Download PDF
ads:
Maria Clara da Silva Machado
O motivo da fonte que surge do Templo ou do
Trono de Deus:
Uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em
Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Teologia.
Orientadora: Drª Maria de Lourdes Corrêa Lima
Rio de Janeiro, 29 de julho de 2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Maria Clara da Silva Machado
O motivo da fonte que surge do Templo ou do Trono de Deus:
Uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12
Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento
de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profª Maria de Lourdes Correa Lima
Orientadora
Departamento de Teologia – PUC – Rio
Prof. Isidoro Mazzarolo
Departamento de Teologia – PUC – Rio
Prof. Ludovicus Garmus
Departamento de Teologia – PUC – Rio
Prof. Pedro Paulo Alves dos Santos
Universidade Estácio de Sá
Prof. Paulo Severino da Silva Filho
Seminário Teológico Presbiteriano Simonton
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências
Humanas – PUC – Rio
Rio de Janeiro, 29 de julho de2008.
ads:
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
da orientadora.
Maria Clara da Silva Machado
Graduou-se em Pedagogia no Centro de Ciências Humanas
e Sociais do Instituto Isabel em 1993. Pós-graduou-se em
Psicopedagogia Latu Sensu no mesmo Instituto em 1995.
Graduou-se em Teologia no Instituto Superior de Teologia
da Arquidiocese do Rio de Janeiro em 1998. Concluiu o
Mestrado em Teologia Bíblica 2001.
Ficha Catalográfica
Machado, Maria Clara da Silva
O motivo da fonte que surge do Templo ou do
trono de Deus: uma leitura intertextual de Ap 22,1-
5 e Ez 47,1-12 / Maria Clara da Silva Machado;
orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima. –
2008.
302 f; 30 cm
Tese (Doutorado em Teologia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 29 de julho de 2008.
Inclui bibliografia
1. Teologia Teses. 2. Intertextualidade. 3.
Apocalíptica. 4. Literatura profética. 5. Releitura
cristã do Antigo Testamento. I. Lima, Maria de
Lourdes Corrêa. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Teologia. III. Título.
CDD: 200
A meus pais e alunos.
Agradecimentos
Ao Deus Uno e Trino que no mistério de seu amor nos redimiu pelo sangue de seu
Filho, o Cordeiro Imolado.
À Bem-aventurada Virgem Maria, sob o título de Nossa Senhora de Fátima que
sempre foi a minha segurança, particularmente, nestes anos de confecção da tese.
A Dom Romer que durante tantos anos foi responsável pelos estudos teológicos na
Arquidiocese do Rio de Janeiro, o meu agradecimento mais sincero por jamais ter me
permitido desanimar, ao contrário, sempre me impulsionou a caminhar um pouco
mais adiante.
À professora Doutora Maria de Lourdes Corrêa Lima, mais do que um
agradecimento, o meu reconhecimento por sua fineza nas correções, encorajamento
nos períodos de cansaço, solidez na condução deste trabalho e principalmente por sua
amizade.
Aos meus queridos alunos e demais amigos, que comigo rezaram, sofreram e se
alegraram nas diversas etapas de elaboração deste trabalho.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela
bolsa recebida, sem a qual esta empreitada não teria viabilidade.
RESUMO
Machado, Maria Clara da Silva. O motivo da fonte que surge do Templo ou
do trono de Deus: uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. Rio
de Janeiro, 2008. 302p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A pesquisa exegética sempre indicou um alto índice de referências a
diversos textos vétero-testamentários no livro do Apocalipse. Dentre eles, destacam-
se os textos de Ezequiel. A presença de textos do Antigo Testamento no Novo
Testamento vem sendo analisada nos últimos anos sob a perspectiva da
intertextualidade.
A presente tese tem por escopo analisar Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 focalizando
de modo particular o motivo da fonte de água que surge do Templo ou do trono de
Deus. A perspectiva intertextual permitirá perceber melhor o modo como Ap 22,1-5
trabalhou este motivo de Ez 47,1-12. Outros textos vétero-testamentários, apontados
ao longo da pesquisa, contribuirão para verificar a relevância de Ez 47,1-12 na
formulação de Ap 22,1-5.
Palavras-chaves
Intertextualidade, apocalíptica, literatura profética, releitura cristã do Antigo
Testamento, Livro do Apocalipse, Livro de Ezequiel.
ABSTRACT
Machado, Maria Clara da Silva. O motivo da fonte que surge do Templo ou
do trono de Deus: uma leitura intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. Rio
de Janeiro, 2008. 302p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The exegetical research has always indicated a high quantity of references to
Old Testament texts present in the Book of Apocalypse. Among them the text of
Ezekiel is specially relevant. The presence of Old Testament texts in the New
Testament has been analyzed in the last years under the perspective of intertextuality.
This dissertation has its focus on Apocalypse 22,1-5 and Ezekiel 47,1-12,
specially the reason for the source of water which comes from the Temple or the
throne of God. The intertextual perspective will allow a better understanding of the
manner in which Apocalypse 22,1-5 worked this aspect from Ezekiel 47,1-12. Other
Old Testament texts, signaled during the research, will contribute for the importance
of Ezekiel 47,1-12 in the formulation of Apocalypse 22,1-5.
Keywords
Intertextuality, apocalyptical, prophetic literature, Christian rereading of the
Old Testament, Book of Apocalypse, Book of Ezekiel.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
1. O uso do Antigo Testamento no livro do Apocalipse: perspectivas 13
2. O Apocalipse e a utilização do Antigo Testamento 13
3. Roteiro e método 15
CAPÍTULO I
1. Status quaestionis 17
1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse 19
1.1.1 Autores que não aceitam a relação 20
1.1.2 Autores que aceitam a relação 20
1.2 As relações dos livros proféticos e de Daniel com o Apocalipse 32
1.2.1 As relações com Isaías, Jeremias e Daniel 33
1.2.2 A dependência para com Ezequiel 41
1.3 As diversas abordagens para o tratamento da relação entre o Antigo
Testamento, as tradições judaicas e o Apocalipse 55
1.3.1 Na linha da exegese tradicional 55
1.3.2 Na linha da intertextualidade 63
2. Escopo e hipótese 84
2.1 Objeto de estudo: a relação de Apocalipse com Ezequiel 84
2.2 Hipótese de trabalho 85
3. Metodologia 86
CAPÍTULO II
2. Ap 22,1-5: o texto, sua delimitação, estrutura e aspectos semânticos 88
2.1 O texto: tradução e notas 88
2.2 Delimitação da unidade 98
2.3 A estrutura do texto 102
2.3.1 As seções 102
2.4 Ap 22,1-5: aspectos semânticos 108
2.4.1 Ap 22,1-3a 109
2.4.2 Ap 22,3b-5 136
Capítulo III
3. Análise de Ez 47,1-12 159
3.1 Tradução e notas filológicas 159
3.2 Delimitação da unidade 193
3.3 Estrutura do texto 194
3.3.1 As seções 195
3.4 Ez 47,1-12: Aspectos semânticos 201
3.4.1 Primeira seção: v.1-7 202
3.4.2 A segunda seção: v. 8-12 218
Capítulo IV
4. Intertextualidade entre Apocalipse e Ezequiel 229
4.1 Análise das relações intertextuais entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 229
4.2 Contatos em linha de continuidade e descontinuidade 239
4.3 Conclusões 244
Conclusão
1. Síntese da pesquisa 251
1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse 251
1.2 O estudo de Ap 22,1-5 253
1.3 O estudo de Ez 47,1-12 254
1.4 Análise intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 255
2. Conclusões e resultados da pesquisa 257
3. Perspectivas abertas 258
Referências Bibliográficas 274
Excurso
1. Análise de dados 288
2.A intertextualidade de Zc 14,8 e Jl 4,8 em linha de continuidade com
Ap 22, 1-5 298
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AUSS Andrews University Seminary Studies
BAR Biblical Archaeology Review
BJRL Bulletin of the John Rylands University Library of
Manchester
BSW Biblical Studies on the WEB
BTr Bible Translator
BZ Biblische Zeitschrift
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CTM Concordia Theological Monthly
EstB Estudios Bíblicos
ETL Ephemerides Theologicae Lovanienses
ExpT Expository Times
GLAT Grande Lessico del’Antico Testamento. Brescia: Paidéia.
GLNT Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paidéia.
Interp Interpretation
JBL Journal of Biblical Literature
JETS
Journal of the Evangelical Theological Society
JournTheolStud, Journal of Theological Studies
JSNT Journal for the Study of the New Testament
JSNT Suppl. Journal for the Study of the New Testament-
Supplement Series
Neot Neotestamentica
NewTestStud New Testament Student
NRTh Nouvelle Revue Théologique
Or Orientalia
PEGLBS Proceedings, Eastern Great Lakes and Midwest Biblical
Societies
ProtoBib Protokolle zur Bibel
RB Revue Biblique
RevThom Revue Thomiste
RivB Rivista Biblica
RivLtg Rivista Liturgica
RSR Recherches de Science Religieuse
ZAH Zeitschrift für Althebraistik
ZAW Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft
ZNW Zeitschrifit für die neutestamentliche Wissenschaft
ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche
Introdução
1. O uso do Antigo Testamento no livro do Apocalipse: perspectivas
O livro do Apocalipse tem causado, ao longo dos tempos, um certo
desconforto àqueles que o investigam. De fato, o autor do Apocalipse recorre a um
estilo literário ímpar em todo o Novo Testamento e a um simbolismo que fizeram
desta obra literária um objeto reverenciado e magnífico.
O recurso que o autor neotestamentário fez dos textos vétero-testamentários
causaram, nos primeiros anos da pesquisa, conclusões que oscilavam entre a
inexistência de uma sinalização da parte do autor neotestamentário de que um texto
antigo estava sendo utilizado, ausência de citação formal, até ao livre-arbítrio do
mesmo autor, ao recorrer a textos antigos para melhor comunicar a teologia de sua
obra.
Esta liberalidade do autor do Apocalipse causou, nas diversas abordagens
propostas para o estudo deste livro, muitas lacunas. Por esta razão, a partir de 1989,
muitos exegetas passaram a aplicar uma nova perspectiva para a compreensão do uso
de textos bíblicos antigos no texto do Apocalipse: a intertextualidade.
A intertextualidade é uma abordagem moderna de investigação literária que
vem ganhando espaço quando despontam relações interliterárias no campo da criação
e da leitura.
2 O Apocalipse e a utilização do Antigo Testamento
Muitos exegetas ao observarem o uso que o autor neotestamentário faz dos
textos vétero-testamentários detectaram um manuseio criterioso. Os textos usados em
uma determinada seção do Apocalipse teriam passado por uma seleção objetiva.
Por esta razão, foi necessário explicar o modo como o Antigo Testamento
foi utilizado pelo Apocalipse. Neste nosso trabalho, particularmente, foi enfocado o
uso que o Apocalipse faz de textos proféticos
1
. Dentre estas muitas conexões com os
escritos proféticos, aqui, serão analisadas, de modo particular, as relações com a
profecia de Ezequiel, tendo em vista que as pesquisas sobre uma possível
dependência literária do Apocalipse com relação a Ezequiel assumiram uma
relevância nas últimas décadas do século passado. Um de seus expoentes é Vanhoye,
exegeta que marcou a pesquisa ao estabelecer critérios para decodificar o modo como
o texto de Ezequiel foi assumido pelo Apocalipse.
O modo meticuloso com que o autor sagrado usou os textos de Ezequiel
converteu-se no foco do trabalho de Goulder
2
(enfoque litúrgico), de Vogelgesang
3
(democratização e desmistificação) e de Ruiz
4
(em linha mais hermenêutica). Moyise
5
segue seus antecessores quando diz que a intenção do autor é a grande responsável
pelas mudanças impostas ao texto de Ezequiel no Apocalipse. Seu principal viés de
trabalho é o procedimento intertextual, e este se tornará útil para compreender o
modo como o autor do Apocalipse tomou os textos do Antigo Testamento e os
aplicou ao Novo Testamento. Nos últimos tempos, a obra de Kowalski
6
tem
influenciado bastante a compreensão do uso que o Apocalipse faz do texto de
Ezequiel.
A motivação para a opção de nosso estudo repousar em Ap 2,1-5 e Ez 47,1-
12 decorre do fato de a última seção de Ap 20-22 estar ligada a Ez 37-48, e à
semelhança dos demais textos, possuir uma forte presença cristológica. Nesta
perícope, a presença da profecia de Ezequiel é bem testemunhada nos vv 1-2, mas
não de modo absoluto. Sendo assim, analisaremos, sob a forma de Excurso, outros
1 Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell’ Apocalisse”, Lateranum
48 (1982) 125-137; BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the
Revelation of St. John. Lanham: University Press of America, 1984. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic
Traditions in the Book of Revelation: Visionary Antecedents and Their Development, JSNT Sup, 93.
Sheffield: Sheffield Academic Press, 1994; MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth. The
Meaning and Function of the Old Testament in Revelation 21.1-22.5. JSNTSup 238. Sheffield:
Sheffield Academic Press, 2003.
2 Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies” NewTestStud, v. 27,
342-367, 1981.
3 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation. Cambridge,
Harvard University, 1985.
4 Cf. RUIZ, J.-P., Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation o f Prophetic Language in
Revelation 16,17-19,10. New York, Peter Lang, 1989.
5 Cf. MOYISE, S., The Language of the Old Testament in the Apocalypse. JournStudNT, v.76, 1999.
6 KOWALSKI, B. Die Rezeption des Propheten Ezechiel in der Offenbarung des Johannes. Stuttgart:
Katholisches Bibelwerk, 2004.
textos que se encontram simultaneamente presentes, especialmente: Gn 2,9; Jl 4, 18;
Zc 13,1; 14,8.
A presença de liames textuais entre Ez 47,1-12 e Ap 22,1-5 foi apontada por
muitos estudiosos
7
. Os métodos por eles empregados, em suas várias formas de
abordagem, convergem sempre para a presença dos textos vétero-testamentários no
texto do Apocalipse. Entretanto, não cogitam a questão sobre a causa da escolha de
um determinado texto mais antigo, em detrimento de todos os demais. Coube a
Moyise fazer uma aproximação entre os textos do Apocalipse e aqueles do Antigo
Testamento, sob a perspectiva da intertextualidade modificando, assim, as formas de
investigação anteriores.
A aplicação da abordagem intertextual possibilitará precisar a existência de
contatos intertextuais entre os textos propostos para o estudo e, ao mesmo tempo,
detectar se estes se apresentam em linha de continuidade ou descontinuidade.
3. Roteiro e método
O estudo desenvolve-se em três fases:
revisão bibliográfica sobre a perspectiva da intertextualidade e sua aplicação
aos textos bíblicos, com particular atenção ao Apocalipse e sua relação com os
escritos proféticos, com ênfase em Ezequiel;
estudo exegético de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12;
aplicação da abordagem intertextual.
7 Cf. BRIGHTON, L. A., Revelation. Saint Louis, Concordia Publishing House, 1999, 622-630;
GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, NewTestStud, v. 27, 342-367,
1981; KISTEMAKER, S. J., Revelation, Michigan, Baker, 2002, 579-583; MATHEWDSON, D., A
New Heaven and a New Earth. The Meaning and Function of the Old Testament in Revelation 21.1-
22.5, JSNTSup 238. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2003, 186-187; MOUNCE, R. H., The Book
of Revelation. Grand Rapids, Michigan/Cambridge: Eerdmans, 1998, 379-401; OSBORNE,G. R.
Revelation. Michigan, Baker Academic, 2004, 768-776; SMALLEY, S. S., The Revelation to John.
London: InterVarsity Press, 2005, 561-565; THOMAS, R. L., Revelation 8-22. Chicago, Moody Press,
1995, 455-492;. VANHOYE, A., ‘L’ utilisation du livre d’Ézéchiel dans l’ Apocalypse, Biblica, v. 43,
436-476, 1962; VANNI, U., Apocalisse e Antico Testamento. Uma Sinossi. Roma, Pontificio Istituto
Biblico, 2000, 277-280; VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of
Revelation. Cambridge, Harvard University, 1985.
No primeiro capítulo, apresenta-se o estado da questão, com a exposição do
pensamento dos principais estudiosos do Apocalipse. Para tanto, usou-se um duplo
critério: abarcar as grandes linhas de pensamento desta matéria e recolher as
contribuições mais significativas em cada uma das diferentes perspectivas de
abordagem do tema.
No segundo capítulo, o estudo de Ap 22,1-5 terá como parâmetro o Método-
Histórico-Crítico. Sendo assim, inicia-se com a análise de crítica textual e filológica,
seguido do estudo da delimitação do texto e de sua constituição. Na análise
semântica, especial atenção será dada a alguns termos que constituem o cerne da
perícope.
O terceiro capítulo, dedicado ao texto de Ez 47,1-12, do mesmo modo,
seguirá o Método-Histórico-Crítico, e, por conseguinte, partirá da crítica textual e
filológica. Na seqüência teremos a análise da delimitação e constituição do texto e a
análise semântica, onde os termos mais relevantes receberão atenção especial.
Por fim, no quarto capítulo, serão estabelecidas as possíveis relações
intertextuais entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. Para tanto, serão aplicados os critérios a
que se chegou no capítulo primeiro. Uma averiguação sobre estas relações haverá de
levar em conta, em primeiro lugar, se, de fato, o autor do Apocalipse fez uso destes
textos vétero-testamentários e, em segundo lugar, como os utilizou. Para tanto,
partiremos dos estudos sobre as inter-relações entre os textos, abrindo também para o
horizonte dos livros em seu conjunto.
Sendo o nosso objetivo uma avaliação atinente às inter-relações entre Ap
22,1-5 e Ez 47,1-12, o foco desta etapa estará em diagnosticar como ocorrem os
possíveis aspectos intertextuais que, eventualmente, se fizerem presentes entre os
textos. Avaliar se estes permanecem em linha de continuidade semântica e teológica
com o texto anterior ou se se encontram em via de descontinuidade. Nos dois casos, a
investigação dos elementos que geraram estas alterações se faz necessária, posto que
estas poderão ter implementado, ou não, uma mudança de perspectiva no novo texto.
CAPÍTULO I
1. Status quaestionis
A presença de textos vétero-testamentários no Apocalipse provocou, no
último século, inúmeros questionamentos e tentativas de melhor elucidar o meio
utilizado pelo autor sagrado para apropriar-se do material mais antigo no novo texto.
As primeiras teses apontam para os conceitos de reminiscências, referências,
ecos, midrash, adaptação e alusão. Estes métodos de utilização de antigos textos em
novos textos possuem características próprias impondo uma maior ou menor
fidelidade ao contexto do texto antecedente. Isto, contudo, sem retirar do autor
sagrado a liberdade no momento de empregá-los em um novo texto.
Nos últimos tempos, a tese da intertextualidade vem recebendo especial
atenção por parte dos estudiosos do Novo Testamento
8. Por meio dela, percebe-se
8 Cf. BARRETT, C. K., “The Interpretation of the Old Testament in the New.” In Cambridge History
of the Bible, 1. Ackroyd, P. - Evans, C. (ed.), Cambridge, Cambridge University Press, 1970, 372-411;
BEALE, G. K., The Right Doctrine from the Wrong Texts? Essays on the Use of the Old Testament in
the New. Grand Rapids, Baker Books, 1994; “The Use of the Old Testament in Revelation”. In It Is
Written: Scripture Citing Scripture. Carson - Williamson (ed.), 318-336; BRATCHER, R. G., The Old
Testament Quotations in the New Testament. London, United Bible Societies, 1987; BRAUN, H., “Das
Alten Testament im Neuen Testament”, ZTK 59 (1962) 16-31; BRAWLEY, R. L., “Contextuality,
Intertextuality, and the Hendiadic Relationship of Promise and Law in Galatians”, ZNW (2002) 99-
119; BRUCE, F. F., The New Testament Development of Old Testament Themes. Grand Rapids.
William B. Eerdmans, 1968; DALY-DENTON, M., David in the Fourth Gospel. The Johannine
Reception of the Psalms. Leiden, Brill, 2000; DEELEY, M., “Ezechiel”s Shepherd and John”s Jesus. A
case Study in the Appropriation of Biblical Texts”. In Early Christian Interpretation of the Scriptures
of Israel. Investigations and Proposals. Evans, C. A. – Sanders, J. A. (ed.). JSNTSup. 148. Sheffield,
Sheffield Academic Press, 1997, 252-265; EFIRD, J. (ed.), The Use of the Old Testament in the New
and Other Essays: Studies in Honor of William Franklin Stinespring. Durham, Duke University Press,
1972; FERRELL, J., The Old Testament in the Book of Revelation. Michigan, Baker Book House,
1972; HANSON, A. T., “John”s Use of Scripture” in The Gospel and the Scriptures of Israel. Evans,
C. A., - Sanders, J. A., (ed.). JSNTSup. 104. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994, 358-379;
KEESMAAT, S. C., “Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in Romans 8, 14-30”,
JSNT 54 (1994) 29-56; LINDARS, B., “The Place of the Old Testament in the Formation of New
Testament Theology”, NewTestStud. 23 (1976-7) 59-78; MORITZ, T., A Profound Mystery: The use of
the Old Testament in Ephesians. Leiden, E. J. Brill, 1996; MOYISE, S., “The Language of the Old
Testament in the Apocalypse” JournStudNT 76 (1999) 97-113; The Old Testament in the New.
London, Continnum.2001; OESCH, J., “Intertextuelle Untersuchungen zum Bezug von Offg 21,1-22,5
auf alttestamentliche Prätexte”, ProtoBib 8 (1999) 41-74; POPKES, W., “James and scripture: an
exercise in intertextuality”, NewTestStud 45 (1999) 213-229; PORTER, S. E., “The Use of the Old
Testament in the New Testament. A Brief Comment on Method and Terminology.” In Early Christian
Interpretation of the Scriptures of Israel. Investigations and Proposals. Evans, C. A. Sanders, J. A.
que mais do que uma simples fonte onde o novo texto obtém elementos para compor
o seu texto. O texto antecedente se apresenta em processo e o novo texto poderia
retomar o texto que lhe precede e estabelecer um novo alcance teológico. Este, sem
dúvida, seria o grande critério para a reinterpretação de um texto: a teologia enquanto
etapa da Revelação.
A perspectiva intertextual na pesquisa exegética gera, além das novas
possibilidades de compreensão do modo pelo qual o autor do Apocalipse usou o
Antigo Testamento, uma melhor percepção da função do leitor. A este caberia
detectar a presença de um texto “sobreposto” a um outro texto, formando um novo
texto, criando assim um colóquio entre textos.
Tal colóquio poderia ir além do âmbito da Sagrada Escritura e assumir textos
que pertencem à literatura judaica
9. Entretanto, nesta literatura, de forma particular,
perceberíamos a autoridade do autor sobre o texto precedente, pois se serve deles,
sem destes tornar-se servo. Novamente o escopo teológico do novo texto exerceria
função de leme, direcionando, com segurança, o novo significado dado aos termos e
símbolos contidos nos textos mais antigos.
(ed.), JSNTSup 148, 1997; SCHUCHARD, B. G., Scripture Within Scripture: The Interrelationship of
Form and Function in the Explicit Old Testament Citations in the Gospel of John. Atlanta, Scholars
Press, 1992; STENDAHL, K., The School of St. Matthew and its Use of the Old Testament.
Philadelphia, Fortress Press, 1968; VANHOYE, A., Old Testament Priests and the New Testament.
Petersham, St Bede”s, 1986.
9 Cf. NOBILE, M., “La “Nuova Gerusalemme” in un documento di Qumran e in Apocalisse 21.
Genesi di una teologia”. In Atti del VI Simposio di Efeso su S. Giovanni Apostolo. Padovese, L. (ed.).
Roma, Pontificio Ateneo Antonianum, 1996; BRIGGS, R. A., Jewish Temple Imagery in the Book of
Revelation. New York, 1999; ARCARI, L., “Apocalisse di Giovanni e apocalittica ‘danielico-storica’”
del I sec. e V: prospettive per una “nuova” ipotesi”, Vetera Christianorum 39, (2002) 115-132;
CORSANI, B., L” Apocalisse e l”apocalittica del Nuevo Testamento. Bologna, EDB, 1997; COURT,
J. M., The Book of Revelation and the Johannine Apocalyptic tradition. JSNT Suppl. 190. Sheffield,
Sheffield Academic Press, 2000; SCHÜSSLER FIORENZA, E., “Apocalyptic and Gnosis in the Book
of Revelation and Paul”, JBL 92 (1973) 565-581; HURTADO, L. W., “Revelation 4-5 in the Light of
Jewish Apocalyptic Analogies”, JSNT 25 (1985) 105-124; LAMBRECHT, J., “The Book of
Revelation and Apocalyptic in the New Testament”, ETL 55 (1979) 391-397; ROSSO U. L., “Dalla
“Nuova Gerusalemme” alla “Gerusalemme Celeste”. Contributo per la comprensione
dell”Apocalittica”, Henoch 8 (1981) 69-80; ROWLAND, C., “The Visions of God in Apocalyptic
Literature” JSJ 10 (1979) 137-154; SMITH, C., “The Structure of the Book of Revelation in Light of
Apocalyptic Literary Conventions”, Novum Testamentum 36 (1994), 373-393; VANNI, U., “L”
Apocalisse di Giovanni tra apocalittica giudaica e apocalittica cristiana.” In Apocalittica e liturgia del
compimento. Terrin, A. N., Padova, 2000, p. 283-309; COLLINS, A. Y., The Combat Myth in the Book
of Revelation. Missoula, Montana, Scholars Press, 1976; “The History-of-Religions Approach to
Apocalypticism and the “Angel of the Waters” (Rev 16,4-7)” CBQ 39 (1977) 367-381; “The Book of
Revelation”. The Encyclopedia of Apocalypticism. In J. J. Collins (ed.). New York, Continuum, 1998,
391-392.
No caso específico do uso da profecia de Ezequiel pelo autor do Apocalipse,
algumas teses possuem ênfases diversas: modo de utilização, caráter litúrgico,
democratização de textos anteriores e intertextualidade.
Para tanto, seria necessário perpassar algumas etapas que auxiliariam na
identificação da utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse (1.1). Para
isso é preciso apresentar os autores que não aceitam esta relação (1.1.1) e os que a
aceitam (1.1.2). Em um segundo momento, serão analisados os textos vétero-
testamentários relacionados com o Apocalipse (1.2), as relações com os textos de
Jeremias, Isaías e Daniel (1.2.1) e a dependência de Ezequiel (1.2.2). As diversas
abordagens para o tratamento da relação entre o Apocalipse e o Antigo Testamento
(1.3) seguirão, por primeiro, a linha da exegese tradicional (1.3.1) e, num segundo
momento, a linha da intertextualidade (1.3.2).
No interior das diversas seções deste capítulo, os autores, preferencialmente,
estarão expostos cronologicamente, a fim de facilitar a percepção da origem e do
desdobramento da pesquisa em cada época.
1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse
A relação entre os textos vétero-testamentários e o livro do Apocalipse foi
detectada já nos primeiros séculos da Igreja por Dionísio de Alexandria
10, que a
classificava como apropriação inexata, barbarismo e solecismo. Delimitando nosso
trabalho ao último século, podemos ver que a pesquisa tem se inclinado para a
consideração da presença dos textos vétero-testamentários no neotestamentário como
correta.
Uma questão, porém, se impõe: o modo como o autor neotestamentário
absorveu e utilizou os textos do Antigo Testamento. Estaria ele vinculado ao contexto
anterior ou o escopo teológico do novo texto exerceria uma mudança de significado
para o texto antecedente? O texto antecedente seria o Texto Hebraico ou a versão
grega da LXX? O autor neotestamentário teria recorrido aos dois testemunhos
textuais ou apenas a um deles? A resposta não foi formulada facilmente. Após um
10 Cf. EUSEBIUS, Ecclesiastical History, 7.25. Hendrickson Publishers; 1998.
momento, onde foi prestigiado o uso exclusivo do Texto Hebraico ou da LXX,
sucedeu a tese da intenção do autor sagrado. Assim, caberia ao autor a escolha deste
ou daquele texto segundo o seu escopo teológico. O autor usaria com liberdade o
material disponível.
1.1.1. Os autores que não aceitam essa relação
Com sistemática freqüência, o livro do Apocalipse recorre ao Antigo
Testamento, estabelecendo vínculos complexos e intensos. Estes estão de tal modo
evidenciados que uma linha de investigação, cujo escopo fosse ignorar esta evidência,
colocar-se-ia em lugar de pouca relevância.
1.1.2. Autores que aceitam a relação
a) As diversas compreensões de como se dá a relação
O texto do livro do Apocalipse é considerado pela pesquisa como o texto
neotestamentário que mais utiliza os textos vétero-testamentários
11. Estas relações
entre o seu texto e textos antecedentes são tidas como certas no atual momento da
investigação científica
12. Há, contudo, divergências quanto ao uso que o autor do
Apocalipse
13 faz deste material: seria uma citação, uma alusão, uma reminiscência
ou um eco?
11 As indicações do Novum Testamentum Graece apontam para um total de 959 relações entre o
Apocalipse e os textos do Antigo Testamento. Cf. NESTLE ALAND, Novum Testamentum Graece.
27ª Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, 2001.
12 Cf. VANNI, U., Apocalisse e Antico Testamento. Una Sinossi. Roma, Pontificio Istituto Biblico,
2000.
13 A questão sobre a autoria do Apocalipse vem sendo alvo de constantes pesquisas nos últimos
tempos. Como esta não é o centro de nosso trabalho, não tomaremos posição por uma ou outra linha de
pesquisa. Sendo assim, ao dirigirmo-nos ao autor, usaremos tão somente a nomenclatura “autor” sem
nomeá-lo.
De modo bastante sintético apresentamos três linhas de pesquisa em voga sobre a autoria: O. Böcher,
que questiona a identidade histórica do autor do Ap. Cf. BÖCHER, O., Die Johannesapokalypse.
Darmstad, 1988. Contendo vasta bibliografia sobre a questão. J. Becker, por sua vez, interpretou o
nome João como um pseudônimo. Cf. BECKER, J., “Pseudonymität der Johannesapokalypse und
Verfasserfrage”, BZ 13 (1969) 101-121. Sua tese, entretanto, não foi bem aceita pela crítica. A tese de
uma escola joanéia como autora deste documento têm vigorado nos últimos anos. Contudo, autores
como a de S. S. Smalley indicam que João, o apóstolo, o discípulo amado, escreveu ambos os
documentos: o Quarto Evangelho e o Apocalipse. Seu argumento tem por base as semelhanças entre os
Os primeiros passos em direção a um trabalho para detectar a presença de
citações, reprodução de um texto antigo precedido de uma estrutura introdutória, ou
reminiscências, recurso a elementos de um texto antecedente, de textos vétero-
testamentários nos diversos corpora do Novo Testamento, foram abordados no início
do século passado por Hühn
14 e Dittmar15, abrindo caminho para posteriores estudos
mais específicos.
Na opinião de Henry Barclay Swete
16, as relações entre os textos do Antigo
Testamento e o livro do Apocalipse não deveriam ser classificadas como citação
formal, pois carecem de fórmulas introdutórias que informam ao leitor a presença de
textos antigos dentro de um texto mais moderno. Sendo assim, adota a terminologia
“referência”, onde o autor do novo texto recorre a termos ou frases de contextos
antigos sem identificá-los. Esta “referência” poderia ser detectada por meio de duas
formas. A primeira delas seria o uso isolado de elementos comuns do Antigo
Testamento. Por elementos comuns, Swete entende o uso de palavras soltas e frases
sem um contexto particular. Este emprego desprovido de formalidades torna-se
possível graças à intimidade que o autor sagrado possui com a linguagem e os textos
do Antigo Testamento. A segunda forma seria o contexto específico das referências a
textos do Antigo Testamento, referências estas combinadas de diferentes contextos,
de diferentes livros do Antigo Testamento ou de diferentes seções dentro de um
mesmo livro do Antigo Testamento.
dois documentos, a saber, os motivos do Êxodo-Moisés, cristologia (palavras de Jesus, Cordeiro, Filho
do homem, glorificado e morto), idéias escatológicas além de ambos os documentos utilizarem antigas
tradições exegéticas. Cf. SMALLEY, S. S., “John”s Revelation and John”s CommunityBJRL 69
(1987) 549-571. Segue a mesma tendência, OSBORNE, G. R., Revelation. Baker Exegetical
Commentary on the New Testament. Michigan, Baker Academic, 2004, 2-6. Beale crê na possibilidade
de João desejar ser identificado com um grupo de antigos profetas do cristianismo primitivo. A
hipótese de Beale carece, contudo, de argumentos sólidos. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation.
Grand Rapids, Michigan, Eerdmans, 1999, 36.
14 Hühn, enumerou 453 reminiscências no Apocalipse, destas, 130 pertencem ao livro do profeta
Ezequiel. Esta estatística possui um valor relativo porque Hühn reúne todos os textos de Ezequiel sob
um único parâmetro, sem distinguir aquelas mais exatas de outras onde o autor sagrado usa expressões
comuns a toda a Escritura (peste, fome, guerra). Cf. HÜHN, E., Die Alttestamenttlichen Citate und
Reminiscenzen im Neuen Testament. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1900.
15 Dittmar segue uma linha de investigação que prestigia as citações. Por esta razão, encontra poucos
exemplares no texto do Apocalipse. Cf. DITTMAR, W., Vetus Testamentum in Novo. Göttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 1903.
16 Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, London, 1911.
O escopo do emprego destas referências textuais estaria voltado para uma teia
de imagens, simbolismos e níveis de vocabulário cujo resultado é um “mosaico”, do
qual o autor participa de forma consciente, dominando o material disponível e
produzindo uma literatura original
17, de estilo “simples e natural”18.
A liberdade do autor é percebida também por Charles19, mas as relações
textuais estabelecidas pelo autor sagrado não seriam as de referências e sim as de
alusões
20. Com elas, o leitor seria remetido a textos mais antigos quando estivesse
lendo o novo texto. Seu objetivo final seria o de trasladar e adaptar o material do
Antigo Testamento para o seu intento teológico. O manejo do material do Antigo
Testamento seria, portanto, totalmente independente, proporcionando ao material
antigo a aquisição de um novo contexto com a produção de um novo matiz
interpretativo.
Albert Vanhoye
21, que tem como centro da pesquisa as relações entre o
Apocalipse e textos vétero-testamentários com o livro do profeta Ezequiel, afirma que
o autor do Apocalipse toma por empréstimo diversos textos
22, usando-os com
liberalidade. Sendo delicada a definição de um empréstimo, Vanhoye propõe que esta
forma de utilização seja classificada em quatro categorias: double utilisation
23,
17 Por exemplo: Ap 11,18 e Sl 98; Ap 16,16 e Zc 12,11. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St.
João, cliv-clv.
18 São exemplos deste modelo: Ap 1,13-16 baseado sobre Ezequiel e Daniel; Ap 4,2-8 sobre Isaías e
Ezequiel e Zacarias; Ap 7 sobre Isaías; Ap 16 sobre Êxodo; Ap 18 sobre oráculos proféticos contra
Tiro e Babilônia; Ap 21-22 sobre Isaías e Ezequiel. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John,
cliii.
19 Cf. CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, I,
Edinburgh, T&T Clark, 1920, lxviii-lxxxii.
20 A identificação destas alusões segue o seguinte critério: alusão clara, alusão provável e alusão
possível. Alusão clara é a quase identificação do texto com sua fonte do Antigo Testamento; alusão
provável quando há pouca aproximação entre os textos, embora apresente idéias presentes no Antigo
Testamento ou a estrutura destas; a alusão possível contém uma linguagem similar a da sua fonte,
ecoando seus conceitos ou seus escritos. Cf. CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary
on the Revelation of St. John, lxvi.
21 Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, Biblica 43 (1962)
436-476.
22 O termo empréstimo é usado por Vanhoye com a finalidade de mostrar a independência do autor do
Apocalipse sobre o material do qual dispõe. Com efeito, ele não se escraviza reproduzindo exatamente
os textos inspiradores, antes transforma-os e eleva-os, dilata ou restringe temas, imagens ou sentidos
segundo o seu escopo teológico. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans
l”Apocalypse”, 462-464.
23 As double utilisation estão presentes em Ap 5,1; 10,8-10 e Ez 2, 8-3,3; Ap 17,4; 18,6 e Jr 51,7; Ap
11,1; 21,10 e Ez 40-48. No primeiro caso, a visão inaugural de Ez 2,8-3,3 insere-se no contexto de
visão inaugural de Ap 5,1 onde o visionário de Patmos deve ouvir, e o centro da atenção encontra-se
utilização de textos do Antigo Testamento em um novo contexto; unidade da obra do
Apocalipse
24, que se apresenta de forma sintética em contraposição à tendência da
literatura apocalíptica de ampliar e expandir
25; universalismo, a promessa de
salvação agora é um fato para toda a raça humana; e combinação de textos do Antigo
Testamento
26, onde várias fontes vétero-testamentárias são utilizadas
simultaneamente para melhor indicar o seu cumprimento.
A fidelidade ao contexto e aos significados dos textos do Antigo Testamento
presentes no Apocalipse foi proposta por Schüssler Fiorenza
27 como via de
compreensão das relações entre o Antigo Testamento e o Apocalipse. Por
conseqüência, a autora classifica o estilo do autor do Apocalipse como antológico, ou
seja, um estilo que reúne sem um critério rígido textos de diversos contextos,
tomando os textos do Antigo Testamento sem interpretá-los, apenas recorrendo às
suas imagens, frases, bem como à linguagem militar com vistas à sua teologia.
no Cordeiro que assume o livro, mas em Ap 10,8-10 o sentido aproxima-se mais daquele de Ezequiel,
já que o anjo ordena que o livro seja devorado pelo autor do livro do Ap, aproximando-se mais de seu
contexto original. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 462-
463.
A tese de double utilisation já havia sido proposta por Cerfaux e Cambier que haviam constatado no
processo redacional do autor do Apocalipse utilizações posteriores e retomadas em um novo contexto
de certas visões do AT. Cf. CERFAUX, L., et CAMBIER, J., L”Apocalypse de S. Jean lue aux
chrétiens. Paris, 1955, 69.88.
24 A profecia de Ezequiel é rica em desenvolvimentos e descrições minuciosas já o Apocalipse prima
pela concisão e precisão como se pode perceber em Ap 4,2; 10,1 e Ez 1,28; Ap 4,2-11 e Ez 1,4-28; Ap
18,9-19 e Ez 26,15-18; 27,2-36; Ap 21,10-27; 22,1-5 e Ez 40-48.; Ap 21,22 e Ez 48,15-16.30-35. O
Apocalipse torna-se assim, mais sóbrio do que o texto sobre o qual está firmado. Esta estrutura e
organização coerente das imagens do Apocalipse oferecem ao livro uma coesa unidade. Cf.
VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 463-464.
25 O termo está em plena sintonia com o Antigo Testamento, mas, deve ser entendido com a marca do
espírito cristão, que revela o seu cumprimento. O autor sagrado, embora sendo profundamente fiel a
linha dos antigos profetas, os supera porque o universalismo, outrora promessa, é agora fato. A Cruz
redime toda a raça humana de todas as épocas, de todos os povos. Por exemplo: Ez 3,11 o profeta
recebe a ordem de pregar aos exilados; Ap 10,11 a missão é direcionada a todos os povos, línguas,
nações e reis. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 467.
26 Uma outra característica do trabalho do autor do Apocalipse é a combinação de várias fontes
vétero-testamentárias. Uma das ilustrações é a cena do trono em Ap 4 onde encontram-se além dos
textos de Ezequiel, textos de Isaías, Êxodo e Daniel. Ap 22 possui esta mesma estrutura, embora o
texto de base seja considerado aquele de Ezequiel, é tida por certa a presença de outros textos vétero-
testamentários como Gn 2,9; Zc 14,8; 14,11. O objetivo do autor neotestamentário parece ser aquele de
procurar textos que se completam ou então que se corrigem mutuamente de maneira que se possa
experimentar com maior fidelidade o seu cumprimento. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d”
Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 467-468.
27 Cf. SCHÜSSLER FIORENZA, E., The Book of Revelation: Justice and Judgment. Philadelphia,
Fortress, 1985, 135.
A questão da fidelidade ao contexto do Antigo Testamento, na opinião de
Beale
28, é estéril em função do modo como o autor do Apocalipse utiliza o material
vétero-testamentário, a saber: as citações são de natureza informal
29; o espírito
profético do autor do Apocalipse lhe confere autoridade sobre o Antigo
Testamento
30; o autor sagrado era hábil na literatura grega pagã, porém seus leitores
não dominavam totalmente o contexto das alusões por falta de um conhecimento
prévio ou necessidade de uma nova leitura; por fim, não há evidências de que o autor
esteja interpretando conscientemente os textos que cita
31.
Na visão de Beale, temos vários níveis de aplicação contextual que oscilam do
consciente até o inconsciente
32. Beale entende que as relações entre o Apocalipse e o
Antigo Testamento poderiam constituir um midrash de Daniel 2 e 7. Este seria o livro
mais influente dentre todos os textos utilizados pelo Apocalipse
33.
A existência das relações entre Antigo Testamento e Apocalipse foi tratada
por Moyise
34 como alusão, isto é, os textos vétero-testamentários teriam sido
incorporados ao novo texto. Esta integração se daria de tal forma que o texto mais
antigo estaria em diálogo com o novo texto e nele encontraria um novo significado,
transformando o último livro do Novo Testamento em uma obra ímpar. Nele, textos
estariam em contínuo diálogo de maneira que, ao estar em contato com o texto
produzido pelo autor do Apocalipse, seria necessário possuir memória dos textos
vétero-testamentários para bem compreender o texto atual. Este diálogo entre textos,
proposto por Moyise, atenuaria a questão do contexto dos textos do Antigo
28 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation. 77.
29 As citações informais são entendidas por Beale em sentido antológico, sem critério. Sua aplicação
origina um novo pensamento distanciado do contexto inicial, mas permite intercessões. Cf. BEALE, G.
K., The Book of Revelation, 81.
30 Na opinião de Beale, o espírito profético dá suporte ao estilo apocalíptico e exclui a necessidade de
uma autoridade a ser recorrida como avalista. As citações decorrentes estão, por conseguinte
dissociadas de uma interpretação contextual do Antigo Testamento. Cf. BEALE, G. K., The Book of
Revelation, 81.
31 É o que Beale depreende das relações entre Ez 43,2 e Ap 1,15; Ez 37,3 e Ap 7,14; Ez 37,10b e Ap
11,11 dentre outros textos. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 84-85.
32 Os níveis de aplicação contextual são: contexto literário, histórico e temático. O autor sagrado pode
ter usado um ou mais contextos. Para Beale, a maior incidência se deu no literário e temático,
raramente encontraríamos uma aplicação contextual de nível histórico. Cf. BEALE, G. K., The Book of
Revelation, 85-86.
33 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St.
John. Lanham, University Press of America, 1984.
34 Cf. MOYISE, S.; The Old Testament in the Book of Revelation. JSNTSup, 115. Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1995, 63.
Testamento presentes no âmbito do Novo Testamento, pois considera que o autor
sagrado construiu uma ponte entre os dois contextos, dando origem a uma interação
que perpassa todo o livro.
A classificação das relações entre os textos como adaptações foi sugerida por
Fekkes
35. Assim, não haveria oposição entre o estilo profético e a atividade exegética
do autor do Apocalipse, posto que seu estilo antológico não é contextualizar com
absoluta fidelidade o texto antigo, mas adaptá-lo. Tal procedimento, assinala Hays
36,
não seria uma exclusividade do último livro do Novo Testamento. Os autores do
Evangelho de Mateus, de Paulo e da Carta aos Hebreus de igual maneira teriam
modificado textos do Antigo Testamento para uma nova situação no Novo
Testamento, visando mostrar o cumprimento destes, tendo consciência do contexto
original deles.
Em síntese:
As teses propostas para responder à questão sobre a presença de textos vétero-
testamentários no último livro do Novo Testamento concordam em dois pontos: a
inexistência de uma citação formal no Apocalipse e a liberdade do autor ao manipular
o material segundo o seu escopo teológico.
Encontram-se divergências, porém, quanto à definição a ser dada ao meio para
realizar esta utilização de textos. Hühn e Dittmar classificam os textos vétero-
testamentários presentes no Apocalipse como citações ou reminiscências; Swete,
referências; Charles, alusões; Vanhoye, doublé utilisation, unidade da obra,
universalismo e combinação de textos; Schüssler Fiorenza, fidelidade ao contexto e
ao significado do texto antecedente; Beale, midrash; Moyise, alusões; Fekkes e Hays,
adaptação. Este elenco variado se deve à ausência de uma definição clara, capaz de
precisar o que é uma alusão, uma citação, um midrash ou uma reminiscência
37.
35 Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation: Visionary Antecedents
and Their Development. Journal for the Study of the New Testament Supplement 93. Sheffield,
Sheffield Academic Press, 1994, 286-290.
36 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul. Yale, Yale University Press, 1989.
37 Cf. PAULIEN, J., “Elusive Allusions: The Problematic Use of the Old Testament in Revelation”,
Biblical Research 33 (1988) 37-53.
O contexto dos textos vétero-testamentários, de igual modo, traria oscilações
entre os pesquisadores, pois para uns o contexto do Antigo Testamento teria sido
observado, não havendo interpretação destes (Fiorenza); para outros, o texto vétero-
testamentário teria sido interpretado, logo não haveria fidelidade contextual (Moyise);
outros ainda preferem dizer que o autor oscila entre a consciência e a inconsciência
ao recorrer a um texto vétero-testamentário (Beale).
Poder-se-ia dizer que os dois principais pólos da pesquisa possuem valores,
posto que, em alguns textos, o autor sagrado mantém o contexto original dos textos
utilizados enquanto em outros executa seu trabalho com liberdade modificando seu
contexto e significado. As questões de fundo seriam: por que o autor sagrado assim se
comporta? O que desejaria ele provocar no seu leitor ao compor este tipo de texto?
A tese de Moyise sobre um diálogo entre textos, que gera uma nova
compreensão de temas, símbolos e contextos, parece possuir uma abertura para
detectar as diversas nuances do processo criacional do autor do Apocalipse. Esta, de
fato, estaria em sintonia com a liberdade do autor sempre destacada na maior parte
das pesquisas.
b) As teses acerca do tipo de texto que terá sido utilizado
Tendo como ponto de convergência entre os pesquisadores o uso de textos
vétero-testamentários no livro do Ap, impõe-se o problema do tipo de texto utilizado
pelo autor sagrado: teria ele recorrido ao Texto Hebraico ou a LXX? Sua
identificação não parece, contudo, de fácil solução em decorrência do estilo do autor.
De fato, este opta por uma metodologia nem sempre clara para empregar os textos
vétero-testamentários.
A pesquisa de Swete indica que o autor do livro do Apocalipse utilizou a
versão da LXX e mantém com esta uma relação de dependência
38. Embora não
descarte o conhecimento da língua hebraica pelo autor neotestamentário, é cético
sobre o uso direto do Texto Hebraico.
38 No início do século passado, Swete apresentou uma minuciosa tabela de textos com 278, de um
total de 404, versículos ou frases do Apocalipse que possuem contatos com os textos vétero-
testamentários bastante próximos dos textos gregos concluindo que estes seriam sua fonte.Cf. SWETE,
H. B., The Apocalypse of St. John, cliv-clv.
Na visão de Charles, entretanto, o texto do Apocalipse estaria baseado
diretamente no Texto Hebraico do Antigo Testamento, mas com mostras de uma
evidente influência da LXX, conseqüência de uma versão grega posterior dos textos
do Antigo Testamento
39.
Segundo Charles, o autor sagrado teria realizado algumas traduções do Texto
Hebraico
40, o que justificaria a presença de solecismos e hebraísmos41 no texto
neotestamentário. Charles compreende os casos de solecismos como originados no
fato do autor do Apocalipse pensar em hebraico e escrever em grego e por ser ele
mesmo o responsável pelas traduções de suas fontes, que estavam em seu original no
hebraico, dificultando, assim, o seu trabalho com a nova língua. Já no caso de
hebraísmo, Charles destaca a necessidade de identificar como a LXX recebeu a
tradução do Texto Hebraico e qual o seu significado nas línguas modernas
42. Em
39 Charles segue de perto o pensamento de J. Gwynn concordando com a existência de um Ur-
Teodocião e negando a presença da LXX referindo-se ao Antigo Testamento nos seguintes textos: Ap
1,17 e Is 48,12; Ap 3,7 e Is 22, 3.9c e Is 60,14; Ap 15,3-4 e Jer 10,7; Ap 1,6; 5,10 e Ex 19,6. Cf.
CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, I, lxviii-
lxxxii.
Sobre o Ur-Teodociâo veja: Cf. GWYNN, J., “Theodotion”. In A Dictionary of Christian Biography.
William Smith & Henry Ware (ed.). London, John Murray, 1877-1887, 4: 970-979; JELLICOE, S.,
The Septuagint and Modern Study. Oxford, Oxford Press, 1968. Do mesmo autor, Studies in the
Septuagint: Origins, Recensions, and Interpretations: Selected Essays with a Prolegomenon. New
York, Ktav, 1974; TOV, E., “Jewish Greek Scriptures” in Early Judaism and Its Modern Interpreters.
Robert A. Kraft & George W. E. Nickelsburg (ed.). Philadelphia, Atlanta Scholars Press, 1986;
SCHMIDT, D., “Semitisms and Septuagintalisms in the Book of Revelation”, NewTestStud 37 (1991)
592-603; HARL, M. - DORIVAL, G. – MUNNICH, O., La Bible grecque des Septante. Paris, Edition
du Cerf, 1994 ;
http://arts-sciences.cua.edu/ecs/jdk/LXX/index.htm
40 Na introdução de seu comentário Charles oferece uma Short Grammar of the Apocalypse. Trabalho
minucioso que indica onde encontrar as traduções realizadas pelo autor do Apocalipse.
41A presença de solecismos já havia sido detectada por Dionísio de Alexandria que considerou a
existência dos textos do Antigo Testamento no texto grego do Apocalipse como inexatidão,
barbarismos e solecismos. Cf. EUSEBIUS, Ecclesiastical History, 7.25. Beale estabelece uma
criteriosa distinção entre “semitismo” e “hebraísmo”. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 103-
105.
Vale destacar que os solecismos oferecem ao texto uma fisionomia única, um estilo inimitável. Uma
pesquisa bastante apurada sobre o tema pode ser encontrada em ROBERTSON, A. T., A Grammar of
the Greek New Testament the Light of Historical Research. New York, 1914.
Contreras Molina propõe que o autor sagrado tem a nítida intenção de escrever empregando os
solecismos, barbarismos e hebraísmos, pois teria em vista a sua mensagem teológica. Também o
manejo dos tempos verbais, presente, passado e futuro, estariam em função desta mensagem e de
realçar o simbolismo empregado. Sua finalidade seria o desligar-se do determinismo do tempo e
implantar um tempo “metahistórico”, um tempo, que distante do tempo histórico, atinge todo o tempo.
Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida. Lectura Cristológica del Apocalipsis.
Salamanca, Sigueme, 1991, 17-18.
42 Obviamente Charles não se preocupa com a totalidade das línguas modernas, antes com a sua
língua pátria: The Greek text needs at times to be translated into Hebrew in order to discover its
função destes hebraísmos, muitas traduções deficientes teriam sido feitas desde o
segundo século até os nossos dias.
A questão do tipo de texto utilizado também foi o centro da atenção de
Vanhoye
43. Este, porém, dedica especial atenção ao texto de Ezequiel, pois das
sessenta e quatro vezes que o texto é citado no Novo Testamento, quarenta e quatro
estão no Apocalipse.
Vanhoye considera a pesquisa de Swete carente de um estudo das demais
traduções gregas, assim como de um confronto com o Texto Massorético
44. Para
Vanhoye, Swete trabalha com uma grande familiaridade com as versões gregas do
Antigo Testamento, mais do que numa comparação atenta com o Texto
Massorético
45. Em um outro extremo da pesquisa estaria Charles, que aceitaria a
utilização do Texto Hebraico sem cogitar a versão grega da LXX.
Tendo como objetivo uma melhor identificação do texto usado, Vanhoye, em
um primeiro momento, apresenta um estudo de textos que indicariam uma
aproximação com a LXX, e outros com os Textos Massoréticos
46. O texto de Ap
18,21 é considerado a citação mais exata e nele estaria ausente a versão da LXX. Em
um segundo momento, examina a presença de alguns textos de Ezequiel no
Apocalipse sob o título de “citations exactes”
47 ou “citations presque exactes” 48.
meaning and render it correctly in English. Cf. CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical
Commentary on the Revelation of St. John, cxliv-cxlviii.
43 Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 436.
44 Vanhoye não segue o pensamento de Swete que entende ser o texto do Apocalipse um trabalho
parafraseado do texto da LXX. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans
l”Apocalypse”, 443.
45 Nesta linha de pensamento encontra-se o comentário de Lucien Cerfaux e Jules Cambier. Segundo
este estudo, o autor do Apocalipse teria tido acesso a um texto grego da versão da LXX. “Nous nous
sommes persuadés que S. Jean lisait un texte grec voisin de celui des LXX; c” est pourquoi nous avons
traduit régulièrement le texte grec de l” Ancien Testament plutôt que le texte hébreu; les exceptions
seront indiquées”. Cf. CERFAUX, L., et CAMBIER, J., L”Apocalypse de S. Jean lue aux chrétiens, 7.
46 Textos que se inclinariam para uma utilização do texto da LXX: Ap 1,13 e Ez 9,11; Ap 2,7 e Ez
31,9; Ap 6,8 e Ez 5,12; Ap 9,21 e Ez 43,9; Ap 10,9 e Ez 2,8; 3,3; Ap 11,11 e Ez 37,5.10; Ap 11,13 e
Ez 38,19-23; Ap 22,1-2 e Ez 47,1-12. Textos que possuem maior aproximação com o Texto
Massorético: Ap 1,15 e Ez 43,2; Ap 4,7 e Ez 10,14; Ap 18,1 e Ez 43,2; Ap 18,18 e Ez 27,32; Ap
18,9.11.15.19 e Ez 27,31b; Ap 18,21 e Ez 26,21; Ap 22, 2 e Ez 47,12. Cf. VANHOYE, A., “L”
utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 445-448.
47 As “citations exactes” tem por característica a concordância entre um texto da LXX e o Texto
Massorético. Por exemplo: Ap 10,10 e Ez 3,3. Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel
dans l”Apocalypse”, 448-449.
Na visão de L.P. Trudinger,49 existem afinidades com as versões gregas, das
quais decorreriam algumas referências ao Antigo Testamento, mas ele atenua a
importância desta evidência pondo em debate uma tradução direta de um texto
aramaico para algumas seções de Daniel sem distanciar-se da presença do Texto
Hebraico. Investiga ainda o uso de textos do Targum no Apocalipse
50, evidenciando
o conhecimento destas obras pelo autor sagrado como também o seu emprego
51.
O reconhecimento de algumas referências ao Antigo Testamento na versão da
LXX explicaria a procedência das divergências existentes no texto neotestamentário.
Assim, inclinar-se-ia para uma mostra da pouca afinidade entre o autor sagrado e o
texto grego. Esta pouca afinidade poderia indicar uma independência com relação a
LXX nos textos de Ezequiel e Daniel, posto que não se encontram citações deste
material, antes palavras elaboradas pelo autor sagrado.
A retomada do caminho de uma análise restrita ao Texto Hebraico e sua
versão grega da LXX foi percorrido por Gangemi
52. Este classificaria a utilização do
Texto Hebraico ou da LXX como “ad litteram
53: textos que mencionariam
48 No caso das “citations presque exactes”, a influência da LXX parece mais acentuada: Ap 7,14 e Ez
37,3; Ap 11,11 e Ez 37,10; Ap 18,19 e Ez 27,30; Ap 18,21 e Ez 26,21. Cf. VANHOYE, A., “L”
utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 449-450.
49 Cf. TRUDINGER, L.P., The Text of the Old Testament in the Book of Revelation. ThD Dissertação,
Boston University, 1963. Um sumário desta obra pode ser encontrado em: “Some Observations
Concerning the Text of the Old Testament in the book of Revelation”, JTS 17 (1966) 82-88.
50 Segundo Trudinger, o uso do Targum explicaria melhor texto como Ap 1,4 que, além de Ex 3,14 e
da LXX, teriam recorrido ao Targum Deut 32,39. Mais à frente em Ap 18,22 ligado a LXX e ao Texto
Massorético de Ez 26,13 a expressão “harpas” vincular-se-ia ao próprio instrumento, já no Targum se
explicita a ação sofrida pelo instrumento “jogando as suas harpas”. Um outro exemplo está em Ap 21,3
onde nem o texto da LXX nem o Texto Massorético de Ez 37,27 explicam de maneira contundente o
uso que o autor sagrado faz deste texto. A melhor solução seria um recurso ao Targum ou a Lv 26,12.
Cf. TRUDINGER, L.P., The Text of the Old Testament in the Book of Revelation, 122.
51 Smalley entende que o autor sagrado pertence à sociedade greco-romana, portanto, teve acesso
tanto às idéias proto-gnósticas e textos mágicos, quer oriundos do judaísmo ou do universo greco-
romano. Presume ainda, que o autor possuía familiaridade com a literatura clássica. Cf. SMALLEY, S.
S., The Revelation to John. London, InterVarsity Press, 2005, 8-9.
52 Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell” Apocalisse di Giovanni” (2
a
. parte),
Euntes Docete 27 (1974) 311-339.
53 Textos citados ad litteram: Ap 1,17; 2,8 e 22,13 estariam relacionados com Is 41,4; 44,6 e 48,12.
Os dois últimos textos na visão de Gangemi, se correspondem perfeitamente do ponto de vista literário
contendo acentos também sobre a teologia. O primeiro embora possua diversidade quanto às
expressões possui afinidades quanto ao conteúdo. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-
Isaia nell” Apocalisse di Giovanni”, 114.
claramente o Texto Hebraico, “quasi ad litteram”54: textos que não possuem a
mesma clareza e aqueles utilizados com sentido: escassos de uma precisão dos
elementos literários utilizados. Haveria, contudo, uma certa probabilidade da
utilização do Texto Hebraico, embora não sejam raros os elementos para propor a
utilização da LXX.
Prosseguindo na linha de dilatação de textos que teriam influenciado o texto
do Apocalipse temos Gregory K. Beale
55. O autor propõe, para o caso específico do
uso do texto de Daniel, o aramaico
56, além da presença da literatura Qumrânica sobre
Daniel, da apocalíptica judaica de 1 Enoc, Testamento de Josefo, 4 Esdras e 2 Baruc.
Com relação ao uso da Bíblia Grega nas citações de Daniel no Apocalipse, o autor
inclinar-se-ia para o emprego do texto de Teodocião em detrimento da LXX
57.
Distanciando-se das teses antecedentes temos Moyise. Este recorre ao estilo
particular do autor do Apocalipse, que não usa citações diretas, mas preserva sua
estrutura textual, a linguagem e o vocabulário do Antigo Testamento para demonstrar
que o autor sagrado recorreu tanto à fonte grega como à semita. Uma dependência
exclusiva pareceria pouco provável. Seria possível, todavia, que textos tivessem sido
interligados com vistas a uma finalidade teológica
58. A este ato de interligar textos,
Moyise denomina intertextualidade
59.
A intertextualidade, na pesquisa de Mario Cimosa
60, é vista como um
instrumento que corroboraria a presença de textos da LXX no texto do Apocalipse,
quando este pode ser verossimilmente demonstrado. Sua hipótese estaria sustentada
nos estudos dos Padres da Igreja e também em estudos contemporâneos que vêem na
54 Textos quasi ad litteram: Ap 1,16 e Is 49,2; Ap 7,16 e Is 49,10; Ap 14,3 e Is 42,10; Ap 21,10 e Is
52,1; Ap 21,5 e Is 43,19. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell” Apocalisse di
Giovanni”, 115.
55 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St.
John. Lanham, University Press of America, 1984.
56 A tese do uso de um texto aramaico pode ser encontrada também em Jean-Pierre Ruiz. Cf. RUIZ,
J.-P., Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation of Prophetic Language in Revelation 16,17-
19,10. Frankfurt am Main, Bern, New York, Paris, Peter Lang, 1989.
57 Cf. BEALE, G. K., “A Reconsideration of the Text of Daniel in the Apocalypse”, Biblica 67 (1986)
539-543.
58 Cf. MOYISE, S., The Old Testament in the Book of Revelation, 108-138.
59 Não entraremos em detalhes sobre a nomenclatura “intertextualidade” neste momento.
60 Cf. CIMOSA, M., “L” autore dell” Apocalisse ha usato la Bibbia Greca?” 63-94. In Bosetti, E., &
Colacrai, Apokalipsis. Percosi nell” Apocalisse di Giovanni. Assisi, Cittadella Editrice, 2005, 66.
LXX algo mais que uma simples versão, considerando-a uma etapa do progresso
lingüístico da Revelação que terá seu ápice no Novo Testamento.
Em síntese:
A trajetória da pesquisa sobre o tipo de texto a que recorre o autor do
Apocalipse poderia ser apresentada em três momentos distintos. O primeiro é aquele
de polarização: ou o autor tomou o Texto Hebraico (Charles) ou a LXX (Swete). A
presença do Texto Hebraico justificaria os solecismos e hebraísmos presentes no
texto, pois o autor estaria pensando em hebraico e escrevendo em grego. Esta
ocorrência hoje é facilmente explicada e compreendida como um recurso do próprio
autor sagrado para dar ênfase ao seu escopo teológico. Quanto a LXX, teria apenas
um valor secundário.
Os textos analisados são considerados por Vanhoye como incapazes de
testemunharem totalmente a favor da LXX, embora não possuam elementos para uma
total negação de uma dependência desta. De fato, ele constatou que elas reproduzem
também o Texto Hebraico sob o aspecto de dependência vocabular. No entanto,
quando se examinam as reminiscências, encontram-se constantes divergências da
tradução da LXX, e estas fazem pensar em modificações intencionais. Logo, o autor
do Apocalipse não reproduz exatamente o texto que utiliza, não se torna escravo
diante dos textos sobre os quais se inspira. Antes, quando utiliza um texto, o faz com
criatividade, adaptando o material do qual se apropria
61.
Vanhoye segue as pesquisas anteriores, mas considera a presença do Texto
Hebraico sem excluir totalmente a LXX. A ausência de citações formais e a liberdade
com que se desloca o autor do Apocalipse geraria a dificuldade na precisão de uma ou
outra tradição textual. A opção dentre elas estaria vinculada à necessidade teológica
do autor, que, conhecendo bem as tradições e a elas recorrendo, mantém suas
estruturas ou as subordina segundo a sua intenção autoral. Deste modo, alguns textos
tenderiam para o Texto Hebraico enquanto outros para a LXX.
Na opinião de Vanhoye, a questão resulta de difícil solução, uma vez que o
autor do Apocalipse não apresenta citações formais, além do fato deste modificar com
61 "En résume, il nous apparaît qu”aucun des indices invoqués en faveur d”une utilisation du texte
grec d”Ézéchiel ne s”impose de façon incontestable". Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d”
Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 460.
liberdade os textos utilizados ou de combiná-los com outros textos impedindo uma
precisão na identificação da fonte. Deste modo, um texto evocado como argumento
favorável à presença da LXX pode também servir como objeção.
Gangemi partilha da tese de intenção do autor, mas tende para o Texto
Hebraico, sem, contudo, invalidar a LXX.
Em um segundo momento, encontram-se as teses de Trudinger e Beale, que
propõem a abertura para a análise de outros textos que exerceriam influência sobre o
texto do Apocalipse, tais como o texto aramaico de Daniel, os Targumim, a literatura
Qumrânica, a apocalíptica judaica, dentre outros. A respeito do texto grego, entendem
que teria sua origem no texto de Teodocião e não na LXX.
Em um terceiro momento, encontra-se a tese de Moyise. Este abordaria a
questão do recurso ao Texto Hebraico ou a LXX, como um emprego segundo a
necessidade do autor. Cada livro do Antigo Testamento presente no Apocalipse
sofreu uma intervenção diferente em função do escopo teológico do autor sagrado. A
metodologia intertextual proposta por Moyise, como também a literária, levam o
autor a inclinar-se, contudo, para o texto grego.
Entretanto, esta preferência pelo texto grego não seria uma novidade. Esta
hipótese remonta aos Padres da Igreja, que viam na versão da LXX um progresso na
linguagem da revelação bíblica que terá o seu auge no Novo Testamento e no uso que
alguns autores farão da Bíblia Grega, que é, em última instância, o texto do Antigo
Testamento utilizado.
1.2. As relações dos livros proféticos e de Daniel com o Apocalipse
O interesse pela pesquisa analítica do modo como os textos proféticos foram
usados no Apocalipse vem tornando-se cada vez maior nos últimos tempos
62. Ao que
62 Dado o escopo de nosso trabalho, nos restringiremos ao estudo de alguns textos proféticos e do
livro de Daniel no Apocalipse. Todavia, outros trabalhos dedicam-se a compreender a presença de
outros textos vétero-testamentários no Apocalipse: FEUILLET, A., “Le Cantique des Cantiques et L”
Apocalypse. Étude de deux réminescences du Cantique dans l”Apocalypse johannique”, RSR 49
(1961) 321-353; “La mystique nuptiale et la réponse de l”homme à l”amour divin d”après Ap 3,20 et
Ct 5,2-5”, Carmel 41 (1986) 2-14; ATKINSON, K., An Intertextual Study of the Psalms of Solomon:
Pseudepigrapha. Lewiston, The Edwin Mellen Press, 2001; MOYISE, S., The Psalms in the New
Testament. London, New York, T&T Clark, 2004.
tudo indica, o autor sagrado recorre às imagens, figuras, expressões do Antigo
Testamento, de maneira pessoal e independente, dando um significado diverso e
desfrutando do material antigo para construir algo novo. Em alguns momentos,
porém, este uso criaria uma série de contatos intimamente ligados a outros textos, o
que acarretaria inúmeras dificuldades na interpretação do Apocalipse.
Os vínculos entre textos levariam a crer que a chave para elucidar este livro
estaria na compreensão do modo pelo qual os textos vétero-testamentários foram
tomados no último livro do Novo Testamento e postos em conexão. Os maiores
estudos dedicaram-se, sobretudo, a uma análise da relação do Apocalipse com Daniel,
Isaías, Jeremias e Ezequiel. Este último receberá, de nossa parte, especial atenção em
decorrência de sua importância para o livro do Apocalipse. Passamos, pois, a
observar, de maneira sintética, alguns textos utilizados pelo autor do Apocalipse.
1.2.1. As relações com Isaías, Jeremias e Daniel
a) as relações com Isaías
A presença do texto do Dêutero-Isaías no Apocalipse foi abordada por Attilio
Gangemi
63 e é classificada em diversos tipos: ad litteram64, quasi ad litteram65,
utilização com sentido, simples alusão ou reminiscência. Haveria ainda o recurso a
elementos e alusões genéricas de índole temática.
63 Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell”Apocalisse di Giovanni” (1
a
. parte)
Euntes Docete 27 (1974) 109-144.
O número de citações de Isaías no Apocalipse na visão de Gangemi, não seria excessivo, uma vez que
seriam encontradas apenas 27 citações.
64 Os textos citados ad litteram o encontrados em Ap 1,17; 2,8; 22,13 e relacionados com Is 41,4;
44,6 e 48,12. Os dois últimos textos, na opinião de Gangemi, correspondem perfeitamente do ponto de
vista literário e com acentos também sobre a teologia, o primeiro embora possuindo diversidade quanto
às expressões possui afinidades quanto ao conteúdo. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-
Isaia nell” Apocalisse di Giovanni”, 112-113.
65 Os textos quasi ad litteram propostos são: Ap 1,16 e Is 49,2; Ap 7,16 e Is 49,10; Ap 14,3 e Is 42,10;
Ap 21,10 e Is 52,1; Ap 21,5 e Is 43,19. Nesta seção, Gangemi observa que surpreende o emprego de
expressões idênticas existindo, porém, diferenças quanto à perspectiva de cada autor. O autor do
Apocalipse introduziria algumas alterações com relação ao Texto Hebraico sem que isto modifique
substancialmente o texto seja do ponto de vista terminológico, como também da construção das frases,
esta mutação seria conseqüência do novo contexto onde o texto encontra-se aplicado. Cf. GANGEMI,
A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell”Apocalisse di Giovanni”, 114-115.
Os textos ad litteram e quasi ad litteram possuiriam expressões estreitas com
o texto deuteroisaiano; as possíveis diferenças detectadas teriam sua origem na
intenção do autor neotestamentário.
Os textos utilizados com sentido
66 teriam sofrido mudanças terminológicas
ou estruturais introduzidas pelo autor, que os modelaria com maior liberdade. A
simples alusão ou possível reminiscência são textos nos quais o autor do Apocalipse
apenas alude mais ou menos claramente a alguns textos deuteroisaianos
67.
Gangemi considera que o autor do Apocalipse usa o dêutero-Isaías, em alguns
momentos, como uma imagem de fundo, ou seja, o texto que serviria como orientação
para a composição do cenário é aquele de Isaías, embora existam relações com outros
textos, conforme procurou evidenciar com o estudo de Ap 5,6-10
68. Um outro
recurso na utilização do dêutero-Isaías seriam os elementos isolados e a temática
69,
extraídos do deuteroisaiano e reelaborados no texto do Apocalipse.
A presença dos textos do deuteroisaiano no Apocalipse poderia ser entendida
ainda como afinidades de ordem literária e temática, conforme Benito Marconcini
70.
66 Para tanto são propostos os seguintes textos: Ap 6,12 e Is 50,3; Ap 12,12 e Is 44,23; 49,13; Ap
18,7.8 e Is 47,7-9; Ap 21,27 e Is 52,1; Ap 22,17 e Is 55,1.
67 Respectivamente: Ap 21,2 e Is 49,18; 54,5; Ap 1,5 e Is 55,4; 43,9-12; 44,8; Ap 3,9 e Is 43,4; Ap
3,18 e Is 55,1; Ap 12,14 e Is 40,31.
68 Gangemi conclui que esta perícope recebeu influência do texto do deuteroisaiano bem como do
Êxodo. Os pressupostos de Gangemi decorrem da necessidade do autor do Apocalipse possuir uma
idéia de fundo que suprisse a carência da descrição do Êxodo. Assumindo o texto do dêutero-Isaías
como texto base de Ap 5,6-10, todos os elementos do Êxodo presentes nesta perícope deveriam ser
retomados a partir do dêtero-Isaías. Cf. GANGEMI, A., “L”utilizzazione del Deutero-Isaia nell”
Apocalisse di Giovanni”, 133-144.
O tema central desta perícope é a figura do avrni,on. Dois autores destacaram-se na pesquisa sobre a
origem do termo avrni,on no Apocalipse: J. Comblin, que defende a tese do termo estar vinculado a Is
53,7ss sem negar a relação deste com o cordeiro pascal do Êxodo e um vínculo com a apocalíptica.
Holtz, por sua vez, prefere ligá-lo ao contexto do Êxodo, sem admitir um vínculo com a apocalíptica.
Cf. COMBLIN, P., Le Christ dans l”Apocalypse. Paris, Desclée, 1965; HOLTZ, T., Die Christologie
der Apokalypse des Johannes. Zweite, Akademie-Verlag-Berlin, 1962.
69 Gangemi propõe cinco temas presentes no Apocalipse cujo pressuposto seria a temática tratada no
texto deuteroisaiano: a transcendência de Deus, presente nos textos de Is 41,5; 44,6; 48,12b e Ap 1,7;
2,8; 22,13. O tema da redenção e do servo tratado em Is 41,8-14; 43,1-3, 45,16-18; 42,1-7; 49,1-6;
50,4-9; 52,13-53,12 e Ap 1,16; 2,12; 19,15. O juízo contra Babilônia em Is 43,14; 48,14.20; e Ap 12,9;
13,2; 17-18. A salvação tema caro a Isaías 43,11; 45,17; 40,29; 41,18.19; 42,14-16; 43,1.2; 44,3-4;
49,9.13; 52,1-7; 54,3-5 é tratado no Ap como libertação da tribulação, como se vê em Ap 7,16-17. O
fazer novas todas as coisas: a Nova Jerusalém teria seu amparo temático em Is 43,19; 42,9; 43,19;
48,6; 41,22; 42,2 o autor do Apocalipse recorre exatamente ao mesmo tema: fazer novas todas as
coisas em Ap 21,4-5.
70 Segundo o autor, as relações entre o Apocalipse e Isaías seriam detectadas a partir dos seguintes
critérios: interpretação e enriquecimento. A utilização que o Apocalipse faz de Isaías poderia ser
entendida a partir de cinco citações literais, onde a referência textual identifica-se com o contexto. Em
Ambos os textos são trabalhos literários destinados a comunidades sofredoras: o IIº
Isaías foi dirigido aos exilados e o Apocalipse a cristãos que padeciam com a
perseguição.
A presença do texto de Isaías no Apocalipse foi estudada recentemente por J.
Fekkes
71. Este autor buscaria dar validade às alusões de Isaías presentes em Ap 21,1-
22,5 classificando-as em três níveis: certeza virtual, probabilidade/possibilidade e
improvável/duvidoso
72. Fekkes deseja também determinar qual foi a estratégia do
autor sagrado quando alude a um texto de Isaías e de sua tradição histórica. Ao final
de sua pesquisa, conclui que o autor sagrado selecionou textos conscientemente e
com propósito claro. O uso, porém, não se encontraria limitado pelo Antigo
Testamento; antes, o Apocalipse o transcenderia. Esta transcendência poderia ser
encontrada também em qualquer outra fonte da qual o Apocalipse tenha recebido
alguma influência.
b) as relações com Jeremias
O texto de Jeremias e suas relações com o Apocalipse foi alvo da pesquisa de
Giovanni Deiana
73. Este autor visaria evidenciar especialmente as divergências,
afinidades e os novos significados assumidos pelas citações do texto vétero-
um caso especifico o texto de Isaías foi elaborado com uma maior liberdade de construção fazendo
com que a relação entre os dois textos torne-se tênue o que resulta em um texto composto seja pela
união de novos textos extraídos de Isaías, seja pela introdução de motivos tomados de outros livros. Cf.
MARCONCINI, B., “L” utilizzazione del TM nelle citazioni isaiane dell” Apocalisse”, RivB 24 (1976)
113-136.
71 Fekkes propõe para análise os seguintes textos: experiência visionária: Is 6,1-4; títulos
cristológicos: Is 11,4-10; 22,22; 44,6; 65,15. Escatologia de julgamento: dia do Senhor: Is 2,19; 34,4;
63,1-3; oráculos sobre as nações: Is 13,21; 21,9; 23,8.17; 34,9-14; 47,7-9. Escatologia de salvação
oráculos de salvação: Is 65,15; 61, 10; 60,14; 49,10; 25,8; oráculos sobre a Nova Jerusalém Is 52,1;
54,11-12; 60,1-3.5.11.19. Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation.
Visionary Antecedents and their Development. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994. Do mesmo
autor “His Bride Has Prepared Herself: Revelation 19-21 and Isaian Nuptial Imagery”, JBL 109 (1990)
269-287.
72 Nomenclatura semelhante pode ser encontrada no material de Attilio Gangemi sobre Isaías: ad
litteram, Ap 1,17; 2,8 22,13 com Is 41,4; 44,6 e 48,12; quasi ad litteram: Ap 1,16 e Is 49,2; Ap 7,16 e
Is 49,10; Ap 14,3 e Is 42,10; Ap 21,10 e Is 52,1; Ap 21,5 e Is 43,19.
73 Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, Lateranum
48 (1982) 125-137.
testamentário no Apocalipse. A interpretação do Apocalipse dependeria de uma boa
compreensão dos textos antigos e sua função no novo texto
74.
A afinidade de expressão seria um exemplo destas alterações encontrado em
Ap 7,17 e Jr 2,13. Neste texto, as semelhanças materiais e dessemelhanças tornariam
pouco provável a dependência direta do texto jeremiano. Deste modo, seria mais
pertinente classificá-lo como uma livre referência
75. O tema comum estaria presente
em Ap 7,17c e Jr 31,16. Este tema comum, contudo, seria bastante reduzido, tornando
difícil a identificação da fonte usada pelo autor do Apocalipse. De fato, a mesma
imagem pode ser encontrada em Is 25
76.
Em decorrência da escassez de termos literários e da existência da mesma
imagem de Ap 11,5 e Jr 5,14 em 2Rs 1,10, Deiana levantou a hipótese de uma fusão
de muitos textos vétero-testamentários pelo autor do Apocalipse
77. Esta fusão
tomaria a imagem, transformando-a e recorrendo a outros textos vétero-
testamentários, de modo que tornaria impossível a verificação precisa de sua fonte
literária.
Uma real influência de Jeremias sobre o texto de Apocalipse encontrar-se-ia
em Ap 2,23 e Jr 11,20; 17,10, cujo vocabulário, de fato, pertenceria ao patrimônio
literário de Jeremias. As divergências estariam vinculadas ao gênero literário distinto
das duas obras
78. Devido a estas divergências, não se poderia falar de citação
propriamente dita em Ap 2,23, mas, somente de uma reprodução quase literal
79.
A partir dos estudos destes exemplos, Deiana conclui que os textos analisados
permitiriam falar apenas de uma referência, que possui um sentido mais genérico do
74 Textos propostos para a análise: Jr 1,10; 25,30 e Ap 10,11; Jr 2,13; 31,10; 31,16 e Ap 7,17; Jr 5,14
e Ap 11,5; Jr 11,20; 17,10 e Ap 2,2; Jr 4,29 e Ap 6,15; Jr 16,19 e Ap 15,4; Jr 10,7 e Ap 15,3b-4a. Cf.
DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 126.
75 A reminiscência entre Ap 7,17 e Jer 2,13 já teria sido detectada anteriormente por Nestle, Merck e
Dittmar e considerada autêntica. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani
dell” Apocalisse”, 130.
76 Deiana considera que o texto de Is 25 pareceria mais pertinente do que o de Jeremias onde são
encontrados apenas contatos através de vocábulos empregados. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del
libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 130.
77 Aqui Deiana propõe que o autor do Apocalipse teria feito uma fusão de textos vétero-
testamentários. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”,
131.
78 Sendo o texto de Jeremias oriundo de um contexto poético, teria sofrido uma simplificação pelo
autor do Apocalipse para inseri-lo no ritmo da sua obra. Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di
Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 133.
79 Cf. DEIANA, G., “Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell” Apocalisse”, 133.
que aquele de citação, pois o autor do Apocalipse usa o Antigo Testamento de
maneira livre, transformando-o com o auxílio de outros textos vétero-testamentários,
de tal forma que a identificação torna-se difícil.
c) as relações com Daniel
São tratadas particularmente por G. K. Beale
80, que observa mais atentamente
os textos de Ap 1; 4-5; 13 e 17 e sua relação com Daniel
81. A referência a este texto,
contudo, não seria padronizada, incorrendo em alterações exclusivas de Daniel,
classificadas como referência prioritária
82, enquanto em outros momentos os textos
de Daniel seriam denominados como secundários
83 ou admitindo contatos84. Quanto
ao uso do material de Daniel, este poderia ser classificado em três categorias: clara
alusão, provável alusão com variações redacionais e possível alusão ou eco
85.
A presença de alguns temas comuns entre o Apocalipse e Daniel, tais como
julgamento das nações perversas, o poder absoluto de Deus e a recompensa de Deus
àquele que permanecer fiel apesar dos sofrimentos, forneceria instrumentos para
concluir que o tema do julgamento escatológico cósmico estaria baseado em
Daniel
86.
80 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St.
John, 159.
81 Para Beale a influência da tradição histórica de Daniel poderia ser encontrada na literatura
Qumrânica, na apocalíptica judaica de 1 Enoc, no Testamento de Josefo, 4 Esdras e 2Baruc, além do
Apocalipse.
82 Em Ap 1,7, Beale detecta uma referência a Dn 7,13 que, embora esteja combinada com Zc 12,10-12
não recebe sua atenção. Beale ignora que esta mesma combinação já tenha ocorrido em Mt 24,30 e
venha a ser, possivelmente, a referência prioritária do texto. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in
Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 154-156.
83 Encontramos em Ap 1,13 a presença de Dn 10,5, a presença de Ez 9,2.11, por sua vez, é
considerada de menor valor.
84 Em Ap 1,14b-15a a imagem derivada de Dn 10,6 retorna, porém agora, Beale considera que
acompanhada de Ez 1,7. Do mesmo modo, Ap 1,15b alude a Dn 3,26, mas possui como ligação íntima
a cena de Ez 1,24 e 43,2.
85 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St.
John, 43.
86 Beale fundamenta seu argumento na hipótese da presença de alusões de Dn 2,28-29 em Ap 1,1;
1,19; 4,1; 22,6. Em Ap 1,1, Beale entende que o autor do Apocalipse usa uma alusão que porta o
contexto escatológico de Dn 2. Sendo assim, Ap 1,19.20 e seus contatos com Dn 2,45 reforçariam a
tese de uma estrutura baseada em Dn e na “escatologia realizada”. Cf. BEALE, G. K., The Use of
Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 277-285.
Numerosas referências e similaridades de termos poderiam ser detectadas
entre Ap 1 e Dn 7 e 10. A densidade destas alusões em Ap 1,12-20 levou Beale a
propor que Ap 1,8-20 seja um midrash de Dn 7 e 10. A perícope de Ap 1,1-6 seria
uma introdução a este midrash que teria na figura do Filho do Homem o seu cerne
87.
Deste modo, a presença de Dn 7 em Ap 1 não poderia ser classificada como aleatória,
e sim, teria uma implicação teológica bastante precisa: servir à Cristologia
88.
A busca para uma justificativa para a presença das referências a Ezequiel e a
Zacarias em Ap 1 seria explicada pela ação do autor sagrado, que teria tomado o
cuidado de “enxertar” neste “midrash de Daniel” temas afins que teriam sido atraídos
pelo texto de Dn 7, 9-27
89. A esta “atração” Beale denomina magnetismo
hermenêutico
90.
Ap 13 é considerado por Beale como a perícope que mais recebeu influência
de Daniel. Constata semelhanças entre Dn 7,3-6 e a visão das quatro bestas, em Ap
13,1-8 e em Ap 13,11-17. A estrutura de Ap 13 estaria baseada em Dn 7, pautando-se
em um “esquema de autorização”
91. Beale, contudo, não desconsidera a presença
através do “magnetismo hermenêutico”
92.
Existem, segundo Beale, semelhanças que favorecem identificação da
presença de Dn 7 em Ap 17. O texto seria um exemplo claro da influência de Daniel
87 Beale argumenta que Ap 1,1-6 serve de introdução ao midrash do Ap. Este teria por cerne a figura
de Filho do Homem introduzido no v. 7. Para dar suporte a esta tese, Beale apresenta uma tabela com a
estrutura de Ap 1 e Dn 7. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and
in the Revelation of St. John, 171. As perícopes Ap 1,7 e Dn 7,13 e Ap 4-5, foram analisadas
particularmente por Turibio Cuadrado. A presença de Daniel no texto do Apocalipse, contudo, não
seria exclusiva como entende Beale. Cf. TORIBIO CUADRADO, J. F., “La recepcíon de Dn 7,13 en
Ap 1,7”, Mayéutica 18 (1992) 9-56; “Apocalipsis 4-5. Díptico litúrgico de creación y redención”,
Mayéutica 22 (1996) 9-65.
88 O texto de Dn 7 e 10 foi empregado como sentido de interpretação e cumprimento da profecia de
Dn 7, esta estaria realizada com a ressurreição de Cristo. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in
Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 177.
89 A mesma definição foi empregada em Ap 4-5, onde a influência de Ez 1-2 estaria restrita a Ap 4,1 e
5,1 dissolvendo-se a partir de 5,2. A presença de Is 6, nesta seção, não recebe atenção da parte de
Beale. Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of
St. John, 183-184.
90 Cf. BEALE, G. K., The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St.
John, 174.
91 Sobre a questão da influência do livro de Daniel na formação da estrutura do Apocalipse ver:
BEALE, G. K., “The Influence of Daniel Upon the Structure Theology of John”s Apocalypse” JETS
27 (1984) 413-423.
92 Cf. BEALE, The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John,
245.
sobre o Apocalipse93. Apesar de uma inegável presença de outros textos do Antigo
Testamento nesta seção, Beale prefere optar por uma base da estrutura vinculada a Dn
7.
Observando os textos de Dn 1,19; 2, 28-29.45 e comparando-os com Ap 4,1 e
Ap 22, 6, Beale julga que se encontrariam afinidades literárias capazes de aproximar
o Apocalipse do texto de Daniel. Ap 22,6, que serviria como conclusão, recordaria a
mesma frase de Dn 2,28.
A influência de Daniel sobre a estrutura do Apocalipse, na visão de Beale,
possuiria elementos que atingiriam a totalidade da obra e influenciariam igualmente
sua teologia. Partindo destas observações, Beale convenceu-se de que o Apocalipse
depende mais de Daniel do que de qualquer outra obra do Antigo Testamento.
Tendo como pressuposto que o Apocalipse seria uma reinterpretação de um
fato antigo marcante aplicado ao momento histórico vigente com vistas a estimular os
que padecem uma perseguição, Beale crê ser o Apocalipse um midrash de Daniel.
Em síntese
As teses apresentadas convergem quando tratam do tema do manejo dos
textos mais antigos pelo autor sagrado: ele age com liberdade. Os textos usados em
uma determinada seção do Apocalipse foram selecionados, não pertencem a um
subjetivismo da parte do autor.
Esta seleção primorosa estaria ligada à intenção teológica, particularmente, a
serviço de uma cristologia. Seriam utilizados particularmente os textos proféticos e o
livro de Daniel. Os usos poderiam ter uma ênfase mais acentuada ou não de acordo
com o próprio interesse do autor sagrado por determinado tema contido em um
determinado livro.
De modo geral, as teses seguem o critério literal e lingüístico, cujo objetivo
seria o de identificar se a presença do texto ocorre em forma de citação literal ou
quase literal, conforme Gangemi, ou segundo Fekkes, possibilidade/probabilidade,
93 Com relação ao texto de Ap 17, Beale observa que os vv. 1-4 derivam diretamente de Dn 7 já 5-16a
são classificados como uma provável alusão ao texto de Daniel, posto que, muitos são os termos que
indicam a existência de semelhanças que favorecem a presença de Dn 7 em Ap 17. Cf. BEALE, G. K.,
The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 265-267.
improvável/duvidoso. Embora este critério fosse capaz de responder à questão sobre a
fonte que inspirou o autor sagrado quando confeccionou uma seção, não o seria na
resposta à questão da motivação para a presença deste texto específico naquela seção.
Quando a dependência não ocorre de forma clara, como acenou Deiana, a
identificação do texto subjacente tornar-se-ia muito mais difícil, pois, em muitos
casos, o autor sagrado teria recorrido a textos que possuiriam contatos com outros
textos. Sendo assim, seriam melhor entendidos através de uma fusão de textos, cujo
objetivo seria a transformação da imagem considerando as nuances presentes ao
longo da Escritura.
Um outro ponto de convergência estaria no conhecimento dos materiais que o
autor sagrado usou para confeccionar o seu texto, sem o qual a compreensão do
mesmo tornar-se-ia extremamente laboriosa. Sobre o modo como o autor sagrado
usou o material mais antigo, a categoria da reinterpretação de textos tem recebido
maior apoio dos três autores.
Beale possui uma linha de trabalho peculiar. Ele concentrou-se sobre os
capítulos 1; 4-5; 13 e 17 do Apocalipse e desta análise tira conclusões que considera
válidos para todo o livro. O pressuposto desta conclusão pode ser encontrado no
modo como Beale usa o termo “midrash”, considerado por alguns autores destituído
de uma precisão. Dentre eles encontramos Wright e Adela Yarbro Collins.
Wright define um midrash como um texto que se obtém a partir de um
primeiro texto e somente por meio deste existiria o segundo
94. Sendo assim, o
midrash retiraria do autor sagrado a autonomia sobre a fonte que utiliza e criaria um
impasse diante dos demais textos a que recorreu o autor neotestamentário. O midrash
dá ao texto passado mais ênfase. O novo texto, ao reler o antigo, fica “aprisionado”
em seu universo próprio sem grandes passos criativos. Com esta caracterização, o
midrash traria uma limitação para o autor do Apocalipse, seu horizonte de trabalho
94 Cf. WRIGHT, A.G., “The Literary Genre Midrash”, CBQ 28 (1966), 105-138.
Ver também: LE DEAUT, R., “A propos d” une definition du midrash”, Biblica 50 (1969) 395-413;
PORTON, G. G., “Defining Midrash”. In The Study of Ancient Judaism. Midrash, Mishnah, Siddur.
(ed.) NEUSNER, J., New York, KTAV, 1981, 55-92; STRACK, H, L., & STEMBERGER, G.,
Einleitung in Talmud und Midrasch, 7. München, C. H. Beck, 1982
7
; NEUSNER, J, Midrash in
Context. Exegesis in Formative Judaism. Philadelphia, Fortress Press, 1983, 197-207. Longa e
específica literature foi compilada por HAAS, Lee, “Bibliography on Midrash”. in The Study of
Ancient Judaism.
I. Mishnah, Midrash, Siddur. NEUSNER, J., (ed.) Atlanta, Atlanta Scholars Press,
1992, 193.
estaria cerceado pela fronteira do texto utilizado, neste caso o de Daniel, colocando-o
em confronto com a tese de Beale de liberdade do autor diante da fonte a ser
utilizada. O autor sagrado, de fato, vai além de uma releitura, ele interpreta os textos
do Antigo Testamento à luz do Mistério Pascal. Desta forma, sua leitura supera o
próprio horizonte onde sua fonte se encontra.
A crítica mais enfática ao trabalho de Beale pertenceria a Adela Yarbro
Collins
95. Segundo a autora, a tese de Beale sobre o uso de Dn 7 em Ap 4-5 estaria
mais na linha de mera suposição, de uma visão parcial, sem constituir uma real linha
de pesquisa. De fato, Beale parte do princípio que o autor sagrado tem como intenção
produzir uma releitura, logo, um midrash, do livro de Daniel. Ao mesmo tempo
defende que o novo texto possua elementos de criatividade.
Um dado não muito preciso é o “magnetismo hermenêutico” usado para
justificar a presença de outros textos interagindo na perícope, como ocorre com Ez 1-
2 em Ap 4-5. A defesa de uma dependência de Dn 7 pode ser um excesso tendo em
vista que numerosos textos vétero-testamentários exercem influência sobre textos
onde, também, Daniel se faz presente, mas não de modo exclusivo.
Não fica claro por que Beale não recorreu aos trabalhos de Vanhoye e às suas
hipóteses para a presença de textos ezequielianos nesta seção. O mesmo ocorre em
Ap 17-18, nos quais, novamente não há uma alusão aos trabalhos de Boismard e
Vanhoye, que já haviam indicado a presença de Ez e outros textos do Antigo
Testamento nestes textos com expressiva correspondência.
Sobre a forma como determinado texto é empregado temos três distinções:
clara dependência, provável alusão e possível alusão. No entanto, ao longo de seu
trabalho utiliza com freqüência os termos influência e dependência quase como
sinônimos. Em um comentário posterior, Beale reafirma sua tese e a aprofunda ainda
mais classificando a presença de Daniel no Apocalipse como um protótipo de
estrutura seguido por este livro neotestamentário como uma sincronia de paralelos
96.
95 Cf. COLLINS, A. Y., “Introduction: Early Christian Apocalypticism”, Semeia 36 (1986) 1-11.
96 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 87.
1.2.2 A dependência para com Ezequiel
De acordo com o The Greek New Testament, encontram-se no Novo
Testamento 138 alusões ao texto de Ezequiel. Destas, 84 estão no Apocalipse. Além
do índice acentuado, impressiona o modo como o autor sagrado mantém a mesma
ordem das cinco seções do livro profético em seu material: Ez 1 e Ap 4; Ez 9-10 e Ap
7-8; Ez 16 e 23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap 18; Ez 37-48 e Ap 20-22
97. Estas
características geraram, na segunda metade do último século, vários estudos com
perspectivas que vão desde a análise da intenção do autor até ao diálogo de um texto
com outro texto e com as diversas tradições judaicas contemporâneas à confecção do
Apocalipse.
A presença da profecia de Ezequiel no Apocalipse foi estudada
particularmente por Albert Vanhoye
98. Este recorre a uma abordagem que prestigia a
intenção do autor para analisar os casos de citações explícitas, leves retoques e
utilisations d’ensembles”.
As chamadas “citações explícitas” testemunhariam Ezequiel textualmente
99.
Os leves retoques
100 seriam utilizações mais livres do texto. O autor do Apocalipse
teria acrescentado detalhes ao texto de Ezequiel. Há ainda alguns casos de palavras
soltas que conduzem a uma tênue citação. Este procedimento indicaria uma grande
criatividade do autor neotestamentário ao trabalhar o texto de Ezequiel, selecionando
temas e expressões que melhor serviam ao seu intento redacional
101.
As “utilisations d’ensembles
102 permitiriam uma melhor apreciação da
influência de Ezequiel sobre o autor do Apocalipse, já que nesta modalidade
97 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece. 27
a
.
98 Cf. VANHOYE, A., "L” utilisation du livre d”Ézéchiel dans l” Apocalypse", 436-476.
99 Respectivamente: Ap 1,15 e Ez 43,2; Ap 10,10 e Ez 3,3; Ap 18,1 e Ez 43,2. Nestas citações duas
pertencem a Ez 43,2 e ambas estão em um contexto de epifania.
100 Por exemplo: Ap 7,14 e Ez 37,3; Ap 11,11 e Ez 37,10; Ap 18,19 e Ez 27,30; Ap 18,21 e Ez 26,21.
101 Expressões que remetem ao patrimônio lingüístico de Ez: Ap 17,1.4; 16.23, o julgamento da
grande prostituta recorreria ao vocabulário de Ez 16 e 23 adotando os termos “prostituta”, “se
prostituir”, “prostituição”, “impureza”, “abominação”. O vocábulo “sangue” de Ap 17,6 evocaria o
sangue da infidelidade de Ez 16,38; 23,45 dentre outros. O termo taça de Ap 17,4 e Ez 23,31-33
possuiria diferença de sentido com relação à taça de Ez.
102 As utilisations d”ensembles são: Ap 4,1-8 a visão celeste, inspirado em Ez 1,10; Ap 5,1 e de
forma breve Ap 10,1-4.8-11 episódio do livro que deve ser engolido utilizaria Ez 2,8-3,3; Ap 17,1-
6.15-18 quando descreve a grande prostituta inspirar-se-ia em Ez 16 e 23 com suas acusações contra a
encontraríamos mais do que correspondência verbal e citações exatas; haveria
também uma dependência temática.
A dependência, contudo, não tornaria o autor do Apocalipse servo do texto de
Ezequiel. De fato, ele não reproduziria exatamente o material no qual se inspira, o
que tornaria raros os casos de citações. Os textos seriam reelaborados, colocados em
contato com outros textos do Antigo Testamento, mas mantendo a ênfase em
Ezequiel
103.
Ap 4,1 indicaria uma maior presença do texto do profeta Ezequiel. Nele o
autor do Apocalipse teria conservado a mesma estrutura visionária do texto
antecedente. Já Ap 20,8 e Ez 38 e 39 testemunharia um conhecimento penetrante dos
profetas antigos e uma perfeita familiaridade com o modo com que se expressaram.
Esta forma de trabalhar os textos mais antigos teria conferido ao Apocalipse
uma coesão em sua estrutura. Tal condição estaria ligada ao fato de o autor tomar
cada texto antigo com uma intenção redacional precisa e não como um aglomerado de
textos justapostos. Há uma linha de pensamento do início ao fim da obra
104.
Por fim, Vanhoye conclui que o autor sagrado combinou diversos textos
vétero-testamentários em um único texto, comprovando a admirável habilidade e
intimidade que possuía com os textos do Antigo Testamento.
