aquele cujas peças, sob a forma
alegórica, nos dão um ensinamento moral ou religioso. É o caso do Auto da Alma; do Auto
da Feira e dos três autos das Barcas, onde as virtudes são premiadas e os vícios castigados.
Estas peças estruturam-se como alegóricas; as personagens são
personificações alegóricas ou tipos reais caricaturados. Por vezes, o
esquema alegórico religioso parece oferecer um pretexto, um
quadro exterior para a apresentação no palco de sátiras ou
caricaturas profanas. É em grande parte o caso do Auto da Barca
do inferno, cujo propósito de sátira social [...] predomina sobre o de
edificação religiosa (SARAIVA e LOPES, 1975: 201).
Este segundo tipo é o que nos interessa neste momento. Porque nele se enquadra o
Auto da Barca do Inferno.
O satirista, em geral, e o escritor satírico, em particular, é o ser dotado de uma
hiperconsciência crítica em relação à vida. Ele não se limita a criticar a realidade; a sua
crítica envolve sempre três componentes essenciais: reprovação, revolta e ludismo. Não é
apenas um inconformado, mas também alguém que conhece o caminho da reintegração e
do reordenamento.
“A consciência da realidade de que mostras, todavia, não se
compagina com a inconsciência ou a resignação dos outros e, se
tivermos em consideração que a norma que dita os comportamentos
e as atitudes mentais resulta da consagração da maioria, facilmente
compreendemos que, para o bem ou para o mal, o satirista esteja
sempre do lado da minoria” (BERNARDES, 1996: 162-163).
Podemos perceber esta situação no próprio processo de condenação e/ou salvação
das almas, quando nosso dramaturgo mostra toda sua ira contra comportamentos tais como
- 76 -
os do Fidalgo e outras personagens, lançando-as no fogo do Inferno. Com isso, ele propõe,
mesmo que às vezes de maneira sutil, mudança de atitudes, valores e comportamentos. E o
mais importante, nem sempre através da seriedade, mas sim através do riso, é o que está
demonstrado no Auto da Barca do Inferno.
Para Bernardes (1996), ao diagnosticar o desconcerto do mundo, o satirista tem
toda a conveniência em deslocar os fatos do terreno do sério para o terreno do risível,
podendo inclusive recorrer ao riso como uma forma de diagnóstico e de desvelamento.
Gil Vicente está dentro do quadro descrito acima pelo autor. Pois, sendo o
dramaturgo da Corte portuguesa católica por excelência trata de algo tão caro à Igreja:
o processo de condenação/salvação. Fazendo este assunto transitar do terreno do sério para
o terreno do risível, quando expõe ao ridículo a prepotência, a tirania e o orgulho de um
grupo social, desvendando a hipocrisia, a mentira em que vivia o Fidalgo, descendo-o do
seu pedestal e fazendo-o remar um barco que, no primeiro momento ele o denominou de
cortiço e cujo significado é mais profundo do que se pode imaginar; pois, no contexto
social, dos Quinhentos, a nobreza era aquela que se distinguia dos demais grupos,
especialmente, por não poder realizar nenhum tipo de trabalho manual
9
.
Escritor satírico, Gil Vicente utiliza o recurso técnico da tipificação. Segundo
Bernardes (1996), enquanto realidade complexa, o indivíduo que é alvo de sátira tem um
alcance perlocutivo limitado. É necessário reduzi-lo a um conjunto nimo de traços
constitutivos que se centrem numa só dimensão do seu ser: a profissão, um traço de
caráter, uma tendência de comportamento, etc. Assim despersonalizado, o ‘tipo’ torna-se
mais vulnerável e, sobretudo, mais risível” (BERNARDES, 1996: 164). É o caso de todas
as personagens do Auto da Barca do Inferno. Elas são tipos que, em geral, representam um
segmento social ou uma profissão, portando sempre um objeto que os simboliza.
E é através da tipificação que Gil Vicente consegue transformar algo sério, como o
comportamento e a conseqüente condenação desta personagem em algo risível. está a
9
A última solução a que o homem nobre podia recorrer para se defender da miséria era trabalhar. E alguns o
fizeram, mas isso implicava uma renúncia à dignidade de nobreza. Os juízes de uma inquirição que percorreu
o País no princípio do século XIV encontraram nobres a trabalhar como se fossem vilões. Levaram o assunto
à decisão do rei e este decidiu que estes não hajam honra de filhos de algo enquanto o fizerem vida de
filhos de algo”. Mas distingues dois casos: o de trabalharem por conta alheia, ou por conta própria, mas sem
ofícios mecânicos... caso em que perderiam a nobreza, e o de trabalharem, por pobreza, na sua própria terra,
caso em que a conservariam.
- 77 -
lógica do riso popular. Destronar o que se encontra no cimo, rir de algo sério, sem, no
entanto, perder a sua profundidade e importância. E até ousaríamos dizer, sem tolher a
capacidade de reflexão diante de tal situação
10
.
Para que pontuemos, então, a relação que se estabelece entre os dois níveis de
cultura, o popular e o erudito, é importante destacar o público a que esta peça se destina.
Produzido para ser representado na Corte portuguesa, o teatro de Gil Vicente alcançou
tamanha popularidade e receptividade entre as elites portuguesas dos Quinhentos porque
conseguiu manter um diálogo profundo entre o texto, aí representado, e o público.
Bernardes (1996) afirma que o autor da escrita dramática conta sempre com a ativa
participação do receptor de sua obra. Mesmo sabendo que os modelos dessa participação
possam variar de contexto para contexto, a verdade é que o teatro é sempre uma forma de
mostrar o mundo. Num certo sentido, pode dizer-se que a concretização desse desígnio é
de todo inviável sem a predisposição de um público para ver” (BERNARDES, 1996: 166).
E acrescentaríamos para participar, inclusive.
Elaborada e estruturada num período de grandes transformações econômicas,
sociais, culturais e estéticas, a obra vicentina abarca um período contínuo e relativamente
longo (1502-1536). No qual podemos captar estas mudanças que são inegáveis como
também as permanências de um mundo relativamente coerente e estruturado.
É dentro deste contexto de um “mundo velho” que se desestrutura e o “mundo
novo” que vai nascendo, cuja dinamicidade faz surgir um universo de valores, de
comportamento e de atitudes que foi possível ao nosso dramaturgo transitar da esfera do
sério, do escrito, do hierárquico, do erudito para a do riso, a do oral e a do popular. Tendo
como fontes as culturas popular e folclorista, reelaborando-as e apresentado-as em forma
de texto dramático, para um público que pertence ao cimo da hierarquia social portuguesa.
Segundo Bakhtin (1993), a Idade Média separou a cultura popular do riso de tudo o
10
Daí depreende-se uma topografia específica de alto e baixo. Ao alto correspondem o céu, a cabeça, a
ascese, a ideologia oficial. Ao passo que o baixo é o domínio da terra, com o princípio da absorção (túmulo
e ventre) aliado ao nascimento, morte e ressurreição. O rebaixamento cômico faz a comunicação da via com
a parte inferior do corpo, ou seja, a satisfação das necessidades naturais. É ambivalente e regenerador, pois
precipita para a morte e para um novo nascimento. Por isso, o riso popular é um riso de festa, universal e
anfíbio, celebração do corpo, pois enterra e ressuscita coletivamente, ao mesmo tempo. Por esse motivo
também é sensorial, além de grotesco e cropológico” (VASSALO; 1993: 51).
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que era sério, oficial, da literatura elevada, tornando-a pertencente a um mundo extra-
oficial. E foi graças a tudo isso que esta cultura riquíssima se distinguiu por seu
radicalismo e sua liberdade excepcionais, por sua implacável lucidez, da cultura erudita.
Proibindo que o riso tivesse acesso a qualquer domínio oficial da vida e das idéias, o
mundo medieval, em compensação, conferiu-lhe privilégios de licença e impunidade nos
limites da praça pública, durante as festas e na literatura recreativa.
Mas foi durante o Renascimento, afirma o autor russo, que o riso na sua forma mais
universal e alegre, por uns cinqüenta ou sessenta anos, pela primeira vez separou-se das
profundezas populares e com a “língua vulgar” penetrou decisivamente no seio da grande
literatura.
E é somente nos limites deste quadro histórico-cultural que podemos entender que a
Corte portuguesa aceitou e “participou” desta peça, que lançou nos infernos um elemento
da nobreza. Pois é através desta personagem de alta estirpe que traz com ela
comportamentos e valores, que de certa maneira perpassam a Corte portuguesa como a
arrogância, o orgulho e a prepotência, que Gil Vicente condena-os, imputando ao Fidalgo
um castigo que está representado com a embarcação deste no Bayer infernal.
Daí estarmos convencidos que a utilização da sátira, aliada à tipificação e em um
período no qual o riso popular ascende à alta literatura, permitiu ao teatro vicentino a
crítica à elite portuguesa sem a “ofender”.
- 79 -
O ONZENEIRO
Duas personagens presentes no Auto da Barca do Inferno podem representar a
complexidade dos valores culturais que perpassam a sociedade portuguesa quinhentista.
Pois são necessárias e úteis ao corpo social, mas ao mesmo tempo são marginalizadas: a
Alcoviteira e o Onzeneiro. Como o Fidalgo, elas são tipificações que trazem as
características de suas profissões e portam objetos que são representantes de suas
profissões e de seus pecados.
Como foi dito anteriormente, a tipificação das personagens é próprio da sátira,
mas, além dela, podemos perceber no processo de confecção das personagens, na situação
destas no interior das peças e no diálogo que estabelecem com o Anjo e com o Diabo, o
seu gênero mais importante, a farsa.
No entanto, não podemos afirmar que o Auto da Barca do Inferno seja uma farsa.
Segundo Antônio José Saraiva e Oscar Lopes (1975), na forma mais simples, a farsa reduz-
se a um episódio cômico colhido em flagrante na vida da personagem típica. Tal é o caso
da peça Quem Tem Farelos? Por vezes os quadros sucedem-se, sem que haja qualquer
relação entre o início e o fim da peça. É o caso da Farsa dos Almocreves ou o do Clérico
da Beira. Mas pode ocorrer também um tipo de farsa onde os episódios e as personagens
desfilam em torno de um motivo central, embora lhe falte um processo de desenvolvimento
como no caso o Juiz da Beira.Enfim, aquelas consideradas mais desenvolvidas que são
histórias completas, com princípio, meio e fim. É o caso do Auto da Índia, do Auto de Inês
Pereira e o do Velho da Horta.
Nesses autos a história corre em diálogos e ações que se sucedem
sem transição; são como contos dialogados no palco, sem qualquer
preocupação de unidade de tempo e sem qualquer
compartimentação de quadros ou atos a marcar a descontinuidade
dos tempos... Poderíamos talvez classificá-los como autos de enredo.
Trata-se de forma mais desenvolvida, mais excepcional, da farsa
vicentina” (SARAIVA e LOPES, 1975: 202).
Embora estes autores reconheçam que o Auto da Barca do Inferno não seja uma
farsa, este auto encerra pequenas farsas, assim como o Auto da Barca do Purgatório e o
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Auto da Feira.
Outro estudioso que está em conformidade com os dois autores citados é José
Augusto Bernardes. Para ele Gil Vicente era um razoável conhecedor dos preceitos e das
potencialidades do gênero. A tal ponto que mais do que uma entre muitas formas
dramáticas, a farsa é, por excelência, o gênero em que o dramaturgo mais investiu em
termos de crítica e de efeitos recreativos.
Entretanto, Bernardes (1996) desenvolve mais profundamente a noção de farsa e
amplia a percepção acerca deste gênero. Inclusive afirmando que a escolha da farsa,
enquanto gênero e enquanto princípio de incidência geral, pelo nosso dramaturgo, parece
determinada não apenas por questões de formação e de convicções artísticas, mas também,
e talvez sobretudo – por questões ideológicas, no sentido lato da palavra.
É nesse sentido que pode compreender-se o fato de, em Gil Vicente,
a farsa funcionar quase sempre como forma de satirizar as
circunstâncias deformadoras de uma moral telúrica e rústica,
entendida como último reduto de autenticidade de um mundo em
acelerado processo de descaracterização [...] Assim se entende
ainda a linha de suave continuidade existente entre a farsa,
enquanto código técnico-dramático epocalmente determinado, e o
farsesco, enquanto linha estética e ideológica que excede os limites
do gênero para circular livremente pela quase totalidade do seu
teatro” (BERNARDES, 1996: 233-234).
Com base nestes pressupostos, ele considera legítimo afirmar que são personagens
de farsas todas as alcoviteiras. Ele enumera uma série de outras personagens que se
enquadram nesta situação. Mas para efeito dos nossos estudos nos interessa a
Alcoviteira da Barca do Inferno (Brízida Vaz), reconhecível tanto pelo afã moral de
realizar lucros, como pela linguagem hipocritamente estilizada de persuasão, com
abundante recurso a sufixos diminutivos e a imagens de doçura em que tenta enredar as
outras personagens que são seus “alvos” de conquistas. Por exemplo, quando ela se dirige
ao Anjo e tenta convencê-lo a embarcá-la no batel divinal.
Brízida: “Barqueiro, mano, meus olhos,
Prancha a Brízida Vaz.
[...]
Passae-me por vossa fé,
Meu amor, minhas boninas,
Olhos de perlinhas finas...” (VICENTE, 1965: 237)
- 81 -
São também personagens farsescas, na mesma medida, os condenados das Barcas,
eles próprios portadores de micro-seqüências centradas tematicamente no engano que,
no plano teológico-moral, acaba por ser o apego aos bens e ao poder da Terra
(BERNARDES, 1996: 234).
Neste aspecto, podemos destacar o Onzeneiro que lamenta sua morte por ter
deixado na Terra um bom quinhão de sua fortuna e que não pode levar para o além.
Onzeneiro: Hou da barca, hou lá, hou!
Haveis logo de partir?
Anjo: E onde queres tu ir?
Onzeneiro: Eu para o Paraizo vou.
Anjo: Pois cant’eu bem fora estou
De te levar pera lá:
Ess’outra te levará;
Vai para quem t’enganou.
Onzeneiro: Porque?
Anjo: Por qu’esse bolção
Tomará todo o navio.
Onzeneiro: Juro a Deus que vai vazio.
Anjo: Não já no teu coração.
Onzeneiro: Lá me ficão de rondão
Vinte e seis milhões n’hua arca”
(VICENTE, 1965: 227-228)
No diálogo entabulado entre o Anjo e o Onzeneiro, podemos perceber o apego aos
bens terrenos e a condenação teológico-moral quando a personagem argumenta com o
Anjo, que o símbolo de sua profissão e de seu pecado o bolsão está vazio. Embora
vazio, ele não pode entrar na barca que vai para o Paraíso, pois segundo o Anjo ele não o
está no seu coração. Situação que exemplifica bem a condenação de Gil Vicente a
profissões e grupos sociais ligados ao universo urbano, portanto portadores de valores e
comportamentos diferentes daqueles ligados ao campo.
Contudo, o Onzeneiro traz consigo o estigma da atividade que pratica, a usura. Por
isso, o Anjo mesmo reconhecendo que ele não pode levar para o além nada do que
amealhara em vida, constata que sua bolsa não cabe no batel divinal. E quem coloca termo
ao processo de condenação é o próprio Diabo.
Diabo: “Pois que onzena tanto abarca,
Não lhes deis embarcação.”
- 82 -
Como a nobreza este grupo também se apresenta bastante heterogêneo. Segundo
Oliveira Marques (1971), existe uma elite de mercadores que se dedicam sobretudo ao
comércio de importação e exportação. Por excelência este grupo se dedicava aos negócios
de tecidos. Eram os mais opulentos, os mais respeitados e os mais numerosos dentro da sua
classe. Existiam também mercadores que exportavam e importavam cereais, frutas, armas e
munições, objetos manufaturados e outros artigos. Com freqüência, dedicavam-se a várias
destas atividades simultaneamente.
O seu papel na sociedade hierarquizada de então nota-se pelo
lugar ocupado na procissão do corpo de Deus: seguiam
imediatamente antes dos escrivães, dos boticários e dos notários.
Exercendo sem peias o seu negócio, isentos das regulamentações
dos mesteirais, gozando de privilégios que podiam comprar com a
fortuna amealhada, os mercadores escapam à documentação que se
ocupa dos regimentos do trabalho e de posturas camarárias. Por
outra parte, não atingindo ainda o grau de merecimento que os
tornasse dignos de menção, escapam em geral à atenção dos
cronistas. Motivos porque a sua atividade tão difícil se torna de
analisar” (MARQUES, 1971: 144)
Dentro deste grupo tão diversificado e que pratica várias atividades de cunho
lucrativo está o Onzeneiro, aquele que empresta dinheiro para receber depois com juros (a
usura).
A usura. Que fenômeno oferece, mais do que este, durante sete
séculos no Ocidente, do século XIII ao XIX, uma mistura tão
explosiva de economia e religião, de dinheiro e de salvação,
expressão de uma longa Idade Média, em que os homens novos eram
esmagados sob os símbolos antigos, em que a modernidade trilhava
dificilmente um caminho entre os tabus sagrados, em que as astúcias
da história encontravam na repressão exercida pelo poder religioso
os instrumentos do êxito terrestre?” (LE GOFF, 1995: 9).
Segundo Le Goff (1995), a usura é um conjunto de práticas financeiras proibidas.
A usura é a arrecadação de juros por um emprestador nas
operações que não devem dar lugar ao juro. Não é portanto a
cobrança de qualquer juro. Usura e juros não são sinônimos, nem
usura e lucro: a usura intervém onde não produção ou
transformação material de bens concretos” (LE GOFF, 1995, 18).
Jacques Le Goff (1995) cita uma passagem de um texto que foi, segundo ele,
falsamente atribuído a São João Crisóstomo, datando provavelmente do século V, inserido
- 83 -
na segunda metade do século XII no código de Direito Canônico, referindo-se ao mercador
usurário...
De todos os mercadores, o mais maldito é o usurário, pois este
vende uma coisa dada por Deus, não adquirida pelos homens (ao
contrário do mercador) e, após a usura, retoma a coisa, juntamente
com o bem alheio, o que não o faz merecedor. Pode-se objetar:
aquele que aluga um campo para receber renda ou uma casa para
ter aluguel, não se assemelha àquele que empresta dinheiro a juros?
É claro que não. Antes de tudo porque a única função do dinheiro é
o pagamento de um preço de compra, depois o arrendatário faz
frutificar a terra, o locatário goza da casa, nestes dois casos, o
proprietário parece dar o uso de sua coisa para receber dinheiro, e,
de certo modo, trocar lucro por lucro, enquanto que, do dinheiro
emprestado, não podemos fazer dele nenhum uso; enfim, o uso
esgota pouco a pouco o campo, estraga a casa, enquanto o dinheiro
emprestado não se sujeita à diminuição nem ao envelhecimento
(LE GOFF, 1995: 28-29).
Temos a diferença entre a atividade de mercador que busca, em lugares distantes
produtos úteis à sociedade e que também corre todos os riscos, por exemplo: de sofrer o
ataque de piratas, perdendo assim a mercadoria e correndo risco de perder a própria vida. E
a atividade praticada pelo usurário que empresta dinheiro e recebe dinheiro em dobro, do
que aquela quantidade emprestada, assim ele vende o tempo, que a Deus pertence e
trabalha também com algo infecundo, pois o dinheiro gerando dinheiro não cria nada de
útil à sociedade: eis aí, a condenação do pensamento eclesiástico medieval ao usurário.
Por isso Gil Vicente coloca este tipo social na barca que se dirige ao Inferno
condenando desta maneira não apenas o homem, mas também a atividade que este pratica.
Eis o diálogo entre o Diabo e o Onzeneiro.
Onzeneiro “Oh que barca tão valente!
Para onde caminhais?”
Diabo “Oh que ma ora venhais,
Onzeneiro meu parente!
Como tardartes vós tanto?” (VICENTE, 1965: 226)
Na fala do Diabo está explícita a condenação do usurário. Primeiro, ele chama o
Onzeneiro de “meu parente”; um parentesco que foi estabelecido pela personagem devido
à atividade que praticou durante a vida. Em segundo lugar, o demônio chama a atenção
pela demora deste, pois ele o aguardava desde muito tempo. Isto é, o Diabo o espera
para conduzi-lo ao Inferno e deixa claro que por praticar a usura, não há para o Onzeneiro
- 84 -
a mínima possibilidade de salvação.
Onzeneiro “Mais quiesera eu tardar,
Na safra do apanhar
Me deu Saturno quebranto” (VICENTE, 1965: 226).
O Onzeneiro lamenta o poder ficar mais tempo na Terra, ganhar mais dinheiro,
pois o tempo é a chave-mestra do seu ganho: quanto mais tempo esperar para receber o
dinheiro emprestado, mais receberá. Daí a lamentação desta personagem, que não se
encontra nem um pouco preocupada com as penas infernais que a aguardam, é o
avarenta, segundo Gil Vicente, que neste momento, em que todas as almas receiam pelo
seu destino, esta só consegue se lembrar do dinheiro.
Entretanto, quando fica ciente para onde vai – pois o castigo só tem significado se o
castigado tiver consciência do mesmo como quase todas as personagens desta peça, se
recusa a entrar nela e se “encaminha” para a outra barca, aquela que se dirige ao Paraíso.
Mas o Anjo impede-lhe a entrada e explica o porquê do impedimento. Uma vez que o
bolção que ele tem não cabe na segunda barca, mas com certeza encontrará bastante espaço
na primeira, aquela que se dirige ao Inferno. Desta maneira é através do mbolo “bolção”
que nosso dramaturgo denuncia a profissão exercida por esta personagem e o condena por
isso. O “bolção” significa, a bolsa, o lugar onde o usurário depositava o dinheiro, que
segundo a ótica vicentina, era mal ganho. Pois para o pensamento eclesiástico medieval, o
usurário vende algo que não é seu: o tempo, que só a Deus pertence.
E quanto ao mercador, aquele que realiza apenas o comércio, Gil Vicente justificou
sua atividade, de acordo com os valores utilitários. Necessário se faz recordar que a
maioria dos mercadores que importavam e exportavam diversos produtos, também
praticavam a usura, isto é, emprestavam dinheiro a juro. Portanto o que está em julgamento
não é apenas a profissão dos indivíduos mas também suas atitudes e suas ações. Daí Maria
Leonor G. da Cruz (1990) afirmar que:
tudo leva a crer que o dramaturgo condena no homem do seu
tempo a cobiça e a falsidade, seja qual for a sua posição e o seu
ofício. Não é propriamente uma condenação do comércio, mas da
especulação comercial, olhada como um mal exterior ao sistema,
uma arte diabólica e considerada nociva pelos cânones da Igreja,
que espalha o seu fel por múltiplas ramificações da sociedade
portuguesa, atingindo todas as camadas sociais, de diferentes modos
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e com diferente intensidade e veiculando-se mais facilmente em
atividades de índole mercantil” (CRUZ, 1990, 251-252).
A atividade do mercador se encontrava interditada desde os tempos remotos da
Alta Idade Média. Segundo Le Goff (1993), o tabu do dinheiro desempenhou um papel
importante na luta das sociedades de economia natural contra a invasão da economia
monetária. Provocando horror contra o “vil metal”.
Este terror perante a moeda de metal precioso anima as maldições
contra o dinheiro dos teólogos medievais... e estimula a hostilidade
para com os mercadores, sobretudo atacados como usurários ou
cambistas e, mais geralmente, para com todos os que lidam com
dinheiro...” (LE GOFF, 1993: 88).
O que sustenta esta condenação é basicamente o ideal cristão da fraternidade entre
os homens: “Emprestai sem nada esperar em troca”.
Mais profundamente ainda, o homem deve trabalhar à semelhança
de Deus. Ora, o trabalho de Deus é a criação. Toda a profissão que
não cria é, pois, nociva ou inferior. Como o camponês, que criar
a colheita ou, pelo menos, transforma, como o artesão, a matéria-
prima em objetos. À falta de criar, é preciso transformar... Por isso
se condena o mercador que nada cria...” (LE GOFF, 1993: 90).
No entanto, entre os séculos XI e XIII, estas posturas de condenação em relação às
diversas profissões, mas em especial ao mercador, passa por profundas mudanças e a Igreja
que o condenava chega mesmo até a justificar a sua atividade. Para Le Goff (1993), o caso
do mercador é o mais célebre, o mais carregado de conseqüências. Esta profissão, durante
tanto tempo desacreditada, multiplicar as desculpas e os motivos para a prática da
mesma. Dentre as justificativas estão aquelas que decorrem dos riscos pelos quais os
mercadores passam; os investimentos de capital em empreendimentos a longo prazo; os
perigos devido ao acaso enfrentados por estes profissionais. Tudo isso gera as incertezas e,
portanto, são elas que justificam os lucros do mercador.
Entretanto, no século XVI, neste texto vicentino, o mercador ainda se apresenta
como desestabilizador de uma ordem agrária, representada por uma unidade simbólica no
seio dos valores medievais, difundidos pela Igreja e compartilhados em certa medida pelo
nosso dramaturgo. Acreditamos ser importante destacar sua presença em mais algumas
peças de Gil Vicente, a título de exemplo, para demonstrar os diversos tipos de condenação
e de punição pelas quais passam esta personagem – desde a condenação ético-moral,
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passando pela religiosa até a social.
O aspecto social da condenação da prática da usura presente no Auto da Barca do
Inferno merece destaque em outra peça vicentina, Floresta de Enganos. Enquanto na
primeira uma mistura dos tipos de condenação, na segunda, o social é muito mais
contundente. Nesta um Escudeiro disfarçado de viúva engana um mercador. O que nos
interessa neste texto, é a forma como Gil Vicente apresenta a personagem, o mercador
usurário, e o castigo que lhe é infligido.
Mercador: “Determino de fazer
Minhas casas muito bem;
Porque quem dinheiro tem
Fara tudo o que quiser.
Bem contados
Tenho vinte mil cruzados,
Ganhados d’onzenas tais
Com esses pobres misteiraes,
Que estavão necessitados” (VICENTE, 1965: 952)
Nestas estrofes o mercador diz qual é a sua profissão e como ganha dinheiro com
ela. A própria apresentação da atividade traz a condenação explícita do dramaturgo
português. Primeiro, o mercador diz que construirá suas casas e muito bem, pois tem muito
dinheiro, e quem o tem em abundância tudo pode. Segundo, ele diz de onde vem todo o
dinheiro, da onzena, isto é, da prática da usura. Entretanto, o empréstimo não é feito a
quem tem fortuna, mas sim aos pobres mesteiras necessitados. Aqui está a condenação
religiosa cristã, que tem na caridade uma de suas pilastras talvez a principal delas não
tolera o abuso aos fracos e oprimidos; difundida pela Igreja, mesmo que às vezes, nem
sempre seguida por ela mesma.
A crítica vicentina ao mercador é direcionada também à sociedade portuguesa
mercantilista, pois Gil Vicente defende uma sociedade baseada na agricultura, e condena
por isso mesmo uma atividade que considera improdutiva. Segundo esta ótica, o dinheiro
por si é infecundo, não é como a terra, que trabalhada bons frutos. O trabalho
agrícola produz frutos, enquanto o dinheiro nada produz, mas apenas cria a cobiça
desenfreada, que corrompe toda a sociedade. Desta maneira, o comércio se apresenta como
ganho fácil de dinheiro, fazendo as pessoas abandonarem suas atividades, principalmente o
campo, de onde vêm os alimentos, para praticar esta atividade, e assim, piorando uma
situação já tão difícil para o homem quinhentista.
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Aqui, podemos ver alegorizado na figura do Onzeneiro, o eco do pensamento
medieval que proibia e concomitantemente desprezava inúmeras profissões. Segundo Le
Goff (1993), por traz destas interdições encontramos as sobrevivências de velhos tabus das
sociedades primitivas. Dentre eles está o tabu do dinheiro, que representou um papel
importante na luta das sociedades dentro de um contexto de economia natural contra a
invasão da economia monetária.
“...Este terror perante a moeda de metal precioso anima as
maldições contra o dinheiro dos teólogos medievais [...] e estimula a
hostilidade para com os mercadores, sobretudo atacados como
usurários ou cambistas e, mais geralmente, para com todos os que
lidam com o dinheiro...” (LE GOFF; 1993; p. 88).
É por isso que o dramaturgo fustiga esta personagem, condenando-a ao Inferno,
como o Onzeneiro da Barca do Inferno, e concretizando o castigo através do logro, como
na Floresta de Enganos, uma vez que a viúva, a quem o mercador usurário emprestara seu
dinheiro, era apenas um miserável escudeiro. A moça que acompanha a falsa viúva mostra
ao usurário o quanto ele foi enganado. Então o Mercador reconhece que mereceu o castigo
por seu comportamento:
“Crede que quem foi tirano
tem seu dinheiro perdido...” (VICENTE, 1965: 955)
Poderia receber maior castigo que a perda do dinheiro? Avarento como é, segundo
a ótica vicentina, não existe sofrimento maior nem melhor que este.
A terceira peça de Gil Vicente que representa o mercador no seio da sociedade
portuguesa do século XVI é o Auto da Índia, uma farsa na qual o dramaturgo português faz
uma crítica aos valores mercantilistas da sociedade quinhentista portuguesa. Nesse texto,
ele satiriza o casamento, o sonho de enriquecimento fácil com as viagens ultramarinas.
Aqui o Mercador enriquece com o comércio e não com a prática da usura. A personagem
principal, a mulher, fica sozinha em Lisboa, enquanto o marido parte para a Índia em busca
de riquezas. Na ausência dele a esposa mantém relações adúlteras com dois amantes, mas
quando o marido retorna da viagem, ela se comporta como se nada de diferente tivesse
acontecido na sua ausência, e ainda mente que chorou todo o tempo. Para o esposo é
cômodo acreditar em tudo o que a esposa diz.
No entanto, para nós, o que merece maior destaque nesta peça é a denúncia que o
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dramaturgo faz do comportamento do português nas terras do além mar, diante do
“inimigo” da Igreja (o infiel) e da coroa (o “mercador estrangeiro”).
Marido: [...]
“Fomos ao rio de meca,
Pelejamos e roubamos
E muito risco passamos
À vela, e árvore sêca.” (VICENTE, 1965: 327)
Nesta passagem o próprio mercador diz o que faziam (ele e seus companheiros) no
Oriente, “pelejamos” e “roubamos”. Segundo Paul Teyssier (1982), o Auto da Índia
afigura-se um contraponto das idéias, da moral corrente e do compromisso do Estado
português com o expansionismo. Em tudo isso está o reverso do mito dos
Descobrimentos. Os heróis são reduzidos às dimensões da humanidade mediana e as suas
mulheres fazem deles maridos atraiçoados enquanto estão fora” (TEYSSIER, 1982: 67).
Como então entender que um poeta da corte, cuja perspectiva ideológica se
aproxima e às vezes ase confunde com a do Estado português, possa criticar ou melhor
denunciar o “mito do descobrimento”, algo tão caro ao monarca? A resposta está no gênero
literário, que constitui esta peça, a farsa. Segundo Paul Teyssier (1982),
a forma elaborada e disciplinada da chacota carnavalesca é a
farsa. Convém não esquecer. As ações que constituem a sua trama
podem ser as mais imorais que é possível. Por definição, isso não
tem importância. A farsa situa-se fora da ordem e da harmonia. É a
imagem do mundo às avessas [...] O ‘mundo às avessas’ da tradição
popular estava ainda vivo em Portugal do primeiro terço do século
XVI. Era tolerado pelo rei e pela Igreja. Foi essa tolerância que
permitiu a Gil Vicente, fiel servidor do monarca na sua qualidade de
poeta de corte, passar além da ordem estabelecida sem provocar
escândalo...” (TEYSSIER, 1982: 172-173).
Se considerarmos que a farsa consiste no exagero do cômico graças ao emprego de
processos grosseiros, como o absurdo, as incongruências, os equívocos, os enganos, a
caricatura, o humor primário, as situações ridículas; então podemos entender que a
denúncia do nosso dramaturgo não perde o valor, mas perde a intensidade. Pois o ridículo
aqui, incitador do riso, não é o fato de o mercador ter pilhado e roubado no além-mar, mas
o fato de ser vítima do logro, do engano que lhe infligiu sua mulher adúltera.
No entanto, isto não resolve de todo o problema, uma vez que a crítica ao
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comportamento do mercador português em terras distantes foi feita. Poderíamos então ir
um pouco mais longe e levantar a seguinte questão: se Gil Vicente era o dramaturgo da
Corte, “servidor fiel do monarca”, se ele arrisca a criticar através desta peça o “mito do
descobrimento”, não seria cabível acreditarmos que, satirizando, ironizando um mercador,
que foi em busca de riquezas no além mar e, enquanto isso sua esposa o traía; Gil Vicente
não estaria defendendo o próprio Estado português como o único mercador possível dentro
da sociedade portuguesa mercantilista, o único capaz de realizar tal projeto? Assim, a
traição se constituiria num castigo merecido àquele que tentou concorrer com o maior
“mercador” de todo o reino: a Coroa portuguesa. Castigo que infligira ao usurário da
peça Floresta de Enganos, com a perda do dinheiro para um Escudeiro disfarçado de
viúva. E com o Inferno para o Onzeneiro, no Auto da Barca do Inferno.
No plano econômico como no plano político o Estado vai agir no sentido da
centralização. A partir de então, o grande mercador será o Estado. Os executores da
atividade comercial são, na sua maioria, funcionários públicos. As empresas deixam de
estar ao alcance dos pequenos empresários. Só o Estado tem prerrogativa para praticar o
comércio.
A vida econômica concentra-se no litoral, e ao mesmo tempo a
atividade governativa do Estado especializa-se na economia e na
política militar ultramarina. É um Estado de olhos voltados ao mar,
mas por isso mesmo de costas voltadas para a nação interior. A partir
do século XV, o esforço de colonização interna vai cessar. A vida
campesina entra numa estagnação profunda e conservará até aos fins
do século XIX numerosos sobrevivências medievais (SARAIVA,
1984: 147-8).
Assim, a coroa portuguesa adquire uma nova dimensão: “... o pequeno Portugal
ibérico transforma-se numa das maiores potências navais e comerciais da Europa... A
pequena corte de D. João II aumentara. Multiplicavam-se cargos, dignidades e ofícios
mantidos pelo Estado” (SARAIVA, 1984: 153).
Finalmente, a crítica moral e social se acentua na farsa chamada Auto da Lusitânia,
onde duas personagens alegóricas, Todo Mundo e Ninguém, dialogam. Sendo Todo
Mundo um rico mercador e Ninguém um homem vestido como pobre. O diálogo entre eles
é registrado por dois demônios: Dinato e Berzebu.
Ninguém: “Que andas tu hi buscando?
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Todo Mundo: Mil coisas ando a buscar:
Dellas não posso achar,
Porém ando perfiando,
Por quão bom lhe perfiar.
Ninguém: Como has nome, cavaleiro?
Todo Mundo: Eu hei nome Todo Mundo,
E meu tempo inteiro
Sempre he buscar dinheiro,
E sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém
E busco consciência” (VICENTE, 1965: 452)
É interessante notar o resumo, que os dois demônios fazem deste diálogo:
Berzebu: “Esta he boa experiência
Dinato, escreve isto bem.