Vanhoye estuda o recurso ao texto de Ezequiel a partir dos seguintes capítulos
do Ap: Ap 4,1-8 e Ez 1,10; Ap 5,1; 10,1-4.8-11 e Ez 2,8-3,3; Ap 17,1-6.15-18 e Ez
16 e 23; Ap 18,9-19 e Ez 26 e 27; Ap 19,17-21 e Ez 39,4.17-20; Ap 20,8-9 e Ez 38-
39; Ap 11,1-2 e Ap 21,10-27 e Ez 40-48; Ap 22,1-2 e Ez 47.
prostituição de Jerusalém; Ap 18,9-19, lamentações causadas pela queda de Babilônia, ecoam as
lamentações provocadas pela queda de Tiro de Ez 26 e 27; Ap 19,17-21 o festim das aves de rapina e
da besta após a derrota de Gog corresponderia a Ez 39,4.17-20; Ap 20,8-9 evocaria de modo sintético a
invasão de Gog e sua derrota de Ez 38-39; Ap 11,1-2 e Ap 21,10-27 usam duas vezes as medidas do
Templo e da Nova Cidade de Ez 40-48; Ap 22,1-2 o rio de água viva estaria inspirado na torrente do
Templo de Ez 47. Cf. VANHOYE, A., "L” utilisation du livre d” Êzéchiel dans l”Apocalypse", 440-
441.
103 Como ocorreria em Ap 17,4. O texto principal seria aquele de Ez 23,31, mas Jr 51,7 possuiria
contato íntimo pelo vocabulário. Cf. Vanhoye, A., "L” utilisation du livre d” Êzéchiel dans
l”Apocalypse", 442.
104 Cf. VANHOYE, A., “L” utilisation du livre d” Ézéchiel dans l”Apocalypse”, 466.
Uma outra proposta é a de M. D. Goulder105. O autor parte do pressuposto de
uma clara sistematização no uso da profecia, tendo em vista que o Apocalipse
seguiria o esboço traçado por Ezequiel. Para tanto, propõe um distanciamento da
análise literária
106 e uma aproximação com a explicação litúrgica107, além do
alinhamento entre o Apocalipse e o calendário judaico
108.
O padrão das referências de Ezequiel no Apocalipse indicaria mais que uma
acidental similaridade entre os dois textos; o autor do Apocalipse, ao tomá-las, tê-las-
ia tornado mais explícitas.
A explicação litúrgica preconiza a possibilidade de o autor do texto
neotestamentário ter ouvido as passagens de Ezequiel e as ter interpretado em
perspectiva litúrgica. Estas, ao serem introduzidas no texto do Apocalipse, sofreriam
um desenvolvimento em semanas litúrgicas sucessivas. O principal foco deste
desenvolvimento seria conduzir a uma interpretação de suas visões direcionando-as
105 Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies”, NewTestStud 27
(1981) 342-367.
106 De acordo com o estudo de Goulder, a análise literária contemplaria a possibilidade do material do
Ap ter sido composto a partir de um uso aparente e limitado ao texto de Ez. Esta hipótese foi
posteriormente classificada como implausível pelo próprio pesquisador.
107 Sobre a índole litúrgica do Apocalipse ver: CABANISS, A., “A Note on the Liturgy of the
Apocalypse”, Interp 7 (1953) 78-86; SHEPHERD, M. H., The Pascal Liturgy and the Apocalypse.
London, 1960; GRASSI, J. A. “The Liturgy of Revelation”, The Bibel Today 24 (1986) 30-37;
VANNI, U., L” Apocalisse, Una Assemblea liturgica interpreta la storia. Brescia, Qiqaion, 1988; do
mesmo autor, “Liturgical dialogue as a literary form in the book of Revelation”, NewTestStud. 37
(1991) 348-372; “L” annuncio e l” ascolto della Parola di Dio nel contexto della liturgia: la prospettiva
dell”Apocalisse”, RivLtg 70 (1983) 659-670; PRIGENT, P., Apocalypse et Liturgie. Paris, Lausanne,
1981; JÖRNS, K.-P., “Proklamation und Akklamation: Die antiphonische Grundordnung des
frühchristlichen Gottesdienstes nach der Johannesoffenbarung”. In BECKER, H., - KACZYNSKI, R.,
(ed.) Liturgie und Dichtung, I, St. Ottillien, 1983; COTHENET, E., “La liturgie dans Apocalypse”. In
Exégèse et Liturgie, Paris, 1988; RUIZ, J.-P., “Betwixt and Between on the Lord”s Day: Liturgy and
the Apocalypse”. In LOVERING, R. H. Jr., SBL Seminar. Papers 31, Atlanta, 1992; VOORTMAN, T.
C., and J. A. Du RAND, “The Worship of God and the Lamb: Exploring the Liturgical Setting of the
Apocalypse of John”, Ekklesiastikos Pharos 80 (1998)56-67; NUSCA, R. A., “Liturgia e Apocalisse.
Alcuni aspetti della questione”. In Bosetti, E., Colacrai, A., Apokalypsis. Percorsi nell” Apocalisse di
Giovanni. Assisi, Cittadella Editrice, 2005.
108 Gounder oferece um gráfico onde dispõe em colunas o calendário das festas judaicas, o
Apocalipse e Ezequiel. As leituras dos textos estariam intimamente ligadas entre si e com o período
das festas judaicas. Esta linearidade tornou-se possível pelo caráter aglutinador da liturgia. Cf.
GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 353-360.
Este tema foi ainda aprofundado por Goulder um outro trabalho. Cf. GOULDER, M. D., The
Evangelist”s Calendar. London, SPCK, 1978.
para a adoração109. Desta forma, Ezequiel teria função primordial na arquitetura
litúrgica do Apocalipse.
A característica principal da hipótese litúrgica estaria no fato de ambos os
livros, Ezequiel e Apocalipse, necessitarem serem lidos ciclicamente, ou seja, quem
lê um texto, deveria fazê-lo do ponto onde parou o anterior
110. O alicerce desta tese
encontra-se na divisão do Apocalipse em perícopes de redação litúrgicas que
poderiam ser acomodadas à estrutura da profecia de Ezequiel.
Goulder dedica especial atenção aos seguintes textos: Ap 4 e Ez 1; Ap 5 e Ez
2-3,15; Ap 6,1-8 e Ez 5; Ap 6,9 e Ez 6; Ap 6,12-7,1 e Ez 7; Ap 7,2-8 e Ez 9; Ap 8,1-5
e Ez 10; Ap 10,1-7 e Ez 12; Ap 10,8-11 e Ez 2,1-3.15; Ap 11,1s e Ez 40,41-43; Ap
11,8 e Ez 16, 43-63; Ap 14,6-12 e Ez 23,31-35; Ap 17,1-6 e Ez 23,16; Ap 18,9-24 e
Ez 26-27; Ap 20,7-10 e Ez 38; Ap 21 e Ez 40-48; Ap 22,1s e Ez 47.
A dependência literária do Apocalipse em relação a Ezequiel, segundo Jeffrey
Marshall Vogelgesang
111, poderia ser demonstrável através; das seguintes
situações
112: o uso de motivos inspirados em Ezequiel; o uso de material de Ezequiel
que não aparece em outro texto judaico; de semelhanças verbais entre os textos,
indicando mais do que um simples reconhecimento do texto de Ezequiel; e o
seguimento da ordem de Ezequiel na macro-estrutura do Apocalipse
113. Por fim,
109 A hipótese litúrgica pode ser assim sintetizada: Ez 1-10 (11) e Ap 4,1-8,5 onde possuiria um tipo
de correlação característica de uma harmonização de discursos litúrgicos.
Ap 1 (1,10), sugere que a visão do autor neotestamentário ocorre “no dia do Senhor”, ou seja dentro de
um contexto litúrgico.
Por último, Ap 1,3 é proposto como um exemplo claro de que a intenção do autor é que o seu livro seja
lido em um ambiente litúrgico. Este, de fato, seria, na opinião de Goulder o Sitz im Leben de todo o
Novo Testamento. Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 349-
350.
110 Cf. GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 350.
111 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation. Cambridge,
Harvard University, 1985.
112 A tese de Vogelgesang pode ser apresentada em quatro pontos essenciais: dependência Apocalipse
em relação a Ezequiel; a Nova Jerusalém: Ap 21-22 e Ez 40-48; visão do Trono de Deus: Ap 4 e Ez 1;
abertura dos selos: Ap 1; 5; 10 e Ez 1,28b-3,14.
113 Vogelgesang entende que as semelhanças encontradas entre os dois livros tornam evidentes as
relações entre os dois textos. Esta hipótese é sustentada pelo resultado de certos problemas exegéticos
como: Ap 4,6b; 5,6 e Ez 1,5 no que se refere à fonte em Ezequiel e as relações entre textos que seguem
a mesma ordem. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation,
24-58; 65-66.
Vogelgesang propõe que os textos utilizados pelo Apocalipse seriam apresentados à
luz das tradições apocalípticas
114.
Partindo da hipótese de uma dependência do Apocalipse com relação a
Ezequiel, Vogelgesang sugere os textos de Ez 1,1-3,14 e Ap 1,4-5,10 e Ap 21-22 de
Ez 37; 40-48 para análise.
A Nova Jerusalém de Ap 21-22 e Ez 40-48, além de uma dependência literária
percebida através das semelhanças entre os dois textos, levaria a uma mudança
desconcertante: a figura do Templo central em Ez 40-48 encontrar-se-ia ausente no
Apocalipse, lá estaria a Nova Jerusalém, a Cidade Santa
115. Esta reorientação teria
uma probabilidade mínima de ser acidental. A questão seria compreender por que o
autor sagrado desconsiderou o símbolo do Templo em sua descrição da Nova
Jerusalém
116.
114 O texto de Ezequiel foi considerado como aquele que tem maior caráter apocalíptico dentre as
fontes usadas pelo Apocalipse. Muito embora o autor sagrado distancie-se intencionalmente destas
tradições. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 150-
170.
115 São seis os exemplos de transformações apresentados por Vogelgesang:
a) Ap 21,13 descreve as direções dos portões da cidade considerando o Texto Hebraico de Ez 42,16-
19, onde o Templo é descrito.
b) Ap 21,1 descreve a cidade como o lugar da glória de Deus, enquanto em Ez 43,5 a glória de Deus
enche o Templo.
c) Ap 21,14 descreve as fundações das muralhas da cidade, ao passo que Ez 41,8 menciona as
fundações das câmaras laterais do Templo.
d) Ap 21,15-17 é a cidade que foi medida, enquanto em Ez 40,3ss, são as várias partes do Templo.
e) Ap 21,14-15.17.18-19 descreve as muralhas da cidade, enquanto Ez 40-48 toda menção de
muralhas recorre ao Templo.
f) Enquanto o limite entre o sagrado e o profano é estabelecido pelo Templo e suas muralhas em Ez
42,20; 43,8; 44,1-23; em Ap 21,27 e 22,14-15, a cidade, com suas muralhas e portões estarão sempre
abertas, mas nada de profano ou impuro entrará nela. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation
of Ezekiel in the Book of Revelation, 76-78.
116 A resposta encontra-se baseada em dez pontos: a) Ap 21,3 refere-se a Ez 37,26-27, porém
modifica de modo significativo sua fonte; b) Ap 21,10; 22-1-2 modifica a perspectiva de Ez 40,2
situando a Nova Jerusalém em uma planície e não mais sobre o Monte Sião, por esta razão,
Vogelgesang interpreta esta modificação como um sinal da “democratizaçao” que o autor
neotestamentário faz de Ezequiel, tornando a cidade accessível; c) Ap 21,11 e outros textos indicam
que toda a cidade desce da glória de Deus como um brilhante com todo esplendor, considerando que a
glória de Deus retorna ao templo de Ez 43; d) Ap 21,16-17 apresenta a cidade com dimensões
substancialmente maiores do que aquelas da cidade de Ezequiel. Vogelgesang observa que as medidas
da Jerusalém Celeste correspondem à dimensão do mundo helenista.; e) Ap 21,12.17-18 e Ez 42,40;
43,8 o autor sagrado transformou a função que inspirou Ezequiel ao conceber a Nova Jerusalém; f) Ap
21,19-20 ecoa Ez 28,13, quando aborda a descrição das jóias do rei de Tiro, mas sem alterar o seu
significado; g) Ap 21,3 transfere a inspiração do Templo de Ezequiel para a Nova Jerusalém; h)
Vogelgesang argumenta que o autor sagrado altera o ambiente campestre de Ez 40-48 para um
ambiente urbano em Ap 21,9-22,5; i) o autor sagrado emprega os modelos das cidades Helenistas e
Romanas em acréscimo a Ez 40-48, na formulação de sua idéia de Nova Jerusalém; j) a Nova
A conseqüência desta reorientação teria como objetivo uma “democratização”
do privilégio que Ezequiel aplicou tão somente a Israel. Esta releitura traria uma
universalização da visão de Ezequiel da Nova Jerusalém e um radical
redirecionamento de Ez 40-48.
Esta democratização poderia ser encontrada também em Ap 4. Nesta seção, a
dependência literária de Ez 1 estaria em diálogo com uma série de outros textos e
outras tradições literárias recebendo, também destas, suas inspirações. A
democratização aliada a uma desmistificação na experiência revelatória introduzida
pelo autor do Apocalipse dar-lhe-iam uma maior sobriedade.
Com este pressuposto, Vogelgesang faz um reexame detalhado da
reinterpretação de Ez 1 em Ap 4, considerando que os procedimentos utilizados
seriam variados: condensação, ecleticismo, abreviação, concretização e simplificação
e consciente alteração de matizes de detalhes
117.
Vogelgesang demonstra especial atenção com relação ao modo de utilização e
o impacto da literatura merkabah
118 e hekhalot119 no Apocalipse. O autor sagrado
compreenderia bem estas tradições e possuiria acesso a elas. No entanto, teria
imposto a estas alterações deliberadas
120. Sendo assim, o emprego das tradições
merkabah e da profecia de Ezequiel estariam de acordo com o conceito de
democratização proposto por Vogelgesang.
Jerusalém é apresenta como a “Babilônia redimida”. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation
of Ezekiel in the Book of Revelation, 73-113.
117 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 169-187.
118A tradição merkabah (trabalho ou feito) é uma antiga prática mística de ascensão celestial
associada à visão de Ezequiel da carruagem divina e do Trono da Glória no céu. Cf. UNTERMAN, A.,
Dictionary of Jewish Lore & Legend. London, Thames and Hudson, 1991. Traduzido por Paulo
Geiger, Dicionário Judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003
2
, 160.
Vale destacar que com a tese de uma “democratização” da merkabah o autor do Apocalipse distancia-
se dos desvios desta tradição que entendia uma proximidade entre este mundo e a esfera transcendente.
Diverge também quanto à acessibilidade ao Trono divino por meio de jejuns e outras práticas.
119 A respeito desta literatura ver: HALPERIN, D. J., The Faces of Chariot. Early Jewish Responses
to Ezekiel”s Vision. In Texte und Studien zum Antiken Judentum 16; MOHR, J. C. B., SIEBECK, P.,
1988. Ver também “Merkabah Midrash in the Septuagint”, JBL 101 (1982) 351-363.
120 Exemplo desta tradição apocalíptica merkabah pode ser encontrado em Ap 4,1; 1Enoc 14,16;
Ascensão de Isaías 6,9 no entanto, com uma distinção, o visionário possui o privilégio exclusivo de ver
aquilo que a porta oculta, na visão do autor sagrado, a porta permanece aberta facultando acesso a
todos (cf. Ap 21,25). Já a tradição apocalíptica merkabah o autor crê que a simplificação do cosmos foi
consciente da parte do autor sagrado tendo como finalidade pôr em evidência a distância entre o
mundo humano e divino. Pode-se ainda dizer que o autor sagrado distancia-se desta tradição por
mostrar o acesso ao trono destituído de obstrução. Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of
Ezekiel in the Book of Revelation, 263-277.
Estas alterações seriam o ponto chave para a compreensão do gênero
apocalíptico presente neste último livro do Novo Testamento
121. O Apocalipse seria
um livro “anti-apocalíptico”
122 tendo em vista as transformações deliberadas deste
gênero aplicadas pelo seu autor. A mensagem tornar-se-ia mais abrangente,
universalmente acessível e inteligível para todos os que tivessem contato com a
mensagem contida no livro. A motivação desta mudança estaria na Cristologia
encontrada em Ap 1; 5; 10 e nos contatos com Ez 1,28b-3,14, dentre outros
123.
A alteração da linguagem profética na perícope de Ap 16,17-19,10, despertou
o interesse de Jean-Pierre Ruiz
124. Segundo este autor, neste texto, ocorreria uma
mudança na linguagem profética do texto fonte: a metáfora da prostituta, da besta e
de Babilônia.
A terminologia cúltica, fórmulas litúrgicas e hinos doxológicos formariam
uma tríplice sustentação para o trabalho de Ruiz. O Apocalipse deveria ser lido e
compreendido na liturgia da Igreja, por ser este o seu ambiente vital por excelência.
A contribuição de Ruiz está na figura e no papel do leitor-ouvinte. Este seria
responsável por interpretar o que é lido no Apocalipse dentro do contexto litúrgico. O
leitor estabeleceria um diálogo com o texto e com o texto dentro do texto. Será a
partir deste diálogo entre o texto e seus intérpretes que o sentido polissêmico e
profundo das palavras do texto virão a lume.
Sendo assim, se antes o texto de Ezequiel era compreendido sob uma
perspectiva, agora há uma nova forma para ler e compreender esta profecia. O leitor
passaria a ser o fator determinante do significado de um texto. No campo metafórico,
este diálogo com o texto e com o texto dentro do texto, tornar-se-ia ainda mais
fecundo. A não percepção deste diálogo entre textos causaria uma perda da
121 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 282-300.
122 Quando Vogelgesang descreve o Apocalipse como um livro “anti-apocalíptico” refere-se à
transformação deliberadamente imposta a este gênero para significar uma nova mensagem, contrária
ao que o gênero apocalíptico, normalmente, significa.
123 Neste ponto, Vogelgesang discorda de Beale que considera este contexto baseado sobre a estrutura
de Daniel. Para o autor, porém, os textos de Ezequiel e Daniel adquirem novo significado que os
tornam mais aquecíveis. Esta mesma tese já foi proposta por Adela Yarbro Collins que considera estes
textos carentes de uma melhor explanação.
124 Cf. RUIZ, Jean-Pierre, Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation o f Prophetic Language in
Revelation 16,17-19,10. Frankfurt; New York, Peter Lang 1989.
compreensão do texto final. Portanto, a chave hermenêutica do Apocalipse seria dada
à comunidade, aos leitores-ouvintes, os legítimos intérpretes do texto.
A pesquisa de Steve Moyise
125 sobre o Apocalipse caracteriza-se pela
mudança de método de trabalho. Até o presente momento, a pesquisa dedicara-se a
uma abordagem que prestigiava mais a exegese, Moyise propõe uma metodologia
cuja ênfase encontra-se na hermenêutica, a intertextualidade
126. A teoria da
intertextualidade foi empregada como um recurso para melhor compreender o modo
pelo qual o autor sagrado se apropria dos elementos do Antigo Testamento e os aplica
em um outro contexto literário, dando-lhes novos significados ou nova compreensão.
Os novos significados teriam sua origem na intenção autoral e no leitor. O
autor do Apocalipse, ao transplantar o texto de Ezequiel para o Apocalipse, não o
teria feito como um decalque. O texto teria sofrido um processo de reelaboração.
Com este procedimento, o conceito dependência literária tornar-se-ia livre de uma
visão escravizante e concederia ao autor sagrado uma independência para transformar
significados e imagens.
A transformação de significados de um texto foi estudada a partir dos c. 4-5,
onde o Cristo é apresentado simultaneamente como um Leão e um Cordeiro. Esta
imagem seria chave para compreender a hermenêutica de substituição elaborada pelo
autor do Apocalipse. O leitor seria convidado a estabelecer uma substituição de uma
idéia pela outra.
A hermenêutica de substituição, segundo Moyise, poderia ser observada em
Ap 4 quando este recorre a muitos textos vétero-testamentários da visão do Trono (cf.
1Rs 22; Is 6; Ez 1; Dn 7), a tradições de Qumran e do misticismo da merkabah
127,
mas o recurso a Ezequiel predominaria nesta visão.
Esta hermenêutica de substituição ocorreria principalmente em Ap 5,5-6, onde
o Cristo foi comparado a um Leão e a um Cordeiro. Por isso, a partir da composição
do Apocalipse, nos textos antigos onde anteriormente se lia leão, agora, dever-se-ia
125 Cf. MOYISE, S., The Old Testament in the Book of Revelation.
126 Não entraremos em detalhes sobre esta nomenclatura neste momento. No terceiro ponto deste
primeiro capítulo teremos um espaço próprio para esta análise.
127 Moyise ressalta semelhanças entre estas tradições e Ez 1, porém com notáveis mudanças. As rodas
que Ezequiel contempla poderiam estar aproximas à carruagem de fogo que se move pelos céus tão
peculiares às especulações de Qumran e da merkabah. O autor do Apocalipse, porém, eliminou este
aspecto da visão.
ler cordeiro e no lugar de vitória do Messias, a vitória pela cruz128. No Apocalipse, o
Cristo crucificado retratado como um Cordeiro eleva a imagem do messias
conquistador de Gn 49,9-12, onde se tem a figura do Leão com menção a Judá
129.
Ap 5,5-6 teria sido deixado em “estado de tensão” pelo autor sagrado, para forçar o
leitor a interpretar as imagens propostas
130.
Esta análise indicaria que a presença do corpo profético e das tradições do
Antigo Testamento no Apocalipse se daria de maneira orgânica
131, corroborando a
noção de intenção do autor e esta seria decisiva para a compreensão do significado do
texto
132.
A intenção do autor e a capacidade de apreensão do leitor seriam decisivas
para a compreensão da Cristologia impressa nos capítulos 4-22
133. O texto estaria
em um estado de tensão e, por isso, apresentar-se-ia de forma não evidente. Somente
aquele que traz consigo a noção proposta pelo texto atual, bem como pelo texto
antecedente, seria capaz de compreendê-lo. Em outras palavras, o leitor deveria
possuir em sua memória os textos do Antigo Testamento ou do Novo Testamento
aludidos pelo autor sagrado e, deste modo, poderia estabelecer os contatos
necessários para interligar os diversos temas que o autor apresenta de forma velada
128 Esta tese foi defendida também por Caird. Cf. CAIRD, G. B., A Commentary on the Revelation of
St. John the Divine. London, A & C Black; New York, Harper & Row, 1966, 75.
129 Nesta perícope Bauckham entende que existe uma linguagem militar, como também em 22,16. Cf.
BAUCKHAM, R., The Clímax of Prophecy. Studies on the Book of Revelation. Edinburgh, T & T
Clark, 1993, 233.
Segundo Moyise, o autor sagrado não repudiaria a apocalíptica militar, mas lança mão deste recurso
militar em um sentido não-militar. A vitória final estaria pautada na não-violência, ela teria sua origem
na escatologia. O mal será vencido pela via da não-violência, pela intervenção de Deus. Cf. MOYISE,
S., “Does the Lion Lie down with the Lamb?” In MOYISE, S. (ed.) Studies in the Book of Revelation.
Edinburgh & New York, T & T Clark, 2001.
130 Semelhante é o caso de Ap 1-2, a visão inaugural onde a escritura foi construída e modelada sobre
Dn 10,5-6 e suplementada por Jz 5,31; Is 11,4; 49,2 e Ez 1,24. A imagem descrita a partir desta
amalgama de textos não é desconhecida pelos leitores eles são capazes de desvelar o personagem e
reconhecer nele o Cristo; possuem uma concepção da pessoa de Jesus, fizeram uma experiência
pessoal, portanto a visão apresentada possui uma nova luz de interpretação agregada às tradições sobre
a transfiguração do Senhor (Mt 17,2). O presente conhecimento torna-se luz que ilumina e interpreta a
visão.
131 Este argumento segue a opinião de Bauckham. Cf. BAUCKHAM, R., The Climax of Profhecy,
230.
132 Cf. MOYISE, S, The Old Testament in the Book of Revelation. JSNTSup, 115. Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1995, 120.
133 Moiyse considera a intenção do autor um meio útil para a compreensão do Apocalipse, além disto
seria um critério para decidir se o Apocalipse oferece um significado novo a textos velhos (Moyise) ou
simplesmente dá a textos velhos uma significação nova (Beale)? Cf. MOYISE, S., “Authorial Intention
and the Book of Revelation”, AUSS 39 (2001) 35-40, 35.
combinando textos e símbolos. Teríamos assim, um diálogo do texto com outros
textos e dentro do próprio texto. Por isso, a partir de Moyise, a intertextualidade
criaria um espaço para a análise do contexto do Antigo Testamento no Novo
Testamento, particularmente no Apocalipse.
Um exemplo destas mudanças impostas ao texto antecedente seria Ez 37-48 e
sua apreensão em Ap 20-22. Neste último, a descrição da Nova Jerusalém envolveria
uma rede complexa de insinuações, de surpreendentes omissões do autor sagrado do
Templo de Deus, ou melhor, ele não omitiria simplesmente, transferiria isto em sua
descrição da Nova Jerusalém. No texto de Ezequiel mede-se o Templo, no texto do
Apocalipse a cidade é que será medida; em Ezequiel a glória de Deus enche o
Templo, no Apocalipse a glória de Deus enche a cidade
134.
Moyise destaca ainda que os textos de Ezequiel mantiveram a mesma
seqüência no Ap: Ez 1 e Ap 4; Ez 9-10 e Ap 7-8; Ez 16 e 23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap
18; Ez 37-48 e Ap 20-22. Apesar disto, considera difícil perceber qual livro seria
mais influente em relação aos outros. De fato, não seria intenção do autor do
Apocalipse preterir ou preferir uma fonte em detrimento de outras.
A mesma ênfase no estado de tensão em que se encontram os textos do Antigo
Testamento no Novo Testamento, sinalizada por Moyise, marca também o estudo de
Paul Decock
135. A intertextualidade seria um espaço onde se poderia explorar o
permanente estado de tensão entre o contexto antigo e o novo. Com isto, Decock
distanciar-se-ia das abordagens tradicionais que, de modo geral, considerariam a
dependência de Ezequiel extinta logo quando o autor sagrado encerra a composição
de seu texto
136.
A intertextualidade teria sido utilizada por alguns como um instrumento em
muito semelhante às antigas pesquisas do modelo tradicional de fontes e como
134 Segundo Fekkes, a estrutura de Ap 21,1-22,5 estaria alicerçada no texto de Isaías, porém não de
maneira exclusiva, outros textos do Antigo Testamento que expressam oráculos de salvação
escatológica cuja temática é a nova criação, a aliança, o templo e a nova Jerusalém estariam presentes
simultaneamente nesta estrutura, donde conclui ser a imagem nupcial o cerne da evocação do autor
sagrado sobre a nova Jerusalém. Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of
Revelation. Visionary Antecedents and their Development, 120.
135 Cf. DECOCK, P.B., “The Scriptures in the Book of Revelation”, Neotestamentica 33, 1999, 373-
410.
136 Cf. DECOCK, P.B., “The Scriptures in the Book of Revelation”, 404.
influência segundo a crítica de Alison Jack137. A intertextualidade, para Jack,
destinar-se-ia a compreender o modo pelo qual um texto assimilaria um outro que lhe
é anterior e que teria neste novo texto a plenitude de seu significado. Para tanto, ela
apresenta um estudo de Ez 37 e seu uso em Ap 11 e o texto de 4Q385 e conclui que a
mensagem de Ezequiel de conforto teria sido transformada em recompensa divina
para aqueles que sofrem por permanecerem fiéis
138.
A via da intertextualidade foi considerada por Sverre Bøe
139 como a mais
plausível para descrever o uso de Ez 38-39 por Ap 19,17-21; 20,7-10. Para tanto,
considera as transferências de nomes, temas e motivos de um contexto para o outro.
Concorda que os c. 40-48 de Ezequiel foram usados pelo autor sagrado como meio de
realçar o fato de a cidade escatológica não possuir um templo e reivindica que recurso
semelhante foi empregado no uso do material de Gog.
Os textos de Ez 38-39 e Ap 19,17-21; 20,7-10 possuem, segundo o autor,
semelhanças relacionadas a nomes, tamanho do exército, um período anterior de paz,
Deus como o vencedor sem participação humana, incêndio do céu, além de
coincidências de vocabulário como o exército que é reunido e parte para a batalha.
Porém, também há diferenças significativas como a introdução de Satanás, Magog
como um antagonista adicional e o fato de a batalha ser seguida pelo julgamento
final. Não fica claro se o autor opta pela tensão dialógica ou por uma desconstrução
dos textos anteriores.
Apesar de o procedimento intertextual ter sido concebido por outros
pesquisadores como o mais adequado para o estudo do Apocalipse
140, David
Mathewson
141, por sua vez, não emprega a teoria literária da intertextualidade
preferindo trabalhar com a noção de tensões, de interações entre os textos do Antigo
Testamento e do Apocalipse. Estas poderiam ser detectadas em Ez 40-48 quando
137 Cf. JACK, A., Texts Reading Texts, Sacred and Secular. JSNTSup 179. Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1999.
138 Cf. JACK, A., Texts Reading Texts, Sacred and Secular, 124.
139 Cf. BØE, S., Gog and Magog. Ezekiel 38-39 as Pre-text for Revelation 19,17-21 and 20,7-10.
Tübingen, Mohr Siebeck, 2001.
140 Cf. DECOCK, P.B., “The Scriptures in the Book of Revelation”; JACK, A., Texts Reading Texts,
Sacred and Secular; BØE, S., Gog and Magog. Ezekiel 38-39 as Pre-text for Revelation 19,17-21 and
20,7-10.
141 MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth. The Meaning and Function of the Old
Testament in Revelation 21.1-22.5. JSNTSup 238. Sheffield, Sheffield Academic Press, 2003.
integrado em um novo contexto de Ap 19-22, quando receberiam a interação de
outros textos proféticos que abordariam o tema da escatologia em toda a cidade
formando um complexo de mútua interpretação textual. De modo mais genérico
encontramos as insinuações contínuas de uma multiplicidade de textos onde o autor
sagrado cria uma pluralidade de efeitos semânticos e associações articulando a
esperança em uma salvação escatológica.
Em síntese :
O estudo de uma dependência literária do Ap com relação a Ezequiel
predominou nas últimas décadas do século passado. Vanhoye marcou a pesquisa ao
estabelecer critérios para decodificar o modo como o texto de Ezequiel foi assumido
pelo Apocalipse. A gradação pode oscilar entre a simples presença de uma expressão
até perícopes maiores. A genialidade do autor poderia ser percebida em cada um
destes modos de apreensão do texto mais antigo, pois em cada um dos critérios o
autor interfere no texto e o remodela no novo texto. Particularmente, este efeito
poderia ser decodificado em Ap 20-22 e Ez 40-48.
A intenção do autor seria a causa principal destas alterações. Estas se dariam
de forma ordenada e atrelada ao escopo teológico do texto do Apocalipse.
A ordenação do autor sagrado ao usar os textos proféticos foi percebida
também por Goulder, porém o critério ordenativo na escolha de textos vétero-
testamentários poderia ser entendido sob o prisma da liturgia. A estrutura do
Apocalipse estaria plasmada sobre a semana litúrgica e as festas do calendário judeu-
cristão. Esta característica faculta uma leitura cíclica dos livros. Em cada semana uma
leitura de Ezequiel sucede a do Apocalipse e as duas dentro do contexto das festas
judaicas possibilitariam uma visão mais ampla do motivo da presença de um texto
dentro de outro texto e dentro do contexto litúrgico. Este tornar-se-ia o ambiente
natural para a meditação e compreensão do próprio texto.
A democratização e desmistificação formam o cerne da pesquisa de
Vogelgesang sobre a dependência literária entre Ezequiel e o Apocalipse, entre
Apocalipse e as tradições da mística judaica. A democratização foi particularmente
aplicada a Ez 40-48 e Ap 20-22, quando são ampliadas as imagens de Ezequiel com
vistas a atingir um maior número de beneficiados. Os privilégios de uma nação são
agora de toda a nação redimida pelo evento da cruz.
As tradições judaicas da merkabah encontrariam na desmistificação um
depurador que refrearia todo exagero a ela peculiar, permitindo apenas a entrada de
elementos que interessavam à natureza ascética da intenção do autor. A intenção do
autor neotestamentário e a liberdade do autor possuiriam a função de controladores
diante da abrangência de material disponível.
Em uma linha mais hermenêutica, Ruiz parte do contexto litúrgico e de uma
linguagem múltipla e infinita de significados decorrentes da interpretação dos
leitores/ouvintes do Apocalipse. O leitor do Apocalipse é convidado a estabelecer um
diálogo com o texto e como texto dentro do texto.
Ap 19,1-10 seria uma evidência deste procedimento, pois os leitores serão
participantes na interpretação do livro e não meros espectadores do drama
apresentado diante deles. Quando esta percepção não for possível, em decorrência da
falta de conhecimento dos textos vétero-testamentários presentes no novo texto, o
leitor padecerá o ônus da não-compreensão do texto a ele oferecido.
O procedimento intertextual introduzido no estudo do Apocalipse tornou mais
visível o modo como o autor do Apocalipse tomou os textos do Antigo Testamento e
os aplicou ao Novo Testamento. Moyise segue seus antecessores quando diz que a
intenção do autor é a grande responsável pelas mudanças impostas ao texto de
Ezequiel no Apocalipse. Esta seria também a causa dos novos significados e da nova
compreensão que receberam no texto do Apocalipse. O dado novo poderia ser
indicado através da chamada hermenêutica de substituição, que afetaria não só os
textos vétero-testamentários envolvidos na perícope, como também as tradições
judaicas e Qumrânicas a que o autor do Apocalipse tivesse tido acesso.
O leitor/ouvinte e a intenção do autor seriam os elementos necessários para
compreender a seção de Ap 4-22. O texto permaneceria em estado de tensão, no
sentido de aguardar que aquilo que ele porta venha a ser aprendido pelo leitor. Para
isto, o conhecimento prévio dos textos é imperativo.
A intertextualidade abriria uma perspectiva na leitura/compreensão dos textos
e permitiria perceber um texto mais antigo ainda vivo no novo texto e as implicações
deste diálogo entre textos para o próprio texto e para o leitor. A vivacidade do texto
antecedente no mais recente ofereceria à intertextualidade a capacidade de “reavivar”
textos considerados estagnados pelo fato de terem sido usados em outros textos.
1.3 As diversas abordagens para o tratamento da relação entre o Antigo
Testamento, as tradições judaicas e o Apocalipse
O texto do Apocalipse gerou desconforto em alguns momentos da pesquisa
por ser portador de inúmeros fenômenos lingüísticos, bem como da utilização de
elementos oriundos da apocalíptica. Conseqüentemente, seria frutuosa a utilização do
Método Histórico-Crítico e das tradições judaicas para uma melhor compreensão do
modo como o autor sagrado apropria-se destas estruturas gramaticais e dos conceitos
apocalípticos.
1.3.1. Na linha da exegese tradicional
a) Utilização do Método Histórico-Crítico
Devido à sua complexidade, o texto do Apocalipse despertou inúmeras
pesquisas. Os fenômenos lingüísticos empregados pelo autor para compor seu texto e
sua mensagem teológica causaram desde a perplexidade diante da linguagem
utilizada até a estupefação diante da grandiosa visão litúrgica que perpassaria todo o
livro.
Os fenômenos lingüísticos encontram-se basicamente em três linhas de
trabalho. A primeira com Robertson, que entende ser o autor sagrado um inapto na
sintaxe grega. Como conseqüência, surgiriam os solecismos que conferiram ao texto
uma fisionomia única e um estilo inimitável142. Esta inaptidão seria ainda a causa de
alguns barbarismos
143. Com Charles, temos uma investigação que visaria explicar a
presença de tantas incongruências no texto através do fato do autor sagrado pensar em
hebraico, mas escrever em grego
144.
Posteriormente, encontra-se a hipótese de uma versão do hebraico145 ou do
aramaico
146 para o grego defendida por Torrey e Scott, respectivamente. O tradutor
teria seguido tanto a ordem das palavras e reproduzido suas expressões idiomáticas
quanto imitado a gramática semita negligenciando por completo a grega
147. A
existência de um substrato hebraico é defendida igualmente por Bartira. Este
justificaria a presença das anomalias e fenômenos lingüísticos no emprego dos
tempos verbais gregos
148.
Uma síntese das propostas anteriores foi feita por Lancellotti
149. Segundo
ele, o Apocalipse atual seria uma tradução de uma versão original hebraico-aramaica.
Poder-se-ia detectar esta versão através das formas primitivas que subjazem no texto
do Apocalipse, estas corresponderiam àquelas típicas da língua hebraica. Semelhante
142 Cf. ROBERTSON, A. T., A Grammar of the Greek New Testament the Light of Historical
Research. New York, 1914, 135.
143 Cf. VANNI, U., L” Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia. Bologna, EDB, 1997
3
.
144 Cf. CHARLES, R. H., The Revelation of St. John, cxliii. Recentemente, alguns trabalhos
retomaram a tese de Charles. Cf. NEWPORT, K. G. C., “Semitic Influence on the Use of some
Preposition in the Book of Revelation”, BTr 37 (1986) 328-334; “Semitic Influence in Revelation:
Some Further Evidence”, AUSS 25 (1987) 249-256; “Some Greek Words with Hebrew Meanings in
the Book of Revelation”, AUSS 26 (1988) 25-31.
145 Cf. SCOTT, R. B., The Original Language of the Apocaypse. Toronto, 1928.
146 Cf. TORREY, C. C., The Apocalipse of John. Yale, Yale Press, 1958, 27. Pensamento análogo
pode ser encontrado em BRETSCHER, P. M., “Syntactical Peculiarities in Revelation”, CTM 16
(1945) 95-105.
147 Cf. TORREY, C. C., The Apocalypse of John, 47-48.
148 Segundo Bartira, uma compreensão adequada do uso dos modos e dos tempos, especialmente na
interpretação do perfeito, aoristo, presente e futuro resulta de grande complexidade. Quando ainda se
aguarda por um futuro, diz o autor, sobrevém um aoristo. Cf. BARTIRA, S., Apocalipsis de S. Juan.
Madrid, 1962, 582. Recentemente a complexidade da gramática grega do Apocalipse foi tratada por
Elliott. Cf. ELLIOTT, J. K., “Manuscripts of Book of Revelation Collated by H. C. Hoskier”
JournTheolStud 40 (1989) 100-111; “The Distinctiveness of the Greek Manuscripts of the Book of
Revelation”, JournTheolStud 48 (1997) 116-124.
149 Cf. LANCELLOTTI, A., Sintassi Ebraica nel Greco dell” Apocalisse. Assisi, 1964. O
pressuposto de Lancellotti encontra-se mais evidente em um artigo posterior quando fundamenta-se na
abundante presença do Antigo Testamento para indicar qual seria o ambiente cultural onde nasce e
move-se o escrito. Cf. LANCELLOTTI, A., “L “Antico Testamento nell” Apocalisse”, Rivista Biblica
14 (1966) 369-384.
abordagem oferece Allo, quando propõe ser a gramática do Apocalipse caracterizada
por uma confusão de tempos verbais originada pelo uso de uma sintaxe hebraica
150.
A abordagem através da intenção do autor proposta por E. Cothenet postula
que o autor do Apocalipse, ao usar os textos do Antigo Testamento, transformou-os
deliberadamente com vistas ao seu objetivo teológico, o que justificaria a ausência de
citações literais
151.
A carência de citações literais, segundo Doglio, seria justificada pelo método
próprio da apocalíptica, que não conheceria a prática de uma citação direta, antes
recorreria às reminiscências e alusões
152. Entretanto, o autor do Apocalipse não teria
tomado o método em sua íntegra e, sim, atuaria sobre o texto condensando,
abreviando fórmulas e exemplificando imagens. Estas alterações indicariam que o
autor sagrado possui uma notável capacidade artística e teológica para reunir em uma
mesma cena elementos mais livres, oriundos de universos distintos e os compor
juntamente com acréscimos de forma tão original que poderia até mesmo determinar
um novo significado.
Uma nova chave de leitura, pautada no Cristo ressuscitado e inserida no
contexto litúrgico, seria a causa das mudanças de significados dos textos vétero-
testamentários no Apocalipse, na visão de Doglio
153. Esta linha de pensamento é
150 Cf. ALLO, E.-B., Saint Jean, l” Apocaypse. Paris, Librairie Victor Lecoffre, 1921, clxvii. O
mesmo propõe Schmidt. Cf. SCHMIDT, D., “Semitisms and Septuagintalisms in the Book of
Revelation”, NewTestStud. 37 (1991) 592-603.
151 Exemplos destas adaptações encontramos em Ap 4,8; o cântico proposto pelo autor do Apocalipse
possui relações estreitas com Is 6,3. O Cristo de Ap 1,7 está ligado à descrição do Filho do Homem de
Dn 7,13. Neste mesmo capítulo podemos observar outros elementos de contato que se fazem presentes
no Apocalipse: os atributos de Deus em 1,4 (cfr. Dn 7,9); a descrição e função da Besta em Ap 13 (cfr.
Dn 7,7.23-25). Dentre os livros proféticos, Cothenet considera que aquele de Ezequiel parece ter sido
alvo de uma leitura sistemática e uma utilização livre dos pressupostos que formaram o livro profético,
para isto propõe uma tabela comparativa pautando-se em Vanhoye: Ez 1 e Ap 4,1-8 e c. 10; Ez 2,8s e
Ap 5,1; 10,1-4.8-11; Ez 16 e 23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap 18,9-19; Ez 39,17-30 e Ap 19,17-21; Ez 38-39
e Ap 20,8-9; Ez 40,1-6 e Ap 11,1-2; 21, 10-27; Ez 47 e Ap 22,1-2. Cf. COTHENET, É., Il messaggio
dell” Apocalisse. Torino, Elle Di Ci, 1997, 14-15.
152 Doglio considera Ap 15,3 (cfr. Êx 15) como o único caso onde se poderia falar de uma citação
explícita. Cf. DOGLIO, C., “L” Apocalisse di Giovanni: linee di interpretazione”. In Dianich,
Severino, Sempre Apocalisse. Un testo biblico e le sue risonanze storiche. Asti, Piemme, 1998, 54.
153 A realidade litúrgica como ambiente vital do livro do Apocalipse vem sendo progressivamente
aprofundada nos últimos anos. Desenvolvem esta temática: M. D. Goulder para quem o Apocalipse
está vinculado a uma série de homilias e celebrações cristãs que devem partir de um esquema de
lecionário litúrgico com leituras de textos do Antigo Testamento e seu comentário cristão. Cf.
GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies”, 342-367. Prigent, Manns e
Shepherd reconhecem no Apocalipse a estrutura de uma liturgia pascal cristã. Cf. SHEPHERD, M. H.,
compartilhada por P. Grelot. Segundo este autor, o Apocalipse foi precedido de um
tempo de leitura refletida em textos do Antigo Testamento em ambiente litúrgico
154.
Contreras Molina
155 entende que o Apocalipse inicia-se com um diálogo
litúrgico entre o leitor e a comunidade (1,4-8) e encerra-se com outro diálogo de igual
maneira litúrgico, envolvendo diversos personagens na cena de 22,6-21. Tal estrutura
tornaria o livro essencialmente litúrgico. A importância da liturgia para a
compreensão do Apocalipse já é uma quase unanimidade na pesquisa, quer como
marco ambiental, ou também realização eclesial. A Igreja descobriria o seu mistério
durante a celebração da liturgia onde entra em comunhão com a assembléia celeste e
alcança sua meta escatológica
156.
Os trabalhos de Doglio e Grelot acenam para uma releitura dos textos vétero-
testamentários à luz do evento Cristo, ou seja, da experiência que fizeram do
Cristo
157.
The Pascal Liturgy and the Apocalypse. London, 1960 ; MANNS, F., “Traces d”une Haggadah pascale
chrétienne dans l” Apocalypse de Jean?”, Antonianum 56 (1981) 265-295; PRIGENT, P., Apocalypse
et Liturgie. Neuchâtel, 1964. Ugo Vanni tem como pressuposto do Apocalipse a assembléia litúrgica.
É dela que procede toda a experiência que o livro deseja comunicar. Cf. VANNI, U., “Il “giorno del
Signore” in Apoc 1,10, giorno di purificazione e di discernimento”, Rivista Biblica Italiana 26 (1978)
187-199.
154 Cf. GRELOT, P., “Omelie sulla Scritura nell” età apostolica”. In Grelot, P., Introduzione al Nuovo
Testamento. Roma, 1990, 207.
155 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida. Lectura Cristológica del Apocalipsis, 21.
156 O Apocalipse, na visão de Contreras Molina, possui uma característica litúrgica singular. Esta
característica teria sido cunhada a partir da expressão “Dia do Senhor” e perpassaria todo o livro. O
“Dia do Senhor”, o Domingo, é o Dia da Eucaristia, onde a Igreja celebra o mistério da paixão, morte e
ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Neste dia, o Senhor que se revela é Sumo Sacerdote que
preside a função litúrgica da Igreja (1,13). É Deus e assenta-se no Trono Celeste (5,8-11), juntamente
com o Cordeiro (5,8-10.12-14) e são aclamados na liturgia. O Espírito será apresentado sob a imagem
das sete lâmpadas de fogo que ardem perpetuamente diante do Trono de Deus (4,5). O desdobramento
do livro se daria por meio de doxologias que reconhecem não só o senhorio como também a
providência divina em todo a história da salvação (6,8-11; 8,1-6). A liturgia teria função unificadora,
une o céu e a terra. As ações de testemunho na comunidade eclesial encontrariam ressonância na
eternidade (11,15-18; 12,10-12; 15,3-4; 16,5-7; 19,1-7) e seria apresentada diante do altar de Deus
(5,8). O Cordeiro, reconhecido e aclamado na assembléia eclesial como Senhor (5,9-10.13; 12,11;
19,7) mostrar-se-ia como um título cristológico perfeitamente litúrgico. Cf. CONTRERAS MOLINA,
F., El Señor de la vida. Lectura Cristológica del Apocalipsis 21-22. Pensamento análogo poderá ser
encontrado na pesquisa de Ugo Vanni. Cf. VANNI, U., L”assemblea litúrgica si purifica e discerne
nel “Giorno del Signore”(Ap 1,10); Ap 1,4-8: Un esempio di dialogo liturgico. in, VANNI, U.,
L”Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia. Supplementi alla Rivista Bíblica 17. Bologna, EDB,
1997, 87-97; 101-114; PRIGENT, P., “Une trace de Liturgie judéochrétienne dans le chapitre XXI de
l”Apocalypse de Jean”, RecScRel 60 (1972) 165-172.
157 Na linha de releitura encontramos Halver e Ugo Vanni. Para estes, o Apocalipse seria uma
releitura tão sabiamente assimilada que manifestaria uma profunda semelhança com relação às suas
expressões, visões e grandes temas. Cf. VANNI, U., “L Apocalisse, rilettura cristiana dell” Antico
O escopo do paralelismo visa estabelecer a presença de paralelos e
coincidências entre o texto vétero-testamentário e o Apocalipse. Para tanto, recorre à
disposição dos textos em colunas paralelas. Assim revelava a adoção análoga que o
autor sagrado teria feito dos textos do Antigo Testamento
158. Outros estudiosos, no
entanto, consideram a influência teológica ou de estilo um forte recurso para justificar
a atual disposição dos textos antigos no Apocalipse
159.
A análise estrutural tem como intento atrair a atenção para a coerência
especialíssima com que o autor construiu a sua própria narrativa
160, tendo como
ponto de partida o texto em seu estado atual
161.
Por sua vez, a análise literária teria como finalidade pôr em relevo o modo
como o texto se expressa, uma acurada apreciação do texto e dos recursos gramaticais
utilizados para comunicar uma mensagem: vocabulário, gramática, fenômenos de
estilo e elementos característicos do gênero literário empregado no livro. Tornaria
possível a compreensão do cerne do texto; posteriormente, de uma exposição de seu
conteúdo; e, por fim, de uma exegese
162.
Testamento”. In GENNARO, G. de (ed.), L” Antico Testamento interpretato dal Nuovo. Il Messia.
Napoli, 1985, 445-480; HALVER, R., Der Mythos im letzten Buch der Bibel. Eine Untersuchung der
Bildersprache der Johannes-Apokalypse. Hamburg-Bergstadt, 1964, 58.
158 Cf. PASSAMA, M., Apocalypse interpreté par l” Ecriture. Paris, 1907; STÄHLING, G., 700
Parallelen. Die Quellgründe der Apokalypse. Berna, 1951; CAMBIER, J., “Les images de l” Ancien
Testament dans l”Apocalypse de saint Jean”, NRTh 77 (1955) 113-122; LOHSE, E., “Die
alttestamentliche Sprache des Sehers Johannes. Textkritische Bemerkungen zur Apokalypse”, ZNTW
52 (1961) 122-126.
159 Cf. VANHOYE, “L” utilisation du livre d”Ezéquiel dans l” Apocalypse”; MARCONCINI, B.,
“L”utilizzazione del TM nelle citazione isaiane dell” Apocalisse”, 113-136; GOULDER, M. D., “The
Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies”; FEUILLET, A., “Le Cantique des Cantiques et L”
Apocalypse. Étude de deux réminescences du Cantique dans l”Apocalypse johannique”, 321-353.
160 A tese doutoral de Ugo Vanni tem despertado inúmeros trabalhos por seu equilíbrio e respeito ao
texto do Apocalipse. Vanni entende que a própria obra ofereceria os indícios estruturais. Esta estrutura
compreenderia um prólogo e um epílogo, no entanto, o corpo da obra seria constituído de duas partes
não iguais quer na extensão, quanto no conteúdo: prólogo litúrgico 1,1-8. Primeira parte - carta às sete
Igrejas 1,9-20 visão introdutória; 2,1-3,22 as sete cartas. Segunda parte - os três setenários: setenário
dos selos: 4,1 visão introdutória; 6,1-8,1 abertura dos sete selos. Setenário das trombetas: 8,2-6 visão
introdutória; 8,7-11,19 som das sete trombetas. Setenário das sete taças: 12,1-15,8 visão introdutória;
16,1-21 derramamento das sete taças; 17,1-22,5 complemento do setenário. Epílogo litúrgico: 22,6-21.
Vanni entende que os setenários estão contidos um no outro. O que resulta na idéia de uma
recapitulação a iluminar a interpretação literária e teológica do Apocalipse. Cf. VANNI, U., La
struttura letteraria dell”Apocalisse. Roma, 1971.
161 Prigent propõe uma análise da estrutura e da exegese histórica do Apocalipse e detecta uma
incompatibilidade entre a análise estrutural e uma leitura sincrônica do texto. Cf. PRIGENT, P.,
“L”Apocalypse: exegese historique et analyse strutturale”, New Testament Stud (1978) 26, 127-137.
162 Cf. VANNI, U., L” Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia, 19-20.
b) Consideração das tradições judaicas
O recurso às tradições judaicas não seria exclusividade do livro do
Apocalipse, outros livros do Novo Testamento portariam estes elementos tais como
1Cor 10,4; Gl 3,19; At 7,53; Jd 2; 2Tm 3,8 dentre outros
163.
A presença do simbolismo animal oriundo dos apocalipses judaicos e do
Testamento de Josefo 19,8 foi defendida por J. M. Ford
164. Este incidiria sobre a
figura do Messias representado pelas imagens do Leão e Cordeiro. No entanto,
nenhuma das imagens destes apocalipses seria o Cordeiro associado ao sacrifício do
Apocalipse. A imagem do Cordeiro cunhada pelo autor sagrado e centro dos c. 4-22
teria recebido influência de Jo 1,29, que oferece um tom cristológico fortíssimo,
assim como uma promessa inaudita de recompensa para todos os que permanecerem
fiéis: um lugar ao lado de seu Pai.
As tradições judaicas da merkabah e da hekhalot no Apocalipse, segundo
Vogelgesang, não teriam sido assumidas na sua íntegra pelo autor sagrado, e sim
sofrido uma intervenção deste. De fato, o autor sagrado teria uma compreensão
profunda destas tradições propiciando alterações deliberadas, que visavam a
“democratização” das mesmas
165.
Assim é que o emprego das tradições merkabah teria ocorrido de modo
inverso em função da cristologia encontrada no Apocalipse.
Na linha temática encontramos C. Deutsch
166, que analisa os textos de Ap
21,1-22,5 sob o ponto de vista dos símbolos e a influência por eles exercida. Para a
autora, o autor sagrado mover-se-ia dentro de uma matriz simbólica da Bíblia
Hebraica além de outras tradições judaicas. Particularmente deterá atenção sobre
algumas categorias temáticas como: Jerusalém e a noiva Is 49,18; 61,10; 62,5;
Jerusalém e o templo Ez 40-48; 1Rs 6,20; a nova Jerusalém e a nova criação Is 65,17;
Ez 47,1-12; Gn 2, 9-10; Zc 14,8 e associação na Nova Jerusalém Is 52,1; 60,3-5; Ez
44,9; 1Sm 7,14. Na opinião da autora, para cada um destes temas, o autor sagrado
163 Cf. MOYISE, S., The Old Testament in the New, 128-138.
164 Cf. FORD, J. M., Revelation. New York, Garden City, 1975, 30-31. 56.
165 Cf. VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation, 263-277.
166 Cf. DEUTSCH, C., “Transformation of Symbols: The New Jerusalem in Rev 21,1-22,5”, ZNW 78
(1987) 106-126.
estabeleceu uma trama bíblica com imagens do Segundo Templo com o objetivo de
articular sua esperança na realidade escatológica.
O clímax da presença de textos do Antigo Testamento na experiência
visionária do autor sagrado, na visão de G. K. Beale
167, encontrar-se-ia no texto de
Ap 21,1-22,5, uma vez que muitos textos antigos estariam presentes por detrás deste.
Para tanto, recorre a outras tradições como a apocalíptica, Qumran, Targum e o
rabinismo, a fim de sedimentar a tese de que o autor sagrado usa o Antigo
Testamento influenciado por ele e respeitando-o, sem lançá-lo em um espaço aberto.
O trabalho desenvolvido por U. Sim
168, por sua vez, situa-se sobre a
presença das tradições judaicas relacionadas com o tema da Nova Jerusalém e os
paralelos com os modelos antigos de construção das cidades. U. Sim sugere uma
consideração a propósito do antigo conceito de Städtebau como contexto de Ap 21,1-
22,5, dando à nova Jerusalém a dignidade de cidade ideal para os verdadeiros
cristãos.
O conceito de cidade ideal seria extraído a partir da observação de cidades
como Roma, Babilônia, Grécia, dentre outras cidades helenistas, além de perpassar
pensadores como Platão, Aristóteles, Filon e os Mestres de Qumran. Segundo Sim, o
autor sagrado apelaria para temas que desenvolvem a esperança no Antigo
Testamento, promovendo uma antítese entre Babilônia e Roma nos c 17-18,
apresentando Jerusalém como centro do mundo e não Roma. Embora os motivos
religiosos tivessem origem no Antigo Testamento, motivos políticos e sociais teriam
sua derivação na tradição das construções da antigüidade greco-romana, cuja
finalidade seria mostrar a nova Jerusalém sob o prisma de cidade ideal, perfeita,
pacífica e viva.
Retornando à intenção do autor sagrado e à reelaboração que este teria
infligido às tradições judaicas, Pilchan Lee
169 estuda Ez 40-48 e Ap 21-22. O autor
entende a ausência do Templo na Nova Jerusalém e sua mudança para a figura do
167 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 56.
168 Cf. SIM, U., Das himmlische Jerusalem in Apk 21,1-22,5 im Kontext biblichjüdischer Tradition
und antiken Städtebaus. Bochumer Altertumswissenschaftlicher Colloquium, 25. Trier,
Wissenschaftlicher Verlag, 1996.
169 LEE, P., The New Jerusalem in the Book of Revelation: A Study of Revelation 21-22 in the Light of
its background in Jewish Tradition. Tübingen, Mohr Siebeck, 2001.
Cordeiro como intencional, fazendo com que sua finalidade possa estar na intenção
de distinguir a visão de uma Nova Jerusalém proposta pelo autor sagrado e aquela das
tradições judaicas embebida no ambiente apocalíptico da época.
Destaca ainda que deve ter havido algum precedente que tenha desenvolvido o
movimento de identificação com o templo, uma vez que Qumran por vezes
identificava-se com o templo, de igual maneira o 3Baruc o fazia com o templo e a
oração. No entanto, o autor alega ser o período da construção do segundo templo o
elemento de maior impacto sobre o texto do Apocalipse.
Este material, segundo Lee, teria sido utilizado pelo autor sagrado com
criatividade em relação às tradições judaicas e sob o seu ponto de vista cristológico.
Em conseqüência, rejeitaria a tese de um midrash ou de cumprimento, pois, detectar-
se-ia uma interpretação do autor sagrado sobre as fontes disponíveis. Lee não situa
esta interpretação em uma teoria literária, como a intertextualidade, seu ponto de vista
estaria situado na cristologia do livro.
A idéia de um novo templo, segundo Nobile
170, seria própria de Ezequiel,
mas possuiria contatos com outros textos vétero-testamentários, principalmente
deuteronomísticos e jeremianos, além da literatura judaica intertestamentária e
Qumrânica. A literatura Qumrânica traria consigo uma ambigüidade na expressão que
parece fruto de uma intenção do autor sagrado com vistas a indicar a tensão existente
entre a comunidade presente e aquela realidade edênica que Deus, no final dos
tempos, restaurará. A literatura judaica somente, ocasionalmente, estaria em contato
com o conceito de templo da Torah, principalmente aquele herdado pela dtr. Ela
versaria mais sobre a presença de um templo “lugar santo”, anterior à construção do
templo histórico ou após, mais precisamente no futuro escatológico. O jardim do
Éden é entendido como um verdadeiro e próprio santuário e é considerado o lugar
ideal onde se corresponderiam os extremos da história: a protologia e a escatologia.
Neste momento, Deus restaurará como em um novo Éden a nova Jerusalém sobre o
monte Sião e em seguida o novo templo.
170 Cf. NOBILE, M., “ “Sarò per essi un tempio per poco tempo”. Da Ezechiele all” Apocalisse: il
tragitto di un” idea”. In BOSETTI, E., COLACRAI, A., Apokalypsis. Percorsi nell” Apocalisse de
Giovanni, 127-146.
Em síntese
A abordagem através dos fenômenos lingüísticos tentou pela via da sintaxe
grega compreender os motivos que levaram o autor sagrado a impor ao texto tantas
mutilações. Em um primeiro momento da pesquisa houve uma inclinação para
considerar o Apocalipse o resultado defeituoso de um autor inábil na língua grega ou
a tradução, de igual modo mal realizada, de um material prévio de origem hebraica ou
aramaica.
A cristologia do livro e a intenção do autor sagrado representam hoje uma via
de compreensão destas mudanças ou de aparente carência de conhecimento da sintaxe
grega. A origem destas divergências estaria em seu escopo teológico e no próprio
gênero apocalíptico que, ao recorrer a um texto mais antigo, não o cita diretamente,
mas apenas como reminiscência e alusão.
Apesar da presença do gênero apocalíptico, o autor permanece livre na feitura
de seu texto e o mescla com as demais fontes que utiliza, fazendo com que os
significados herdados destas possam ser modificados dentro do novo contexto.
Contexto este agora iluminado pela liturgia, que ofereceria uma releitura a partir do
Cristo ressuscitado.
Semelhante domínio do autor sagrado poderia ser percebido no modo como
este recorreu às tradições judaicas. De fato, a presença destas revelam o
conhecimento que o autor do Apocalipse possuía sobre elas, bem como a depuração
que a elas impôs de possíveis desvios. Assim, se poderia entender a “democratização”
das antigas tradições judaicas que foram absorvidas pelo Apocalipse. Destas somente
os elementos destituídos de uma mística exacerbada, conexa com o pensamento da
Sagrada Escritura e imbuídos de uma cristologia passaram a compor o novo texto.
O mesmo processo teria atingido a escatologia presente na temática de
algumas obras da literatura judaica. Uma releitura concederia a estas a sobriedade e
uma real aproximação com as esperanças de Israel.
Poderíamos dizer que tanto o Método Histórico Crítico quanto as tradições
judaicas possuem elementos colaboradores para uma melhor compreensão do texto
do Apocalipse, porém com carências claras. A última resposta indica sempre a
cristologia do livro e a compreensão de intenção do autor sagrado como meios
possíveis de eficazmente penetrar na composição da obra e de sua teologia.
1.3.2. Na linha da intertextualidade
a) origem e desenvolvimento da teoria da intertextualidade
O termo intertextualidade pertence ao patrimônio da teoria literária. Suas
origens encontram-se no Formalismo Russo que compunha o Círculo Lingüístico de
Moscou nos anos 1914 e 1915.
Interessava ao Formalismo Russo os princípios lingüísticos de organização da
obra como produto estético, com o qual deixava claro que a imagem não constituía o
fator principal da linguagem poética, sendo apenas um dos diversos elementos que
integravam o sistema. O Formalismo Russo considerava que, mais importante do que
a criação de imagens, era a sua disposição e o seu relacionamento com outros
processos artísticos utilizados pelo escritor, visto que se verificaria na linguagem
literária uma relação posicional entre as palavras, não existente na linguagem
quotidiana. O enfoque sincrônico, portanto, teria predominado no Formalismo
Russo
171.
O Formalismo Russo foi rechaçado pelos intelectuais marxistas a partir de
1924-1925
172. Estes consideravam a tese do Formalismo desvinculada do momento
histórico e do momento político na Rússia e, por isto, o movimento foi diluído
173.
171 Este predomínio, no entanto, não foi exclusivo, outros trabalhos acenaram para o enfoque
diacrônico, como se pode observar no trabalho de Tynianov sobre a evolução literária. Neste, o autor
toma a obra e a própria literatura como um sistema e propõe que entendamos o dinamismo histórico da
literatura como uma substituição de sistemas. Levando em conta que, no sistema, os elementos
desempenham uma função, cada uma delas entra em correlação com elementos similares de outras
obras, com elementos similares que pertencem a sistemas de outras séries culturais, ou com os diversos
elementos que compõem o sistema da própria obra. A evolução seria uma mudança de relação entre os
termos do sistema, seria, portanto, uma transformação de funções e elementos formais; não se tratando
de uma renovação ou substituição súbita e total dos elementos formais, mas da criação de uma nova
função destes elementos formais, havendo diacronicamente recombinações discursivas. Cf. ROGEL,
S., Manual de Teoria Literária, Petrópolis, Vozes, 1998, 95.
172 Na visão de Wellek, a base ideológica do Formalismo Russo é uma revolta contra o Positivismo.
Cf. WELLEK, R., Conceitos de Crítica. São Paulo, Contrix, 1979. 65.
173 Com esta abruta supressão o Ocidente teve pouco acesso ao movimento. Há algumas décadas
porém, surgiu uma obra extensa em língua inglesa que permite conhecer as teorias básicas desta
corrente. Cf. VICTOR E., Russian Formalism. Haia, 1955. Do mesmo autor, Russian Formalism:
A riqueza teórica do Formalismo foi revista pelos estruturalistas em Praga,
onde, em 1926, tem início o Círculo Lingüístico de Praga. Deste surgirá Julia
Kristeva e a ela se deve o pioneirismo no emprego do termo intertextualidade
174.
Desde então, muito se tem discutido sobre o assunto
175.
Básico para compreender o que Kristeva entende por intertextualidade é sua
compreensão de “texto”. Texto, para Kristeva, poderia ser entendido como um
sistema aberto, no sentido de ser composto de um mosaico de citações, assimilações
ou transformações de outros textos
176. O texto poderia ainda ser entendido como um
mosaico composto de muitos fragmentos de importância lingüística citados de fontes
anônimas, uma colagem de pedaços de linguagem trazidos a uma proximidade
espacial e que convidam o leitor a criar um tipo de padrão através da obrigação de
dispensar algumas de suas energias interrelacionais. Com isto, Kristeva ofereceria um
elemento novo: o papel do leitor, posto que a ele caberia estabelecer os nexos
intertextuais. E estes serão tantos quantos o leitor for capaz de estabelecer.
Trabalhando desta forma, Kristeva rompe com antigas teses que falam de
influências no sentido de um texto possuir um significado idêntico no antigo e no
novo. Influência para Kristeva deveria ser entendida como prováveis intercessões
History, Doctrine. Hardcover, Yale University, 1981
3
. Outras indicações sobre o tema:
http://poeticstoday.dukejournals.org.
174 Julia Kristeva em 1966 cunhou o termo intertextualidade durante um seminário em Paris onde era
discutida a teoria do crítico literário russo M. M. Bakhtin. Suas duras críticas ao Formalismo Russo
geraram a noção de “diálogo”, que sugere um número infinito de contatos entre o remetente do texto
(sujeito) e destinatário (objeto) e a cultura do texto. Desestabilizando, assim, a tese dos Formalistas e
Estruturalistas.
Ao introduzir a expressão “dialógico espaço entre textos” Kristeva elimina a autonomia e a
univocidade de qualquer texto particular. Cf. FEWELL, D. N., Reading Between Texts. Intertextuality
and the Hebrew Bible. Louisville, John Knox Press, 1992, 29-30.
175 Para uma introdução ao tema ver: WORTEN M., - STILL J., Intertextuality: Theorias and
Pratices. Manchester, Manchester University Press, 1990.
176 Outros autores apresentam a compreensão de texto para Kristeva da seguinte maneira: como uma
crítica ao sujeito, à sociedade, às ideologias. “O texto não é o discurso de um sujeito imutável e pleno,
prévio ou posterior ao discurso. O texto é o lugar onde o sujeito se produz com risco, onde o sujeito é
posto em processo e, com ele, toda a sociedade, sua lógica, sua moral, sua economia”. Cf. PERRONE-
MOISÉS, L., Texto, Crítica, Escritura. São Paulo, Ática, 1978, 50. Em uma outra tentativa
encontramos a noção de que o texto pode ser compreendido como produtividade. Este entendimento
está fixado no que Kristeva entende por significância que é a abertura para o infinito dos sentidos,
sentido como produtividade infinita. Cf. JOBIM, J. L., (org.), Palavras da Crítica. Tendências e
Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro, Imago, 1992, 402. O texto é entendido como uma
relação dialógica entre “textos”, o texto seria assim compreendido como um sistema de códigos ou
signos. Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New” In Moyse,
S., (ed.) The Old Testament in the New. Essays in Honour of J. L. North. JSNTSup 189, Sheffield,,
Sheffield Academic Press, 2000, 14-41.
textuais que favorecem o diálogo entre textos promovendo um novo significado, ao
invés de um significado fixo ou de uma cópia plagiada de um texto
177.
A expansão do procedimento intertextual no universo literário se deve a
Greene
178 e Hollander179. Thomas Greene considera um texto não como uma pálida
imitação de um outro mais antigo, mas como seu real sucessor. Sendo assim, cada
trabalho literário possuiria uma iniciativa de revitalização, um gesto que sinaliza a
intenção de reanimar um texto mais antigo.
A esta revitalização intertextual poder-se-ia nomear como tipologia de
imitação e pertenceria à estratégia de imitação humanista. As estratégias de imitação
humanista são quatro: reprodutiva, eclética, heurística e dialética. Thomas Greene
entende por tipologia reprodutiva a percepção do autor do subtexto como vindo de
um período áureo que agora encontra-se encerrado. Tudo o que se poderia fazer é
reescrever o subtexto como se nenhuma outra forma de celebração pudesse ser
merecedora de sua dignidade. Na tipologia eclética, o autor utilizaria uma gama
extensiva de fontes, aparentemente ao acaso, sem enfatizar de modo particular
alguma delas. A chave para compreender esta categoria seria a capacidade de
encontrar materiais que pertençam a um contexto original e levaram consigo seu
177 O limite existente entre a intertextualidade e plágio foi o tema da tese de Liliane Christoff. Para a
autora, o termo plágio implica em reconhecer como legítima a noção de propriedade literária e a
fragilidade da fronteira do universo denominado plágio.
A característica de um texto plagiário está em apresentar-se como mera cópia, não avançando em
novos sentidos. Ele acontece quando há um trabalho de dissimulação da intertextualidade O critério
proposto para detectar esta dissimulação seria a análise lingüística.
O plagiador desestrutura a produção e silencia a voz do plagiado. Este, porém, não é o caso da
intertextualidade, pois esta deixa claros sinais de textos antigos em seu novo texto.
No tocante à noção de autor, Christoff propõe que este pode ser entendido como um que nasce de
outros, ou seja, um autor nasce de outros autores, sem contudo perder a sua originalidade e seu caráter
social.
Sendo assim, existe autor, existe originalidade e existe criação individual sem negar a herança cultural
e literária destes. Por esta razão, Christoff, acredita ser possível falar de uma intertextualidade que
permita a criatividade individual do autor que lança mão de um texto que lhe é anterior sem que isto
implique em uma cópia.
Por fim, Christoff, entende a intertextualidade como uma vigorosa teoria para discernir onde temos um
caso de plágio e ao contrário onde um autor exerce com criatividade a produção de um novo texto
tendo como base toda uma herança cultural. Cf. CHRISTOFF, L., Intertextualidade e plágio. Questões
de linguagem e autoria. Tese de Doutoramento, São Paulo, Unicamp, 1996. Uma síntese do trabalho
pode ser encontrada na resenha de CARVALHO, A. L. L., “Intertextualidade e plágio - Questões de
linguagem e autoria.”, Revista de Ciências Humanas 8/2 (2002) 169-174.
178 Cf. GREENE, T., The Light in Troy: imitation and Discovery in Renaissance Poetry. Yale, Yale
Press,1982.
179 Cf. HOLLANDER, J., The Figure of Echo: A Mode of Allusion in Milton and After. Berkeley,
1981.
poder evocativo quando implantado pelo poeta em um novo contexto. Com a
tipologia heurística teríamos um novo trabalho, que busca reescrever ou modernizar
um texto passado. Simplesmente não se anuncia como uma imitação do mais antigo,
mas seu verdadeiro sucessor. Por fim, a tipologia dialética se dá quando o poema se
entrelaça de tal forma com o seu precursor que já não se sabe quem é um e quem é o
outro. Cria-se um tipo de luta entre textos e entre eras que não poderia ser
solucionada facilmente.
Cada uma destas tipologias envolveria uma resposta distinta ao anacronismo e
à perspectiva histórica presente, absorvendo e mudando os textos mais antigos. Em
outras palavras, criaria um tipo de luta entre textos e entre eras cuja solução não
possuiria uma real facilidade.
A intertextualidade, na visão de Hollander, teria como pressuposto a atividade
do leitor. A ele caberia a função de, ao ler os textos, escutar os ecos em sua caverna
de significados ressonantes. Para tanto, o leitor deveria possuir acesso aos textos mais
antigos, às vozes mais antigas, o que supõe um conhecimento análogo ao do autor do
texto posterior. Uma fragmentação no eco intertextual poderia obstruir ou mesmo
deturpar a intenção do autor.
b) A intertextualidade nos estudos bíblicos
O termo intertextualidade foi introduzido na pesquisa bíblica em 1989 através
de dois trabalhos pioneiros: Intertextuality in Biblical Writings
180 e Echoes of
Scripture in the Letters of Paul
181. O primeiro deles pode ser sintetizado em três
pontos: a idéia de intertexto, segundo o qual o fenômeno do texto é considerado uma
rede de referências para outros textos; o texto sofre um processo de produção e não a
influência de uma fonte exclusiva; e o relevo concedido à figura do leitor. No
segundo trabalho, a ênfase é colocada sobre a correspondência entre um texto mais
180 Cf. DRAISMA, S. (ed.), Intertextuality in Biblical Writings. Essays in honours of Bas van Iersel.
Uitgeversmaatschappij J. H. Kok - Kampen Omslag Henk Blekkenhorst, 1989.
Quanto ao trabalho de Richard Hays vale ressaltar que ele não segue Julia Kristeva, antes apóia-se em
Hollander (1981) e Grenne (1982). Para Hays, o elemento mais expressivo da intertextualidade é a
correspondência entre um texto mais antigo e outro mais novo onde se poderia detectar a presença de
muitas vozes implícitas perceptível dentro de uma moldura textual construída a partir da junção de dois
textos.
181 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul. Yale, Yale University Press, 1989.
antigo e outro mais novo, no qual poder-se-ia detectar muitas vozes implícitas
perceptíveis dentro de uma moldura textual construída a partir da junção de dois
textos. Este elemento é entendido como o mais expressivo da intertextualidade.
Com o ingresso da intertextualidade na pesquisa exegética, uma nova
perspectiva foi inaugurada e com ela a necessidade de uma revisão da metodologia
que inclua a base da Redaktionsgeschichte
182. A Redaktionsgeschichte concentra-
se na composição dos textos, na atividade do redator e na teologia que o move, pois a
intenção teológica incidiria na redação do material. Em outras palavras, podemos
dizer que, com relação ao autor, a Redaktionsgeschichte interessa-se pelo modo como
o redator pensa teologicamente, o modo pelo qual compilou o material, o modo
através do qual manipulou tradições para processar suas intenções. Por isso, o
empenho dos autores neotestamentários estaria na composição de um novo material,
na organização da redação, na criação de uma nova unidade, como também na
redação do material já existente
183.
De maneira geral poderíamos dizer que a Redaktionsgeschichte atém-se sobre
o estado final dos escritos, que seria o produto de um rascunho dos escritos e das
fontes orais ou tradições anteriores, mas trabalhadas, editorialmente, muitas vezes.
Este vínculo permitiria falar sobre a existência de uma relação de continuidade entre
o texto final e seu precursor através de acréscimos redacionais. Esta alteração estaria
vinculada ao desejo do editor. Desta forma poder-se-ia dizer que a
Redaktionsgeschichte parte do redator e do modo como editou as tradições
disponíveis.
Logo, um texto deve ser tomado como um processo de produção e não
produto de fontes e suas influências. Sendo assim, a Redaktionsgeschichte deparar-
se-ia com os limites de sua própria investigação metodológica quando não responde
totalmente à questão sobre as conexões entre os textos e com isto abre espaço para a
182 Vorster entende como indispensável um confronto entre a Redaktionsgeschichte e as novas teorias
e métodos vigentes. A fim de comparar as aproximações e diferenças entre a Redaktionsgeschichte e a
intertextualidade e, na seqüência, os pontos ou possibilidades que uma abordagem intertextual
oferecem para a pesquisa hoje. Cf. VORSTER, W. S., “Intertextuality and Redaktionsgeschichte” in
DRAISMA, S. (ed.), Intertextuality in Biblical Writings, 15-26.
183 Cf. PERRIN, N., What is Redaction Cristicism? Philadelphia, 1970, 1.
pesquisa intertextual. Desta forma, a Redaktionsgeschichte poderia ser classificada
como precursora da intertextualidade
184, como o é o Método Histórico-Crítico185.
O procedimento intertextual encontrar-se-ia focado sobre o redator e o leitor,
pois, se o primeiro elaborou um trabalho de redação pautado em tradições, o segundo
recebe uma participação ativa no processo, uma vez que possuiria a função de
decodificar o significado do texto composto pelo redator.
Além disto, a intertextualidade dilata as fontes de trabalho para a literatura do
cristianismo primitivo e seus documentos mais antigos, a fim de perceber como
foram usadas suas fontes e a influência destas no novo documento. Esta dinâmica
pode lançar uma nova luz sobre as relações entre as histórias dos corpora
literários
186.
A dinâmica do recurso às fontes e a influência destas no novo documento
pode ser encontrada, na visão de Hays, em Rm 8,20 e o tema da vaidade do livro do
Eclesiastes
187. São Paulo teria conduzido deliberadamente o leitor para o universo
temático de Eclesiastes e faz com que “ecoe” na memória deste os conceitos e
implicações da vaidade ao reportar-se à existência terrena inapta na busca auto-
suficiente de perfeição. O eco intertextual, por menor que seja, produziria um enorme
efeito no leitor do texto. De fato, a função alusiva de um eco sugeriria ao leitor que o
texto B deveria ser compreendido à luz do texto A.
O mesmo ocorreria em 2Cor 3, quando São Paulo exalta a figura de Moisés e
de seu ministério, mas, logo em seguida, no v.16, introduz o tema de um culto
superior àquele do pacto da Aliança. Eles foram incapazes de retirar o véu, indicando
184 Cf. VORSTER, W. S., “Intertextuality and Redaktionsgeschichte”, 22.
185 A intertextualidade, segundo, Scalabrini, supõe o Método Histórico-Crítico, mas o supera no modo
como desenvolve sua pesquisa e avalia as influências entre os textos. Seu demérito estaria em ignorar a
iluminação recíproca entre os textos e a possibilidade de através desta surgir um novo dado de
compreensão. Desconhece ainda que um texto mais novo possa dar plenitude a um texto mais antigo.
Cf. SCALABRINI, P. R., “Biblia e intertestualità”, Teologia 28 (2003) 3-17. 12-13.
186 Um exemplo destas relações intertextuais poderia ser encontrado em Mc 13,5-37. O texto portaria
traços, citações e alusões ao Antigo Testamento. O procedimento intertextual elenca três pontos de
observação: a narrativa profética com relação ao futuro; o leitor é preparado para a leitura de Mc 13,5-
37 sob a perspectiva de uma “conversa com relação ao futuro”; o trabalho de Mc possuiria traços de
referência tanto com o Novo Testamento quanto com o Antigo Testamento. Cf. VORSTER, W. S.,
“Intertextuality and Redaktionsgeschichte”, 25.
187 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul, 20.
com isto a inferioridade do ministério de Moisés com a abundante glória do novo
ministério.
O eco intertextual seria o elemento mais expressivo da correspondência entre
um texto mais antigo e outro mais novo. Nele situam-se muitas vozes implícitas, mas
perceptíveis apenas em uma moldura de silêncio construído a partir da união de dois
textos
188.
Os ecos intertextuais estariam presentes também no Antigo Testamento. Estes
poderiam ser encontrados, por exemplo, no livro de Ester e suas relações com o livro
do Êxodo. Em ambos, os protagonistas são estrangeiros e se transformam em
redentores, há decretos reais, o povo está entregue à opressão em decorrência do
cumprimento das obrigações religiosas (Páscoa-Purim)
189. O livro de Ester possuiria
ainda ecos intertextuais com Dn 1-6, indicando o estilo de vida na diáspora e as
delicadas questões políticas. Os protagonistas estariam a serviço do opressor e
gozariam de sua predileção, enquanto o povo padece com a perseguição produzida
por meio de conspirações.
Um outro exemplo poderia ser encontrado em Is 65,17; 66,22 e Gn 1,1- 4.
Estes textos porém, integrariam a análise intertextual sob a perspectiva de uma
metalepse, segundo propõe Peter D. Miscall
190. Nesta, uma figura fala e conduz a
uma outra ou a muitas outras e assim, uma série de figuras são formadas. O autor
tomou duas linhas em seu trabalho: exame das palavras, frases de Gn 1 que estão
dispersas no texto de Isaías, e os contatos de Isaías com o restante do livro de
Gênesis, Êxodo e os textos do Antigo Oriente Próximo. Por fim, Peter D. Miscall
188 Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scripture in the Letters of Paul, 155.
189 As semelhanças desdobram-se ainda em outros elementos:
Êxodo Ester
Preponderância da figura de Deus Deus não é mencionado
Ambiente da corte ambiente da corte
Moisés possui Aarão como auxiliar Ester tem Mardoqueu
Moisés defende o povo diante do faraó Ester defende o povo diante do rei persa
Moisés salva o povo Ester salva o povo
Cf. FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible. Louisville,
Kentucky, Westminster/ John Knox Press, 1992, 11-20.
190 Peter D. Miscall segue a definição de alusão interpretativa de John Hollander, quando propõe o
estudo intertextual metaléptico. Cf. MISCALL, P. D., Isaiah: New Heavens, New Earth, New Book. In
FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible, 46.
conclui que esta análise favoreceria a uma nova compreensão do profeta Isaías, suas
relações com o patrimônio extrabíblico e no interior da Sagrada Escritura.
Sendo assim, a intertextualidade poderia ser detectada em nível maior e
menor. A intertextualidade, em nível maior, seriam textos que se relacionam entre si;
já intertextualidade, em nível menor, estaria relacionada a níveis lingüísticos, palavras
ou frases cujas semelhanças seriam facilmente reconhecidas, podendo ocorrer dentro
do mesmo livro.
Um outro exemplo seria a análise de Gn 12 e 20. Aqui a intertextualidade de
transferência tornaria mais evidente o discurso nos dois episódios. No processo
textual, o vocábulo esposa-irmã seria o motivo principal. A análise intertextual de
transferência permitiria ao leitor dentro de um texto conferir o significado do
segundo, isto é, uma explanação retroativa em detalhes, da primeira parte. Apesar da
falta cometida contra Sara, Abimelec e o Faraó colaboraram para a ascensão social de
Abraão. A intertextualidade de transferência afeta, de certo modo, mais
fundamentalmente que a característica delineada pela experiência sozinha
191.
Em outras palavras, poderíamos dizer que a intertextualidade de transferência
seriam as palavras cujas funções consistiriam em efetivamente marcar um texto,
criando em ambos a necessidade de responder a uma questão proposta. O significado
estaria simultaneamente dentro e fora do texto. O leitor recria os textos combinando
os episódios intertextuais com as características que possui o seu processo de
significado, de transferência.
Em síntese
A inserção da intertextualidade nos estudos bíblicos provocou uma revisão da
Redaktionsgeschichte dada sua carência de respostas para a questão das conexões
entre os textos.
Centrado no leitor e no redator, o procedimento intertextual intenciona
decifrar o significado do texto e o impacto deste sobre o autor do novo trabalho. Para
além deste universo intrabíblico, a intertextualidade observa a literatura
191 Cf. RASHKOW, I. N., “Intertextuality, Transference, and the Reader in/of Genesis 12 and 20”. In
FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible, 57-73.
contemporânea do período histórico da formação do Novo Testamento e a
possibilidade desta acarretar uma melhor compreensão da presença de fontes e seu
impacto sobre o novo texto.
A presença de uma intertextualidade provocaria no leitor um reverberar de
textos antecedentes que o colocaria frente a um caminho interpretativo pré-concebido
pelo autor sagrado. Assim, o texto A deveria ser lido à luz do texto B.
c) A intertextualidade aplicada ao estudo do Apocalipse
Os primeiros estudos modernos sobre o uso do Antigo Testamento pelo Novo
Testamento pertencem a Dodd
192 e Lindars193, cujas pesquisas abriram novas
possibilidades para uma compreensão da maneira como textos do Novo Testamento
estariam modelados sobre passagens do Antigo Testamento. O procedimento
intertextual poderia inserir-se nestas novas compreensões.
A intertextualidade foi introduzida na pesquisa do Apocalipse por Bauckham.
Na visão deste autor, o Apocalipse seria uma obra composta tanto na linguagem
como na estrutura de modo meticuloso. Portanto, cada palavra empregada possuiria
deliberada cautela por parte do autor sagrado e as alusões ao Antigo Testamento
assumiriam suma importância para a compreensão do significado do livro. Bauckham
dedicou-se particularmente aos escritos proféticos e apocalípticos
194. A característica
192 Cf. DODD, C. H., According to the Scriptures. London, Fontana, 1967.
193 Cf. LINDARS, B., New Testament Apologetic. London, SPCK, 1961.
194 O Apocalipse como o clímax da profecia foi analisado a partir de Ap 4,5; 8,5 e 11,19 e 16,18-21
com a menção de um grande terremoto e grande granizo. Embora a alusão ao terremoto não seja
proeminente na teofania do Sinai, está completamente ausente em Dt 6, ocorre em vários outros textos:
Jz 5,4-5; Ez 38,19-20; Joel 2,10; Mic 1,3-4. Lugar de destaque é dado a Ez 38 devido a seu uso em Ap
20 com os personagens Gog e Magog.
Dos c. 4-5 derivaria todo evento de violência apocalíptica presente nos c. 6-19. No entanto não só
imagens de violência procedem desta visão, dela também procederiam as esperanças contidas nos
títulos messiânicos de Ap 5,5 que não se perdem após a visão do Cordeiro, antes perpassarão o livro.
A presença de um idioma militar nos c. 5; 7; 14, faz do Messias um combatente detentor de um
exército, principalmente Ap 7,9, indicaria que o autor sagrado não pretende pôr de lado as esperanças
de Israel de um triunfo escatológico. Cf. BAUCKHAM, R., The Climax of Prophecy, 199-210.
Farmer, por sua vez desenvolve um processo hermenêutico que supera o que ele classifica de impasse
na interpretação bíblica da linguagem dominante de violência, esta possuiria uma função e não poderia
ser concebida como um fator que gera a abnegação. Cf. FARMER, R., Beyond the Impasse. The
Promise of a Process Hermeneutic. Macon, Mercer University Press, 1997.
A noção de uma linguagem militar presente no Apocalipse pode ser encontrada já em Schüssler
Fiorenza. Segundo a autora, esta estaria a serviço da teologia do livro. Cf. SCHÜSSLER FIORENZA,
E., The Book of Revelation: Justice and Judgment, 137.
constitutiva do Apocalipse seria o uso pródigo da linguagem militarista apocalíptica
em um sentido não militarista. Semelhante dinâmica seria encontrada na perspectiva
escatológica de destruição do mal. Bauckham crê ainda que o relacionamento
intertextual afetaria de igual modo às tradições judaicas e os apocalipses cristãos.
Posteriormente Steve Moyise aprofundou a aplicação do procedimento
intertextual ao Apocalipse
195. A base de seu pensamento está construída sobre
Kristeva, quando esta sugere que a intertextualidade pode ser entendida como um
diálogo entre textos, como um sistema de códigos ou signos. Desvinculando-se da
tradicional noção de influência, prefere falar de intercessão de superfícies textuais.
Por isso, quando o autor usa o termo intertextualidade, indica com ele que o
significado de um texto não é fixo, mas abre-se, quando aproximado de outros textos.
Além dos pressupostos de Kristeva, Moyise herda os de Richard B. Hays
196, no que
concerne à tipologia
197, os de Greene198, com sua imitação dialética e os de
Hollander
199, com a função do leitor.
A motivação de Moyise para empregar este novo procedimento decorre de
dois elementos: tentativa de justificar a noção de continuidade e descontinuidade
195 Moyise inicia sua pesquisa sobre a aplicabilidade da intertextualidade no texto do Apocalipse
através de dois trabalhos: MOYISE, S., “Intertextuality and the Book of Revelation”, ExpT 104 (1993)
295-298; The Old Testament in the Book of Revelation, 1995.
196 Hays assume os pressupostos de Greene e Hollander como uma possibilidade para descrever o uso
que São Paulo faz de alguns textos do Antigo Testamento. De fato, Hays ao tratar do efeito retórico
como apresentação ambígua, procura mostrar por um lado a beleza do antigo ministério de Moisés e
por outro a superabundante glória do novo ministério. É uma descrição atemporal que deseja pôr em
diálogo uma cena distante para enaltecer o seu ministério. Isto, contudo não significa que o autor de
um texto do Novo Testamento ao utilizar determinado texto do Antigo Testamento o faça no mesmo
sentido daqueles que compuseram o Antigo Testamento, antes põe em correspondência dois textos
onde o texto B deve ser compreendido à luz do jogo de palavras proposto pelo texto A, o leitor percebe
a presença de ecos dentro do texto. O eco para Hays pode produzir a ressonância entre dois textos. O
subtexto possuiria papel determinante e pode moldar a produção literária de Paulo. O texto do Antigo
Testamento não perderia, contudo, sua identidade. Cf. HAYS, R. B., Echoes of Scriptures in the
Letters of Paul, 16.
197 A intertextualidade reaviva o conceito de tipologia tanto do ponto de vista da diacronia como da
sincronia. A tipologia foi tradicionalmente reconhecida na exegese cristã como relação entre Antigo
Testamento e Novo Testamento. Uma intertextualidade tipológica supõe uma dinâmica entre textos
que situa a promessa e o cumprimento desta.
198 Cf. GREENE, T. M. The light in Troy: Imitation and discovery in Renaissance poetry, 294.
199 Hollander trabalha com a noção de que o leitor dos textos para escutar os ecos que este contém,
deve possuir afinidades com vozes mais antigas que possam assim, ressoar e produzir um som análogo
àquele do autor posterior. Sendo assim, podemos compreender que o acesso a esta cadeia de
significados pode ser perdido se o leitor já não possui contatos com a origem desta estrutura de
significados. Cf. HOLLANDER, J., Figure of Echo: A Mode of Allusion in Milton and After, 65.
presentes no Apocalipse200 e a análise do uso que o autor sagrado faz do Antigo
Testamento. Em outros termos, a intertextualidade auxiliaria na tarefa de explorar
como a fonte do texto continua a falar no novo texto e como produz novos
significados para o texto fonte, no sentido de oferecer uma melhor compreensão do
texto mais antigo, e como o autor sagrado apropriou-se destes textos.
Por outro lado, Moyise acentua que a complexidade das alusões ao Antigo
Testamento, presentes em quase todos os versículos do texto do Apocalipse,
requereria este procedimento
201. Esta necessidade decorreria de uma certa carência
de algumas categorias mais tradicionais ao tratar estes empregos textuais que chegam
até mesmo a compor uma teia de significados próprios neste último livro do Novo
Testamento.
d) Aplicação do procedimento intertextual
O emprego do procedimento intertextual na perspectiva de Moyise poderia
ser, portanto, entendido como parte de um método moderno para analisar as
200 Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and Biblical Studies: A Review”, Verbum et Ecclesia 23 (2002)
418-431.
201 O termo alusão distancia-se do termo citação que predominou no universo da pesquisa
neotestamentária no último século e provou sua ineficácia ao ser aplicada ao texto do Apocalipse
devido a complexidade de seu texto. Contudo, nos primeiros momentos da pesquisa tornou-se difícil
estabelecer um critério que identificaria a presença de uma alusão. Alguns exemplos desta etapa da
pesquisa podem ser encontrados em: TRUDINGER, L. P., The Text of the Old Testament in the Book
of Revelation; OZANNE, C. G., The Influence of the Text and Language of the Old Testament on the
Book of Revelation. Dissertação, University of Manchester, 1964; STENDAHL, K., The School of St
Matthew and Its Use of the Old Testament. Philadelphia, Fortress Press, 1968; ELLIS, E. E., Paul”s
Use of the Old Testament. Edinburgh, T&T Clark, 1957; FREED, E. D., Old Testament Quotations in
the Gospel of John. Leiden, Brill, 1965; SWETE, H. B., The Apocalypse of St John, cxl-clviii;
CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St John, lxviii-lxxxiii.
Em um segundo momento da pesquisa foi inaugurado por Beale. Este classifica a alusão em três
categorias: clara alusão, provável alusão com variações redacionais e possível alusão ou eco. Cf.
BEALE, The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of St. John, 43.
O estudo de Beale foi sucedido por uma série de outros que intencionaram estabelecer os critérios para
definir a que seria uma alusão. Contudo, o trabalho não conquistou unicidade na delimitação e
extensão da nomenclatura: eco, alusão. Cf. PAULIEN, J., Decoding Revelation”s Trumpets: Allusions
and the Interpretation of Rev 8:7-12. Berrien Springs, Andrews University Press, 1988;
VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation; RUIZ, J-P., Ezekiel
in the Apocalypse: The Transformation of Prophetic Language in Revelation 16:17-19:10; FEKKES,
Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation; BAUCKHAM, R., The Climax of
Prophecy.
justaposições202 e combinações de textos do Antigo Testamento com imagens da
tradição cristã, um artifício para entrar em tão complexo universo
203. Por fim, um
procedimento que implicaria em uma intricada interação entre os textos e uma
evocação de termos não convencionais
204. Em síntese, a intertextualidade tornar-se-
ia um meio para compreender a intenção do autor
205, o papel do leitor e a noção de
texto
206.
O papel do leitor do texto possui proeminência na pesquisa intertextual. Este
exerceria papel de decodificador dos textos a que recorre o autor sagrado. Em sua
memória, os textos vétero-testamentários estariam bem armazenados e, ao serem
empregados em um novo contexto, teriam o seu significado redirecionado para a
temática proposta no novo texto. O leitor não só estaria capacitado para a leitura
como também seria fator determinante na compreensão do texto, porque, sem a
leitura deste, o texto permaneceria inerte.
202Beale não considera o trabalho do autor sagrado como justaposição, antes ele seria um exemplar do
estilo semita de parataxe. Esta seria mais evidente do que a busca por uma nova teoria hermenêutica.
Cf. BEALE, G. K., John”s Use of the Old Testament in Revelation. 47.
203 Cf. MOYISE, S., “Authorial Intention and the Book of Revelation”, AUSS 39 (2001) 37-38.
204 Beale diverge de Moyise no tocante à interação de textos e a possibilidade do texto antigo ser
afetado pelo novo texto. Mantém a tese de uma fidelidade ao contexto anterior para fundamentar a
impossibilidade do texto mais jovem oferecer um novo significado a textos mais antigos. Pautando-se
em Vanhoozer, considera um desrespeito imputar ao texto antigo um significado não pretendido por
seu autor. Cf. BEALE, G. K., “Questions of Authorial Intent, Epistemology, and Presuppositions and
Their Bearing on the Study of the Old Testament in the New: A Rejoinder to Steve Moyise”, Irish
Biblical Studies 21 (1999) 152-180.
Moyise concorda com Vanhoozer quando este alega que a intenção do autor sagrado seria o único
caminho válido para a interpretação e mostra que este seria o objetivo do autor do Apocalipse.
Distancia-se um pouco na questão sobre o modo como o autor neotestamentário usou os textos antigos,
neste ponto Moyise defende a apropriação dos textos mais antigos atingidos pelos eventos do Novo
Testamento. Cf. MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures?”, AUSS
40 (2002) 3-21.
205 A intenção do autor sagrado é central no pensamento de Moyise e pode ser sintetizada em três
pontos: a intenção do autor vétero-testamentário foi reinterpretada pelo autor do Apocalipse; os textos
mais antigos são lidos à luz das convicções do autor neotestamentário e as usa para reconstruir uma
finalidade retórica; a apropriação dos textos antigos estaria impregnada do contexto do primeiro século
do cristianismo: o mistério Pascal. Cf. MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate
the Scriptures?” 3-7.
Em um trabalho posterior, Moyise considera a intenção autoral básica para interpretar o Apocalipse
porque o autor neotestamentário teria criado significados novos para textos antigos. Cf. MOYISE, S.,
“Authorial Intention and the Book of Revelation”, AUSS 39 (2001) 35-40.
206 Texto é um sistema de signos ou códigos em diálogo, portanto, é uma trama interligada e jamais
isolada. Por esta razão, seu significado não é fixo mas abre-se para a releitura quando aproximado de
outros textos. O texto seria um processo de produção e não um resultado de influências de fontes. Cf.
MOYISE, S., “Intertextuality and Biblical Studies. A Review”, Verbum et Ecclesia 23 (2002) 418-
431; “Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New Testament”, 15-16.
A base deste pensamento estaria na tese do diálogo do texto com outros textos
e dentro do próprio texto
207. A absorção de palavras usadas em um contexto e
introduzidas em uma nova circunstância instala uma relação metafórica. Nela o leitor
ouve o Antigo Testamento, mas seu significado é afetado pelo novo contexto
conforme a intenção do autor sagrado. Quando o leitor se dá conta da insinuação,
uma caverna de significado ressonante é aberta e isso afeta a leitura daquela parte do
livro
208.
Intertextualidade, portanto, seria um processo que dilataria a compreensão em
função do impacto do leitor no procedimento de interpretação intertextual
209. Sua
tarefa consistiria em explorar como o texto anterior continua falando através de um
novo trabalho e como novos significados podem ser dados ao texto fonte. A
intertextualidade criou um espaço para a análise do contexto do Antigo Testamento
no Novo Testamento
210.
Desta forma, o Antigo Testamento passa a ser decisivo para a compreensão do
significado dos textos do Novo Testamento da mesma forma que o Novo Testamento
é determinante para a captação do sentido do Antigo Testamento. Haveria, portanto,
um sistema de diálogo presente nesta concepção onde o texto A dialoga com o texto B
207 Caberia ao leitor a função de detectar a presença de outros textos no novo texto e reinterpretar o
significado que estes passaram a possuir no novo material. Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and the
Study of the Old Testament in the New Testament”, 26.
O leitor, segundo Hollander, deveria escutar, nos textos, os ecos que este contém e necessita possuir
afinidades com as vozes mais antigas a fim de que estas possam ressoar e produzir um som análogo
àquele desejado pelo autor posterior. O acesso a esta cadeia de significados poderia, contudo, ser
perdido se o leitor já não possuísse contatos com a origem desta estrutura de significados. Cf.
HOLLANDER, J., Figure of Echo: A Mode of Allusion in Milton and After, 65.
208 A intertextualidade proporcionaria uma melhor compreensão dos seguintes textos: Ez 9-10 e Ap 7-
8 trata das Bestas e dos 144 mil marcados. Possuiria uma reminiscência de Ex 12,22, mas a seqüência
indica Ez como base do texto.
Ez 16.23 e Ap 17 descrição de Jerusalém como meretriz, apóstata. Ambas se enfeitam com suas jóias e
linho puro; ambas derramam sangue, ambas bebem uma taça de abominações, ambas serão derrotadas.
Ez 26-27 e Ap 18 lamento sobre a cidade inclui paralelos vocabular e personagens musicais. Cf.
MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures?”, 3-21.
209 Robert Royalty utiliza a hermenêutica intertextual incluindo elementos sociais e ideológicos. Para
o autor o texto está entranhado de estruturas sociais e quando evoca o Antigo Testamento, traz consigo
uma gama de fenômenos culturais. Considera que o autor sagrado estabelece uma ruptura com o texto
antigo no sentido de não possuírem vínculos com as passagens originais e sim com os propósitos
pessoais deste. Cf. ROYALTY, R. M., The Streets of Heaven. The Ideology of Wealth in the
Apocalypse of John. Macon, Mercer University Press, 1998, 98.
210 As pesquisas de método exegético tradicional foram consideradas por Paul Decock carentes de
uma continuidade da influência de um texto fonte sobre o outro texto após o seu emprego; excluindo a
cooperação contínua entre eles na produção de novos significados. Cf. DECOCK, P.B., “The
Scriptures in the Book of Revelation”, 400.
e conduz o leitor a uma nova apreensão dos termos e imagens envolvidas no texto.
Nesta dinâmica Moyise insere o critério da continuidade e da descontinuidade
211.
A intertextualidade sugere, portanto, a existência de um vácuo no texto onde
existiriam relações com outros textos, o que torna inevitável a leitura intertextual.
Seria uma tentativa mais justa da descrição do uso que o Apocalipse faz da Escritura.
O que significa dizer que há um intercâmbio entre o Antigo Testamento e o Novo
Testamento e, de igual modo, entre o Novo Testamento e o Antigo Testamento
212.
Em sua análise, Moyise propõe cinco tipos de intertextualidade: eco
intertextual, narrativa intertextual, intertextualidade exegética, intertextualidade
dialógica e intertextualidade pós-moderna.
O eco intertextual seria como um eco que reverbera dentro de um quarto. Os
ecos atraem os leitores para o mundo simlico da Escritura. Além disso, as alusões
manifestam expressões que são anteriores ao novo texto e produzem neles valores e
implicações
213. O eco mantém similaridades e diferenças e pode ser detectado,
segundo Moyise, naquelas citações onde se perceberia nitidamente a presença de um
outro texto. Sendo assim, a menor menção é suficiente para evocar no leitor a
presença do subtexto
214.
211 A união de textos ou conexões intertextuais poderia ser apresentada da seguinte forma: quando
lemos um texto que recorre aos textos do Antigo Testamento ouvimos várias vozes competindo uma
voz tem origem no texto novo, outras se originam em textos antigos por nós conhecidos. O mesmo
conclui Fewell, pois entende que um texto fala e um outro ecoa, conduz a um outro, são vozes em
coro, em conflito, em competição. Textos falam a um outro, dirigem-se a um outro, promovem diálogo
com outros textos e, de igual maneira, os hospedam. Provocando novos significados reinterpretados à
luz de outros e produzindo uma leitura intertextual. Cf. FEWELL, D. N., “Introduction: writing,
reading, and relating”. In FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between Texts. 12.
Moyise destaca, porém, que esta modalidade é pouco utilizado no Ap por estar ancorada em citações
explícitas que não é o caso deste livro. Cf. MOYISE, The Old Testament in the Book of Revelation,
113.
212 Com a intertextualidade, diz Timothy K. Beal, as fronteiras do texto se perderam, bem como o
limite de influência entre eles. A leitura de um texto seria muito mais a “leitura” do espaço dialógico
produzido pelo texto A e pelo texto B, isto é, o que estes dois textos poderiam me levar a pensar. A
aparente liberalidade da tese, o autor logo a delimita recorrendo à ideologia do autor que nortearia o
leitor e os limite da interpretação de um texto. Cf. BEAL, T. K., “Ideology and Intertextuality: Surplus
of Meaning and Controlling the Means of Production”. In FEWELL, D. N. (ed.), Reading Between
Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible, 27-40.
213 Na opinião de Hays, o eco intertextual não pode ser compreendido como tipologia ou midrash. Ele
é um convite para o leitor estabelecer o contato entre dois textos por exemplo Fl 1,19 e Jó 13,16. Cf.
HAYS, R., Echos of Scripture in the Letters of Paul. 155.
214 Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New” in The Old
Testament in the New Testament. Essays in Honour of J. L. North. MOIYSE, S. (ed.), JSNTSup 189.
Sheffield, Sheffield Academic Press, 2000 14-41. 18-25.
Na narrativa intertextual, a história ou a estrutura das tradições do Êxodo teria
influenciado a exegese de São Paulo em Rm 8 e Gálatas. Nessas tradições, São Paulo
parece convidar o seu leitor a relembrar uma história, um evento, e não apenas um
texto
215. Neste tipo de intertextualidade, estão presentes a continuidade e a
descontinuidade onde antigas histórias são recuperadas e usadas de novo em situações
diversas. O êxodo tornava-se assim uma metanarrativa para São Paulo, como já o fora
para alguns profetas, dentre eles Jeremias e Isaías, além de Sabedoria, Sirac, Baruc e
Enoch. A ação de Deus na vida de Jesus dá a esta história um novo sentido. A
narrativa intertextual exorta os cristãos em Roma a não abandonarem suas tradições.
A intertextualidade exegética tem como característica o não estar evidente no
texto, porém foi assumida e dá sentido à argumentação. Esta modalidade poderia ser
encontrada em Rm 2,17-29. Nesta perícope, São Paulo assumiria os textos de Ez 36,
26; Dt 28-30; Gn 17 para afirmar por via positiva a circuncisão e Jr 7,4-9; 9, 22-25,
em via negativa, indicando sua nulidade, pois, apesar de serem circuncidados, seus
corações estariam impuros
216.
Na intertextualidade dialógica, a influência ocorreria de duas maneiras: o
novo afetaria o antigo e o antigo afetaria o novo. Desta forma, o antigo texto
iluminaria a compreensão do novo e o novo favoreceria uma maior compreensão do
antigo
217.
Por fim, na intertextualidade pós-moderna, o escritor, ao redigir o seu texto,
teria atribuído significados novos para este contexto e uma inter-relação com outros
textos; o leitor, por sua vez, atribuiria significado, interagindo com outros textos
conhecidos; o escritor deixa o limite do texto para o leitor estabelecer suas
215 Cf. KEESMAAT, S. C., Paul and his Story: (Re) Interpreting the Exodus Tradition. (JSNTSup
181). Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999.
216 Cf. BERKLEY, T. W., From a broken covenant to circumcision of the heart: Pauline Intertextual
exegesis in Romans 2: 17-29. SBL dissertatations Series 175. Atlanta, SBL, 2000.
217 Moyise ilustra esta terminologia com o exemplo do Leão e o Cordeiro de Ap 5. O Leão de Judá é
a imagem tradicional da expectativa messiânica de Gn 49,9, da Literatura Targumica, apócrifa, bem
como dos Escritores do Mar Morto, e foi interpretada pelo Cordeiro morto. Existiria, portanto uma
interação entre texto e subtexto ou texto antecedente em ambas as direções. Isto é o texto A seria
melhor compreendido a partir do texto B. O que remete a um necessário conhecimento dos textos
postos em relação e que o leitor estabeleça o significado cunhado pela junção dos textos. Para Moyise,
o novo texto não aniquila a identidade original do texto usado, mas agora deverá ser compreendido
através desta relação, desta moldura. Cf. MOYISE, S. “Intertextuality and Biblical Studies. A
Review”, 428.
conexões218. Estabeleceria, assim, uma atualização do texto bíblico para o seu
contexto vital.
As cinco formas de intertextualidade, segundo Moyise, estariam presentes no
Apocalipse, interagindo simultaneamente.
Assim, Moyise propõe que o texto de Ezequiel, dentre outros, usado no texto
do Apocalipse, deve ser observado sob a dinâmica intertextual de continuidade e
descontinuidade. O leitor escuta dentro do texto as vozes do Antigo Testamento, mas
seu significado estaria afetado pelo novo contexto em que é apresentado.
As relações intertextuais identificadas no Apocalipse padecem, contudo, de
critérios mais facilmente controláveis. Mostram-se úteis os critérios identificados por
dois autores para avaliar as relações intertextuais.
Em seu estudo sobre as relações intertextuais entre Is 65,17-20 e Ap 21,1-5b,
Jacques van Ruiten
219 apresenta três critérios de análise: nível lexical, influência
lexicalmente ligada e relações temáticas.
O nível lexical seria o modo como um texto
assume o vocabulário presente em outro texto anterior e as mudanças que
eventualmente ele pode sofrer. A influência lexicalmente ligada abrangeria o vínculo
estabelecido por um determinado texto com outros textos que também exercem
impacto sobre o texto lido. As relações temáticas estariam presentes através de temas
abordados mais do que através da presença lexical.
Posteriormente, Markl
220 propõe cinco critérios: referência, comunicação,
estrutura, seletividade e diálogo. Por referência poderíamos entender a medida em
que um texto reflete outro texto tendo como elemento vinculante a temática. A
comunicação seria identificada através das indicações deixadas pelo autor quando
recorre a termos, expressões, construções que fazem memória a um outro texto com o
qual ele se comunica. Quanto à estrutura, os dois textos possuiriam semelhanças. A
seletividade indicaria a proporção do uso das palavras entre os textos e em relação
aos demais textos. Por fim, no diálogo ocorreria a articulação semântica e de
pensamento entre dois textos e o grau de relacionamento existente entre os contextos
218 Cf. WOLDE, E. van, “Trendy Intertextuality” in Intertextuality in Biblical Writings. DRAISMA,
S., 45-51.
219 Cf. RUITEN, J. van, “The intertextual relationship between Isaiah 65,17-20 and Revelation 21,1-
5b”, Estudios Biblicos 51 (1993) 473-510.
220 Cf. MARKL, D., “Hab 3 in intertextueller und kontextueller Sicht”, Biblica 85 (2004) 99-108.
dos textos. Quanto menor é a freqüência dos elementos lingüísticos na Bíblia e
quanto maior é seu número entre os dois textos e quando há termos e expressões que
são utilizados somente entre dois textos, maior é a relação intertextual.
Em síntese
Iniciado por Bauckham, o procedimento intertextual foi aprofundado através
dos trabalhos de Steve Moyise em decorrência de uma possível inadequação das
categorias tradicionais de midrash, tipologia e exegese adentrarem na complexidade
do livro do Apocalipse. Seu pressuposto teórico edifica-se a partir de Kristeva, Hays,
Greene e Hollander.
A questão da intenção do autor sagrado gerou divergências entre Beale e
Moyise. De fato, Beale entende que a interpretação de um texto somente seria
legítima se recuperasse a intenção original do autor do primeiro texto. Vanhoozer, por
sua vez, propõe que não se aplica ao texto uma intenção que não fosse a do autor
antigo e crê que o autor do Apocalipse teria se apropriado de forma indevida dos
textos do Antigo Testamento. Beale defende a intenção do autor onde se possa
compreender uma interpretação que reproduza literalmente o escopo do autor
antecedente
221.
Moyise diverge destas e pensa ser próprio do autor do Apocalipse oferecer ao
texto antigo um novo e surpreendente sentido quando o aplica a novos contextos. Isto
se dá porque o autor sagrado lê o texto à luz de suas próprias convicções e as usa para
construir sua finalidade retórica
222. Isto, contudo, não significa uma apropriação
indevida dos textos do Antigo Testamento, mas sim uma apresentação do verdadeiro
significado dos textos antigos, porque agora o autor sagrado possui a chave de leitura
daqueles textos: Cristo crucificado e ressuscitado.
221 Beale radicaliza sua posição sobre significante e significado entendendo que Moyise teria proposto
dar ao leitor total liberdade sobre o sentido do texto. De fato, aqui, estamos diante de um problema
epistemológico. Cf. BEALE, G. K., “Questions of Authorial Intent, Epistemology, and Presuppositions
and Their Bearing on the Study of The Old Testament in the New: a Rejoinder to Steve Moyise” 152-
180.
222 Cf. MOYISE, S., “Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures?” 6.
A nós, porém esta técnica não seria estendida, a razão é que falta-nos a
teologia hermenêutica própria deste período da Revelação
223. O temor de Beale é
aquele de ver na exegese a presença do subjetivismo, neste ponto há uma
convergência entre os dois pesquisadores.
O debate entre Moyise e Beale indica que a contribuição da intertextualidade
na pesquisa exegética possui muitas nuances. No entanto, o seu cerne no âmbito
bíblico parece estar no modo através do qual o Novo Testamento usa o Antigo
Testamento e como textos do Antigo Testamento fazem releitura de outros textos do
Antigo Testamento. A razão deste uso já sugestiona um vislumbre em vários
trabalhos, que podem ser sintetizados em dois grandes pontos: motivos culturais e
motivos teológicos
224. De fato, a própria natureza da fé cristã se implanta sobre um
terreno pré-existente, uma vez que o Cristo é categórico em dizer que as Escrituras
dão testemunho dele (cf. Jo 5,39). Sendo assim, o Antigo Testamento não é visto
como um texto superado, encerrado, mas sim como um processo na História da
Salvação, enquanto sua teologia assume a função de fundamento da teologia do Novo
Testamento.
Este processo histórico Bauckham entende como um olhar para o Antigo
Testamento através do Novo Testamento, dando-se conta de uma cadeia histórica em
movimento
225. Distingue-se aqui, contudo, a conaturalidade como origem dos textos
sagrados e nunca uma identificação portadora de uma monótona repetição.
No caso específico do Apocalipse, além dos dados acima, a continuidade e a
descontinuidade alertaram Moyise para a necessidade de um embasamento teórico
literário para explicá-los dentro deste livro. Seu objetivo era compreender o uso que o
223 Cf. MOYISE, S., “Can we use the New Testament the way the New Testament authors used the
Old Testament?”, In Die Scriflig (2002) 643-660.
224 A motivação cultural deriva da própria origem hebraica dos primeiros cristãos que pensam,
conseqüentemente, a sua fé através das Escrituras de Israel e a usam como instrumento hermenêutico.
A motivação teológica por sua vez, poderia ser apresentada como uma ligação intrincada entre Antigo
Testamento e Novo Testamento, uma vez que não se poderia entender a novidade Jesus Cristo sem
uma fundamentação histórica à qual Jesus pertence e tornou-se sua expressão máxima. No dizer de
Lucas, seria o “plano de Deus” (cf. Lc 7,30; At 2,23; 20,27), já em São Paulo “um mistério tecido nos
séculos” (cf. Rm 16, 25-26). Cf. PENNA, R., “Appunti sul come e perché il Nuovo Testamento si
rapporta all”Antico”, Biblica 81 (2000) 95-104.
225 Cf. BEAUCHAMP, P., L”uno e l”altro Testamento. Saggio di lettura. Brescia, Paideia, 1985,
316-338.
autor sagrado fez de alguns textos do Antigo Testamento e o significado que eles
assumem neste novo contexto.
Certo é também que o autor não desvirtue o sentido dos textos antigos, a
aplicação é que de fato torna-se nova e por esta conseqüência conduz a um novo
significado. Sendo assim, a leitura intertextual torna-se inevitável, uma vez que o
termo intertextualidade sugere que todos os textos estão envolvidos em uma larga
rede de textos relacionados, limitados somente pela cultura humana e sua
linguagem
226. A metodologia intertextual passaria, assim, a ser uma necessidade na
exegese.
Por outro lado, porém, existem os obstáculos à intertextualidade oriundos da
diversidade com que o termo é usado e por vezes de modos incompatíveis
227. Outro
obstáculo está na teoria que rege cada pesquisador. Uma má compreensão do termo
intertextualidade por parte dos pesquisadores poderá causar rápida corrupção e sua
redução a apenas um eco. Se apreciado de maneira mais particularizada poderá trazer
benefícios abrindo uma imensa perspectiva de trabalho.
Em decorrência desta lacuna, faz-se mister um recurso a critérios que
determinem a presença da intertextualidade. Aqueles apresentados por Markl levam a
inferir que, através da referência intertextual, pode-se perceber como o objetivo do
autor é a mudança de perspectiva do texto antecedente.
Markl e Ruiten possuem pontos de convergência quando tratam da referência
(Marcl) e da temática (Ruiten). Ambos concordam sobre a presença não acidental
destes textos no novo texto, o que nos conduz à intenção do autor defendida por
Moyise e a uma mudança no texto, elevando-o quando aplicado em um novo
contexto, podendo ter como objeto a cristologia ou a escatologia. A temática de
Ruiten pode ainda ser comparada à seletividade de Markl, pois identifica elementos
únicos de relação entre dois textos. Um outro ponto de convergência está no nível
lexical, proposto por Ruiten e o critério de comunicação sugerido por Markl. No nível
lexical o termo usado pelo autor sagrado está vinculado a um texto que lhe é anterior,
porém a recepção deste não é idêntica, ele sofre alterações impostas pelo novo autor e
226 Cf. FEWELL, D. N., “Introduction: Writing, Reading, and Relating”. In FEWELL, D. N. (ed.),
Reading Between Texts. 17.
227 Cf. MOYISE, S., “Intertextuality and Biblical Studies: A Review”, 430.
seus objetivos teológicos. No critério de Markl, o autor lança mão de termos,
expressões ou construções precedentes em seu texto. Esta “marca” faz com que o
leitor do novo texto fique em alerta para estabelecer uma comunicação entre textos e
não se restrinja somente ao texto atual. Uma variação de pensamento entre os dois é a
admissão da presença de textos da tradição judaica por Ruiten, enquanto Markl
restringe-se ao Texto Hebraico, devido à natureza de sua pesquisa.
Os textos qualificados por Ruiten, de influência lexicalmente ligada, abrem-se
para um nível de contatos não apenas com um texto, mas com vários textos, onde o
termo utilizado pelo autor sagrado em um novo texto assumem particularidades e
nuances novas que provocam no leitor uma nova compreensão. Esta linha de
pensamento assemelha-se àquela de Moyise quando este fala, apoiado em Hays, de
uma “caverna” onde vozes ecoam e estabelecem contatos com o novo texto.
Os critérios apresentados pelos dois autores fornecem ferramentas essenciais
para a observação da presença da intertextualidade em um texto, quer do Antigo
Testamento como do Novo Testamento. Markl, entretanto, é mais detalhista e preciso
em suas observações.
Ambos poderiam colaborar para a formação de um juízo de valor sobre a
presença de textos do Antigo Testamento no Novo Testamento e, principalmente,
oferecem critérios mais facilmente aplicáveis e controláveis.
2. Escopo e hipótese
2.1 Objeto de estudo: a relação de Apocalipse com Ezequiel
A presença do Antigo Testamento foi analisada por diversos pesquisadores
que se apresentam uníssonos com relação a uma seleção primorosa, particularmente
de diversos textos proféticos e do livro de Daniel, atrelados à intenção teológica do
autor do Apocalipse e à sua cristologia, que perpassa a grande seção 4-22.
Contudo, a profecia de Ezequiel destaca-se quanto ao modo de utilização do
autor sagrado: a manutenção da ordem das seções de Ezequiel no novo material: Ez 1
e Ap 4; Ez 9-10 e Ap 7-8; Ez 16;23 e Ap 17; Ez 26-27 e Ap 18; Ez 37-48 e Ap 20-22.
A última seção de Ap 20-22, ligada a Ez 37-48, à semelhança dos demais
textos, possui forte presença cristológica. Não obstante, a esta Cristologia alia-se a
Escatologia, particularmente em Ap 22,1-5, com sua descrição do paraíso restaurado.
Nesta perícope, a presença da profecia de Ezequiel é bem testemunhada nos vv 1-2,
mas não de modo absoluto. De fato, outros textos parecem estar simultaneamente
presentes, especialmente: Gn 2,9; Sl 14,3; 46,5; Jl 4, 18; Zc 13,1; 14,8. Nos
versículos subseqüentes, surgem outros textos vétero-testamentários, estes porém,
vinculando-se como conseqüência direta daquilo que foi mostrado ao vidente de
Patmos nos v. 1-2, qual seja, o rio de água viva, o trono de Deus e do Cordeiro e as
árvores que curam.
A genialidade do autor sagrado pode ser percebida no modo como atua sobre
o texto mais antigo e o combina com outros produzindo um novo significado.
Particularmente, este efeito poderia ser detectado em Ap 22,1-5. A intenção do autor
seria a causa principal destas alterações, que se dariam de forma ordenada, atreladas
ao escopo teológico do texto do Apocalipse.
Por isso, em nosso estudo sobre a presença de Ezequiel no Apocalipse,
seguiremos os traços deixados pelo autor sagrado: perceber a prioridade deste profeta
em uma determinada perícope não de forma excludente, mas norteadora segundo um
determinado escopo teológico. Desta forma, propomos o estudo de Ez 47,1-12 como
o foco de nossa atenção. Mas, com isto, não desprezaremos os outros textos
proféticos que ecoariam na perícope, quais sejam, Jl 4,18 e Zc 13,1; 14,8, a fim de
melhor compreender o relacionamento intertextual existente concernente ao motivo
da fonte de água e do lugar sagrado.
2.2 Hipótese de trabalho
Nas últimas décadas, o texto do Apocalipse foi estudado sob as perspectivas
de alusões, ecos, citações, midrash. Estas abordagens, em alguns momentos,
indicariam o modo inexperiente do autor ao tratar textos mais antigos ou um sentido
que espelha o texto anterior mantendo um sentido exato. Por outro lado, poderiam
indicar uma conexão intertextual, já que testemunham a existência de um texto mais
antigo presente neste mais novo. A segunda hipótese será acolhida neste trabalho,
uma vez que testemunha a relação do autor sagrado com os textos vétero-
testamentários de modo mais elucidativo.
De fato, a relação intertextual parece ser um caminho necessário para uma
exegese mais profunda neste livro. Desta forma, poderíamos lançar uma nova luz
sobre a teologia que une tantos textos em um único e novo texto.
Partindo da hipótese de estarmos diante de textos que possuem uma relação
intertextual, onde textos falam entre si, dialogam, possuem uma relação literária não
acidental, poderíamos detectar que esta relação parece ser intencional e portadora de
um objetivo teológico bastante preciso. Este objetivo é levar o leitor a um nível de
leitura, onde, para entrar no cerne da mensagem, fosse necessário estar em contato
com textos anteriores e manter atenção sobre o modo como o autor sagrado
manipulou este patrimônio e encadeou, como em uma sinfonia, textos de origens
distintas, mas que, lado a lado, dão vida a um novo texto sob o advento do Cristo
ressuscitado.
Pautado nestas considerações, a finalidade deste trabalho será, sob a
perspectiva especial do procedimento intertextual, melhor compreender a Cristologia
e sua relação com a Escatologia presente em Ap 22,1-5. De fato, nesta perícope, a
Cristologia do livro atinge o seu ápice, mas não parece ter como escopo único a
revelação de Cristo como Deus, uma vez que, diante do Trono, estão os servos de
Deus que passam a vê-Lo tal como Ele é (cf. Ap 22,4). Portanto, haveria aqui uma
Cristologia acoplada a uma Escatologia. A intenção da Cristologia do Apocalipse
poderia ser compreendida na dimensão de seu impacto sobre o homem destinatário
desta Revelação e a resposta que este homem dará Àquele que livremente se revela.
Portanto, esta Cristologia geraria uma Escatologia capaz de atingir a todos aqueles
que desejarem entrar na Nova Jerusalém, e, não mais restrita a Israel. Trata-se de uma
cristologia-escatológica inclusiva e não restritiva.
3 Metodologia
Tendo em vista a complexidade do texto do Apocalipse, faz-se mister articular
uma metodologia que ofereça ao texto do Apocalipse uma descamação no sentido de
permitir detectar os textos envolvidos na composição deste novo texto e o porquê da
presença dos mesmos.
O método diacrônico, atentando para a pré-história da redação final de um
texto, está fixado nas relações dialéticas do texto com suas fontes, fornecendo, assim,
uma compreensão mais profunda do texto. Deste modo, melhor se investiga a
situação histórica onde nasce o novo texto e, no caso do Novo Testamento, como a
comunidade cristã vivenciou a sua fé e o processo histórico da produção de um texto.
Por sua vez, o método sincrônico trata o texto como um todo estruturado e coerente
onde os elementos formam uma unidade. Entretanto, salvaguarda as relações do texto
com outras unidades, admitindo uma comunicação entre elas.
Os dois métodos possuem convergência mais do que divergência, pois
seguem linhas de diálogo do texto com o seu momento histórico (diacronia) e com
textos que lhe antecedem no livro (sincronia). Sendo assim, cabe àquele que estuda o
texto a sensibilidade para perceber se um método ou outro será mais indicado neste
texto concreto. De certa forma, portanto, o texto determina o método mais adequado
para ser analisado.
Os dois métodos serão utilizados, tendo como norteador o procedimento
intertextual. De fato, o autor do Apocalipse elaborou de tal forma a intercessão entre
textos antigos e o novo texto que este procedimento parece ser imperativo para a
compreensão mais profunda das conexões estabelecidas pelo autor sagrado.
Por meio da intertextualidade, poder-se-ia superar a lacuna, comum a todos os
procedimentos, da diacronia e da sincronia, pois seria superado o esforço, por vezes
estéril, de reconstrução do texto e estaríamos próximos da intenção do texto final, da
teologia desejada pelo autor sagrado e do leitor do livro.
A intertextualidade faculta ao estudioso detectar a ação do texto antigo no
novo e os novos significados que o precursor receberá no novo contexto, ou seja,
como o texto fonte foi apropriado pelo autor neotestamentário, assim como a função
do leitor do novo texto composto por textos que ele traz em sua memória.
Com a intertextualidade, foi criado um espaço para a análise do contexto do
Antigo Testamento no Novo Testamento. Com ela, detecta-se um diálogo entre textos
afetado pela teologia do autor neotestamentário que seleciona o material antigo para
indicar seu cumprimento, segundo a chave de leitura dos eventos pascais. Trata-se de
uma continuidade na descontinuidade. Este procedimento seria útil para a análise do
uso que o Apocalipse faz dos textos vétero-testamentários e, por conseqüência,
perceber como o Antigo Testamento afeta a compreensão do Novo Testamento e de
igual modo como o Novo Testamento, com a plenitude da Revelação, poderia
colaborar para a compreensão do Antigo Testamento.
Os critérios para a análise dos casos de intertextualidade serão os de Markl em
função de sua aplicabilidade e clareza.
CAPÍTULO II
2. Ap 22,1-5: o texto, sua delimitação, estrutura e aspectos
semânticos
2.1 O texto: tradução e notas
E mostrou-me um rio de água da
viva, brilhante como cristal,
1a
Kai. e;deixe,n moi potamo.n u[datoj zwh/j
lampro.n w`j kru,stallon(
que saía do trono de Deus e do
Cordeiro.
1b
evkporeuo,menon evk tou/ qro,nou tou/ qeou/
kai. tou/ avrni,ouÅ
No meio da praça, dela mesma, de
um lado e do outro do rio, havia
árvore da vida
2a
evn me,sw| th/j platei,aj auvth/j kai. tou
potamou/ evnteu/qen kai. evkei/qen xu,lon
zwh/j
que produz doze frutos a cada mês, 2b
poiou/n karpou.j dw,deka( kata. mh/na
e[kaston
que dá o seu fruto 2c
avpodidou/n to.n karpo.n auvtou/(
e as folhas da árvore servem como
cura para as nações.
2d
kai. ta. fu,lla tou/ xu,lou eivj qerapei,an
tw/n evqnw/nÅ
Não haverá mais nenhuma maldição. 3a
kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;tiÅ
O trono de Deus e do Cordeiro estará
nela.
3b
kai. o` qro,noj tou/ qeou/. kai tou/ avrni,ou
evn auvth/| e;stai(
Os seus servos o adorarão, 3c
kai. oi` dou/loi auvtou/ latreu,sousin
auvtw/|
verão a sua face 4a
kai. o;yontai to. pro,swpon auvtou/(
e o seu nome estará sobre as suas
frontes.
4b
kai. to. o;noma auvtou/ evpi. tw/n metw,pwn
auvtw/nÅ
Não haverá mais noite. 5a
kai. nu.x ouvk e;stai e;ti
Não têm necessidade da luz da
lâmpada nem da luz do sol,
5b
kai. ouvk e;cousin crei,an fwto.j lu,cnou
kai. fwto.j h`li,ou(
porque o Senhor Deus resplandecerá
sobre eles,
5c
o[ti ku,rioj o` qeo.j fwti,sei evpV auvtou,j(
e reinarão pelos séculos dos séculos. 5d
kai. basileu,sousin eivj tou.j aivw/naj
tw/n aivw,nwnÅ
Optamos por tratar apenas das questões mais relevantes para a crítica textual
e a tradução do texto.
v.1
v. 1a) Kai. e;deixe,n moi potamo.n u[datoj zwh/j lampro.n w`j kru,stallon(
E mostrou-me um rio de água da viva, brilhante como cristal,
O aparato crítico de Nestle-Aland indica a inserção do termo Kaqaro,n
“puro” no M
A
em alguns poucos minúsculos precedendo termo u[datoj228. Outros
manuscritos, tais como
א e A (lacuna em C) omitem o termo Kaqaro,n229.
Provavelmente, temos aqui um recurso de ênfase, cuja manutenção não nos parece
necessária tendo em vista o adjetivo lampro,j e o comparativo w`j kru,stallon, que
desempenham a função de especificar o estado de diafania da água do rio.
O adjetivo lampro,j indica a transparência do rio. Este encontrar-se-ia livre
de qualquer coisa que impeça de vê-lo com total nitidez
230. A opção por uma
tradução com sentido de transparência se justifica pelo comparativo w`j kru,stallon,
que atribui limpidez ao rio de água viva. A palavra kru,stalloj só ocorre em Ap 4,6;
228 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,1-5.
229 Esta omissão, segundo Aune, pode ser encontrada também em Oecumenius
2053
025 046 Byzantine
eth. Cf. AUNE, D. E.; Revelation 17-22, Word Biblical Commentary vol 52c, Nashville, Thomas
Nelson Publishers, 1998, 1139.
230 Cf. DANKER, F. W.; A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature. Chicago e London, The University of Chicago Press, 2000
3
, 585.
21,11 e 22,1. Apesar de apresentar também o significado de “gelo”231, não nos
parece correto aplicar este sentido a kru,stalloj, tendo em vista o substantivo
potamo,j, que remete a água abundante e corrente.
v. 1b) evkporeuo,menon evk tou/ qro,nou tou/ qeou/ kai. tou/ avrni,ouÅ
que saía do trono de Deus e do Cordeiro.
O termo sto,matoj, literalmente “boca”
232, substitui a expressão tou/ qro,nou
em alguns minúsculos
233. A imagem de um rio, claro como o cristal, que procede da
boca de Deus e do Cordeiro não nos parece coerente com a dinâmica interna do
próprio livro do Apocalipse. A aplicação de uma origem metafórica do rio só
encontra similaridade com a imagem da serpente que expele de sua boca água como
um rio (cf. Ap 12,15) e com a terra que, abrindo sua boca, bebe a água lançada pela
serpente, socorrendo assim a mulher (cf. Ap 12,16). A proximidade entre as duas
imagens portaria um nivelamento desnecessário. Esta substituição nos parece
dispensável.
A presença da preposição evk seguida do genitivo tou/ possui, como
significado fundamental, o local de proveniência. Assim, a água deriva do trono de
Deus e do Cordeiro.
O artigo definido tou/ antes de qro,nou
foi omitido por אT 234T.
Consideramos que a sua manutenção torna mais precisa a noção da origem da
água
235.
231 Cf. LIDDELL - SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon. Oxford, Oxford University
Press, 1889
7
, 452.
Os antigos percebiam o cristal como uma água congelada. Ver:
http://bible1.crosswalk.com/onlineStudyBible/Bible.
232 O substantivo sto,matoj em Mt 15,11; 17,27, pode significar tanto a boca do homem como a do
animal. Em Ap 2,16; 12,16 o termo sto,matoj assume sentido figurado. É instrumento do falar em Mt
12,34 e seu modo em 2Jo 12. Cf. RUSCONI, C., Vocabulário del Greco del Nuovo Testamento.
Bologna, EDB, 1997
2
, 317.
233 Precisamente 1611
s
2329 Byz 16
61
e pc sy
hmg
. Cf. ALLO, E.-B., L’Apocalypse, 325; NESTLE–
ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,1.
234 Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139.
235 Cf. LASOR, W. S., Gramática Sintática do Grego do Novo Testamento.o Paulo, Vida Nova,
1998
2
, 82. Tradução Handbook of New Testament Greek. Eerdmans Publishing, 1973.
v. 2
v. 2a) evn me,sw| th/j platei,aj auvth/j kai. tou potamou/ evnteu/qen kai. evkei/qen xu,lon
zwh/j
No meio da praça, dela mesma, de um lado e do outro do rio, havia árvore da
vida
A interpretação de evn me,sw| como “no meio” parece coerente com outros
textos do livro (cf. Ap 1,13; 2,1; 4,6; 5,6; 6,6). Tratando-se de um dativo locativo, sua
função seria aquela de indicar a disposição geográfica de uma cena e não aquela
distributiva (cf. 1Cor 6,5) ou temporal (cf. Mt 25,6; At 20,13)
236.
O vocábulo platei,a, cujo significado é uma praça ou caminho largo da
cidade
237, com o sentido de esplanada238, é mencionada no livro do Apocalipse em
11,8 e 22,2, sendo que a associação de praça + árvore da vida só se encontra em Ap
22,2. Embora seja viável a tradução de platei,a por rua, optamos, neste trabalho, por
“praça”, por considerar que a descrição da Cidade Santa comporta medições
generosas, superando aquelas que, ordinariamente, seriam atribuídas a uma rua ou a
um caminho.
A leitura da expressão evnteu/qen kai. evkei/qen é bem testemunhada em A, 046
e em outros manuscritos; contudo, alguns minúsculos substituem a leitura de kai.
evkei/qen por kai. evnteu/qen. Esta mudança não altera a leitura, posto que os dois
advérbios de lugar exprimem a mesma coisa: “aqui e ali”. A substituição não causa
um prejuízo para a interpretação porque o ponto de referência é o rio
239.
A expressão evnteu/qen kai. evkei/qen formada pelo advérbio locativo dinâmico
evnteu/qen, “dali, de lá, daqui”, e pelo advérbio evkei/qen, dão a idéia de ambivalência das
236 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 634.
237 Cf. THAYER, J. H., Thayer’s Greek-English Lexicon of the New Testament. Peabody,
Massachusetts, Hendrickson, Publishers, 1999, 515; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the
New Testament and other Early Christian Literature, 823.
238 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , Paris, Hachette, 1935
11
, 1566.
239 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 301; 339.
laterais da margem ao longo do rio240. Por esta razão, impõe-se a tradução do
singular xu,lon em sentido coletivo, dada a presença dos advérbios que remetem à
noção da existência de árvores em ambas as margens do rio
241. O uso do singular
xu,lon em sentido coletivo é bem atestado na Escritura
242.
v. 2b) poiou/n karpou.j dw,deka( kata. mh/na e[kaston
que produz doze frutos a cada mês,
O aparato crítico tem poiw/n (masculino) embora xu,lon seja neutro. O texto
original, ao que tudo indica, é poiou/n, pois segue imediatamente o substantivo neutro
xu,lon
243. O próprio texto emprega, em seguida, o particípio neutro avpodidou/n.
Parece-nos que a variante pode ser o resultado de uma fusão de ou com w em alguns
particípios244...
Há uma substituição do substantivo neutro e[kaston para e[kastw no
minúsculo 046, provavelmente um erro de cópia
245.
v. 2c) avpodidou/n to.n karpo.n auvtou/(
que dá o seu fruto
A variante oferecida por
א, avpodidou,j, particípio presente masculino
singular masculino cria uma incoerência com o substantivo neutro xu,lon, tornando a
leitura de avpodidou/n mais correta em função do gênero
246. Como encontramos em A,
240 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 1343; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon
of the New Testament and other Early Christian Literature, 685.
241 A compreensão xu,lon como um singular coletivo é defendida por diversos estudiosos: Cf.
MOUNCE, R., The Book of Revelation, 377; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139; OSBORNE, G. R.
Revelation, 771; CAIRD, G. B., The Revelation of Saint John, 280.
242 Cf. Gn 1,11-12; Lv 26,20; 1Cr 16,32; 2Cr 7,13; Eclo 2,5; Jr 17,2; Sl 46,4.
243 Cf. THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament. Massachusetts, Hendrickson
Publishers, 1999, 432.
244 Cf. MUSSIES, G., The Morphology of Koine Greek as Used in the Apocalypse of John: A Study in
Bilingualism. NovTSup, 27, Leiden, E. J. Brill, 1971, 282; SMALLEY, S. S., The Revelation to John,
530; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 491; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139.
245 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, 678.
246 Cf. MUSSIES, G., The Morphology of Koine Greek as Used in the Apocalypse of John, 280-284;
SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 530; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 491.
onde a forma verbal avpodidou/n, qualifica o substantivo neutro xu,lon247, esta é,
provavelmente, a leitura mais próxima do original.
v. 2d) kai. ta. fu,lla tou/ xu,lou eivj qerapei,an tw/n evqnw/nÅ
e as folhas da árvore servem como cura para as nações.
Grande parte dos testemunhos possui o genitivo singular tou/ xu,lou. Em
א,
esta leitura encontra-se no plural tw/ xulw/n. Em um outros lugares encontramos a
variante xu,la. Esta correção explicita gramaticalmente que xu,lon zwh/j era concebido
como um coletivo plural
248.
O termo qerapei,a está relacionado a um recurso medicamentoso ou à
cura
249.
v.3
v. 3a) kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;tiÅ
Não haverá mais nenhuma maldição.
O substantivo neutro singular kata,qema é um hapáx legomenon tanto na
LXX quanto no Novo Testamento
250. O substantivo kata,qema (maldição ou coisa
amaldiçoada) corresponde a avna,qema e ambos traduzem legitimamente o termo
hebraico
~r,xe, que acarretava a total destruição dos despojos de guerra, incluindo as
cidades e seus habitantes, tendo em vista o perigo de idolatria (cf. Ex 23,31; Lv
27,28s; Dt 7,26; Js 7,22-26).
247 A mesma forma verbal pode ser encontrada em outros manuscritos. Cf. NESTLE-ALAND,
Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,2.
248 Precisamente Byz
385
no arm
1
e em Cassiodorus. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John,
531; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139.
249 Cf LIDDELL-SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon, 362; BAILLY, A., Dictionnaire
Grec-Français , 927; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other
Early Christian Literature, 453.
250 Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1179-1180; BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , 1033;
DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 517; OSBORNE, G. R. Revelation, 772-773; SMALLEY, S. S., The Revelation to John,
564.
A leitura de kata,qema por kata,maqe, provavelmente por um erro de metátese,
o que, neste caso, inviabiliza a compreensão do termo. A opção pela leitura do
sinônimo katana,qema não interfere no sentido do texto
251.
A construção kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;ti, encontrada em Ap 22,3a,
reitera a leitura de kata,qema como sinônimo de avna,qema e aproxima este texto de Zc
14,11, onde temos a locução kai. ouvk e;stai avna,qema e;ti.
A partícula adverbial e;ti é testemunhada em alguns manuscritos gregos,
enquanto outros testemunham a favor de evkei/
252. O advérbio e;ti seria o termo mais
adequado, uma vez que situa temporalmente a ocasião em que esta maldição se
extinguirá: um tempo no futuro, enquanto o advérbio evkei/ estabelece mais a noção
espacial.
v. 3b) kai. o` qro,noj tou/ qeou/. kai tou/ avrni,ou evn auvth/| e;stai(
O trono de Deus e do Cordeiro estará nela.
O Códice Sinaítico omite o artigo em o` qro,noj. A presença deste artigo, no
entanto, dá ao termo uma distinção, é o trono de Deus e do Cordeiro; não há nenhum
que lhe seja similar, adequando-se melhor ao contexto
253. Caso semelhante já foi
analisado no v.1b
254.
v. 3c) kai. oi` dou/loi auvtou/ latreu,sousin auvtw/|
Os seus servos o adorarão,
251 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,2.
252 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,3; THAYER, J.
H. Greek-English Lexicon of the New Testament, 194.
253 A expressão o` qro,noj tou/ qeou/ kai. tou/ avrni,ou é considerada por Aune como não original.
Segundo o autor, kai. tou/ avrni,ou seria uma glosa posterior, o mesmo teria ocorrido no v.1b. No
entanto, não há nenhum testemunho textual que corrobore sua afirmação. Cf. AUNE, D. E., Revelation
17-22, 1140.
254 Cf. LASOR, W. S., Gramática Sintática do Grego do Novo Testamento, 82.
O tempo verbal de latreu,w varia em alguns manuscritos que, em algum
lugar do futuro, trazem latreu,ousin255. A alteração do futuro para o presente pode
indicar uma tentativa de adaptar o verbo aos tempos encontrados nos versículos
anteriores. No entanto, a manutenção da fórmula verbal no futuro proporciona uma
harmonia com a conjugação do verbo antecedente, e;stai (cf. Ap 22,3ab) e, por isso,
parece adequar-se melhor ao contexto.
Derivado de latro,n, salário, remuneração, o verbo latreu,w
256 designa
basicamente o trabalho por salário ou o estado de servidão. Em um segundo
momento, assimila o sentido ritual de “adoração”. Na LXX encontra-se latreu,w,
freqüentemente, com o segundo sentido do grego: é um serviço prestado no
tabernáculo e no Templo.
No Novo Testamento, as ocorrências de latreu,w apresentam-se sempre em
sentido religioso, que inclui a adoração aos deuses estrangeiros (cf. Rm 1,25; At
7,42). Considerando, portanto, o legado da LXX, parece ser correta a tradução de
latreu,w por “adorar”.
v. 4
v. 4a) kai. o;yontai to. pro,swpon auvtou/(
verão a sua face
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
v. 4b) kai. to. o;noma auvtou/ evpi. tw/n metw,pwn auvtw/na
e o seu nome estará sobre as suas frontes.
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
255 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,3; BRIGHTON,
L. A., Revelation, 623.
256 Cf. THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament, 372.
v. 5
v. 5a) kai. nu.x ouvk e;stai e;ti
Não haverá mais noite.
Como no v. 3, há uma substituição de e;ti por evkei/ em alguns manuscritos. A
maioria dos testemunhos, todavia, inclina-se para e;ti
257. O advérbio e;ti situa a ação
no futuro, proporcionando uma harmonia com os verbos encontrados a partir de Ap
22,3. Em contrapartida, evkei/ direciona-se para o local onde a luz da lâmpada e do sol
não será mais necessária. Sendo assim, a leitura de e;ti parece ser mais coerente com o
contexto de Ap 22,1-5.
v. 5b) kai. ouvk e;cousin crei,an fwto.j lu,cnou kai. fwto.j h`li,ou(
Não têm necessidade da luz da lâmpada nem da luz do sol,
A expressão ouvk e;cousin crei,na possui variantes. Em alguns manuscritos,
encontramos e;xousin, com mudança do presente do indicativo para o futuro. A
Vulgata, A e alguns minúsculos seguem a leitura no futuro
258. A manutenção do
verbo no presente parece ser mais correta, embora o futuro não causasse desarmonia
ao texto. De fato, por sua característica de continuidade, Deus brilha sempre sobre os
seus na Cidade eterna.
O Códice do Vaticano omite h`li,ou, talvez por uma corrupção. Sua
manutenção oferece uma melhor compreensão do paralelo proposto.
Vários manuscritos lêem o nominativo fw/j em vez do genitivo fwto.j nas
duas ocorrências, dentre eles o Alexandrino
259. A manutenção do genitivo singular
facilita a compreensão do paralelismo sintático aqui presente, além de proporcionar
uma precisão sobre que espécie de luz será desnecessária na Cidade Santa (a luz da
lâmpada e a luz do sol) e aquela que será mantida, a presença de Deus.
257 e;ti é atestado em א entre outros. Encontra-se substituído por evkei// em alguns Unciais, no minúsculo
2329, no M
A
sy
ph
. Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,5;
SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 531; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1140.
258 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,5.
259 No texto latino alguns manuscritos seguem o genitivo grego enquanto outros o nominativo. Cf.
O’CALLAGHAN, J., Introducción Crítica Textual Nuevo Testamento. Instrumentos para el estudio de
la Biblia III. Estella, Verbo Divino, 1999, aparato crítico para Ap 22,5.
v. 5c) o[ti ku,rioj o` qeo.j fwti,sei evpV auvtou,j(
porque o Senhor Deus resplandecerá sobre eles
Alguns manuscritos trazem o artigo o` antes de ku,rioj. Neste caso, sugere-se
que “o Senhor” é o verdadeiro Deus, em distinção dos outros deuses. O uso do artigo
definido após o termo ku,rioj segue a tradução usual da LXX para a construção
hebraica
~yhil{a/ (h') hwhy.
A preposição evpi, é omitida em muitos manuscritos. Todavia, os mais
antigos o incluem, mostrando ser a leitura correta
260. A presença da preposição
indica que o verbo fwti,zw tem valor transitivo indireto, o que permite a presença da
preposição e reforça a idéia de ser Deus a fonte da luz.
Uma tradução de fwti,zw como “resplandecer”
261 proporciona uma melhor
compreensão da origem da luz. Deus mesmo lançará a luz sobre seus servos,
resplandecerá sobre eles. Preferiu-se “resplandecer” a “brilhar” para não aproximar
esta imagem daquela encontrada em Ap 22,1, onde a água do rio de água da vida
brilha, à semelhança de um cristal. O verbo fwti,zw fornece a noção de que Deus,
fonte da luz, concede a luz aos servos. Ele projeta “sobre”, evpi,, os servos sua luz e
estes a acolhem.
v. 5d kai. basileu,sousin eivj tou.j aivw/naj tw/n aivw,nwnÅ
e reinarão pelos séculos dos séculos.
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
260 Cf. NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, aparato crítico para Ap 22,5. THAYER, J.
H. Greek-English Lexicon of the New Testament, 231-236.
261 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , 2113; LIDDELL-SCOTT, An Intermediate Greek-
English Lexicon, 878; DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other
Early Christian Literature, 1074.
2. 2. Delimitação da unidade
Uma análise mais ampla do contexto imediatamente antecedente ao último
capítulo do Apocalipse poderá detectar que os c. 20-21 encontram-se marcados por
uma série da expressão kai. e=idon (cf. Ap 20,1.4.11.12; 21,1.2.22)
262. Esta imprime
uma cadência ascendente que encontrará seu ápice na visão da Jerusalém celeste em
Ap 21,1-8.
Nesta imagem, a Jerusalém celeste é descrita como uma noiva adornada
para o seu esposo. A cena é apresentada com riquezas de detalhes e vista como
recriação da obra de Deus, que se faz presente no meio da humanidade redimida. Por
isso, não haverá sofrimento nem morte na cidade santa (cf. Ap 21,3-6). Na seqüência,
Ap 21,10-21, tem-se a exposição da arquitetura da Jerusalém celeste, brilhante,
resplandecente de glória (cf. Ap 21,10-11), com medidas (cf. Ap 21,15-17) e
materiais específicos (cf. Ap 21,18-21). Nela, todavia, não há um templo material.
Em contrapartida, o texto aponta para a presença de um Templo espiritual (cf. Ap
21,22-23). Mais adiante, apresenta as nações que para ela convergem com seus
tesouros e a ausência de tudo aquilo que é impuro nesta Nova Jerusalém (cf. Ap 21,
24-27).
A predominância do vocabulário arquitetônico em Ap 21,9-21a possibilita
uma primeira subdivisão neste conjunto. De fato, apesar de Ap 21,21b possuir um
vocabulário semelhante àquele que o precede em Ap 21,21a, alguns pesquisadores
preferem considerar que Ap 21,9-21a discorre sobre a visão de conjunto da cidade,
enquanto Ap 21,21b descreve o interior da mesma
263.
262 Sobre o uso da expressão kai. e=idon ver: CHARLES, R. H., A Critical and Exegetical Commentary
on the Revelation of St. John, CIX; ALLO, E. B., L’ Apocalypse, CLXVI; DELEBECQUE, E., “‘Je
vis’ dans l’ Apocalypse”, RevThom 88 (1988) 460-466; AYUCH, D., “La instauración del Trono en
siete septenarios. La macronarrativa y su estructura en el Apocalipsis de Juan”, Biblica 85 (2004) 255-
296.
263 A questão de impor uma subdivisão em Ap 21,21b por meio de um elemento tão frágil não
pareceu muito sustentável a Giblin. Cf. GIBLIN, C. H., Apocalisse. Bologna, EDB, 1993, 14. Para
outros, contudo, a temática de uma visão interna e outra externa justificaria a ruptura da seção. Cf.
LOHSE, E., L’ Apocalisse di Giovanni. Paidéia, Brescia, 1985, 189-191; FAVA, F., “La Jerusalém
nouvelle. Une symphonie architecturale”, Christus 42 (1995) 173-179, 175. Este último entende ser
mais coerente uma ruptura no v.21b porque, a partir desta, iniciaria uma descrição a respeito do
interior da cidade que se estenderia de Ap 21, 22-22,5.
Um outro elemento que corroboraria a fixação de uma divisão neste
momento do texto seria a presença do verbo o`ra,w em Ap 21,22. Conjugado na
primeira pessoa do singular, ele colocaria o visionário como agente da ação de ver,
em contraposição à perícope anterior, onde o anjo era o mediador da visão.
A mudança de estilo nos v. 24-27 poderia sugerir a presença de uma nova
ruptura, percebida em função de um afastamento do emprego do verbo no presente ou
no aoristo para uma utilização acentuada do tempo futuro.
Em Ap 22,1 insere-se uma nova ruptura, quer pelo tema, quer pela mudança
na conjugação do verbo. A fórmula no futuro é encerrada para dar lugar ao indicativo
aoristo ativo e à figura do anjo como o mediador da visão retorna. Associado a estes
dados, também o verbo dei,knumi parece indicar o início de uma nova seção que se
detém sobre a função das novas imagens propostas
264.
Rissi, seguindo Lohmeyer, entende Ap 22,1 como uma visão independente
da seção Ap 21,9-27, não apenas pela expressão kai. e;deixe,n moi, como também pela
evolução dos novos elementos da visão
265. Podemos dizer que a ruptura em Ap 22,1
se impõe devido a uma paulatina progressão em relação a Ap 21,9-27
266. Esta
progressão é intencional, o autor do Apocalipse conduz o seu leitor/ouvinte para este
momento do livro, que se apresenta como o clímax da visão da Nova Jerusalém
267.
264 O mesmo verbo pode ser encontrado em Ap 21,10 onde sinaliza o início de uma nova seção.
265 Cf. RISSI, M., The Future of the World: An Exegetical Study of Rev 19.11-22.5. London, Press,
1972, 80; LOHMEYER, E., Die Offenbarung des Johannes. Tübingen, J.C.B. Mohr, 1953, 175.
266 Fekkes, argumenta que se poderia, através da temática, encontrar uma unidade em Ap 21,22-22,5.
Para tanto, recorre ao emprego do texto de Is 60,19 presente no substrato de Ap 21,23 como também
em Ap 22,5a. Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation, 98-99. Na
mesma linha podemos encontrar Sweet e David Mathewdson. Cf. SWEET, J. P. M., Revelation.
London, SCM Press, 1979, 307-309; MATHEWDSON, D., A New Heaven and a New Earth, 186-187.
Consideramos que os argumentos propostos por estes autores não se apresentam de modo convincente,
visto que outros textos veterotestamentários se fazem presentes e não são propostos como elemento de
ligação entre os versículos.
267 Cf. BEASLEY-MURRAY, G. R., The Book of Revelation. London, Marshall, Morgan & Sctt,
1974, 329-330. A semelhante conclusão chegaram: Beckwith, Buchanan, Pohl e Pezzoli-Olgiati. Cf.
BECKWITH, I. T., The Apocalypse of John: Studies in Introduction with a Critical and Exegetical
Commentary. Michigan, Baker Book House, 1967, 764; BUCHANAN, G. W., The Book of
Revelation: Its Introduction and Prophecy. Lewiston, Mellen Biblical Press, 1993, 610; POHL, A., Die
Offenbarung des Johannes erklärt. Wuppertal, Brockhaus, 1974, 331; PEZZOLI-OLGIATI, D.,
Täuschung und Klarheit: Zur Wechselwirkung zwischen Vision und Geschichte in der
Johannesoffenbarung. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1997, 178.
Contrasta com as opiniões acima aquela de Mathewdson. Este observa que o vocábulo zwh/j usado para
descrever a árvore une, claramente esta característica com as referências anteriores do autor do
Apocalipse à vida eterna. Além disso, prossegue Mathewdson, embora a presença da árvore da cura na
Importa agora ao autor do Apocalipse o que se encontra ao centro da cidade:
o rio da vida, a árvore da vida e o trono como a fonte da vida da cidade adorante.
Os vv. 1-2 desenvolvem coerentemente o tema da vida, quando descreve a
finalidade dos dois elementos: o rio e a árvore. O rio de água da vida (cf. Ap 22,1a),
por ter origem no trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1b), supera sua função
ordinária, para ser portador da vida que vem de Deus. O segundo elemento do tema
da vida, a árvore da vida, localizada às margens do rio de água da vida, produz frutos,
não sazonais, mas constantemente, sem interrupções, e cujas folhas são para a cura
das nações (cf. Ap 22,2d). A cura, operada pelas folhas das árvores, concede o
restabelecimento da plenitude da vida.
Assim, em vista da carência de elementos formais que estabeleçam as
interligações com o texto antecedente, parece correto dizer que a seção iniciada em
Ap 22,1a distingue-se nitidamente do contexto anterior.
A seguir, os vv. 3b-5 apresentam as características da ausência de
maldições, a presença do trono de Deus e do Cordeiro, a ausência da noite e a nova
relação dos fiéis com Deus e com o Cordeiro. Estas dão o tônus da vida na Nova
Jerusalém.
A fórmula introdutória do v.3a kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai dá continuidade
e estabelece um elo com o pensamento de qerapei,an tw/n evqnw/n (curar as nações),
expresso no v. 2. Deus removerá a maldição imposta às “nações” (v. 2c). A presença
estável de Deus e do Cordeiro elimina a maldição e instaura a imagem do paraíso.
Portanto, o v.3a dá seqüência aos vv. 1-2, através do tema da vida implícito na
ausência de maldições na Cidade Santa.
nova criação pareça problemática, esta característica “física”, como a do fruto correspondente, tenta
provavelmente simbolizar a provisão eterna da vida escatológica para as nações, sem sugerir que terão
em qualquer momento que sofrer pelos males da antiga criação. A cura das nações deve provavelmente
ser entendida mais especificamente em relação às condições anteriores das nações, retratadas nos c. 18;
19,15; 20,7-10.
O tema do paraíso que se caracteriza em Ap 22,1-2, teria, na visão deste autor, semelhanças com várias
imagens que o precederam. O que sugeriria uniões fortes com as seções anteriores. Especialmente
significante seria a união com Ap 21,1-8. O rio da vida escatológico teria sido antecipado em Ap 21,6.
Mas o tema do paraíso estaria também implícito na nova criação de Ap 21,1-5a. Mathewdson firma a
sua tese nas prefigurações do Antigo Testamento que permeariam esta seção (cf. Is 65,17-20). A
ausência de sofrimento, aflição e morte que prevalecerão na nova criação (cf. Ap 21,4) é a condição
expressa do paraíso. Desta forma, Ap 21,1-8 e 22,1-5 formariam um tipo de inclusão em volta da visão
da Nova Jerusalém que situaria toda a visão dentro de uma estrutura de nova criação paradisíaca. Cf.
MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 186-187.
A declaração da presença do trono de Deus e do Cordeiro na Cidade Santa,
no v.3b, desencadeia uma série de ações: adoração dos servos, a visão da face de
Deus e do Cordeiro, o portar o Nome e, por fim, compartilhar da ação de governo. No
v. 3c, encontra-se a primeira referência aos habitantes da cidade: os servos. O termo
dou/loi indica que estes são os destinatários da vida renovada dos vv. 1-2, bem como
das bênçãos escatológicas propostas nos v. 3c.4ab.
As duas bênçãos encontradas no v. 4 são destinadas aos servos elencados no
v. 3c: eles verão a sua face e o seu nome estará sobre suas frontes. Tais bênçãos
sugerem uma intimidade na relação que terão com Deus e o Cordeiro. Esta relação
estará ancorada na glória de Deus presente na cidade-templo e manifestada pela
metáfora do trono (v. 1-3).
O v. 5 descreve outra característica física da cidade-templo: os que nela
habitarão desconhecerão a noite e não terão necessidade da luz artificial ou natural,
porque, junto à glória de Deus, a escuridão será impossível. O v. 5d liga-se ao v. 3c
pelo sujeito do verbo basileu,sousin: estes são, naturalmente, os servos de Deus.
As palavras iniciais do v.6, Kai. ei=pe,n moi, sugerem que um novo tema será
abordado doravante. De fato, o v. 6 introduz uma ruptura tanto pela temática,
deixando de tratar da vida no interior da Cidade Santa, como também pelo abandono
da forma descritiva, para assumir a forma de um discurso que visa o modo de
proceder dos servos de Deus. Muda também o modo de agir do anjo que não mostra
mais ao visionário uma cena, mas lhe fala em tom exortativo
268. Sendo assim,
consideramos que o texto iniciado em Ap 22,1 conclui-se em 22,5
269.
268 Há quase uma unanimidade entre os autores em indicar Ap 22,6 como início de uma nova seção.
Neste epílogo a tônica moral é freqüentemente aceita. Cf. OSBORNE, G. R. Revelation,777-800;
MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 402-410; KISTEMAKER, S. J., Revelation, 583-595;
THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 493-524; STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ, 603-614;
BRIGHTON, L. A., Revelation, 637-658; COLLINS, T., Apocalypse 22:6-21as the Focal Point of
Moral Teaching and Exhortation in the Apocalypse. Roma, PUG, 1986. Outros lhe conferem um teor
mais litúrgico. Cf. KAVANAGH, M. A., Apocalypse 22,6-21. As Concluding Liturgical Dialogue.
Roma, PUG, 1984.
269 Predomina um consenso entre os pesquisadores quanto a delimitação de Ap 22,1-5. Cf.
MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401; THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 455-492;
SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561-565; OSBORNE,G. R. Revelation, 768-776;
BRIGHTON, L. A., Revelation, 622-630; KISTEMAKER, S. J., Revelation, 579-583; PASQUALINI,
A. R., “L’ architettura della Gerusalemme celeste: la strutura letteraria di Ap 21,9-21a”, BSW 1 (1998)
43-59; YUBERO, D., “La ‘Nueva JerusalémDel Ap 21,1ss”, Cultura Bíblica 115 (1953) 359-362.
2.3 A estrutura do texto
O estudo sobre a delimitação do texto indicou o início de nossa perícope de
estudo em Ap 22,1 e seu encerramento em Ap 22,5. Apesar de sua brevidade, esta
encontrar-se-ia articulada em duas seções: v.1-3a e v.3b-5. A primeira seção
desenvolveria a temática da vida que brota do trono de Deus e do Cordeiro, enquanto
a segunda seção discorreria a respeito dos efeitos da presença do trono de Deus e do
Cordeiro para seus servos: a contemplação da face de Deus, o Nome divino gravado
em suas frontes, a inexistência da noite e a ineficácia das fontes de luz.
2.3.1 As seções
2.3.1.1 A primeira seção, v. 1-3a
Em esquema, a organização dos v. 1-3a:
cerne da visão
trono de Deus e do Cordeiro (v. 1b)
Poucos autores discordam da delimitação em Ap 22,1-5, optando por um dilatamento da unidade
oscilando entre Ap 21,9-22,5; 21,22-22,5; 21,24-22,5; 21,10b-22,5. Respectivamente, ALLO, E. -B.,
L’Apocalypse, 324-327; JOHNSON, D. E., Triumph of The Lamb. A Commentary on Revelation.
Phillipsburg, New Jersey, P&R, 2001, 308-324; STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ.
Michigan, Andrews University Press, 2002, 581-602; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1133-1181.
Embora em uma delimitação mais ampla Aune tenha feito a opção por Ap 21,10b-22,5, ao estabelecer
uma estrutura restrita opta por uma delimitação que limita-se a Ap 22,1-5. Cf. AUNE, D. E.,
Revelation 17-22, 1133-1181. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1133-1181
efeito característica
rio de água da vida (v. 1a) brilhante como cristal (v. 1a)
da árvore da vida (v. 2a) abundância de frutos (v. 2bc)
folhas terapêuticas (v. 2d)
conseqüência final
não haverá mais maldições (v. 3a)
A primeira seção apresenta a temática da vida que procede do trono de Deus
e do Cordeiro. No v. 1a, o Anjo apresenta ao autor do Apocalipse por meio de três
elementos, a visão interna da Cidade Santa. O primeiro elemento é o rio de água da
vida, que tem sua origem determinada no v. 1b: o trono de Deus e do Cordeiro. Este
constitui o segundo elemento da visão proposta ao hagiógrafo. O terceiro elemento é
a árvore da vida, que, por sua extraordinária produção, ilustra a abundância de vida.
Os v. 1-3a são marcados pela locução kai. e;deixe,n moi. A presença do aoristo
ativo torna-se elemento indicativo da interligação desta seção, posto que, descreve de
modo contínuo, aquilo que está sendo o objeto da visão do autor sagrado.
O primeiro objeto do verbo dei,knumi é o rio de água da vida brilhante como
cristal, conforme indica o acusativo de especificação que lhe sucede. Este rio é
descrito por meio de dois genitivos. O primeiro indica o objeto da ação enquanto o
segundo assume função de adjetivo que distancia do ordinário a matéria do rio; ele
porta, em si, a vida. A descrição do rio tem continuidade com o adjetivo lampro,n, que
confere ao rio uma diafania ímpar, ressaltada pela oração comparativa w`j
kru,stallon, reforçando o fato de suas características estarem dependentes do local de
sua origem. Este local será precisado pelo verbo evkporeu,omai (v. 1b).
Deste modo, o verbo evkporeu,omai servirá como elemento causativo; a
origem do rio de água da vida é o trono de Deus e do Cordeiro (v. 1b).
Concomitantemente, interliga o v. 1a ao 1b. O trono converte-se, neste momento, em
instrumento para indicar a verdadeira fonte de vida, que está naqueles que o ocupam:
Deus e o Cordeiro. Por conseqüência, a vida que brota do trono só pode ser plena. Os
atributos do rio (v. 1a) convertem-se em recurso para comunicar a vida a toda a
Cidade Santa.
A sentença, iniciada no v. 1, estende-se até o v. 2a, considerando que o
objeto de e;deixe,n comporta, além do rio e do trono, um terceiro elemento: a árvore da
vida. Corrobora a existência de um vínculo entre os v. 1-2a, a conjunção kai,, que
introduz duas demonstrações sucessivas: “o rio da vida” e a “árvore da vida”. Neste
caso, a conjunção assumiria uma função vinculante
270. Confirma esta unidade entre
o v. 1ab e o v. 2a o genitivo singular zwh/j, que, como em 1a, atribui uma qualificação
à árvore que se encontra às margens do rio da vida. Assim, a temática de uma vida
plena possui continuidade nestes dois versículos.
A locução evn me,sw| abre o v. 2a e o integra ao verbo evkporeu,omai de 1b,
indicando, assim, que é atribuída ao trono de Deus e do Cordeiro a origem da vida
produzida pela árvore que margeia o rio
271.
Do mesmo modo que foram atribuídas ao rio características extraordinárias,
a árvore da vida também as receberá. Sua descrição constitutiva inicia-se pelo verbo
poiou/n do v. 2b, cujo sujeito é a árvore da vida do v. 2a. A periodicidade da produção
desta árvore chama a atenção, pois supera o ciclo produtivo ordinário de qualquer
270 Esta posição não possui um consenso entre os autores. Há um grande debate entre os estudiosos a
respeito da função sintática destes versículos. Para alguns haveria uma unidade entre os versículos
tanto pela temática da vida, como também pela sintaxe. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John,
561-565; OSBORNE,G. R. Revelation,768-776; AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1175-1181.
Outros, como Mounce, assumem a posição de que evn me,sw| th/j platei,aj marca o início de uma nova
sentença. Neste caso refere-se respectivamente à localização da árvore da vida e a conjunção kai, não
possuiria função vinculante. Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401.
Seguiremos a linha onde o kai, de Ap 22,1 e Ap 22,2b deva ser compreendido mais como elemento de
interligação, como introduzindo duas demonstrações sucessivas do que elemento divisor da seção,
porque a posição do kai, seguiria o hábito do autor sagrado de introduzir um novo e distinto objeto com
esta partícula kai,. No entanto, a posição do kai, não constitui uma questão fundamental.
271 Moffatt considera que a expressão evn me,sw| th/j platei,aj auvth/j está ligada ao v.1 e desempenha a
função de concluir a sentença iniciada no versículo anterior. Cf. MOFFATT, J., Revelation. Grand
Rapid, Eerdmans, 1980, 404. Seguem esta linha de pensamento Aune, Brighton, Smalley e Mounce.
Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139; BRIGHTON, L. A., Revelation, 622; SMALLEY, S. S.,
The Revelation to John, 530; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 399. Swete, por sua vez,
considera que evn me,sw| th/j platei,aj origina uma nova sentença. Cf. SWETE, J. P. M., Apocalypse,
297.
espécie de planta, retomando, assim, tamm por meio desta imagem de abundância,
a temática da vida proposta no v. 1a.
Forma semelhante ocorre em 2d, onde a locução eivj qerapei,an indica as
folhas da árvore da vida do v. 2a como a causa da cura das nações do v. 2d. O
destinatário da cura, especificado pelo genitivo plural e;qnoj, confere uma
universalidade aos destinatários desta cura. Trata-se de uma vida onde as mazelas não
mais serão causa de infortúnio e a vida será, portanto, plena. Muitas nações serão
objeto da cura, que, tendo em vista o cenário antecedente, possui como origem o
trono de Deus e do Cordeiro.
Esta dinâmica da vida plena culmina com a afirmação da inexistência do
mal na Cidade Santa. Iniciada por uma conjunção conclusiva, a oração emprega o
advérbio de negação juntamente com o verbo eivmi, para indicar a total impossibilidade
de o mal coabitar com a criatura na Jerusalém celeste, e muito menos diante do trono
de Deus e do Cordeiro.
Apesar da alteração do tempo verbal, de aoristo indicativo (v. 1ab) e
particípio presente (v. 2b) para o futuro do indicativo em 3a, entendemos que tal
mudança não chega a constituir uma ruptura entre os v. 3a e v. 1-2. Antes, a inserção
do novo estilo facultaria ao autor descrever aquilo que será a vida na Jerusalém
Celeste
272.
A continuidade entre os vv. 1-2 e 3a pode ser observada também pela
temática proposta no v. 3a. A declaração negativa kai. pa/n kata,qema ouvk e;stai e;ti
continuidade ao tema da vida dos vv.1-2 e estaria vinculada à cura das nações do v.
2c. A ausência de maldições estaria relacionada à vida proporcionada pelo rio de água
da vida e pela árvore da vida
273. O termo kata,qema indica a coisa ou a pessoa sobre
quem repousa a maldição. O advérbio de negação que sucede a expressão kata,qema
aporta a supressão do mal. A extensão temporal da ausência da maldição é manifesta
pela conjugação no verbo eivmi, no futuro e enfatizada pelo advérbio e;ti: ela já não
existirá mais para todo o sempre.
272 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561-565; OSBORNE,G. R., Revelation,768-776;
AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1175-1181; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401.
273 Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 202.
2.3.1.2 A segunda seção, v. 3b-5
cerne da visão
o trono de Deus e do Cordeiro (v.3b)
efeito
adoração dos servos (v.3c)
visão da Face de Deus e do Cordeiro (v.4a)
Nome de Deus e do Cordeiro impresso na fronte (v.4b)
extinção da noite (v.5a)
caducidade da lâmpada e do sol (v.5b)
reinado eterno junto a Deus e ao Cordeiro (v.5d)
O v. 3b inicia uma nova seção e embora, possuindo condições semânticas
semelhantes àquela do v.1a, o termo “trono”, neste versículo, relaciona-se não mais à
questão da vida, mas à soberania absoluta de Deus e à adoração que os que estão no
trono recebem dos residentes da Cidade Santa. Dessa forma, a conjunção kai, marca o
início da nova seção situando o trono na Cidade Santa, conforme indica a locução
pronominal evn auvth/|.
Em seguida uma nova conjunção introduz um novo personagem: os servos,
cuja única função é a adoração. A apódose latreu,sousin auvtw/| encontra-se
imediatamente ligada ao sujeito de 3b: Deus e o Cordeiro, confirmando a relação
entre estas duas linhas do v. 3. A presença da majestade divina, expressa pela imagem
do trono, revela a real relação do homem com seu Deus: é servo. O modo e o tempo
em que os servos exercerão sua função está explicitado pelo verbo latreu,w, que,
conjugado no futuro, sinaliza para a durabilidade da ação de adorar.
A presença da conjunção aditiva kai, no início de v.4a dá seqüência à
descrição das características dos servos na Cidade Santa: ver a face, portar Seu Nome
e reinar com Ele.
Um outro elemento de entrelaçamento entre os versículos pode ser
encontrado em 4a, onde a forma verbal o;yontai, tem como sujeito os servos de 3c.
Apresenta-se como continuidade deste. Concomitantemente, esta forma verbal, liga
4a ao v. 3b, pois a face contemplada pelos servos é a de Deus e do Cordeiro, como
indica o pronome auvtou/. O mesmo pronome liga 4b a 3b, porque o Nome impresso
na fronte dos servos é o Nome de Deus e do Cordeiro. O singular to. o;noma, por outra
parte, acentua a unidade entre os dois personagens que estão sobre o trono.
O segundo pronome de 4b, auvtw/n, contudo, une-se diretamente ao sujeito de
3c: os servos, conforme sugere a forma de possessivo plural. Tendo suas frontes
marcadas, os servos passam a exprimir uma realidade de pertença: eles são
propriedade de Deus. Esta marca acentua a imagem de soberania que o trono de Deus
e do Cordeiro adquire nesta segunda seção.
A estrutura ouvk e;stai e;ti de 5a é iniciada, como em 3a, por uma conjunção,
mas suas funções são diversas. Em 3a sua função é conclusiva, enquanto aqui em 5a,
aditiva. Quanto ao escopo, é idêntico em ambas as estruturas gramaticais. Em 3a, há a
ausência de maldições; em 5a indica a impossibilidade da existência da noite, das
trevas
274. Apesar das duas construções possuírem a mesma sintaxe, seria mais
correto manter o v. 5a com o v. 5b, e, portanto, na mesma seção, uma vez que neste
será descrito o elemento do qual não se terá necessidade na Cidade Santa: a luz da
lâmpada e do sol.
Uma nova conjunção aditiva no v. 5b corrobora a relação entre 5a e 5b, pois
especifica o impacto da ausência da noite para os servos: isenção da necessidade da
luz da lua ou da luz do sol. Os termos nu,x e fwto,j não estão em relação de oposição;
274 O termo noite no universo semântico joaneu possui forte teor teológico. Este tema será tratado
posteriormente na semântica.
antes, há uma suplantação da noite pelo resplendor da presença de Deus em meio aos
servos. Noite e luz pertencem a uma realidade decrépita.
Além destes elementos expostos, o v. 5b está vinculado a 3c em função do
sujeito do verbo e;cw ser os servos, como se depreende da pessoa em que o verbo foi
conjugado. A conjunção subordinativa o[ti introduz uma frase causal que explicita a
obsolescência da luz da lâmpada e da luz do sol do v. 5b ao fato de Deus brilhar sobre
os servos no v. 5c. A forma verbal fwti,sei tem como sujeito Deus, o Senhor: ele é o
portador e doador do resplendor que atingirá os servos. Esta dinâmica é bem
acentuada pela locução evpV auvtou,j, ao indicar que a luz que ilumina os servos e vem
sobre eles tem um Outro como fonte e princípio. Os servos são receptores do
esplendor de Deus.
Por fim, o verbo basileu,sousin mostra que o sujeito verbal continua sendo
os servos adoradores mencionados no v. 3c. Estes recebem, ainda, uma nova função:
reinar pelos séculos dos séculos, isto é, por toda a eternidade.
Tendo em vista os elementos propostos, consideramos que o texto
apresenta-se em duas seções intimamente relacionadas entre si. A primeira, v. 1-3a,
fortemente marcada pelo tema da vida restaurada a partir do trono de Deus e do
Cordeiro. Já a segunda seção é constituída pelos v. 3b-5, onde temos a presença desta
vida, que não é outra senão a presença do trono de Deus e do Cordeiro na Cidade
Santa e as conseqüências desta para os servos que habitam a Jerusalém Celeste.
2.4 Ap 22,1-5: aspectos semânticos
O estudo sobre o texto de Ap 22,1-5 indicou a presença de duas seções
intimamente relacionadas. A primeira, Ap 22,1-3a, apresenta como elemento de
integração o tema da vida. O rio de água da vida constitui o primeiro elemento da
visão da Cidade Santa, seguido pela descrição da árvore da vida com suas folhas
terapêuticas que curam as nações e culmina com a solene declaração de 3a onde a
maldição tem o seu fim decretado.
2.4.1 Ap 22,1-3a 275
a) Um rio de água da vida
Ap 22,1ab descreve o rio de água da vida que brotava do trono de Deus e do
Cordeiro. Na obra do Apocalipse, a expressão “rio de água viva” é empregada dentro
de uma estrutura simbólica
276. No Apocalipse, o termo “rio”, quando usado
275 A datação do livro do Apocalipse tem como indicador externo o culto ao imperador, que
constituiu o aspecto mais original da política religiosa de Augusto, que, seguindo as tendências dos
últimos tempos da República, mesclou as tradições nacionais com o culto helenístico. Sob seu governo
foram levadas a termo as intenções de conferir ao soberano uma áurea e um valor sagrados.
O instinto
político deste imperador o fez compreender que o cultivo da religião teria muito a ver com a solidez do
Império. Por esta razão podemos falar de uma política religiosa de Augusto.
As interferências externas não parecem impor uma grande ameaça ao culto e à política religiosa do
Império. Assim é que a difusão da filosofia helenística, dos diferentes cultos e crenças orientais
acarretaram na nobreza romana uma prática dos ritos da religião romana de modo formal. Por
conseguinte, nada impedia que pertencessem a diversas associações religiosas e cumprissem ao mesmo
tempo os ritos da religião tradicional. A grande novidade deste período é que, ao lado dos deuses que
protegiam o lar, as divindades domésticas e familiares, honrava-se também Augusto como protetor de
cada casa e de cada lugar.
A religião do Estado assumiu um status mais elaborado a partir de Domiciano (81-96 d.C.). Sob este
Imperador, muito provavelmente foi redigido o Apocalipse. O prazo dilatado para a datação busca
fundamentar-se em Irineu e em Eusébio, os quais, além de confirmar a data e a apostolicidade do
escrito, dão notícias sobre a prisão e exílio de João na ilha de Patmos, no decurso do 14º ano de
Domiciano, ou, seja, nos anos de 94/95. De igual opinião pode-se apresentar Primásio, bispo de
Adrumeto na África. São Jerônimo, Clemente de Alexandria e Orígenes falam do exílio em Patmos.
Os argumentos em contrário são pautados também em escritos antigos. Os Atos de João (IIº séc.)
apresentam o exílio e a estadia em Éfeso sob o governo de Nero. O fragmento de Muratori (IIº séc.)
poderia ser inserido também neste ponto de vista, pois, para este fragmento, João precede Paulo.
Tertuliano (IIIº séc.) também data a composição do Apocalipse sob Nero. O único que difere é Santo
Epifânio (Vº séc.), que aceita a composição do Apocalipse sob o governo de Cláudio (54), antes
mesmo de Paulo ter iniciado a evangelização de Éfeso. Há, porém, a possibilidade deste ter-se
equivocado com o nome de Nero: Nero Claudius Caesar
275.
Sobre a questão do Culto ao Imperador ver: GONZÁLEZ RUIZ, J. M., Apocalipsis de Juan,
Madri, Cristiandad, 1987; KRAYBILL, J. N., Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse,
JSNT-Suppl.Series 132, Sheffield, Sheffield Press, 1996.
Sobre o tema da datação sob o governo de Domiciano há, hoje, quase uma unanimidade entre os
autores elencamos alguns: BRÜTSCH, C., La clarté de l'Apocalypse. Labor et Fides, Gèneve,1966;
BOXALL, I., Revelation: Vision and Insight. London, SPCK, 2002; KNIGHT, J.,
Revelation.Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999; THOMPSON, L. L., The Book of
Revelation:Apocalypse and Empire. New York e Oxford, Oxford University Press, 1990;
PARKER, F.
O. Jr., “Our Lord and God' in Rev 4,11: Evidence for the Late Date of Revelation?”, Biblica 82 (2001),
207-231;
ROJAS-FLORES, G., “The Book of Revelation and the First Years of Nero’s Reign”,
Biblica 85 (2004) 375-392;
SLATER, T. B., “Dating the Apocalypse to John”, Biblica 84 (2003): 252-
258; WARDEN, D., “Imperial Persecution and the Dating of 1 Peter and Revelation”, Journal of the
Evangelical Theological Society 34.2 (1991): 203-212.
276 Segundo Ugo Vanni, o simbolismo ocupa, na interpretação do Apocalipse, um lugar central. Por
esta razão, para compreender o Apocalipse torna-se necessário, em primeiro lugar, compreender os
seus símbolos, posto que ele determina a sua teologia. Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 31.60.
Mas o que seria um símbolo? Para Jörg Splett, a etimologia da palavra símbolo encontrar-se-ia ligada
aos procedimentos jurídicos da antiguidade. Uma moeda, um bastão, etc era dividido em duas partes e
isoladamente, pode designar o grande Eufrates (cf. Ap 9,14)277 ou representar
metaforicamente o ataque contra a mulher (cf. Ap 12,15.16). Na ausência de
segurança, ilustrada pela seca do rio, os inimigos têm livre acesso para atacar (cf. Ap
16,12).
A ausência de segurança e a imagem da vulnerabilidade proposta no texto
acima são superadas por aquela indicada em Ap 22,1-2, na qual um “rio de água da
vida” brota do trono de Deus e do Cordeiro e atravessa a Nova Jerusalém. A
expressão u[datoj zwh/j, literalmente “água da vida”, revela um novo sentido para a
água contida pelo rio: porta em si o dom da vida. A cena traz consigo uma certa
representação do Éden primitivo (cf. Gn 2,10ss)
278.
Esta ilustração paradisíaca pode ser encontrada em diversos textos vétero-
testamentários como Is 51,3, onde YHWH consolou a Sião, consolou todas as suas
ruínas e transformará o seu deserto em um Éden. De igual modo, o caminho
transformado no deserto está, geralmente, ligado à modificação em termos
ao serem reunidas serviam de sinal de reconhecimento ou um sum-ballei/n de legitimação. O verbo
grego sumballei/n, que significa reunir juntar, encontra sua origem na palavra símbolo.
Em sua base antropológica, o símbolo está radicado na constituição do homem como ser espiritual,
corporal e comunitário, mas o reporta a uma realidade presente que ultrapassa o próprio símbolo. A
interpretação de um símbolo comportará sempre uma margem de divergência em virtude da própria
função do símbolo: velar e revelar. Por isso, o símbolo será sempre uma realidade de separação e de
união.
Sob o prisma religioso, o símbolo vincula o visível e o invisível para o homem. A linguagem dos
símbolos é a linguagem da religião no sentido de traduzir uma realidade que supera a compreensão
humana. Porém, como tem a função de velar e revelar, o símbolo oculta as verdades santas ao olhar
profano enquanto que as desvela aos que sabem-la. Deste modo, o símbolo oferece um significado
completo em si.
Naquilo que se refere à linguagem, o símbolo expressa a experiência humana, é um evento de
linguagem e também é um evento que implica uma interpretação. Além disto, o símbolo não constitui
só uma estrutura semântica, antes, é uma estrutura intencional, é um jogo intralingüístico. Será sobre
esta estrutura semântica intencional que a hermenêutica se deterá a fim de compreender a estrutura
ontológica do símbolo. Cf. SPLETT, J., “Símbolo”, In Sacramentum Mundi. Barcelona, Herder, 1976,
col 354. Cf. HEINZ – MOHR, G., Dicionário dos Símbolos. Imagens e sinais da arte cristã. São
Paulo, Paulus, 1994, IX.
277 O termo rio em sua etimologia equivale à água que se precipita velozmente. Seu emprego na LXX
deriva do termo egípcio “rio”, este, quando usado no singular, designa basicamente o Nilo (cf. Gn
41,1ss; Ex 1,22) ou os seus canais (cf. Ez 29,3ss). Em alguns textos o termo hebraico utilizado é
rh;;;n;,
acompanhado do nome do rio (cf. Jr 13,7; Ez 1,1ss; Br 1,4). Nestes textos, o contexto permite perceber
que a idéia de fundo é aquela de água corrente juntamente com a idéia de perenidade do curso da água.
Do ponto de vista textual, idéia similar aparece em Gn 2,10ss para designar tanto o rio do paraíso
como os seus quatro afluentes. Cf. RENGSTORF, K. H., potamo,j, GLNT ,1493.
278 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561; BRIGHTON, L., Revelation, 623; AUNE, D.,
Revelation 17-22, 1175; LUPIERI, E., L’Apocalisse, 349.
semelhantes à de um paraíso (cf. Is 35,6-7; 49,10). Nele, YHWH dá de beber a seu
povo (cf. Is 43,19-20) e a criação é renovada (cf. Is 65,20-25)
279.
O atributo concedido ao rio “de água da vida” possui uma tênue conexão
com Sl 36,9-10; Pr 10,11; 13,14; 14,27; 16,22, que recorrem à expressão “fonte de
vida” (
~yYI+x; rAqåm.). Esta fonte é identificada com aquilo que é proferido pelo justo ou
com YHWH, a fonte de vida. Outros textos do Antigo Testamento utilizam algumas
metáforas da água para descrever um futuro em condições ideais (cf. Sl 1,1-3; 46,4; Is
12,3; Jr 17,7-8). Em Jr 2,13; 17,13, há uma identificação de YHWH com a “fonte de
água da vida”, mas o contexto difere de Ap 22,1a, porque trata-se de uma queixa de
YHWH contra seu povo que abandonou a “fonte de água da vida”, o próprio Deus.
A metáfora da água no Apocalipse assume nuances predominantemente
vétero-testamentários
280. Tal influência poderia ser detectada em Ap 1,15; 14,2; 19,6
279 Apesar de os textos acima possuírem contatos com Ap 22,1a, estes são secundários, pois
vinculam-se apenas por meio de uma tênue temática do paraíso restaurado, sem apresentar liames a
nível de vocabulário. Contatos terminológicos se dão com Ez 47,1-12; Zc 14,8 e Jl 4,18, que, por
serem objeto da presente pesquisa, serão tratados detalhadamente mais tarde.
Um interessante paralelo será encontrado, tanto no nível temático, como também no de vocabulário,
além do contexto escatológico. Sendo assim, estes textos serão abordados, mais detalhadamente, nos
capítulos subseqüentes, a fim de melhor averiguar os contatos existentes. Estes contatos foram
sinalizados por diversos autores. Cf. VANHOYE, A., ‘L’ utilisation du livre d’Ézéchiel dans l’
Apocalypse, 436-476; GOULDER, M. D., “The Apocalypse as an annual cycle of prophecies”, 342-
367; VOGELGESANG, J. M., The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation; MOYISE, S.,
The Old Testament in the Book of Revelation; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 379-401;
THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 455-492; SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 561-565;
OSBORNE,G. R. Revelation, 768-776; BRIGHTON, L. A., Revelation, 622-630; KISTEMAKER, S.
J., Revelation, Michigan, Baker, 2002, 579-583; MATHEWDSON, D., A New Heaven and a New
Earth, 186-187.
Em decorrência do contexto escatológico, os textos de Ezequiel, Zacarias e Joel encontrar-se-iam
semanticamente distantes dos textos de Am 8,8; 9,5; Eclo 47,14; 24,25ss; 39,22, onde a aplicação do
termo volta-se para a abundância de água do Nilo, responsável pela fartura e bem-estar dos habitantes
do Egito.
280 De modo geral, no Antigo Testamento, o tema da água encontra-se ligado às questões
fundamentais da sobrevivência humana (cf. Ex 23,25; 1Sm 30,11-12; 1Rs 18,4.13), do pastoreio (cf.
Gn 24,11-20; 30,38; 34,19) e da lavoura e neste sentido, a chuva é altamente valorizada (cf. Dt 11,11;
1Rs 18,41-45). Em sua caminhada pelo deserto, Israel faz a experiência da necessidade extrema de
água e seu suprimento miraculoso da parte de YHWH (cf. Ex 17,5-6). Pode ser ainda um instrumento
de purificação que afetava diversas situações da vida humana, tais como as regras de consagração ou
limpeza ritual do sacerdote: (cf. Nm 8,5-22; Ex 29,4; 30,17; 40,30ss; Lv 16,4 16,26.28); após o
nascimento de uma criança (cf. Lv 12,1ss) ou da lepra (cf. Lv 14,8-9; 2Rs 5,10.14).
Em uma perspectiva negativa, a água recebe uma aparência demoníaca, de algo que pode pôr a vida
humana sob ameaça (cf. Gn 6-8; Ex 14-15) ou pode tamm simbolizar o reino dos mortos (cf. Ez
26,19-20).
A função purificadora da água, em alguns textos proféticos, assume a conotação de purificação divina
que expurga todo o pecado da terra como também do povo. Este, livre de toda a idolatria encontrar-se-
(cf. Ez 1,24; 43,2), no qual a figura de muitas águas é a descrição do vidente para o
poder numinoso das vozes celestiais.
O contrário pode ter ocorrido com o judaísmo tardio, que entendia a
descrição da água sob o viés de eternidade feliz. Podem-se acrescentar as “águas
vivas” de Zc 14,8 como uma demonstração de que Deus vai redimir Israel e será seu
Deus
281, de tal forma que esta cumplicidade não poderia ser jamais destruída.
A expressão “água da vida” é encontrada, ainda, no livro gnóstico de
Baruc
282. Há uma alusão a um ritual envolvendo o ato de beber a “água da vida”,
que sai da “fonte da vida”, baseado em uma distinção entre a água sob o firmamento,
que é parte da criação má e a espiritualmente benéfica “água da vida”, que está acima
do firmamento. Esta literatura não parece possuir uma real influência sobre o
Apocalipse, tendo em vista que a água a que se reporta o texto de Ap 22,1a possui sua
origem no trono de Deus e do Cordeiro, fonte e princípio da vida por ele portada.
Em relação ao Novo Testamento, a expressão “rio de água de vida” de Ap
22,1a possui uma conexão com o Evangelho de João. No poço de Jacó, Jesus oferece
uma água que pode suprimir a sede do homem, contrapondo-a àquela que era retirada
do poço, incapaz de extingui-la (cf. Jo 4,13). A sede de vida, simbolizada na sede de
água, não pode ser extinta pelo elemento natural. Ao contrário, a “água viva”
proporcionada por Jesus extingue a sede para sempre (Jo 4,10.14)
283. O dom de
Jesus sacia a sede do homem de vida, porque regenera no homem a vida
284.
O mesmo contexto não é partilhado por outros textos do Novo Testamento,
nos quais o termo u[dwr encontrar-se-ia mais vinculado à manutenção da vida humana
ia apto a receber um novo Espírito (cf. Is 44,3; Ez 36,25; Zc 13,1-2). Cf. GOPPELT, L., u[dwr GLNT,
v. XIV, 80.
281 Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1104.
282 Cf. DIEZ MACHO, A., Apocrifos del Antiguo Testamento VI. Madrid, Cristiandad, 1983. Ver
também, Revista Bíblica Brasileira, 17. Apócrifos do Antigo Testamento, vol. II Fortaleza, Nova
Jerusalém, 2000, 161-219.
283 Na opinião de Smalley, o conceito “água da vida”, tanto no Evangelho de João como no
Apocalipse, denota a vitalidade que flui de Deus no Cristo pelo Espírito. Deste modo, haveria uma
proximidade conceitual não acidental entre os autores dos dois documentos. Cf. SMALLEY, S. S., The
Revelation to John, 562. A mesma linha de pensamento pode ser encontrada em Goppelt. Cf.
GOPPELT, L., u[dwr, GLNT, v. XIV, 84.
284 Uma definição para a expressão “água da vida” poderia ser encontrada no interior do próprio
Evangelho: ela é a palavra de Jesus (cf. Jo 8,37; 15,7), o seu Espírito (cf. Jo 7,39) e Ele mesmo (cf. Jo
6,56; 14,20; 15,5s). Os textos fazem referência ao escatológico e definitivo dom de água repetidamente
prometido no Antigo Testamento. Cf. GOPPELT, L., u[dwr, GLNT, v. XIV, 84.
(cf. Mc 9,41; Mt 10,42; Lc 7,44; 16,24; Jo 13,5) ou seria instrumento para testar a fé
de Pedro (cf. Mt 14,30), um evento escatológico representado no domínio de Jesus
sobre as águas (cf. Mc 4,35-39; Mt 8,23-27) ou ainda quando usada como elemento
do Batismo, recebendo, assim, sua maior dignidade (cf. Ef 5,26; Hb 10,22; At 22,16;
1Cor 6,11)
285.
O mesmo ocorre em alguns textos do livro do Apocalipse, onde a imagem
da água recebe sentido negativo. Em Ap 17,1, é proposta a figura da prostituta
entronizada sobre muitas águas. Esta metáfora é explicada posteriormente no v.15:
são os povos dominados pela Besta. Em Ap 12,15, o dragão busca aniquilar a Mulher
vomitando em sua direção “água como um rio” (cf. Is 8,6s; Jr 47,2). Tendo
fracassado em sua investida, o dragão se volta contra os descendentes da Mulher que
ainda estão neste mundo e a razão desta guerra é que eles guardam os Mandamentos e
dão testemunho de Cristo. A metáfora neste momento, portanto, está relacionada à
imagem da tribulação dos filhos de Deus. A imagem das águas estaria, aqui, acoplada
à imagem da destruição que pode vir sobre o homem quando este abandona seu reto
caminho e este seria o verdadeiro desejo do Adversário, conquistar os que pertencem
a Deus
286. Em um sentido mais prático, o texto pode indicar que o desejo do dragão
é colocar a mulher numa situação sobre a qual ela não pode ter controle, exatamente
como ocorre quando alguém é atingido por uma grande massa de água ou pela
violência do rio.
O contrário ocorre em Ap 7,17; 21,6; 22,1.17, que retoma o contexto e os
temas veterotestamentários de YHWH como provedor e doador e fonte de uma água
285 Segundo alguns autores, o rio de água da vida encontrado em Ap 22,1 poderia ser compreendido
de dois modos intimamente interligados: seria uma alusão à promessa do Batismo no Espírito Santo
(cf. Mc 1,8; Jo 1, 26.33; At 1,5; 11,16; etc) e o sucessor da imagem da aspersão encontrada em Ex
36,25. Cf. LUPIERE, E., L’ Apocalisse di Giovanni, 349; BEALE, G. K., The Book of Revelation,
1104; WILCOX, M., “Tradition and Redaction of Rev 21,9-22,5”. In L’Apocalypse johannique et
Apocalyptique dans le Nouveau Testament, ed. J. Lambreacht, BETL 53; Gembloux: Duculot/Leuven,
University Press, 1980, 203-215 (212). Nesta mesma linha encontram-se também Swete e Feuillet. Cf.
SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John. 398; FEUILLET, A., “Visión de conjunto de la mística
nupcial en el Apocalipsis”, Scripta Theologica 18 (1986) 407-431.
Discordamos desta linha de pesquisa, pois o estudo dos textos do Ap 7,17; 21,6; 22,1.17 indicam uma
relação com o fiel perfeito, aquele que está em comunhão com Deus, e não com o sacramento do
Batismo. Sendo a água fundamentalmente imagem da vida mesmo, e vida que só poderia ser entendida
de forma plena se entendida como existência em comunhão com Deus.
286 Não parece aceitável identificar no texto de Ap 12,5 um contato mitológico. O contato estabelecer-
se-ia, antes de tudo, com o judaísmo que atribui à água inúmeras funções. Cf. RENGSTOEF, K. H.,
potamo,j, GLNT, v. X, col. 1494-1496.
que restaura, consola e transforma toda aridez em vida (cf. Is 43,19-20; 65,20-25).
Assim é que em Ap 7,17, o Cordeiro, o Ressuscitado, guiará qual pastor, “às fontes
de água da vida” (cf. Is 49,10; Sl 23,2)
287. De igual modo, o contexto proposto pelo
Novo Testamento (cf. Jo 4,10) ecoa no Apocalipse, uma vez que os que serão guiados
necessitam, primeiramente, reconhecer o Cordeiro como seu Pastor e em seguida ter
sede. A este sedento, o próprio Deus concederá de beber gratuitamente da fonte de
água da vida (cf. Ap 21,6 cf. Is 55,1). Deus, portanto, seria o proprietário e o doador
desta “água da vida” que sacia o homem.
A noção de fonte, proprietário e doador da “água da vida” será elucidada em
Ap 22,1, posto que, neste texto, a água tem determinada a sua origem: ela brota do
trono de Deus e do Cordeiro. Deus e o Cordeiro são, assim, o princípio, a causa e os
concessores de toda a vida que existe na Cidade Santa. Este vínculo de dependência
não reduz o destinatário, antes, é caracterizado pelo amor entre o Criador e a criatura.
A existência de uma relação amorosa é corroborada por Ap 22,17, quando o Espírito
e a noiva dizem juntos: “Vem! Quem tiver sede venha, quem quiser receberá
gratuitamente água da vida”.
A presença do genitivo adjetivo “vida”, aplicado ao termo “água”, abarcaria
a idéia teológica de vida eterna, de plenitude, cuja origem está em Deus, como já
havia sinalizado Ap 21,6 e no Cordeiro, como indica a frase conclusiva de Ap 22,1b.
Sendo assim, a expressão “rio de água da vida” tornar-se-ia um símbolo do dom da
vida, que considerando o contexto de Ap 22,1a, deve ser identificado com a vida
eterna.
Entretanto, esta vida eterna só pode ser ofertada por Deus e pelo Cordeiro,
mas, da parte da criatura, um requisito torna-se imperativo: que ela livre e
amorosamente deixe-se conduzir pelo Cordeiro às fontes (cf. Ap 7,17). Conceber esta
expressão simplesmente como o curso da água de um rio não corresponderia ao
contexto da visão da Cidade Santa, como também não consideraria o segundo
genitivo, cuja função qualifica a água precisamente como “água da vida” ou “água
287 Smalley destaca que a cristologia deste texto é bastante elevada. Retomando Ap 1,12; 5,9 e 5,13,
mostra que Jesus é um com Deus e que fora enviado pelo Pai para a redenção dos homens. Cf.
SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 200.
que é [eterna] vida”. Esta leitura aproximar-se-ia mais do pensamento joaneu, que
vincula o vocábulo zwh, à noção de vida perene
288.
b) Brilhante como cristal
O terceiro elemento da imagem do rio é a sua qualificação: ele é brilhante
como o cristal
289. O termo lampro,j é usado, em outros momentos, para indicar o
linho puro da veste dos sete anjos que saem do templo e dos servos que participam
das bodas do Cordeiro (cf. Ap 15,6; 19,8). Neste último caso, possui função
metafórica significando as boas obras dos santos. Semelhante recurso é usado para
indicar uma voz nítida enquanto “ação vigorosa”
290.