[...]
Que ninguém busca consciência,
E todo o mundo dinheiro” (VICENTE, 1965: 452)
Percebemos então, que a crítica de Gil Vicente é direcionada aos indivíduos que se
ocupam na busca do poder econômico e, no caso específico, o mercador, preconizando os
valores mercantilistas em detrimento dos valores campesinos e da moral cristã.
Seria este tipo social e, fundamentalmente, moral que Gil Vicente
pretendia. A obsessão pelo ganho material em lugar de riqueza
espiritual, por subir na hierarquia social mesmo que utilizando a
mentira e a bajulação, caracterizam o homem do século XVI. E,
correndo as numerosas obras vicentinas, fácil se torna verificar que
tal forma de vida era usada tanto pelos que se situavam em redor
dos centros de poder político e econômico, como por qualquer
camada da sociedade portuguesa” (CRUZ, 1990: 147).
Enfim, seria o mercador o elemento corruptor de toda a sociedade? Não é ele o
representante máximo desta nova ordem que estava a se instaurar, o capitalismo mercantil?
Enriquecido pelo comércio, o mercador ainda não encontrou na sociedade quinhentista a
normatização de sua atividade, através da qual pudesse justificar a sua profissão e o ganho
que com ela obtém.
Em outras obras Gil Vicente trata do mercador, mas duas são especialmente
fundamentais para se lembrar. A primeira é o Auto da Alma, na qual o mercador é
representado pelo Diabo que tenta, durante toda a caminhada terrestre da alma, comprá-la,
convencendo-a que os bens materiais são mais importantes que os espirituais. A segunda é
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o Auto da Feira, onde o Diabo é também um mercador, arma sua tenda para vender sua
mercadoria. Diz o Diabo ao Tempo:
‘Eu bem me posso gabar, / E cada vez que quiser, / Que na feira
onde u vou entrar / Sempre tenho que vender, / E acho quem me
comprar’. A vida é, nas duas peças, representada como feira onde a
alma compra a mercadoria que escolhe. O Diabo, além de
mercador, será considerado um corsário e, assim, ao vender-lhe os
seus artigos, rouba a própria vida à Alma, perdendo-a [...] O Diabo
é um mercador e, sem dúvida alguma, um bom mercador, sabedor
de todas as artes de enganar e de vender” (CRUZ, 1990: 251).
Surge então uma questão: o diabo na ideologia cristã não é aquele que desorganiza,
que desobedece à uma ordem vigente, estabelecida? O mercador não seria aqui bem
representado pelo Diabo, uma vez que ele com sua atividade mercantil, “rompe”,
desequilibra uma “antiga” ordem para estruturar uma “nova”? E na base desta está a
ambição desmedida do mercador e, conseqüentemente, de todo um conjunto social que
compartilha deste valor.
Segundo Huizinga (s/d), do século XII em diante parece que as pessoas começaram
a detectar o princípio do mal mais na ambição do que no orgulho. Este último pode ser
talvez considerado o pecado da época feudal e hierárquica. O poder não estava ainda
associado ao dinheiro; é antes inerente à pessoa e depende de uma espécie de temor
religioso que ela inspira, faz-se sentir pela pompa e magnificência ou pelo numeroso
séqüito de partidários. O orgulho, portanto, é um pecado simbólico e pelo fato de provir do
orgulho de Lúcifer, auto de todo o mal, reveste-se de um caráter metafísico.
Porém, o mesmo não se com a ambição, afirma o autor. Pois esta é um puro
pecado mundano, derivada do impulso da natureza e da carne. No fim da Idade Média as
condições do poder alteraram-se pelo acréscimo da circulação da moeda e a grande
possibilidade de enriquecimento pr parte de pessoas que desejassem satisfazer a sua
ambição de amontoar riqueza. Para este período a cobiça torna-se o pecado predominante.
Ergue-se por toda a parte um coro furioso de invectivas contra a
cobiça e a avareza na literatura dessa época. Pregadores,
moralistas, escritores satíricos, cronistas e poetas falam como se
fossem uma voz; O ódio aos ricos, especialmente aos novos-ricos,
que eram então muito numerosos, é geral...” (HUIZINGA; s/d: 28).
Desse modo, se torna possível associar Diabo e mercador, uma vez que, segundo
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Huizinga (s/d), o pensamento religioso do fim da Idade Média tende-se a cristalizar em
imagens. O espírito medieval, ainda plástico e ingênuo, anseia por dar forma concreta a
todas as concepções. Cada pensamento procura expressão numa imagem, mas nessa
imagem se solidifica e se torna gido. Assumindo uma forma figurada definitiva, o
pensamento perde as suas qualidades etéreas e vagas e o sentimento religioso fica apto a
converter-se em imagem.
Assim, a Idade Média tem sempre presente a idéia de que todas as coisas serão
absurdas se o seu significado se limitar à sua função imediata e à sua fenomenalidade e se,
pela sua essência, não alcançar um mundo além deste, afirma Huizinga (s/d).
Por isso, o mercador vicentino torna-se a alegoria do mal, podendo ser representado
pelo Diabo, como no Auto da Feira, ou como no caso do Auto da Barca do Inferno, fazer
parte do séqüito de Lúcifer. Tal situação está comprovada pela intimidade com que o
Arrais do Inferno se dirige ao Onzeneiro, referindo-se a este como o “meu parente”.
Daí que a condenação desta figura se configura na sátira social, visto que o
Onzeneiro é, então, uma personagem construída no esquema da tipificação, representando
por isso uma gama muito variada de profissionais, por um lado, e por outro permitindo que
toda a força do cômico venha à tona através do riso, mesmo quando até o projeto do Estado
português é satirizado como no caso do Auto da Índia, sem contudo, provocar nenhum
escândalo por parte do público que o assistia.
O Onzeneiro é, então, uma personagem construída no esquema da tipificação,
representando por isso uma gama muito variada de profissionais, por um lado, e por outro
permitindo que o cômico se realize com toda sua força, mesmo quando até o projeto do
Estado português é satirizado como no caso do Auto da Índia, sem contudo, provocar
nenhum escândalo por parte do público que o assistia.
No entanto, isso se tornou possível por causa da utilização da farsa enquanto
gênero predominante no Auto da Índia, no Auto da Lusitânia, e enquanto construção das
personagens presentes nos outros textos citados, como exemplo, mas em especial no Auto
da Barca do Inferno. E, como afirmou Teyssier (1982), as ações que constituem a trama da
farsa podem ser bastante imorais, isso não tem importância, uma vez que ela se situa fora
da ordem e da harmonia. É a imagem do mundo às avessas.
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A ALCOVITEIRA
A Alcoviteira é a outra personagem que queremos dar destaque porque nos permite
pontuar a complexidade de valores que perpassa o interior da sociedade portuguesa
quinhentista, mas em especial, demonstrar quais os motivos que levaram o nosso
dramaturgo a condenar esta profissão, representando tal condenação quando lança uma de
suas representantes nas chamas eternas. Assim como o Mercador/Onzeneiro, é a
Alcoviteira do Auto da Barca do Inferno que dará o tom à nossa análise.
Como todas as outras personagens deste auto, ela também carrega consigo os
objetos que simbolizam a sua profissão e denunciam seus “pecados”.
Vem a Alcoviteira e diz ao Diabo:
Brízida: “Não he he essa barca a que eu cato”.
Diabo: E trazeis vós muito fato?
Brízida: O que me convém levar.
[...]
Seiscentos virgos postiços
E três arcas de feitiços,
Quem não podem mais levar” (VICENTE, 1965: 236)
Os objetos da profissão da Alcoviteira estão presentes. Primeiro, os virgos, que são
hímens. Na peça, a personagem diz um número considerável de seiscentos virgos postiços.
Aqui, podemos perceber que ela engana os seus clientes. Pois oferece as moças como se
fossem virgens, quando na realidade não o são mais, uma vez que ela usa o artifício dos
hímens postiços. Por outro lado, podemos deduzir que esta “profissional do amor”
transforma as moças virgens em prostitutas. Logo em seguida vêm outros objetos: três
arcos de feitiços. Aqui, além de Alcoviteira, é também feiticeira. Parece que estas duas
atividades se interrelacionam. Jacques Rossiaud (1991) um exemplo do século XV,
quando uma certa Jeanne Saignant exerceu a alcovitagem no período de vinte anos em
Dijon, e depois foi expulsa. Os argumentos utilizados pelos magistrados contra ela não
foram tanto as “orgias” organizadas por ela, mas as ameaças de morte proferidas e nos
filtros que teria colocado nas taças de alguns clientes que desejava conquistar. Filtros,
sortilégios, bruxarias, isso é o que Gil Vicente denuncia através da fala de Brizida Vaz.
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“Três almarios de mentir,
E cinco cofres d’enleios,
E alguns furtos alheios,
Assi em jóias de vestir...
[...]
A mor cárrega que he
Essas moças que vendia;
D’aquesta mercadoria
Trago eu muito á bofé” (VICENTE, 1965: 236)
O exercício desta atividade exige destas mulheres, além do domínio da bruxaria, da
arte de mentir, de enganar e de roubar; enfim, de envolver as pessoas: às moças,
prometendo-lhes mil coisas para transformá-las em prostitutas; aos homens, para que eles
se encantem com os atrativos das moças e possam ser bem liberais com as alcoviteiras,
dando-lhes dinheiro, presentes, bens de valor.
No entanto, esta alcoviteira descrita por Gil Vicente vai mais longe. Acostumada a
enganar na Terra, utiliza-se de suas artimanhas depois da morte e desta vez com um Anjo,
pois não quer embarcar para o Inferno e adula o arrais do Paraíso.
Brizida: “Barqueiro, mano, meus olhos,
Pracha a Brizida Vaz.
Anjo: Eu não sei quem te catraz.
Brizida: Peço-vo-lo de giolhos.
Cuidais que trago piolhos,
Anjos de Deos, minha rosa?
Eu sou Brizida a preciosa...” (VICENTE, 1965: 237).
Na tentativa de envolver mais ainda o Anjo nas suas mentiras e convencê-lo a
aceitá-la na Barca da Glória diz de si mesma:
“A que criava as meninas
Para os cônegos da Sé.
Passae-me por vossa fé...” (VICENTE, 1965: 237).
Aqui ela diz que tipo de alcoviteira era ela; aquela que fornecia moças para o alto
clero, acreditando que estes poderosos da Terra poderiam lhe arranjar um lugar na barca do
Anjo. Segundo Jacques Rossiaud (1991), havia vários graus nessa profissão. Algumas
limitavam-se a organizar encontros amorosos, outras fornecem as moças, algumas possuem
abertamente um bordel na sua residência, e uma elite trabalha para uma clientela de
‘estat’ e oferece ao senhor governador da Borgonha, a monsenhor ou ao deão de Blais
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mocinhas mais ou menos inocentes enganadas pelas promessas dessas belas tagarelas
(ROSSIAUD, 1991: 39). Brizida Vaz é uma alcoviteira de elite, porque fornece moças para
“os cônegos da Sé”. Além de tentar convencer o Anjo de suas boas relações com o clero,
enganando-o e bajulando-o.
“Meu amor, minhas boninas,
Olhos de perlinhas finas:
Que eu sou apostolada,
Angelada, e martelada,
E fiz obras mui divinas” (VICENTE, 1965: 237).
Segundo Maria Leonor Garcia da Cruz (1990), o maior crime e pelo qual é posta
em julgamento neste auto é a venda de raparigas. Porque sofrera em vida açoites e passara
tormentos, por ser alcoviteira, no seu entender tornara-se mártir. Em sua defesa não deixa
de apontar a cumplicidade de toda a sociedade, daqueles que se serviam dos seus préstimos
e, por isso, deveriam ter o mesmo destino que ela:
“S’eu fosse ao fogo infernal
lá iria todo mundo” (VICENTE, 1965: 236-237).
diz ao Diabo.
Em outra peça vicentina, O Velho da Horta, aparece a figura da Alcoviteira. Neste
texto, ela se aproveita de um velho, que se apaixonou por uma menina, para extorquir-lhe
dinheiro; prometendo-lhe que conseguirá o amor da moça, a Alcoviteira rouba-lhe todos os
bens. Quando o velho lhe conta sobre o amor que sente pela jovem, Branca Gil acostumada
a enganar, diz:
“E folgo ora de ver
Vossa mercê namorando;
Que o homem bem criado
Até a morte o há de ser
Por direito;
Não per modo contrafeito,
Mas firme, sem ir atrás,
Que a todo homem perfeito
Mandou Deos no seu preceito:
Amarás” (VICENTE, 1965: 627).
Enquanto a moça, a esposa e até o parvo zombam do amor do velho, a Alcoviteira
utilizando-se da Escritura Sagrada, apóia e justifica esse amor. Também ela, assim como a
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Brizida Vaz, tem conhecimento de feitiçaria e diz uma ladainha onde invoca “cortesãos,
poetas e donzelas” e namorados para socorrer o velho apaixonado.
Em seguida começa a extorquir-lhe dinheiro, segundo a necessidade que tem dele,
afirma a personagem que é para convencer a moça a casar-se com o velho. A Alcoviteira
sai e volta, e, a cada volta, ela pede e exige mais dinheiro do velho; este, apaixonado e
querendo realizar o seu amor, não discute e tudo o que Branca Gil precisa. No entanto,
vem a punição tanto para a Alcoviteira como para quem com ela se envolve, o Velho. Se
na Barca do Inferno ela é castigada com as penas infernais, uma condenação de caráter
moral e religioso; nesta peça, O Velho da Horta, o castigo vem da justiça.
Alcaide: “Dona levantae-vos d’hi.
Branca: E quem me quereis vós assi?
Alcaide: Á cadeia.
[...]
Branca: Onde me quereis levar?
Ou quem me manda prender?
Nunca havedes d’acabar
De me prencer e soltar?
Não há poder” (VICENTE, 1965: 634).
Nesta estrofe, Gil Vicente coloca na boca da personagem uma denúncia sócio-
jurídica quanto a esta profissão. Porque a alcoviteira desta peça já foi presa diversas vezes
e solta. O castigo do velho foi perder tudo o que tinha e não conseguir conquistar o amor
da moça; o castigo de Branca Gil foi a prisão e também os açoites. Castigo este que
também sofreu Brizida Vaz na Barca do Inferno. Quem conta a execução da sentença é
uma mocinha que vem à horta do velho:
Moça: “Com cent’açoutes no lombo
E hua corcha por capella...” (VICENTE, 1965: 635).
Assim é executada a sentença, a Alcoviteira é açoitada e é trocado seu capuz
(“capella”) por uma “carocha”: mitra que os penitentes, condenados pela Inquisição a
figurarem nos autos-de-fé, levavam na cabeça. Era de papelão e costumava ser pintada
com diabos atormentando criaturas entre labaredas fumegantes (VICENTE, 1965:
1427). Podemos perceber que a carocha é um objeto carregado de significação, pois serve
para estigmatizar a Alcoviteira, destacando sua atividade do corpo social e condenado-a.
Da mesma forma que na Barca do Inferno, cada personagem leva consigo depois da morte
- 97 -
o objeto que simboliza o seu pecado em vida. A Alcoviteira da farsa O Velho da Horta
carrega o seu objeto que simboliza não o pecado, mas a condenação social. E mais, como
já foi dito anteriormente, a atividade da alcoviteira se confunde com a da feiticeira.
Podemos pontuar algumas considerações acerca da atividade da Alcoviteira que a
torna ambígua. Se definirmos que marginalizados são aqueles que exercem uma atividade
condenada pela sociedade, e que esta sociedade tem uma certa “necessidade” da
Alcoviteira, esta personagem se enquadra muito bem na situação de marginalizada. Pois a
alcoviteira muito embora punida pela justiça, testemunha a persistência naquele modo de
vida e na requisição dos seus préstimos (CRUZ, 1990: 72). Ela era requisitada para
realizar casamentos, na farsa de Inês Pereira, ou arranjar amores adúlteros, na peça O
Velho da Horta, ou mesmo prostituir as moças, na Barca do Inferno. Assim, a Alcoviteira
poderia ter uma função social. Poderíamos talvez considerar neste caso que a sua atividade
é legitimada pela sociedade, porque certos elementos ou grupos sociais utilizam-se da sua
profissão. No entanto, o é legalizada pois constantemente sofre na carne as punições da
justiça que são denunciadas pela própria Alcoviteira, Branca Gil, na peça O Velho da
Horta:
Branca: “Onde me quereis levar?
Ou quem me manda prender?
Nunca havedes d’acabar
De me prencer e soltar?
Não há poder”.
[...]
Três vezes fui já açoutada
E enfim hei de viver” (VICENTE, 1965: 634-635).
A impressão que temos do último verso da primeira estrofe (“Não poder”) é que
a justiça não pode vencê-la justamente porque existem grupos ou elementos sociais que
necessitam de seus préstimos.
Por outro lado, se torna uma excluída social, na medida em que a sua atividade está
intensamente ligada à da feiticeira. Numa sociedade religiosa, em princípio, esta atividade
era considerada intolerável. Porém numa sociedade onde a ciência não tinha ainda
alcançado o grau de desenvolvimento e especialização de hoje, na qual as doenças eram
tratadas com plantas e com “gestos supersticiosos”; poderíamos perguntar: este tipo de
sociedade necessitava tanto de alcoviteiras como de feiticeiras (considerando-se que as
- 98 -
mulheres tidas como feiticeiras eram não somente aquelas que sabiam lidar com poções e
filtros mágicos, enfim, a “criatura de Satanás”, mas também aquelas que manipulavam as
plantas na fabricação de remédios para tratar de doenças)? Daí podemos concluir que elas
ainda eram necessárias no alvorecer da Idade Moderna
11
.
Segundo Bernardes (1996), várias são as personagens farsescas vicentinas que dão
expressão a uma gramática relativamente restrita de situações dramáticas que têm no
engano seu principal eixo temático. Aqui para nós vale ressaltar a situação da Alcoviteira,
que tem como ponto sico de sua profissão o engano; ele faz parte da farsa enquanto
gênero, mas também enquanto confecção de uma personagem farsesca.
[...] e o farsesco, enquanto linha estética e ideológica que excede
os limites do gênero para circular livremente pela quase totalidade
do seu teatro. É que, em boa verdade, mesmo os textos que mais de
perto se relacionam com a farsa na primeira acepção do termo
ultrapassam em muito a essência recreativa do gênero e constituem
o resultado de uma adaptação satírica e moralizante
(BERNARDES, 1996: 233).
A farsa utilizada por Gil Vicente no processo de construção de seu teatro adquire
então o caráter moralizante, que pudemos perceber na Alcoviteira no Auto da Barca do
Inferno, quando ela é condenada a embarcar no batel infernal, pelo nosso dramaturgo.Ao
lançar mão deste gênero popular, satirizando a situação da alcoviteira no seio da sociedade
portuguesa, Gil Vicente chama a atenção do público que o assiste para a decadência dos
valores desta sociedade e, em especial, para o declínio dos valores e comportamentos das
elites. Por isso, de todas as alcoviteiras que aparecem na sua obra, a da Barca do Inferno é
a que é mais intensamente castigada, pois é ela que promove o encontro entre os membros
11
Laura de Mello e Souxa em seu livro Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVII
demonstra que a racionalidade moderna e a magia, com seus filtros mágicos e sortilégios conviviam lado a
lado.
Segundo a autora, por muito tempo o descobrimento da América foi visto como uma grande realização
do homem europeu. Aprisionando e controlando pela primeira vez o espaço do globo, esse homem passava
a ser senhor dos mares e subjugador das culturas estranhas, impondo por toda parte seu credo, seus hábitos,
sua visão de mundo. A descoberta da América apressaria inclusive a consolidação da moderna ciência,
assentada no que hoje chamamos de paradigma galilaico; garantiria a vitória do cálculo matemático e de
uma percepção ordenada do universo, onde fenômenos até então incompreensíveis ou explicados em chave
maravilhosa passavam a ter explicação racional e razoável” (SOUZA, 1993: 21).
Se considerarmos o caso português, veremos que, enquanto as caravelas cruzam os mares obedecendo
a cálculos precisos, multidões se deliciavam, na Corte, com os espetáculos de Gil Vicente, onde se abriga
espaço às práticas cotidianas do povo comum, eivadas de magismo e maravilhoso. Os processos
quinhentistas da Inquisição atestam como era corriqueiro o recurso a filtros e poções mágicas, e difundida a
crença nos poderes extraordinários do Demônio” (SOUZA; 1993: 21-22).
- 99 -
do alto clero com as moças, levando-as à perdição. E este grupo compõe também a corte
portuguesa. Portanto, a farsa que coloca o mundo às avessas poderia fazer estes
elementos sociais suportarem a crítica vicentina que a eles era diretamente dirigida.
Por conseguinte, a farsa aliada à sátira deu ao teatro de Gil Vicente um caráter
ambíguo possibilitando-lhe fazer severas críticas aos grupos dominantes. Como pudemos
perceber até agora, no Auto da Barca do Inferno, onde as “almas” que representam o cimo
da hierarquia social, como o Fidalgo, ou aquelas que estando diretamente relacionadas a
ela, no caso em questão a Alcoviteira, são duramente castigadas com as penas infernais.
- 100 -
O SAPATEIRO
A próxima personagem a ser analisada é o Sapateiro que chega à barca infernal
também carregado de formas. As formas simbolizam a sua profissão e conseqüentemente
representam os motivos de suas ações pecadoras.
Sapateiro: “Hou da barca!
Diabo: Quem vem hi?
Sancto sapateiro honrado,
Como vens tão carregado!” (VICENTE, 1965: 231)
Note os dois adjetivos que o arrais do inferno usa para o Sapateiro, santo e honrado.
Eles servem para denotar a ironia demoníaca, pois no próximo verso ele chama atenção
sobre o peso que traz o Sapateiro, carregado de formas que são na realidade seus pecados.
E a personagem responde ingenuamente:
Sapateiro: “Mandarão-me vir assi.
Mas pera onde he a viagem?
Diabo: Pera a terra dos damnados.
Sapateiro: E os que morrem confessados
Onde tem sua passagem?
[...]
Renegaria eu da festa,
E da barca, e da barcagem.
Como pod’rá isso ser,
Confessado e comungado?” (VICENTE, 1965: 231).
Dizendo ao Diabo que morreu confessado e comungado, ele recusa entrar no batel
infernal, mas o demônio não deixa por menos, e uma vez mais exerce sua função de juiz
implacável, enumerando os pecados desta alma:
“Tu morreste excummungado,
E não no quizeste dizer:
Esperavas de viver,
Calaste dez mil enganos.
Tu roubastes bem trinta annos,
O povo com teu mister
Embarca-te, eramá pera ti;
Qu’há já muito que t’espero” (VICENTE, 1965: 231).
É interessante notar o jogo que Gil Vicente faz com as palavras “comungado”,
- 101 -
“excomungado”, na fala do Diabo, pois é ele que desvenda os pecados das almas que a
todo custo tentam escondê-los. “Comungado” significa aquele que recebeu comunhão;
recebeu ou tomou sacramento da Eucaristia. E ainda tem o significado de pertencer a grupo
ou sociedade que tem as mesmas idéias religiosas, políticas, literárias, científicas, etc.
“excomungado” tem significado oposto: indivíduo que sofreu excomunhão,; tornou-se
maldito e também aquele que é condenado, reprovado.
O dramaturgo português põe na fala do Sapateiro a palavra “comungado”,
significando a dupla aceitação religiosa e social, segundo a visão da personagem. No
entanto, ele coloca no discurso do Diabo a negação desta aceitação. Seria o Sapateiro
condenado porque roubou? No entanto, se considerarmos o outro significado de
comungado, isto é, de pertencer a um grupo ou a uma sociedade que tem as mesmas idéias
religiosas, políticas, literárias, científicas, etc., então podemos extrair daí uma outra
significação: a “condenação” social desta profissão. Sendo que a última não exclui a
primeira; muito pelo contrário, condenação religiosa e social se complementam.
Continua a personagem enumerando as suas boas ações:
“Quantas missas eu ouvi
Não m’hão ellas de prestar?
[...]
E as ofertas que darão,
E as horas dos finados?” (VICENTE, 1965: 231)
Contrapondo a esta o Diabo ressalta os seus pecados:
“E os dinheiros mal levados,
Que foi da satisfação?” (VICENTE, 1965: 231)
Não se conformando com o julgamento do Diabo o Sapateiro segue até a barca do
paraíso.
Sapateiro: [...]
“hou da sancta caravella,
Podereis levar-me nella?
Anjo: A cárrega te embaraça” (VICENTE, 1965: 232).
Mais uma vez é lembrado à alma que ela não cabe no batel divinal devido à carga
que traz. Isto é, as formas de sapateiro que são o símbolo do seu pecado, mas também da
sua profissão.
- 102 -
O Sapateiro tenta ainda argumentar com o Anjo:
“Não há mercê que me Deos faça?
Isto hi xiquer irá.
Anjo: Essa barca que la’está,
Leva quem rouba de praça...
Sapateiro: Ora eu me maravilho
Haverdes per grand peguilho
Quatro forminhas cagadas,
Que podem bem ir chantadas
No cantinho desse leito” (VICENTE, 1965: 232).
Novamente o Anjo lembra a esta alma dos roubos que cometeu e foi por isso que
ele chegou ao além carregado. Portanto, não possibilidade de salvação para ela. Então o
Anjo reafirma o que o Diabo já dissera, dando a sentença final:
Sapateiro: “Assi que determinais
Que va cozer ao Inferno?
Anjo: Escrito estás no caderno
Das ementas infernaes” (VICENTE, 1965: 232).
Ao jogar as almas no Inferno, Gil Vicente as condena sem que haja a mínima
possibilidade de salvação para elas. A situação do Sapateiro é semelhante a das demais
personagens deste texto. Não se pode argumentar e discutir uma sentença que foi
determinada, primeiro pelo Diabo, segundo, confirmada pelo Anjo. No entanto, esta
sentença é dada mediante as ações destas almas, quando viviam. Assim, o dramaturgo
lança mão do livre arbítrio e justifica a condenação que é dada tanto pelo Anjo como pelo
Diabo.
Em numerosas obras detectamos esta concepção de Gil Vicente,
que atribui ao homem uma capacidade de escolha e o responsabiliza
pela sua conduta. É, de resto, essa consciencialização que se
pretende fazer salientar em peças como o Auto da Barca do
Inferno... aqui, o pecador que se apresenta ora ao Diabo ora ao
Anjo, toma bem consciência de que, se o seu destino lhe é adverso, é
porque, pela sua conduta, ele próprio assim o determinou em vida. E
fê-lo, tendo a capacidade de escolha...” (CRUZ, 1990: 167-168).
Mas à condenação religiosa soma-se a condenação social. Necessário se faz, para
melhor compreensão destas, que percebamos a situação do Sapateiro neste contexto.
Michel Mollat (1989) afirma que é necessário distinguir dois tipos de pobres: os miseráveis
e os mendicantes.
- 103 -
Segundo Mollat (1989), o nível de vida dos pobres laboriosos é difícil de ser
apreendido.
Ele muda de uma cidade para outra, os dados sobre os salários são
descontínuos ou díspares, variam com as estações e raramente
exceto certos contratos de aprendizagem incluem as vantagens em
gênero (moradia, alimentação); é difícil principalmente, relacionar
esses dados volume de mão-de-obra disponível, com os preços
dos gêneros e moradia. Uma distinção fundamental impõe-se entre
as profissões qualificadas e as outras bem como o trabalho
artesanal e os serviços” (MOLLAT; 1989: 238).
Mesmo diante destas dificuldades, pode-se atestar um número considerável de
pobres laboriosos existentes nas cidades européias, no final da Idade Média No entanto, o
que torna a situação extremamente difícil é o fato da margem entre pobreza e miséria ser
estreita para pelo menos metade da população. Portanto, a marginalidade recruta-se entre
pobres e confunde-os com delinqüentes e criminosos.
A passagem do pobre à marginalidade e a freqüentação dos marginais têm por
palco as tabernas e cabarés. De acordo com Mollat (1989), de mendigo, o indivíduo
transforma-se em malandro. Da mendicância fraudulenta, passe ao pequeno furto, depois
ao roubo qualificado. No entanto, os mendigos não são os únicos responsáveis pela
criminalidade e banditismo, a pobreza laboriosa mal remunerada também contribui com
seu contingente para a delinqüência Contudo, a novidade está – nos fins do período
medieval no aumento considerável de delinqüentes e criminosos, em relação às épocas
anteriores.
Conseqüentemente, amplia-se também o temor e a desconfiança em relação a estes
deserdados da sorte.
O desenvolvimento do pauperismo a partir da segunda metade do
século XIV podia, não sem motivos, desorientar alguns e indignar
outros. Nunca fora tão nítida a oposição entre uma pobreza
idealizada no plano espiritual e uma indigência material cujos
aspectos sórdidos eram extremamente visíveis e gritantes”
(MOLLAT; 1989: 245).
Assim, a pobreza temida, depois desvalorizada, foi desprezada degradada. Todavia,
foi com o Humanismo que o desprezo tornou-se sutil e pérfido, desdenhoso, refletido,
fundamentado na dignidade do homem. A derrocada social é o oposto do desenvolvimento
- 104 -
da pessoa e o fracasso é um absurdo para aqueles que exaltam o sucesso, a fortuna. O
elogio da riqueza vem substituir o elogio da pobreza. Pessoa alguma punha em vida o
fato de que a pobreza fosse um mal, desde suas origens” (MOLLAT; 1989: 249).
“Entre fogos miseráveis e os fogos mendicantes havia a diferença
que separa a situação precária da pobreza da indigência incapaz de
sobreviver sem a ajuda alheia por falta de trabalho. Essas duas
distinções fiscais parecem corresponder, ao menos por uma vez, a
realidades sociais [...]. O aumento do número de fogos miseráveis
foi mais de 100% em 25 anos, relacionando às dificuldades de
certos ofícios: sapateiros, vendeiros e tanoeiros, por exemplo. Desse
modo, quem está em jogo é a pobreza laboriosa...” (MOLLAT,
1989: 229).
Diante disso, podemos chegar à seguinte conclusão: o Sapateiro “roubara” de seus
fregueses para não cair na indigência, pois com a crise, a pobreza laboriosa oscilava entre a
pobreza (viver parcamente dos rendimentos de sua profissão, e a extrema miséria, a
mendicância). Então por que a dupla condenação religiosa e social? Estaria Gil Vicente
apenas denunciando o pecado do roubo? Ou podemos perceber por trás de tudo isso uma
condenação social, onde uma sociedade que passa por transformações profundas, não
tendo muito o que fazer para evitar que pobres trabalhadores caíssem na mendicância e
viessem a se transformar em marginais perigosos, roubando, matando, praticando, enfim,
“atos vis” contra ela, se “agarrasse” àquilo que lhe parecia a tábua de salvação, a religião.
Se assim for, Gil Vicente, homem do século XVI, não fugia à regra e lança o Sapateiro que
rouba nas chamas infernais. Desta maneira, o Inferno como castigo, assustaria estes
homens pobres e os impediria de se transformar em “homens associais”.
No entanto, não podemos esquecer que esta profissão se desenvolve com o
crescimento das cidades, mas mesmo assim ainda no século XV, os artesãos não eram um
grupo muito grande se compararmos com o número de lavradores.
“Os mestereirais nunca foram em grande número, se comparados
com os lavradores... nas cidades e vilas importantes, os mesteres
estavam arruados, ou seja, reunidos por profissões numa mesma
rua...” Porém, em Portugal não existiam corporações antes dos
finais do século XV e a regulamentação integral dos mesteres se
verifica nas duas centúrias seguintes...” (MARQUES, 1971: 116).
A condenação, presente na peça vicentina, ao Sapateiro, se encontra diretamente
ligada à condenação da sociedade que propiciou o crescimento dos mesteres em número e
- 105 -
em importância, à sociedade mercantilista.
Daí se depreende que o Sapateiro, enquanto tipo social no conjunto da peça, tem,
além da função de provocar o riso, um caráter moralizador. Daqui decorre uma estilística
da farsa
que tem a ver não apenas com o diálogo, mas também com os
próprios processos de caracterização e composição das personagens
que, excedendo por via da regra a sua dimensão actancial (aquela
que melhor as define no universo farsesco), adquirem defeitos e
qualidades definíveis a partir de determinados critérios éticos
(BERNARDES, 1996: 234).
Por isso podemos afirmar que o engano enquanto elemento farseco apresenta-se
novamente nesta personagem. Como a Alcoviteira, o Sapateiro enganava as pessoas com
sua profissão, portanto, é obrigado a carregar para o além, as formas com as quais fazia os
sapatos e trapaceava os consumidores.
O engano aqui é bastante evidente, pois a personagem ao iniciar o diálogo com o
Diabo não sabe explicar porque teve de ir carregado. Desta maneira de enganador passa a
ser enganado, pois acreditou seriamente na possibilidade de sua salvação.
De uma concepção mecânica de engano, com uma versão simples
no Auto da Índia e uma versão mais complexa e problemática em
Inês Pereira ou em Feira..., pode passar-se a uma concepção de
base mais psicológica em Físicos ou no Velho da Horta, até se
chegar a uma concepção moral e metafísica nas Barcas, em que o
engano condiciona as personagens para além da morte,
convertendo-se numa espécie de alienação constitutiva
(BERNARDES, 1996: 235).
- 106 -
O FRADE
Após o embarque do Sapateiro no batel infernal, a próxima personagem a desfilar
diante das barcas é um Frade, que adentra o palco com uma moça e vem dançando e
cantando. Dialogando com o Diabo demonstra de início uma certa ignorância a respeito de
onde está, com quem está falando e para onde vai. Traz consigo uma jovem mas não sabe
bem ao certo porque o faz. Como as demais personagens exceto a Alcoviteira que se
mostra muito perspicaz devido à sua profissão e os Quatro Cavaleiros que morreram em
Guerra Santa – esta figura também não se mostra, de início, consciente de sua situação.
Diabo: “Essa dama há de entrar ca?
Frade: Não sei onde embarcarei.
Diabo: Ela he vossa?
Frade: Não sei;
Por minha a trago eu ca.
[...]
Diabo: Que cousa tão preciosa!
Entrae, Padre reverendo.
Frade: Pera onde levais gente?
Diabo: Pera aquelle fogo ardente,
Que não temeste vivendo”
(VICENTE, 1965: 232-233).
A partir deste momento, ele descobre para onde vai a barca, se mostra
extremamente surpreso, se considerava eleito ao Paraíso, pois fazia parte do Clero,
grupo social que tinha por função interceder pela salvação das almas através da oração. É
curioso notar, é o próprio frade que chama a atenção do arrais do Inferno para o seu traje,
símbolo do grupo social ao qual pertencia em vida.
Frade: “Juro a Deos que não t’endento:
E este hábito me não val?” (VICENTE, 1965: 233)
Semelhante às outras personagens condenadas, a sua vestimenta é um símbolo e
não tem apenas a função de cobrir o corpo, mas está plena de significados. Na descrição do
traje eclesiástico, Maria José Palla (1992) afirma que os monges vestem um hábito que
deverá cobrir os pés, porém não deverá arrastar-se pelo chão. O seu feitio, cor e mangas
são objeto de regras estritas, cuja infração é punida pro sanções canônicas(PALLA,
- 107 -
1992: 62).