Já o termo kru,stalloj
291 ocorre, apenas, quatro vezes em todo o livro. Em
Ap 4,6 a transparência do cristal é usada para indicar a espantosa visibilidade do
trono de Deus
292. A imagem do mar, sobre a qual incide a comparação “como o
cristal” em Ap 4,6, pode ser entendida de dois modos: a imensa distância entre o
visionário e Deus ou a idéia de tranqüilidade
293.
O segundo emprego do termo “cristal” encontra-se em Ap 21,11 e sugere
uma cena de beleza indescritível, com a luz da cidade celestial iluminando as
camadas de pedras multicores, edificadas umas sobre as outras, sendo que cada
camada estende-se ao redor da cidade inteira
294. A cidade é um fulgor de luz e seu
288 Cf Jo 5,29; 6,35.48.51.68; 8,12; Ap 3,5; 7,17; 13,8; 17,8; 20,12.17; 21,6.27; 22,1.14.17.19.
289 Cristal, do hebraico vybiG' (Jó 28,18), xr;q, (Ez 1,22): ambas significam a substância vítrea; A
Septuaginta leu krystallos, crystallus (Ez 1,22); a Vulgata traduziu como eminentia (Jó 28,18). Este era
o mineral transparente que se assemelha a copo, provavelmente uma variedade de quartzo. Jó coloca
isto na mesma categoria com ouro, ônix, safira, coral, topázio, etc. O Targum traz o xr;q, de Ezequiel
por “elevado”, as versões traduzem através de “cristal”. Cf.
HTTP://WWW.NEWADVENT.ORG/CATHEN/14304C.HTM.
290 Cf. LIDDELL-SCOTT, An Intermediate Greek-English Lexicon, 464.
291 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 571.
292 Aune considera que a imagem do mar de cristal possui uma relação com as enormes bacias de
bronze do templo de Salomão (cf. 1Rs 7,23-26; 2Rs 25,13). Cf. AUNE, Revelation 1-5, 296.
Consideramos que esta aproximação encontra-se desprovida de ligações a nível lexical, ou mesmo
simbólico, pois as bacias do templo de Salomão possuíam 30 côvados de diâmetro. Imagem finita e
sem o comparativo com o cristal.
293 A imagem do mar de cristal, metáfora da tranqüilidade, está em oposição com a imagem de caos e
pecado, aplicadas ao mar, encontradas em alguns textos veterotestamentários. Pecado e caos estariam
superados. Cf. BRIGHTON, L., Revelation, 122.
294 Sobre o tema das pedras que ornamentam a Cidade Santa ver: MATHEWSON, D., “A note on the
foundation stones in Revelation 21,14.19-20”, JSNT 25 (2003) 487-498.
brilho é precioso e cristalino. O abundante emprego de pedras e metais preciosos
tornaria a construção da Cidade Santa altamente luxuosa
295.
A Cidade Santa, Jerusalém, que desce do céu, de junto de Deus, é
comparada a uma pedra de jaspe cristalino (cf. Ap 21,11)
296. Esta radiante e
deslumbrante glória de Deus é descrita em vários momentos na Sagrada Escritura
297,
mas, na maioria dos textos, como descrição da glória futura, o que diferiria de Ap
21,11, onde a glória do Senhor é descrita tal como ela é: a presença imediata de Deus.
Agora, Deus habita a Cidade Santa juntamente com o Cordeiro e a noiva do
Cordeiro
298. Desta forma, a comparação “como cristal” poderia descrever não
somente o brilho da pedra de jaspe, como também enfatizar a profunda experiência de
estar constantemente na presença de Deus
299.
Um terceiro emprego encontra-se em Ap 21,18 onde o termo cristal é
vinculado ao ouro puríssimo que compõe a cidade
300. Tal resplendor teria como
função refletir a verdadeira glória e majestade de Deus
301. Semelhante objetivo seria
encontrado em Ap 21,21 quando as ruas da cidade são descritas com pavimento de
ouro puro, límpido como o cristal. A intensidade deste brilho será tamanha que os que
caminharem pelas ruas da Cidade Eterna refletirão a glória e a majestade de Deus
302.
295 Cf. HILLYER, N., Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. V. II, São Paulo,
Vida Nova, 2000
2
, 1630.
296 Jaspe ou diamante é uma pedra cristalina translúcida que aqui foi usada para representar a glória
de Deus (cf. Ap 21,11). Cf. http://www.fundacaobetel.com.br. Alguns estudiosos sugerem que se
trataria de um tipo de jaspe branco, o que sugeriria a santidade de Deus. Cf.
http://www.estudosdabiblia.net.
Por outro lado, há uma pequena dúvida se a palavra hebraica, bem como a grega, representava uma
variedade de quartzos, transluzentes e prismáticos. Era a duodécima jóia que brilhava no peitoral do
sumo sacerdote (cf. Êx 28,20-39), e a primeira das doze empregadas nos fundamentos da Nova
Jerusalém (cf. Ap 21,19). Cf. http://www.bibliaonline.net/scripts/dicionario.cgi.
297 Cf. Ex 40,34; Nm 9,15-23; 1Rs 8,11; 2Cr 5,14; Is 24,23; Ez 43,5; Jo 12,41.
298 Cf. THOMAS, R. L., Revelation 8-22. Chicago, Moody Press, 1995, 440.
299 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 547; MOUNCE, R. H., The Book of Revelation,
390.
300 Para Smalley tal comparação aparenta contradição quando aplicada ao ouro. Divergimos desta
posição, pois estando o texto imerso em uma estrutura simbólica, a intenção seria aquela de mostrar
que o precioso metal possui um resplendor imenso. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John,
553; Mesma observação foi feita por Prigent. Cf. PRIGENT, P., Commentary on the Apocalypse of St.
John. Tübingen, Mohr Siebeck, 2001, 616.
301 Cf. WALVOORD, J. F., The Revelation of Jesus Christ. Chicago, Moody, 1966, 325.
302 Cf. BRIGHTON, L., Revelation, 619.
Por fim, em Ap 22,1 a expressão “brilhante como cristal” descreve em
primeiro lugar, a aparência do rio como uma espécie de vislumbramento
303. Ele é
puríssimo e, por isso, suas águas são “brilhantes como cristal”
304 e nada de impuro
pode permanecer nele. A impossibilidade da presença de algo impuro, neste “rio
brilhante como o cristal”, deve ser observada a partir dos textos precedentes onde o
comparativo “como o cristal”, freqüentemente, vem ligado à idéia da presença de
Deus. Deste modo, a expressão comparativa “como cristal” reforçaria a idéia de vida
em plenitude, de vida eterna e concomitantemente insere a impossibilidade da
presença de qualquer resquício do pecado. Uma vez que o contato com o “rio de água
da vida brilhante como o cristal” lava o homem do flagelo do pecado, capacita-o a
habitar na Cidade Santa e a entrar na íntima presença de Deus e do Cordeiro (cf. Ap
22,3-5)
305.
c) O trono de Deus e do Cordeiro
A origem do “rio de água da vida” de Ap 22,1a é determinada em Ap 22,1b:
o trono de Deus e do Cordeiro. O verbo evkporeu,omai é comum nos textos
joaninos
306, indicando a procedência; porém, com menção ao fluxo de rio que
procede do trono, encontra-se somente neste versículo. Fora do ambiente joaneu, o
verbo evkporeu,omai é encontrado em Mt 15,11 e Mc 7,20, indicando igualmente o
local de procedência. No caso específico destes textos, o interior do homem.
O termo qro,noj
307, em seu sentido mais restrito, denota a exaltação
exclusiva e absoluta do soberano. Soberania exercida quando estiver assentado no
trono; a partir deste momento, assumirá totalmente seus poderes
308.
303 Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 399.
304 Osborne retoma as imagens precedentes do cristal e o entende como ênfase à glória do éden final.
Cf. OSBORNE, G. R., Revelation, 769.
305 Uma identificação da água cristalina com o Espírito Santo é defendida por Smalley, Beale e
Kruse. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1104; KRUSE, C. G., John. Leicester, Inter-
Varsity Press, 2003, 192-193; SMALLEY, S. S., “The Paraclete’: Pneumatology in the Johannine
Gospel and Apocalypse”, 294-295. In CULPEPPER, R.. A., BLACK, C. C., Exploring the Gospel of
John. In Honor of D. Moody Smith. Louisville, Westminister, John Knox Press, 1996.
Esta aproximação parece-nos forçada, tendo em vista que o comparativo “como o cristal” visa destacar
a pureza da vida que brota do trono de Deus e do Cordeiro para o sustento da Cidade Santa.
306 Cf. Jo 5,29; 15,26; Ap 1,16; 4,5; 9,18; 11,5; 16,14; 19,15.
307 Cf. SCHMITZ, O., qro,noj, GLNT, vol.IV, 583.
308 Cf. BLENDINGR, C., “poder”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. V. II,
São Paulo, Vida Nova, 2000
2
, 1704.
No Antigo Testamento, são muitos os textos que recorrem ao termo trono:
ele é a sede daquele que julga (cf. Ne 3,7), é privilégio do rei (cf. Gn 41,40), é sinal
visível do poder do rei (cf. 2Sm 3,9; 14,9) e da justiça (cf. Sl 122,5). Recebe especial
relevo quando indica o trono de Davi (cf. 2Sm 7,13; 1Cr 28,5; 29,23). Na literatura
profética, o termo trono assume um teor escatológico: em Jr 3,17 o trono é
comparado à cidade de Jerusalém renovada. No Novo Templo (cf. Ez 43,7), o trono
de Deus é considerado o lugar de sua santa habitação entre os filhos de Israel. A
transcendência de sua soberania está presente também neste mundo (cf. Jr 17,12s). Os
Sl 47,9; 93,2 concentram o conteúdo escatológico, próprio da literatura profética e o
de governo soberano onde o poder do trono de Deus atinge a todos, sem limite
temporal (cf. Lm 5,19).
O trono de Deus, enquanto perspectiva escatológica de juízo, está ausente
no judaísmo helenístico. O juízo encontrar-se-á manifesto na eficácia da palavra de
Deus que se lança qual guerreiro inexorável do trono real dos céus para uma terra de
extermínio (cf. Sb 18,15). A sabedoria é também definida como companheira do
trono (cf. Sb 9,4): ela pode ser enviada sobre a terra para socorrer os homens (cf. Sb
9,10).
Já o judaísmo palestinence, particularmente o rabínico, por sua vez, voltava-
se mais para a definição “trono da glória” (cf. Sl 93,2). Esta definição terá influência
sobre os Evangelhos Sinóticos, nos quais indicará que o Filho do Homem estará junto
do Pai para julgar e reinar (cf. Mt 19,28) e seu juízo atingirá todas as nações (cf. Mt
25,31s).
A perspectiva escatológica do Antigo Testamento será ampliada, no Novo
Testamento, pelas vicissitudes salvíficas e destinada ao seu cumprimento final. Ao
termo “trono”, associam-se as imagens do céu como trono de Deus (cf. Mt 5,34;
23,22), e por esta razão, não se pode jurar por ele; em outros textos, trono é uma
alusão ao trono messiânico (cf. Lc 1,32) que o Filho de Maria receberá por ser filho
de Davi, indicando que a casa de Davi tem uma soberania eterna (cf. 2Sm 7,14), ou
apenas um trono terreno (cf. Lc 1,52). O trono é concedido ao Cristo por seu Pai, bem
como o seu poder de juiz sobre toda a terra (cf. Mt 25,31s). Na Carta aos Hebreus, o
trono de Deus é definido como o “trono da graça” (cf. Hb 4,15-16).
No Apocalipse, o trono de Deus converte-se em símbolo da soberania de
Deus e do Cordeiro. O trono de Satanás (cf. Ap 2,13) se coloca em contradição com o
trono de Deus por ser um trono mentiroso: o texto de Ap 2,13 parece tratar de um
culto a uma serpente
309, comum na cidade. A meta desta peregrinação, repleta de
elementos pagãos, era o trono do adversário de Deus
310.
Em íntima relação com o texto de Ap 2,13 está Ap 13,2, no qual o dragão
concede ao anticristo “a sua força, o seu trono e grande autoridade”. Os impérios
agiriam agora com todo o poder. Tratar-se-ia da perversão da verdadeira intenção de
Deus para o papel do Estado (cf. Rm 13,1-7): é a negação do poder absoluto de
Deus
311 e a tentativa de destruir a Igreja através de um falso poder ilustrado pelo
elenco de animais, que simbolizam impérios (cf. Ap 13,1-2; cf. Dn 7,2-7).
O trono de Deus e toda a simbologia de soberania e de seus ocupantes têm
sua primeira apresentação nos c. 4-5. Sendo assim, compreendê-los tornar-se-ia
condição para a concepção de Ap 22,1b. Por esta razão nos deteremos, um pouco
mais, sobre estes capítulos a fim de averiguar como o texto do Apocalipse apresentou
a figura do Deus de Israel e o símbolo do Cordeiro.
309 Cf. SCHMITZ, O., qro,noj, GLNT, vol.IV, 588. Kistemaker diz tratar-se de Asclepius simbolizado
em uma serpente, a associação com a representação de Satanás (cf. Gn 3,1) foi imediata. Este deus era
classificado como salvador de seu povo. Cf. KISTEMAKER, S. J., Revelation, 129.
310 Não está claro quem seria este adversário de Deus. Kistemaker indica um ídolo pagão, Zeus, o
próprio personagem bíblico ou o Imperador. Cf. KISTEMAKER, S. J., Revelation, 129.
Beale apresenta os mesmos elementos de possibilidades, mas acrescenta que a política do Culto ao
Imperador trazia grandes dificuldades para os cristãos da cidade de Pérgamo. BEALE, G. K., The Book
of Revelation, 246.
311 O conflito entre cristãos e o império baseava-se em circunstâncias legais, uma vez que os
primeiros não concordavam em considerar o imperador como “senhor” e “deus”, o que lhes acarretava
sanções legislativas e normativas. Pode-se desta forma dizer que as perseguições foram aplicações da
lei. Havia, porém, uma discreta indulgência dos romanos para com os deuses e cultos pátrios. Assim é
que o monoteísmo judaico foi considerado como religião lícita. O cristianismo não gozou desta
indulgência por apresentar-se nitidamente distinto do judaísmo e portador de uma missão que
considerava a destruição de toda a forma de idolatria. Por esta razão, logo foi considerado como um
perigo à religião nacional e ao fundamento de todo o império. A originalidade do cristianismo está no
fato de pôr o Reino de Deus à parte dos reinos deste mundo. É um movimento em sentido oposto aos
de então, que buscavam confundir o império ou as diversas formas de governo com a religião. A razão
das perseguições apóia-se, pois, no fato de serem os cristãos praticantes de uma religião desligada de
uma cidade ou nação, desprovida de templos ou imagens, sem sacrifícios e culto conhecido. Eram,
portanto, homens “ateus”. Sobre o tema ver: Cf. KRAYBILL, J. N., Imperial Cult and Commerce in
John’s Apocalypse, JSNT 132, Sheffield, Sheffield Press, 1996; GONZÁLEZ RUIZ, J. M.,
Apocalipsis de Juan, Madri, Cristiandad, 1987;
FRIESEN, S., Imperial Cults and the Apocalypse of
John: Reading Revelation in the Ruins. Oxford, Oxford University Press, 2001.
A cena do c. 4 descreve em detalhes tudo o que está à volta do trono, mas
torna-se parcimonioso ao apresentar Aquele que se encontra assentado no trono. Ele
não é outro senão o Deus de Israel. Este, agora entronizado e objeto de adoração, é
identificado como o` ku,rioj (cf. Ap 4,8)
312. A LXX traduziu normalmente o nome
próprio do Deus de Israel hwhy, por ku,rioj. Por isso, o leitor/ouvinte deste texto
identifica aquele que está sendo descrito no trono como o Deus Único de Israel
313.
O emprego do artigo definido
o`
antes de qeo,j demanda atenção, pois sempre
antecede e define o substantivo qeo,j, exceto em Ap 7,2; 21,3.7
314. O uso do artigo
tem como objetivo enfatizar que Aquele de quem se fala não é outro senão o Deus
único e verdadeiro e fora dele não há outro
315. Contrastando, assim, com os outros
deuses e as outras religiões.
A cena proposta no c. 4 continua ao longo do c. 5, porém, aqui, é
introduzido um novo personagem: o Cordeiro. Este foi posicionado entre o trono de
Deus e dos anciãos (cf. Ap 5,6). Isto sugere que os que ocupam os tronos em Ap
4,4.9.10 não possuem a mesma dignidade do Cordeiro, visto que, diante deste,
aqueles se prostram em adoração.
312 O c.4 não se detém sobre uma descrição detalhada do trono, mas torna-se meticuloso na descrição
de tudo o que está ao seu redor e com ele se relaciona (cf. Ap 4,3-7). Toda a função cultual
desenvolvida pelos seres viventes (cf. Ap 4,8-9) e pelos anciãos (cf. Ap 4,10-11) está voltada para
Aquele que se encontra sobre o trono. A locução “trono de Deus” mostra o epíteto de Deus na sua
infinita glória de criador (cf. Ap 4, 9.10; 5,1.7.13; 7,15; 19,4; 21,5).
313 Smalley entende que não há uma imediata apresentação da identidade daquele que está no trono.
Em contraposição a Kistemaker, que considera ser a proposta do c.4 demonstrar que Deus é o supremo
soberano do universo. Enquanto Park indica que o trono seria um recurso para enfatizar a
inacessibilidade e a transcendência de Deus. Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 114;
KISTEMAKER, S. J., Revelation, 185; PARK, S.-M., More than a Regained Éden: The New
Jerusalém as the Ultimate Portrayal of Eschatological Blessedness and Its Implications for
Understanding the Book of Revelation. Trinity Evangelical Divinity School, 1995, 225.
As três propostas apresentam elementos válidos, contudo, considera-se que o trono no livro do
Apocalipse segue como um símbolo de soberania (cf. Ap 1,4; 3,21).
314 A ausência do artigo definido em Ap 7,2 não configura uma alusão a um deus estrangeiro. Antes a
locução qeou/ zw/ntoj oferece ao leitor/ouvinte uma síntese por antonomásia do Deus Único de Israel.
Em Ap 21,3 é rememorada a promessa da habitação do Deus de Israel em meio a seu povo (cf. Lv
26,11-12), enquanto Ap 22,7 traz o tema da herança, freqüente no Antigo Testamento: Eu serei o seu
Deus (Pai), ele será meu filho (e meu povo).
315 Cf. Dt 4,35.39; 7,9; Js 22,34; 1Rs 18,39; Is 37,16; 45,18.
O símbolo do Cordeiro foi cuidadosamente cunhado pelo autor do
Apocalipse
316: ele está de pé, como imolado, possui sete chifres e sete olhos. Após
tão detalhada descrição, o Cordeiro dinamizará todas as cenas do livro até que se
encontre assentado no trono de Deus na Jerusalém Celeste (cf. Ap 22,1b).
O termo avrni,on “Cordeiro”
317, aplicado a Cristo ressuscitado, é uma
criação redacional exclusiva do Apocalipse. Fora deste livro, quando se faz alusão a
cordeiro, o termo empregado é sempre avmno,j sem a conotação da ressurreição
318. O
termo avrni,on ocorre em Jo 21,15, mas a semântica diverge daquela do Ap,
vinculando-se ao paralelo estabelecido com a expressão pro,bata (cf. Jo 21,16-17).
O Cordeiro apresentado em 5,6 possui como atributos estar de pé e ser
imolado
319. Deter-nos-emos um pouco mais na análise deste texto tendo em vista
que há entre ele e Ap 22,1 uma especial relação, posto que o Cordeiro aqui descrito é
o mesmo que se sentará no trono de Deus. Deste modo, entender este símbolo tornar-
se-ia vital para compreender a motivação de Deus dividir o seu único trono
320.
316 Há um liame literário entre a expressão “Cordeiro” de Ap 5,6 e “Cordeiro de Deus” de Jo 1, 29.36.
Cf. NEGOITSA, A., DANIEL, C., “L’Agneu de Dieu est le Verbe de Dieu”, Novum Testamentum 13
(1971) 24-37.
317 O termo avrni,on, encontrado no Novo Testamento, pertence a uma evolução da palavra avmno,j
encontrada a partir da época clássica na LXX como resultado da tradução da palavra hebraica kebés.
Cf. JEREMIAS, J., “avmno,j”, GLNT, vol. I, 917.
318 O termo avmno,j é encontrado ainda em Jo 1,29.36; At 8,32; 1Pdr 1,19. Em Jo 1,29.36 possui uma
semântica vinculada ao Cristo que padece a morte. Nesta ótica, o termo possuiria um valor
comparativo: Cristo que morre como cordeiro. Este cordeiro que morre, expresso pela locução o` avmno,j
tou/| qeou/| está, segundo J. Jeremias, calcada sobre a expressão aramaica talja
-
de
-
la
-
ha
-
, que tanto
indicava o cordeiro, como o jovem servo. Desta forma, parece ser a intenção do autor do IV Evangelho
utilizar-se do sentido original da expressão aramaica para dar maior ênfase ao seu desejo de aproximar
o termo avmno,j da imagem de Jesus como o Servo de Deus. Para J. Jeremias, a primeira comunidade
cristã vê Jesus sob o prisma de Is 53,7, o servo de Deus. Em outros lugares do Novo Testamento (cf.
1Cor 5,7; Jo 19,36), os autores encaminham-se para este mesmo pensamento. Tal comparação deve-se
ao fato de ter sido ele crucificado nas proximidades da páscoa judaica: Seria Jesus, portanto, o
autêntico cordeiro pascal. Ao identificar Jesus com o avmno,j, a comunidade cristã tem como pressuposto
três elementos: a paciência com que Jesus sofre (cf. At 8,32), sua imunidade ao pecado (cf. 1Pdr 1,19)
e a força redentora de seu sacrifício (cf. Jo 1,29.36; 1Pdr 1,19). A força redentora do sangue de Cristo
realizou a libertação da escravidão do pecado (cf. 1Pd 1,18). Esta libertação atinge a toda a
humanidade e, por esta razão, a força expiatória do cordeiro–Cristo não é limitada como aquela do
cordeiro pascal cujo benefício atinge apenas a Israel. Antes, sua força atinge toda a humanidade, sem
distinção. J. Jeremias admite ser esta forma de concepção, o fundamento para a origem da designação
de Jesus como avmno,j. Cf. JEREMIAS, J., “avmno,j”, GLNT, 917, 918 e 920.
319 Sobre o tema do Cordeiro do Apocalipse merece atenção o minucioso trabalho de Ugo Vanni. Cf.
VANNI, U., L’ Apocalisse, 165-192.
320 Sobre o tema do simbolismo ver: VANNI, U., “Il simbolismo nell’Apocalisse”, Gregorianum LXI
(1980) 461-506.
A postura ereta e`sthkój é um simbolismo que remete à idéia de
ressurreição321, uma vez que no Apocalipse, e`sthkój possui uso típico para indicar
um estado glorioso, triunfante
322.
No Apocalipse i[sthmi é aplicado ao Senhor que está à porta e bate (cf. Ap
3,2), ao Cordeiro que encontra-se de pé sobre o monte de Sião junto com os 144.000
(cf. Ap 14,1) e aos que venceram a besta e estão de pé sobre o mar de vidro, tendo em
suas mãos cítaras e cantam o cântico de Moisés e do Cordeiro (Ap 15,2-3). Em Ap
11,11, o verbo é empregado com relação aos homens, quando recebem, após três dias
e meio, o sopro de vida de Deus
323. A idéia de vitória sobre o mal e o pecado
perpassa os textos.
O segundo elemento da descrição do Cordeiro é o verbo sfa,zw. O emprego
de i[sthmi associado a sfa,zw só é encontrado em Ap 5,6. O Cordeiro está “como
imolado” w`j evsfagme,non. O verbo sfa,zw possui aqui um valor sacrifical,
expiatório
324, mas no Apocalipse há um distanciamento desta forma de compreensão
e utiliza a forma verbal de modo enfático, sinalizando uma morte violenta impingida
ao Cordeiro (cf. Ap 5,6.9.12; 13,8)
325.
Em outros momentos, o verbo sfa,zw é aplicado à sorte dos cristãos mortos
por se manterem-se fiéis (cf. Ap 6,9; 18,24). Talvez se possa considerar esta dupla
aplicação verbal como uma aproximação da imolação de ambos, sendo a de Cristo a
detentora dos benefícios da redenção.
Esta morte é o cume de todo o processo salvífico e visa à constituição de um
povo de reis e sacerdotes que é propriedade exclusiva de Deus
326. Por sua morte e
entrega, o Cordeiro compra para Deus, a preço de seu sangue, homens de todas as
tribos (cf. Ap 5,9-10; cfr. Rm 8,24; 1Pdr 1,18-19). A compra destes homens tem em
vista a formação de um reino e sacerdotes que reinarão para sempre. O reino no
321 Cf. O verbo e`sthko.j, quando relacionado com o Cristo, pertence a uma significação teológica
precisa: a ressurreição. Cf. GRUNDMANN, W., “i[sthmi”, GLNT, 1172.
322 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida, 267.
323 No Novo Testamento, há ainda um contato literário em At 7, 55-56, quando Estevão vê Jesus de
pé, vencedor glorioso, testemunha fiel e definitiva, à direita de Deus.
324 Cf. MICHEL, O.,sfa,zw”, GLNT, 343-370.
325 Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 182; CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida, 267.
326 Cf. Ap 1,5-6,9; 12,10; 20,6 e também Ex 19,6; Is 61,6.
Apocalipse é o lugar onde os cristãos vivem como irmãos e companheiros e é uma
realidade eminentemente soteriológica (cf. Ap 22,5)
327.
O advérbio de comparação w`j estabelece uma relação paradoxal: o Cordeiro
está de pé como morto. Neste versículo, o advérbio assume um valor subjetivo, uma
vez que o seu emprego, juntamente com evsfagme,non, dá o motivo da ação
expressada pelo verbo. `Wj quer assim indicar que o Cordeiro não permaneceu
prisioneiro da morte, mas que ele a venceu e possui o domínio sobre o mundo
328.
Em seguida, o Cordeiro toma posse do livro, símbolo de seu domínio sobre toda a
história, e os anciãos adoram aquele que está sentado no trono e ao Cordeiro (cf. Ap
4,10; 11,16; 19,4)
329.
Assim, o símbolo do Cordeiro demonstra o contato com a noção do Deus
Único de Israel e com a morte redentora sofrida pelo Messias. Deste modo, o autor
sagrado sintetiza a essência da Pessoa Divina juntamente com sua missão e, com isto,
auxilia o leitor/ouvinte nas cenas que virão em seguida.
Imediatamente após a descrição do Cordeiro de pé como imolado, o texto
proporciona a descrição da atividade do Cordeiro. A expressão kai. h=lqen kai.
ei;lhfen indica o permanente resultado da ação do Cordeiro, que não só se aproxima
do trono para receber o livro, mas, por meio deste gesto, sinaliza a sua origem divina.
327 Cf. SCHMIDI, K. L., “basileu,w”, GLNT, 184-185.
328 A descrição do Cordeiro engloba ainda os sete chifres e os sete olhos. A expressão e;cwn ke,raj
e`pta possui como significado tanto a força como a dignidade (cf. Nm 23,22; Dt 33,17; 1Rs 22,11; Sl
112,9; Zc 2,1-4; Dn 7,7-8.24). A imagem dos chifres está intrinsecamente ligada à do Cordeiro: é ele o
portador da onipotência representada por esta imagem. O livro do Apocalipse, com efeito, apresenta
outros personagens portadores de chifres, porém a sua significação e simbologia numérica são outras,
diferentes daquela dada ao Cordeiro (cf. Ap 12,3; 13,1.11; 17,3.12); somente ele possui sete chifres,
que é a totalidade e a plenitude divina da potência.
O último símbolo da descrição do Cordeiro é ovfqalmo,j e`pta, que o autor logo explica: “símbolo dos
sete espíritos de Deus mandados sobre toda a terra”. É muito provável observar-se aqui uma alusão a
Zc 4,10, no qual encontra-se a questão da onisciência divina com a imagem dos sete espíritos, atributo
do rebento da raiz de Jessé em Is 11,1-2. A mesma imagem retorna em Ap 1,4; 4,5. Os olhos
(ovfqalmo,j) demonstram a onisciência e a providência universal, representam o Espírito Santo
prometido por Jesus aos discípulos para que dessem testemunho d’Ele e de seu Evangelho até o fim do
mundo (cf. Jo 15,26; 16,14). Cf. FOERSTER, W., ke,rajGLNT, 349-358.
O verbo avposte,llw (enviar) é raro. No Apocalipse, somente em três momentos é possível encontrá-
lo: 1,1; 5,6; 22,6. A expressão “toda a terra” é única em todo o livro. Cf. CHARLIER, J.-P.,
Comprendre l’Apocalypse, 159.
329 Cf. BORNKAMM, G., “pre,sbuj”, GLNT, 129.
Entregando ao Cordeiro o livro, o Pai lhe outorga a função régia e judicial, ou seja,
Ele é Rei e Juiz
330. O Cordeiro possui, portanto, o arbítrio sobre o futuro.
Com a entrega do livro, o plano de Deus e o seu projeto sobre a história
estão nas mãos de Cristo, que, progressivamente, abrirá o livro e realizará o plano
divino com a plenitude da potência e da divina sabedoria. Agora é chegada a hora de
explodir uma solene liturgia de dimensões cósmicas (cf. Ap 5,8-9).
A adoração imediata do tribunal divino sublinha o significado da ação do
Cordeiro que possui o livro de Deus. Ao Cordeiro, vem transferida a prerrogativa
própria de Deus: o livro e, em conseqüência, a adoração reservada Àquele que está
sentado sobre o trono. Este versículo tem como cerne a apresentação do Cordeiro
como Deus (cf. Ap 5,8). Esta apresentação implica no ato de prostrar-se, que é um ato
de adoração. Mas semelhante atitude supõe uma tomada de consciência daquele que é
o Cordeiro e de sua transcendência reconhecida quando recebeu (tomou) o livro. O
fato de tomar consciência é ação particular e não do grupo. Ap 5,8 é a única menção
de uma prostração diante do Cordeiro, já que, nas demais cenas de adoração, ela
sempre acontece diante de Deus (cf. Ap 7,11; 11,16-24; 19,4).
Com a expressão o[ti evsfa,ghj, é posta em evidência a paixão, elemento
literário central do canto do Cordeiro (cf. Ap 5,9); desta depende a dignidade de
receber o livro e de abrir-lhes os selos, seja tudo quanto precede ou quanto segue.
vHgo,rasaj tw/|| qew/| exprime a idéia de libertação por meio de um resgate,
embora não haja uma explicitação do poder ou da esfera da qual o Cordeiro resgata.
Há apenas a destinação do adquirido: “para Deus”.
Encerrada a apresentação solene do Cordeiro e sua entronização, o Cordeiro
estará abrindo os selos do livro (cf. Ap 6,1-8,1), porque é o Senhor da história (cf. Ap
5,8-9). Em seguida, descortinam-se as dores e sofrimentos vividos pela humanidade,
que em cada período histórico opta por permanecer fiel ao Cordeiro (cf. Ap 6,3-15).
Uma opção contrária tem como conseqüência o sentimento de pavor diante do
Cordeiro e daquele que se assenta no trono (cf. Ap 6,16-17).
O ato de optar pró ou contra o Cordeiro distingue aqueles que permanecerão
diante do trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 7,15). Doravante, o Cordeiro será o seu
330 Cf. CORSINI, E., L’Apocalisse prima e dopo. Torino, SEI, 1993, 144-146.
Pastor, ele vai à frente desta multidão, conduzindo-a com segurança em sua
história e atento a cada lágrima derramada (cf. Ap 7,17).
Mais adiante, em Ap 17,7-14, ficará evidente o elemento desta opção: o
Cordeiro ou a Besta. A Besta é, no Apocalipse, um enigmático símbolo que sintetiza
em si o mal personificado. Este mal, contudo, não deve exercer sobre aquele que opta
pelo Cordeiro um temor desmedido, pois ele será derrotado, o Cordeiro triunfará
sobre ele (cf. Ap 18).
Após vencer todos os seus inimigos, o Cordeiro será revelado como o
templo da Nova Jerusalém (cf. Ap 21, 22). O templo, lugar de adoração, de encontro
com Deus é, a partir de agora, lugar de adorar também ao Cordeiro. Nesta mesma
cidade, o Cordeiro celebrará suas bodas e, ansiosamente, aguardará a consumação dos
tempos (cf. Ap 22,17).
O Cordeiro é, portanto, no Apocalipse, um símbolo de máxima importância.
Permeia todo o livro e paulatinamente vai sendo revelado enquanto Deus. As mais
variadas passagens que aludem ao termo “Cordeiro” dependem diretamente da grande
descrição da entronização do c. 5. Lá, de forma sintética, o autor sagrado cunhou o
grande símbolo.
Sendo assim, em Ap 22,1.3, o termo “Cordeiro” deverá ser compreendido a
partir do cenário descrito no c. 5: o Cordeiro é aquele que, tendo sofrido a morte, não
permanece nela (v. 5,6), antes, lhe confere uma potência redentora; por conseqüência,
aqueles que permanecerem fiéis ao Cordeiro também não morrerão para sempre (cf.
Ap 6,9; 18,24); Ele é o juiz de toda a história; recebe os atributos divinos de
onisciência e onipotência (v.5,6).
Anexada a estas características cunhadas pelo autor sagrado, está aquela do
local onde se encontra o Cordeiro neste texto: o “trono” de Deus. Através desta
imagem espacial é enfatizada a soberania única Deus e do Cordeiro e a plena
comunhão existente entre ambos
331.
Considerando os elementos acima, seria possível dizer que a expressão “que
saía do trono de Deus e do Cordeiro” é uma imagem que situa, não só o local de
331 Cf. PARK, S.-M., More Than a Regained Éden: The New Jerusalem as the Ultimate Portrayal of
Eschatological Blessedness and Its Implications for Understanding the Book of Revelation. Ph. D.
diss. Trinity Evangelical Divinity School, 1995, 225.
procedência da “água da vida”, mas também a razão última deste atributo. Portanto, a
vida eterna que a “água da vida” contém é, sempre, o dom da redenção eterna dos
pecados, conquistada pelo Cordeiro, como cumprimento das promessas de YHWH ao
povo da Antiga Aliança, a fim de que o homem possa ter comunhão de vida com seu
Deus.
Em outro sentido, porém, a imagem de Deus e do Cordeiro sentados em um
mesmo e único trono, indica que eles serão co-regentes por toda a eternidade
332. O
Cordeiro assentado ao lado do Pai sobre o mesmo trono é a novidade do livro do
Apocalipse.
d) A árvore da vida
Às margens do “rio de água da vida”, que sai do trono de Deus e do
Cordeiro, cresce a “árvore da vida”, que produz frutos a cada mês e suas folhas
servem para a cura das nações. A imagem da “árvore da vida” possui vínculos em
nível de vocabulário com os textos de Gn 2,9; 3,22.24; Pr 3,18; 11,30 e Ez 47,12.
Dentre as muitas árvores que Deus criou, havia no meio do Jardim do Éden a “árvore
da vida” e a “árvore do conhecimento do bem e do mal”
333. Comendo desta última,
332 Aune alega que à expressão “o trono de Deus” foi acrescentado “e do Cordeiro”. Esta conjectura
não nos parece viável tendo em vista todos os elementos propostos na descrição do Cordeiro de Ap
5,6. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1177.
333 A expressão “árvore da vida” difere do termo “árvore” já que é normalmente utilizado para
identificar tanto a árvore viva, como a morta. Esta última era instrumento de tortura, imposto aos
escravos, maníacos e prisioneiros sob forma de um colar, canga ou cepo aos pés. No grego, profano
possui idéia de humilhação de vergonha, sentido que foi incorporado ao termo cruz no Novo
Testamento. O uso de “árvore” no Novo Testamento no sentido de cruz só pode ser entendido a partir
da LXX. Dela deriva o quérigma cristão primitivo de At 5,30; 10,39; 13,29 e relaciona-se com o texto
do Dt 21,22-23 no qual fora prescrito ao homem que tivesse cometido um delito. Este passaria a ser
considerado um maldito de Deus. Cf. SCHNEIDER, J.,
xu,lon”, GLNT, vol. VIII, 103-114.
Tendo em vista o uso específico do termo “árvore” no NT, a proposta de Hermer, Delebecque e
Lupiere torna-se um tanto inviável. De fato, foi sugerido por estes autores que a menção à “árvore da
vida” constitui uma alusão explícita à cruz de Cristo na tradição cristã. Sendo assim, “árvore” receberia
um novo contexto no uso cristão e teria carregado essa nuance em especial para os leitores do Ap 22,2.
Isto poderia ocorrer apoiado pela proeminência do tema da morte de sacrifício de Cristo no Ap. Mas a
freqüência do termo “árvore” e a ausência qualificação desta árvore como de “vida” leva a
desqualificar a necessidade de encontrar uma referência além da imagem de Ez 47,12 e Gn 2,9. Cf.
HEMER, C. J., The Letters to the Seven Churches of Ásia Minor in their Local Setting. JSNTSup,
Sheffield, Sheffield Press, 1986, 42-44; DELEBECQUE, É., “Où situer l’Arbre de vie dans la
Jérusalem celéste? Note sur Apocalypse XXII, 2”, Revue Thomiste 88 (1988) 124-130.; LUPIERI, E.,
L’Apocalisse di Giovanni, 350. O mesmo pensamento pode ser encontrado em Chilton. Cf. CHILTON,
D., The Days of Vengeance: An Exposition of the Book of Revelation. Fort Worth, Dominion Press,
1987, 567.
em desobediência ao mandamento de Deus (cf. Gn 2,16-17; 3,2-11), o homem foi
retirado do jardim (cf. Gn 3,22-24). O texto de Gênesis não revela exatamente o papel
da árvore da vida, mas, permite perceber que após o episódio do pecado, esta árvore
tornou-se motivo da vigilância de Deus (cf. Gn 3,22). De fato, estando em estado de
pecado, Deus não permitiu que o homem tomasse da árvore da vida. A partir deste
momento, a morte, fruto do pecado, passa a ser o futuro do homem e não mais a vida
(cf. Gn 3, 23-24). O texto de Ez 47,12 será analisado posteriormente no capítulo 3
deste trabalho.
A expressão “árvore da vida”, encontrada em Pr 3,18 distancia-se
semanticamente tanto do texto do Ap 22,2 como daquele de Gn 2,9; 3,22.24 ou de Ez
47,1-12, denotando a aquisição da sabedoria e do conhecimento; os justos são como
uma “árvore da vida” e serão felizes. Já em Pr 11,30, ela é o fruto daquele que é
justo
334.
No judaísmo tardio, a “árvore” oferecerá um alimento sobrenatural que
produz a imortalidade (cf. Dn 4, 7-14). A posse desta árvore será o prêmio dos santos
no paraíso, residência daquele que crê
335. Tal idéia pode ser encontrada em alguns
textos do Apocalipse (cf. Ap 2,7; 22,2a).
Na literatura judaica, o Livro 1 Enoque apresenta uma observador que, em
sua viagem através de conhecimento celestial, é escoltado a vários locais e lhe são
mostradas sete montanhas cercadas por árvores cheirosas (24,3-4; cf. 10,18-19).
Dentre estas, uma árvore é destacada por conter uma fragrância sem precedentes,
belo fruto, e cuja madeira nunca se dissolve (24,4). Esta árvore cheirosa é reservada
para o tempo futuro, e direcionada ao justo (25,5). Na conclusão de todas as coisas,
334 Mathewson recorre a alguns textos de Isaías para estabelecer um contato com Ap 22,2. Os textos,
contudo, estão desprovidos de um real contato semântico e o contato parece mais coerente com Ap
21,2-5. Acredita-se que o que levou este autor a tal aproximação entre os textos foi a idéia de uma
transformação da situação vivenciada pelo autor do texto isaiano para uma condição semelhante à de
um paraíso (cf. Is 41,18-19; 43,19-20; 49,10; 51,3), onde árvores aparecem e rios e piscinas nascem
em meio ao deserto, dando ao povo de Deus o que beber (cf. Is 35,6-7). O autor chama atenção para a
expansão introduzida no Texto Massorético tanto pela LXX como pelo Targum Is 65,22, “como os
dias de uma árvore, assim serão os dias do meu povo como os dias de uma árvore da vida”. Cf.
MATHEWSON, D., A New Heaven and A New Earth, 192.
335 Cf. SCHNEIDER, J., “xu,lon”, GLNT, 113.
será apresentada com seu fruto da vida (cf. 25,6), e Deus a plantará na direção da casa
do Senhor, associando-a com o templo
336.
No âmbito neotestamentário, a expressão “árvore da vida” ocorre apenas no
Apocalipse. Nos demais livros do Novo Testamento, encontra-se somente o termo
“árvore” destituído da qualificação “da vida”
337. A fórmula “árvore da vida”, em Ap
2,7, está ligada à idéia de prêmio concedido ao vencedor. Tal vitória pertenceria tanto
à esfera espiritual quanto à material, pois tratar-se-ia da vitória sobre os desvios de
doutrina pregados na comunidade
338 ou a perseguição imperial339. A imagem da
336 Cf. DIEZ MACHO, A., (ed.), Apocrifos del Antiguo Testamento, II, 319-352.
Mathewson tomando por base o 1 Enoque ainda propõe que o observador vai para outras localidades,
revelando inúmeras características semelhantes às de um paraíso (rios, vales, inúmeras árvores com
fragrância e montanhas altas). No c. 28 o observador vê o deserto com árvores e uma nascente que
jorra longe. No c. 32 o observador é levado por um angelus interpres ao jardim e observa muitas
árvores com fragrância, mas com apelo direto à narrativa da criação o autor chama atenção para árvore
em particular, ‘a árvore da sabedoria, da qual quem comer terá grande sabedoria’ (32.3). Entende que
se poderia encontrar paralelos importantes com o Ap 22,1-2 ao longo de 1 Enoque. Entretanto,
consideramos que estas aproximações seriam tênues e desprovidas do valor semântico encontrado na
literatura vétero-testamentária e mesmo, considerando o estudo sobre a “água da vida” e o local de sua
procedência: o trono de Deus e do Cordeiro, careceria a esta literatura o fundamento para a árvore
receber tamanha distinção.
337 O termo “árvore” é identificado com o lenho sobre o qual Jesus foi pregado (cf. Lc 23,31), um
pedaço de pau usado para defesa (cf. Mt 26,47-55), o cepo de tortura onde eram fixados os pés dos
prisioneiros (cf. At 16,24). A identificação do lenho, a árvore morta, com a cruz de Cristo possui uma
ampla conotação teológica tendo em vista a leitura de Dt 21,22 que prescreve a pena capital: “seu
corpo será suspenso em uma árvore”, para aqueles que cometem crimes hediondos. O condenado a este
tipo de morte é um maldito de Deus.
O livro dos Atos dos Apóstolos mostra a superação desta maldição conquistada pelo Cristo elevado por
Deus à sua direita (cf. At 5,30; 10,39; 13,29). Paulo recorre à tese da maldição para mostrar que Cristo
nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se maldição por nós. Deste modo, estabelece outra
aplicação para a maldição deuteronomista, a Lei é que se tornou causa de maldição. Jesus não estava
sob a maldição porque não conhecia o pecado, mas tomou sobre si, de modo vicário, as faltas
humanas, a fim de restaurar a vida humana (cf. Gl 3,13).
O texto da 1Pd 2,24 segue a mesma linha vicária de Paulo: o pecado do homem foi carregado pelo
corpo inocente de Cristo, e Ele os cancelou com sua morte sacrifical, outorgando ao homem a
liberdade.
338 Os desvios de doutrina teriam sido introduzidos pelos nicolaítas e estariam relacionados com a
prática das obras. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of St John, 29.
339 Após a morte do Imperador Júlio César, teve início o culto ao imperador. Mas somente com o
reinado de Augusto esta forma de culto se desenvolverá e constituirá o aspecto mais original da
política religiosa de Augusto. Sob seu governo, foram levadas a termo as intenções de conferir ao
soberano uma aura e um valor sagrados. O instinto político do imperador o fez compreender que o
cultivo da religião estaria intrinsecamente relacionado com a solidez do Império: era, por assim dizer, a
política religiosa de Augusto. Não há dúvidas que o culto ao imperador foi o legado mais importante
de Augusto a seus sucessores. A grande novidade deste período é que, ao lado dos deuses que
protegiam o lar, as divindades domésticas e familiares, honrava-se também Augusto como protetor de
cada casa e de cada lugar.
A religião do Estado assumiu um status mais elaborado a partir de Domiciano (81-96 d.C.). Era do
agrado deste Imperador ver aplicado à sua pessoa o título de “senhor” e “deus”. Esta nova ordem terá
“árvore da vida” remeteria ao destinatário da carta à Igreja de Éfeso e à cena de
paraíso (cf. Gn 2-3), mas, ainda como uma promessa. Para estar na posse deste
prêmio, faz-se mister tornar-se um vencedor.
Em Ap 22,14, o acesso à árvore da vida decorre do ato de lavar as vestes no
sangue, que não pode ser outro senão o sangue do Cordeiro imolado (cf. Ap 7,14;
5,6). Esta metáfora está ligada ao sacrifício da cruz de Cristo para a salvação da
humanidade. A renovação moral e espiritual tornar-se-ia um pré-requisito para o
acesso à árvore da vida
340. É a última bênção prevista neste livro e somente estará
franqueada àqueles que, tendo entrado na Cidade Santa, venceram todo o mal e todo
o pecado
341. O termo evxousi,a indica que os santos, doravante, terão livre acesso a
árvore da vida, justamente porque já estão na posse da vida eterna.
Um cenário contrário ao de Ap 22,14 é encontrado em Ap 22,19, no qual há
a exclusão da participação na árvore da vida e da Cidade Santa para aquele que
acrescentar ou retirar alguma coisa às promessas deste livro
342. O ato de introduzir
ou excluir elementos às palavras proféticas do Apocalipse converte-se em matéria de
juízo, pois seria inserir idéias e pontos de vista pessoais ao texto inspirado
343. A
punição prevista para este ato é a perda na participação da “árvore da vida”, o
derradeiro julgamento
344. Nos textos supracitados, a expressão “árvore da vida” está
vinculada a uma metáfora para o destino do fiel
345. No entanto, não se encontram
neles uma descrição das funções da árvore, nem mesmo uma indicação mais precisa
do local onde ela se encontra. A função concreta da “árvore da vida” e sua
localização será encontrada exclusivamente em Ap 22,2.
conseqüências dramáticas, uma vez que, nos últimos três anos de seu governo, o imperador assumirá
características tirânicas, perseguindo não apenas a Igreja, mas também outros opositores. Cf.
KRAYBILL, J. N., Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse, JSNT 132, Sheffield, Sheffield
Press, 1996; GONZÁLEZ RUIZ, J. M., Apocalise de Juan, 17-18.
340 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 574.
341 Cf. BRIGHTON, L. A., Revelation, 652.
342 Liames textuais são encontrados com Dt 4,2.
343 Cf. STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ. Michigan, Andrews University Press, 2002,
610.
344 Cf. OSBORNE, G. R., Revelation, 796.
345 Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1177.
A questão sobre a localização da “árvore da vida” foi considerada apenas
como um detalhe geográfico da visão e tida como de menor importância
346, mas a
locução evn me,sw| th/j platei,aj sugere algo mais do que uma simples disposição
espacial. O estar “no meio da praça” estabelece uma conexão com o texto de Gn 2,9
em nível geográfico e de acessibilidade. A continuidade do texto de Gênesis relata o
ingresso do pecado no mundo e a conseqüente expulsão do Jardim no Éden (cf. Gn 3,
23-24)
347. O acesso à “árvore da vida” encontra-se, a partir de então, bloqueado
pelos querubins e pela chama da espada fulgurante (cf. Gn 3,24). O recurso evn me,sw|
“no meio” aplicado à “árvore da vida” presente em Ap 22,2a retomaria, assim, a
imagem de acessibilidade existente no momento da criação, indicando a restauração
da relação de intimidade com Deus tal qual havia anteriormente no paraíso (cf. Gn
2,7-8) e interrompida pelo pecado (cf. Gn 3,22.24)
348. Interrupção cessada no Cristo,
346 Cf. BEASLEY-MURRAY, G. R., The Book of Revelation. London, Oliphants, 1974, 331;
DELEBECQUE, É., “Où situer l’Arbre de vie dans la Jérusalem celéste? Note sur Apocalypse XXII,
2” Revue Thomiste 88 (1988) 124-130.
347 Embora a designação “Jardim no Éden” não esteja explícita no texto de Ap 22,2, é inevitável que
esta imagem venha à memória. Éden parece conter a noção de um jardim rico e exuberante, contendo
todos os prazeres da vida em comunhão com Deus (cf. Gn 2,9-10). A LXX, ao traduzir o termo
hebraico Éden, recorreu a para,deisoj. Este termo, contudo, não é exclusividade da língua grega, ele
figura no TH indicando a floresta do rei (cf. Ne 2,8); em outros momentos, é um parque (cf. Ecl 2,5);
ou mesmo um pomar (cf. Ct 4,13). Principalmente no último exemplo, podemos estar diante de uma
derivação de uma antiga palavra persa que teria como significado “cercado” ou “parque arborizado”
semelhante a uma jardim. Eventualmente a palavra poderia estar vinculada a um jardim celeste, um
paraíso.
No NT para,deisoj possui conotação mais próxima àquela de Éden: presença de Deus. Como se pode
perceber no texto de Lc 23,42-43 quando Jesus promete ao ladrão que ele estaria junto a Ele no
paraíso. Em 2Cor 12,2-4 Paulo foi arrebatado ao terceiro céu, identificado como paraíso. Cf.
DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 761; BRIGHTON, L. A., Revelation, 627-629; BRIGHTON, L. A., Revelation, 627-629.
348 Os textos de Gn 2 e Ez 47 1-12 foram desenvolvidos na literatura judaica primitiva. Um dos
relatos mais bem detalhados pertence à seção conhecida como o Livro dos Observadores em 1 Henoc
1-36. Em sua viagem através de conhecimento celestial, o observador é escoltado a vários locais que
contém características semelhantes às de um paraíso, muitas relembram Gn 2,9. Em 1 Henoc 24 ao
observador são mostradas sete montanhas, cujos pesos parecem o de um trono, e que são cercados por
árvores perfumadas (24,3-4; cf. 10,18-19). Uma árvore possui uma fragrância sem precedentes, belo
fruto, e sua madeira nunca se dissolve (24,4), o que reflete, possivelmente, a influência bíblica (cf. Gn
2,9; Ez 47,12). Mathewson destaca que poderíamos encontrar um paralelo importante com o Ap 22,1-2
em 1 Henoc 25, onde uma árvore cheirosa é reservada para o tempo futuro, e direcionada ao justo
(25,5). Na conclusão de todas as coisas, será apresentada com seu fruto da vida (cf. 25,6), e Deus a
plantará na direção da casa do Senhor, associando-a com o templo.
Em 1 Henoc 26-31 o observador vai ainda para outras localidades, revelando inúmeras características
semelhantes às de um paraíso (rios, vales, inúmeras árvores com fragrância e montanhas altas). No c.
28 o observador vê o deserto com árvores e uma nascente que jorra longe. No c. 32 o observador é
levado por um angelus interpres ao jardim e observa muitas árvores com fragrância, mas, com apelo
direto à narrativa da criação, o autor chama atenção para árvore em particular, “a árvore da sabedoria,
o segundo Adão, o Cordeiro imolado (cf. Rm 5,12-21; 6,23; Ap 5,6) que pelo sangue
derramado na cruz resgata o homem do pecado (cf. Ap 5,8). Por esta razão, aos
habitantes da Cidade Santa (cf. Ap 22,3c) é franqueado o acesso à “árvore da vida”.
A ilustração espacial denota um escopo teológico intensificado pelo genitivo
de origem tou/ potamou/. O lugar onde a árvore cresce é a margem do rio de água da
vida que nasce do trono de Deus e do Cordeiro. Assim, a vida que a árvore doa não
encontra resposta nela mesma, mas no trono de Deus e do Cordeiro: a vida é, assim,
dom exclusivo de Deus e do Cordeiro.
A locução e;nqen kai. e;nqen retoma a expressão
hZ<miW hZ<mi de Ez 47,12, que
reforça a idéia das árvores crescendo em ambos os lados do rio, de tal forma que o
singular “árvore” de Ap 22,2a, seja, provavelmente, uma referência coletiva a
“árvores” ou uma unidade corporativa, como “a árvore da vida”
349. De tal modo que
a única árvore do primeiro jardim tornar-se-ia muitas árvores da vida no estado
paradisíaco do segundo jardim.
O dinamismo abundante da vida é representado pelos frutos que a árvore
produz
350. O particípio poiou/n351, ligado ao acusativo karpo,j, “fruto”, reforça a
idéia de produção em sentido físico: há, de fato, uma produção352. Em alguns textos
da qual quem comer terá grande sabedoria” (32.3). No entanto, a árvore destacada aqui não é
distinguida como a “árvore da vida”. Por esta razão, entende-se que a literatura judaica primitiva não
exerceu real influência sobre Ap 22,2. Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and A New Earth, 192.
349 Ver página 76 do presente estudo.
350 O verbo poie,w é polivalente e por conseqüência é usado com referência a uma grande extensão de
atividades que envolvem a matéria para trazê-la à existência, ou seja, abarca um processo natural de
fazer, operar, produzir. Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and
other Early Christian Literature, 839-840. RUSCONI, C., Vocabolario del Grego del Nuovo
Testamento, 280.
351 A expressão poiei/n karpo.n, “produzir frutos”, é apontada como um hebraísmo ou um aramaismo,
por Forestell. O autor argumenta que
yrIP. hf'[' foi retratado literalmente pelo grego da LXX (cf. Gn
1,11.12; Jr 12,2; 17,8; Ez 17,23). Cf. FORESTELL, J. T., Targumic Traditions and the New
Testament: An Annotated Bibliography With A New Testament Index (Aramaic Studies). Chicago,
Scholars Pr, 1979, 124. No entanto, o autor desconsidera que karpo.n poiei/n é também uma expressão
idiomática grega. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1139. Deste modo, a tese de um semitismo
deixa de responder totalmente à questão. Um outro exemplo de hebraísmo seria encontrado na forma
cardinal dw,deka usada pelo multiplicativo dwdeka,kij. Cf. MUSSIES, G. The Morphology of Koine
Greek. As used in the Apocalypse of St. John. A Study in Bilingualism. Leiden, Brill 1971, 217;
TURNER, N., Syntax, v. 3 A Grammar of New Testament Greek, Edinburgh, T. & T. Clark, 1963, 319-
321. Embora o mesmo fenômeno ocorra no grego helenístico Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22,
1139. A classificação do cardinal dw,deka como um hebraísmo, portanto, não soluciona
satisfatoriamente a questão.
352 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 509.
neotestamentários, o verbo poiei/n mantém o sentido básico de produzir fruto de uma
planta (cf. Mt 21,19; 12,17; Lc 20,10; Tg 5,7.18); em outros, indica um sentido
diverso: produzir obras que mostram a adesão a Deus ou a rejeição a Ele (cf. Mt 7,17;
Lc 3,9; 6,43; 8,8; 13,8)
353. O texto de Ap 22,2a não deixa claro que tipo de frutos
será produzido pela “árvore da vida”. Contudo, estando vencida a necessidade de um
alimento para o sustento material do corpo, o sentido básico indicado pelos Sinóticos
resulta superado, da mesma forma que está suplantado o testemunho de fé
manifestado pelas boas obras. A produção de frutos pela árvore da vida seria
conseqüência de sua fonte, o trono de Deus e do Cordeiro, e ligar-se-ia à noção de
vida abundante por ele doada.
O termo dw,deka ilustra a quantidade de frutos produzidos pela árvore. No
Antigo Testamento este numeral está, basicamente, vinculado ao número das doze
tribos de Israel
354. Já no Novo Testamento, este conceito conserva-se tanto como
reminiscência (cf. At 7,8) quanto como sinal de pertença à uma das doze tribos ou a
uma delas especificamente (cf. At 26,7; Fl 3,5). Em alguns textos do Ap, o vocábulo
dw,deka assume valor simbólico (cf. Ap 7,4; 14,3) e, na descrição da Nova Jerusalém
(cf. Ap 21, 12.14), dw,deka denota a glória de Deus. Se um recurso ao universo
simbólico para a compreensão do termo dw,deka tem sido proposto
355, este se
apresenta como desnecessário, como se depreende da locução kata. mh/na “a cada
mês”. O sentido seria o mesmo do v.1: a abundância da vida, destituída de qualquer
carência ou restrição.
Esta mesma abundância de vida poderia ser detectada nas folhas da “árvore
da vida”, uma vez que estas possuem um poder terapêutico para as nações
356. No
353 Cf. HENSEL, R., fruto, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo,
Vida Nova, 2000
2
, 888-890, Tradução Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament.
Wuppertal/Neukirchen-Vluyn, 1971.
354 A complexidade do tema sobre as doze tribos de Israel ocupa uma posição de destaque na pesquisa
bíblica e particularmente na historiografia bíblica. Cf.
WOLF, C. U., “Some Remarks on the Tribes
and Clans of Israel”,
The Jewish Quarterly Review, 36 (1946) 287-295; KALLAI, Z., “The Twelve-
Tribe Systems of Israel”, Vetus Testamentum, 47 (1997) 53-90; NOTH, M., The History of Israel. New
York, Harper and Row, 1960; STEWART, D., Beyond Arsareth: The Twelve Tribes of Israel Today,
2004. http://www.cumorah.com/. Acesso, abril de 2007.
355 Aune sugere que seria um símbolo das doze tribos de Israel, doravante, um Israel renovado Cf.
AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1178.
356 Esta capacidade pode ser entendida como a cura de uma doença física ou espiritual. Cf. DANKER,
F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 453.
livro do Apocalipse, os copiosos efeitos medicinais das “folhas da árvore da vida”
não estão restritos a etnia de Israel: elas são para todos os povos, como indica o
genitivo tw/n evqnw/n
357. O termo e;qnh, “nações”, no livro do Apocalipse, pode ser
compreendido de três formas. A primeira delas é a interpretação étnica, que seria uma
designação neutra aos povos e nações358. A segunda interpretação é a negativa,
quando estas desprezaram e pisotearam a Cidade Santa (cf. Ap 11,2), quando
impediram o sepultamento dos cadáveres (cf. Ap 11,9) e quando se enfureceram
diante do prêmio dado aos que temem o Nome (Ap 11,18). Com isso, as nações, além
de beberem o vinho da fornicação (cf. Ap 14,8; 18,3), serão o suporte da prostituta
(cf. Ap 17,15), serão seduzidas pela idolatria de Babilônia (cf. Ap 18,23) e serão
objeto de severo castigo (cf. Ap 19,5). A última forma é a interpretação positiva, que
surge principalmente em Ap 21,24-26: as nações abandonam sua imagem negativa e
opressiva, já não confiam em suas próprias forças e agora se dirigem para a Nova
Jerusalém, que se tornou o centro de todo o universo (cf. Is 2,2-4; 60,3; Ag 2,6-9)
359.
Considerando o contexto de Ap 21-22 sob o prisma da redenção, o termo
“nações” deve ser concebido como etnia. Todos os povos e nações redimidas que
habitam na Nova Jerusalém já não são inimigas de Deus e de seu povo; antes, são
membros da família de Deus (cf. Ap 21,24.26; 22,2)
360. A pertença de todas as
nações à família de Deus está explicita em Ap 5,9, no qual “povos e nações foram
comprados pelo sangue do Cordeiro”. Parece justo afirmar que, a partir de Ap 5,9,
357 Segundo Mathewson, os destinatários da terapia seriam os povos da terra que acreditaram no
Evangelho. Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and A New Earth, 196. Charles, Ford e Rand
relacionam as folhas que curam a evangelização das nações fora da Nova Jerusalém pelos habitantes
da cidade durante o Milênio. Cf. CHARLES, R. H., Revelation, 177; FORD, J. M., Revelation, 346 ;
RAND, J. A. du, ‘The Imagery of the Heavenly Jerusalem (Rev 21,9-22,5)’, Neot 22 (1988) 65-86.
Vale destacar que Rand entende nações como uma referência aos mártires de Ap 7,9-15. Kiddle e Rist
concebem a função das folhas como elemento de cura das chagas daqueles que sofreram pela fé. Cf.
KIDDLE, M., The Revelation of St. John. London, Hodder & Stoughton, 1940, 443; RIST, M., ‘The
Revelation of St. John the Divine: Introduction and Exegesis’; In G. A. BUTTRICK, et al (eds.), The
Interpreter’s Bible, XII. New York, Nashville, Abingdon, 1957, 542.
De acordo com Buchanan, através da cura vinda das folhas da “árvore da vida”, as nações se tornam
judeus convertidos. A perspectiva de Buchanan parece um pouco ambígua, pois em alguns momentos
entende que a cura das nações estaria no fato destas tornarem-se judeus convertidos, enquanto em
outros momentos parece aludir à conversão dos próprios judeus. Cf. BUCHANAN, The Book of
Revelation: Its Introduction and Prophecy. Lewiston, Mellen Biblical Press, 1993, 609
358 Cf. Ap 2,26; 5,9; 7,9; 10,11; 12,5; 13,7; 14,6; 15,3.4; 20,3.8.
359 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., ‘La Nuova Gerusalemme, città aperta’. In BOSETTI, E.,
COLACRAI, A., Apokalypsis. Percorsi nell’ Apocalisse di Giovanni, 621-645, 639.
360 Cf. CAIRD, G. B., The Revelation of Saint John. London, Hendrickson, 1999
2
, 279.
entende-se melhor o significado da “cura das nações” de Ap 22,2: Cristo foi
“sacrificado” para redimir homens de todas as nações (cf. Ap 1,5). Em Ap 7,9, as
nações são uma multidão enorme composta por aqueles que venceram a grande
tribulação e não se subjugaram ao poder da besta. O tom escatológico e universalista
está presente neste “curar as nações”, sem negligenciar a temática da vida doada por
Deus e pelo Cordeiro.
e) Ausência da maldição
A afirmação categórica da inexistência da maldição encontrada em Ap 22,3a
dá continuidade ao anúncio do valor terapêutico das folhas das árvores que curam as
nações de Ap 22,2b. O vocábulo kata,qema
361 é um hápax legómenon tanto na LXX
quanto no Novo Testamento. Kata,qema
362 é uma variante intensiva de avna,qema com
kata, que introduz uma estrutura de hostilidade. É a forma sincopada de katana,qema e
de uso raro fora dos antigos escritos cristãos
363. Sendo sinônimo de avna,qema, traduz
legitimamente o termo hebraico
~r,xe, que foi usado no Antigo Testamento, para
indicar aquilo que é abandonado à ira de Deus ou uma proibição religiosa364.
Em uma conotação mais abrangente poderia assumir o sentido de completa
destruição, aplicada a um indivíduo ou aos seus pertences, por causa do pecado de
idolatria. Pode também ser uma punição imposta àquele que toma para si um objeto
interditado, ou que se recusa a aceitar o anátema na sua totalidade, transformando-se,
ele mesmo, em elemento de interdição (cf. Lv 27,29; Dt 7,26; 1Rs 20,42). O caráter
punitivo do anátema pode ter origem em Deus, e, neste caso, será uma punição que
vem de Deus contra os inimigos ou contra o próprio Israel (cf. Is 34,2.5; 43,28; Jr
50,21.26; Zc 14,11).
361 Aquilo que é devotado à divindade ou o que é maldito. Cf. DANKER, F. W., A Greek-English
Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, 517.
362 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 1033.
363 Cf. BEHM, J., “avna,qema”, GLNT, 953-958.
364 Fora do contexto religioso do Antigo Testamento, avna,qema pode assumir uma conotação positiva:
é algo que se oferece a deus. Cf. BEHM, J., “avna,qema”, GLNT, 954.
Na LXX, kata,qema indica um decreto forte, definitivo ou o sentido de
destruição militar365. Ocorrendo em contextos de guerra santa, assume conotação de
uma determinação definitiva de Deus contra uma nação inteira, para que esta seja
destruída
366. A conotação de “anátema” da LXX se faz presente na literatura
paulina, designando um objeto devotado a maldição. A variação se dá na causa da
maldição ser a falta de amor a Deus (cf. 1Cor 16,22) ou na pregação de um
Evangelho diferente daquele de Paulo (cf. Gl 1,8s). Neste caso, o conceito
fundamental é entregar ao juízo de Deus aquele que é pecador. O conceito de
“anátema” comporta, assim, a noção de pecado, que insere no mundo a maldição:
maldita é a serpente (cf. Gn 2,14), maldito é o solo (cf. Gn 2,17) e maldito é Caim (cf.
Gn 3,11).
Tendo a maldição, fruto do pecado, entrado na história humana, houve a
destruição da relação de união com Deus, resultando na expulsão do homem do
Jardim no Éden (cf. Gn 2,23). Logo em seguida, a ruptura será entre o homem e o seu
semelhante, representado pelo fratricídio de Caim (cf. Gn 4,1-11). É precisamente
esta destruição da relação com Deus, que o termo kata,qema visa banir. Trata-se da
destruição em si, ao invés de algo a ser banido ou amaldiçoado
367. A destruição não
existirá mais na Cidade Santa porque a vida supera a destruição e tal destruição não é
outra senão o pecado. Esta superação só é possível, contudo, por causa da fonte da
vida, que é o trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1-2), estar em seu meio. Todos
aqueles que se regozijam na vida escatológica na Nova Jerusalém não precisarão mais
ter medo da destruição e lá viverão em eterna segurança.
A absoluta ausência do estado de maldição no paraíso restaurado de Ap
22,3a possui como pano de fundo Zc 14,11
368. De fato, neste último texto, é
365 Ocorria quando um soberano ou um chefe militar israelita consagrava a Deus uma entidade
inimiga ou uma cidade inimiga com todos os seus habitantes. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of
St. John. London, Macmillan, 1911, 300.
366 Cf. FORD, J. M., Revelation, 362; SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John, 296.
367 Cf. MATHEWSON, D., A New heaven and a New Earth, 202. Swete pensa o contrário: haverá
uma destruição destinada àqueles que se opõem à Cidade Santa. Cf. SWETE, H. B., The Apocalypse of
St. John, 296.
368 Bauckham e Beale sugeriram que Is 34,12 também está por trás do pensamento de Ap 22,3. É
possível dizer que tal proposta não possui fundamento, tendo em vista o contexto de Zc 14,11 e Ap
22,3. O recurso seria apenas gramatical. Cf. BAUCKHAM, R., The Climax of Prophecy, 317-318;
BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1112.
anunciado o caráter inviolável da cidade de Jerusalém: ela nunca mais ficará vazia
por causa de maldição ou interdição, porque o Rei messiânico estará em seu meio.
Todas as ameaças serão subtraídas e Jerusalém habitará segura.
Esta segurança teria como indicação as mudanças geográficas previstas para
Judá e Jerusalém no porvir na era messiânica. Por esta razão, a glória de Jerusalém
será engrandecida, assim como todas as montanhas da terra serão elevadas e toda a
superfície se tornará plana, vindo de Gaba no norte até Remon no sul (v. 10). Isto
criaria uma situação na qual Jerusalém, situada no Monte Sião, dominaria,
topograficamente, a cena, sendo claramente visível de qualquer lugar na terra. Sua
posição elevada a protegeria de qualquer ameaça de destruição. Ela habitaria em
segurança, e a maldição seria banida para sempre (v.11). Através destes indícios,
poderíamos dizer que os dois textos sinalizam para a total impossibilidade da
existência do mal na Jerusalém escatológica.
2.4.2 Ap 22,3b-5
O v.3a possui não apenas uma íntima ligação com o v. 2b, por ser uma
continuação da explicação da cura das nações, mas, ao mesmo tempo, ele serve de
transição para a seção v. 3b-5, já que, efetivamente, justifica a presença de várias
características desta seção: o trono de Deus e sua presença não mediada no meio de
seus servos, que lhe rendem adoração, contemplam a sua face, portam o seu Nome e
com Ele reinarão por todo o sempre. O reaparecimento do trono de Deus e do
Cordeiro neste versículo retoma toda a simbologia teológica contida na visão do trono
de Ap 4-5, já analisadas em Ap 22,1b. No entanto, agora, a atenção se volta para a
atuação dos que estão no trono e a reação desencadeada pela presença de Deus e do
Cordeiro.
a) Um só trono
A presença do termo qro,noj ocorre também na seção anterior. Naquela,
porém, possui função de ser a fonte do rio de água da vida e da árvore da vida,
enquanto nesta, a menção de qro,noj, além de trazer consigo importantes conotações
do Antigo Testamento, contém tanto associações políticas quanto de culto369. Com
referência ao reinado de YHWH, a figura do trono expressa a grandiosa majestade do
divino Governante
370. No Antigo Testamento, o trono pode ser entendido como:
privilégio do rei (cf. Gn 41,40); promessa messiânica (cf. 2Sm 7,14); Jerusalém é o
trono de Deus (cf. Jr 3,17); seu senhorio se estende também sobre os pagãos (cf. Sl
47,9; 93,2; Lm 5,19); é sinal do poder de julgamento que somente Deus possui (cf. Sl
9,5.8; 97,2).
O trono também tem um papel fundamental nas visões do templo celestial
tanto no Antigo Testamento quanto na literatura apocalíptica judaica
371. Em Is 6,1-5,
YHWH está sentado sobre o trono cercado por seres celestes que lhe rendem
adoração (cf. ainda Ez 1,26). Ez 43,7 situa o trono de Deus no meio do templo, no
qual Deus habitará para sempre. Mesma disposição geográfica é encontrada em Ap
22,3b, porém com uma diferença, pois na Cidade Santa não há templo, porque Deus
todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo (cf. Ap 21,22).
As funções políticas e de culto do v.3b são a culminância de um processo
paulatino desencadeado nos c. 4-5, onde Deus é reconhecido e reverenciado por seus
servos com prostrações, adoração e aclamações (cf. Ap 4,10-11). Os mesmos gestos
de adoração são dirigidos ao Cordeiro proclamando-o digno de receber poder, glória e
louvor (cf. Ap 5,12). Todavia, de acordo com Ap 3,21, o Cordeiro também ocupa um
lugar no trono divino, muito embora, em alguns textos, apareça somente próximo a
este (cf. Ap 5,6; 7,17)
372. Apesar desta aparente ambigüidade, considera-se que o
livro do Apocalipse oferece uma compreensão paulatina, além de descrever as
diversas ações do Cordeiro antes de encontrar-se sentado sobre o trono com o Pai (cf.
Ap 22,3b).
Poder-se-ia ainda fazer referência ao trono enquanto um símbolo de
autoridade contrastante em relação a Babilônia/Roma: as regras romanas eram
369 Para a combinação entre realeza e imagem cúltica veja: Sl 24; 47,7-8; 48,1-2; 68,24-35; 80,2;
99,1; 11,4; 80,1; 99,1; 103,19; Is 6,1; 66,1; Jr 3,17; Ez 43,7; Dn 7,9. Cf. BUCHANAN, G. W., The
Book of Revelation: Its Introduction and Prophecy. Lewiston, Mellen Biblical Press, 1993, 610.
370 Cf. SCHMITZ. O., “qro,noj”, GLNT, vol. IV, 573-590.
371 Ver 1Rs 22,19; Is 6,1-5; Ez 1; 10,1; Dn 7,9-10; 1Henoc 14,8-25; 60,1-6; 61,8-9;71; 2Henoc 20-21.
372 Implicações cristológicas estão presentes na questão do trono e de seus ocupantes. Sobre a questão
consultar: BAUCKHAM, The Theology of the Book of Revelation. Cambridge, Cambridge University
Press, 1993, 58-65; idem, The Climax of Prophecy, 138-140; HOLTZ , T., Die Christologie der
Apokalypse des Johannes, 202-203.
caracterizadas como opressivas e corruptas (cf. Ap 13), o trono de Deus, ao contrário,
é a fonte de vida e bem-estar para as pessoas na nova Jerusalém (cf. Ap 22,1-2).
373
O singular o` qro,noj enfatiza a igualdade entre Deus e o Cordeiro que
dividem um único trono. Esta igualdade pode ainda ser percebida no fato de o
hagiógrafo recorrer ao pronome singular no versículo subseqüente para se referir ao
Nome e a face de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,4). A co-divisão do trono implicaria
também as atribuições políticas e cúlticas inerentes àquele que legitimamente ocupa o
trono
374: tais implicações podem ser encontradas em Ap 22,3b-5. Com a presença do
trono no qual Deus e o Cordeiro se sentam no meio da Nova Jerusalém, a soberania
absoluta de Deus é agora universalmente conhecida na Nova Jerusalém, onde os
eleitos rendem adoração a Deus e ao Cordeiro. Como tais, as prerrogativas do trono
em Ap 22,3b-5 provêem do ponto central em torno do qual todas as atividades em Ap
22,1-5 giram.
Ap 22,3c-4 descreve a vida dentro da Cidade Santa, sintetizada em breves
afirmações: os servos adorarão a Deus e ao Cordeiro, verão sua face, seu nome estará
sobre suas frontes, não necessitarão mais da luz da lâmpada ou do sol e reinarão com
seu Deus por todos os séculos. Deste modo, o trono de Ap 22,3b não indica um
momento de juízo sobre o homem, pois este já ocorreu, mas, antes, Deus encontra-se
no trono para elevá-lo a uma dignidade totalmente nova: ele será um servo que vê a
face de seu senhor, tem o nome deste senhor gravado em sua fronte e participa de seu
reinado.
b) Os servos adoradores
O termo dou/loj, “servo”, introduz um novo personagem na visão. Por meio
dele, temos a descrição dos habitantes da Cidade Santa: são servos de Deus e do
Cordeiro (cf. Ap 22,3c). O estado de servidão nesta cidade, contudo, destoa de seu
conceito básico que comporta a noção do homem reduzido à condição de escravo e
373 Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 204.
374 Prigent nota que a visão do trono no c.4-5 é sujeito de uma única descoberta, a saber: a revelação
plena de Deus Criador e de seu Messias, o Cordeiro imolado. Cf. PRIGENT, P., Commentary on the
Apocalypse of St. John. Tübingen, Mohr, Siebeck, 2001, 627.
sujeito a um serviço forçado375, aproximando-se do conceito veterotestamentário oi`
dou/loi tou/ qeou/, que sugere a relação do judeu piedoso com o seu Deus, identificado
de modo particular em Abraão (cf Gn 18,3.5), Isaac (cf. Gn 24, 14), Moisés (cf. Ex
14,31; Js 14,7), Davi (cf. 2Sm 7,5.8), os profetas (cf. Is 20,3; Dn 6,20) ou o povo (cf.
Jr 30,10).
De igual modo, há uma aproximação com o emprego do termo no Novo
Testamento, uma vez que os cristãos são denominados “servos de Cristo” (cf. Ef
6,21; Tg 1,1; 2Pd 1,1, Jd 1), são sua propriedade (cf. 1Cor 7,22; Ef 6,6) e suas vidas
são um serviço prestado ao Cristo crucificado e ressuscitado (cf. Gl 1,10; Cl 4,12;
2Tm 2,24). Jamais retornarão ao estado de escravos da morte, do sofrimento ou do
pecado (cf. Rm 6,12-23), porque foram resgatados pelo sangue do Cordeiro (cf. Ap
5,9-10).
O pronome auvtou/, que sucede o termo dou/loi de Ap 22,3c, impõe a noção
de propriedade e a existência de um senhor legítimo. O senhorio é exercido sobre
uma pessoa ou alguma coisa e homem pode ser sujeito desta autoridade ou objeto,
servo. Em sua relação com Deus, ele é objeto e Deus o seu proprietário (cf. Mc 12,9;
Lc 19,33; Mt 15,27; Lc 16,3.5.8). Esta noção de propriedade é acentuada pela
presença constante, no livro do Apocalipse, do artigo que distingue “O Senhor”
376.
Em Ap 22,3b, o pronome auvtou/ identifica Deus e o Cordeiro como único
proprietário dos servos que habitam a Cidade Santa. Nesta relação de senhor/servo na
Jerusalém celeste, estão presentes, concomitantemente, os elementos vétero-
testamentários de homem piedoso, como aqueles neotestamentários de resgate da
morte e do pecado. Sendo assim, a expressão oi` dou/loi implica elementos
cristológicos, porque o Cordeiro operou o resgate do homem da escravidão do pecado
(cf. Gl 1,10; Ap 5,9). A finalidade deste resgate, contudo, não é a diminuição da
375 O conceito de escravidão, tal qual entendido no mundo extra-bíblico, designa sua condição social
da pessoa, e pode ser encontrado em alguns textos veterotestamentários (cf. Ex 14,5; 13,3.14; 20,2; Lv
26,45). A LXX prefere o vocábulo pai/j para indicar aquele que não está em condições de dispor de si
mesmo. Cf. RENGSTORF, K. H., “dou/loj”, GLNT, vol. II, 1966, 1418.1431; BAILLY, A.,
Dictionnaire Grec-Français, 535.
376 A presença do artigo está reservada ao Deus legítimo, reportando à fé vétero-testamentária
fundada sobre a experiência histórica do Êxodo (cf. cf. Ap 1,8; 4,8; 11,17; 16,7; 18,8; 19,6; 21,22). Cf.
FOERSTER, W., “ku,rioj”, GLNT, vol. V, 1401.
dignidade humana; antes a sua elevação por meio do seguimento de Cristo e uma
orientação para Cristo, com o conseqüente afastamento do mundo e de sua força de
atração para o pecado e a morte (cf. Mt 24,4-14; Mc 13,5,-13).
Ser servo de Deus e do Cordeiro é, portanto, permanecer liberto da doulei,a
do mundo (cf. Jo 15,19)
377. A corrupção desta ordem incorre no afastamento do
homem da presença de Deus
378. Assim, o escopo da liberdade concedida por Cristo
não é a autonomia, mas a obediência, restabelecendo, deste modo, a relação de
dependência incondicional do homem com relação a seu Deus e senhor.
O estado de servidão dos habitantes da Nova Jerusalém seria a condição
essencial de justiça dada por Deus
379. Da parte do servo, a única resposta possível é
tornar-se servo que adora (cf. Sl 22,23; Is 49,7; Dn 3,28). Assim, a adoração torna-se
o diálogo-serviço por excelência entre o servo e seu Senhor.
A tarefa do servo na Cidade Santa é definida pelo verbo latreu,w
380, que
retoma o verbo
db[ ligado ao serviço de adoração a Deus no culto, especialmente
pelo sacrifício (cf. 40,6-7; Ex 10,25; Dt 12,6). Este culto de adoração a Deus consistia
no propósito do êxodo do Egito (cf. Ex 3,12; 4,23; 7,16). O serviço de culto em Israel
era prestado pelos “servos de Deus” ao Deus Único como reconhecimento de sua
soberania
381. Este reconhecimento, manifestado no culto, expressão de uma atitude
interior de devoção fiel a YHWH, deve atingir o modo de vida até ao ponto de
377 A exclusividade da doação a Deus está impressa no termo dou/loj. O servo não pode subtrair-se
sem sofrer as conseqüências e é ilusão pensar que o homem, “servo de Deus”, poderia exercitar a
doulei,a sem concentrar todas as forças no cumprimento de uma observância exclusiva das Leis de seu
Deus.
378 Cf. FOERSTER, W., “ku,rioj”, GLNT, vol. V, 1341-1488.
379 Quando usado em moldura litúrgica, o termo dou/loj descreve a relação de dependência e de
serviço do homem para com Deus. Esta moldura constitui o diferencial entre o pensamento grego e o
judaico. No primeiro, a dependência é civil/jurídica e no segundo, a dependência é ontológica. Cf.
RENGSTORF, K. H., “dou/loj”, GLNT, 1433.
380 Etimologicamente, o verbo latreu,w encontra-se ligado à noção de presença, estar diante de um
outro. Seu primeiro significado é trabalho ou serviço por recompensa, por isso vem anexado à figura
de um escravo que desempenhe tal tarefa. Em um segundo momento, pode significar o culto prestado
aos deuses. Nos textos veterotestamentários da LXX, somente o segundo sentido será assumido. Na
literatura profética, o termo leitourgei/n está limitado a ação da classe sacerdotal, enquanto latreu,ein
indica a ação religiosa do povo no seu conjunto. Cf. STRATHMANN, H., “latreu,w”, GLNT, vol. VI,
1970, 169-172.
381 Havia em Israel o perigo de este serviço de culto ser desviado e tornar-se um ato de adoração a
deuses estrangeiros (cf. Ex 20,5; 23,24; Dt 4,28; 5,9; 7,4.16; 8,19; 11,16.28; 12,2; 29,17; Js 24,14s; Jz
2,19; 2Cr 7,19). Principalmente Moloc e Baal (cf. Lv 18,21; Jz 2,11.13; 3,7) ou o culto real a
Nabucodonosor (Jd 3,8).
harmonizar expressão cultual com a vida prática (cf. Dt 10,12ss). Por isso, a fé em
Israel não é uma religiosidade abstrata, de uma moral genérica e imprecisa, mas sim
fruto de uma atitude interior de devoção, traduzido em uma vida de amor e temor,
obediência aos Mandamentos
382.
Nos escritos do Novo Testamento, o serviço de adoração está continuamente
relacionado com Deus, quer na oferta do sacrifício no culto
383, quer na oração
litúrgica que todos podem oferecer (cf. Lc 18,9-10; Mt 67-8). Exceção é o texto de
Mt 4,10 (cf. Lc 4,8; cfr. Dt 6,13), onde latreu,w é antítese para o proskunei/n, que o
tentador deseja para si (cf. Mt 4,8-9; Lc 4,5-7). Esta antítese evidencia que o culto a
Deus não pode estar dissociado de um comportamento de vida verdadeiramente santo
e da observância aos Mandamentos de Deus de modo perfeito diante de Seus olhos. A
verdadeira adoração consiste, portanto, em uma configuração do íntimo e do agir
externo do homem/servo com a vontade de Deus e uma distinção clara do mundo
entendido como opositor a este querer de Deus
384.
O ato de adorar, dedicado somente a Deus no Antigo Testamento, é
destinado em Ap 22,3c a Deus e ao Cordeiro, como indica o pronome dativo
masculino auvtw/|. Esta será a única ação realizada na Nova Jerusalém onde os servos
se põem ao redor do trono
385. A presença contínua de Deus e do Cordeiro e o novo
Templo (cf. Ap 21,22) proporcionam uma mudança na compreensão do verbo
latreu,w: sua realização não está mais circunscrita a um espaço físico, ele é ação
espiritual e ininterrupta, como indica o futuro do indicativo latreu,sousin. O mesmo
tempo verbal é empregado para indicar a presença de Deus e do Cordeiro (cf. Ap
22,5) e, por causa desta presença permanentemente na Cidade Santa, Eles receberão
continuamente a adoração de seus servos
386. A conexão com o termo nao,j, concede
382 Cf. STRATHMANN, H., “latreu,w”, GLNT, 176.
383 Cf. At 7,7.42; Hb 8,5; 9,9; 10,2; 13,10.
384 Cf. Ap 2,2-5. 9-10. 13-16. 19-28; 3, 1-5. 8-12. 15-21.
385 Prigent seguido por Beale consideram que o pronome auvtw/|. indica mais do que uma unidade no
trono, ela é uma unidade do templo, identificado em Ap 21,22 não como um edifício, mas como a
presença de Deus e do Cordeiro. O templo é o Pai e o Filho, Deus e o Cordeiro, a mesma unidade,
continuam os autores, é aplicada ao título Alfa e Ômega (cf. Ap 1,8; 21,6; 22,13).Cf. PRIGENT, P.,
L’Apocalypse de Saint, 330; BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1113.
386 Vale destacar que embora a forma verbal latreu,w ocorra no Apocalipse, a forma no substantivo e
no adjetivo leitourgei/n está ausente. Cf. TRENCH, R. C., Synonyms of the New Testament. Michigan,
Baker, 1989, 137-139.
ao verbo latreu,w, portanto, uma maior abrangência (cf. Ap 1,6; 5,10; 20,6),
indicando não se tratar de um serviço ritual externo, mas de adoração espiritual387.
Em Ap 7,15 há uma aproximação de imagem e pensamento com Ap 22,3c.
Os santos de todos os tempos adoram a Deus dia e noite diante de seu trono e
exercem um ministério sacerdotal para sempre por causa de sua perseverança no
Nome de Cristo (cf. Ap 21,24-26). Tal perseverança é fruto de uma vida configurada
ao Cristo, tanto no íntimo do servo, quanto em seu exterior, acarretando em um
direcionamento para o querer de Deus e distanciado do agir orientado para o pecado.
A adoração passa, assim, pelo conhecimento da vontade de Deus e pela liberdade
humana que reconhece Nele a soberania e a fonte de vida (cf. Ap 22,1b.3c).
O objeto da adoração dos servos é, conforme indica o pronome genitivo
auvtou/ do v.4a, a face de Deus e o Cordeiro. No Antigo Testamento, expectativa da
contemplação da face de Deus constitui o escopo escatológico do povo que O adora
(cf. Gn 17,3; Is 60,1-2; Is 52,8; Ez 43,1-5; 44,4).
Em uma análise etimológica, o termo pro,swpon, usado na LXX para indicar
a face de Deus, traduz o hebraico
~ynIP'388 “face”, “rosto”. Quando aplicado a Deus,
recorre-se a uma linguagem antropomórfica para fazer referência à misericórdia de
Deus para com o homem (cf. Nm 6,25); quando sua face se retira, é a sua
benevolência que está sendo suprimida (cf. Dt 32,20; Mq 3,4) ou pode aludir a sua ira
contra aqueles que fazem o mal (cf. Sl 33,17). Na oração, o homem pode implorar
que Deus retroceda e volte, revelando mais uma vez a sua face sobre seu povo (cf. Sl
12,2; 29,8;43,25); quando é atendido em sua súplica, exulta de alegria (cf. Sl 21,25).
387 Vanni destaca que a capacidade sacerdotal desempenhada na Cidade Santa se realiza em uma
dimensão puramente espiritual. Este sacerdócio qualifica o cristão e depende, intimamente, do
sacerdócio de Cristo. Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 350. Mesmo pensamento pode ser encontrado em
Thomas. Cf. THOMAS, R. L., Revelation 1-7. Chicago, Moody Press, 1992, 498.
Schüssler Fiorenzza destaca que a adoração de cunho espiritual se contrapõe àquela político-social
proposta pelas regras romanas caracterizadas pela opressão e corrupção. Cf. SCHÜSSLER
FIORENZZA, E., “Redemption as Liberation, Ap 1,5 and 5,9f”, CBQ (1974) 36 220-232; da mesma
autora, ver também Revelation: Vision of a Just World, no qual a autora entende a liberdade vivenciada
na Cidade Santa como um contraste decisivo com Babilônia/Roma. Cf. SCHÜSSLER FIORENZA, E.,
Revelation: Vision of a Just World. Minneapolis, Fortress Press, 1991, 113.
388 O substantivo hebraico ~ynIP' pode significar o rosto de uma pessoa (cf. 2Rs 4,29.31; 8,15; Is 25,8;
Jr 13,26; Na 3,5; Ml 2,3; Jó 4,15; 15,27; Eclo 26,17); a superfície de objetos (cf. Gn 7,23; 8,8.13; 2Sm
14,7); designa o funcionário do rei (cf. Gn 32,31; Jd 6,22) dentre outras conotações. Cf. LOHSE, E.,
pro,swpon”, GLNT vol XI, 1977, 406-409.
Os Salmos expressam as esperanças de uma contemplação da face de Deus
(cf. Sl 11,7; 17,15; 24,6; 42,2). Sob o ponto de vista espiritual, a idéia de ver a face de
Deus torna-se elemento fundamental para se chegar ao verdadeiro conhecimento de
Deus e a correta relação d’Ele conosco (cf. Jó 33,26; Nm 6,25)
389. Ver a face de
Deus pode assumir a conotação de ir ao santuário, pois o templo converte-se no local
onde o crente busca a face de Deus e o encontra (cf. Zc 8,21s). Este deslocamento do
orante manifesta sua nostalgia, seu desejo de ver a face de Deus (cf. Sl 41,3; 94,2).
Nos textos do Antigo Testamento, o ato de ver a face de Deus permanece
como sinal da presença de Deus através de seu cuidado com o povo de Israel e
conhecimento de sua Pessoa e vontade. Mas o ato de ver, fisicamente, o rosto de
Deus apresenta-se, para o homem, como algo perigoso em função do nosso estado de
pecado (cf. Ex 3,6; 20,19) e da imensa santidade de Deus. Por esta razão, Moisés verá
apenas as costas de Deus passando ao longe (cf. Ex 33,20.23)
390.
O termo pro,swpon, nos escritos do Novo Testamento
391, assume uso
lingüístico do Antigo Testamento: sentido de reverência, veneração392, além da
expectativa de ver o rosto de Deus (cf. Mt 5,8; 1Cor 13,12; Hb 12,14; 1Jo 3,2b-3).
Mateus segue a noção vétero-testamentária de que só no mundo celeste se pode ver a
face de Deus (cf. Mt 18,10), embora seja portador da epifania de Jesus, quando seu
rosto resplandeceu como o sol diante dos olhos de Pedro, Tiago e João (cf. Mt 17,2;
389 Cf. OSBORNE, G. R., Revelation, 774.
390 O contrário ocorre na cultura grega, pois os deuses podiam manifestar-se aos olhos dos homens. O
AT não nega a possibilidade de ver a Deus, mostra apenas a imensa distância, criada pelo pecado,
entre Deus e sua criatura. A Revelação, contudo, será realizada por meio de uma relação dialogal, que
embora exclua a presença física de Deus, em nada diminui a intimidade entre o Criador e a criatura.
Será a palavra o veículo de conhecimento, e não uma aproximação física entre o divino e o humano
como entendiam os gregos. Cf. LOHSE, E., pro,swpon col. 411.
391 Na visão de Aune, o “ver a Deus” não é uma preocupação apenas dos escritos neotestamentários.
Também o judaísmo e o Antigo Testamento teriam dedicado espaço a este desejo tão íntimo do ser
humano. No judaísmo helênico “vendo a Deus” pode referir-se à mística visão de Deus percebida
mentalmente ou espiritualmente. No judaísmo antigo, por sua vez, o privilégio de ver a Deus teria sido
considerado uma bênção escatológica (cf. Sl 84,7; Jub 1,28; 4Ezra 7,91.98; 1Enoc 102,8). No mundo
grego, a menção “ver a face de deus” estaria na capacidade da alma se agarrar aos deuses. A literatura
rabínica, por sua vez, acompanha a idéia de Is 6,2, na qual nenhum anjo, nem criatura vivente poderia
ver a Deus ou ouvir a sua voz, este benefício seria próprio do piedoso, mas somente após a sua morte.
Na mística tradição literária grega, “ver a face de Deus”, seria impossível para a natureza humana. Na
literatura rabínica, este “ver a face de Deus” foi abrandado pela inserção da expressão “ver a face da
Shekinah”, estar na presença de Deus. Cf. AUNE, D. E., Revelation 17-22, 1179-1181.
392 Cf. Mt 6,16s; At 6,15; Ap 4,7; 7,11; 9,7; 11,16; Mc 14,65; Mt 17,6; 26,39.67; Lc 5,12; 17,16;
1Cor 14,25. O termo pro,swpon pode também assumir a conotação de “superfície” (cf. Lc 21,35).
Lc 9,29). São Paulo, por sua vez, ensina que aos servos será concedido, no final dos
tempos, ver a face de Deus que fora oculta ao olhar do homem após o pecado. No
presente, a visão humana se dá por representação, de modo obscuro (cf. 1Cor 13,12).
Assim, o ver e o falar são imperfeitos e somente no futuro se terá a visão perfeita e o
conhecimento real.
Na obra do Apocalipse, esta visão futura e de benignidade não atinge a
todos: alguns se encontram destituídos da graça de ver a face de Deus e lamentam o
fato de sua exclusão da face do que está assentado no trono (cf. Ap 6,16). O genitivo
prosw,pou, em Ap 22,4a, é um antropomorfismo para invocar a presença de Deus que
é justiça e introduz o julgamento final tornando a visão da face de Deus algo
insuportável. A impossibilidade de suportar a presença de Deus decorre do caráter
definitivo do juízo promovido pela abertura do sexto selo, que suprime toda
possibilidade de alguma coisa ficar oculta diante da face de Deus. Perante a face de
Deus e da ira do Cordeiro
393, até as forças da terra se abalam. As forças humanas
representadas pelas patentes militares, os reis, os homens livres ou em situação de
escravidão sucumbem diante de sua face, posto que são dignos de juízo em função de
sua oposição a Cristo
394. O elenco das classes sociais mostra que toda a humanidade
é afetada pela divina justiça e dela não pode escapar.
O mesmo pavor ocorre em Ap 20,11, onde toda a antiga criação foge da
presença daquele que está no trono
395. É uma nova situação de juízo, mas sem
descrever como este se dará, e, não obstante por se tratar de um juízo divino, este não
pode ser de outro modo senão na via da justiça
396. O genitivo ressalta que é a criação
que se afasta da presença de Deus
397.
393 A expressão “ira do Cordeiro” é hapax legomenon no Ap e, no presente contexto, situa o Cordeiro
como juiz. A cristologia deste texto é altíssima e encontra-se intimamente vinculada a Ap 5,7.13 onde
o Cordeiro recebe do que se assenta no trono o livro e imediatamente após é aclamado pelos Anciãos e
seres vivos como detentor do louvor, honra, a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Cf.
SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 171.
394 Cf. JOHNSON, D. E., Triumph of the Lamb, 129; KISTEMAKER, S., Revelation, 238-239.
395 Cf. Ap 4,2.3.9; 5,1.7.13; 6,16; 7,10.15;19,4; 21,5.
396 Mounce e Prigent optam pela interpretação de que o juízo divino se dará pela via do amor. No
entanto, esta linha de trabalho não se encontra de modo explícito no texto. Cf. MOUNCE, R. H., The
Book of Revelation, 375; PRIGENT, P., Commentary on the Apocalypse of St. John, 577.
397 Como em Ap 6,16, há uma íntima relação entre Ap 20,11 e Ap 5 tendo em vista o tema do livro
que o Cordeiro recebe de Deus e, por conseqüência, uma cristologia. O julgamento segue o mesmo
padrão de Ap 6,16: pertence a Deus e ao Cordeiro. Esta co-participação no julgamento não é uma
O termo pro,swpon ocorre ainda em Ap 4,7, mas descrevendo a face dos
seres vivos que estão ao redor do trono e em Ap 10,1 como alusão à face do anjo
resplandecente como o sol. Aparece por fim, como o espaço para onde a mulher foi
levada com a finalidade de protegê-la da serpente em Ap 12,14, seguindo assim
outras conotações possíveis a este termo.
Se em Ap 6,16 e 20,11 o homem e toda a criação não suportaram olhar para
a face de Deus como Juiz, na Jerusalém Celeste o servo olha para o trono de Deus e
do Cordeiro com segurança, já não há mais o pavor do juízo, somente a gratuidade de
Deus que se dá a conhecer plenamente (cf. Ap 22,4a), e, agora, já não mais por
reflexo (cf. 1Cor 13,12).
A ação de ver, expressa com o verbo o`ra,w “ver”, neste versículo, é
localizada no tempo futuro e remete à plena consciência da presença e do poder de
Deus, sem restrições e de modo constante. Assim sendo, o “ver a sua face” assume,
em Ap 22,4, não o valor de uma idéia vaga, mas de presença real. O objeto concreto
do ato de ver é decodificar os traços, conhecer a estrutura, a imagem de uma pessoa
(cf. Mt 18,10)
398. Deixa também de lado a idéia de uma relação de subordinação no
sentido de afastamento entre senhor e servo; antes há uma intimidade inaudita. Sendo
assim, esta é a culminância de algumas das maiores esperanças escatológicas da
Sagrada Escritura: na Cidade Santa, o povo de Deus vê a face de Deus totalmente,
sem reservas.
É provável que em Ap 22,4a, ressoem tons do culto de adoração próprios do
Antigo Testamento, conforme visto acima. Desta forma, o Apocalipse daria
cumprimento à finalidade da adoração do culto no Antigo Testamento, tendo em vista
que os santos servem diante da face de Deus.
399.
novidade do Apocalipse, já encontra-se presente em alguns textos neotestamentários (cf. Rm 2,16; Mt
25,31-46; At 10,42; 2Tm 4,1).
398 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 887.
399 Mathewson considera que o vínculo entre a expressão “ver a face de Deus” e o culto não são
evidentes, antes, ela apenas reforçaria as aspirações escatológicas dos textos do Antigo Testamento (cf.
Ex 23,15: Ex 23,17; Ex 34,24; Dt 16,16; 31,11; Is 1,12; Sl 42,3). Cf. MATHEWSON, D., A New
Heaven and a New Earth, 206-207.
Comblin, por sua vez, pensa que esta visão de Deus pertence a uma estrutura de culto, que teria como
pano de fundo a Festa dos Tabernáculos. Cf. COMBLIN, J., “La liturgie de la nouvelle Jérusalem
(Apoc XXI,1-XXII,5)”, 26-27.
O v.4b dá continuidade ao emprego do pronome pessoal auvtou/ no singular,
agora identificando o Nome de Deus e do Cordeiro que será impresso sobre a fronte
dos servos. O Nome, antes de tudo, é o componente essencial do ser humano porque
o distingue dos demais. Quando relacionado à pessoa divina, o conhecimento do
nome divino é imprescindível para que o homem possa invocá-lo e entrar em relação
com ele
400.
No Antigo Testamento, o ato de denominar algo estabelece uma relação de
domínio e propriedade entre aquele que denomina e aquele que é denominado,
podendo tratar-se dos animais criados (cf. Gn 2,19s), de uma cidade conquistada (cf.
2Sm 12,28) ou de uma propriedade (cf. Is 4,1). Quando Deus impõe um nome,
estabelece o direito de propriedade sobre ele (cf. Is 43,1), podendo indicar o povo de
sua propriedade (cf. Is 63,19), seu templo (cf. Jr 7,10), sua arca (cf. 2Sm 6,2) ou
Jerusalém, sua cidade (cf. Jr 25,29; Dn 9,18).
Mais do que elencar elementos, o nome no Antigo Testamento possui um
valor acentuado quando se trata do nome de Deus. Nome que, em sua liberalidade,
Ele mesmo fez conhecer na sua revelação (cf. Gn 17,1; Ex 3,14; 6,2) e mediante o
qual pode e deve ser invocado. Através deste Nome, Ele se torna próximo ao homem
e, verdadeira, a sua promessa (cf. Ex 20,24; Nm 6,24). No Deuteronômio, de modo
particular, o Nome sinaliza a proximidade salvífica de YHWH (cf. Dt 4,36; 12,11;
14,23; 16,11; 26,15)
401. Este Nome é, em síntese, a expressão da soberania pessoal e
Em uma linha que prioriza o elemento jurídico encontra-se Fekkes. Segundo este autor, a expressão
“ver a face de Deus” seria uma derivação do termo jurídico ver a face do rei. Cf. FEKKES, J., Isaiah
and Prophetic Traditions in the Book of Revelation, 387-388. A aplicação de uma visão jurídica foi
abordada também por Mounce, quando recorda ser procedimento no mundo antigo a proibição
aplicada aos criminosos: eles não poderiam ver a face do rei, muito menos poderiam permanecer
diante de sua presença. Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 400.
Para Schüssler Fiorenza, a experiência da proximidade com Deus, que o adorador procurava no templo
quando se colocava diante da face de Deus, tornar-se-á uma realidade no futuro escatológico. Cf.
SCHÜSSLER FIORENZA, Priester für Gott: Studien zum Herrschafts- und Priestermotiv in der
Apokalypse, 384. O mesmo pensamento pode ser encontrado em HOLTZ, T., Die Christologie der
Apokalypse des Johannes, 204.
400 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 711.
401 No ato de pronunciar um nome, tanto para o Antigo Testamento como para os povos extra-
bíblicos, implica no conhecimento da potência da coisa em si. O conhecimento do nome divino possui
importância capital para que o homem possa relacionar-se com o sagrado através da adoração e da
submissão e, em contrapartida, Deus lhe assegura seu auxílio (cf. Gn 4,26; 12,8; 13,4; 26,25; 1Rs
18,24). Cf. BIETENHARD, H., o;noma”, GLNT, vol. VIII, 706-707.
da atividade de Deus que se volta em direção ao homem, no qual YHWH se revela no
tempo, seja ele um tempo passado (cf. Ex 3,6; 13,15), presente (Ex 20,7) ou futuro
(cf. Ez 25,17; 34,50).
O Novo Testamento herda alguns empregos lingüísticos do Antigo
Testamento no que se refere ao uso do nome para designar uma pessoa, sua função
(cf. Mc 3,16; At 27,1) ou sua fama (cf. Mc 6,14; Ap 3,1). Contudo, a principal
conexão teológica com o Antigo Testamento está na união da pessoa à obra de Deus
(cf. Mc 11,9s; Mt 23,39; Lc 1,49; At 15,17). No 4° Evangelho, o nome divino
aproxima-se da glória divina (cf. Jo 12,23.28). A glorificação do Nome de Deus se dá
pela obra de Cristo, na qual Jesus revela aos homens o Nome de Deus sob o
predicado de Pai (cf. Jo 17,6.26). Neste contexto, o termo o;noma exprime a relação
concreta entre Deus e o homem, enquanto relação pessoal, implicando um agir de
Deus e uma reação do homem a Este que se revela como Pai amoroso (cf. Jo 3,16;
17,12). Esta seria a verdadeira obra de Cristo: a glorificação e a proclamação do
Nome do Pai (cf. Jo 17,26)
402. O ato de permanecer “no Nome” assume o sentido de
encontrar-se no âmbito do amor do Pai e do Filho (cf. Jo 17, 19-22), que livra o
homem de todo o perigo externo pela força de seu Nome. Da parte do homem, a
experiência do amor faz com que se assemelhe, paulatinamente, a Deus e ao Cristo
(cf. 1Jo 3,2)
403.
O tema da semelhança com o Pai celeste está presente no Apocalipse, diz
respeito aos fiéis, aqueles que se tornaram servos de um único Senhor, que portam o
nome de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 3,12). O mesmo tema pode sinalizar uma
situação de condenação definitiva, tendo em vista que aqueles que se assemelharam à
besta e receberam a sua marca estarão apartados do Reino de Deus e do Cordeiro. O
escopo metafórico estaria, portanto, na noção de semelhança e de propriedade, uma
vez que os seguidores da besta foram marcados na mão direita ou na fronte (cf. Ap
13,16; 14,9; 20,4)
404. A situação de pertença e semelhança pode ser encontrada
402 Cf. BIETENHARD, H., o;noma”, GLNT, vol. VIII, 757-759.
403 Para aprofundar o tema de sermos semelhantes a Deus e vê-lo tal como Ele de 1Jo 3,2 veja
SMALLEY, S. S., 1,2,3 John. Waco, Word Books, 1984, 146-147.
404 Esta pertença possui três raízes: Ez 9,4 não colaborou com a idolatria em Jerusalém e teve sua
fronte marcada com o Tau; nas religiões helenísticas, o sinal na fronte exprime a pertença a um deus
ou a um amuleto, e também os deuses egípcios trazem a marca em suas frontes; por fim, o significado
ainda em Ap 17,5 e refere-se ao nome da prostituta impresso na testa. O nome
aplicado sobre a fronte remete, portanto, a uma condição de íntimo conhecimento, de
semelhança e seguimento. Contudo, esta identificação constitui uma usurpação do
direito daquele que de fato é o Senhor e o proprietário destes servos que se
permitiram aderir à prostituta, apesar de pertencerem a Deus. O destino deles será o
afastamento da presença de Deus e os tormentos pelos séculos dos séculos (cf. Ap
14,11).
Portanto, a combinação de to. o;noma e tw/n metw,pwn
405 de Ap 17,5 mostra
que existe uma conexão específica entre o nome e aquele que o porta
406. Conexão
que possui uma conotação positiva em Ap 22,4b quando os servos recebem o Nome
de Deus e do Cordeiro em suas frontes. Os servos marcados são os mesmos que se
encontram em adoração diante do trono de Deus e do Cordeiro do v.3c, como indica o
pronome auvtw/n. Na Jerusalém celeste, o fiel gozará de um conhecimento de Deus
sem censuras, conhecê-lo-á tal qual Ele é (cf. 1Jo 3,2). O fato de portar o Nome de
Deus e do Cordeiro agrega ainda dois elementos. O primeiro deles é a indicação de
cidadania, pois aquele que o detem é designado membro da Nova Jerusalém, e estes
formarão “o povo que pertence a Deus” (cf. 1Pd 2,9; Ex 19,5; Tt 2,14). O segundo é a
idéia do ministério sacerdotal dos santos na Nova Jerusalém (cf. Ap 22,3c). Sendo
assim, a metáfora sugeriria a consagração ao serviço de Deus
407. Tal serviço já foi
indicado no v.3c: a adoração prestada ininterruptamente a Deus e ao Cordeiro por
seus servos
408.
de Ap 22,4: os marcados por Deus são causa de escândalo, na medida em que sendo servos gozam de
total liberdade diante de seu Senhor. Cf. SCHNEIDER, C., “me,twpon”, GLNT, vol. VII, 189-198.
405 O termo metw,pwn ocorre somente no Apocalipse e sempre indicando a pertença de um objeto, no
caso a fronte, a um sujeito, que oscila em alguns textos entre Deus e o Cordeiro e a besta.
406 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français 1384; THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of
the New Testament, 447.
407 A idéia do ministério sacerdotal dos santos na Nova Jerusalém encontra-se no Êxodo que descreve
a inscrição do nome de Deus na testa do sumo sacerdote (cf. Ex 28,36-38). Cf. SWETE, H. B., The
Apocalypse of St. John, 301.
408 Apesar de Beale insistir em um contato com os textos de Is 62,2; 65,15, no qual o fiel recebe um
“nome novo” no final dos tempos e com o qual o próprio Deus associou-se. Cf. BEALE, G. K., The
Book of Revelation, 1114. Parece-nos que esta aproximação insere um modo figurativo da presença de
Deus entre os seus. A idéia do nome divino estaria, a nosso ver, mais diretamente relacionada com a
imagem de Ap 7,3; 14,1; 3,12 quando os servos de Deus são marcados na testa com um selo
simbolizando sua pertença real e concreta ao divino e a proteção que d’Ele recebem.
A expressão to. o;noma poderia, segundo alguns estudiosos, conter uma
referência às vestes do sumo sacerdote. Este, quando trazia em sua testa um turbante
com uma rosa de puro ouro, deveria ter gravada sobre esta as palavras: “Consagrado
ao Senhor” (cf. Ex 28,36-38). O significado desta inscrição era que ambos, Aarão e
aqueles a quem ele representa, assim como todos os cultos que ele presta como
sacerdote, são completamente consagrados ao Senhor
409.
Parece verossímil encontrar uma alusão a Ex 28,36-38 em Ap 22,4b porque
esta enfatizaria a temática do culto sacerdotal que permeia o resto do contexto de Ap
22,3b-4. Sendo assim, o significado da leitura de Ap 22,4b à luz deste subtexto seria
aquele de que o nome inscrito nas testas dos que venceram e habitam a Nova
Jerusalém não apenas pertencem a Deus, mas serão semelhantes de alguma forma ao
seu Deus
410.
c) A extinção da noite e dos luzeiros
Enquanto nos v. 3c-4ab o texto descreve a função e as primeiras
características dos servos, o v.5 delineia tanto os atributos da Cidade Santa (nela não
haverá mais noite, nem a luz do sol), como o último ofício do servo (reinar junto a
Deus e ao Cordeiro pelos séculos dos séculos).
De modo geral, o termo “noite” (nu,x), no Antigo Testamento, designa o
tempo em que a luz do sol está ausente
411. Esta alternância e regularidade entre dia e
noite (cf. Gn 1,3-5; Sl 74,16) seria o resultado da aliança de Deus com a criatura (cf.
Gn 8,22; Jr 33,20.25). De todas as menções ao termo “noite”, a que contém maior
singularidade é aquela em que Deus retira seu povo da escravidão (cf. Ex 11,4;
12,12.29). De modo metafórico, pode indicar o tempo da tribulação, choro,
sofrimento ou mesmo a comunhão com Deus
412 ou, ainda, o período do medo,
409 Cf. MOUNCE, R. H., The Book of Revelation, 388; SWETE, H. B., The Apocalypse of St. John,
312; FORD, J. M., Revelation, 367; BAUCKHAM, R., The Theology of the Book of Revelation.
Cambridge, Cambridge University Press, 1993, 142
410 Cf. MATHEWSON, D., A New Heaven and a New Earth, 208.
411 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 682.
412 Cf. Is 30,29; Jó 7,3; Sl 6,6-7; 77,2-3; Is 26,9; Sl 1,2; 42,8-9; 77,6; 88,1; 92,2; 119,55.
angústia, solidão (cf. Sl 91,5; Sb 17,14-15)413. Sentimentos próprios do homem,
pois, para Deus, a noite é clara como o dia (cf. Sl 139,11-12) e pode ser a ocasião de
Revelação (cf. 1Sm 3,4).
Em uma perspectiva escatológica, os textos de Is 60,19-20 e Zc 14,7
propõem a superação deste mundo de escuridão, dependente da luz que procede do
sol ou de lâmpada, por aquele eterno, onde a luz procede da presença de Deus que
preenche toda eternidade com sua glória
414.
No Novo Testamento nu,x segue a conotação vétero-testamentária de ritmo
dos dias, principalmente quando aparece junto à preposição dia, ou como indicação
cronológica (cf. Mt 4,2; 12,40; 14,25; Lc 6,12)
415. Mas pode, também, ser usado
como recurso metafórico de silêncio (cf. Jo 3,2), como o momento da traição (cf. Jo
13,30), da negação (cf. Mt 26,34), além de preceder o cumprimento do reino de Deus
(cf. Rm 13,12), indicar os membros do reino da luz, contrastando com os membros do
reino da noite (cf. 1Ts 5,5-7) ou ainda a total adesão a Satanás (cf. Jo 13,30)
416. Nos
Atos dos Apóstolos, o termo nu,x surge como indicador do momento próprio para a
atuação dos poderes divinos
417.
O recurso metafórico de nu,x pode assumir a conotação de skoti,a
“trevas”
418, estabelecendo assim, um contraste com fw/j e designando o estado de
416 Köstenberger entende que Jo 13,30 Satanás entra em Judas (cf. Jo 13,2; 1Cr 21,1; 2Sm 24,1). O
termo eivse,rcomai é comumente usado nos Sinóticos com relação à possessão demoníaca (cf. Mc 5,12;
Lc 8,30; 11,26). Mas, destaca o autor, nesta passagem do Evangelho de João, não se deve entender
como possessão demoníaca, antes, é o próprio Satanás que entra na pessoa. Se estabelecermos um
paralelo com Lc 22,3-4 ficará evidente que o fato de Satanás entrar em Judas, antecede a sua traição,
pois logo após sair, para a “noite”, Judas combina com os sumos sacerdotes um modo de entregar
Jesus. Cf. KÖSTENBERGER, A. J., John. Michigan, Baker Academic, 2004, 416-417.
413 Na mitologia a noite assume características antropomórficas, em Isidro a noite é a mãe de uma
série de personagens maléficos. A noite é também o tempo preferido dos mágicos, porque neste
período gozam plenamente de seus poderes. Cf. DELLING, G., “nu,x”, GLNT, vol. VII, 1503-1505.
414 Cf. FEKKES, J., Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation, 275; CHARLES, R.
H., Revelation, 210; OSBORNE, G. R., Revelation, 775.
415 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français , 461-462.
417 Cf. At 5,19; 12,6; 16,9; 18,9; 23,11; 27,23
418 O termo %v;x' “trevas” pode indicar uma situação de afastamento da presença de Deus como
conseqüência do cativeiro (cf. Sl 42), em sentido figurado pode indicar a ignorância, a desgraça ou a
tribulação (cf. 2Sm 22,29; Is 9,1s; 58,10; 49,9; 59,9ss; Mq 7,8; Sl 35,6; 112,4 etc). A fórmula “habitar
nas trevas” está em oposição ao reconhecimento de que somente YHWH é a luz que ilumina o seu
povo (cf. Mq 7,8, Sl 26,1, Is 60,1). O termo pode ainda designar um mal ou uma catástrofe oriunda,
segundo a concepção israelita, de um castigo merecido e permitido por Deus a fim de punir a culpa de
seu povo (cf. Am 5,18-20; Is 5,30; 9,1; 58,10; 60,2; 62,1ss; Lm 3,2; Sl 18,29). A punição divina é
antropomorficamente representada pela cólera de Deus que introduz o povo na escuridão porque este
ausência de comunhão com Deus ou com o Cristo (cf. Jo 9,4; 11,10). Além do
contraste nu,x e fw/j, o epistolário Paulino e alhures sugerem um outro: nu,x e h`me,ra,
contrapondo as “trevas” ao tempo de salvação implantado por Cristo (cf. 1Ts 5,5-7;
Rm 13,12; 1Cor 16,13; 1Pd 5,8). Após este tempo de trevas, que precede o grande
dia, a irrupção da Jerusalém celeste, a noite não mais existirá.
No livro do Apocalipse, em decorrência da ausência da preposição dia,
antecedendo o termo nu,x, este último não se apresenta com o sentido de indicador
temporal, mas é inserido em uma dinâmica metafórica. Única exceção é Ap 8,12, no
qual, apesar da ausência da preposição, o sentido parece ser, de fato, temporal. Deste
modo, o termo nu,x, no Apocalipse, encontrar-se-ia no âmbito de ausência de
comunhão com Deus (cf. 21,8.27; 22,15), ou seja, uma vida marcada pelo pecado ou
por uma expectativa escatológica positiva. A ausência da comunhão com Deus dentro
do simbolismo do Apocalipse pode ser indício de uma vida no pecado, mais
precisamente naquele que é o autor do pecado: Satanás
419.
A expressão kai. nu.x ouvk e;stai e;ti, em Ap 22,5a, retoma as imagens
encontradas em Ap 21,23-27 onde a noite não mais existirá, não haverá a necessidade
de uma luz do sol ou da lua, porque a glória de Deus ilumina a Cidade Santa, e sua
lâmpada é o Cordeiro. Seus portões estarão sempre abertos e o dia será perpétuo.
Esta expressão é introduzida por um kai, explicativo e declara, de modo
irrevogável, a inexistência da noite na Cidade Santa, como se depreende pela
construção ouvk e;stai e;ti. O recurso ao advérbio de negação ouvk suprime a
possibilidade de qualquer dúvida implícita relacionada ao objeto ao qual alude o
advérbio: a “noite”. A junção deste advérbio ao verbo e;stai, no futuro do indicativo,
insere a noção da inexistência do objeto negado pelo advérbio, a qual é ainda
reforçada pela presença do advérbio de tempo e;ti. A construção kai. nu.x ouvk e;stai
e;ti, portanto, estabelece que o elemento “noite” não poderá mais existir na Cidade
afastou-se de seu Deus (cf. Sl 6,2-3; 38,2; 88,8; Is 30,30; 2Cr 28,9). Contudo, este estado não será
permanente, YHWH resplandecerá sobre o povo e o libertará de todo o mal (cf. Nm 6,25; Sl 4,7;
31,17; 44,4; 67,2; 80,4.8.20; 89,16). Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-
Português. São Paulo, Paulus, 1997, 251-252.
419 Uma aproximação teológica entre o termo noite e o pecado, entendido como vivência pautada em
Satanás, foi proposta por Brighton por entender que, dentro da linguagem joanina a palavra “trevas”,
muitas vezes, possui valor de oposição a Deus e identificação com o Opositor por excelência. Cf.
BRIGHTON, L. A., Revelation, 621.
Santa. Esta “noite”, segundo o universo simbólico do livro e as indicações do Novo
Testamento, deve ser entendida como a total ausência de privação da presença de
Deus. Deste modo, não haverá mais o perigo do povo de Deus ou de sua criação
perder-se eternamente, estaria assim, extinto o perigo da separação de Deus e da
privação da comunhão com Ele
420.
Um novo advérbio de negação dá início ao v.5b, indicando a eliminação da
luz da lâmpada ou da luz do sol para os habitantes da Jerusalém celeste. A expressão
crei,an fwto.j lu,cnou, não apresenta liames teológicos com outros textos do Novo
Testamento quando há a identificação da “luz” com a pessoa de Cristo (cf. Jo 1,9;
8,12)
421 e sim com o objeto concreto utilizado para fornecer luz durante o período da
noite
422.
A conjunção o[ti do v. 5c mostra que esta supressão é conseqüência da
presença do ku,rioj o` qeo,j em meio à Cidade Santa. Esta presença não impõe a
eliminação da criatura, no caso sol, considerado, no quarto dia da criação, como algo
bom (cf. Gn 1,16). Antes, parece tratar-se da superação de sua capacidade de iluminar
diante do resplandecer de Deus sobre seus servos.
O ato de “resplandecer”, expresso pelo verbo fwti,zw, não admite a presença
da obscuridade, porque implica na presença do próprio Deus, que é, Ele mesmo
“luz”
423. A noção de Deus, no Antigo Testamento, como luz que resplandece sobre o
seu povo é nitidamente delineado em Mq 7,8; Ml 3,20; Is 60,1-3.19
424. No Sl 27,1 a
confissão “o Senhor é a minha luz” expressa que a verdadeira luz é YHWH.
No Novo Testamento, no quarto Evangelho, Jesus é apresentado e se declara
como a luz que irrompe em meio à escuridão deste mundo (cf. Jo 1,4.5.9; 5,35); Ele,
e somente Ele, é o Revelador para todos os homens (cf. Jo 3,19). A mesma nota de
exclusividade pode ser encontrada em Jo 8,12; 9,5; 12,46, quando Jesus declara ser a
420 Cf. SMALLEY, S. S., The Revelation to John, 565.
421 Na transfiguração de Cristo o fulgor da luz converte-se em um dos elementos que traduzem para
os discípulos a glória messiânica. Cristo (cf. Mt 17,1-13; Mc 9,2-8; Lc 9,28-36), após a sua
ressurreição aparece a Paulo envolto em uma luz que supera o esplendor do próprio sol (cf. At 26,13).
Cf. OEPKE, A., “la,mpw”, GLNT, vol. IV, 74-75.
422 Cf. SCHNEIDER, G., “lampa,j”, Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento, vol II, Salamanca,
Sígueme, 1996, 10-13.
423 Cf. Is 8, 23-9,1; 10,17; 42,16; 58,8.10; 60,1-3.19; 61,1.19s; Sl 18,29; 27,1; 112,4.
424 O texto de Ap 22,5bc mereceria um estudo de cunho intertextual com Is 60,19.
luz do mundo, de modo que aqueles que o seguem não andarão nas trevas, mas na luz
da vida. A ausência de uma partícula comparativa nestes textos indica que a “luz” é
uma imagem de Jesus.
No corpo Paulino, o termo “luz”, ao ser identificado com o Evangelho de
Cristo, recebe um conteúdo cristológico cujo objetivo é a iluminação do coração
humano, para que este conheça a glória de Deus na face humana de Cristo (cf. 2Cor
4,4.6; 2Tm 1,10). É por meio de Cristo que o homem participa da herança dos santos
na luz (cf. Cl 1,12).
O verbo fwti,zw assume uma perspectiva escatológica na Nova Jerusalém,
no sentido de tratar-se da realização das esperanças do Antigo Testamento (as trevas
são superadas), como também aquelas do Novo Testamento, onde Cristo ilumina o
coração do homem. Por desprezarem esta iluminação que leva ao conhecimento de
Deus, os ímpios serão excluídos, não serão atingidos pelo resplendor de Deus (cf. Ap
21,8.27; 22,3; 11,18-19), enquanto as nações e os reis caminharão à sua luz (cf. Ap
21,23-24; 22,5). Os destinatários deste resplendor são os servos de Deus e do
Cordeiro como mostra a expressão fwti,sei evpV auvtou,j. Devido à presença de Deus,
estes terão como supérfluas todas as outras fontes de luz, pois, na Cidade Santa, o
próprio Deus será a luz. Mas até aquele dia, o cristão viverá em tensão escatológica, a
vigilância será fundamental.
Contrastam com Ap 22,5b
425 as palavras de advertência dirigidas à
Babilônia “jamais em ti brilhará a luz de candeeiro” (cf. Ap 18,23) e esta metáfora
ameaçadora é um indicativo da destruição total da cidade
426.
d) O reino eterno
A noção de um reinado eterno, proposto em Ap 22,5d, encontra-se
vinculada ao termo vetero-testamentário %l,m,
427 que identifica aquele que, na vida
425 Beale sugere que fwto.j lu,cnou faz referência ao papel do povo de Deus como “castiçal”,
testemunhando a luz da divina lâmpada num mundo de escuridão (cf. Ap 1,12.20; 2,1; 1,4; 4,5; 21,11-
26). Na Nova Jerusalém, tal função será finalmente perfeita, porque o Cordeiro-lâmpada (cf. Ap 21,23)
brilhará nela.
Entendemos que tal recurso metafórico é desnecessário para a compreensão do texto, uma vez que o
sujeito da ação de iluminar, em Ap 22,5bc, não é apenas o Cordeiro, mas Deus e o Cordeiro como
observamos nos v.1.3. Cf. BEALE, G. K., The Book of Revelation, 1115.
426 Cf. THOMAS, R. L., Revelation 8-22, 346.
social, exerce a soberania. O substantivo %l,m, designa principalmente três classes de
soberanos: humanos (cf. Gn 36,33; Dt 33,5; 2Sm 15,10; 1Rs 1,13), messiânicos (cf. Is
33,17; Jr 23,5; Ez 37,22; Os 3,5; Zc 9,9) e divino (cf. 1Sm 12,12; Sl 5,3; Jr 10,7.10;
Sf 3,15; Ml 1,14). De modo geral,
%l;m' significa ter ou exercer autoridade suprema
sobre um povo em um determinado lugar. O hiphil denota o processo de fazer um rei,
incluindo os passos de escolher, confirmar, ungir e proclamar. No Qal, o verbo
descreve o exercício desta autoridade.
No corpo profético, o “reino de Deus” assume um sentido escatológico. No
fim dos tempos, este reino irromperá e YHWH reinará sobre toda a terra. Seu trono
estará em Jerusalém e todas as nações virão em romaria a Sião para adorá-lo (cf. Is
24,23; Zc 14,9; Ab 21). Esta índole escatológica do “reino de Deus” adquire o sentido
de uma realidade já presente, mas, ao mesmo tempo, futura, quando então haverá a
plena manifestação de sua potência
428. Por isso, este “reino” chega a adquirir um
caráter atemporal atingindo ao mesmo tempo o presente e o futuro
429
No Novo Testamento, o vocábulo grego basileu,j acompanha o significado
básico do termo hebraico
%l,m,430. Contudo, insere-lhe uma novidade, pois o pleno e
legítimo direito de reinar sobre Israel pertence, nesta etapa da revelação, a Deus e a
seu Cristo
431. A palavra basilei,a, nos Evangelhos Sinóticos, refere-se tanto ao reino
de Deus como ao de Cristo, sem estabelecer uma distinção entre os detentores do
legítimo direito de reinar de modo soberano (cf. Lc 22,29; 23,42; Mt,5,20; Mc 9,1).
Esta igualdade no direito de reinar decorre da atividade de Cristo como Redentor e
Juiz da humanidade, que, por sua vez, encontra-se na linha de cumprimento das
promessas messiânicas contidas no Antigo Testamento
432. O “reino” é preparado por
427 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 381.
428 Cf. von RAD, G., “basileu,j”, GLNT,vol. II, 146, 1966.
429 A idéia de um rei salvador escatológico, descendente de Davi, reflete a mentalidade própria de
Israel. Tal conceito não é encontrado no Egito ou em Babilônia. A realeza de Deus está ligada a
atemporalidade que abarca igualmente o passado, e o futuro (Ex 15,18; 1Sm 12,12; Sl 145,11ss;
146,10) outros destacam o acento no momento de espera (cf. Is 24,23; 33,22; Sf 3,15; Ab 21; Zc
14,16ss). O reino de Deus é uma realidade presente, mas no futuro teremos a plena manifestação de
sua potencialidade. Cf. von RAD, G., “basileu,j”,
GLNT, 133-135.
430 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 351.
431 O Novo Testamento opõe-se às idéias helenísticas e romanas de um rei terrestre entendido como
encarnação da deidade. Cf. KLAPPERT, B., Rei, Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, 2031.
432 Cf. Is 2,2-4; 9,6-7; 11,1-2; 32,1-8; 33,17-22; Mq 4,1-8; Am 9,11-15; Jr 23,5-8.
aquele que é o Deus de Israel e tem por meta arrancar o homem do poder das trevas
para introduzi-lo no Reino de seu Filho (cf. Cl 1,13). No fim dos tempos, Cristo
restituirá este reino ao Pai, após ter destruído todas as forças adversárias (cf. 1Cor
15,24). Será, portanto, na parusia que o “reino de Deus” será consumado pelo Filho
do Homem. O conceito “reino de Deus”, entendido em perspectiva escatológica,
designando o tempo da salvação, não é estático, nem espacial, mas dinâmico (cf. Mc
1,15; Mt 4,17; 10,7 Lc 10,9-11).
Na literatura joanina, o conceito “reino” encontra-se radicado nesta
perspectiva de salvação oferecida por Deus aos homens. Estes, para pertencer ao
“reino”, necessitam nascer do alto, da água e do Espírito (cf. Jo 3,3.5). O “Reino de
Deus”, contudo, não pertence a este mundo, é um reino transcendente, difere dos
reinos deste mundo, porque o domínio do supremo governante não é exercido pela
força bruta, e sim pelo amor (cf. Jo 18,36).
No Apocalipse, o reinado de Deus e de seu Cristo dá continuidade ao
significado escatológico-cosmológico dos textos canonicamente antecedentes, quando
afirma que no final dos tempos o rei Messiânico terá sob seu poder todo o mundo,
porque ele é o Rei das nações (cf. Ap 15,3), o Rei dos reis (cf. Ap; 17,14)
433, o
Senhor dos senhores (cf. Ap 19,16). Contrariamente, o substantivo plural basilei/j
possui, neste livro, liames com a noção de um rei, que exerce uma soberania
usurpadora, pois recusa-se a reconhecer a Deus como Rei supremo (cf. Ap 6,15),
reúne-se para combater contra Deus (cf. Ap 16,14), prostituiu-se com o culto ao
imperador (cf. Ap 17,2.9.12), além de, também pela influência da Besta,
posteriormente, lamentar-se amargamente (cf. Ap 18,3.9). Todavia, ainda investirá
um ataque contra o Cavaleiro e seu exército (cf. Ap 19,19). O texto de Ap 21,24 é
uma exceção neste contexto, porque anuncia que os reis de toda a terra se
encaminham para Jerusalém prestando-lhe glória.
A dimensão escatológico-cosmológica inicia-se, efetivamente, com a morte
de Cristo na cruz e sua ressurreição (cf. 5,6-9); por ela, os redimidos são constituídos
“reis e sacerdotes” que reinarão sobre a terra (cf. Ap 5,10). Sendo assim, a expressão
433 Sobre este título ver: BEALE, G. K., “The Origin of the Title ‘Kings of Kings and Lord of Lords’
in Rev. 17:14”, NewTestamentStudent 31 (1985) 618-620.
basilei,an kai. i`erei/j (cf. Ap 5,10) estaria ligada ao acesso a Deus que o homem
passou a desfrutar, já neste mundo, através dos méritos da morte de
Cristo
434. Neste contexto de salvação, conquistada pelo Cordeiro que se imola,
estão inseridos todos os povos, o que implica o universalismo desta ação
salvadora
435. A conjugação de basileu,w436 no futuro ocorre somente em Ap 5,10;
20,6, além do nosso texto. No texto de Ap 5,10, o termo aproxima-se do significado
de Ap 20,6, onde o reinado de mil anos é descrito
437. Deste modo, o reinar sobre a
terra é uma conseqüência adicional do sacrifício do Cordeiro que atinge a todos os
homens de todos os tempos. O Reino, portanto, é uma realidade que irrompe neste
mundo cuja participação dos fiéis já ocorre na condição de membros redimidos
438.
Por conseqüência, de um lado os cristãos são objeto do reino e, de outro,
colaboradores para a realização do reino de Deus e do Cordeiro na terra (cf. Ap
434 Cf. BARTON, B. B., Revelation. Wheaton, Tyndale, 1996, 66.
435 A presença da preposição evpi, apresenta o reino como algo que está por vir. Segundo Walvoord, a
preposição evpi pode indicar um reinado já neste mundo e nesta realidade terrestre. Cf. WALVOORD,
J. F., The Revelation of Jesus Christ. London, Marshall, 1966, 118-120.
Embora seja uma opinião aceitável, levando em conta o anúncio do reino nos Sinóticos, este autor vai
de encontro à maioria dos pesquisadores que preferem acenar para um reino escatológico, sem
abandonar a possibilidade de se entrever o Reino como uma posse dos mártires que lutam, neste
mundo, contra as forças dos Césares, reis falsos, enquanto eles já perceberam a existência de um Rei
maior: o Cordeiro imolado. Cf. CHARLES, R. H., Revelation, 148.
436 A forma de 1ª do plural basileu,somen, testemunhado em poucos manuscritos, é considerada por
Metzger como um desenvolvimento secundário surgido da introdução de h`maj no versículo anterior.
Cf. METZGER, B. M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 666-667. Allo, caminha
nesta mesma linha interpretativa. Cf. ALLO, E. P–B., L’Apocalypse, 80.
Quanto ao emprego de basileu,sousin, Metzger verifica que esta forma encontra-se sustentada por
muitos unciais e, por esta razão, reúne maiores possibilidades de dar sentido ao texto.
Ainda segundo Metzger, o Códex Alexandrino teria lido erroneamente basileu,ousin em lugar do
tempo futuro. Cf.. METZGER, B. M., A Textual Commentary on the Greek New Testament, 667.
Vanni considera que o fundamento orientador da decisão de Metzger ao preferir basileu,sousin, é de
ordem exegética. Vanni entende que a manutenção do presente basileu,ousin, testemunhado em A e
046, seja preferível por ser a leitura mais difícil. De fato, a atribuição de reino aos cristãos no presente
causa uma dificuldade exegética. Vanni ainda destaca que o emprego de basileu,sousin no futuro,
aproximar-se-ia mais do contexto escatológico de Ap 22,5. Cf. Vanni, U., “La promozione del regno
come responsabilità sacerdotale dei Cristiani secondo l’Apocalisse e la Prima Lettera di Pietro”,
Gregoriana 68 (1987) 23-25.
Para Allo, a definição pelo verbo no presente é fundamentada na existência do reino onde os santos já
começaram a reinar (espiritualmente) desde que o Cristo foi glorificado. Cf. ALLO, E. P–B.,
L’Apocalypse, 80.
437 Segundo Lupieri, a insistência nesta função sacerdotal leva a crer que existe um lugar de culto,
mas que ainda não é aquele de Ap 21,1. Cf. LUPIERI, E., L’Apocalisse di Giovanni, 133.147.324-349.
438 Cf. AUNE D. E., Revelation 17-22, 1181; CHARLES, R. H., Revelation, 210.
1,6)439. Esta definição da função do homem no Reino de Deus reforça a
compreensão de que, em estrito senso, somente Deus é “rei”.
O termo “rei”, atribuído a Deus, é empregado em contexto solene de
celebração da vitória contra o mal e da instauração da nova criação (cf. Ap 15,3). O
mesmo título também é atribuído ao Cristo, mas em perspectiva escatológica. Ele é o
“rei dos reis” e “Senhor dos senhores” (cf. Ap 17,14; 19,16). É significativo que o
termo “rei” não seja um atributo dos cristãos, enquanto que basilei,a
440 lhes seja
diretamente conferido (cf. Ap 1,6.9; 5,9); indica-se, assim, que estes participam
apenas como membros neste reinado, sem exercer governo441.
Nesta linha também se situa o texto de Ap 22,5d, que introduz uma frase
causal, cujo sujeito da oração remete aos dou/loi do v.3c, ao mesmo tempo que
apresenta a terceira atividade dos servos na Cidade Santa: “eles reinarão” para
sempre. Por esta razão, o modo de reinar destes servos será por participação na
condição de servos adoradores no eterno governo de Deus (cf. Ap 22,3-4). Neste
momento, chega ao fim o grande drama cósmico, os redimidos habitam com Deus e
conformam-se com sua presença, alegrando-se com a intimidade concedida por Deus
e com ele reinando por toda a eternidade
442. Esta idéia de participação no reino
eterno de Deus e do Cordeiro não é, todavia, uma novidade do livro do Apocalipse,
mas encontra-se vinculada ao kérigma cristão (cf. At 17,7)
443.
439 Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 364.
440 O lexema basilei,a é um substantivo abstrato que possui, com relação ao rei, um elemento estático
que representa a dignidade real e um outro dinâmico ligado a atividade de governo. Quando vinculado
aos súditos ou ao território sobre o qual se exerce o governo retoma o caráter estático. Cf. PELÁEZ, J.,
basilei,a en el Nuevo Testamento. Factor contextual, definición y traducción”, Filologia
Neotestamentária XVI (2003) 69-83 (71).
441 O termo basileu,j ocorre também para designar personagens históricos, embora não seja fácil
determinar o nome deles, como ocorre com os imperadores romanos (cf. Ap 17,9.12), líderes do povo
(cf. Ap 10,11) ou do chefe demoníaco (cf. Ap 9,11). Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 352.
442 Cf. STEFANOVIC, R., Revelation of Jesus Christ, 595
443 O Quarto Evangelho impõe à resposta de Jesus diante de Pilatos uma definição cristológica de
basilei,a (cf. Jo 18,37). O Ap atribui à realeza de Jesus um significado cosmológico quando afirma que
no final dos tempos o Rei messiânico terá todo o mundo sob seu domínio. Neste ponto, aproxima-se
dos sinóticos e do pensamento paulino (cf. 1Cor 15,24; 1Tm 6,15).
O mesmo conceito de reinado dos cristãos em união como Cristo é encontrado também em 1Cor 4,8
onde Paulo afirma ironicamente “Oxalá já reinásseis, para que nós reinássemos convosco”. A suprema
esperança cristã, reinar com o Cristo na eternidade, era almejada pelos coríntios, como conquista
independente da autoridade apostólica e da de Cristo. Cf. SCHMIDT, L., basileu,j GLNT col. 171-174.
O ato de reinar juntamente com seu Senhor, apresentado por Ap 22,5d, é
inaudito. O reinado legítimo pertence exclusivamente ao próprio Soberano da Cidade
Santa, uma vez que é ele que revela a participação dos servos neste governo. Esta
participação sempre se dará em nível escatológico, uma vez que se trata de uma co-
divisão de governo na Cidade Santa, de sua participação no reino agora plenamente
realizado
444. Desde então, este ato de reinar não sofrerá mais interrupções, porque no
reino eterno o pecado estará para sempre removido e o projeto de Deus para seus
filhos estará totalmente realizado. Isto está retratado na imagem mais evocativa do
tipo de glória futura reservada a todo aquele que resistir à marca da besta (cf. Ap14,
9-13).
O caráter litúrgico da seção
445, iniciada pela procissão de entrada na
Cidade Santa e pela assembléia litúrgica de todos os redimidos (cf. Ap 21,24-26),
agora inteiramente limpos (cf. Ap 21,27; 22,2), tem seu ápice diante do trono de Deus
e do Cordeiro, onde estes redimidos oferecem o louvor a Deus como servos
adoradores e sobre quem a bênção sacerdotal é dada definitivamente durante a
liturgia. Nesta liturgia, proposta em Ap 22,3c, é levado a termo o escopo de todas as
ocasiões litúrgicas. O culto eterno, que se celebra na nova Jerusalém, chega a seu
ápice, porque o povo de Deus, estando em sua presença imediata, vê sua face e o
adora como sacerdotes. Esta adoração não cessará jamais, porque este reinado
desconhece o fim, como enfatiza a expressão “pelos séculos dos séculos”, eivj tou.j
aivw/naj tw/n aivw,nwn.
444 O fato do reinado dos cristãos possuir a característica escatológica não o torna etéreo, no sentido
de estar distante das coisas cotidianas. O reino escatológico possui raízes neste mundo, é na vida
prática que se constrói o reino escatológico. Cf. VANNI, U., L’Apocalisse, 353.
445 Sobre a questão do caráter litúrgico no Ap ver : VANNI, U., “L’Assemblea litúrgica si purifica
ediscerne nel “Giorno del signore” (Ap 1,10); “Ap 1,4-8: um esempio di dialogo liturgico”; In
VANNI, U., L’ Apocalisse, 87-97. 101-113.
CAPÍTULO III
3. Análise de Ez 47,1-12
3.1 Tradução e notas filológicas
(O Anjo) me fez retornar até a entrada
do Templo
1a
tyIB;h; xt;P,-la, ynIbeviy>w:
e me conduziu para a frente do
Templo
1a
kai. eivsh,gage,n me evpi. ta. pro,qura tou/
oi;kou
e eis (que vi) águas que saíam de
baixo do limiar do Templo em
direção à face oriental do Templo.
1b
hm'ydIq' tyIB;h; !T;p.mi tx;T;mi ~yaic. ~yIm;-hNEhiw>
~ydIq' tyIB;h; ynEp.-yKi
E eis que saía uma água por baixo do
átrio, para parte oriental, porque a
frente do Templo estava voltada para
o oriente
1b
kai. ivdou. u[dwr evxeporeu,eto
u`poka,twqen tou/ aivqri,ou katVavnatola,j
o[ti to. pro,swpon tou/ oi;kou e;blepen
katVavnatola,j
As águas desciam de baixo do lado
direito do Templo, do sul do altar.
1c
tynIm'y>h; tyIB;h; @t,K,mii tx;T;mi ~ydIr>yO ~yIM;h;w>
`x;Bez>Mil bg<N<mi
e a água descia do lado direito, do
sul, desde o altar.
1c
kai. to. u[dwr kate,bainen avpo. tou/
kli,touj tou/ dexiou/ avpo. no,tou evpi. to.
qusiasth,rion
(Ele) me fez sair pelo caminho do
portão norte,
2a
hn"Apc' r[;v;-%r,D, ynIaeciAYw;
Depois disso, fez-me sair pelo
caminho da porta, a do norte
2a
kai. evxh,gage,n me kata. th.n o`do.n th/j
pu,lhj th/j pro.j borra/n
me fez rodear o caminho de fora até o
portão de fora, o caminho que se
dirige ao oriente.
2b
%r,D, #Wxh; r[;v;-la, #Wx %r<D< ynIBesiy>w:
~ydIq' hn<APh;
Em seguida, fez-me dar a volta pelo
caminho de fora, até a porta do átrio,
a qual olha para o oriente.
2b
kai. perih,gage,n me th.n o`do.n e;xwqen
pro.j th.n pu,lhn th/j auvlh/j th/j
blepou,shj katV avnatola,j
E eis que águas fluíam do lado
direito.
2c
`tynIm'y>h; @teK'h;-!mi ~yKip;m. ~yIm;-hNEhiw>
E eis que corria água desde o lado
direito
2c
kai. ivdou. to. u[dwr katefe,reto avpo. tou/
kli,touj tou/ dexiou/
Saindo o homem para o oriente, 3a
~ydIq' vyaih'-taceB.
Então, saiu um homem, do lado
oposto,
3a
kaqw.j e;xodoj avndro.j evx evnanti,aj
com uma linha em sua mão, 3b
Ady"B. wq'w>
E na sua mão uma medida,
3b
kai. me,tron evn th/| ceiri. auvtou/
mediu mil côvados 3c
hM'a;B' @l,a, dm'Y"w:
e mediu mil com a medida
3c
kai. dieme,trhsen cili,ouj evn tw/| me,trw|
Fez-me passar pelas águas, águas até
os tornozelos.
3d
`~yIs"p.a' yme ~yIM:b; ynIrEbi[]Y:w:
e me fez passar pela água, água que
deixava andar.
3d
kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr
avfe,sewj
Mediu mil (côvados) 4a
@l,a, dm'Y"w:
E mediu mil (medidas)
4a
kai. dieme,trhsen cili,ouj
me fez passar pelas águas, águas até
os joelhos.
4b
~yIK'r>Bi ~yIm; ~yIM;b; ynIrebi[]Y:w:
e me fez passar pela água, água que
me atingia até os joelhos.
4b
kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr e[wj
tw/n mhrw/n
Mediu mil (côvados) 4c
@l,a, dm'Y"w:
E mediu mil (medidas)
4c
kai. dieme,trhsen cili,ouj
me fez atravessar, águas até os
quadris.
4d
`~yIn"t.m' yme ynIrebi[]Y:w:
e me fez passar por água até a
cintura
4d
kai. dih/lqen u[dwr e[wj ovsfu,oj
Mediu mil (côvados) 5a
@l,a, dm'Y"w:
E mediu mil (côvados)
5a
kai. dieme,trhsen cili,ouj
era um rio que (eu) não podia
atravessar,
5b
rbo[]l; lk;Wa-al{ rv,a] lx;n::
e não se podia atravessar
5b
kai. ouvk hvdu,nato dielqei/n
porque as águas (eram) profundas,
águas de nadar.
5c
Wxf' yme ~yIM;h; Wag"-yKi
porque a água tornou-se como
torrente
5c
o[ti evxu,brizen to. u[dwr w`j r`oi/zoj
(era um) rio que não podia ser
atravessado
5d
`rbe['yE-al{ rv,a] lx;n:
uma corrente que não se podia
atravessar
5d
ceima,rrou o]n ouv diabh,sontai
Disse-me: 6a
yl;ae rm,aYOw:
E disse-me:
6a
kai. ei=pen pro,j me
tu viste, Filho do homem? 6b
~d'a'-!b, t'yair'h]
viste, Filho do homem?
6b
eiv e`w,rakaj ui`e. avnqrw,pou
Fez-me ir, fez-me retornar para a
margem do rio.
6c
`lx;N"h; tp;f. ynIbeviy>w: ynIkeliAYw:
Levou-me, então, até a margem do
rio.
6c
h;gage,n me evpi. to. cei/loj tou/ potamou/
Quando voltei-me, eis nas margens
do rio, muitas árvores de um lado e
de outro.
7a
daom. br; #[e lx;N:h; tp;f.-la, hNEhiw> ynIbeWvB.
`hZ<miW hZ<mi
E tendo me voltado, eis que à
margem do rio havia uma grande
quantidade de árvores em ambas as
margens.
7a
evn th/| evpistrofh/| mou kai. ivdou. evpi.
tou/ cei,louj tou/ potamou/ de,ndra
polla. sfo,dra e;nqen kai. e;nqen
Ele me disse: 8a
yl;ae rm,aYOw:
Então, disse-me:
8a
kai. ei=pen pro,j me
Estas águas saem para a região leste 8b
hl'yliG>h;-la, ~yaic.Ay hL,aeh' ~yIM;h;
hn"Amd>Q;h;
esta água sai para a Galiléia
8b
to. u[dwr tou/to to. evkporeuo,menon eivj
th.n Galilai,an
e afluem sobre a estepe 8c
hb'r'[]h'-l[; Wdr>y"w>
para o oriente,
8c
th.n pro.j avnatola.j
e chegam até o mar; 8d
hM'Y"h; Wab'W
e desce para a Arábia,
8d
kai. kate,bainen evpi. th.n VArabi,an
ao chegarem ao mar, suas águas fica
m
curadas.
8e
`~yIM'h; WaP.r>nIw> ~yaic'WMh; hM'Y"h;-la,
e vai até o mar, até a água da
passagem e curará as águas
8e
kai. h;rceto e[wj evpi. th.n qa,lassan evpi.
to. u[dwr th/j diekbolh/j kai. u`gia,sei
ta. u[data
Acontecerá que todo ser vivente que
se multiplica
9a
#rov.yI-rv,a] hY"x; vp,n<-lk' hy"h'w>
E acontecerá que todo ser vivo que se
multiplica
9a
kai. e;stai pa/sa yuch. tw/n zw,|wn tw/n
evkzeo,ntwn
Até mesmo todo o que vier aos rios
viverá
9b
Hy<x.yI ~yIl;x]n: ~v' aAby" rv,a]-lK' la,
Com aquele que viver por onde quer
que o rio perpasse viverá,
9b
evpi. pa,nta evfV a] a'n evpe,lqh| evkei/ o`
potamo,j zh,setai
haverá peixes em abundância, 9c
daom. Hb'r; hg"D'h; hy"h'w>
haverá aí muito peixe,
9c
kai. e;stai evkei/ ivcqu.j polu.j sfo,dra
porque para lá vão estas águas 9d
hL,aeh' ~yIM:h; hM'v' Wab' yKi
pois lá chegará esta água
9d
o[ti h[kei evkei/ to. u[dwr tou/to
Serão curadas 9e
Wap.r'yEw>
E (tudo) curadas,
9e
kai. u`gia,sei
E vivo será tudo o que vier para lá,
(para) o rio.
9f
`lx;N"h; hM'v' aAby"-rv,a] lKo yx'w"
e tudo viverá por onde o rio passar
9f
kai. zh,setai pa/n evfV o] a'n evpe,lqh| o`
potamo.j evkei/ zh,setai
Existirão sobre a margem do rio
pescadores de Engedi até Eneglaim
10a
ydIG< !y[eme ~ygIW"D; wyl'[' Wdm.['y
~yIl;g>[, !y[e-d[;w>
Acontecerá que os pescadores lá
estarão, desde Aingadin até
Ainagalim
10a
kai. sth,sontai evkei/ a`leei/j avpo.
Aingadin e[wj Ainagalim
Para estender as suas redes 10b
~ymir'x]l; x;Ajv.mi
haverá lugar para estenderem as
suas redes,
10b
yugmo.j saghnw/n e;stai
E serão segundo sua espécie. 10c
hn"ymil. Wyh.yI
Seus peixes, serão segundo a sua
espécie
10c
kaqV au`th.n e;stai kai. oi` ivcqu,ej auvth/j
E seus peixes serão como peixes do
grande mar, em abundância.
10d
`daom. hB'r; lAdG"h; ~Y"h; tg:d>Ki ~t'g"d> hy<h.Ti
como os peixes do mar grande, em
grande quantidade.
10d
w`j oi` ivcqu,ej th/j qala,sshj th/j
mega,lhj plh/qoj polu. sfo,dra
Seus pântanos e seus alagadiços não
serão curados,
11a
`WnT'nI xl;m,l. Wap.r"yE al{w> wya'b'g>W wyt'aCoBi
Mas nos seus pântanos e nos seus
alagadiços e nas suas águas profundas
não serão curados suas
águas
11a
kai. evn th/| diekbolh/| auvtou/ kai. evn th/|
evpistrofh/| auvtou/ kai. evn th/| u`pera,rsei
auvtou/ ouv mh. u`gia,swsin
serão entregues ao sal.
11b
`WnT'nI xl;m,l.
serão deixadas para o sal.
11b
eivj a[laj de,dontai
E junto ao rio crescerá nas sua
margem,
12a
Atp'f.-l[; hl,[]y: lx;N:h;-l[;w>
E junto ao rio crescerá, em suas
margens
12a
kai. evpi. tou/ potamou/ avnabh,setai evpi.
tou/ cei,louj auvtou/
de um lado e de outro toda espécie de
árvore frutífera.
12b
lk'a]m;-#[e-lK' hZ<miW hZ<mi
de um lado e de outro lado, toda
espécie de árvore comestível
12b
e;nqen kai. e;nqen pa/n xu,lon brw,simon
Suas folhas não murcharão, seus
frutos não cessarão e a seus meses
frutificarão
12c
wyv'd"x\l' Ayr>Pi ~ToyI-al{w> Whle[' lAByI-al{
rKeb;y
>
e o seu fruto não envelhecerá nela,
nem cairá,
12c
ouv mh. palaiwqh/| evpV auvtou/ ouvde. mh.
evkli,ph| o` karpo.j auvtou/
porque suas águas saem do santuário 12d
~yaic.Ay hM'he vD'q.Mih;-!mi wym'yme yKi
produzirá novos frutos, pois as águas
procedem do santuário.
12d
th/j kaino,thtoj auvtou/ prwtobolh,sei
dio,ti ta. u[data auvtw/n evk tw/n a`gi,wn
tau/ta evkporeu,etai
seus frutos servirão como alimento 12e
lk'a]m;l. Ayr>pi Wyh'w>
E o seu fruto servirá de alimento
12e
kai. e;stai o` karpo.j auvtw/n eivj brw/sin
e suas folhas como remédio 12f
`hp'Wrt.li Whle['w>
e (a) folha delas de remédio
12f
kai. avna,basij auvtw/n eivj u`gi,eian
Optamos por tratar apenas das questões mais relevantes para a crítica textual
e a tradução deste texto.
v. 1
v. 1a
tyIB;h; xt;P,-la, ynIbeviy>w:
(o Anjo) me fez retornar até a entrada do Templo
LXX - kai. eivsh,gage,n me evpi. ta. pro,qura tou/ oi;kou
E me conduziu para a frente do Templo
O verbo bwv “e ele me fez voltar”446 provavelmente foi atenuado na
Septuaginta com o emprego do aoristo kai. eivsh,gage,n me. Esta mitigação foi seguida
pela Peshitta e pela Vulgata. Possivelmente, a tradução de ynIbeviy>w: para kai. eivsh,gage,n
me seja decorrente da influência de Ez 46,19, onde recorre à mesma construção
gramatical
447. A nosso ver, esta mitigação, inserida pela LXX, é fiel ao conceito
verbal contido no hebraico
448.
O verbo hebraico
bwv no hiphil tem o sentido de “trazer de volta”, “levar de
volta”, convergindo, assim, para a idéia de movimento de retorno. No texto
predomina a idéia de deslocamento espacial.
O termo
tyIB;, em seu sentido primário, determina uma casa. Entretanto, aqui,
é traduzido como Templo, tendo em vista o contexto de Ez 40-48, que emprega tyIB;
sempre com referência à visão gloriosa da nova habitação de Deus: o Templo. Das 37
vezes
449 em que tyIB; ocorre no livro de Ezequiel, sempre lhe precede o artigo,
reforçando a idéia de tratar-se de um uso mais preciso do termo; o autor descreveria,
assim, uma casa por excelência
450.
v. 1b
~ydIq' tyIB;h; ynEp.-yKi hm'ydIq' tyIB;h; !T;p.mi tx;T;mi ~yaic. ~yIm;-hNEhiw>
E eis (que vi) águas que saíam de baixo do limiar do Templo em direção à face
oriental do Templo.
446 Apesar de algumas versões apresentarem este personagem como “um homem”, é notório, através
da descrição proposta pelo próprio texto, que se trata de um ser angélico. O papel de intérprete
conferido aos anjos é um traço do profetismo tardio (cf. Dn 8,16; 9,21s; 10,5s; Zc 1,8s; 2,2; Ap 1,1;
10,1-11).
447 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums. Neukirchener, Verlag, 1969, 1186.
448 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 599.
449 Cf. Ez 9,3.6.7; 10,4 (2x). 18; 40,45.47.48; 41,5.6.7.13.14.19.26; 42,15; 43,4.5.10.11.12 (2x) .21;
44,4.5.11 (2x).14; 45,5.19.20; 46,24; 47,1 (3x); 48,21.
450 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon. Massachusetts,
Hendrickson Publishers, 2000
5
, 108-110.
Opção semelhante foi seguida pela LXX, que recorre ao termo oi=koj, literalmente “casa, habitação”
para indicar o Templo. Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 1357.
LXX - kai. ivdou. u[dwr evxeporeu,eto u`poka,twqen tou/ aivqri,ou katV avnatola,j o[ti to.
pro,swpon tou/ oi;kou e;blepen katV avnatola,j
E eis que saía uma água por baixo do átrio, pela parte oriental, porque a frente
do templo estava voltada para o oriente
A palavra
!T;p.mi “limiar” pertence à lexicografia própria da literatura
ezequiana (cf. Ez 9,3; 10,4.18; 47,1), sempre indicando o limiar da casa, salvo Ez
46,2, que sinaliza para o limiar da porta
451.
v. 1c
`x;Bez>Mil bg<N<mi tynIm'y>h; tyIB;h; @t,K,mi tx;T;mi ~ydIr>yO ~yIM;h;w>
As águas desciam de baixo do lado direito do Templo, do sul para o altar.
LXX - kai. to. u[dwr kate,bainen avpo. tou/ kli,touj tou/ dexiou/ avpo. no,tou evpi. to.
qusiasth,rion
e a água descia da parte debaixo, desde o lado sul do altar
Optamos pela tradução de
bg<n< como orientação geográfica e não como o
topônimo Negueb
452 e foi seguida também pela LXX.
Com relação à preposição tx;T;mi “de baixo”, o Texto Massorético antepõe
tx;T;m à expressão tyIB;h; @t,K,mi que é locativo “do lado da casa”, enquanto a
Septuaginta, seguida pela Peshitta e pela Vulgata, provavelmente excluem
tx;T;mi453.
Possivelmente, trata-se de uma repetição errônea do v.1a.
454. A LXX corrigiu tyIB;h;
@t,K,mi tx;T;mi para @teK'x; !mi455, retirando do texto o termo “casa”. A preposição tx;T;mi
do v.1c não é uma simples repetição do
tx;T;mi de v.1b, onde esta possuía a função de
indicar o local de onde brotava a água. Sua função em 1c sugere tratar-se da primeira
451 Há apenas uma ocorrência de !T;p.mi fora do livro de Ezequiel, em 1Sm 5,5.
452 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 417.
453 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,1.
454 Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48. Cambridge/Michigan, Eerdmans
Publishing Company, 1998, 687.
455 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament. Fribourg, Vandenhoeck &
Ruprecht Göttingen, 1992, 409.
parte do caminho percorrido pela água ao longo do lado sul na direção frontal456.
Este desvio da água deve-se à posição do altar que impede o percurso direto das
águas rumo ao Oriente.
O Texto Massorético apresenta como recurso ou como forma literária a
partícula
!mi na forma contraída, como um modo de unir os termos tx;T; e @teK', criando
uma relação entre as palavras
@t,K,mi tx;T;mi. Há uma possibilidade de se traduzir os
dois termos de maneira independente, sem a relação da partícula
!mi. Contudo, sua
manutenção é mais adequada. Quanto à possibilidade de alterar
@t,K,mi “do lado” para
@t,K,l. “ao lado”457, consideramos desnecessária, posto que !mi também pode expressar
“um local, uma direção, um lado”.
A LXX traduziu
tyIB;h; @t,K,mi por avpo. tou/ kli,touj, corrigindo tyIB;h; @t,K,mi
tx;T;mi
para @teK'x; !mi, enquanto a Vulgata traduz in latus templi dextrum458. Parece-
nos correta a tradução da expressão hebraica tyIB;h; @t,K,mi tx;T;mi, para o grego da LXX
avpo. tou/ kli,touj tou/ dexiou/, não incorrendo, assim, em uma distorção do conteúdo.
Para
tyIB;h; @t,K,mi “do lado da casa”, alguns manuscritos portam !T;p.mi, ao passo que
outros apresentam
tyB;h; !T;p.mi459. Consideramos que, apesar da similaridade na
grafia, há uma grande diferença na conotação dos termos.
v. 2
v. 2a
hn"Apc' r[;v;-%r,D, ynIaeciAYw;
(Ele) me fez sair pelo caminho do portão norte,
LXX kai. evxh,gage,n me kata. th.n o`do.n th/j pu,lhj th/j pro.j borra/n
Depois disso, fez-me sair pelo caminho da porta, a do norte
456 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.
457 Cf. Ibid, 1187.
458 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 410.
459 Respectivamente: Os manuscritos 182 de Kennicott, os manuscritos 158 e 224 e os manuscritos
babilonenses Eb 22. Cf. Ibid, 410.
O aparato crítico indica que hn"Apc' foi lido !Apc'h; “o norte” pelo Códices
fragmentários da Geniza do Cairo com vocalização babilônica, assim como muitas
outras versões
460. A introdução do h local não é necessária, uma vez que a intenção
parece ser a de identificar a que portão o profeta foi levado a se dirigir e não a
localização cardeal
461.
v. 2b
~ydIq' hn<APh %r,D, #Wxh r[;v;-la, #Wx; %r<D< ynIBesiy>w:
me fez rodear o caminho de fora até ao portão de fora, o caminho que se dirige
ao oriente.
LXX kai. perih,gage,n me th.n o`do.n e;xwqen pro.j th.n pu,lhn th/j auvlh/j th/j
blepou,shj katV avnatola,j
Em seguida, fez-me dar a volta pelo caminho de fora, até a porta do átrio,
a qual olha para o oriente.
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
v. 2c
`tynIm'y>h; @teK'h;-!mi ~yKip;m. ~yIm;-hNEhiw>
E eis que águas fluíam do lado direito.
LXX kai. ivdou. to. u[dwr katefe,reto avpo. tou/ kli,touj tou/ dexiou
E eis que corria água desde o lado direito
Em lugar dos dois termos
%r,D,;; #Wxh;, a Septuaginta, seguida pela Peshitta,
traz th/j auvlh/j que corresponde ao hebraico rcex'h, (o pátio), mas preferivelmente
460 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,2.
461 A ausência de uma partícula direcional hn'Apc' ou procedência !Apc'mi/ hn'Apc'mi permite uma leitura de
hn"Apc' enquanto localização (cf. Ez 8,3; 9,2; 21,3;46,9.19;47,2; 48,1.10.17.31). Este recurso enfático
talvez seja conseqüência da proibição ao tráfego humano pelo portão leste (cf. ez 44,1-2). Ez 47,17 é a
única citação que recorre à palavra norte como elemento do elenco dos pontos cardeais.
acomoda %r,D, depois de hn<APh;462. Consideramos que esta transposição esteja correta
uma vez que o verbo relaciona-se com o termo %r,D,, abrindo uma nova seção463. A
inversão, detectada na Segunda Bíblia Armênia, na Vulgata e na Geniza do Cairo de
#Wx %r,D, (caminho de fora) para %r,D, #Wx464, não chega, a nosso ver, a comprometer a
leitura do texto.
A expressão
~ydIq' hn<APh; %r,D, #Wxh; r[;v;-la, de 2b-c foi traduzida na LXX
por pro.j th.n pu,lhn th/j auvlh/j th/j blepou,shj kata. avnatola,j. Sendo seguida pela
Peshitta. Já a Vulgata traduz: portam exteriorem viam quae respiciebat ad orientem e
a Guenizá do Cairo traz:
ax"n.ydim"l. x;ytip.Di a['r.T; xr"Aa ha"r"B" a['r.t;l.465. A alteração no
vocábulo que indica a orientação, assim, não caracteriza um problema.
A LXX e a Peshitta assimilaram a expressão
~ydIq' hn<Poh; tymiynIP.h; rcex'h, r[;v;
de Ez 46,1. A “porta exterior voltada para o leste”, da qual fala o Texto Massorético,
aqui é o mesmo que se encontra descrito em Ez 44,1, como
!Acyxih; vD'q.Mih; r[;v;, que
deverá permanecer fechado e ninguém o cruzará, pois por ele passará o Senhor Deus
de Israel (cf. Ez 44,2).
A Septuaginta leu to. u[dwr “a água”, introduzindo o artigo que não figura no
texto hebraico. O termo “água”, sem artigo, já foi utilizado no v.1a. Por esta razão,
~yIm; é geralmente lido “a água”, como indica a LXX, admitindo, assim, uma
haplografia com relação ao Texto Massorético, sugerindo que este fosse lido com o
artigo
~yIm;466.
v.3
v. 3a
~ydIq' vyaih'-taceB.
Saindo o homem para o oriente,
462 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,2.
463 A palavra %r,D, em grande parte da literatura do AT tem o sentido de guiar-se no caminho de Deus
como opção pela verdade do ensinamento da Torah. Tendo o sentido de conversão (cf. Sl 1,1.6; Dt 2,5;
Jr 21,8). Haveria portanto uma aproximação teológica entre os textos uma vez que Ezequiel está dentro
de uma visão circunscrita ao Templo.
464 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 410.
465 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.
466 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,3; BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 687.
LXX aqw.j e;xodoj avndro.j evx evnanti,aj
Então, saiu um homem, do lado oposto,
O aparato crítico propõe ler
taceB. como yniaeciwyow;467. O Texto Massorético
teria inserido o verbo Qal infinitivo constructo taceB.
como resultado de uma
consciente modificação ulterior, cuja pretensão seria evitar a falsa impressão de que o
profeta tivesse sido conduzido para fora através da porta do oriente que se encontrava
fechada
468. A mudança do tempo verbal aponta para uma alteração no promotor da
ação, realizada pelo próprio sujeito, e não mais por um agente externo como se
depreende a partir da construção verbal
taceB..
A expressão
vyaih'-taceB. une o verbo ao substantivo, e, na opinião de alguns,
é perceptivelmente aditada a esse trecho com a intenção de precisar o instrumento de
medida que o homem porta
469. Aquele que sai é o mesmo que acompanha o profeta
e que, portanto, não está dentro de um recinto fechado como indica o sentido básico
do verbo. O substantivo
~ydIq' indica a direção leste ou oriental, para onde dirigiu-se o
sujeito da ação verbal.
v. 3b
Ady"B. wq'w>
com uma linha em sua mão,
LXX kai. me,tron evn th/| ceiri. auvtou
tendo na mão uma medida,
O substantivo absoluto
wq; é encontrado raramente em outros textos da
Bíblia Hebraica (cf. 1Rs 7,23; 2Rs 21,13; Is 28,17; 2Cr 4,2; Zc 1,16). Uma
467 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,3.
468 A presença do substantivo absoluto wq;. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums,
1187.
469 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.
aproximação com Ez 40,3 não parece adequada, pois os instrumentos de medida lá
elencados são o cordel de linho e uma cana de medir. O uso de
wq; em Ez 47,3b
distancia-se de uma referência metafórica e aproxima-se mais do sentido de
instrumento de medida, tendo em vista o verbo medir de 3c e a figura do homem que
porta este instrumento em 3a.
v. 3c
hM'a;B' @l,a, dm'Y"w:
mediu mil côvados
LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj evn tw/| me,trw
e mediu mil [côvados]
A unidade de medida do Texto Massorético é o
hM'a;, que a LXX traduziu
como me,tron, seguida pela Vulgata. O vocábulo me,tron está, como o
hM'a; relacionado
a uma unidade de medida e não interfere na compreensão do texto
470. O termo
hM'a;471, antebraço, côvado, possui aqui a sentido de unidade de medida de
comprimento, com extensão aproximada de 45 cm, a distância média entre o cotovelo
e a extremidade do dedo médio
472.
v. 3d
`~yIs"p.a' yme ~yIM:b; ynIrEbi[]Y:w:
Fez-me passar pelas águas, águas até os tornozelos.
LXX kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr avfe,sewj
470 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 1270.
471 wq; é um instrumento de medida que afere grandes distâncias lineares (cf. Jr 31,39) ou
arredondadas (cf. 1Rs 7,23). Cf. HARTLEY, J. E., “
wq; Dicionário Internacional de Teologia do
Antigo Testamento, 1329.
472 Esta unidade de medida linear tornou-se mais freqüente nos textos bíblicos relativos ao período
pós-exílico. Sobre esta unidade de medida ver: Cf.
M. HOLLENBACK, G., “The Dimensions and
Capacity of the 'Molten Sea in 1 Kgs 7,23.26”,
Biblica 81 (2000) 391-392; SCOTT, J. B., hM'a
Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 84; “Weights and Measures of the Bible”
The Biblical Archaeologist, 22 (1959) 21-40; http://scriptures.lds.org/en/bd/w/7?sr=1;
http://www.biblestudy.org/beginner/bible-weights-and-measures.hTexto Massoréticol. Acesso, abril
2007.
e me fez passar pelas águas, águas que deixavam andar.
A forma ynIrebi[]Y:w: expressa um deslocamento físico. Seguindo a LXX a
mesma idéia quando propõe kai. dih/lqen.
O dual absoluto ~yIs'p.a' (tornozelos) é considerado análogo a ~yIs'p;473. O
termo
~yIs'p.a' pode ser entendido, literalmente, como “as solas dos pés”, no sentido das
duas extremidades do corpo474. Sua ligação com o termo ~yIm; é exclusiva deste texto,
favorecendo a tradução como “tornozelos”, por estar ligada à idéia de quantidade de
água
475.
A LXX recorre a (u[dwr) avfe,sewj, que, provavelmente, trata-se de uma
transcrição ulterior grecizada
476. A Vulgata aproxima-se mais do sentido do Texto
Massorético, quando emprega usque ad femora. Mas o uso de ad talos pelo Códice
Vaticano é mais preciso, de igual modo a forma
alcrwql amd[ presente na tradução
Siríaca
477.
v. 4
v. 4
@l,a, dm'Y"w:
Mediu mil (côvados)
LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj
E mediu mil [côvados]
Retoma a construção do v. 3c
@l,a, dm'Y"w:, mas omite o instrumento e a
unidade de medida
hM'a;B'.
v. 4b
~yIK'r>Bi ~yIm; ~yIM;b; ynIrebi[]Y:w:
473 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.
474 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 67.
475 Cf. JOÜON-MURAOKA, A Grammar of Biblical Hebrew. Biblical Institute Press, 1942, § 127b.
476 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.
477 O Targum faz opção por !ylwcrq ym, já G
Qmg
, S
hmg
ASQ e;wj avstraga,lwn. Por influência desta
leitura, alguns traduziram “pontas dos pés”. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums,
1187.
me fez passar pelas águas, águas até os joelhos.
LXX kai. dih/lqen evn tw/| u[dati u[dwr e[wj tw/n mhrw/n
e me fez passar pelas águas, águas que me atingiam os joelhos.
A LXX traz, assim como o v.3d, kai. dih/lqen no lugar de
ynIrebi[]Y:w:, sem causar
danos a leitura do texto478. Com relação ao termo ~yIm;, o aparato crítico adverte para
uma substituição feita pela Geniza do Cairo e muitos outros manuscritos, sendo
seguida pelo Targum, portando a forma constructa yme (águas de)479. Esta substituição
não chega a interferir na compreensão do texto. Quanto à possibilidade da forma
absoluta “águas” insinuar uma justaposição
480, trata-se de um reforço para situar o
volume das águas a ser transposto.
A Bíblia Hebraica oferece respaldo à leitura de
~yIM;;B;;, enquanto a LXX apóia
um texto mais curto, mantendo o singular u[dwr. O Texto Massorético,
provavelmente, assimilou ~yIM;B;;;481.
O vocábulo
%r,B,482i (joelho) possui o mesmo valor semântico em outros
textos da Sagrada Escritura483. Em 2Sm 2,5 há uma mudança semântica que indica
uma bênção. Talvez isto justifique a leitura encontrada em G
967
, que traduz a palavra
~yIK'r>Bi por u[dwr euvlogia,j assumindo uma perspectiva sacerdotal de “bênção”. A
versão G
BAQ
prefere u[dwr e[wj tw/n mhrw/n484. Parece-nos que o texto hebraico de Ez
47,4b não permite uma leitura como a proposta por G
967
, uma vez que a referência ao
dual joelhos, precedido da idéia de medição do v.3c.4a e pela expressão ~yIs'p.a' yme e
do substantivo água, conduz à noção de crescimento quantitativo da água e distancia-
478 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,4.
479 Cf. Ibid., Aparato crítico para Ez 47,4.
480 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 273.
481 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,4.
482 O prefixo -l[;, nos joelhos, é entendido como sinal de reconhecimento do filho, adoção, afeto, no
regaço (cf. Gn 30,3; 50,23; Is 66,12). Quando
lvK é precedido por ~yIK;r>biW assume o sentido de
fraquejar, vacilar. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 120.
483 Cf. Dt 28,35; Jó 3,12; Is 66,12; Ez 7,17; 21,12; Na 2,11; Eclo 25,23.
484 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.
se de uma conotação cúltica.
v. 4c
@l,a, dm'Y"w:
Mediu mil (côvados)
LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj
E mediu mil [côvados]
Há uma mudança do hiphil, que havia iniciado este versículo, para o Qal na
3ª pessoa masculino singular, apontando uma alteração no agente da ação.
v. 4d
`~yIn"t.m' yme ynIrebi[]Y:w:
me fez atravessar, águas até os quadris.
LXX kai. dih/lqen u[dwr e[wj ovsfu,oj
e me fez passar por águas até a cintura
Um novo substantivo dual é empregado
~yIn:t.m', “os lombos”, cujo sentido é
puramente físico e anatômico485. Refere-se aos quadris ou à parte inferior das costas,
demarcando o meio do corpo como medida da correnteza que, tendo a sua origem no
filete d’água que escorria do Templo, subia progressivamente, primeiro até aos
tornozelos, depois até aos joelhos e agora até os quadris
486. A tradução “lombos”
comporta semântica diversa de “tendões”, como referência à forte musculatura que
485 Cf. Dt 33,11; Pr 30,31; Jr 48,37; Ez 21,11; 29,11; 47,4; Am 8,10; Na 2,2.11.
486 A tradução de ~yIn"t.mi por “tendões” é defendida por Held. Segundo este autor, o termo hebraico
possuiria em sua base o acádico matnu, cujo sentido primeiro era “corda de arco”, bem como o
ugarítico mtn que designava um dos materiais com que se produzia o arco extraído dos tendões dos
cascos do touro. Cf. HELD, M., Studies in Comparative Semitic Lexicography. In Studies in Honor of
Benno Landsberger on his seventy-fifth birthday. Chicago, University of Chicago, 1965, 395-406
(405).
Para aprofundamento do tema ver: MAYER W.R., “Akkadische Lexicographie: CAD Q”, Or 72
(2003) 231-242; HUEHMERGARD, J. “New Directions in the Study of Semitic Languages”. In Fs.
Albright 1996, 251-272; FLORENTIN, M., Late Samaritan Hebrew: A Linguistic Analysis of Its
Different Types. Studies in Semitic Languages & Linguistics. Leiden, Brill, 2005.
liga a parte superior do corpo à inferior487.
v.5
v. 5a
@l,a, dm'Y"w:
Mediu mil (côvados)
LXX kai. dieme,trhsen cili,ouj
E mediu mil [côvados]
Como já ocorreu em 4a e 4c, há uma omissão do instrumento e da unidade
de medida
hM'a;B'.
v. 5b
rbo[]l; lk;Wa-al{ rv,a] lx;n::
era um rio que (eu) não podia atravessar,
LXX kai. ouvk hvdu,nato dielqei/n
e não se podia atravessar
O Texto Massorético contém
lx;n:, enquanto a LXX e Vulgata
a omitem488.
Entendemos que sua manutenção favorece o elemento que contém a noção de volume
de água a que se refere o texto. A opção pelo sinônimo “torrente” é viável, todavia,
tendo em vista os verbos subseqüentes que sugerem o ato de atravessar, seria mais
conveniente o vocábulo “rio”. Esta opção se deve ao fato do termo rio expressar, com
maior precisão, a idéia de um curso de água que se desloca e aumenta seu volume de
forma constante e de modo contínuo, abastecendo a localidade com água em
abundância. A noção de torrente, por sua vez, porta um curso de água temporário e
487 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 608.
488 Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary. Edinburgh, T&T Clark, 1936,
687.
violento, causador de prejuízos.
Poucos manuscritos hebraicos medievais, a LXX e a Peshitta trazem a
terceira pessoa do singular enquanto o Texto Massorético testemunha a primeira
pessoa do yiqtol
489. A leitura em terceira pessoa, proposta pela LXX, seguida pela
Peshitta, alinha a conjugação verbal de
lky com as conjugações encontradas em 4c e
5a, nas quais o condutor do profeta é o agente verbal. O testemunho do Texto
Massorético estaria mais correto tendo em vista que a construção lk;Wa-al{ mostra a
relação de possibilidade ou impossibilidade de uma pessoa em relação a um objeto,
no caso, a água. Como o personagem posto em relação com o crescente volume da
água é o profeta, a conjugação na primeira pessoa tornar-se-ia mais adequada. Sendo
assim, o Texto Massorético parece oferecer melhor leitura.
A presença do advérbio de negação
al{ e do verbo lky reforça a
compreensão da incapacidade física juntamente com a partícula final
l.
v. 5c
Wxf' yme ~yIM;h; Wag"-yKi
porque as águas (eram) profundas, águas de nadar.
LXX o[ti evxu,brizen to. u[dwr w`j r`oi/zoj
porque as águas tornaram-se impetuosas
O Texto Massorético traz
WaG", literalmente “alto”, enquanto a LXX recorre a
uma personificação: as águas enchem-se de orgulho, evxu,brizen to. u[dwr, a mesma
interpretação pode ser encontrada na Vulgata quando traduz contumeliam faciebant.
O Códice Vaticano recorre a intumuerant
490. Tal interpretação não parece ser
necessária, uma vez que o texto vem paulatinamente indicando a noção quantitativa
do volume da água.
A expressão
Wxf' yme é rara na Bíblia hebraica, ocorre somente aqui e em Am
489 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,4.
490 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.
4,13491. Parece não ter sido bem entendida pelas versões, que preferiram uma
interpretação como a encontrada na LXX u[dwr w`j r`oi/zoj ceima,rrou “como o
bramido do riacho no inverno” ou no Códice Vaticano, profundi. O termo
Wxf', unido
a yme, possui sentido de “águas de nadar”, aquela que não oferecem condições de
atravessar a pé
492. Possivelmente a interpretação presente na LXX seja conseqüência
da personificação concedida ao termo água anteriormente.
v. 5d
`rbe['yE-al{ rv,a] lx;n:
(era um) rio que não podia ser atravessado
LXX ceima,rrou o]n ouv diabh,sontai
uma torrente que não se podia atravessar
O v.5d deveria, na visão de alguns pesquisadores, ser completamente
eliminado porque reproduz quase literalmente 5b
493. Outros entendem que a
expressão rbo[]l; lk;Wa-al{ rv,a] de 5b foi imitada em 5d, mas não recomendam sua
supressão
494. A construção verbal rbE['yE-al{ retoma a idéia de 5b somente em parte.
Sucedendo imediatamente a expressão
rbE['yE-al{ assume a função informativa. Já em
5d, o nifal parece cumprir função conclusiva: o rio não pode ser atravessado porque o
volume de água tornou-se imenso.
v.6
v. 6a
yl;ae rm,aYOw:
Disse-me:
LXX kai. ei=pen pro,j me eiv
491 Sobre esta fórmula hapax ver: SODEN, W. Von, “Ist im Alten Testament schon vom Schwimmen
de rede?”, ZAH 4 (1991) 165,-170.
492 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 965; ALONSO
SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 641.
493 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.
494 Cf. Ibid, 1188.
E disse-me:
A expressão rm,aYOw: introduz um discurso em estilo direto, seu destinatário é
uma pessoa concreta como se pode perceber pela presença da partícula preposicional
yl;ae “para mim”.
v. 6b ~d'a'-!b, t'yair'h]
tu viste, Filho do homem?
LXX e`w,rakaj ui`e. avnqrw,pou
viste, Filho do homem?
O artigo que antecede o verbo
har possui função interrogativa tal como se
observa em Ex 26,30. Desta forma, a concepção de
har como exclamativo não
procede495.
v. 6c
`lx;N"h; tp;f. ynIbeviy>w: ynIkeliAYw:
Me fez ir, me fez retornar para a margem do rio
LXX h;gage,n me evpi. to. cei/loj tou/ potamou
Levou-me, então, até a margem do rio.
A fórmula
ynIkeliAYw: segue Ez 40,24; 43,1. O Aparato Crítico acusa a supressão
de
ynIbeviy>w: pela LXX496. Esta supressão reforçaria a tese de um acréscimo497. Se for
levada em consideração a presença de lx;N"h; tp;f. como um deslocamento, como
sugere o hiphil do verbo bwv, que em Ez 47,6c deve ser entendido como retorno,
conduzir de volta. Tendo em vista que o Texto Massorético tem os dois verbos ynIbEviy>w:
495 Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 687.
496 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,6.
497 Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688.
ynIkEliAYw:, literalmente, “e me levou e me trouxe de volta”, e que os dois verbos foram
mantidos pela Peshitta
498, seria conveniente sua manutenção.
O substantivo feminino singular constructo
tp;f., na Geniza do Cairo, em
muitos manuscritos hebraicos e na Bíblia Rabínica, recebe a inserção da preposição
l[;. O Texto Massorético oferece melhor leitura.
v.7
v. 7a
`hZ<miW hZ<mi daom. br; #[e lx;N:h; tp;f.-la, hNEhiw> ynIbeWvB.
Quando voltei-me, eis nas margens do rio, muitas árvores de um lado e de
outro.
LXX evn th/| evpistrofh/| mou kai. ivdou. evpi. tou/ cei,louj tou/ potamou/ de,ndra polla.
sfo,dra e;nqen kai. e;nqen
E tendo me voltado, eis que às margens do rio havia uma grande quantidade
de árvores em ambas as margens.
O aparato crítico propõe
ynIbeWvB.
ybiWvB. como leitura, enquanto outros
manuscritos o omitem499. Provavelmente, houve uma tentativa de melhorar o texto.
A leitura do Texto Massorético seria mais correta por introduzir uma dinâmica
temporal. A presença de um sufixo objetivo
B. é tida como anômala, possivelmente,
resultado de uma assimilação de
ynIbeviy>w: “e ele me trouxe de volta” como ocorrido no
v.6d
500. Esta condição pode ser conseqüência de uma tentativa de melhorar o texto.
A partícula preposicional
la, sofreu a ação de retroversão (o texto teria sido
re-traduzido para a língua original) l[;501. A retroversão não constitui um problema
498 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.
499 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,7.
500 Cf. DRIVER, G.R “Ezekiel: Liguistic and Textual Problems,” Biblica 35 (1954) 299-312 (312).
Pensamento análogo pode ser encontrado em Bauer-Leander. Cf. BAUER-LEANDER, Historische
Grammalik der Hebräischen Sprache, § 29h. In ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums,
1188.
501 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,7.
sério para o texto, uma vez que as duas preposições determinam a localização do
objeto da interjeição
hNEhiw>. Todavia, la, oferece-nos uma idéia de movimento mais
precisa do que
l[;, que é mais estática.
A construção
tp;f.-la,, na literatura profética, não é muito freqüente e
apresenta-se destituída de preposição (cf. Is 19,18; 47,6.7), com exceção de Ez 36,3,
mas a preposição lá empregada é l[;.
O vocábulo
#[e assumindo uma conotação coletiva é encontrado em Ez
47,7b e Lv 23,4; 26,20. A construção
br; #[e indica arvoredo espesso. A inclinação
por uma tradução no coletivo se justifica pela presença do adjetivo br;, que expressa a
multiplicidade em número e quantidade. Noção reforçada pelo advérbio daom., que
enfatiza o que lhe sucede. O termo sfo,dra, “muito”, da LXX, foi omitido no Códice
Alexandrino502. A versão da LXX leu o termo no plural, de,ndra,503 mantendo a
idéia de várias árvores dispostas à margem do rio.
Apesar da expressão
daom. br; #[e ser também traduzida como “uma árvore
gigante”
504, o sentido coletivo é preferível tendo em vista o v. 12.
A LXX reproduziu a idéia de ambivalência presente no Texto Massorético
quando recorre à expressão e;nqen kai. e;nqen
505.
v. 8
v. 8a
yl;ae rm,aYOw:
Ele me disse:
LXX kai. ei=pen pro,j me
Então, disse-me:
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
502 Cf. RAHLFS, A., Septuaginta. Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, 1979. Aparato crítico para
Ezequiel 47,7.
503 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 444.
504 Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688.
505 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 679.
v. 8b hn"Amd>Q;h; hl'yliG>h;-la, ~yaic.Ay hL,aeh' ~yIM;h;
Estas águas saem para (a região) leste
LXX to. u[dwr tou/to to. evkporeuo,menon eivj th.n Galilai,an
estas águas saem para a Galiléia
O particípio plural
~yaic.Ay, além de determinar a idéia de continuidade dos
verbos que se seguem, reforça a idéia de quantidade. É raro na Bíblia Hebraica e
constitui linguagem própria de Ezequiel (cf. Ez 14,22; 47,8.12).
v. 8c
hb'r'[]h'-l[; Wdr>y"w>
e afluem sobre a estepe
LXX th.n pro.j avnatola.j
para o oriente,
Neste versículo, o verbo
dry difere do emprego verbal de Ez 47,1c, quando
se encontrava ligado ao verbo qal acy “manar” e ao substantivo “água”. A noção de
afluir evidencia mais a idéia de um rio que se desloca para o mar, além de receber um
reforço pela presença da preposição
l[;. O destino deste deslocamento será
apresentado pelo substantivo hb'r'[]h', “estepe”. A opção pelo termo “estepe” pareceu-
nos mais adequada a este contexto do que “salgueiro” (cf. Lv 23,40; Is 15,7)
506. O
mesmo termo é ainda freqüentemente usado como termo geográfico, formando
topônimos (cf. Is 21,13) ou mais propriamente Mar Morto (cf. Js 3,16; 2Rs 14,25).
As indicações de lugar
hn"Amd>Q;h;, hb'r"[]h'-l[;, hM'Y"h', hM'Y"h; contidas no v.8bcd
foram mal interpretadas pela LXX e pela Vulgata como topônimos
507,
respectivamente: eivj th.n Galilai,na, th.n pro.j avnatola.j e evpi. th.n VArabi,na. O
506 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 516.
507 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188; BLOCK, D. L., The Book of
Ezekiel: chapters 25-48, 687.
Códice Vaticano associa hl'yliG; com lG; “monte de pedras” e traduz ad tumulus sabuli
orientalis und ad plana deserti
508. Entendemos que a manutenção da leitura proposta
pelo Texto Massorético seja mais adequada.
v. 8d
hM'Y"h; Wab'W
e chegam até o mar;
LXX kai. kate,bainen evpi. th.n VArabi,an
e descem para a Arábia,
O Targum identifica o primeiro
hM'Y"h; (cf. v. 8b) com o Mar Morto e o
segundo (cf. v. 8d) com o “Grande Mar”, o Mediterrâneo. Esta interpretação apóia-se
no texto de Zc 14,8 e foi retomada pelo Talmud de Jerusalém
509.
v. 8e
`~yIM'h; WaP.r>nIw> ~yaic'WMh; hM'Y"h;-la,
ao chegarem ao mar, suas águas ficam curadas.
LXX kai. h;rceto e[wj evpi. th.n qa,lassan evpi. to. u[dwr th/j diekbolh/j kai. u`gia,sei
ta. u[data
e vão até o mar e aí lançadas, curarão as águas
A construção
hM'Y"h;-la, foi entendida pela Septuaginta, seguida pela Peshitta,
como evpi to. u]dwr, admitindo a leitura de
hM'Y"h;-la,. Trata-se de uma tentativa
desnecessária de corrigir o Texto Massorético.
A leitura do Texto Massorético
~yaic'WM)h; hM'Y"h; apresenta o verbo acy no
hophal particípio masculino plural, que, aparentemente, estaria em desacordo com o
singular
hM'Y"h;-la,. O primeiro termo não possuiria, para alguns, uma função especifica
508 Cf. Cf. COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688; ZIMMERLI, W.,Die
Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.
509 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 412.
e, por esta razão, teria sido revisado para ~yM;h;-la, “para as águas”510. A presença do
plural, imediatamente após hM'Y"h;-la,, justifica a leitura do Texto Massorético, tendo
em vista que o ato de desembocar, sinalizado pelo verbo
acy, está relacionado com o
grande volume de água que, paulatinamente, foi crescendo ao longo dos v.1a-5d.
O v. 8e é traduzido pela Septuaginta como kai. h;rceto e[wj evpi. th.n
qa,lassan evpi. to. u[dwr th/j diekbolh/j kai. u`gia,sei ta. u[data, e, pela Vulgata, como
intrabunt mare et exibunt et sanabuntur aquae. A segunda aparição do termo
hM'Y"h; (o
mar) foi omitida pela Vulgata e entendida como
~yiM;h; pela Septuaginta, bem como
pela Peshitta511. O substantivo feminino singular diekbolh/j teve a partícula di
omitida no Códice Alexandrino
512.
Uma leitura do hofal particípio como “seja suja”
awc “estagnada” 513 teria
afetado a versão Siríaca que propõe a leitura de “salgada”. Esta leitura acarretou uma
mudança na LXX, que utiliza “salgado”, como se encontrada na LXX
Qmg
. Esta
alteração estaria ancorada no senso popular que emprega ~yciWmx}h; (condimentados).
Tal interpretação é desnecessária, tendo em vista os indicadores de lugar do v.8bcd,
no qual há um deslocamento em direção ao mar como é o destino de um afluente.
Barthélemy observa que a LXX ao traduzir o termo
~yaic'WMh;, utiliza três
vezes o substantivo diekbolh,: em Ez 47,8, recorre a diekbolh, para ~yaic'WMh;; em Ez
47,11, apela a evn th/| diekbolh/| auvtou/ para AtaCoBi, “para a saída dele”, em Ez 48,30, ai`
diekbolai. th/j po,lewj, para
ry[ih' taoc.AT “para a saída da cidade”. Estes empregos
levam à conclusão de que a LXX leu
AtaCoBi como um substantivo derivado de acy.
Possivelmente, esta leitura decorre do fato de que das cinco vezes em que o hofal é
empregado no Texto Massorético, três encontram-se no texto de Ezequiel (cf. Ez
14,22; 38,8; 47,8) e que em alguns destes casos a LXX não percebeu tratar-se de uma
forma verbal passiva. A forma passiva foi reconhecida pela Guenizá do Cairo, mas a
Vulgata a traduziu em forma ativa
514. Já a Peshitta compreendeu que esta forma
510 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 273.
511 Segundo Barthélemy, haveria ainda uma assimilação da terceira ou da última palavra deste
versículo. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 412.
512 Cf. RAHLFS, A., Septuaginta. Aparato crítico para Ezequiel 47,8.
513 Cf. DRIVER, G. R., “Linguistic and Textual Problems: Ezekiel”, Biblica 19 (1938), 186-187.
514 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 412.
verbal exerce função de adjetivo de ha"ce (excremento). Provavelmente as
divergências entre as várias traduções decorrem da tentativa de evitar a leitura mais
difícil presente no Texto Massorético. Uma solução possível é a leitura de ~yciWmx}h;,
comparando-a com
#ymix' de Is 30,24515.
v.9
v. 9a
#rov.yI-rv,a] hY"x; vp,n<-lk' hy"h'w>
Acontecerá que todo ser vivente que se multiplica
LXX kai. e;stai pa/sa yuch. tw/n zw,|wn tw/n evkzeo,ntwn
E acontecerá que todo ser vivo que se multiplica
O substantivo constructo
lKo indica a totalidade e, aliado à construção hY"x;
vp,n<
, remete à noção quantitativa dos seres que receberão vida: todos. A locução hY"x;
vp,n< “ser vivente” não inclui o gênero humano; quando este é mencionado, utiliza-se
apenas
vp,n<.
A partícula
rv,a], “que”, revela as primeiras implicações da salubridade da
água. O verbo qal
#rv, ligado ao “ser vivente” do v.9a, literalmente significa pulular,
fervilhar (cf. Gn 1,20-21; 8,17; Ex 1,7; 8,3.7.28; Sl 105,30). Embora exista uma
aproximação sinonímica entre
#rv e fmr, a noção de fervilhar como muitos está mais
presente em
#rv, enquanto fmr tende mais para a noção de um aglomerado
rastejante, lento e sinuoso (cf. Gn 1,30; 7,8.14.21; Lv 11,46). A tradução por
multiplicar torna mais evidente a noção da abundância de seres viventes que se
encontram na água.
v. 9b
hy<x.yI ~yIl;x]n: ~v' aAby" rv,a]-lK' la,
Até mesmo todo o que vier aos rios viverá
LXX evpi. pa,nta evfV a] a'n evpe,lqh| evkei/ o` potamo,j zh,setai
515 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188.
Com aquele que viver por onde quer que o rio perpasse viverá,
Advérbio de lugar
~v' “lá”, neste texto, assume valor de procedência e faz
menção a todo ser vivente que procede do rio.
A presença do dual
~yIl;x]n: “dois rios” no Texto Massorético foi tida como
estranha
516, incompreensível517 ou influência de Zc 14,8, refletindo uma antiga
tradição judaica518. A LXX, a Vulgata e também o Targum Siríaco fizeram opção
pelo singular lx;N"h “o rio”, como ocorre no v. 9g519.
A leitura no dual ~yIl;x]n: “o rio, o rio formado por elas”, neste versículo, pode
ser decorrente de uma influência do v.8, ou de uma aproximação com a leitura de Dt
8,7; 10,7; Jr 31,9, em que se encontra “rios de água”
520 ou ainda do Sl 46,5, onde
~yIl;x;n; é lido como uma torrente que se divide em duas521. Uma delas se dirige para o
mar ocidental e a outra para o mar oriental522. Podemos dizer que as duas propostas,
o dual e o singular, causam uma certa dificuldade ao leitor.
O substantivo masculino dual absoluto
~yIl;x]n: foi compreendido pela LXX
como substantivo singular o` potamo,j e seguem-na a Peshitta, o Targum e a Vulgata.
Provavelmente, lx;N"h; “o rio” foi lido no singular523. Esta leitura pode ser encontrada
no v.9g, como tentativa de concertar o Texto Massorético. Tal tentativa,
possivelmente, se deva, precisamente, ao incomum emprego do dual para o termo
“rio”. Entendemos que há, da parte da LXX, um recurso que visa chamar a atenção
516 O dual foi mantido nas traduções de Pagnini, Brucioli, Jud, Pasteurs e Diodati. Já uma leitura
priorizando o plural pode ser encontrada nas traduções de Luther, Münster, Olivetan-Estienne, Rollet,
Bíblia de Geneva, King James e em Tremellius. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de
l’Ancien Testament, 413.
517 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189.
518 Esta antiga tradição judaica que os dois rios teriam um eco na fonte dos dois rios de El vivo ou
vivente, da mitologia ugarítica. Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 274.
519 Seguem a leitura do singular as traduções de Hätzer-Prédicants, Castalio e Châteillon. Cf.
BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 413.
520 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48, 274.
521 Esta compreensão dar-se-ia de modo bastante livre, por esta razão, Zimmerli sugere que a leitura
deveria ser
lx;N'h;. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189.
522 Cooke destaca que a expressão kaqw.j ei=pen h` grafh,( potamoi, de Jo 7,38 está intimamente ligada
a Ez 47,9, o que tornaria o texto joanino testemunha indireta do emprego do Texto Massorético em
uma forma não singular. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 413.
523 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,9.
para o termo “rio”.
v. 9c
daom. hB'r; hg"D'h; hy"h'w>
haverá peixes em abundância,
LXX kai. e;stai evkei/ ivcqu.j polu.j sfo,dra
haverá ai muitos peixes,
O substantivo
hg"D' aparece no Antigo Testamento tanto no feminino como
no masculino, sem uma alteração significativa
524. O adjetivo br; possui significado
básico de “muitos” e expressa a multiplicidade em número e em quantidade de
pescado525. O uso adverbial de daom. expressa ou acrescenta ênfase e, associado aos
termos antecedentes, visa chamar atenção para a intensa quantidade de peixes.
v. 9d
hL,aeh' ~yIM;h hM'v' Wab' yKi
porque para lá vão estas águas
LXX o[ti h[kei evkei/ to. u[dwr tou/to
pois lá chegarão estas águas
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
v. 9e
Wap.r'yEw>
Serão curadas
524 O vocábulo “peixe” era utilizado também para designar uma das portas de Jerusalém, a Porta do
Peixe (cf. 2Cr 33,14; Ne 3,3; 12,39; Sf 1,10). Cf. KALLAND, E. S., Dicionário Internacional de
Teologia do Antigo Testamento, 298.
Os peixes sem escamas eram considerados imundos em Israel. Cf. ALBRIGHT, W. F., Yahweh and
the Gods of Canaan; a historical analysis of two contrasting faiths, Doubleday, New York, 1968;
THOMPSON, P. E. S., The Yahwist Creation Story”, Vetus Testamentum, 21 (1971), 197-208;
PATAI, R.,
The God Yahweh-Elohim”, American Anthropologist, 75 (1973), 1181-1184.