A autora exemplifica tal situação quando em 1516, Francisco I queixa ao Papa dos
religiosos que se apresentam como leigos. Então, Leão X autoriza os juízes civis a punir os
clérigos que não usassem, durante quatro meses, o hábito e a tonsura. De acordo com as
normas da Igreja, os clérigos devem distinguir-se dos leigos pelas roupas que vestem.
Nesta peça, somente referência às vestimentas do Fidalgo e do Frade. No primeiro, a
roupa funciona como um distintivo social, no segundo, como condição de diferenciação
entre dois grandes segmentos no seio de uma sociedade cristã: clérigos e leigos.
Aqui, o hábito, além de servir ao propósito acima anunciado, já afirma a situação de
pecador da personagem, conseqüentemente de condenado. No entanto, o traje requer outros
complementos simbólicos para conduzi-lo à “ilha perdida”, que são a moça e a espada.
No processo de condenação desta personagem, Gil Vicente mostra sua face de
homem religioso, que ao lançar nas chamas infernais o Frade, tem como objetivo criticar o
comportamento dissoluto do clero português
12
. Já vimos, anteriormente, que nosso
dramaturgo era um católico fervoroso e em nenhum momento a crítica que lança aos
religiosos tem a finalidade de criar uma nova religião, como fez Martinho Lutero, mas de
expurgar da Igreja todo e qualquer indivíduo que possa macular a imagem da Igreja
Católica, gerando a desconfiança da população na eficácia desta religião.
Neste sentido Gil Vicente não poupa nem os altos dignitários da Igreja, como
veremos mais adiante no Auto da Barca da Glória. Questiona o comportamento moral de
um mau Frade, através da fala do Diabo e satiriza a sua irresponsabilidade e sua ingênua
crença que por ser portador do hábito, as portas do Paraíso lhe seriam abertas. E é o
próprio barqueiro infernal que lhe informa que, por ser homem religioso e ter negado sua
situação e responsabilidade, vivendo mundanamente, foram outras portas que se lhe
abriram, as do Inferno.
12
De todas as contradições que a vida religiosa desse período apresenta a de mais difícil solução é a do
confessado desprezo pelo clero, um desprezo que, como uma corrente não visível à superfície, se desenvolve
paralelamente com o maior respeito pela santidade da vida sacerdotal. A alma das massas, ainda não
inteiramente cristianizada, nunca esquecera a versão que o selvagem sente contra o homem que não tem de
lutar e que deve permanecer casto. O orgulho feudal do cavaleiro, campeão da coragem e do amor, fazia
corpo, neste ponto, com o instinto primitivo do povo. A mundanidade dos mais categorizados membros do
clero e a deterioração dos de mais baixo grau fizeram o resto. Daqui provinha que os nobres, os burgueses e
os vilãos tivessem desde muito alimentado esse ódio com sarcasmos dirigidos aos monges incontinentes e
aos pobres beberrões” (HUIZINGA; s/d: 186).
- 108 -
Diabo: “Gentil padre mundanal,
A Berzebu vos commendo.
Frade: Corpo de Deos consagrado!
Pela fé de Jesu Christo,
Qu’eu não posso entender isto:
Eu hei ser condemnado?
Hum padre tao namorado,
E tanto dado á virtude!
Assi Deos me dê saude,
Que estou maravilhado” (VICENTE, 1965: 233).
Ironicamente o nosso dramaturgo faz com que a personagem denuncie seus pecados
e se mostre ao mesmo tempo surpreso com a possibilidade da condenação. Quanto mais o
Frade reafirma a sua posição de membro do clero, e de pecador sem assumir que o é, mais
divertida se torna a cena.
Semelhante às outras personagens deste auto, ele é uma personagem-tipo, portanto
representa todos aqueles que são ligados à Igreja, mas que devido às suas atitudes e
comportamentos se afastaram totalmente dos propósitos religiosos e negligenciaram os
votos de pobreza e castidade.
Segundo Maria Leonor G. da Cruz (1990), a punição desta alma com as chamas
infernais significa a condenação de inúmeros cios, que diversos membros do clero
praticavam no contexto da Europa cristã, nos inícios do século XVI, em geral, e em
particular, em Portugal.
“Para além da condenação de vícios como o orgulho, a ambição e a
cobiça, a gulodice pela comida e bebida, o gosto pelo jogo, pela
dança e pela briga, condenáveis em indivíduos que deveriam
obedecer a rígidos e austeros princípios morais na sua conduta, em
toda a obra vicentina... se ataca a mancebia e a proliferação de
filhos ilegítimos de membros do clero. Todo este desregramento
moral é forçosamente acompanhado por um desrespeito pela função
sacerdotal e negligência das obrigações espirituais” (CRUZ, 1990:
69).
Vimos anteriormente que os membros do Clero pouco se diferenciavam dos
representantes da nobreza quanto aos privilégios. Viviam em opulência consoante à
posição que detinham na hierarquia eclesiástica. Não se limitando a seus encargos
espirituais, exercendo toda a sorte de cargos “laicos”. Mas, além destas funções, podemos
perceber que exerciam até a arte da esgrima, que na realidade deveria ser de domínio
- 109 -
apenas da nobreza. É curioso notarmos que neste texto vicentino, o Diabo astutamente faz
a nossa personagem denunciar todos os seus comportamentos mundanos. Expondo assim,
todos os mbolos dos seus pecados. Primeiro, entrou cantando e dançando, trazendo pela
mão uma moça, depois o arrais do Inferno fê-lo exibir seus conhecimentos de esgrima.
Diabo: “Dê vossa Reverencia lição
D’esgrima, que he cousa boa”
(VICENTE, 1965: 234).
E o Frade, ou por orgulho de ser um bom esgrimista que o cega e o impede de
exercer as funções que lhe competem, ou por ingenuidade, não percebe a teia que o Diabo
vai tecendo para ele, demonstrando todo o conhecimento nesta arte, através de gestos e
palavras.
Frade: “Que me praz, dêmos caçada. (Esgrime)
Então logo hum contra sus,
Hum fendente, ora sus:
Esta he a primeira levada.
[...]
Diabo: Oh que valentes levadas!
Frade: Inda isto não he nada:
Dêmos outra vez caçada.
Contra sus, ora hum fendente;
E cortando largamente,
Eis aqui a sexta guarda” (VICENTE, 1965: 234)
Como as demais personagens deste auto, o Frade se recusa a embarcar no batel
infernal e vai em direção ao da Glória. No entanto, a crítica vicentina atinge o seu clímax
tornando-se mais contundente, porque, ao contrário de quase todas as figuras desta peça,
não é o Anjo que veda a sua entrada no Paraíso, mas o Parvo. Pois aquele não se digna
nem dialogar com este membro do clero e, cremos que este detalhe é o corolário de toda a
trama que foi sendo tecida ao longo do diálogo entabulado entre o Diabo e o Frade, cujos
pecados foram sendo expostos um a um pelo próprio pecador.
Gil Vicente se mostra bastante rigoroso na punição que impõe a esta personagem.
Claro está que, sendo um católico fervoroso, não poderia aceitar tais comportamentos de
indivíduos, cujas preocupações deveriam ser as espirituais e no entanto, se voltam para os
prazeres mundanos. Mas, voltemos por alguns instantes nosso olhar para o público e
reflitamos. Este que o assistia era composto também pelo Clero, sem contar obviamente,
que era uma Corte católica. Então, como foi possível ao nosso dramaturgo lançar no fogo
- 110 -
eterno um membro deste grupo sem provocar a comoção de seu público? Em verdade
acreditamos que seja a postura político-estética do artista (para além da proteção dada a ele
pelos reis e pela rainha D. Leonor) que lhe possibilitou criticar e punir veementemente esta
figura-tipo.
Portanto, é a sátira enquanto opção estética deste texto que conferiu ao dramaturgo
português tal liberalidade. Pois segundo Bernardes (1996), o satirista não se limita à
representação neutra dos fatos. Por isso, a Sátira pretende, num primeiro momento,
impressionar e posteriormente, induzir a uma retificação que tanto pode ser de natureza
reacionária como pode ser de natureza revolucionária, envolvendo uma proposta coerente
de transformação evolutiva. Por conseguinte, a neutralidade jamais servirá a seus
propósitos.
“Independentemente, porém, da natureza da proposta retificadora
que a Sátira venha a implicar, a neutralidade representativa não
serve bem estes desígnios. De fato, talvez por estar muito próxima
dos modelos reais, a opção mimética ou documentarista não se
revela capaz de impressionar os olhos condicionados das pessoas,
justificando-se, por conseguinte, que o escritor recorra a um
conjunto diversificado de técnicas dissimulativas” (BERNARDES,
1996: 163-164).
E acrescentaríamos, permite que se passe do sério para o risível. Daí, nosso
dramaturgo poder condenar, punir personagens que saem do cimo da hierarquia social com
todos os seus privilégios e regalias e caem no mais profundo abismo satírico, queimando
nas chamas infernais.
Baseado no princípio de que a Sátira não coaduna com a neutralidade e que tem por
princípio a retificação do mundo quer seja na sua vertente reacionária, consubstanciada na
recuperação de um tempo perdido, quer seja na revolucionária, é que muitos estudiosos de
Gil Vicente defendem que os objetivos desta crítica não têm a mínima intenção de
reformismo dogmático, haja vista que ele não era luterano. Sua intenção era efetivamente a
reforma moral dos membros da Igreja. O dramaturgo insurgia-se contra a materialidade do
viver dos sacerdotes e não contra os ideais católicos.
Embora estas afirmações sejam bastante pertinentes, devemos também estar atentos
para o fato de que as denúncias e as críticas concomitante com as punições infligidas a
estas personagens, uma vez que elas desfilam em outras peças, são por demais severas. E
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que tendo por fundamento somente a questão moral, o dramaturgo não poderia realizar tal
façanha. Do nosso ponto de vista, foi a sua opção estética pela Sátira aliada à técnica da
tipificação e pela existência de pequenas farsas perpassando este auto é que o poeta da
Corte portuguesa pode realizar o desfile destas figuras-tipo portando todos os seus vícios e
sendo ridicularizadas por sua pena satírica sem provocar nenhum tipo de escândalo no
público que o assistiu e aplaudiu.
Ademais, quando olhamos mais atentamente para dois outros autos, o Auto da
Feira, representada em 1527 e o Auto da Barca da Glória, de 1519, esta situação de crítica
aos clérigos se mostra ainda mais contundente se levarmos em consideração que no
primeiro, é a própria Roma que, representando o Papado, desfila, ostentando suas
fraquezas mundanas, e no segundo, é o cimo da hierarquia eclesiástica que defronta-se com
a condenação de suas condutas e comportamentos. Mesmo que no último instante estas
almas foram salvas pelo Redentor, não ficaram impunes à crítica vicentina.
A título de exemplo recorreremos apenas ao Auto da Feira, uma vez que mais
adiante analisaremos a Barca da Glória. No primeiro texto, as personagens
semelhantemente às da Barca do Inferno, excetuando as alegorias Roma, o Tempo e o deus
Mercúrio; o Anjo e o Diabo, todas são construídas satiricamente através da tipificação.
A temática da peça gira em torno do comércio e não se efetiva nenhuma sentença,
visto que a peça simboliza um mercado onde tudo é vendido e tudo pode ser comprado, até
mulheres são produtos comercializáveis, no caso de dois lavradores que tencionam vender
suas esposas um para o outro. A feira tem um caráter divino por causa da presença do
Anjo, do deus Mercúrio e por ser noite de natal. Quando o Diabo arma sua tenda o Serafim
tenta enxotá-lo deste local sagrado, mas o Diabo retruca provocadoramente dizendo a ele
que será mais beneficiado nas trocas comerciais, uma vez que o que ele vende atrai muitos
compradores. Embora não conduzindo nenhum batel, um colorido especial à peça pois
aparece como antítese, levantando o eterno embate entre o bem e o mal. Mesmo sendo o
teatro vicentino de cunho moralizante, daí uma das possíveis explicações da presença do
mal num espaço sagrado, não devemos esquecer aqui do riso popular, que desagregador
por natureza, tem a função de fazer emergir da morte a vida, do velho o novo, e do medo o
riso. Por isso, o Anjo não consegue expulsar o demônio da feira.
Desta maneira, depois do monólogo do deus do comércio, Mercúrio, criticando a
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astrologia, as tendas são preparadas para se iniciar os atos de compra e venda. De um lado
encontramos o Anjo e o Tempo nas tendas das virtudes, de outro, o Diabo nas tendas dos
vícios. Então, entra a primeira personagem, Roma, que pretende comprar paz, verdade e fé.
No entanto, estas mercadorias podem ser adquiridas quando se tem uma vida santa e
seguramente não é este o caso de Roma, ou melhor, do Papado. Toda esta cena constitui
uma sátira de extrema violência contra a Roma pontifícia, apresentada como depravada e
simoníaca.” (TEYSSIER, 1982: 63).
Segundo Paul Teyssier (1982), as alegorias constituem uma categoria muito
importante de personagens, isto é, abstrações personificadas. A alegoria é particularmente
grata ao pensamento e à arte da Idade Média e é ela que caracteriza o gênero da
moralidade. A Fé, a Verdade, a Humildade, etc., deixam de ser nomes comuns e se
convertem em nomes próprios. Elas estão presentes em diversas peças vicentinas, dentre
elas o Auto da Feira.
O local em que a feira se é um espaço rústico. O estudo das representações do
campo remete a duas áreas específicas: o “campo-presépio” e as beiras.
No primeiro caso, o campo é apresentado como uma construção
bipolarizada, onde as tensões são apenas entre o bem e o mal, na
verdade, um substrato mental de toda a Europa cristã. É uma visão
sacralizada do espaço que se ordena à imagem da hierarquia feudal.
No segundo caso, embora persistindo a bipolarização bem/mal,
evidenciam-se áreas de tensão social no próprio campo e uma nítida
oposição campo-cidade” (FRÓES, 1986: 29).
Nesta perspectiva, o Auto da Feira se liga mais ao primeiro tipo de representação
do campo e é por isso que ela termina com a presença de pastores e, sendo ressaltadas a
inocência e a simplicidade destes.
A primeira compradora desta feira é Roma, que adentra o palco cantando e diz:
“Vejamos se nesta feira,
Que Mercúrio aqui faz,
Acharei a vender paz,
Que me livre da canceira
Em que a fortuna me traz.
Se os meus me desbaratão
O meu socorro onde está?
Se os christãos mesmo me Matão,
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A vida quem m’a dara,
Que todos me desacatão?” (VICENTE, 1965: 402).
A pena satírica de Gil Vicente ataca assim o Papado, pois é através da fala de Roma
que a postura política de nosso dramaturgo se evidencia. Segundo Antônio José Saraiva e
Oscar Lopes (1975), o dramaturgo português participa do grande debate de idéias que agita
a primeira metade do século XVI e que assume principalmente a forma de discussões
teológicas. Alguns dos seus autos e, em especial o da Feira, intervêm na polêmica
religiosa.
Circunstâncias peculiares, entre as quais os litígios de D. João III
com o clero nacional e com a Santa Sé, e as violentas dissensões
entre o Papa e Carlos V, cunhado do rei de Portugal, que
culminaram no saque e incêndio de Roma em 1527, deram-lhe
oportunidade para, neste campo, ir mais longe do que qualquer
outro autor português do século XVI”. (SARAIVA e LOPES, 1975:
213).
Ano em que muitos estudiosos de Gil Vicente acreditam ter sido feita e encenada
esta peça. É por isso que Roma afirma que, se os cristãos mesmos a matam, quem poderá
socorrê-la.
O autor vai se posicionando nestas polêmicas e discussões à medida que justifica o
saque à Roma pela sua própria conduta, através do Diabo. Quando ela está chegando no
local do comércio ele diz:
“Quero-me eu concentrar
Porque lhe sei a maneira
De seu vender e comprar” (VICENTE, 1965: 402)
Confirmando o hábito que ela tinha de sempre comprar dele mentiras, enganos,
falsidades e outras mercadorias desta mesma espécie.
O Serafim lhe adverte que esta é uma boa feira, e se ela quer paz ela a terá desde
que sua vida tenha sido marcada por santas condutas. Mas se ela tenciona comprar o
perdão, isto ela não conseguirá. Notemos outra agulhada satírica de nosso dramaturgo à
venda de indulgências pela Igreja Católica.
“Oh vendei-me a paz dos ceos,
Pois tenho o poder na terra” (VICENTE, 1965: 405).
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Quando não consegue convencer o Anjo a lhe vender paz, verdade e fé, Roma
dirige-se ao Tempo e a Mercúrio, implorando-lhes ajuda. Então, o deus do comércio dá-lhe
um cofre de conselhos, alertando-a de que com eles a Virgem poderá ajudá-la,
encontrando, desta maneira, o que procura na feira sagrada, podendo a partir daí emendar-
se na vida.
“Porque vives mal toucada,
E não sentes como estás;
E acharás a maneira
Como emendes a vida:
E não digas mal da feira;
Porque tu seras perdida,
Se não mudas a carreira” (VICENTE, 1965: 406).
No entanto, Gil Vicente concede ao Diabo a palavra final, o que nos faz perceber
que o comportamento dissoluto do Clero é algo tão intenso naquele momento, pois que
apesar das advertências do Serafim e dos conselhos de Mercúrio, Roma cai novamente em
tentação, denunciando assim a falta de compromisso desta com sua verdadeira vocação, a
espiritual.
Os mercadores antagonistas conseguiram terminar a sua missão.
As falas que as personagens utilizam estão em perfeito equilíbrio,
mas eis que a quebrar a ordem chega o Diabo que vai realizar o
projeto do poeta: demonstrar que Roma é um ser ainda mais
diabólico do que ele próprio. No momento de se despedir de Roma
este terá a última palavra... deixando assim o público perante um
dilema: a Igreja voltará à vida simples ‘dos primeiros, os
antecessores’ ou continua na sua dissolução e a Cristandade
permanece para sempre corrupta? Gil Vicente deixa este problema
por resolver na figura do Diabo, que, metendo-se na conversa, pede
a Roma o dinheiro com que teria comprado o cofre de conselhos
oferecido por Mercúrio e a este o objeto em questão [...]
(TRANCHIDA, 1992: 195).
Desta maneira, o Diabo deixa subentendido que ficava com ambas as coisas;
depende, então, de Roma a decisão final: se vai viver sob o signo do Demônio ou se vai
seguir os conselhos de Mercúrio.
Voltando à nossa primeira personagem, o Frade, vemos portanto que tanto esta
como Roma são duramente criticadas. Configurando uma situação tal, que não apenas uma
figura-tipo, mas até o Papado não está livre da pena satírica de nosso dramaturgo. Por isso,
reiteramos a nossa posição de que foi pela opção estética que o poeta da Corte portuguesa
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pode como bem entendeu satirizar os indivíduos de comportamento dissoluto membros da
Igreja, quer pertencessem ao cimo da hierarquia eclesiástica, quer ocupando os lugares
mais baixos desta.
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O ENFORCADO
Continuando ainda neste aspecto da farsa, o engano; podemos encontrar no Auto da
Barca do Inferno outra personagem, o Enforcado. Porém diferente do Onzeneiro, da
Alcoviteira e do Sapateiro, que dedicaram suas vidas na Terra a enganar os outros, o
Enforcado, ao contrário, é vítima da justiça, pois foi enganado por ela. No diálogo com o
Diabo é que toda a verdade aparece e a oposição verdade/engano se torna bastante
contundente.
Segundo Bernardes (1996), uma leitura do macro-texto vicentino deixa a impressão
nítida de um conflito permanente entre o engano e a verdade, com esta sendo
sistematicamente postergada em nome de condutas e processos amorais. Esse conflito,
todavia, para além de constituir o resultado imediato de um jogo de oposições, tem também
relação direta, muitas vezes, com o questionamento dos próprios conceitos de verdade e de
engano. Diríamos até que, na análise de algumas personagens, tal situação se mostra em
toda sua plenitude, e não apenas numa análise macro-textual. É como veremos nossa figura
com a corda no pescoço desfilar diante do arrais do Inferno.
“Vem hum Enforcado, e diz o Diabo
Venhais embora, Enforcado.
Que diz lá Garcia Moniz?
Enforcado: Eu vos direi que ele diz
Que fui bem aventurado;
Que polos furtos que eu fiz,
Sou sancto canonizado;
Pois morri dependurado,
Como o tordo na buiz” (VICENTE, 1965: 244).
Como todas as personagens desta peça, o Enforcado traz consigo um objeto que
simboliza seu pecado. Como não leva os objetos que roubou, carrega no pescoço a corda
com a qual foi enforcado, isto é, foi executada a sentença de morte; que simboliza também
a condenação jurídico-religiosa. A personagem é condenada pelos furtos que cometeu. Mas
o roubo é considerado também pela Igreja um pecado. Assim, podemos ter uma dupla
condenação desse ladrão. De um lado, a sociedade e de outro a Igreja, que na verdade não
são condenações opostas, mas sim condenações que estão interrelacionadas.
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Enforcado: “Pezar de San Barrabaz
Se Garcia Moniz diz
Que os que morrem como eu fiz,
São livres de Satanaz!
[...]
E no passo derradeiro,
Me disse nos ouvidos,
Que o logar dos escolhidos
Era a forca e o Limoeiro:
Nem guardião de mosteiro
Não tinha mais sancta gente,
Como Afonso Valente,
O que agora é carcereiro” (VICENTE, 1965: 244).
Desta dupla condenação, podemos destacar primeiro, a social. Nesta passagem da
peça, ao ser condenado à forca, Garcia Moniz diz ao ouvido do Enforcado que ele será
salvo, pois seria purificado através do enforcamento. Notemos o quanto a personagem
acredita na promessa de salvação de uma autoridade das prisões. É com base nesta
promessa que ele se recusa a entrar no batel infernal. Pois ela o havia dito que os
escolhidos eram os da forca e do Limoeiro. É interessante destacar a ambigüidade presente
no discurso desta autoridade: aqueles que são condenados pela sociedade, pela justiça, são
absolvidos por Deus.
No entanto, o Diabo mostra que o discurso dela era um engodo e mostra também a
limitação de seu poder. Na Terra ele era a autoridade, tinha poder sobre os condenados;
poder de vida e morte. Mas no “além” este homem tinha o seu poder contestado por um
maior, o do Diabo. Somente ele é capaz de decidir sobre a salvação ou a condenação desta
alma.
Para demonstrar tudo isso o Diabo interroga o Enforcado acerca das promessas de
Moniz.
Diabo: “Falou-te no Purgatório?
Enforcado: Diz que foi o Limoeiro;
E ora por elle o salteiro;
E o pregão vitatorio;
E que era muito notorio
Que aquelles disciprinados
Erão joras dos finados,
E missa de San Gregorio(VICENTE, 1965: 246).
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É importante destacarmos que o dramaturgo faz uma ligação do Limoeiro com o
purgatório. O Limoeiro representa o Purgatório na Terra. Uma vez que o indivíduo tenha
passado por lá, quando morre vai direto para o Paraíso, pois já purgara os seus pecados. Na
última estrofe aparece o San Gregório, santo que intercede a favor das almas detidas no
Purgatório. Daí se depreende que, uma vez condenado e enforcado, esta personagem,
acreditando nas promessas de uma autoridade terrena – que teve o poder de tirar-lhe a vida
– deveria ir diretamente, após a sua morte, para o Paraíso.
Satirizando a situação do Enforcado, Gil Vicente tece sua crítica àqueles que
acreditavam que as penas do Purgatório poderiam ser substituídas pelas punições legais ou
mesmo pelos sofrimentos pelos quais passavam os seres humanos; pela intervenção dos
santos e das preces no processo de salvação das almas. Esta crítica aparece diversas vezes,
nas Barcas. O Fidalgo fora criticado pelo Diabo quando afirmava que havia deixado na
Terra quem rezava por ele. No Auto da Barca da Glória, onde desfilam as personagens
representando o cimo da hierarquia social portuguesa quinhentista, as almas, quando
tomam consciência que serão lançadas nas chamas infernais põem-se a rezar. Também no
Auto da Barca do Purgatório, nosso dramaturgo, através do Anjo ou do Diabo, denuncia a
ineficácia da prece separada das boas ações e dos bons sentimentos.
Estas imagens e idéias estão presentes no pensamento medieval, quando o
Purgatório se apresenta como um lugar definido e com função específica no espaço
celestial. Desta maneira, a Igreja estende seus poderes até o além-túmulo. No seu livro La
Naissance du Purgatoire, Le Goff (1981) demonstra como o Purgatório surge enquanto
espaço intermediário entre o Paraíso e o Inferno, e o quanto a Igreja tira proveito da
existência deste novo espaço.
“Il reste que l’Église, au sens ecclésiastique, clérical, tire grand
pouvoir du nouveau système de l’au-delà. Elle administre ou
contrôle des prières, des aumônes, des messes, des offrandes de
toutes sortes accomplies par les vivants en faveur de leurs morts, et
elle en bénéficie. Elle développe, grâce au Purgatoire, le système des
indulgences, source de grand profits de puissance et d’argent, avant
de devenir une arme dangereuse que se retournera contre elle”
13
13
A Igreja, no sentido eclesiástico, clerical, aproveita do poder do novo sistema do além-túmulo. Ela
administra ou controla preces, esmolas, missas, oferendas de todos os tipos pelos vivos em favor de seus
mortos, beneficiando-se com isso. Desenvolve, graças ao Purgatório, o sistema das indulgências, fonte de
grandes proveitos do poder e do dinheiro, antes de se tornar uma arma perigosa que se retornará contra
ela”. Tradução nossa.
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(LE GOFF, 1981: 335).
E é justamente aos membros desta instituição e a todos aqueles que acreditam que
tanto o poder temporal quanto o poder espiritual pudessem interferir e decidir o futuro das
almas na vida após a morte, que o nosso dramaturgo dirige a sua sátira.
Por isso, o Diabo mostra à personagem quem detém este poder, quem tem a palavra
final sobre a sua salvação ou a sua condenação.
Diabo: “Ora entra; pois hás déntrar...”
Enforcado: “Entremos, pois que assi vai.”
Diabo: “Este foi bom d’embarcar” (VICENTE, 1965: 246).
Não podendo com o poder do Diabo que decide seu destino final, o Enforcado entra
na barca que o conduz ao Inferno.
Ao colocar o Enforcado no batel infernal, Gil Vicente nos mostra duas coisas:
primeiro, que o poder temporal, aqui representado por Garcia Moniz, não pode interferir na
esfera de atuação do poder espiritual. Segundo, condena duplamente esta personagem, que
era ladrão. Por um lado ela é condenada pela justiça a morrer na forca. E por outro, quando
morre é condenado pelo Diabo a sofrer as penas infernais; que tinha morrido acreditando
estar salvo, porque fora enforcado; e chegando mesmo a se comparar com um santo
canonizado. Desta forma, Gil Vicente, representando os valores morais e éticos da
sociedade quinhentista portuguesa, deixa claro o lugar ocupado pelo ladrão: o de excluído,
o de banido da sociedade. E para reforçar tal posição, é interessante percebermos que quase
todas as personagens desta peça, que são condenadas, no primeiro momento se recusam a
entrar na barca do Diabo e vão até a barca do Anjo implorar para ter a permissão deste para
entrar na barca do Paraíso, no entanto o dramaturgo português não concede esta graça nem
ao Judeu nem ao Enforcado. Enfim, o autor não lhes nem mesmo a chance de implorar
ao Anjo a permissão de entrar na barca do Paraíso. Podemos dizer que, aqui, permissão se
torna sinônimo de um direito de pedido de perdão que foi negado ao Enforcado,
denunciando a total exclusão deste elemento do corpo social.
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O CORREGEDOR E O PROCURADOR
Nesta parte da análise das personagens vicentinas, destacaremos a figura do
Corregedor e logo em seguida do Procurador. Aquela adentra o palco e se depara com o
Diabo.
Corregedor: “Hou da barca!
Diabo: Que quereis?
Corregedor: Está aqui o Senhor Juiz.
Diabo: O amador de perdiz,
Quantos feitos que trazeis!(VICENTE, 1965: 239).
No primeiro contato o Corregedor diz ao Diabo quem é: Senhor Juiz. A partir daqui
Gil Vicente tece toda a ironia sobre este homem que utilizou da sua profissão para explorar
os mais fracos em proveito próprio.
O Diabo o convida a entrar na barca, mas quando o magistrado fica sabendo para
onde ela vai, ele,com muita prepotência, se recusa a embarcar.
Corregedor: “Como! Á terra dos Demos
Há de ir hum Corregedor?” (VICENTE, 1965: 240).
Então o Diabo se torna mais irônico.
“Sancto descorregedor,
Embarcae, e remaremos” (VICENTE, 1965: 240).
Note que ele o chama de santo e descorregedor. A função da personagem era
corrigir os erros e abusos das autoridades judiciárias. Colocando o prefixo des diante do
substantivo corregedor, o demônio inverte a ação desta personagem, ao invés de corrigir os
abusos ele mesmo os praticava.
O Corregedor continua a recusar o convite de Satanás e, se sentindo ofendido pelo
Diabo, pergunta se há um meirinho por ali:
“Oh renego da viagem,
E de quem n’há de levar!
Há aqui meirinho do mar?” (VICENTE, 1965: 240).
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O meirinho era um antigo magistrado, de nomeação régia, e que governava
amplamente um território ou comarca. Então o arrais do inferno diz que Não ca tal
costumagem”. Desta forma ele lembra ao Corregedor que estas hierarquias e regalias a que
ele estava acostumado não existem após a morte.
Entretanto, o embate continua e para mostrar-se importante a personagem utiliza-se
do latim:
Corregedor: Hou, videtis quei pelatis?
Super jure majestatis
Tem vosso mando vigor?
Diabo: Quando ereis ouvidor,
Nonne accipistis rapina?
Pois ireis pela bolina
Onde nossa mercê for.
Oh que isca esse papel,
Pera hum fogo qu’eu sei! (VICENTE, 1965: 240).
Nas discussões tecidas entre os estudiosos de Gil Vicente, um dos pontos polêmicos
de sua biografia é sua formação. Como a documentação não é farta, eles utilizam-se dos
próprios textos do dramaturgo para tentar desvendar a educação que ele recebeu. De
acordo com Teyssier (1982), Carolina Michaëlis analisa as citações latinas presentes nos
textos vicentinos e certifica que o latim de Gil Vicente é, em geral, muito incorreto, isto é,
um latim de Igreja e não de um humanista. A partir d outros vicentistas têm-se
enveredado por este caminho e os críticos cautelosos chegaram à conclusão que o nosso
dramaturgo não foi de certo um humanista. Mas, que o latim cheio de erros que aparece
nos seus textos têm “origem possivelmente menos na sua ignorância do que numa vontade
muito consciente de deformar a língua para ter efeitos burlescos(TEYSSIER, 1982: 17).
E acrescentaríamos mais, para provocar um efeito cômico. Pois o Diabo respondendo em
latim torna a situação muito mais satírica e por isso, mais divertida. Uma vez que o arrais
do Inferno brinca com a arrogância e a prepotência deste homem da lei, cuja pretensão é
tão grande que tenta impor o sistema judicial da Terra no além-túmulo, domínio do
sobrenatural. Por isso, a figura demoníaca lembra ao Corregedor porque ele tem que
embarcar no seu batel. Haja vista que em vida aceitou propinas, foi corrupto e fez do cargo
que ocupava um meio para satisfazer suas próprias ambições.
O Corregedor, contudo, julgara e continua a acreditar que o cargo
que desempenhara o afastaria do Inferno. Firmando a sua posição,
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vai ao ponto de, em latim, expor que tal destino não é da regra do
direito, pretendendo desta forma aplicar o seu sistema judicial no
além-túmulo, ao existente fora da sociedade dos mortais. Reclama
um meirinho do mar e põe em dúvida o poder do Diabo. Mas a este
pouco importam as palavras, visto que pelas obras escolhera o
Corregedor a embarcação para os seus domínios. Fora corrupto
(CRUZ, 1990: 22-23).
Nas duas últimas estrofes o Diabo chama a atenção para o símbolo dos seus
pecados, os papéis, e que ele traz consigo como uma marca, igual a todas as outras
personagens deste auto.
O Diabo recorda ainda os subornos que o Corregedor recebia dos judeus, mas quem
os recebia era a sua mulher; julgando este poder ficar desta maneira livre de qualquer
acusação. Porém o Diabo, este juiz inclemente e implacável, não deixa nada escapar.
“E as peitas dos Judeus
Que vossa mulher levava?” (VICENTE, 1965: 241).
Mas não se pode pensar que a malícia era característica dos juízes e outros
magistrados. Não. Também os escrivãos, esses então numerosíssimos, estariam a arder no
Inferno.
Diabo: “Ora entrae nos negros fados,
Ireis ao lago dos cães,
E vereis os escrivães
Como estão tão prosperados”(VICENTE, 1965: 241).
Vem um Procurador, e diz o Corregedor, quando o vê:
Corregedor: “Ó Senhor Procurador!
Procurador: Bejo-vo-las mãos, Juiz.
Que diz esse arrais? Que diz?
Diabo: Que sereis bom remador.
Entrae, bacharel doutor,
E ireis dando á bomba” (VICENTE, 1965: 241-242).
É interessante perceber o quanto o Diabo se encontra atento e como ele se intromete
de maneira até grosseira na conversa dos dois magistrados, pois ambos já lhe pertencem. E,
apesar da maneira solene de tratar o Procurador, ele faz questão de dizer que ele será bom
remador da barca que o conduzirá ao Inferno.
Quando ele o chama de bacharel doutor, estaria Gil Vicente demonstrando a
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diferença entre trabalho manual e intelectual? Depreciando de certa forma o primeiro?
Apesar das personagens terem exercido o trabalho intelectual em vida, ironicamente terá
que substituí-lo pelo manual, o de remador, pois é remando o batel infernal que ele chegará
ao seu destino.
Logo em seguida Corregedor e Procurador confessam um ao outro suas ações
corruptas, que são, obviamente, a causa da condenação de ambos.
Corregedor: “Confessates-vos, doutor?
Procurador: Bacharel sou. Dou-me ó demo!
Não cuidei que era extremo,
Nem de morte minha dor.
E vós, Senhor Corregedor?
Corregedor: Eu mui bem me confessei;
Mas tudo quanto roubei
Encubri ao confessor.
Porque, se o não tornais,
Não vos querem absolver;
E he mui mao de volver,
Depois que o apanhais” (VICENTE, 1965: 242).
O Diabo sempre perspicaz, após estas confissões os convida novamente a entrar,
Pois porque não embarcais?”, mas eles se recusam e vão à barca do Anjo.
Corregedor: “Hou arrais dos gloriosos,
Passe-nos nesse batel.
Anjo: Oh pragas pela papel,
Pera as almas odiosas
Como vides preciosos
Sendo filhos da sciencia!”
(VICENTE, 1965: 242-243).
Novamente Gil Vicente faz menção ao trabalho intelectual, através da fala do Anjo:
Sendo filhos da sciencia”, não cremos que seja uma crítica a função ou cargos que estes
ocupavam, mas sim aos próprios indivíduos que são corruptos. Como foi dito
anteriormente neste trabalho, o dramaturgo aposta nas instituições, por isso para melhorar
ou mudar a sociedade quinhentista resgatando a moral e os valores religiosos perdidos, são
os indivíduos que devem se transformar e não propriamente as instituições.