525 Cf. HARTMANN, TH. “br;”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, col. 905-
906; ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 601.
LXX kai. u`gia,sei
e tudo sarará,
O primeiro verbo é uma variante do niphal Wap.r"yEw> (“e eles serão curados”)
do v. 8e
526. A LXX atesta para o v. 9fg uma Vorlage idêntica ao Texto Massorético.
A recensão de Luciano traduz de modo mais preciso o niphal para kai. ivaqh,setai
527.
A Vulgata também traduz fielmente o v. 9fg por et sanabuntur.
v. 9f
`lx;N"h; hM'v' aAby"-rv,a] lKo yx'w"
E vivo será tudo o que vier para lá, (para) o rio.
LXX kai. zh,setai pa/n evfV o] a'n evpe,lqh| o` potamo.j evkei/ zh,setai
e tudo viverá por onde o rio passar
O substantivo masculino direcional
lx;n: acrescido de um h;, é hápax deste
capítulo de Ezequiel (cf. Ez 47,6.7.9.12) e não figura na literatura profética
528.
v.10
v. 10a
~yIl;g>[, !y[e-d[;w> ydIG< !y[eme ~ygIW"D; wyl'[' Wdm.[;y
Existirão sobre a margem do rio pescadores de Engedi até Eneglaim
LXX kai. sth,sontai evkei/ a`leei/j avpo. Aingadin e[wj Ainagalim
Acontecerá que os pescadores lá estarão, desde Aingadin até Ainagalim
A forma verbal
hy"h'w> foi lida pela LXX como z,h,setai, seguida em parte pela
Peshitta e pela Vulgata, no futuro529. Esta leitura se deve à troca do fonema h pelo
x
, acarretando uma alteração do sentido do verbo e, provavelmente por este motivo, o
526 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189.
527 Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 414.
528 Fora da literatura profética, podemos encontrar o termo em: Gn 32,24; Dt 3,16; 9,21; 13,9.16;
19,11; 1Sm 17,40; 2Sm 17,13; 24,5; 1Rs 17,6.7; 2Rs 3,16; 2Cr20,16; 32,4; Sb 6,11.
529 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,10.
vincula ao final do v.9530. Se a forma verbal hy"h'w> for considerada uma fórmula
introdutória
531, sua ausência não interfere na tradução e compreensão do texto. Mas,
se for considerado como um verbo com função na frase, deve permanecer, tendo em
vista sua ligação com o verbo
Wdm.[;y:532.
O ketiv do verbo Wdm.[' foi lido por poucos manuscritos hebraicos medievais,
como as Edições de B. Kennicott e de G. B. de Rossi, seguidas pela LXX, pela
Peshitta e pela Vulgata como
Wdm.[;y: 533.
O substantivo absoluto
ydIG< possui etimologia incerta534 e ocorre apenas
duas vezes no corpo profético (cf. Ez 47,10 e Is 11,6). Sua ligação com o substantivo
absoluto
!y[e “olho”, “fonte”535, permite a tradução com a idéia de indicação
geográfica: fonte dos cabritos.
Isto aparece no livro em Ez 4,14; 29,10; 41,17; 47,10;
48,3.6.
A tradução literal de
~yIl;g>[, seria “bezerro”, sendo a opção Eneglaim um
topônimo. Esta tradução se justifica pela construção !y[e-d[;w>, que aponta para um
espaço geográfico concreto, precisando a origem dos pescadores que se alocarão às
margens do rio.
v. 10b
~ymir'x]l; x;Ajv.mi
Para estender as suas redes
LXX yugmo.j saghnw/n e;stai kaqV au`th.n
530 Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters 25-48, 689.
531 Zimmerli segue Driver sobre a presença do verbo hy"h'w> no Texto Massorético considerando-o
como mera fórmula introdutória diretamente ligado ao verbo subseqüente. Cf. ZIMMERLI, W., Die
Umwelt des neuen Heiligtums, 1189.
532 Segundo Barthélemy, G
967
kai. z,h,setai. Entendemos que a introdução não interfere na
compreensão do texto, podendo, antes, indicar uma ênfase. Cf. BARTHÉLEMY, D., Critique
Textuelle de l’Ancien Testament, 414.
533 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,10.
534 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 132.
535 O termo !y[e comporta a idéia de uma água proveniente de uma abertura numa encosta de morro ou
vale, diferenciando-se de “poço” ou “cisterna”. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico
Hebraico-Português, 490; JENNI, E., VETTER D., “
!y[eDiccionario Teologico Manual del Antiguo
Testamento II, col. 336-346.
haverá lugar para estenderem as suas redes,
O substantivo ~r,xe que aqui, de modo particular, não possui caráter de
maldição, permitindo a tradução com sentido de rede, tarrafa, instrumento de
pesca
536.
v. 10c
hn"ymil. Wyh.yI
E serão segundo sua espécie.
LXX e;stai kai. oi` ivcqu,ej auvth/j
Seus peixes, segundo a sua espécie serão
A forma verbal
Wyh.yI de 3ª pessoa masculino plural, foi lida pela LXX na 3ª
pessoa singular do futuro do indicativo e;stai, sendo seguido, em parte, pela Peshitta e
pela Vulgata
537. A alternativa proposta pelo aparato crítico facilita a leitura e
acomoda o verbo com o substantivo hn"ymil. que lhe sucede. O Targum apresenta leitura
discordante do Texto Massorético, propondo Hn"yml538 “espécie dela”.
v. 10d
`daom. hB'r; lAdG"h; ~Y"h; tg:d>Ki ~t'g"d> hy<h.Ti
E seus peixes serão como peixes do grande mar, em abundância.
LXX w`j oi` ivcqu,ej th/j qala,sshj th/j mega,lhj plh/qoj polu. sfo,dra
como os peixes do mar grande, em grande quantidade.
536 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 246.
O termo
~r,xe é mais conhecido por sua conotação de “anátema, objeto consagrado ou próprio de
interdito”. Para maior aprofundamento ver: BREKELMANS, C. “
~r,xe”, Diccionario Teologico
Manual del Antiguo Testamento I, col.880.
537 Cf. ELLIGER, K., et RUDOLPH, W., Biblia Hebraica Stuttgartensia. Aparato crítico para Ez
47,10.
538 Cf. Ibid, Aparato crítico para Ez 47,10.
O Texto Massorético apresenta a forma o substantivo constructo ~t'g"D>, que
foi traduzido pela LXX, seguida em parte pela Vulgata, como oi` ivcqu,ej auvth/j, mas
deve ser lido como wtgd539.
v.11
v. 11a
`WnT'nI xl;m,l. Wap.r"yE al{w> wya'b'g>W wyt'aCoBi
Seus pântanos e seus alagadiços não serão curados,
LXX kai. evn th/| diekbolh/| auvtou kai. evn th/| evpistrofh/| auvtou kai. evn th/| u`pera,rsei
auvtou/ ouv mh. u`gia,swsin
Mas os seus pântanos e os seus alagadiços não serão curados suas águas
A LXX, ao propor kai. evn th/| u`pera,rsei auvtou/, demonstra não ter
compreendido o radical
hbg540, optando por locais de inundação541.
v. 11b
`WnT'nI xl;m,l.
serão entregues ao sal
LXX .eivj a[laj de,dontai
serão deixadas para o sal
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
v.12
v. 12a
Atp'f.-l[; hl,[]y: lx;N:h;-l[;w>
539 Cf. Ibid, Aparato crítico para Ez 47,10.
540 Daniel Block discorda de Zimmerli quanto a correção de AtaCoBi para wytwcb por considerar que a
fórmula
AtaCoBi ocorre em Jó 8,11; 40,21 “como um lugar onde algas crescem” e ainda Jr 38,21. Cf.
ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189; BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel:
chapters 25-48, 689.
541 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1189.
E junto ao rio crescerá nas suas margens,
LXX kai. evpi. tou/ potamou/ avnabh,setai evpi. tou/ cei,louj auvtou/
E junto ao rio crescerá, em suas margens
A forma verbal
hl,[]y:,, foi compreendido pela LXX como evpV auvtou/. Segue-a
a Vulgata quando propõe in eo. A segunda imprecisão ocorre com avna,basij auvtw/n
que, na Vulgata, tornou-se ascensio eius.
v. 12b
lk'a]m;-#[e-lK' hZ<miW hZ<mi
de um lado e de outro toda espécie de árvore frutífera.
LXX e;nqen kai. e;nqen pa/n xu,lon brw,simon
de uma lado e de outro lado, toda espécie de árvore comestível
A construção
hZ<miW hZ<mi concede a noção da presença da árvore em ambas as
margens do rio. Reforça esta presença ambivalente a preposição
!mi, que tem como
sentido básico a noção de distância no espaço e no tempo
542.
O termo
lk'a]m;' “alimento” (cf. Gn 6,21) possui função adjetival e qualifica a
árvore que dá frutos (cf. Lv 19,23; Dt 20,20; Ne 9,25; Ez 47,12b): elas são frutíferas.
A mesma construção dá a noção de pomar, pois são muitas as árvores e servem
especificamente para o alimento
543. A idéia do Texto Massorético foi bem
assimilada pelo texto da LXX, quando optou pela tradução xu,lon brw,simon
544.
v. 12c
rKeb;y> wyv'd"x\l' Ayr>Pi ~ToyI-al{w> Whle[' lAByI-al{
Suas folhas não murcharão, seus frutos não cessarão e a seus meses
Frutificarão
542 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 189.
543 Cf. Ibid. 511.
544 Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec Français, 381.
LXX ouv mh palaiwqh/| evpV auvtou ouvde. mh. evkli,ph| o` karpo.j auvtou
e os seus frutos não envelhecerão nela, nem cairão,
A forma
Wyh'w>, atestada no Códice de Leningrado, deve ser lida, conforme a
massorah parva, como singular, concordando com o substantivo
yrIP..
v. 12d
~yaic.Ay hM'he vD'q.Mih;-!mi wym'yme yK
porque suas águas saem do santuário
LXX th/j kaino,thtoj auvtou/ prwtobolh,sei dio,ti ta. u[data auvtw/n evk tw/n a`gi,wn
tau/ta evkporeu,etai
pois as águas procedem do santuário.
A forma
wyv'd'x\ foi traduzida pela LXX como th/j kaino,thtoj auvtou/,
acontecendo o mesmo com a Vulgata.
v.12e
lk'a]m;l. Ayr>pi Wyh'w>
seus frutos servirão como alimento
LXX kai. e;stai o` karpo.j auvtw/n eivj brw/sin
E os seus frutos servirão de alimento
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
v.12f
`hp'Wrt.li Whle['w>
e suas folhas como remédio
LXX kai. avna,basij auvtw/n eivj u`gi,eian
e suas folhas de remédio
Não foram detectados problemas textuais relevantes.
3.2 Delimitação da unidade
Após as palavras que descrevem os fornos que cozem os sacrifícios
oferecidos pelo povo (cf. Ez 46,21-23)
545, a fórmula de direção ynIbeviy>w: de Ez 47,1
sinaliza o início de uma nova unidade literária cujo foco principal encontrar-se-ia
primeiramente na descrição do rio que flui do Templo, das árvores que encontram-se
em ambas as margens do rio e no efeito restaurador que elas produzem (cf. v. 1-7),
seguidos pela interpretação da visão (cf. v. 8-12). Considerando esta temática e tendo
em vista a falta de elementos formais de ligação com o que lhe antecede, o texto
iniciado em Ez 47,1 distingue-se nitidamente do contexto anterior.
Os v. 1-7 desenvolvem coerentemente o tema da origem do rio sua extensão,
profundidade e a constatação da presença de árvores que surgem em ambas as
margens do rio e apresentam-se interligados. Após o deslocamento até a entrada do
Templo e a constatação de que as águas brotavam debaixo de seu limiar, o vidente é
levado a sair (cf. 1-2). Nos v. 3-5 há uma retomada do personagem (o anjo) que havia
conduzido o profeta para fora do local onde se realizava o cozimento dos sacrifícios
(cf. Ez 46,21-23). Esta retomada do personagem do v. 1 confere uma inter-relação
entre os versículos, uma vez que a ação de medição desempenhada pelo anjo está
intimamente relacionada com o rio que brota do limiar do Templo.
O contato entre o v. 6 e os v. 3-5 encontra-se bem sinalizado tanto pela
continuidade da estrutura verbal como pela conclusão da ação desempenhada pelo
condutor do profeta. A indagação que inicia o v. 6b introduz um discurso em estilo
545 John W. Wevers trabalha com a hipótese da perícope de Ez 47,1-12 ter, na sua origem, ter sido a
continuidade da seção Ez 44,1-2. A causa de uma desordem no texto atual seria as inserções impostas
pelos apocalípticos. Cf. WEVERS, J. W., Ezekiel. London, Eedmans, 1969, 228.
direto, que não parece sugerir um rompimento com a ação de medir dos v. 3-5546. O
verbo hiphil do v. 6cd segue a mesma estrutura do início do v. 1a, além de manter a
temática do rio. No v. 7, um novo elemento é inserido na cena: em ambas as margens
do rio, o profeta vê árvores que crescem.
Os versículos subseqüentes (cf. v. 8-12) apresentam-se como um discurso
divino formalmente introduzido pela fórmula: “Ele me disse”
547. Com o v. 8, temos
o início da exposição das implicações dos elementos que compuseram a narrativa dos
v. 1-7: os v. 8-12 envolvem noções topográfica-natural-terapêutica (cf. v. 8-10) que
descrevem a direção, a eficácia e a ação da água que brotou do limiar do Templo (cf.
v. 1); o v. 11 informa ao profeta que os pântanos e os alagadiços encontrar-se-ão
excluídos da função terapêutica da água que brotou do Templo, eles não serão
renovados, destoando assim, da apresentação dos benefícios da passagem do rio; no
v. 12 há a retomada do tema da restauração produzida pelas águas do rio e a
elucidação da função das árvores que cresciam em suas margens, o que foi diversas
vezes medido pelo condutor do profeta (cf. v. 3-5), proporcionando uma conclusão
para a narrativa visionária.
O v. 13 é iniciado de modo abrupto. O sujeito da cena deixa de ser o profeta
e seu condutor passando para
hwIhy> yn"doa]; o conteúdo passa a ser a descrição das
fronteiras da futura terra de Israel e o estilo descritivo também diverge. Por estas
razões, Ez 47,13 dá início a uma nova unidade literária.
3.3 Estrutura do texto
546 Para Zimmerli a declaração de condução do v. 6c-7a interrompe o discurso e introduz um
elemento na visão que terá sua interpretação no v.12, mantendo o mesmo vocabulário, o que
entendemos ser correto. Entretanto, considerar estes versículos como uma “inábil inserção posterior”,
parece-nos uma postura um tanto exagerada. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums,
1187.
547 O discurso divino dos v.8-12 é compreendido por Daniel L. Block como uma interpretação de
YHWH que transforma a visão numa “profecia de salvação”. Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel,
690.
O estudo sobre a delimitação do texto indicou o início de nossa perícope de
estudo em Ez 47,1 e seu encerramento em Ez 47,12. No interior desta perícope,
contudo, seria possível detectar a presença de duas seções intimamente relacionadas:
v. 1-7 e v. 8-12. A primeira seção v. 1-7 desenvolver-se-ia em torno da temática do
pequeno filete de água que brota do limiar do Templo e paulatinamente cresce, de seu
ordenado monitoramento e seu entorno onde crescem muitas árvores.
A segunda seção (cf. v. 8-12) discorreria a respeito dos efeitos da presença
desta água ao longo de sua trajetória: cura, fartura ou permanência no estado anterior.
3.3.1 As seções
548:
3.3.1.1 A primeira seção: v. 1-7
549
Em esquema, a organização dos v. 1-7
A visão da fonte que sai do Templo
e seu entorno
tema movimento
1º momento: v. 1-2
o Templo, local para onde é levado o profeta
deslocamento do vidente e a origem da água espacial
2° momento: v. 3-5
aumento gradativo da profundidade aferição
3° momento: v. 6
548 Uma organização mais pormenorizada do texto foi sugerida por Nobile: v.1-2 o rio que desce
rumo ao oriente; v.3-5 crescimento paulatino do rio; v.7-12 instauração de uma nova situação
paradisíaca. Consideramos que a subdivisão imposta aos v.1-2; 3-5 não se faz necessária uma vez que
a temática é a mesma. Cf. NOBILE, M., “Ez 38-39 ed Ez 40-48: I due aspetti complementari del
culmine di uno schema cultuale di fundazione”, Antonianum 62 (1987) 141-171.
549 A divisão em duas seções está mais próxima a simetria encontrada na Bíblia Hebraica onde os dois
painéis possuem a mesma simetria, contendo o primeiro 100 palavras e o segundo 102. Tal identidade
de extensão não parece ser acidental, antes parece tratar-se de uma composição literária deliberada. Cf.
BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 690.
retorno do profeta para as margens do rio espacial
questionamento do anjo
4° momento: v. 7
contemplação das árvores nas margens do rio natural
A primeira seção apresenta o deslocamento do profeta para a entrada do
Templo,
erbos no
hiphil:
ynI
arquitetô
A trajetória da água (cf. v. 1) segue, primeiramente, pela fachada sul do
Templo,
que deu início ao v. 1a: verbo,
regido no
onde a água tem sua origem (cf. v. 1-2). Em seguida, surge o condutor do
profeta com seu instrumento de medição e a averiguação de sua crescente
profundidade das águas (cf. v. 3-5). Logo após, o profeta é deslocado para as margens
do rio, onde contempla as árvores que crescem em sua margem (cf. v. 6-7).
O primeiro momento (cf. v. 1-2) é marcado pelo emprego de v
beviy>w:, ynIaeciAYw:, ynIBesiy>w:. A idéia de deslocamento, que inicia a seção, demanda a
existência de uma pessoa que esteja em movimento ou um objeto que se desloca; no
texto de Ez 47,1a, o sufixo verbal de 1ª pessoa do singular indica que uma pessoa está
em movimento. O local destinado para o movimento é a entrada do Templo onde um
novo verbo indica que este deslocamento se destina a visão de um objeto concreto,
descrito através do substantivo masculino plural absoluto
~yIm;, “as águas”.
O local de origem destas águas é descrito por meio de uma linguagem
nica que recorre ao vocábulo
tx;T;mi “de baixo”, unindo duas partículas: !mi
“de” e
tx;T; “em baixo”550. A junção destas preposições confere uma maior precisão
ao local de origem das águas: o Templo, que, na estrutura da frase, é objeto do verbo
~yaic.y.
conduzida, na volta, pela porta norte em direção ao exterior da porta do
oriente. A expressão
~ydIr>yO ~yIM;h;w> remete à ação desempenhada pelas águas que, tendo
sua origem no Templo, iniciam seu deslocamento.
O v. 2a possui a mesma estrutura verbal
grau hiphil, com o sufixo de 1ª pessoa do singular, indicando que quem
550 Cf. ALLEN, L. C., Ezekiel 20-48. Word Books, Dallas, Texas, 1990, 273.
sofre a ação é o profeta; ele é levado a sair, acy, pelo caminho do portão norte. O v.
2b dá continuidade à estrutura apresentada nos demais verbos no grau hiphil e
encontra-se intimamente ligado ao verbo anterior
acy, possuindo função de descrever
aquilo que ocorreu após a saída do profeta pelo caminho do portão norte (cf. Ez 47,
2a); ele deve circundar o caminho externo até chegar ao portão de fora.
A forma
hn<APh;551, de 2c, encontra-se ligado ao substantivo que lhe antecede
e ao que
edir”,
empregad
:w: “e me fez atravessar”, no
hiphil, pr
ua que jorrou, a princípio timidamente, do limiar do
Templo,
lhe sucede, indicando a direção do caminho552. O substantivo @teK' do v. 2d
tem por função indicar o percurso das águas juntamente com o adjetivo
tynIm'y>.
No segundo momento (cf. v. 3-5), predomina o verbo ddm “m
o diversas vezes em Ez 40-47 para apresentar as medidas do Templo. O v.
3a introduz uma ruptura na cadência verbal no hiphil migrando para o Qal e esta
mudança se deve à alteração do personagem que exerce a ação verbal: o condutor do
profeta. Tais alterações, contudo, estão intimamente ligadas com os v. 1-2 tanto pelo
retorno ao personagem do anjo condutor do profeta (cf. v 1), quanto pela água que
brotava do limiar e que será agora objeto de medição
553.
No v. 3d há um retorno à construção verbal ynIrebi[]Y
esente nos v. 1-2.
A medição da ág
possui uma marca estilística hiperbólica que impõe índices de dificuldades
graduais ao profeta ao longo dos v. 3-4. Assim é que em 5b ele constata sua
551 Em sua forma Qal aparece quatro vezes na Bíblia Hebraica: em 2Cr 25,23, como substantivo, e as
demais em Ezequiel sempre como verbo Qal (cf. Ez 8,3; 11,1; 47,2).
552 A LXX e a Peshitta assimilaram a expressão ~ydIq' hn<Poh; tymiynIP.h; rcex'h, r[;v; de Ez 46,1. A “porta
exterior voltada para o leste”, da qual fala o Texto Massorético, aqui é o mesmo que se encontra
descrito em Ez 44,1, como
!Acyxih; vD'q.Mih; r[;v;, que deverá permanecer fechado e ninguém o cruzará,
pois por ele passará o Senhor Deus de Israel (cf. Ez 44,2). Portanto, esta seria a motivação para o guia
do profeta o fazer sair pela porta do norte e o transportar depois, por um desvio, pela entrada do leste.
Neste momento, o profeta vê que a água escorre do lado direito, do lado sul, pelo vale de Cedron. Cf.
BARTHÉLEMY, D., Critique Textuelle de l’Ancien Testament, 411.
553 O numeral @l,a, (mil) precede, normalmente, uma unidade de medida. Em algumas ocorrências,
adquire liames com sentido político-militar (cf. Ex 18,21; Nm 1,16; 31,4; Dt 1,15; 1Cr 13,1; 27,1; Am
5,3); em outras, o sentido de valor extremo como número de anos (cf. Ecl 6,6) ou aquilo que é
excessivo (cf. Mq 6,7; Ct 8,12). Assume valor figurado quando relacionado à Pessoa Divina e, neste
contexto, a idéia básica parece aludir àquilo que é “indefinível” ou “inumerável”, tal como a
misericórdia divina que abrange milhares (cf. Ex 20,6; 34,7; Dt 5,10; Jr 32,18), o número de gerações
que ela atinge (cf. Dt 7,9). No modo comparativo o numeral se presta como medida de tempo na
dimensão de Deus e dos homens (cf. Sl 90,4). No texto de Ez 47,3c, contudo, o adjetivo @l,a, (mil)
segue o valor básico do termo: um numeral, como se pode detectar pelo substantivo que lhe sucede.
incapacidade de transpor o rio caudaloso descrito nestes versículos. Esta verificação
será elucidada em 5c por meio da partícula yKi que, aqui, introduz uma oração
explicativa: as águas eram profundas.
A expressão
rm,aYOw: do v. 6a introduz um discurso em estilo direto, seu
destinatá
to em que um
profeta a
A presença da preposição
B. em 7a destoa da formulação verbal que até
agora vin
rio é uma pessoa concreta como se pode perceber pela presença da partícula
preposicional
yl;ae “para mim”, vinculando-se ao personagem do profeta do v. 1a. A
pergunta ligada à alocução
~d'a'-!b, t'yair'h] de 6b é, geralmente, um prelúdio para uma
comunicação divina (cf. Ez 8,12.15.17; 1Rs 20,13; 21,29; Jr 3,6)
554.
O verbo
har é freqüentemente usado para descrever o a
utêntico recebe oráculos da parte de Deus. No presente versículo, para
alguns autores, há uma interrupção no discurso de YHWH, imediatamente após este
prelúdio. Sua continuidade viria após uma nova declaração de condução em Ez 47,8,
com a repetição de
yl;ae rm,aYOw:. Todavia, sem outro prelúdio, traria justamente a
explicação que era de se esperar após os v. 1-5555. Esta quebra não interfere
profundamente na dinâmica da compreensão do discurso. O v. 6c retoma a mesma
estrutura verbal no hiphil do início do v. 1a. O estilo recapitulativo de 6d prepara para
o v. 7.
ha sendo utilizada e insere a noção de tempo, como se depreende pela
construção
ynIbeWvB.. A partícula B, antecedendo o verbo bwv, situa no tempo aquilo que
ocorre no momento em que o profeta estava retornando às margens do rio. Deste
modo, talvez, mais do que uma inábil inserção posterior ou uma construção
redundante
556, estaríamos diante de uma descrição daquilo que foi visto no exato
instante em que o profeta desloca-se em direção às margens do rio. A construção
ynIbeWvB. poderia, assim, ser compreendida como uma oração subordinada adverbial
554 Uma leitura com força exclamatória ao prefixo foi sugerida por Muraoka. Cf. JOÜON-
MURAOKA, A Grammar of Biblical Hebrew, § 161b. A maioria, porém, lê na forma interrogativa. Cf.
COOKE, G. A., Ezekiel. International Critical Commentary, 688; ZIMMERLI, W., Die Umwelt des
neuen Heiligtums, 1188.
555 Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1188; BLOCK, D. L., The Book of
Ezekiel, 693.
556 Cf. DRIVER, G.R., “Ezekiel: Liguistic and Textual Problems”, Biblica 35 (1954) 312.
temporal. O verbo bwv, também neste versículo, assume, mais uma vez, a conotação
de movimento em direção oposta ao que se vinha executando. O profeta, até então,
estava adentrando no rio; agora, retoma o caminho em direção às margens.
A construção
hNEhiw> de 7b tem por escopo preparar para a visão de algo
importante que se segue, no caso, as árvores que se encontram às margens do rio. O
presente versículo ao mesmo tempo em que conclui a primeira seção, prepara a
segunda, pois, nesta encontrar-se-á a elucidação dos eventos que predominaram na
primeira seção.
3.3.1.2 A segunda seção: v. 8-12
Com a descrição das árvores que cresciam às margens do rio, o v. 7 encerra
a primeira seção e, ao mesmo tempo, oferece o último elemento da cena. A partir do
v. 8, inicia uma nova seção que retomará os principais elementos da seção anterior e
os elucidará. No primeiro momento, a explanação atém-se à topografia do
deslocamento daquela água que brotou do Templo (cf. v.8abc); no segundo momento,
a seus efeitos terapêuticos (v. 8def-10); no terceiro momento, ao elenco dos
elementos excluídos desta cura (cf. v. 11); e, no quarto momento, à descrição da
função das árvores que margeiam o rio que nasceu do Templo (cf. v. 12).
Nesta seção, mesmo possuindo condições semânticas semelhantes àquela da
primeira seção, o termo “água” assumirá uma perspectiva de cunho topográfico-
terapêutico além de ser enquadrada em uma expectativa escatológica.
Em esquema, a organização dos v. 8-12
Deslocamento e conseqüências produzidas
pelas águas que saíram do Templo
momento: v. 8abc topográfico
deslocamento das águas e sua orientação
2° momento: v. 8def-10 primeiro efeito terapêutico da água
elenco das conseqüências de cunho
curativo e de abundância das águas
que saíram do Templo
3° momento: v. 11 elementos em exclusão
elementos excluídos dos efeitos
curativos das águas que saíram do Templo
4° momento: v. 12 segundo efeito terapêutico da água
árvores com frutos abundantes;
função curativa dos frutos e das folhas.
A alocução
yl;ae rm,aYOw:
do v. 8a retoma o discurso do condutor do profeta de
6b, exercendo função de ligadura entre os duas seções. A repetição desta alocução
tem por objetivo direcionar a atenção, em sua primeira ocorrência, para a
contemplação das árvores (cf. v. 7), aqui, para os efeitos terapêuticos que marcarão os
versículos subseqüentes. Esta mesma alocução indica que o profeta do v. 1a é o
destinatário desta interpretação modelada sobre elementos essencialmente
geográficos, cujo objetivo último é descrever as conseqüências do itinerário das águas
que desciam de baixo do lado direito do Templo do v. 1c.
A forma verbal
Wab'W do v. 8d encontra-se intimamente ligada ao sujeito ~yIM:h;
de 8b e a finalidade deste movimento verbal é apresentada pela construção ~yIM:h; onde
o
h final possui função direcional. Contudo, somente em 8e se conhece a função do
rio que brotou do Templo: curar as águas do mar.
O v. 8 está articulado sobre quatro expressões que indicam a direção da água.
Primeiro, a água segue em direção ao leste
hn"Amd>Q;h; hl'yliG>h;-la,; segundo, a torrente
desce até a estepe
hb'r"[]h'-l[;; terceiro, ela chega até o mar hM'Y"h;-la,; e, por fim, ao
atingir o mar, cura suas águas ~yaic'WMh; hM'Y"h;-la,.
O modelo de articulação sobre a repetição de expressões ocorre também no
v. 9, quando a partícula
lKo enfatiza a magnitude da cura operada pelas águas ao
atingirem o mar (v. 8f). A oração causal de 9e não deixa dúvidas sobre a fonte da
cura. A chegada da água que brotou do Templo reaviva o mar, o que resulta na
multiplicação dos peixes e na cura de todo ser vivente. Além de encontrar-se
articulado sobre repetições de expressões, o v. 9 retoma o recurso estilístico
hiperbólico do v. 4.
O estilo prolixo do v. 9 parece desejar promover uma breve recapitulação,
percebida nos v. 6-7, com a finalidade de preparar o versículo subseqüente que
concretiza a imagem proporcionada pelo v. 9. Assim é que tudo ao redor do mar, de
uma extremidade a outra ressalta e ratifica a totalidade da cura das águas que produz
uma enorme fecundação das espécies. Será por causa desta extraordinária
fecundidade que os pescadores se reunirão para espalhar as suas redes (v. 10bcd).
O terceiro momento desta seção dá continuidade à interpretação do
deslocamento das águas, mas, agora, em via negativa, pois será negada,
aparentemente, tanto aos pântanos quanto aos alagadiços, a restauração da vida que,
até o v. 10, era a tônica do efeito da passagem do rio formado pelas águas que sairam
do Templo.
A temática de encerramento do v. 12 é semelhante àquela do v. 7. Lá,
contudo, tivemos a visão das árvores e aqui, a interpretação de sua função na cena:
ela possui abundância de crescimento, encontra-se em ambas as margens do rio e
sortidas de “toda a espécie”. Há aqui um paralelo com a abundância descrita no v. 10
quando este alude à profusão de peixes que existirá no rio. O extraordinário fato das
folhas das árvores não murcharem e seus frutos não serem sazonais não é mérito da
árvore como indica a oração causal de 12d, sua abundância frutífera se deve, aqui e
no v. 10, ao local de sua origem das águas : o templo.
3.4 Ez 47, 1-12: Aspectos semânticos
A análise do texto de Ez 47,1-12 indicou a existência de duas seções
intimamente relacionadas. A primeira delas (cf. v. 1-7) é centrada na origem da água
que sai do Templo (cf. v. 1-2), seguida pela aferição do crescimento paulatino de sua
profundidade (cf. v. 3-5); a segunda é a percepção das árvores que crescem em ambas
as margens do rio (cf. v. 6-7)
557.
3.4.1 Primeira seção: v. 1-7
a) Primeiro momento: águas brotam do limiar do Templo (v. 1-2)
Os v. 1-2 delineiam os primeiros movimentos do profeta nesta nova cena. O
personagem que conduz o profeta é o “anjo-guia”, cuja missão é gerir a peregrinação
visionária do profeta pelo Templo (cf. Ez 40,3)
558.
O primeiro movimento desta cena é o deslocamento do vidente até a frente
do Templo. Embora o verbo
bwv, no Antigo Testamento, habitualmente seja usado em
perspectiva teológica para indicar a conversão, seu sentido original reside no âmbito
557 Embora não seja o escopo de nosso trabalho, apresentaremos, de modo sucinto, a questão
concernente à datação de Ez 47,1-12. Esta pode ser compendiada em quatro linhas de trabalho: a) o
livro teria sido totalmente redigido pelo profeta Ezequiel antes do exílio babilonense. Cf. HÖLSCHER,
G., Hesekiel der Dichter und das Buch. Giessen, A. Töpelmann, 1924; HOWIE, C. G., The Date and
Composition of Ezekiel, Journal of Biblical Literature Monograph Series, IV. Philadelphia, Society of
Biblical Literature, 1950.
b) em uma linha oposta, encontra-se C. C. Torrey que, apesar de concordar com a tese de um escrito
confeccionado em uma única etapa redacional, discorda quanto à autoria, segundo este autor, o livro de
Ezequiel seria uma obra pseudoepígrafa. Um segundo ponto de discordância estaria relacionado com o
período de elaboração da obra, esta poderia ser datada em torno do ano 230 a.C. Cf. TORREY, C. C.
“Certainly Pseudo-Ezekiel”, JBL 53 (I934) 291-320; BROWNLEE. W. H., “Ezekiel”, The
International Standard Bible Encyclopedia. Hardcover, Hendrickson Publishers, 1994, 251.
c) em um modelo mais moderado, encontramos Zimmerli. Segundo este autor, o texto ezequieliano
teria recebido várias adições, sendo concluído após o exílio. Cf. ZIMMERLI, W., Ezekiel I.
Philadelphia, Fortress Press, 1969, 39.
d) atualmente, se trabalha com a hipótese de adições posteriores e revisões feitas por discípulos do
profeta. Cf. BLOCK, D. The Book of Ezekiel: Chapters 1-24. Eerdmans Publishing Company, 1997.
Uma datação possível para os c. 40-48 foi proposta por recentemente por Nobile a partir de dois
elementos: a expressão “vigésimo quinto ano” (cf. Ez 40,1) e a presença do estilo apocalíptico nos
capítulos 40-48. Estes indícios, segundo o autor, permitiriam situar a feitura destes capítulos em um
período de 50 anos após o exílio do rei Joaquim. Cf. NOBILE, M., “ La redazione finale di Ezechiele
in rapporto allo schema tripartito”, Liber Annus 56 (2006) 29-46; “Ez 37,1-14 come costitutivo di uno
schema cultuale”, Biblica 65 (1984) 476-489; “«Nell'anno trentesimo» (Ez 1,1)”, Anton 59 (1984)
393-402.
558 A opção por um intérprete angélico já foi justificada na filologia de Ez 47,1 do presente trabalho.
do movimento559. Contudo, esta ação verbal não especifica o tipo de movimento,
visto que ele tanto pode indicar um retorno até o ponto de partida, quanto uma
mudança de direção em sentido contrário ao que se vinha efetuando, sem
necessariamente voltar ao início
560. A função reiterativa presente nesta raiz verbal
poderia testemunhar em favor de denotar o
bwv, basicamente, como um movimento
em direção oposta ao que se vinha executando, mais precisamente, o sentido de
retorno ao princípio
561.
Considerando a ação efetuada neste versículo, não há indícios que possam
relacionar o verbo
bwv ao emprego religioso que tem Deus como motivador e
destinatário do movimento de retorno do homem. Antes, a ação proporciona uma
distinção daquela ação que anteriormente havia sido descrita, quando o profeta
encontrava-se na cozinha do Templo
562 e agora é deslocado para uma nova direção:
a fachada do Templo onde vê um pequeno fluxo de água que brota do seu limiar.
Deste modo, o verbo
bwv estaria indicando uma mudança de direção em sentido
contrário ao que o profeta vinha efetuando anteriormente.
Este reconduzir exercido sobre o profeta pelo anjo-guia tem por meta a
entrada do Templo. O termo
tyIB; possui centralidade nesta seção (v.1-7), uma vez que
toda a cena se desenvolve a partir do “Templo”563.
559 O verbo bWv pode ser encontrado tanto no sentido de movimento físico ou de retorno a um estado,
uma situação ou personagem, como no teológico, onde a idéia de movimento expressa uma relação
religiosa. Cf. VETTER, D.,
hNEhi”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 1113;
HOLLADAY W. L., The Root Sûbh, 7-9.
560 Cf. HOLLADAY W. L., The Root Sûbh, 53. O que determinará o emprego do bwv como
movimento de retorno de ou de aproximação volta para será o recurso às diferentes preposições ou
com a terminação diretiva h, assimilando a conotação voltar para ou ainda com o
!mi retornar de.
561 As implicações teológicas contidas nesta perspectiva são significativas, pois implicam em
considerar a conversão como um retorno a uma antiga relação ou um princípio totalmente novo na
relação do homem com YHWH. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-
Português, 661; Cf. HOLLADAY W. L., The Root Sûbh, 53.
562 Há aqui uma discordância entre Zimmerli e Block a respeito da ordem original dos textos.
Segundo Zimmerli, Ez 47,1-12 deveria ser localizado imediatamente após Ez 44,1-2 resultando em um
deslocamento do ponto de origem que passaria a ser o portão leste exterior. Na concepção de Block, a
última notícia sobre o profeta encontra-se em Ez 26, 21-24 e o situa junto aos fornos da cozinha do
Templo, de onde é levado para a frente do Templo. Entendemos que a visão de Block apresenta-se
como mais lógica, tendo em vista que a proposta de uma alteração na estrutura do livro carece de
elementos sólidos. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1190; BLOCK, D. L., The
Book of Ezekiel, 691. A linha de pensamento de Block é compartilhada por Allen. Cf. ALLEN, L. C.,
Ezekiel 20-48, 279.
563 A lexicografia deste termo é ampla e apresenta vínculos estreitos com seu ambiente cultural. No
Antigo Testamento esta expressão assume diversos níveis semânticos, podendo ser uma residência de
Além da função de descrever um local de moradia ou a residência real, o
termo tyIB; pode estar ainda relacionado ao Templo, assumindo assim as seguintes
características: é um edifício construído para acolher a divindade e seus ministros e,
por via de regra, encontra-se designado como
~yhil{a/h'-tyBe (cf. Ex 23,19; 34,26; Dn
1,2). Esta particularidade da expressão
~yhil{a/h'-tyBe, na qual o nome de Deus antecede
a palavra
tyIB;, exprime, de modo mais preciso, o significado de “Templo” enquanto
lugar onde habita o Nome, segundo a visão deuteronomista (cf. 1Rs 8,13.43)
564.
Mas, ao contrário da habitação de uma família em que o edifício contém aqueles que
nele habitam, o templo não pode conter a Deus (cf. 1Rs 8,27). Ele é o recinto onde o
homem eleva a Deus suas preces e com Ele se relaciona (cf. 1Rs 8,33). Deus está
presente nesta casa de modo particular, mas escuta a oração do alto do céu, o lugar de
inverno (cf. Jr 36,22; Am 3,15) ou a sala de banquete (cf. Est 7,8); um quartel general ou a casa dos
escravos (cf. Dt 5,6; 6,12; 7,8; 8,14; Ex 20,2). A morada dos mortos era considerada uma casa (cf. Jó
17,13; 30,23), designada como a casa eterna (cf. Sl 49,12; Ecl 12,5). Em outro campo semântico
encontramos o vocábulo “casa” vinculado ao significado de pater familias. Neste conceito estão
incluídos a esposa, os filhos, quer próprios quer adotados, os parentes que dele dependem e seus
escravos (cf. Gn 15,2; 14,14; Ex 20,10). Desta dependência decorre a solidariedade entre o homem e
sua casa tanto nas celebrações litúrgicas como nas faltas cometidas contra Deus (cf. Dt 12,17; 14,26;
15,20; Js 2, 12; 6,22; 7,1-15; Gn 7,1; 1Rs 17,15).
O material usado para a fabricação de uma casa não atinge seu conceito, sua confecção pode ser de
madeira (cf. 1Rs 5,22) ou de pedra (cf. 1Rs 6,7; 7,9; Hb 2,11; Sl 118,22). Se, contudo, sua construção
não estiver sob a bênção de Deus, tornar-se-á inútil a sua edificação (cf. Sl 127,1). Quando se trata de
um palácio, o habitante principal é o rei e, por isso, chamava-se
%l,M,h; tyBe-ta,w> “casa do rei” (cf. Gn
12,15; Jr 39,8). Mas se o termo aborda uma referência a um antepassado que ocupa o trono, ele
encontra-se relacionado com a dinastia de Saul (cf. 2Sm 3,1.6.8.10; 9,1-3; 16,5.8; 19,18; ), de Davi (cf.
1Sm 20,16; 1Rs 12,16; 13,2); de Acab (cf. 2Rs 8,18.27). Por fim, pode estar relacionado a algum
pertence da casa, um patrimônio, um instrumento, um servo ou um animal.
O termo “casa” no universo extra-bíblico: no Egito pode indicar uma construção, a parte dela, como
também um recipiente, mas quando vinculada a casa do rei assumia a conotação de “casa por
excelência”. Em outros significados pode dizer o templo, neste caso, auxiliado por um genitivo a fim
de indicar a divindade que nele habita, pode ainda indicar a morada dos mortos. Na Mesopotâmia, a
palavra “casa” está cercada de diversas conotações que perpassam quase o mesmo conteúdo semântico
daquele encontrado no Egito: casa, habitação, templo, palácio, bem, campo ou ainda o ato de governar
a família, governar a casa ou uma propriedade. Entre os hititas, o vocábulo “casa” está vinculado a
qualquer construção sobre um terreno. No ugarítico, abrange tanto a descrição da casa da divindade, o
templo, o santuário, como a casa do rei, o palácio ou ainda o depósito de carros de guerra. Na Grécia
antiga a expressão “casa”pode ser entendida como : casa, habitação, caverna, templo, palácio, tumba,
sala do tesouro, casa do tesouro, bens, família, economia doméstica. Cf. HOFFNER, H. A., “
tyIB;
Grande Lessico dell’ Antico Testamento, vol. I, 1277-1278, 1283,1289, 1293.
564 WEINFELD, M., Deuteronomy and the Deuteronomic School, Oxford, Clarendon Press, 1972,
175-178.
sua habitação por excelência (cf. 1Rs 8,30.32.34.39.43-49). O termo tyb indica ainda
o centro religioso construído em Jerusalém
565.
Em Isaías, o templo é designado como casa de oração (cf. Is 56,7) e sua
sacralidade, diferentemente da concepção deuteronomista, deriva do fato de Deus
habitar nele. Por esta razão, para sua casa o povo se dirige com vítimas de sacrifício
(cf. Sl 66,13), para ela se caminha em procissões (cf. Sl 42,5; 55,15), nela se
pronuncia a fórmula de bênção (cf. Sl 118,26) e, somente nela, o homem se sacia de
bens (cf. Sl 65,5). Todavia, o acesso ao templo é fruto da misericórdia de Deus (cf. Sl
5,8). A dignidade desta casa e o amor a ela dedicado decorrem da habitação divina e
esta levará o homem a desejar nela habitar para contemplá-lo (cf. Sl 23,6; 27,4) e
considerar ditosos aqueles que nela habitam (cf. Sl 84,5). O modo pelo qual o homem
pode alcançar esta habitação, já neste mundo, reside na prática da justiça. Deste
modo, ele poderá ser comparado às árvores verdejantes na casa de YHWH (cf. Sl
52,10; 92,14). O templo em si mesmo não é uma garantia da ajuda de Deus. Ele, além
de ser sempre a visibilidade de Deus para o povo, a fim de que este viva segundo a
vontade de YHWH, será um sinal permanente de sua presença e de sua bondade (cf.
Jr 7,7).
Na profecia de Ezequiel, o substantivo
tyIB; adquire ainda outras conotações:
yrIm. tyBe “casa da rebelião” (cf. Ez 2,5-8; 3,9.26s) ou laer'f.yI tyBe “casa de Israel” (cf.
Ez 2,3; 3,1.4.5.7)
566. Contudo, Ez 47,1 não assimila estas implicações semânticas
propostas em outros momentos da leitura deste livro profético. Antes, assume a
conotação de Templo enquanto lugar onde habita a glória de Deus, o local por
excelência, onde o homem pode com Ele se relacionar e apresentar orações e
súplicas, honrar o Nome e adorá-Lo. A LXX assume a vasta lexicografia da palavra
tyIB; ao traduzí-la por oi=koj, mas não lhe acrescenta nuances semânticas relevantes,
565 Cf. MEYERS, C., “Temple, Jerusalem”, The Anchor Bible Dictionary. Hardcover, Bantam
Doubleday Dell Publishing Group, 1992, 351.
566 A incidência da expressão laer'f.yI tyBe é bastante elevada: são encontradas 182 ocorrências do
termo no livro de Ezequiel, quase sempre para indicar o povo de Israel.
mantendo a mesma linha semântica567. Conseqüentemente como no hebraico, o
termo oi=koj pode indicar o “Templo”.
Estando o profeta diante da fachada do Templo, contempla a finalidade de
seu deslocamento: a visão de um pequeno fluxo de água que brota por debaixo do
limiar do Templo. O caráter de deslocamento pode ser, de igual modo, identificado na
LXX, quando recorre ao termo pro,quron antecedido pela preposição evpi,, a fim de
indicar a direção que o anjo-condutor fez o profeta tomar: para a frente do Templo.
O recurso a uma linguagem arquitetônica situa, de modo preciso, o local que
dá origem à água: um pedaço de pedra na base da soleira de entrada
568, bem visível
ao olhar de quem se encontra no frontispício do Templo. O destino deste pequeno
fluxo é o portão situado ao leste. Seu itinerário, não obstante, possui alguns percalços,
pois, no meio de seu deslocamento, encontrava-se o altar do Templo que o obrigava
ao desvio (cf. Ez 40,47), primeiro para debaixo do altar no lado direito e depois ao
longo da parede sul do templo, para então cruzar a corte interna em um curso para o
sul do altar
569.
Apesar de o local de onde eclode a água, vista pelo profeta, ter sido
precisado com exatidão no texto – debaixo do limiar do Templo – a origem desta
fonte vem sendo muito discutida. As opiniões se dividem em: uma fonte natural
570,
567 Cf. MICHEL, O.,oi=koj”, GLNT, vol. V, 341-342.
568 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 395.
569 O altar, enquanto centro do Santuário, é o lugar da sacralidade por excelência, sendo assim, nada
de impuro poderá permanecer diante dele, nem a pessoa desabilitada à prática do culto poderá dele
aproximar-se, mesmo se esta fosse o próprio rei. Cf. DOHMEN, C., “
x;Bez>mi”, GLAT, vol. IV, 1087.
O altar pode também ser entendido como o lugar onde ocorre o contato entre o humano e o divino. Cf.
HAAK, R., “altar”, The Anchor Bible Dictionary, vol 1, 162-166.
570 A apócrifa Carta de Aristeas a Filócrates descreve uma fonte natural que abastece o templo de
Jerusalém com água em abundância. Cf. DIEZ MACHO, A., Apócrifos del Antiguo Testamento II,
Madrid, Cristiandad, 1983, 89. Para aprofundar o tema ver: BARCLAY, J. M. G., Diaspora Judaism,
In COHN-SHERBOK, D. & COURT, J. M., (eds.). Religious Diversity in the Graeco-Roman World. A
Survey of Recent Scholarship. New York, Sheffield Academic Press, 2001, 47-64; Jews in the
Mediterranean Diaspora from Alexander to Trajan. Edinburgh, T&T Clark. 1996; CHEVITARESE,
A. L., Interações Culturais entre Gregos e Judeus nos Períodos Arcaico, Clássico e Helenístico. In
CHEVITARESE, A. L., ARGÔLO, P. F. & RIBEIRO, R. S., (orgs.). Sociedade e Religião na
Antiguidade Oriental. Rio de Janeiro, Fábrica de Livros – SENAI, 2000, 112-29. COLLINS, J. J., Cult
and Culture: The Limits os Hellenization in Judea. In COLLINS, J. J. & STERLING, G. E. (eds.),
Hellenism in the Land of Israel. Notre Dame, Indiana, University of Notre Dame Press, 2001, 38-61.
Esta fonte perene de água foi testemunhada, de igual modo, pelo historiador romano Tácito em sua
obra Histórias 5. De Tácito, em português, há apenas uma tradução de Adolfo Casais Monteiro da obra
Germânia. Cf. TÁCITO, A Germânia. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa, Inquérito, 1941.
A obra História de Tácitos pode ser encontrada na Internet. Cf.
imaginária571, oriunda do vale do Kidron572, discursos mitológicos573. Outros
vêem liames textuais com o Sl 46
574 e Gn 2,10-14575, Is 8,6-7; 33,20-24576 ou
então alusão a imagens politeístas
577 ou à retomada do templo pré-exílico578, além
de uma sentença contra o povo
579.
http://classics.mit.edu/Tacitus/histories.html. Neste endereço há indicações de versões publicadas em
outros idiomas.
John B. Taylor entende que as tradições sobre uma fonte natural que abastecia o Templo de Jerusalém
seriam inverossímeis. A cena estaria mais próxima de uma idealização das bênçãos abundantes de
Deus. Cf. TAYLOR, J. B., Ezekiel. Westmont-Califórnia, Intervarsity Press, 1981, 249.
571 As informações da Carta de Aristea e do historiador Tácitos foram consideradas por Simons como
“imaginárias” e teriam em seu substrato textos do Antigo Testamento como o de Ez 47. Na opinião de
Simons, a água que abastece Jerusalém procede da fonte de Gihon, situada no vale do Kidron. Cf.
SIMONS, J. J., Jerusalem in the Old Testament. Leiden, E. J. Brill Smith 1952, 48.
572 Para Zimmerli a fonte que nutre a cidade de Jerusalém e seu templo deve ser encontrada nos
diversos aquedutos e, sobretudo, no túnel de Siloé construído por Ezequias, situado aos pés do monte
da cidade e do templo no vale do Kidron, a chamada fonte de Gihon. Cf. ZIMMERLI, W., Die Umwelt
des neuen Heiligtums, 1192. Zwickel compartilha a mesma opinião, acrescentando a penas que não se
pode duvidar do fato que o Gihon seja o rio que é o rio que abastece a cidade de Jerusalém. Cf.
ZWICKEL, W.,
Die Tempelquelle Ez 47 - Eine traditionsgeschichtliche Untersuchung, EvTh 55
(
1995), 140-154 (149).
573 Cf. GUNKEL, H. Das Märchen im Alten Testament. Tübingen-Mohr, 1921, 42-50; AHUIS,
A.,“Das Märchen im Alten Testament”, ZTK 86 (1989) 464-470. GRAF, A., Miti, leggende e
superstizioni del Medio Evo, Milão, Mondadori, 1996.
http://www.classicitaliani.it/ottocent/graf_miti03.htm.
Zwickel discorda de Gunkel quanto a presença de uma influência mitológica no texto de Ez 47,1.
segundo este autor, a alusão ao rio “trata-se de uma descrição da realidade natural de Jerusalém, mas
não de um rio mitológico. Cf. ZWICKEL, W., Die Tempelquelle Ez 47 - Eine
traditionsgeschichtliche Untersuchung, 149.
574 Estes liames textuais indicam que, já em tempos remotos se falava de “águas”. O rh'n" possui uma
função bastante determinada: alegrar com suas
wyg"l'P. a cidade de Deus, mais especificamente
santificando as moradas do Altíssimo
!Ayl.[, ynEK.v.mi. que alegravam a cidade de Deus (cf. Sl 65,10; Is
33,21) e cuja origem era a montanha de Deus, ou seja, o próprio Deus.
575 A conexão com Gn 2,10-14 encontra-se na descrição do paraíso como o lugar de origem dos
quatro grandes rios que irrigam toda a terra:
!AvyPi, Pison (cf. Eclo 45,23), !AxyGI Geon, lq,D,xi Tigre, tr'P.
Eufrates. A conexão poderia ser detectada no contexto da cena que apresenta o paraíso como o lugar
da morada de Deus, o lugar da fertilidade, da riqueza, o jardim plantado pelo próprio Deus e a fonte da
esperança.Cf.
DARR, K. P., “The Wall Around Paradise: Ezekielian Ideas about the Future”, VT 37
(187) 271-279; HALS, R., Ezekiel,
Michigan/Cambridge, Eerdmans, 1989; TUELL, S., The Rivers of
Paradise: Ezekiel 47:1-12. In
BROWN, W. P., and McBRIDE, D. Jr., God Who Creates Essays in
Honor of W. Sibley Towner. Michigan/Cambridge, Eerdmans, 2000. O tema de Sião como o lugar da
morada de Deus pode ser aprofundado em TUELL, S., “Ezekiel 40-42 as Verbal Icon”, CBQ 58 (1996)
649-664; “The Temple Vision of Ezekiel 40-48: A Program for Restoration?”, PEGLBS 2 (1982) 96-
103.
576 Cf. VAWTER, B.; HOPPE, L. J., A New Heart. A Commentary on the Book of Ezekiel. Edinburgh,
Eerdmans, 1991, 207 e TAYLOR, J. B., Ezekiel, 250; McKEATING, H., Ezekiel. Sheffield, Sheffield
Academic Press, 1995, 102.
577 Alguns autores entendem que a imagem de um rio que procede da morada dos deuses pode ter
contribuído para a formação do texto de Ez 47,1-12. A noção contida no termo “rio” seria aquela de
uma força devastadora a qual Deus recorreria para punir o seu povo. Cf. GRAY, J., “The Kingship of
God in the Prophets and Psalms,” VT 11 (1961)1-29; SCHMID, H. H. “Jahwe und die Kulttradition
von Jerusalem” ZAW 67 (1955) 168-197. 191-192; JOHNSON, A.R. Sacral Kingship in Ancient
A existência de fontes de água disponíveis nesta área constitui, de fato, um
problema de registro desde tempos mais remotos. Davi entrou em sua cidade pelo
“canal de água” (cf. 2Sm 5,8) e Salomão foi ungido rei à fonte Gihon (cf. 1Rs 1,38),
que Ezequias conectou através de um túnel à piscina de Siloé (2Rs 20,20). Menciona-
se uma fonte no monte de Templo em um documento encontrado na área do templo: a
carta de Aristeas. Outras fontes e reservatórios na área podem ter sido cobertos por
terremotos ou destruídos
580.
A despeito de toda a narrativa arquitetônica, o escopo desta parece ser
aquele de lembrar o itinerário que YHWH percorreu ao retornar ao Templo (cf. Ez
43,1-5). Esta reconstrução do caminho de YHWH teria como meta mostrar que a
água flui exatamente da presença de Deus. A água fluía do limiar do santuário, de seu
lado oriental e então para o sudoeste do altar no lado sul e daí para o lado sul do
portão oriental (v.2)
581. Deste ponto, torna-se um fluxo que flui, no princípio, no
vale do Kidron ficando ao sul, continuando a passar pelo vale do Hinnom e então
tomando o rumo sudoeste
582. A motivação para o desvio imposto à água neste
versículo deve ser procurada em Ez 40,47, quando o altar é fixado “diante do
Israel. Cardiff, University of Wales Press, 1955; ISHIDA, T., The Royal Dynasties in Ancient Israel: A
Study on the Formation. Jerusalém, Walter de Gruyter,
1977.
578 Segundo Zwickel, Ezequiel teria feito algumas modificações conscientes e reinterpretações em sua
visão do templo em comparação com o templo pré-exílico e seu mar de bronze, cuja finalidade seria
aquela de assegurar, aos visitantes de Jerusalém, que YHWH é o doador das águas e, por conseguinte,
da fertilidade e da cura. Cf. ZWICKEL, W.,
Die Tempelquelle Ez 47 - Eine traditionsgeschichtliche
Untersuchung, 154.
579 Por causa da descrença do povo e de seu rei Acaz (cf. Is 8,6-7), no período da guerra da Assíria e
Efraim em 733 aC, o povo havia desprezado a Deus, representado metaforicamente pelas águas que
corriam brandamente da montanha, e clamado, juntamente com o rei Acaz, por ajuda a um rei
estrangeiro que, por fim, é o executante do juízo de Deus contra seu povo. A imagem do pouco, da
fragilidade, se mostrará como Aquele que comanda inclusive as grandes águas do Eufrates.
580 Cf. RITMEYER, L., “Locating the Original Temple Mount”, BAR 18 (1992) 34-36; GIBSON, S.;
JACOBSON,
D. M. “The Oldest Datable Chambers on the Temple Mount in JerusalemThe Biblical
Archaeologist
, 57 (1994), 150-160; ADNA, J., “Jerusalemer Tempel und Tempelmarkt im 1.
Jahrhundert N”, The Jewish Quarterly Review, 91 (2001), 507-511 (resenha). Ver também COOKE,
The Book of Ezekiel. Edinburgh, T&T Clark, 1986, 517-518. RITMEYER, L., The Temple and the
Rock, Ritmeyer Archaeological Design, Harrogate, England, 1996. L. Ritmeyer The Quest - revealing
the Temple Mount in Jerusalem, Jerusalem, 2006. L. & K. Ritmeyer Secrets of Jerusalem’s Temple
Mount, Updated & Enlarged Edition, Washington DC, 2006.
581 Cf. FISCH, S., Ezekiel: Hebrew Text & English translation with an Introduction and
Commentary. London, The Soncino Press, 1950, 323.
582 Na opinião de Cooper, esta descrição do fluxo da água possui semelhanças com a geografia e a
topologia que podem ser encontradas na cidade de Jerusalém e em seus arredores até hoje. As
mudanças geográficas propostas pelo texto de Ez 47 implicaria que a água seguiria a topografia do
terreno alterado no lado oriental da cidade velha. Cf. COOPER, L. E., Ezekiel. The New American
Commentary. Broadman & Holman Publishers, 1994
7
, 142.
Templo”. Por esta razão, em lugar de correr através do átrio rumo ao oriente e à porta
oriental, ela segue, primeiramente, à fachada sul do Templo.
Embora o texto tenha recorrido ao termo
bg<n< “Negev” para indicar a
orientação tomada pela água, ele sinaliza o ponto cardeal sul, enquanto que nos c. 40-
42, na descrição da construção do templo, o termo usado era
~ArD'583.
Esta discussão, de cunho topográfico, resume-se, basicamente, em duas
linhas. Na primeira delas, o fluxo de água do monte do templo segue os contornos
naturais da terra, fluindo do Vale do Kidron, a sudoeste do ponto de interseção e
finalmente viraria para o leste. Neste ponto fluiria pelo Wadi en-nar e finalmente
viraria para o leste. O percurso seria o mesmo daquele de um viajante de Jerusalém
para Jericó. Mudanças físicas na área próxima ao portão oriental do Monte do
Templo, no vale do Kidron e no Monte das Oliveiras, foram sugeridas em outros
textos da profecia de Ezequiel (cf. Ez 34,26-30; 36,8-12.30-36; 37,25-28).
A segunda linha está baseada em mudanças geográficas dramáticas que
poderiam ser conseqüência de uma divisão no Monte das Oliveiras como descrita em
Zc 14,4, onde a água fluiria sem obstruções para o Mar Morto
584. Outros textos
também recorrem a uma alteração física desta área associada aos últimos dias da
história e do julgamento final (cf; Zc 13,1; Jl 3,18).
Parece-nos, contudo, que o fato mais significativo não está na discussão do
percurso geográfico-topológico da água e sim no local que dá origem à fonte de
água
585 da qual deriva o rio: o limiar do santuário, apresentando Deus como a fonte
de vida. O paradoxo repousa na imagem, ao que parece intencional no texto, de um
tênue fluxo de água que parte do lugar da presença de YHWH, conforme indica o
583 Em contrapartida Ez 21,2 possui três designações para o sul: bg<n<), hn"m'yTe, ~Ar+D"-la,.
Existem ainda outras formas para compreender o termo “Negev”: seca, estéril, aridez.
Na História de Israel o Negeve, entendido como o deserto, converte-se em região estrategicamente
importante para a defesa do território de Israel. Cf. BEIT-ARIEH, I., “Negeb”, The Anchor Bible
Dictionary, Vol. 4, 1992, 1064.
584 Zimmerli não responde à pergunta se a água flui por uma rota mais direta ou então pela divisão
sugerida por Zc 14,4-8 ou se segue os contornos naturais presentes da terra. Mas insinua que a idéia de
um fluxo direto por uma “divisão milagrosa” no Monte das Oliveiras seria o que Ezequiel teria
descrito em sua visão. Cf. ZIMMERLI, W., Ezekiel 2, 513.
585 Farmer, observa que o termo “água” aparece 14 vezes nesta perícope o que poderia indicar um
recurso simbólico. Seria a plenitude multiplicada por dois. Cf. FARMER W. R., Comentário Bíblico
Internacional. Navarra, Verbo Divino, 2000
2
, 988.
recurso ao particípio, que sugere um fluxo contínuo denotando o ato de fluir, escorrer,
pingar através de um pequeno recipiente. O intento do autor sagrado, provavelmente,
seria enfatizar a dimensão modesta da torrente, não maior do que o fluxo de água que
escorre de uma pequena garrafa
586. Provavelmente a finalidade de mostrar algo tão
frágil esteja em contraposição à imagem suntuosa da presença da glória do Senhor em
seu Templo (cf. Ez 43,5), que é agora substituída por um tênue riacho que brota do
limiar do Templo (cf. Ez 46,2).
Novamente, a figura do condutor exerce uma ação sobre o profeta, que
agora é conduzido para diante do templo (cf. v.2a). O verbo
acy, “sair”, denota a ação
de sair de um local onde anteriormente o personagem estava presente e agora se
coloca a caminho
587. Conforme ocorreu com o verbo bwv, o verbo acy não possui,
nesta perícope, liames semânticos com a libertação de Israel das terras do Egito (cf.
Ex 21,2-11) ou com uma conotação de origem ou de nascimento
588. Neste momento,
o verbo indica que é imputado ao profeta deslocar-se em direção ao lado exterior do
portão leste, passando, porém, pelo caminho do portão norte. Este deslocamento mais
longo seria conseqüência do bloqueio ao tráfego humano (cf. Ez 44,1-2). Do lado de
fora do portão, é possível observar a água que pinga por debaixo da parede do lado
sul da estrutura do portão. À semelhança do v.1c, o profeta vê a água que brota do
lado sul, em relação a parte exterior da porta do oriente
589.
A estrutura do v. 2b foi preservada na LXX. Esta, ao traduzir o termo %r,D,
para o`do,j, manteve o seu sentido primário de “caminho”, enquanto deslocamento
espacial-geográfico
590 ou a direção de um determinado movimento. A presença do
verbo peria,gw na 3ª pessoa do singular permite atribuir a ação deste deslocamento ao
586 A fórmula ~yKip;m. é um hápax onomatopaico único na Bíblia Hebraica A pronúncia de ~yKip;m.
estaria próxima de
qbqb “garrafa” ou %p “cântaro”.Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel: chapters
25-48, 691, ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1187.
587 Cf. PREUSS, H. D., “acy”, GLAT, vol. III, 931.
588 Cf. Ibid, 932.
589 Jean Steinmann considera que a água que sai do Templo dirige-se primeiramente ao vale do
Cedron e, em seguida, toma a direção sul. Cf. STEINMANN, J., Ézéchiel. Paris, Desclée de Brouwer,
1961, 135.
590 Cf. MICHAELIS, W., “o`do,j”, GLNT vol. V, 138-140; SAUER, G., “%r,D, Diccionario Teológico
Manual Del Antiguo Testamento, vol. I, 647.
anjo condutor do profeta. É ele que faz com que o profeta encaminhe-se para um
novo local: a porta situada ao norte.
O substantivo
~yIm; possui um sentido profundo em Israel, visto que ele está
primariamente entendido como a base de toda a vida
591; é a água que possibilita a
fertilidade da terra. Usada metaforicamente, é paradigma para ilustrar o salutar estado
de uma pessoa (cf. Sl 1,3; Jó 29,19), ou a força do faraó do Egito, semelhante ao
cedro que tem água em abundância (cf. Ez 31,4). No futuro, Israel conquistará as
fontes da água da salvação (cf. Is 12,3) e a efusão do espírito de Deus sobre a
descendência de Israel será semelhante às águas abundantes
592.
Uma das metáforas mais intensas da água é aquela que faz referência a Deus
como uma fonte de água viva, a fim de indicá-Lo como potência vivificante, aquele
que torna possível a fertilidade, a salvação e a justiça (cf. Jr 17,13)
593. Em síntese,
YHWH é apresentado como a fonte da vida e da bênção para todo o seu povo. É por
este motivo que a apostasia foi definida por Jeremias através de duas imagens
intimamente relacionadas: a apostasia é o abandono da fonte de água viva e a
conseqüente necessidade do homem de escavar cisternas. Estas, porém, apresentam-
se sempre com fendas que as tornam incapazes de reter a água (cf. Jr 2,13). A
apostasia, conseqüentemente, leva o homem não somente ao afastamento de seu
Deus, mas o conduz à morte.
No texto de Ezequiel 47,1-12, a metáfora de Deus como fonte de água e
associada ao templo como sua origem converte-se em um grande símbolo da bênção
que virá sobre Israel através da renovação do culto, isto é, do retorno do povo para o
seu Deus
594. As idéias de fertilidade, salvação e bênção estão reunidas nesta
perícope de forma tão intensa que a água originada no Templo é capaz de curar até
mesmo as águas do Mar Morto
595.
b) segundo momento: medição da profundidade da água que brota do Templo (v. 3-5)
591 Cf. CLEMENTS, R. E., “~yIm;”, GLAT, vol. IV, 845.
592 Cf. Is 44,3; 32,2; 44,4; 55,1; 58,11; Jr 17,8; Ez 17,5.8; 19,10; 31,5-7.
593 Cf. CLEMENTS, R. E., “~yIm;”, GLAT, vol. IV, 860.
594 Cf. Ibid, 860.
595 O termo ~yIm; quando recorre ao eufemismo pode indicar a urina (cf. Ez 7,17; 21,12) ou a virilidade
(cf. Is 48,1). Esta conotação está em desacordo com o texto de Ez 47,1-12.
Neste segundo momento, um novo foco de atenção é proposto ao profeta.
Os v. 3-5 apresentam-se marcados por uma sucessão de “e mediu mil”. A expressão,
contudo, não está em via de contato com Ez 40,3 no que concerne ao instrumento de
medida utilizado. Neste texto, o cordel, que foi utilizado para medir, aferiu as
medidas no interior do Templo e em suas cercanias em um movimento que se
originava do interior do templo para o seu exterior. Já em Ez 47,3 o instrumento é a
linha e o objeto de medida é a extensão do rio que brota do Templo.
A linha que se encontra na mão do anjo condutor serve para medir as
distâncias lineares (cf. Jr 31,39) ou redondas (cf. 1 Rs 7,23). Neste versículo, o
processo de medição
596 registra o inaudito procedimento de crescimento do pequeno
fluxo de água, que se torna cada vez mais profundo a cada medição. O verbo ddm é
bastante empregado em Ez 40-47, quase sempre relacionado ao Templo
597. Mas, em
outras ocasiões, descreve as medidas dos muros de Jerusalém (cf. Ne 3,11.19), uma
casa espaçosa ou a estatura de um homem (cf. Jr 22,14; 1Cr 11,23; 20,6) ou as
medidas das cortinas do tabernáculo (cf. Ex 26,2.8). Outros textos oferecem uma
semântica que supera a noção de medida concreta humana, indicando coisas que só
Deus pode medir: os oceanos (cf. Is 40,12), a multidão de futuros israelitas (cf. Os
1,10; 2,1) e a descendência de Jacó (cf. Jr 33,22; 31,27). Em linguagem figurada,
pode indicar a porção de Judá que pertence a Deus, mas que será dispersa porque
Dele se esqueceu (cf. Jr 13,35).
O ato de medir, expressado pelo verbo
ddm, tem como unidade de aferição o
hM'a; “côvado”. A medição do ser celeste é realizada por meio de quatro intervalos de
mil côvados. Possivelmente este quádruplo ato de medir indica um número de
plenitude
598; seu ponto de partida é o portão leste, para onde, no v.2, o anjo havia
conduzido o profeta. Portanto, ao contrário dos c. 40-42, que se dedicam a medir o
596 O problema das medidas modernamente usadas e aquelas encontradas no Antigo Testamento foi
abordado por Scott. Cf. SCOTT, R. B. Y., “
The Hebrew Cubit”, Journal of Biblical Literature, 77
(1958) 205-214. A mesma discussão é realizada por Alexander e Fisch. Cf. ALEXANDER, R. H.,
Ezekiel. Grand Rapids , Zondervan, 1986; FISCH, S., Ezekiel. Soncino Books of the Bible. London,
The Soncino Press, 1950.
597 Cf. Ez 40, 5.6.8.9.11.13.19.23.27.28.32.47.48; 41, 1.2.3.4.5; 47, 3.4 (2x).5.
598 DUGUID, I. M., Ezekiel. The Niv Application Commentary. Michigan, Zondervan, 533-535, 1999.
Templo e suas cercanias, Ez 47,3 distancia-se a cada medição do Templo, acentuando
assim, a extensão atingida pelo frágil filete de água que havia sido visto pelo profeta.
O ato de ser levado a ver a água que brotava do Templo (v. 1a) tornou o
profeta testemunha empírica daquilo que lhe era indicado pelo ser celeste. O mesmo
método será utilizado agora pelo anjo, pois, apesar deste estar aferindo a expansão do
rio, o profeta não permanecerá como mero receptor da informação; ele é levado,
novamente, conforme indica a construção verbal
ynIrEbi[]Y:w:,599 a averiguar a
profundidade crescente do rio. O elemento concreto desta descrição não nos oferece
indícios de tratar-se de uma ilustração simbólica; ao contrário, a metodologia aplicada
parece querer indicar, com maior realismo, a profundidade da água e a elevação da
corrente do fluxo do rio
600.
O parâmetro para o reconhecimento quantitativo das águas é o seu próprio
corpo
601. A cada mil côvados, o profeta é introduzido na água e informa a evolução
da profundidade do volume da água previamente medido pelo anjo. Primeiro a água
está até os tornozelos (v.3), depois, até aos joelhos e aos lombos (v.4). Por fim, na
quarta medição o seu corpo já não pode expressar a grandeza do volume da água,
apenas a noção de nadar pode representar a extensão deste volume: “são águas de
nadar” (v.5)
602.
599 Tento em vista o objeto direto que sucede o verbo rb[, seria mais correto compreender que a ação
verbal indica o ato de atravessar, transpor, percorrer. Divergindo, assim, do emprego no livro de Jó (cf.
Jó 17,11-16), quando o hagiógrafo alude à morte, o fim dos dias de um homem. Cf. FUHS, H. F.,
rb[”, GLAT, vol. V, 388.
Quando é empregado em sentido metafórico, pode estar relacionado à extensão das riquezas de
Salomão ou à perversidade de Judá e Israel (cf. Jr 5,28). A metáfora pode, ainda, significar a ruptura da
Aliança por parte de Israel e seu estado de putrefação (cf. Jr 13,11). Em um sentido espiritual negativo
liga-se ao fato da transgressão da Lei ou da Aliança por meio da prática idolátrica (cf. Dt 17,2) ou, em
via positiva, à passagem de Israel para uma vida de Aliança com Deus (cf. Dt 29,11-12).
600 Destoando dos demais pesquisadores, Jeans Steinmann propõe que a origem da elevação das águas
do rio seja uma decorrência da presença de diversos afluentes ao longo do percurso do rio. Cf.
STEINMANN, J., Ézéchiel. Paris, Desclée de Brouwer, 1953, 135
601 O texto de Ez 37,2 possui situação semelhante quando o profeta é levado a rodear de todos os
lados do vale os ossos que nele encontravam-se. A forma
ynIr;ybi[/h,w>. possui valor semântico semelhante
aquele de Ez 47,3 tornando o profeta testemunha de um determinado fato.
602 Zimmerli sugere que o texto de Is 33,21 colaboraria na compreensão do modo como o profeta
deveria atravessar o rio, mas a nosso ver não se trataria de um rio que provê a segurança geopolítica de
Israel ou da possibilidade ou impossibilidade de se efetuar esta travessia, mas de uma demonstração
concreta da grandeza a que chegou este rio que nasceu de modo tímido, insignificante. Cf.
ZIMMERLI, W., Die Umwelt des neuen Heiligtums, 1194.
Na primeira etapa, o elemento concreto de aferição experimentado pelo
profeta são os seus tornozelos (cf. v.3). O substantivo sp,a' indica fundamentalmente a
“extremidade”, “o fim”
603. Sob influxo teológico pode significar o “nada”, tendo
YHWH como o agente direto ou indireto, pois é Ele que põe fim a todas as potências
hostis (cf. Is 34,12) ou, estando ligado ao gênero literário de juízo, indica o fim de
uma determinada situação (cf. Is 40,17). Quando empregado em sentido metafórico,
pode descrever a perversidade de Israel e Judá, que ultrapassava a de todas as demais
nações (cf. Jr 5,28) ou os mortos que passam para a outra vida (cf. Jó 30,15; Pr 22,3),
dentre outras conotações. Aplicado à vida espiritual, faculta duas conotações:
negativa, se indicar a transgressão da Aliança ou da Lei (cf. Dt 17,2); positiva,
quando o povo ou uma pessoa, passa, de uma vida fora de Deus, para uma vida na
Aliança (cf. Dt 29,12 [11])
604.
No texto de Ez 47,3, o sentido não parece estar vinculado a uma metáfora,
tendo em vista a construção
~yIM;B;;, onde o substantivo ~yIm;, precedido pela partícula B.,
converte o substantivo dual ~yIs'p.a' em instrumento indicador de sua profundidade. O
dual ~yIs'p.a', associado ao termo ~yIm;, ocorre somente em Ez 47,3605.
O substantivo dual
~yIK'r>Bi em Ez 47,4 refere-se ao segmento de membro
inferior que compreende a articulação da coxa e perna; o mesmo significado é
encontrado em Dt 28,35 e Eclo 25,23
606. Neste mesmo versículo é retomada a
expressão
@l,a, dm'Y"w: indicando que uma outra etapa da extensão do rio será descrita.
Um novo recurso à construção ynIrebi[]Y:w: relembra que o profeta deverá testemunhar,
através da ação de “passar”, a nova profundidade atingida pelo rio.
603 O termo ~yIs'p.a' em alguns textos indica uma restrição (cf. Nm 13,28; 22,35; 23,13; Dt 15,4; 2Sm
1,5; Am 9,8), a ausência de alguma coisa ou pessoa (cf. Is 34,12; 40,12.29), pode também apresentar-
se como partícula negativa (cf. Is 5,8; 54,15; Am 6,10). Cf. HAMP, V., “
spa”, GLAT, vol I, 782-783.
604 O termo “extremidade” possui uma semântica divergente em Dt 33,17, quando o sentido é a
extremidade da terra com relação ao poder de Deus contra os seus inimigos; Is 52,10 aponta para a
extensão mundial da salvação ou Zc 9,10 o alcance do Reino do Messias. A forma substantivada de Gn
47,15.16; Is 16,4; 29,20 sugere os confins da terra
#yrI[' spea'-yKi.
605 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 67.
606 Quando precedido das partículas -l[;, -lK', [r;K' indicam a postura do homem frente a um objeto
concreto ou o elogio de YHWH por não terem dobrado os joelhos diante dos ídolos. Em outros
momentos, a partícula
-l[; sugere uma relação de afetividade, como o reconhecimento de um filho por
vínculos sanguíneos ou por adoção (cf. Gn 30,3; 50,23; Is 66,12). Quando é sucedido pelo verbo
lvk
possui significado de fraqueza, vacilação (cf. Is 35,3; Sl 109,24).
Na segunda etapa, a expressão ~yIK"r>Bi ~yIm: ~yIM:B;, antecedida pela retomada da
ação verbal ynIrEbi[]Y:w:, sugere que o fluxo da água possui, agora, profundidade para
atingir os tornozelos; neste momento atinge os
~yIK'r>Bi “joelhos”.
Na terceira etapa, as águas atingem os ~yIn"t.m' “quadris” e, aqui, pode haver
uma menção à dificuldade de caminhar encontrada pelo profeta em decorrência do
volume crescente da água
607.
Na quarta etapa da medição, o profeta já não é mais convidado a passar pelo
rio. Ele constata que o volume de água tomou tal proporção que seu corpo não é mais
suficiente para mensurar. O rio agora só poderia ser atravessado a nado.
A descrição da torrente iniciada pelo pequeno filete de água que brotou do
templo atinge agora o seu ápice. Não resta ao profeta nenhuma medida que possa
elencar a grandiosidade da água que jorra do Templo de Deus. Por esta razão, recorre
ao verbo
lky, associando-o à partícula negativa al{, a fim de indicar a total
incapacidade física do profeta, ele se vê incapaz de atravessar o rio
608.
O recurso ao termo
lx;n: tem por intenção reforçar a noção de intensidade
manifestada pela expressão rbE['yE-al{. O termo lx;n:, “rio”, é equiparado a um vale com
um profundo e torrencial curso de água. Esta potente característica tem sua origem
nas águas, que, no tempo das chuvas, descem dos montes com grande violência
609.
O termo
lx;n:, no v.5, recebe uma conotação escatológica. De fato, na era messiânica,
águas vivificantes fluiriam do Templo como um rio e serviriam para a restauração da
terra de Israel
610.
Uma nova ênfase é apresentada pela forma WaG" “profundas”. O termo WaG"
possui, no Antigo Testamento, um uso pouco freqüente, apenas sete vezes,
distribuído em duas vertentes: primeiro, concreto, significando “ser alto” (cf. Ex
607 Em outros textos a indicação “quadris” está atrelada às forças da procriação (cf. Gn 35,11; 46,26;
Ex 1,5; Jz 8,30; 1Rs 8,19; 2Cr 6,9).
608 O verbo lky pode designar a habilidade ou a capacidade em três sentidos básicos: físico, ético e
religioso. Os demais sentidos estão relacionados ao comportamento diante dos inimigos (cf. Js 15,63;
17,12; Jz 2,14; Dt 31,2; Is 36,14; Lm 1,14) e à imposição de limites (cf. Dt 17,15; 7,22; 12,17; 12,7;
21,16; Nm 22,18). Outros textos da Sagrada Escritura comportam uma alteração no verbo
lky com a
finalidade de mudar o sentido do verbo: ausência de controle (cf. Gn 45,1-3), incapacidade de
controlar as circunstâncias (cf. Ex 9,11) dentre outros. Cf. SCHÖKEL, L. A., Dicionário Bíblico
Hebraico-Português, 277-278.
609 Cf. SNIJDERS, L. A., “lx;n;”, GLAT, vol. V, 758.
610 Cf. TAYLOR, J. B., Ezekiel. London, Tyndale, 1969, 278.
15,1.21; Jó 8,11), mesmo significado que tem em Ez 47,5c, onde, no curso da
descrição da torrente do Templo, se diz que, com os seus 4000 côvados de extensão,
não era mais possível passar. Qualificando a água encontramos ainda o Sl 46,4
“grandeza” e Sl 89,10 “esplendor”. A segunda vertente está relacionada ao sentido
figurado (cf. Eclo 10,9) “ensoberbecer-se”, seguido por Pr 8,13 “soberba”. O “elevar-
se” do mar assume não somente o significado concreto, mas reveste-se também
daquele metafórico de “cólera” e “insolência”
611. Em Ez 47,5, o verbo hag retoma o
seu sentido original que indica o crescimento das águas do rio ao ponto de
converterem-se em uma torrente.
A segunda vertente semântica do verbo
hag encontra-se presente na LXX,
este valor de índole mais pejorativa se deve, em parte, à literatura sapiencial
612. Por
esta razão, sua ocorrência em 5c foi entendida como um ato de “ensoberbecer-se”,
recorrendo a uma personificação das águas do rio em detrimento de um justo
crescimento do volume das águas como se observa não somente no Texto Hebraico,
como também na LXX, quando recorre por quatro vezes à expressão kai. dieme,trhsen
cili,ouj (cf. v. 3c; 4a; 4c; 5a), mantendo, como no Texto Hebraico, a especificação da
unidade de medida apenas na primeira indicação do ato de medir (cf. v. 3c). A
continuidade do Texto Hebraico na LXX é ainda corroborada pela indicação de um
crescimento paulatino das águas do rio, como o fato da LXX associar ao ato de medir
alguns dos parâmetros encontrados no Texto Hebraico relativos ao corpo do profeta:
mhro,j “coxa” ovsfu,j, “cintura”. Exceção é a expressão
~yIs"p.a' yme (cf. v.3d) que foi
traduzida por u[dwr avfe,sewj retirando a imagem do corpo do profeta como elemento
de aferição da altura da água do rio.
611 A forma hag ocorre em outros textos do livro de Ezequiel, mas em contextos diferentes. Ez 7,4 e
33,28 anunciam o término da força arrogante de Israel; Ez 30,6.18; 32,12 sinaliza para a ruína do poder
do Egito. Por fim, Ez 24,21 o Templo de Jerusalém é definido como “orgulho de vossa força e desejo
dos vossos olhos” e por isso objeto de uma profecia de destruição. Cf. KELLERMANN, D., “
Wag"”,
GLAT, vol. I, 1795-1796.
612 Sob a perspectiva sapiencial, o verbo hag assume uma conotação de orgulho e sinaliza para sua
conseqüência imediata: o fracasso (cf. Jó 22,29; Pr 16,19). Pode ainda definir a pessoa (cf. Sl 36,12;
59,13; 73,6; 94,2; 140,6). Cf. STÄHLI, H.-P., “
hag”, Diccionario Teológico Manual Del Antiguo
Testamento, vol. I, 547-549.
c) terceiro momento: deslocamento do profeta para as margens do rio e contemplação
das árvores que crescem em sua margem (v.6-7)
Após seu retorno às margens do rio, no v.6, o profeta descreve, agora,
aquilo que viu ao retornar: muitas árvores em ambas as margens do rio.
Estando a caminho das margens, o profeta vê algo totalmente novo: muitas
árvores de um lado e do outro. A partícula
hNEhiw> situa temporalmente o acontecimento
que lhe sucede
613, além de enfatizar a informação. A ênfase e a meticulosa indicação
temporal estão diretamente ligadas ao ápice da narrativa
614: a constatação da
existência de árvores
615 crescendo em ambas as margens do rio. Considerando o
contexto árido da terra de Judá, esta informação torna-se, sem dúvida, inusitada.
O vocábulo #[e em Ez 47,7616 está circunscrito ao conceito de árvores que
se destinam ao alimento, estão ligadas à manutenção da vida do homem e seu número
é impreciso, quer pela possibilidade de entender o termo como um coletivo, como
pelo adjetivo
br; que expressa a idéia de abundância, multiplicidade em número e
quantidade, quer de homens e suas agremiações (cf. Gn 26,14; Nm 22,15), seus
animais (cf. Gn 30,43; Jn 4,11; Sl 22,13; 2Cr 26,10; Ez 47,9) ou suas posses (cf. Gn
613 Quando a fórmula hNEhiw> é empregada em cunho teológico, introduz o anúncio profético de juízo e a
intervenção divina. Cf. VETTER, D. “
hNEhi”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I,
707-708.
614 Bolck considera que este verbo hNEhiw> “ver” estaria ligado ao reconhecimento de cunho
testemunhal do poder miraculoso de YHWH que, ao aumentar o volume da torrente de água provoca o
surgimento exuberante de árvores em ambas as margens do rio. Cf. BLOCK, D. L., The Book of
Ezekiel, 693.
615 Cf. NIELSEN, K., “#[e”, GLAT, vol. VI, 934.
616 O termo #[e “árvore” designa, no Antigo Testamento, tanto a árvore viva quanto o lenho. A
palavra
#[e pode significar tanto uma única árvore (cf. Gn 18,4.8), quanto um número impreciso delas
(cf. Ex 9,25; 10,5; Lv 26,4; Jr 7,20) ou ainda o seu coletivo (cf. Sl 96,12; 104,16; Is 55,12; Jl 1,12) ou
simplesmente mais de uma árvore (cf. Ez 17,24; 31,4ss).
O referido termo pode ser apresentado em dois grandes grupos, a saber: no primeiro grupo podemos
identificar aquelas árvores que se destinam à construção de utensílios como embarcações (cf. Ez 27,5),
uma forca (cf. Gn 40,19; Dt 21,22s; Est 2,23), diversos objetos domésticos (cf. Lv 11,32; 15,12; Nm
31,20) ou ainda a destinação de árvores menos nobres como combustível para o sacrifício e para
cozinhar (cf. Gn 22,7.9; Lv 1,8; 3,5; 1Rs 18,23.33s); quando a palavra
#[e encontra-se atrelada a um
ofício, pode identificar seu executor como estrangeiro (cf. Js 9,21). No segundo grupo estão as árvores
que se prestam para o alimento. Em Israel, as árvores frutíferas eram essenciais para a sobrevivência,
por esta razão, sua fertilidade era entendida como um sinal da graça divina. A ausência desta graça é
caracterizada pela presença de espinhos que invadem a vinha, e de ruína (cf. Is 5,6; 7,23; 27,4; 32,13).
O contrário, a presença da graça divina transforma os desertos em terra fértil (cf. Is 32,15; 29,17). Cf.
NIELSEN, K., “
#[e”, GLAT, vol. VI, 935-936.
13,6; Nm 32,1; Dt 3,19)617. Corrobora a idéia de multiplicidade a construção hZ<miW
hZ<mi
que reforça a idéia de abundância e da ambivalência da presença da árvore tanto
de um lado da margem do rio como de outro
618.
A noção de “rio” encontrada na LXX aproxima-se daquela contida no Texto
Hebraico e define-se como uma torrente de água contínua e perene
619. No texto da
LXX, permanece também a índole escatológica aplicada ao rio que brota do Templo
e, de modo constante, não sazonal, corre em direção à estepe (cf. Ez 47,8).
Na LXX, “kai. ivdou.” ocorre, na maioria dos casos, nos textos narrativos de
visão e tem por escopo chamar a atenção para um objeto concreto. Neste versículo, há
grande quantidade de árvores que cresciam nas margens do rio, aproximando-se
assim, do objetivo da expressão
hNEhiw>620. A noção de multiplicidade das árvores em
ambas as margens do rio foi seguida pela LXX, como indica a expressão de,ndra
polla. sfo,dra e;nqen kai. e;nqen.
3.4.2 A segunda seção: v.8-12
A segunda seção concentra-se na explanação atinente à topografia do
deslocamento daquela água que brotou do Templo (cf. v.8abc), seus efeitos
terapêuticos (v.8def-10), elenco dos elementos excluídos desta cura (cf. v.11) e a
descrição da função das árvores que margeiam o rio que nasceu do Templo (cf. v.12).
a) Primeiro momento: deslocamento das águas e sua orientação (v.8abc)
617 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 912; ALONSO
SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 601; HARTMANN, TH. “
br;”, Diccionario
Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 900-914.
618 Allen lança a hipótese de encontrarmos entre o v.7b e Is 41,19 uma conexão. Consideramos que
apesar dos liames lexicais existentes entre o emprego de
#[ew> de Is 41,19 e #[e de Ez 47,7b a semelhança
encerra-se no nível do emprego da mesma palavra e não considera que o emprego em Isaías está
vinculado a uma conotação metafórica do mesmo, enquanto em Ez 47,7b não há vestígios de uma
metáfora.
619 Cf. RENGSTORF, K. H., “potamo,j”, GLNT, vol. VI, 1493.
620 Cf. VETTER, D., “hNEhiDiccionario Teológico Manual dell’ Antico Testamento, vol. I, 710.
Por meio da formula verbal rm,aYOw:, o personagem angélico reassume o
discurso e passa a descrever o percurso da água que havia brotado do Templo até seu
desembocar no Mar Morto.
O verbo
rma do v.8a introduz uma frase em estilo direto, cujo escopo é a
elucidação da cena contemplada no v.7
621, ao mesmo tempo que exerce a função de
elemento de comunicação entre dois. Destarte pressupõe a compreensão e uma
resposta, isto é, uma reação para que se instaure o diálogo
622. O destinatário do
verbo
rma é o profeta, como indica a presença da partícula yl;ae: será ele que deverá
apreender aquilo que a cena e o anjo lhe revelam
623.
A primeira elucidação oferecida pelo anjo é a direção tomada pelas águas:
elas saem na direção leste. O verbo
acy exprime seu sentido básico, “sair” enquanto
deslocamento geográfico, as águas saem de um determinado ponto para um outro624.
A terminologia “região oriental” indica a direção da água
625. Esta
designação não é encontrada em nenhum outro lugar do Antigo Testamento. Por isso,
não seria correto ver nesta expressão nenhum nome concreto de região, mas apenas,
uma descrição geral de uma região que abrange de Jerusalém ao Jordão (cf. Js 13,2; Jl
4,4). A água desloca-se em direção a uma região inóspita da terra da Palestina, a
Arabah. O termo Arabah
626 é usado para definir uma parcela que abrange o mar da
Galiléia ao norte e, ao sul, o vale do Jordão e o Mar Morto, além do Golfo de
Araba
627. A presença do artigo definido designa uma região geográfica
621 É próprio do verbo rma ser a expressão própria de um sujeito, perceptível por um outro sujeito, ou
seja, provoca uma relação interpessoal. Cf. WAGNER, S., “
rma”, GLAT, vol. I 710.
622 Cf. WAGNER, S., “rma”, GLAT, vol. I, 714.
623 Cf. SCHMID, H. H., “rma”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, 322-325.
624 Os diversos matizes propostos para este verbo apontam para outras conotações que divergem deste
versículo: migrar (cf. Gn 10,11; 11,31; 12,4-5), ponto de partida (cf. Nm 33,), empreender algo (cf. Jz
2,15; 1Rs 18,5), partir para a batalha (cf. Gn 14,8; Nm 1,3.20ss; Dt 20,1; 23,10). Quando o verbo
acy
tem por sujeito o próprio YHWH, descreve, de modo geral, uma ação teofânica (cf. Ez 10,18; Mq 7,15;
Is 26,21; 42,13...).
625 Cf. ZIMMERLI, W., Ezekiel 2. 1196.
626 Cooper entende que a Araba pode ser hoje situadana planície que continua ao sul do Mar Morto
entre as montanhas da Transjordânia no leste e as montanhas da Judéia no oeste que conecta a região
do Mar Morto com o Golfo de Aqaba/Eliat. Cf. COOPER, L. E., The New American Commentary,
412. Na mesma linha encontramos: FISCH, S., Ezekiel, 325; WEVERS, J. W., Ezekiel. London,
Eerdmans, 1969, 335.
627 Cf. SEELY, D. R.,Arabah”, The Anchor Bible Dictionary, Vol. I, 321.
específica628. Seu fluxo percorre a Arabah (cf. v.8) e entra no Mar Morto,
provavelmente pelo lado norte e nas proximidades onde o Jordão deságua.
b) Segundo momento: efeito curativo das águas e a abundância de peixes (v.8de-10)
Com a expressão
hM'Y"h; Wab'W, as águas que ininterruptamente vinham se
deslocando, encontram o término de sua jornada quando chegam ao mar. O verbo
awb
indica um movimento finalizado no tempo e no espaço
629. O mar situado nestas
cercanias é o Mar Morto
630, geralmente, hoje, identificado com a depressão sul que
termina no Golfo de Aqabah
631.
O verbo
apr tem como significado fundamental “curar, restabelecer”. São
inúmeros os empregos deste verbo. O que determinará sua conotação é a realidade
para qual é utilizado: restauração de objetos (cf. Jr 19,11), sanar ou reparar (cf. 2Cr
7,14; 1Rs 18,30). Na literatura profética,
apr é, freqüentemente, usado com relação às
feridas, ulceras e lesões; esta metáfora adverte para o mau estado do povo (cf. Os
5,13; Jr 30,13.17; 33,6), uma ferida ocasionada por um golpe
632, uma fratura633.
Estando Deus como agente da cura, sua conotação passa a ser a de suspensão do agir
punitivo divino
634. Esta mudança de atitude divina supõe a decisão de salvação do
povo de Israel que se desviara (cf. Gn 12,17; 20,17;Lv 26,16.25; Dt 28,27.35). Na
628 Cf. Ibid., 323.
629 Cf. PREUSS, H. D., “awb”, GLAT, vol. I, 1084.
630 O mar indicado no texto é o Mar Morto. Cf. COOPER, L. E., Ezekiel, 412. Compartilham desta
opinião Zimmerli e Cooke. Cf. ZIMMERLI, Ezekiel 2, 510; COOKE, G. A., Ezekiel, 520.
631 Segundo Block, o mensageiro parece não estar a par dos problemas geográficos enfrentados por
este curso d’água. Para que a água pudesse fluir de Jerusalém para o Vale do Jordão ela deveria fluir
antes para Kidron, subir o monte das Oliveiras, e então cruzar uma série de vales e montanhas de larga
extensão antes de alcançar seu destino. Se ele imagina uma divisão das barreiras como aquela vista em
Zac. 14:4 ou não, a cena pediria um ato miraculoso, como aquele experimentado pelos Israelitas no
Mar Vermelho. Ao invés de criar um caminho seco pelo mar, este fluxo santo produz um curso d’água
através do deserto. Cf. BLOCK, D. L., The Book of Ezekiel, 694. O golfo de Aqaba (em árabe: Bahr el-
Akabah), também chamado de golfo de Eilat, consiste da baía nordeste do mar Vermelho e separa a
Arábia da Península do Sinai.
Os países banhados pelo golfo de Aqaba são o Egito, Israel, Jordânia, (a cidade de Aqaba fica na
Jordânia) bem como a Arábia Saudita. A baía tem uma extensão de cerca de 175 km, no seu local mais
amplo mede 29 km. A maior profundidade fica a cerca de 1.827m. Cf. RASMUSSEN, Carl G., Atlas
of the Bible. Grand Rapids, Michigan, Zondervan Publishing House, 1999, 44-45; BEITZEL, B. J.,
The Moody Atlas of the Bible Lands. Chicago, Moody Press, 1985.
632 Cf. Is 30,16; Jr 14,19; 15,18; 30,17; Is 19,22; 57,17s.
633 Cf. Dt 32,39; Is 30,26; Jr 6,14; Ez 30,21; 34,4; Os 6,1; Jó 5,18; Lm 2,13.
634 Cf. Jr 19,11; 30,12-13.17; 33,6; 46,11; 51,8-9; Is 19,22; 30,26; 53,5; 57,18-19.
linguagem sacerdotal, apr pode indicar a mudança de impuro para puro. Esta
faculdade decorre da função dos sacerdotes, pois a eles cabia determinar a virulência
das enfermidades cutâneas (cf. Lv 13,18ss.37; 14,3s)
635. O texto de Ez 47,8.9.11 se
enquadra, simultaneamente, no contexto fundamental do termo “curar, restabelecer” e
na perspectiva profética que tem YHWH por agente da cura. Assim é que o objeto da
cura é o Mar Morto, porém esta cura pertence a um outro, como evidencia a forma
WaP.r>nIw>. O beneficiado não desempenha nenhuma função, não é a origem da cura, é, ao
contrário, portador de uma carência que torna suas águas tão funestas que nada nela
sobrevive. A mudança de estado das águas do mar resulta de uma ação direta das
águas que brotaram no Templo de Deus que agora chegam a seu termo.
As conseqüências da cura das águas começam a ser delineadas a partir do
v.9, conforme nos sugere a construção
hy"h'w>636. A oração causal hL,aeh' ~yIM:h; hM'v' Wab'
yKi não deixa dúvidas sobre a fonte da cura. A abrangência desta conseqüência não
permite a exclusão de nenhum ser vivente, como se depreende pela presença da
expressão
vp,n<å-lK'637. Na LXX o vocábulo zw/|on, “ser vivente”, abrange tanto o ser
635 Os sacerdotes, contudo, estabelecem apenas um diagnóstico, não têm competência para curar o
povo: o único que possui aptidão para tal é YHWH (cf. Os 14,5). É precisamente através desta
metáfora de YHWH como “médico de seu povo” que o verbo
apr recebe seu conteúdo mais profundo.
A consciência humana da necessidade da cura que só pode vir de Deus fundamenta-se no anseio de ver
restaurada, em si mesmo, a glória de Deus. Este anseio não exclui o desejo de readquirir o vigor físico
que o pecado deixou como legado (cf. Nm 12,9ss; Sl 103,3; 147,33). Neste contexto,
apr assume um
novo e mais profundo conteúdo, que expressa ao mesmo tempo a cura e o perdão. Cf. STOEBE, H. T.
xcr”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 1014-1015.