Neste momento o Parvo intervém num “pseudolatim” para acusá-los de corrupção.
“Hou homens dos breviairios,
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Rapinstis coelhorum,
Et pernis perdigotorum,
E mijais nos campanairos” (VICENTE, 1965: 243).
Então o Anjo reafirma a condenação das duas almas, lembrando-as, porque é que
elas trazem para o além-túmulo os símbolos de seus pecados.
“A justiça divinal
Vos manda vir carregados,
Porque vades embarcados
Nesse batel infernal” (VICENTE, 1965: 243).
O Procurador, antes de entrar na barca infernal, ainda procura chamar em sua
defesa o texto da lei, mas é logo interrompido pelo Diabo. Na embarcação do Inferno
encontrará o Corregedor uma pessoa conhecida: a alcoviteira Brizida Vaz, a quem ele
mandava muitas vezes castigar em nome da justiça e que, finalmente, lhe conseguia
escapar” (CRUZ, 1990: 24), como prova de sua incompetência ou atitude corrupta (recebia
propinas para soltá-la?).
Mas a crítica vicentina é por vezes direta, atingindo claramente o seu alvo sem
necessitar de tipos, com as suas características estereotipadas o identificáveis
rigorosamente de um determinado indivíduo. Na embarcação do Inferno pergunta-se por
Pêro de Lisboa, escrivão da Fazenda, que bem deveria ir à tona, tal a sua atividade.
Brizida Vaz: Dizede, juiz d’alçada,
Vem já Pero de Lisboa?
Leva-lo-hemos à toda,
E irá desta barcada” (VICENTE, 1965: 244).
É importante ressaltar que os cargos de Corregedor e Procurador o cargos
públicos, que, segundo Oliveira Marques (1971), integravam-se numa classe, a
“intelligentizia” dos fins da Idade Média. São indivíduos escolhidos devido à sua formação
em universidades. Certamente nesta escolha estava presente também o favoritismo. O
funcionário público tinha grande vantagem sobre os mesterais, quanto à jornada de
trabalho.
O número de horas variava com o cargo mas podia limitar-se a
quatro... obrigado apenas a estar presente entre as 6 e as 10 horas
da manhã no verão, e as 8 e as 11, no inverno. Mesmo assim
registravam-se faltas e abusos. Chegada a velhice, o funcionário
recebia reforma por inteiro e continuava a gozar dos privilégios
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inerentes ao cargo” (MARQUES, 1971: 145).
Diante de tantos privilégios, num contexto de enormes injustiças sociais, Gil
Vicente não vacila e lança os magistrados ao fogo do inferno. Cremos que de todos os
castigos que podemos pontuar ao longo de suas peças, as penas infernais são as mais
terrificantes, pois não existe a menor possibilidade de perdão, conseqüentemente, de
salvação destas almas. Nosso dramaturgo se mostra intransigente diante de certos
comportamentos e valores.
Embora seja uma situação profundamente séria, o que prevalece é o riso. O riso que
não prima apenas pelo deboche, mas que tem por objetivo atingir o público que o assiste
levando-o à reflexão. E o destaque está na figura do Diabo, que mesmo exercendo a função
de um juiz implacável diverte-se com a arrogância e a prepotência do Corregedor e do
Procurador. Imitando-os na linguagem, que se pretende culta, por ser o latim, o Diabo o
transforma em latim “macarrônico”, destronando-o do seu status de língua culta. Fazendo-
o descer do cimo da cultura erudita, ele se torna particularmente satírico.
Personagem farsesca, o arrais do Inferno julga todas as almas deste auto auxiliando
o Anjo a pronunciar a sentença final. Porém, é precisamente no diálogo com os
magistrados que sua caracterização ganha contornos mais coloridos. Segundo Bernardes
(1996), o adjetivo e a imagem de cunho depreciativos ganham uma expressão muito
grande, enquanto os recursos estilísticos da caracterização direta têm origem em
personagens especialmente marcadas para esse fim. Dentre vários exemplos presentes no
interior da obra vicentina, vale ressaltar os Diabos das barcas do Inferno e do Purgatório,
ricos no recurso a imagens infernais para denunciar a ação pecaminosa dos condenados e
para proclamar os castigos que os esperam. Acrescentaríamos a isso, que, neste primeiro
auto, a ressalva maior seria para o barqueiro do Inferno quando ridiculariza a situação do
Procurador e do Corregedor, que de tão orgulhosos, devido aos privilégios socio-
profissionais, não conseguiam perceber que as hierarquias e regalias desfrutadas na Terra
não tinham valor nenhum no mundo sobrenatural, nos domínios de Deus ou do Diabo.
- 126 -
O TAFUL
Para concluirmos a análise das personagens do grupo dos condenados resta ainda
uma última personagem, o Taful, que apesar de não fazer parte do Auto da Barca do
Inferno e pertencer ao Auto da Barca do Purgatório, é nesta peça, a única condenada às
penas infernais. Todas as demais, excetuando um menino que é aceito no batel divinal,
purgam na ribeira os seus pecados até o dia em que Deus decida abrir-lhes as portas do
Paraíso.
Entra o Taful, assim que o Menino embarca no batel divinal. E o Diabo vai logo
mostrando o quanto são íntimos. Ele o chama de meu sócio, meu amigo, irmão; tudo isso
indica que a personagem não tem a menor possibilidade de salvação. E, para reafirmar tal
situação, ele o denomina de meu bem e meu cabedal. Ou seja, esta personagem compõe o
patrimônio do Diabo. Pois ela nunca temeu a “viagem infernal” praticando as ões que a
Igreja representante de Deus na Terra, único caminho da salvação eterna condenava,
sem temer as conseqüências.
Taful: Eis aqui flux d’hum metal.
Diabo: Pois sabe que eu te ganhei.
Taful: Mostra se tens jôgo tal.
Diabo: Tu perdes o enxoval.
Taful: Não he isto flux com o rei” (VICENTE, 1965: 273).
Continuando o diálogo entre o Taful e o Demônio, percebemos quem era esta
personagem em vida: um jogador. O esclarecimento ocorre porque o Diabo vai fazendo
com que ela mesma denuncie sua atividade através de expressões próprias do jogo: flux
d’hum metal”, ou seja, dinheiro em grande quantidade; mostra se tens jôgo tal”, aqui ele
utiliza mesmo o substantivo, jogo. Então o Diabo diz: Embaralha o jogo e partamos”. O
verbo partir pode ser analisado em dois sentidos diferentes, mas que não se opõem. Partir o
baralho, para que o Taful e o Diabo possam jogar e partir no sentido de entrar na barca
infernal. Uma vez que esta personagem foi jogadora só lhe resta a condenação.
Taful: Paga, que eu não jogo em vão.
Diabo: Lá no frete descontâmos,
Quer ganhemos, quer percamos,
- 127 -
Tudo nos fica na mão” (VICENTE, 1965: 273).
Nestes versos o barqueiro infernal afirma que o Taful é uma alma condenada. Ela
não tem necessidade de o pagar de imediato, pois será descontado no frete. Isto é, no frete
da barca infernal, onde a personagem entrará; e de mais a mais qualquer um que ganhar
tudo nos fica na mão, porque esta alma lhe pertence mesmo. Assim o Diabo esclarece
o porquê da intimidade inicial com a personagem.
Logo em seguida o Demônio convida o Taful para jogar, explicitando desta
maneira os motivos que o farão embarcar no batel infernal.
“Mas tornemos a jogar,
Porque tenho saudade
De te ouvir arrenegar,
E descrer e brasfemar
Do mistério da trindade.
[...]
Não sei como agora calas,
Renegando a soltas alas
De Deos e da ladainha.
Este dia e as oitavas,
Por paços, salas e cantos,
Oh quanta glória me davas,
Quanto à hostia blasfemavas,
E deshonravas os Santos!(VICENTE, 1965: 273)
Quantos pecados cometidos pelo jogador, enquanto jogava: renegava, desacreditava
e blasfemava do mistério da Trindade, de Deus e da ladainha, da hóstia e ainda desonrava
os santos.
Jean Delumeau, em seu livro História do medo no Ocidente, afirma que a luta sem
trégua que a Igreja e os teólogos do fim do período medieval e do início dos tempos
modernos travam contra os inimigos, o Diabo e seus sequazes (os idólatras, os
muçulmanos, os judeus e as feiticeiras) não pode ser separada da que foi conduzida ao
mesmo tempo contra todo um conjunto de comportamentos considerados repreensíveis,
suspeitos ou inquietantes. Tanto as autoridades civis quanto as religiosas decidiram
disciplinar uma sociedade que lhes pareceu viver à margem das normas proclamadas. Entre
o vivido e o prescrito existia um fosso que tornou-se necessário preencher.
Afirma esse autor que reveladora dessa “normalização” vigilante é a luta contra as
- 128 -
blasfêmias. Muitos documentos (cartas de remição, editos, processos diante dos tribunais
leigos e eclesiásticos, manuais de confessores, obras de casuísticas e outros) atestam que os
europeus do começo da Idade Moderna praguejavam e blasfemavam. Dentre eles, uma lei
foi promulgada pelo soberano português, D. João I, comprovando a necessidade da aliança
entre o Estado e a Igreja no combate a estes desvios de comportamento que colocavam em
risco o destino da civilização cristã.
Assim, uma lei de janeiro de 1416 promulgada em Portugal por
João I assegura que : ‘Desde algum tempo certas pessoas, por seus
pecados, caíram ou caem no gravíssimo pecado de heresia, dizendo,
crendo e afirmando coisas que vão contra Nosso Senhor Deus e a
Santa Madre Igreja sem temer os grandes castigos eternos e
temporais previstos pelo direito comum e por nossas leis’. Onze
anos mais tarde, o rei volta à necessidade de uma estrita punição
dos blasfemadores, pois eles atraem sobre o mundo ‘fomes’, ‘pestes’
e ‘tremores de terra’”. (MORENO apud DELUMEAU, 1996).
Situação semelhante é encontrada em diversos países europeus nos quais os
defensores da cristã se armam para combater este pecado gravíssimo: a blasfêmia. Esta,
além de destruir o mundo cristão, provoca acima de tudo a ira divina e a expressão da
mesma através de cataclismas, doenças e fome: devido à crise e às profundas mudanças
pelas quais passavam a sociedade européia cristã, em seus mais diversos níveis, desde a
Peste Negra que dizimou grande parte da população deste continente até à Expansão
Marítima que deu um grande golpe na economia feudal, criou-se nos espíritos desta época
a impressão de que está se confrontando com uma civilização da blasfêmia. Por isso, a
Igreja e o Estado se unem no combate a tais comportamentos e toda e qualquer
divertimento que pudesse levar a estes desvios. Daí, a proibição dos jogos de azar.
Assim se explica especialmente que a Igreja e o Estado tenham por
toda parte e indefinidamente repetido (mas, aparentemente, com
muito pouco sucesso) a proibição dos jogos de azar. Sem dúvida foi
em parte por causa das perdas de dinheiro que deles podiam
resultar para pessoas sem fortuna e em parte também em razão das
rixas que provocavam. Mas, sobretudo, eles davam ocasião a
blasfêmias. Nisso residia o seu maior perigo(DELUMEAU, 1996:
407).
E estão as razões pelas quais o jogador se tornou “bem e cabedal” do Diabo. No
entanto, o Taful não aceita tal julgamento e diz:
“Cant’eu sempre ouvi dizer,
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Quem bem renega, bem cre:” (VICENTE, 1965: 274).
Acostumado a blefar, ele realiza seu blefe triunfal chegando a afirmar que quem
renega, bem crê. Nesse sentido, ele se assemelha à Alcoviteira e ao Onzeneiro da outra
barca. Tendo por hábito enganar, pois o jogo pressupõe o engano, estende para a outra vida
seus hábitos e, por isso, evidencia sua condição de personagem farsesca.
Mesmo reconhecendo todos os seus pecados, que foram enumerados pelo Diabo,
conta com a piedade e a misericórdia para ser salvo.
“Haverá cá piedade
D’hum homem tão carregado?” (VICENTE, 1965: 274).
Então o Anjo responde:
“Mas a infinita crueldade
Com que offendeste a magestade,
Renegando seu estado?
Taful: Vêde que estava occupado
Na gran perda que perdia.
Anjo: E Deos que culpa t’havia,
Taful mal-aventurado,
Sem valia?
Renegar tão feramente
Da Imperatriz dos ceos.
Ó pranta de ma semente,
Arderás no fogo ardente,
Com toda a ira de Deos” (VICENTE, 1965: 274).
Nesta passagem o Anjo reafirma a condenação do jogador, inicialmente
estabelecida pelo arrais do Inferno. No entanto, o Taful argumentava com o Anjo
recorrendo ao sacrifício de Cristo, que morreu na cruz para salvar a humanidade.
“Deos não quis hoje nacer
Por remir os pecados?” (VICENTE, 1965: 274).
Mas o Anjo conclui dizendo:
“Tafues e renegadores
Não tem nenhum salvamento” (VICENTE, 1965: 275).
Assim Gil Vicente termina a peça. É importante notar o contraponto que ele faz
entre a salvação e a condenação, pela ordem que desfilavam as personagens. Primeiro, as
personagens que, mesmo pecadoras, têm a chance de se salvarem, por isso ficam no
- 130 -
purgatório, não embarcando em nenhum dos batéis. Depois vem um Menino, o único a
entrar no batel que conduz ao Paraíso, por ser inocente nunca pecou. Não estava o céu
reservado apenas aos santos e aos inocentes? Daí a necessidade das demais almas ficarem
no Purgatório para purgarem seus pecados. E finalmente o Taful, o único condenado ao
Inferno, sem uma única chance de salvação.
Uma vez que o dramaturgo o condena sem clemência ao Inferno, temos a
condenação de caráter religioso. O reconhecimento da culpa, o arrependimento sincero e a
inocência são três elementos básicos para a salvação da alma, segundo a ótica vicentina.
O arrependimento que os homens sentem por erros cometidos e o
sofrimento que por isso o sobressalta constituem estados de alma
enaltecidos por Gil Vicente e privilegiados para conseguir a
salvação. Particularmente nos ‘autos das barcas’, esta problemática
é constantemente verificada pelo comportamento dos numerosos
intervenientes e pelas advertências, críticas e ironias que ora o
Anjo, ora o Diabo, lhes dirigem. A inocência e a ingenuidade ou
ausência de malícia conduz alguns, poucos, ao Paraíso, enquanto a
circunstância de ser noite de Natal recai a favor de outros,
arrependidos no momento do confronto do seu destino, os quais
errarão pela praia do Purgatório até serem embarcados. Mas a
ausência de qualquer consciência das culpas cometidas ou de
arrependimento conduz a alma, irremediavelmente, ao Inferno
(CRUZ, 1990: 162).
O Purgatório representa para o homem a possibilidade de salvação, e se a noite de
Natal intervém no destino de certas almas, como lembra muito bem o Taful: Deos não
quis hoje nacer / Por remir os pecadores?”, o mesmo não ocorre com ele que não
consegue ficar na praia a espera da salvação. Podíamos perguntar, então, por que Gil
Vicente não lhe dá essa possibilidade, por que toda esta inflexibilidade para com o
jogador? Temos então agora a condenação social. A condenação religiosa significa, por um
lado, a total ausência de possibilidade de salvação. Por outro, a exclusão social que
significa a não aceitação deste tipo de indivíduo na sociedade. Mas qual sociedade?
Mesmo que Gil Vicente condene a moral da sociedade quinhentista, na qual os
indivíduos pretendem ascender socialmente sem nenhum esforço: A obsessão pelo ganho
material em lugar de riqueza espiritual, por subir na hierarquia social mesmo que
utilizando a mentira e a bajulação...” (CRUZ, 1990: 147); mesmo que ele proponha uma
sociedade assentada em bases agrárias, por isso medieval, não podemos negar que no
- 131 -
século XVI vamos encontrar uma sociedade se constituindo com base no trabalho burguês,
assalariado, de onde a burguesia irá auferir lucros para manter e perpetuar seus privilégios.
temos uma sociedade que, baseada no trabalho, não pode aceitar sob qualquer pretexto,
a figura social de um indivíduo que não trabalha e que ganha a vida com o jogo, enfim um
indivíduo do qual não se pode extrair lucro, não pode ser explorado, pois ganha a vida
jogando, não trabalhando. Coincide então a “propaganda burguesa” sobre o trabalho com a
defesa do que deveria ser a sociedade portuguesa, segundo a ótica vicentina? Se assim for,
nosso dramaturgo estaria sendo incoerente? Como defender ao mesmo tempo duas bases
diferentes para uma mesma sociedade: uma mercantilista e outra agrária? Creio que o mais
correto é localizar este “homem” sob a perspectiva de uma sociedade em crise, que tem por
um lado, a desestruturação de um “antigo modo de vida”, o medieval, e tem por outro lado
o nascimento e crescimento de novos valores, como base para uma “nova” sociedade
(mercantilista e burguesa). assim poderemos entender a dupla condenação sofrida pelo
Taful da Barca do Purgatório, a religiosa e a social.
Enfim, ao contrário da situação do Frade e do Fidalgo, que lançados às chamas
infernais, poderiam provocar comoção no público, a condenação do Taful por todas as
razões enumeradas acima e pelo fato da Igreja e do Estado estarem juntos no combate à
heresia, à blasfêmia e conseqüentemente, aos jogos de azar, certamente foi bastante
aplaudida pelo Corte portuguesa.
- 132 -
CAPÍTULO II
A Barca do Purgatório
Veremos agora o segundo grupo de personagens, às quais nosso dramaturgo
concede-lhes a possibilidade de salvação, colocando-as no Purgatório. Na realidade este é
composto por todas as figuras excetuando o Taful que é condenado e o Menino que é
salvo que se apresentam no Auto da Barca do Purgatório. Como na outra barca, a do
Inferno, as personagens passam primeiro no batel infernal e depois seguem para a do
Paraíso. Diferentemente da primeira, elas não retornam embarcando em direção à ilha
perdida, mas ficam na ribeira purgando seus pecados. Também aqui as almas trazem os
objetos que simbolizam suas profissões, grupos sociais, e, conseqüentemente, suas más
ações. Aliados a este significado os objetos também representam a dor, o sofrimento, a
exploração pelos quais passaram os indivíduos na Terra.
Enquanto na Barca do Inferno os tipos estão ligados ao tecido urbano
14
, aqui eles
pertencem ao universo campesino. E por ser um auto natalino isso seria suficiente
para que as almas pudessem esperar por sua salvação, pois Gil Vicente, juntamente com
seu público, eram extremamente católicos. Além disso, o dramaturgo da Corte nutre um
profundo respeito pelos camponeses e defende uma sociedade com base agrária. A prova
14
Sobre a questão do espaço em Gil Vicente, ver a tese de doutoramento de Vânia Leite Fróes. Onde a
autora analisa o espaço campesino demonstrando como a representação do mesmo se liga à ideologia cristã: o
campo é o espaço de contemplação (o campo-presépio) ou é a representação do trabalho (o campo das
“beiras”).
Ela também realiza um estudo sobre o espaço urbano, mostrando que este se organiza basicamente em
torno de quatro representações: a horta, a casa, as beiras, o mar. A primeira corresponde a um espaço
fronteiriço entre o campo e a cidade, e dentro do discurso cristão é identificada ao paraíso após o pecado
original. A segunda corresponde ao espaço mais antigo da cidade e liga-se à idéia de cidade como corpo,
como o que produz, como função [...] A ribeira se constitui num lugar específico da cidade (interno-externo)
e é muitas vezes representada como a área do pecado, por suas características de mutação, pois é
eminentemente a área de transformações. Finalmente, o mar é o espaço de fora, a representação do
maravilhoso e do próprio mundo no sentido de sua infinitude” (FRÓES; 1986: 2).
Estas idéias se unem em torno do paço que é um espaço além do campo e da cidade e que soma, na
verdade, todos os espaços. Esta soma é a própria representação do espaço português”. (FRÓES; 1986: 3).
- 133 -
contundente deste reside no fato de todas as personagens da Barca do Purgatório
representarem os camponeses e ser dada a elas a possibilidade de salvação, purgando na
ribeira os seus pecados.
Um outro ponto a ser destacado é a presença marcante do riso popular. Neste auto,
mais do que nos outros, o riso destrona o medo. Na análise do Fidalgo, afirmamos que Gil
Vicente lança às chamas infernais um membro da elite portuguesa e isto não provocou
nenhuma comoção no seu público, pertencente a esta mesma elite. Então, acreditamos estar
presente o riso popular aliado à tipificação, que possibilita o trânsito das coisas sérias
para o terreno do risível. No entanto, não aprofundamos nossas discussões porque
acreditamos que o que prevaleceu no processo condenatório desta alma, sem provocar a
estranheza do público, foi a Sátira enquanto opção estética aliada à técnica da tipificação
na construção da personagem. Contudo, cremos que na Barca do Purgatório Gil Vicente
conseguiu unir dois tipos de riso, se é que podemos utilizar esta expressão: um
moralizador
15
e o outro popular. O primeiro aparece quando as personagens denunciam sua
dor, seu sofrimento, a exploração e a exclusão ou marginalização social que sofreram em
vida. Mas, quando enfrentam o Diabo, com familiaridade e sem temor, o artista mostra a
face do riso popular ambivalente por natureza que no entanto não exclui o sério mas o
15
Este tipo de riso está bem próximo do tolerado pela teologia medieval, presente no livro de Verena
Albert, O Riso e o Risível na História do Pensamento.
Segundo a autora, o espaço de permissão dos textos cômicos é determinado pelas categorias da
Antiguidade, mais especificamente da retórica. Assim, sua legitimação é condicionada pela delectatio o
repouso e o divertimento entre tarefas sérias e pela utilitas. Primeiro, os textos de matéria risível [...]
deviam servir a uma utilitas moral; eram tolerados na medida em que ensinassem o que era útil na vida e o
que se devia evitar. Esse argumento, porém, dava margem a uma grande flexibilidade, observa Suchomski:
as histórias de traições amorosas que detalhavam os jogos sexuais dos amantes não eram de modo algum
raras, e mesmo que se alegasse sua finalidade moral, por apresentarem uma prática a ser evitada, o
desfecho da aventura nem sempre era desfavorável aos amantes. Segundo, tolerava-se que os religiosos
jovens em formação, portanto a quem se podia perdoar alguns pecados de juventude escrevessem textos
cômicos: se a matéria não estivesse totalmente dentro da moral, eles estariam pelo menos exercitando seus
espíritos, aproveitando a experiência para melhorar seu domínio da língua e da estilística(ALBERTI;
1999: 72).
Cabe aqui uma última referência à introdução de pequenas histórias de matéria cômica na pregação
religiosa, prática que pode ser observada, segundo Suchomski, pelo menos a partir do culo XIII. A teoria
da pregação incluía, desde Santo Agostinho (354-430) até o século XIV, os ensinamentos retóricos de Cícero
e Quintiliano, mas não incorporava suas instruções sobre o ridiculum. A partir do século XIII, diz
Suchomski, pequenas histórias cômicas passam a ser introduzidas na pregação religiosa, através de uma
outra tradição teórica a teoria dos exemplos. Os exemplos consistiam em histórias concretas incluídas no
sermão para convencer o blico menos instruído do que havia sido dito. Suchomski observa, entre os
tratados sobre o emprego dos exemplos na pregação, um texto do século XIII mencionando os jocundis
exemplis: narrativas cômicas que aliviavam momentaneamente a seriedade do sermão e que deviam ser
utilizadas a fim de chamar a atenção para o ensinamento sério que se seguia. Como tudo o que diz respeito
ao risível nesse contexto, os jocundis exemplis
estavam submetidos aos propósitos sérios, não podiam
constituir um fim em si mesmo e eram limitados em quantidade (tinham que ser pouco empregados nos
sermões) e em qualidade (proibiam-se a bufonaria, as obscenidades e a farsa)” (ALBERTI: 1999: 72).
- 134 -
destrona e o rebaixa.
Segundo Bakhtin (1993), na cultura clássica, o sério é oficial, autoritário e está
associado à violência, às interdições, às restrições. Há na seriedade um elemento de medo e
intimidação, que dominava profundamente o homem medieval. Ao contrário do riso
popular que supõe que o medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma interdição,
nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do
riso.
Tentaremos demonstrar então em nossos estudos sobre este grupo de personagens,
os valores defendidos pelo dramaturgo português, a opção estética pela sátira e
conseqüentemente a tipificação e a presença dos tipos de riso.
O Purgatório é aqui o espaço por excelência, local de possibilidade, aparece
configurando-se como espaço definido na geografia celestial por volta do século XIII.
Segundo Jacques Le Goff (1983), a sociedade maniqueísta da Alta Idade Média cedia-se,
tornava-se insuportável, uma vez que havia somente dois lugares possíveis de se habitar na
eternidade: o Paraíso, local reservado essencialmente aos santos, e o Inferno, reservado à
imensa maioria, porque qualquer deslize humano levava os indivíduos à perdição eterna.
No entanto, o mundo medieval estava mudando, a terra melhor cultivada, rendia mais
máquinas (charruas com rodas e com aiveca, teares, moinho); ferramentas (grade de
esterroar, relha do arado); técnicas (maneiras de lavrar e de tratar a vinha, sistema de
engrenagens permitindo transformar o movimento contínuo em movimento alternativo,
aparecimento ao lado dos números simbólicos, de uma aritmética que engendra uma
verdadeira mania de contar por volta de 1200). Tudo isso ainda não se chamava progresso,
porém, era sentido como um crescimento. A história tomava impulso e a vida na Terra
deveria ser o princípio, a aprendizagem de uma subida em direção a Deus. É aqui embaixo
que a humanidade poderia salvar-se. E o artifício foi o Purgatório. Ele nasce no final dessa
grande transformação imaginada pela Igreja como uma modificação de toda a sociedade.
E é exatamente neste terceiro espaço que as almas desta peça têm seu destino final,
ou melhor, transitório. As primeiras personagens a adentrar o palco são os Anjos com seus
remos entoando o seguinte romance:
Romance
- 135 -
“Remando vão remadores
Barca de grande alegria;
O patrão que a guiava,
Filho de Deos se dizia.
Anjos erão os remeiros,
Que remavão á porfia;
Estandarte d’esperança,
Oh quão bem que parecia!
O mastro da fortaleza
Como cristal reluzia;
A vela com fé cozida
Todo o mundo esclarecia;
A ribeira mui serena,
Que nenhum vento bolia” (VICENTE, 1965: 253).
Todas as imagens destes versos nos remetem à paz, à tranqüilidade celestial e nos
faz sentir em plena noite de Natal. Se para os Anjos esta é uma noite de grande alegria, o
mesmo não se pode dizer dos sentimentos que envolvem o Arrais do Inferno. Pois ele sabe
de antemão que sua barca ficará vazia e por isso lamenta:
Diabo: “Ah sancto corpo de mi,
Corpo de mi consagrado!
Como está isto assi
Sem ninguém estar aqui
Neste meu porto dourado,
Agora que está breado
De novo o caravelhão,
Espalmado e aparelhado,
E mais largo bô quinhão,
Que o passado?” (VICENTE, 1965: 253)
Aqui, como na Barca primeira, a opção estética do nosso dramaturgo é a sátira, as
personagens são tipificações e pontuadas de pequenas farsas. Se na Barca do Inferno o
espaço infernal é bem definido, neste uma menção sutil dos espaços, quando o Anjo
o veredicto final: as almas devem ficar purgando na ribeira até que Deus queira que elas
embarquem no batel divinal.
Luciana Stegagno Picchio (1992) afirma que o nascimento do Purgatório como
terceiro lugar transitório de um outro mundo que um rígido esquema dualístico concebera
até então como sede de um Paraíso e de um Inferno subtraídos à temporalidade, eternos,
foi fixado no final do século XII, depois de um processo de elaboração e decantação
iniciado a partir do século III. Para a autora foi graças a Le Goff que hoje temos um
- 136 -
patrimônio solidamente constituído sobre este assunto.
Devemos a Jacques Le Goff não um importante volume
dedicado precisamente à naissance do Purgatório, mas também uma
série de ensaios complementares sobre o imaginário medieval, onde
o Purgatório como tempo e como espaço de uma gestualidade bem
definida é novamente objeto de pesquisa e de estudo. Seguiremos o
caminho iniciado por este autor, apesar de os séculos que ele não
tratou serem os que aqui mais nos interessam, precisamente porque
nas suas opções Gil Vicente foi decerto influenciado não apenas
pelo saber bíblico e medieval comum aos homens de cultura do seu
tempo, mas também por acontecimentos e discussões muito próximas
de si” (PICCHIO, 1992: 162).
O Purgatório vicentino está indicado na peça como um lugar e um tempo
indefinidos, apresenta-se mais como um estado de alma do que como um lugar bem
configurado, especializado na purgação dos pecados; diferente do Purgatório de Dante que
é um lugar específico, uma ilha-montanha localizada entre o Inferno e o Paraíso e cujo
movimento das almas é ascendente em direção àquele que as criou.
“Dante en a déjà dit beaucoup au dernier vers de l’Enfer. Le poète
et son guide, Virgile, sont sortis ‘pour revoir les étoiles’. Le
Purgatoire n’est pas souterrain. Son niveau est celui de la terre,
sous le ciel étoilé. Un vieillard, un sage de l’Antiquité, Caton
d’Utique les accueille car il est le gardien du Purgatoire. Celui-ci
est une montagne dont la partie basse est une antichambre, un lieu
d’attente sont dans l’expectative les morts qui ne sont pas encore
dignes d’entrer au Purgatoire proprement dit”
16
(LE GOFF, 1981:
450).
Para o nosso dramaturgo e seu público este lugar intermediário é ainda um “local”
de purgação, realizável aquém do rio infernal e antes da travessia sem regresso. A sentença
do Anjo é única para as almas que ficarão no Purgatório:
Anjo: “Digo que andes assi
Purgando nessa ribeira,
Até que o Senhor Deos queira
Que te levem pera si
Nesta bateira” (VICENTE, 1965: 260).
16
Dante dissera muito sobre isso no último verso do Inferno. O poeta e seu guia, Virgílio, saíram ‘para
rever as estrelas’. O Purgatório não é subterrâneo. Seu nível é o da terra, sob o céu estrelado. Um ancião,
um sábio da Antiguidade, Caton d’Utique os acolhe visto que ele se trata do guardião do Purgatório. Este é
uma montanha cuja parte baixa é uma antecâmara, um lugar de espera em que se encontram na expectativa
os mortos que ainda não são dignos de entrar no Purgatório propriamente dito”. Tradução nossa.
- 137 -
Neste auto as personagens são também tipos, e fazem o movimento semelhante ao
das almas da Primeira Barca. No entanto, diferentemente da outra peça, elas não retornam
ao batel infernal, pois chegando à embarcação divinal o Anjo a sentença final. Mas, até
chegar a isto o arrais do Paraíso inquire as almas sobre suas condutas e comportamentos na
Terra. Então elas falam das dificuldades que enfrentaram, da exploração de que foram
vítimas, dos preconceitos que sofreram por causa da profissão e/ou por pertencerem aos
grupos sociais subalternos. Falam também de sua e das boas ações que praticaram. No
entanto, o Diabo interfere e enumera os pecados cometidos pelas almas, impedindo-as de
embarcar no batel seguro. Porém, elas não vão fazer parte dos passageiros da barca dos
danados, exceto o Taful, porque a elas foi concedida a possibilidade de salvação.
Para Luciana Stegagno Picchio (1992), nesta peça o Diabo fica espreitando as
almas no seu covil ancorado no “porto dourado” e o Anjo aqui é dotado de uma
personalidade bem mais forte do que na representação precedente, e desmascarará as
fanfarronices do Diabo, dando um “conselho maduro” aos presentes: e não aos mortos,
mas também aos vivos que formam o público. No entanto, para nós as fanfarronices do
Diabo são, na realidade, a força do riso popular, que se mostra em toda a sua plenitude
quando a personagem fixa interfere no depoimento das almas mudando o destino das
mesmas, pois é ela que enumera os pecados cometidos pelas almas durante sua passagem
pela Terra. A impressão que se tem é que o Anjo está disposto a acreditar nas personagens,
mas o Diabo intervém pontuando suas más ações. E é no diálogo entre as almas e o arrais
do Inferno que a sátira vicentina se torna bastante aguda e os elementos da cultura popular
se revelam, pois o medo que deveria balisar estes diálogos é destronado, o sério se torna
risível, exatamente quando no embate com o Diabo as almas o enfrentam, usando até
mesmo do xingamento, descaracterizando, assim, o temor que o Inferno lhes deveria
despertar. As figuras desta peça lamentam as sentenças proferidas pelo Anjo mas não
temem o Diabo.
Segundo Paul Teyssier (1982), os Anjos e, sobretudo, os Diabos; uns e outros
podem aparecer ao mesmo tempo na mesma obra, representando os seus papéis
contraditórios de agentes da salvação ou da perdição. Assim sucede nas três Barcas e no
Auto da Alma. No Auto da Feira se apresenta como um “bufarinheiro”. Mas os Diabos são
mais numerosos nos autos do que os Anjos. São personagens pitorescas e burlescas. A sua
presença suscita logo uma atmosfera de farsa (TEYSSIER, 1982: 120).
- 138 -
Neste contexto de profundas mudanças no Portugal dos Quinhentos (e dentro dos
limites podendo ser consideradas rápidas, e se elas por si mesmas tendem a levar a um
questionamento sobre a razão de ser e da direção em que elas operam), a sátira e o cômico
surgem assim como uma força especial. Força que vem da tentação irreprimível de expor
os contrastes ilógicos que qualquer mudança acarreta; e vem da inclinação mais ou menos
moralista para reprovar o caos momentâneo a que as transformações rápidas sempre
conduzem (BERNARDES, 1996: 298).
Daí se depreende que a sátira vicentina tem tudo a ver com a representação dos
excessos que aparecem nos processos de mudança. É por isso que podemos dizer que o
teatro vicentino é um teatro de excessos, não pela sua fundamentação estética, mas pelo
designo de conferir oportunidade cênica ao estranho e ao caricatural. E é por isso que,
segundo Bernardes, uma análise da sátira vicentina não pode ignorar nem o burlesco e nem
o grotesco.
Num sentido abrangente e trans-histórico pode, pois, considerar-se
que o burlesco é o resultado de uma forma entrecruzada de paródia
e de sátira que tanto pode traduzir-se na imitação caricatural e
desmesurada de determinados textos (paródia), como na crítica
intervertida de determinadas situações e comportamentos (sátira). A
raiz símica da palavra ‘burla’ pode assim estender-se ao próprio
acto de imitar, por deformação, ou à representação jocosa ou risível
de enquadramentos cênicos e de determinados tipos
(BERNARDES, 1996: 299-300).
O fato do teatro de Gil Vicente ter como fontes inspiradoras as populares
transmitidas através do folclore e da literatura populares, e ao mesmo tempo criticar
comportamentos, valores e atitudes favorece imensamente a emergência deste tipo de
representação. E aqui, no caso específico, o Diabo enquanto fanfarrão e burlador, desvenda
os pecados das almas enquanto elas tentam de toda sorte escondê-las do Anjo.