636 Cf. BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A.; Hebrew and English Lexicon, 224-225.
637 O termo vp,n< possui uma gama de significados, podendo ser traduzido, quando empregado como
verbo, como “repouso, descanso” (cf. Ex 23,12; 31,17; 2Sm 16,14). Em alguns textos, a palavra
vp,n<
apresenta conexões mais próxima com a existência do ser, descrevendo-o como “animado; vivo” (cf.
Gn 1,30; Jó 41,13), “ser vivente”, no sentido daquele que possui o “hálito de vida” (cf. 1Rs 17, 21.22;
Gn 2,7). A expressão “ser vivente” abarca tanto a realidade humana como a animal e aparece apenas
em contexto de criação e dilúvio (cf. Gn 1,20.21.24; 9,10.12.15.16).
Em outros textos, a identificação de
vp,n< com ~D', este último isoladamente, não traz a conotação de
“vida”, assume o sentido de sede da vida porque o vapor que sai do sangue recém-derramado é
considerado como o calor vital (cf. Dt 12,23; Lv 17,14). Desta concepção decorre a proibição de comer
o sangue (cf. Gn 9,4), ele deve ser derramado ao chão (cf. Dt 12,24) ou coberto com terra (cf. 17,13);
derramar o sangue de alguém é o mesmo que tirar-lhe a vida (cf. Gn 9,6; 37,22).
Em outro grupo de textos,
vp,n< encontra-se mais na esfera do ato de respirar enquanto sinal de vida (cf.
Is 51,23; Sl 105,18). Conseqüentemente,
vp,n< assume o sentido de hálito vital (cf. 2Sm 1,9; Jr 38,16) ou
da própria vida (cf. Ex 21,23), podendo indicar a salvação desta (cf. Sl 34;23) ou temer pela própria
vida (cf.Js 9,24; Ez 32,10). No âmbito fisiológico e psicológico se diz que a
vp,n< tem apetite (cf. Dt
23,25; Os 9,4; Is 29,8); sede (cf. Nm 11,6); aspira por vingança (cf. Ex 15,9; Ez 16,27; Sl 17,9; 27,12;
humano como também o animal, mas, no nosso texto, “compreende apenas o reino
animal
638.
Ez 47,9 apresenta vp,n< circunscrito no âmbito de “ser vivente”, admitindo,
assim, o sentido de “hálito de vida”. Estando este tipo de conotação situada
originalmente em um contexto de criação ou de dilúvio, estaríamos, aqui, diante de
uma restauração de todo o ser vivente, sendo a promotora desta restauração a água
que sai do Templo. Poderíamos aproximar deste elemento primário do texto aquele
que reflete o agir divino para a manutenção da vida humana, posto que o
vp,n< deve ser
curado, conforme assinala a expressão lKo yx'w" Wap.r"yEw>.
A cura a que se refere Ez 47,9 encontra-se, portanto, em nível espiritual.
Entretanto, esta realidade não se opõe categoricamente a uma cura também material
ou de dimensões externas. A declaração de cura do
vp,n< lança a problemática de seu
estado de perdição e a necessidade da restauração de sua integridade original. Esta
restauração só poderá ser realizada por Aquele que criou o
vp,n<. Retoma-se aqui a
imagem de YHWH como “médico de seu povo”, bem como a consciência de ser Ele
a única fonte da cura. Por conseguinte, o v.9 supera o objeto da cura do v.8; lá o
destinatário era o Mar Morto, aqui, como evidencia a partícula
lKo, encontramos todo
aquele que recebeu de YHWH o seu
vp,n< de vida: o homem. Logo, esta cura matiza-
se de bênção e de proteção.
Após descrever os efeitos da cura que o rio provoca sobre o Mar Morto,
transformando-o em um local onde eclodirá toda espécie de vida (cf. Gn 1,20-21),
esta se manifestará em toda parte por onde chegam as águas curadoras, como indica a
imagem ilustrativa dos pescadores de En-Gedi
639 até En-Eglaim640. Estes exercerão
41,3). Em alguns momentos, o objeto de aspiração é mais nobre: o próprio Deus (cf. Sl 42, 2.3; 63,2;
119, 20.81; 143,6); a Ele se dirige com anseio e esperança (cf. Sl 25,1; 86,4; 143,8).
A ação de Deus sobre a
vp,n< humana pode ser classificada como uma ação salvadora e mantenedora da
vida humana, incidindo diretamente sobre a vida espiritual (cf. Sl 31,8; 57,2; 116,4.8; 2Sm 4,9; 1Rs
1,29); uma ação portadora de bênção e proteção (cf. Sl 23,3; 94,19; Ez 18,4); por fim, a ação divina
pode ser portadora de uma punição (cf. Jó 27,8; Lv, 26,16; Dt 28,65; 1Sm 25,29).
Cf.
WESTERMANN, C., “
vp,n<Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 107.
638 Cf. BULTMANN, R., “zw/|on”, GLNT, vol. III, 1475-1476, 1969.
639 A cidade de En-Gedi era um oásis e fortaleza militar. Cf. HAMILTON, J., “En-Gedi”, The Anchor
Bible, vol.2, 503; MAZAR, B., “En-GediRB 74 (1963) 85-86. Em alguns textos veterotestamentários
esta cidade é descrita como o local onde nascem árvores perfumadas (cf. Ct 1,14), a sabedoria é
comparada à palmeira que cresce em En-Gedi (cf. Eclo 24,14). Cf. EISING, W., Theological
seu ofício, o que seria uma idéia totalmente impensável para a atual situação do Mar
Morto
641.
As cidades de En-Gedi e En-Eglaim encontram-se localizadas em lados
opostos do Mar Morto. Esta topografia ressalta a totalidade de cura d’águas. De leste
a oeste, por toda a parte do mar, pescadores jogam suas redes para pegar peixes. A
expressão
~ymir"x]l; x;Ajv.mi, denota um sentido diferente de Ez 26,5.14. Neste, a
imagem de redes sendo jogadas serviu como uma advertência para o julgamento de
Tiro; a cidade será reduzida ao pó onde os pescadores secavam suas redes.
Os pescadores de En-Gedi e En-Eglaim estão
dm[ “de pé”. Em Ez 47,10, o
verbo
dm[ designa o ato físico de “estar de pé” comportando, assim, o sentido verbal
básico642 para indicar a postura dos pescadores que, ao desenvolverem seu ofício,
estão de pé sobre as margens e lançam suas redes. A expressão ~r,xe fora de um
contexto de guerra e de defesa da fé javista pode caracterizar a pessoa ou um objeto
consagrado a YHWH
643. Neste caso, não há resgate, porque o destinatário do ato de
consagração é o próprio YHWH (cf. Lv 27,21-28; Nm 18,14; Ez 44,29).
Dictionary of the Old Testament, V. 7. Cambridge, Eerdmans Publishing Company, 1995, 336.
Disponível na Internet. Acesso novembro de 2007.
http: //books.google.com.br/books+EISING,+W.,+Theological+Dictionary+of+the+Old+Testament
640 En-Eglaim foi identificado com Ein-Feska ao fim noroeste do Mar Morto perto de Qumran Assim
entendem Fisch, Taylor, Wevers, Zimmerli e Alexander. Cf. FISCH, S., Ezekiel. London, The Soncino
Press, 1950, 326; TAYLOR, J. B., Ezekiel Downers Grove, InterVarsity, 1969, 280; ZIMMERLI, W,
Ezekiel 2, 513; ALEXANDER, R.H., Ezekiel. Michigan, Zondervan Publishing House, 1986, 991;
HERION, G., En-Eglaim, The Anchor Bible, vol.2,501-502.
641 Farmer considera esta imagem uma das mais belas figuras simbólicas da Bíblia. Cf. FARMER, W.
R., “
The Geography of Ezekiel's River of Life”, The Biblical Archaeologist, 19 (1956) 17-22.
642 Outras conotações, como “pôr-se diante de YHWH”, podem ser observadas em Dt 19,17. Nesse
contexto as partes em litígio se apresentarão perante o Senhor, diante dos sacerdotes e dos juízes (cf. Jr
7,10), para serem julgadas. Pôr-se diante de YHWH e de seus servos no santuário prenuncia a
definição da verdade e da justiça. Às vezes a nação toda era chamada a vir até o santuário central e
‘pôr-se perante o YHWH em assembléias solenes para atos de sacrifício’ (cf. Lv 9,5). Seus servos
apresentam-se diante d’Ele como expressão de uma atitude de dedicação, lealdade e serviço. Essa
terminologia é empregada em referência a sacerdotes (cf. Ez 44,15) e especialmente aos que crêem
com sinceridade durante o período da decadência e apostasia de Israel (cf. 1Rs 17,1; 18,15; 2Rs 3,14;
2Rs 5,16).
643 O vocábulo ~r,xe, designa, em primeiro lugar, a qualidade de uma coisa ou pessoa (cf. Lv 27,21; Dt
7,26; Js 6,17s; 7,12) ou uma expressão técnica para designar uma oferenda (cf. Lv 27,28; Nm 18,14;
Ez 44,29). Em contexto militar e tendo como sujeito de
~r,xe os povos estrangeiros, seus bens e
animais, revela que seu destino é o completo extermínio (cf. 2Rs 19,11; 2Cr 20,23). Com a instalação
da monarquia, a prática do
~r,xe declinou muito rapidamente. Entretanto, permanecia nos círculos
proféticos, agora sob o influxo de preservação da fé javista diante do sincretismo religioso, facultado
pelas perversões de alguns monarcas. Em nome da defesa desta fé permitia-se o emprego da pena de
Os dois campos semânticos propostos para a compreensão e aplicabilidade
do termo ~r,xe não se aplicam a Ez 47,10, pois neste versículo não se encontram
nuances que possam vinculá-lo a uma situação de conflito militar ou de dedicação
exclusiva a YHWH. Seu contexto apresenta pescadores “de pé” às margens de um
rio, tendo em suas mãos as
~r,xe. Por conseguinte, não há aqui alusão a uma coisa
maldita, mas ao instrumento de trabalho dos pescadores: redes ou tarrafas (cf. Ez
26,5; 32,3; Hab 1,15ss)
644. Esta interpretação é corroborada pela imagem da fartura
de peixes que estarão presentes nas águas deste mar renovado.
c) Terceiro momento: elementos excluídos dos efeitos curativos das águas que saíram
do templo (v.11)
No v.11, o anjo-guia elenca os elementos que serão deixados à margem do
poder curativo das águas que saíram do Templo. De fato, a oração negativa Wap.r"yE al{w>
proporciona, num primeiro momento, a impressão que tanto os pântanos quanto os
alagadiços serão destinados à exclusão dos benefícios proporcionados pelas águas
restauradoras. Contudo, faz-se mister atentar para o componente a ser suprimido desta
cura salutar e a motivação para tal.
Os pântanos e alagadiços serão entregues ao sal
645. O impacto desta
imagem poderá ser amenizado se levarmos em conta a função do sal sob a
perspectiva econômica
646 e simbólica-religiosa. A perspectiva simbólica-religiosa
tem maior relevo para o nosso texto e, por esta razão, nos deteremos nela em
detrimento da perspectiva anterior. Havia a obrigação de salgar as oferendas
destinadas ao sacrifício (cf. Lv 2,13; Ez 43,24), o que exigia a manutenção de
reservas de sal nos depósitos do templo (cf. Esd 6,9; 7,22). A oferta de incenso
também deveria ser temperada com sal (cf. Ex 30,35), espalhar sal na área de uma
morte, aplicada àqueles que a ela se tornavam infiéis (cf. Lv 27,29). Cf. BREKELMANS, C., “~r,xe
Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, col.880. 883-884.
644 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 246.
645 Cf. HAUCK, F., “a[laj”, GLNT, vol. I, 613-615.
646 As primeiras minas de sal eram a céu aberto, ao contrário de hoje, quando também é retirado do mar. Estas fizeram
a riqueza de muitos povos antigos.
No Mediterrâneo, desde o antigo Egito à dominação árabe, passando por
fenícios, gregos e romanos, a produção e o comércio do sal estiveram na vanguarda das relações entre
os estados. O sal constituiu monopólio em muitos deles. Em Roma, as salinas eram do estado, que as
arrendava.
Onde havia carência de sal, era necessária a sua comercialização, que, literalmente, se fazia a peso de ouro,
cada grama de sal correspondia a um grama de ouro. Cf. UNTERMAN, A., Dicionário Judaico de lendas e tradições, 225.
cidade destinada ao anátema tornou-se símbolo de esterilidade e abandono (cf. Jz
9,45; Dt 29,23; Jó 39,6; Sf 2,9).
A preservação de uma área, aparentemente sem atrativos econômicos por
ser rasa demais para desenvolver a pesca, parece ser intencional por ser rica em sal.
Sendo assim, a oração negativa
Wap.r"yE al{w> não indica uma maldição, uma supressão
da cura divina; ao contrário, é uma face da bênção, desencadeada pelas águas que
nascem no Templo, que as águas dos pântanos e dos alagadiços sejam mantidas
salgadas e possam fornecer a matéria prima para o culto, além de representar uma
reserva econômica.
d) Quarto momento: árvores com frutos abundantes; função curativa de seus frutos e
folhas (v.12)
O v.12 retoma a temática das árvores que margeiam o rio que se formou
com as águas que saem do Templo (cf. v.7). A noção de coletivo aplicada ao
vocábulo
#[e é reafirmada, neste versículo, pelo emprego de hZ<åmiW hZ<åmi, tal como
ocorrera no v.7. No entanto, esta ambivalência nas duas margens do rio é ainda mais
acentuada pela presença da partícula lKo, indicando que nestas margens estarão
presentes a totalidade das árvores, especificamente, as lk'a]m,,,, “frutíferas” (cf. Lv
19,23; Dt 20,20; Ne 9,25). O recurso ao termo
lk'a]m; constitui-se em um novo
componente do grande cenário de exuberante vida que o anjo-guia vem descerrando
diante do profeta. Tal imagem resulta em uma contradição com o cenário desértico do
sul de Israel. O vocábulo karpo,j, neste nosso texto, segue o seu sentido básico
“fruto”, o produto da terra, mantendo a mesma conotação de
yrIP.647.
A expressão
lk'a]m;-#[e-lK' sugere tanto profusão quanto variedade, resultando
em uma imagem de abundância e multiplicidade que, de certo modo, pode ser
colocada em paralelo com o v.10, onde os peixes, segundo a sua espécie, serão
incontáveis, como os peixes de um grande rio. No entanto, há ainda um acréscimo
neste cenário de vitalidade introduzido pela peculiaridade atribuída às árvores: suas
folhas não murcham, seus frutos não cessarão e frutificam continuamente.
647 Cf. HAUCK, F., “karpo,j”, GLNT, vol. V, 215-217.
A vitalidade que impede que as folhas das árvores murchem não parece ser
um recurso metafórico
648, antes, o texto de Ez 47,12 possui liames com o significado
básico deste termo: folha. Considerando seu número de hl,[' em uma árvore e o
contexto de restauração da perícope, o termo estaria vinculado à demonstração da
grandeza desta. Assim é que estas folhas receberão um atributo incomum: elas jamais
murcharão. Fora de um contexto sócio-religioso
649, o verbo lbn assume o sentido de
“derrubar”, “destruir”, “cair”. Considerando que este verbo tem como objeto as folhas
das árvores, poderia indicar, conforme assinala a presença da partícula negativa
al{, o
ato de impedir que estas folhas cheguem ao ponto de desprenderem-se da árvore em
decorrência da destruição dos nutrientes que as mantêm atreladas à árvore e impedem
sua queda. Além disto, o fato das folhas não perecerem converte-se em um
instrumento de satisfação estética e manifestação de vitalidade da árvore.
A vitalidade da árvore será, ainda, reforçada pela presença do verbo
~mt650,
que no texto de Ez 47,12, encontra-se antecedido pela partícula
al{, indicando o
cancelamento do procedimento natural de uma planta que, ao ter encerrado seu vigor
produtivo, declina e perece. Semelhante função pode ser encontrada na raiz verbal
rkB que dá prosseguimento à descrição dos frutos das árvores que crescem às
margens do rio
651. A presença deste verbo diante do cenário anterior que falava de
abundância de frutos oferece a noção de cadência desta produção: seus abundantes
648 A palavra hl,[', quando vinculada a uma metáfora, presta-se como imagem do povo de Israel que,
após o castigo divino, se encontra na abundância (cf. Is 1,30; 64,5). Aplicado a uma pessoa
, a revela
como bendita (cf. Sl 1,3; Jr 17,8; Pr 11,28), destituída de ventura (cf. Jó 13,25) ou arruinada (cf. Eclo
6,2s). O termo
hl,[' apesar de ser um singular, possui valor coletivo. Cf. BEYSE, K.-M., hl,['Grande
Lessico dell’ Antico Testamento, vol. VI, 746.
649 O verbo lbn, quase sempre está circunscrito ao âmbito da insensatez, aparece como uma questão
duvidosa. Quando Deus é o sujeito da ação, o verbo
lbn expressa o castigo divino que aniquila em
circunstancias vergonhosas (cf. Dt 32,15; Jr 14,21; Na 3,6). Ao referir-se a um povo
, classifica-o como
insensato (cf. Sl 74,18) ou como os inimigos (cf. Dt 32,21; Sl 74,22; Is 9,16). Contudo, não há um
consenso entre os pesquisadores sobre a etimologia do verbo
lbn, para alguns poderia ser entendido
como insensatez, para outros é uma ação irreflexiva, outros ainda entendem tratar-se de uma exortação
à prudência ou a um estado de envelhecimento. Cf. SÆBØ, M., “
lbnDiccionario Teologico Manual
del Antiguo Testamento II, 46-48.
650 Cf. KOCH, K., “~mt Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 1311.
651 Cf. TSEVAT, M., “rkBGLAT, vol. I, col. 1307-1308.
frutos surgirão prontamente652. Por conseguinte, as árvores possuem uma produção
contínua, sem a interrupção natural imposta pelas estações do ano.
Esta noção de uma produção ininterrupta oferecida pelo verbo
rkB é
reforçada pela expressão
wyv'd"x\l' que situa temporalmente a nova colheita em cada
novo mês
653. Conseqüentemente, haverá saciedade e aqueles que dependem do
alimento produzido pelas árvores não mais experimentarão as angústias da escassez
do alimento provocada pela sazonalidade da produção, ou mesmo pelas intempéries
da natureza.
A motivação do não fenecimento das folhas e da continuidade na produção
de frutos está na água que forma o rio, conforme sugere a oração causal
vD"q.Mih;-!mi
wym'yme yKi
. A eficácia de vida disseminada por todas as partes por onde o rio passou não
se resume à potência caudalosa de suas águas, mas no lugar do qual se origina: o
santuário.
O termo
vD'q.mi é sinônimo de tyIB;654 e alude ao local que se define como
“casa de YHWH” (cf. Jz 18,31; 1Sm 1,7), como já visto acima (cf. v.1). Será esta
presença real de YHWH em seu santuário que viabilizará à água que dele procede a
capacidade de restaurar toda a vida. Esta precisão do local de onde deriva a água,
ressaltada pela partícula
!mi, situa o santuário como a fonte de toda a restauração. Mas
esta só ocorre porque no santuário habita, em última instância, a própria pessoa
divina.
O cenário de bênção é ainda complementado com a elucidação a respeito da
finalidade da fecunda produção de frutas e do não fenecimento das folhas. As frutas
652 No âmbito jurídico rkB assegura o direito de um primogênito. No campo religioso indica as
primícias dedicadas a YHWH (cf. Ex 23,19; 34,26; Ez 44,30; Ne 10,36) e no plano físico o ato de dar à
luz pela primeira vez. Cf. TSEVAT, M., “
rkB”, GLAT, vol. I, 1307-1308.
653 O termo vd,xo fundamentalmente significa “lua nova” e indica o início de um novo período de
tempo cadenciado pela passagem das quatro fases da lua. Assim,
vd,xo equivale ao vocábulo “mês” em
nosso calendário solar. Cf. SIVAN, D., “The Gezer Calendar and Northwest Semitic Linguistics”,
Israel Exploration Journal 48 (1998) 101-105; TALMON, S., “The Gezer Calendar and the Seasonal
Cycle of Ancient Canaan”, Journal of the American Oriental Society 83 (1963) 177-87; YOUNG, I.
“The Style of the Gezer Calendar and Some 'Archaic Biblical Hebrew' Passages”, Vetus Testamentum
42 (1992) 362-75; VANDERKAM, J., C. “Calendars, Ancient Israelite and Early Jewish.” in Anchor
Bible Dictionary, vol. I, 814-820; YOUNG, I., “The Style of the Gezer Calendar and Some 'Archaic
Biblical Hebrew' Passages”, Vetus Testamentum 42 (1992) 362-75.
654 Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Dicionário Bíblico Hebraico-Português, 398; JENNI, E., “rkB”,
Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I, col. 452; HOFFNER, H. A., “
tyIB;”, GLAT,
vol. I, 456.
servem para a nutrição e as folhas para remédio, facultando, assim, a todos os seres
viventes, uma vida destituída de ansiedades ou de sofrimento.
Capítulo IV
Introdução
A pesquisa dos capítulos I e II indicou a presença de contatos literários entre
Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12. No presente capítulo uma averiguação pautada nos critérios
empregados por Markl aferirá a presença da intertextualidade, ou não, entre os textos
estudados. O escopo será detectar como as indicações de conexões textuais propostas
pelos critérios deste autor ocorrem ou não no texto do Apocalipse, bem como a
motivação do hagiógrafo neotestamentário para recorrer a textos antigos ao
confeccionar o seu texto.
Os critérios de Markl serão tomados como base nesta investigação, mas
sofrerão reavaliação nos pontos em que apresentarem abertura para uma mais
profunda compreensão do horizonte histórico-literário-teológico.
Tendo por base este horizonte e o fato de que esse material antigo sofreu
alterações de cunho teológico em função da cristologia da obra do Apocalipse, as
relações literárias entre os livros não podem ser consideradas acidentais. Até mesmo
o conceito escatologia estaria, nesta obra, totalmente embebido de uma conotação
cristológica que gera nos textos antigos uma nova leitura e recebe do novo texto um
renovado influxo interpretativo que o torna mais elucidativo.
A análise assumirá ainda a postura de observar principalmente Ez 47,1-12,
considerando as linhas de continuidade e descontinuidade entre os textos. Nesta
perspectiva, estudar-se-ão estes indícios literários para se verificar se eles iluminam
ou não a questão do objeto de nosso estudo. Uma vez que estas relações não são
vistas como resultado de um processo redacional, os textos aqui apontados serão
estudados principalmente a partir de suas qualidades literárias, de suas inter-relações
de temas e vocábulos tendo como proposta de averiguação os critérios de Markl
indicados no capítulo I
655.
4. Intertextualidade entre Apocalipse e Ezequiel
4.1 Análise das relações intertextuais entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12
a) Critério de Comunicação
O primeiro vínculo intertextual entre os textos de Ap 22, 1-5 e Ez 47,1-12 é
constituída pelo termo
lx;n; / potamo,j. Apesar da construção lx;N"h; ter uma certa
freqüência na literatura bíblica
656, um primeiro vínculo em comum entre os textos de
Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 pode ser detectado pelo fato de que em nenhum outro texto
encontra-se inserido em um contexto que descreva a origem do rio, muito menos que
o vincule à imagem do Templo. De modo geral, nos demais textos, predomina a
expressão
lx;N"h; como indicação do acidente geográfico. Deste modo, o recurso a lx;n;;,
nos diversos corpora literários do Antigo Testamento, em nada se assemelha àquele
elaborado no texto de Ezequiel.
Restringindo a observação apenas a outros contextos do livro de Ezequiel,
chama a atenção o fato de o emprego do termo
lx;n; encontrar-se sucedido pela forma
rh;n> e, esta, pelo nome próprio rb'K. (cf. Ez 1,1.3; 3,15.23; 10,22; 43,3), sempre
indicando o rio Cobar da Babilônia. Em Ez 3,15; 43,3, apesar da introdução da
preposição
la,, a referência é a mesma: o rio Cobar da Babilônia.
Semelhante elaboração gramatical confirma a existência de uma precisão no
emprego do termo
lx;n;", no livro de Ezequiel, para indicar um rio de modo particular.
Concomitantemente à presença do artigo
h;, antecedendo este mesmo vocábulo ocorre
apenas quando está relacionado com o rio que sai do Templo (cf. Ez 47,6.7.9.12).
655 Cf. Capítulo I deste trabalho, 73-78.
656 Cf. Gn 32,24; Dt 3,16; 9,21; Js 12,2; 13,9.16; 19,11; 1Sm 17,40; 2Sm 17,13; 24,5; 1Rs 17,6.7; 2Rs
3,16; 2Cr 20,16; 32,4; Sb 6,11.
Procedimento similar pode ser encontrado no livro do Apocalipse. Neste, o
termo potamo,j também apresenta indícios de uma elaboração terminológica, pois
tanto pode designar o Eufrates (cf. Ap 9,14), quanto a vulnerabilidade (cf. Ap 12,15-
16; 16,12). Entretanto, apenas em Ap 22,1-2 a presença do acusativo de especificação
concede ao termo potamo,j uma singularidade, aproximando-o do da precisão no
emprego do termo “rio” encontrada em Ez 47,6-12. O “rio” de Ez 47,1-12 e Ap 22,1-
2 possui em comum o fato de ser portador de vida. Esta capacidade extraordinária do
“rio” corresponde somente, ao longo de toda a Sagrada Escritura, àquela encontrada
entre estes dois textos, o que acentua o liame intertextual entre eles. Por fim, Ap 22,1-
2 possui, como em Ez 47,1.12, a indicação do local de origem deste “rio”: ambos
nascem de um local que está ligado ao espaço sagrado.
Considerando ainda uma busca mais abrangente, não foi encontrada uma
única ocorrência que siga a ordem de colocação dos termos de Ez 47,6.7.9.12, a
saber:
;
lx;N"h; + tp;f. (v.6)
;hZ<miW + hZ<mi + daom. + br: + #[e + lx;N:h; + tp;f.-la, (v.7)
;hy<x.yI + ~yIl;x]n: + ~v' + aAby" + rv,a]-lK' (v.9)
.lk'a]m;-#[e-lK' + hZ<miW + hZ<mi + Atp'f.-l[ + hl,[]y: + lx;N:h;-l[;w>
(v.12)
Uma simetria com uma disposição de termos semelhante àquela de Ez
47,7.12 poderá ser detectada apenas no texto de Ap 22,1-2, quando o autor do texto
neotestamentário recorre ao termo potamo,j, indicando não somente o local de seu
surgimento mas também seu entorno. Além disso, o conteúdo do texto de Ez
47,6.7.9.12, quando a semântica do termo o delineia como um curso contínuo de água
originado de uma fonte que independe da sazonalidade e, concomitantemente, não
possui características destrutivas. Neste “rio”, o curso d’água é perene e segue seu
percurso distribuindo segurança e bem-estar por onde passa.
A comunicação entre Ap 22,1-2 e Ez 47,7.12 se faz ainda sentir pela
descrição da vegetação na Cidade Santa. Em ambos os casos, as árvores crescem
abundantemente às margens do rio e produzem frutos. Ao fazer uso da expressão
evnteu/qen kai. evkei/qen, o autor de Ap 22,2a parece ter a intenção de aproximar-se da
construção e;nqen kai. e;nqen / hZ<miW hZ<mi contida em Ez 47,7.12, para acentuar a
multiplicidade de árvores e sua localização às margens do rio. A expressão evnteu/qen
kai. evkei/qen de Ap 22,2a é formada pelo advérbio locativo dinâmico evnteu/qen, “dali,
de lá, daqui”, e pelo advérbio evkei/qen, que fornecem a idéia de ambivalência das
laterais da margem ao longo do rio
657. Isto faculta a manutenção do singular xu,lon
em sentido coletivo, tal como ocorre em Ez 47,7.12.
Esta comunicação entre os textos não parece ser acidental. No texto de Ez
47,7, o advérbio de lugar
la, antecede o substantivo hp'f' e lhe sucede a expressão
daom. br: #[e que manifesta a quantidade de árvores que surgem à beira das margens do
rio que brotou do limiar do Templo. Semelhante recurso é encontrado em Ez 47,12,
onde a construção
hZ<miW hZ<mi reforça a idéia da presença da árvore em ambas as
margens do rio. Intensifica esta presença ambivalente a preposição
!mi, cujo sentido
básico comporta a noção de distância no espaço.
Além de Ez 47,7.12, a construção
hZ<miW hZ<mi apresenta uma outra ocorrência,
em Ez 45,7, onde a construção está relacionada com as dimensões dos bens
reservados aos príncipes
658. Entretanto, apenas em Ez 47,7.12, temos como sujeito o
“rio” e a presença das árvores que crescem à sua margem. Tal singularidade de
comunicação reforça a existência de um vínculo intertextual entre Ez 47,1-12 e Ap
22,1-2.
No entanto, quando o critério comunicação é aplicado a Ez 47,12, a relação
intertextual fica ainda mais acentuada do que quando aplicada a Ez 47,7. De fato, em
Ez 47,12, pode ser encontrada uma maior proximidade com Ap 22,2a, porque, além
de trazer a noção da disposição das árvores e sua localização ao longo do rio, fornece,
ainda, outros contatos com a descrição destas árvores: frutíferas, produção não
657 Cf. DANKER, F. W., A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian
Literature, 685; Cf. BAILLY, A., Dictionnaire Grec-Français, 1343.
658 Na versão grega da LXX, a incidência da expressão e;nqen kai. e;nqen seja detectada em maior
quantidade: Ex 26,13; 32,15; 37,13; Js 9,2; 1 Sm 14,16; 1Rs 10, 19.20; 2Rs 4,35; 2Cr 9,18.19; Ez
40,10.12.16.34.37; 41,15.19.26 em nenhuma destas o sujeito são as margens do rio, permanecendo a
singularidade do texto de Ez 47,7.12 quanto ao emprego de e;nqen kai. e;nqen tendo por sujeito o rio.
Há apenas uma pequena aproximação com Dn 12,5, mas vale ressaltar que neste caso, apesar da
presença do sujeito rio, nada se fala sobre a presença de árvores às suas margens descaracterizando
assim o contato entre os textos.
sazonal de frutos, as folhas não murcham e seus frutos são para o alimento. Assim, o
autor do Apocalipse, ao trabalhar os versículos de Ezequiel, parece ter-se fixado mais
no v. 12 do que no v. 7.
Um outro ponto a ser observado, considerando Ez 47,1a.12f e Ap 22,1a.2a,
é o local de origem da água. Uma associação do verbo
acy659 com termo lx;n; / ~yIm;,
acrescido de um espaço arquitetônico que remeta ao sagrado, é encontrado em Ez
47,1 criando uma nova aproximação lingüística entre os textos.
A potencialidade da água que brota deste espaço arquitetônico possui, tanto
no texto hebraico como no texto grego a mesma semântica: um contínuo
derramamento de água. O verbo
acy660 de Ez 47,1a foi traduzido para o grego como
evkporeu,omai
661. No Novo Testamento, o verbo evkporeu,omai, associado a um espaço
arquitetônico sagrado, só é encontrado no texto de Ap 22,1a criando um novo contato
intertextual. Será do trono de Deus e do Cordeiro que procederá do “rio de água da
vida”.
b) Critério de Referência
A temática escatológica contida nos textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 revela
uma referência entre os textos. A índole escatológica da visão de Ez 47,1-12
concentra-se na restauração da ordem, tendo a vida de áreas ou seres arrasados
restauradas pelas águas (cf. Ez 47,8-12). Semelhante potência decorre de uma
intervenção divina, uma vez que as águas que renovam toda a terra procedem do
Templo (cf. Ez 47,1.12).
659 Os demais textos onde há a ocorrência de ~yaic.yO encontram-se ligados à saída do Egito (cf. Ex
13,4; 14,8), descrevem os braços que saiam do candelabro (cf. EX 25,32; 37,18), à entrada na terra
prometida (cf. Dt 8,7), alvorada (cf. Jz 9,33), partida para a batalha (cf. 1Sm 14,11) e na visão
apocalíptica de Zacarias, a partida dos cavalos pretos (cf. Zc 6,7).
660 Apesar de ser bastante freqüente na literatura do Antigo Testamento: a fórmula ~yaic.yO (cf. Ez 47,1)
ocorre 9 vezes em todo o Antigo Testamento, enquanto
Wac.yE (cf. Zc 14,8) 62 vezes e aceyE (cf. Jl 4,18)
147 vezes. Não o é na sua construção encontrada em Ez 47,1a. A mesma construção encontra-se ainda
tão somente em Zc 14,8 e Jl 4,18.
661 A forma evkporeuo,menon ocorre apenas mais duas vezes do Novo Testamento, entretanto, encontra-
se em um contexto diverso deste de Ap 22,1 porque encontra-se em um contexto de advertência onde
Jesus adverte a multidão a respeito dos perigos que se encontram no coração do homem, mais do que
aqueles que estão fora dele (cf. Mt 15,11; Mc 7,20). Considerando ainda as outras formas do verbo
evkporeu,omai no Novo Testamento, há uma linearidade semântica indicando procedência. Não há, como
no Antigo Testamento uma construção lexical que se aproxime daquela de Ap 22,1.
O requisito para esta restauração é o arrependimento e o retorno a YHWH é
condição para transformar a devastação de Israel (cf. Ez 41,24-27). Após o
arrependimento de coração, Israel recebe a promessa de salvação (cf. Ez 33,1-48,35).
Sucede à promessa de salvação o reconhecimento do domínio absoluto de YHWH
sobre a natureza e a história.
Na perspectiva escatológica do livro do Apocalipse
662, os inimigos do povo
de YHWH já não estão restritos a uma nação, Babilônia conforme a profecia de
Ezequiel, estes inimigos foram sintetizados na imagem da Besta, do dragão e de seus
agentes (cf. Ap 12-13). Sua atuação seduziu a muitos, mas outros permaneceram fiéis
e estarão junto ao Cordeiro sobre o monte Sião (cf. Ap 14,1s). O juízo de Deus vem
sobre seus inimigos para desmascarar seu aparente triunfo (cf. Ap 17-18). Eles serão
julgados por terem corrompido as nações (cf. Ap 14,8.10) e o castigo será sem
misericórdia tanto para os pagãos como para os cristãos dispostos a assumir um
compromisso com as exigências idolátricas da Besta (cf. Ap 18,2; 16,19; 17,5).
Os executores do juízo saem do Templo e do altar (cf. Ap 14,17.18),
indicando que o juízo de Deus é a resposta ao clamor dos santos (cf. Ap 6,10; 8,3-5).
A advertência final é dada em Ap 15,5. O juízo, anunciado desde 11,18 e iniciado no
c. 14, torna-se agora uma intervenção salvífica para resgatar seu povo, mas quem sai
em defesa do povo não é YHWH, e sim o Cordeiro. O juízo de Deus se dará no c.
17,1-19,10 e possui duas partes: o juízo sobre a figura da mulher (c. 17) e a queda da
grande cidade (c.18). Com isto, haverá o reconhecimento da soberania de Deus como
“Senhor dos senhores e Rei dos reis” (cf. Ap 17,14 e 19,16). A vitória do Cordeiro
sobre o falso profeta (cf. Ap 19,17-21), o dragão (cf. Ap 20,1-20) e a morte (cf. Ap
20,11-15) são o prenuncio da salvação e do triunfo da vida (cf. Ap 21,1-22,5).
662Sobre a questão da escatologia no Apocalipse ver: ANCONA, G., Escatologia cristiana. Brescia,
Queriniana, 2003; BARTIRA, S., “La Escatologìa del Apocalipsis”, EstB 21 (1962) 297-310;
BAUCKHAM, R., “The Eschatological Earthquake in the Apocalypse of John”, Novum Testamentum,
19 (1977) 224-233; CARVALHO, J. C., “A simbologia nupcial da númphe e do arníon na escatologia
do Apocalipse”, Humanística e Teologia 23 (2002) 57-98; CHARLES, R. H., Eschatology: The
Doctrine of a Future Life in Israel, Judaism and Christianity. New York, Schocken Books, 1963;
MILLER, K. E., “The Nuptial Eschatology of Revelation 19-22”, CBQ 60 (2, 1998) 301-318;
MILLER, M. St. A., “Eschatology and Ecclesiology: Reflections Inspired by Revelation 21:22”,
Encounter 64 (2, 2003) 109-138
.
Até o c.21, a atenção estava centrada no julgamento contra os inimigos de
Deus e de seu Messias. Agora se concentra sobre o mundo novo esperado pelo povo
de Deus desde a época do exílio babilônico. Neste mundo renovado, a Jerusalém
escatológica será, ao mesmo tempo, a capital e a esposa (cf. Jr 30,1-31,22; Ez 16; 36-
37; 40-48; Zc 14; Is 60-62; 65).
A Jerusalém escatológica tem por missão iluminar a humanidade (cf. Ap
21,24), cumprindo assim a esperança das nações que peregrinam para Jerusalém, para
YHWH (cf. Is 60,3; 2,2.3). Acorrem a Jerusalém levando o esplendor e a riqueza,
como faziam antes com Babilônia (cf. Ap 18,11-17), estas ofertas agora já não
caracterizam um ato de idolatria, mas de reconhecimento do senhorio de Deus sobre
todo as nações. Na Jerusalém escatológica, não haverá mais a necessidade de sol ou
de lua, porque YHWH e o Cordeiro serão a luz perpétua. Na Cidade de luz, a noite,
símbolo da morte, da cegueira e da insegurança, será eliminada. Apenas existe a vida
que brota do trono de YHWH e do Cordeiro, simbolizada no “rio de água da vida
brilhante como o cristal” e na “árvore da vida” (cf. Ap 22,1-2).
Há apenas uma diferença entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 no que
tange àquele que exerce o papel de defensor do povo. No texto vétero-testamentário,
esta tarefa é desempenhada por YHWH, enquanto que no livro do Apocalipse é o
Cordeiro que parte em marcha para salvar os eleitos e exterminar os inimigos (cf. Ap
5,6-10; 19,17-21).
O motivo da fonte contido tanto no texto de Ez 47,1-12; quanto em Ap 22,1-
5 e suas conseqüências estabelecem uma nova referência intertextual, pois da mesma
forma que entre no texto vétero-testamentário, o local de origem da água está situado
no espaço sagrado do Templo (cf. Ez 47,1.12) indicando assim que ela procede
exatamente da presença de YHWH. De igual modo, no texto de Ap 22,1-2, o local de
onde brota a água está vinculado ao espaço sagrado, porque origina-se no trono de
Deus e do Cordeiro o “rio de água da vida brilhante como o cristal”. Este trono
encontra-se ainda na Cidade Santa, a nova Jerusalém (cf. Ap 21,2), onde o “Senhor
Deus Todo-poderoso e o Cordeiro são o seu Templo” (cf. Ap 21,22).
A potência restauradora das águas corrobora a referência intertextual
existente entre Ez 47,1-12Ap 22,1-2, uma vez que as águas se tornam abundantes (cf.
Ez 47,1-12; Ap 22,1), independentes da sazonalidade das chuvas (cf. Ez 47,1-12; Ap
22,1), promovem de vida em toda sua extensão (cf. Ez 47, 5.7.9.10; Ap 22,1) e
totalmente dependentes de seu local de origem para comunicar a vida. Assim, a água
descrita nos textos de Ez 47,1-12; reportam sua habilidade extraordinária de
promover a vida a YHWH; Ele é a fonte, por excelência, da vida.
O Apocalipse segue esta mesma idéia teológica de Ez 47,1-12. Contudo, em
Ap 22,1-2, temos não apenas YHWH, como doador da vida uma vez que sentado no
trono, a seu lado, está o Cordeiro que é juntamente com YHWH doador da vida
663.
c) Critério de Diálogo
Os verbos
apr /u`gia,zw e hyx /za,w de Ez 47,8.9 promovem uma condição de
pureza tão profunda que até as águas do Mar Morto são curadas e se tornam capazes
de abrigar e gerar a vida. A necessidade de uma ação curativa pressupõe que exista
uma situação de carência para o povo, via de regra acarretada pelo pecado. O agente
da cura não é o próprio povo ou um sacerdote, é YHWH. Conseqüentemente, a
possibilidade de um teor punitivo foi descartada (cf. Jr. 19,11; 30,12-13) e abre-se a
perspectiva de salvação (cf. Ez 33,1-48,35).
O destinatário da cura de Ez 47,8.9 é o Mar Morto, cujas águas apresentam
um estado tal, que nada sobrevive nele. Contudo, ao receber a água que sai do
Templo, a vida eclode com proporções inauditas, conforme indica o verbo
hyx /za,w.
Enquanto Ez 47,8 apresenta o tema da vida através do verbo
apr /u`gia,zw,
Ap 22,1a usa o atributo lampro.n w`j kru,stallon. O termo lampro,j no Apocalipse,
encontra-se ligado aos vestidos de linho dos redimidos (cf. Ap 15,6; 19,8), às pedras
da cidade da Babilônia (cf. 18,14) e, por fim, ao próprio Cristo, “a brilhante estrela da
663 Em Jr 17,13, a ocorrência de ~yYIx;-~yIm: não encontra, no que concerne à questão de contexto,
semelhanças com Ap 22,1, porque estão ausentes os elementos de uma escatologia positiva e a
indicação do local que dá origem ao rio. No tocante a temática de fundo, temos em Jeremias a
apostasia e uma busca insana do homem por Aquele que anteriormente abdicou e a conseqüente
destruição que impôs a si mesmo.
Os textos de Gn 26,13; Lv 14,5.50; 15,13; Nm 19,17 ao trazerem a construção
~yYIx; ~yIm: não
apresentam conexões semânticas com Jr 17,13 porque o adjetivo plural “vidas”, assume a conotação de
“nascente” ou “corrente”, além disto, o termo rio, em Gn 26,13, aparece apenas como elemento
espacial onde se faz a escavação. Em nenhum deles há um contexto escatológico. O cenário de Gn
26,13 mereceria uma análise especial sobre o modo que o Novo Testamento em Jo 4 retomou esta
passagem.
manhã” (cf. Ap 22,16). Isto indica que o termo lampro,j pode ser compreendido como
um sinal de salvação.
O comparativo w`j kru,stallon, no interno da obra do Apocalipse, está
ligado à presença de Deus: o lago próximo ao trono de Deus é cristalino (cf. Ap 4,6);
bela e cristalina é a Cidade Celeste (cf. Ap 21,11); cristalino é o material que compõe
a muralha da Cidade Santa (cf. Ap 21,18) e cristalino é o “rio de água da vida que sai
do trono de Deus e do Cordeiro” (cf. Ap 22,1a). Toda a imagem da pureza do cristal
encontra-se unida à presença do Deus Santo.
A construção lampro.n w`j kru,stallon aproxima-se de
apr /u`gia,zw na
medida em que o diálogo intertextual acontece através da idéia de uma perspectiva de
salvação que só pode ser encontrada em YHWH, o promotor de toda a cura. Um
outro elemento de diálogo encontra-se no agente desta cura que em Ap já não é
apenas YHWH, mas também o Cordeiro.
d) Critério de Seletividade
O vínculo intertextual seletivo pode ser encontrado em Ez 47,12, onde a
expressão
hp'Wrt.li Whle['w> “folhas para remédio” está muito próxima do texto de Ap 22,
2bcd. Neste último, embora a ordem da frase tenha sido invertida, pois se descreve,
primeiramente, a produção mensal dos frutos e somente depois a função das folhas,
foi mantido o conceito terapêutico a elas atribuído pelo texto de Ezequiel, bem como
o sentido de restauração para aqueles que permaneceram fiéis a YHWH, apesar das
dores e sofrimentos experimentados.
O termo
#[e aparece em diversos textos do Antigo Testamento e do Novo
Testamento, o que poderia, eventualmente, malograr as relações entre os textos de Ap
22,2a e Ez 47,12. Entretanto, este termo torna-se particularmente importante pelo fato
de que nas mais de noventa vezes que aparece no Antigo Testamento, em nenhum
outro são encontradas as construções “árvores” + “as margens do rio” + “a cada mês”
+ “folhas da árvore destinadas à cura
664.
664 As relações entre #[e e as muitas situações são muitas: incontinência (cf. Is 57,5); inutilidade dos
ensinamentos da vaidade é comparado à madeira (cf. Jr 10,8); como produtora de alimento (cf. Ez
Esta idéia de uma produção contínua presente em Ez 47,12 e Ap 22,2a
possibilitam um novo contato intertextual. As árvores às margens do rio de Ez 47 ou
de Ap 22 possuem uma produção ímpar: o ano inteiro.
Lingüisticamente, a capacidade de produção das árvores apresentam-se de
modo diverso nos dois textos: Ez 47,12c
rKeb;y> wyv'd"x\l' Ayr>Pi ~ToyI-al{w> Whle[' / ouv mh
palaiwqh/| evpV auvtou ouvde mh. evkli,ph| o` karpo.j auvtou. e Ap 22,2b poiou/n karpou.j
dw,deka(kata. mh/na e[kaston. Contudo, a relação intertextual pode ser observada pela
construção destes textos que visam transmitir a mesma cadência ininterrupta de
produção.
De igual modo, as folhas das árvores de Ez 47,12f e de Ap 22,2d
estabelecem uma nova via intertextual entre os textos, por possuírem a mesma
característica: elas servem como terapia. No texto de Ez 47,12f, esta terapia está
diretamente ligada ao território de Israel e seus habitantes, enquanto que em Ap 22,2a
há um alargamento deste conceito no sentido de seus destinatários, que já não são
apenas os habitantes de Jerusalém que mantiveram a sua fé apesar das provações, mas
todas as nações redimidas que habitam a Nova Jerusalém (cf. Ap 21,24.26), as
mesmas que foram resgatadas pelo sangue do Cordeiro (cf. Ap 5,9).
e) Critério de Estrutura
Os textos de Ap 22,1-2 e Ez 47,1-12 manteriam um vínculo intertextual
também no que diz respeito à estrutura da perícope.
A organização da visão de Ez 47,1-12 possui dois momentos intimamente
relacionados. O primeiro apresenta o movimento do profeta, guiado pelo anjo, para a
entrada do Templo, espaço sagrado onde o rio tem sua origem sob a frágil imagem de
um filete de água (cf. v. 1-2). A origem desta água possui singular importância para a
perícope e, por esta razão, o profeta o descreve através do recurso ao vocábulo
tx;T;mi
“de baixo”, unindo duas partículas:
!mi “de” e tx;T; “em baixo”. Este recurso associado
ao verbo
acy torna preciso o local que dá origem à água que formará o rio: o Templo,
o lugar da habitação de YHWH.
34,27); Jl 2,22 ela carrega o seu fruto (cf. Jl 2,22); local para a forca (cf. Gn 40,19); sua madeira
constrói as casas (cf. Ag 1,8) e os altares (cf. Ez 41,16.22.25).
Em seguida, é descrito o percurso da água. O anjo, que anteriormente guiara
o profeta até a entrada do Templo, assume a função de aferir a extensão do rio, que
cresce a cada nova medição. Posteriormente, o profeta é deslocado para as margens
do rio, onde contempla as árvores que lá crescem (cf. v. 6-7).
O segundo momento compreende os v. 8-12. O v. 8 dedica-se a apresentar a
direção tomada pelas águas que continuamente brotam do Templo, enquanto que no
v. 9 é enfatizada a magnitude da cura operada pelas águas: elas reavivam o mar e,
conseqüentemente, possibilitam a multiplicação dos peixes e a cura de todo ser
vivente. Esta extraordinária fecundidade trará de volta os pescadores que se reunirão
para espalhar as suas redes (v.10bcd).
Em um novo deslocamento, as águas dos pântanos e alagadiços não são
transformadas para que sejam promotores da manutenção da vida. Esta manutenção
tem seu ápice no v. 12, onde a abundância de crescimento das árvores, em ambas as
margens do rio e sortidas de “toda a espécie”, promove um paralelo com a
abundância descrita no v.10 quando este alude à profusão de peixes que existirá no
rio. A imagem de abundância continua através do extraordinário fato de as folhas das
árvores não murcharem e seus frutos não serem sazonais. O mérito destes efeitos
extraordinários é precisado, tal como no v. 1, no local que deu origem às águas: o
Templo.
O texto de Ap 22,1-5 possui uma estrutura semelhante à de Ez 47,1-12: o
tema da vida é o cerne da perícope. Ao lado desta característica fundamental, temos o
caráter visionário que se faz presente através da expressão kai. e;deixe,n moi,
ressaltando, como em Ezequiel, a ação do anjo sobre o autor. Igualmente, o ápice da
cena encontra-se descrita nas conseqüências da presença do “rio de água da vida que
brota do trono de Deus e do Cordeiro”.
A estrutura da perícope de Ap 22,1-5 também pode ser analisada em dois
momentos intimamente interligados. O primeiro está no v. 1-3a, que desenvolve o
tema da vida, através da descrição da finalidade dos dois elementos: o rio e a árvore.
O “rio de água da viva” (cf. Ap 22,1a) tem, como em Ez 47,1, o seu local de origem
determinado, é o trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1b). Além disto, a potência
restauradora da água deste rio supera sua função ordinária, pois é portadora da vida
que vem do local onde Deus se faz presente juntamente com o Cordeiro.
O tema da vida é apresentado sob o símbolo da “árvore da vida”, que é
localizada às margens do “rio de água da vida”, com uma produção de frutos não
sazonal, mas constante e cujas folhas são para a cura das nações (cf. Ap 22,2d). O
tema da vida estabelece um contato com o versículo final de Ez 47, indicando que o
autor neotestamentário fez uma síntese do texto de Ez 47,1-12, ao mesmo tempo em
que lhe impõe uma nova apresentação para os efeitos restauradores desta “árvore da
vida” e do “rio de água da vida”.
No texto de Ap 22,3a, a vida será ainda mais pujante em decorrência da
ausência da maldição e da presença estável de Deus e do Cordeiro na Cidade Santa.
Esta presença desencadeia, no segundo momento da estrutura da perícope, uma série
de ações: adoração dos servos, a visão da face de Deus e do Cordeiro, o portar o
Nome e, por fim, compartilhar da ação de governo (cf. Ap 3-5). O escopo destas
ações é a participação do homem na vida divina.
4.2 Contatos em continuidade e descontinuidade
O critério de comunicação sinalizou para uma linha de continuidade entre o
emprego do termo
lx;n; / potamo,j em Ap 22,1-2 e Ez 47,6.7.9.12, quer pelo recurso
gramatical, quer pela semântica ou ainda pela teologia imposta ao termo.
Do texto de Ez 47,6.7.9.12, tanto no Texto Hebraico, como na LXX, foi
conservado o artigo diante do substantivo
lx;n; / potamo,j. O mesmo ocorre no texto
de Ap 22,1, criando, assim, uma relação entre os dois textos a partir do prisma de um
rio singular, com uma característica toda própria. O rio não está subordinado às
condições climáticas que determinariam sua intensidade e vitalidade, além da
manutenção do teor escatológico que permeia os dois textos.
O elemento escatológico não só faculta a visão de continuidade entre Ez
47,1-12 e Ap 22,1-5 como também permite transparecer a intenção do autor
neotestamentário em assumir o sentido de restauração da história humana entendida
como ação do próprio YHWH.
O motivo da água é apresentado como gerador de vida por causa do local de
sua procedência. Por esta razão, a vida que surge deste local é vida abundante, que dá
continuidade ao caráter de um juízo prévio e de salvação presente tanto no texto
vétero-testamentário de Ezequiel quanto no Apocalipse. Por estes elementos, a vida
pode eclodir na Cidade de Jerusalém.
Esta eclosão de vida insere um elemento de descontinuidade entre Ap 22,1-5
e Ez 47,1-12, porque neste último texto a compreensão de restauração da cidade de
Jerusalém assume o teor de uma ação neste mundo, enquanto que, no texto de Ap
22,1-5, a restauração ocorre numa etapa transcendente. A Cidade de Jerusalém é
celestial, vem da eternidade e está preparada para as núpcias (cf. Ap 21,2).
O ponto central de descontinuidade entre os textos está na expressão “trono
de Deus e do Cordeiro” (cf. Ap 22,1-2). Por meio dela, o autor do Apocalipse faz
perceber um novo personagem como princípio e origem da água: o Cordeiro. Este,
situado ao lado do Deus de Israel no trono, é apresentado ao leitor/ouvinte como Deus
em igual dignidade, natureza, poder e majestade. Por trás deste recurso, há um grande
interesse cristológico do autor
665. O singular o` qro,noj, enfatiza a igualdade entre
Deus e o Cordeiro, que dividem um único trono. Esse mesmo singular ocorre com o
Nome e a face de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 22,1-4).
A alteração imposta aos textos de Ez 47,1 permanece no nível vocabular,
pois já não há mais o Templo de Deus em Jerusalém, ao menos não o Templo
665 BINI, W.; Bernardo G. Boschi, Cristologia primitiva. Bologna, EDB, 2004; BORING, M. E.,
“Narrative Christology in the Apocalypse”, CBQ 54 (1992) 702-723; CARNEGIE, D. R., ‘Worthy is
the Lamb: The Hymns in Revelation’ In Christ the Lord: Studies in Christology Presented to Donald
Guthrie. H. H. Rowden (ed.). Leicester, Inter Varsity Press, 1982, 243-256; CARRELL, P. R., Jesus
and the Angels: Angelology and the Christology of the Apocalypse of John. Cambridge, Cambridge
University Press, 1997; CARREZ, M., “Le déploiement de la christologie de l’Agneau dans
l’Apocalypse”, RevHistPhilRel, 79 (1999) 5-17; DE LA POTTERIE, Studi di Cristologia Giovannea.
Marietti, 2004; FORD, J. M., “The Christological Function of the Hymns in the Apocalypse of John”,
AndUnivSemStud 36 (1998) 207-229; GIELSEN, H., “Zur Christologie der Thonsaalvision (Offb 5)”,
Theologie de Gegenwart 44 (2001) 25-35; GIESEN, H., “ “Zur Christologie der Johannesapokalypse”,
Theologie der Gegenwart 43 (2000) 185-197; HERZER, J., “Der erste apokalyptische Reiter und der
Köning der Könige. Ein Beitrag zur Christologie der Johannesapokalypse” NewTestStud 45 (1999)
230-249. Ap 6,1-2); HULTBERG, A. D., Messianic Exegesis in the Apocalypse:
The Significance of
the Old Testament for Christology of Revelation. Trinity Evangelical Divinity School, 2001; LIOY, D.,
The Book of Revelation in Christological Focus. Studies in Biblical Literature 58. New York, 2003;
PITTA, A., Studi di cristologia giovannea. Assisi, 1992; POTTERIE, I. de la, Studi di cristologia
giovannea. Assisi, 1992; VANNI, U., “La dimension christologique de la Jérusalem nouvelle”
RevHistPhilRel 79 (1999) 119-133; “Dalla venuta dell’ ‘ora’ alla venuta di Cristo (La dimensione
storico-cristologica dell’escatologia nell’Apocalisse)”, Studia Missionalia 32 (1983) 309-343.
entendido com dimensões físicas que sinalizam a presença de Deus. Na Nova
Jerusalém, há o “trono de Deus e do Cordeiro” como lugar da presença de Deus e de
sua soberania.
Conseqüentemente, a adoração dos servos (cf. Ap 22,3c) será dirigida a
Deus e ao Cordeiro. Os gestos são os mesmos encontrados nos c. 4-5, onde Deus é
reverenciado por seus servos com prostrações, adoração e aclamação (cf. Ap 4,10-
11). Os mesmos gestos de adoração são dirigidos ao Cordeiro, proclamando-o digno
de receber poder, glória e louvor (cf. Ap 5,12). A escatologia recebe um influxo da
cristologia e, com isto, é inserido um outro elemento de descontinuidade.
Esta adoração põe em relevo o aspecto de intimidade com Deus e com o
Cordeiro que supera aquele da constante possibilidade de afastar-se d’Ele. Na
eternidade, o homem já não poderá mais ser tragado pelo pecado, porque o Cordeiro
foi imolado (cf. Ap 5,6) e resgatou todos os homens de todas as raças e línguas (cf.
Ap 5,9). Este resgate foi plasticamente traduzido na imagem do “rio de água da vida
brilhante como o cristal”, contribuindo para uma descontinuidade com Ez 47,1, pois
as águas eram capazes de nutrir apenas as regiões mais inóspitas da terra, curando-
lhes todas as mazelas. Entretanto, em Ap 22,1, o trono de Deus e do Cordeiro
apresenta-se como uma fonte que introduz uma água cristalina que regenera não mais
uma região, mas a humanidade (cf. Ap 22,4).
A água que procede do trono de Deus e do Cordeiro é classificada como
“água da vida” e dá continuidade à temática do texto de Ez 47,1-12. Embora o
atributo “da vida” não se encontre grafado, pode ser detectado através das
conseqüências geradas pelo deslocamento do rio. Ao longo de todo o seu percurso,
vai se delineando um cenário de vida abundante em terras ou águas que antes eram
totalmente inóspitas.
A noção de vida plena com Deus e aniquilamento da idolatria permanece em
Ap 22,1a, como se depreende pela estrutura proposta no texto antecedente: a vitória
sobre todo o mal (cf. Ap 21,5.8). O acesso a esta vida, que a água do rio é capaz de
fornecer, está vinculado a um existir na relação com YHWH e o Cordeiro e, neste
caso, insere-se o elemento de descontinuidade, porque o Cordeiro junto a YHWH se
assenta no trono e é princípio e doador da água da vida.
A potencialidade desta “água da vida”, tal como nos textos vétero-
testamentários, não encontra causa nela mesma, mas no local de onde ela procede e
onde está a origem da vida que proporciona a alegria escatológica. Por esta razão, a
cristalinidade da água de Ap 22,1a pode ser compreendida como um símbolo cunhado
pelo autor do Apocalipse, cujo escopo é indicar, de modo plástico, o próprio Deus e
seu Cordeiro, como fonte geradora de vida na Nova Jerusalém. A imagem da água
“cristalina” associada à imagem do rio teria, assim, como função demonstrar que a
água ofertada ao homem é abundante e puríssima, destituindo a possibilidade de uma
carência, de uma restrição ou limitação da vida, pois é ininterruptamente abundante.
A retomada do termo
lx;n; / potamo,j em Ap 22,2a, dá continuidade ao
pensamento encontrado em Ez 47,1-12 e, possivelmente, foi escolhido para fazer
recordar ao leitor/ouvinte que o rio a que se refere é aquele mesmo de Ez 47,12. Além
disso, como reforça o fato de ser sucedido pela expressão “de um lado e do outro” e
complementada pela imagem da “árvore com seus frutos” periódicos e folhas
medicinais.
Outros elementos de descontinuidade são percebidos nos muitos frutos
produzidos pela árvore: 12 a cada mês. O numeral 12 propõe a noção de abundância
da vida destituída de qualquer carência ou restrição, uma vez que, a cada mês, é
garantida ao habitante da Cidade Santa o sustento. O texto de Ez 47,12 não apresenta
o numeral 12 como referência de abundância; nele a noção de abundância vem
expressa pela não interrupção da função de produzir da árvore, ela
lAByI-al{ de
frutificar.
As folhas seguem esta mesma linha de manutenção da vida quando se
apresentam como terapêuticas. Enquanto que, em Ez 47,12f, a cura está restrita a
Israel, em Ap 22,2d, esta cura atinge todas as nações, sem uma referência restritiva ao
povo de Israel, inserindo, mais uma vez, o universalismo da salvação.
Entende-se por todas as nações aquelas redimidas que habitam na Jerusalém
Celeste e que já não são inimigas de Deus e de seu povo, são membros da família de
Deus (cf. Ap 21,24.26; 22,2). Esta pertença está explícita em Ap 5,9, no qual “povos
foram comprados pelo sangue do Cordeiro”. Sendo assim, parece justo afirmar que, a
partir de Ap 5,9, entende-se melhor o significado da “cura das nações” de Ap 22,2d.
Esta aquisição tornou-se o motivo para em Ap 7,9 serem elencadas, como uma
multidão enorme, aqueles que venceram a grande tribulação e não se subjugaram ao
poder da besta. O tom escatológico e universalista está presente neste curar as nações
sem negligenciar a temática da vida doada por Deus e pelo Cordeiro.
A palavra qerapei,a encontra-se atrelada ao cuidado mais atencioso pela vida
que, momentaneamente ou cronicamente, encontra-se destituída da plenitude da vida.
A cura das nações, através das folhas das árvores, antecede ao grande dom da
inexistência de todo o mal e de todo o pecado: o anátema foi retirado. A vida, que
brota do trono de Deus e do Cordeiro, supera a destruição do pecado. Todos os que se
regozijam na vida escatológica na Nova Jerusalém não precisam mais ter medo da
destruição e lá viverão em eterna segurança. Dessa forma, o tom escatológico e
cristológico é claro.
Um outro ponto de descontinuidade está na falta de uma dupla apresentação
das margens do rio: uma simples, como ocorre em Ez 47,7, e outra desenvolvida no
v.12. No texto de Ap 22,2, a descrição é única e mais detalhada, e traz novidades
como o qualificativo “da vida” para as árvores, a expressão “a cada mês”, além do
dilatamento do termo “remédio” para “cura”, em Ap 22,2.
A seção encerra-se com o anúncio da extinção da maldição, que não existirá
mais e seu aniquilamento será total. O sujeito da frase kata,qema, que é uma
construção única do autor do Apocalipse, não recorre apenas ao termo comum
avna,qema para evitar uma aproximação com a idéia vétero-testamentária e mesmo
neotestamentária de algo devotado à destruição. A intenção do autor do Apocalipse
direciona-se para a maldição em si mesma: o mal enquanto um ser ou algo que a ele
pertença. Enfatiza, desta forma, a total impossibilidade de existir diante do trono de
Deus. Algo de maldito ou que traga em si a maldição, somente aquilo que pertence a
Deus, que a Ele se configura, possuirá vida em abundância e permanecerá diante de
seu trono na Cidade Santa, a Jerusalém celeste, e receberá o título de servo.
4.3 Conclusões
O recurso à metodologia intertextual apresentou-se como um instrumento
para melhor entender o modo de utilização de um texto mais antigo em um novo
texto
666. O estudo dos pontos de contato entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12,
indica que estes podem ser detectados tanto em linha de continuidade como de
descontinuidade. Tal utilização mostra um propósito previamente elaborado da parte
do autor neotestamentário.
Sendo assim, há objetivos precisos que levaram o hagiógrafo a selecionar
estes textos dentre toda a literatura vétero-testamentária, para, nesta etapa de seu
escrito, fazer eclodir as idéias teológicas neles contidos. Através delas, o autor
neotestamentário fará o seu leitor/ouvinte assimilar novos conteúdos teológicos
trazidos pela novidade da pregação cristã.
a) A intertextualidade em relação a fonte do rio de água da vida brilhante como o
cristal
O motivo da fonte de água que surge do Templo e do trono de Deus
demonstrou, através da aplicação dos critérios de averiguação de elementos
intertextuais, tratar-se de um caso onde textos falam entre si, dialogam, possuindo
uma relação literária não acidental. Há, entre o texto vétero-testamentário proposto
para o estudo, uma intenção do autor do Apocalipse em utilizá-lo com um objetivo
teológico preciso que aprofunda o texto anterior.
Conforme indicou o estudo do texto, a expressão “rio de água da vida
brilhante como cristal” mostrou que esta deve ser compreendida como ummbolo
cunhado pelo autor do Apocalipse
667. Esta elaboração, contudo, possui contatos com
textos vétero-testamentários aos quais o autor do Apocalipse recorre com consciência
666 Cf. ver: Capítulo I, 1.3.2 Na linha da intertextualidade. c) a intertextualidade aplicada ao estudo do
Apocalipse, 56, deste trabalho.
667 Cf. Kowalski, prefere classificar o recurso aos textos vétero-testamentários desta perícope como
alusão mista, sem entrar na questão da intertextualidade. Por alusão mista o autor entende que uma
seqüência característica de palavras ou expressão não remonta apenas a um versículo do Antigo
Testamento, mas a diversos. Cf. KOWALSKI, B., Die Rezeption des Propheten Ezechiel in der
Offenbarung des Johannes, 245-246.
do contexto que estes possuíam em seus livros de origem e, intencionalmente, faz
recordar, na memória do leitor/ouvinte, o conteúdo teológico e semântico contido nos
textos selecionados.
De fato, ao assumir o termo “rio” e mantendo-lhe o artigo, o autor
neotestamentário assume o estilo presente em Ez 47,1-12, que tinha por objetivo
particularizar o rio, aquele mesmo que foi tornado capaz de gerar a vida em todos os
locais por onde passou, porque brotou do Templo. Esta distinção geográfica é a
garantia e a causa da noção de vida que o termo “rio” traz em si mesmo, pois as águas
que ele porta brotam do local onde Deus habita.
O qualificativo “cristal”, ao longo do livro do Apocalipse, foi utilizado com
certa parcimônia e sempre com relação àquilo que manifesta a Pessoa divina (cf. Ap
4,6; 21,11.18; 22,1). Tal precisão concedida ao termo gera uma particularidade
intertextual bastante acentuada, pois o diálogo entre os textos fazem ressaltar a
diafania da presença de Deus.
Assim, o escopo da assimilação, pelo autor do Apocalipse, do termo “rio” e
de alguns de seus atributos, seria aquele de mostrar que o rio que corta a Cidade Santa
é aquele proposto nos textos antigos, mas com a inserção de elementos novos que
provoca o diálogo entre os textos. Este diálogo encontra a sua razão na descrição do
local de sua origem: o trono de Deus e do Cordeiro.
b) A intertextualidade em relação ao trono de Deus e do Cordeiro
Todos os atributos do “rio”, bem como sua capacidade restauradora,
convergem para o seu local de procedência. O ato de proceder do trono de Deus e do
Cordeiro manteve as indicações teológicas vinculadas ao espaço sagrado contidas em
Ez 47,1. Assim, o autor do Apocalipse, intencionalmente, assumiu em seu texto o
verbo
acy, traduzido para o grego como evkporeu,omai, juntamente com seu contexto
escatológico, produzindo uma referência entre os textos.
O verbo evkporeu,omai revela ser este “sair” do trono de Deus e do Cordeiro,
não limitado ao tempo, mas é um brotar contínuo. Portanto, a “água da vida”
converte-se no dom da vida eterna que Deus concede aos seus servos que habitam a
Cidade Santa (cf. Ap 22,3c). Esse mesmo verbo reorienta o leitor/ouvinte para o novo
local de onde o “rio de água da vida” procede: o trono de Deus e do Cordeiro. O
símbolo do Cordeiro é a grande novidade da fé cristã: o Cristo morto e ressuscitado,
descrito sob o símbolo do Cordeiro, está assentado no mesmo trono de YHWH,
possuindo a mesma igualdade.
De fato, Deus e o Cordeiro ocupam o mesmo espaço. Este, por um lado,
indica uma perspectiva escatológica de juízo, privilégio real e habitação de YHWH
em meio a seu povo (cf. Ne 3,7; Gn 41,40; Ez 43,7). Por outro, é o espaço sagrado
que indica o lugar onde habita o Nome, segundo a visão deuteronomista ou a casa de
oração e sua sacralidade em decorrência de Deus habitar nele (cf. Is 56,7)
668. A
mesma tensão teológica encontra-se no trono descrito pelo Apocalipse, pois o trono
YHWH se encontra juntamente com o seu Cordeiro.
Esta igualdade se depreende através da idéia do espaço arquitetônico
sagrado presente em Ez 47,1, que suscitam no leitor/ouvinte a noção de um espaço
para a habitação de Deus, um local para o encontro com YHWH. No Apocalipse, este
espaço foi suprimido (cf. Ap 21,22), enquanto edificação humana; na Jerusalém
eterna, o Templo é o próprio YHWH e o Cordeiro. Permanece relacionada a esta
edificação a causa da origem da água: do lugar onde YHWH habita surge esta água
que restaura a vida humana, mas lhe é acrescentada a duplicidade da causa, ela tem
origem também no Cordeiro.
Neste ponto, se percebe que a escatologia é totalmente perpassada pela
cristologia. Toda a expectativa escatológica contida nos textos analisados é elevada
pela visão do Novo Testamento. Ao lado de YHWH, o Cordeiro é apresentado como
Senhor, Juiz da história e redentor (cf. Ap 5,6-10; 22,1-5).
O símbolo do Cordeiro, cunhado pelo autor neotestamentário
669, foi
paulatinamente apresentado ao longo do livro. Ele é o redentor do homem, aquele que
realizou, na história, a eliminação de toda a marca do pecado, através de sua morte de
cruz e ressurreição. Por esta paixão, morte e ressurreição, o mal foi totalmente
eliminado. Nela, o Cordeiro adquiriu para Deus todos os homens de todas as raças
668 Cf. Capítulo III, Ez 47, 1-12: Aspectos semânticos; Primeira seção: v. 1-7; a) Primeiro momento:
águas brotam do limiar do Templo (v. 1-2), 188.
669 No Capítulo II, 2.4 Ap 22,1-5: aspectos semânticos, c) O trono de Deus e do Cordeiro, 101-110,
foi dedicado amplo espaço para a descrição do símbolo do Cordeiro de pé como imolado.
(cf. Ap 5,9-10; Rm 8,24; 1Pdr 1,18-19). Esta aquisição tem por finalidade a vida
destes homens que agora constituem um reino que durará para todo o sempre (cf. Ap
22,5). Assim, a soteriologia também é perpassada pela cristologia.
O senhorio da história, antes atribuído apenas a YHWH, como indicou os
elementos intertextuais de estrutura dos textos estudados, passa a computar um novo
Senhor: o Cordeiro que recebeu de Deus o livro (cf. Ap 5,7) e foi feito juiz deste
mundo e Senhor da história.
A soberania que o fato de estar sentado no trono confere ao Cordeiro impõe
aos habitantes da Cidade Santa o ato de adoração. Tais habitantes, identificados como
servos, estão distantes da perspectiva de uma servidão que descaracteriza o ser
humano, segundo a dinâmica da sociedade de então. A perspectiva de servidão segue
o conceito de resgate impresso pelo Novo Testamento: resgate da morte e do pecado
(cf. Rm 6,12-23) por meio do sangue do Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo (cf Jo 1,29).
O pagamento de um resgate introduz necessariamente a expectativa de haver
um proprietário deste servo. Este proprietário, de acordo com o pronome auvtou/, é
Deus e o Cordeiro. Com isto, a cristologia deste texto apresenta-se sempre mais
elevada.
Assim, ao acrescentar a imagem do Cordeiro sentado no trono de Deus, o
autor do Apocalipse conduz o seu leitor/ouvinte a uma síntese sobre a figura deste
Cordeiro como Deus, em igualdade com o Deus vétero-testamentário, mas lhe
acrescenta as informações teológicas do Novo Testamento.
O Cordeiro assentado no trono de Deus passa a ser o mais intenso elemento
de descontinuidade intertextual, pois toda a renovação imputada à água do rio, bem
como a árvore da vida, têm Nele e em Deus a sua causa.
c) A intertextualidade em relação à árvore da vida
A acessibilidade à árvore é duplamente sinalizada: ela está no meio da praça
e às margens do rio de água da vida brilhante como o cristal. Todo o homem pode
tomar de seus frutos e de suas folhas (cf. Ez 47,12; Ap 22,2). O objetivo de trabalhar
a idéia de uma vida em plenitude, como projeto de YHWH para o homem, perpassa
os textos, o pecado e a morte, que já estão aniquilados, e, assim, a vida eclode na
Nova Jerusalém.
Tal eclosão de vida não cessa e será descrita com maiores detalhes pela
produtividade das árvores, como no texto de Ez 47,12, de produzir novos frutos e
suas folhas se prestam para a cura. O autor do Apocalipse provoca seu leitor/ouvinte
com esta descrição, mas lhe insere um elemento novo do universalismo desta
redenção proposta pelo texto de Ezequiel. A novidade cristã altera a mentalidade de
uma salvação restrita ao povo de Israel, indicando que YHWH é Deus de todos os
povos e que concede a todos a salvação.
Tendo sido a raça humana resgatada de seu estado de servidão e afastamento
de Deus, que, em síntese, devem ser identificados como pecado, o homem se
apresenta livre para adorar a Deus e contemplar a sua face. Essa contemplação se
transforma em um diálogo constante entre o servo e seu Senhor.
A tarefa do servo na Cidade Santa passa a ser a adoração perene, que é a
configuração do íntimo e do agir externo do homem/servo com a vontade de Deus e
uma distinção clara do mundo entendido como opositor ao querer divino. A grande
novidade deste versículo está no objeto da adoração: o Cordeiro foi apresentado como
Deus justamente por ocupar o mesmo lugar que aquele no trono. O local também
proporciona algo novo, uma vez que a adoração, antes reservada apenas ao Templo,
não se encontra mais a ele circunscrita, mas ampliada para todo o domínio da Cidade
Santa. A periodicidade, determinada anteriormente pela função litúrgica, já não
encontrará um fim, conforme indica a conjugação verbal latreu,sousin.
Um novo pronome auvtou/ alude a algo totalmente novo na Sagrada Escritura:
os servos vêm a face de Deus e do Cordeiro. O que fora o escopo escatológico do
povo da Antiga Aliança torna-se, neste momento, uma realidade concreta. Porém,
mais uma vez, a expectativa é dilatada, porque, além da visão da face de Deus, os
servos vêem a face daquele que os resgatou do pecado: o Cordeiro imolado.
O governo é exercido tanto por Deus como pelo Cordeiro. Trata-se de um
governo co-dividido, tal como enfatiza a presença do singular o` qro,noj pondo em
relevo, mais uma vez, a igualdade existente entre Deus e o Cordeiro. Esta ênfase,
reforçada pela construção latreu,sousin auvtw/, onde se observa que a adoração é
dirigida tanto a Deus como ao Cordeiro, aponta como idênticas tanto as atribuições
políticas como também as de culto.
Este estado de visão plena impõe a integral consciência do objeto que se vê:
a face de Deus e do Cordeiro. E, a partir de agora, sem restrições e de modo
constante, segundo a forma verbal o;yontai. Se permanente é a visão, permanente será
a intimidade com este Senhor, porque os servos trazem em suas frontes o Nome
impresso, denotando a pertença absoluta Àquele que o resgatou e lhe concede vida
plena. Pertença e vínculo amoroso, sendo assim, se entrelaçam.
O termo noite, do v.5, adquire um caráter metafórico neste versículo. A
construção “e noite não haverá mais” está ligada à idéia de ausência absoluta do
pecado tal como ocorreu em Ap 22,3a. As trevas, no sentido do pecado, já não mais
atingirão o homem em conseqüência da presença de Deus, tal como aconteceu no
v.3a. Lá pela presença do trono, aqui pela presença do Deus supremo, como indicam
a locução o[ti ku,rioj o` qeo.j e o verbo fwti,zw, que tem ku,rioj o` qeo.j como a fonte
do resplandecer, indicando, assim, ser ele mesmo a luz por excelência. Aqui emerge
uma perspectiva escatológica, pois os destinatários deste resplendor são os servos de
Deus e do Cordeiro. O reinado eterno do qual participarão os servos de Deus e do
Cordeiro, como indica a locução eivj tou.j aivw/naj tw/n aivw,nwn, não encontrará
limitações. Deus e seus servos estarão juntos por toda a eternidade.
Por fim, poderíamos dizer que o motivo da fonte de água que surge do
Templo ou do trono tem como meta apresentar, de modo plástico, o próprio Deus e o
Cristo-Cordeiro, como fonte geradora de vida na Nova Jerusalém. A imagem da água
associada à imagem do rio teria, assim, como função demonstrar que a água ofertada
ao homem é abundante, é água como um rio. Esta representação quantitativa
eliminaria toda e qualquer possibilidade de uma carência, de uma restrição ou
limitação da vida, esta seria ininterruptamente abundante e eterna.
O recurso aos textos vétero-testamentários parece ter como objetivo levar o
leitor a um novo nível de leitura, onde o texto antigo é iluminado pelo texto
neotestamentário. Para isso, é necessário estar em contato com textos anteriores e
manter atenção sobre o modo como o autor sagrado manipulou este patrimônio e o
encadeou. Como em uma sinfonia, textos de origens distintas, mas que, lado a lado,
dão vida a um novo texto sob o advento do Cristo ressuscitado e de uma escatologia
de cunho cristológico.
Como indicativo de descontinuidade, temos ainda o modo de utilização do
material de Ezequiel. Este uso apresenta omissões de seções inteiras concernentes ao
Templo, sugerindo que houve uma simplificação ou uma condensação da mensagem
de Ezequiel pelo autor do Apocalipse, com o objetivo de torná-la universal. Esta
universalização encontra-se ligada às promessas feitas a Israel e entendida como
exclusiva de Israel (cf. 2Sm 7,14; Ez 47,12), além de ter por objetivo mostrar que a
salvação pertence a toda a humanidade.
Assim, o motivo da fonte de “água da vida” como leitura intertextual de Ez
47,1-12 e Ap 22,1-5, foco de nosso estudo, revela-se concreta tanto em linha de
continuidade como também de descontinuidade e se dá basicamente entre Ez 47,
1.12. Aqui o grau de referência intertextual se aplica à idéia do local da habitação de
Deus e da perspectiva escatológica.
Os textos vétero-testamentários tiveram sua perspectiva escatológica
temporal transformada por Ap 22,1-5 em uma esperança escatológica eterna, onde
não haverá mais a possibilidade dos habitantes de Jerusalém serem atingidos por
nenhum mal, porque este está vencido pelo Cordeiro imolado.
CONCLUSÃO
1. Síntese da pesquisa
1.1 A utilização do Antigo Testamento pelo livro do Apocalipse
O estudo dos métodos relacionados ao uso que o Apocalipse fez dos textos
do Antigo Testamento considerou, em um primeiro momento, a existência de um
conjunto de procedimentos que buscavam compreender o modo através do qual o
autor do Apocalipse se apropriou dos textos vétero-testamentários e os inseriu em seu
texto. Num segundo momento, considerou a abordagem intertextual que, tomando
alguns elementos das perspectivas anteriores, vem oferecendo à pesquisa exegética a
possibilidade não apenas de observar o modo de utilização do texto antigo em um
novo texto, mas também insere a função do leitor.
Os primeiros procedimentos trabalhavam, de modo geral, com um modelo
de pesquisa que objetivava detectar o modo de atuação do autor do Apocalipse quanto
ao emprego dos textos vétero-testamentários em seu texto. Contudo, em decorrência
da ausência de uma definição precisa a respeito do método empregado pelo novo
autor ao usar os textos antigos, tais procedimentos apresentaram-se insuficientes para
responder a questões relacionadas à diversidade no modo como o autor do Apocalipse
apropria-se dos textos antigos e como este manuseio afeta o novo texto e o seu leitor.
A questão da habilidade com que o autor do Apocalipse manuseou os textos
do Antigo Testamento ao compor o seu texto atingiu também o tipo de texto. De fato,
em alguns momentos, este autor recorre ao texto da LXX e, em outros, ao Texto
Hebraico. Tal procedimento decorre de um critério: onde a LXX seguiu de forma fiel
o Texto Hebraico, o autor do Apocalipse o segue, mas quando esta se mostra pouco
constante, o texto seguido é o Hebraico
670. Esta seleção decorre da intenção
lingüística e teológica do hagiógrafo, portanto, não se trata apenas de uma opção de
670 Cf. VANHOYE, A., ‘L’ utilisation du livre d’Ézéchiel dans l’ Apocalypse, 446.
traduções, é antes uma escolha de um texto que mais perfeitamente fale à memória do
leitor/ouvinte.
A compreensão sobre o tipo de texto utilizado pelo autor do Apocalipse ao
recorrer ao texto de Ezequiel foi um dos elementos de investigação do trabalho de
Vanhoye. Segundo ele, o texto de Ezequiel presente no Apocalipse foi administrado
de modo livre sem estar vinculado a uma dependência com o texto anterior. Haveria
um trabalho que estaria em acordo com a intenção teológica do novo autor.
O emprego ordenado dos textos de Ezequiel e seu caráter litúrgico
perpassaram a pesquisa de Goulder
671 e de Ruiz672. Já Vogelgesang673 entende
que o escopo do autor seria democratizar e desmitifizar as tradições da mística
judaica presentes no texto de Ezequiel e redimensioná-las para retirar-lhes os
exageros eventualmente impostos por esta estrutura de pensamento.
Uma abordagem através de fenômenos lingüísticos entendeu serem as
anomalias presentes no texto reflexo de uma inabilidade do autor neotestamentário ao
manipular os textos vétero-testamentários. O gênero apocalíptico, por sua vez, não foi
instrumento de cerceamento da liberdade do autor. Ele segue modificando o texto
anterior e mesclando a partir da concepção do Cristo Ressuscitado. O mesmo ocorreu
com as tradições judaicas. O autor as administra segundo o seu objetivo teológico e
não se faz subordinado a estas.
O procedimento intertextual tem auxiliado a pesquisa exegética a detectar
como o autor elaborou o seu trabalho de redação tomando por base tradições e como
a decodificação exercida pelo leitor promove a captação das conexões estabelecidas
pelo autor.
671 Cf. GOULDER, M. D. “The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies” NewTestStud, v. 27,
342-367, 1981.
672 Cf. RUIZ, J.-P. Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation of Prophetic Language in
Revelation 16,17-19,10. New York, Peter Lang, 1989.
673 Cf. VOGELGESANG, J. M. The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation. Cambridge:
Harvard University, 1985.
1.2 O estudo de Ap 22,1-5
Após a vitória do Cordeiro sobre todo o mal (cf. Ap 17-19) e da derrota
impingida aos inimigos de Deus (cf. Ap 17.18), o autor do Apocalipse concentra sua
atenção sobre a Cidade Santa que desce do céu e a descreve minuciosamente: nela
não existe templo (cf. Ap 21,22), porque tudo nela é sagrado e consagrado pela
presença de Deus. Conseqüentemente, não haverá sofrimento nem morte (cf. Ap
21,3-6). Sua arquitetura é especialmente reluzente, resplandecente de glória (cf. Ap
21,10-11), com medidas (cf. Ap 21,15-17) e materiais específicos (cf. Ap 21,18-21);
a Nova Jerusalém possui portas que não se fecham (cf. Ap 21,12.14); e, para ela as
nações convergem com seus tesouros e nada de impuro nela entrará (cf. Ap 21, 24-
27).
Neste contexto, encontra-se o texto de Ap 22,1-5, que assume particular
relevância em função de ser o ápice de toda a cena que descreve a Jerusalém Celeste.
Os v. 1-2 constituem o eixo de todo o texto ao descreverem os elementos
que facultam a todo homem a aquisição de uma vida em plenitude. Sob o símbolo do
“rio de água da vida brilhante como o cristal”, o autor do Apocalipse sintetizou
conceitos intimamente vinculados à noção de vida. Um deles é o rio, que aparece
como meio de promover a vida por onde quer que passe. Um outro é a água,
intitulada “da vida”, que, no livro do Apocalipse, comporta a idéia teológica de vida
eterna ofertada apenas por Deus e pelo Cordeiro. Além destes, está a “água da vida”,
que tem como predicado ser “brilhante como o cristal”, porque é puríssima; nela nada
há de impuro, ou seja, não há, nas águas do rio, nada que possa conduzir, para a vida
do homem, dor, sofrimento ou o pecado.
O “rio de água da vida brilhante como o cristal” habilitaria o homem a
entrar e viver uma vida plena na Cidade Santa. Entretanto, tal faculdade concedida ao
rio permanece como dom gratuito de Deus e do Cordeiro conforme indica o local de
procedência do rio. Esta gratuidade do dom, contudo, supõe a liberdade humana que
pode ou não desejar esta água de vida plena ou recusá-la.
A imagem do “trono de Deus e do Cordeiro” oferece, além da indicação do
local da origem do “rio de água da vida brilhante como o cristal”, a pessoa do
Cordeiro no mesmo nível de igualdade com o YHWH, quer pela manutenção do
artigo, tal como era o estilo lingüístico do Antigo Testamento, quer pela disposição
geográfica por ele ocupada: sentado no mesmo trono e receptor de igual adoração (cf.
Ap 22,4-5).
O termo “Cordeiro” é um símbolo cunhado pelo autor do Apocalipse no c.5.
Nele, através de várias imagens, foi descrito como imolado, de pé, receptor do livro,
digno de lhe abrir os selos, resgatador de todos os homens e adorado pelos anciãos
(cf. Ap 5,1-10), com o objetivo de apresentar através deste símbolo a pessoa de Cristo
crucificado e ressuscitado. A morte experimentada pelo Cordeiro possui um viés
escatológico na medida em que Ele foi estabelecido como o juiz deste mundo e da
história (cf. Ap 5,7). Por ela, e a preço de seu sangue, todos os homens, de todas as
raças, passam a pertencer ao Pai. A cristologia deste texto perpassará o livro e
atingirá a perícope de nosso estudo portando os elementos nele descritos.
Assim, quando Ap 22,1 declara que o Cordeiro divide o mesmo trono com
YHWH, o Deus de Israel, e com Ele se faz fonte de vida para toda a humanidade, o
autor sagrado não se detém mais em descrições, apenas apresenta-O com igual poder
e soberania. De seus servos receberá, tanto quanto YHWH, o culto de adoração (cf.
Ap 22,4-5).
1.3 O estudo de Ez 47,1-12
A imagem do Templo assume um papel central nesta perícope, porque dele
provém a água, que, em um primeiro momento, apresenta-se de modo extremamente
frágil: um gotejar que brota do limiar do Templo (cf. Ez 47,1). A seguir, esta imagem
de fragilidade foi paulatinamente substituída pela medição constante do nível que esta
água adquiriu na medida em que se deslocava. Em princípio, era possível verificar
seu crescimento tendo como parâmetro o corpo do profeta, mas, em um determinado
momento, o rio que se formou a partir da água que saiu do Templo tomou tal
proporção que era impossível mensurar (cf. Ez 47,3-5). Esta massa impetuosa de água
em que se transformou o pequeno filete de água que saía do Templo recebe, a partir
do v. 7, o incremento da imagem de muitas árvores margeando o rio. A função destas
será descrita mais tarde.
A idéia de vida que se propõe desde o primeiro versículo, através da
imagem do filete de água que escorre do Templo, recebe o reforço da figura das
árvores; e assim, a vida vai tomando novas conotações. Em seguida, as águas se
precipitam pela estepe e vão até o mar; quando o atingem, purificam suas águas.
Assim, a vitalidade das águas que escorre do Templo não encontra barreira que
possam resistir, nem mesmo a altíssima salinidade das águas do mar.
A purificação do mar resulta em uma profusão de vida, pois os animais se
multiplicam abundantemente e,assim, o homem tem sua vida mantida quer pelo
exercício de sua profissão de pescador quer pela garantia de alimento. A vida ainda se
faz sentir pela manutenção da salinidade dos pântanos que proporcionam sal para a
alimentação e para o sacrifício oferecido no Templo.
A descrição da vida abundante chega ao seu ápice com a descrição, mais
pormenorizada do que no v. 7, das árvores que margeiam o rio. Estas abrangem a
totalidade das árvores frutíferas, resultando em uma variedade de frutos que garantem
a fartura e a variedade e tornando a conservação da vida mais aprazível. A vitalidade
atinge, de modo extraordinário, até mesmo as árvores: de suas folhas serão extraídos
medicamentos e, de modo totalmente novo, não murcharão.
Em todo o cenário descrito ao longo da perícope, a vida renovada pela força
das águas que saem do Templo é o grande ponto de referência, mas não o ponto
originante da vida. A faculdade renovadora das águas é conseqüência de seu local de
origem conforme indicam os v. 1.12, que abrem e encerram a cena, centrando no
Templo o princípio da vida. Em outras palavras, a vida só encontra restauração em
YHWH, a fonte da vida plena.
1.4 Análise intertextual de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12
A abordagem intertextual dos textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 possibilitou
perceber a presença não apenas de diversos contatos textuais entre o Apocalipse e o
Antigo Testamento, mas também da diversidade no emprego destes textos vétero-
testamentários, exigindo o emprego de diversos critérios que permitissem perceber o
modo de ação do hagiógrafo.
No texto por nós estudado, a inserção da intertextual, mostrou ser um
instrumento positivo na tarefa de compreender a meticulosidade com que o autor
ordenou os textos antigos no novo texto
674. Confirma-se assim, o pensamento de
Moyise, segundo o qual o procedimento intertextual no estudo do Apocalipse é uma
necessidade para se avaliarem os níveis de continuidade e descontinuidade presentes
no texto mais novo e suas relações com o (os) texto (os) mais antigo (s)
675. Esta
busca teve como escopo perceber como se deu esta interação entre os textos,
construída a partir da intenção do autor, considerando, ainda, o papel do leitor. Este
último exerce, na abordagem intertextual, um papel proeminente, pois decodifica os
textos a que recorre o autor sagrado, porque possui em sua memória os textos e
contextos do material mais antigo e redireciona-os neste novo contexto. Assim, faz
acontecer o diálogo entre os textos dentro do próprio texto.
Neste processo, a compreensão do texto se dilata, pois o leitor, tendo
captado a presença de um texto anterior, dedica-se a explorar os novos significados a
ele concedido. Assim, o Antigo Testamento torna-se determinante para a
compreensão do Novo Testamento, do mesmo modo que este é determinante para a
compreensão daquele.
Em muitos momentos, o autor neotestamentário segue o Antigo Testamento
em linha de continuidade: no emprego do termo “rio” há uma manutenção da idéia
teológica, do conteúdo semântico, do recurso gramatical e estilístico e aliado a estes
indícios, foi detectado ainda o estrutural. Do emprego do verbo “proceder”, temos a
intertextualidade ligada ao espaço arquitetônico do espaço sagrado onde Deus habita
e a precisão do local de onde a vida possui a sua origem, a saber, o próprio Deus. O
recurso intertextual com o tema da “água da vida” se dá com o texto de Ez 47,1-12,
que descreve a capacidade da água que sai do Templo de gerar vida por onde quer
que esta água passe.
674 Cf. BAUCKHAM, R., The Clímax of Prophecy, 199.
675 Cf. MOYISE, S. “The Language of the Old Testament in the Apocalypse” JournStudNT, v.76, 97-
113, 1999.
O contato intertextual entre Ap 22,2 e Ez 47,12 revelou-se mais intenso do
que com Ez 47,7, porque naquele foram encontradas minúcias na descrição que se
encontram ausentes no v.7. A disposição das árvores às margens do rio (cf. Ez
47,7.12) ou no meio (cf. Ap 22,2) superam uma mera função geográfica. A intenção
do texto do Apocalipse demonstrou ser a de restabelecer na mente do leitor/ouvinte a
restauração do projeto de vida plena, inicialmente desejada por Deus.
Os pontos que sinalizaram uma descontinuidade entre os textos deixam
antever a criatividade teológica do autor do Apocalipse, bem como sua habilidade
com os textos vétero-testamentários para introduzir nestes a novidade da mensagem
do Novo Testamento. Por esta razão, ao assimilar textos que indicavam YHWH como
a fonte única de uma água capaz de gerar a vida, insere a Pessoa do Cordeiro
assentado no mesmo trono de onde o “rio de água da vida brilhante como o cristal”
eclode.
Em um só símbolo, o autor neotestamentário apresenta o Cristo-Cordeiro
como Deus em igual dignidade com YHWH, por estar assentado no trono e senhor da
vida por ser também ele local de onde ela brota e transmite “vida” a todos.
Assim, as expectativas escatológicas do Antigo Testamento encontram uma
nova força restauradora: a cristologia, porque, somente através da paixão, morte e
ressurreição, o homem recebe a vida nova.
2. Conclusões e resultados da pesquisa
O contato intertextual entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12, tendo
ainda outros textos vétero-testamentários como interferência, estabelecido em
princípio como hipótese de trabalho, exigiu uma análise mais detalhada dos dois
principais textos a fim de perceber como cada um em seu momento histórico foi
elaborado por seus respectivos autores. Uma análise mais profunda dos demais textos
que compõe este mosaico de textos presentes em Ap 22,1-5 não se revelou necessária
para o estudo dos motivos em questão nesta tese, tendo em vista que o texto principal
onde o autor do Apocalipse se apoiou foi aquele de Ez 47,1-12.
A abordagem intertextual, aplicada aos textos propostos, revelou uma
grandiosa habilidade do autor do Apocalipse, que não apenas tomou textos e os
dispôs uns ao lado dos outros, mas também selecionou-os, tendo em vista a teologia,
semântica, acondicionamento na estrutura do livro e perspectiva escatológica. Através
deste elenco, esta metodologia tem o objetivo de sublinhar, por um lado, a
continuidade entre os Testamentos no tocante a promessa de YHWH de ser fonte de
salvação e vida para seu povo. Por outro lado, ressalta sua descontinuidade, quando,
através da imagem do Cordeiro, propõe a grande novidade: o Cordeiro imolado e
ressuscitado é juntamente com YHWH a “fonte de água viva brilhante como o
cristal”.
Esta novidade faz com que a escatologia receba um influxo cristológico,
pois a vitória esperada por Israel, onde YHWH suprimiria todos os inimigos, é agora
descrita como a vitória do Cordeiro sobre o pecado e a morte. Por ele, todo homem,
de todos os tempos, recebe a vida plena com Deus.
3. Perspectivas abertas
O livro do Apocalipse encontra-se repleto de contatos intertextuais. O texto
por nós analisado permitiu entrever que a metodologia intertextual apresenta-se como
um poderoso instrumento na decodificação dos símbolos esmeradamente construídos
pelo autor neotestamentário. A análise intertextual de Ap 22,1-5 coloca-se, assim,
como ponto de partida e impulso para novas pesquisas que visem a uma justa
compreensão deste último livro da Revelação.
Referências Bibliográficas
ANCONA, G. Escatologia cristiana. Brescia: Queriniana, 2003.
ADNA, J. Jerusalemer Tempel und Tempelmarkt im 1. Jahrhundert N. The Jewish
Quarterly Review, v. 91, (2001) 507-511.
AHUIS, A. Das Märchen im Alten Testament, ZTK, v. 86, (1989) 464-470.
ALBRIGHT, W. F. Yahweh and the Gods of Canaan; a historical analysis of two
contrasting faiths. New York: Doubleday, 1968.
ALEXANDER, R. H. Ezekiel. Grand Rapids: Zondervan, 1986.
ALLEN, L. C. Ezekiel 20-48. Dallas: Word Books, 1990.
_______ Obadiah, Joel, Jonah and Micah. Grand Rapids: Eerdmans, 1976.
ALLO, E.-B. Saint Jean, l’Apocaypse. Paris: Librairie Victor Lecoffre, 1921.
ALONSO SCHÖKEL, L. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo:
Paulus, 1997.
AMSLER, S.; LACOCQUE, A.; VUILLEUMIER, R. Aggée, Zacharie, Malachie.
Genève: Labor et Fides, 1988.
ARCARI, L. Apocalisse di Giovanni e apocalittica ‘danielico-storica’ del I sec. e V:
prospettive per una ‘nuova’ ipotesi. Vetera Christianorum, v. 39, (2002)
115-132.
ATKINSON, K. An Intertextual Study of the Psalms of Solomon:
Pseudepigrapha. New York: The Edwin Mellen Press, 2001.
AUNE, D. E. Revelation 1-5. Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1997.
_______ Revelation 6-16. Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1998.
_______ Revelation 17-22. Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1998.
AYUCH, D. La instauración del Trono en siete septenarios. La macronarrativa y su
estructura en el Apocalipsis de Juan. Biblica, v. 85, (2004) 255-296.
BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 1935
11
.
BALDWIN, J. G. Haggai, Zechariah, Malachi. Leicester : IVP, 1972.
BARCLAY, J. M. G. Diaspora Judaism. In Cohn-Sherbok, D. & Court, J. M. (eds.).
Religious Diversity in the Graeco-Roman World. A Survey of Recent
Scholarship. New York: Sheffield Academic Press, 2001.
_______ Jews in the Mediterranean Diaspora from Alexander to Trajan.
Edinburgh: T&T Clark, 1996.
BARTHÉLEMY, D. Critique Textuelle de l’Ancien Testament 50/3. Fribourg:
Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1992.
BARTIRA, S. Apocalipsis de S. Juan. Madrid, 1962.
_______ La Escatologìa del Apocalipsis. EstB, v. 21, (1962) 297-310.
BARTON, B. B. Revelation. Wheaton: Tyndale, 1996.
BARTON, J. Joel and Obadiah. Westminster: John Knox Press, 2001.