- 139 -
O LAVRADOR
A primeira personagem que passa diante das barcas (do Inferno e do Paraíso) é o
Lavrador:
“Vem um Lavrador com seu arado às costas, e diz:
“Que he isto? Ca chega o mar?
Ora he forte cagião”.
Diabo: “Alto, sus, quereis passar?
Ponde hi o chapeirão,
E ajudareis a botar.”
Lavrador: “Da morte venho eu cansado,
E cheio de refregero,
E não posso, mal peccado” (VICENTE, 1965: 256).
Assim que o Lavrador chega, considera que éa ocasião (“forte cagião”), por ter
encontrado, logo no primeiro momento, o Diabo. Parece que esta personagem não tem
muito o que lamentar a perda da vida, como as do Auto da Barca da Glória, pois, na
estrofe seguinte, começa a reclamar da vida dura que teve. É interessante perceber também
a maneira como o Diabo convida o Lavrador a embarcar:
Diabo: “Alto, sus, quereis passar?
Ponde hi o chapeirão...” (VICENTE, 1965: 256).
O chapeirão era a capa rústica com capuz usada pelo vilão. Assim, o Diabo começa
a caracterizar a alma pela vestimenta. Logo em seguida, o arrais da barca infernal fala de
um outro objeto que indica a situação sócio-econômica da personagem:
Diabo: “Põe eramá hi o arado” (VICENTE, 1965: 256).
Nesta peça ele aparece de arado às costas, como mbolo de lavrador muito
honrado, que cedo fizera testamento e deixara as suas dívidas saldadas, que mudara os
marcos de delimitação das suas terras, conforme lhe lembra o Diabo, mas como resposta à
apropriação indevida que outros faziam dos seus marcos. Entregara a pior mercadoria para
pagamento do dízimo, em contrapartida, deixara um bom animal ao cura e rezara. O arado
que traz consigo representa também quanto sofreu e foi perseguido, considerando o
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Lavrador que o seu ofício é o mais pesado.
Como no Auto da Barca do Inferno, as personagens da Barca do Purgatório
carregam os símbolos de sua profissão ou condição sócio-econômica, mas enquanto
naquela o símbolo está intimamente ligado ao pecado, aqui ele não tem esta conotação. É
nos atentarmos para o fato de que, ao entrar em cena com o seu arado nas costas, a
imagem construída pelo nosso dramaturgo é de um lavrador, sustentando todo o peso da
sociedade quinhentista portuguesa, que hierárquica por tradição, tem portanto, em sua base
de sustentação, o camponês. Logo, o arado para esta personagem não representa pecado,
pois não é sinônimo de prepotência, de arrogância, de tirania, de orgulho, mas sim trabalho
honrado, e a consciência que a personagem tem de tal situação se evidencia quando se
dirige ao Anjo:
Lavrador: “Bofá, Senhor, mal peccado,
Sempre he morto quem do arado
Há de viver.
Nós somos vida das gentes;
E morte de nossas vidas...” (VICENTE, 1965: 258).
Estes dois últimos versos resumem a triste situação do Lavrador nesta sociedade.
Para sustentá-la é necessário que ele morra. Ele sua vida para que as demais vidas, isto
é, os demais segmentos sociais continuem a viver. Segundo Maria Leonor G. da Cruz
(1990), relacionando estes dois últimos versos com a pergunta que o Diabo dirige à
personagem quando esta considera o seu ofício o mais pesado Pois para que he o
vilão?” – tem-se assim o reflexo de toda “uma concepção de sociedade herdeira do
imaginário feudal, que a hierarquiza em ordens, cada qual com a sua função bem
definida, cabendo aos lavradores/vilãos, para a coesão do conjunto, trabalharem e
alimentarem, com o seu labor e sofrimento, os que rezam e os que lutam(CRUZ, 1990:
236).
Continua então o Lavrador, denunciando a exploração que lhe fizeram na Terra e
conseqüentemente a sua situação de “desprezado social”:
“... A tyrannos-pacientes,
Que a unhas e dentes
Nos tem as almas roídas
Pera que he parouvelar?
Que queira ser peccador
- 141 -
O lavrador;
Não tem tempo nem logar
Nem somente d’alimpar
As gotas do seu suor.
Na igreja bradão com elle,
Porqu’assoviou a hum cão;
E logo excomunhão na pelle.
O fidalgo maçar nelle,
Atá o mais triste rascão.
Se não levão torta a mão,
Não lhe achão nenhum direito...” (VICENTE, 1965: 258).
O lavrador é aquele que sofre e trabalha para alimentar a sociedade, rude na
linguagem ou até grosseiro, por vezes ignorante sem maldade, paciente com os tiranos,
escorraçado permanentemente, mas sem tempo para pecar, somente para sobreviver e
limpar “as gotas do seu suor”.
O que podemos perceber no discurso desta personagem é uma grave denúncia
social, perante um público composto de elementos que sobre o camponês ganha a vida,
explorando-o e espoliando-o de maneira vergonhosa, pois degrada aquele que sustenta o
peso da sociedade quinhentista portuguesa. Notemos aqui a presença do riso que doravante
denominaremos de moralizador. Moralizador porque tem por finalidade levar à reflexão de
determinadas condutas e comportamentos de grupos que degradam o corpo social cristão,
desrespeitando uma das máximas do cristianismo, “amar o próximo como a si mesmo”.
Sob este ângulo podemos afirmar que o aspecto ressaltado é o religioso, disso
ninguém duvida, pois pontuamos que o nosso dramaturgo era um católico fervoroso.
Todavia, limitar os estudos dos textos vicentinos somente pelo lado religioso seria
empobrecer uma obra tão grandiosa, que atravessou os séculos e inspirou gerações. Por
isso, reiteramos a presença deste riso cujo objetivo não se centra apenas em salvaguardar
os preceitos cristãos, mas, sobretudo propor uma transformação social, onde o Lavrador
seja valorizado e respeitado. Dissemos que existe o riso, pois quando o Lavrador pisa no
palco trazendo o seu arado às costas e trajando suas vestimentas pobres, rotas e falando
numa linguagem rústica, certamente provoca o riso da platéia cujos integrantes da mesma
são membros da elite.
Flávio Garcia (1994) em seu artigo, O Rústico no Teatro Vicentino de Temática
Religiosa, levanta diversas questões acerca das possibilidades e dificuldades de leitura da
- 142 -
obra vicentina, dentre elas está a presença do rústico nos autos de Gil Vicente, o
dramaturgo os colocou em suas peças e os fez desfilar diante da Corte, com qual
finalidade?
Essas figuras eram construídas para alegrar ou alertar a platéia?
O teatro de Gil Vicente, representado nas ocasiões festivas da Corte,
tinha, para seus contemporâneos, caráter sério ou cômico? As
personagens que, numa leitura atual, provocam o riso eram cômicas
para aquele público? E o dramaturgo as ridicularizava ou não?
(GARCIA, 1994: 27).
Optando pela via cômica, o autor lança mão de duas teorias do riso, a de Bergson e
a de Bakhtin. O primeiro reconhece que comicidade no que é humano. Portanto, o
riso tem um objetivo útil, reprimir as excentricidades.
“[...] o riso deve ser algo desse gênero: uma espécie de gesto social.
Pelo temor que o riso inspira, reprime as excentricidades, mantém
constantemente despertas e em contato mútuo certas atitudes de
ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e adormecer,
suaviza, enfim, tudo o que puder restar de certa rigidez mecânica na
superfície do corpo social” (BERGSON, apud GARCIA, 1994).
Partindo da teoria bergsoniana, Garcia afirma que o nosso dramaturgo utiliza-se da
personagem rústica visando o cômico, provocando o riso, mas o riso que tem por
finalidade castigar os costumes, apontar e punir os desvios. Neste caso, a nossa análise
compartilha destas interpretações, na medida em que as denúncias que o Lavrador faz ao
Anjo são profundamente graves. No entanto, nossa personagem dialoga com outra figura, o
Diabo, e daí é que o riso popular emerge com bastante intensidade.
E a teoria que conta deste é a bakhtiniana, pois afirma o autor russo que o riso
popular é festivo, não é individual e nem isolado.
“[...] Não é, portanto, uma reação individual diante de um ou outro
fato ‘cômico’ isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar
patrimônio do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente
à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é ‘geral’; em
segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas
(inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece
cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu
alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente, alegre e
cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega
e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (BAKHTIN,
1993: 10).
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Bakhtin considera que uma qualidade importante do riso é que escarnece dos
próprios burladores. Desta maneira, estão incluídos também os que riem. Aqui,
encontramos o público vicentino que, escarnecendo e rindo do pobre camponês, ri dele
mesmo, haja vista que o discurso da personagem está pontuado de críticas dirigidas aos
membros da Corte, afirmando que os tiranos, com unhas e dentes, exploravam-no e O
fidalgo maçar nelle”.
Porém, é no diálogo com o arrais do inferno que este segundo tipo de riso pode ser
melhor percebido. Já que o Lavrador não demonstra o menor temor por esta figura.
Quando o arrais do batel divinal o chama e pergunta-lhe para onde ele quer ir, inicia-se
então os questionamentos sobre suas ações na Terra. O camponês prontamente demonstra
ter sido um bom cristão:
“Ia ao bodo da ermida
cada Sancta Margarida,
e dava esmola aos andantes,
benzia-me pela manhan,
levava o credo até o cabo” (VICENTE, 1965: 259).
Então o Diabo retruca, interferindo no diálogo das suas figuras, do Lavrador e do
Anjo:
“Depois tomavas a lan
Da melhor e a mais san,
E davas ao dízimo a do rabo,
Temporan.
E o mais fraco cabrito,
E o frangão affegoso,
Com repetenado esp’rito” (VICENTE, 1965: 259).
Neste momento o Lavrador perde a paciência com o arrais infernal e lança-lhe
todos os tipos de impropérios:
Lavrador: “Oh fideputa maldito,
Triste avezimão tinhoso,
Lano peccador errado!
Não-vai-não me dizimei?
Dize sabujo pellado” (VICENTE, 1965: 259).
Aqui, o Diabo desempenha um papel mais importante do que na Barca do Inferno,
porque através de sua interferência no diálogo e na denúncia da má conduta da personagem
a impede de embarcar para a Glória eterna, pelo menos temporariamente. Contudo, o
- 144 -
Lavrador não teme a figura demoníaca e o enfrenta corajosamente, mas com certeza de
maneira cômica e divertida. Por isso, notamos uma outra característica do riso popular, que
ambivalente por natureza, destrona o medo e a violência, que estão ligados à esfera oficial.
Segundo Bakhtin (1993), à universalidade e à liberdade do riso da Idade Média
junta-se uma terceira característica, o caráter popular não-oficial. O sério é oficial,
autoritário, está perpassado de interdições e violências, mas a ele se contrapõe o riso, que
não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição e supõe o domínio do medo.
“O homem medieval sentia no riso, com uma acuidade particular, a
vitória sobre o medo, não somente como uma vitória sobre o terror
místico (‘terror divino’) e o medo que inspiravam as forças da
natureza, mas antes de tudo como uma vitória sobre o medo moral
que acorrentava, oprimia e obscurecia a consciência do homem, o
medo de tudo que era sagrado e interdito (‘tabu’ e ‘maná’), o medo
do poder divino e humano, dos mandamentos e proibições
autoritárias, da morte e do castigo de além-túmulo, do inferno, de
tudo que era mais temível que a terra. Ao derrotar esse medo, o riso
esclarecia a consciência do homem, revelava-lhe um novo mundo.
Na verdade, essa vitória efêmera durava o período da festa e era
logo seguida por dias ordinários de medo e opressão; mas graças
aos clarões que a consciência humana assim entrevia, ela podia
formar para si uma verdade diferente, não oficial, sobre o mundo e
o homem, que preparava a nova autoconsciência do Renascimento”
(BAKHTIN, 1993: 78).
Todavia, conseguiremos perceber este riso em Gil Vicente se atentarmos para a
realidade histórica da imagem do Diabo construída pelos teólogos e difundida, em especial,
pelos pregadores , e como esta foi recebida e reelaborada no seio popular.
Segundo Carlos Roberto F. Nogueira (1986), o início dos tempos modernos no
Ocidente europeu está marcado por incrível medo do Diabo. O Renascimento herdou
conceitos e imagens do Demônio que foram determinados e multiplicados ao longo da
Idade Média, entretanto lhes emprestou uma coerência, uma importância jamais
alcançadas.
Para o autor o marco simbólico deste momento é a “Divina Comédia”, que
representa o eterno confronto entre o Bem e o Mal. O universo se encontra submergido na
obsessão diabólica, produto final de imprecações doutrinárias, crenças populares e
sobrevivências míticas sob duas formas essenciais: uma alucinante galeria de imagens
- 145 -
demoníacas e uma assombrosa e inesgotável descrição das inumeráveis armadilhas e
tentações que o Grande Inimigo constantemente inventa para levar à perdição os seres
humanos” (NOGUEIRA, 1986: 74).
Jean Delumeau (1996) afirma que nessa época coexistiram duas representações de
Satã: uma popular e a outra elitista. Nesta a mais trágica, aparece nos depoimentos dos
processos e anedotas contadas por humanistas e por homens da Igreja. Naquela, o Diabo
não se apresenta com nome bíblico e geralmente não lhe é atribuída a cor negra, mas o
verde, o azul ou amarelo. Isto permite ligá-lo a divindades muito antigas. Neste universo
politeísta, o Diabo é apenas uma divindade entre outras, suscetível de ser adulada e que
pode ser benfazeja. Os indivíduos fazem oferendas, mesmo depois tendo que se desculpar
desse gesto diante da Igreja oficial. O diabo popular pode ser bastante familiar, humano,
muito menos temível do que difunde a Igreja, podendo, assim, até enganá-lo. Vale a pena
descrever como ele aparece nos contos populares campestres e segundo o autor, também
nas lembranças de infância do bretão P.-J.Hélias.
O outro chifrudo”, escreve esse autor, é o nome que damos ao
diabo. Um diabo bastante particular. Não é o diabo comum
representado nas mesas de comunhão que o padre Barnabé
suspende por uma corda de um lado ao outro do coro, durante os
retiros, para explicar o Juízo Final. Sabeis Bem! Uma espécie de
animal vermelho de rabo comprido, encarniçado em picar o couro
dos condenados ululantes. Não! É um diabo bem humano, com todo
o ar de um bom bretão da baixa Bretanha que tivesse comido bem,
de um judeu errante que arrastasse seus calções pelo país, entregue
às tarefas nobres: concluir os casamentos, semear o júbilo nas
refeições de bodas e nos serões, salgar o porco[...]
No catecismo, o senhor cura no-lo pinta como nosso inimigo fidagal,
aquele que quer nossa perda e chega infalivelmente a seus fins se
por um momento deixamos de ser vigilantes. ‘quem está no espelho e
que nunca se vê?, interroga o padre. E a nós cabe responder em
coro: ‘o diabo!’. Pois bem, o diabo em questão, nas histórias de avó,
para ele nada jamais dá certo” (DELUMEAU, 1996: 249).
Por isso, durante longos séculos da história da cristandade os homens de Igreja
entabularam uma luta constante contra o diabo popular e sentiram-se obrigados a instruir
os ignorantes. Portanto, pintaram Satã com as cores mais horrendas criando e difundindo o
terror e o medo desta criatura das trevas cujo objetivo é tentar o ser humano, levando-o à
perdição eterna. Assim ele é representado na literatura e nas artes em geral:
- 146 -
“Um animal muito terrível, tanto pela grandeza desmedida de seu
corpo como por sua crueldade [...], sua força está em seus rins e sua
virtude no umbigo de seu ventre; ele entesa a cauda como um cedro,
os nervos de sua genitália são retorcidos, e seus ossos como canos e
suas cartilagens como lâminas de ferro [...] Em torno de seus dentes
está o medo: seu corpo é como escudos de cobre, é apinhado de
escamas que se comprimem umas contra as outras; está armado de
todos os lados e não pode ser agarrado em nenhum lugar”
(DELUMEAU, 1996: 250).
Diante destas duas descrições dissonantes percebemos que o Diabo do Auto da
Barca do Purgatório deveria no mínimo, por um lado, provocar o medo, o temor do
Lavrador e, no entanto, a personagem o ataca de frente sem sentir o menor receio. Por
outro lado, o arrais do inferno se aproxima da imagem do diabo popular, haja vista que
neste auto nada para ele certo, pois somente consegue levar uma única alma, mesmo
que se use o argumento de que é noite de natal, noite sagrada, por isso aos indivíduos é
concedida a salvação. Não podemos ignorar que vivendo e escrevendo no final do século
XV e início do XVI, nosso dramaturgo não tenha sido tocado pelas imagens desta figura
maligna popular.
Mas o diabo vicentino nos mostra uma outra faceta, a do juiz implacável, o que nos
impede de perceber a sua face popular, conseqüentemente menos aterrorizante. Ele não
perdoa nenhuma falha da alma e astutamente faz a personagem denunciar ao Anjo sua
ações que constituem-se em pecados. No entanto, o Lavrador se mostra bastante consciente
da super exploração que sofreu na Terra, por isso, justificando suas atitudes.
Este grupo, no tempo de Gil Vicente período da expansão marítima encontra-se
numa situação bem difícil, como foi dito anteriormente. Eram poucos camponeses
proprietários; em geral, a maioria cultivava a terra que não lhe pertencia, pagando pesados
impostos ao seu senhor.
Nos primeiros tempos da Monarquia, eram muito poucos os
‘vilãos’ (isto é, não nobres ou não clérigos) que tivessem a plena
propriedade da terra que cultivavam. Esse número foi-se alargando,
sobretudo a partir dos meados do século XIV, quando muitos
burgueses das cidades começaram a investir capitais na terra e a
tornarem-se pequenos ou médios proprietários rurais. Não obstante,
era reduzida a percentagem de propriedade vilã plenamente
possuída pelos seus exploradores [...] Assim, a maioria dos
habitantes cultivava terra que não lhe pertencia, pagando foro ou
renda ao seu senhor, quer ele fosse o rei, um nobre ou a Igreja.
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Aliás, o próprio alódio (propriedade plena) tinha de pagar imposto
ao Rei, embora inferior ao das outras terras [...] Esses tributos eram
em geral muito elevados. Nas terras exploradas a ‘prazo’ ou a
‘foro’... o lavrador tinha de pagar uma prestação-base (o foro) que
variava 1/3 e 1/10 da produção total. Além deste foro, era ainda
obrigado a muitas outras prestações variáveis de terra para terra:
direituras, eirádega, jantar, jugada, serviços braçais e o habitual
dízimo...” (MARQUES, 1971: 131).
Assim, dada a condição de espoliado, a personagem tenta amenizar seus pecados
diante do Anjo: “... A tyrannos-pacientes, / Que a unhas e dentes / Nos tem as almas
roídas”. Mas por causa das denúncias do arrais do Inferno o Anjo e dá a sentença final:
Anjo: “Digo que andes assi
Purgando nessa ribeira,
Até que o Senhor Deos queira
Que te levem pera si
Nesta bateira” (VICENTE, 1965: 260).
Se, por um lado, Gil Vicente, através do Diabo, impede a salvação do Lavrador, por
outro, através do Anjo, lhe concede a esperança de mais tarde adentrar às portas do
Paraíso. O destino desta personagem é vagar no Purgatório até que Deus permita que ele
embarque para a glória eterna. Enfim, o dramaturgo o condena por ser um católico
fervoroso, e o Lavrador de certa forma burla a ordem estabelecida, ao pagar os tributos
com a pior parte da produção; mas chama, ao mesmo tempo, a atenção para a
superexploração exercida pelos poderosos sobre aquele, que acredita ser a base da
hierarquia tripartida, os “mantenedores”
17
.
Mesmo sendo maioria, podemos perceber que algo estava a se modificar nesta
sociedade. O camponês já começa a emigrar para as cidades, à procura de uma vida
melhor. De um lado, a crise o coloca em uma situação lastimável, pois na tentativa de o
empobrecer, o proprietário da terra (nobre, clérigo, e outros) tenta tirar o maior proveito
desta mão-de-obra. Por outro, a cidade se torna o símbolo do “enriquecimento fácil”; pelas
novas atividades que surgem, devido ao desenvolvimento do comércio, da expansão
17
O texto das Ordenações, reflectindo aliás uma classificação tradicional, falava apenas dos que lavram a
terra. Mas é evidente que a frase estava escrita com sentido alegórico. Na base da vida estão os alimentos
da terra. O lavrador havia de surgir portanto como símbolo do trabalhador, como o ‘mantenedor’ por
excelência da humanidade. Contudo, a alegoria revestia-se de sentido duplo. Na Idade Média a actividade
agrícola monopolizava as atenções da maior parte da população. Logo, o lavrador havia de ser encarado
como o trabalhador por excelência, aquele que mais avultava na produção dos bens de consumo”.
(MARQUES, 1971: 131)
- 148 -
marítima; o que ao camponês a possibilidade de tentar, através dos mares, sair da
situação deplorável em que se encontra. Como no caso dos grumetes da peça Triunfo do
Inverno (1529), que quando se deparam com uma tempestade no mar, não sabem o que
fazer, pois não têm o mínimo conhecimento desta atividade, que para eles é totalmente
nova, porque vieram do campo.
Portanto, a postura político-estética do nosso dramaturgo fica em evidência quando
ele coloca o Lavrador na Barca do Purgatório, concedendo a ele a salvação, após purgar
seus pecados que se caracterizavam em faltas veniais e não mortais. O respeito que ele
dispensa a esta personagem é enorme e está representado na passagem onde o Anjo chama
o Lavrador para ir até ele. Enquanto na primeira Barca ocorre o contrário, fugindo do
Inferno as figuras se dirigem à “Barca segura”, neste auto a personagem é chamada pelo
arrais do Paraíso.
Anjo: “Vinde ca, homem de bem;
Pera onde quereis ir?” (VICENTE, 1965: 258).
A crítica que ele faz aos valores e aos comportamentos das elites em relação ao
lavrador/vilão é muito séria chegando mesmo a ser assustadora. Contudo o peso é retirado
e então a sátira se configura no diálogo da personagem com o Diabo. Quando o Anjo a
inquire sobre suas ações na Terra e o Lavrador se mostra um bom cristão, pagando o
dízimo, indo à missa, rezando sempre, então o Diabo interfere no diálogo e pontua os
pecados desta alma que se quer mostrar tão “santa”! Diante disso o Lavrador retruca e o
riso popular atinge o seu ápice, pois ele não o teme, chegando mesmo a usar palavra de
baixo calão para caracterizá-lo. Contudo, não é apenas o camponês que se mostra
indiferente ao temor que o Diabo deveria inspirar, todos os tipos que desfilam nesta peça
têm comportamento semelhante.
- 149 -
O PASTOR E A PASTORA
Outra personagem que o nosso dramaturgo trata com dignidade é o Pastor, que
embora se apresente com todo o peso religioso por ser noite de Natal e sua imagem está
ligada à do Cristo-pastor, não deixa por isso de demonstrar sua condição sócio-econômico-
cultural, no contexto da sociedade quinhentista portuguesa.
“Vem hum Pastor, e diz, olhando para a barca do imigo:”
“Isto he concêllo, ou picota,
Ou senefica algorrem?
Não lhe marra ella aqui gota
De ser isto terremota
Para enforcar alguém” (VICENTE, 1965: 264-265).
Em seguida o Diabo o convida a embarcar no batel do Inferno e o Pastor responde:
[...]
“E fui-me per: esse chão
A Deos douche alma dizer,
Com meu cacheiro na mão,
Sem soes motrete de pão,
Nem fome pera o comer,
Se vem á mão” (VICENTE, 1965: 265).
Na fala desta personagem encontramos referência ao objeto que simboliza sua
profissão, o cajado (“cacheiro”), e também a denúncia de sua condição de miserável. Pois
não tinha nem um pedaço de pão para comer.
Sua ignorância quanto às orações vem expressa nos próximos versos:
“E vinha ora bem descuidado
De topar mar nem marinha.”
Diabo: “Dize, rústico perdido,
Fizeste tu por saber
O ‘Pater noster’ comprido?”
Pastor: “E pera que era elle sabido?”
Diabo: “Porque o havias de dizer.”
Pastor A quem?”
Diabo: “A quem te creou” (VICENTE, 1965: 266).
Note que, além do desconhecimento do Pater noster”, podemos detectar a
- 150 -
inocência, que vem reafirmada na última estrofe da fala desta personagem. É interessante
perceber que o Diabo o chama de rústico. Estaria Gil Vicente justificando com isso a total
ignorância do Pastor, quanto às coisas da religião?
Para o Pastor, o cajado, como o arado do Lavrador, simboliza a vida difícil deste
grupo e em nenhum momento tem conotação de pecado. Por isso, ao se dirigir a ele, o
Anjo parece mais condescendente do que foi com Marta Gil, a regateira, outra personagem
da Barca do Purgatório que será analisada mais adiante.
Anjo: [...]
“Folgarei de te levar,
Se te ajuda o bem obrar,
Que as obras remos são.”
[...]
“Morreste tu bom christão?” (VICENTE, 1965: 267).
Novamente o barqueiro do Paraíso se mostra disposto a acreditar nas palavras deste
vilão/pastor. Então o Pastor diz que “eu soube hum quinhão delle”. Quanto as obras ele:
Crer em Deos e não furtar / E fazer bem seu lavor. / E dar graças ao Senhor. / E fugir de
não peccar”. Mais abaixo, ele continua enumerando suas boas ações, dizendo que não
matou e reafirma que não furtou, Como se usa agora”. Nesse ponto percebemos a
denúncia do dramaturgo, quanto aos valores éticos e morais da sociedade quinhentista
portuguesa, presente no discurso do Pastor. Daí a insistência da personagem em dizer que
nunca roubou. Podemos entender a crítica de Gil Vicente, a esta sociedade que traz
presente a ambição e a cobiça, que leva os indivíduos a roubar, a enganar uns aos outros.
Embora o Pastor não saiba o Pater noster”, ele demonstra ter sido um bom cristão,
o que nos leva a crer que o nosso dramaturgo esalfinetando novamente o seu público,
defendendo a idéia de que nada adiantam as orações se não forem acompanhadas de boas
ações. Esta temática aparece com mais intensidade no Auto da Barca da Glória.
No entanto, como com as outras personagens, o Diabo intervém no diálogo entre o
Anjo e o Pastor, para mostrar os pecados deste. Ele queria seduzir e forçar relações sexuais
com uma pastora.
Diabo: Vae, vae cantar a gamella:
Não andavas tu namorando
Perdido por Madanella?”
- 151 -
[...]
“Não na foste tu sperar,
Pera a damnares, villão,
E começou de bradar
Que a querias forçar?” (VICENTE, 1965: 268).
Este foi o maior pecado cometido pelo Pastor, que se defende dizendo:
“O fideputa cabrão!
Quizera eu e ella não,
Porque a trédora fugio:
E s’isto assi foi, ladrão
Que pecado se seguio
Pois não houve concrusão?” (VICENTE, 1965: 268).
Porque, como o Pastor não conseguiu alcançar seu intento, para ele, homem rústico,
não houve pecado:
Anjo: “Faze o que t’eu direi,
E depois embarcarás,
E eu mesmo te passarei.
Purga ao longo do rio
En gran fogo, merecendo(VICENTE, 1965: 268).
No entanto, pode embarcar no batel divinal aquele que teve um comportamento
santo e o Pastor cometeu esse deslize. É importante destacar que o Anjo foi
condescendente com esta personagem, não na sentença mas no tom em que a proferiu.
Talvez porque fosse noite de Natal e a figura do Pastor representa para a cristandade a
pureza, a bondade, a humildade, que o próprio Cristo se apresenta como pastor do
rebanho de Deus. E o Pastor tem consciência disso, pois fala da seguinte maneira ao
Diabo:
[...]
“Esta noite he dos pastores,
E tu, Decho, estás em sêcco...” (VICENTE, 1965: 268).
O próprio Diabo reconhece que não tem forças para tanto, Não estou em meu
poder, / Pera me vingar de ti...”
Após a sentença final do Anjo, a fala que se segue é a do Pastor, na qual fica
explícita a total ignorância da doutrina católica, como também sua inocência.
“E quando parte o navio?
Senhor, se eu não tenho frio,
- 152 -
Pera que hei d’estar ardendo?” (VICENTE, 1965: 268).
Situação semelhante aparece no Auto da Feira em que o Pastor Gil dialogando com
o Serafim faz emergir toda sua inocência:
“Quando partistes do ceos,
Que ficava elle fazendo?”
Serafim: Ficava vendo o seu gado.
Gil: Sancta Maria! Gado há lá?
Oh Jesu! Como o terá
O Senhor gordo e guardado!
E na lá boas ladeiras
Como na serra d’Estrella?
[...]
Gil: E que legoas havera
Daqui à porta do Parizo,
Onde San Pedro está?” (VICENTE, 1965: 415)
Podemos então detectar a presença do cômico no diálogo entre o Serafim e o pastor
Gil, que certamente fará sorrir espectadores e os leitores desse auto. Tudo se centra no
desajuste de registro entre as perguntas do pastor e as respostas do Anjo. Curioso por saber
como é a realidade da vida celestial, o pastor vai inquirindo o Anjo, o que fazem Deus e a
Virgem, que tipo de gado existe no céu, qual a disposição do solo.
Tudo perguntas lógicas, na boca de um pastor da Serra da Estrela.
As respostas do Anjo, por seu turno, têm também a sua lógica e
referem-se à imagética do divino, com Deus ‘vendo o seu gado’, a
Virgem que ‘olha as cordeiras’, as ‘ladeiras que existem no céu
como na Serra. E a pergunta final do pastor parece amortecer os
efeitos do cômico entretanto insinuados (BERNARDES, 1996:
296)
Embora o desajuste e desencontro da cena provoquem uma situação cômica,
cremos que Gil Vicente quer demonstrar a proximidade existente entre o pastor e os
mistérios divinos, acessíveis aos simples de espírito. Por isso o destaque para a inocência
dos pastores presente na maioria de suas peças e que já apresentamos no Auto da Barca do
Purgatório, na qual o Pastor não entende a sentença do Anjo: purgar no fogo seus pecados
para só depois embarcar no batel divinal. Daí sua resposta:
“E quando parte o navio?
Senhor, se eu não tenho frio,
Pera que hei d’estar ardendo?” (VICENTE, 1965: 268)
Aqui, neste auto, as pastoras simbolizam esta inocência e simplicidade, mas não são
- 153 -
ingênuas e, quando Serafim lhes oferece as virtudes, elas não aceitam, então o Anjo
demonstra suas limitações em relação às atitudes delas.
Seraphim: “Pois porque vieste ora
Cansar à feira de pé?” (VICENTE, 1965: 420).
As pastoras, além de lhe lembrar que a feira é de Nossa Senhora, pois é noite de
Natal, ainda o criticam por querer vender algo que é sagrado e que é dado pela Virgem aos
bons.
“Porque nos dizem que he
Feira de Nossa Senhora:
E vêdes aqui porque.
E as graças que dizeis
Que tendes aqui na praça,
Se vós outros vendeis,
A Virgem as dá de graça
Aos bôs, como sabeis” (VICENTE, 1965: 420).
Não satisfeito em criticar a postura do Anjo, Gil Vicente vai mais longe e quem
coloca o fim na feira não é a figura celestial, mas as pastoras, demonstrando assim, o ápice
da valorização da vida e dos valores campesinos.
Situação semelhante à do Lavrador, o Pastor mantém com o Diabo um diálogo
árido, quando este desvela seus pecados diante do arrais divinal. Por um lado, grosseiro
quando trata com o barqueiro do Inferno; mas simples de alma, por outro, que não entende
a sentença do Anjo. O fogo a que ele se refere não é material, não queima para punir, tem a
função de purificar e, segundo os preceitos do Cristianismo são apenas os simples e os
puros que se salvam. Estas idéias, Gil Vicente vai buscá-las no pensamento medieval,
ainda muito vivo no seu tempo.
Na realidade, o pecado cometido pelo Pastor, que o coloca purgando na ribeira, é o
da luxúria. Le Goff (1981) demonstra em seu livro La Naissance du Purgatoire, que estes
preceitos estão presentes no século XIV, na Divina Comédia de Dante. O Purgatório
dantesco é composto de sete círculos, onde as almas purgam os sete pecados capitais,
dentre eles está a luxúria.
“On le voit, cette liste des sept péchés capitaux est aussi une liste
hiérarchique puisqu’en s’élevant de corniche en corniche, les âmes
progressent. Dante se montre ici encore tout à la fois traditionaliste
- 154 -
et novateur. Traditionaliste, puisqu’il met en tête des péchés
l’orgueil alors qu’au XIII siècle l’avarice l’a en général supplanté.
Novateur parce qu’il considère comme plus graves les péchés de
l’esprit commis contre le prochain, orgueil, envie, colère, que les
péchés de la chair, commis en grande part contre soi-même, avarice,
gourmandise, luxure. Pour ce dernier vice, Dante fait bénéficierdu
Purgatoire, tout comme il en avait damné dans l’Enfer, des
luxurieux, tant homosexuels qu’hétérosexuels (chant XXVI)
18
(LE
GOFF; 1981: 460).
Algo análogo se passa com a Pastora e, diante da barca do Inferno, se conta que
está frente a frente com o Diabo:
Moça(Pastora):”Jesu! Jesu! Que he ora isto?
Ave Maria! Ave Maria...!
Oh coitada, como tremo”
Minha mãe, valei-me aqui,
Que quando de vós parti,
Não cuidei d’achar o Demo.
Mais angústia he o temor
Do imigo, que da morte...” (VICENTE, 1965: 269).
Ao reconhecer o inimigo, a Pastora estremece de pavor, pois não esperava
encontrá-lo e se sente perdida:
“Não sei quem m’há d’ajudar,
Não sei quem m’á de valer,
Não sei quem m’á de passar,
Não sei quem m’á de matar...” (VICENTE, 1965: 269).
No entanto, se atentarmos para o conjunto da peça, perceberemos que o medo da
Pastora está relacionado à sua juventude. Pois todas as personagens, que se encontram
na idade adulta, não temem o barqueiro do Inferno, pelo contrário, o enfrentam até mesmo
o ameaçam.
Percebendo a insegurança da jovem Pastora, o demônio tenta, através de bajulações
e mimos, convencê-la a entrar em sua barca, pois é noite de Natal e até agora ninguém
18
Vê-se que esta lista dos sete pecados capitais é também uma lista hierárquica visto que se elevando de
círculos em rculos, as almas progridem. Dante se mostra ainda, aqui, ao mesmo tempo, tradicional e
inovador. Tradicionalista pois coloca no alto dos pecados o orgulho, enquanto que no século XIII,
geralmente a avareza o suplantara. Inovador porque considera mais graves os pecados do espírito
cometidos contra o próximo, orgulho, inveja, cólera; que aqueles da carne, cometidos em grande parte
contra si mesmo, avareza, gula, luxúrias. Para este último vício, Dante beneficia com o Purgatório, da
mesma maneira que tinha condenado ao Inferno, os luxuriosos, tanto homossexuais quanto heterossexuais
(Canto XXVI)”. Tradução nossa.
- 155 -
embarcou nela:
Diabo: “Olhae, flores, não m’espanto
Que me digas sete tanto:
Padeça meu coração” (VICENTE, 1965: 269).
Mas o arrais do Inferno usa de um outro argumento ainda mais forte:
“... E iremos ambos sos
Onde estão nossos avós.
Ora entrae, ireis aqui” (VICENTE, 1965: 270).
Os antepassados da Pastora se encontram no Inferno. Ao lançar seus antepassados
ao fogo eterno estaria o dramaturgo demonstrando a condenação da sociedade sobre este
grupo social? Se por um lado isso acontece, por outro, o autor defende a personagem,
através do Anjo, que nesse momento intervém de maneira protetora:
Anjo: “Leix’ó, pastora; vem ca” (VICENTE, 1965: 270).
Em seguida o arrais do Paraíso lhe pergunta se ela conhecia Deus, ela responde que
sim e mais: “Em toda me gloriava / Em ouvir missa e o ver”. Então o Anjo diz que isso era
muito bom. Porém o Diabo não deixa por menos e enumera os pecados cometidos pela
Moça:
“Era a mor mexeriqueira
Golosa, que d’improviso,
Se não andavão sôbre aviso,
Lá ia a cepa e a cepeira.
E mais quereis que vos diga?
He refalsada e mentirosa.” (VICENTE, 1965: 270).
O diálogo termina quando o Anjo profere a sentença:
“Vae ao longo desse mar,
Que he praia;
E quando Deos o ordenar,
Nós te viremos passar
Da pena à eterna glória” (VICENTE, 1965: 270).
Note-se que a sentença dada pelo Anjo a estas duas personagens é a mesma das
outras: penar no Purgatório para depois embarcá-las no batel divinal. No entanto, a
diferença está no tom. Há talvez mais suavidade, quando se dirige ao Pastor e à Pastora, do
que quando ele diz ao Lavrador que ele deve purgar os seus pecados Até que o Senhor
- 156 -
Deos queira / Que te levem pera si...”. Ao utilizar a terceira pessoa do plural, o Anjo a
impressão de frieza e de distanciamento em relação à personagem. com a Regateira ele
demonstra desprezo e até uma certa irritação: Grande causa he oração: / Purga ao longa
da ribeira...”. Porém, ele diz ao Pastor: Faze o que t’eu direi, / E depois embarcarás, / E
eu mesmo te passarei...e para a Pastora “...nós te viremos buscar...”. Em ambos os casos,
o tom é mais doce, é mais suave e até um pouco protetor. Pois o pecado da Pastora é
considerado leve e está justificado pela sua pouca idade.
Dessa forma, o Anjo tem um tom mais complacente ao dirigir-se a estas duas
personagens. Segundo Michel Mollat (1989), os pastores, neste período, são pobres e,
apesar de serem sacralizados pela iconografia, existem nuanças e ambigüidades nas
imagens pastoris que povoam o universo medieval cristão.
“[...]francamente pobres são certas ocupações agrícolas, marginais
apesar de sua importância na vida social [...] A iconografia
sacraliza o pastor nos temas do anúncio do nascimento de Cristo e
na adoração do Menino. O guardador de rebanhos, porém, nem por
isso se santificado. Tal como os habitantes da floresta, o pastor
ainda é um ser inquietante. Isolado, ele se comunica apenas com
seus animais, cuja bestialidade partilha. Atribuem-lhe um poder
maléfico. Ele é desprezado porque muitas vezes é esquisito ou
“retardado”. Ninguém lhe cederia a mão da filha. Além disso, ele é
visto como um indolente, visto que seu trabalho exige pouco esforço
físico. Ele é mal pago. Desse modo, o pastor é pobre mental, social e
economicamente. Seus aspecto externo, até mesmo sua sujeira,
denunciam-no como tal” (MOLLAT, 1989: 234).
Se o Pastor apresenta uma duplicidade de caráter sócio-cultural, podemos então
entender porque Gil Vicente coloca no Inferno os antepassados da Pastora, por tudo de
negativo que ele representa no mundo medieval. Mas por outro lado, ele é complacente e
até protetor com o Pastor e a Pastora, isso se porque, primeiro é noite de Natal, e o
“guardador de rebanhos” simboliza a ignorância e a inocência. E segundo, porque ele é um
superexplorado e acreditando nas estruturas agrárias como forma de melhorar a sociedade
quinhentista, ou seja, apostando numa sociedade cujos valores são representados pelas
personagens desta segunda barca, como solução para os problemas desse momento
histórico, que o dramaturgo a possibilidade de salvação ao Lavrador, à Pastora, ao
Pastor e à Regateira. E, no entanto, a nega ao Sapateiro, na Barca do Inferno, porque as
corporações de ofícios (e o sapateiro é um ofício) surgem com o desenvolvimento das
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profissões, das cidades e do comércio. Se levarmos tudo isso em consideração, podemos
então entender porque, sendo também pobre, este último vai diretamente para o Inferno,
enquanto os demais ficam no Purgatório, purificando-se de seus pecados para depois
embarcar no batel que os conduzirá ao Paraíso.
- 158 -
A REGATEIRA
Vejamos a situação desta personagem por quem o Anjo não demonstra muita
afeição e se salva por duas razões. A primeira é devido à sua profissão, que está ligada
ao campo, e a segunda, por causa do culto mariano, isto é, da intervenção da Virgem no
processo de salvação das almas e que o arrais celestial anunciara no início da peça,
quando avisa que é noite de Natal.
“Agora que a madre pia,
Frol de toda a perfeição,
Está com tanta alegria.
Pedi a sua Senhoria
Gloriosa embarcação,
Que sua he a barcagem.
Pedi-lhe como avogada,
Per la crimosa linguagem” (VICENTE, 1965: 255).
Como as outras personagens, o primeiro contato que Marta Gil tem é com o Diabo.
Diabo: “Venhais embora, Marta Gil.”
Marta: “E donde me conhecestes?”
Diabo: “Folgo eu bem porque vistes
Oufana e dando ó quadril” (VICENTE, 1965: 261).
Nestes primeiros versos, onde se estabelece o reconhecimento do lugar e do
interlocutor pela personagem, o Diabo mostra que a conhece bem, e a identifica porque ela
chegou orgulhosa e dando os quadris”. Seria um movimento típico no andar das
regateiras? dois significados básicos para o substantivo regateira: primeiro, vendedora
ambulante; segundo, mulher assanhada. Se levarmos em consideração também este último
significado da palavra, podemos arriscar a dizer que o arrais do Inferno refere-se ao
movimento dos quadris de Marta Gil, no sentido depreciativo, que pode vir carregado de
preconceito em relação à atividade exercida pela personagem, como também à sua
condição feminina, capaz de seduzir pela maneira de andar.
Como todas as personagens, ela renega o convite para embarcar no batel infernal. E
Marta Gil lembra ao Diabo sua atividade profissional:
- 159 -
[...]
“Em que eu seja lavradora,
Bem vos hei de responder” (VICENTE, 1965: 261).
Então ele responde:
“Não vos agasteis vós ora,
Que, ou lavradora ou pastora,
Aqui vos hei de metter” (VICENTE, 1965: 261).
E mais, a condenação social desta profissão fica evidente nesta passagem:
Diabo: “Não sabes tu que viveste
Lavradora e regateira” (VICENTE, 1965: 261).
Ou seja, basta ter sido regateira para necessitar expiar os pecados. Dessa maneira,
pela fala do Diabo, Gil Vicente condena estas atividades, mas esta condenação social vem
de certa forma camuflada pela religiosa. Isto podemos perceber na fala do Diabo, que
retruca Marta Gil, que, para se defender diz que vivia da sua profissão, apesar do tempo em
que vivera fora de cobiça. Isto é, vivia honestamente dos ganhos que a sua atividade lhe
proporcionava.
[...]
“Fui um tempo de cobiça;
Cada tempo sua usança:
S’eu morrêra de preguiça,
Tiveras muita justiça,
E eu pequena esperança.
Vendia minha lavrança,
Hum ovo por dous reaes,
Hum cabrito, se s’alcança,
Té quatro vitens, nó mais:
Tendes vós isto em lembrança?” (VICENTE, 1965: 262).
Mas para que a condenação aconteça, o arrais do inferno lhe responde da seguinte
maneira:
Diabo: “E pera que era agua no leite,
Que deitavas ieramá?” (VICENTE, 1965: 262).
Para se livrar do Diabo, Marta Gil implora ao Anjo que embarque o canistrel que
traz consigo”. Novamente o objeto que simboliza a profissão da personagem reaparece
aqui como símbolo do seu pecado. Então o Anjo lhe pergunta por que é que ela o trouxe,
- 160 -
mas a Regateira o sabe dizer porque. Da mesma maneira que as figuras do Auto da
Barca do Inferno, ela não consegue explicar porque traz consigo a cesta que utilizava para
carregar os produtos que vendia. Ao contrário do Lavrador e do Pastor, que o arado e o
cajado, símbolos da profissão destas duas personagens, são sinônimos de trabalho honrado
de dor e sofrimento; o objeto que a Regateira apresenta está carregado de negatividade, por
isso, ela não consegue justificar porque este a acompanha.
Marta: “Pera o Demo; e que sei eu?
Anjo: “Ora pois, embarca lá” (VICENTE, 1965: 263).
No entanto, para evitar a condenação final, a personagem ora, pedindo a clemência
divina, chama por Jesus e clama pela intervenção da Virgem e lembra também que é noite
de Natal, e que foi lavradora, por isso não pode entrar no batel infernal. Mais uma vez se
evidencia a postura política de nosso dramaturgo enquanto católico e defensor dos valores
éticos e morais que estão presentes no universo camponês e não no urbano. Logo o destino
desta alma é purgar na ribeira para depois passar o braço do rio que conduz ao Paraíso.
Daí a sentença do Anjo:
“Purga ao longo da ribeira.
Segura de damnação,
Terás angústia e paixão,
E tormento em gran maneira.
Isto até que o Senhor queira
Que te passemos o rio;
Sera tua dor lastimeira,
Como ardendo em gran brazio
De fogueira” (VICENTE, 1965: 264).
É importante que façamos a ligação da condenação religiosa e social presentes
neste texto vicentino. Uma vez que, sendo pecadora, a Regateira não pode ir direto para o
Paraíso, é necessário, primeiro, que ela purgue os seus pecados para ser aceita depois. No
entanto, ela não embarca para o Inferno, vai queimar em gran brazio / De fogueira”, no
Purgatório, garantindo assim a possibilidade do perdão divino, e o reconhecimento da
necessidade social de sua atividade.
A sua função de regateira (e regatão) é considerada um mester. Segundo Oliveira
Marques (1971), geralmente o termo “mesteiral” é limitado aos ofícios mecânicos de
artesanato ou de indústria, mas também foi utilizado em relação a certas atividades rurais.
- 161 -
Contudo, a expressão usada na Idade Média incluía, além desses,
alguns pequenos comerciantes, como almocreves, regatões, e
carniceiros, certos trabalhadores rurais como os almoinheiros, e até
os pescadores [...] O Regimento das Profissões de Évora, que data
dos finais da centúria de quatrocentos, fornece um quadro
genérico...dessas profissões e da hierarquia que as escalonava...
(MARQUES, 1971: 138).
Neste quadro, a regateira ocupa o décimo quarto lugar, juntamente com as fruteiras
e vendedeiras.
Em resumo, se neste quadro oficial que traz a hierarquia das profissões e dentre
dezoito delas, no décimo quarto lugar está a regateira, podemos entender porque Gil
Vicente, ao mesmo tempo que condena Marta Gil, não a joga no Inferno: dá-lhe a
possibilidade de salvação. E mesmo que esta personagem lembre ao Anjo que é noite de
Natal, daí não poder embarcar no batel infernal; cremos que ela não embarca também
porque nosso dramaturgo reconhece a necessidade deste tipo de profissão, no seio da
sociedade portuguesa quinhentista.
Para concluir, podemos citar uma passagem, onde fica expressa a importância
social desta atividade:
O dia às vezes começava com o pregão das vendedoras de arroz-
doce, cinqüenta mulheres, entre brancas e pretas, forras e cativas,
que em amanhecendo saem da Ribeira com panelas grandes cheias
de arroz e cuscuz e chicharos, apregoando”. Atentos aos gritos,
ouvidos educados despertavam para luta diária pela sobrevivência
difícil: e como os meninos as ouvem da cama, se levantam
chorando por dinheiro a seus pais e mães. E na verdade não é muito
mau, porque com isso o almoço às crianças. E o mesmo fazem os
moços que andam a ganhar, assim brancos como negros, com isso
fazem seus almoços e quentam suas barrigas. E desta maneira [as
ambulantes] gastam mui presto suas panelas” (MICELI, 1994: 40).
Após observarmos o desfile das personagens podemos concluir que ambas as
formas de riso estão presentes, perpassando as atitudes e as falas destas figuras. O riso
moralizador possibilita ao nosso dramaturgo, através dos diálogos dos tipos com o Anjo e
com o Diabo, denunciar a situação deplorável que estes grupos viviam. É o riso que tem
por objetivo punir os desvios e levar à reflexão.
Por outro lado, o riso popular pode ser percebido em especial quando as almas
- 162 -
dirigem-se ao Diabo, demonstrando familiaridade e não nutrem por ele nenhum temor.
Além do mais, o maligno aqui se aproxima bem da descrição acima feita pelo bretão, do
diabo popular, é aquele que nunca consegue alcançar seus intentos, portanto, não provoca o
medo que os teólogos, os reformadores e pregadores tentaram impor ao povo, no seu
sentido mais lato.
Não queremos com isso afirmar que todos os pressupostos teórico-metodológicos
bakhtinianos caberiam na nossa análise para desvelar e revelar o carnavalesco do teatro
vicentino, não é essa a proposta de nossos estudos. Mas queremos pontuar a existência do
riso popular numa obra que, aparentemente, se apresenta de cunho moralista e ratificador
de comportamentos e atitudes, e como querem muitos estudiosos vicentinos, de
revalorização de uma sociedade tripartida.
Bakhtin (1993) por diversas vezes reitera que a riquíssima cultura popular do riso
na Idade Média viveu e desenvolveu-se fora da esfera oficial da ideologia e da literatura
elevada. Ao proibir-lhe o acesso ao domínio oficial da vida e das idéias, o mundo medieval
lhe conferiu privilégios excepcionais de licença e impunidade. Contudo, foi com o
Renascimento que o riso popular ascendeu às altas esferas literária e ideológica.
“Toda uma série de outros fatores, resultantes da decomposição do
regime feudal e teocrático da Idade Média, contribuiu igualmente
para essa fusão, essa mistura do oficial com o não-oficial. A cultura
cômica popular que, durante séculos, formara-se e defendera sua
vida nas formas não-oficiais da criação popular espetaculares e
verbais e na vida corrente não-oficial, içou-se aos cimos da
literatura e da ideologia a fim de fecundá-las e, em seguida, à
medida que se estabiliza o absolutismo e se instaurava um novo
regime oficial, tornou a descer aos lugares inferiores da hierarquia
dos gêneros, destacando-se, separando-se em grande parte das
raízes populares, restringindo-se e, finalmente, degenerando”
(BAKHTIN, 1993: 62).
Diante disso, como acreditar que Gil Vicente, vivendo num período em que, por um
lado, as bases econômicas do feudalismo são profundamente abaladas, e por outro, a
cultura medieval ainda se mostra muito viva ao lado de novos valores culturais que
despontam no horizonte da Europa cristã ocidental; não sofresse nenhuma influência da
cultura cômica popular e, ao mesmo tempo, tivesse sua obra fecundada pelos elementos da
cultura renascentista?
- 163 -
Como compreender que sendo o dramaturgo da Corte pode criticar abertamente a
conduta das elites sem sofrer sanções de seus mecenas D. Manuel e D. João III; se as
razões não foram exatamente os elementos populares que perpassaram seus autos, em
especial o do Inferno e do Purgatório, e dentre eles o riso popular? Que permite certas
liberalidades, pois não é dirigido contra um caso particular, ou uma parte, mas contra o
todo, o universal, o total. Transformando, assim, tudo e todos em objetos risíveis.
- 164 -
CAPÍTULO III
A Barca da Glória
Trataremos agora do terceiro grupo de personagens, as que entram no batel divinal.
Vão compor esta embarcação todas as figuras da Barca da Glória mais três outras, o Parvo
e os Quatro Cavaleiros da Ordem de Cristo da peça o Auto da Barca do Inferno e o
Menino – da do Purgatório.
O Parvo e o Menino serão salvos por razões diferentes das que levam o nosso
dramaturgo a não condenar as almas da Barca da Glória e os Quatro Cavaleiros. Enquanto
os dois primeiros adentram as portas do Paraíso sobretudo por causa da inocência – este é o
elemento que une as duas personagens –, os motivos que permitem aos últimos alcançar a
eterna glória são outros. Dentre eles está o compromisso político do artista com os
monarcas portugueses das três primeiras décadas do século XVI.
Dividiremos, então, a nossa análise da seguinte maneira: primeiro desfilam o Parvo
seguido do Menino; em segundo lugar vêm os Quatro Cavaleiros, e em terceiro, todas as
personagens que comparecem no Auto da Barca da Glória.
- 165 -
O PARVO
Dentre tantos exemplos, os quais poderíamos utilizar para demonstrar os aspectos
carnavalescos nas peças de Gil Vicente e, conseqüentemente, pontuar a presença de
elementos populares nos textos do referido autor, cremos que o Parvo é uma das
personagens que melhor pode representar a relação entre estas duas culturas, a popular e a
erudita.
O Parvo, ao contrário do Fidalgo, é uma personagem popular. Sai da praça pública
e desfila diante da corte portuguesa. Criticando os valores dessa sociedade com a
linguagem das festas populares, da praça pública.
Ele é a terceira personagem a desfilar diante das barcas e um dos únicos a embarcar
no batel divinal. Pois, segundo o Anjo, os erros cometidos pelo Parvo não foram por
malícia, uma vez que é de sua natureza a simplicidade:
Parvo: Hou da barca!
Anjo: Tu que queres?
Parvo: Quereis-me passar além?
Anjo: Quem es tu?
Parvo: Não sou ninguém.
Anjo: Tu passarás, se quizeres.
Porque em todos teus fazeres,
Per malícia não erraste;
Tua simpreza t’abaste
Pera gozar dos prazeres.
Espera em tanto per hi,
Veremos se vem alguem
Merecedor de tal bem,
Que deva d’entrar aqui. (VICENTE, 1965: 230).
Para Maria José Palla (1992), o Parvo é uma figura ligada à Natureza e à Terra, a
um estado de e civilização, perto do rústico e do homem selvagem (PALLA, 1992: 87).
Segundo a autora, esta personagem é a conseqüência direta do Sot, ou do Fou medieval
francês. Desempenhou um papel muito importante no teatro europeu medieval. O Sot e o
Parvo estão intimamente ligados às festas saturnais romanas, ao Carnaval, à Festa dos
Loucos, dos Inocentes e do Burro, onde tudo se passava às avessas durante um tempo
- 166 -
limitado, numa função de catarsis. Após a desordem seguia-se a ordem (PALLA, 1992:
88).
Desta maneira, por um lado, representa a desordem, o caos. Por outro, é inocente e
simples; o que lhe permite a salvação no Auto da Barca do Inferno. Ao dialogar com o
Anjo afirma que não é ninguém. Não é por hipocrisia que se comporta desta maneira, é por
simplicidade e inocência. Nestas circunstâncias, ele mantém relação direta como o mundo
da infância (jogos, canções, inconsciência e irresponsabilidade).
Por ser uma figura ligada à Natureza, à Terra, também se liga ao mundo dos
animais. No seu discurso contra o Diabo, que o convida a entrar na Barca do Inferno, ele
utiliza um vocabulário que transforma o arrais do batel infernal num verdadeiro animal:
antrecosto de carrapato”, sua mulher de parir um sapo”, cornudo”, “perna de
cigarra”.
Faz alusão ao mundo sexual masculino, assim como ao “baixo corporal”. No
primeiro caso, os órgãos sexuais masculinos e o ânus são obsessivamente mencionados:
alfinete”, pica”, pelourinho”, caga merdeira”, rabugem”, cagarrinhosa”, “rabo de
forno de telha”. Já no segundo, as necessidades básicas do ser humano. O Parvo, logo que
encontra o Diabo, conta-lhe do que morreu, de samica de caganeira ou de caga
merdeira”. No diálogo com Judeu, usa novamente animais como cabrão”, carrapato”,
camarão” e também as imagens ligadas ao “baixo corporal” como “mijar”.
Parvo: E s’elle mijou nos finados
No adro de San Gião!
E comia a carne de panella
No dia de Nosso Senhor;
E mais elle, salvanor,
Cada vez mija náquella (VICENTE, 1965: 239).
Com o Corregedor e o Procurador, o Parvo repete a mesma situação. Ajudando o
Anjo a condená-los às penas infernais, afirma que ambos “mijaram” nos campanários.
Com o Frade ele estabelece uma relação um pouco diferenciada. Além de
desempenhar o papel de ajudante do arrais da Barca do Paraíso, aqui ele vai um pouco
mais longe e se comporta como o próprio juiz, não permitindo que este membro do clero
chegue a entabular um diálogo com o Anjo. O que obriga o nosso frade pecador a retornar
- 167 -
e embarcar no batel infernal. Dentro deste quadro, está o mundo às avessas, em que um
religioso é impedido de entrar na barca segura por um louco.
Sendo um ser completamente livre, que não admite autoridade nem censura, pode
livremente criticar o comportamento de um segmento considerável do clero. Grupo este
que se encontra vinculado à Corte portuguesa, ligado ao rei por vertente religiosa. Aliás, a
sociedade quinhentista portuguesa era essencialmente católica. E a Igreja andava de braços
dados com a Coroa lusitana.
No entanto, não provocava a menor ira, visto que em diversos textos vicentinos ele
aparece (Auto da Barca do Inferno, Frágua de Amor na Floresta de Enganos, Nau de
Amores e outros) e desfila com seus gestos, seu vocabulário, seu discurso diante da elite
portuguesa quinhentista. Isso é possível porque [...] é personagem sempre cômica e as
injúrias e tolices que profere conduzem ao riso; trata-se de uma linguagem carnavalesca
[...] este jogo verbal da loucura é paradoxal e hiperbólico, é o desatino e a desmedida
reina o mundo do disparate (PALLA, 1992: 93).
Por isso, Gil Vicente pode transitar do aspecto sério, oficial e religioso para o
aspecto do riso, do não-oficial. Pois, segundo Bakhtin (1993),
O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele
purifica-o e completa-o. Purifica-o do dogmatismo, do caráter
unilateral, da esclerose, do fanatismo e do espírito categórico, dos
elementos de medo ou imitação, do didatismo, da ingenuidade e das
ilusões, de uma nefasta fixação sobre um plano único, do
esgotamento estúpido. O riso impede que o sério se fixe e se isole da
integridade inacabada da existência cotidiana. Ele restabelece essa
integridade ambivalente (BAKHTIN, 1993: 105).
Assim como o riso, o baixo material e corporal é também ambivalente. Tem como
ponto básico fazer morrer e renascer ao mesmo tempo. Esta é a função do Parvo, no Auto
da Barca do Inferno. Por exemplo, a sua própria morte causada por caga merdeirao faz
renascer para a eternidade de paz, de luz e de harmonia. Enquanto esvazia por baixo até a
morte, ele renasce embarcando no batel divinal.
De um modo geral, esta peça, para além do didatismo, faz com que o sério,
pertencente à esfera superior, passe para o campo do risível e destrone o medo do juízo
final, da vida após a morte e da salvação e/ou condenação eterna.
- 168 -
Como foi dito anteriormente, segundo Bakhtin (1993), o homem medieval sentia no
riso a vitória sobre o medo. Um medo de várias faces: o terror místico; o medo inspirado
pelas forças da natureza ainda não dominada, o medo moral que acorrentava, oprimia e
obscurecia a consciência do homem; o medo do sagrado e interdito; o medo do poder
divino e humano, dos mandamentos e proibições autoritárias; o medo da morte e dos
castigos de além-túmulo e do inferno. Era este que o riso popular derrotava e esclarecia a
consciência do homem, revelando-lhe um novo mundo.
Mesmo que essa vitória fosse efêmera e que durasse o período de festa, permitia
ao homem medieval momentos de reflexões críticas sobre a sociedade em que vivia. E é
isso que vai eclodir no Renascimento, quando o “mundo velho” morrendo desse à luz um
“novo mundo”.
Assim, nosso dramaturgo utilizando-se da sátira, que em certo grau foi na Idade
Média e no Renascimento, manifestação da cultura popular juntamente com imagens,
vocabulários e certas personagens populares (como o Parvo) populares pôde fazer a corte
rir de seus valores, de seus comportamentos, de suas ações sem ferir sua integridade moral
e psicológica. Mas, ao mesmo tempo, mostrar-lhe o desordenado mundo em que ela vivia.
Embora sendo o Auto da Barca do Inferno uma peça que apresenta uma crítica
social mais marcante que a crítica religiosa e tendo por pano de fundo um caráter
moralizador, mesmo assim, pudemos demonstrar a presença do riso popular, que
ambivalente por natureza, tem por função matar para renascer, rebaixar para ascender,
envelhecer para renovar. E, conseqüentemente, pudemos pontuar a presença marcante da
circularidade cultural. Porque sendo popular sai da praça pública e vai alegrar, divertir,
mas também criticar a corte com seus valores, comportamentos e atitudes. Sem que isso
provoque a sua desintegração imediata e sem fazer com que o nosso dramaturgo perca a
sua função de poeta da corte.
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O MENINO
Esta personagem e o Parvo têm um fio invisível que os une, a inocência
fundamental, no processo de salvação de ambas. A salvação do Menino ocorre porque ele é
inocente e ainda não teve tempo de cometer nenhum pecado, portanto, se salva e é o
próprio Anjo que diz:
“Que tu es do nosso bando,
E pera sempre sera.
Fez-te Deos secretamente
A mais profunda mercê
Em idade de innocente:
Eu não sei se sabe a gente
A causa proqu’isto he” (VICENTE, 1965: 272).
Tal situação também é percebida durante todo o diálogo com o Diabo. Não
podemos afirmar ao certo a que grupo social pertencia a personagem em questão, mas
certamente ao mesmo segmento das outras figuras que aqui desfilam, aos desprivilegiados
do campo. No entanto, isto nos serve de alerta, se nosso dramaturgo não se preocupou com
a questão social é porque outros valores afloram da pena do artista, estes são com certeza
os religiosos. Ele os utiliza para chamar a atenção de seu público, a salvação do homem é
garantida àqueles puros de espírito. E a imagem da criança está carregada de significados.
Quando adentra o palco, sua linguagem revela a tenra idade da personagem:
Menino: “Mãe, e o coco está alli!
Quereis vós star quêdo, quelle?”
(VICENTE, 1965: 271).
O próprio Diabo, a primeira figura que a criança encontra, utiliza-se de certos
recursos de linguagem que denotam tais circunstâncias:
Diabo: “Bé, mé. Filho da puta!
Vós estais muito garrido!
Tirar-vos-hão, Dom perdido,
Dos olhos a marmeluta” (VICENTE, 1965: 272).
Apesar do convite para embarcar no seu batel e das ameaças proferidas pelo arrais
do Inferno, o Menino não demonstra nutrir nenhum tipo de temor por ele. Por ser inocente,
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está a salvo das tentações que este possa representar. Poderíamos levantar as seguintes
questões: por ser inocente não tem a noção do perigo que o demônio pode lhe oferecer? Ou
exatamente, pela pureza de alma que ele se torna inatingível?
Daí podemos concluir que o caso do Menino se assemelha ao do Parvo na Barca do
Inferno, que, juntamente com os Quatro Cavaleiros, se salvam. O Parvo estabelece relação
com o mundo dos animais assim como também com a Natureza, com a Terra e com o
universo infantil, através dos jogos, canções, mostrando inconsciência e irresponsabilidade.
Aqui, a criança é colocada no mesmo nível desta personagem, porque a salvação de ambas
é caracterizada pela inocência que está ligada à irresponsabilidade. Por isso, o barqueiro
celestial afirma que o Menino faz parte do seu “bando” e ao mesmo tempo chama a
atenção dos espectadores / leitores para a ignorância destes em relação à obra de Deus, pois
eles não percebem que no Paraíso tem lugar para os “puros de coração”. Desta maneira,
ele se dirige à alma, convidando-a a cruzar o portal do Paraíso, e ao público, admoestando:
Anjo: “Fez-te Deos secretamente
A mais profunda mercê
Em idade de inocente:
Eu não sei se sabe a gente
A causa porqu’isto he” (VICENTE, 1965: 272).
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OS QUATRO CAVALEIROS
A salvação destas personagens segue um caminho diferente da do Menino e da do
Parvo, não é pela inocência que esta se dá, mas pelo compromisso político de nosso
dramaturgo com a Monarquia portuguesa. No imaginário medieval da sociedade tripartida
dos três estados que Deus criou para manter o mundo, a nobreza aparecia como os
defensores, a única detentora das armas, tinha por missão defender os outros dois estados:
os “oratores” e os “mantenedores”. Estes defensores deveriam ser de boa linhagem,
suficientemente abastados, ou seja, proprietários de terra e não poderiam se ocupar nem
com o comércio nem com o artesanato.
Segundo Oliveira Marques (1987), tal definição de nobreza não estava em
concordância com a realidade. Pois nem todos os nobres eram militares, nem todos
pertenciam a uma boa linhagem; alguns até viviam pobremente e um número considerável
estava ligado às práticas comerciais. Contudo, em linhas gerais fornecia uma imagem
daquilo que nos séculos XIV e XV, se entendia por estado nobre.
Colocá-los na barca que conduz ao Paraíso, numa peça em que praticamente todos
dirigem-se no final ao batel do Inferno, nos leva a tecer algumas considerações. Primeiro, o
autor explica quem são estas figuras quando anuncia a entrada destas no palco:
Vem quatro fidalgos, Cavalleiros da Ordem de Christo, que
morrerão nas partes d’África, e vem cantando a quatro vozes a letra
que se segue...” (VICENTE, 1965: 246).
É o próprio Gil Vicente que, através da sua fala, associa a expansão marítima à
imagem de uma guerra santa. Haja vista que são nobres, portanto, cavaleiros, porém bem
específico, pertencem à Ordem de Christo. Daí, podemos deduzir que serão salvos.
Segundo, o nosso dramaturgo não espera pelo Anjo para dar a sentença final, porque são os
próprios cavaleiros que a anunciam através de seu canto:
“Á barca, á barca segura,
Guardar da barca perdida:
Á barca, á barca da vida.
Senhores, que trabalhais
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Pola vida transitória,
Memoria, por Deios, memoria
Deste temerosos cais.
Á barca, á barca, mortaes;
Porém na vida perdida
Se perde a barca da vida” (VICENTE, 1965: 246).
É curioso notar que numa mesma peça personagens representando o mesmo
grupo social, porém, a postura política de Gil Vicente é diferente em relação a elas. O
Fidalgo explorador, tirano, prepotente e orgulhoso; o artista lança-o às chamas infernais.
Em contrapartida, os quatro cavaleiros são embarcados para a eterna glória. São eles que
explicam os motivos pelos quais os indivíduos perdem a barca da vida”, quando afirmam
nos três últimos versos que todos os mortais devem embarcar em um dos batéis, mas
somente perdem esta quando se dedicam a uma “vida perdida”.
Terceiro, apesar de estar ressaltada a questão religiosa, o compromisso de nosso
artista com o poder se evidencia na fala do Anjo, quando este admoesta a nobreza sobre
suas obrigações para com a Igreja e com a Coroa:
Anjo: “Ó cavalleiros de Deos,
A vós estou esperando;
Que morrestes pelejando
Por Christo, Senhor dos Ceos.
Sois livres de todo o mal,
Sanctos por certo sem falha;
Que quem morra em tal batalha
Merece paz eternal” (VICENTE, 1965: 247).
Os Quatro Cavaleiros morreram no além mar, lutando em nome de Cristo, porque
lutavam contra os infiéis, os muçulmanos. Ora, sabemos que estes eram os árabes, povos
que comercializavam na Ásia e África, locais onde Portugal também realizava suas
transações comerciais. Como estes povos não compartilhavam das crenças da Coroa
portuguesa, e eram economicamente seus concorrentes, disputando os mesmos mercados,
matá-los, exterminá-los ou submetê-los, se configura, portanto, numa justificativa ético-
moral-religiosa.
“Numa sociedade cristã em expansão, que na Índia, como em
África, combate o Muçulmano, a guerra representa cada vez mais o
meio de atingir postos sempre mais avançados de os manter e
alicerçar empreendimentos políticos e econômicos defendidos pela
estrutura militar. Mas, para uma maior e mais coesa canalização de
- 173 -
homens e recursos, há que revesti-la de uma forte aparelhagem
político-ideológica, encontrando no combate ao infiel e na
evangelização a justificação ética por excelência” (CRUZ, 1990:
222).
Desta maneira, o empenho do cavaleiro cuja função principal na sociedade
tripartida do universo medieval é a guerra, reveste-se de importância, uma vez que está
envolta numa áurea medieval, pondo-a a serviço da política expansionista portuguesa,
dando-lhe assim, um caráter de Cruzada. Por isso as grandes conquistas do além mar não
podem ser entendidas apenas pelo viés sócio-econômico. Pois trazem consigo todo um
cabedal cultural que se manifesta fortemente num período marcado por profundas
transformações que fazem ruir todo um alicerce sócio-político e econômico feudal.
“Razões econômicas e sociais, todavia, são geralmente insuficientes
para uma compreensão global de qualquer feito da Idade Média.
Dão-nos a base, a plataforma racional da acção, mas omitem esse
invólucro colorido que todo o homem exige para se desculpar a si
próprio e para convencer os outros de uma empresa nobre e
idealista. No caso da expansão do século XV, um tal invólucro era
feita de contextura religiosa dupla: a luta contra o infiel e a
salvação das almas” (MARQUES, 2001: 131).
E sob pena de incorrermos no risco de anacronismos, consideraríamos tal postura
hipócrita tanto por parte da Igreja como por parte da Coroa e, conseqüentemente, por parte
de nosso dramaturgo. Daí, compreendermos porque ele salva os Quatro Cavaleiros, que
são nobres, e condena ao Inferno o Fidalgo, que, também pertencendo à nobreza, tem
posturas e comportamentos diferentes daquelas quatro figuras. Pois, ao invés de auxiliar o
Estado português – no seu grande projeto de expansão marítima – fomenta a revolta interna
com sua arrogância, prepotência e soberba; humilhando e explorando o estrato social
menos favorecido. Enfim, sabemos que a condenação de Gil Vicente a um membro deste
grupo privilegiado está fundamentada também no fato de a nobreza tentar disputar o poder
com a Coroa. Contudo, neste momento se encontra submetida ao monarca, pois é ele que,
através de cargos, pensões e outros mantém seus privilégios sócio-políticos.
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AS OUTRAS PERSONAGENS
Semelhantes aos Quatro Cavaleiros são todas as personagens do Auto da Barca da
Glória salvas, revelando em alto grau o compromisso de Gil Vicente com a monarquia
portuguesa, visto que todos os elementos deste auto pertencem à alta hierarquia do
Portugal dos Quinhentos. No entanto, as almas não alcançam a salvação pelas mesmas
razões do Parvo e do Menino, pois nenhuma delas se mostra inocente e nem pelo fato de
terem morrido defendendo a Coroa e a Igreja dos seus inimigos, infiéis/mercadores. Na
verdade o comportamento destas figuras está muito próximo ao do Fidalgo. Porém,
diferentemente deste, àquelas é permitido adentrar as portas do Paraíso.
Nesta peça desfilam as figuras representando as elites: o Conde, o Duque, o Rei, o
Imperador, o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa. As personagens são conduzidas pela
Morte perante o Anjo e o Diabo, arrais das barcas que as conduzirão ao Céu ou ao Inferno,
dependendo das ações que praticaram durante a vida na Terra. É importante analisar o teor
moralizante, sobretudo quando cada um destes poderosos se expõe diante do batel.
Dado o comportamento semelhante destas personagens, por pertencerem todas ao
cimo da hierarquia social, é que o nosso estudo se diferirá do realizado nos outros dois
autos. Enquanto na Barca do Inferno e na Barca do Purgatório analisamos a situação de
cada personagem, aqui, o mesmo não se procederá. Uma vez que os pecados destas almas,
enumerados pelo Diabo, e os diálogos que entabulam com o Anjo se aproximam, daremos
um destaque geral para os valores defendidos por Gil Vicente, e o compromisso político
dele com a Corte, e não para as circunstâncias que envolvem cada uma delas, pois no final
todas são salvas pelo Redentor.
Iniciaremos nossos estudos de duas passagens deste auto: a primeira, que contém o
diálogo entre o Diabo e um representante da nobreza (o poder temporal), o Conde. A
segunda, o diálogo entre o Diabo e um representante do clero (o poder espiritual) que é o
Papa.
Na primeira passagem, a Morte busca o Conde, que lamenta muito a perda da sua
vida:
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“Tu no das nunca consuelo
O muerte escura,
Pues me diste sepultura,
No me des nuevas de mi
Ya hundiste la figura
De mi carne sin ventura,
Tirana, déjame aquí” (VICENTE, 1965: 283).
Ao que a Morte responde:
“Hablad con ese barquero,
que yo voy hacer mi oficio” (VICENTE, 1965: 283).
O barqueiro a quem ela se refere é o Diabo, que diz ao Conde:
“Señor conde y caballero,
Dias ha que os espero,
Y estoy á vueso servicio
Todavía
Entre Vuesa Señoría,
Que bien larga está la plancha...” (VICENTE, 1965: 283).
O Diabo convida o Conde a entrar na sua barca, pois o espera há muitos anos e
também lhe diz que muito espaço. Podemos inferir daí que a barca do Inferno deve ser
grande porque carrega muitos passageiros. Percebemos assim que Gil Vicente faz a crítica
da sociedade da sua época: é uma sociedade cheia de pecadores. Para ele, os pecados são
as ações de homens que fogem de valores tais como: o respeito às instituições como a
Igreja, o respeito também a cargos e funções religiosas e públicas, ocupadas por homens
corruptos como o Conde. Entretanto, o Conde no alto da sua prepotência, justamente pelos
privilégios sociais que teve em vida, retruca: Nunca me pasarás . Então o Diabo
relembra ao nobre todas as suas ações na terra e os pecados que cometeu:
“Y pues quién?
Mirad, Señor, por iten
Os tengo acá em mi rol,
Y habéis de pasar allen.
Veis aquellos fuegos bien?
Allí se coge la frol...” (VICENTE, 1965: 283-284).
Nesta estrofe o Diabo descreve ao Conde os tormentos que o aguardam no Inferno.
O Conde por sua vez argumenta: “Grande es Dios”. E o Diabo responde:
- 176 -
“Á eso os ateneis vos
Gozando ufano la vida
Con vicios de dos en dos.
Sin haber miedo de Dios,
Ni temor de la partida?” (VICENTE, 1965: 214).
Percebemos no discurso do Diabo um sentido moralizante. O Conde devido à sua
riqueza e poder nunca expressou temor a Deus nem medo da morte, pois acreditava que,
por ser poderoso como era, teria no Paraíso um lugar reservado. Ele é julgado por ter
desconsiderado os preceitos da Igreja, que se autodenomina representante de Deus na
Terra, e também é condenado por ter praticado todos os tipos de vícios, acreditando que
seu título nobre o protegeria do fogo eterno; ou simplesmente por ter experimentado os
prazeres terrenos, carnais, sem se preocupar com a alma e nem com a vida pós-morte. Esta
fala, que Gil Vicente coloca na boca do Diabo, nada mais é que uma exortação aos fiéis,
aos cristãos, a viver uma vida seguindo os preceitos da Igreja, que, segundo o dramaturgo
português, é o único caminho através do qual a alma humana pode alcançar a sua salvação.
Este é um pensamento dominante na sociedade européia nos finais da Idade Média. Vamos
encontrar neste período a pregação das ordens mendicantes, exortando os fiéis a viverem
de acordo com a palavra de Deus.
A segunda passagem do auto a ser analisada é o diálogo entre o Papa e o Diabo. Da
mesma maneira que aconteceu com o Conde, a Morte leva um alto dignitário da Igreja
perante o barqueiro do Inferno. De maneira ousada, Gil Vicente fez o próprio Papa
comparecer diante do Diabo e ser julgado por este juiz implacável.
Diabo: “Venga Vuesa Santidad
Em buenora, padre Sancto,
Beatíssima magestad
De tan alta dignidad,
Que moriste de quebranto.
Vos iréis,
En este batel que veis,
Conmigo a Lucifer;
Y la mitra quitareis
Y los pies le besareis;
Y esto luego ha de ser” (VICENTE, 1965: 303).
Nos quatro primeiros versos percebemos a maneira solene com que o Diabo recebe
o Papa que foi conduzido pela Morte até o batel infernal. Esta fala solene é, no entanto,
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irônica, pois logo em seguida ele deixa claro qual vai ser de agora em diante o verdadeiro
tratamento que o representante da Igreja deverá receber nos “infernos”. A sentença está no
antepenúltimo e no penúltimo versos, onde o arrais do Inferno diz ao Papa que ele vai
abandonar seu poder pontifical porque de nada lhe servirá daquele momento em diante,
que o Papa estará para sempre submetido ao poder de um outro senhor, Lúcifer. Aqui
podemos perceber o conflito entre dois “poderes espirituais” que caracterizaram o
pensamento medieval. Há um maniqueísmo evidente: se o indivíduo não segue os preceitos
religiosos, ele então se submete ao “poder espiritual” corrompido: Lúcifer. Portanto, esta
divisão caracteriza a individualidade do homem medieval ameaçado sempre por duas
forças espirituais contrárias e conflitantes. É utilizando-se deste conflito, que dilacera o
homem medieval, que o dramaturgo português reforça o poder da Igreja, criticando o
próprio Papa, agora tido como servo do poder adversário.
Para expressar a situação de submissão na qual ele se encontra, o Diabo proferiu a
seguinte sentença: “Y los pies le besareis”.
A este discurso do Diabo, o Papa responde ainda com arrogância e lembra ao
barqueiro a santidade que ele representa:
“Sabes tú que soy sagrado
Vicario en el santo templo?” (VICENTE, 1965: 303).
Isto é, ele ocupa o mais alto cargo na Igreja, imputando a si mesmo, pela função
que exerce, um teor sagrado, daí ele jamais embarcar naquele batel. No entanto, o arrais da
barca perdida não se intimida e enumera todos os pecados cometidos pelo Papa:
“Lujuria os desconsagró
Soberbia os hizo daño;
Y lo mas que os condenó,
Simonía con engaño.
Venid embarcar” (VICENTE, 1965: 304).
Segundo a ótica vicentina, pelo cargo que ocupou, o Papa deveria ter dados os
melhores e maiores exemplos a toda a cristandade; entretanto, de acordo com o Diabo, ele
não o fez e ainda se utilizou de seu poder de maneira abusiva, pois com este poder ele
vendeu relíquias sagradas. Enfim, pecou porque não cumpriu com suas obrigações
religiosas. Assim, o Papa deveria depois de morto abdicar de seus poderes espirituais, pois
de acordo com suas ações, como líder religioso, ele na verdade optou por um outro senhor
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que não Deus, e sim Lúcifer.
Gil Vicente critica o comportamento do clero. Para ele, a luxúria, a soberba e a
simonia são “pecados” praticados pelos representantes da Igreja e o dramaturgo português
os denuncia através do discurso do Diabo, que é extremamente moralizador. Por volta dos
séculos XIV e XV, a Igreja atravessava uma grande crise, ela vive o Grande Cisma do
Ocidente e o papado se encontra dividido em dois papas, representantes de duas facções
políticas diferentes: um em Roma e outro em Avignon. O primeiro, defendendo os
interesses do Sacro-Império Romano Germânico e o segundo protegendo os interesses da
Coroa francesa.
Mas, por outro lado, o dramaturgo português deixa bem claro que o problema não
está nas instituições e sim nos indivíduos, isto é, a corrupção não se encontra presente no
Papado ou na Igreja, mas no Papa. A pessoa que ocupa cargos e funções importantes é que
se deixou corromper. Este era um pensamento dominante ao longo da Idade Média. Pois o
homem medieval acreditava na ideologia eclesiástica que afirmava que a cidade terrena se
assemelha à cidade de Deus. Para este homem, se as instituições foram criadas por Deus,
elas não poderiam jamais estar corrompidas, elas deveriam se manter; os indivíduos é que
deveriam modificar-se.
Após o Conde, o dramaturgo português faz desfilar diante do Anjo e do Demônio
um Duque. É importante notar que a figura da Morte diz a este nobre:
“Vos señor
Duque de grande primor
Pensasteis de me escapar?” (VICENTE, 1965: 285).
Nestas estrofes fica clara a posição de privilegiado do Duque, pois por se considerar
tão importante, chega mesmo a acreditar que poderia escapar inclusive da morte, ou
melhor, ele não se lembrou do inevitável fim. Assim como o Conde, esta personagem
lamenta também que tenha chegado a sua hora e sofre muito por isso.
No diálogo com o Demônio fica mais uma vez ressaltada a soberba e a presunção
do Fidalgo, mantendo um comportamento autoritário com o próprio Diabo, depois da
morte, como manteve em vida com os seus inferiores. Entretanto, o arrais do Inferno não
se intimida e mostra ao Duque os tormentos que o aguardam no Inferno:
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“Veis aquella puente ardiendo
Muy lejos allém del mar,
Y umas ruedas volviendo
De Navajas, y hiriendo?
Pues allí habéis de andar
Siempre jamás” (VICENTE, 1965: 286).
Pelas penas que lhe serão impostas podemos medir as acusações que pesam sobre
este nobre. Os pecados cometidos assumem ainda uma proporção maior, segundo a
perspectiva religiosa de Gil Vicente, devido à posição elevada que sempre ocupou na
sociedade, isto é, representante da nobreza.
Na mesma situação, neste auto, se encontram, além do Conde e do Duque, também
o Rei, o Imperador, o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa. Todos se comportam de
maneira semelhante diante da morte, lamentando a perda da vida, conseqüentemente, dos
bens materiais. Diante do Diabo tomam atitudes arrogantes, diante do Anjo são humildes e
suplicam o perdão divino. Mas o Diabo, este juiz implacável, além de denunciar as más
ações que cometeram estas almas, ainda lhes mostra os tormentos que os aguardam no
Inferno, e, que se tornarão a partir deste momento, as novas condições de existência destas
personagens, que foram tão grandes na Terra, e que a morte os arrebatou de situação
privilegiada na sociedade, transformando-os de senhores de outros homens em simples
súditos de Lúcifer.
Mas a Morte, além de cruel, por finalizar a vida faustosa, despe estes poderosos de
todos os recursos físicos e materiais, inclusive do próprio corpo, que representa para estes
nobres uma perda irreparável. Por isso o Conde a chama de tirana”; o Duque lamenta a
deterioração de seu corpo:como quedas, cuerpo triste?”. O Rei chama a Morte de
Fortuna perversa escura!”. O Arcebispo revela a sua impotência diante dela: No puede
nadie contigo...”. Já o discurso do Imperador é um dos mais ricos e significativos:
“Mi triunfo allá te queda,
Mis culpas trajo conmigo;
Deshecha tendo la ruela
De las plumas de oro y seda
Delante mi enemigo” (VICENTE, 1965: 291).
Aqui ele lamenta a perda da vida, dos bens materiais e conseqüentemente, da sua
posição social privilegiada.
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Outro discurso, também muito interessante sobre o fim da vida é o do Bispo. Um
sentimento profundo de perda das coisas mundanas, é colocado por Gil Vicente na boca
deste clérigo, e retrata um imenso apego pelas coisas do mundo, inclusive a transformação
do corpo, ou melhor, a putrefação da carne.
“Muy crueles voces dan
Los gusanos cuantos son,
Adó mis carnes están,
Sobre cuales comerán
Primero mi corazón.
[...]
O mis manos y mis pies
Cuan si cosuelo estarés
Y cuan presto seréis tierra!” (VICENTE, 1965: 294-295)
O lamento desta pela perda das coisas do mundo e, sobretudo, do próprio corpo, é,
na realidade, o retrato de um momento histórico, da sociedade quinhentista, na qual as
pessoas tomam consciência do prazer de viver e a brevidade e fragilidade da vida.
Huizinga (S/D) lança uma forte luz sobre a maneira dos homens de encarar a morte,
no final do século XV. Exibindo os horrores que esperam a beleza humana, os pregadores
do desprezo pelo mundo exprimem, na verdade, um sentimento materialista: toda a beleza
física e toda a felicidade terrena são inúteis porque estão destinadas a acabar em breve. A
renúncia é fundada no desgosto, não brota da sabedoria cristã. A exortação piedosa a que
se pense na morte e as exortações profanas a que aproveite o melhor possível a juventude
quase se encontram.
Outro aspecto que pode ser destacado deste Auto é a arrogância destas personagens
diante do Diabo. Tal comportamento denota a arraigada visão dos seus privilégios sociais.
O Conde diz ao arrais do Inferno: Nunca me passarás”. O Duque responde ao
barqueiro do inferno quando este lhe mostra o batel em que ele deverá entrar: Hace
mucha maresía: / Estrata es la mia, / Y tu no me passarás”. Isto é, a barca dele é a da
Glória e não a do Inferno. O Imperador, além da prepotência, se irrita com o Diabo:
Ó maldito querubin!
Ansí como descendiste
De ángel à beleguin.
Querías hacer á mí
Lo que á ti mismo hiciste?” (VICENTE, 1965: 292).
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Orgulhosos, pretensiosos, arrogantes e prepotentes, estes indivíduos ilustres
mostram um profundo temor diante da possibilidade das penas infernais. É no diálogo com
o barqueiro do Paraíso, que se mostram humildes e verdadeiramente arrependidos. Talvez
seja um dos pontos mais instigantes deste auto; para salvar almas tão pecadoras, nosso
dramaturgo lança mão de um recurso tão caro à Igreja católica: a contrição do penitente.
Após o desfile das personagens diante do arrais do Inferno e depois que ele desnuda
todos os pecados destas, as almas seguem em direção ao batel divinal e vão ter com o
Anjo. Este barqueiro não se mostra um juiz implacável, nem pronuncia a sentença final,
mas, ao contrário, indica às figuras o caminho da salvação. Exorta as almas a recorrer a
Cristo ou a Virgem Maria para que sejam perdoados os seus pecados.
Ao Rei, ele diz:
“Plega à vuestro Redentor,
Nuestro Dios criador,
Que os dé segundas vidas” (VICENTE, 1965: 290).
Para o Imperador, o Anjo afirma:
“No podemos mas hacer
Que desear vuestro bien,
Vuestro bien, nuestro placer:
Nuestro placer es querer
Que no se pierda alguien” (VICENTE, 1965: 294).
Ao Cardeal, o arrais do Paraíso diz:
“Socorre’os, Cardinal
Á la madre del Señor” (VICENTE, 1965: 302).
Com o Papa ele se mostra um pouco mais exigente, por ter sido este o pastor e guia
da Cristandade, seus pecados se tornam assim mais contundentes e sua salvação mais
distante. Aqui, é a própria personagem que recorre à Virgem, através de súplicas.
Papa: O gloriosa Maria,
Por las lágrimas sin cuento
Que lloraste en aquel día
Que tu hijo padecía,
Que nos libres de tormento,
Sin tardar...” (VICENTE, 1965: 305).
- 182 -
E somente no final da peça é que o Anjo se dirige a todas as personagens
indicando-lhes qual o navio em que elas deverão embarcar e certamente não é o do Paraíso.
Neste momento todos os Anjos presentes desferem a vela, que tem o crucifixo pintado e as
almas de joelhos começam a rezar suplicando o perdão divino. Contudo, os Anjos não
fazendo... menção destas preces, começarão a botar o batel ás varas e as almas fizerão em
rosa hua musica a modo de pranto, com grandes admirações de dor; e veio Christo da
ressurreição, e repartio por elles os remos das chagas, e os levou comsigo(VICENTE,
1965: 307).
Assim, ao contrário de toda a expectativa de leitura, quando começamos a acreditar
que as almas serão levadas pelo arrais do Inferno, surge o próprio Cristo e as salva
entregando a estas os remos, que aqui simbolizam as chagas, os sofrimentos pelos quais
Ele passou para redimir a humanidade de seus pecados.
Apesar de ser o aspecto religioso o que nos causa forte impressão, nosso
dramaturgo denuncia sua postura de artista da Corte, comprometido politicamente com
esta. É óbvio que não acreditamos que o mecenato dos reis portugueses mutila a sua
criação, mas não se pode negar, os laços que ligam Gil Vicente à Monarquia portuguesa
quinhentista nesta peça se evidencia muito claramente.
Por isso, vale ressaltar um aspecto importante neste auto: a língua aqui utilizada é o
espanhol e não o português, como nas outras duas peças. Enquanto as personagens
componentes do quadro da Barca do Inferno representam elementos sociais sem
privilégios de nascimento, ou seja, não pertencem à nobreza, não têm linhagem nem título,
excetuando o Fidalgo; e as figuras da Barca do Purgatório representam os segmentos
sociais desprivilegiados; a Barca da Glória é composta pelo mais alto patamar da
hierarquia social portuguesa dos Quinhentos.
Daí esta última ser escrita em espanhol, haja vista que a elite portuguesa era
bilíngüe, isto denota os laços estreitos que uniam as duas coroas e também a influência
cultural recíproca que cada um destes países, Portugal e Espanha, exerciam um sobre o
outro. Por isso, a União Ibérica, no século seguinte, vem completar, culturalmente, o
crescente processo de castelhanização do território lusitano. que o século XVII é o
Século do Ouro espanhol.
- 183 -
Segundo Oliveira Marques (2001), nos fins do século XV e durante o século XVI,
a maioria dos autores, cortesãos e homens educados portugueses mostravam-se bilíngües,
falando e escrevendo nos dois idiomas: português e espanhol. Entretanto, o impacto da
cultura espanhola não foi tão intenso nas camadas sociais inferiores. Assim, o processo de
castelhanização entre os grupos menos privilegiados foi menos acentuado do que nas
elites.
Sabemos que Gil Vicente utilizou-se da língua para compor o quadro de suas
personagens tornando-as mais verossímeis. Por isso, a figura-tipo, além de desfilar no
palco com suas vestimentas, gestos, objetos e outros, simbolizando os diversos grupos
sociais, também falava de acordo com segmentos sócio-profissionais que representava.
Então, podemos refletir: ao escrever o Auto da Barca da Glória, todo em espanhol, nosso
dramaturgo quis homenagear as elites portuguesas, destacando assim, uma característica
cultural do grupo, simbolizando desta maneira, todos os privilégios que este detinha no
seio da sociedade portuguesa quinhentista, e ao mesmo tempo compactuando, em certo
grau com os valores defendidos pela Coroa lusitana.
Daí, Teyssier (1982) chegar à conclusão que Gil Vicente condena os indivíduos
mas respeita as instituições, os cargos e as funções por eles ocupados.
“...Gil Vicente condena os homens e respeita as funções. É ao
mesmo tempo implacável com os indivíduos, sejam eles imperadores
ou papas, e respeitoso com os cargos que exercem. Profundamente
religioso, cna igualdade fundamental de todos os homens perante
a lei moral e perante a morte. Mas, pertencendo ao pessoal da
Corte, vivendo na orda do rei... deseja a manutenção das ordens e
das hierarquias...” (TEYSSIER, 1982: 56).
Concluindo, podemos dizer que a concessão para cruzar as portas do Paraíso dada a
este terceiro grupo apresenta várias razões. O Parvo e o Menino se salvam pela inocência e
simplicidade da alma. Os Quatro Cavaleiros embarcam no batel divinal porque morreram
defendendo a Igreja e a Coroa dos infiéis/mercadores concorrentes. E as figuras desta peça
se salvam pois mesmo sendo pecadoras, pertencem ao cimo da hierarquia social e o
recurso utilizado pelo nosso dramaturgo foi o religioso: as almas se arrependeram
sinceramente de seus pecados. Por isso, é o próprio Cristo que as conduz ao Paraíso.
- 184 -
CAPÍTULO IV
O JUDEU
Iniciaremos agora os estudos da última personagem. A ela foi dedicado um
capítulo, graças à situação ambígua que se apresenta no Auto da Barca do Inferno. Nós
tentamos analisar e revelar os valores e intenções que estimularam e levaram Gil Vicente a
condenar às penas infernais algumas personagens, a dar a outras a possibilidade de
salvação, purificando-se de seus pecados no Purgatório para depois passar para a eterna
glória e a outras conceder embarcar no batel divinal conduzidas pelas mãos do Cristo
ressuscitado. Porém, o Judeu ficou a vagar. Apesar de compor o quadro das figuras do
Auto da Barca do Inferno, o dramaturgo português não pode ou não soube onde colocá-lo e
a imagem do judeu errante, gerada pela Europa cristã com as expulsões, está aqui bem
representada.
Como personagem tipificada, o Judeu não representa um grupo étnico, como
também a imagem que o Ocidente cristão faz dele, e, mesmo compondo com os árabes e
os cristãos a cultura da Península Ibérica, não pode encontrar um lugar específico neste
auto. Segundo José Hermano Saraiva (1984), os judeus estavam na Península desde o
tempo romano. Tolerados umas vezes, perseguidos outras, as suas comunidades eram
populosas e numerosas. Representaram uma elite cultural. Haja vista que as profissões que
exigiam maior preparação, a Medicina, por exemplo, e grande parte do comércio eram
exercidas por judeus. Condenados pela Igreja e segregados pelas populações, formavam,
apesar disso, uma camada superior da sociedade privilegiada do ponto de vista do saber e
do dinheiro.
Maria Leonor Garcia da Cruz (1990), em seu livro Gil Vicente e a Sociedade
Portuguesa de Quinhentos, faz uma leitura da figura do judeu no interior dos textos
vicentinos. A visão desta personagem se torna instigante porque ela é gerada numa época
- 185 -
de grande contestação antijudaica e o poder real tem um papel ativo na conversão forçada
dos judeus portugueses, sob a ameaça de expulsão em 1496 e sujeitos a reações violentas e
sangrentas que persistirão durante o século XVI.
Até que ponto, na sua obra, Gil Vicente reflete ou emite uma
opinião sobre a legitimidade dessa conversão compulsiva, tema que
ao longo dos anos iria gerar discussão e controvérsia, como encara
o cristão-novo ou judeu converso na construção das personagens
que coloca em cena, que características atribui ao judeu nas suas
peças, são questões que, a motivarem um esforço de resposta,
contribuem para o enriquecimento desta problemática que tão
vincadamente marca a nossa era de Quinhentos e envolve a própria
questão do estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição em Portugal” (CRUZ, 1990: 186).
A partir daí a autora vai enumerando as diversas peças nas quais esta personagem
aparece e pontuando suas características em cada uma delas. A primeira é o Sermão de
1506, em que se a idéia da inutilidade da pregação das virtudes e da verdade num
mundo de falsidade e maldade. Numa outra peça, na Exortação da Guerra, o que prevalece
é a cegueira e a maldade judaicas, que, segundo a autora, elas estão presentes em toda a
documentação e literatura de cunho anti-semita. Reportam-se a todo um sistema de idéias
e valores de inspiração cristã que encara o judaísmo como um erro, uma heresia, uma vez
que nega dogmas da Igreja Católica” (CRUZ, 1990: 187).
Os historiadores atestam que o teatro religioso, pelo menos nas cidades, foi um dos
grandes meios veiculadores das idéias antijudaicas. Nos séculos XIV e XV, os mistérios e
as moralidades dão aos espectadores múltiplas ocasiões para detestar ou zombar dos
judeus. Para Delumeau (1996), entre os mistérios, os dramas de Cristo são os que
freqüentemente põem em causa os israelitas e alternadamente ressaltam a cegueira, a
maldade e a covardia judaica. O povo deicida é afligido por todas as taras físicas e morais e
invectivados da pior maneira. São ‘mais cruéis que lobos’, ‘mais dilacerantes que o
escorpião’, ‘mais orgulhosos que um leão velho’, ‘mais raivosos que cachorros loucos’.
São maus e ímpios, libertinos, ignóbil... diabos do inferno” (DELUMEAU, 1996: 284).
A atitude de atribuir deformidades físicas aos judeus também está presente em
passagens da obra vicentina, como por exemplo na Comédia de Rubena. Nesta mesma
peça encontramos a arrogância dos judeus que, do ponto de vista cristão, marca uma
ambição desmesurada e um abuso de poder dada a sua natural inferioridade.
- 186 -
Outra característica é a covardia, que tem como contra-ponto o desprezo, que o
cristão sente pelo judeu. Ela aparece em Que Tem Farelos? e no Auto Chamado da
Lusitânia. Neste, o judeu é um alfaiate e tem por hábito passear com outros judeus
enquanto o trabalho de costura vai acumulando e atrasando a sua entrega. Além disso,
afirma que gosta de entoar e ouvir cantar temas de guerra. Gaba-se de valentia e, no
entanto, só se mostra seguro estando na janela, armado e com a porta trancada. Se o infante
D. Luís fosse guerrear no Norte da África ele o acompanharia, levando consigo uma lança
muito comprida e se escondendo dos mouros.
A covardia judaica aparece também na Farsa de Inês Pereira, quando ela ao se
recusar a se casar com Pêro Marques, um vilão, para denegrir sua imagem, relaciona-o à
imagem do judeu.
Inês: “Pessoa conheço eu
Que levará outro caminho.
Casae lá c’hum vilãozinho,
Mais covarde que um judeu!”(VICENTE, 1965: 666).
No entanto, o dramaturgo português não deixa escapar de sua pena a realidade do
cristão-novo. Grande observador e sensível às mudanças ocorridas na sociedade
portuguesa no final do século XV e início do XVI (em especial às que se referem à
chegada maciça de judeus e conversos espanhóis fugindo da Inquisição, e o processo de
integração destes no seio da cristandade), faz representar em algumas de suas peças tal
situação.
No Juiz da Beira, o sapateiro é um cristão-novo saudoso do tempo em que era
judeu e tinha dinheiro, quando desempenhava sua atividade de mercador. Agora que se
converteu ao cristianismo vive miseravelmente. Apresenta sua queixa ao juiz porque sua
filha foi ludibriada por uma alcoviteira. A sentença do magistrado é que revela a situação
dúbia em que vive. Contrariando qualquer expectativa, a Alcoviteira é condenada a açoites,
não por ter desempenhado sua função, mas por não tê-la realizado direito.
Pêro Marques:“Julgo que se esta dona honrada
Sabe isso tão bem fazer,
Se o deixar esquecer,
Seja por isso açoutada” (VICENTE, 1965: 706).
Este episódio é, na verdade, uma alusão direta ao adepto do judaísmo que,
integrado socialmente como cristão, se na prática insultado pela própria justiça e se
- 187 -
revolta no seu íntimo contra a opressão da legislação cristã e da religião dominante
(CRUZ, 1990: 192). Esta situação também se apresenta na Romagem de Agravados. Nela
um jovem, filho de um judeu, passa por fidalgo e cristão, por ser moço da Câmara do Rei e
ter seu nome registrado no Livro de Filhamentos, para dar o golpe do baú, casando-se com
uma jovem abastada.
A integração dos cristãos-novos efetuava-se em todos os segmentos sociais,
inclusive até no campo eclesiástico, onde poderiam encontrar um refúgio mais fácil,
assegurando assim sua sincera conversão. No entanto, a desconfiança popular se faz
presente e está representada no Auto Chamado da Lusitânia. São portanto os diabos Dinato
e Berzebu que enumeram várias facetas desta situação nas quais se revela a negligência da
devoção e dos valores morais cristãos.
Mas a situação do judeu converso ou cristão-novo torna-se também não menos
difícil do que a dos judeus que tentaram com todas as forças preservar seus valores, sua
cultura e sua religião no seio da cristandade. Contra estes pesam acusações de profanações
da hóstia e de assassinatos rituais, justificando, portanto, as perseguições e os massacres
que sofreram ao longo da Idade Média em diversas partes da Europa, gerando assim o
antijudaísmo. Dois são os principais motivos das queixas contra os judeus: a acusação de
usura, vinda do povo e dos comerciantes, e a de deicídio inventada e incansavelmente
repetida pelos meios da Igreja, imputando a responsabilidade a toda coletividade deste
povo pela crucificação de Jesus; tornando-se por isso merecedores dos castigos que
recebem. Daí, o judeu converso, nos momentos de crise, ser alvo também de perseguições,
uma vez que, segundo teólogos e reformadores – o caráter marcante deste povo é obstinar-
se no seu pecado inicial, recusar Jesus como Messias redentor da humanidade. Sendo
ignóbeis, ímpios e enganadores são capazes de se deixar batizar para serem aceitos no
meio dos cristãos sem levantar suspeitas e depois secretamente assassiná-los através da
medicina, profissão exercida principalmente por eles, ou explorando-os até tirar dos
cristãos seu ultimo tostão.
As imagens presentes na obra vicentina coadunam com as idéias antijudaicas
difundidas pelos teólogos e pregadores católicos e pelos reformadores, contudo, Gil
Vicente não prega a violência contra os judeus, pois aposta na conversão pacífica dos
mesmos.
- 188 -
A sua leitura do judeu não deixa por isso de refletir todo um
conjunto de idéias e conceitos gerados e instituídos por uma
aparelhagem ideológica comum a todo o mundo cristão e que exclui
o judeu da convivência social como inimigo e pertinaz, por negar
determinadas verdades da e o próprio Cristo como o Messias
preconizado pelos profetas do ‘Antigo Testamento’. Sobre o judeu
pesa, assim, desse ponto de vista, a mancha de ter contribuído para
a morte do filho de Deus e, por esse acto, ter de expiar eternamente
(CRUZ, 1990: 195).
Segundo a autora, é no Auto da Cananéia que nos deparamos com a condenação do
povo judaico, cuja perversão surge em toda a sua dimensão. É Hebreia quem levantará
nesta peça as características atribuídas a este povo, o seu caráter errante e de fonte de
pecado, o seu permanente cativeiro, a perversidade, facetas que sempre o acompanham e
cujo significado se vivifica por todo o aparelho ideológico que conforma a sociedade
cristã” (CRUZ, 1990: 197).
No entanto, é no Auto da Barca do Inferno que a situação ambígua do judeu, tanto
na sociedade portuguesa quinhentista como na própria obra de Gil Vicente, se revela. Pois,
apesar de sua importância econômica, de tempos em tempos era perseguido. Foi obrigado,
para sobreviver, a abraçar a religião católica como sua, e mesmo quando isto acontece,
ainda se utiliza o estigma de “cristão-novo” para separar do “cristão velho”, este último,
cristão propriamente dito. Criando assim uma tensão entre estes dois grupos e uma maneira
de marginalizá-lo, porque neste contexto, nascer judeu é como uma mancha que nem a
água do batismo consegue apagar.
No Auto da Barca do Inferno, as personagens desfilam com um objeto que
simboliza seus pecados. Assim, vem o Judeu com um bode às costas. Segundo Celso Lafer
(1978), a ligação judeu-bode admite duas conotações:
Estas não são excludentes; pelo contrário, unem-se formando uma
síntese curiosíssima. Por um lado, temos a identificação com o
Diabo e, por outro, a união com o bode expiatório e sua função
conseqüente: conduz os pecados do mundo, o que acaba por nos
levar inelutavelmente a Cristo. Aliás, este aspecto está perfeitamente
de acordo com as observações de Huizinga, sobre o simbolismo no
declínio da Idade Média: ‘cada coisa pode significar, pelas suas
qualidades especiais diferentes, várias idéias, e cada qualidade pode
também ter significados diferentes’” (LAFER, 1978: 45).
Chega o Judeu e diz ao Diabo:
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“Que vai lá, hou marinheiro?”
Diabo: “Oh que ma ora viste!”
Judeu: “Cuja he esta barca que preste?
Diabo: “Esta barca é do barqueiro.”
Judeu: “Passai-me por meu dinheiro.”
Diabo: “E esse bode há ca de vir?”
Judeu: “O bode também há d’ir.”
Diabo: “Oh que honrado passageiro”
(VICENTE, 1965: 238).
A impressão que temos é que de antemão o Judeu sabe que não entrará na barca
infernal e por isso acredita que pode com o seu dinheiro comprar um lugar neste batel.
Logo em seguida esta idéia de não aceitação vem confirmada pelos versos seguintes:
Judeu: “Sem bode, como irei lá?”
Diabo: “Pois eu não passo cabrões.”
Judeu: “Eis aqui quatro tostões,
E mais se vos pagará
Por vida de Sema Fará,
Que me passeis o cabrão
Quereis mais outro tostão?”
Diabo: “Nem tu não has de vir ca” (VICENTE, 1965: 238).
Diante da recusa do Diabo em não aceitar seu bode, o Judeu lhe oferece mais
dinheiro. No entanto, o barqueiro esclarece à personagem que ela também não entrará,
deixando claro que seu dinheiro ali não vale nada. Seria uma maneira de ridicularizar o
judeu, quando Gil Vicente o coloca comprando um lugar na barca do Diabo, como se fosse
um “leilão”: quanto mais o demônio recusa um lugar para o bode no batel, mais ele
aumenta a oferta. Parece que recusando um lugar para o seu bode, não tem como o Judeu
embarcar. Pois ele mesmo disse: “Sem bode como irei lá”. Isso dá a idéia da união
indissolúvel entre Judeu e bode. Por que então, o Judeu não tem o mesmo comportamento
das outras personagens desta peça, que resistem embarcar no batel infernal e recorrem à
barca do Anjo? O Enforcado e o Judeu são as únicas personagens que não recorrem à barca
divina. Parece-nos que o Judeu não se dirige à barca divina por duas razões: primeiro, pelo
fato do mesmo ter a priori consciência de não haver a mínima chance de poder nela
embarcar e, segundo, por se encontrar interditado de se dirigir ao Anjo, visto ser judeu. A
verdade é que quando o Diabo recusa sua entrada na barca do Inferno, ele lhe indica a do
Paraíso:
“Judeu, lá te levarão,
- 190 -
Porque hão d’ir descarregados.” (VICENTE, 1965: 239).
Então o Parvo intervém e diz:
“E s’elle mijou nos finados
No adro de San Gião!
E comia a carne de panella
No dia de nosso Senhor,
Cada vez mija naquella” (VICENTE, 1965: 239)
Assim veda a possibilidade desta personagem de recorrer ao Anjo. Mas onde
colocar o Judeu, uma vez que ele não foi aceito no lugar em que em “tese” deveria ser na
barca que conduz ao Inferno? Se o próprio Diabo diz:
“...Vós judeu, ireis à toa,
Que sois mui ruim pessoa.
Levae o cabrão na trella” (VICENTE, 1965: 239).
Celso Lafer (1978) faz a seguinte interpretação desta personagem:
“... o Diabo não está emitindo um juízo objetivo. Se assim fosse,
quanto pior o Judeu, maiores seriam as razões para ele ir para o
inferno. O Diabo está dando à palavra roym um sentido subjetivo. É
ruim para ele, Diabo, especificamente, porque o Judeu tem um
aspecto divino. A sua admissão na Glória era impossível, uma vez
que também apresentava um aspecto demoníaco. Outrossim, sua
permanência no Purgatório cuja exata localização é controvertida
era inadmissível, graças à dualidade de sua personalidade...”
(LAFER, 1978: 48).
Se o teatro religioso difundiu as idéias antijudaicas, através dos mistérios e
moralidades, foram as comédias que se encarregaram de ridicularizar os judeus, a partir do
século XV e sobretudo no século XVI. Tal situação é atestada por numerosos documentos
literários e artísticos. Léon Poliakov (1979) afirma que o crescimento do anti-semitismo
está diretamente associado ao desenvolvimento da arte e da literatura, permitindo a difusão
do mesmo entre as massas populares. Quase todos os gêneros, trovas, sátiras, legendas ou
baladas estão impregnados de imagens que ridicularizam ou que provocam o ódio contra o
judeu.
Estas imagens também povoam o universo vicentino, no entanto, não são apenas
com o intuito de ridicularizar, pois, no Auto da Barca do Inferno, nosso dramaturgo
acrescenta algo inusitado nas circunstâncias que envolvem a personagem: não lugar
- 191 -
para ela. É nos atentarmos para o fato de que todas as figuras que compões as três
barcas encontram um lugar específico excetuando-se o Judeu. Este algo novo aparece
devido a este auto aliar o aspecto religioso ao social. Daí nem após a morte ele encontra
um local específico para ficar.
Por isso não lugar nesta obra de cunho religioso para o Judeu, e se Gil Vicente
não o coloca em nenhum lugar definido, podemos perguntar se sob a ótica vicentina
também lugar para ele na escala social. Uma vez que o dramaturgo valoriza a hierarquia
jurídica e tripartida da sociedade para restabelecimento da ordem social e espiritual,
haveria lugar para o Judeu nesta sociedade? Se ele vaga sem um local definido neste Auto,
ele vaga também dentro da sociedade quinhentista portuguesa.
Analisando a sociedade européia ocidental do final da Idade Média e início da
Idade Moderna, perceberemos o medo dominando o universo cristão, povoando-o com os
mais terríveis temores do fim do mundo, da chegada do Anticristo e do aumento
considerável de seus adoradores. Nessa atmosfera de terror progressivo, gradativamente
vai sendo elaborada na consciência dos cristãos a idéias de sociedades secretas de
seguidores do Diabo. Estes precisam ser combatidos para que o Mal não sobreponha o
Bem e em nome de Deus cometem-se as maiores atrocidades. Tais temores são por certo
alimentados pela irrupção constante das heresias, confirmando no espírito dos cristãos a
realidade das especulações teológicas. Assim, o combate ao Diabo confunde-se com as
perseguições aos judeus, aos feiticeiros e a caça às bruxas que a Europa moderna
presenciou.
As perseguições, conversões e expulsões dos judeus perpassaram o continente
europeu em maior ou menor intensidade variando de época para época e de lugar para
lugar. Enquanto na Inglaterra e França a expulsão definitiva destes se por volta dos
séculos XIII e XIV, na Espanha e em Portugal só ocorrerá por volta dos séculos XV e XVI.
Mas, no geral, o ódio contra os judeus se cristaliza por volta do século XIV e este será
nutrido pela presença real ou imaginária dos mesmos.
“O que importa sobretudo notar é que, doravante, tais ódios
parecem alimentar-se de si mesmos, manifestando-se
independentemente do fato de existirem ou não judeus em um dado
território: pois se não mais judeu aí, inventam-no, e a população
cristã, se ela se choca cada vez menos com judeus na vida cotidiana,
- 192 -
é cada vez mais perseguida por sua imagem que encontra nas
leituras, que nos monumentos e que contempla nos jogos e
espetáculos. Estes judeus imaginados são evidentemente sobretudo
aqueles que são tidos como os que mataram Jesus mas entre esses
judeus míticos e os judeus contemporâneos, os homens do fim da
Idade Média não sabem mais distinguir um do outro e os ódios
antijudaicos extraem no máximo de sua presença efetiva um
alimento suplementar. Serão detestados na França e na Inglaterra,
assim como na Alemanha e na Itália, e a intensidade dos
sentimentos que se lhes dedica, se se procura diferenciá-los segundo
os países, parece depender mais do substrato sobre o qual repousa a
cultura nacional e ser mais acentuada nos países germânicos do que
nos países latinos” (POLIAKOV, 1979: 105-106).
Vejamos então a situação dos judeus na Península Ibérica. Em 1492, os Reis
Católicos decretaram a expulsão dos judeus dos Estados (Aragão e Castela) no prazo de
quatro meses sob pena de morte. Muitos judeus se refugiaram em Portugal. Dom João II
autorizou a instalação de famílias ricas em troca de altas quantias. Os demais pagavam
propina por cabeça. Muitas crianças foram retiradas à força dos pais e mandadas para
povoar a ilha de São Tomé. Poucas sobreviveram.
Em 1496, afirma José Hermano Saraiva (1984), D. Manuel seguiu o exemplo dos
Reis Católicos: ordenou a expulsão de todos os judeus, tanto castelhanos como
portugueses. Entretanto, percebeu o enorme prejuízo que a medida acarretava: perda dos
enormes tributos que os judeus pagavam, sangria dos valores que levariam consigo, saída
de milhares de úteis artesãos. A solução foi adotar uma política de compromisso aparente:
os judeus ficavam, mas deixavam de ser judeus e se transformavam em cristãos novos. Era,
portanto, a imposição da conversão aparente e uma forma de iludir a obrigação contraída
nos acordos com os Reis Católicos. As perseguições, a partir de 1434, foram constantes e
sistemáticas e levaram à formação de duas posturas diferentes na sociedade portuguesa, a
primeira: o cristão-velho, detentor da verdade, inimigo da inovação, “farejador de erros
alheios”, dogmático e repressivo. A segunda, o cristão-novo, não solidário com o conjunto
da comunidade nacional.
Entretanto, sabemos que o século XVI é marcado pela expansão marítima, pela
conquista de colônias, e que o Estado português concedia a exploração de recursos
coloniais aos grandes mercadores, e dentre eles estavam os judeus. Então, estamos assim,
diante de um contexto histórico, onde os valores antigos e novos convivem, interpõem-se.
- 193 -
É a sociedade mercantilista e renascentista que anuncia uma “nova aurora”, que se para nós
homens modernos se concretizam numa sociedade capitalista, para Gil Vicente e seus
contemporâneos, as coisas não se apresentam com tanta clareza. Daí a dificuldade em
encontrar um lugar definido para o Judeu.
Enfim, podemos perceber que a situação do judeu dentro desta sociedade era de
duplicidade. Exercendo certas atividades tais como a medicina, o comércio, os ofícios; por
exemplo, o de alfaiate como o Judeu da peça O Auto da Lusitânia (1532) e outras
atividades, ele se torna “útil” no seio da sociedade. Mas por serem judeus são
marginalizados e até perseguidos, em certos momentos, ou são obrigados a abandonarem
suas crenças e serem batizados, transformando-se em cristãos-novos. Ser cristão-novo não
seria uma tentativa de sintetizar esta duplicidade? Porque se, por um lado, ele se torna
cristão, por outro se diferencia do outro, pois é “novo”, portanto não goza dos mesmos
privilégios do cristão-velho. E quando a Inquisição chega a Portugal, eles são perseguidos.
Desta forma, quando a personagem desta peça não pode embarcar em nenhum dos batéis é
porque no interior desta sociedade ainda hierárquica, o seu lugar também não está bem
definido.
Diante disso, podemos fazer algumas considerações acerca da imagem judaica que
povoa o universo vicentino. Esta imagem vem da praça pública e ascende à corte, para
fazer rir mas também para refletir. Neste aspecto, a sátira se torna bastante contundente.
Elucidando a ambigüidade da situação do Judeu, o Auto da Barca do Inferno nos permite
perceber que a persistência da cultura judaica em não aceitar a vinda do Messias, a sua
identificação com Cristo e o Mistério da Trindade, é interpretada à luz de uma concepção
que vê no renitente uma manifestação da ação do diabo.
Daí a idéia do judeu como um ser maléfico que, inspirada na doutrina e legislação
canônica, caiu na praça pública, no domínio popular e se enraizou na tradição que o
considerou um ser diferente, opressor e simultaneamente inferior; gerou na linguagem
popular inúmeras expressões insultuosas e pejorativas, mesmo quando são direcionadas
aos cristãos e que estão presentes nos diversos textos vicentinos. Como exemplo podemos
citar: na Exortação da Guerra, “Ó fideputa judeu”; no Auto da Barca do Purgatório, “dize,
pulga de judeu”; na Farsa dos Almocreves, almareo de judeu”, mulo de judeu”; no Juiz
da Beira, cascarrea de judeu”. Mesmo assim, sua situação é de duplicidade, pois ainda
- 194 -
persiste neste povo um aspecto divino, de onde veio o Salvador. Portanto, o Judeu está tão
bem representado no Auto da Barca do Inferno, que é uma peça elaborada para estabelecer
dois tipos de condenação, a social e a religiosa. Por conseguinte, a personagem não pode
embarcar no batel infernal, nem pode purgar na ribeira seus pecados, isto é, no Purgatório,
pois este se configura na obra vicentina como um lugar de esperança, de possibilidade de
salvação; é impossível embarcar no batel divinal dado o seu caráter maléfico. Desta
maneira, se apresenta como um ser que não tem lugar definido na hierarquia social e
menos ainda numa sociedade cristã. Assim, esta peça consegue fazer o que as outras não
fizeram, a síntese entre duas visões opostas sobre o judeu e mostrar a dupla condenação, a
social e a religiosa.
Aliado a isto poderíamos afirmar que o dramaturgo interpreta nesta peça a imagem
do judeu errante, que foi gerada ao longo do tempo no processo de expulsão, e até quando
os israelitas eram chamados de volta às regiões de onde foram expulsos, de acordo com a
necessidade econômica e profissional que os poderes públicos tinham deles, como vimos
no caso de Portugal. As razões invocadas para as expulsões eram ora de ordem temporal:
proteger o povo da usura judaica, ora de ordem espiritual: conseguir a graça divina,
banindo a peste, a fome e as catástrofes naturais. Segundo Léon Poliakov (1979), devido à
Peste Negra acelerou-se a perseguição ao povo judeu e os motivos reclamados para
justificá-la serão doravante muito mais de ordem cultural, portanto religiosa, do que
econômica
19
.
Quando, no auto, o Diabo a sentença final ao Judeu, que este deverá ir “à toa”,
não conseguimos identificar para onde ele irá. Esta falta de precisão nos remete à imagem
do judeu errante, que, devido às expulsões, vagará pela Europa em busca de um lugar para
viver; em determinados momentos sendo aceitos e tolerados, em outros perseguidos,
19
Através da Europa, angustiadamente, os espíritos se interrogavam: por que este flagelo? Qual é a razão?
As pessoas cultas, os médicos em particular redigiam sábios tratados, dos quais sobressaía, segundo as
melhores regras da escolástica, que a epidemia possuía duas espécies de causas: causas primeiras, de
ordem celeste (conjugação desfavorável dos astros, tremores de terra) e causas segundas ou terrestres
(corrupção do ar, envenenamento das águas)... Os espíritos mais simples não se embaraçavam nessas
sutilezas: para eles, tratava-se quer de um castigo divino, quer de malefícios de Satã, quer de uma e outra
causa ao mesmo tempo, tendo Deus dado inteira permissão a seu antagonista para castigar a cristandade.
Satã, nessas condições, operava segundo seu hábito por meio de agentes que poluíam as águas e
envenenavam o ar, e onde poderia ele recrutá-los, senão no seio da escória da humanidade, entre os
miseráveis de toda espécie, os leprosos e sobretudo entre os judeus, povo de Deus e povo do Diabo ao
mesmo tempo? Ei-los promovidos, em grande escala, a seu papel de bode expiatório...” (POLIAKOV; 1979:
92).
- 195 -
massacrados, e finalmente chegando à expulsão. Estas idéias povoam esta peça uma vez
que a personagem não consegue embarcar no único batel que acreditou pudesse lhe levar,
mesmo que fosse para a terra dos danados.
Entretanto, que ressaltar: o nosso dramaturgo não pregou a violência contra os
judeus e, certamente, era muito mais a favor da sua conversão pacífica do que da sua
expulsão. Tal postura se faz presente na carta que escreve a D. João III. Quando em
Santarém ocorreu um terremoto e os frades mendicantes atribuíram esta catástrofe à ira de
Deus pelos “grandes pecados” que estavam sendo praticados em Portugal, isto é, pela
aceitação de judeus convertidos à cristã no seio de uma sociedade verdadeiramente”
católica. Gil Vicente advertiu, então, estes religiosos que se ainda existiam “estrangeiros na
católica” é porque Deus era nisso servido; “... e parece mais justa virtude aos servos de
Deos e seus prégadores animar a estes e confessá-los e provocá-los, que escandalizá-los e
corrê-los, por contentar a desvairada opinião do vulgo...” (VICENTE, 1965: 1325).
Assim, caberia a estes frades mendicantes convencer os judeus a se converterem
verdadeiramente à fé católica e não afugentá-los com suas pregações supersticiosas.
Certamente Gil Vicente diferia de muitos dos seus contemporâneos. Apesar de
criticar e satirizar a sociedade quinhentista portuguesa em seus diversos aspectos, incluindo
o religioso, não se mostrou um reformador, querendo uma outra Igreja, mas uma nova
Igreja Católica. Nisso se apresentou profundamente diferente de um Lutero e também em
relação ao judeu. Se o reformador alemão se manifestou num primeiro momento aberto aos
judeus, acreditando poder convertê-los ao cristianismo, entretanto, quando mostraram-se
renitentes, lança-se numa luta encarniçada contra os mesmos; revelando desta maneira uma
postura ambígua. Inicialmente afirmara que foi o papismo com suas idolatrias e seus
escândalos que afastaram este povo de cujo seio nasceu Jesus da verdadeira fé. Contudo,
não precisou muito tempo para que vociferasse contra os israelitas, pregando a destruição
destes juntamente com sua fé.
“Seria preciso, para fazer desaparecer essa doutrina de blasfêmia,
atear fogo em todas as suas sinagogas e, se delas restasse alguma
coisa após o incêndio, recobri-la de areia e de lama a fim de que
não se pudesse mais ver a menor telha e a menor pedra de seus
templos [...]. Que se proíbam os judeus entre nós e em nosso solo,
sob pena de morte, de louvar a Deus, de orar, de ensinar, de cantar”
(LUTERO apud DELUMEAU, 1996).
- 196 -
Para Léon Poliakov (1979), esta mudança de postura se deve, dentre tantos fatores,
ao compromisso de Lutero com os príncipes alemães, haja vista que o futuro da Reforma
dependia destes poderosos. O contrário, vimos, se processou com Gil Vicente, mesmo
estando vivendo às expensas de reis católicos, não pregou a violência contra os judeus e
pudemos perceber isso na carta que endereçou a D. João III. Todavia, se esta consiste em
um documento valioso não o é menos o Auto da Barca do Purgatório. Porque através da
criação artística o dramaturgo da Corte portuguesa reelabora criativamente as imagens de
um povo que se tornou errante no seio da cristandade, por veicular valores culturais,
conseqüentemente religiosos, diferentes dos valores cristãos. E, sobretudo, esta peça recria
a situação ambígua dos israelitas no interior da sociedade portuguesa quinhentista; uma vez
que a personagem se apresenta em cena com um bode às costas. O bode simboliza, ao
mesmo tempo, o Mal (a ligação íntima que esta figura mantém com Satã), e o bode
expiatório (o mal da humanidade pecadora). Desta maneira, uma representação não exclui
a outra e o nosso dramaturgo pode sintetizar as idéias opostas que perpassavam toda a
Idade Média e que explodiram nos inícios dos tempos modernos num antijudaísmo sem
precedentes na história do cristianismo.
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Conclusão
ConclusãoConclusão
Conclusão
Ao findarmos nosso trabalho faremos uma conclusão geral, uma vez que
elaboramos conclusões parciais a cada grupo de personagens analisado.
Tentamos mostrar através de nossos estudos realizados envolvendo os três autos – o
Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória
os valores preconizados por Gil Vicente, o seu compromisso com a política do Estado
absolutista português e suas opções estéticas que lhe permitiram condenar ou salvar, e até
mesmo deixar a vagar, as personagens que desfilaram diante das embarcações divinal e
infernal.
Para tanto, demonstramos através dos diálogos destas figuras com o Anjo e com o
Diabo, dos mbolos, das vestimentas que estas portam, o significado que adquiriram no
processo de condenação ou salvação das mesmas. Construídas como personagens-tipo,
representam os mais diversos segmentos sociais, profissionais ou cargos existentes na
sociedade quinhentista portuguesa. Daí a necessidade de contextualizar cada um dos
grupos que aparecem nas obras simbolizados pelas figuras-tipo.
Estas peças vicentinas apresentam uma crítica à conduta dos vários segmentos de
uma sociedade que passa por transformações profundas em todos os níveis: político,
econômico, social e cultural. Nessas encontram-se representados os diversos grupos sociais
desde as elites compostas pelo alto clero e a alta nobreza, até as camadas populares (o
camponês, o mercador, algumas profissões como as de magistrado, de sapateiro e outras).
O dramaturgo utiliza-se de uma estética medieval para realizar a crítica ao conjunto
da sociedade portuguesa quinhentista. A Sátira é o baluarte estético destes três autos, aliada
à tipificação no processo de construção das personagens e à farsa, enquanto princípio
temático e não enquanto gênero, somando-se aí a presença do riso popular.
Se o dramaturgo da Corte portuguesa fez opção pela estética do teatro medieval, ele
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o fez por diversas razões. Mas o nosso trabalho se empenhou em demonstrar o que
acreditamos ser o principal motivo desta; o fato da Corte ainda ter valores medievais muito
arraigados: uma concepção elogiosa do mundo, a defesa de uma sociedade hierarquizada,
uma preocupação muito forte em preservar as instituições políticas e religiosas, o gosto
pelo coletivo e não pelo individual.
Gil Vicente, não obstante vivesse em cheio na época renascentista,
deixou-nos também uma interpretação cristã do homem, tão evidente
no sentido tradicionalista, cavalheiresco e proselítico do seu teatro. A
esse respeito é Joaquim de Carvalho quem escreve as melhores páginas
sobre a índole espiritual do dramaturgo: sua concepção do mundo foi
teocêntrica, o seu ideal social hierárquico, e a sua ética a do asceta:
desnudar o homem e mostrar-lhe que a vida tem de ser uma
preparação para a morte” (SPINA, 1990: 78).
Ele teve a chance de entrar em contato senão direto, pelo menos indireto com a arte
renascentista, através de de Miranda, que retornou da Itália em 1527 (e Gil Vicente
escreveu e estreou sua última peça por volta de 1536). Além do mais os soberanos
portugueses tornaram-se mecenas e patrocinadores de estudantes lusitanos em outras partes
da Europa, na Itália, por exemplo; como também trouxeram para a Corte portuguesa
artistas e professores de diversas nacionalidades (espanhóis, italianos, franceses e outros).
Partindo destes pressupostos pudemos mostrar que as opções estéticas de nosso
dramaturgo representam os valores defendidos por ele. Por isso, seu teatro não apresenta
uma unidade dramática, pois nele abundam uma galeria de tipos; portanto, o que
encontramos nos três autos foram grupos e não indivíduos, sem estes “... há casos, mas não
problemas ou dramas [...] o indivíduo é criador, nele existe a perplexidade em face
de uma situação nova, só ele pode escolher entre alternativas” (SARAIVA, 1992: 115).
A Sátira se torna, neste contexto, a pedra angular da construção dos autos aqui
analisados e, no processo de elaboração das personagens vicentinas, a técnica utilizada é a
tipificação. Enquanto realidade complexa o indivíduo que se torna alvo de sátira tem um
alcance limitado. Para torná-lo mais risível, é necessário despersonalizá-lo. Ou seja, é
preciso reduzi-lo a um conjunto mínimo de traços constitutivos que se centrem numa só
dimensão do seu ser: a profissão, um traço de caráter, uma tendência de comportamento e
outros.
Segundo Bernardes (1996), na medida em que a Sátira aspira a funcionar como
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forma de representação imediata do mundo, o teatro mostra-se apto à incorporação de
formas satíricas, denunciando, repreendendo, e às vezes, propondo estratégias de
retificação em função de determinada norma. O teatro, tal como o conhecemos no
Ocidente, nasceu sob o signo da sátira moralizante: na representação ridicularizada de
costumes, nas comédias gregas e romanas, na inversão carnavalesca de valores
estabelecidos na Idade Média, na caricatura de certas figuras estilizadas.
Portanto, a Sátira vicentina está em conformidade com o que foi exposto acima.
Uma vez que nosso dramaturgo constrói um teatro que pretende fazer rir, mas que ao
mesmo tempo demonstra a intenção de incidir sobre a realidade circundante, fazendo
denúncias e propondo correções. Desta maneira, a Sátira como base estética e postura
política de nosso dramaturgo, foi percebida através da análise dos diálogos, dos
comportamentos, dos símbolos, gestos das personagens presentes nestes três autos.
Outro aspecto que pontuamos foi a presença de personagens farsescas que têm no
engano seu principal eixo temático.
“... o farsesco institui-se como uma espécie de princípio itinerante que
se associa livremente com traços genológicos muito diversos. E embora
devam destacar-se os efeitos muito particulares que resultam da sua
combinação com a sottie e com a moralidade, a farsa parece remeter,
por si só, para um idiolecto estético-ideológico muito próprio em que a
derisão e o sentido do dico se aliam a uma particular obsessão pela
verdade dos valores e dos comportamentos (BERNARDES, 1996:
201).
Para Bernardes (1996), a exata definição das características principais da farsa só
pode ser feita pressupondo a existência de uma farsa padrão, dado a amplitude da
variedade estrutural deste gênero. O suporte narrativo da ação, o pequeno número de
personagens, a curta extensão do texto, o vincado enquadramento das personagens na
realidade e, sobretudo, a importância do engano ou da burla. Contudo, dada a riqueza da
obra vicentina, a farsa se encontra associada a outros gêneros. Desta forma, ela se revela,
não enquanto gênero dramático rigorosamente delimitado, mas enquanto princípio
temático tendo como base a representação codificada de certas situações e na sua
conseqüente derisão.
Aliado a estes aspectos, demonstramos a existência de dois tipos de riso. Um que
denominamos de moralizador, cuja finalidade é levar à reflexão de determinadas condutas
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e comportamentos dos indivíduos ou grupos no interior da sociedade portuguesa
quinhentista. O outro é o riso popular, que para analisá-lo utilizamos a teoria bakhtiniana,
demonstrando a presença deste em algumas passagens do Auto da Barca do Inferno e do
Auto da Barca do Purgatório, conferindo ao dramaturgo certas liberalidades no processo
de condenação e salvação das almas.
No primeiro grupo de personagens as condenadas às penas eternas mostramos
que Gil Vicente critica a soberba, a prepotência, a arrogância, o orgulho, a exploração das
elites sobre os grupos menos privilegiados, quando ele lança no Inferno uma figura-tipo, o
Fidalgo, representando um membro dos segmentos sociais mais poderosos. Graças à Sátira,
à tipificação e ao riso popular é que foi possível ao nosso dramaturgo realizar tal façanha,
na medida em que este tipo de riso permite que se transite no terreno do sério para o do
risível, levando os membros deste grupo a rirem de si mesmos, haja vista que são eles os
componentes principais do público que o assistiu e o aplaudiu.
Nas mesmas condições se encontra uma outra personagem, o Frade, membro do
Clero, não escapando à pena satírica de Gil Vicente, que, através do Diabo, denuncia todo
o comportamento mundano e totalmente repreensível dos elementos deste grupo que se
afastam de suas obrigações religiosas, vivendo de maneira dissoluta.
Condenadas às penas infernais são também o Onzeneiro, a Alcoviteira, o Taful e o
Sapateiro, cujo elemento farsesco que aqui se evidencia é o engano e o apego aos bens
materiais. Segundo Bernardes (1996) são personagens farsescas os condenados das Barcas,
pois são portadores de micro-seqüências, tendo como centro o tema do engano e, no plano
teológico-moral, estão apegados aos bens e ao poder da Terra.
A Alcoviteira é reconhecida tanto pelo afã moral de realizar lucros, como pela
linguagem hipocritamente estilizada de persuasão, com abundantes recursos a sufixos
diminutivos e a imagens de doçura com a finalidade de enredar as outras personagens que
são seus alvos de conquistas, enganando-as para conseguir seus intentos. Por isso, traz
consigo diversos objetos que simbolizam os pecados cometidos pela personagem e são
exatamente estes que lhe impedem a entrada no batel divinal, concretizando, assim, a
condenação da figura-tipo.
O Onzeneiro, por sua vez, lamenta profundamente a morte, se tivesse ficado na
- 201 -
Terra um pouco mais teria tido mais lucros com a cobrança de juros. Daí se apresentar com
um bolção que, apesar de vazio, não cabe na embarcação da Glória. Igual à Alcoviteira, o
Onzeneiro enganou e ludibriou para envolver suas vítimas emprestando-lhes dinheiro e
cobrando depois juros altos, a ponto de se enriquecer graças à miséria alheia.
Comportamento semelhante tem o Sapateiro que utilizou de sua profissão para roubar e
enganar as pessoas. Assim, se apresenta com as formas de fazer sapato no além, não
cabendo as mesmas na barca do Paraíso. Daí embarcar no batel dos danados que é bem
maior do que a outra.
O Taful vivencia situação semelhante, uma vez que o jogo pressupõe o engano.
Tendo por hábito enganar, estende para outra vida seus hábitos e, por isso, denuncia sua
condição de personagem farsesca. Sendo lançado sem clemência ao Inferno, temos a
condenação de caráter religioso. O reconhecimento da culpa, o arrependimento sincero e a
inocência são três elementos essenciais para a salvação da alma, segundo a ótica vicentina,
o que a nossa personagem não demonstra ter em momento nenhum.
O Enforcado, também outra figura condenada a remar o batel dos danados, se
encontra ligado ao engano. Porém, um pouco diferente das outras três antecedentes; esta
passou a vida roubando, mas na hora da morte foi enganado por uma autoridade que lhe
garantiu a salvação eterna, uma vez que na Terra havia sido condenada à morte. O
engano se evidencia no diálogo que estabelece com o Diabo. É por isso, explica-lhe o
arrais do Inferno, que ele traz, como todas as personagens, o símbolo de seu pecado, a
corda.
A situação do Corregedor e do Procurador se aproxima da do Fidalgo, mas aqui o
dramaturgo acrescenta um dado novo; além da prepotência, orgulho e dos privilégios, a
corrupção. São indivíduos como estes que impedem a correta aplicação da justiça, por isso
nosso dramaturgo os premia com o fogo do Inferno. Embora seja uma situação
profundamente séria, o que prevalece é o riso. O riso que não prima apenas pelo deboche,
mas que tem por objetivo atingir o público que o assiste levando-o à reflexão. E o destaque
está na figura do Diabo que, exercendo a função de juiz implacável, diverte-se com a
arrogância e a prepotência destas personagens. Imitando-os na linguagem, que se pretende
culta, por ser o latim, o Diabo o transforma em latim “macarrônico”, destronando-o do seu
status de linguagem culta. Fazendo-o descer do cimo da cultura erudita, o Diabo se torna
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particularmente satírico.
O segundo grupo de personagens é o grupo ao qual o nosso dramaturgo concede a
possibilidade de salvação. Todos os elementos deste ficam purificando seus pecados no
Purgatório, até o momento de embarcarem para a glória eterna. Destacamos aqui, os dois
tipos de riso, o popular e o moralizador. Este, presente na denúncia das almas, quando elas
demonstravam tanto para o Anjo como para o Diabo, que foram timas da exploração, do
preconceito e da arrogância dos grupos privilegiados, desnudando assim a sua condição de
explorados e marginalizados na Terra, em particular, no seio da sociedade quinhentista
portuguesa.
O riso popular se evidencia no diálogo das figuras com o Diabo. Pois é através da
interferência deste, denunciando as condutas desviantes das personagens, que elas não
embarcam de imediato no batel divinal. Contudo, as figuras o enfrentam corajosamente,
mas de maneira cômica e divertida, lançando-lhe todos os tipos de impropérios. Daí,
ressalta o riso popular que, ambivalente por natureza, destrona o medo e a violência que
estão ligados à esfera oficial. Segundo Bakhtin (1993), à universalidade e à liberdade do
riso da Idade Média, junta-se uma terceira característica, o caráter popular não-oficial. O
sério é oficial, autoritário, está perpassado de interdições e violências, mas a ele se
contrapõe o riso, que não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição e supõe o domínio
do medo.
Compõem o terceiro grupo todos aqueles a quem Gil Vicente concede a salvação
eterna. O Parvo e o Menino são salvos por razões diferentes das que levam o nosso
dramaturgo a não condenar as almas da Barca da Glória e a salvar os Quatro Cavaleiros.
Enquanto os dois primeiros embarcam no batel divinal sobretudo por causa da inocência,
os motivos que permitem às outras figuras alcançar a eterna glória são outros. Dentre eles
está o compromisso político do artista com os monarcas portugueses das três primeiras
décadas do século XVI.
Mesmo enumerando todos os pecados das personagens do Auto da Barca da
Glória, o artista as coloca no batel que conduz às portas do Paraíso, pelo fato de todas
representarem o cimo da hierarquia social portuguesa, denotando, assim, a sua ligação
política com o Estado português. Para tanto, o nosso dramaturgo utiliza-se dos valores
religiosos que lhe são tão caros: o reconhecimento da culpa, o arrependimento sincero.
- 203 -
Finalmente, o que seria o quarto e último grupo é na realidade uma única
personagem, o Judeu, e, aqui, mais do que na análise de qualquer uma das figuras
estudadas, foi necessário entender a situação sócio-cultural deste no seio da sociedade
quinhentista portuguesa, para que se tornasse possível compreender porque somente ele
não pode embarcar em nenhuma das duas barcas, nem a da salvação e nem a dos danados,
e nem tão pouco foi lhe dada a possibilidade de purgar seus pecados.
Vivendo em um universo cristão, o que marcou a vida do povo israelita foi a
ambigüidade. Tolerado umas vezes, perseguido outras, para finalmente ser expulso. Tudo
isso gerou nos espíritos da época a imagem do judeu errante; Gil Vicente reelaborou e
criou uma personagem-tipo, que após a morte não encontrou um lugar específico, ficando a
vagar sem destino certo. Por isso, traz consigo um bode, símbolo de sua condição maldita,
detestável, humilhante, mas ao mesmo tempo meio divino. Sintetizando, desta maneira, o
bode expiatório como representação de todo o mal da humanidade.
Assim, nosso dramaturgo, através da Sátira, dos elementos farsescos, da tipificação,
do riso moralizador e popular, critica os comportamentos, as condutas dos diversos grupos
sociais e das várias profissões existentes na sociedade quinhentista portuguesa. Estabelece
a condenação religiosa, moral e social das personagens que representam os mais variados
segmentos sociais, assim como concede a umas a salvação eterna e a outras a possibilidade
de salvação e ao Judeu, obriga-o a vagar sem rumo. Desta maneira, nosso dramaturgo nos
deixa entrever os valores por ele preconizados e o compromisso com o Estado português.
Haja vista que se tornou um artista graças ao mecenato dos soberanos portugueses, nas três
primeiras décadas do culo XVI, D. Manuel e D. João III, e contou por muito tempo com
a proteção da rainha D. Leonor, viúva de D. João II.
Desse modo, foi possível estabelecer os textos vicentinos como documento
histórico, uma vez que estes elementos dramáticos nos permitiram pontuar a relação entre
os autos e o universo sócio-cultural que eles pretenderam representar.
A utilização do conceito de representação nos deu a possibilidade de identificar o
modo como uma dada realidade da sociedade quinhentista portuguesa foi construída,
pensada, dada a ler, através do teatro. Assim como, classificar, dividir, delimitar a
organização do social como categorias de percepção e de apreciação do real, que são
variáveis de acordo com os grupos sociais ou os meios intelectuais e, no caso específico
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com a ótica vicentina aliada a um compromisso estético-político do Estado absolutista
português, nas primeiras décadas do século XVI.
Embora as representações do mundo social aspirem à universalidade de um
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as
forjam. E as percepções do social não são discursos neutros, pois produzem estratégias e
práticas que tendem impor uma autoridade à revelia de outros, legitimar um projeto
reformador ou justificar para os próprios indivíduos suas escolhas e condutas, afirma
Chartier (1990).
Contudo, apesar das peças aqui analisadas terem um autor específico, Gil Vicente;
pudemos ouvir através das falas das personagens, ver por meio das vestimentas e dos
objetos, vozes e visões que não pertencem apenas a um indivíduo, mas que fazem coro
com um grupo de privilegiados, que num determinado momento específico tentou impor
uma autoridade veiculando valores que procuravam legitimar uma visão de mundo.
No entanto, estas vozes e visões não se constituem em um todo uníssono, pois
pudemos perceber os diversos significados, que podem conter os três autos aqui analisados,
presentes no processo de condenação/salvação das figuras-tipo representantes dos muitos
segmentos sócio-profissionais existentes no Portugal dos Quinhentos.
Cremos com isso ter contribuído para enriquecer o debate entre História e Teatro,
no seio da história cultural. Haja vista que ambos os discursos são produzidos pelo homem
e, por isso, se apresentam intimamente dependentes.
Esta estreita ligação nos permitiu encontrar em ambos pontos congruentes cada vez
mais presentes no campo de estudo histórico-teatral, onde se sabe que a integridade de uma
obra não permite dissociar texto e contexto e conseqüentemente, não podemos separar real
e imaginário.
Deste modo, espera-se acabar com os falsos debates desenvolvidos
em torno da partilha, tida como irredutível, entre objectividade das
estruturas (que seria o terreno da história mais segura, aquela que,
manuseando documentos seriados, quantificáveis, reconstrói as
sociedades tais como eram na verdade) e a subjectividade das
representações (a que estaria ligada uma outra história, dirigida às
ilusões de discursos distanciados do real)(CHARTIER; 1990: 17-
18).
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