BARRETT, C. K. The Interpretation of the Old Testament in the New. In Ackroyd,
P.–E., C. (ed.). Cambridge History of the Bible, 1. Cambridge:
Cambridge University Press, 1970.
BAUCKHAM, R. The Clímax of Prophecy. Studies on the Book of Revelation.
Edinburgh: T & T Clark, 1993.
_______ The Eschatological Earthquake in the Apocalypse of John. Novum
Testamentum, v. 19 (1977) 224-233.
BEAL, T. K. Ideology and Intertextuality: Surplus of Meaning and Controlling the
Means of Production. In Fewell, D. N. (ed.). Reading Between Texts.
Intertextuality and the Hebrew Bible. Westminster: John Knox Press,
1992.
BEALE, G. K. The Right Doctrine from the Wrong Texts? Essays on the Use of
the Old Testament in the New. Grand Rapids: Baker Books, 1994.
_______ The Use of the Old Testament in Revelation. In Carson – W. (ed.). It Is
Written: Scripture Citing Scripture. Essays in Honnour of Barnabas
Lindars. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
_______ The Book of Revelation. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1999.
_______ The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the
Revelation of St. John. Lanham: University Press of America, 1984.
_______ A Reconsideration of the Text of Daniel in the Apocalypse. Biblica, v. 67,
(1986) 539-543.
_______ The Influence of Daniel Upon the Structure Theology of John’s Apocalypse.
JETS, v. 27, (1984) 413-423.
_______ Questions of Authorial Intent, Epistemology, and Presuppositions and Their
Bearing on the Study of the Old Testament in the New: A Rejoinder to
Steve Moyise. Irish Biblical Studies, v. 21, (1999) 152-180.
_______ The Origin of the Title ‘Kings of Kings and Lord of Lords’ in Rev. 17:14.
NewTestStud, v. 31, (1985) 618-620.
BEASLEY-MURRAY, G. R. The Book of Revelation. London: Morgan & Scott,
1974.
BEAUCHAMP, P. L’uno e l’altro Testamento. Saggio di lettura. Brescia: Paideia,
1985.
BECKER, J. Pseudonymität der Johannesapokalypse und Verfasserfrage. BZ, v. 13,
(1969) 101-121.
BECKWITH, I. T. The Apocalypse of John: Studies in Introduction with a
Critical and Exegetical Commentary. Michigan: Baker Book House,
1967.
BEHM, J. “avna,qema”. GLNT. v. I. Brescia: Paideia, 1965, 953-958.
BEIT-ARIEH, I. “Negeb”. In FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible
Dictionary, v. 4. Hardcover, Doubleday, 1992, 1064.
BEITZEL, B. J. The Moody Atlas of the Bible Lands. Chicago: Moody Press, 1985.
BERKLEY, T. W. From a broken covenant to circumcision of the heart: Pauline
Intertextual exegesis in Romans 2:17-29. SBL dissertations Series 175.
Atlanta: SBL, 2000.
BEYSE, K.-M. “
hl,['”. GLAT, v. VI, 746. Brescia: Paideia, 2006.
BICKERMAN, E. J. La seconde année de Darius. Rivista Biblica, v. 88, (1981) 23-
28.
BIETENHARD, H. o;noma”. GLNT, v. VIII. Brescia: Paideia, 1972, 706-707.
BINI, W.; BOSCHI, B. G. Cristologia primitiva. Bologna: EDB, 2004.
BLENDINGR, C. “poder”. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. V. II, São Paulo: Vida Nova, 2000
2
.
BLOCK, D. L. The Book of Ezekiel: Chapters 1-24. Grand Rapids: Eerdmans
Publishing Company, 1997.
_______ The Book of Ezekiel: chapters 25-48. Grand Rapids: Eerdmans Publishing
Company, 1998.
BÖCHER, O. Die Johannesapokalypse. Darmstad: WBG, 1988.
BØE, S. Gog and Magog. Ezekiel 38-39 as Pre-text for Revelation 19,17-21 and
20,7-10. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001.
BORING, M. E. Narrative Christology in the Apocalypse. CBQ, v. 54 (1992) 702-
723.
BORNKAMM, G. “pre,sbuj”. GLNT. v. XI. Brescia: Paideia, 1977, 129.
BOXALL, I. Revelation: Vision and Insight. London: SPCK, 2002.
BRATCHER, R. G. The Old Testament Quotations in the New Testament.
London: United Bible Societies, 1987.
BRAUN, H. Das Alten Testament im Neuen Testament. ZTK, v. 59, (1962) 16-31.
BRAWLEY, R. L. Contextuality, Intertextuality, and the Hendiadic Relationship of
Promise and Law in Galatians. ZNW, v. 93 (2002) 99-119.
BREKELMANS, C. “
~r,xee,e”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo
Testamento I, col. 880. 883-884.
BRETSCHER, P. M. Syntactical Peculiarities in Revelation. CTM, v. 16 (1945) 95-
105.
BRIGGS, R. A. Jewish temple imagery in the book of Revelation. New York:
Peter Lang, 1999.
BRIGHTON, L. A. Revelation. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1999.
BROWNLEE. W. H. Ezekiel. Hardcover: Hendrickson Publishers, 1994.
BROWN, F.; DRIVER, S. R.; BRIGGS, C. A. Hebrew and English Lexicon.
Boston: Hendrickson Publishers, 2000
5
.
BRUCE, F. F. The New Testament Development of Old Testament Themes.
Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1968.
BRÜTSCH, C. La clarté de l'Apocalypse. Gèneve: Labor et Fides, 1966.
BUCHANAN, G. W. The Book of Revelation: Its Introduction and Prophecy.
Lewiston: Mellen Biblical Press, 1993.
BULTMANN, R. “zw/|on”. GLNT, v. III, 1475-1476, Brescia: Paideia, 1969.
CABANISS, A. A Note on the Liturgy of the Apocalypse. Interp, v. 7 (1953) 78-86.
CAIRD, G. B. A Commentary on the Revelation of St. John the Divine. London:
A & C Black, 1966.
_______ The Revelation of Saint John. London: Hendrickson, 1999
2
.
CAMBIER, J. Les images de l’Ancien Testament dans l’Apocalypse de saint Jean.
NRTh, v. 77 (1955) 113-122.
CARNEGIE, D. R. ‘Worthy is the Lamb: The Hymns in Revelation’. In Rowden, H.
H. (ed.). Christ the Lord: Studies in Christology Presented to Donald
Guthrie. Leicester: Inter Varsity Press, 1982, 243-256.
CARRELL, P. R. Jesus and the Angels: Angelology and the Christology of the
Apocalypse of John. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
CARREZ, M. Le déploiement de la christologie de l’Agneau dans l’Apocalypse.
RevHistPhilRel, v. 79 (1999) 5-17.
CARVALHO, A. L. L. Intertextualidade e plágio - Questões de linguagem e autoria.
Revista de Ciências Humanas, v. 8 (2002) 169-174.
CARVALHO, J. C. A simbologia nupcial da númphe e do arníon na escatologia do
Apocalipse. Humanística e Teologia, v. 23 (2002) 57-98.
CERFAUX, L, et J. CAMBIER. L’Apocalypse de S. Jean lue aux chrétiens. Paris:
Lectio Divina,
17. 1955.
CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St.
John, I. Edinburgh: T&T Clark, 1920.
_______ Eschatology: The Doctrine of a Future Life in Israel, Judaism and
Christianity. New York: Schocken Books, 1963.
CHEVITARESE, A. L. Interações Culturais entre Gregos e Judeus nos Períodos
Arcaico, Clássico e Helenístico. In Chevitarese, A. L.; Argôlo, P. F.;
Ribeiro, R. S. (orgs.). Sociedade e Religião na Antiguidade Oriental.
Rio de Janeiro: Fábrica de Livros – SENAI, 2000, 112-29.
CHILTON, D. The Days of Vengeance: An Exposition of the Book of Revelation.
Fort Worth: Dominion Press, 1987.
CHRISTOFF, L. Intertextualidade e plágio. Questões de linguagem e autoria.
Tese de Doutoramento. São Paulo: Unicamp, 1996.
CIMOSA, M. L’autore dell’Apocalisse ha usato la Bibbia Greca? In Bosetti, E., &
Colacrai. Apokalipsis. Percosi nell’ Apocalisse di Giovanni. Assisi:
Cittadella Editrice, 2005, 63-94.
CLEMENTS, R. E. “
~yIm;”. GLAT, v. IV, 845.
COLLINS, A. Y. The Combat Myth in the Book of Revelation. Missoula: Montana
Scholars Press, 1976.
_______ The History-of-Religions Approach to Apocalypticism and the ‘Angel of the
Waters’ (Rev 16,4-7). CBQ, v. 39 (1977) 367-381.
_______ The Book of Revelation. The Encyclopedia of Apocalypticism. J. J.
Collins (ed.). New York: Continuum, 1998, 391-392.
_______ Introduction: Early Christian Apocalypticism. Semeia, v. 36 (1986) 1-11.
COLLINS, J. J. Cult and Culture: The Limits os Hellenization in Judea. In Collins, J.
J. & Sterling, G. E. (eds.). Hellenism in the Land of Israel. Notre Dame:
University of Notre Dame Press, 2001, 38-61.
COLLINS, T. Apocalypse 22:6-21 as the Focal Point of Moral Teaching and
Exhortation in the Apocalypse. Roma: PUG, 1986.
COMBLIN, P. Le Christ dans l’Apocalypse. Paris: Desclée, 1965.
_______ La liturgie de la nouvelle Jérusalem (Apoc XXI,1-XXII,5). ETL, v. 29
(1953) 26-27.
CONTRERAS MOLINA, F. El Señor de la vida. Lectura Cristológica del
Apocalipsis. Salamanca: Sigueme, 1991.
_______ La Nuova Gerusalemme, città aperta. In Bosetti, E.; Colacrai, A.
Apokalypsis. Percorsi nell’ Apocalisse di Giovanni. Assisi: Cittadella
Editrice, 2005, 621-645.
COOKE, G. A. Ezekiel. International Critical Commentary. Edinburgh: T&T
Clark, 1936.
_______ The Book of Ezekiel. Edinburgh: T&T Clark, 1986.
COOPER, L. E. Ezekiel. The New American Commentary. Nashville: Broadman
& Holman Publishers, 1994
7
.
CORSANI, B. L’Apocalisse e l’apocalittica del Nuevo Testamento. Bologna:
EDB, 1997.
COURT, J. M. The Book of Revelation and the Johannine Apocalyptic tradition.
JSNT Suppl. 190. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000.
CORSINI, E. L’Apocalisse prima e dopo. Torino: SEI, 1993.
COTHENET, E. La liturgie dans Apocalypse. Paris: Edicions du Cerf, 1988.
_______ Il messaggio dell’ Apocalisse. Torino: Elle Di Ci, 1997.
CRENSHAW, J. L. Joel. New York: Bantam Doubleday Dell Publishing Group Inc.,
1995.
DALY-DENTON, M. David in the Fourth Gospel. The Johannine Reception of
the Psalms. Leiden: Brill, 2000.
DANKER, F. W. A Greek-English Lexicon of the New Testament and other
Early Christian Literature. Chicago: The University of Chicago Press,
2000
3
.
DARR, K. P. The Wall Around Paradise: Ezekielian Ideas about the Future. VT, v.
37 (1987) 271-279.
DECOCK, P. B. The Scriptures in the Book of Revelation. Neotestamentica, v. 33
(1999) 373-410.
DEELEY, M. Ezechiel’s Shepherd and John’s Jesus. A case Study in the
Appropriation of Biblical Texts. In Evans, C. A., & Sanders, J. A. (ed.).
Early Christian Interpretation of the Scriptures of Israel. Investigations
and Proposals. JSNT Suppl. 148. Sheffield: Sheffield Academic Press,
1997.
DE LA POTTERIE. Studi di Cristologia Giovannea. Roma: Marietti, 2004.
DELEBECQUE, E. Je vis’ dans l’Apocalypse. Revue Thomiste, v. 88 (1988) 460-
466.
_______ Où situer l’Arbre de vie dans la Jérusalem celéste? Note sur Apocalypse
XXII, 2. Revue Thomiste, v. 88 (1988) 124-130.
DELLING, G. "nu,x". GLNT, v. VII. Brescia: Paideia, 1971, 1503-1505.
DEUTSCH, C. Transformation of Symbols: The New Jerusalem in Rev 21,1-22,5.
ZNW, v. 78 (1987) 106-126.
DEIANA, G. Utilizzazione del libro di Geremia in alcuni brani dell’Apocalisse.
Lateranum, v. 48 (1982) 125-137.
DIEZ MACHO, A. Apocrifos del Antiguo Testamento VI. Madrid: Cristiandad,
1983.
DILLARD, R. B. Joel. In McComisky, T. (ed). The Minor Prophets: An Exegetical
and Expository Commentary. Grand Radip: Baker, 1992.
DITTMAR, W. Vetus Testamentum in Novo. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1903.
DODD, C. H. According to the Scriptures. London: Fontana, 1967.
DOGLIO, C. L’Apocalisse di Giovanni: linee di interpretazione. In Dianich, S.
Sempre Apocalisse. Un testo biblico e le sue risonanze storiche. Asti:
Piemme, 1998.
DOHMEN, C. “
x;Bez>mi”. GLAT, v. IV, 1087. Brescia: Paideia, 2005.
DRAISMA, S. (ed.). Intertextuality in Biblical Writings. Essays in honours of Bas
van Iersel. Uitgeversmaatschappij J. H. Kok – Kampen: Omslag Henk
Blekkenhorst, 1989.
DRIVER, G. R. Linguistic and Textual Problems: Ezekiel. Biblica, v. 19 (1938) 186-
187.
_______ Ezekiel: Linguistic and Textual Problems. Biblica, v. 35 (1954) 299-312.
DUMBRELL, W. J. The End of the Beginning: Revelation 21-22 and the Old
Testament. Grand Rapids: Baker Book House, 1986.
DUGUID, I. M. Ezekiel. The Niv Application Commentary. Michigan: Zondervan,
1999.
EISING, W. Theological Dictionary of the Old Testament, v. 7. Cambridge:
Eerdmans Publishing Company, 1995.
ELLIGER, K., et RUDOLPH, W. Biblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1997
3
.
ELLIOTT, J. K. Manuscripts of Book of Revelation Collated by H. C. Hoskier.
JournTheolStud, v. 40 (1989) 100-111.
_______ The Distinctiveness of the Greek Manuscripts of the Book of Revelation.
JournTheolStud, v. 48 (1997) 116-124.
ELLIS, E. E. Paul’s Use of the Old Testament. Edinburgh: T&T Clark, 1957.
EFIRD, J. (ed.). The Use of the Old Testament in the New and Other Essays:
Studies in Honor of William Franklin Stinespring. Durham: Duke
University Press, 1972.
EUSEBIUS, Ecclesiastical History, 7.25. Peabody: Hendrickson Publishers, 1998.
FAVA, F. La Jerusalém nouvelle. Une symphonie architecturale. Christus, v. 42
(1995) 173-179.
FARMER, R. Beyond the Impasse. The Promise of a Process Hermeneutic.
Macon: Mercer University Press, 1997.
FARMER W. R. Comentário Bíblico Internacional. Navarra: Verbo Divino, 2000
2
.
_______ The Geography of Ezekiel's River of Life. The Biblical Archaeologist, v.
19 (1956) 17-22.
FEKKES, J. Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of Revelation: Visionary
Antecedents and Their Development. JSNT Suppl. 93. Sheffield:
Sheffield Academic Press, 1994.
_______ His Bride Has Prepared Herself: Revelation 19-21 and Isaian Nuptial
Imagery. JBL, v. 109 (1990) 269-287.
FEUILLET, A. Le Cantique des Cantiques et L’Apocalypse. Étude de deux
réminescences du Cantique dans l’Apocalypse johannique. RSR, v. 49,
(1961) 321-353.
_______ La mystique nuptiale et la réponse de l’homme à l’amour divin d’après Ap
3,20 et Ct 5,2-5. Carmel, v. 41 (1986) 2-14.
_______ Visión de conjunto de la mística nupcial en el Apocalipsis. Scripta
Theologica, v. 18 (1986) 407-431.
FERRELL, J. The Old Testament in the Book of Revelation. Michigan: Baker
Book House, 1972.
FEWELL, D. N. Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible.
Louisville: John Knox Press, 1992.
FINLAY, T. J. Joel, Amos, Obadiah. Chicago: Moody, 1990.
FISCH, S. Ezekiel: Hebrew Text & English translation with an Introduction and
Commentary. London: The Soncino Press, 1950.
FLORENTIN, M. Late Samaritan Hebrew: A Linguistic Analysis of Its Different
Types. Studies in Semitic Languages & Linguistics. Leiden: Brill, 2005.
FOERSTER, W. ke,raj”. GLNT, v. V. Brescia: Paideia, 1970, 349-358.
FOERSTER, W. “ku,rioj”. GLNT, v. V. Brescia: Paideia, 1970, 1401.
FORD, J. M. Revelation. New York: Garden City, 1975.
_______ The Christological Function of the Hymns in the Apocalypse of John.
AndUnivSemStud, v. 36 (1998) 207-229.
FORESTELL, J. T. Targumic Traditions and the New Testament: An Annotated
Bibliography With A New Testament Index (Aramaic Studies).
Chicago: Scholars Pr, 1979.
FREED, E. D. Old Testament Quotations in the Gospel of John. Leiden: Brill,
1965.
FRIESEN, S. Imperial Cults and the Apocalypse of John: Reading Revelation in
the Ruins. Oxford: Oxford University Press, 2001.
FUHS, H. F. “
rb[”. GLAT, v. V, 388. Brescia: Paideia, 2005.
GANGEMI, A. L’utilizzazione del Deutero-Isaia nell’Apocalisse di Giovanni (1
a
.
parte). Euntes Docete, v. 27 (1974) 109-144.
_______ L’utilizzazione del Deutero-Isaia nell’Apocalisse di Giovanni (2
a
. parte).
Euntes Docete, v. 27 (1974) 311-339.
GARRETT, D. Hosea-Joel. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1996.
GIBLIN, C. H. Apocalisse. Bologna: EDB, 1993.
GIBSON, S.; JACOBSON, D. M. The Oldest Datable Chambers on the Temple
Mount in Jerusalem. The Biblical Archaeologist, v. 57 (1994) 150-160.
GIELSEN, H. Zur Christologie der Thonsaalvision (Offb 5). Theologie de
Gegenwart, v. 44 (2001) 25-35.
GONZÁLEZ RUIZ, J. M. Apocalipsis de Juan. Madrid: Cristiandad, 1987.
GOPPELT, L. “u[dwr”. GLNT, v. XIV. Brescia: Paideia, 1984, 80.
GOULDER, M. D. The Apocalypse as an Annual Cycle of Prophecies.
NewTestStud, v. 27 (1981) 342-367.
_______. The Evangelist’s Calendar. London: SPCK, 1978.
GRAF, A. Miti, leggende e superstizioni del Medio Evo. Milano: Mondadori, 1996.
GRASSI, J. A. The Liturgy of Revelation. The Bibel Today, v. 24 (1986) 30-37.
GRAY, J. The Kingship of God in the Prophets and Psalms. VT, v. 11 (1961) 1-29.
GREENE, T. The Light in Troy: imitation and Discovery in Renaissance Poetry.
Yale: Yale University Press, 1982.
GRELOT, P. Omelie sulla Scritura nell’ età apostolica. In GRELOT, P. Introduzione
al Nuovo Testamento. Roma, 1990.
GRUNDMANN, W.“i[sthmi”. GLNT. Brescia: Paideia, 1172.
GUNKEL, H. Das Märchen im Alten Testament. Tübingen: Mohr Siebeck, 1921.
GWYNN, J. Theodotion. In Smith, W. & Ware, H. (ed.). A Dictionary of Christian
Biography. London: John Murray, 1877-1887.
HAAK, R. “Altar”. In FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible Dictionary. v.
1. Hardcover: Doubleday, 1992, 162-166.
HAAS, L. Bibliography on Midrash. In Neusner, J. (ed.). The Study of Ancient
Judaism. I. Mishnah, Midrash, Siddur. Atlanta: Atlanta Scholars Press,
1992.
HALPERIN, D. J. The Faces of Chariot. Early Jewish Responses to Ezekiel’s Vision.
Tübingen: Mohr Siebeck, 1988.
_______ Merkabah Midrash in the Septuagint. JBL, v. 101 (1982) 351-363.
HALS, R. Ezekiel. Michigan/Cambridge: Eerdmans, 1989.
HALVER, R. Der Mythos im letzten Buch der Bibel. Eine Untersuchung der
Bildersprache der Johannes-Apokalypse. Hamburg-Bergstedt: Reich,
1964.
HAMILTON, J. “En-Gedi”. In FREEDMAN, D. N. (ed.), The Anchor Bible, v. 2.
Hardcover: Doubleday, 1992, 503.
HAMP, V. “
spa”. GLAT, v. I, 782-783. Brescia: Paideia, 1988.
HANSON, A. T. John’s Use of Scripture. In The Gospel and the Scriptures of Israel.
Evans, C. A., - Sanders, J. A. (ed.). JSNT Suppl. 104. Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1994.
HARL, M. - DORIVAL, G. – MUNNICH, O. La Bible grecque des Septante. Paris:
Edition du Cerf, 1994.
HARTLEY, J. E.: “
wq; Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento, col. 1994. Madrid: Cristiandad, 1978.
HARTMANN, TH. “br;”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento
II, col. 905-906. Madrid: Cristiandad, 1978.
HAUCK, F. “a[laj”. GLNT, v. I, 613-615. Brescia: Paideia, 1965.
_______ karpo,j”. GLNT, v. V, 215-217. Brescia: Paideia, 1969.
HAYS, R. B. Echoes of Scripture in the Letters of Paul. Yale: Yale University
Press, 1989.
HEINZ – MOHR, G. Dicionário dos Símbolos. Imagens e sinais da arte cristã. São
Paulo: Paulus, 1994.
HELD, M. Studies in Comparative Semitic Lexicography. In Studies in Honor of
Benno Landsberger on his seventy-fifth birthday. Chicago: University
of Chicago, 1965.
HEMER, C. J. The Letters to the Seven Churches of Ásia Minor in their Local
Setting. JSNTSup, Sheffield: Sheffield Press, 1986.
HENSEL, R. “Fruto”. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento.
São Paulo: Vida Nova, 2000
2
, 888-890, Tradução Theologisches
Begriffslexikon zum Neuen Testament. Wuppertal/Neukirchen-Vluyn,
1971.
HERION, G. “En-Eglaim”. The Anchor Bible, v. 2. New York: Doubleday, 1992.
HERZER, J. Der erste apokalyptische Reiter und der Köning der Könige. Ein Beitrag
zur Christologie der Johannesapokalypse. NewTestStud, v. 45 (1999)
230-249.
HILLYER, N. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. V. II.
São Paulo: Vida Nova, 2000
2
.
HOFFNER, H. A. “
tyIB;”. GLAT, v. I, 1277-1293. Brescia: Paideia, 1988.
HOLLANDER, J. The Figure of Echo: A Mode of Allusion in Milton and After.
Berkeley: University of California Press, 1981.
HOLLADAY, W. L. The Root Sûbh in the Old Testament, with particular reference
to its usages in covenantal contexts. Leiden: Brill, 1958.
HOLLENBACK, M. G. The Dimensions and Capacity of the Molten Sea in 1 Kgs
7,23.26. Biblica, v. 81 (2000) 391-392.
HÖLSCHER, G. Hesekiel der Dichter und das Buch. Giessen: A. Töpelmann,
1924.
HOLTZ, T. Die Christologie der Apokalypse des Johannes. Berlin: Akademie-
Verlag, 1962.
HOWIE, C. G. The Date and Composition of Ezekiel, Journal of Biblical Literature
Monograph Series, IV. Philadelphia: Society of Biblical Literature, 1950.
HUBBARD, D. A. Joel and Amos. Leicester: IVP, 1989.
HUEHMERGARD, J. New Directions in the Study of Semitic Languages. In
Albright, F. The Study of the Ancient Near East in the Twentieth
Century. The William Foxwell Albright Centennial Conference.
Winona Lake, 1996, 251-272.
HÜHN, E. Die Alttestamenttlichen Citate und Reminiscenzen im Neuen
Testament. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1900.
HULTBERG, A. D. Messianic Exegesis in the Apocalypse: The Significance of
the Old Testament for Christology of Revelation. Trinity Evangelical
Divinity School, 2001.
HURTADO, L. W. Revelation 4-5 in the Light of Jewish Apocalyptic Analogies.
JSNT, v. 25 (1985) 105-124.
ISHIDA, T. The Royal Dynasties in Ancient Israel: A Study on the Formation.
Jerusalem: Walter de Gruyter, 1977.
JACK, A. Texts Reading Texts, Sacred and Secular. JSNTSup 179. Sheffield:
Sheffield Academic Press, 1999.
JELLICOE, S. The Septuagint and Modern Study. Oxford: Oxford Press, 1968.
_______ Studies in the Septuagint: Origins, Recensions, and Interpretations:
Selected Essays with a Prolegomenon. New York: Ktav, 1974.
JENNI, E. “
rkB”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I.
Madrid: Cristiandad, 1978. 452.
JENNI, E., VETTER D. !y[e”, Diccionario Teologico Manual del Antiguo
Testamento II. Madrid: Cristiandad, 1978, 336-346.
JEREMIAS, J. “avmno,j”. GLNT, v. I. Brescia: Paideia, 1969, 917.
JOBIM, J. L. (org.). Palavras da Crítica. Tendências e Conceitos no Estudo da
Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
JOHNSON, A. R. Sacral Kingship in Ancient Israel. Cardiff: University of Wales
Press, 1955.
JOHNSON, D. E. Triumph of The Lamb. A Commentary on Revelation.
Phillipsburg: P&R, 2001.
JÖRNS, K.-P. Proklamation und Akklamation: Die antiphonische Grundordnung des
frühchristlichen Gottesdienstes nach der Johannesoffenbarung. In Becker,
H., - Kaczynski, R., (ed.). Liturgie und Dichtung, I, St. Ottilien: Eos
Verlag, 1983.
JOÜON-MURAOKA. A Grammar of Biblical Hebrew. Roma: Biblical Institute
Press, 1942.
KALLAI, Z. The Twelve-Tribe Systems of Israel, Vetus Testamentum, v. 47, 53-90,
1997.
KALLAND, E. S. “
hgd Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento, 298.
KAVANAGH, M. A. Apocalypse 22,6-21. As Concluding Liturgical Dialogue.
Roma: PUG, 1984.
KEESMAAT, S. C. Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in
Romans 8, 14-30. JSNT, v. 54 (1994) 29-56.
_______ Paul and his Story: (Re) Interpreting the Exodus Tradition. JSNTSup 181.
Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999.
KELLERMANN, D. “
Wag”. GLAT, v. I, 1795-1796.
KIDDLE, M. The Revelation of St. John. London: Hodder & Stoughton, 1940.
KAISER,W. Micah, Nahum, Habakkuk, Zephaniah, Haggai, Zachariah,
Malachi. Word Publishing, 2000.
KISTEMAKER, S. J. Revelation. Michigan: Baker, 2002.
KLAPPERT, B. “Rei”. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, 2031.
KNIGHT, J. Revelation. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999.
KOCH, K. “
~tm”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II.
Madrid: Cristiandad, 1978.1311.
KÖSTENBERGER, A. J. John. Michigan: Baker Academic, 2004.
KOWALSKI, B. Die Rezeption des Propheten Ezechiel in der Offenbarung des
Johannes. Stuttgart: Katholisches Bibelwerk GmbH, 2004.
KRAYBILL, J. N. Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse. JSNT-Suppl.
Series 132. Sheffield: Sheffield Press, 1996.
KRUSE, C. G. John. Leicester: Inter-Varsity Press, 2003.
LAMBRECHT, J. The Book of Revelation and Apocalyptic in the New Testament.
ETL, v. 55 (1979) 391-397.
LANCELLOTTI, A. Sintassi Ebraica nel Greco dell’Apocalisse. Assisi: Studio
Teologico, 1964.
_______ L’Antico Testamento nell’Apocalisse. Rivista Biblica, v. 14 (1966) 369-
384.
LASOR, W. S. Gramática Sintática do Grego do Novo Testamento. São Paulo:
Vida Nova, 1998
2
.
LE DEAUT, R. A propos d’une definition du midrash. Biblica, v. 50 (1969) 395-413.
LEE, P. The New Jerusalem in the Book of Revelation: A Study of Revelation 21-
22 in the Light of its background in Jewish Tradition. Tübingen: Mohr
Siebeck, 2001.
LIDDELL, H. G. & SCOTT, R. An Intermediate Greek-English Lexicon. Oxford:
Oxford University Press, 1889
7
.
LIMA, M. L. C. Salvação entre juízo conversão e graça. A perspectiva
escatológica de Os 14,2-9. Roma: PUG, 1998.
LIMBURG, J. Hosea-Jonah. Louisville: John Knox Press, 1998.
LINDARS, B. The Place of the Old Testament in the Formation of New Testament
Theology. NewTestStud, v. 23 (1976) 59-78.
_______ New Testament Apologetic. London: SPCK, 1961.
LIOY, D., The Book of Revelation in Christological Focus. Studies in Biblical
Literature 58. New York, 2003.
LOHMEYER, E. Die Offenbarung des Johannes. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1953.
LOHSE, E. Die alttestamentliche Sprache des Sehers Johannes. Textkritische
Bemerkungen zur Apokalypse. ZNTW, v. 52 (1961) 122-126.
_______ L’ Apocalisse di Giovanni. Paidéia: Brescia, 1985.
_______ "pro,swpon". GLNT, vol XI. Brescia: Paideia, 1977, 406-409.
LUPIERE, E. L’Apocalisse di Giovanni. Arnaldo Mondadori Editore, 1999.
MANNS, F. Traces d’une Haggadah pascale chrétienne dans l’Apocalypse de Jean?
Antonianum, v. 56 (1981) 265-295.
MARCONCINI, B. L’ utilizzazione del TM nelle citazioni isaiane dell’Apocalisse.
RivB, v. 24 (1976) 113-136.
MARKL, D. Hab 3 in intertextueller und kontextueller Sicht. Biblica, v. 85 (2004)
99-108.
MATHEWSON, D. A New Heaven and a New Earth. The Meaning and Function of
the Old Testament in Revelation 21.1-22.5. JSNTSup 238. Sheffield:
Sheffield Academic Press, 2003.
_______ A note on the foundation stones in Revelation 21,14.19-20. JSNT, v. 25
(2003) 487-498.
MAYER W. R. Akkadische Lexicographie: CAD Q. Or, v. 72 (2003) 231-242.
MAZAR, B. En-Gedi. RB, v. 74 (1963) 85-86.
METZGER, B. M. A Textual Commentary on the Greek New Testament.
London: United Bible Soc., 1971.
MEYERS, C. “Temple Jerusalem”. The Anchor Bible Dictyonary. v. 6. Hadccover:
Bantam Doubleday Dell Publishing Group, 1992.
MEYERS, C. L. & MEYERS, E. M. Haggai, Zechariah 1-8. New York: Doubleday,
1987.
McKEATING, H. Ezekiel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1995.
MICHEL, O. “oi=koj”. GLNT v. VIII, 341-342. Brescia: Paideia, 1972.
_______ sfa,zw”. GLNT, v. VI. Brescia: Paideia, 1970, 343-370.
MICHAELIS, W. “o`do,j”. GLNT, v. V. Brescia: Paideia, 1972, 138-140.
MILLER, K. E. The Nuptial Eschatology of Revelation 19-22. CBQ, v. 60 (1998)
301-318.
MILLER, M. St. A. Eschatology and Ecclesiology: Reflections Inspired by
Revelation 21:22. Encounter. v. 64 (2003) 109-138.
MISCALL, P. D. Isaiah: New Heavens, New Earth, New Book. In Fewell, D. N.
(ed.). Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible.
Louisville, Kentucky, Westminster: John Knox Press, 1992.
MITCHELL, H. G. SMITH, J. M., BEWER, J. A. Haggai, Zechariah, Malachi and
Jonah. Edinburgh: T & T Clark, 1912.
MOFFATT, J. Revelation. Grand Rapids: Eerdmans, 1980.
MORITZ, T. A Profound Mystery: The use of the Old Testament in Ephesians.
Leiden: E. J. Brill, 1996.
MOUNCE, R. H. The Book of Revelation. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.
MOYISE, S. The Language of the Old Testament in the Apocalypse. JournStudNT,
v. 76 (1999) 97-113.
_______ The Old Testament in the New. London: Continnum, 2001.
_______ The Old Testament in the Book of Revelation, JSNTSup, 115. Sheffield:
Sheffield Academic Press, 1995.
_______ The Psalms in the New Testament. London, Nova York: T&T Clark,
2004.
_______ Does the Lion Lie down with the Lamb? In Moyise, S. (ed.). Studies in the
Book of Revelation. Edinburgh & Nova York: T & T Clark, 2001.
_______ Authorial Intention and the Book of Revelation. AUSS, v. 39 (2001) 35-40.
_______ Intertextuality and the Study of the Old Testament in the New. In Moyse, S.
(ed.). The Old Testament in the New. Essays in Honour of J. L. North.
JSNTSup 189. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000, 14-41.
_______ Intertextuality and the Book of Revelation. ExpT, v. 104 (1993) 295-298.
_______ Intertextuality and Biblical Studies: A Review. Verbum et Ecclesia, v. 23
(2002) 418-431.
_______ Does the Author of Revelation Misappropriate the Scriptures? AUSS, v.
(2002) 40, 3-21.
_______ Can we use the New Testament the way the New Testament authors used the
Old Testament? In Die Scriflig, v. 28 (2002) 643-660.
MOYISE, S., ROYALTY, R. M. The Streets of Heaven. The Ideology of Wealth
in the Apocalypse of John. Macon: Mercer University Press, 1998.
MUSSIES, G. The Morphology of Koine Greek as Used in the Apocalypse of John:
A Study in Bilingualism. NovTSup, 27, Leiden: E. J. Brill, 1971.
NEGOITSA, A. DANIEL, C. L’Agneu de Dieu est le Verbe de Dieu. Novum
Testamentum, v. 13 (1971) 24-37.
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece 27. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 2001.
NEUSNER, J. Midrash in Context. Exegesis in Formative Judaism. Philadelphia:
Fortress Press, 1983.
NEWPORT, K. G. C. Semitic Influence on the Use of some Preposition in the Book
of Revelation. BTr, v. 37 (1986) 328-334.
_______ Semitic Influence in Revelation: Some Further Evidence. AUSS, v. 25,
(1987) 249-256.
_______ Some Greek Words with Hebrew Meanings in the Book of Revelation.
AUSS, v. 26 (1988) 25-31.
NIELSEN, K. “
#[e”. GLAT, v. VI, 934.
NOBILE, M. La ‘Nuova Gerusalemme’ in un documento di Qumran e in Apocalisse
21. Genesi di una teologia’. In Padovese, L. (ed.). Atti del VI Simposio di
Efeso su S. Giovanni Apostolo. Roma: Pontificio Ateneo Antonianum,
1996.
_______ Sarò per essi un tempio per poco tempo. Da Ezechiele all’ Apocalisse: il
tragitto di un’ idea. In Bosetti, E., & Colacrai, A. Apokalypsis. Percorsi
nell’ Apocalisse de Giovanni, Assisi: Cittadella, 2005, 127-146.
_______ Ez 38-39 ed Ez 40-48: I due aspetti complementari del culmine di uno
schema cultuale di fundazione. Antonianum, v. 62 (1987) 141-171.
_______ La redazione finale di Ezechiele in rapporto allo schema tripartito. Liber
Annus, v. 56 (2006) 29-46.
_______ Ez 37,1-14 come costitutivo di uno schema cultuale. Biblica, v. 65 (1984)
476-489.
_______ Nell'anno trentesimo (Ez 1,1). Antonianum, v. 59 (1984) 393-402.
NOTH, M. The History of Israel. New York: Harper and Row, 1960.
NUSCA, R. A. Liturgia e Apocalisse. Alcuni aspetti della questione. In Bosetti, E.
Colacrai, A. Apokalypsis. Percorsi nell’ Apocalisse di Giovanni. Assisi:
Cittadella Editrice, 2005.
O’CALLAGHAN, J. Introducción Crítica Textual Nuevo Testamento.
Instrumentos para el estudio de la Biblia III. Estella: Verbo Divino, 1999.
ODELL, M. Ezekiel. Georgia: Smyth & Helwys, 2005.
OESCH, J. Intertextuelle Untersuchungen zum Bezug von Offg 21,1-22,5 auf
alttestamentliche Prätexte. ProtoBib, v. 8 (1999) 41-74.
OEPKE, A. “la,mpw". GLNT, v. IV. Brescia: Paideia, 1969,74-75.
OSBORNE, G. R. Revelation. Baker Exegetical Commentary on the New
Testament. Michigan: Baker Academic, 2004.
OZANNE, C. G. The Influence of the Text and Language of the Old Testament
on the Book of Revelation. D
issertations. Manchester: University of
Manchester, 1964.
PARK, S.-M. More than a Regained Éden: The New Jerusalém as the Ultimate
Portrayal of Eschatological Blessedness and Its Implications for
Understanding the Book of Revelation. Illinois: Trinity Evangelical
Divinity School, 1995.
PARKER, F. O. Jr. Our Lord and God' in Rev 4:11: Evidence for the Late Date of
Revelation? Biblica, v. 82 (2001) 207-231.
PASQUALINI, A. R. L’ architettura della Gerusalemme celeste: la strutura letteraria
di Ap 21,9-21a. BSW, v. 1 (1998) 43-59.
PASSAMA, M. Apocalypse interpreté par l’ Ecriture. Paris: Arthur Savaète, 1907.
PATAI, R. The God Yahweh-Elohim. American Anthropologist, v. 75 (1973) 1181-
1184.
PAULIEN, J. Elusive Allusions: The Problematic Use of the Old Testament in
Revelation. Biblical Research, v. 33 (1988) 37-53.
_______ Decoding Revelation’s Trumpets: Allusions and the Interpretation of Rev
8:7-12. Berrien Springs: Andrews University Press, 1988.
PELÁEZ, J. “basilei,a”. En el Nuevo Testamento. Factor contextual, definición y
traducción. Filologia Neotestamentária, v. XVI (2003) 69-83.
PENNA, R. Appunti sul come e perché il Nuovo Testamento si rapporta all’Antico.
Biblica, v. 81 (2000) 95-104.
PERRIN, N. What is Redaction Cristicism? Filadelfia: Fortress Press, 1970.
PERRONE-MOISÉS, L. Texto, Crítica, Escritura. São Paulo: Ática, 1978.
PETERSEN, D. L. Haggai and Zechariah 1-8. Filadelfia: Westminster, 1984.
PEZZOLI-OLGIATI, D. Täuschung und Klarheit: Zur Wechselwirkung zwischen
Vision und Geschichte in der Johannesoffenbarung. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1997.
PITTA, A. Studi di cristologia giovannea. Assisi: Cittadella, 1992.
POHL, A. Die Offenbarung des Johannes erklärt. Wuppertal: Brockhaus, 1974.
POPKES, W. James and scripture: an exercise in intertextuality. NewTestStud, v. 45,
(1999) 213-229.
PORTER, S. E. The Use of the Old Testament in the New Testament. A Brief
Comment on Method and Terminology. In Evans, C. A., & Sanders, J. A.
(ed.). Early Christian Interpretation of the Scriptures of Israel.
Investigations and Proposals. JSNTSup, 148, 1997.
PORTON, G. G. Defining Midrash. In Neusner, J. (ed.). The Study of Ancient
Judaism. Midrash, Mishnah, Siddur. New York: KTAV, 1981.
POTTERIE, I. de la. Studi di cristologia giovannea. Assisi, 1992.
PREUSS, H. D. “
acy”. GLAT, v. III, 931. Brescia: Paideia, 2003.
PRIGENT, P. Apocalypse et Liturgie. Paris: Lausanne, 1981.
_______ Une trace de Liturgie judéochrétienne dans le chapitre XXI de l’Apocalypse
de Jean. RecScRel, v. 60 (1972) 165-172.
_______ L’Apocalypse: exegese historique et analyse strutturale, New Testament
Stud, v. 26 (1978) 127-137.
_______ Commentary on the Apocalypse of St. John. Tübingen: Mohr Siebeck,
2001.
RAD, G. “ basileu,j”. GLNT, v. II. , Brescia: Paideia. 1966, 146, 1966.
RAHLFS, A. Septuaginta. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.
RASMUSSEN, C. G. Atlas of the Bible. Grand Rapids: Zondervan Publishing
House, 1999.
RAND, J. A. The Imagery of the Heavenly Jerusalem (Rev 21,9-22,5). Neot, v. 22
(1988) 65-86.
RASHKOW, I. N. Intertextuality, Transference, and the Reader in/of Genesis 12 and
20. In Fewell, D. N. (ed.). Reading Between Texts. Intertextuality and
the Hebrew Bible, 57-73. Louisville, Kentucky, Westminster: John Knox
Press, 1992.
REDDISH, M. G. Martyr Christology in the Apocalypse. JournStudNT, v. 33
(1988) 85-95.
REDDITT, P. L. Nehemiah's First Mission and the Date of Zechariah 9-14. CBQ, v.
56 (1994) 664-678.
RENGSTORF, K. H. “dou/loj”. GLNT, v. II, 1418.1431.
_______ potamo,j”. GLNT, v. VI, 1494-1496. Brescia: Paideia, 1975.
RISSI, M. The Future of the World: An Exegetical Study of Rev 19.11-22.5.
London: SCM Press, 1972.
RIST, M. The Revelation of St. John the Divine: Introduction and Exegesis. In G. A.
Buttrick, et al (eds.). The Interpreter’s Bible, XII. New York: Nashville:
Abingdon, 1957.
RITMEYER, L. Locating the Original Temple Mount. BAR, v. 18 (1992) 34-36.
_______ The Temple and the Rock. Ritmeyer Archaeological Design. Londres:
Harrogate, 1996.
_______ The Quest - revealing the Temple Mount in Jerusalem. Jerusalem: 2006.
_______ Secrets of Jerusalem’s Temple Mount. Washington DC: Updated &
Enlarged Edition, 2006.
ROBERTSON, A. T. A Grammar of the Greek New Testament the Light of
Historical Research. New York: Baker, 1914.
ROGEL, S. Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1998.
ROJAS-FLORES, G. The Book of Revelation and the First Years of Nero’s Reign.
Biblica, v. 85 (2004) 375-392.
ROLOFF, J. Irdisches und himmlisches Jerusalem nach der Johannesoffenbarung. In
Hahn, F.; Hossfeld, F.-L.; Jorissen, H. Zion – Ort der Begegnung.
Bodenheim: Neuwirth, 1993, 85-106.
ROSSO U., L. Dalla ‘Nuova Gerusalemme’ alla ‘Gerusalemme Celeste’. Contributo
per la comprensione dell’Apocalittica. Henoch, v. 8 (1981) 69-80.
ROWLAND, C. The Visions of God in Apocalyptic Literature. JSJ, v. 10 (1979)
137-154.
ROYALTY, R. M. The Streets of Heaven. The Ideology of Wealth in the
Apocalypse of John. Macon: Mercer University Press, 1998.
RUITEN, J. The intertextual relationship between Isaiah 65,17-20 and Revelation
21,1-5b. Estudios Biblicos, v. 51 (1993) 473-510.
RUSCONI, C. Vocabulario del Greco del Nuovo Testamento. Bologna: EDB,
1997
2
.
RUIZ, J.-P. Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation of Prophetic
Language in Revelation 16,17-19,10. New York: Peter Lang, 1989.
_______ Betwixt and Between on the Lord’s Day: Liturgy and the Apocalypse. In
Lovering, R. H. Jr., SBL Seminar. Papers 31. Atlanta: Scholars Press,
1992.
SÆBØ, M. “
lbn”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II.
Madrid: Cristiandad, 1978, 46-48.
SAUER, G. “
%r,D,”. Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento I.
Madrid: Cristiandad, 1978, 647.
SCALABRINI, P. R. Biblia e intertestualità. Teologia, v. 28 (2003) 3-17.
SCHMID, H. H. Jahwe und die Kulttradition von Jerusalem, ZAW, v. 67, (1955)
168-197.
_______
rma”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Diccionario Teologico
Manual del Antiguo Testamento I. Madrid: Cristiandad, 1978, 321-327.
SCHMIDI, K. L. “basileu,w”. GLNT, Brescia: Paideia, 1965, 184-185.
SCHMIDT, D. Semitisms and Septuagintalisms in the Book of Revelation.
NewTestStud, v. 37 (1991) 592-603.
SCHMIDT, L. “basileu,j”. GLNT, Brescia: Paideia, 1965, 171-174.
SCHMITZ, O. “qro,noj”. GLNT, v. IV, Brescia: Paideia, 583.
SCHNEIDER, J. “xu,lon”. GLNT, v. VIII. Brescia: Paideia, 1972, 103-114.
_______ me,twpon”, GLNT, v. VII. Brescia: Paideia, 1971, 189-198.
SCHNEIDER, G. “lampa,j”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Diccionario
Exegetico del Nuevo Testamento, vol II, Salamanca: Sígueme, 1996, 10-
13.
SCHUCHARD, B. G. Scripture Within Scripture: The Interrelationship of Form
and Function in the Explicit Old Testament Citations in the Gospel of
John. Atlanta: Scholars Press, 1992.
SCHÜSSLER FIORENZA, E. Apocalyptic and Gnosis in the Book of Revelation and
Paul. JBL, v. 92 (1973) 565-581.
_______ The Book of Revelation: Justice and Judgment.
Philadelphia: Fortress, 1985.
_______ Redemption as Liberation, Ap 1,5 and 5,9f. CBQ, v. 36 (1974) 220-232.
________ Revelation: Vision of a Just World. Minneapolis: Fortress Press, 1991.
_______ Priester für Gott: Studien zum Herrschafts- und Priestermotiv in der
Apokalypse. Münster: Aschendorff, 1972.
SCOTT, B. Y. Weights and Measures of the Bible. The Biblical Archaeologist, v.
22 (1959) 21-40.
SCOTT, J. B. “
hM'a;”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 84.
SCOTT, R. B. The Original Language of the Apocalypse. Toronto: University
Press, 1928.
SCOTT, R. B. Y. The Hebrew Cubit. Journal of Biblical Literature, v. 77 (1958)
205-214.
SEELY, D. R. “Arabah”. The Anchor Bible Dictionary, V. I.
SHEPHERD, M. H. The Pascal Liturgy and the Apocalypse. London: SCM, 1960.
SIM, U. Das himmlische Jerusalem in Apk 21,1-22,5 im Kontext biblichjüdischer
Tradition und antiken Städtebaus. Trier: Wissenschaftlicher Verlag,
1996.
SIMONS, J. J. Jerusalem in the Old Testament. Leiden: E. J. Brill Smith, 1952.
SIMUNDSON, D. J. Hosea, Joel, Amos, Obadiah, Jonah, Micah: Minor
Prophets. Abingdon: Abingdon Press, 2005.
SIVAN, D. The Gezer Calendar and Northwest Semitic Linguistics. Israel
Exploration Journal, v. 48 (1998) 101-105.
SLATER, T. B. Dating the Apocalypse to John. Biblica, v. 84 (2003) 252-258.
SMITH, C. The Structure of the Book of Revelation in Light of Apocalyptic Literary
Conventions. Novum Testamentum, v. 36 (1994) 373-393.
SMITH, J. M. P., WARD, W. H., & BREWER, J. H. Micah, Zephaniah, Naum,
Habakkuk, Obadiah and Joel. Edinburg: T & T Clark, 2000.
SMALLEY, S. S. John’s Revelation and John’s Community. BJRL, v. 69 (1987)
549-571.
_______ The Revelation to John. London: InterVarsity Press, 2005.
_______ ‘The Paraclete’: Pneumatology in the Johannine Gospel and Apocalypse. In
Culpepper, R. A., & Black, C. C. Exploring the Gospel of John.
Westminister: John Knox Press, 1996.
_______ 1, 2, 3 John. Waco: Word Books, 1984.
SNIJDERS, L. A. “
lx;n;”. GLAT, v. V, 758. Brescia: Paideia, 2006.
SODEN, W. Ist im Alten Testament schon vom Schwimmen de rede?. ZAH, v. 4
(1991) 165-170.
SPLETT, J. “Símbolo”. In RAHNER, K. et al (org.). Sacramentum Mundi.
Barcelona: Herder, 1976, 354.
STÄHLI, H.-P. “
hag”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Diccionario Teológico
Manual Del Antiguo Testamento, v. I, 547-549.
STÄHLING, G. 700 Parallelen. Die Quellgründe der Apokalypse. Berna: M.
Hötzendorfer, 1951.
STEFANOVIC, R. Revelation of Jesus Christ. Michigan: Andrews University
Press, 2002.
STEINMANN, J. Ézéchiel. Paris: Desclée de Brouwer, 1961.
STENDAHL, K. The School of St. Matthew and its Use of the Old Testament.
Philadelphia: Fortress Press, 1968.
STEPHENSON, F. R. The Date of the Book of Joel. Vetus Testamentum, v. 19,
(1969) 224-229.
STEWART, D. Beyond Arsareth: The Twelve Tribes of Israel. Today, 2004.
STOEBE, H. T. “
xcr”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Diccionario
Teologico Manual del Antiguo Testamento II, 1014-1015.
STRACK, H, L.; STEMBERGER, G. Einleitung in Talmud und Midrasch.
München: C. H. Beck, 1982
7
.
STRATHMANN, H. “latreu,w”. GLNT, v. VI. Brescia: Paideia. 1970,169-172.
STUHLMUELLER, C. Haggai and Zechariah. Grand Rapids: Eerdmans, 1988.
SWEET, J. P. M. Revelation. London: SCM Press, 1979.
SWETE, H. B. The Apocalypse of St. John. London: Macmillan, 1911.
TÁCITO. A Germânia. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Inquérito,
1941.
TALMON, S. The Gezer Calendar and the Seasonal Cycle of Ancient Canaan.
Journal of the American Oriental Society, v. 83 (1963) 177-187.
TAYLOR, J. B. Ezekiel. Westmont: Intervarsity Press, 1981.
THAYER, J. H. Greek-English Lexicon of the New Testament. Massachusetts:
Hendrickson Publishers, 1999.
THOMAS, R. L. Revelation 1-7. Chicago: Moody Press, 1992.
_______ Revelation 8-22. Chicago: Moody Press, 1995.
THOMPSON, L. L. The Book of Revelation: Apocalypse and Empire. Oxford:
Oxford University Press, 1990.
THOMPSON, P. E. S. The Yahwist Creation Story. Vetus Testamentum, v. 21,
(1971) 197-208.
TORIBIO CUADRADO, J. F. La recepción de Dn 7,13 en Ap 1,7. Mayéutica, v. 18
(1992) 9-56.
_______ Apocalipsis 4-5. Díptico litúrgico de creación y redención. Mayéutica, v.
22 (1996) 9-65.
TORREY, C. C. The Apocalipse of John. Yale: Yale University Press, 1958.
_______ Certainly Pseudo-Ezekiel. JBL, v. 53 (1934) 291-320.
TOV, E. Jewish Greek Scriptures. In Robert A. Kraft & George W. E. Nickelsburg
(ed.). Early Judaism and Its Modern Interpreters. Philadelphia:
Atlanta Scholars Press, 1986.
TRENCH, R. C. Synonyms of the New Testament. Michigan: Baker, 1989.
TREVES, M. The Date of Joel. Vetus Testamentum, v. 7 (1957) 149-156.
TRUDINGER, L. P. The Text of the Old Testament in the Book of Revelation.
ThD Dissertation. Boston: Boston University School of Theology, 1963.
TSEVAT, M. “
rkB”. GLAT, v. I, col. 1307-1308. Brescia: Paideia, 1988.
TUELL, S. The Rivers of Paradise: Ezekiel 47:1-12. In Brown, W. P., and McBride,
D. Jr. God Who Creates Essays in Honor of W. Sibley Towner.
Cambridge: Eerdmans, 2000.
_______ Ezekiel 40-42 as Verbal Icon. CBQ, v. 58 (1996) 649-664.
_______ The Temple Vision of Ezekiel 40-48: A Program for Restoration?
PEGLBS, v. 2 (1982) 96-103.
TURNER, N. Syntax. A Grammar of New Testament Greek. v. 3. Edinburgh: T. &
T. Clark, 1963.
UNTERMAN, A. Dictionary of Jewish Lore & Legend. London: Thames and
Hudson, 1991. Traduzido por Paulo Geiger, Dicionário Judaico de lendas
e tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
2
.
VANDERKAM, J. C. Calendars, Ancient Israelite and Early Jewish. In Anchor
Bible Dictionary, v. I, 814-820.
VANHOYE, A. Old Testament Priests and the New Testament. Petersham: St
Bede’s, 1986.
_______ L’ utilisation du livre d’Ézéchiel dans l’Apocalypse. Biblica, v. 43 (1962)
436-476.
VANNI, U. L’ Apocalisse di Giovanni tra apocalittica giudaica e apocalittica
cristiana. In Vanni, U. Apocalittica e liturgia del compimento. Padova:
Terrin, 2000.
_______ Apocalisse e Antico Testamento. Una Sinossi. Roma: Pontificio Istituto
Biblico, 2000.
_______ L’ Apocalisse, Una Assemblea liturgica interpreta la storia. Brescia:
Qiqaion, 1988.
________ Liturgical dialogue as a literary form in the book of Revelation.
NewTestStud. v. 37 (1991) 348-372.
_______ L’ annuncio e l’ ascolto della Parola di Dio nel contesto della liturgia: la
prospettiva dell’Apocalisse. RivLtg, v. 70 (1983) 659-670.
_______ L’ Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia. Bologna: EDB, 1997
3
.
_______ ‘giorno del Signore’ in Ap 1,10, giorno di purificazione e di discernimento.
Rivista Biblica Italiana, v. 26 (1978) 187-199.
_______ L’assemblea liturgica si purifica e discerne nel “Giorno del Signore” (Ap
1,10). In Vanni, U. L’Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia.
Supplementi alla Rivista Biblica 17. Bologna: EDB, 1997.
_______ Ap 1,4-8: Un esempio di dialogo liturgico. In Vanni, U. L’Apocalisse.
Ermeneutica, esegesi, teologia. Supplementi alla Rivista Biblica 17.
Bologna: EDB, 1997.
_______ L’ Apocalisse, rilettura cristiana dell’ Antico Testamento. In Gennaro, G.
(ed.). L’ Antico Testamento interpretato dal Nuovo. Il Messia. Napoli:
Dehoniane, 1985.
_______ La struttura letteraria dell’Apocalisse. Roma: Herder, 1971.
_______ Il simbolismo nell’Apocalisse. Gregorianum, v. LXI (1980) 461-506.
_______ La promozione del regno come responsabilità sacerdotale dei Cristiani
secondo l’Apocalisse e la Prima Lettera di Pietro. Gregorianum, v. 68
(1987) 23-25.
_______ La dimension christologique de la Jérusalem nouvelle. RevHistPhilRel, v.
79 (1999) 119-133.
_______ Dalla venuta dell’ ‘ora’ alla venuta di Cristo (La dimensione storico-
cristologica dell’escatologia nell’Apocalisse). Studia Missionalia, v. 32
(1983) 309-343.
VAWTER, B.; HOPPE, L. J. A New Heart. A Commentary on the Book of Ezekiel.
Edinburgh: Eerdmans, 1991.
VETTER, D. “
hNEhi”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Diccionario Teologico
Manual del Antico Testamento I. Madrid: Cristiandad, 1978, 710.
_______ bWv”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Diccionario Teologico
Manual del Antico Testamento I. Madrid: Cristiandad, 1978, 1113.
VICTOR, E. Russian Formalism. Haia: Mouton, 1955.
_______ Russian Formalism: History, Doctrine. Hardcover: Yale University,
1981
3
.
VOGELGESANG, J. M. The Interpretation of Ezekiel in the Book of Revelation.
Cambridge: Harvard University, 1985.
VOORTMAN, T. C.; Du RAND, J. A. The Worship of God and the Lamb: Exploring
the Liturgical Setting of the Apocalypse of John. Ekklesiastikos Pharos,
v. 80 (1998) 56-67.
VORSTER, W. S. Intertextuality and Redaktionsgeschichte. In Draisma, S. (ed.).
Intertextuality in Biblical Writings. Kampel: J. H. Kok, 1989.
WAGNER, S. “
rma”, GLAT, v. I, 710. Brescia: Paideia, 1988.
WALVOORD, J. F. The Revelation of Jesus Christ. Chicago: Moody, 1966.
WARDEN, D. Imperial Persecution and the Dating of 1 Peter and Revelation.
Journal of the Evangelical Theological Society, v. 34 (1991) 203-212.
WEINFELD, M. Deuteronomy and the Deuteronomic School. Oxford: Clarendon
Press, 1972.
WELLEK, R. Conceitos de Crítica. São Paulo: Contrix, 1979.
WESTERMANN, C. “
vp,n<”. In JENNI, E.; WESTERMANN (org.). Diccionario
Teologico Manual del Antiguo Testamento II. Madrid: Cristiandad,
1978, 107.
WEVERS, J. W. Ezekiel. London: Eedmans, 1969.
WILCOX, M. Tradition and Redaction of Rev 21,9-22,5. In Lambreacht, J. (ed.).
L’Apocalypse johannique et Apocalyptique dans le Nouveau
Testament. BETL 53. Gembloux: University Press, 1980, 203-215.
WOLDE, E. Trendy Intertextuality. In Draisma, S. (ed.). Intertextuality in Biblical
Writings. Kampel: J. H. Kok, 1989.
WOLF, C. U. Some Remarks on the Tribes and Clans of Israel. The Jewish
Quarterly Review, v. 36 (1946) 287-295.
WOLFF, H. W. Joel and Amos. Hermeneia: Fortress, 1977.
WORTEN M.; STILL J. Intertextuality: Theorias and Pratices. Manchester:
Manchester University Press, 1990.
WRIGHT, A. G. The Literary Genre Midrash. CBQ, v. 28 (1966) 105-138.
YOUNG, I. The Style of the Gezer Calendar and Some 'Archaic Biblical Hebrew'
Passages. Vetus Testamentum, v. 42 (1992) 362-375.
YUBERO, D. La ‘Nueva Jerusalém’ Del Ap 21,1ss. Cultura Bíblica, v. 115 (1953)
359-362.
ZIMMERLI, W. Die Umwelt des neuen Heiligtums. Neukirchener Verlag, 1969.
ZIMMERLI, W. Ezekiel 2., 513.
ZWICKEL, W. Die Tempelquelle Ez 47 - Eine traditionsgeschichtliche
Untersuchung. EvTh, v. 55, (1995) 140-154.
Excurso
O estudo de Ap 22,1-5 indicou a presença de outros textos vétero-
testamentários, além de Ez 47,1-12, a exercer influência sobre o nosso texto. Esta
influência, embora indireta, merece a nossa atenção, posto que, outros textos
apresentam elementos de intertextualidade não apenas não apenas com Ez 47,1-12
como também com o neotestamentário, e colaboram para uma melhor compreensão
do nosso texto.
Aqui, tal como procedemos no capítulo IV, a aferição dos possíveis contatos
será realizada através dos critérios empregados por Markl. O escopo também será o
mesmo: detectar como as indicações de conexões textuais propostas pelos critérios
deste autor ocorrem ou não no texto do Apocalipse, bem como a motivação do
hagiógrafo neotestamentário para recorrer a textos antigos ao confeccionar o seu
texto.
1 Análise de dados
a) Critério de Comunicação
Seguindo, o critério de Comunicação é possível perceber que os textos de
Zc 14,8 e Jl 4,18 seguem a estrutura lingüística de Ez 47,1a no que tange a associação
entre o verbo
acy com o termo lx;n; / ~yIm;, acrescido do espaço sagrado.
~Øil;v'Wrymi + ~yYIx;-~yIm: + Wac.yE - Zc 14,8
~yJiVih; + lx;n:-ta, + hq"v.hiw> + aceyE + hw"hy> + tyBemi +!y"[.m;W - Jl 4,18
tyIB;h; + !T:p.mi + tx;T;mi + ~yaic.yO + ~yIm:-hNEhiw> + tyIB;h; + xt;P,-la, + ynIbeviy>w: - Ez 47,1
Em Jl 4,18 e Zc 14,8 o emprego do verbo
acy é indicado sob a forma verbal
Qal yiqtol “sairá da casa de YHWH”; enquanto que em Ez 47,1 foi utilizado o
particípio Qal. A alternância da flexão verbal não chega a imprimir uma mudança
significativa, ao contrário, acentua a semântica do local que origina a água.
Os textos de Zc 14,8 e Jl 4,18, além de Ez 47,1, encontrarão semelhante
exclusividade semântica apenas em Ap 22,1a.2a, quando o verbo acy traduzido para o
grego como evkporeu,omai assumirá a função de indicar o trono de Deus e do Cordeiro
como o local de onde procederá a água da vida.
Além desta intertextualidade relacionada com o local da água, um novo
contato poderá ser encontrado através do texto de Gn 2,10. Este exerce uma
influência intertextual, no sentido de ser a imagem paradisíaca, oferecida em Ap 22,1-
5, uma retomada daquele primeiro Éden de onde “um rio saía para regar o jardim”
(cf. Gn 2,10).
Em Ap 22,2a, um outro indício de comunicação consiste no emprego da
locução evn me,sw| th/j platei,aj. Esta sugere algo mais do que uma simples disposição
espacial, o estar “no meio da praça” estabelece uma conexão com
#[ew> !G"h; %AtB. / evn
me,sw| tw/| paradei,sw| de Gn 2,9, tanto em nível geográfico, quanto de acessibilidade
existente no momento da criação (cf. Gn 2,7-8). A liberalidade de acesso à árvore foi
interrompida em conseqüência da desobediência ao mandamento de Deus (cf. Gn
2,16-17; 3,2-11). Por ela, o pecado ingressou no mundo e o homem foi expulso do
Éden (cf. Gn 3,23), perdendo, assim, a proximidade com a árvore da vida, que passou
a ser custodiada por querubins e pela chama da espada fulgurante (cf. Gn 3,24). Além
de retomar a idéia de acessibilidade e disposição geográfica existente no ato da
criação, a comunicação entre Gn 2,9 e Ap 22,2a comporta a imagem da restauração
de uma vida de intimidade entre o Criador e a criatura
676.
A presença do singular xu,lon de Ap 22,1a, em sentido coletivo, comunica-se
com Gn 2,9 onde é descrita a existência de uma árvore no Paraíso
677 e
concomitantemente com Ez 47,7.12, onde xu,lon é um singular com sentido coletivo.
Os dois textos apresentaram, cada um a seu modo, elementos de intertextualidade.
676 BRIGHTON, L. A., Revelation, 625.
677 Kowalski, B., segue o pensamento de Beale e Roloff e reduz as árvores da visão de Ezequiel
47,7.12 a uma única árvore optando assim, pelo texto de Gn 2,9 como texto principal a influenciar o
texto de Ap 22,2. Cf. KOWALSKI, B., Die Rezeption des Propheten Ezechiel in der Offenbarung des
Johannes. Stuttgart, Verlag Katholisches Biblewerk GmbH, 2004, 420; BEALE, G. K., The Book of
Revelation, 1106; ROLOFF, J., Irdisches und himmlisches Jerusalem nach der Johannesoffenbarung,
in Zion – Ort der Begegnung. Bodenheim, hg. Von F. Hahn/ F.-L. Hossfeld/H. Jorissen/A. Neuwirth,
1993, 85-106.
b) Critério de Referência
Um novo ponto para observação seria a temática escatológica contida nos
textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12 que revelou uma referência entre os textos.
Contudo esta referência intertextual também faz contato com o capítulo final de
Joel
678, onde o oráculo escatológico compreende elementos clássicos: prodígios
cósmicos que precedem o “dia de YHWH” e a salvação definitiva do “resto de
Israel”. Esta restauração futura é descrita em forma poética numa imagem de
fertilidade que reverte por completo o quadro de devastação anterior causada por
gafanhotos (cf. Jl 4,18). A isso, seguem-se o anúncio do juízo contra os inimigos,
Egito e Edom (cf. Jl 4,19) e a proclamação de uma promessa perpétua para Judá e
Jerusalém. Percebe-se que a referência escatológica concentra-se sobre a questão da
fertilidade que restaura a vida que fora devastada tanto em Ez 47,1-12, representada
pelos v. 8.9.10.12 (v. 8 “águas ficam purificadas”, “seres se multiplicam”; v. 9 “tudo
será curado”, “pescadores se multiplicam”, v.10 “haverá abundância”, v. 12 “árvores
frutificarão sem cessar e sua folhagem servirá de remédio”), quanto em Jl 4,18 (“os
ribeiros regarão vale das Acácias”). A motivação da fonte também constitui uma
678 Não entraremos aqui em questões críticas sobre a estrutura do livro de Joel. Em nosso trabalho
tomamos por base o Texto Massorético que indica quatro capítulos e não a LXX ou a Vulgata que
propõem três capítulos anexando o capítulo terceiro ao segundo.
Sobre o tema datação, permanece em aberto a questão. Há uma possibilidade de tomarmos como
parâmetro um período que oscila do século V ao II a.C. tendo em vista a linguagem escatológica e
apocalíptica contida nesta segunda parte do livro.
Para maior aprofundamento destes dois temas ver: MYERS, J. M., “Some Considerations Bearing on
the Date of Joel”, Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 74 (1962), 81-94; STEPHENSON,
F.R., “The Date of the Book of Joel”, Vetus Testamentum 19 (1969) 224-29; TREVES, M., “The Date
of Joel”, Vetus Testamentum 7 (1957) 149-56. ALLEN, L. C., Obadiah, Joel, Jonah and Micah.
Eerdmans, 1976; BARTON, J., Joel and Obadiah. Westminster John Knox Press, 2001;
CRENSHAW, J. L., Joel. Bantam Doubleday Dell Publishing Group Inc., 1995; DILLARD, R. B.,
“Joel” In McComisky, T., (ed), The Minor Prophets: An Exegetical and Expository Commentary, Vol.
1. Grand Rapid, Baker, 1992; FINLAY, T. J., Joel, Amos, Obadiah. Moody, 1990; GARRETT, D.,
Hosea-Joel. Broadman & Holman Publishers, 1996; LIMBURG, J., Hosea-Jonah. John Knox, 1988;
HUBBARD, D. A., Joel and Amos. Leicester, IVP, 1989; SIMUNDSON, D. J., Hosea-Joel, Obadiah,
Jonah, Micah: Minor Prophetes. Abingdon Press, 2005; SMITH, J. M. P., WARD, W. H., &
BREWER, J. H., Micah, Zephaniah, Nahum, Habakkuk, Obadiah and Joel. Edinburg, T & T Clark,
2000; WOLFF, H. W., Joel and Amos. Hermeneia. Fortress, 1977.
referência escatológica entre Ez 47,1.12 e Jl 4,18, pois, se para o primeiro a fonte era
a “Casa” (v.1) ou o “Santuário” (v.12), para o segundo é a “Casa de YHWH”
679.
Tal como ocorrera na profecia de Ezequiel, no livro de Joel o
arrependimento é crucial para reverter o infortúnio de Judá. A colocação da promessa
da restauração após o chamado à conversão enfatiza que o arrependimento de Judá
precede a restauração (cf. Jl 2,12-14), assim como o reconhecimento do domínio
absoluto de Deus sobre a natureza e a história (cf. Jl 2,3.11-27).
A perspectiva escatológica da restauração da vida estabelece ainda uma
outra referência intertextual, agora com o texto de Zc 14,8
680. A construção literária
em quiasmo do c.14 expressa, de modo conciso, a dramática mudança de derrota para
vitória
681. Os v. 1-6 mostram Jerusalém abatida pela ruína, coisas terríveis ainda a
atingirão, mas todos os acontecimentos convergem para um dia em particular e este
dia somente YHWH conhece (cf. v. 7). Este é o ponto decisivo. Deste dia em diante,
Jerusalém se tornará fonte de luz para as nações que, até então, a espoliavam. Se, no
início, o povo de Deus sofreu, agora serão os seus inimigos que sofrem e morrem. A
causa da mudança na sorte de Jerusalém é o seu retorno para seu Deus e o
conseqüente extermínio dos ídolos e dos falsos profetas (cf. Zc 10,1-11,3; 13,2-6).
Segue-se uma batalha onde Jerusalém é vitoriosa, porque YHWH sai para combater
por ela (cf. Zc 14,3). As nações serão vencidas e estarão sob os pés de YHWH. Os
prodígios cósmicos que precedem o “dia de YHWH” são representados por um
potente terremoto, capaz de abrir um vale entre as montanhas e de criar uma rota de
fuga da cidade de Jerusalém (cf. Zc 14,5) e pela ausência de luz (cf. Zc 14,6).
679 Conforme indicou a análise semântica de Ez 47,1a, a expressão “Casa de YHWH” exprime de
modo mais objetivo o significado de “Templo” enquanto o lugar onde YHWH habita. Cf. Capítulo III,
188.
680 Sobre a datação do texto de Zacarias 13-14, muitos estudiosos indicam aquela mesma época do
profeta Ageu: em torno do ano 521-250 a.C. ou ainda mais cedo caso se identifique o inimigo de Zc
10,10 com a Assíria ou o Egito. Para maior compreensão ver: BICKERMAN, E. J., “La seconde année
de Darius”, Rivista Biblica 88 (1981) 23-28; REDDITT, P. L., “Nehemiah's First Mission and the Date
of Zechariah 9-14”, CBQ 56.4 (1994) 664-678; BALDWIN, J. G., Haggai, Zechariah,
Malachi.Leicester, 1972; KAISER, W., Micah, Nahum, Habakkuk, Zephaniah, Haggai, Zachariah.
Word Publishing, 2000. MITCHELL, H. G., SMITH, J. M., BEWER, J. A., Haggai, Zechariah,
Malachi.and Jonah. Edinburgh, T & T Clark, 1912; STUHLMUELLER, C., Haggai and Zechariah.
Eerdmans, 1988; PETERSEN, D. L., Haggai and Zechariah 1-8. Westminster, 1984; MEYERS, C. L.,
& MEYERS, E. M., Haggai, Zechariah 1-8. Anchor Bible. Doubleday, 1987.
681 Cf. AMSLER, S., LACOQUE, A., VUILLEUMIER, R., Aggée, Zacharie, Malachie. Genève,
Labor et Fides, 1988, 132.
Com a chegada do “dia de YHWH”, dia que não será mais medido, porque
já não anoitecerá mais (cf. Zc 14,7), o sonho de uma abundância de água em
Jerusalém se tornará uma realidade. Em lugar da fonte de Gion, cuja água corria
“brandamente” até o tanque de Siloé sem conseguir suprir totalmente as necessidades
da cidade, surgirão em Jerusalém rios independentes das chuvas das estações,
jorrando para leste e oeste até o Mar Morto e o Mediterrâneo.
Percebe-se que entre os textos de Ez 47,1-12 e Zc 14,8, o contato recai tanto
sobre a perspectiva da orientação do rio que saindo de Jerusalém, segundo Zacarias,
do Templo segundo Ezequiel, toma a direção leste, quanto do local da fonte.
Tal como ocorreu entre o texto de Ez 47,1.12 e Jl 4,18, a motivação da fonte
constitui uma referência escatológica também com o texto de Zc 14,8. Nos textos
anteriores, a fonte era o Templo, lugar da habitação de YHWH (cf. Ez 47,1-12), a
Casa de YHWH (cf. Jl 4,18) e, em Zacarias, a fonte é a cidade de Jerusalém (cf. Zc
14,8) que é, em última instância, o lugar onde YHWH habita, o centro religioso tanto
para os deportados (cf. Is 40-55; Sl 137), quanto para os que permaneceram na terra
(cf. Jr 41,4ss).
Zacarias não discorre sobre a transformação causada pelas águas que
fertilizam a terra seca e pedregosa, deixando a tarefa à imaginação do leitor.
Diferentemente Ez 47,1-12, que descreve os pormenores do único rio que fertiliza e
restaura toda a terra, lançando mão do estilo hiperbólico, como evidenciam as
repetições contidas nos v. 5.7.9, “profundas”, “muitos”, “todos”, pela comparação do
v. 10 e a colheita mensal miraculosa do v. 12.
O ponto central entre os textos de Ezequiel, Zacarias e Joel é o motivo da
fonte e sua capacidade de gerar vida. Semelhante capacitação se deve ao espaço onde
YHWH se faz presente, por esta razão, a água que jorra desta fonte é capaz de
transmitir a vida por onde passa. A presença de YHWH é a única explicação para
toda esta fartura. A perspectiva escatológica contida nestes textos situa a fonte logo
após o cumprimento do juízo e por ele se dá a restauração, sinal de que o perdão já
ocorreu.
A referência intertextual entre os textos analisados mostrou que na
perspectiva dos textos vétero-testamentários, a índole escatológica converte-se em
pano de fundo, como se depreende pela expressão aWhªh; ~AYB; “naquele dia” dos
textos de Jl 4,18 e Zc 14,8, assim como, pela expectativa de restauração histórica, isto
é, uma escatologia que teria como palco e cenário este mundo (cf. Ez 47,1-12; Jl 4,18;
Zc 14,8). No texto do Apocalipse, a escatologia assume um teor meta-histórico: tendo
início neste mundo, encontra sua plena realização na eternidade
682.
Os inimigos de Israel que em Joel são identificados como Egito e Edom (cf.
Jl 4,19), em Zacarias são os ídolos e falsos profetas (cf. Zc 10,1-11,3; 13,2-6) e em
Ezequiel são diversas as cidades inimigas (cf. Ez 25,1-32,32). Foram, através da
linguagem simbólica do Apocalipse, condensados sob a imagem do dragão, da Besta
e do falso profeta (cf. Ap 12-13). A imagem proposta pelo texto do Apocalipse, tal
como a dos textos vétero-testamentários, é precisa em indicar a total destruição dos
que se levantam contra os eleitos de YHWH.
A diferença entre os textos de Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12, conforme já
detectado no capítulo IV, repousa no papel de defensor do povo. A mesma distinção
poderá ser observada em Jl 4,18 e Zc 14,8. Nestes textos vétero-testamentários, esta
tarefa é desempenhada por YHWH (cf. Zc 14,3; Jl 2,18-27; Ez 38), enquanto que no
livro do Apocalipse esta será desempenhada pelo Cordeiro. Ele partirá para salvar os
eleitos e eliminar aqueles que se opõe ao projeto divino (cf. Ap 5,6-10; 19,17-21).
O motivo da fonte, cerne de nosso trabalho, foi detectado entre os textos de
Ez 47,1-12 e Ap 22,1-5. Contudo, a análise de Jl 4,18 e Zc 14,8 permite detectar uma
nova referência intertextual. Entre estes textos vétero-testamentários, o local de
origem da água está situado no espaço sagrado da Casa de YHWH (cf. Jl 4,18) ou de
Jerusalém (cf. Zc 14,8) indicando assim que ela procede exatamente da presença de
YHWH. Tal como foi aferido entre Ez 47, 1-12 e Ap 22,1-2, o local de onde brota a
água está vinculado ao espaço sagrado, porque se origina do Templo/ do trono de
Deus e do Cordeiro o “rio de água da vida brilhante como o cristal”.
Esta água que brota do espaço sagrado possui por característica básica uma
potência restauradora que corrobora a referência intertextual existente entre Ez 47,1-
12; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap 22,1-2. De fato, entre estes textos vétero-testamentários as
682 Cf. CONTRERAS MOLINA, F., El Señor de la vida. Lectura cristológica del Apocalipsis, 275-
276.
águas são apresentadas como abundantes (cf. Ez 47,1-12; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap 22,1),
independentes do condicionamento das estações (cf. Ez 47,1-12; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap
22,1), facultam a vida em toda sua extensão (cf. Ez 47, 5.7.9.10; Jl 4,18; Zc 14,8; Ap
22,1), mas, em todos fica evidenciada a dependencia de seu local de origem para
comunicação da vida. Sendo assim, a água descrita nos textos de Ez 47,1-12; Jl 4,18 e
Zc 14,8 condicionam sua admirável capacidade de promover a vida a YHWH; Ele é a
fonte, por excelência, de toda a vida.
No livro do Apocalipse esta idéia teológica dos textos vétero-testamentários
foi mantida. Entretanto, em Ap 22,1-2, já não encontramos mais apenas YHWH,
como doador da vida, pois ao seu lado sentado no trono, está o Cordeiro que é
juntamente com YHWH doador da vida
683.
Em relação a Ap 22,1-5, pode-se, no entanto, privilegiar a referência
intertextual com o texto de Ez 47,1-12, tendo em vista que Jl 4,18 e Zc 14,8 fazem
uma releitura de Ez 47,1-12
684.
c) Critério de Diálogo
Além de Ez 47, 1-12, encontramos no Antigo Testamento, uma outra
passagem significativa que estabelece um novo diálogo com Ap 22,1a, a saber: Zc
13,1. Este texto vétero-testamentário é o único que apresenta o binômio
hD"nIl.W taJ;x;l.
“pecado e mancha”, vinculado à função específica da fonte de água, cujo escopo é
lavar os pecados e as manchas da Casa de Davi e dos habitantes de Jerusalém,
acarretando para estes um estado de limpidez ímpar.
683 Em Jr 17,13, a ocorrência de ~yYIx;-~yIm: não encontra, no que concerne à questão de contexto,
semelhanças com Ap 22,1, porque estão ausentes os elementos de uma escatologia positiva e a
indicação do local que dá origem ao rio. No tocante a temática de fundo, temos em Jeremias a
apostasia e uma busca insana do homem por Aquele que anteriormente abdicou e a conseqüente
destruição que impôs a si mesmo.
Os textos de Gn 26,13; Lv 14,5.50; 15,13; Nm 19,17 ao trazerem a construção
~yYIx; ~yIm: não
apresentam conexões semânticas com Jr 17,13 porque o adjetivo plural “vidas”, assume a conotação de
“nascente” ou “corrente”, além disto, o termo rio, em Gn 26,13, aparece apenas como elemento
espacial onde se faz a escavação. Em nenhum deles há um contexto escatológico. O cenário de Gn
26,13 mereceria uma análise especial sobre o modo que o Novo Testamento em Jo 4 retomou esta
passagem.
684É provável que Zacarias e Joel tenham feito uma releitura da profecia de Ezequiel. Cf. AMSLER,
S., LACOQUE, A., VUILLEUMIER, R., Aggée, Zacharie, Malachie. Genève, Labor et
Fides,1988,136-137.
A iniciativa de tornar límpida a Casa de Davi e os habitantes de Jerusalém
parte de YHWH, que se compadece do estado de miséria da “terra”, da “Casa de
Davi” e de “Jerusalém” que “pranteia” (cf. Zc 12,12-14).
Em Ap 22,1a, o genitivo zwh, dialoga com a expressão
hD"nIl.W taJ;x;l.
“pecado e mancha” de Zc 13,1. Ambos serão eliminados, dando espaço à vida que
brota da fonte que proporciona à “Casa de Davi”, através das águas, um inimaginável
estado de diafania. Este novo estado permite que a salvação predomine sobre o
pecado.
Apesar da significativa presença de Zc 13,1, os contatos entre Ap 22,1-5 e
Ez 47,1-12 são mais relevantes, considerando o maior número de contatos
intertextuais e o panorama do texto de Ap 22,1-5.
Um outro componente de diálogo entre as passagens de Ap 22,1a pode
ainda ser encontrado, considerando a questão dos destinatários desta água. Em Zc
13,1 ela é destinada
~Øil'v'Wry> ybev.yOl.W dywID" tybel. “à Casa de Davi aos habitantes de
Jerusalém”. Já em Ez 47,8.9, o destinatário é o Mar Morto e em Jl 4,8 o destino das
águas que saem da Casa de YHWH é o vale das Acácias. No Ap 22,1, os limites
geográficos e nacionalistas dos textos de Zacarias, Joel e Ezequiel são superados. A
água que sai do “trono de Deus e do Cordeiro” destina-se a toda a humanidade (cf.
Ap 21,24), acentuando, assim, o universalismo da salvação. O autor neotestamentário
possui uma noção de salvação que supera aquela vétero-testamentária, mas sem
deixar de supô-la.
As observações dos termos e expressões semelhantes e, às vezes, únicas,
entre Zc 14,8 e Ap 22,1a, sugerem que o autor neotestamentário teve a intenção de
aproximar-se deste livro, criando assim um contato intertextual bastante explícito.
d) Critério de Seletividade
A expressão u[datoj zwh/j de Ap 22,1 não será encontrada, de modo
explícito, no texto de Ez 47,1-12. Mas pode ser constatada pelo contexto da perícope,
onde o vocábulo
~yIm; sintetiza e viabiliza a vida, posto que ao longo de toda a
trajetória da água há a fecundação da terra, tornando-a capaz de dar frutos, além da
inaudita cura das águas insalubres, tornando-as repletas de vida. A referência fica
mais explícita em Ez 47,8.9, onde a água que saiu do Templo tem a função de curar e
dar a vida.
Uma seletividade ainda mais evidente incide sobre os termos
~yYIx;-~yIm:, que o
texto da LXX traduziu como u[dwr zw/n e teve preservada no texto de Ap 22,1a a
mesma disposição dos termos e a semântica contida no texto de Zc 14,8. A
classificação gramatical, contudo, sofreu algumas alterações, pois enquanto Zc 14,8
u[dwr zw/n é sujeito da frase, em Ap 22,1a, u[datoj zwh/j é objeto do verbo dei,knumi e
especifica aquilo que o autor do Apocalipse contemplava.
Apesar de a classificação gramatical possuir um valor para a compreensão
do texto, exerce menor influência sobre o cerne de nossa pesquisa do que a motivação
para a manutenção da disposição dos termos e da semântica, pois se o novo autor, ao
usar o texto anterior, lhe preserva a mesma ordem, é porque tem por finalidade fazer
recordar na mente do leitor atual uma linha teológica nela contida, além de uma
linearidade semântica.
No texto de Zc 14,8, a u[dwr zw/n compreende tanto a redenção de Israel e a
exclusividade na adoração a YHWH, quanto a expectativa de vida abundante através
desta água que brota incessantemente de Jerusalém
685. Nestes dois elementos, a
seletividade se apresenta mais vigorosamente, pois as duas nuances da semântica se
fazem sentir no texto de Ap 22,1a. De fato, em Ap 22,1a, detectamos que a expressão
u[datoj zwh/j traz consigo, considerando o contexto dos c. 21-22, a redenção da
história e o reconhecimento por parte de todas as nações, de que o Deus de Israel é o
único Deus e, portanto, só a Ele se presta adoração (cf. Ap 21,24-27). A teologia
comum aos dois textos está no cumprimento do juízo, no triunfo de Deus sobre seus
inimigos e na instalação de seu reinado sobre Jerusalém, de onde brotará uma água
totalmente nova, uma “água da vida”.
A noção de vida abundante anunciada pelo profeta Zacarias permanece no
texto de Ap 22,1a, pois u[datoj zwh/j reforça a idéia teológica de vida em plenitude.
Nos dois textos, é o local de origem da água que gera esta propriedade particular a ela
aplicada. O qualificativo “da vida” está intimamente vinculado ao local donde a água
685 ANSLER, S., LACOCQUE, A., VUILLEUMIER, R., Aggée, Zacharie, Malachie, 201.
brota. Sendo assim, a “vida” não é um atributo da água em si mesmo, não é a “água”
que fornece o benefício, ela apenas o contém; sua potencialidade repousa no lugar de
onde ela procede.
Apesar dos contatos existentes entre Ap 22,1-5 e Ez 47,1-12, a aproximação
mais estreita da expressão “água da vida” se dá com o texto de Zc 14,8. Nele há a
descrição de uma água qualificada como “da vida”, que brota de Jerusalém e divide-
se em dois braços: um para o mar oriental e o outro para o mar ocidental, tanto no
verão quanto no inverno. Nesta última etapa da descrição, o texto de Zc 14,8
aproxima-se de Ez 47,6.7.9.12, em decorrência da temática de uma autonomia com
relação aos limites ditados pelo ciclo das chuvas, para a constância das águas do rio.
Um segundo elemento poderia ser indicado através da expectativa escatológica de
felicidade eterna alcançada pela abundância de água que brota de Jerusalém. A
conseqüência da presença desta água da vida é o encerramento de toda idolatria e a
implementação do reinado de Deus sobre todo o país (cf. Zc 14,9)
686.
Uma nova seletividade será encontrada se considerarmos a relação entre os
textos de Gn 2,9; 3,22 e Ap 22,a. A justaposição de imagens de Gn 2,9 com Gn 3,22
associa a árvore da vida à imortalidade. Esta temática encontra-se presente e
desenvolvida em Ap 22,1-5 por meia da imagem da vida que é oferecida aos servos
de Deus e do Cordeiro na Cidade Santa, uma vida que se estenderá por todos os
séculos.
O contexto de uma árvore plantada no paraíso (cf. Gn 2,9) ou na eternidade
aproxima ainda mais os dois textos, uma vez que em ambos a imagem da “árvore da
vida” está ligada à presença de YHWH, sem o obstáculo do pecado que a tornou
inviável para o homem (cf. Gn 3,22).
Ao empregar Gn 2,9, o autor de Ap 22,a retoma a imagem de intimidade
entre YHWH e o homem existente no momento da criação, para indicar a seu
leitor/ouvinte que esta relação foi totalmente restaurada pela intervenção de Cristo
morto na cruz (cf. Rm 5,12-21; 6,23; Ap 5,6). Pela cruz a relação de intimidade com
686 A expressão “água da vida” mereceria uma investigação que a aproxima-se dos textos de Lv
14,5.50; Nm 19,17 a fim de detectar se o emprego de “águas correntes” de Zc 14,8-9 com um víeis
intertextual que perpasse a noção do efeito purificador das “águas correntes” como um elemento de
aproximação com Deus, uma vez que, segundo a prescrição sacerdotal, estas águas são oriundas de
uma fonte natural e não passível de contaminação como as de uma cisterna.
YHWH se torna não apenas novamente possível, mas é ampliada para a Pessoa do
Verbo Encarnado que resgatou todo homem do pecado e da morte (cf. Ap 5,8).
2 A Intertextualidade de Zc 14,8 e Jl 4,8 em linha de continuidade e
descontinuidade com Ap 22,1-5
O critério de comunicação revelou uma continuidade entre os textos de Ap
22,1-5 e Zc 14,8; Jl 4,8 quando o verbo
acy assumiu a função de indicar o trono de
Deus como o local de onde procederá a água da vida. Ao mesmo tempo, o texto de
Ap 22,1-5 insere uma descontinuidade no momento em que indica, além de Deus
como princípio da água da vida, também o Cordeiro. Já não apenas um será a causa
desta água restauradora, mas o Cordeiro imolado é princípio desta fonte.
A referência intertextual indicou que o elemento escatológico faculta a
visão de continuidade não apenas com Ez 47,1-12, mas também com outros textos
vétero-testamentários: Zc 14,8; Jl 4,8. Através destes três textos, transparece a
intenção do autor neotestamentário em assumir o sentido de restauração da história
humana entendida como ação do próprio YHWH.
O critério de referência apresentou a temática escatológica como
continuidade entre os textos vétero-testamentários na medida em que diante de um
cenário devastado, inapto para a vida é, após o arrependimento sincero e retorno ao
Deus Único de Israel, tornou-se território possível para abrigar e gerar vida. A
presença da condição de um retorno sincero interliga os textos, mas oferece uma
descontinuidade a partir do momento que, tal como ocorreu entre Ezequiel e
Apocalipse, o retorno se dá para Deus e o Cordeiro, propiciando, também aqui, uma
escatologia-cristológica.
O mesmo critério de referência permitiu perceber que o motivo da fonte
serviu, não só como elemento de continuidade entre a profecia de Ezequiel e o
Apocalipse, como também entre Joel e Zacarias, uma vez que estes últimos fizeram
releituras da profecia de Ezequiel e definiram este local como “Casa de YHWH” (cf.
Jl 4,18) e Jerusalém (cf. Zc 14,8). A diferença lingüística não afetou a semântica, pois
tanto quanto em Ez 47,1.12, os termos empregados por Zacarias e Joel estão
relacionados com o local da habitação de YHWH. O local da fonte em Ap 22,1-2 está
em linha de continuidade com os textos proféticos estudados: é o local da habitação
de YHWH, simbolizada, no livro neotestamentário, pelo termo “trono”. Mas, ao
mesmo tempo, está em descontinuidade porque já não se fala de um espaço sagrado
ou da cidade de Jerusalém, antes se reporta à dignidade real: Deus está no trono.
Ainda em descontinuidade está a presença do Cordeiro que assenta-se neste trono de
Deus indicando sua igualdade soberana e divina.
A eclosão de vida gerada pela fonte de água da vida que brota do trono de
Deus e do Cordeiro, insere um elemento de descontinuidade entre Ap 22,1-5 e Ez
47,1-12; Zc 14,8; Jl 4,8, porque nestes textos proféticos a compreensão de restauração
da cidade de Jerusalém assume o teor de uma ação neste mundo, enquanto que, no
texto de Ap 22,1-5, a restauração ocorre numa etapa transcendente. A Cidade de
Jerusalém é celestial, vem da eternidade e está preparada para as núpcias (cf. Ap
21,2).
A alteração imposta aos textos de Ez 47,1 permanece no nível vocabular,
não na semântica, pois já não há mais o Templo de Deus em Jerusalém, ao menos não
o Templo entendido com dimensões físicas que sinalizam a presença de Deus. O
mesmo ocorre com as releituras realizadas pelos textos de Zc 13,1 e Jl 4,18. Na Nova
Jerusalém, há o “trono de Deus e do Cordeiro” como lugar da presença de Deus e de
sua soberania.
A identificação do local de origem da água, sempre em perspectiva
teológica, apresenta-se como elemento de continuidade entre os textos de Jl 4,18 e Zc
14,8 e Ez 47-1-12. Ele é o Templo (cf. Ez 47,1), a Casa de YHWH (cf. Jl 4,18) e
Jerusalém (cf. Zc 14,8). Por conseguinte, o rio da profecia de Ezequiel, Joel ou
Zacarias está habilitado a levar a vida até os locais mais áridos, quebrando, assim, o
ambiente de morte que lá imperava e oferecendo-lhe a vida em conseqüência do local
de sua origem. Esta referência intertextual apresenta continuidade também com Ap
22,1-5 quando, neste é apresentado o trono de Deus e do Cordeiro como o local de
onde procede o rio de água da vida brilhante como o cristal. Mas,
concomitantemente, há aqui uma descontinuidade entre o texto neotestamentário e os
vétero-testamentários, na medida em que um novo personagem é apresentado como
princípio da fonte: o Cordeiro imolado (cf. Ap 5,6). Com este elemento de
descontinuidade, o motivo da fonte de água da vida em Zacarias e Joel, seguindo o
que já ocorrera em Ez 47,1-12, assumem um teor cristológico, e a partir dele poderão
ser plenamente compreendidos.
A adjetivação do rio como “da vida” (cf. Zc 14,8) possui uma explicitação
no próprio livro de Zacarias: é a cessação da idolatria (cf. Zc 14,9), gerando uma
indicação de vida voltada para o Deus Único de Israel, sem a possibilidade de
desvios. Assim, gozando da redenção (cf. Ap 5,6-10), o povo adora exclusivamente o
seu Deus. Deve-se considerar esta tensão escatológica do texto de Zacarias, uma vez
que a “água da vida” figura como um sinal da plena redenção de Israel e de sua
ordenação para uma adoração sem desvios e sem interrupção.
Uma continuidade mais notória, sem dúvida, se dará com o texto de Zc 14,8,
onde a expressão “água da vida” foi cunhada em contato com a idéia teológica de
encerramento da idolatria, o que implica em um retorno de todo Israel para o seu
Deus. Assim, a “água da vida” converte-se em instrumento de vida plena com Deus.
A seletividade, criada pelo autor do Apocalipse com Zc 14,8, aciona na
memória do leitor/ouvinte, os elementos de redenção histórica e de reconhecimento
de YHWH como o Único e situa a noção de “vida” como uma atitude também do
homem. Esta noção terá continuidade no Apocalipse que impõe a condição da
idolatria como requisito para o ingresso na Cidade Santa (cf. Ap 21,27). Contudo, há
uma descontinuidade pela novidade do Cordeiro entronizado como Deus em igual
dignidade com YHWH e, como Ele digno de adoração (cf. Ap 5,6-10; 22,1-5).
A eliminação do “pecado e da mancha” (cf. Zc 13,1) cria uma imagem de
total transparência, beleza e diafania que o autor do Apocalipse sintetizou na imagem
do cristal. De fato, o elemento comparativo w`j kru,stallon possui como função
indicar o grau de pureza da água: nela nada há de impuro. O contato intertextual entre
Ap 22,1-5 e Zc 13,1 segue em linha de continuidade quando retoma a idéia de
eliminação do “pecado e da mancha”, isto é, de todo instrumento capaz de retirar o
vínculo de amizade entre Deus e o homem, que em última instância, é a fonte de vida
plena.
Por fim, através da referência à narrativa da criação em Gn 2,9, o autor do
Apocalipse procede no mesmo padrão de continuidade quando faz uso da expressão
evn me,sw|. O emprego desta expressão permite perceber que a acessibilidade à árvore
da vida foi novamente restituída ao homem, indicando que o projeto inicial de vida
plena que fora elaborado por Deus para o homem foi retomado.
A expressão evn me,sw| diferencia o texto do Ap 22,2a de Gn 3,22.24, uma vez
que já não se afasta o homem da árvore da vida. Ao contrário, é amplamente
franqueado a ele o acesso por que já todas as coisas encontram-se restauradas em
Cristo (cf. Ap 5,6-10). Esta restauração, todavia, não restabelece o primeiro paraíso
simplesmente, mas o supera, já que, além de não existir mais a possibilidade do
homem cometer algum ato que volte a afastá-lo de Deus, o anátema foi eliminado. O
homem será servo de Deus por todo o sempre (cf. Ap 22,3-5).
No v. 2b, de Ap 22, o termo “árvore da vida” apesar de estar ligado, em
nível de vocabulário, com os textos de Gn 2,9; 3,22.24, apresenta elementos de
descontinuidade quanto ao acesso a esta “árvore”. No Éden, foi proibido, após o
pecado, que o homem desta árvore se aproximasse, provavelmente para que seu
estado pecaminoso não fosse perpetuado, uma vez que este não era o desejo de Deus
para o homem, mas uma vida de plena comunhão. Também não há uma árvore do
conhecimento do bem e do mal. O conhecimento é ver a face de Deus, adorá-lo e ter
seu nome marcado sobre a fronte (cf. Ap 22,3c-4). Há aqui uma reversão do Éden,
onde, após o pecado, a árvore é símbolo da morte, da maldição. Aqui ela cura as
nações e é sinal de bênção. Ap 22,2a, ao retomar a perspectiva de acessibilidade e
disposição geográfica de Gn 2,9, não assume os nefastos efeitos de uma vida imersa
no pecado, no afastamento de Deus.
O vínculo intertextual de Ap 22,2a com Gn 2,9 apresentou uma seletividade
que mostra a intenção do autor de permanecer em continuidade com o vocabulário do
texto antecedente em seu texto. Todavia, o emprego que faz estabelece uma
descontinuidade com aquele primeiro, porque não há mais uma ameaça ao homem
que venha a tocar na árvore, nem guardiões para impedir uma aproximação (cf. Gn
3,22-24). Assim, haveria um recorte no texto de Gênesis. Num primeiro momento, a
acessibilidade é garantida e desejada por YHWH; já num segundo momento, esta
acessibilidade teria tomado um aspecto de perigo para o homem e, por esta razão, é
suprimido o contato com esta “árvore da vida”. No Apocalipse a descontinuidade
com os textos de Gênesis se apresentam exatamente neste elemento de aproximação.
Nesta etapa da Revelação é totalmente franqueado ao homem o acesso à árvore da
vida, porque o perigo que ela representou para a natureza humana, em um momento
passado, agora foi superado pela restauração de todas as coisas no sangue de Cristo
(cf. Ap 5,6; 21,4-5).
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo