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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
AMBIGÜIDADE DA TÉCNICA E DISPONIBILIDADE PARA O SAGRADO NO
PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER.
Tese apresentada como requisito
parcial à obtenção do título de
Doutor ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da
Religião, do Instituto de Ciências
Humanas, por Fábio Silva
Fontanella. Orientador: Prof. Dr.
Paulo Afonso de Araújo
Juiz de Fora
2008
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FÁBIO SILVA FONTANELLA
AMBIGÜIDADE DA TÉCNICA E DISPONIBILIDADE PARA O SAGRADO NO
PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER.
Tese apresentada como requisito
parcial à obtenção do título de
Doutor ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da
Religião, do Instituto de Ciências
Humanas, por Fábio Silva
Fontanella. Orientador: Prof. Dr.
Paulo Afonso de Araújo
Juiz de Fora
2008
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A um singular professor que tornou este
sonho possível. Mais palavras se fariam
necessárias, mas tudo deve estar no ar...
Algumas palavras de agradecimento...
A Capes que por meio da bolsa de doutorado
facilitou a concretização deste projeto. Cabe
destacar a presença da Capes ao longo de toda
minha formação acadêmica.
A minha esposa Simone e a minha filha Alice:
presenças imprescindíveis e consoladoras em
minha vida. Sem o apoio de minhas duas
meninas nada teria sabor.
Aos meus pais e irmãos, que apesar dos
descaminhos, sempre me incentivaram a superar
todos os obstáculos.
Ao meu orientador Paulo Afonso, acolhedora e
competente presença heideggeriana, que sempre
acreditou mesmo diante de minha estrondosa
dificuldade em escrever este trabalho que
cumpriria com sucesso o doutorado.
Ao Radamés do qual tenho ‘lembranças
oceânicas’ e que certa vez proporcionou-me a
exata noção de infinito. Aliás, suas palavras
verdadeiros atalhos que me conduziram mais
rapidamente a Heidegger – teimavam em repetir
a crucial importância da Hermenêutica.
Ao Gleyton, Júlio, Wellerson e Maria José: nos
momentos mais difíceis, eu não estava sozinho...
Ao professor Eduardo Gross: sou seu
incondicional.
A inesquecível professora Vitória Péres de
Oliveira com quem ainda tínhamos muito a
aprender...
A Cristiane: formidável companhia destes
tempos de doutorado.
Ao Renato: pela formatação final do trabalho.
A todos aqueles que, embora não citados aqui,
de alguma maneira fazem parte da minha
história. A todos aqueles que, neste momento
tão especial da minha vida, são capazes de se
alegrarem comigo.
O mistério não é uma barreira colocada do
lado de da realidade, mas é, ele próprio, a
forma suprema da realidade.
Martin Heidegger
RESUMO
A metafísica é o fundamento de toda a história ocidental e é desse fundamento que nasce a
técnica. Mas como Heidegger entende a questão da técnica? Qual será o destino de nossa
civilização agora que vivemos o perfeito cumprimento da metafísica? Fundamentalmente, o
desafio da exploração tecnológica leva o homem a dispor o real como matéria-prima, ou
melhor, a natureza passa a ser vista como recurso natural passível de fornecer energia para
nosso mundo totalmente administrado. Não obstante, devemos entender a técnica como um
modo de revelação do ser como tal. Ela é tanto um destino enviado pelo ser quanto um de
seus modos de interpretação. Pensar a técnica como questão, só se coloca a quem se interessa
pelo ser, àqueles que, misteriosamente, de algum modo ainda ouvem o seu apelo, apesar de
estarem cada vez mais cercados por sua recusa. Heidegger não se deleita em celebrar o
niilismo; ao mesmo tempo em que admite a perigosa hegemonia do pensamento técnico e
meramente calculador, ele confia que todo este processo guarda ainda a promessa de um
“amanhã” mais rico de sentido, onde finalmente se descortinará ao homem a possibilidade de
recolocar a interrogação sobre o ser de um modo mais originário. Tal como Hölderlin,
Heidegger acredita que no momento de maior perigo cresce também aquilo que salva. Mais
precisamente, o pensador crê que com a técnica nos preparamos para sermos restituídos ao
caminho que novamente nos conduzirá ao próprio dar-se ou essencializar-se” [Wesung] do
ser, que Heidegger chama de Ereignis. Talvez este horizonte se encontre muito próximo; tão
próximo que muito facilmente não o vemos. Diante disso, empreendemos experimentalmente
a tentativa de demonstrar como a filosofia heideggeriana, ao pensar a essência da técnica,
abre espaço para que pensemos uma nova relação do mundo moderno com o sagrado e o
porvir de uma habitação poética do homem no mundo.
ABSTRACT
In one way, metaphysics is said to be the reason of all occidental history, which also turns to
be the technique’s matters. But, how does Heidegger understand the question of the
technique? What is going to be the destiny of our civilization, now that we live in the perfect
metaphysics way? Basically, the challenge of the technological exploration leads mankind to
use reality as raw material, in a different way, nature turns to be seen as a natural resource to
supply energy to a world totally managed. However, technique is a way to bring up the
essence of being as such as it is. No longer is a destiny sent by the being in its essence, but it
is thoughtfully to be a way of interpretation. Rather, thinking the technique as a question, it
only matters to who interests about the being, to those who, mysteriously, in some way still
hear its appeal, although they are often surrounded by denied attitude. Heidegger is not glad
to bring up the nihilism; at the same time, he assumes the dangerous hegemony of technical
thought and rational in a logical way. He believes that this process still keeps the promise of
“the day after” fulfilled of meaning, where finally will disclose to the man the possibility of
replacing the question about the being in a different way. As Hölderlins thought, Heidegger
believes that where danger is, grows what saves also. The author trust that with the technique
we prepare ourselves to be replaced on the way that will lead us on us - that is what
Heidegger names to be Ereignis. Perhaps, this horizon could be very close; so close that very
often we could not see it. So, we assume the challenge of demonstrating how the heidegger´s
philosophy thinks the technique’s essence. It makes us think about a new relation of the
modern world with the sacred one and the future of a poetical habitation of the man in the
world.
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................................... 1
Capítulo 1 – A questão da metafísica ........................................................................................13
1.1. O esquecimento do ser............................................................................................................13
1.2. Onto-teo-logia.........................................................................................................................18
1.3. A identidade entre ser e pensar ..............................................................................................21
1.4. A filosofia no horizonte da finitude .......................................................................................25
1.5. Um novo início para o pensamento .......................................................................................33
Capítulo 2 – A questão da técnica ........................................................................................... 41
2.1. A técnica e a metafísica ........................................................................................................ 41
2.2. A essência da técnica: o Gestell ........................................................................................... 48
2.3. A ciência e a técnica ............................................................................................................. 54
2.4. A ambigüidade da técnica .................................................................................................... 59
2.5. O perigo da técnica e a possibilidade do Ereignis................................................................ 68
Capítulo 3 – O niilismo e a técnica moderna ...........................................................................74
3.1. A morte de Deus .................................................................................................................. 74
3.2. A modernidade e a fuga dos deuses ..................................................................................... 80
3.3. A modernidade e a metafísica da subjetividade ................................................................... 85
3.4. A vontade de poder............................................................................................................... 93
3.5. O niilismo.............................................................................................................................. 97
Capítulo 4 – A nova determinação do ser a partir do Ereignis ........................................105
4.1. O Ereignis.........................................................................................................................105
4.2. O Ereignis e a essência do Sagrado
.................................................................................117
4.3. O Ereignis e a espera de um Deus pós-metafisico ...........................................................141
Conclusão................................................................................................................................155
Bibliografia.............................................................................................................................162
INTRODUÇÃO
O pensamento contemporâneo não deixa de ser interpelado pela sobriedade contida na
meditação de Martin Heidegger. Fundamentalmente, se se quiser entender com seriedade o
horizonte do pensamento contemporâneo não se pode desconhecer qualquer referência ao seu
autêntico pensar, ao seu pensamento originário, que é sempre uma reflexão sobre a questão do
ser. Pode-se pensar com ele ou contra ele, mas nunca sem ele. Sua filosofia pretende atingir a
essência até aqui impensada da metafísica. Heidegger se entende como legítimo guardião do
impensado que a metafísica incansavelmente testemunha sem o saber totalmente. Contudo, ele
vai muito mais longe. O que realmente procura alcançar, para além deste caráter impensável
que alimenta a metafísica, é a verdade da história ocidental atravessada pelo esquecimento do
ser.
Qualquer tentativa de definir o homem de um modo que não enfatize o seu
envolvimento na interrogação a respeito da questão do ser deve ser abandonada por sua total
esterilidade. A realidade humana (o ser do homem) é singularizada pelo fato de que em seu
próprio ser ela está ocupada com o ser. Heidegger insiste em falar que homem e ser se co-
pertencem e recebem a sua determinação essencial desta pertença mútua; de fato, não se trata
de pensar o ser a partir do homem, mas de pensar o homem na clareira [Lichtung] do ser.
Heidegger afirma: “A essência do homem é o abrigo com o qual o ser mesmo se dá, a fim de
ter lugar em um tal abrigo com a chegada do desvelamento. Querer superar o ser mesmo
significa querer modificar radicalmente a textura da essência do homem. Poder-se-ia
compreender o que há de impossível em tal pretensão”
1
.
Com uma prática meditante que quer ser uma abertura para o ser, ele próprio
considerado como abertura, desvelamento, epifania, Heidegger procura nos conduzir para além
da compreensão de que ser e pensar são uma e mesma coisa. O ser “enquanto” o
pensamento pensado, que “é”, não é uma produção do pensar; e nem mesmo o pensar é uma
produção humana. Assim, segundo Heidegger, uma verdadeira relação com o ser se atinge
quando nos afastamos da atitude do pensamento representacional hegemônica em toda a
história da filosofia. Não pode existir alguma teoria correspondente simples da verdade no
1
HEIDEGGER; Nietzsche: metafísica e niilismo, p. 255
2
2
sentido de que os nossos pensamentos poderiam ser um espelho da realidade. “O ser não é um
produto do pensamento”, é o que diz Heidegger em O que é metafísica.
2
Confessando sua dívida com a perspectiva fenomenológica, Heidegger garante que a
reflexão distende o vínculo do eu com o mundo para melhor se assegurar que o eu está
sempre fora de si mesmo. Seu pensamento, sempre repleto de protestos contra a idéia de
filosofia como theoria, nunca afirma a primazia da representação. Existe, sim, o entendimento
de que o mundo é anterior a qualquer teorização; nenhum sistema conceitual, não importa quão
elaboradamente construído, pode alcançá-lo. Em outros termos, podemos entender que o ser é
sempre algo dado, caráter que inclui sempre também a sua recusa. Deste modo, a reflexão é
menos uma tomada de consciência de si do que uma retomada do mundo. Heidegger invoca
uma compreensão pré-conceitual que implica a captação pela primeira vez do ser em sua
absoluta estranheza. Para ele, a instauração do pensar conceitual se confunde com a suposição
de um plano pré-conceitual; o pré-conceitual está talvez mais no coração do pensamento do
que o próprio pensamento. Em resumo, Heidegger assinala a tensão permanente entre a
mundanidade do Dasein, lançado no mundo, e a emergência da reflexão.
Pensar é algo tipicamente humano, mas o homem não pensa como senhor de si, nem
como senhor do mundo. Ele pensa em resposta ao aberto do mundo, que historicamente lhe
preexiste. O ser não é algo que o pensamento humano pode conceber ou apreender, mas algo
que apenas lhe pode ser concedido. Nós nos movemos sempre na proximidade do ser; mas, de
outro lado, precisamente porque o ser não é um ente, porque é não-ente, ele é ao mesmo tempo
o mais distante. Permanecer próximo permanecendo distante não é uma condição que possa ser
superada. Nós somos lançados neste “entre” onde o ser que lança permanece o mais próximo e
ao mesmo tempo o mais distante. Com efeito, pensar “ser” significa: co-responder ao apelo de
seu vigor. O co-responder surge do apelo e a ele se entrega. Co-responder é retroceder para o
apelo e assim aceder a sua linguagem. Neste sentido, a própria assimilação metafísica da
questão da verdade termina mesmo por receber um duro golpe. Esta não pode mais ser
concebida como acordo entre o pensamento e as coisas; a verdade não é uma propriedade de
nossas representações, quaisquer que sejam. O Dasein não tem a verdade como algo
simplesmente dado ou como um fato que apenas se configura no enunciado representativo,
mas está situado na verdade como um evento que constitui essencialmente o seu ser-no-
mundo. A questão da verdade do ser significa então o seu acontecer mesmo, o acontecimento
enquanto tal [Ereignis], que determina todo o desenvolvimento de saber da tradição ocidental.
Enquanto co-respondência, o pensamento do ser é uma causa muito errante e assim
muito indigente. O pensamento talvez seja um caminho incontornável, que não
2
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 48
3
3
pretende elevar-se a nenhum caminho de salvação e nem trazer uma nova
sabedoria. O caminho pode ser, no máximo, um caminho do campo, caminho que
atravessa o campo, que não apenas fala de renúncia, mas que já renunciou à
exigência de uma doutrina constrangente, de uma produção cultural válida ou de
um ato do espírito. Tudo repousa no passo atrás, ele mesmo muito errante, em
direção ao pensamento, que cuida da virada do esquecimento do ser, a qual se
prenuncia no destino de ser. O passo atrás, que se a partir do pensamento
representador da metafísica, não rejeita esse pensamento, mas entreabre a distância,
que dá lugar ao apelo da verdade do ser, na qual se coloca e acontece o co-
responder.
3
Heidegger encara o filosofar como uma tarefa essencialmente determinada pelo
inesgotável. Isso é a razão do caráter marcadamente não sistemático e multiforme de seu
pensamento. Sua reflexão não representa mais “um sistema”, um encadeamento gico e
progressivo de perguntas e respostas devidamente justificadas e justificadoras, capazes de nos
proporcionar uma síntese final que se contrapõe ao vacilante chão da vida. A filosofia
heideggeriana ao visar a finitude do Dasein é a máxima confirmação de que a época dos
sistemas acabou [“Die Zeit der Systeme ist vorbei”
4
]. Ler Heidegger é ser tomado pela
impressão de que iniciamos uma queda inevitável, uma vez que o chão se abre sob nossos pés e
experimentamos a vertigem do pensamento. Primordial, para ele, não é a resposta mas a
pergunta. O filósofo diz admiravelmente: “a interrogação é a piedade do pensamento”
5
. Para
Heidegger o pensar essencial não consiste em simplesmente dar respostas últimas e definitivas,
mas a partir de alguns resultados recolocar as questões de modo ainda mais essencial; tudo isso
em um caminho que não termo, pois nunca se chega ao ser, mas se move apenas na sua
proximidade, ou melhor, no interior da região aberta por ele. Assim, o que conta é apenas o
caminho.
Não podemos por tudo isso afirmar que a filosofia heideggeriana abre o da função
de dar conta da possibilidade da reflexão; de maneira ampla toda filosofia, muito especialmente
a de Heidegger, não pode fugir a esta questão. Na realidade, o que assistimos é o
reconhecimento de que nunca, no seu desenvolvimento, o pensamento tomará posse do abismo
que o suscita e é sua fonte, sendo-lhe sempre exigido um perpétuo recomeço. Muito mais do
que simplesmente dizer que afinal não nada que possamos saber, Heidegger deseja ir ao
encontro do mistério. Mais do que o deixar-se ir de uma hesitação para outra, ele está à procura
daquela dúvida verdadeira onde se opera o choque entre o saber e a ignorância e onde se gera
aquela penúria primordial que coloca o Dasein diante da evidência perturbadora do ser.
Assim, o filósofo deve ser aquele que está sempre disposto a prestar homenagem ao
abismo que a si mesmo se vela e que o ser. No abismo permanece o mistério que é digno de
3
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, pp. 162-163
4
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 5
5
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 38
4
4
experiência, mistério este que o perímetro ontológico e temporal do ocidente. Mais
precisamente, o mistério não é aquilo a respeito do qual não sabemos absolutamente nada, “mas
aquilo que, no que conhecemos, se impõe a nós como elemento de inquietação”
6
. Entendemos
que Heidegger abre um ciclo de questões de que a reflexão posterior não pode se esquecer. E
um dos maiores méritos de sua obra está exatamente em nos atrair para fora dos caminhos
seguros; isso se comprova, por exemplo, no fato do filósofo querer suprimir a tradicional
conexão hierárquica entre o pensar e o poetar (na verdade, sua descoberta do elemento pré-
teórico da experiência humana favorece a transação da filosofia com a poesia). Com efeito, para
Heidegger, a poesia não é estranha ao conhecimento racional e a questão agora não é mais
explicar a poesia, mas com ela dialogar. Ele reconhece que neste diálogo está a solução para
uma das principais dificuldades que têm imobilizado a ontologia: a de que ela ainda não
encontrou uma linguagem para dizer-se.
De forma alguma o pensamento heideggeriano pode ser identificado tão somente
como uma metanarrativa ontológica que, longe de servir como ponto de orientação, deveria ser
recebida com incredulidade. Neste sentido, toda sua obra não passaria de um amontoado de
cansativas obscuridades. Entretanto, acreditamos que tanto o seu jargão muitas vezes obscuro
quanto sua escrita um tanto experimental, ao invés de nos desanimar, terminam nos remetendo
a uma importante conclusão: o melhor é deixarmos para trás o pensamento metafísico para nos
colocarmos exclusivamente na esfera de um outro pensar mais sensível ao poético. Heidegger
esclarece que por operar diretamente com a linguagem, a poesia é o modo mais originário de
desvelamento do ser
7
; a poesia, em cada época, à margem da filosofia, faz brotar a mesma
verdade esquecida na forma representacional do pensar. Assim, o que foge ao pensamento
aflora no poetar (e na poesia), e aponta para aquilo que o pensamento deve visar. Os filósofos
podem aprender com os poetas e os poetas podem aprender com os filósofos.
O que é a filosofia? O que qualifica um modo de pensamento e de expressão como
filosófico? Por um lado, Heidegger afirma que a filosofia retira sua energia desta tensão
primordial que não pode por ela ser apagada: a tensão entre o ser e a finitude. Por outro, não
podemos esquecer que o poeta pode dar um salto [Sprung] para dentro da origem [Ursprung]
do ser, no sentido de um salto originário. Heidegger observa: “A poesia não é nenhum jogo, a
relação com ela não é o descanso jocoso que faz com que uma pessoa se esqueça de si própria,
mas o despertar e a concentração mais íntima do indivíduo, pela qual ele recua ao fundo do seu
ser-aí”
8
. Fundamentalmente, aquilo que o poeta diz poeticamente é o mesmo [das Selbe] que o
pensador pensa, apesar e por causa da distância que os separa. Com efeito, o que entre o
6
HEIDEGGER; Kant et le problème de la métaphysique, p. 217
7
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, pp. 14-15
8
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, pp. 14-15
5
5
pensamento e a poesia é, na verdade, uma proximidade-na-distância que pode ser elucidada
no âmbito do pensamento. De modo algum estamos pensando numa dupla conversão simétrica
da filosofia em poesia e da poesia em filosofia. Os poetas não deixariam de ser poetas indo à
filosofia, nem os filósofos deixariam de ser filósofos indo à poesia. É óbvio que o trânsito da
filosofia à poesia e vice-versa implica num singular confronto entre as duas: singular porque
esse trânsito das instâncias que se confrontam não poderia fazer-se se elas de certo modo já não
fossem vizinhas.
Graças ao pensador da Floresta Negra passamos a crer que tanto o filosófico quanto o
poético podem mostrar que a existência humana é direcionada para o ser que se retrai e se
esconde. O poético e o filosófico têm plenas condições de indicar esta indivisão entre a falta e a
existência; de fato, eles habitam numa vizinhança essencial e partilham de uma mesma sombra,
que não cessa de acompanhá-los. Podemos até dizer que a reflexão heideggeriana representa
exatamente uma retomada do não-filosófico na filosofia. Não como desprezar a relação
deste pensamento com o objeto poético. Sua meditação pode ser tomada como um pensar
poético [dichtende Denken] ou, inversamente, um poetar pensante [denkende Dichten]. Então,
não seria Heidegger um poeta? Na realidade, seu diálogo com as obras poéticas de Hölderlin,
Rilke, Georg Trakl, Stefan George, apenas faz dele um pensador capaz de delinear uma
compreensão poética do mundo. Seu pensamento margem ao juízo de que a linguagem dos
poetas, livre da influência da metafísica, encontra-se mais próxima do ser, sendo capaz de
expressar a sua verdade de forma mais autêntica. Por tudo isso, o melhor é, sem dúvida,
acreditarmos que Heidegger persegue uma filosofia pós-metafísica, ou, de forma ainda mais
radical, um pensamento pós-filosófico.
Sustentamos que através de sempre novos aprofundamentos daquilo que a filosofia
historicamente sempre representou não como esta não adquirir uma dimensão lírica.
Entretanto, não se trata de concluir que no poeta desponta o filósofo e no filósofo renasce o
poeta. Por outro lado, será que a filosofia é capaz de libertar-se genuinamente do sopro das
“Musas”? A reflexão heideggeriana não deixa de ser precisamente uma insinuação de que o
discurso filosófico, sem nenhum desconforto, precisa retornar às suas origens na poesia
pensante e nas narrativas conceituais versificadas dos pré-socráticos. Não por acaso, Heidegger
se torna o exegeta no sentido de eminente tradutor das palavras gregas essenciais (a-létheia,
lógos e physis). Ao mesmo tempo, é de suma importância entender que o filósofo aponta para
algo além da poesia literária; Heidegger aponta para uma experiência do pensamento que se
cumpre através da poesia. Mesmo a poesia deve ser compreendida de uma maneira estendida: o
próprio Dasein é considerado poético. Para Heidegger, nascida do fervor pensante, a poesia
recorda o essencial, o ser esquecido, num recuo até o manancial sagrado. “O pensador diz o ser.
6
6
O poeta nomeia o sagrado”
9
. Neste sentido, seu pensamento pode ser identificado como “uma
teologia do verbo poético ou, melhor dizendo, uma meditação sobre o sentido teogónico da
palavra poética
10
. O poeta permanece a princípio, na fuga dos deuses, no destino de dizer uma
outra história que não um simples retorno aos deuses antigos, uma história, talvez por vir, o
ponto de partida de uma escatologia pura onde se revela do messianismo “o messiânico pobre,
que deve ser despojado de tudo”
11
.
Diante da monumentalidade da obra de Heidegger decidimos examinar sua reflexão
sobre a questão da técnica. Mais do que nunca precisamos pensar sobre o impacto, seguramente
inédito na história, que o desenvolvimento da técnica produz a uma velocidade crescente na
existência humana, engendrando com isso inquietudes sem precedentes. Esta questão recebe a
atenção de inúmeros pensadores entre os quais se destacam Herbert Marcuse e Hans Jonas
(ambos antigos discípulos de Heidegger). Ao examinarmos a técnica forçosamente vamos
rápido do maravilhamento ao medo. E é justamente o medo o que quer nos inculcar, muito
explicitamente, quem argumenta em favor de um controle indispensável do “progresso
técnico”. Um dos mais conhecidos destes é o filósofo alemão Hans Jonas, que publicou em
1979 uma “ética para a civilização tecnológica” sob o título O princípio da responsabilidade
12
.
De acordo com Jonas, que estamos num momento em que o progresso técnico se tornou o
equivalente de uma força natural, é urgente criar um poder que devolva ao aprendiz de
feiticeiro o controle da força que ele desencadeou. É preciso ao menos conceber “um novo
modo de agir”, próprio de uma humanidade que estaria antes de tudo preocupada com sua
sobrevivência enquanto espécie e que se empenharia em não fazer absolutamente nada que
pudesse causar o menor prejuízo à existência das gerações futuras. Já para Marcuse devemos ter
a coragem de denunciar na técnica a forma adotada pela dominação política. Em sua principal
obra A ideologia da sociedade industrial
13
, Marcuse sustenta que os objetivos e os interesses do
sistema de dominação o são outorgados à técnica posteriormente e do exterior, eles fazem
parte do aparelho técnico no momento de sua construção. Mas ambos parecem concordar com o
fato de que somos cada vez mais tentados a crer que a vocação do homem se encontra no
contínuo progresso da técnica, superando-se sempre a si mesmo, rumo a feitos cada vez
maiores. A conquista de um domínio total sobre a natureza e sobre o próprio homem surge
como o cumprimento desta vocação.
9
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 51
10
TROTIGNON, Pierre; Heidegger, p. 52
11
DERRIDA, J; Le Siècle et le Pardon, Paris, Seuil, 2002; ver também Id., Donner la mort, Paris, Galilée, 1999.
12
JONAS, Hans; O princípio da responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, Rio de
Janeiro: Contraponto / Ed. PUC-Rio, 2006.
13
MARCUSE, Herbert; A ideologia da sociedade industrial, Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
7
7
Longe da pedagogia fóbica de Jonas e da crítica social de inspiração marxista de
Marcuse, Heidegger se interessa pela técnica animado por interesses fundamentalmente
ontológicos. A maior novidade de sua perspectiva está em examinar a técnica como via correta
de acesso ao jogo abissal do ser. Aliás, a reflexão proposta por Heidegger não se ocupa da
técnica mesma, mas, antes, da essência da técnica. Deste modo, podemos logo admitir que ele
terminantemente não está a propor uma forma de colocar a tecnologia sob o controle para que
ela possa servir os nossos fins escolhidos racionalmente. Na verdade, o filósofo se preocupa
com a terrível possibilidade de que a imersão do homem nas fáceis recompensas da técnica
transmita a ele a impressão de que a condição humana se tornou tolerável para toda a gente e
feliz em todos os aspectos. Conseqüentemente, Heidegger distingue os problemas atuais
causados pela técnica – destruição ecológica, consumismo, burocratização, sujeição e alienação
do homem, e por aí fora – da devastação que iria resultar se a técnica resolvesse todos os nossos
problemas. A perspectiva mais ameaçadora é de que o pensamento calculador passe a ser aceito
e praticado como a única maneira de pensar. Isso significaria uma noite de trevas onde o
homem abandonaria seu perguntar que interroga pelo (ser) que é em vez do nada, em seu puro
existir.
Todavia, segundo Heidegger, se ainda conseguirmos preservar o sentido de nós
próprios como ouvintes do ser, entendendo concomitantemente a técnica como mais um
momento de sua história, então (talvez!) cheguemos a um caminho que nos conduza a um outro
início para o ocidente. Em resumo, a ameaça da técnica não é um problema para o qual
devemos encontrar uma solução, mas uma condição ontológica que pode impulsionar o homem
para aquela que é a sua experiência essencial. Heidegger acredita que a interrogação sobre a
verdade do ser assume uma urgência provavelmente inédita no ocidente. E na essência da
técnica (nomeada por ele como Gestell) se faz manifesto um prelúdio, um primeiro e insistente
clarão do Ereignis. Possibilidades futuras se dissimulam neste mais novo modo de
desvelamento do ente como um fundo de reserva, o que esta à nossa disposição. O mundo
técnico que nos arrasta se restringe à superfície. Com efeito, a essência da técnica satisfaz
àquilo que se subtrai: o ser. Enfim, a obra heideggeriana representa uma oportunidade para
medir com a maior precisão possível nosso esquecimento do ser e a extensão das sombras
projetadas por nosso crepúsculo atual, embora certamente também anunciem um dia novo e
diferente.
Aquilo em direção a que vamos não é talvez, de nenhuma maneira, o que o futuro real
nos dará. Mas aquilo em direção a que vamos é pobre e rico de um futuro que não devemos
imobilizar na mera continuidade unidimensional de nosso mundo. Estamos desde já de posse do
que o Ereignis faz advir: faz advir homem e ser, e isto na medida em que deixa aparecer a
8
8
constelação do ser e do homem a partir do que os apropria um ao outro. Neste sentido,
Heidegger considera que a época técnica do ser é talvez sempre um “túnel”, um tempo de
intervalo, um entretempo. A própria técnica que constitui um prelúdio do Ereignis não faz do
Ereignis uma realidade presente ou somente futura, mas sob a dimensão negativa de um futuro
impossível, o designa na extrema distância de um talvez excepcional. Heidegger acredita que
diante do perigo, que paira neste momento de nossa história, seremos devolvidos ao seguinte
imperativo axial: cabe aos homens escutar o apelo espantoso, sempre de uma sublimidade
indefinida, do ser enquanto tal. Com efeito, tudo o que até o momento é dado como esquecido,
como evidentemente velado, não mais requerendo nossa atenção que exista o ser, que exista
uma interpelação mútua do ser e do homem, que exista um mundo , reapareceria subitamente
iluminado pelos relâmpagos da própria tempestade ameaçadora (mas também redentora) da
técnica. “A tecnologia não pode ser entendida tecnologicamente, porque, ao abrirmo-nos para a
sua questão, repentinamente somos postos diante do que sempre foi permitido subjazer apenas
em silêncio”
14
. O próprio Heidegger dá a entender que tudo que ocorreu com o advento da
modernidade não passa de uma etapa preliminar do homem para uma nova recordação do ser (o
Ereignis) que se cumpriria através da técnica. Se a esfera do produzir invadiu o espaço da
escuta do ser pelo homem, então a recordação do ser também poderá invadir a esfera do
produzir.
Ao examinarmos deste modo a técnica estamos propriamente à procura de um
caminho preliminar, mesmo que ainda inseguro, de evocação para a dimensão religiosa
presente na obra heideggeriana. Acreditamos ser realmente esta nossa contribuição ao debate
sobre a questão da técnica no pensamento de Heidegger. Nossa investigação encontra
justificativa no fato de que o próprio Heidegger numa carta informa a Benhard Welte (seu
antigo discípulo e sacerdote católico) que para se chegar a um entendimento acertado da
dimensão religiosa de sua obra (e de seu pensamento sobre o divino) não se poderia
desconsiderar sua abordagem sobre a técnica.
No último semestre em que ocupei a cátedra de Filosofia da Religião em Freiburg,
no semestre de verão de 1973, dirigi um seminário sobre “Deus no pensamento de
Heidegger”. Disto resultou mais tarde um ensaio com o mesmo tulo. Fiz chegar
este ensaio a Heidegger e ele me agradeceu com uma carta muito esclarecedora.
Nesta carta Heidegger me fez notar que o ensaio estava bom, mas que, além do que
havia sido desenvolvido em meu ensaio, eu também ali deveria ter tratado do
problema da técnica.
15
14
KROBER, Arthur; The will to power and the culture of nihilism, p. 45
15
WELTE, Bernhard; Dialéctica del amor, pp. 75-84
9
9
Para começar sabemos que muito não estão aqui os deuses. Descobrimos que o
homem é abandonado fora da proximidade dos deuses; e nosso mundo técnico não pode mais
encontrar as palavras capazes de corresponder a essa estranha presença da ausência. Este luto
sagrado não deve dar lugar ao mal-entendido de que experimentamos simplesmente um
afundamento inoperante numa melancolia impotente e universal: “o luto, enquanto prontidão
que espera, não se encontra longe disso, como temos em geral de ter em mente que, na
essência da disposição fundamental, se encontra também preparada, devido à sua intimidade, a
disposição contrária”
16
. O luto não se endurece e petrifica até se converter em desespero que
tudo recusa, antes os antigos deuses permanecem-lhe demasiado caros. Deste modo temos de
pensar o desvanecimento como devir, a partida como uma vinda, dominando decididamente
esta contradição, isto é, agüentando-a e pensando-a até ao fim. Chegamos tarde para os deuses
que se foram e para o Deus cristão, e muito cedo para os deuses que hão de vir. Heidegger
continua:
Quem diz a sério “Deus está morto” e dedica uma vida a isso, como Nietzsche, não
é um a-teu. pensa tal coisa quem trata e lida com seu deus como se de um
canivete se tratasse. Se este se perder, ele simplesmente desapareceu. Mas perder o
deus quer dizer algo de diferente, e não porque deus e um canivete são
intrinsecamente coisas diversas. Assim, portanto, as coisas passam-se em geral de
um modo particular, no que diz respeito ao ateísmo; é que muitos dos que se
encontram prisioneiros de uma confissão transmitida, que nunca os fez vacilar
porque, ou são demasiado cômodos, ou são demasiado hábeis, são mais ateus que
os grandes céticos. A necessidade de renunciar aos antigos deuses, o suportar desta
renúncia, é a conservação da sua divindade.
17
Neste nosso tempo em declínio é onde se dá a luta pela decisão sobre a vinda ou a fuga
dos deuses. O já-não-poder-chamar os antigos deuses que outra coisa será e não é outra coisa
senão a disponibilidade unicamente possível e decidida para conservar aberto o espaço do
divino. Para esta conservação é primordial que a natureza [physis] principal alvo da violência
da técnica conserve a abertura em que homens e deuses se possam encontrar. A natureza
como essa abertura primordial é o sagrado. Ou melhor ainda: o sagrado é o anterior último para
toda aparição inclusive a aparição mais elevada, a epifania divina. Isto tudo quer dizer que
guiados pela natureza podemos alcançar a essência do divino, o sagrado. Este transcende os
deuses tal como o ser transcende os entes. Deste modo, o sagrado se manifesta quando o
próprio ser se ilumina e é experimentado em sua verdade. Heidegger ensina que o sagrado é o
próprio ser, a própria origem, que se constitui no entre [Zwischen], onde divinos e mortais
podem se encontrar, mas que enquanto tal escapa necessariamente tanto aos deuses quanto aos
homens. Em outras palavras, Heidegger informa que o sagrado é o se [Es gibt] do ser como
16
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 141
17
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 95
pura doação e que o Ereignis, cuja técnica é o prelúdio, deve ser considerado como perfazendo
o fundo a partir do qual acontece o encontro entre os homens e os divinos. Heidegger observa:
É nesta proximidade [do ser] que se realiza caso isto aconteça a decisão se e
como o Deus e os deuses se recusam e a noite permanece, se e como amanhece o dia
do sagrado, se e como, no surgimento do sagrado, pode recomeçar uma manifestação
do Deus e dos deuses. O sagrado, porém, que é apenas o espaço essencial para a
deidade o qual, por sua vez, novamente apenas garante uma dimensão para os
deuses e o Deus –, manifesta-se somente, então, em seu brilho, quando, antes e após
longa preparação, o próprio ser iluminou e foi experimentado em sua verdade.
18
A bibliografia que com maior constância utilizamos neste trabalho são os escritos que
Heidegger produziu após a reviravolta [Kehre] de seu pensamento. Assim, nosso ponto de
partida é o momento posterior a Ser e Tempo, no qual o filósofo, ainda direcionado para a
questão norteadora daquela obra, a saber, sobre o sentido do ser, decide pensá-la numa
perspectiva diferente. A analítica preparatória do Dasein lugar ao pensamento do ser como
Ereignis. A Kehre, desta forma, marca uma distância da tradição ontológica e antropológica:
nem o ser, nem o homem podem ser fundados independentemente um do outro. Homem e ser
são apropriados reciprocamente na e pela Ereignis. Se a Kehre tem lugar na Ereignis e a
Ereignis indica aquilo a partir do qual e em torno do qual se recolhem as contribuições que
Heidegger pretende oferecer à filosofia, o que fazemos sobretudo é examinar a temática sobre a
técnica.
A presente tese será dividida em quatro capítulos, assim distribuídos:
No primeiro capítulo esclarecemos que, para Heidegger, a metafísica é a história do
esquecimento do ser. O seu princípio guia é o princípio do fundamento, nihil est sine ratione;
o seu agir consiste em oferecer a cada coisa e cada época seu próprio fundamento. Mas, de
fato, aquilo que a metafísica sempre funda é precisamente a morte. A morte custodia o abismo
do ser e sua relação com o Dasein: a morte é o não-fundamento que a metafísica deve sempre
velar, fundando-a. Além disso, a própria história humana coincidiria como uma história do ser
que nela se revela; para Heidegger, nenhum espírito transcendente, nenhum absoluto se revela
nessa história ontológica [Seinsgeschichte]. A atitude do homem é então ek-stática, enquanto
espera ser interpelado pelo ser que, não sendo nenhum ente, governa a história e o mundo
humano, inclusive a ciência e a técnica. Indicamos também como o próprio filosofar não mais
pode ser tomado como o mais elevado modo existencial do ser do homem, mas, ao contrário,
como uma preparação para ausculta do dar-se essencial do ser. Neste capítulo procuramos de
maneira especial evidenciar que o empreendimento heideggeriano não visa destruir, mas
salvar a metafísica em sua essência. Em nosso tempo o pensamento deve colocar em diálogo
18
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 360
o primeiro passado do ser da verdade e o extremo futuro da verdade do ser e neste diálogo dar
a palavra à essência do ser até agora não questionada.
No segundo capítulo assinalamos que em sua essência, a técnica, enquanto perfeita
realização da metafísica, não se trata de um simples produto do homem, mas do modo em que
o ente em sua totalidade se descerra na época moderna. O ente agora é tudo aquilo que se
encontra disponível para a manipulação e produção do homem. Por outro lado, neste mesmo
capítulo sustentamos que a frenética agitação de nosso mundo cada vez mais técnico
proporciona uma coisa diferente da própria técnica. Não representa o atual frenesi cnico do
ocidente o início de um aprofundamento meditativo onde afinal reconheceríamos o estatuto
em si mesmo contraditório do verbo “ser”? De maneira peculiar, não é o homem tecnizado
chamado a habitar poeticamente a terra e a se extasiar com a incomensurabilidade da
existência? Na verdade, a técnica portaria em si mesma aquela estranha e complexa
ambigüidade, semi-indicativa, semi-reveladora, encoberta, que sinaliza para uma realidade
oculta ainda por vir. Na verdade, Heidegger percebe nosso tempo como indigente, como um
ponto de viragem, um ponto de decisão, um eschaton oscilando entre a total decadência e um
novo início para o ocidente. Para ele, a escura noite da cnica pode se apresentar como a
verdade profunda do amanhecer e do advento de um novo dia. Esta noite é pressentimento da
possibilidade de rememorarmos nossa pertença ao ser. Mesmo nosso céu ameaçador e poluído
é ainda um céu premonitório. Cheio está ele de promessas. Seu azul é mais do que nunca a cor
do profundo. Todavia, esta suposta virada está atrelada à possibilidade do Dasein voltar a
habitar no espaço próprio de sua essência. Confrontar a técnica e seu imenso poder passa
menos pela resposta à pergunta sobre o que fazer, enviando antes à pergunta sobre como e o
que devemos pensar.
No terceiro capítulo clarificamos que levar a sério a fuga dos deuses é manter sua
deidade na medida que esta permanece estruturalmente incompleta. Esta fuga torna-se somente
a presença de uma plenitude escondida. Deste modo, o já-não-poder chamar os deuses que se
foram é tão somente a vontade de persistir e manter-se no espaço de uma possível modalidade
de relação aos deuses aquela de sua ausência. Além disso, informamos que a dominância da
técnica corresponde ao capítulo final da história do ser, o da vontade de potência. Neste
contexto onde o real é disposto como alvo de exploração sistemática, o homem passa a ser o
sujeito [ego cogito], que funciona como base constituidora do mundo, cuja essência consiste na
pretensão de mobilizá-lo e dominá-lo através da certeza do cálculo. Neste capítulo buscamos
esclarecer como, segundo Heidegger, o niilismo abre a possibilidade de podermos desfrutar da
tecnologia sem abraçarmos o entendimento tecnológico do ser. De fato, é indispensável
considerar que o niilismo só pode ser entendido como preparação para o outro início do
desocultamento do ser.
No quarto capítulo evidenciamos como a poesia de Hölderlin é capaz de “abrir
poeticamente” o lado propriamente “oculto” da história ocidental, no sentido de sua verdade
mais originária. Hölderlin seria o mensageiro da superação de toda metafísica e somente com
sua ajuda seria possível, ao pensar mais rigoroso, penetrar no âmbito da verdade do ser como
acontecimento [Ereignis]. A disposição fundamental despertada em sua última e mais madura
poesia, disposição que é sagrada, estabelece o lugar metafísico de nosso futuro ser historial.
Não como negar o fato de que o pensamento heideggeriano, sobretudo a partir do momento
em que se depara com a poesia de Hölderlin, passa a se apresentar cada vez mais como uma
especulação sobre a possibilidade de darmos um salto para um pensamento pós-metafísico que
medite e recorde [An-denken] o destino do ser como um jogo sem “porquê” e aguarde a vinda
do último Deus. O que foge ao pensamento aflora no poetar, e aponta para aquilo que o
pensamento deve visar. “Na poesia de Hölderlin, pela primeira vez, o âmbito da arte, da beleza
e de toda a metafísica, no qual ambos realmente têm a sua sede, é superado”
19
. Sendo assim,
para Heidegger, o An-denken está intimamente relacionado à superação da metafísica, à
instauração de um pensar poetante e a uma meditação religiosa [Andacht].
O que parece mesmo indiscutível é o fato do pensamento heideggeriano atingir um
grau de radicalidade que força a admiração; sua obra nos arrebata a tal ponto que não
conseguimos dela nos afastar, a fim de ganhar perspectiva. Mas isso não significa que
seguiremos Heidegger de um modo servil e automático. Seu texto não é algo sagrado.
Acreditamos que toda sua reflexão constitui um tornar-se consciente do limite da orgulhosa
ambição humana de dominar, pela via da objetivação, o mistério da pura presença das coisas.
“O pensamento de Heidegger é esta radiação insólita do próprio mundo moderno numa palavra
que, para tudo dizer, destrói a segurança da linguagem e compromete o fundamento do homem
no ente”
20
. Por fim, esta tese de doutorado deseja permanecer significativamente exegética.
Apesar desta nossa prudente modéstia filosófica, o objetivo primeiro é conseguir o máximo de
apoio na monumental obra heideggeriana, a fim de esboçar caminhos viáveis e fecundos.
O retorno aos temas originais da filosofia – e é por isso ainda que a obra de
Heidegger continua a impressionar – não procede de uma piedosa decisão de
retornar, enfim, a não sei qual philosophia perennis, mas de uma atenção radical
dada às preocupações prementes da atualidade. A questão abstrata da significação
do ser, enquanto ser, e as questões da hora presente convergem espontaneamente.
21
19
HEIDEGGER; lderlins Hymne “Andenken”, p. 36
20
BEAUFRET, Jean; cit. por J.F. Courtine, La cause de la Phenoménologie. Exercices de la Patience, n. 3-4, p.
65, 1984.
21
LÉVINAS; Entre nós: ensaio sobre a alteridade, p. 23
CAPÍTULO 1: A QUESTÃO DA METAFÍSICA
1.1 – O esquecimento do ser
Como é sabido não existe no pensamento de Heidegger uma concepção unívoca do
que é metafísica. Este conceito é objeto de uma múltipla, e muitas vezes considerada
ambígua, atribuição de significados e sentidos. Por isso, é preciso destacar que partiremos do
seguinte entendimento: as modalidades da metafísica dizem respeito, de fato, apenas ao
domínio do ente e permanecem aquém da verdade do ser. Entendemos, assim, que a
metafísica se distingue por ser uma elevação do plano ôntico como o próprio horizonte de
colocação da questão do ser. Conseqüentemente, o ser como tal permanece despercebido e
esquecido. Deste modo, a questão do ser se extingue se ela não abandona a linguagem da
metafísica, porque o representar metafísico impede de se pensar a questão da essência do ser.
A questão principal da metafísica é a de encontrar o sentido a dar ao ente to on –; por sua
vez, Heidegger persegue o que determina todo o ente enquanto ente e que, enquanto ser do
ente, não é ele próprio um ente. Para ele, a questão está, sim, no fato de que nós ainda mal
conhecemos a essência da metafísica e não somos versados na fala do ser.
Assim, o pensar é caracterizado incessantemente pelo acontecimento de, na história
do pensar ocidental, e isso desde o início, o ente ser pensado na perspectiva do ser, mas a
verdade do ser permanecer impensada, e não apenas ser recusada ao pensamento como
experiência possível, mas o próprio pensar ocidental, e isso na figura da metafísica, ocultar o
acontecimento desta recusa, de modo próprio mas também sem o saber. Mas mesmo na
metafísica o ser é e permanece, por mais que incompreendido, indicado. Em seu espaço
histórico vige, mesmo se como possibilidade não atualizada, o envio destinal da origem.
Fundamentalmente, o que caracteriza a metafísica é sua equivocada crença na permanência
temporal do ser: a própria realidade o fundo das coisas, o “aquilo que é” em sua
profundidade essencial seria absolutamente contínua, postulado tão antigo quanto o
pensamento. “Ser singular crença equivocada que o ser deve “ser” sempre e se encontre
tanto mais “sendo” quanto mais é estável e durável. Contudo, em primeiro lugar, o ser não “é”
de maneira alguma, mas se desdobra (west)”
22
. Em outras palavras, o ser sempre foi
erroneamente pensado pela metafísica como substância [ousia] possuidora de permanência e
22
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 255
consistência. Tradicionalmente, os filósofos definiram o “ser” de um ente como o ser
fundamental ou substância, aquilo que lança as “fundações” para a coisa. Já Heidegger define
“ser” de um modo diferente da maioria dos outros filósofos. A esse respeito, Michael
Zimmerman observa:
Recusando conceber o conceito de ser como uma espécie de ente superior, um
fundamento eterno, base, causa ou origem das coisas, Heidegger argumentou que
para algo “ser” significa revelar-se ou apresentar-se. Por forma a que esta presença
[Anwesen] ou automanifestação ocorra é necessária uma clareira, uma abertura, um
vazio, um nada, uma ausência [Abwesen]. A existência humana constitui a abertura
necessária para que a presença (ser) dos entes tenha lugar. Quando se esta
presença através da abertura que sou, deparo-me com um ente enquanto um ente;
ou seja, entendo o que é. (...) Para Heidegger, nem a temporalidade (ausência,
nada), nem o ser (presença, automanifestação) são um “ente”. São as condições
necessárias para que os entes surjam enquanto tal. Nunca “vemos” o tempo ou
“tocamos” a presença das coisas, vemos e tocamos as coisas que se manifestam ou
apresentam.
23
O pensamento heideggeriano anuncia a afirmação aparentemente estranha de que o
ser se dá como o que desvanece e perece. Fica muito claro que Heidegger deseja propor o
problema do ser fora do horizonte metafísico da simples presença: o ser só tem chance de
tornar a dar-se como autêntico na forma do empobrecimento. Neste sentido, é preciso
reconhecer o caráter eventual do próprio ser: sua relação originária com o tempo. Para
Heidegger, ser não se contrapõe, de forma alguma, ao não-mais-ser e ao ainda-não-ser; tanto o
não-mais-ser como o ainda-não-ser pertencem ao vigor do ser. Aquilo que a metafísica
como não-ser é na realidade o ser esquecido; de fato, trata-se de levar a própria linguagem a
distinguir a comum-pertença de homem e ser (de “apelo e escuta”) e a pertença do nada ao ser,
ou seja, distinguir o campo de oscilação ser-homem-nada.
De acordo com Heidegger, na história da filosofia o importa tanto o que é dito
pelos pensadores de uma forma imediata, mas sim o que é calado e esquecido neste dizer. Por
isso, o pensamento meditativo deve ir ao encontro daquilo que permanece “por dizer” nas
obras de filosofia e de sua fonte de inspiração sempre sacrificada. Este sacrifício da origem é
necessário precisamente porque torna possível a constituição de um saber da origem. Deste
modo, os filósofos sempre enunciam a sua vontade de presença do ser; mas, visto que faz parte
de sua essência se furtar, não podem nunca nomeá-lo. Paul de Man chega a afirmar que eles
são de algum modo enganados pela fuga do ser; “são ingênuos, apesar de se acharem hiper-
conscientes, visto que aquilo a que chamam de o essencial não é na realidade senão o ser
disfarçado e aquilo que rejeitam como negação do essencial não é na realidade senão a face
23
ZIMMERMANN, Michael; Heidegger, budismo e ecologia profunda, em Poliedro Heidegger direção de
Charles Guignon, p. 264
autêntica desse mesmo ser. Dizem a verdade, mas não sabem que o fazem”
24
. Com efeito, para
Heidegger, todos os pensadores dizem o mesmo; a filosofia esconderia na singularidade e
simplicidade da sua problemática central uma riqueza que atravessa o fôlego histórico do
tempo e do espaço: a revelação do ser é inesgotável.
Onde encontrar um ponto de apoio para a nossa rememoração da questão sobre a
verdade do ser? Este impensado tem de estar em algum momento da história; se nunca se
tivesse revelado, como poderíamos falar da sua presença? Para Heidegger, é na Grécia que
reside, se pensarmos epocalmente, o começo da época do ser. estaria a manhã primordial, o
primeiro começo do pensamento. Por este motivo o vemos freqüentemente recuar ao
pensamento grego originário (Parmênides, Heráclito, Anaximandro). “O início é o escondido,
a origem [Ursprung] ainda não profanada e explorada, que se colhe de modo mais amplo como
sempre subtraindo-se e preserva assim em si o domínio supremo”
25
. O pensamento
heideggeriano até permite o entendimento de que a época áurea dos gregos representou este
afortunado tempo onde era oferecida ao homem a riqueza essencial ainda não totalmente
soterrada do ser.
[Afinal] O início não é algo que deles dependa, algo que eles trabalham dessa ou
daquela forma, muito antes pelo contrário: o início é tal porque algo começa com
esses pensadores, no momento em que eles são solicitados radicalmente a voltar-se
para o pensar, por causa do [apelo] do ser.
26
Heidegger ainda observa:
Grego é a aurora do destino segundo o qual o ser ele próprio clareia no ente e
reclama um estar-a-ser do homem que, enquanto estar-a-ser relativo ao destino,
tem o seu processo histórico no modo como esse estar-a-ser é preservado no ser e é
libertado dele, embora, apesar disso, nunca seja separado dele.
27
Mas acreditamos que esta volta ao primeiro início não significa dirigir-se a uma
presumida aurora não contaminada do pensamento ocidental com respeito a qual toda a
história ulterior teria representado tão somente uma progressiva decadência. Heidegger
retorna ao passado para nele descobrir o futuro inviolado, e sempre à espera, que aí se encontra
encoberto. Na verdade, é sustentada por ele a idéia de uma espécie de complementaridade
entre a história do primeiro início da filosofia e o outro início que deve ser agora preparado. A
abertura de um novo espaço de pensamento que se desprende [nos limites em que isso é
possível] da metafísica requer o reconhecimento daquilo que a metafísica representou como
possibilidade de pensamento.
24
DE MAN, Paul; O ponto de vista da cegueira, p. 273
25
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 57
26
HEIDEGGER; Parmenides, pp. 7-8
27
HEIDEGGER; Caminhos da floresta, p. 389
Heidegger pode ser entendido como aquele que procura pensar o chão que sustenta a
árvore da filosofia, mas que está esquecido para ela mesma. Ele deseja esclarecer a essência da
metafísica por meio de um retorno a esse fundo que está oculto a ela mesma. “Em que solo
encontram as raízes da árvore da filosofia seu apoio? De que chão recebem as raízes e, através
delas, toda a árvore as seivas alimentadoras? Qual o elemento que percorre oculto no solo, as
raízes que dão apoio e alimento à árvore? Em que repousa e se movimenta a metafísica?
28
.
Em poucas palavras, o filosofo alemão procura penetrar no chão esquecido e velado da
tradição, relembrando e renovando para a filosofia a questão do sentido do ser. “Toda a
fenomenologia de Heidegger visa penetrar na relação do homem com o ser, porque nesta
relação se esconde a raiz secreta da metafísica e na sombra desta relação se esconde o motivo
porque a metafísica se transformou no esquecimento do ser”
29
.
Quando Heidegger faz referência ao esquecimento do ser pela tradição metafísica não
deseja simplesmente desprezá-la. Este esquecimento não deve ser entendido como uma falta,
um erro, distração que recai sobre o homem. Devemos pensá-lo como um afastamento do
próprio ser. “A verdade do ser como a clareira mesma permanece oculta para a Metafísica.
Este velamento, porém, não é uma lacuna da Metafísica, mas o tesouro de sua própria riqueza
a ela mesma recusado e ao mesmo tempo apresentado. A clareira mesma, porém, é o ser”
30
.
Não é pelo homem que o ser é aquilo que se furta. É um fato que diz respeito unicamente ao
próprio ser. Sua doação se sempre no movimento de velamento, de reserva. O ser
permanece mistério porque sua plenitude mais retrai em si do que mostra. Uma lei secreta
exige dele que esteja sempre escondido no que mostra. A questão ontológica é constante, ela se
furta apenas, ela nos atinge constantemente como o que constantemente foge e nos deixa fugir.
Para Heidegger, este retiro do ser é ainda uma de suas maneiras de estar presente e os
metafísicos estão tanto mais próximos do ser quanto mais possuídos são por seu movimento
retrátil. Assim, não se trata de apressadamente sairmos do espaço da metafísica e nem de
simplesmente ultrapassarmos seus limites. A metafísica não seria tão somente uma
desgastada problemática sem nenhum significado que poderíamos facilmente ultrapassar para
construir algo novo. A metafísica é a ocorrência do fundamento do Dasein, é o próprio Dasein;
e cada síntese metafísica da filosofia é ainda a escrita histórica do ser, dando testemunho de
sua gratuidade aparentemente sem sentido.
Ficamos ainda muito longe de uma determinação da essência do esquecimento.
Contudo, mesmo ali onde pudemos ver, em sua amplitude, a essência do
esquecimento caímos, com demasiada facilidade, no perigo de compreender o
28
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 55
29
STEIN, Ernildo; O transcendental e o problema de Deus em Martin Heidegger, p. 136
30
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 158
esquecimento apenas como procedimento humano. O “esquecimento do ser” foi,
muitas vezes, representado como o ser fosse, para expressá-lo numa imagem, o
guarda-chuva que a distração de um professor de filosofia esqueceu em um canto.
Entretanto, o esquecimento não apenas afeta a essência do ser, como algo
aparentemente dela separado. Ele pertence à tarefa do próprio ser, impera como
destino de sua essência.
31
A metafísica detém o poder de decidir e determinar a história do Ocidente. O pensar
metafísico é o solo sobre o qual se desenvolveu toda nossa civilização. Segundo Heidegger, a
metafísica indica o que sustenta e promove todas as manifestações do pensamento ocidental: a
filosofia, a ciência e a técnica. E a história em seu movimento seria a própria realização desse
gesto de desviar-se e furtar-se do próprio ser. O homem experimenta mudanças na
compreensão do ser em cada época histórica: ser afirma algo diferente nas diversas épocas de
sua destinação. A história do ocidente, como jogo imprevisível do ser, é a realização desse
movimento ontológico em que o ente à luz do ser é interpretado quer como espírito no sentido
do espiritualismo, quer como matéria e força no sentido do materialismo, quer como devir e
vida, quer como vontade, como substância ou sujeito, quer como energeia, quer como eterno
retorno do idêntico. Estas diferentes estampas do ser viabilizam os diferentes mundos
históricos do Ocidente. Com efeito, a verdade do ser, que acontece, advém temporalmente. Em
outros termos, a interrogação ontológica, que coincide com o despertar da existência humana
no mundo, é a tradução do modo particular como numa época determinada o homem se
interpreta como ser-no-mundo. “Précisément nous sommes sur um plan il y a
principalement l’Être”
32
. O ser revela a abertura para a aparição do ente no interior de uma
respectiva pré-compreensão ontológica coletivamente vinculante de tudo o que pode acontecer
no mundo. Enfim, a essência da história pode vir ao saber apenas se o ser é colocado em
questão, ou seja, compreendida na sua mais íntima e escondida verdade. E de maneira análoga,
o homem pode ser finalmente histórico apenas se a sua essência vier a ser pensada a partir da
dimensão espaço-temporal da abertura do ser.
Se o homem deve ser histórico e se a essência da história deve vir ao saber, então
antes de tudo a essência do homem deve se tornar problemática e o ser deve se
tornar questão, pela primeira vez deve ser colocado em questão. Apenas na essência
do ser mesmo e ao mesmo tempo na sua relação com o homem, do homem que se
encontra a altura de tal relação, pode ser fundada a história.
33
Na mesma direção, Heidegger acentua:
O destino do ser permanece em si a história essencial do homem ocidental, na
medida em que o homem histórico é necessário no habitar edificante da clareira do
31
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 50
32
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 159
33
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 492
ser. Como retirada destinável, o ser é em si relação com a essência do homem.
Através desta relação o ser não é contudo humanizado, senão que a essência do
homem permanece através desta relação domiciliado na localidade do Ser.
34
Ao longo de toda a tradição metafísica o ente ganha primazia e faz com que o ser se
torne adendo e mero universal. Uma vez que ao ser e ao tempo, presença e ausência,
manifestação e nada, faltam propriedades fenomenais ou empíricas, eles parecem ser “nada”,
no sentido puramente negativo de “um vapor vazio” (Nietzsche). Conseqüentemente, a
diferença ontológica desaparece. Permanece esquecida. Um dos motivos deste esquecimento é
o fato da metafísica sempre apelar para determinadas oposições filosóficas: entre o sensível e o
inteligível, entre a aparência e a realidade, entre a natureza e o espírito, entre o finito e o
infinito, entre o sujeito e o objeto. Para Heidegger, devemos compreender que o ser jamais
pode ser representado e fixado como um ente; ele é a diferença mesma, o puro diferir. O ser e
o ente são ambos instituídos na diferença. Mais que dois pólos, conta a oscilação que se
entre eles.
A Metafísica realmente representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente.
Mas ela não pensa a diferença de ambos. A metafísica não levanta a questão da
verdade do ser mesmo. Por isso ela jamais questiona o modo como a essência do
homem pertence à verdade do ser. Esta questão a Metafísica, até agora, ainda não
levantou. Esta questão é inacessível para a Metafísica enquanto Metafísica. O ser
ainda está à espera de que ele mesmo se torne digno de ser pensado pelo homem.
35
1.2 – Onto-teo-logia
Este esquecimento do ser como diferença se realiza, sobretudo, porque a metafísica
pressupõe a existência de um Deus concebido como ente supremo que explica e conta do
ente na sua totalidade. Na metafísica temos a procura (do pensamento) de um ente para
fundamento (Deus); seu ponto de chegada é uma teologia da criatura e o uma ontologia do
ser do ente. Deus ordenou o mundo dos entes como totalidade significante, representando essa
exigência lógica à qual a filosofia sempre se encontrou atrelada e subsumida. Na metafísica, o
ser é atribuído a Deus que, como transcendente, é o analogante do qual participam os entes. O
ser é Deus, e os entes são porque o abismo que os separa do ser é unido pela ponte da
criação. Heidegger ensina: “Enquanto examinarmos apenas historicamente a História da
Filosofia, encontraremos em toda a parte que Deus nela entrou”
36
. Assim, a metafísica
representa o ente em sua totalidade no sentido do ente supremo e por isso divino. Aquilo que
34
HEIDEGGER; O princípio do fundamento, p. 138
35
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 154
36
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 195
se encontra para além do ser, enquanto princípio do ente e condição de felicidade, tem o
caráter de divindade; a ontologia é ao mesmo tempo teologia. Otto Pöggeler corrobora:
Ela (a metafísica) pensa o ente na sua totalidade conforme seu ser, pensa esse ser
platonicamente como ‘idéia’, modernamente como representação de objetos e,
finalmente, como a vontade de poder. Assim a metafísica é a doutrina do ser do
ente, ontologia. Essa ontologia aceita como evidente, para o fundamento do ser, a
presença constante. O ente pode ser fundado no ser como presença constante e, por
isso, também disponível. Mas o ser mesmo precisa de fundamento, para que possa
ser o ser constantemente presente. Assim, a metafísica procura aquele ente que, de
modo especial, preenche a exigência da presença constante. Ela encontra esse ente
no divino subsistente em si, no ‘theion’. Com isso, a metafísica não é
fundamentação do ente no ser, mas também fundamentação do ser no ente
supremo, no ‘theion’, portanto teologia. Justamente porque fundamento, ela é uma
‘-logia’. Assim, ela é onto-teo-logia.
37
Não teria havido filosofia se o ser não tivesse desde sempre interpelado o homem. E
uma interpelação teria sido dirigida desde sempre aos homens e percebida desde sempre por
eles se o ser não fosse o próprio ser de um existente excelente Deus sobre o qual diríamos
que ele é o próprio ser? A interpelação do homem pelo ser é uma interpelação que parece a de
alguém; essa subordinação do ser à existência Daquele que é absolutamente nos remete ao
caráter ontoteológico da metafísica. Fundamentalmente, não podemos nos esquecer que
Heidegger está nos dizendo do Deus dos filósofos (que é sempre ao mesmo tempo o Deus dos
teólogos), o Deus como causa sui. Tal é o nome de Deus que para filosofia é apenas e tão
somente um ente, mesmo se no grau máximo; ente cuja função teórica é dar razão aos outros
entes. Deste modo, a metafísica dá um nome ao divino e acaba elaborando um ídolo conceitual
e representável de Deus. Este nome confirma o esquecimento do Deus divino e sua
representação idolátrica. A onto-teo-logia acaba impedindo o acesso a Deus como tal ao
produzir um ídolo de “Deus” como causa sui. Assim soa o nome adequado para o Deus na
filosofia. A este Deus não pode o homem nem rezar, nem sacrificar. Diante da causa sui, não
pode o homem nem cair de joelhos por temor, nem pode, diante deste Deus, tocar música e
dançar”
38
. Neste sentido, foi efetivamente a metafísica que matou Deus. Com efeito, mesmo
quando Nietzsche anuncia a “morte de Deus”, está falando da morte de um Deus que na
realidade se encontrava morto, já solidificado em uma presença que tem apenas a função de
suplemento diante da presença igualmente disponível do ens creatum. Heidegger diz:
O objeto originário do pensamento mostra-se como a causa originária como a
causa prima, que corresponde à volta fundamentante à ultima ratio, ao último
prestar contas. O ser do ente somente é representado radicalmente, no sentido do
37
PÖGGLER, Otto; Metaphysik und Seinstopik Bei Heidegger, 1962; cit. por Stein, Ernildo, O transcendental e o
problema de Deus em Martin Heidegger, p. 40
38
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 201
fundamento, como causa sui. Com isto designamos o conceito metafísico de Deus.
A metafísica deve ultrapassar, com seu pensamento, tudo em direção de Deus, pelo
fato do seu objeto é o ser; este, porém, se torna fenômeno de múltiplas maneiras,
enquanto fundamento: como lógos, como hypokeímenon, como substância, como
sujeito. Este esclarecimento toca provavelmente em algo certo, mas permanece
absolutamente insuficiente para a discussão da essência da metafísica. Pois ela não
é apenas teo-lógica, porque é onto-lógica. Ela é isto, porque é aquilo. A
constituição onto-teológica da essência da metafísica não pode ser esclarecida nem
a partir da teológica, nem partindo da ontológica, caso aqui algum dia uma
explicação baste para aquilo que fica para ser considerado.
39
Na medida em que todo interrogar autêntico representa um modo de auto-
interpretação da vida, que enquanto tal não admite valores externos, a filosofia pode ser
atéia. Mas mesmo quando renuncia a toda forma de explicação religiosa a filosofia, desta
maneira, acolhe a sua intrínseca religiosidade, uma vez que o único modo em que é possível
estar “corretamente” diante de Deus consiste no distanciar-se Dele. Heidegger afirma: “o
pensamento sem um Deus, que se sente impelido a abandonar o Deus da filosofia, o Deus
como causa sui, está talvez mais próximo do Deus divino [der göttliche Gott]”
40
. Renunciando
até mesmo a nomear Deus, a filosofia pode se estabelecer na única relação a ela disponível
com a divindade. Enquanto interrogação autêntica e radical, a filosofia não tem nada em
comum com a teologia: onde a filosofia coloca perguntas, a teologia oferece respostas
41
. Por
outro lado, é fundamental apreendermos que, segundo Heidegger, os próprios deuses
necessitam do pensamento da história do ser, ou seja, da filosofia. Os deuses precisam da
filosofia não no sentido que eles mesmos devem fazer filosofia para ambicionar a própria
divinização, “mas que deve existir filosofia se os deuses devem chegar uma vez mais à decisão
e se a história deve alcançar o seu fundamento essencial”
42
.
Também não é sempre fácil no conjunto da produção heideggeriana distinguir, pelo
menos no nível terminológico, o Deus da metafísica do Deus divino. “Faltam nomes
sagrados”, observa Hölderlin. Na medida em que destrói os ídolos onto-teológicos, buscando,
ao mesmo tempo, conduzir novamente o pensamento à sensibilidade diante do sagrado,
Heidegger conclui que a palpitação de Deus é a própria palpitação do ser; trata-se do mesmo
evento histórico não representável como tal que deve ser preservado em seu caráter tênue,
em seu caráter excepcional. Deste modo, torna-se claro que Heidegger, em sua preocupação de
alcançar um novo espaço para a experiência do sagrado, quer que sejamos afinal remetidos à
questão da relação deste Deus divino (pós-metafísico) com o ser, entendido também este não
39
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 196
40
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 201
41
HEIDEGGER; Introdução à metafísica, p. 38
42
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), pp. 438-439
mais metafisicamente. O ser é essencial para o dar-se de Deus. Neste sentido, Heidegger
afirma na conferência Die Kehre:
Se Deus vive ou permanece morto não decidem nem a religiosidade do homem,
nem, muito menos, as aspirações teológicas da filosofia ou das ciências da natureza.
Se Deus é acontece-apropria [ereignet] a partir da constelação do ser e no interior
desta [aus der Konstellation des Seins und innerhalb ihrer].
43
E de modo determinante, ainda se prendendo à questão da relação necessária entre Deus e ser,
Heidegger no Seminário de Zürich observa:
Deus e ser não são idênticos [...]. Ser e Deus não são idênticos, e eu nunca tentaria
pensar a essência de Deus mediante o ser. Alguns talvez saibam que eu provenho da
teologia, que eu conservei para com ela um antigo amor e que dela entendo um
pouco. Se tivesse que escrever uma teologia, coisa que às vezes sou tentado a fazer,
a palavra “ser” não deveria de maneira nenhuma aparecer. A fé não tem necessidade
de pensar o ser. Se tivesse necessidade de fazê-lo, não seria mais fé. Lutero
compreendeu isso. Mas até na sua igreja isso parece esquecido. Tenho muitas
reservas em considerar que o ser seja apto para se pensar teologicamente a essência
de Deus. Com o ser, neste caso, não se pode obter nada. Eu creio que o ser não pode
nunca ser pensado como fundamento e essência de Deus, mas que no entanto a
experiência de Deus e de sua revelação (enquanto esta encontra o homem) se no
âmbito do ser, o que não significa de maneira alguma que o ser pode valer como
predicado possível de Deus. Aqui seria necessário distinções e delimitações
totalmente novas.
44
1.3 – A identidade entre ser e pensar
A tradição filosófica esteve milernamente alicerçada na crença da identidade entre
ser e pensar identidade esta que havia garantido ao homem um lar neste mundo. Adotando
uma interpretação convencional, podemos assegurar que a primeira descoberta do ser dos
entes com Parmênides, na sentença do fragmento III, identificava o ser com a compreensão
que percebe o ser: to gar auto noein estin te kai einai. Nesse sentido, a filosofia ocidental
apesar de toda sua variedade e de suas aparentes contradições desde Parmênides não havia
ousado duvidar de que no espaço do pensar se determina o ser. Em outras palavras, toda nossa
tradição de pensamento fundou-se sobre a imagem do homem como animal rationale, onde
animal evidencia um preconceito vitalista de fundo, com privilégio do Leben sobre a
mortalidade que caracteriza o Dasein, e rationale alude à ratio como puro Vorstellen,
representar.
43
HEIDEGGER; La Svolta, p. 31
44
HEIDEGGER; Seminari, pp. 206-207
Na distinção, em aparência indiferente entre Ser e Pensar é de se ver aquela posição
fundamental do espírito do Ocidente. Entende-se noein, como Pensar, e Pensar
como atividade do sujeito. O Pensar do sujeito determina o que é o Ser. E o Ser não
é outra coisa do que o pensado pelo Pensar. Ora, visto ser o Pensar uma atividade
subjetiva, e devendo ser, segundo Parmênides, Ser e Pensar a mesma coisa, tudo se
torna subjetivo. Não nenhum ente em si. Uma tal doutrina, assim se conta, se
acha em Kant e no idealismo alemão. No fundo Parmênides já lhes precedeu às
doutrinas.
45
A metafísica representa o modo pelo qual a filosofia tradicional justificou o
conhecimento da realidade histórico-espiritual. Para Heidegger, a metafísica constantemente
investigou o ser dissimulando-o, ou seja, o compreendia sempre numa orientação secundária –
o ser como conceito, noção, atributo. A metafísica é o sistema natural que deriva precisamente
deste condicionamento da realidade à lei do conhecer. O conceito (toda a linguagem
apofântica pois) é o instrumento utilizado pela metafísica para instaurar um reino seguro, um
espaço de permanência onde possa aparecer a verdade. Esta, para a metafísica, seria o reflexo
de uma realidade objetiva no espelho da mente humana [veritas est adaequatio intellectus ad
rem]. O pensamento tradicionalmente concebido como representação, tal como uma bússola,
indicadora do norte, o deve parar de apontar para a unidade. A metafísica é o espaço
histórico onde se torna destino que o mundo supra-sensível, as idéias, Deus, a lei ética, a
autoridade da razão, o progresso, a felicidade da maioria, a cultura, a civilização,
sucessivamente revelem a sua força edificadora.
Deste modo, observamos ao longo do tempo a contínua busca da metafísica por um
fundamento especulativo onde a vida encontraria seu lugar definitivo, sua inteligibilidade, sua
paz. Na verdade, o desejo metafísico se une ao Eros platônico: desejo nostálgico da unidade
perdida, um movimento de retorno em direção ao ser verdadeiro. É a hegemonia do eros que
procurando no eidos a sua expressão mais adequada termina projetando o reino da presença
no universo da representação. Esta inspiração “eidética” e “erótica” da metafísica impede o
pensamento de escutar o murmúrio silencioso do ser.
A metafísica ao submeter o ente ao poder da representação acredita que podia se
assegurar da totalidade da natureza e da história. De fato, ela afirma a existência de um Texto
universal capaz de dizer tudo. Esse Livro originário, escrito pelas mãos de Deus, realmente
existiria e com muito esforço poderia ser decifrado pela filosofia. Livro oculto e venerável
que brilha por fragmentos, aqui e ali. Decifrar este Livro universal, segundo anuncia repetidas
vezes a metafísica, seria o desejo e o telos de todos os esforços da filosofia. O entendimento e
45
HEIDEGGER; Introdução à metafísica, p. 161
a compreensão deste Livro é a verdadeira glória filosófica legada às gerações futuras
46
. Para
Heidegger, a tarefa do pensamento representativo sempre foi a de descobrir o fundamento
absoluto ou fundação que explica como as coisas chegaram a ser. Não haveria verdade
metafísica senão como verdade absoluta, esta significando a total adequação do sujeito
cognoscente ao real. Na infinitude do fundamento estaria assegurada a esperança de
encontrarmos “um solo sobre o qual seria possível, pelo menos em tese, assentar a vida
humana plenificada, eterna e integrada numa totalidade cósmica e social. Em outras palavras,
visa-se achar um antídoto universal para a falta, a transitoriedade e a particularidade, os três
elementos constitutivos da finitude humana, todos assinalados pela dor”
47
. Resumindo, a
metafísica se define como sendo a expressão de uma realidade conclusa, uma espécie de
hiper-percepção a qual, como nos ensina o poema de Rilke acerca do Torso Arcaico de Apolo,
nos permitiria perceber as coisas na sua completude.
A metafísica sempre nos revelou que a realidade deve ser apreendida como puro
objeto do pensamento, ou seja, a ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das idéias. De
fato, a teoria do ser sempre foi identificada ou confundida com uma teoria do pensamento
puro. Por isso, a representação sempre ostentou uma posição capital frente ao ser. Se a
subjetividade se afirma no platonismo como transcendência da idéia e no mundo moderno
como rescendência [Reszendenz] não faz aqui diferença. O que importa é que no fundo das
duas posições, apenas aparentemente diferentes, permanece o domínio da presença e da
representação.
A metafísica se caracteriza por destacar através do supremo ideal da vida
contemplativa a existência de uma identidade, ou pelo menos uma analogia, entre a estrutura
racional do mundo e a estrutura racional do homem. Nesse sentido, a lei cósmica pode ser
venerada como expressão da razão, com que a razão humana pode entrar em comunhão no ato
de conhecimento. Portanto, percebemos que por muito tempo a metafísica entendeu o mundo
como sendo esse cosmos, com cujo logos imanente o logos humano podia sentir-se
aparentado. Portanto, este logos seria comum: todo ser racional nele participava.
Acompanhava-nos, assim, a certeza de que o homem, considerado cosmicamente, participaria
do universo, porque as estruturas, formas e leis universais estariam abertas para ele. Por
46
Nesse sentido, Karl Jaspers chega mesmo a afirmar que o mundo é o manuscrito de um outro mundo, nunca
plenamente legível; à existência caberia decifrá-lo. A partir da modernidade, quando perdemos a totalidade de
um contexto de sentido, passamos a acreditar que nunca houve esse livro originário, mas tão-somente vestígios
dele, e estes mesmos estão apagados. Por isso, Jorge Luís Borges, em seu maravilhoso texto A Biblioteca de
Babel, nos mostra que precisamos tão-somente nos resignar à existência de livros no plural; livros no plural
porque, apesar de tudo, jamais encontraremos esse texto originário. o se pode falar de uma Gesamtkunstwerk
ou de um Livro absoluto que, nesta parábola, contém e é homólogo ao universo. O signo divino esta
definitivamente ausente. Os livros sequer representam um eco degradado de uma fala sublime. Não mais nos
acompanha a antiga certeza teológica de ver toda a página se religar por si própria no texto único da verdade.
47
LOPARIC, Zeljko; Ética e finitude, p. 9
conseguinte, a filosofia se cumpriria tão-somente como expressão desta unidade do homem
com o mundo.
O homem poderia estar seguro de que participava das estrelas mais remotas e do
mais remoto passado; a metafísica confiava que o fogo que arde nas nossas almas é da mesma
substância que o fogo das estrelas. Para ela, o mundo seria vasto, e, no entanto, seria como a
própria casa dos homens. “Filosofia é na verdade nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em
toda parte” (Novalis)
48
. Com efeito, o que é fundamental para a metafísica é essa
universalidade da razão teorética que cedo havia despertado no conhece-te a ti mesmo” para
reconstruir o universo na consciência de si. Confiávamos no desejado encontro entre a
realidade e o conceito. Tínhamos a metafísica e sua maior utopia cognitiva: a de um saber
fáustico, em que a consciência e o real pudessem finalmente coincidir. Sintetizando, em suas
diferentes fases, a metafísica sempre confiou que poderia ir do abstrato ao concreto; é
indiferente que ela realize esse movimento através de um conjunto sincrônico ou apropriando-
se do parâmetro da duração e da história, se estabeleça, de modo hegeliano, como uma
totalidade em movimento.
Na metafísica dominada pela lógica, o ser recebe suas determinações, sua
interpretação, sua própria possibilidade, do pensamento. Heidegger quer superar
esse predomínio do pensamento lógico e levar esse mesmo pensamento a ser
determinado pelo ser, como pertencente ao ser (...) E desse modo que o ente
começa a predominar na metafísica ocidental. O ser cai no olvido, e o pensamento
lógico-racional toma o lugar de destaque. E o pensamento no sujeito humano que
pensa o ente assume a primazia, representando-o como objeto de que se dispõe.
Com a subjetividade dos sujeitos nasce a objetividade dos objetos. Assim, a
metafísica ocidental é representação do objeto. A subjetividade inicia com Platão e
cresce com Descartes, atingindo seu ápice em Nietzsche, nas ciências modernas e
na primazia mundial da técnica.
49
Fundamentalmente, a metafísica impede o homem de explorar o mistério de sua
condição, através da completa determinação do sentido do humano pelo pensamento
representativo e calculante. Metafísico é o pensamento que, de uma forma ou outra, religiosa
ou profana, supera a condição transitória própria do homem. A metafísica sempre procurou
conferir um sentido à morte; ela busca negar esse destino inexorável que nos está imposto. Em
poucas palavras, a metafísica procura dominar o segredo do mundo; de sua luta contra o
enigma da morte é que vem a sua força e o seu vigor. Acreditamos, assim, que ela procura
resolver esta contradição básica, de que tudo é vida e que toda vida está sujeita à morte. O
pensamento heideggeriano autoriza a conclusão que a metafísica aplaca e domestica os terrores
da morte. Na mais confiante elaboração metafísica sempre um memento mori, um empenho
48
HEIDEGGER; Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão, p. 6
49
STEIN, Ernildo; O transcendental e o problema de Deus em Martin Heidegger, pp. 27, 46
implícito ou explícito para conter a ação fatal do tempo. Para Heidegger, a metafísica não
procura compreender que a morte abre o Dasein na sua integralidade, em cujo interior todas as
outras possibilidades não são anuladas ou dissolvidas, mas adquirem seu significado autêntico.
Mesmo o fato dos mortais poderem ser no mundo deve ser encarado como uma dádiva e não
um peso. De acordo com Heidegger, é apenas na morte que se abre a referência essencial do
homem ao ser como ser; o Dasein pode entrar em relação com o ser tão somente em razão de
sua estrutural relação ao nada. A metafísica se esquece que estamos condenados ao paradoxo
de manter em nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do mundo e da plenitude que
nos propicia a vida: o mundo da dispersão, da finitude humana significa também o mundo da
atração, da exaltação.
É própria do pensamento metafísico a busca para descobrir na ordem cósmica uma
conexão ideal do universo. Ele sustenta a possibilidade de uma adequação do espírito a um
universo mimeticamente intuído. A filosofia permaneceu fiel ao âmbito da metafísica sempre
que acreditou que a exterioridade do ser acabaria por se “interiorizar” no pensamento. Assim, a
metafísica permite ao homem esperar a realização da esperança platônica de elevar-se a um
ponto de vista através do qual as interconexões entre todas as coisas poderiam ser avistadas.
Ela continuamente acreditou na possibilidade objetiva do pensamento alcançar o ponto de vista
do olhar de Deus e, assim, poder evadir-se, até certo ponto, da transitoriedade, da finitude e do
nada das coisas humanas. Com efeito, próximos à metafísica podíamos confiar na esperança
anestésica e reconfortante de um sistema filosófico que crie uma noção ilusória de se estar em
casa em toda parte; conceda proteção ao homem permitindo sua fuga perante as questões reais
de sua existência; pretenda ter apreendido o sentido do ser, ou seja, saiba o que o ser realmente
é. Mas Heidegger alerta: “a filosofia não deve se dar por satisfeita com seu saber, não deve
buscar um consolo, não deve querer comunicar um tal consolo”
50
. Para ele, a filosofia deve
levar ao desnudamento de todas as falsas consolações humanas; os sistemas filosóficos o
podem jamais conferir ao homem a paz de espírito que é fundamentalmente antifilosófica.
Enfim, o destino da metafísica está no fato de ser incapaz de “suportar o inexplicável”, sempre
assumindo, então, o interrogar como uma “apressada e invasiva vontade de explicação”
51
.
1.4 . A filosofia no horizonte da finitude
É preciso reconhecer que a unidade entre ser e pensar apoiava-se na noção, tão antiga
quanto a metafísica, de que o que se concebe racionalmente também deve ser. com o
50
HEIDEGGER; Nietzsche: metafísica e niilismo, p. 22
51
HEIDEGGER; Domande fondamentali della filosofia. Selezione di “problemi” di “logica, p. 122
advento da modernidade é que virá o questionamento desta mesmidade (indiferença) entre ser
e pensar. De fato, passamos a compreender que através do pensamento não podemos penetrar
na realidade própria das coisas. Na realidade, tão logo a palavra “ser” fira nosso ouvido,
juramos que com ela nada podemos representar, nem algo pensar. Com efeito, o ser
evidentemente já não é mais um predicado real, quer dizer, um conceito de algo que se pudesse
acrescentar ao conceito de uma coisa. É necessário, por conseguinte, para pensar “ser e “é”,
um outro olhar, um olhar que não se deixe guiar pela pura consideração das coisas e do contar
com elas. Podemos analisar e explorar, sob todos os ângulos, uma pedra que se encontra na
nossa frente e que obviamente “é”, jamais nela descobriremos o “é”. E, todavia, esta pedra é.
Nesse sentido, nos é estranho o pressuposto de que tudo o que é pensável também existe e
que todo o existente, porque é cognoscível, deve ser também racional. Hannah Arendt ensina:
Esta unidade foi destruída por Kant, o verdadeiro, conquanto clandestino, fundador
da nova filosofia – ele permaneceu até os dias de hoje, o seu rei secreto. A
demonstração kantiana da estrutura antinômica da razão e sua análise das
proposições sintéticas, que provam que em cada proposição em que algo é
afirmado sobre a Realidade se ultrapassa o conceito (a essentia) de uma coisa dada,
haviam subtraído ao homem sua antiga segurança no Ser. Mesmo a Cristandade
não havia atacado essa segurança, unicamente a havia reinterpretado nos termos do
“plano divino de salvação”. Agora, entretanto, não se podia mais estar seguro nem
do significado ou do Ser do mundo Cristão, nem do Ser do antigo Cosmos; e
mesmo a definição tradicional da verdade como adequatio rei et intellectus não era
mais válida. (...) Depende mais do que habitualmente se supõe, na história da
secularização, da destruição kantiana da antiga unidade entre Ser e pensamento.
52
Uma vez que passamos a descobrir e experimentar pela primeira vez o ser em sua
absoluta estranheza [Befremdlichkeit], o “peso da Realidade” passa a ser sentido de modo
incomum. Com efeito, nós, modernos, somos levados a pensar assim um existente que não
pressupõe potência alguma e não existe jamais per transitum de potentia ad actum. Nesse
sentido, mesmo a resposta do cogito ergo sum é inútil, pois esta resposta nunca prova a
existência do ego cogitans (o ego pensante), mas, no melhor dos casos, prova apenas a
existência do cogitare (o ato de pensar). Em outros termos, o “eu” verdadeiramente vivo
jamais deriva do eu-penso, um “eu” apenas como objeto de pensamento. O “eu penso” é uma
determinação que implica a este título uma existência indeterminada (“eu sou”). Sabemos isto
exatamente desde Kant. Além disso, foi ele que, de maneira inédita, determinou a introdução
de um novo componente no cogito, aquele que Descartes tinha abandonado: precisamente o
tempo, pois é somente no tempo que minha existência indeterminada se torna determinável.
Mas eu não sou determinado no tempo, a não ser como eu fenomenal, sempre finito, variável,
tomado pela descontinuidade. Neste sentido, Hannah Arendt afirma:
52
ARENDT, Hannah; A dignidade da política, p. 20
A refutação kantiana da prova ontológica da existência de Deus destruiu a crença
racional em Deus que se apoiava na noção de que eu concebo racionalmente
também deve ser; uma noção que não apenas é mais antiga que a Cristandade, mas
provavelmente também muito mais fortemente enraizada no homem europeu desde
a Renascença. Esta assim chamada ateização do mundo ou seja, o conhecimento
de que não podemos demonstrar Deus através da razão – atinge os antigos conceitos
filosóficos pelo menos tanto quanto atinge a religião cristã. Neste mundo ateízado o
homem pode ser interpretado em seu “abandono” ou em sua “autonomia
individual”. Para todo filósofo moderno – e não apenas para Nietzsche – essa
interpretação tornou-se a pedra de toque da filosofia.
53
que a realidade se mostra como algo que não pode ser evitado, que não pode ser
dissolvido pelo pensamento, o homem deve agora chegar à consciência de que ele é
dependente – não de algo em particular, nem de alguma limitação em geral, mas do fato de que
ele é. Então, esta é a situação do homem na modernidade: foi-se o cosmos, com cujo logos
imanente o meu logos podia sentir-se aparentado; foi-se a ordem do todo, onde existe um lugar
para o ser humano. Este lugar se revela agora como puro e incompreensível acaso. “Espanto-
me que eu esteja aqui e não ali; não existe a mínima razão por que aqui e não ali, por que agora
e não depois”
54
. Em resumo, o homem moderno vive a perda da idéia de um universo amigo e
a impossibilidade de distinguir a contingência da necessidade; nesta situação unicamente o que
lhe resta, a despeito da técnica, é a percepção de que não possui um espaço natural, um ponto
no qual poderia se sentir à vontade no mundo. Nós, modernos, sentimos nossa condição de
seres abandonados e sem caminho, condenados que somos ao estatuto de hóspedes
inoportunos. Mais uma vez é Hannah Arendt quem nos diz algo importante:
A filosofia moderna começa por uma temível colisão com a pura realidade. Quanto
mais se esvazia a Realidade de todas as suas qualidades, mais imediata e cruamente
aparece a única coisa que doravante será a que de fato importa que Isto é. Assim,
desde o início, essa filosofia glorifica a contingência, que aí a Realidade cai
diretamente sobre o Homem como algo inteiramente incalculável, impensável e
imprevisível.
55
Tradicionalmente, acreditávamos que a filosofia era essencialmente idêntica à
contemplação. Kant permitiu que começássemos a duvidar das prerrogativas da contemplação,
desacreditando da possibilidade de um conhecimento puramente contemplativo. Heidegger
acentua que Kant ao destruir a antiga concepção do ser não se deu conta do fato de que estava
ao mesmo tempo colocando em questão a realidade de tudo o que está para além do indivíduo.
Como resultado o reino absoluto e racionalmente concebível das idéias e dos valores
universais foi abatido de um golpe; e o homem foi colocado no meio de um mundo onde
53
ARENDT, Hannah; A dignidade da política, p. 20
54
PASCAL, B. Pensamentos, p. 90
55
ARENDT, Hannah; A dignidade da política, p. 19
não havia mais nada em que pudesse confiar, nem em sua razão. Isso significa que a filosofia,
que desde Platão havia pensado somente por conceitos, tornara-se agora desconfiada do
próprio conceito. Daí em diante os filósofos nunca mais se livraram de sua má-conciência na
busca da filosofia. Aliás, o que veio depois da síntese de Hegel ou era derivativo, ou era uma
rebelião dos filósofos contra a filosofia em geral.
Entendemos que Heidegger, seguindo a trilha aberta por Kant, possui um grau de
consciência insuperado daquilo que realmente está em jogo na filosofia moderna. Para
Heidegger, o impulso próprio para filosofar pode vir agora somente da própria estrutura
paradoxal da realidade humana. Fundamentalmente, devemos nos arriscar a viver apesar do
sem-fundo [Ungrund] da condição humana; sem-fundo que consiste precisamente na ausência
e na perda de todo o fundamento do Dasein (desabrigado) no mundo. A tarefa do homem passa
ser agora a de compreender as implicações paradoxais de sua vida no mundo. Para Heidegger,
a existência deve assumir não de que como realidade humana não criou a si mesma, mas
também que está desamparadamente voltada à destruição inevitável. Por isso, sua filosofia nos
faz tomar contato com novos conteúdos concretos anteriormente desprezados por nossa
tradição de pensamento: a morte, a angústia, a liberdade, a culpa, o Nada, a facticidade e a
contingência. Não é casual que o gesto do herói tenha se tornado a pose da filosofia; é preciso
heroísmo para viver no mundo tal como Kant o deixou. O que fundamentalmente importa é
destacar que Heidegger, além de ter sido influenciado por Kant, conseguiu dar efetivamente
um passo além dele. Por exemplo, em 1929, em Kant und das Problem der Metaphysik, o
tema kantiano da finitude é retomado na ótica da fundação da metafísica do Dasein, como
traço essencial do projeto da ontologia fundamental.
As três célebres questões kantianas (o que posso saber?; o que devo esperar?; o que
me é permitido esperar?) colocam em jogo respectivamente um poder, um dever e um direito
da razão humana. Interrogar-se sobre o próprio poder, significa para a razão reconhecer uma
impotência, que não pode ser considerada um mero defeito, mas um aspecto da própria
finitude. E de maneira análoga, interrogar-se sobre o dever e o direito significa para a razão
reconhecer, respectivamente, uma inadimplência e uma indigência que remetem à mesma
finitude. Deste modo, a razão não apenas denuncia a própria finitude, mas, através da
colocação fundamental da interrogação, faz da finitude aquilo que deve ser colocado em
questão. Enquanto tal a finitude não pode ser assumida como um limite da razão, mas como a
condição essencial que a razão deve assumir: a finitude é a cura da razão para o ser poder ser
finito. O interrogar da razão nasce de seu ser finito e se dirige à própria finitude. A
interrogação sobre a finitude (na sua forma clássica “O que é o homem?”) é a verdadeira
questão que substância às outras três questões metafísicas e é sobre esta que pode encontrar
fundamento a metafísica.
Assim, Heidegger reconhece que depois de Kant nenhuma ontologia no sentido
tradicional pode ser restabelecida. À questão relativa ao significado do ser Heidegger responde
em Ser e Tempo que o significado do ser é a temporalidade: o ser se manifesta na efetividade
histórica finita e temporal do Dasein, deixando-se vislumbrar em sua essencial eventualidade.
Superando a ontologia da presença, Heidegger nos diz que o ser deve passar a ser pensado
como algo fraco e declinante que se desdobra no desvanecer. Assim, o ser cujo sentido ele
trata de reconquistar é um ser que tende a identificar-se com o nada, com as características
transitórias do existir, como encerrado entre os termos do nascimento e da morte. O fascínio
peculiar que o pensamento do nada exerceu sobre a filosofia moderna não é simplesmente
característico do niilismo; esta atração com o nada como cortina do próprio ser tem sido
muito mais intensa que seu temor.
O critério mais durável e eficaz para avaliar a autenticidade e a força do pensamento
de um filósofo é uma questão que remete para o fato dele experimentar, de forma
fundamental e direta, a proximidade do nada no Ser dos seres. Quem se mostre
incapaz de se submeter a tal experiência, permanecerá, de todo, excluído do reino da
filosofia, sem qualquer esperança de lá entrar.
56
Qualquer que seja o ponto de partida da reflexão heideggeriana, sua grande vantagem
foi retomar diretamente as questões que Kant havia interrompido. Em meio às ruínas da antiga
harmonia pré-estabelecida entre ser e pensamento, entre essência e existência, entre o ser
existente e o Quê do ser existente concebível pela razão, Heidegger afirma ter encontrado um
ente no qual a essência e a existência são idênticas e este ente é o Dasein. “A essência [Wesen]
do Dasein consiste em sua existência [ezistenz]”
57
. Cabe deixar esclarecido que Heidegger não
escreve mais a palavra latina existentia (a existência dos escolásticos, em relação com a
essência, primordialmente divina), mas ezistenz que não significa existência determinada.
Assim, dizendo-se que a essência consiste na existência, anula-se a própria noção de essência
como sendo algo real, concebido previamente, uma vez que ezistenz é concebida como sendo
possibilidade, isto é, o poder-ser-si-mesmo do Dasein. A existência, a partir da qual o Dasein
se compreende é a possibilidade de ser-si-mesmo concretizada numa decisão, num ato de
escolha. Para Heidegger, o Dasein como identidade de existência e essência fornece
claramente uma nova chave para a questão relativa ao ser em geral.
Daí somos também levados a reconhecer que a realidade humana se caracteriza não
pelo fato de que ela simplesmente é, mas de que seu ser é pôr seu próprio ser em questão. Este
56
HEIDEGGER; Nietzsche. Vol II, The eternal recurrence of the same, p. 95
57
HEIDEGGER; Ser e tempo, p. 77
caráter auto-reflexivo da realidade humana pode ser aprendido existencialmente e aponta para
o que é o próprio ato de filosofar: o questionamento filosófico deve ser cingido
existencialmente como uma possibilidade inerente ao ser da realidade humana existente. Para
Heidegger, se trata de sublinhar o fato de que a filosofia permanece latente em toda existência
humana e não precisa ser primeiro acrescentada a ela de algum outro lugar. Nesse sentido, o
conceito filosófico não é um puro fantasma, encontrando-se avulso perante a existência
concreta, mas consiste em uma Wiederholung, em uma repetição da vida mesma, conforme
expressão de Rickert.
Repetição: tudo depende do sentido desta palavra. A filosofia é um modo
fundamental da própria vida, uma vez que ela propriamente repete sempre a vida,
no sentido que a retoma [Zurücknehmen] da decadência a qual retomada, como
investigação radical, é ela mesma vida. Para
Rickert o conhecer era aquilo que
para ele é o conceito, e assim um puro fantasma.
58
As próprias categorias usadas pela filosofia se apresentam como um modo da vida
alcançar a si mesma, não uma imposição a ela estranha. A reflexão filosófica, desta maneira, é
adequada ao ser da vida mesma, é algo que está em vida na própria vida. Na verdade, ao
praticar esta crítica radical ao teórico, afirmando simultaneamente a necessidade de um acesso
à vida conduzido em bases diversas com respeito à tradição, Heidegger deseja nos conduzir
diretamente à questão mais vasta de uma clarificação do próprio estatuto ontológico do
Dasein. Ao buscar esta apresentação do Dasein numa dimensão originária que não pode ser
reduzida ao âmbito lógico-teórico respeitando desta maneira a vocação ontológica da
filosofia Heidegger parte da seguinte premissa fundamental: o Dasein está sempre jogado na
existência e no mundo decaído de sua facticidade.
O estar-jogado do Dasein expressa a estranheza que, no fundo, determina a
singularidade de seu ser-no-mundo; Dasein que não decidiu existir e que não é o fundamento
de seu ser. Heidegger ressalta, assim, o caráter enigmático e expatriado do homem. “Mas
sabemos, afinal, o que nós mesmos somos? O que é o homem? O coroamento da criação ou
um caminho extraviado, um grande mal entendido e um abismo? [...] Uma transição, uma
direção, uma tempestade que varre nosso planeta, um retorno ou enfado para os deuses?
59
. O
filósofo a entender que o homem, em especial, é um ente que, embora às vezes tente, está
proibido de se pronunciar legitimamente sobre si mesmo; carece dos títulos para poder afirmar
o que ou quem é, precisamente porque não é possível definir o que existe e pensa
58
HEIDEGGER; Phänomenologische Interpretationen zu Aristóteles. Einführung in die phänomenologische
Forschung, pp. 80-81
59
HEIDEGGER; Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão, pp. 5, 9
temporalmente. Heidegger sugere que precisamos saber que somos, na verdade, um signo
indecifrável.
O caráter de ser-jogado do Dasein indica movimento: assim jogado, o homem é, em
meio à jogada, uma travessia. Jogada ao mundo a existência arremessa-se na morte. Em meio à
travessia, o homem é subtraído e, por isto, percebe a própria impossibilidade de seu existir
como travessia: o Dasein está essencialmente “ausente”. Lançando-se ao futuro, o Dasein
apenas se confrontado com seu extremo poder: a morte. Deste olhar para sua possibilidade
mais própria, em que mesmo a sua própria impossibilidade lhe acode sob a forma de um poder,
o Dasein retorna à sua mera facticidade. Por conseguinte, a angústia, sempre carregada de
questões, cinde a vida cotidiana, colocando o Dasein, sem remissão, diante de seu próprio ser-
no-mundo. Esta tonalidade afetiva se eleva a partir do ser-no-mundo enquanto ser-jogado-
para-a-morte provocando a perda de todas as ilusórias seguranças protetoras do cotidiano; de
súbito, faz desabar e afundar a idéia de um mundo humano onde poderia encontrar abrigo. O
sentimento da angústia, deste modo, mostra a mortalidade radical e a finitude existentes no
coração da existência humana.
A angústia é particularmente perturbadora porque revela que, ‘no fundo’, somos
niilidade. Através deste sentimento o não-estar-em-casa no mundo torna-se explícito. No
desamparo, o Dasein está em toda parte e em parte alguma. Com efeito, o Dasein pode
compreender sua própria totalidade e a plenitude de significação que é indissociável da
totalidade quando enfrenta o seu não-mais-ser-aí. A única coisa que pode realmente fazer é
tomar a si decididamente esse caráter factual de seu ser, de tal forma que sua existência possa
se revelar como o fundamento vazio de sua niilidade. Compete ao Dasein reconhecer que “a
interrogação sobre a morte está em relação essencial com a verdade do ser e apenas nesta; (...)
a morte não é nunca entendida como a negação do ser ou como o ‘nada’ diante da essência do
ser, mas precisamente o seu contrário: a morte como o mais alto e supremo testemunho do
ser”
60
. Para Heidegger, o fascínio de totalidade do pensamento metafísico representa apenas a
máscara vazia com que o Dasein tenta encobrir sua própria negatividade.
O Dasein assume propriamente em sua existência que ele é o fundamento nulo de
seu nada
[Nichtigkeit]
. Concebemos existencialmente a morte como a
possibilidade característica da impossibilidade de existência, ou seja, como o
absolutamente nada do Dasein. A morte não se agrega ao Dasein no “fim”.
Enquanto cuidado, o Dasein é o fundamento lançado (isto é, nulo) de sua morte. O
nada que originariamente domina o ser do Dasein se lhe desentranha como ser-
para-a-morte em sentido próprio. A antecipação revela o ser e estar em débito a
partir do fundamento do ser todo do Dasein. O cuidado abriga em si, de modo
igualmente originário, morte e débito.
61
60
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 284
61
HEIDEGGER; Ser e tempo, p. 98
Particularmente, o filósofo alemão pretende resgatar o sentido de contingência, de
fragilidade e risco de todo projeto humano: o que a tradição metafísica teria sempre
dissimulado. Heidegger não acredita num acordo feliz entre os movimentos do espírito e os do
mundo. Para ele, o despertar da consciência deve acontecer sempre como consciência da
fragilidade da nossa ligação com o mundo. O cogito deve tomar a forma de um sentimento
redesperto de fragilidade fundamental, que não é senão nossa experiência finita no tempo. Por
um lado, a facticidade deve ser entendida como possuindo um significado de resistência
oferecida a toda e qualquer tentativa de apreender plena ou definitivamente nossa existência.
Por outro, não deve ser concebida apenas como obstáculo, mas como a verdade essencial da
existência na medida em que nela o próprio ser se manifesta através de sua negatividade.
Assim, Heidegger quer destacar a suprema carência dos mortais que apenas podem se preparar
para o dar-se da verdade do ser quando admitem a realidade da própria finitude. O homem se
essencializa como o mortal. Assim se chama porque pode morrer. Poder morrer significa: ser
capaz de morte como morte. Somente o homem morre – e, na verdade, continuamente,
enquanto se demora no mundo. Para Heidegger, a morte, no horizonte humano, não é o que é
dado, é o que a fazer: uma tarefa que temos de nos apoderar decididamente. O homem é a
partir de sua morte, ele faz a sua morte, faz-se mortal e, por conseguinte, confere-se o poder de
fazer e dá ao que faz seu sentido e sua verdade. A decisão de ser sem ser é essa possibilidade
da morte. Heidegger afirma:
Os mortais são os homens. São assim chamados porque podem morrer. Morrer
significa: saber a morte, como morte. Somente o homem morre. O animal finda.
Pois não tem a morte nem diante de si, nem atrás de si. A morte é o escrínio do
Nada, do que nunca, em nível algum, é algo que simplesmente é e está sendo. Ao
contrário, o Nada está vigindo e em vigor, como o próprio ser. Escrínio do Nada, a
morte é o resguardo do ser. Chamamos aqui de mortais os mortais – não por
chegarem ao fim e finarem sua vida na terra, mas porque eles sabem a morte, como
morte. Os homens são mortais antes de findar sua vida. Os mortais são mortais, por
serem e vingarem, no resguardo do ser. São a referência vigente ao ser, como ser.
62
Nossa ontologia não é a da eternidade, mas a do tempo. Não é a perpetuação do
mesmo que é a medida da perfeição, mas justamente o contrário. Para Heidegger,
abandonados ao devir soberano e a ele condenados, após havermos abolido o ser
transcendente, somos agora obrigados a procurar o essencial naquilo que é transitório. Contra
os ideais metafísicos da eternidade e da necessidade, trata-se agora de conceder ao ser a
possibilidade de voltar-se sobre si mesmo. Mas tudo isso não significa que Heidegger deseje
simplesmente anunciar o fim da filosofia. Na verdade, ele busca fundá-la sobre novas
possibilidades, fazendo uma crítica profunda da própria humanidade e dos valores pelos quais
62
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 156
esta é, consciente ou inconscientemente, governada. Nesse sentido, sua tarefa não visa
destruir, mas salvar a metafísica em sua essência; uma destruição [Destruktion] da tradição
para recuperar aquilo que nela se embotou ou enrijeceu. Para Heidegger, a destruição da
metafísica não significa sua pura ultrapassagem, como se ela não tivesse mais nada a dizer ao
ser pensante, mas desconstrucão resoluta de suas camadas sobrepostas para se retornar às
experiências originárias do pensamento.
Assim, deve estar claro que esta destruição dos conceitos da ontologia tradicional
não pode ser entendida unicamente em seu momento negativo, mas deve ser compreendida
também no sentido amplo como caminho para reformulação de uma ontologia em bases
diferentes daquelas da tradição. Destruir significa, de fato, reconstruir, visto que se trata de
reencontrar um solo de origem; recuperar as experiências do ser que estão na origem da
metafísica. Recuperar estas experiências significa, antes de qualquer coisa, começar a
compreender a filosofia como uma auto-interpretação através da qual eliminamos aquilo que
se denomina Selbstverhülltheit, a tendência do Dasein se ocultar da luz que pode derramar
sobre si próprio. Logo, a posição filosófica de Heidegger está para além do intelectualismo e
restabelece o primado da ontologia. Igualmente importante é o fato desta reflexão vislumbrar
a identificação da compreensão do ser com a plenitude da existência concreta; de fato, para
Heidegger, a filosofia não pode mais se deixar levar por engenhosas concepções de mundo
que a desligam da vida em si mesma. Sua autêntica ontologia coincide, assim, com a
facticidade da existência temporal do Dasein. Compreender o ser enquanto ser é existir. Neste
sentido, Lévinas corrobora:
Esta possibilidade de conceber a contingência e a facticidade, não como fatos
oferecidos à intelecção, mas como ato da intelecção esta possibilidade de
mostrar, na brutalidade do fato e dos conteúdos dados, a transitividade do
compreender e uma “intenção significante” – possibilidade descoberta por Husserl,
mas por Heidegger ligada à intelecção do ser em geral constitui a grande
novidade da ontologia contemporânea. A partir daí, a compreensão não supõe
apenas uma atitude teorética, mas todo o comportamento humano. O homem
inteiro é ontologia. (...) Nossa civilização inteira decorre desta compreensão
mesmo que esta seja esquecimento do ser.
63
1.5 – Um novo início para o pensamento
Para Heidegger, o pensamento pode até envolver a própria realidade por meio de
conceitos, mas sabe que não pode chegar progressivamente à síntese. Segundo ele, a verdade
do ser acontece como algo não disponível, como evento único e extraordinário; e o
conhecimento não pode visar a inserção do homem no todo cósmico, voltando a fazer do ser
63
LÉVINAS; Entre nós: ensaios sobre a alteridade, pp. 22-24
um ente representável. O conhecimento humano reclama uma explicação, longe de se elevar
acima do ser, ele [o conhecimento] tomba abaixo dele. A vontade humana de explicar não
penetra de forma alguma no Simples da simplicidade do jogo do mundo
64
. E o mais simples, a
ponto de não ser encarado como tal, é o fato que todas as coisas são; a simplicidade do simples
pode ser reconhecida quando este se torna o mais insondável. Não podemos nos esquecer
que o insondável que aqui se encontra em questão se identifica com a totalidade mesma do
real. Deste modo, a existência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado e o que não pode ser
pensado: o ser de tudo é neste sentido a mais enigmática de todas as coisas. Tudo isso é
extraordinariamente traduzido por Coleridge:
Alguma vez ergueste tua consciência para a consideração da EXISTÊNCIA, em si
mesma e por si mesma, como o mero ato de existir? Alguma vez disseste para ti
mesmo, pensativamente, ISSO É! Sem levar em conta nesse momento se o que está
diante de ti é um homem, ou uma flor, ou um grão de areia? Sem referência, em
resumo, a este ou aquele modo ou forma particular de existir? Se porventura
alcançaste isso, então terás sentido a presença de um mistério, o qual deve ter
prendido teu espírito em reverência e assombro. As próprias palavras, Não há nada!
ou Era uma vez, quando não havia nada!, são contraditórias. aquilo que, dentro
de nós, repele a proposição com uma luz tão forte instantânea como se
testemunhasse contra o fato no direito que lhe confere sua própria eternidade.
65
Heidegger afirma uma mesmidade do ser e do pensamento, apenas enquanto o
pensamento é logos, recolhimento do próprio ser. O pensamento deve ser reenviado ao seu
lugar mais próprio, e, no entanto, ainda inexplorado; deve regressar para onde de certa
maneira sempre esteve. O pensar encontra sempre de antemão sua destinação (sua
dissimulação também) nesta exigência de permanecer atento ao esquecimento, fiel ao
impensado, voltado para a apreensão do que permanece velado. “Pois o pensar traz à
linguagem, em seu dizer, apenas a palavra pronunciada do ser. O pensar é, em sua essência,
enquanto pensar do ser, por este requisitado”
66
. O pensar não é apenas une aventure, enquanto
procurar e perguntar para além, para o desconhecido; este está referido ao ser como o que está
em advento. O pensar enquanto pensar no advento do ser está ligado ao ser como advento.
Deste modo, Heidegger indica a não reversibilidade especular ou especulativa do ser e do
pensamento. Este não é um desenvolvimento interior de idéias, uma reflexão (mas o que se
passa então com a reflexão?), mas palavra em resposta ao evento do ser. Não é o homem que
pensa, é o ser que o faz pensar. O logos humano apenas responde ao logos do ser.
pensamento relação e resposta ao apelo do desvelamento porque o ser se retira. Somos
conduzidos pelo próprio movimento de sua recusa. “O que se retira perante nós atrai-nos
64
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, pp. 205-226
65
COLERIDGE, The Friend, II, xi apud Steiner, George; As idéias de Heidegger, pp. 131-132
66
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, pp. 173-174
precisamente pelo mesmo movimento na sua direção”
67
. O pensamento, então, testemunha
aquele que se dissimula em favor dos entes. Toda organização abstrata de idéias é sempre um
movimento posterior que sempre supõe uma apreensão mais original, que nasce e renasce do
próprio acontecimento do ser. Com efeito, o pensamento possui grande poder, mas esse não
lhe é próprio, como desejava o idealismo. O poder do pensamento vem do fato dele ser
interpelado pelo seu outro, o ser.
Assim, a reflexão heideggeriana acarreta o deslocamento do homem para uma
experiência profunda do limite que o permite pensar. “Pensar é sempre pensar no limite. O
limite da compreensão define o pensar. Como tal, pensar é sempre pensar sobre o
incompreensível sobre este incompreensível que ‘pertence’ a toda a compreensão, enquanto
o seu próprio limite”
68
. Mas é indispensável acrescentar que o ser não esta para fazer
capitular o pensamento, mas para deixá-lo aparecer segundo uma outra medida diferente
daquela da representação. Para Heidegger, o pensamento como memória do ser deve antes se
estabelecer como um ato de ação de graças e assentimento. Denken é Danken. “Desse
agradecimento que não apenas agradece por algo, mas que agradece poder agradecer. Com esta
essência do pensamento teríamos encontrado o que procuramos”
69
. O pensamento se mostra,
assim, como um terreno a partir do qual brota a liberdade do louvor e do deslumbramento.
Fundamentalmente, é um ato de gratidão afetuoso pelo que é e não mais uma tentativa de
compreensão objetivante que, de fato, acaba sempre por extinguir do ser toda sua estranheza.
exatamente por se movimentar no domínio deste novo ponto de vista que o pensamento
heideggeriano pode avançar para um diálogo com a poesia).
Heidegger sabe que o “algo existe”, dado na experiência original do perguntar, não
pode ser apreendido por nenhum “sistema conceitual”, nem expresso na linguagem “teórica”,
isto é, na linguagem que generaliza e objetifica
70
. Com efeito, o filósofo nos ensina que a
maneira mais própria de dizer a diferença ontológica é guardando silêncio diante dela.
Heidegger chega mesmo a afirmar que a linguagem que responde ao apelo do ser é esparsa e
entremeada com silêncio; de fato, para o filósofo, a aproximação do homem para junto do ser
se quando este aprende a viver no inominável. Para Heidegger, o homem ao se deixar
abordar pelo ser, deve correr o risco de ter muito pouco ou mesmo nada a dizer. Não é
despropositado afirmarmos haver na reflexão heideggeriana uma sugestão para que o
pensamento se coloque a serviço do silêncio, do calar-se. Neste sentido, apenas o pensamento
obediente ao silêncio pode acolher a iluminação (e a obscuridade) da realidade. Fazer silêncio
67
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 116
68
NANCY, Jean-Luc; Experience of freedom, p. 20
69
HEIDEGGER; Serenidade, p. 63
70
HEIDEGGER; Zur Bestimmung der Philosophie, pp. 110-111, 116
é responder ao silêncio do próprio ser; diante do mistério que coroa tudo só nos resta o silêncio
reverencial.
O silenciar-se [Erschweigung] é a “lógica” da filosofia, na medida em que esta
coloca, a partir do outro início, a pergunta fundamental. Ela busca a verdade da
Wesung do ser, e esta verdade é o velamento (o mistério), que acena e ressoa
[winkend- anklingende], do Ereignis (a hesitante refutação).
71
Pensar é também se calar. “Numa verdadeira aula de Filosofia, não importa realmente
o que é dito de uma forma imediata, mas sim o que é calado neste dizer”
72
. O silêncio é a única
verdadeira comunicação, é a linguagem autêntica para o dizer pensante da filosofia. Uma
coisa, lembra Heidegger, é “relatar algo sobre os entes”, uma outra coisa totalmente diferente é
“captar o ser dos entes”. E ele acrescenta: “para esta última tarefa não mais comumente
faltam as palavras, como antes de tudo a ‘gramática’”
73
. O fato de pensar pode ser
perturbador: aquilo que existe para ser pensado é, no pensamento, o que dele se afasta, e nele
se exaure inesgotavelmente. Quanto maior a urgência com que buscamos o ser, mais ele se
retrai. O filósofo é aquele que se aflito pelo desejo de alcançar um saber (do ser) que lhe
escapa, mas que tanto ama. Para Heidegger, a linguagem deve remontar à verdade do ser, mas
em silêncio, posto que tal verdade, sigética, é silenciosa e silenciada. Por conseguinte, é
tempo de nos desacostumarmos de supervalorizar a filosofia e de, por isso, lhe vir com
exigências demasiadas.
O pensamento futuro não é mais Filosofia, porque pensa mais originariamente que a
“Metafísica”, nome que diz o mesmo. O pensar futuro também não pode mais,
como exigia Hegel, deixar de lado o nome do “amor pela sabedoria” e nem ter-se
tornado a própria sabedoria na forma do saber absoluto. O pensar está na descida
para a pobreza de sua essência precursora.
74
reconhecemos que na filosofia heideggeriana subsiste uma hostilidade amorosa
com a linguagem. Esta ambiciona cruzar as fronteiras da linguagem de forma a ser realmente a
primeira a irromper no mar silente da verdade do ser; de fato, na história da filosofia ocidental,
é Heidegger quem realiza a mais radical subversão da linguagem na iminência do silêncio.
Todavia, pensamos que o filósofo não carrega a intenção de renunciar ao discurso, visto que o
seu desejo é o de afirmar a linguagem como abertura para o próprio ser. Para isso, entende que
é preferível permanecer um pensador e não um stico; a experiência do ser tem de poder ser
enunciada; mais ainda, é na linguagem que se conserva. Heidegger determina que se
experimente a linguagem em modo mais originário, ou seja, que se traga “a linguagem como
71
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 78
72
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 47
73
HEIDEGGER; Sein und Zeit, pp. 129, 165
74
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 175
linguagem para a linguagem” [die Sprache als Sprache zur Sprache bringen]
75
. Trata-se de
reconquistar a força evocativa indestrutível da linguagem e das palavras. A linguagem o
constitui um invólucro em que as palavras estão protegidas para o comércio de quem fala e
escreve. É na palavra, e na linguagem, que as coisas chegam a ser e são. A linguagem alcança
o ser porque é enviada pelo ser. De um lado, o ser se sempre na linguagem; de outro, o
homem fala enquanto responde à linguagem e enquanto fala institui, funda, o ser. Heidegger
observa: “O homem não é apenas um ser vivo; ao lado de outras faculdades, também possui a
linguagem. Ao contrário, a linguagem é a casa do ser; nela morando o homem ec-siste
enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a”
76
.
O filósofo parece saber que o silêncio é marcado pela mesma contradição e pelo
mesmo dilaceramento que a linguagem: se é uma via para abordarmos o inabordável, para
pertencemos ao que não se diz, é legítimo na medida em que torna possível a comunicação
do incomunicável e culmina na linguagem. Calar-se não é uma superioridade. Por isso, não é
casual o fato do pensamento heideggeriano se encontrar muito próximo da poesia; exatamente
ela permite que nosso espanto incomunicável diante do ser desemboque na região da fala. O
que mais caracteriza a poesia é justamente o esforço para incorporar esta verdade silenciosa; a
poesia se funda sobre aquilo que deve fundar, é aquilo que tem lugar no fundo do ser como tal.
A poesia institui o ser, que não é na realidade algo diferente: a poesia é o ser que vem a si na
linguagem. Logo, o pensamento deve andar de mãos entrelaçadas com sua irmã igualmente
nobre: a poesia. Heidegger afirma:
O pensar, porém, é poetar, e não é, na verdade, apenas um modo de poesia, no
sentido da obra poética e do canto. O pensar do ser é um modo originário de poetar.
nele, antes de qualquer outra coisa, a linguagem [Sprache] se torna linguagem
[Sprache], quer dizer, se torna aquilo que é. O pensamento dita a verdade do ser. O
pensar é o dictare originário. O pensar é a arqui-poesia que precede toda a obra
poética e também o poético da arte, na medida em que esta vem a ser dentro do
domínio da linguagem. Todo o poetar, neste sentido mais lato (e também no
sentido estrito do que é relativo à obra poética) é, no seu fundo, um pensar. A
essência poetizante do pensar preserva o campear da verdade do ser.
77
A poesia nunca resulta de uma “produção”, mas provém de um acontecimento: “a
poesia é o acontecimento fundamental do ser enquanto tal”
78
. Tal como a dimensão poética,
que é estruturada em função do ser, também o poeta encontra-se sobretudo sob o imperar do
ser. O ser enquanto tal é disposto para ser dito poeticamente, ou seja, o ser tende a voltar a ser
fala na poesia. “Aquilo que por necessidade de essência tem de ser dito poeticamente reside
75
HEIDEGGER; A caminho da linguagem, p. 192
76
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 149
77
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 380
78
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 241
oculto naquilo que nunca e em lugar algum, em momento algum e de modo algum pode ser
encontrado e achado como um ente real no seio da realidade”
79
. Deste modo, o discurso
poético é condição de possibilidade para uma manifestação do ser que não descaracteriza a sua
mais oculta essência: o mistério. Heidegger observa: “o ser permite que a poesia nasça para
originariamente nela se encontrar e, assim, nela se fechando, abrir-se como mistério”
80
.
Este domínio essencial do diálogo entre a poesia e o pensamento apenas lentamente
poderá ser indagado, atingido e bem pensado. “Quem é que, hoje em dia se atreve a
considerar-se familiarizado com a essência da poesia, bem como com a essência do
pensamento e achar-se ainda suficientemente forte para conduzir ambas as essências à mais
extrema das discórdias, assim estabelecendo a sua concordância?”
81
Que na verdade a poesia
seja também tarefa para o pensamento, eis o que ainda temos de apreender neste instante
confuso e árido do mundo. Neste sentido, releva notar que, para Heidegger, a própria
existência humana tem um traço essencialmente poético. A poesia instaura a existência a partir
de uma atenção àquilo que é o fundamento dessa mesma existência, ou seja, o próprio poético.
A poesia é a revelação, pela linguagem humana outra vez confiada a seu ritmo essencial, do
sentido misterioso da existência. “A poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de
abandoná-la e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o
traz para um habitar”
82
. Só habitamos onde a poesia tem lugar e dá lugar. Isso é muito próximo
das palavras de Hölderlin: poeticamente o homem habita”. Nesse aspecto, é definitivamente
fundamental observarmos que Heidegger nos acena para uma concepção de poesia como
poíesis, o que vai muito mais além da poesia literária. Na realidade, ele pensa o sentido da
poesia como poíesis por sustentar ser ela a potência fundamental do habitar humano. O
poético é realizável na própria vida. Heidegger sentencia:
O poeta, quando é poeta, não descreve o mero aparecer do céu e da terra. Na
fisionomia do céu, o poeta faz apelo àquilo que no desocultamento se deixa mostrar
precisamente como o que se encobre e, na verdade, como o que se encobre. Em
tudo o que aparece e se mostra familiar, o poeta faz apelo ao estranho enquanto
aquilo a que se destina o que é desconhecido de maneira a continuar sendo o que é
– desconhecido.
83
Fica claro que o caminho de pensamento de Heidegger marcha na direção de um
encontro com a poesia; mesmo quando suas formulações abusam dos neologismos, das
redefinições lapidares de termos conhecidos, das torções violentas de sintaxe, elas possuem um
79
HEIDEGGER; lderlins Hymne “Der Ister”, p. 149
80
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 233
81
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 317
82
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 169
83
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 177
inegável teor poético. O filósofo alemão entende que o confronto com a poesia permite ao
pensamento transitar com maior êxito pelas regiões tortuosas e inusitadas do ser. Depois de
Heidegger, ficamos com a certeza de que a filosofia precisa dialogar com a poesia para
preparar um outro início para o pensamento. Este deve se manter numa correlação com o
primeiro e único começo, quando pensamento e poesia se colocavam em estreita proximidade.
Mais do que afirmar o “fundamento” pela poesia, importa deixar o pensamento se afundar
pelos Holzwege, num diálogo poético-pensante de escuta mútua em busca da essência do ser.
Porque o pensamento segue seu caminho na vizinhança da poesia. Por isso, é bom
pensar no vizinho, naquele que habita a mesma proximidade. Ambos, poesia e
pensamento, precisam um do outro ao extremo, precisam de cada um em sua
vizinhança. Qual o campo em que essa vizinhança tem seu âmbito próprio, isso a
poesia e o pensamento terão de definir cada um a seu modo, não obstante ambos se
encontrarem no mesmo âmbito. Como séculos nos alimentamos do preconceito
de que o pensamento é coisa da ratio, ou seja, do cálculo em sentido amplo, falar
sobre a vizinhança de pensamento e poesia parece sempre muito suspeito.
84
Concordamos com Hannah Arendt quando afirma: “a tempestade que perpassa o
pensar de Heidegger como aquela que milênios depois ainda sopra até nós vinda da obra de
Platão não é deste culo. Ela vem de tempos antiqüíssimos e o que nos deixa é o perfeito
que, como tudo o que é perfeito, volta ao antiqüíssimo”
85
. É evidente que Heidegger nunca
quis se afastar do primeiro início (grego) da filosofia, mas, ao contrário, rememorá-lo, ou seja,
se apropriar do que há de digno de ser pensado neste passado, do que nele resta ainda
impensado, e que movimenta ao mesmo tempo a vida do pensamento. Desse modo, o
importante é se deixar reconduzir para as experiências originárias de pensamento, tal como ele
procura reconhecê-las na filosofia grega. Precisamente porque a retração constitui o traço
fundamental do ser, o outro início não pode simplesmente ser considerado como uma
despedida definitiva da metafísica. Ainda quando busca a passagem para um outro pensamento
todas as tentativas de pensamento heideggerianas permanecem em diálogo contínuo com a
metafísica, por detrás da qual elas buscavam remontar. Assim, é preciso renunciar a toda
contraposição em termos puramente sucessivos, como se uma história devesse ser fechada para
sempre para que a outra pudesse ser aberta. Heidegger afirma: “Em todo ter sido oculta-se um
perdurar cujos tesouros freqüentemente permanecem por muito tempo enterrados, riquezas que
no entanto colocam sempre de novo o pensamento diante de uma fonte inexaurível”
86
.
Temos, assim, retratado na obra heideggeriana um pensamento por assim dizer
enfraquecido (se levarmos em consideração o pensar representativo e calculante), mas mais
84
HEIDEGGER; A caminho da linguagem, p. 133
85
ARENDT, Hannah; Homens em tempos sombrios, p. 224
86
HEIDEGGER; O princípio do fundamento, p. 93
profundo, sendo mais tênue, embora redobrado, mais longínquo, mais próximo da lonjura que
ele designa e da qual flui. Com efeito, para Heidegger, se torna importante a compreensão de
que não estamos transitando de uma fase terminal (decadente) para uma ainda a ser
inaugurada. Trata-se, ao invés disso, de afinal reconhecermos que a dinâmica do pensamento
(a sua essência) consiste neste movimento, num confronto inevitável entre uma história que
deve sempre ser reconquistada, história que mesmo estando no fim nunca termina
propriamente, e o outro início que, por sua própria definição, não pode ser senão em relação ao
que já ocorreu.
O outro início do pensamento é assim chamado não porque uma forma diferente
de todas as filosofias precedentes, mas porque ele deve ser o único outro a partir da
referência com o único primeiro início. Deste recíproco referir-se de um ao outro
início se encontra determinado o tipo de meditação pensante na passagem. O
pensamento da passagem executa o projeto fundante da verdade do ser como
meditação histórica. A história não é aqui o objeto ou o âmbito de uma
consideração, mas aquilo que o questionar pensante suscita e alcança enquanto lugar
das suas decisões. O pensamento na passagem coloca em diálogo o primeiro
passado [Gewesene] do ser da verdade e o extremo futuro da verdade do ser e neste
diálogo a palavra à essência do ser até agora não questionada. No saber do
pensamento da passagem o primeiro início permanece decisivo como primeiro e é
contudo superado [überwunden] como início. Para este pensamento, o mais claro
respeito diante do primeiro início – respeito que o revela na sua unicidade – deve ser
acompanhado pela falta de timidez no destaque de um outro questionar e dizer.
87
87
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), pp. 5-6
CAPÍTULO 2: A QUESTÃO DA TÉCNICA
2.1 – A técnica e a metafísica
Afirmamos que em Heidegger a questão profunda e abstrata sobre o sentido do ser e
as questões da hora presente convergem espontaneamente. Para ele, ao pensarmos o ser
podemos imediatamente falar de tudo, justamente porque o ser é poder e direito de falar de
tudo, de tudo falar. Na verdade, para Heidegger, a questão do esquecimento do ser é a própria
essência da metafísica; e esta, por sua vez, movimenta todas as esferas e comportamentos
típicos do Ocidente. Marlène Zarader confirma:
A filosofia é a área que coloca explicitamente a questão do ser do sendo (tal como é
inaugurada com Platão); a metafísica é o conjunto das áreas que a filosofia
aparentemente desconhece, mas que é secretamente regida pela questão que a
filosofia colocou claramente. Nesse sentido, os sindicatos são metafísicos, tal como
a informática e o resto, vêm da questão do ser na medida exata onde são levados,
nem que fosse sem saber, por uma certa compreensão (grega no seu princípio) do
ser do sendo. (...) A metafísica quanto a si, é aquilo que junta toda a história do
Ocidente. Pedaços inteiros podem não reconhecer qualquer elo com os Gregos: não
deixam no entanto de provir daquilo que foi inicialmente estabelecido pelos Gregos,
a saber: uma certa questão (a do ser), tal como uma primeira compreensão da
mesma, que permanecerá posteriormente diretriz (ser como presença constante).
88
Acreditamos que a reflexão de Heidegger sobre a técnica é a parte privilegiada de
sua obra onde tudo é sintetizado, onde tudo é reunido. Para ele, com a técnica podemos
alcançar três significados inter-relacionados: tecnologia, primeiramente, identifica-se com os
instrumentos, as técnicas, sistemas e processos de produção da moderna indústria capitalista.
Depois, a visão de mundo marcada pela racionalidade subjetiva-instrumental, pelo
cientificismo, pelo desencantamento do mundo, pelo utilitarismo, pelo antropocentrismo e
pela crença no progresso. Podemos associar todo esse processo com a ‘modernidade’. E, por
último, a técnica representaria nosso modo atual de compreender e de revelar o ser dos entes.
A técnica seria, então, uma atitude de desocultamento e manifestação do próprio ser,
expressando-se como uma condição ontológica extremamente poderosa. Para Heidegger, esse
terceiro significado da técnica moderna é o mais importante. Podemos até nos perguntar se
88
ZARADER, MARLÈNE; A dívida impensada, pp. 239-240
deste modo Heidegger não compreendeu melhor a essência da técnica do que os porta-vozes
do progresso.
Pensar a técnica é indagar de onde provém sua hegemonia e valorização, de onde vem
seu imperialismo planetário. Significa procurar onde se origina sua força estranha, fascinante e
perturbadora aos olhos da humanidade. Primeiramente, a técnica planetária apresenta-se como
matéria fundamental porque torna totalmente explícita a essência da metafísica. São os mais
altos princípios metafísicos de épocas anteriores que a técnica reúne em sua essência e leva à
perfeição. Todavia, precisa Heidegger, a metafísica não é a causa da técnica, nem sua
prefiguração profética. A metafísica não produz a técnica, mas a torna possível. Em nosso
tempo não temos o início de nada fundamentalmente novo, mas um desenvolvimento sem
limites de possibilidades que estavam situadas na metafísica desde sua aurora na Grécia.
Com efeito, a técnica moderna é algo essencialmente distinto do que existiu antes, mas essa
distinção “possui sua origem essencial no começo grego do Ocidente”
89
. Seguindo ainda o
pensamento heideggeriano mesmo sabendo que corremos o risco de aprisioná-lo dentro de
uma forte estrutura teleológica podemos afirmar que os grandes pensadores, a começar pelos
gregos, preparam (anunciam?, antecipam?) a técnica. As várias etapas da história da
metafísica podem ser entendidas positivamente como modificações sucessivas do sentido
inicial, na unidade de um único envio, cujo nome a expressão destino do ser procura
designar”
90
.
Quando o homem técnico acha que está a desmistificar a metafísica, está de fato a ser
desmistificado por ela. No momento em que pensa abolir a metafísica, a metafísica está em
toda parte; aquilo a que chamamos tecnologia, automação, informática, burocratização não é
senão a metafísica que reaparece, como a cabeça da Hidra, no preciso lugar em que
supostamente teria sido suprimida. Jean Greisch afirma: “A metafísica seria um simples
sistema de representações, se não fosse capaz de manifestar-se em outro lugar do que no
discurso da metafísica. (...) Em áreas que aparentemente estão totalmente isentas de qualquer
‘pressuposto metafísico’, a economia do dispositivo metafísico estende os seus efeitos”
91
.
Deste modo, a técnica é procedente do pensamento representativo essencial à metafísica; nela
se traduz o constante desígnio de tornar tudo susceptível de ser representado, presente, e, desse
modo, controlável. Portanto, observamos o mesmo movimento da consciência que contempla o
real acreditando nele se encontrar integralmente refletida. Mas um reflexo não é uma
identificação; dque a simples correspondência com o real não apazigue o espírito, mas, pelo
contrário, o inquiete. Este pode encontrar o seu equilíbrio através do domínio daquilo que é
89
HEIDEGGER; Correspondência com Jaspers, p. 150
90
HEIDEGGER; Seminari, pp. 105-106
91
GREISCH, Jean; La Parole heureuse. Heidegger entre lês choses et lês mots, p. 214.
diverso dele mesmo. Desvendamos, assim, a ação essencialmente negativa de todo o
pensamento metafísico e da técnica moderna em particular.
No mundo contemporâneo, a técnica é assimilada culturalmente em ampla escala. O
homem, com seu coração de aço, vive em estreita relação com os meios técnicos. Para
Heidegger, o mais importante é não deixarmos de perceber que a técnica é ainda um
acontecimento de desvelamento ontológico [a-lethéia]. Com a técnica, a metafísica passa ao
plano de efetiva realização [Vollendung], paralelamente ao seu mais agudo momento de recusa
do ser. Assim, o reino da técnica não é, para Heidegger, uma manifestação sem propósito da
história ocidental, uma vez que se enraíza naquilo que a fundamenta e que não pertence à
ordem técnica: o esquecimento do ser. Sabemos que Heidegger nesse esquecimento ainda
uma forma do homem se relacionar com o próprio ser: mesmo quando domina a natureza
submetendo tudo à empresa de seus cálculos, o homem está realizando sua vocação ontológica.
A técnica é, em sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser,
que reside no esquecimento. A técnica não remonta, na verdade, apenas com seu
nome, até a tékhne dos gregos, mas ela se origina ontológico-historialmente da
tékhne como um modo do aletheúein, isto é, do tornar manifesto o ente. Enquanto
uma forma da verdade, a técnica se funda na história da Metafísica. Esta é uma fase
privilegiada da história do ser e a única da qual, até agora, podemos ter uma visão
de conjunto.
92
A técnica torna-se antes o sinal, que vem de longe e que permanece ainda
incompreendido, de que a metafísica começa a entrar na parte decisiva de sua história.
Fundamentalmente, a cnica enquanto o predomínio característico do ente frente ao ser
propicia a sua dominação e determina até mesmo a essência de todo domínio; esta comanda
um modo único de revelação do ser de todo ente: tudo, em toda parte, é revelado como
disponibilidade [Bestand]. A característica fundamental da técnica não é simplesmente o fato
de revelar o mundo de uma maneira específica, mas de usurpar todos os outros modos de
revelar. Em todo o lugar vemos o mesmo lúgubre delírio tecnológico. O mais remoto rincão do
planeta está sob o poder da técnica e posto à disposição para a exploração econômica.
Heidegger aponta para a transformação da terra numa gigantesca organização tecnológica. A
maior ameaça da técnica é assim a supremacia do pensamento calculante como um
pensamento irrevogável, desligado de toda a Stimmung e, logo, desligado do ser. Heidegger diz
à Spiegel: “o que mais inquieta, no mundo da técnica, é que tudo funciona e que o
funcionamento arrasta sempre um novo funcionamento, sem que mais nada venha quebrar o
92
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 163
jogo deste funcionamento e fazer com que se interrogue o ser da técnica”
93
. Confiamos que
não há problema que não se possa resolver. Convivemos com o sentimento de suprema
segurança no mundo técnico, pois confiamos que temos o real destituído de todo o seu mistério
em nossas mãos. Na verdade, tudo isso não deixa de apontar para a própria indigência de nosso
tempo. Heidegger assinala:
O tempo permanece indigente, não apenas porque Deus está morto, mas também
porque os mortais não conhecem nem dominam a sua própria mortalidade. Os
mortais ainda não estão em posse de sua essência. A morte retira-se para o
enigmático. O segredo da dor permanece velado. O amor não se aprendeu. (...) O
tempo é indigente porque lhe falta o não-estar-encoberto da essência da dor, da
morte, e do amor. A própria indigência é indigente porque se esconde o domínio
essencial no qual a dor, a morte e o amor pertencem uns aos outros. o estar-
encoberto na medida em que o domínio da sua mútua pertença é o abismo do ser.
94
Perdemos a morte. Esquecemos que somos mortais. Heidegger ensina: “a imposição
da objetivação técnica é a permanente negação da morte. Através desta negação, a própria
morte torna-se algo negativo, algo pura e simplesmente não-permanente e nulo”.
95
Respondendo ao apelo da técnica que o incita a abordar o ente como disponibilidade, o homem
se determina como vontade de impor a si mesmo em tudo e contra tudo. A própria técnica
funda de antemão em seu avanço todas as capacidades de intervenção do homem. “O homem
se apresenta como o senhor da terra. Assim se multiplica a aparência de que tudo o que nos
vem de encontro existe à medida que é um feito do homem. Essa aparência alimenta, por
seu turno, uma última ilusão: não importa aonde vá, o homem não encontra nada senão ele
mesmo”
96
. A ilusão de ser o homem o senhor absoluto da terra faz com que por todos os
caminhos onde perambule, não se depare senão consigo mesmo, não permaneça ocupado a não
ser com sua própria segurança. O homem procura esta segurança e esta bem-aventurada
permanência junto aos entes esquecendo-se cada vez mais do ser. Acreditamos que o
pensamento de Heidegger acolhe em seu interior a “probabilidade de que, ao olharmos bem
para o alto, para os céus, ou bem para o fundo da natureza, as únicas impressões que
recebamos sejam aquelas feitas pelas nossas mãos”
97
. Para Heidegger, o homem está tão
decididamente empenhado na busca do que a técnica provoca e explora que não a toma
como um apelo do ser. Justifica-se, agora, a seguinte referência à meditação sobre o “fim da
93
HEIDEGGER; Only a God Can Save Us: The Spiegel Interview (1966). Trad. William Richardson. In
Heidegger: The Man and the Thinker, ed. T. Sheehan, pp. 45-67
94
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 315-316
95
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 348
96
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 29
97
THIELE, Leslie Paul; Martin Heidegger e a política pós-moderna, p. 265
natureza”, onde McKibben expõe um lamento que está bem próximo ao pensamento
heideggeriano.
Como poderá existir uma mística da chuva, agora que toda a gota [ácida] – mesmo
as gotas que caem sob a forma de chuva no Ártico transporta o selo permanente
do homem? Ao perder a sua diferenciação, o seu caráter marginal, perde agora o
seu poder especial. Ao invés de ser uma categoria como Deus algo para além do
nosso controle ela é agora uma categoria como o orçamento para a defesa ou
como o salário mínimo, um problema para o qual deveremos encontrar solução.
(...) Qual será o significado de nos depararmos com um coelho nos bosques, uma
vez que “coelhos” construídos estão espalhados por toda a parte? Porque
deveríamos ter mais respeito ou afeto por um tal coelho do que teríamos por uma
garrafa de Coca-Cola? Um dia, o homem iestar em condições de inventar um
método para conquistar as estrelas mas, pelo menos agora, quando olhamos para o
céu noturno, é como Burroughs disse: “não nos vemos ali refletidos – somos
arrebatados para fora de nós próprios e impressionados pela nossa própria
insignificância”.
98
É impossível não lembrarmos do lamento profético de Nietzsche: “nós estamos
fatigados do homem”
99
. Para Nietzsche, a visão do homem agora cansa e isto significa a
potencialização do niilismo. Com efeito, tudo se torna igual e não diferenciado como
conseqüência desta vontade humana absorta em relação à disponibilidade calculada de toda a
Terra. Por sua vez, Heidegger afirma que com a técnica o aberto do ser transforma-se num
deserto onde tudo se torna vigiado, controlável, conectado e explicado. Reforçando este
anúncio heideggeriano, Leslie Thiele assegura:
A tecnologia invade o céu. Este não é revelado como aquilo que se encontra para
além de nós, digno de ser contemplado pela sua diferença. O céu deixou de ser o
outro. Tornou-se uma parte integrante da reserva. Por conseguinte, deixou de ser
percebido. Pelo contrário, ele passa a ser usado. Torna-se numa esponja para
embeber nossos lixos gasosos. Transformou-se num porto para milhares de satélites
que permitem a transmissão de informações. Tornou-se um objeto de militarização
crescente. O céu torna-se um receptáculo para nuvens que poderão ser “plantadas”
para extorquir precipitação. Durante milênios, o céu encontrava-se para além do
alcance humano. Hoje, esta distância desapareceu.
100
Heidegger insiste que nossa penetração tecnológica de tendência planetária denota a
alucinação de nossa onipresença. Não obstante, com o auxílio da técnica efetivamente o
domínio sobre o ente, mas seguramente não o domínio sobre o ser; de fato, Heidegger garante
que a supremacia do homem planetário da técnica é realmente ilusória. Este homem nunca
pode encontrar-se, apenas, consigo mesmo
101
; de fato, o Dasein habita, necessariamente, um
“aí”, existindo fora de si no mundo.
98
McKIBBEN; The end of nature, p. 210-217
99
NIETZSCHE; Frederich; Obras incompletas, p. 303
100
THIELE, Leslie Paul; Martin Heidegger e a política pós-moderna, p. 263
101
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 30
Somente enquanto se manifesta a clareira do ser, este se transpropria ao homem.
Mas o fato de o aí, a clareira enquanto a verdade do próprio ser, acontecer e
manifestar-se, é a destinação do próprio ser. (...) O ser se manifesta ao homem no
projeto ec-stático. Mas este projeto o instaura o ser. E, além disso, o projeto é
essencialmente um projeto jogado. Aquele que joga no projetar não é o homem,
mas o próprio ser que destina o homem para a ec-existência do ser-aí como sua
essência. Este destino acontece como a clareira do ser, forma sob a qual o destino
é. Ela garante a proximidade ao ser. Nesta proximidade, na clareira do “aí”, mora o
homem como o ec-sistente, sem que hoje seja capaz de experimentar
propriamente este morar e assumi-lo.
102
A metafísica, sobretudo com o domínio da técnica, se esquece que o homem sempre
vindo de nenhum lugar, sempre vindo do exterior, representa aquele que é como que ‘por
definição’ o peregrino. Este peregrino está longe de possuir o segredo de sua própria essência,
talvez jamais o alcance. A metafísica se esquece que é sempre sobre um fundo começado
que o homem pode compreender aquilo que, para ele, vale como origem. À metafísica não
interessa o seguinte fato: o homem é apartado da origem que o tornaria contemporâneo de sua
própria existência; dentre todas as coisas que nascem no tempo, e morrem, sem dúvida, ele
está separado de toda origem. Portanto, para Heidegger, a metafísica e a técnica se
esquecem principalmente da pobreza do homem: sua impotência em se conservar e em se dar o
ser. Agudamente consciente da fragilidade e da descontinuidade do Dasein em sua existência
no mundo, Heidegger alerta que não podemos estabelecer o poder da técnica como sublimação
que pode conduzi-lo a uma estruturação equilibrada de seus múltiplos velamentos e
potencialidades. Não esqueçamos que o que caracteriza o homem é o fato de ser lançado no
tempo, no mundo, sobre uma terra na qual lhe acompanha necessariamente a facticidade, em
uma época incontornável do envio histórico do ser: relação com o ser que ele não pode possuir,
mas apenas desenvolver no movimento ex-tático de sua existência.
A técnica invoca o ser e lhe fala como àquele que ela pode atingir e reduzir a seu bel-
prazer, pensando que pode seguramente conhecer todo seu sublime mistério. O homem, como
funcionário da técnica, procura trazer para diante dele o aberto como objeto. Contudo, uma vez
que ele sempre já está lançado no aberto, o ser jamais será o Outro objetivo dele mesmo. Em
suma, à medida que construímos o mundo tecnicamente como disponibilidade [Bestand], nos
deparamos com o perigo de que o próprio homem feche o caminho para o aberto. O que
Heidegger sustenta como o aberto é antes o enigmático, o que prossegue como abismo que
determina nosso pensamento.
O homem da técnica se torna incapaz de guardar o silêncio que está no fundo das
coisas. Na realidade, preferimos acreditar na pressuposição de que a cnica é o meio mais
fácil e seguro para compreendermos possessivamente o que é o ser. Deste modo, a técnica se
102
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 161
define como esta restrição que torce, tranca a nossa relação com o aberto e transforma essa
mesma relação em algo de torcido. Entretanto, o que se dissimula atrás da técnica é ainda o ser
que se sempre como dádiva. Quando o ser se revela ao homem como o que está
absolutamente fora e acima dele, não porque seria o mais poderoso, mas porque, aí, cessa seu
poder, temos a clareira [Lichtung]. A clareira é aquilo que se entrega radicalmente ao poder do
homem e aquilo que ao mesmo tempo o recusa continuamente, transformando seu maior poder
em impossibilidade. Por um lado, diante de sua luz escura sempre esquecida pela metafísica
o homem não pode mais poder. Por outro, é precisamente a clareira que de algum modo o
provoca a irromper no não trilhado, a aventurar-se no impossível e a esperar o que ainda não se
faz presente. Assim, nosso fascínio e idolatria diante da frenética dinâmica do mundo técnico
são “apenas a conseqüência desta humanidade que aparentemente domina e que precisa porém
reconhecer o que nunca pode conhecer”
103
.
O perigo da técnica pode ser enfrentado quando o homem calculador se colocar
sereno diante do mistério que o faz Dasein. Para Heidegger, devemos ainda esperar que a
própria técnica perceba sua fraqueza diante da ‘presença imediata’ do ser: o ser (o imediato) é
a presença da qual não se pode estar presente, mas da qual não se pode afastar-se, ou ainda
aquilo que escapa, porque dele não se deve fugir, o inapreensível do qual não se abre mão.
Deste modo, quando acredita ter a plenitude da realidade ontológica, talvez a técnica não faça
mais do que comprovar a espessura projetada atrás dela pelo abismo do ser. Nesse sentido, a
técnica testemunho do próprio ser que pretende negar. O homem está condenado a oscilar
perpetuamente entre a ilusão do seu poder e o saber trágico de sua impotência. Na verdade,
Heidegger deseja tornar essa impotência se não feliz, pelo menos lúcida, aceitável e serena.
Esta determinação ontológico-histórica da técnica como um momento do ser escapa
parcialmente ao homem atual. Este se torna incapaz de perceber esta historicidade oculta do
próprio ser: assistimos sua incapacidade de se abrir a essa historicidade mais fundamental.
Diante de tudo isso é a própria essência do homem que se encontra em perigo, ou melhor, sua
correspondência histórica ao próprio ser, que é questão oferecida para ele mesmo, a questão de
sua essência própria. Um homem perfeitamente adaptado ao mundo técnico não seria mais um
homem, porque o ser não seria para ele digno de questão. A época da técnica é um momento
sem questionamento, espaço sem-questão onde ocorre a falsa evidência de uma funcionalidade
perfeita que reduz progressivamente o nível de nosso relacionamento com o próprio ser. O
problema é que as possibilidades de fugir a este turbilhão catastrófico da técnica afiguram-se
cada vez mais escassas. Em 1954, Heidegger observa:
103
HEIDEGGER; Nietzsche: niilismo e metafísica, p. 110
Porém, entretanto não sabemos por quanto tempo -, o Homem encontra-se sobre
esta terra numa situação perigosa. Porquê? Apenas porque, inesperadamente,
poderá rebentar uma terceira guerra mundial que teria como conseqüência o total
aniquilamento da humanidade e a destruição da terra? Não. Um outro perigo muito
maior ameaça a era atômica que se inicia precisamente quando o perigo de uma
terceira guerra mundial está afastado. Uma estranha afirmação. Estranha, sim, mas
apenas enquanto não refletimos. Em que medida é válida a frase que se acabou de
proferir? É válida na medida em que a revolução da técnica que se está a processar
na era atômica poderia prender, enfeitiçar, ofuscar e deslumbrar o Homem de tal
modo que, um dia, o pensamento que calcula viesse a ser o único pensamento
admitido e exercido.
104
2.2 – A essência da técnica: o Gestell.
Gestell é o conceito utilizado por Heidegger para se referir à essência da técnica. Ele
emprega esta palavra (que em alemão significa armação, estante, etc.) proveniente do verbo
stellen, que tem o sentido de pôr, fixar, regular, provocar, etc., para definir aquele âmbito que
desafia o homem a desencobrir o real como disponibilidade. Gestell denomina, portanto, o tipo
de desencobrimento que rege a técnica moderna. Não iremos nos arriscar numa possível
tradução para este termo devido à pluralidade de significados que Heidegger nele imprime.
105
Fundamentalmente, o Gestell desafia e provoca o homem para desvelar o real enquanto
disponibilidade [Bestand], recurso ou reserva (disponível). Passamos, então, a considerar a
totalidade da natureza como um dispositivo de reservas de energias indefinidamente
exploráveis e transformáveis. Na agitação da técnica temos o consumo esgotante dos entes. A
terra e a atmosfera tornam-se matérias-primas. O próprio homem não escapa de também ser
visto como poder humano explorável. “O homem também se acha incluído neste processo, não
podendo mais esconder o seu caráter de matéria-prima mais importante. O homem é a
‘matéria-prima mais importante’ porque permanece o sujeito de todo e qualquer uso e
abuso”
106
. Heidegger ainda afirma:
O homem es prestes a precipitar-se sobre a terra no seu todo e sobre sua
atmosfera, a usurpar, sob a forma de forças, o campear escondido da Natureza e a
sujeitar o curso da história aos planos e à ordenação de um governo da terra. O
mesmo homem em rebelião é incapaz de dizer, simplesmente, o que é, incapaz de
dizer o que é isso que uma coisa é. O ente no seu todo é o objeto de uma única
vontade de conquista. O que de simples no ser está soterrado num único
esquecimento.
107
104
HEIDEGGER; Serenidade, pp. 25-26
105
Contudo, não faz mal fazermos aqui referência à tradução feita por Ernildo Stein do conceito Gestell:
arrazoamento. Já Emmanuel Carneiro Leão prefere traduzir como composição.
106
HEIDEGGER; Ensaios e Conferências, p. 80
107
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 439
A natureza torna-se agora um gigantesco posto de abastecimento, a fonte de energia
para a tecnologia e a indústria modernas. Para Heidegger, no Gestell o sentido das coisas passa
a derivar de seu lugar em um sistema tecnológico. Em seu irresistível movimento apreendemos
alguns processos: a natureza sendo vista como disponibilidade [Bestand], fundo de reserva,
matéria-prima para a produção; o ímpeto de tornar disponível todo ente para o consumo; a
potencialização do niilismo. Mas, para Heidegger, tais acontecimentos ainda expressam a
história, o envio, o destino do ser. Nesse sentido, o Gestell não é simplesmente uma coerção
exterior, ele é um dos modos historiais de revelação do próprio ser.
A essência da técnica põe o homem a caminho do desencobrimento que sempre
conduz o real, de maneira mais ao menos perceptível, à disponibilidade. Pôr a
caminho significa: destinar. Por isso, denominamos de destino a força de reunião
encaminhadora, que põe o homem a caminho de um desencobrimento. É pelo
destino que se determina a essência de toda história. A história o é um mero
objeto da historiografia nem somente o exercício da atividade humana. A ação
humana se torna histórica quando enviada por um destino. (...) O Gestell é um
modo destinado de desencobrimento, a saber, o desencobrimento da exploração e do
desafio. O Gestell denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica
moderna, mas que, em si mesmo, não é nada técnico”.
108
Não chegamos a esse modo tecnológico de compreender o desvelamento do ser do
ente por meio de nossa própria decisão, mas antes através da dinâmica da própria história do
ser. Heidegger observa: “o homem pode, certamente, representar, elaborar ou realizar qualquer
coisa, desta ou daquela maneira. O homem não tem, contudo, em seu poder o desencobrimento
em que o real cada vez se mostra ou se retrai e se esconde”
109
. Para ele, devemos, então,
superar o costume de considerar a técnica de um modo instrumental e antropocêntrico,
afirmando e acreditando em sua neutralidade. “A determinação instrumental e antropológica
da técnica se rege evidentemente pelo que se tem diante dos olhos quando se fala em
técnica”
110
. Temos é de ir ao encontro de sua verdadeira essência. Assim como a essência do
homem não é nada de humano, ou seja, não está centrada no próprio homem a essência do
homem é sua relação histórica com o ser – também a essência da técnica não se deixa
apreender em si mesma. A essência da técnica não é absolutamente nada de técnico. “A técnica
é uma forma de descobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de nós todo um outro
âmbito para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da
verdade”
111
. A técnica moderna, tal qual a technè grega, nos reporta ao desvelamento
(aletheia), ainda que este não se encaminhe mais no sentido da poíesis, mas desafie, agrida e
provoque a natureza. Heidegger continua:
108
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, pp. 24, 27
109
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 21
110
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 12
111
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 17
O desvelamento que rege completamente a técnica moderna tem o caráter de uma
interpelação no sentido de uma provocação. Esta última tem lugar quando a energia
escondida na natureza é liberada e, o que é assim obtido, é transformado,
acumulado que, por sua vez, é distribuído e novamente repartido. Obter,
transformar, acumular, repartir, comutar são modos de desvelamento. Mas esse
último não se desenvolve pura e simplesmente, ele não vai se perder no
indeterminado. O próprio desvelamento descobre as suas próprias vias entrelaçadas
de maneiras múltiplas; assim, por exemplo, a direção disso que é liberado, é
transformado e é comutado, a direção está já assegurada.
112
O desocultamento que rege a técnica moderna, é uma exploração que impõe à
natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada.
Para Heidegger, no mundo determinado pelo Gestell temos a redução do real a uma reserva
disponível para a usura. A Terra que não é mais um lugar para a habitação (poética) do homem
passa a ser tratada pelo Gestell como uma pedreira de onde se deverão extrair reservas.
Assistimos a transformação da Terra numa fábrica gigantesca para satisfação dos ilusórios
desejos de segurança e de poder do próprio homem. A consumação da metafísica com o
Gestell não significa evidentemente sua decadência, mas a sua atualização como reino do
cálculo e da eficácia. O Gestell aparece como realização controlada e sistematizada do real: o
ser tende a dissolver-se em pura funcionalidade. “No Gestell tudo está ordenado para constituir
um recurso infalível, imediatamente disponível, para que possa tornar-se e vir a ser dis-ponível
para mais uma nova disposição”
113
. Nos ouvidos do homem atual retumba o fragor e o ruído
das máquinas que ele não está longe de tomar pela própria voz de Deus. O perigo é que o
barulho do mundo técnico ameaça abafar o apelo do caminho do campo.
A época do abandono do ser se anuncia no domínio do pensamento técnico e
meramente calculador. O ente, desvinculado do ser, é reduzido gradualmente a objeto de
manipulação, maquinação [Machenschaft]. A época do pretendido desencanto tecnológico
significa na realidade a total subserviência do ente, nos modos da produção e da representação,
ao encantamento de uma vontade de potência super-dimensionada e total-compreensiva. A
Machenschaft, como figura epocal, é a manifestação deste novo e mais refinado encantamento
[Bezauberung]. Uma vez que aqui nada se mostra como impossível e inacessível, o ente cai,
em sua totalidade, sob um domínio incondicionado e ilimitado, que, de fato, obstaculiza, o
caminho para a verdade do ser.
A essência da técnica moderna, o Gestell, aparece como “um ato fundador e essencial
de comando, na medida em que esse, antes de qualquer coisa, assegura que primordialmente a
112
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 20. Todavia, neste caso, optamos pela tradução um pouco
modificada de Benedito Nunes, Hermenêutica e poesia, p. 136
113
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 20
natureza tenha a condição de recurso fundamental”
114
. A melhor forma de perceber a relação
do Gestell com o real é observar sua penhora irresistível e total sobre a natureza e sobre o
homem. Heidegger aponta para o que considera o risco maior: esta exploração pode crescer até
a insaciabilidade. A época do Gestell indica o período histórico de manifestação do que
Nietzsche chamou de vontade de poder. Neste sentido, a vontade humana é apenas a
executante de uma vontade de vontade inscrita no próprio ser; nenhuma força humana pode
impedir o desenvolvimento perfeitamente autônomo da vontade de vontade própria ao Gestell.
Em todos os domínios da existência as forças e os poderes dos equipamentos técnicos prendem
e afligem o homem superando sua vontade e determinação. Não por acaso o homem moderno
passa a enfrentar o mundo como objeto e seu querer instaura o mundo como totalidade dos
objetos elaboráveis.
Na era em que apenas o poder tem poder, isto é, na era da afluência incondicional
dos entes ao abuso do consumo, o mundo torna-se sem mundo na mesma medida
em que o ser ainda vige, embora sem vigor próprio. O ente é real enquanto
operativo. Em toda parte a operatividade. Em parte alguma, o fazer-se mundo do
mundo. Apesar disso, embora esquecido, o ser. Para além da guerra e da paz, existe
apenas a errância do uso e abuso dos entes no auto-asseguramento da ordem,
oriunda do vazio propiciado ao se deixar o ser. A errância não conhece nenhuma
verdade do ser. Desenvolve, em compensação, para todo planejamento de cada
âmbito o mais completo e mobilizado ordenamento e segurança.
115
Heidegger continua:
Nenhum indivíduo, nenhum grupo de homens, nenhuma comissão, mesmo de
estadistas, investigadores e técnicos, por mais importantes que sejam, nenhuma
conferência de figuras de proa da economia e da indústria podem travar ou dirigir o
decurso histórico da era atômica. Nenhuma organização meramente humana está
em condições de alcançar o domínio da era.
116
A técnica finalmente nos oferece a chance de alcançarmos o esperado reino da
liberdade e da felicidade. Ela passa a ser tomada como o caminho feliz para o homem
justamente porque o alivia dos fardos de sua existência. Todavia, temos de lançar para longe
todas estas justificativas ilusórias que acompanham a técnica. Esta deve reconhecer que a par
do que pode ser racionalmente fundamentado, existe também aquilo que simplesmente é. E
toda essa radical confiança do homem em sua própria capacidade de manipular a totalidade
dos entes para satisfazer seus desejos faz com que ele, perigosamente, esqueça, na
uniformidade da produção técnica, o comportamento poético que marca o modo original da
sua presença no mundo. Devemos, assim, compreender que este pensamento que calcula nunca
pode parar; nunca chega à serenidade do sentido.
114
HEIDEGGER; Conferenze di Brema e Friburgo, p. 67
115
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 80-81
116
HEIDEGGER; Serenidade, p. 22
Não é a tão falada bomba atômica que é, enquanto maquinaria especial de morte, o
que é mortal. O que há muito ameaça o homem de morte e, em particular, da morte
da essência humana, é o incondicionado do mero querer, no sentido do impor-se
propositado contra tudo. O que ameaça o homem no seu ser é a opinião volitiva
segundo a qual basta a exploração, a transformação, a armazenagem e a condução
pacíficas das energias naturais para que o homem possa tornar a condição humana
suportável para todos e, na generalidade, feliz. Mas a paz deste caráter “pacífico” é
simplesmente o frenesi impertubado da fúria do impor-se orientado,
propositadamente, apenas para e por si mesmo.
117
O perigo é de não mais podermos caminhar ao encontro do pensamento originário que
pensa o ser enquanto tal. A técnica apropria-se de tal forma da humanidade que talvez
desaproprie o homem da possibilidade de dispor de um caminho para sair do esquecimento do
esquecimento do ser. A técnica leva-nos “justamente a achar que se tem na garra o real e a
realidade, e que se sabe o que é verdadeiro, sem que necessite saber onde vigora a essência da
verdade”
118
. Deste modo, todos os entes passam para o modo da errância em que o vazio se
alastra na avidez de uma ordem e de um asseguramento únicos de tudo o que é e está sendo.
Este vazio deve ser preenchido. Como, porém, o vazio do ser, sobretudo quando
não pode ser percebido como tal, nunca se preenche pela quantidade dos entes, a
única escapatória é a institucionalização ininterrupta dos entes na possibilidade
contínua de ordenamento enquanto forma de assegurar o fazer sem meta. A técnica
é, nesse sentido, a organização da falta porque, contra o seu saber, refere-se ao
vazio do ser.
119
Desejamos destacar que Heidegger traz sempre uma sensibilidade rústica e um forte
apego à sua terra natal. Neste sentido, o filósofo está sempre atento à voz do carvalho à beira
do caminho que o faz relembrar os jogos de sua infância. As imagens presentes em seu
pensamento nos colocam constantemente diante do “apelo silencioso da terra”; do “afluxo
inesgotável e incansável do que não está para nada”; do caminhar pesado do camponês que,
traçando lentamente sulcos invisíveis na terra, desaparece no crepúsculo obscuro do campo; do
carro da colheita que se arrasta em direção ao celeiro; do lenhador que carrega, ao cair da
noite, seu feixe de gravetos para a lareira. A percepção de Heidegger é a sabedoria enraizada
no solo, erguida para a abertura: ela é camponesa no sentido estrito, enraizada na terra e
formando um liame entre o limite imóvel e o horizonte aparentemente sem limite pacto
seguro de onde advém a paz. Com efeito, notamos em Heidegger a nostalgia de uma natureza a
que a mão do homem não teria apagado ainda o esplendor primitivo. Além disso, como
resultado do desvelamento tecnológico da natureza, as pessoas não conseguem ver uma
117
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 338
118
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 78
119
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 83
queda d’água, sem imediatamente transformá-la num pensamento que representa uma central
elétrica. Heidegger sustenta:
A usina hidroelétrica posta no Reno dispõe o rio a fornecer pressão hidráulica, que
dis-põe as turbinas a girar, cujo giro impulsiona um conjunto de máquinas, cujos
mecanismos produzem corrente elétrica. As centrais de transmissão e sua rede se
dis-põem a fornecer corrente. Nesta sucessão integrada de dis-posições de energia
elétrica, o próprio Reno aparece como um dis-positivo. A usina hidroelétrica não
está instalada no Reno, como a velha ponte de madeira que, durante séculos, ligava
uma margem à outra. A situação se inverteu. Agora é o rio que está instalado na
usina. O rio que hoje o Reno é, a saber, fornecedor de pressão hidráulica, o Reno o
é pela essência da usina.
120
Com a natureza transformada em reserva acumulada de matérias-primas já não mais
estamos no antigo mundo onde o lavrador tinha de saber aguardar a semente despontar e
amadurecer, cuidando e protegendo a terra. A cnica do camponês não é uma provocação,
mas doação (semeadura) e aceitação (colheita); ele pode e deve fiar-se na paciência
perseverante da terra e deve ajustar-se ao seu ciclo. o mais vemos o antigo moinho o
velho moinho que não provoca a natureza com suas alas que giram e são confiadas
diretamente ao soprar do vento. Não mais percebemos o odor do carvalho. “Em vão o homem
através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for
disponível ao apelo do caminho do campo”
121
. De fato, em alguns momentos, o pensamento de
Heidegger parece tomado por essa evocação de um mundo mais feliz de outrora. Alguns de
seus críticos, como Bordieu e Richard Wolin, vêem em tudo isso uma expressão de sua atitude
conservadora
122
. Heidegger possuiria aquela típica serenidade melancólica do mundo
camponês, e nele ainda observaríamos um pensamento essencialmente marcado por uma
mística da natureza. O resultado de toda esta combinação o faria contrário ao projeto
civilizatório da modernidade. Entretanto, não devemos nos ater à esta perspectiva, aliás muito
injusta, de que o pensamento de Heidegger se encontra regido e determinado pelo ideal de
uma humanidade agro-pastoril. Construímos dele uma imagem completamente distorcida ao
percebê-lo como um inimigo da ciência e da técnica ou como um mero idealizador do modo de
vida dos pastores e camponeses da Floresta Negra. Resumindo, para Heidegger, não basta usar
a terra e sim acolher a sua benção; de fato, o homem necessita se familiarizar na lei desse
acolhimento de modo a resguardar o segredo do ser.
120
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 20
121
HEIDEGGER; O caminho do campo, p. 70
122
Bordieu coloca-se como crítico radical do pensamento de Heidegger na obra A ontologia política de Martin
Heidegger. Richard Wolin em A política do Ser continua o projeto de Bordieu. Ambas as obras, que afirmam ser
a filosofia de Heidegger essencialmente reacionária, expressão de seu lamento misantropo, encontram-se
traduzidas para o português. Notamos ser esta uma leitura reducionista do pensamento de Heidegger.
Para mim, é infantil querer o retorno a estágios anteriores, tanto quanto é pensar que
os seres humanos podem superar a metafísica por sua negação. Tudo que resta é
efetivar esse espírito [próprio da era da máquina] de forma incondicional. Apenas
desse modo nós poderemos, ao mesmo tempo, vir a conhecer a sua verdade
essencial.
123
Na realidade, sabemos como certo que Heidegger percebia que algo de semelhante a
uma crise estava a acontecer em seu tempo, tornando problemáticas práticas e suposições que
tinham sido consideradas firmes. E o que mais deseja, mesmo com sua desconfiança
politicamente conservadora da modernidade, é achar um caminho para além da era decisiva e
final [eschaton] da técnica para a qual o mundo grego-europeu fora conduzido.
É real o perigo de que a circularidade entre a agressão e o consumo dos entes se torne
o único processo que caracterize o destino (técnico) de um mundo que deixou de ser mundo. O
Gestell agora se apresenta como o princípio e o fim de todas as coisas, caindo tudo nas tenazes
do cálculo, do planejamento e da organização total. Não acontecendo nenhuma mudança
ontológica, o homem terminaria “abandonado ao rodopio inconstante dos seus produtos para
que possa ser despedaçado e aniquilado no vazio do nada”
124
. Enfim, por meio da técnica nos é
oferecida Pandora, com seu abundante suprimento de benções e abundância ainda maior de
perigos.
Deveríamos falar doravante de uma época marcada pela total falta de
questionamento, cuja duração se estende no tempo, para além do presente, para
muito atrás e para muito adiante. Nesta época, nada essencial se é que a
expressão ainda tem algum sentido é mais possível ou acessível. Tudo é feito e
pode ser feito, bastando que se tenha vontade. (...) A razão para tanto é que essa
vontade, que em tudo decide, está sujeita à maquinação, isto é, à interpretação dos
entes como representados e representáveis. (...) Quando a maquinação finalmente
domina e permeia a tudo, desaparecem as condições em que ainda era possível
detectar o encantamento e dele se proteger. O enfeitiçamento promovido pela
tecnicidade e sua progressiva superação são, porém, apenas um signo deste
encantamento em virtude do qual tudo sucumbe ao cálculo, à usura, à disciplina, ao
gerenciamento e à regulamentação.
125
2.3 – A ciência e a técnica.
Em nossa época o consumo esgotante do real conta com o apoio fundamental da
ciência moderna que é marcada no todo por uma agressividade constitutiva. Isso porque toda
experimentação científica necessariamente utiliza o ente como material [Bestand] sempre
disponível e sempre redutível às suas características meramente quantitativas: o ente é assim
consumido sem que seu conteúdo essencial seja realmente colocado em questão. Assim, o que
123
HEIDEGGER; lderlin’s hymn the Ister, p. 53
124
HEIDEGGER; lderlin’s hymn the Ister, p. 76
125
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), pp. 53, 60-61
temos é o acirramento do esquecimento ontológico e o primado de um conhecimento com o
qual escravizamos as forças da natureza para possibilitar a nossa própria vida. Heidegger
observa:
A efetivação e aplicação técnicas da moderna ciência da natureza não são prova
ulterior da verdade científica. A tecnologia prática da ciência da natureza moderna
e possível porque na essência da metafísica, por aquela mesma preparada, a
ciência moderna como um todo não passa de uma aplicação da técnica,
entendendo-se por técnica algo diverso daquilo que implica a ação dos
engenheiros.
126
Temos de perceber que a ciência oferece uma oportunidade para reconhecermos
como a questão do ser como tal permanece no presente perigosamente esquecida.
Fundamentalmente, a ciência concorre para atualizar o abandono do ser. Mas, uma vez que
existe a chance de que este mesmo abandono faça ressoar a verdade do próprio ser, a
meditação [Bessinung] sobre a ciência se torna necessária na predisposição à escuta do apelo
do próprio ser. Os progressos da ciência se convertem em exploração e utilização da terra e
em domesticação e planejamento do homem. Para Heidegger, em todo este processo devemos
destacar aquilo que realmente importa: o projeto da ciência não é um projeto autônomo;
segundo, a reflexão sobre a ciência não pode ser ela mesma científica. Este modo de
representação, que encara a natureza como um sistema operativo e calculável, está submetido
ao serviço do projeto mais geral do Gestell. Assim, a ciência moderna dissolve a natureza no
âmbito do poder da ordem matemática do comércio mundial e da industrialização.
As características da ciência moderna, minuciosamente enumeradas nos Beiträge
127
,
são aquelas que Heidegger depois expôs publicamente quer na conferência de 1938 Die Zeit
des Weltbildes
128
, quer naquela mais tarde de 1953, Wissenschaft und Besinnung
129
. A ciência
se configura na modernidade não mais como um saber, mas como o processo mesmo de
arrumação [Einrichtung] de um saber, isto é, como um procedimento operativo que toma
assento em uma determinada região do ente a natureza ou a história, por exemplo para
desenvolver um plano de investigação já predefinido. E é exatamente o primado do
“proceder” [Vorgehen] como tal que origem a divisão de setores e a especialização das
ciências: a ciência é ciência particular porque “fundada sobre o projeto de uma determinada
região objetiva; é especializada porque “deve necessariamente se conformar” à especificidade
do próprio âmbito de investigação. O despedaçamento [Zerfall] do cognoscível não é, desta
126
HEIDEGGER; Heráclito, p. 102
127
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), pp. 144-158
128
HEIDEGGER; Caminhos de floresta; pp. 95-138
129
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, pp. 39-60
forma, uma conseqüência corrompida evitável do processo científico, mas é a conseqüência
necessária da essência mesma da ciência.
130
A técnica pode ser compreendida como Prometeu definitivamente desacorrentado,
ao qual a ciência confere um impulso desmedido. A razão humana, graças à qual o homem se
destacava da natureza, seria incapaz de prejudicar esta mesma natureza pela sua
contemplação. A práxis emancipada, que produziu a ciência, uma herança daquele intelecto
teórico, confronta a natureza não com o seu pensamento, mas com o seu fazer provocador
que causa um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto.
Embora pretendam o contrário, a ciência e a técnica raramente podem se contentar apenas
com o cálculo instrumental das variáveis que intervêm em seu campo. Com efeito, somente se
tornam verdadeiro conhecimento, isto é significativo, “quando se fundam metafisicamente ou
aceitam essa fundamentação como necessidade indispensável, como parte ou parcela de seu
conteúdo essencial”
131
.
De maneira geral, os cientistas não percebem que sua atividade não apenas se baseia
em crenças e princípios que não são científicos, mas que os próprios princípios da ciência se
baseiam ou remetem a proposições metafísicas. Nesse sentido, a ciência e a técnica se
movimentam no circuito daquela nova concepção da verdade compreendida como certeza,
cujo caráter e sentido permanecem metafísicos. Neste circuito, a natureza também passa a ser
expressa em termos puramente matemáticos. Para Heidegger, a ciência aparece como uma
investigação matemática da natureza e “nunca poderá renunciar à necessidade de a natureza
fornecer dados, que se possa calcular, e de continuar sendo um sistema disponível de
informações”
132
. Como temos a colocação da natureza como objetividade calculável regida
pelo princípio da causalidade somos levados a acolher esta determinação (do próprio ser) que
fixa de antemão e em termos calculáveis a estrutura ou o modo de ser do que constitui a
essência ou o sentido de algo natural. Heidegger sustenta:
Na ciência contemporânea encontramos o querer dispor da natureza, o tornar útil, o
poder calcular antecipadamente, o predeterminar como o processo da natureza deve
se desenrolar para que eu possa agir com segurança perante ele. A segurança e a
certeza são importantes. Exige-se uma certeza no querer controlar. O que se pode
calcular de antemão, antecipadamente, o que pode ser medido é real e apenas isso.
A natureza é vista de uma certa maneira para que corresponda às condições da
mensurabilidade.
133
130
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 145
131
HEIDEGGER; Heráclito, p. 42
132
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 26
133
HEIDEGGER; Seminários de Zollikon, p. 47
Toda ciência parte de um âmbito de ente definido em sentido objetal e procede
aplicando os próprios instrumentos metodológicos no interior de tal âmbito. Assim, a ciência
delimita os próprios contornos do ente: razão que sobrepuja a alteridade da natureza. Nossa
época se determina fundamentalmente a partir da noção da verdade pragmática extraída do
conhecimento científico: é verdadeiro aquilo que é verificado; todo saber é válido por ser a
descrição ou a receita de um poder verificável. A ciência moderna tornou-se possível graças a
enorme influência do pensamento matemático sobre grandes áreas do pensamento e da ação
humanos. Sustentada nos critérios de verificação empírica e em sua tradição de realizações
coletivas, as ciências reformularam nosso meio ambiente provocando inesgotável fascinação.
George Steiner aponta:
A mudança mais decisiva no teor da vida intelectual do Ocidente desde o século
XVII é a sujeição de áreas de conhecimento cada vez maiores aos métodos e
processos da matemática. Como foi observado com freqüência, um ramo de
pesquisa passa de pré-ciência para ciência quando admite ser organizado de
maneira matemática. É o desenvolvimento de recursos algébricos e estatísticos em
seu próprio interior que confere a uma ciência suas possibilidades dinâmicas. Os
instrumentos de análise matemática transformaram a química e a física de alquimia
nas atuais ciências capazes de previsão. Graças à matemática, as estrelas saem da
mitologia para figurar na tabela do astrônomo.
134
Para a ciência, no universo enormemente ampliado da cosmologia moderna, tudo se
resumiria a um campo de massas inanimadas e de forças sem finalidade, cujos processos
decorrem em obediência a leis de conservação e de acordo com sua distribuição quantitativa
no espaço. Tudo no universo ficaria reduzido às meras propriedades da matéria extensa,
sujeitas à medição, e com isto à matemática. estas é que satisfazem ainda às exigências do
que agora é denominado conhecimento exato: tais exigências representam o que na natureza é
capaz de ser conhecido. Para Heidegger, a afirmação da matemática como forma axiomática
do saber moderno não se contrapõe de maneira alguma à precedente tradição da metafísica,
mas se constitui em seu desenvolvimento mais natural. O essencial da tradição metafísica não
é superado, negado pela ciência moderna, mas recebe, ao contrário, desta última, através da
idéia de mathesis universalis, uma nova fonte de legitimidade, que permite manter
substancialmente inalterada a precedente concepção de ente.
Como é possível construir uma ciência? A ciência é conhecimento; o conhecimento
tem objetos, coisas. Ela constata e o faz objetivamente. Com efeito, quando identificamos
conhecimento com ciência organizada sabemos que a natureza deve corresponder às condições
de mensurabilidade: o ente recebe objetividade. “Só é, vale como sendo, aquilo que deste
modo se torna um objeto. Só se chega à ciência como investigação se o ser do ente for
134
STEINER, George. Linguagem e silêncio, p. 33
procurado em tal objetividade”
135
. O círculo das ciências pretende dar sempre ainda, em
múltiplas figuras, a forma fundamental do saber e do que é possível saber, seja de um modo
consciente, seja pelo modo do seu prestígio e eficácia. Para Heidegger, a ciência está distante
de ser um modo desinteressado de revelação dos entes uma vez que também está impulsionada
pela vontade de dominar a totalidade do real. O mundo agora aparece como um objeto contra o
qual o pensamento objetivante dirige seus ataques sem encontrar resistência.
Esta objetivação que está em andamento na atitude científica permite sempre maiores
meios de controle e utilização do real encarado como objeto de investigação. Com efeito,
passamos mesmo a acreditar que com a ciência todos os fins e utilidades foram assegurados,
todos os meios estão à mão, qualquer tipo de uso prático é realizável. Nesse sentido,
entendemos que tudo já se encontra previsto, organizado e reduzido à capacidade de previsão
do homem. A filosofia não é nem a favor nem contra a ciência, mas a abandona à sua própria
compulsão de buscar o seu proveito próprio, de assegurar sempre, de maneira mais cômoda e
rápida, resultados práticos. Heidegger afirma: “A diferença entre a filosofia e a ciência não diz
respeito apenas ao objeto e método, mas é via de princípio de natureza radical”
136
.
Necessitamos pelo menos ter a força necessária para ao menos compreender que o
esquecimento do ser alcança o seu ponto culminante quando o homem, pela racionalidade
científica e pelo poder da técnica, assegura o seu domínio sobre a natureza inteira. A ciência é
ontologicamente indiferente daí a afirmação tão mal compreendida de Heidegger de que “a
ciência não pensa”
137
. Em outras palavras, ela não pensa, na medida em que, como
manifestação de um pensar calculante, aquilo que deve ser pensado escapa ao seu poder de
previsibilidade.
O desenvolvimento da ciência termina, de fato, na afirmação do gigantesco
[Riesenhafte], “na objetiva representação de um quantitativo sem limites”
138
, na investigação
de um infinitamente grande ou infinitamente pequeno inacessíveis a toda forma de
mensuração. E para a filosofia aquilo que conta não é tanto a dimensão quantitativa do
“gigantesco” em si, mas a inversão, que nela tem lugar, quando o gigantesco termina por
exceder todo limite e toda medida: o calculável se transforma no incalculável, e o incalculável
é aquilo que é subtraído à representação, atestando assim o ser em sua ocultação. A estrutura
do “gigantesco”, nesse sentido, é um modo, uma qualidade precisa do dar-se do ser, uma cifra
135
HEIDEGGER; Caminhos da floresta, p. 109
136
HEIDEGGER; Phänomenologie des Religiösen Lebens, p. 15
137
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, pp. 39-60
138
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 135
epocal na história do ser: “a Seinsverlassenheit do ente [...] se conclui no grandioso como
tal”
139
.
Sem dúvidas, quem continua a calcular, a tratar o quantitativo quantitativamente, não
pode nunca se tornar consciente da essência do próprio quantitativo e assim não pode nunca
saber algo da história do ser. Compreendido historicamente o “gigantesco” se apresenta, uma
vez mais, como o lugar da máxima proximidade do ser e de seu ressoar
140
.
2.4 – A ambigüidade da técnica.
Atualmente, é explícita nossa capacidade técnica de consumir toda a natureza. Esta se
converte, para o homem, em uma simples reserva de materiais e energia. O poder oculto na
técnica transforma assustadoramente a Terra inteira e comprova a continuidade do reino da
metafísica. Através desta compreensão tecnológica do ser o mundo se degrada em um sistema
de poder e o homem “funcionário da técnica” – se acha metodicamente ocupado em
esquadrinhar o real. O homem chega a uma situação em que não conhece mais limites, porque
nada é impossível para a maquinação [Machenschaft]. A técnica constitui um novo contexto
para a existência humana, passando a orientar todos os acontecimentos de nossa civilização e o
lugar que nós nela ocupamos. Entregamos-nos sem reservas às suas leis, à multiplicidade dos
seus “jogos”, à vertiginosa concatenação dos seus mecanismos. Por um lado, devemos
entender a técnica como um modo de revelação do ser como tal. Ela é tanto um destino
enviado pelo ser quanto um de seus modos de interpretação. Por outro, sua exploração sem
sentido demonstra que todo traço da questão ontológica parece ter desaparecido. Todavia, para
Heidegger, à medida que o ser torna-se mais esquivo, mais incerto, surge também a
possibilidade para que seu questionamento se torne mais central, mais imperioso.
O crepúsculo aconteceu propriamente. (...) A história e a técnica ordenam o seu
curso no sentido do último estágio da metafísica. Esse ordenamento é a derradeira
instalação do que acabou na aparência de uma realidade cuja operatividade opera de
forma irresistível, pois pretende prescindir de qualquer descobrimento do vigor do
ser e isso de maneira tão decidida que não carece pressentir nada de um tal
descobrimento. A verdade do ser ainda encoberta resiste à humanidade da
metafísica. O animal trabalhador abandona-se à vertigem de seus poderes e feitos a
fim de se descarnar e aniquilar-se no nada aniquilador.
141
A essência da técnica não é nada de técnico. O próprio Gestell ele mesmo se
encarrega de nos comunicar algo que perpassa propriamente a reciprocidade da apropriação
139
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 136
140
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 137
141
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p.
63
entre ser e homem. Segundo Heidegger, nós não podemos simplesmente abandonar o mundo
regido pela técnica. Não podemos renunciar a utilizar os objetos técnicos que nos
proporcionam comodidades e são necessários à nossa vida. Somos constrangidos a dizer-lhes
sim, uma vez que, para todos nós os equipamentos, aparelhos e máquinas são hoje
indispensáveis. “Seria insensato investir às cegas contra o mundo técnico. Seria ter vistas
curtas querer condenar o mundo técnico como obra do demônio. Estamos dependentes dos
objetos técnicos que até nos desafiam a um sempre crescente aperfeiçoamento”
142
. Ao mesmo
tempo, procedendo de modo oposto, deixemos que os objetos técnicos repousem em si
mesmos, pois não dizem respeito àquilo que o homem tem de mais íntimo e de mais próprio.
Para Heidegger, podemos e devemos dizer-lhes não, no sentido de não submetermos nosso
pensamento à gica que lhes está implícita. “Podemos dizer ‘sim’ à utilização inevitável dos
objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer ‘não’, impedindo que nos absorvam e,
desse modo, verguem, confundam e por fim, esgotem a nossa natureza”
143
. Portanto, nossa
relação com o mundo técnico deve ser caracterizada por esta ambigüidade; este dizer
simultaneamente sim e não à técnica aponta para o que Heidegger chama de serenidade /
desprendimento [Gelassenheit]. Enfim, Heidegger sustenta a perspectiva de que ainda temos a
chance de estabelecermos uma livre relação com a técnica. Isso, sem dúvida, é ambíguo ao
extremo. Mas a ambigüidade toca no mais essencial. A respeito de Heidegger, Feenberg
afirma:
Apesar de sua aparente nostalgia pelo passado pré-moderno, ele nunca sugere um
retorno à technè antiga. Em vez disso, ele lança um olhar para uma nova era, na
qual novos deuses permitirão aos seres humanos reclamar um lugar num mundo
livre da ordem tecnológica. Essa nova era usará a tecnologia, mas não seria
tecnológica, estaria em livre relação” com o domínio da produção, em vez de
entender o ser de acordo com o modelo da produção.
144
Heidegger acredita na possibilidade de um outro início do pensamento. Este ainda
pode se voltar para o mais originário, em vez de sucumbir ao projeto tecnológico. A questão
não é se conseguiremos dominar a técnica moderna e suas grandes ameaças. Não se trata de
constatarmos que estamos fortemente dominados por ela, mas, sim, de alcançarmos a sua
esfera essencial, repensando a sua proveniência do mais longínquo passado. Heidegger afirma
a superficialidade da simples observação de que os entes humanos não são senhores, mas sim
escravos das relações técnicas. Devemos, sim, nos manter abertos ao sentido continuamente
oculto à essência escondida deste domínio crescente da técnica: o próprio mistério do
142
HEIDEGGER; Serenidade, p. 23
143
HEIDEGGER; Serenidade, p. 23
144
FEENBERG, A. Heidegger e Marcuse, p. 40
desvelamento do ser. Deste modo, para o filósofo, é correto aproximarmos o universo técnico
com o ser.
A totalidade do universo técnico também não pode jamais ser interpretada a partir do
homem como simples obra sua. O universo técnico não deve ser simplesmente considerado
como o plano que o homem projeta. A alternativa que se coloca ao homem para a sua decisão
não está entre tornar-se escravo de seu plano ou permanecer senhor dele. Em síntese, o homem
não é o sujeito da técnica, mas aquele a quem a essência escondida da técnica interpela.
O destino enviado no Gestell é, pois, o perigo extremo. A técnica não é perigosa.
Não uma demonia da técnica. O que é o mistério de sua essência. (...) A
ameaça que pesa sobre o homem, não vem, em primeiro lugar, das máquinas e
equipamentos técnicos, cuja ação pode ser eventualmente mortífera. A ameaça,
propriamente dita, atingiu a essência do homem. O predomínio do Gestell arrasta
consigo a possibilidade ameaçadora de se poder vetar ao homem voltar-se para um
desencobrimento mais originário e fazer assim a experiência de uma verdade mais
inaugural. Assim, pois, onde domina o Gestell, reina, em grau extremo o perigo:
“Ora, onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva”.
145
O homem ainda não submeteu de todo, e talvez nem possa, enquanto for humano, se
submeter à essência da técnica. E a técnica não representa uma gaiola de ferro da qual nunca
poderemos escapar. Não razão “para que aquilo que agora povoa o planeta e o destrói de
todas as maneiras deva continuar a existir ao infinito”
146
. Para Heidegger, permanece a
possibilidade de que a própria técnica lugar a um esclarecimento sobre a verdade do ser.
Deste modo, através da técnica nos preparamos para sermos restituídos ao caminho que
novamente nos conduzirá ao próprio dar-se ou “essencializar-se” [Wesung] do ser, que
Heidegger chama de Ereignis.
À superfície, permanece igualmente o apuramento de que o homem atual se tornou
um escravo das máquinas e dos aparelhos. Porque uma coisa é a verificação disso,
uma outra bem diferente será refletir até que ponto o homem desta época não está
apenas submetido à técnica, mas até que ponto é que ele deve corresponder à
essência da técnica, até que ponto nessa correspondência se anunciam possibilidades
primordiais de uma existência [Dasein] livre do homem.
147
A própria essência da técnica guarda em si a aurora do que salva. É preciso fixar
sobre o perigo um olhar ainda mais claro. Não devemos unicamente pensar que salvar significa
“retirar, a tempo, da destruição o que se acha ameaçado em continuar a ser o que vinha sendo.
Ora, ‘salvar’ diz muito mais. ‘Salvar’ diz: chegar à essência, a fim de fazê-la aparecer em seu
145
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 30-31
146
HEIDEGGER; Seminários de Zolikon, p. 301
147
HEIDEGGER; O princípio do fundamento, p. 37
próprio brilho”
148
. De fato, Heidegger acredita que o Gestell pode fazer brilhar um poder
salvador.
O irresistível da disposição e a resistência do que salva passam, ao largo, um do
outro como, no curso dos astros, a rota de duas estrelas. Mas este passar ao largo
alberga o mistério da própria vizinhança de ambos. Se olharmos dentro da essência
ambígua da técnica, veremos uma constelação, o percurso do mistério.
149
Por outro lado, Heidegger não nega o pressentimento de que esta salvação possa se
encontrar bloqueada. Ele inclusive admite que a existência do homem moderno se em um
mundo desencantado destituído de profundidade e sentido: “todas as coisas escorregam para
um mesmo nível, para uma superfície que, semelhante a um espelho oxidado, não espelha,
nada reflete”
150
. Nesse sentido, quanto mais tudo o que existe passa a ser visto como estoque,
mais pobre de mundo fica o homem, menos riqueza tem o mundo em sentido ontológico e
histórico. Estamos situados numa permanência única a partir da qual não encontramos
nenhuma saída. Cortados de nossas próprias raízes ontológicas nos vemos mergulhados em um
profundo e metafísico enfado. Portanto, tomados por esta intensa desolação caminhamos pelo
deserto da terra devastada. Este sentimento representa um perigo muito mais intenso do que a
destruição e é também um tormento maior do que o aniquilamento. Isso porque a desolação
interrompe o horizonte do futuro e o nascimento de qualquer outra configuração. Estamos,
com efeito, num tempo sem profundidade, cuja ação consiste mais em reduzir tudo o que é
profundidade
151
. Nesse sentido, é importante atentarmos para o que diz Erick Davis:
Quem sou eu? Por que estou aqui? Como me relaciono com os outros? Como
enfrento o que é grave? Em meio à fúria e ruído enganadores, essas velhas e
veneráveis perguntas que definem a condição humana soam distantes e silenciosas,
como enigmas empoeirados, que aprendemos a pôr de lado em favor de tópicos
mais pragmáticos e lucrativos, despertar não é fácil, sobretudo quando corremos
cada vez mais como sonâmbulos.
152
Notamos na técnica o desespero de uma civilização abandonada pelo divino e
completamente fechada sobre o ente. No extremo perigo da técnica experenciamos “o
obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem,
a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre”
153
. E talvez sequer exista a possibilidade de
nossa civilização mundial superar algum dia seu caráter técnico-científico-industrial como
148
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 31
149
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 35
150
HEIDEGGER; Introdução à metafísica, pp. 71-72
151
“Quanto mais insistente os calculadores, / mais desmesurada a sociedade, / Quanto menos pensadores houver, /
mais solitários os poetas, / Tanto mais indigentes os adivinhos, / que adivinham a distância das pistas salvadoras”.
(Poema de Heidegger intitulado Hints, in Philosophy Today 20 (Inverno, 1976), p. 287.
152
DAVIS, Erick; Techgnosis, p. 335
153
HEIDEGGER, Introdução à metafísica, p. 65
única medida da habitação do homem no mundo. Assim, somos mais do que depressa tomados
pelo pensamento de que uma possível virada (um misterioso Ereignis) seja um desatino vazio.
“O acabamento da metafísica, que constitui o fundamento do modo planetário de pensar,
fornece a armação [Gestell] para uma ordem da terra, provavelmente bastante duradoura”
154
.
Em resumo, o presente agora parece não ter fim, separado de qualquer outro presente por um
infinito inesgotável e vazio, o infinito mesmo do sofrimento, e por isto, destituído de todo
futuro. Mas podemos estar certos de que, mesmo esterilizante, seja a técnica moderna somente
estéril? Para Heidegger, o que nos redime da ameaça da técnica poderá crescer se
estivermos preparados para experimentarmos a aflição inseparável desta situação de enfado
profundo.
A essência da técnica apenas lentamente vem à luz do dia. Este dia é a noite do
mundo remodelada como dia técnico. Este dia é o dia mais curto. Com ele surge a
ameaça de um único e infinito inverno. Agora, não se priva o homem de
proteção, como também o incólume de todo o ente fica na escuridão. A cura [Heile]
afasta-se. O mundo fica na incúria [heil-los]. Com isto, não o sagrado [Heilige],
como vestígio da divindade, permanece encoberto, como até mesmo o vestígio do
sagrado, a graça, parece ficar apagada. O perigo da técnica consiste na ameaça que
diz respeito à essência do homem na sua relação com o próprio ser e não em perigos
casuais. Este perigo é o Perigo. Ele encobre-se no abismo para todos os entes.
155
O filósofo alemão afirma que nosso tempo pode ainda mudar de sentido: o tempo é a
virada do tempo. E o tempo se busca e se experimenta na dignidade da questão do ser. À
virada do tempo corresponde nossa capacidade de rememorarmos a questão da verdade do ser.
Mesmo a técnica não apaga o primado da questão ontológica. Não podemos nos esquecer que
a questão do acontecimento do próprio ser vem ao encontro da maquinação. Para Heidegger,
no Gestell temos a experiência de que, de fato, algo de radicalmente outro está em jogo. Ainda
temos a chance de sermos levados para uma outra história do ocidente.
Com o começo do acabamento da metafísica, tem início a preparação irreconhecível
e, para a metafísica, essencialmente inacessível de um primeiro aparecimento do
desdobramento de ser e ente. Nesse aparecimento, ainda se encobre a primeira
ressonância da verdade do ser que recupera para si a primazia do ser, na perspectiva
de seu vigor. A superação da metafísica é pensada na dimensão da história do ser.
Ela prenuncia a sustentação originária do esquecimento do ser. Mais antigo embora
também mais escondido do que o prenúncio é o que nele se anuncia. Trata-se do
acontecimento do próprio ser. O que, no modo da metafísica, aparece como
prenúncio de uma outra coisa, chega e toca como o brilho derradeiro de uma clareira
mais originária.
156
Com a técnica, a história do ser se encaminha para um ponto de virada singular,
único e por isso minimamente acentuado. Para Heidegger, o reino da técnica apontaria para a
154
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 72
155
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 340
156
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 68
sua superação e para a liberação de um outro início em sua principialidade. É necessário
aguardar por uma abertura para que uma nova ordem de dentro possa emergir. O pensamento
de Heidegger se encarrega de apontar esta expectativa, esta aproximação, esta suspeita de um
Ereignis cada vez mais incerto, todo ele contido em sua própria indefinição. Com sua
abordagem sempre marcante do obscurecimento técnico do mundo, o filósofo sustenta que em
nossa época a possibilidade se joga, sendo o risco essencial. E não existe um atalho que
contorne a ameaça da técnica. Para Heidegger, mesmo o pensamento tem apenas caráter
preparatório, e de maneira alguma caráter fundador. O pensar é algo que, em si mesmo, não
tem como criar os modos e as ocasiões em que pode intervir, não possui força material para
conduzir a uma nova situação histórica.
[O pensamento] satisfaz-se com despertar uma disponibilidade do homem para
uma possibilidade cujos contornos permanecem indefinidos, e cujo advento,
incerto. (...) O pensamento preparador em questão não quer nem pode predizer um
futuro. Procura apenas ditar para o presente algo que muito, exatamente no
começo da Filosofia, lhe foi dito, e que, entretanto, não foi propriamente
pensado. De momento, deve ser suficiente apontar nessa direção com a maior
brevidade possível. Para fazê-lo recorremos a uma indicação que a própria filosofia
oferece.
157
Heidegger insiste que no Gestell se manifestaria (decisivamente) uma interpelação /
apropriação recíproca entre o homem e o Ser: o Ereignis. O homem só pode esperar o
Ereignis, como viragem, que é e ainda não é, visto que o Gestell apresenta-se como seu
prelúdio. O mais estranho é o fato de que o próprio ser em nossa época se anuncia a si próprio
negando-se a si próprio. O Ereignis seria um poder sob o poder do Gestell: um segundo poder
capaz de autolimitar a provocação devastadora e aparentemente inesgotável da essência da
técnica sobre o homem e a ordem natural em seu conjunto. A desmesura deste perigo pode
provocar uma transformação redentora. É preciso que o homem corresponda à interpelação da
técnica moderna, ou seja, responda ao apelo da verdade do ser nela contida. Segundo
Heidegger, o ser foi às ultimas em nosso tempo. Nesse sentido, somos nós que vivemos um
momento decisivo e delicado do ser enquanto tal. Tudo nos faz acreditar que a história do ser
está cumprida. Vivemos mesmo o último [eschaton] destino do ser. Não obstante, para
Heidegger, nosso tempo sente pesar sobre ele o Ereignis. Pois não é o fim que está por trás da
ameaça da técnica, mas um acontecimento axial que, ele também, gera história e se estende
para um outro momento do ocidente. Assim, a reflexão heideggeriana sabe em que tempo ela
se exerce nesse tempo em que tudo está realizado e no qual tudo permanece oculto, onde o
homem pode entrar em um âmbito totalmente outro da história. Fundamentalmente, Heidegger
157
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p.
74
deseja enunciar o destino que resulta da própria dinâmica da técnica: um exercício para
regressarmos ao brilho originário da verdade; a ek-stasis temporal que se reabre em direção a
um futuro histórico visto sob a forma de uma escatologia e de uma adequação mais próxima ao
destino do ser.
Aquele que, até agora, tem sido o estar-a-ser do ser afunda-se na sua verdade ainda
velada. A história do ser reúne-se neste adeus. A reunião neste adeus, enquanto
reunião [logos] do mais extremo daquilo que tem sido, até aqui, o seu estar-a-ser, é
a escatologia do ser. O ser ele próprio, enquanto ser que tem um destino, é, em si
próprio escatológico. Porém, na expressão “escatologia do ser”, não
compreendemos a palavra “escatologia” como título de uma disciplina teológica ou
filosófica. Pensamos a escatologia do ser no sentido correspondente àquele em que
que pensar, tendo em vista a história do ser, a fenomenologia do espírito. Esta
mesma constitui uma fase da escatologia do ser na medida em que o ser como
subjetividade [Subjektität] absoluta da incondicional vontade de vontade, se colige
no extremo daquele que, até agora, tem sido o seu estar-a-ser [Wesen], cunhado pela
metafísica. Se pensarmos a partir da escatologia do ser, então temos de esperar um
dia primevo da madrugada no primevo do que de vir e temos de aprender hoje a
pensar o primevo a partir daí.
158
Heidegger também não ignora que nada hoje nos obriga mais a refletir. Perdemos
toda possibilidade de compreender o que pode ser a filosofia. Nem sequer sabemos de sua
importância e de sua necessidade. Com efeito, este ocaso da filosofia mostra-se como a
supremacia do equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que
lhe corresponde. Mas Heidegger afirma: “com o fim da filosofia, porém, o pensamento não
está no fim, mas na ultrapassagem para um outro começo”
159
. Deste modo, é preciso entender
este processo como algo essencial, a dispersão da filosofia marca também o momento em que
ela se aproxima de si mesma. Nesse sentido, o fim da filosofia indica a vinda daquilo que se
deve nomear como escatologia profética: a afirmação de um poder de julgamento capaz de
arrancar os homens da jurisdição (metafísica!) da história. Apesar de todas as dúvidas, a
escatologia faz aparecer a possibilidade indeterminada de uma outra história, de um outro
início para o ocidente.
Há no pensamento de Martin Heidegger este compromisso de apontar para um por vir
que pode apenas emergir de um período de obscuridade e perturbação profunda. O sentimento
de que realmente estamos numa virada predomina em seu pensamento. Podemos aprender
alguma coisa acerca da esperança nos escritos de Heidegger? Entendemos que a esperança está
subentendida em seus escritos e é a verdade de sua obra. Contudo, acreditamos ser legítimo
falar de uma esperança heideggeriana com a condição de situá-la para além de todo otimismo
ou pessimismo. No pensamento heideggeriano, a esperança apresenta-se sempre igual ao maior
158
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, pp.
378-379
159
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 72
desespero. Acreditamos não trair o pensamento de Heidegger se o compreendermos segundo a
seguinte afirmação de Maurice Blanchot:
Existe esperança, se ela se relaciona longe de toda a apreensão presente, de toda a
possessão imediata com aquilo que está sempre por vir, e que talvez não virá
jamais; e a esperança proclama a vinda esperada daquilo que não existe ainda
senão como esperança. Quanto mais distante ou mais difícil é o objeto da
esperança, tanto mais a esperança que o afirma é profunda e próxima de seu
destino de esperança: tenho pouco a esperar, quando aquilo que espero está quase a
meu alcance. A esperança revela a possibilidade daquilo que escapa ao possível:
ela é no limite, a relação restabelecida, lá onde está rompida. A esperança é a mais
profunda, quando ela mesma se afasta e se despoja de toda a esperança manifesta.
Mas, ao mesmo tempo, não devemos esperar, como num sonho, uma ficção
quimérica: é contra isto que se indica a nova esperança. Esperando, não o provável
que não é a medida daquilo que se pode esperar, não a ficção do irreal; a esperança
verdadeira o inesperado de toda a esperança é a afirmação do improvável e a
expectativa daquilo que é.
160
Heidegger expõe que a técnica seria capaz de se tornar aquilo que estranhamente traz
uma reviravolta. A partir de sua profundidade essencial, a técnica conseguiria restituir-se como
conjunto da metafísica, poder ser tudo e tudo reunir em si, diante de alguma outra coisa de que
foge. Para Heidegger, a técnica seria capaz de abrir-se para nos dar o recuo a partir do qual
encontraríamos algo mais importante: o mútuo pertencimento do homem e do ser É como se
Heidegger estivesse seguro de que existe no ser, pelo próprio fato de que está esquecido, a
promessa de uma reconversão essencial. O seu extremo esquecimento seria a profundidade de
sua lembrança. Segundo Heidegger, quando o ser falta, o ser está ainda profundamente
dissimulado. Aquele que tem a coragem de encarar essa falta, vê não mais o ser dissimulado
mas o ser enquanto dissimulado: a própria dissimulação. Na verdade, o que experimentamos
no Gestell é um prévio anunciar do que Heidegger chama de Ereignis.
O homem no novo início é este homem capaz de notar a luz do ser no seu extremo
velamento. O escravo massificado e sem interioridade do Gestell encontra-se estranhamente
próximo do homem do novo início, situado para além da metafísica. O brilho, a súbita
revelação do Ereignis rompe a noite do mundo da técnica. Em Identidade e Diferença
Heidegger indica que o Gestell é um primeiro lampejar do Ereignis: “é o âmbito em si mesmo
oscilante, através do qual homem e ser se alcançam sucessivamente em sua essência, chegam
ao que é essencial para eles, na medida em que perdem aquelas determinações que a metafísica
lhes conferiu”
161
. E o filósofo vai ainda mais longe quando observa:
Ainda menos nos é permitido perseguir a idéia de que o universo da técnica é de tal
espécie que impede absolutamente dele nos libertarmos. Essa opinião, possuída pelo
que é atual, tem-no como o unicamente real. Esta convicção é, aliás, fantástica: mas,
160
BLANCHOT, Maurice; A conversa infinita, p. 84
161
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 180
pelo contrário, não o é um pensamento precursor, que encara com esperança aquilo
que vem ao nosso encontro como o apelo da essência da identidade de homem e
ser.
162
Quando a técnica é pensada para além de todos os seus equipamentos e de seus
cálculos, que apenas representam aquilo que neste fenômeno se deixa imediatamente perceber,
ela possibilita um retorno à diferença ontológica. A técnica abriga a possibilidade da
ressonância do ser enquanto Ereignis; uma indicação para a aurora de um novo início. Para
Heidegger, a ação dos homens não pode transformar o atual estado técnico do mundo.
Nenhuma ação humana jamais poderá fazer frente a esse perigo. O homem não pode
desvencilhar-se da metafísica por suas próprias forças, devendo apenas aguardar a viragem
(Kehre) do próprio ser. Não podemos fazer nada a não ser aguardar e nos preparar. Sequer é
nos permitido representar e consolidar aquilo por que devemos aguardar. Para Heidegger, isto
seria justamente deixar de aguardar aquilo que aguardamos. Assim, no aguardar temos de
deixar aberto aquilo porque aguardamos. O aguardar aventura-se no próprio aberto. O próprio
aberto, enquanto clareira do ser, seria aquilo que devemos aguardar. Não vemos coisa alguma.
Se víssemos, não teríamos necessidade de esperar. Por que haveria alguém de sofrer e esperar
por aquilo que vê? O pensamento de Heidegger acentua esta dimensão de preparação,
apresentando-se como um elogio da espera.
No estado em que se encontra o mundo contemporâneo, a filosofia não poderá
efetuar uma mudança imediata. Isto refere-se não apenas à filosofia como a toda a
reflexão e empenho puramente humanos. um deus pode salvar-nos. A única
possibilidade de que dispomos é a de, através do pensar e do poetizar, propiciarmos
o surgimento de um deus. (...) Não podemos gerá-lo por meio de nosso pensamento.
Quando muito, podemos despertar a boa vontade para esperar.
163
A técnica representaria esse momento em que tudo se inverte, quando o maior perigo
se converte em segurança essencial
164
. A mão que fere pode ser aquela que também cura. Se
não mais ficarmos seduzidos e fascinados pela máscara apolínea da técnica (e também de toda
162
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 187
163
HEIDEGGER; Only a God Can Save Us: The Spiegel Interview (1966). Trad. William Richardson. In
Heidegger: The Man and the Thinker, ed. T. Sheehan, pp. 45-67
164
Nesse sentido, não é por mera casualidade que Leo Strauss faz a seguinte afirmação a respeito do pensamento
heideggeriano: “No trabalho de Heidegger não espaço para a filosofia política, e isso pode muito bem ser
devido ao fato do espaço em questão estar ocupado por deuses e pelos deuses. (...) A filosofia da história de
Heidegger tem a mesma estrutura que a de Marx e a de Nietzsche: no momento em que chega o discernimento
final, inicia-se a perspectiva escatológica. (...) A filosofia de Heidegger pertence ao momento infinitamente
perigoso em que o homem está num perigo maior do que nunca de perder a sua humanidade e, por isso sendo
que o perigo e a salvação são duas faces da mesma moeda –, a filosofia pode cumprir a função de contribuir para
a recuperação e o regresso da Bodenständigkeit [enraizamento no solo] ou, antes, a de preparar uma forma
inteiramente nova de Bodenständigkeit: uma Bodenständigkeit para além da mais extrema Bodenständigkeit
[perca do enraizamento no solo], um estar-em-casa para além da errância mais extrema. (STRAUSS, Leo; Studies
in platonic political philosophy. pp. 30, 33). Não obstante, Leo Strauss, apesar de seu acertado ponto de vista a
respeito do trabalho de Heidegger, erra unicamente ao não entender que o filósofo da Floresta Negra celebra a
espera (pelos deuses) como uma forma de estar no mundo, não como a espera de uma epifania messiânica.
a tradição metafísica) temos ainda a chance de percebermos que a própria técnica nos prepara
para habitarmos na presença do ser, para habitarmos poeticamente a terra. Apesar e por causa
de seu perigo extremo, o homem ainda pode se colocar a caminho por onde advém o que
salva
165
. Na realidade, para Heidegger, a técnica é a oportunidade e a constelação a partir de
onde possivelmente preparamos nossa disposição para a deidade, o sim rememorante ao
ser. Com efeito, é preciso compreender que o ser se na clareira apenas sob a forma deste
curso duplo, orientado para o passado e direcionado para o futuro: no presente do abandono
do ser dá-se apenas a possibilidade de rememorar a pertença ao ser e esperar a disponibilidade
de seu apelo. Por tudo isso, acreditamos que a obra deste filósofo é consagrada ao improvável.
Entendemos que seu caminho de pensamento pode muito bem ser distinguido pelo que
escreveu Yves Bonnefoy:
Dedico este livro ao improvável, quer dizer, àquilo que é. A um espírito de vigília.
Às teologias negativas. A uma poesia desejada, de chuvas, de espera e de vento. A
um grande realismo que agrava ao invés de resolver, que designa o obscuro, que
considera as claridades como nuvens sempre evanescentes. Preocupado com a
elevada e impraticável clareza.
166
Mas o melhor é ainda, respeitosamente, ficarmos presos à própria meditação heideggeriana:
O refutar-se não produz apenas os vazios da privação e da expectativa, mas junto a
estes um vazio como algo que se distancia dentro de si, distanciando-se na direção
do futuro e ao mesmo tempo fazendo surgir aquilo que já foi [ein Gewesendes]; este
último indo de encontro àquilo que está se tornando futuro constitui o presente
como aproximação no abandono, mas um abandono que recorda e espera
[erinnernd-erharrende].
167
2.5 – O perigo da técnica e a possibilidade do Ereignis.
Heidegger parte precisamente da consideração do presente como época do extremo
abandono do ente por parte do ser [Seinsverlassenheit], ao qual corresponde a experiência do
esquecimento do ser [Seinsvergessenheit] por parte do homem. É preciso fundamentalmente
reconhecer que presentemente no horizonte de nosso próprio mundo as relações técnicas
165
Mais uma vez, acreditamos que o pensamento de Heidegger pode ser iluminado e esclarecido pela escrita de
Maurice Blanchot. Para Blanchot, e acreditamos que Heidegger com ele concordaria, o improvável escapa à
prova, não pela ausência temporária de uma demonstração, mas porque nunca aparece onde se deve provar. O
improvável é o que se ergue, mas não por aprovação de uma prova. O improvável não é somente aquilo que,
permanecendo no horizonte da probabilidade e de seus cálculos, seria definido por uma probabilidade
relativamente baixa. O improvável não é muito pouco provável. Ele é infinitamente mais do que o provável: ‘quer
dizer aquilo que é’. No entanto aquilo que é permanece o improvável. (...) Se houvesse entre a possibilidade e a
impossibilidade um ponto de encontro, o improvável seria este ponto” (BLANCHOT, Maurice; A conversa
infinita, p. 85).
166
BONNEFOY, L’ improbable et autres essais, p. 1
167
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 383
desenvolvem a noção de um Aufenthalt, uma habitação, na qual viver sem angústia poderia ser
possível. Na tentativa de nos assegurarmos, fugindo do enorme desafio da liberdade e da
facticidade do viver, construímos nossa cidadela existencial com a ajuda da ciência, da técnica
e da dominação industrial da natureza. A técnica recolhe os seus atrativos desta reconciliação
que promete, sinceramente aliás, mas de um modo prematuro. Ela se esquece que a terra, esse
lugar onde habitamos, é o espelho de nossa finitude, sinal de uma impossível superação. É
preciso reconhecer que mesmo toda riqueza material proporcionada pela técnica não
representará uma solução para nossa errância ontológica: continuaremos não tendo o ser, que
não podemos nos dar.
Nesta proximidade, na clareira do “aí”, mora o homem como o ec-sistente, sem que
hoje seja capaz de experimentar propriamente este morar e assumi-lo. A
proximidade do ser, modo como é o “aí” do ser-aí, é pensada na conferência sobre
a elegia de Hölderlin “Retorno” (1943) a partir de Ser e Tempo; é a partir da poesia
do poeta que esta proximidade do ser é percebida numa linguagem mais radical e
nomeada a “pátria” a partir da experiência do esquecimento do ser.
168
Heidegger, comentando Hölderlin, afirma que o ser é o lar. O ser é a verdadeira
morada [ethos] do homem. uma habitação verdadeira onde é garantida ao homem uma
relação específica com a integridade do mundo. Se convivemos com a atual necessidade de
ocuparmos e explorarmos tecnicamente o planeta é porque esquecemos que habitar é ser e ser
é habitar. Unicamente com a morada do homem no mistério do ser estaria garantida a
preservação da experiência do que é um abrigo. A verdade do ser doa este abrigo. “O discurso
sobre a casa do ser não é a uma transposição da imagem da ‘casa’ para o ser; ao contrário, um
dia seremos mais capazes de pensar o que é ‘casa’ e ‘habitar’ a partir da essência do ser
adequadamente pensada”
169
. O desejo do homem de alcançar um abrigo será realizado
somente com seu regresso à interrogação ontológica, quando ele enfim reconhecerá que
‘habitar’ aponta para o fato de que não se encontra diante dos objetos para dominá-los.
Devemos, então, compreender que apenas o aberto propicia o abrigo. Com efeito, a verdadeira
proteção para o homem não estaria no Gestell e sim no aberto do mundo.
De acordo com Heidegger, não podemos controlar o movimento da técnica
impedindo seu desenvolvimento, pois é no ser mesmo que se dissimula o perigo. Poderá o
homem se abrir ao ser que lhe é destinado a partir da era da cnica planetária? O homem
tecnológico ao buscar o controle sobre todas as coisas acabará por ser escravizado pela atração
da conquista desenfreada de mais e mais poder? O que sabemos é que é hora de deixarmos
totalmente de lado aquele otimismo ingênuo no qual a técnica é ainda celebrada como
168
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 161
169
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos
,
p. 172
principal caminho para a felicidade humana. Algumas outras questões são importantes: poderá
o homem e o ser ainda apropriarem-se um do outro? Será que seguimos para a aurora matinal
do que ainda está por vir? Permanecerá impedido ao homem aceder à esfera essencial da
técnica? Como nos esquecemos de sua proveniência essencial? A natureza será abandonada à
maquinação? Podemos partir em busca da verdade do ser, mesmo onde esta verdade se mostra
como ausência e retração do próprio ser? Existirá a promessa de outra relação fora daquela de
dominação do ente? Aproximaremos daquilo que salva, que Hölderlin como estando junto
do perigo?
É muito claro o perigo de restar apenas o fraco relampejar de uma tempestade que,
muito afastada, não traz o raio de luz do próprio ser. Porém, Heidegger acredita que
podemos encarar a metafísica e o Gestell como uma chance, ou seja, como a possibilidade de
uma mudança em virtude da qual aquela e este se torcem numa direção que não é prevista por
sua essência própria, mas que a ela está relacionada. Heidegger pensa que o Ereignis do ser
lampeja através da estrutura impositiva do Gestell. Ele confia que o Gestell como
esquecimento extremo do ser é, ao mesmo tempo, o aceno para um possível novo início no
Ereignis. Junto ao perigo da técnica apreendemos aquilo que salva. “Quanto mais nos
avizinharmos do perigo, com maior clareza começarão a brilhar os caminhos para o que salva,
tanto mais questões haveremos de questionar”
170
.
Todavia, para Heidegger, esses caminhos permanecem como uma possibilidade cujos
contornos estão indefinidos, e cujo advento, incerto e improvável. Por outro lado, a
consumação de uma época é a disposição, pela primeira vez incondicionada e de antemão
completa, para o inesperado e para o que jamais se espera. Assim, Heidegger não se desespera
com o avanço do mundo técnico porque é animado pela probabilidade de que um poder
salvador pode emergir das perigosas profundezas do Gestell. Para além do perigo do Gestell, o
filósofo anuncia a possibilidade de um tempo que não conhecemos, a esperança e o desespero
do homem que ainda não é e, no entanto, é: espera sem direção. Heidegger nos faz crer que
alguma coisa de novo está em vias de começar, alguma coisa de que apenas se suspeita, um
leve risco de luz na base do horizonte. Essa impressão talvez não seja infundada: o Gestell é o
prenúncio do próprio Ereignis e de um futuro mais originário.
A era da técnica não é nem ocaso nem decadência. Enquanto destino, repousa no ser,
e apela ao homem. Existe ainda a possibilidade para deixarmos as coisas serem, tempo de
ainda sermos capturados pelo mistério através do qual o ser emerge no ser. Na medida em que
o homem é provocado pelo Gestell se apresenta a ele a possibilidade para compreender que o
que possui de mais próprio é unicamente sua ligação com o ser. Para Heidegger, ainda na
170
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 38
técnica teríamos a possibilidade de estarmos dispostos para novas possibilidades.
Possibilidades que não se realizarão pelas próprias forças humanas. Parece que temos que
fazer algo que, entretanto não podemos fazer, que não depende de nós, de que nós
dependemos. Ao homem cabe preparar a disposição para esperá-las, pois o modo de agir do
ser é misterioso.
Nenhuma mera ação poderá transformar a situação do mundo porque, enquanto
operatividade e operância, o ser veda o acesso de todos os entes ao acontecimento
do que lhes é próprio. Nem mesmo o sofrimento que se abate sobre a terra pode
provocar uma transformação imediata. É que o sofrimento consegue ser
experimentado passivamente, ou seja, como o que se opõe à ação, assim com ela
integrando o mesmo âmbito essencial da vontade de poder. (...) A uniformidade
incondicionada de todos os povos da terra sob a dominação da vontade de poder
evidencia a insensatez da ação humana colocada como absoluto.
171
Para Heidegger, a era da técnica é simultaneamente uma época extremamente
perigosa e cheia de promessa. Nela experimentamos um desespero muito próximo do
deslumbramento. Heidegger evidencia, assim, a ambigüidade do Gestell; lugar de extremo
perigo e também do primeiro lampejar do Ereignis. Podemos descobrir e acolher a
manifestação de chances pós-metafísicas na técnica planetária. O perigo esboça o começo
daquilo que salva. O ser chegado ao último momento de seu desvelamento seria ele próprio
capaz de inverter o esquecimento que vem de si mesmo. No Gestell temos a possibilidade de
alcançarmos um relacionamento apropriado com o ser e de afinal percebermos que o ser no seu
estar-a-ser faz uso do estar-a-ser do homem e o estar-a-ser do homem assenta no pensar da
verdade do ser. Somos chamados a compreender a unidade da ‘cabeça de Jano’ do Gestell,
cabeça bifronte que, olhando para trás, enxerga o ser como Gestell e, olhando para frente, já
antevê o ser como dádiva, o brilho do Ereignis: angústia e salvação; ativismo universal da
dominação calculante e a serenidade tranqüila do sábio abandono; crepúsculo e aurora.
Segundo Heidegger, esta coexistência dos contrários se compatibiliza com a unidade do ser. O
cálculo e a desolação reinam, mas ainda assim algo do chamado do ser ressoa e transparece.
Trata-se, assim, de corajosamente encarar o paradoxo do ser, que se deixa colher onde
parece ter abandonado a cena do pensamento, no âmbito da nova Grundstimmung, da nova
disposição fundamental para o outro início do pensamento.
Na técnica, isto é, em sua essência, vejo o homem ser colocado à disposição de um
poderio que o impele a revelar as provocações dessa essência e diante do qual ele
de modo algum é livre; vejo se anunciar algo como uma relação entre o ser e o
homem e que essa relação, que se dissimula na essência da técnica, um dia pode
se revelar em toda sua claridade.
172
171
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 86
172
HEIDEGGER; Entrevista com Walser [1969]. Cahiers de l’herne, p. 95
Fundamentalmente, o erro que Heidegger imputa a quem vive na Machenschaft é
precisamente aquele de não saber considerar adequadamente a totalidade do ente, assim como
este se apresenta na sua hipertrofia aparentemente quantitativa, para encontrar o verdadeiro
traço do ser. A Machenschaft é o âmbito em que o ser pode ressoar e em que, não obstante,
esta mesma falta aparece como velada. Em relação à Seinsfrage, ou seja, na ótica do
pensamento da história do ser, ela indica não um “comportamento humano”, mas um modo de
dar-se do próprio ser, que não em si nada de negativo: “o aceno de desprezo deve ser
deixado de lado, mesmo se a Machenschaft favorece a não essência [Un-wesen] do ser. Mas
esta mesma não essência, enquanto essencial à essência, nunca deve ser relegada ao
desprestigio
173
.
Deste modo, através do Gestell pode ainda se realizar a ocasião para que o ser deixe
ressoar mais livremente a sua essência. O Gestell é a espera silenciosa do Ereignis. Aquilo que
o presente recusa será necessariamente acolhido pelo futuro. Deste modo, Heidegger quer que
vejamos no Gestell uma redenção imprecisa e o pressentimento de uma reversão do próprio
tempo. É o Gestell uma aposta em favor do futuro.luz na escuridão. Assim, Heidegger nos
leva a pensar que o problema do Gestell não é apenas o problema da ameaça que faz pesar
sobre o homem, mas também o do fim desta ameaça. A técnica não seria uma simples
manifestação da desgraça do homem moderno, mas um movimento rumo a uma realidade
ainda oculta, um outro início do ocidente ainda por chegar. e apenas onde se nota o
máximo esquecimento do ser, o ser pode ressoar em sua essência mais própria, mesmo se
como refutação. Heidegger observa:
Será, então, que um desencobrimento concebido de modo mais originário seria
capaz de fazer aparecer, pela primeira vez, a força salvadora no meio do perigo que,
na idade da técnica, mais encobre do que mostra? Outrora não apenas a técnica
trazia o nome technè. Outrora, chamava-se também de technè o desencobrimento
que levava a verdade a fulgurar em seu próprio brilho. Outrora, chamava-se também
technè a pro-dução da verdade na beleza. Technè designava também a poíesis das
belas artes. (...) Ninguém poderá saber se está reservada à arte a suprema
possibilidade de sua essência no meio do perigo extremo. Mas todos nós poderemos
nos espantar. Com o quê? Com a outra possibilidade, a possibilidade de se instalar
por toda parte a fúria da técnica até que, um belo dia, no meio de tanta técnica, a
essência da técnica venha a vigorar na apropriação da verdade. Não sendo nada de
técnico a essência da técnica, a consideração essencial do sentido da técnica e a
discussão decisiva com ela m de dar-se num espaço que, de um lado, seja
consagüíineo da essência da técnica e, de outro, lhe seja fundamentalmente
estranha. A arte nos proporciona um espaço assim. Mas somente se a consideração
do sentido da arte não se fechar à constelação da verdade, que nós estamos a
questionar. Questionando assim, damos testemunho da indigência de, com toda
técnica, ainda não sabermos a vigência da técnica, de, com tanta estética, não
preservarmos a vigência da arte. Todavia, quanto mais pensarmos a questão da
essência da técnica, tanto mais misteriosa se torna a essência da arte. Quanto mais
173
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 126
nos avizinharmos do perigo, com maior clareza começarão a brilhar os caminhos
para o que salva, tanto mais questões haveremos de questionar. Pois questionar é a
piedade do pensamento.
174
174
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, pp. 36-38
CAPÍTULO 3: O NIILISMO COMO PREPARAÇÃO FUNDAMENTAL
PARA A TÉCNICA MODERNA
3.1 – A morte de Deus
Para Heidegger, a metafísica detém o poder de decidir e determinar a história do
Ocidente. Mas na medida em que a história da metafísica é a história dos encobrimentos e dos
desencobrimentos do ser, ela é do mesmo modo a história do niilismo. História, metafísica e
niilismo são três diversos nomes para indicar a mesma coisa. Antes de qualquer coisa, o
imperialismo tecnológico de nosso tempo é uma expressão do niilismo, não sua causa e muito
menos ele próprio. É preciso entender que o niilismo não é apenas um fenômeno casual que se
apresenta ao final da história da metafísica, mas algo que traduz a necessidade da própria
história e da metafísica em seu conjunto. O niilismo se encontra no cerne da metafísica
ocidental e a reflexão sobre a sua essência deve se originar de uma discussão do ser enquanto
ser.
Estamos ainda longe de ingressarmos no entendimento do autêntico significado do
niilismo como história do esquecimento do ser. Estamos habituados a ouvir no nome niilismo
sobretudo uma dissonância; entendemos por niilismo uma doutrina pessimista que acena
inquestionavelmente para o sofrimento ilimitado da morte de Deus. No lugar de Deus se
instaura o reino do Nada. Onde tudo se impulsiona para o nada domina o niilismo. Para
Heidegger, todas estas interpretações do fenômeno do niilismo sequer se aproximam da
profundidade de sua essência. É preciso saber previamente aquilo que niilismo significa. Na
verdade, o niilismo ultrapassaria a simples edificação da ditadura do nada. “Nem todo aquele
que apela para sua cristã e para uma qualquer convicção metafísica está por isso fora do
niilismo. Mas, ao contrário, também aquele que cisma sobre o nada e sua essência não é um
niilista”
175
. Heidegger deseja saber se a designação niilismo, pensada rigorosamente dentro da
filosofia de Nietzsche, tem apenas um significado negativo que impele para o nada anulador.
Na verdade, ele procura por uma discussão mais exata que encare o niilismo como o limite
extremo da metafísica. Segundo Heidegger, se trata de no niilismo fazermos uma experiência
direta do fim para preparar a passagem ao outro início; deste modo, o niilismo alude àquele
175
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 254
lugar de colheita em que a origem se desvela como possibilidade não realizada e de onde,
conseqüentemente, se extrai força a nova decisão histórica de “começar do início”
176
.
O niilismo é um movimento histórico, não uma qualquer visão e uma qualquer
doutrina, representadas por quem quer que seja. O niilismo movimenta a história
segundo o modo de um processo fundamental que quase não é reconhecido no
destino dos povos ocidentais. Daí que o niilismo também não seja apenas um
fenômeno histórico entre outros, nem seja apenas uma corrente espiritual que
aparece entre outras, como o cristianismo, o humanismo e o iluminismo, dentro da
história ocidental
177
.
Freqüentemente se crê que a essência do niilismo se mostra através do dramático
anúncio de Nietzsche: “Deus está morto”. Na realidade, Nietzsche exprime uma fórmula
teológica, e, ao que parece apenas negativa, para aquilo que ele entende por niilismo.
ouviste falar de um louco que, numa manhã de sol, acendeu uma lanterna e
correu para o mercado, gritando sem cessar: 'Procuro Deus, procuro Deus!?' Como
os que lá andavam e o ouviram não acreditavam em Deus, provocou-se o riso geral.
'Por quê? Ele perdeu-se?' disse um. 'Perdeu-se no caminho como uma criança?'
disse outro. 'Ou ter-se-á escondido?'... e assim troçavam dele rindo-se. O louco
saltou para o meio deles e trespassou-lhes com o olhar. 'Onde está Deus?',
perguntou. 'Dir-vos-ei. Matamo-lo vós e eu. Todos nós somos seus assassinos.
Mas como é que o fizemos? Como é que fomos capazes de beber o mar? Quem nos
deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós quando desligamos a terra
do seu sol? Onde está ele agora? E para onde vamos nós? Será que nos afastamos
de todos os sóis? Não estaremos nós continuamente a mergulhar? Para baixo, para
o lado, para a frente, em todas as direções? Saberemos ainda o que está certo e o
que está errado? Não andaremos à deriva como se atravessássemos um nada
infinito? Não sentimos o sopro do espaço vazio? Não é verdade que ele é cada vez
mais frio? Não será que nos espera uma noite cada vez mais negra?... Deus morreu.
E continua morto. E fomos nós que o matamos. O que havia de mais sagrado e
mais poderoso em todo o mundo foi mortalmente ferido pelos nossos punhais.
Quem limpará o sangue que nos cobre? Não será esse ato demasiadamente grande
para nós? Não teremos que nos tornar deuses apenas para parecermos dignos desse
ato?
178
O acontecimento irremediável da morte de Deus, o niilismo enquanto história, adquire
conotações negativas e é descrito por Nietzsche em formas dramáticas que são inseparáveis.
Julgamos que a morte de Deus parece dominar a existência e a obra de Nietzsche, e, se existem
nessa filosofia pensamentos fundamentais, esta envolve a todos.
179
O discurso de Nietzsche
176
HEIDEGGER; Domande fondamentali della filosofia. Selezione di “problemi” di “lógica, p. 91
177
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, pp. 252-253
178
NIETZSCHE, Frederich apud Heidegger; Caminhos de floresta, pp. 249-250
179
Como Jaspers, entendemos que Nietzsche busca Deus sem o saber. Karl Jaspers que indaga se a negação de
Deus, em Nietzsche, não seria a insatisfação sempre em movimento de uma busca de Deus que não mais se
compreende. O mundo da fé, do qual Nietzsche é, ao mesmo tempo, radicalmente excluído e extremamente
próximo. Por sua vez, Heidegger interpreta o suposto ateísmo de Nietzsche como um silêncio consciente sobre
Deus, e ainda o discurso da morte de Deus como um grito por Deus. Todavia, Heidegger afirma em seu
discurso do reitorado, em 1933, que Nietzsche é o último filósofo alemão, apaixonadamente buscando a Deus.
Podemos dizer da significação religiosa do ateísmo de Nietzsche.
trata os homens como seus assassinos. O ato da morte de Deus não pode jamais ser
evidentemente expiado através de nenhum festejo de expiação. Nenhuma água poderia
purificar os homens que também não mais conseguem pensar nem inventar jogos sagrados
para purificação. Os homens são pequenos para a grandeza desse ato. O homem não está, em
sua essência, à altura da grandeza desse ato. Este ato que nem mesmo pode penetrar seus
ouvidos (o louco nunca virá no momento certo, estará sempre adiantado aos acontecimentos;
interrogado e expulso, poderá ser a testemunha louca de um ato grandioso que sempre
parecerá mais afastado do que as mais longínquas estrelas e, que, todavia, está presente, está
realizado).
Heidegger entende que, pensado metafisicamente, Deus se apresenta como um
correlato do mundo supra-sensível. Este desde Platão vale como o mundo verdadeiro e
autenticamente real. O mundo supra-sensível indica o lugar das idéias, valores, objetivos,
normas, ideais, regras e princípios que governam o ente em sua totalidade dando-lhe uma
ordem, uma finalidade, um significado. Só que agora Deus está morto. O mundo supra-
sensível está sem força operante. Ele não mais irradia nenhuma vida: o mundo verdadeiro
acabou por se tornar uma fábula. Temos o desmoronamento das referências normatizadoras
que sempre guiaram e orientaram o homem em meio ao real: tudo isso é reduzido a nada
(nihil). Será que, como Nietzsche, podemos crer que a partir deste momento erramos através
de um nada infinito? O dito “Deus morreu” contém a verificação de que este nada se propaga,
demonstrando a ausência de um mundo supra-sensível e vinculativo. “O niilismo, o mais
inquietante de todos os hóspedes, está à porta”
180
. Esse hóspede entrou em casa e deixou de ser
hóspede, restando apenas à filosofia tentar com ele conviver.
Os nomes Deus e Deus cristão no pensar de Nietzsche são usados para a
designação do mundo supra-sensível em geral. Deus é o nome para o âmbito das
idéias e dos ideais. Se Deus morreu, enquanto fundamento supra-sensível e
enquanto meta de tudo o que é efetivamente real, se o mundo supra-sensível das
idéias perdeu a sua força vinculativa, e sobretudo a sua força que desperta e edifica,
então nada mais permanece a que o homem se possa orientar. (...) No dito “Deus
morreu”, o nome Deus, pensado essencialmente, designa o mundo supra-sensível
dos ideais, que contém as metas para esta vida, existentes acima da vida terrena, e
deste modo a determinam de cima para baixo e, assim, de certo modo, de fora para
dentro.
181
O que significa niilismo? Para Nietzsche, niilismo deve ser entendido como um
processo no qual acontece a desvalorização [Entwertung] dos valores supremos,
tradicionalmente estabelecidos, a partir de Platão, em um mundo diverso e separado. A partir
desta desvalorização somos afligidos por uma tremenda desorientação. O mundo não participa
180
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 252
181
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, pp. 250, 254
dos anseios internos do homem, ele próprio sem fins e sem objetivos, parou de sancionar
qualquer possível finalidade humana.“Falta a meta; falta a resposta ao porquê?
182
. Nesse
sentido, o mundo moderno já não apresenta uma hierarquia interna do ser, deixando sem apoio
ontológico os valores. Na busca de sentido e valor o homem é inteiramente rechaçado de volta
a si mesmo. “O sentido não é mais encontrado e sim ‘dado’; o valor não é mais percebido na
contemplação do ser objetivo, mas colocado como um ato de valor atribuído. Como função da
vontade, minha única criação são os fins. A vontade substitui a contemplação; a temporalidade
do ato expulsa a eternidade do ‘bem em si’”
183
.
O niilismo é o acontecimento do desvanecer de todo o peso de todas as coisas.
Nietzsche concebe o niilismo como este processo histórico de desvalorização dos valores – tais
como: Deus, a verdade, o belo, o bem pertencentes ao mundo supra-sensível e que desde o
início da metafísica eram considerados supremos. Deixamos para trás tudo o que é cúmplice de
Deus: verdade, moral, razão. Aliás, perdemos até mesmo aquelas metas que, enquanto ideais
determinantes da vida terrena sensível, transportamos para o lugar do mundo supra-sensível e
que representaram apenas variantes da precedente interpretação teológica do mundo: a
autoridade da razão, o progresso, a felicidade da maioria, a cultura, a civilização. Assim,
proclamando a morte de Deus, Nietzsche se voltou não contra o domínio das idéias
platônicas, mas também contra os ideais do período moderno; na verdade, ele capta o vigor
incansável do platonismo na história ocidental, desocultando sua presença mesmo nas formas
mais escondidas, desmascarando desta maneira tanto o cristianismo quanto todo o processo de
secularização.
Para Nietzsche, o niilismo não deve ser visto como sinônimo manifesto de
decadência. A morte de Deus revela ao homem a extraordinária possibilidade de assumir a si
mesmo como critério normativo e medida para as próprias ações. Além disso, o sacrifício de
Deus é, antes, um pressuposto indispensável para que o homem tome consciência desse nada
que o institui e que é o fundamento de sua liberdade. A negação de Deus está ligada a algo
positivo, mas esse positivo é o homem como negatividade sem descanso, infinito poder de
negar a Deus: liberdade. O desmoronamento infinito de Deus torna possível que a liberdade
tome consciência do nada que é seu fundamento, sem fazer desse nada um nada absoluto. Uma
vez que o homem experimenta a ausência de qualquer recurso para um ser incondicionado, o
que realmente importa é, sobretudo, a sua experiência como liberdade e a estrutura da sua
liberdade como poder incondicionado de se separar de si, de escapar a si, de se desembaraçar
por uma eterna contestação. O niilismo permite que o espírito do homem enquanto liberdade se
182
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 257
183
JONAS, Hans; O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica, p. 236
afaste de toda mera reconciliação. Na realidade, o pensamento de Nietzsche afirma a recusa a
uma salvação, o não a essa permissão grandiosa de repousar, de se descarregar de si mesmo
sobre uma verdade eterna, que para ele é Deus. O homem deve renunciar a parar numa última
bondade, numa última sabedoria
184
.
O assassinato de Deus é, com efeito, o suicídio inevitável do Deus metafísico.
Entregar-se, de forma enlevada, a Deus e aos ideais é cultivar a morte. Talvez Deus realmente
esteja morto porque o homem não fez outra coisa senão profaná-lo, pensando-o pequeno e o
medindo de acordo com sua própria pequenez
185
. Heidegger sustenta que “sempre onde
comparece a teologia, Deus começou sua fuga”
186
. De fato, o niilismo se faz presente no
teólogo quando este demasiadamente se apressa em nomear o seu Deus. Os verdadeiros
responsáveis pela morte de Deus e os verdadeiros blasfemos não são os ateus, aqueles que não
crêem, mas todos aqueles teólogos e crentes “que falam do mais ente de todo ente sem nunca
lhes ocorrer pensar no ser mesmo, para perceber nisso que este pensar e aquele falar, vistos a
partir da fé, são pura e simplesmente a blasfêmia de Deus”
187
.
Ao mesmo tempo, Heidegger sabe que Deus não pode ser dito e que o homem está
então em plena confusão diante de um Deus que se arrisca destruir ao querer conhecer. Por
isso, o que ele mais deseja é permanecer orientado para reverenciar aquilo que é desconhecido
em sua infinita distância. Para o filósofo da Floresta Negra, o próprio cristianismo foi o
principal responsável pela desdivinização do mundo. “A desdivinização é o estado de ausência
de decisão sobre o deus e os deuses. Ao cristinianismo cabe a maior parte no seu despontar.
Mas a desdivinização não não exclui a religiosidade, como é até através dela que a
relação aos deuses se transforma na vivência religiosa. Ao chegar-se aqui, é porque os deuses
fugiram”
188
.
184
Neste mundo onde “Deus está morto” o homem pode ser interpretado em seu abandono no centro do ente ou
em sua autonomia individual. Para todo filósofo moderno e isso não apenas em Nietzsche essa interpretação
tornou-se a pedra de toque da filosofia.
185
Segundo São Gregório de Nissa, os conceitos fazem ídolos de Deus, só o espanto apreende algo. O conceito é
como ídolo, algo que nos aliena da percepção do divino. O discurso sobre Deus ocorre nos limites extremos das
possibilidades da linguagem. Todo o dizer sobre Deus se consuma na dialética entre a fala e o silêncio. Em
suma, nos defrontamos sempre com a necessidade de sermos místicos; sentimos a necessidade de irmos ao
encontro do mundo enquanto “o limite indizível do mundo”. Também o primeiro Wittgenstein nos diz que “as
condições de sentido são inefáveis”: a distinção do Tractatus entre o mundo acessível e exprimível e a “substância
do mundo” inacessível e inefável. A filosofia e a literatura podem ser uma investigação da possibilidade do
significado, que no movimento mesmo dessa investigação culmina numa abertura para o mostrar-se do inefável.
Segundo o comentário de David Pears: a idéia orientadora de Wittgenstein era de que nós podemos ver além do
que nós podemos dizer. Nós podemos ver todo o caminho até à extremidade da linguagem, mas as coisas mais
distantes que nós podemos ver não podem ser expressas em sentenças porque elas são as pré-condições do dizer
qualquer coisa (Pears, David, The false prision, p. 67).
186
HEIDEGGER; lderlins Hymne “Andenken”, p. 133
187
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 298
188
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 98
Voltando propriamente a Nietzsche, podemos afirmar que blasfemar contra a terra é,
agora, a mais terrível ofensa. Na verdade, sua reflexão implica um sim para a vida, uma
fidelidade à terra, à plenitude e superabundância da existência terrena. De fato, Nietzsche fez
de tal sim o fundamento operativo de sua filosofia. É, agora, exigida do homem uma “dureza”
e uma “coragem” desconhecida até então. Uma coragem capaz de recusar qualquer garantia e
de abandonar a tentação de esperanças sobreterrenas. A coragem heróica daquele que o
abismo, mas com orgulho. Nós, que sentimos a “morte de Deus”, que perdemos o que nós
perdemos, somos obrigados a assumirmos a condição de errantes que não param em lugar
algum.
Para Nietzsche, o mundo é agora uma porta a mil mudos e frios desertos. Somos
agora chamados a aceitar um mundo essencialmente caótico e incerto. Nietzsche quer, assim,
espíritos livres capazes de glorificar a contingência e de lutar pelo aquém. Talvez não haja
maior revolução possível em filosofia do que descer assim do além para o caráter histórico do
homem plenamente despido de um princípio superior do qual derive. A riqueza do ser está na
sua finitude, isto é, em seu caráter abissal, em seu caráter de evento; assim sendo, criemos a
nós mesmos em um oceano de possibilidades caóticas. O próprio homem tem que se perceber
desatrelado da eternidade ao menos da eternidade atemporal das idéias, essências, estruturas
– e se descobrir temporal do começo ao fim. Devemos procurar entendê-lo segundo sua
própria lei. Rejeitemos toda fé num além, toda ilusão sobre-humana; toda realidade não é nada
senão fenomênica, portanto situada no aquém.
Pensemos também nesse homem dotado das maiores forças possessivas, animado
por uma extrema energia, que não se contenta de modo algum com as promessas de
um vago além, mas que deseja ver tudo, ter tudo e apropriar-se de tudo, que é ligado
à terra, que tem “na medula e nos ossos” “aquela obstinação com a terra”, “o gosto
frio da terra”, a exigência das coisas visíveis e do universo presente, que não quer
sacrificar nada de si mesmo, que repele com todas as suas forças a derrota e, com
todas as suas forças, aspira à vitória e ao domínio.
189
Nietzsche se revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde de Platão, segundo
a qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia. O mundo supra-sensível é o
reflexo ilusório do mundo sensível: é o lugar para o qual olham todos aqueles que, impotentes
e fracos para promoverem a vida, caluniam a terra e vivem no ressentimento. Contudo, para
Heidegger, o fato de Nietzsche inverter o platonismo, rejeitando qualquer mundo supra-
sensível, não significa que ele não seja um metafísico, e, sim, que é o último metafísico. Com
Nietzsche esgotam-se as possibilidades da metafísica. Ele permanece, apesar de todas as
inversões e transmutações, no caminho ininterrupto da tradição. Por isso, Heidegger identifica
189
BLANCHOT, Maurice, O livro por vir, p. 99
Nietzsche como o filósofo do limite: o pensador que mais pronuncia em seu pensar o
esquecimento do ser.
Enquanto mero contra-movimento, ela permanece necessariamente, como todo o
anti –, presa na essência daquilo contra o que se vira. O contra-movimento de
Nietzsche contra a metafísica é, enquanto mera reviravolta desta, o enredamento
sem saída na metafísica, tanto que esta se isola contra a sua essência e, enquanto
metafísica, nunca consegue pensar a sua essência própria. Daí que para a metafísica
e através dela permaneça encoberto aquilo que nela acontece, e aquilo que acontece
autenticamente como ela mesma.
190
Heidegger propõe a equivalência entre metafísica e platonismo; o essencial da
metafísica estaria no platonismo, culminando no niilismo, e na “morte de Deus”, do Deus
moral cristão que perde seu poder sobre o destino dos homens. É como uma estrela morta
muito tempo, mas que continua a brilhar ilusoriamente. O grito delirante do louco é a
constatação cida da morte de um Deus já morto desde há muito tempo. A filosofia de
Nietzsche deseja redimir, de maneira libertadora, o homem deste seu espírito de vingança que
repugna o tempo, o passar. Nietzsche deseja esta redenção da relutância de nossa vontade
contra o tempo, contra o passar e sua transitoriedade. Depois dele, o que menos que qualquer
outra coisa se concilia com a filosofia é o ponto de vista de que o tempo, em última análise,
não seria real, mas apenas a forma fenomenal sob a qual uma realidade intemporal e inteligível
aparece a um sujeito que “em si mesmo” também é parte deste mundo inteligível. Sendo assim,
Nietzsche desafiou os pressupostos básicos da metafísica tradicional invertendo
conscientemente a hierarquia tradicional dos conceitos. “Para Nietzsche, a filosofia ocidental
compreendida como platonismo, está no fim. Nietzsche compreende a sua filosofia própria
como o contra-movimento contra metafísica, isto é, para ele, contra o platonismo”
191
.
3.2 – A modernidade e a fuga dos deuses.
O homem moderno não é aquele que procura descobrir a si mesmo, seus segredos e
sua verdade escondida; ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo. A modernidade não
liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe confere a tarefa de elaborar a si mesmo. O homem
moderno não é nem o homem do Renascimento, feliz de ser um eu brilhante e passageiro, e
ainda menos o romântico, que se contenta em desejar em vão e aspirar sem fruto. É o homem
que só tem certeza daquilo que toca, não cuida de si mas daquilo que faz, não quer sonhos mas
resultados, para quem conta a obra e a plenitude da obra. Na modernidade, o fazer humano
190
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 251
191
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 251
passa a ser concebido e cumprido como cultura. Até mesmo a arte experimenta o processo de
se deslocar para o âmbito da estética. Isso indica que a obra de arte torna-se objeto de vivência
e, conseqüentemente, a arte vale como expressão da vida do homem. A partir deste momento,
o indivíduo como homem pertence e está abandonado a si mesmo, tornando-se, assim, um tipo
de sujeito e objeto total de seu próprio saber. A despeito de todas estas particularidades, a
modernidade significa a própria exacerbação do projeto metafísico.
O campo de reflexão referente a investigações sobre a modernidade engloba um
grande repertório de questões e conecta diferentes linguagens teóricas, configurando-se em um
espaço bastante rico em possibilidades analíticas. Tendo conhecimento disso, decidimos
privilegiar uma de suas mais importantes dimensões: a desdivinização do mundo. Heidegger
fala da desdivinização para indicar a constatação da ausência de Deus. Passemos, então, a
ressaltar o fato de na modernidade ocorrer um forte processo de desdivinização, ou seja, a
ordem do mundo não é mais dada por Deus que afastou a sua face dos homens. Torna-se
prescindível a revelação, a graça divina e um justo luto começa invadir a terra. O cuidado com
o culto da religião se dissolve em favor do entusiasmo pela criação de uma cultura ou pela
ampliação da civilização.
O homem moderno é aquele que se descobre e se enfrenta como pura imanência;
deve, por isso, compreender que o aqui não pode mais ser trocado por um lá. Privado da
presença benfazeja dos deuses, da familiaridade do verbo inspirado, este se vê lançado sobre si
mesmo, no desnudamento e no abandono de sua solidão ontológica. Deste modo, na
modernidade o homem elabora a si mesmo privado das imagens tranqüilizadoras do Absoluto,
estando condenado a experimentar neste desamparo a privação de Deus [Gottes Fehl].
A falta de Deus significa que não existe um Deus que reúne em si, visível e
univocamente, as pessoas e as coisas e que, com base nessa reunião, articule a
história do mundo e a estância humana nessa história. A falta de Deus anuncia,
porém, algo de muito pior. Não se foram os deuses e Deus, como também se
apagou na história do mundo o fulgor da divindade. O tempo da noite do mundo é o
tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão
indigente que já nem é capaz de notar que a falta de Deus é uma falta.
192
Na modernidade torna-se claro o abismo do deus fugido. Isso permite identificar a
enorme distância entre o reino de Deus, lugar da redenção e da glória divinas, e o desespero e
precariedade do mundo dos homens. Espaços infinitos e medonhos, como diz Pascal, separam
o homem de Deus
193
. O horror vacui do Barroco ganha uma dimensão especial no mundo
192
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 309
193
PASCAL, B; Pensamentos, p. 95
profanado da modernidade
194
. Nesta situação se destaca, assim, o esvaziamento espiritual do
universo e a “noite dos deuses” (Hölderlin). Encontramos-nos, com efeito, num universo
subitamente privado de luzes, num tempo de desamparo onde, como disse Hölderlin, os deuses
já partiram ou ainda não chegaram. A modernidade aponta para uma experiência que é
propriamente noturna, que é aquela própria da noite. Estamos lançados na angústia de uma
noite da qual não podemos acordar e na qual não podemos dormir. Cresce sobre a Terra uma
noite histórica cuja escuridão administram as potências do niilismo.
A vida apresenta-se desnudada de um sentido superior e o homem deve se tornar,
como lhe chama Hölderlin, o migrador, aquele que, como os sacerdotes de Dionísio, erram de
região em região na noite sagrada. Essa migração errante do homem moderno pertence à
outra margem, não consiste em aproximar-se de Canaã, mas em acercar-se da verdade da
própria aridez. Esta migração tem por objetivo o deserto e é a aproximação do deserto que
constitui agora a verdadeira Terra Prometida. A modernidade anuncia o banimento, a noite
sagrada e condena ao silêncio dos céus eternos. Os deuses desviaram-se, estão ausentes,
infiéis, e ao homem cabe compreender o sentido sagrado dessa infidelidade divina não a
contrariando, mas realizando-a por sua parte. Pois ainda nesta infidelidade se revelaria a
pureza da lembrança divina.
Para Heidegger, mesmo esta ausência de Deus nos ajuda, Gottes Fehl hilft. Esta noite
é dor mas, sobretudo, espera. Assim, Heidegger sustenta que esta ausência dos deuses não é
uma forma puramente negativa de relação. Esta pode ser convertida em intervalo; em um
momento por vir seremos (talvez!) capazes de ver o céu em sua evidência vazia e, nesse vazio
manifesto, o rosto do Deus longínquo. Num de seus poemas Hölderlin afirma: “é Deus
desconhecido? Ele aparece como céu? Acredito mais que seja assim
195
. Com efeito, o céu não
é um outro mundo, mas a própria profundidade deste mundo. Esta noite sagrada fala do dia,
é o seu pressentimento, é sua reserva e profundidade. A claridade pode ser entendida numa
unidade com a obscuridade e a silenciosidade do estranho. Deus gera estranheza e na
estranheza ele anuncia a sua proximidade ininterrupta: a profunda estranheza onde o invisível
resguarda a sua essência, na fisionomia familiar do céu. O deus desconhecido deve aparecer
194
Este Deus tem em si mesmo mais nihil do que ens. Uma transcendência negativa de que a positividade do
mundo é a contrapartida qualitativa. Esta transcendência perdeu sua força operante uma vez que ela não mais se
relaciona com o mundo normativamente. “Noutras palavras, no tocante à relação do ser humano com a realidade
que o envolve, este Deus escondido é uma concepção niilista: dele não parte lei nenhuma nenhuma lei para a
natureza, e com isto também nenhuma lei para o agir do ser humano como parte da ordem da natureza” (JONAS,
HANS. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica, p. 245).
195
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 171
como o que se mantém desconhecido. A revelação de deus e não ele mesmo, esse é o
mistério
196
.
A noite, ela mesma, é a sombra, aquela obscuridade que jamais pode se tornar
simples treva porque, enquanto sombra, está confiada à luz, permanecendo algo
lançado pela luz. (...) O céu não é, contudo, mera luz. O brilho de seu alto é, nele
mesmo a obscuridade dessa sua vastidão tudo abrangente. O azul do céu sereno é a
cor do profundo. O brilho do céu é a aurora e o crepúsculo do ocaso, que recolhe
tudo o que se pode dizer. Esse céu é a medida.
197
Para Heidegger, ocorre em nosso tempo uma escassez de nomes sagrados. Sendo
assim, o homem moderno é aquele que se encontra agora abandonado pelos deuses e tem
muita dificuldade de nomear o sagrado, pois faltam nomes sagrados, nomes que estejam
fortemente associados a uma experiência concreta e histórica do sagrado. Assim, a
modernidade torna-se historicamente a máxima expressão de um tempo de aflição, de
desamparo, em que os deuses estão ausentes duas vezes, porque já não estão aí e porque ainda
não estão aí. Esse tempo vazio é o do erro, quando não fazemos mais do que errar, porque a
certeza da presença nos falta, bem como as condições de um aqui verdadeiro. E, no entanto,
de acordo com Heidegger, o erro ajuda-nos, das Irrtum hilft. É do deserto que sobe o sopro de
Deus.
Querer despertar os deuses de sua morte ou chamá-los de volta de sua fuga seria um
inútil ato de violência, que se fosse coroado de sucesso, recolocaria os deuses unicamente em
uma presença inautêntica e pouco divina: com a ilusão de recolocá-los em vida, decretar-se-ia
em realidade sua morte definitiva. Por isso a renúncia que se dá no luto não significa
verdadeiramente uma perda como poderia parecer ao pensamento representativo e
calculante mas um ato de respeito, um abandono no sentido de assumir a cura. Apenas na
renúncia, a deidade dos deuses que se foram é preservada como tal: na sua distância, eles
permanecem próximos enquanto ausentes. A renúncia é a única possibilidade disponível para
nossa época permanecer atenta ao divino. O fato de que os deuses fugiram não significa que o
divino tenha se eclipsado para sempre do espaço do Dasein, mas que este reina na forma
crepuscular. Assim, a morte de Deus é uma experiência indispensável para conservar aberto o
espaço do divino.
A melancolia torna-se constitutiva do estado de espírito da modernidade, do mundo
da técnica, da ciência, do mundo sem Deus. A modernidade é o momento no qual o homem
"em estado de criatura" deve assimilar o choque da sua degradação, da sua finitude. O homem
faber, caracteristicamente moderno, será o homem do Gestell e da ciência, aquele que fabrica
196
“Eu me pergunto se não é isto que Heráclito enuncia, quando diz que a palavra sagrada o expõe nem
esconde, mas indica(BLANCHOT, A conversa infinita, p. 71).
197
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 178
seu próprio destino num mundo repleto de suas intromissões. Num mundo que pressupõe a
retirada de Deus das questões humanas, o homem mais do que nunca é forçado a levar em
consideração a vulnerabilidade de sua existência. Enfim, resta-lhe aceitar com heroísmo o
saber antecipado de sua morte. Vida que a morte doura de longe - verdade inteira; a
modernidade, assim, se apresenta como momento oportuno para que o homem repita o salmo:
“ensina-nos a contar os nossos dias para que ganhemos um coração sábio”.
Com efeito, a morte não se insinua somente sob a forma do acidente possível; ela
desenha, com a vida, com os seus movimentos e o seu tempo, a trama única que a um só tempo
a constitui e a destrói. Como poderíamos considerar a morte como “negativo”? De fato, ela se
revela agora como a possibilidade mais própria, através da qual o Dasein pode alcançar a sua
autenticidade e a sua historicidade. “Enquanto possibilidade mais extrema da presença
humana, a morte não é o fim do possível, mas a cordilheira mais elevada (a montanha
reunidora) do misterioso chamado para um descobrir”
198
. Não podemos, deste modo, vincular
finitude com exasperação e desespero mas com amor fati, amor do destino como tal. Talvez
todos nós precisemos de um limite inelutável de nossa expectativa de vida para nos instigar a
contar os nossos dias e fazer com que eles contem para nós. A respeito dessa radicalização da
finitude moderna, Pierre Thévénaz afirma:
A consciência da finitude moderna não é mais aquela dos antigos: finitude negativa
que remetia o homem ao absoluto e ao infinito, conforme o movimento a posteriori
da existência de Deus, sendo a contingência do mundo e do homem apenas o
inverso de um absoluto positivo. Hoje, o sentido dos limites fundado sobre o
absoluto desrealizado não desrealiza o finito em proveito do infinito. Acontece o
inverso. Somente uma finitude verdadeiramente desabsolutizada é também uma
finitude verdadeiramente positiva.
199
O fato é que nossa cultura atravessou o limiar a partir do qual reconhecemos que a
finitude deve ser pensada numa infindável referência a si mesma. Paralelamente a isso
contemplamos um céu onde, fora as estrelas, o vazio; um céu de perfeita imparcialidade
que não se alegra com nossas alegrias e não se entristece com as nossas tristezas. Não
podemos mais invocar o tão necessário auxílio dos céus, uma vez que dele já nada obtemos ao
lhe dirigir o olhar. A modernidade conseguiu acrescentar, aos pontos estrelados, o vazio como
plenitude, fazendo então cintilar maravilhosamente as estrelas, porque não lhes falta mais a
imensidão do espaço vazio. O céu está mais azul, certamente, muito mais do que antes. Em
seu novo brilho, o azul intenso do céu contraposto ao vazio, não nos conta sobre o que se
perdeu mas também sobre o que ainda não chegou.
198
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 26
199
THÉVENAZ, Pierre, apud Stein, Ernildo; Melancolia, p. 1
Segundo Heidegger, a modernidade é um tempo de penúria, colocado entre deuses
que partiram e deuses que ainda estão a caminho. Tempo em declínio que, por sua vez,
também pode deixar de reconhecer sua própria carência. Heidegger afirma: “não apenas se vai
perdendo o sagrado como vestígio que conduz à divindade, como também se vão extinguindo
os vestígios deste vestígio perdido”
200
. Próximo da noite, o homem moderno deve enfrentar
corajosamente a tragédia do distanciamento dos deuses, acatando o constrangimento de
manter-se à margem dos deuses e dos homens. Podemos supor que se encontra ainda
reservada uma virada para este tempo indigente? Para Heidegger, esta quiçá se tornará
possível quando o homem afinal reconhecer que o Nada não se opõe ao ser, mas a ele
pertence constitutivamente. Ao distinguir o não-ser como ser cabe conseqüentemente a ele
assumir a necessidade da própria finitude, entendendo, desta maneira, a morte como a sábia
companheira e característica essencial de sua existência. A morte como “escrínio [Schrein] do
nada e resguardo [Gebirg] do ser”
201
é onde o pavor se torna possibilidade e êxtase, onde a
celebração se lamenta e a lamentação glorifica.
Supondo que se encontra ainda reservada uma virada para este tempo indigente, ela
apenas poderá surgir se o mundo virar radicalmente, ou seja, dito de uma forma
mais precisa, se ele virar a partir do abismo. Na era da noite do mundo, tem que se
experimentar e suportar o abismo do mundo. Mas para tal, será necessário que haja
quem consiga chegar até ao abismo. A súbita entrada em cena, saindo do seu
esconderijo, de mais um deus ou do velho deus não é suficiente para que se
propicie esta virada na era do mundo. No seu regresso, para onde poderia ele
dirigir-se, se os homens não prepararam previamente a sua estância? (...) Talvez a
era do mundo se torne completamente um tempo indigente. Por outro lado, pode
ser que não, talvez ainda não, sempre ainda não, apesar da miséria incomensurável,
apesar de todos os sofrimentos, apesar do sofrimento sem nome, apesar da
propagação da ausência de paz, apesar da confusão crescente. É longo o tempo
porque mesmo o horror, tomado como um fundamento da viragem, não é capaz de
nada, enquanto não se der uma virada com os mortais. Ora essa virada apenas se
dará quando os mortais encontrarem a sua própria essência. Pertence à sua essência
o fato de serem eles, e não os celestes, a chegar primeiro ao abismo.
202
3.3 – A modernidade e a metafísica da subjetividade
No mundo moderno o universo não mais aparece como um domicílio construído por
Deus para o homem. não se afirma mais o homem como um filho especial de um Deus
redentor e benevolente. Percebemos a autonomia do homem que “se liberta da vinculação à
verdade da revelação cristã e à doutrina da Igreja, para uma legislação que se põe com base em
200
HEIDEGGER, Caminhos de floresta, p. 313
201
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 156
202
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 313
si mesma e que é para si mesmo”
203
. A redenção humana está agora exclusivamente no livre
desdobrar de si mesmo quanto às suas capacidades criadoras. Além do mais, passamos a flertar
com a certeza de que não mais podemos escrever nenhuma teodicéia. Será que como seres
abandonados ainda estamos dispostos a pagar o preço por estarmos vivos no mundo?
Entoaremos felizes aquele louvor que é o louvor do “todo”, isto é, do mundo? De fato, na
modernidade caminhamos presos a suspeita de que a vida, tal como ela se desvela a nós,
carece amplamente de justificação.
Se antes a teologia medieval assegurava a realidade do universo como cascata de luz
que jorrava "de cima", como emanação divina que conectava interna e objetivamente as
diversas jurisdições do cosmos, o súbito distanciamento do sagrado impunha à atividade
ordenadora do sujeito a tarefa de reconstruir, de "baixo para cima", esta ordem fragmentada e
partida do mundo. Com efeito, temos com a dessacralização este encontro medularmente
trágico entre um mundo ‘objetivo’ em evanescência e uma subjetividade nascente que pode
encontrar a sua substância no que era encanecido. Heidegger observa: “novo na época
moderna em relação à era medieval cristã consiste no fato de que o homem, independente e
unicamente por seu esforço, luta para tornar preciso e seguro seu ser humano em meio ao
existente”
204
. Temos uma ordem perdida das coisas que o sujeito metafisicamente isolado e
estruturalmente sobrecarregado quer renovar em vão valendo-se de suas próprias forças. É
necessário advertir que, para Heidegger, toda esta transformação do homem em sujeito e do
mundo em objeto é uma conseqüência do estabelecimento da essência da técnica e não o
contrário.
Costuma-se sempre denominar como um traço particularmente característico o fato
de a Modernidade não partir mais desde Descartes da existência de Deus e das
provas da existência de Deus, mas sim da consciência, do eu. Em verdade, vemos
que o eu, a consciência, a razão, a pessoa, o espírito encontram-se no centro da
problemática moderna. Se atentarmos para isto e perguntarmos se no interior desta
posição central do eu, da autoconsciência, vem à tona por fim o fato de que na
filosofia moderna o eu questionador é co-inserido na pergunta, então precisaremos
dizer: com certeza isto acontece, mas de uma maneira peculiar. Pois o eu, a
consciência, a pessoa são de tal modo incorporados pela metafísica que este “eu”
não é mais de forma alguma colocado em questão. Isto não significa uma simples
omissão quanto à colocação da questão, mas o eu e a consciência são justamente
tomados por base como o fundamento mais seguro e inquestionável. O eu mesmo
se transforma em fundamento para todo o questionar ulterior.
205
Verificamos que “no pensamento moderno, a relação do homem consigo mesmo
passa a ser concebida de modo psicológico, isto é: como autoconsciência de um sujeito [vis-à-
203
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, pp. 131-132
204
HEIDEGGER; Nietzsche. Vol IV, Nihilism, p. 89
205
HEIDEGGER; Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão, p. 66
vis um objeto]”
206
. Fundamentalmente, temos o Eu que se afirma como atividade originária, e
que assim se conhece ou se intui a si mesma. Se a modernidade é marcada por esta primazia do
problema da subjetividade e pela requisição por certeza é porque a concepção do mundo como
pirâmide, que leva da terra ao céu, cai em descrédito. Com efeito, a vida própria da
subjetividade é possível e necessária quando temos o abandono do mundo por Deus. O
homem, assim, coloca-se como o portador solitário do espírito; o Eu torna-se o caminho de
acesso ao universo. Passa a ser tarefa da subjetividade a busca de uma ordem e um centro
organizador da vida; e, de fato, vemos toda a substancialidade do mundo se dissipar em
reflexão. Em suma, o que observamos é a interpretação filosófica do homem que explica e
avalia, a partir dele para ele, o ente na totalidade.
A consciência do meu eu não acompanha a consciência das coisas, comporta-se
como se pudesse observar as coisas com a postura de um viajante distanciado. A
consciência das coisas e objetos torna-se essencial e primariamente autoconsciência.
Apenas como tal é possível como consciência. Assim é que, para o modo de
representar descrito, o eu se torna o que subjaz no fundo mais profundo, se torna
subjectum.
207
Heidegger deseja tornar claro que esta orientação do mundo moderno para a
consciência tem sentido porque é co-determinada pelo modelo grego de conhecimento.
Nesse sentido, a metafísica moderna conserva uma unidade com a que procedeu porque, sob a
aparente descontinuidade, uma mesma, embora não idêntica, interpelação do homem.
Assim, não há nenhuma ruptura decisiva entre a objetividade do pensamento grego e a
subjetividade epistemológica e metafísica da filosofia moderna. A suposta descontinuidade
entre a objetividade grega, a subjetividade cartesiana, o conceito kantiano de experiência e sua
presumida inversão idealista não atinge de maneira alguma a unidade da história da metafísica.
Todas estas perspectivas se mantêm aquém da verdade do ser. Em resumo, Heidegger procura
destacar o fato de que este moderno primado ontológico da interioridade não é independente
da tradição filosófica; a filosofia, na verdade, se constituiria numa tradição única que se
iniciaria com os gregos e que teria seu cumprimento no mundo governado pela técnica.
A metafísica da modernidade começa ao procurar o incondicionalmente
indubitável, o certo, a certeza, e tem nisso a sua essência. Trata-se, segundo a
expressão de Descartes, firmum et mansurum quid stabilire, de estabelecer algo
sólido e permanente. Este constante [Ständige], enquanto objeto [Gegenstand],
basta para a essência do ente, que vigora desde a antiguidade, como o que está
constantemente presente, que subjaz já em todo o lado (subjectum). Também
Descartes, como Aristóteles, pergunta pelo subjectum. Na medida em que
Descartes procura este subjectum, no caminho pré-traçado da metafísica, encontra,
206
HEIDEGGER; Heráclito, p. 321
207
HEIDEGGER; Nietzsche. Vol IV, Nihilism, p. 108
pensando a verdade como certeza, o ego cogito como o que está constantemente
presente. Assim, o ego sum torna-se subjectum, isto é, o sujeito torna-se auto-
consciência. A subjetividade do sujeito determina-se a partir da certeza desta
consciência. (...) É inerente à subjetividade, como primeira determinação essencial,
que o sujeito representador se assegure de si mesmo, isto é, constantemente
também do que por ele é representado enquanto tal. De acordo com tal garantia, a
verdade do ente, enquanto certeza, tem o caráter de segurança [Sicherheit]
(certitudo). O saber-se-a-si-mesmo, onde está a certeza enquanto tal, permanece,
por um lado, uma variante da essência vigente da verdade até agora, ou seja, da
correção [Richtigkeit] (rectitudo) do representar.
208
Na modernidade, o homem se acha solitário, como único portador de substancialidade
em meio a figurações reflexivas. Este se torna o sujeito e o objeto do seu conhecimento.
Portanto, passamos a conviver com a suposição da soberania da consciência como doadora de
sentido e fundadora do mundo enquanto significação. Toda a capacidade de tomar consciência
das coisas e do ser como um todo se refere a esta subjetividade humana consciente de si
mesma. Diante das terras infinitas da realidade desprovida de toda significação, da diversidade
sem lei do sensível, da obscura e informe matéria a ser dominada, é confiado à consciência o
trabalho de captar a totalidade do mundo. O Eu passa a ser toda a realidade, o mundo é a sua
representação. Esta subjetividade transcendental é convocada a criar novamente o mundo
exterior, aprendendo a dar unidade sintética às impressões vindas do exterior; mundo exterior
estruturado por formas e categorias subjetivas, ou seja, algo que está fora da consciência, esse
algo sendo, aliás, no caso, a própria consciência. Piotr Hoffman confirma:
A filosofia moderna desvia-se das coisas do mundo e concentra-se no eu humano
que as interioriza em pensamento, e as converte em ação. O eu torna-se o
repositório, quer das suas verdades quer dos seus principais objetivos. Por isso, o eu
humano adquire uma nova posição, a de base autônoma da realidade. Nesta nova e
destacada posição, o eu deixa de ser visto como parte de uma qualquer ordem
independente das coisas. Começando com o cogito de Descartes, o eu distancia-se
do mundo e refugia-se nas suas próprias experiências e pensamentos. A
subjetividade do eu proporciona quer o ponto de partida quer o terreno apropriado
para se fazerem tentativas filosóficas no sentido de remodelar o conhecimento que
temos do mundo.
209
208
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, pp. 275, 281
209
HOFFMAN, Piotr; A morte, o tempo e a história: II parte de Ser e Tempo, em Poliedro Heidegger (org)
Charles Guignon, p. 213. Não cabe neste trabalho uma discussão pormenorizada da filosofia moderna. Todavia,
rapidamente, podemos afirmar que toda essa reconstrução do mundo a partir da consciência igualar-se-ia a uma
segunda criação, já que nesta reconstrução seu caráter contingente, que é ao mesmo tempo seu caráter de
realidade, seria retirado, e o mundo não mais apareceria como algo dado ao homem, mas como algo criado por
ele. Em outras palavras, com esta transformação de um ser alheio em consciência, a maioria dos filósofos
modernos busca tornar o mundo novamente humano. Procuram despertar novamente em nós a antiga afeição
pelo mundo. Deste modo, a filosofia moderna que sabe que o ser como tal é incognoscível não vai se ocupar
com o objeto material mas com a consciência (ou experiência) desse objeto. Enfim, a filosofia moderna deve ser
caracterizada por esta busca para se reconciliar com o fato de que o homem não é o criador do mundo. Ela busca
evocar de novo um lar a partir de um mundo que se tornou estrangeiro.
Para Heidegger, toda esta absolutização do sujeito se constitui no motivo fundamental
para que o mundo se estabeleça como imagem e, por conseguinte, passe a depender do que é
representado pelo cálculo e pela contabilização tecnológica.
Onde o mundo se torna imagem, o ente na totalidade está estabelecido como aquilo
para o que o homem se prepara, como aquilo que, por isso, correlativamente, ele
quer trazer para e ter diante de si e, assim, pôr diante de si num sentido decisivo.
Imagem do mundo, compreendida essencialmente, não quer, por isso, dizer uma
imagem que se faz do mundo, mas o mundo concebido como imagem. O ente na
totalidade é agora tomado de tal modo que apenas e é algo que é, na medida em
que é posto pelo homem representador-elaborador. Onde se chega à imagem do
mundo, cumpre-se uma decisão essencial sobre o ente na totalidade. (...) O
entrelaçamento, decisivo para a essência da modernidade, dos dois processos – que
o mundo se torna imagem e o homem se torne sujeito lança, ao mesmo tempo,
uma luz sobre o processo fundamental, à primeira vista quase contraditório, da
história moderna. Quanto mais abrangente e inexoravelmente o mundo estiver à
disposição como conquistado, quanto mais objetivamente aparecer o objeto, tanto
mais subjetivamente, isto é, tanto mais manifestadamente se erguerá o subjectum,
tanto mais irresistivelmente a consideração do mundo e a doutrina do mundo se
transformará numa doutrina acerca do homem, em antropologia. Não é de admirar
que só onde o mundo se torna imagem surja o humanismo
210
.
Fundamentalmente, alcançamos o momento final da tradição metafísica quando o
homem encontra a fonte da verdade universal naquilo que se pode constituir como objeto de
suas representações. Ele concebe, assim, a verdade do mundo e dele próprio nos termos de sua
capacidade de dominar tudo o que é representável. Todavia, essa reconstrução da totalidade
partida feita através da consciência o esforço infinito para alcançar a identidade primeira, o
Eu = Eu está destinada a revelar-se um fracasso. Em outras palavras, esta meta jamais será
atingida; ou melhor, a subjetividade constitutiva e sua estrutura transcendental nunca podem
ser o fundamento e a garantia da totalidade do mundo. O Eu não pode vir a sintetizar em si
toda a realidade pensável; uma totalidade de sentido não pode vir a fechar-se em seus próprios
limites. Existe a presença permanente de uma irredutível distância entre a consciência e o
mundo. A realidade jamais será uma categoria imanente da consciência e o interior das coisas
nunca será uma construção do espírito. Sintetizando, a moderna tentativa de uma relação
imediata da consciência com o mundo jamais se concretizará: o saber do mundo não se
apresentará como um saber de si. Afinal, o pensamento é uma tensão vivificante entre a
intuição de unidade com o objeto por parte daquele que o contempla e a sua intuição da
alteridade do mesmo objeto.
O “Cogito moderno” não define a existência do sujeito pelo pensamento que tem este
de existir, nem converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo. Os limites
da filosofia moderna remetem primordialmente à incapacidade de colocar devidamente a
210
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, pp. 112, 116
questão relativa ao âmbito ontológico de onde é possível extrair o fio condutor do problema do
ser. Não colocar esta questão significa condenar a filosofia a permanecer em um horizonte de
preconceitos admitidos de maneira não crítica. Passemos, então, a questionar o ser do homem
nessa dimensão pela qual o pensamento se dirige ao impensado e se articula nele. Neste
sentido, ainda podemos destacar mais um fato irrefutável: um cogito, portanto, que constata a
impossibilidade de igualar-se, um dia, o Eu penso ao Eu sou. Em outras palavras, o Eu sou que
dá início a toda a revolução do pensamento moderno não é competente para explicar a
contingência e a realidade das coisas. Aliás, por mais que tentemos nosso filosofar não
conseguirá expulsar o acaso, nosso esforço de decifrar a todo custo uma legalidade sob o
fortuito que se na superfície é inútil. Com a modernidade, a contingência se tornou o
destino do ocidente, uma contingência que não podemos excluir das histórias e das fatalidades
humanas. O sujeito cognoscente está agora fadado a aceitar que sua razão não mais se
apresenta como um campo de luz que permita um acesso direto à realidade originária do
mundo. A partir de tudo isso, somos levados a concluir que a finitude não deve mais ser
entendida como um território cujos limites posso traçar, mas sim entrevista como a própria
sombra do homem, como uma opacidade originária que nenhum exercício da consciência de si
jamais poderá dissipar. A respeito disso, Gérard Lebrun complementa:
Para marcar essa nova Finitude, não é mais preciso meditar na dependência da
substância criada relativamente ao Criador, ou na fragilidade do “junco pensante”
perante um universo que pode esmagá-lo a qualquer momento. Não é mais preciso,
sequer, confrontar as condições de meu conhecimento com a Idéia de um
“entendimento intuitivo”. Estamos postos, agora, diante de um Faktum que escapara
ao pensamento clássico: a saber, que o ser humano somente se pode pôr como
sujeito e como indivíduo porque já está “aprisionado” num elemento estranho,
investido por algo que lhe é Outro. Por certo, o classicismo podia falar de “meu
lugar limitado no universo, [de] todos os marcos que medem o meu conhecimento e
a minha liberdade” mas, não chegava a reconhecer essa alienação constitutiva,
inextirpável.
211
Verdadeiramente, existe um fato em relação ao qual a filosofia moderna não pode
estar tranqüila, a saber: que o homem é compelido a aceitar um ser que ele nunca criou e que
lhe é essencialmente alheio. Para Heidegger, somos agora obrigados a admitir que a existência
não é mais um domínio efetivo do ser, correlativo à essência, mas a simples posição dos
objetos no tempo. Por isso, dizer que existem coisas é formular um juízo de realidade. A
existência mesma não é um atributo ou predicado, e dela nada se pode predicar. Insusceptível
de receber a forma de um conceito, ela fica, dessa maneira, à margem do pensamento como
algo espantosamente outro, alheio, obscuro. A filosofia heideggeriana reconhece a
irredutibilidade da existência pura aos conceitos do pensamento; de fato, os limites do
211
LEBRUN Gérard; A filosofia e sua história, p. 342
conhecimento frente ao incompreensível puro e simples fundam positivamente a possibilidade
de saber. Desse modo, Heidegger encontra-se constantemente diante do desafio do
incompreendido e do incompreensível, e, por meio daí, ele é impulsionado para o caminho do
questionamento e da compreensão. Na realidade, acreditamos que tudo o que foi dito
particularmente neste parágrafo constitui-se ainda numa explicação assaz convincente para o
fato de Heidegger evitar tanto o conceito de consciência quanto o conceito de objeto.
Entendemos ser esta atitude uma das principais razões que o motivaram a uma retomada do
questionamento do ser enquanto tal. Por conseguinte, concordamos com Gadamer quando
observa:
O que constitui o caráter revolucionário no empreendimento heideggeriano é o fato
de ele não colocar uma pergunta crítica por detrás da consciência, no sentido em
que a psicologia profunda e a crítica à ideologia à sua maneira fizeram, mas de ele
colocar a pergunta radical sobre o que se tem de compreender propriamente por
“ser” e de afirmar que isso não é acessível quando as pessoas se recolhem apenas
na suposta autenticidade da consciência e da autoconsciência. Assim, Heidegger
propiciou a retomada da pergunta platônico-aristotélica acerca do “ser” e
transformou com isso em verdade o todo da filosofia mais recente, que não se
apoiava com certeza em vão desde o idealismo alemão, e, antes de tudo, desde o
neokantismo, no conceito cartesiano do cogito, em um empreendimento muito mais
radical. Agora encontramo-nos em uma confrontação com a origem grega do
Ocidente.
212
As objeções de Heidegger à ontologia moderna, deste modo, dizem respeito a dois
pontos: de um lado, a incapacidade de colocar sob suspeita a tradicional supremacia do teórico
não compreendido e circunscrito como uma das possíveis formas de relação com a realidade
–, incapacidade que se manifesta na tentativa de colocar o problema ontológico a partir do
esquema conceitual sujeito-objeto; de outro, a incapacidade de colocar adequadamente o
problema crucial da filosofia, a questão do Dasein da vida, “a partir do qual a filosofia é”
213
.
Esta não reativação do problema da vida torna impossível, em via de princípio, para a
ontologia moderna, conseguir seu próprio objetivo. A questão da efetividade da vida, com
efeito, representa a via através da qual unicamente é possível e necessário responder a
pergunta sobre o ser. “A estrutura do compreender puro se torna compreensível apenas a partir
de seu enraizamento ontológico na vida efetiva e da sua específica gênese nesta
214
. Enfim,
Heidegger pretende, redimensionando o tradicional primado da contemplação, do theorein,
chegar a uma modalidade de pensamento capaz de colher a efetividade da vida, aquele âmbito
no mundo situado, além da distinção entre sujeito e objeto.
212
GADAMER, Hans-Georg; Hermenêutica em retrospectiva / Vol I – Heidegger em retrospectiva, pp. 40-41
213
HEIDEGGER; Ontologie. Hermeneutik der Faktizität, p. 3
214
HEIDEGGER; Interpretzioni fenomenologiche di Aristotele. Elaborazione per le facoltà di Marburgo e di
Gottinga (1922), p. 64
Além disso, é indispensável compreender que no atual horizonte técnico a relação
entre homem e mundo já não mais se enquadra perfeitamente no modelo clássico da moderna
metafísica da subjetividade. Para Heidegger, mesmo o esquema conceitual sujeito-objeto
termina por desaparecer diante da massa uniformemente calculável da disponibilidade. Hoje,
se torna insustentável a perspectiva que concebe modernamente o ser, no sentido da
representabilidade dos objetos enquanto objetividade para o eu da subjetividade. Nosso modo
atual de desvelamento do ser do ente, de estar na verdade, não é mais a objetividade, mas
sim a disponibilidade, a necessidade de ser a todo o momento empregado e consumido. Este
mais novo desdobramento da maneira de ser do objeto não é simplesmente uma superação da
perspectiva clássica da representação, mas a sua plena realização.
No sentido da dis-ponibilidade, o que é já não está para nós em frente e defronte
como objeto. Quando o des-coberto não atinge o homem, como objeto, mas
exclusivamente, como disponibilidade, quando, no domínio do o-objeto, o
homem se reduz apenas a dis-por da disponibilidade então é que chegou a última
beira do precipício, lá onde ele mesmo se toma por dis-ponibilidade.
215
Esta conversão de todo existente em matéria prima, em reserva para exploração, em
estoque, não poupa o homem. O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a
refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto. Essa culminação de
seus poderes pode muito bem significar a sua subjugação. No atual estágio alcançado pelo
Gestell descobrirmos que o processo de objetivação nivela o objetivante e o objetivado. O
perigo é que o homem passe a se compreender como matéria bruta disponível, participando do
poderoso processo de produção do real como um simples elemento de reserva. Deste modo, as
características humanas tão somente funcionariam como lubrificante para o arrebatador
movimento do Gestell. Os seres humanos apareceriam como peças desnecessárias na
articulação dos sistemas da possibilidade técnica. Com efeito, assistimos à conversão de tudo o
que existe, incluindo o homem, em manancial de recursos. Embora o homem à primeira vista
desponte como responsável pelo processo, seu lugar nele, por isso mesmo, é incerto, senão
fantasmagórico.
Mesmo a idéia de um controle técnico da técnica pela vontade do homem é uma
ilusão que nos vem, com toda certeza, de um vestígio de subjetivismo e de um
desconhecimento da essência ilimitada da vontade de poder. Assim, o que ameaça, na técnica,
para além das perspectivas de destruição pura e simples, é, para Heidegger, esse encerramento
do processo sobre si mesmo, nele englobando o homem como disponível numa espécie de
imanência desprovida de sentido. Este esclarecimento toca provavelmente em algo certo: o
215
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 21, 29
comum-pertencer de técnica e niilismo. O perigo diz, desta maneira, justamente à própria
essência do homem, isto é, de ser aquele que responde pelo próprio ser! É fundamental
conquistar um novo equilíbrio, de maneira que nosso pensamento não se esgote apenas no
domínio (e exploração) da natureza, isto é, na disponibilização de tudo nós mesmos
inclusive.
3.4 – A vontade de poder
No pensamento moderno onde assistimos ao predomínio temático do conceito de
consciência o ser torna-se objeto. O objeto é instância contrária (resistente). O objeto é desde o
princípio visto a partir da energia com a qual a vontade aspira a superar a resistência. Trata-se
aqui de uma vontade de domínio que se manifesta no conceito de “objeto”. Por isso, o saber-
se-a-si-mesmo da metafísica moderna da subjetividade tanto é concepção [perceptio], como é
também ambicionar e querer [appetitus]. Conceber e ambicionar pertencem conjuntamente a
uma unidade cujo traço fundamental é a força [vis], caso em que a força é pensada como a
realidade do real. É preciso indicar que “dentro da metafísica moderna, é Leibniz que pela
primeira vez pensa o subjectum enquanto ens percipiens et appetens. No caráter de vis do ens,
ele pensa pela primeira vez de um modo claro a essência da vontade do ser do ente”
216
. Com
efeito, não há representação sem poder descarregado expansivamente sobre o mundo.
Para este querer, tudo se torna, à partida, e em seguida de uma forma irresistível,
material da elaboração que se impõe. A terra e a atmosfera tornam-se matéria-
prima. O homem torna-se material humano que é colocado ao serviço dos objetivos
propostos. A instalação incondicionada do impor-se incondicional da elaboração
propositada do mundo vai se configurando necessariamente nos moldes do mundo
humano, num processo que surge da essência oculta da técnica. É apenas a partir da
era moderna que esta essência começa a desenrolar-se como destino da verdade do
ente na totalidade, ao passo que, até agora, as suas manifestações dispersas e as
tentativas pontuais se mantinham integradas no extenso domínio da cultura e da
civilização.
217
É a partir do eu que Descartes funda a objetividade e quanto mais esse eu se torna
profundo, insaciado e vazio, mais se torna ilimitado e agressivo o ímpeto da vontade humana
que estabelece, por um desígnio ainda inapercebido, o mundo como um conjunto de objetos
capazes de serem elaborados no processo de produção técnico-industrial. Os valores
expressados pela vontade são as mediações necessárias à afirmação incondicionada do sujeito
humano. A interpretação de Nietzsche dos entes como vontade de poder é, na opinião de
216
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 282
217
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 333
Heidegger, um antropomorfismo em grande estilo. Nietzsche localiza o homem no centro do
universo. Tudo deve apresentar-se a ele para ser julgado. “Niilismo seria, pois, no sentido
heideggeriano, a indevida pretensão de que o ser, em vez de subsistir de modo autônomo,
independente e fundante, esteja em poder do sujeito”
218
. Na verdade, Nietzsche consuma a
metafísica da subjetividade ao fazer da vontade de poder o fundamento da certeza e ao definir
a verdade como apoderamento e dominação. Em resumo, a subjetividade enquanto vontade
de poder que coloca a si mesma suas próprias condições – se assegura na própria permanência,
na constante presença de si a si mesma.
É o homem que é solicitado pela vontade de poder, sem se dar conta da essência
dessa vontade. É de suma importância compreendermos que, para Nietzsche, o ser daquilo que
é passa a se manifestar de modo próprio como vontade. Para ele, a vontade deste querer não
deve ser entendida como uma faculdade da alma humana. Esta vontade não é nada que possa
ser apreendida psicologicamente porque ela agora se mostra como princípio que estabelece as
condições do ente em sua totalidade. Por sua vez, Heidegger complementa: “aquilo que a
vontade quer, ela esforça-se por consegui-lo não apenas como algo que ainda não tem. Aquilo
que a vontade quer, ela já o tem. Pois a vontade quer a sua vontade. A sua vontade é o que por
ela é desejado. A vontade quer-se a si mesma. Ela ultrapassa-se a si mesma”
219
. Esta vontade
não tem um escopo externo a ser alcançado: ela tende apenas a si mesma, à sua própria
expansão e potencialização. Em resumo, leitor de Schopenhauer, Nietzsche apresenta o mundo
como representação da vontade. Porém, torna-se crucial percebermos que para Nietzsche esta
vontade é constitutivamente vontade de poder.
Assimilado à vontade de poder o real se converte no valor de um infinito querer.
Com efeito, Nietzsche detalha o último capítulo da história do ser preenchida agora pela
doutrina da vontade de poder. Esta é considerada a extensão final da metafísica. Entendemos
que a filosofia nietzschiana é uma proclamação da vontade de poder e conserva-se na pura
afirmação da vida pelo super-homem, homem esse que é a partir da realidade efetiva
determinada pela vontade de poder e para ela. Fundamentalmente, Nietzsche proclama com a
sua doutrina da vontade de poder o começo da era da dominação incondicional da metafísica,
pois o super-homem pode e deve se dispor a assumir o domínio sobre a terra.
Para Heidegger, ao afirmar a transvalorização dos valores supremos Nietzsche deseja
instaurar a vontade de poder enquanto valor fundamental, uma vez que esta absorve o sentido
do real. “O acabamento da metafísica realiza-se em meio à transvaloração de todos os valores
até agora sobre o fundamento da ‘nova’ instauração dos valores. Esta valora a partir da
218
VATTIMO, Gianni; O fim da modernidade, p. 5
219
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 270
vontade de poder e em função desta última enquanto o valor fundamental (‘princípio’)”
220
.
Mas isto não quer dizer que temos simplesmente de colocar novos valores no lugar dos
antigos. O próprio “lugar” desapareceu, uma vez que não um mundo supra-sensível como
sede privilegiada para os valores. Novos valores não devem vir do céu, e, sim, brotar da
própria vida, isto é, da totalidade do real, colhida na sua dimensão essencial. Transvaloração
dos valores significa agora não somente que o poder está estabelecido como o valor mais
elevado, e sim que o poder coloca e sustenta os valores.
Tudo o que é, é enquanto condição de possibilidade de poder, isto é, enquanto
valor. O ser enquanto vontade de poder se deixa pensar se o pensamento for um
pensamento valorativo; e isso de tal maneira que este pensamento precisa instaurar
as condições de conservação e, isto significa ao mesmo tempo, de elevação do
poder incondicionado.
221
O que se passa com o ser, na era em que começa o domínio de uma vontade de poder
incondicionada? Ora, uma vez que a presença em geral (isto é, o ser do ente) é aqui reclamada
como uma condição da vontade de poder, o ser mesmo se torna um valor. Este, onde ainda é
preciso, só pode valer como um valor. Benedito Nunes ajuda-nos a entender toda esta mudança
de perspectiva quando, didaticamente, esclarece:
As coisas são reais, na medida em que correspondem ao termo ou ao objetivo de
nossos impulsos, e é nessa correspondência que elas significam algo para nós. Não
nenhuma essência que possa ser separada dessa significação que a elas
atribuímos. Então, o estado de existência das coisas, uma vez que estão ligadas à
significação que lhes damos, passa a ser um estado de seu valor: as coisas não
simplesmente existem; mediante a significação que lhes é dada, elas também valem.
Seu valer é seu ser. embora elaboremos conceitos abstratos, segundo as exigências
do intelecto, nunca desconsideradas por Nietzsche, a vontade de poder, rege esse
conflito que nos mostra que o existem coisas em si: as coisas sempre
correspondem ao que aspiramos.
222
Podemos inferir que da vontade de poder à significação, da significação ao valor,
tudo isso se movimenta no circuito das interpretações transitórias que fazemos das coisas. Para
Heidegger, a própria idéia de valor não deixa de ser uma projeção da subjetividade moderna,
tendo sempre como sua fonte a vontade de poder. É preciso, assim, compreender que a partir
da vontade de poder anuncia-se pela primeira vez o próprio niilismo: o fato de não se ter nada
a ver com o ser mesmo que agora se torna um valor. Paradoxalmente, o ser quando é alçado
até o valor cai na mais profunda nulidade, tornando-se desprovido de qualquer valor. Deste
220
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 68
221
HEIDEGGER; Nietzsche: niilismo e metafísica, p. 66
222
NUNES, Benedito; Hermenêutica e poesia. O pensamento poético, p. 131
modo, todo o perguntar ontológico torna-se supérfluo. O próprio ser torna-se um peão no jogo
jogado pela vontade de poder para assegurar sua própria subsistência e intensificação.
Importa, finalmente, reconhecer que, justamente pela caracterização de algo como
“valor”, rouba-se a dignidade daquilo que assim é valorado. Isto quer dizer: ao
avaliar algo como valor, aquilo que foi valorado é apenas admitido como objeto
para a avaliação pelo homem. Mas aquilo que é algo em seu ser não se esgota em
sua objetividade e, sobretudo, de modo algum, então, quando a objetividade tem o
caráter de valor. Todo valorar, mesmo onde é um valorar positivamente, é uma
subjetivação. O valorar não deixa o ente ser, mas todo valorar deixa apenas valer o
ente como objeto de seu operar. O esdrúxulo empenho em demonstrar a
objetividade dos valores não sabe o que faz.
223
Pensando o ser como presença e como valor, Nietzsche permanece participante tanto
do esquecimento metafísico do ser e de sua verdade quanto da não colocação em questão deste
mesmo esquecimento. Por isso, Heidegger conclui que Nietzsche não realizou a superação do
niilismo. Talvez tenha sido o responsável pela sua intensificação. A essência do niilismo é o
processo em que, no fim, do ser como tal nada mais há. Recusamos o apelo do ser e tratamos o
ser como um nada [nihil]. Permanecer no esquecimento do esquecimento do ser limitando-se a
relacionar tão somente com o ente – eis o niilismo. Segundo Heidegger, a metafísica de
Nietzsche ocultaria pura e simplesmente o esquecimento do ser através da incondicionalidade
do pensamento valorativo, fazendo com que o abandono do ser característico do ente se torne
dominante. Em resumo, niilismo, para Heidegger, é a época em que o ser não é mais
reconhecido enquanto ser; época em que o esquecimento desse mesmo ser atinge a sua forma
mais extrema, quando a subjetividade moderna vai se essencializar como vontade de domínio.
À vontade de potência cabe atribuir o ser, porque é essa mesma vontade que tudo
comensura, e que tudo comensurando, de acordo com as forças instintivas, vitais,
que tendem à dominação, converte o ser em fumaça. é real o que é objeto de
avaliação; o real, que também pode ser chamado de vida e como tal conjunção e
dispêndio de forças, está na dependência dos valores criados por nós. Somente
podemos conceber um mundo que tenha sido feito por nós. Mas o valor é sempre
uma conversão da vontade de potência. O cerne da interpretação de Heidegger
consiste em haver apontado essa conversão, depois de mostrar como da simples
vontade com que o idealismo germânico trabalhou resulta a vontade de potência.
224
No acontecimento planetário do Gestell o niilismo, convergência do poder da técnica,
alcança a fase da sua consumação. O desafio da técnica é já, na sua essência histórica, a
conseqüência do ser do ente aparecer no modo da vontade de poder. A essência da técnica é
algo que corresponde ao império dessa vontade. O domínio sobre o ente no evento da
provocação técnica revela este novo ímpeto do homem determinado pela vontade de poder que
223
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 167
224
NUNES, O Nietzsche de Heidegger, p. 49
passa também a ser a fonte dos valores. Esta se torna, assim, a prefiguração da vontade técnica
a qual pertence a capacidade de calcular, regular e organizar a usura do real. Segundo
Heidegger, temos de saber que esta vontade de vontade, símbolo máximo de nossa época, não
encontrará rapidamente o seu ocaso, ao contrário, se reforçará ainda mais com o abuso
desenfreado dos entes realizado pela técnica. Para que a vontade possa ser contínua e uniforme
é preciso como condição fundamental que ela assegure a totalidade dos entes como
disponibilidade. A consolidação do ente como disponibilidade é uma condição necessária
posta pela própria vontade de poder como garantia de si mesma. Já estamos em condições de
perceber que a vontade de poder é um impulso e uma preparação fundamental ao Gestell.
Para Heidegger, Nietzsche aponta com sua doutrina da vontade de poder a chegada da
era da dominação incondicionada da metafísica. A técnica moderna possibilita gradualmente a
encarnação dessa doutrina em todos os entes, antes de mergulhar profundamente no próprio
modo de ser da humanidade. Além disso, no niilismo, a razão enquanto traço essencial do
homem não é absolutamente destruída. “Ao contrário, somente agora ela é colocada a serviço
da vontade que quer a si mesma e assume para esta o asseguramento calculador de todo ente:
isto é, o asseguramento calculador da verdade”
225
. Liga-se à vontade de poder o predomínio
incondicionado da razão calculadora. A era tecnológica deve ser entendida como vontade de
poder destituída de qualquer finalidade ou propósito que não seja sua própria expansão
interminável. Com a técnica, encontramo-nos diante da tirania da vontade de poder e da
completa realização do niilismo. Heidegger justamente deseja mostrar a relação entre a
essência do niilismo completo e a realização técnica da metafísica: “a zona da linha crítica, isto
é, o lugar da essência do niilismo perfeito deve, por conseguinte, ser procurada ali, onde a
essência da metafísica desenvolve suas possibilidades extremas e nelas se concentra”
226
.
3.5 – O niilismo
Para Heidegger, Nietzsche não é o destruidor da metafísica. Ele se torna ao mesmo
tempo o seu mais feroz adversário e o seu involuntário porta-voz. O que Nietzsche faz, melhor
do que qualquer outra tradição de pensamento, é promover pela primeira vez uma clareza
quanto ao esquecimento do ser. Na verdade, o pensamento de Nietzsche, permanecendo
emaranhado na metafísica, radicaliza maximamente este esquecimento e não produz senão o
acabamento da essência niilista de todo o pensamento ocidental. Deste modo, o niilismo de
modo nenhum pode ser compreendido como o estado, representado de um modo meramente
225
HEIDEGGER; Nietzsche: niilismo e metafísica, p. 198
226
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 49
negativo, de não mais admitirmos a crença no Deus cristão da revelação bíblica. O niilismo
não está somente onde o Deus cristão é negado e o cristianismo combatido. Para Heidegger, se
tomarmos em consideração apenas essa descrença que nos separa do cristianismo estaremos
com o nosso olhar continuamente preso à fachada exterior e indigente do niilismo. A simples
decadência do Deus cristão e a descrença generalizada não acenam para a essência do niilismo.
Naqueles que dessa maneira simplesmente não têm fé, o niilismo, o destino de sua própria
história, ainda não penetrou de todo. “A descrença, no sentido da apostasia da doutrina da
cristã, nunca é por isso a essência e o fundamento, mas sempre uma conseqüência do niilismo;
pois poderia ser que o próprio cristianismo seja uma conseqüência e uma configuração do
niilismo”
227
.
Para Heidegger, devemos compreender qual a verdadeira origem do niilismo: esta
origem é a própria metafísica. “A essência do niilismo não é nada de niilístico, e nada será
tirado da clássica dignidade da metafísica, pelo fato de abrigar em sua própria essência, o
niilismo”
228
. Com efeito, a essência do niilismo não é absolutamente coisa do homem, mas
coisa do ser mesmo.
O âmbito para a essência e para o acontecimento-de-apropriação [Ereignis] do
niilismo é a própria metafísica, sempre que não visemos, neste nome, uma doutrina
ou mesmo apenas uma disciplina particular da filosofia, mas pensemos na
concatenação fundamental do ente na totalidade, na medida em que este é
diferenciado num mundo sensível e supra-sensível, e aquele seja determinado e
suportado por este.
229
Para compreendermos corretamente o que Heidegger entende por niilismo temos de
partir do entendimento de que sua essência histórico-ontológica não expressaria tão somente
aqueles traços que comumente o caracterizam: o desespero, a falta de significado, o
desencantamento e o declínio. Ainda permanece longe da essência do niilismo o homem que
numa atitude pessimista renuncia a todo agir e querer, assim se descobrindo um prisioneiro
infeliz e consciente de sua náusea perante a existência de todas as coisas que o cercam. Logo, a
essência do niilismo supera e, portanto, precede os fenômenos niilistas isolados e os reúne em
sua plena realização: “é inerente à inquietude deste mais inquietante de todos os hóspedes que
a sua proveniência própria não possa ser mencionada”
230
. Para Heidegger, aquilo que se tem
habitualmente em vista quando enfatizamos unicamente a dimensão negativa do niilismo não
alcança a sua essência. “A essência do niilismo concerne, porém, ao próprio ser. Dito de
maneira mais adequada, o próprio ser concerne à essência do niilismo, à medida que se deu em
227
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 49
228
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 49
229
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 255
230
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 253
meio à história na qual nada tem a ver consigo mesmo”
231
. Algo diverso vigora na essência do
niilismo e esse algo diz respeito ao ser mesmo.
A metafísica enquanto tal é o próprio niilismo. A essência do niilismo é
historicamente como Metafísica. A metafísica platônica não é menos niilista do que
a metafísica nietzschiana. Na metafísica platônica, a essência permanece apenas
velada, enquanto na metafísica nietzschiana ela vem plenamente à tona, sem que
essa essência jamais venha a se dar a conhecer a partir da Metafísica e no interior
dela.
232
Na medida em que a história da metafísica é a história do esquecimento do ser, ou
melhor, esquecimento desse esquecimento, tradição em que não se encontra verdadeiramente
em questão o próprio ser, ela é do mesmo modo a história do niilismo. Segundo Heidegger, o
ser impensado desde o início da metafísica é a essência do niilismo. Pensado a partir do
destino do ser, o nihil do niilismo significa que nada se passa com o ser. Heidegger procura,
assim, ressaltar a ligação inevitável entre técnica, niilismo e metafísica. A técnica e o niilismo
devem ser compreendidos enquanto fenômenos de uma única trama porque esses dois
processos nos remetem ao esquecimento ontológico. Além disso, percebemos que o niilismo
pode se acomodar perfeitamente nos amplos sistemas de ordem do mundo técnico. Na ordem
técnica temos um espaço mais do que favorável para o império do niilismo. O niilismo como
desvalorização dos valores mais profundos é a autêntica moeda de nosso tempo. Ele está por
toda parte revelando seu caráter incontrolável e seu poder corrosivo total.
O maior problema é que no universo da técnica o homem se fecha à relação com o ser que é
constitutiva de sua própria humanidade. Em poucas palavras, por causa de nosso contínuo
esquecimento do ser temos a técnica, o niilismo, a fuga dos deuses, a falta de sentido, a
apatricidade e o impossível encontro com o sagrado.
Para Heidegger, o niilismo pode também ser descrito enquanto o repúdio escondido
do Nada que pertence à essência do ser. O Nada pertence como ausente à presença (do ser)
enquanto uma de suas possibilidades. Em lugar da aparência do nada nadificante devemos
alcançar a essência do Nada historicamente sempre ligada ao ser abrigando-se junto a nós
mortais. “Ser e nada não se dão lado a lado. Um se emprega pelo outro num parentesco cuja
plenitude essencial quase ainda não consideramos”
233
. O Nada pertence originariamente à
essência mesma do ser. O ser e o Nada aparecem juntos “porque o ser mesmo é finito em sua
manifestação no ente [Wesen], e somente se manifesta na transcendência do Dasein suspenso
dentro do Nada”
234
. Voltar-se para a escuta do ser, expressamente até ao limite do Nada é o
231
HEIDEGGER; Nietzsche: niilismo e metafísica, p. 253
232
HEIDEGGER; Nietzsche: niilismo e metafísica, p. 232
233
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 55
234
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 43
100
100
primeiro passo e o único fecundo para uma verdadeira superação do niilismo. O Nada não
é o vazio nulo, que não deixa nada ser simplesmente dado, mas o poder constantemente
repulsivo que repele para o interior do ser e permite que nos apoderemos do Dasein. Para
Heidegger, o niilismo – que não é causado exclusivamente pela técnica – só poderá ser
ultrapassado se o homem, não lhe ficando indiferente, reconhecer a responsabilidade pela
niilidade que lhe é constitutiva. Logo, o niilismo verdadeiramente se manifesta quando o
homem nem mesmo reconhece sua própria finitude.
Ao tornarem-se funcionários das relações técnicas, ficou mais difícil aos seres
humanos reconhecer a dimensão da negatividade em si próprios bem como
reconhecer a niilidade como uma característica em si próprios. O aprofundamento
do esquecimento do Ser torna este reconhecimento ainda mais difícil. Uma
niilidade desgovernada projeta-se no mundo. Os seres humanos, por dissociação,
permitem que tanto o mundo como a niilidade ganhem força contra eles. Isto
conduz a um aprofundamento do niilismo.
235
Porque o homem tem esta ligação constitutiva com o niilismo implicado também
em sua emergência precisa basicamente estar envolvido no processo de sua ultrapassagem.
Não é simplesmente por causa da técnica que o homem repentinamente se fez lugar para a
ação do niilismo. Na realidade, o que acontece é que com a técnica não mais podemos
reconhecer a niilidade como uma característica fundamental do Dasein. Sendo a niilidade algo
indiferente ao Dasein, estamos situados num horizonte onde se a própria potencialização
do niilismo. Contudo, Heidegger acredita que a perfeição do niilismo não é ainda seu fim:
“com a perfeição do niilismo começa apenas a fase final do niilismo”
236
. Neste sentido, o
filósofo corajosamente sustenta que a realização do niilismo é o domínio ou fronteira entre
duas idades do mundo:
A essência dos seres humanos pertence à essência do niilismo e, portanto, aos
caminhos da sua realização. Os seres humanos são a essência usada pelo ser para
constituir a zona do ser como também a zona da niilidade. Os seres humanos não se
encontram na zona da niilidade crítica. Os seres humanos são essa zona, muito
embora não por mérito seu ou sequer com o seu acordo. (...) De um lado, o
movimento do niilismo tornou-se mais manifesto em seu caráter planetário,
incontrolável e multiforme que a tudo corrói. Nenhuma pessoa que vê claro quere
ainda negar, hoje em dia, o fato de que o niilismo é, nas formas mais diversas e
escondidas o “estado normal” da humanidade. (...) A zona do niilismo perfeito
constitui a fronteira entre duas idades do mundo. Nela se decide se o movimento do
niilismo termina no nada nadificador ou se ele é a passagem para a esfera de uma
nova manifestação do ser. O movimento do niilismo deve, de acordo com isto,
estar fundado a partir de si mesmo em diferentes possibilidades e ter, de acordo
com sua essência, múltiplos sentidos.
237
235
HODGE, Joanna; Heidegger e a ética, p. 125
236
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 23
237
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, pp. 13-14, 21
101
101
A dominação planetária da técnica ainda convidaria possibilidade indeterminada
o homem a se colocar serenamente na expectativa de escutar a voz do ser. Para Heidegger, este
mesmo encobrimento pode esconder tesouros inexplorados. Permanece a promessa de um
achado que apenas espera por uma procura adequada.
Diante do espantoso desenvolvimento [tecnológico] de nossa era e de toda
humanidade facilmente se fala da aproximação e da ameaça do ocaso do homem.
(...) Gostaria [porém] de dizer neste instante: não é possível, ainda, nenhum ocaso
do homem nesta terra, porque ainda lhe está reservada e poupada a plenitude
original e originária de seu poder e querer.
238
A mesma fuga que nos repele do ser pode nos atrair para o seu desvelamento; fuga
que foge justamente para o ser que se encobre. Em nossa fuga metafísica para longe do ser
chegaríamos a um momento onde não haveria como nos esconder de sua profundidade.
Nossa fuga se realizaria como impossibilidade de fugir. Apesar disso, tudo parece ter chegado
ao fim; o universo técnico nos atinge com seu silêncio devastador uma vez que os nossos
ouvidos, menos humildes e sensíveis, não mais escutam o apelo do ser. Heidegger deseja que
pensemos que este mundo silencioso ainda pode nos afirmar algo sobre a força calma e
igualmente silenciosa do ser. Este ontológico silêncio não possuiria somente austeridade; na
verdade, seria um silêncio benevolente, indicando, sim, uma disposição para o acontecimento
[Ereignis] do ser que levaria o homem a uma outra margem. Esta outra margem significaria
como um evento indeterminado – a aproximação de uma era de poética permanência do
homem. Não esqueçamos que a força do apelo do ser reside exatamente em sua fraqueza. Seu
murmúrio é incessante. Este apelo se faz tanto mais presente quanto mais tentamos evitá-lo.
Por um lado, o silêncio niilista do mundo da cnica possui algo que desdenha; por outro,
também possui algo de um desafio lançado ao próprio niilismo.
O todo dessa essência do niilismo fornece ao pensamento tudo o que este tem a
pensar, uma vez que se entrega à essência do homem enquanto a história do ser
para que essa essência o abrigue. Ao que se dá dessa maneira ao pensamento como
a pensar, denominamos enigma. O ser, a promessa do seu desvelamento enquanto a
história do mistério, é ele próprio o enigma..
239
No niilismo está, na verdade, a possibilidade para que façamos a experiência direta
do fim para preparar a passagem ao outro início. Para Heidegger, o ser continua a prometer-se
através da sua falta. Ele afirma que o niilismo é ainda a promessa do ser em seu desvelamento.
Ou melhor, confrontar-se com a essência do niilismo pode constituir para Heidegger “uma
238
HEIDEGGER apud Stein, Pensar é pensar a diferença, p. 11
239
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 261
102
102
passagem para a esfera de uma ‘nova manifestação do ser’”
240
; não se trata de querer
extrapolar o niilismo, mas de colher a sua essência, onde se manifesta com maior intensidade o
próprio esquecimento ontológico.
Ao invés de querer ultrapassar o niilismo, devemos nos recolher na sua essência.
Este recolhimento [Einkehr] na sua essência é o primeiro passo mediante o qual
deixamos o niilismo para trás. O caminho deste recolhimento tem a direção e a
modalidade de um retorno [Rückkehr]. Não se trata naturalmente de um retorno aos
tempos passados para poder restaurá-los em uma forma artificial. Retorno aqui
significa a direção para aquela localidade (o esquecimento do ser) da qual a
metafísica recebeu e continua a ter sua proveniência.
241
Na essência do niilismo acontece o mistério de uma generosa promessa. Heidegger
deseja dar insistentemente ao esquecimento metafísico a envergadura de uma recordação
salvífica do próprio ser. Ele acredita na possibilidade de podermos alcançar o momento em que
esta essência se mostre mais claramente à luz de outros caminhos.
O pensamento tocado pela essência do niilismo detém-se na chegada do excluir e
espera por sua chegada, a fim de aprender então a refletir sobre o excluir do ser em
meio ao que este certamente poderia ser a partir de si mesmo. Na exclusão
enquanto tal esconde-se o desvelamento do ser, e, na verdade, enquanto o que se
essencializa do ser mesmo. A história do deixar de fora do excluir do ser mesmo é
a história da guarda da promessa; e isto certamente de modo tal que esta guarda
mantém a si mesma velada no que ela é. Ela se mantém velada porque é provocada
pela retração do ser mesmo que se encobre e é dotado a partir desta retração com a
sua essência, que dessa maneira se resguarda.
242
O mesmo esquecimento pode fazer o homem escutar o apelo do ser; é no limite a
verdade do esquecimento. Esta é a própria verdade do esquecimento, uma verdade esquecida.
O esquecimento acentuado do ser tornado real através do niilismo tecnológico é o seu último
modo de se apresentar ao homem. Para Heidegger, o niilismo carregaria junto a si a
possibilidade para uma nova volta ao ser, ou melhor, nele a origem se desvela como
possibilidade não realizada. Precisamente por causa e graças ao niilismo é que podemos fugir à
tentação do fim, conservando assim o puro movimento do pensamento e mantendo abeta a
história como possibilidade. No niilismo ocorre a possibilidade de se saltar para trás do âmbito
do dar-se mesmo do ser, penetrando no impensado (a origem, a proveniência), correspondendo
assim à “promessa que o ser mesmo é”
243
: “permanece a promessa de um achado que apenas
espera por uma procura adequada”
244
. Portanto, a primeira tarefa a ser levada a efeito depois de
Nietzsche é simplesmente aquela da localização do lugar da metafísica, da individualização da
240
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, pp. 13-14
241
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 59
242
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 261
243
HEIDEGGER; Nitzsche. Vol II, The eternal Recurrence of the Same, p. 369
244
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, p. 51
103
103
“linha” em que se verifica o cumprimento do niilismo. È Über die Linie que se o confronto
de Heidegger com E. Jünger sobre a essência do niilismo. Para Heidegger o über não significa
aqui apenas trans, metá, mas sobretudo de, perí: ocorre pensar o caráter mesmo da linha
245
. É
este o sentido específico da Verwindung heideggeriana como busca vertical do lugar de
proveniência da própria metafísica.
O niilismo procura desfigurar sua própria essência e assim, subtrair-se ao debate
que a tudo decide. Somente ele poderia ajudar a abrir e preparar um âmbito livre,
no qual pudesse ser experimentado uma nova volta ao ser. (...) A essência do
niilismo não é nem curável nem incurável. É o sem-cura e, enquanto tal, contudo,
uma remissão original ao salvífico. O pensamento somente se aproximará da esfera
da essência do niilismo quando se tornar precursor e diferente.
246
O início não é, com efeito, um dado de fato histórico, mas é sempre uma possibilidade
de que como tal poderia ter sido colhida pelo começo e que deve se conservar, manter,
repensar precisamente enquanto possibilidade. O pensamento inicial não é, desta forma, nem
uma improvável tentativa de retornar ao ponto de partida nem o desejo de dar vida a uma
história absolutamente nova: é a tentativa de pensar a origem como possibilidade inclusive
para o porvir
247
. Por conseguinte e conseqüência, a metafísica é propriamente esta história
sobre a qual ainda pende uma decisão. Para Heidegger, parece haver um possível e desejável
além do niilismo. Ele insiste que a potencialização do esquecimento do ser seria a
possibilidade do retorno e de recuperação de uma primeva apropriação mútua do ser e do
homem, o Ereignis. Heidegger procura converter o impasse mais delicado numa promessa. O
“vazio” é um “vazio ativo”. O niilismo é o apelo dirigido a um pensamento mais profundo,
pressão constante, esquecimento que não se deixa esquecer mas exige um esquecimento mais
perfeito. A impotência nunca é impotente o bastante, o impossível não é o impossível. Haverá,
de todo, salvação? Só há, só haverá e apenas há, se o perigo é. No perigo existe a chance do ser
inverter o esquecimento que vem de si próprio. O próprio perigo nos brindaria com uma visada
mais exigente e mais profunda que se dirigiria ao próprio ser.
Pois agora realiza-se a fusão da essência moderna, que se consuma, com o óbvio.
quando isto estiver assegurado através da mundividência é que cresce o solo que
possa nutrir uma questionabilidade originária do ser, a qual abra o espaço de jogo da
decisão sobre se o ser mais uma vez será capaz de um deus, sobre se a essência da
verdade do ser reivindica mais inicialmente a essência do homem. onde a
consumação da modernidade alcançar a grosseria da sua grandeza própria é que a
história vindoura é preparada. (...) Pode ser que qualquer outra salvação que não
provenha de onde está o perigo seja ainda uma desgraça [Unheil]. Toda a salvação
conseguida através de uma ajuda, por mais bem intencionada que esta fosse, não seria
para o indivíduo, ameaçado na sua essência no percurso de seu destino, senão uma
245
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, pp. 13-15
246
HEIDEGGER; Sobre o problema do ser, pp. 16, 39
247
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 59
104
104
aparência inconsciente. A salvação terá de vir do lugar onde se a viragem no
interior da essência dos mortais.
248
248
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, pp. 137, 340
CAPÍTULO 4: A NOVA DETERMINAÇÃO DO SER A PARTIR DO
EREIGNIS.
4.1 – O Ereignis
Na margem da cópia de trabalho da Brief über den Humanismus Heidegger escreveu:
“desde 1936 Ereignis é a palavra chave [Leitwort] de meu pensamento”
249
.
Fundamentalmente, o filósofo faz do Ereignis a noção central de uma diversa experiência do
pensamento. Ereignis pode ser entendido como o âmbito em que, de um lado, o ser e o tempo
e, de outro, o ser e o Dasein são apropriados uns aos outros e com isso levados a sua essência
mais própria. Aliás, se nos basearmos apenas nas certezas que determinam a dinâmica da
técnica, tudo está ali disposto para que o Ereignis não possa ser acolhido. Mas o Ereignis é
sempre essa constelação que, graças a um talvez excepcional (sem outra justificativa a não ser
o próprio niilismo) sutilmente ainda se anuncia sobre o mundo regido pela técnica.
No ponto extremo do esquecimento do esquecimento do ser nada mais se afirma
exceto o Ereignis (uma recordação permanente da essência aberta do ser). É o Ereignis aquilo
que permite que, um dia, aconteça o verdadeiro a revelação do ser. Devemos nos colocar na
disposição deste acontecimento que, por sua vez, também propiciará a vinda do tempo em que
seremos “atingidos” pelo divino. Quando tudo aparentemente está acabado, Heidegger visiona
para o Ocidente a possibilidade de transformação do impulso tecnológico e um novo início
que substitua a procura metafísica pelo fundo último das coisas. Podemos apenas evocar o
Ereignis na perspectiva sob a qual a sua presença pode chegar a nós como a espera do que há
de mais longínquo e de menos seguro. A incerteza pertence à esta mútua apropriação do ser e
do homem, assim como a impossibilidade de afirmá-la nos aproxima de sua afirmação
própria. A intenção de Heidegger é olhar o próprio ser como Ereignis. De fato, contemplamos
sua procura por pensar o lugar do ser, ou melhor, o acontecimento-apropriação do ser e do
tempo
250
. O que determina ser e tempo naquilo que lhes é próprio é o Ereignis. Não nos
esqueçamos que desde início de seu pensamento, Heidegger não se interroga pelo ser
249
HEIDEGGER; Wegmarken, p. 316
250
Por poucas vezes, traduzo a palavra Ereignis por acontecimento-apropriação seguindo a sugestão de Ernildo
Stein. No francês esta palavra foi traduzida por evénément-appropriation.
106
106
questão que permanecerá a sua até o fim mas pressente e afirma claramente que o
fundamento impensado do ser é o tempo. Em Ser e Tempo, notamos a presença
perturbadora do seguinte pensamento: o tempo forma o horizonte de toda compreensão do ser;
e Heidegger insiste que a compreensão do ser encontra-se em uma relação originária com o
tempo, mesmo se inteiramente obscura e enigmática.
O Dasein é segundo um modo tal que, sendo, ele compreende algo como o ser.
Mantendo essa relação, é necessário mostrar que aquilo a partir de que o Dasein
em geral compreende e explicita silenciosamente alguma coisa como o ser é o
tempo. Este deve ser posto em evidência e concebido originariamente como o
horizonte de toda compreensão e explicitação do ser. E para tornar isso perceptível,
é necessária uma explicitação original do tempo como horizonte da compreensão
do ser, a partir da Temporalidade como ser do Dasein que compreende o ser.
251
O tempo como horizonte da compreensão do ser é precisamente o que Heidegger
denomina de a Temporalidade do ser. Esta tarefa ontológica de interpretar o ser como tal
inclui, sim, a elaboração da Temporalidade do ser. Sabemos que esta evidenciação não foi
realizada com sucesso em Ser e Tempo que não chega a desenvolver a Temporalidade como o
próprio sentido do ser. “Sem dúvida, foi um esforço que gerou muita confusão, confusão que
se funda na própria coisa e se relaciona com o emprego da palavra “ser”. Pois o termo
pertence, propriamente, ao acervo da linguagem metafísica embora eu o tenha utilizado como
título, no esforço por deixar aparecer a essência da metafísica dentro de seus limites”
252
. Para
Heidegger, ser é tempo que se perde, presença em fuga. Onde, porém, está o tempo? Devemos
olhar cuidadosamente para aquilo que se nos mostra como tempo, enquanto adiantamos nosso
olhar sobre o ser, no sentido de presença. Bem como os gregos, Heidegger chama o ser de
“presença” parousia”; ou seja, ele adverte para o que podemos apreender como
fenomenalismo ontológico, a doutrina em que ser significa aparecer ou ser manifesto. Mas,
estando presente, o ser ausenta-se e, ausentando-se, está presente. Diante disso, o que
Heidegger deseja, de fato, é afirmar, recordando a experiência do ser dos gregos, o primitivo
relacionamento mútuo entre ser e não-ser (presença e ausência).
Podemos afirmar que se a dimensão original do tempo permanece impensada é
porque a própria presença não é considerada nem reconhecida como presença, quer dizer na
sua dimensão temporal. Ou melhor, o que permanece primeiramente impensado é, na
presença, o seu caráter contingente. Sendo assim, a presença é propriamente a conjunção
original e originariamente temporal do ser e do tempo. Ela é a doação que doa, puro
desvelamento, uma oferta sem compromisso. Em outras palavras, a presença é, sim, indicação
251
HEIDEGGER; Ser e Tempo, p. 45
252
HEIDEGGER; A essência da linguagem, p. 88
107
107
daquilo que permanece radicalmente ausente, presença sempre infinitamente outra em sua
presença, presença do outro em sua alteridade: não-presença. A presença imediata é a
presença daquilo que não poderia estar presente, presença do não-acessível, presença
excluindo ou ultrapassando todo presente.
Presentar se aproxima de nós: presente quer dizer: demorar-se ao nosso encontro,
ao encontro de nós, os homens. Quem somos nós? Continuamos cautelosos com a
resposta. Pois a situação poderia ser tal que se determinasse o que caracteriza o
homem enquanto homem, justamente, a partir daquilo que agora devemos
considerar: o homem, abordado pela presença, o qual, a partir de tal abordagem, se
presenta, ele mesmo, à sua maneira, a tudo que se presenta e ausenta. O homem
está postado de tal modo, no interior da abordagem pela presença, que recebe como
dom o presentar que dá-Se, enquanto percebe aquilo que aparece no presen-ti-ficar.
Não fosse o homem o constante destinatário do dom que brota do “dá-Se-
presença”, não alcançaria ao homem aquilo que é alcançado no dom, nesse caso o
ser não apenas ficaria oculto na ausência deste dom, nem apenas também fechado,
mas o homem permaneceria excluído do âmbito e do alcance do: Dá-Se ser. O
homem não seria homem.
253
Ainda que não pareça, mesmo fazendo-se referência ao homem, estamos mais
próximos da questão que se chama tempo e que se deve mostrar propriamente a partir do ser
como presença. Não nos desviamos do caminho no qual procurávamos meditar sobre o que é
próprio do tempo. No ser como presença se anuncia algo semelhante ao tempo. Presença
significa o constante permanecer que se endereça ao homem, que o alcança e lhe é alcançado.
Mas de onde vem este alcançar que alcança, o qual pertence o ser como presença, na medida
em que presença? Na realidade, o presentar de tudo que se presenta sempre aborda o
homem na clareira do aberto, sem que ele atente propriamente nisto ao presentar como tal.
Mas com a mesma freqüência, isto é, constantemente, também o aborda o ausentar. O mais
importante é, então, atentarmos ao fato de que o ausentar também se manifesta como um
modo de presentar. Em síntese, permanecemos ainda sempre confrontados com o enigmático
“Se” que nomeamos quando dizemos: Dá-se tempo. Dá-se ser. O tempo mesmo permanece o
dom de um dar-se sem doador cujo dar protege o âmbito em que é alcançada presença.
De modo menos hermético, podemos simplesmente afirmar que a presença não é um
nome do tempo. Ela é o tempo ele mesmo, propriamente. Fundamentalmente, devemos
recuperar o sentido do tempo, até então impensado, e que se esconde no ser como presença. O
nome “tempo” é o pré-nome para aquilo que denominamos “a verdade do ser”. A demora do
“presente” revela-se como sendo essencialmente uma passagem, um intervalo entre duas
ausências. Isto nos leva a pensar que o presente apreende seu sentido somente da ausência, a
qual não constitui de modo nenhum o seu contrário, mas a sua modalidade de manifestação. O
que se manifesta nunca é para si, mas para o seu próprio desaparecimento. Lembremo-nos que
253
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 263
108
108
Heidegger se orienta pela idéia que a presença, porque é indissociável da ausência, nada tem
de uma permanência. Para ele, a permanência retira justamente à presença o que lhe é
essencial. Todo o presente é uma demora transitória, na medida em que a sua demora é
passagem da chegada à partida. O presente, enquanto demora transitória, manifesta a sua
demora no intermédio de uma dupla ausência. O que se demora por uma vez, enquanto algo
que se demora, está a ser na articulação que articula o estar-presente no duplo estar-ausente.
Em resumo, a presença é o reino que ordena todo o presente na dupla junção da ausência.
O que está presente é o que se demora por uma vez. A demora [die Weile] está a
ser [west] enquanto chegada passageira à ida. A demora está a ser [west] entre o
chegar de algures e o partir para algures. É entre este duplo estar-ausente [Ab-
wesen] que o estar-presente de tudo o que se demora está a ser [west]. É neste
“entre” que se articula aquilo que se demora por uma vez. Este “entre” é a
articulação [Fuge] em que, desde a origem até à partida, se articula por uma vez
aquilo que se demora. O estar-presente do que se demora arremessa-se em direção
ao “de onde” da origem e ao “para onde” da partida. O estar-presente articula-se no
estar-ausente em ambas as direções. O estar-presente está a ser [west] numa tal
articulação. O que está presente desponta do chegar da origem, e vai-se na ida as
duas coisas ao mesmo tempo e, na verdade, na medida em que se demora. A
demora está a ser [west] na articulação.
254
O tempo e o ser são a dádiva de uma doação. Esta doação não é pensada pela
metafísica que a pressupõe constantemente. Ser, porém, não é alguma coisa, não está no
tempo. Contudo, ser permanece como presentar, como presença determinada pelo tempo, pelo
que tem de caráter temporal. Na constância com que o tempo passa mostra-se o ser. Em parte
alguma, entretanto, encontramos o tempo sendo como uma coisa. Ser não é coisa, por
conseguinte, nada de temporal. Todavia, é determinado como presença através do tempo.
Tempo não é coisa, por conseguinte, nada de entitativo; mas permanece constante em seu
passar, sem mesmo ser nada de temporal como o é o ente no tempo. Ser se determina pelo
tempo e tempo pelo ser. Ser e tempo determinam-se mutuamente; de tal maneira, contudo,
que aquele o ser não pode ser entendido como temporal, nem este o tempo como
entitativo. Ser e tempo são coisas-em-questão, coisas que produzem questão, coisas que
chamam para que se as responda. Para Heidegger, nossa principal tarefa é refletir sobre a
relação objetiva que vincula o ser e o tempo. Ser não é (entitativo); tempo não é (temporal).
Porque o ser não é nem ente nem simplesmente temporal, e o tempo não é nem temporal nem
simplesmente ente, podemos dizer deles, não que são mas sim que dá-se ser e dá-se tempo.
Do ente dizemos: ele é. No que diz respeito à questão “ser” e no que diz respeito à
questão “tempo”, permanecemos cautelosos. Não dizemos: ser é, tempo é: mas dá-
se ser e dá-se tempo. Primeiro modificamos com esta expressão apenas um uso de
254
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 415
109
109
linguagem. Em vez de “ele é”, dizemos “dá-se”. Para podermos progredir da
expressão verbal superando-a, em direção à questão, precisamos demonstrar como
experimentamos e vemos este “dá-se”. O caminho apropriado nesta direção
consiste em examinarmos o que é dado no “dá-se”, que significa “ser”, que – dá-se;
que significa “tempo”, que dá-se. De acordo com isto, procuramos investigar o
“se”, que ser e tempo. Procedendo desta maneira, tornamo-nos pré-videntes
em um outro sentido. Procuramos tornar visível o “se” e o “dar” e grafamos o “Se”
maiúsculo. Primeiro meditamos sobre o ser para pensá-lo a ele mesmo no que lhe é
próprio. Depois meditamos sobre o tempo para pensá-lo a ele mesmo no que lhe é
próprio. Nesta análise deverá mostrar-se a maneira como se ser e como se
tempo. Neste dar torna-se então claro como se deve determinar aquele dar que
primeiro mantém a ambos reunidos e assim os dá como resultado.
255
Entendemos que para melhor compreendermos tudo o que aqui está sendo dito seja
melhor nos arriscarmos numa possível tradução da palavra Ereignis: acontecimento-
apropriação. Primeiramente, esse sentido de acontecimento-apropriação espresente no uso
heideggeriano: compreender o ser a partir do Ereignis é compreendê-lo como radical
eventualidade, é, de certo modo, compreender o ser radicalmente a partir do tempo. Mas
como compreender essa eventualidade? Ela não é a ocorrência de um fato, mas a realização
de uma possibilidade inicial, anterior a qualquer evento ôntico, que se dá de modo próprio. De
quê? Do ser em sua verdade, do Dasein que a responde e nela se funda. O Ereignis como
acontecimento é a intersecção do vir ao próprio tanto do ser quanto do Dasein. Além disso,
essa relação oscilante fornece ao homem o único espaço em que o movimento de sua
existência não apenas pode ser compreendido, mas restituído, realmente experimentado e
realizado. De forma clara, o ser já não pode ser considerado como o fundamento do ente
(razão pela qual a partir desse período Heidegger utilizará preferencialmente a grafia antiga
Seyn, o próprio ser enfim reencontrado correspondentemente ao Ereignis) mas como o
desdobramento da clareira a partir de uma retirada e de uma ocultação abissais: o ser não se
mais na ponta da ipseidade conquistada do Dasein, mas o próprio do Dasein acha-se no
responder pelo próprio do ser. Portanto, Heidegger deixa de conceber a “clareira” como uma
capacidade ou faculdade do homem. Ao homem pertence corresponder a interpelação do
próprio ser através do pensar. Esta não-coincidência do ser do homem e do ser enquanto tal
permite entender que o esquecimento do ser não é uma distração do pensamento metafísico e
sim o que constitui o mais próprio do ser que se retira, isto é, que se retrai a si mesmo dando
lugar à clareira. Importa perceber que o esquecimento, até agora imperante, não é o resultado
de uma negligência, mas devemos pensá-lo como conseqüência do velar-se do ser.
O velamento do ser faz parte – como sua provação – da clareira do ser. O
esquecimento do ser, que constitui a essência da metafísica e que se tornou o
elemento propulsor para Ser e Tempo, faz parte do próprio modo de acontecer o
255
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 239
110
110
ser. Com isto se impõe a um pensamento que pensa o ser a tarefa de pensar o ser de
tal maneira que o esquecimento do ser dela faça parte essencial. O pensamento que
inicia com Ser e Tempo é, portanto, de um lado, um despertar do esquecimento do
ser e aqui despertar deve ser compreendido como um recordar-se de algo que
jamais foi pensado –, mas enquanto é um despertar não é, de outro lado, um
extinguir o esquecimento do ser, mas um portar-se nele e nele permanecer. Assim,
o despertar do esquecimento do ser é o acordar para dentro do Ereignis. Apenas no
pensar o próprio ser, o Ereignis, torna-se experimentável o esquecimento do ser
como tal.
256
Também a indiferença e o esquecimento são apenas maneiras pelas quais o Dasein se
entrega desta ou daquela forma ao ser enquanto tal. O próprio ser se subtrai, mas, enquanto tal
subtração o ser é, precisamente, a relação que solicita a essência do homem para o abrigo de
seu advento. Devemos nos lembrar que a luz e todo reino da visibilidade estão, portanto,
subordinados ao aberto do ser enquanto clareira, ao ordenamento do espaço de jogo em que
presença e ausência, revelação e ocultação, ser e nada, luz e sombra dão mostras da sua co-
pertença.
A luz pode, efetivamente, incidir na clareira, em sua dimensão aberta, suscitando aí
o jogo entre o claro e o escuro. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela,
a luz pressupõe esta, a clareira. A clareira, no entanto o aberto, não está apenas
livre para a claridade e a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco
que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto
para tudo que se presenta e ausenta. (...) Da clareira, todavia, a Filosofia nada sabe.
Não dúvida que a Filosofia fala da luz da razão, mas não atenta para a clareira
do ser. O lúmen naturale, a luz da razão, só ilumina o aberto. Ela se refere
certamente à clareira; de modo algum, no entanto, a constitui, tanto que dela antes
necessita para poder iluminar aquilo que na clareira se presenta.
257
256
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 278
257
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 77-78. Impõe-se ao pensamento a tarefa de pensar a
questão que Heidegger designa como clareira. Tudo o que foi objeto para a filosofia se desenvolveu no aberto. É
a clareira o âmbito no qual se encontram pensar e ser. Somente o coração silente da clareira é o lugar do silêncio
do qual pode irromper algo assim como a possibilidade do comum-pertencer de ser e pensar, isto é, a
possibilidade de acordo entre presença e apreensão. Devemos reconhecer que a principal tarefa para o futuro do
pensamento consiste em compreender o impensado da filosofia que, no entanto, sustenta toda a metafísica. Na
filosofia permanece impensada a clareira como tal que impera no ser. Entendemos que o homem que medita
deve experimentar o coração inconcluso do desvelamento. Deve se referir a este mesmo no que tem de mais
próprio: o lugar do silêncio que concentra em si aquilo que primeiramente possibilita o desvelamento. E isto é a
clareira do aberto. A clareira designa para Heidegger, aquilo que se deverá tornar a tarefa para o pensamento, no
fim da filosofia. O fim da filosofia não deve ser entendido, nem sob o ponto de vista puramente negativo, nem
puramente positivo. Fim não significa nem término, nem coroamento. O estágio final da filosofia não apresenta,
nem a interrupção do processo, nem a consecução de sua perfeição plena. Dentro do horizonte do pensar
heideggeriano o fim da filosofia é o fim da metafísica. Já vimos que Heidegger procura interpretar toda a história
da filosofia. Dela é necessário arrancar a tarefa para o pensamento futuro. Esta tarefa o significa a presunção
de se sobrepor à grandeza dos pensadores da Filosofia. Uma tal tarefa para o pensamento tem o caráter de
preparação.“Satisfaz-se com despertar uma disponibilidade do homem para uma possibilidade cujos contornos
permanecem indefinidos, e cujo advento, incerto” (HEIDEGGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 74).
Todavia, o aprofundamento desta questão, inserida no texto O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, foge ao
âmbito deste trabalho.
111
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Devemos pensar o ser no movimento de seu aparecer retirado, no acontecimento da
vinda a ele mesmo: Ereignis. É esse próprio afastamento que torna transparentes as coisas
visíveis, torna-se assim visível nelas e se descobre então como o fundo luminoso de mistério e
profundo dom de onde tudo vem e onde tudo acaba. Essa retração e essa ausência são o
próprio fundo das realidades mais materiais. O Ereignis, ao tornar visível na clareira o
desdobramento do ser do homem como Da-sein, conduz ao seu próprio os mortais tornando-
os próprios ao ser que, por seu lado, é apropriado, isto é, oferecido enquanto dom ao ser do
homem. É exatamente porque o Ereignis não tem a estrutura da ipseidade, o motivo que não
nos permite pensá-lo a não ser como um destinar [Schiken], isto é, como um dar que a
sua doação e que, dando assim, se retém ele mesmo e se retira, que é em si mesmo Enteignis,
isto é, o fundamento sem fundação do ser, o seu abismo.
Pensando o Ereignis, Heidegger rompe verdadeiramente com a idéia de absoluto que
rege toda a historia do pensamento. Esta é a melhor definição deste pensador: o teórico de um
pensamento sem fundamento. Todo esforço de Heidegger de pensar o Ereignis é a expressão
de sua atitude de elaborar um pensamento fora da órbita do princípio do fundamento. Nós
escutamos o princípio do fundamento: nihil est sine ratione. Nada é sem fundamento. Cada
coisa que é de algum modo um ente tem um fundamento. Sobre o que se fundamenta o
princípio do fundamento? Onde tem o próprio princípio do fundamento o seu fundamento? O
próprio princípio invoca em nós estas interrogações. Heidegger afirma que este que é um
princípio fundamental, permanece obscuro. Aquilo que o princípio do fundamento é como
supremo princípio fundamental, permanece, para ele, digno-de-ser-questionado. Segundo
Heidegger, se o pensamento seguisse este caminho até o fundo, então ele teria de se afundar
continuamente até ao sem-fundo. Este princípio faz precipitar o nosso pensamento para o sem
fundo, logo que levamos a sério, em relação ao próprio princípio, aquilo que ele próprio diz.
Para Heidegger, o princípio do fundamento é portanto aquilo que simultaneamente lança uma
estranha luz sobre o caminho do fundamento nos revelando que, quando travamos
conhecimento com os enunciados fundamentais e princípios, alcançamos uma região
simplesmente crepuscular, para não dizer perigosa: o princípio do fundamento sem
fundamento. Heidegger reconhece que isto se apresenta ao homem como irrepresentável.
Contudo, para o pensador alemão, o irrepresentável não é de modo nenhum também
impensável, desde que o próprio pensar não se esgote na tentativa de total adequação do
sujeito cognoscente à realidade, que ininterruptamente traduz a vontade de domínio que a
filosofia carrega.
O modo de aparecer mais originário do fundamento é dado para Heidegger pelo
abismo entendido não como não-fundamento, negação de qualquer fundo, mas como uma
112
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retração, um permanecer longe do fundamento, que funda apenas através da refutação. Em
outros termos, apenas retirando-se o fundamento abre o espaço de uma abertura, permite que
possa vir ao aberto aquilo que a partir dele se manifesta. A necessidade desta contração
abissal encontra-se no fato que não é possível manter, na perspectiva do outro início,
nenhuma conotação causal da relação entre fundamento e fundado; do contrário, não seria
possível sair da lógica da produção que caracteriza toda metafísica de tipo criacionista. O
desdobrar-se do fundamento se dá a partir de seu abismo, ou seja, de seu se fazer não-
fundamento para algo. É apenas refutando-se como fundamento e fazendo-se simplesmente
não-fundamento que o fundamento pode assumir a sua função e permitir o dar-se do
acontecimento.
Fundamentalmente, Heidegger procura por um outro pensamento que não pretende
subindo a cadeia das causas e dos efeitos – dominar a coisa, mas sim recebê-la, deixá-la vir. O
fundamento permanece fora do ser. No sentido de um tal permanecer-fora do fundamento do
ser, é o ser o sem-fundo. Na medida em que o ser enquanto tal fundamenta a si próprio,
permanece ele mesmo sem fundamento. Assim, Heidegger procura pensar a finitude do ser,
isto é, a impossibilidade de se fundamentar o ser. Esta finitude deve ser sustentada sem o
apelo ao infinito ou a um fundamento entitativo. Por outro lado, já sabemos que o ser sempre
se retrai ao homem, velando-se em seu próprio acontecer originário. Sustentar esta
ambigüidade de velamento e desvelamento significa sustentar a interrogação no espaço da
finitude.
Pensar a circularidade da relação ser-homem é, precisamente, pensar a abissalidade
da relação ser e homem, relação em que um não se funda no outro, mas ambos se
sustentam reciprocamente na ambivalência da diferença ontológica, no velamento e
desvelamento. A tarefa do pensador é vigiar esta ambivalência. Por isso, a filosofia
é índice da finitude.
258
Na verdade, a intenção de Heidegger é confrontar o princípio do fundamento (nada é
sem porquê) com a seguinte frase do místico alemão Angelus Silésius: “a rosa é sem porquê;
ela floresce, porque ela floresce, ela não repara em si própria, não pergunta se a vemos”
259
.
Neste seu singelo verso, o místico faz saber que o espetáculo, muitas vezes sequer percebido,
do desabrochar de uma rosa testemunho da autonomia, da obscuridade, da pura gratuidade
do ser. Mas, então, o que confere especificidade a este acontecimento? Na realidade, o que se
dá, e de modo bastante evidente, no desabrochar de uma rosa, é a sua vinda ao aparecer: “a
rosa desabrocha na medida em que, avançando no aberto, dura nesse aberto, se mantém nele
258
STEIN, Ernildo; Compreensão e finitude, p. 234
259
HEIDEGGER; O princípio do fundamento, p. 59 / SILÉSIUS, Angelus, O peregrino querubínico, p. 67
113
113
manifestando-se, e assim se oferece ao olhar”
260
. Este desabrochar é o que há de mais
obscuro. Origem da rosa, início puro do que vai brotar, ele é o mistério mais profundo e
também o mais terrível: é o injustificado, a partir do qual é preciso ter justificativa.
Ao mesmo tempo, sabemos que nenhuma existência se explica; nenhuma se justifica.
Esta surge sempre inesperada e espantosamente, sem que nada anterior a prepare. Depois da
leitura de Heidegger, somos convencidos a crer que apenas os poetas e o pensamento
meditativo podem arcar com a origem injustificável; e o poema, pela palavra, faz com que
o que é infundado se torne fundamento. Somente pela firmeza da palavra poética aquilo que é
o mais enigmático, que é também o que se abre, pode se tornar finalmente o que se descobre.
Fundamentalmente, o que precisamos compreender é que, para Silésius, seria formidável se
novamente ficássemos espantados com o completo segredo e com a infinita beleza casual que
penetram a existência de todas as coisas. Perceber, por conseguinte, que a natureza é tanto a
irrupção no aberto quanto a retração em si daquilo que surge, pela qual aquilo que faz
presente tudo o que é, e encontra-se presente em tudo que é, permanece velado enquanto tal.
Nada é novo. Tudo é novo. Somos, então, imediatamente transportados ao seguinte
entendimento: o germinar de uma rosa sendo algo de infinitamente espontâneo, único e sem
par, contém a dignidade das coisas sagradas.
A rosa é sem porque, mas não sem fundamento. O “porquê” nomeia o fundamento,
que sempre fundamenta assim, que ele é simultaneamente apresentado como
fundamento. A rosa apesar disso não precisa expressamente, para ser rosa, isto é,
para florescer, do fundamento do seu florescer. Não obstante, a rosa, que “floresce,
porque ela floresce” não é sem fundamento. O “porquê” nomeia o fundamento,
mas um fundamento estranho e provavelmente extraordinário. O que significa isto:
a rosa “floresce porque ela floresce”? O “porquê” não indica aqui como
habitualmente um itinerário para algo diferente, que não é um florescer e que
deverá fundamentar o florescer numa origem distinta. O “porquê’ do aforismo
indica simplesmente o florescer remetendo-se a si próprio. O florescer funda-se em
si próprio. O florescer é puro abrir-se-a-partir-de-si-próprio, puro brilhar. “Mas o
que é belo, isto brilha ditoso em si próprio” diz Mörike, no verso final de seu
poema “Auf eine Lampe”. A beleza não é por conseguinte um atributo que acresce
ao ente como uma decoração. A beleza é uma maneira suprema do ser, quer dizer
aqui: o puro abrir-se-a-partir-de-si-próprio e brilhar. (...) o “porque” menciona o
fundamento, mas o fundamento é no aforismo o simples florescer da rosa, o seu
ser-rosa. O princípio do fundamento não é renegado através do aforismo “a rosa é
sem porquê”. Pelo contrário, o princípio do fundamento soa de uma maneira, pela
qual sob uma certa perspectiva, o fundamento como o ser e o ser como o
fundamento se tornam apreensíveis.
261
Logo, abraçando o pensamento místico alemão, Heidegger insistirá que a razão
humana não pode fundamentar ou explicar a pura presença das coisas. E, do mesmo modo,
não se comprova a necessidade da existência do mundo pelo fato de que ele exista. Neste
260
ZARADER, Marlène; Heidegger e as palavras da origem, p. 45
261
HEIDEGGER; O princípio do fundamento, p. 88
114
114
sentido, o pensador da Floresta Negra conclui que a “clareira” necessária à automanifestação
dos entes não pode ser compreendida através do “êxtase temporal” da existência humana. A
clareira é formada por uma “coisa”, natural ou artificial, que agrega mortais e deuses, terra e
céu, num tipo de dança cósmica que liberta a luminosidade inerente das coisas. O “mundo”
constitui-se pela virtude da coordenação espontânea ou apropriação mútua dos aparecimentos
que surgem, sem causa, da “coisa nenhuma”, em cada momento.
Heidegger também propõe que a questão do fundamento ainda pode ser examinada
por um outro âmbito: “a liberdade é o fundamento do fundamento”
262
. A liberdade, por sua
vez, não se caracteriza aqui como uma propriedade ou capacidade humana de ser livre para
uma ação, mas decorre de uma falta de fundamento, de um abismo, no qual está lançado
desde sempre o Dasein. A questão que, insistentemente, permanece para ser resolvida se
refere à possibilidade de dar conta desse abismo no qual o homem desde sempre está inserido.
Aqui, necessita-se de um dizer mais rigoroso e penetrante. Segundo Heidegger, para captar
este abismo [Abgrund] incaptável faz-se indispensável o dizer poético. Apenas quando nós
mesmos participamos do dizer poético podemos criar as condições necessárias para que venha
finalmente o tempo em que podemos aprender quem verdadeiramente somos. Resumindo, o
que realmente importa é o fato de Heidegger buscar a eliminação definitiva da noção e do
próprio problema do fundamento para a filosofia, superando assim a própria filosofia a favor
de um novo pensamento, que se abriga na pura infundamentação e que pode nos levar para
mais perto do daquilo que foi desgastado, desvirtuado no decurso do tempo pela tradição. Não
por acaso, inspirando-se claramente em Heráclito, Heidegger nos ensina que o destino do ser
é uma criança jogando. Por que a criança joga o jogo do mundo? Ela joga, porque ela joga. O
“porque” afunda-se no jogo. O jogo é sem “porquê”. Ele joga, enquanto joga. Permanece
apenas o jogo: o supremo e o mais profundo. Mas este “apenas” é tudo, o um, o único.
Nada é sem fundamento. Ser e fundamento: o mesmo. Ser como fundamentado não
tem qualquer fundamento, joga aquele jogo como o sem-fundo, que como destino
nos proporciona ser e fundamento. Permanece a pergunta, se nós e como é que nós,
ouvindo os princípios deste jogo, nele participamos e a ele nos submetemos.
263
Para Heidegger, o problema do fundamento não pode mais ser solucionado pelo
princípio da razão. Com efeito, pensar a partir da Ereignis significa abandonar toda lógica
tradicional de fundação: sequer aceitar a possibilidade de ancorar-se em um princípio que
permita interpretar a realidade em seu conjunto e estabelecer normas e valores. É basicamente
por isso que Heidegger é levado a reconhecer que é preciso um outro início do pensamento
262
HEIDEGGER; Wegmarken, p. 171
263
HEIDEGGER; O princípio do fundamento, p. 163
115
115
que salte para fora do princípio do fundamento, para além da pretensão que o fundamento – o
ser seja algum ente, algo permanente, constantemente presente que possa servir para dar as
razões do real. Neste sentido, o pensamento do outro início tenta pensar o ser como
possibilidade
264
, no sentido que o ser enquanto Ereignis não é uma coisa estável, necessária, o
summum ens da tradição, mas algo que se dá, um acontecimento não repetível e que coloca
em jogo a si mesmo na comum-pertença. Com isso nos encontramos fora das interpretações
tradicionais da possibilidade, onde o possível funda o necessário. Aqui, com efeito, o possível
não encontra ancorado em nenhum fundamento e é aquilo que de forma transitiva torna
possível. Deste modo, para Heidegger, possível não indica mais um poder-ser; de fato, o
possível é verdadeiramente tal apenas se permanece sempre exposto à sua inversão, ou seja, à
possibilidade de sua impossibilidade. O possível é aquilo que não exaure nunca esta
possibilidade da impossibilidade e é apenas por isso possibilidade. Se a impossibilidade é uma
das dimensões do possível, ou mais ainda, é sua dimensão mais própria, então repensar as
modalidades quer dizer, antes de tudo, repensar a comum-pertença de ser e nada. Possível não
é algo já consistente que pode também não ser, mas é aquilo que é já desde sempre presença e
ausência, pura indecisão, puro movimento, entre os dois extremos.
o relato de uma conversa entre Edith Stein e Heidegger destinada a preparar uma
comunicação sobre a fenomenologia heideggeriana. Nesta conversa deseja-se saber de
Heidegger se concordava com as conclusões, que vinham sendo tiradas de sua obra, de que
sua filosofia afirmava “a essencial e necessária finitude do ser e do ente”. Perante esta
reflexão sobre sua obra, Heidegger oferece a seguinte declaração:
O conceito de ser é finito; mas, esta teoria nada diz sobre o caráter finito ou infinito
do ente ou do próprio ser. Cada ente, que para compreender os entes necessita de
um conceito de ser, é finito. E, se existir um ser infinito, ele não necessita de um
conceito de ser para o conhecimento dos entes. Nós homens precisamos da
filosofia conceitual para podermos manifestar os entes, porque somos finitos; e
nossa característica como seres finitos e, mesmo a essência desta qualidade de ser
finito, se fundamenta nesta necessidade de utilizar o conceito de ser. Deus, ao
contrário, enquanto infinito, não está subordinado a uma tal necessidade que limita
o conhecimento: Deus não filosofa. O homem, porém, precisamente se define pelo
fato de ter que compreender o ser, utilizando-se do conceito de ser, para poder
relacionar-se com os entes.
265
Os entes são autodesocultantes apenas e desde que estejam em correlação com as
várias modalidades da co-realização humana de desocultamento. O acontecer desta correlação
é o que Heidegger denominou Ereignis. Para ele, esta capacidade de dádiva a priori, fáctica e
imperscrutável da correlação o seu destino, o qual não podemos interromper estaria ela
264
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 475
265
STEIN, Edith ; Welt und Person, p. 178
116
116
própria ligada à finitude a priori, fáctica e inexplicável da existência humana. Deste modo, a
riqueza do ser está na sua finitude, isto é, em seu caráter abissal, em seu caráter de evento. E
Heidegger não ignora que assumir a tarefa de pensar a finitude do ser exige, ao mesmo tempo,
inevitavelmente, esta retomada da finitude do Dasein, que se essencialmente na
experiência da morte. Porque o ser é finito ou seja, o dar-se do ser é finito –, o único modo
de aproximação à sua mais íntima essência é aquele da finitude. Assim, a morte proclama o
ser no próprio retrair-se de sua verdade e apenas os mortais, sendo para o próprio fim, podem
compreender o desvelar e o retrair simultâneos do ser como tal. A fundação do ser como
acontecimento finito pode se dar apenas se o Dasein se reconhece como possibilidade finita.
Mas isto quer dizer, ao mesmo tempo, que a fundação perfeita ali onde ser e nada se
igualam nunca pode verdadeiramente se dar, se é verdade que o instante por excelência da
fundação é aquele do desaparecimento mesmo do Dasein.
Ao longo de suas obras, Heidegger postulou ser o pensador de “um pensamento
apenas”, o qual tomou muitas formas de expressão: qual a essência, proveniência e “causa” do
desocultamento dos entes que acontece na e com a natureza humana? Qual é a causa da
correlação que permite ao homem ter acesso significativo aos entes?
Durante o meio-século da sua carreira filosófica, Heidegger conseguiu amplamente
estabelecer as estruturas da existência humana que são essenciais a este
acontecimento-de-inteligibilidade, e desenvolveu também as linhas gerais das suas
formas e épocas históricas. Contudo, insistiu que a questão sobre a fonte originária
desta correlação desocultante o como-e-porque-é-que-surge” era finalmente
irrespondível. Não podemos dizer porquê, de onde, ou com que fim é que existe o
desocultamento (ou seja, porque é que es gibt Sein) sem presumir de imediato o
fato do desocultamento e em conseqüência movermo-nos em círculo. Assim, a
essência de aletheia é lethe; a proveniência da revelação é imperscrutável.
266
E quanto à “origem” do desocultamento, Heidegger insiste no fato de que es gibt
Sein, o desocultamento apenas acontece para acontecer. Porque o desocultamento está sempre
operativo em toda parte no mundo humano, todos os entes estão, em princípio, abertos à
apropriação humana. Em poucas palavras, tudo é eternamente acessível, exceto o fato de que
tudo é eternamente acessível. O que verdadeiramente acontece é o esquecimento desta
correlação desocultante que vai se tornando cada vez mais despercebida ao longo da história
ocidental, a ponto de no mundo da cnica se ter tornado completamente esquecida e o
contar para nada. A missão de Heidegger parece ser a de redespertar o homem para a dádiva a
266
SHEEHAN, Thomas; A interpretação de uma vida: Heidegger e os tempos difíceis, em Poliedro Heidegger,
direção Charles Guignon, p. 109
117
117
priori do desocultamento; para este “mistério imperscrutável que, quer seja considerado ou
não, se abre como um abismo sob o pequeno e ordenado mundo da certeza burguesa”
267
.
4.2 – O Ereignis e a essência do Sagrado
Podemos afirmar que o colóquio com a poesia de Hölderlin foi fundamental para
Heidegger na determinação dos rumos de seu pensamento. O filósofo notou naquelas criações
poéticas um critério de medida para todo o porvir. Este colóquio instiga ainda mais a esperança
heideggeriana de um novo início na transformação do pensamento; de fato, Heidegger passa
realmente a se empenhar numa celebração poético-filosófica da revelação ontológica. Ele
acredita que o ser fala pela boca de Hölderlin como o deus pela boca do vidente Calchas na
Ilíada
268
. “A dedicação poética à sua poesia é possível como confronto pensante com a
Revelação do ser que nela foi alcançada”
269
. Nunca é demais, portanto, valorizar a importância
da poesia de Hölderlin para Heidegger. “Seria certamente correto dizer que o próprio
Heidegger, a partir do choque do encontro com essa poesia, foi levado a conceber seu próprio
pensamento como uma preparação para a escuta de Hölderlin, como um modo de lhe preparar o
lugar, de fazer dele novamente um poder em ação, de contribuir para essa potência”
270
.
Desta forma, no colóquio com o dizer poetante Heidegger pode experimentar o
mistério que sustenta todo seu caminho de pensamento: o ser [Seyn] enquanto diferença. O
colóquio com a poesia, em particular com aquela de Hölderlin, não é simplesmente um meio
para experimentar o mistério do ser, mas se constitui em uma unidade com esta experiência
267
SHEEHAN, Thomas; A interpretação de uma vida: Heidegger e os tempos difíceis, em Poliedro Heidegger,
direção Charles Guignon,, p. 111
268
O problema das relações entre Heidegger e Hölderlin é inesgotável. Particularmente, acreditamos que um
paralelismo e uma homogeneidade entre o pensamento de Heidegger e o de Hölderlin. Mas para outros,
principalmente para o critico literário Paul de Man, existe entre os dois uma distância insuperável. Para ele,
Hölderlin diz exatamente o contrário daquilo que Heidegger o faz dizer. O método exegético deriva diretamente
das premissas de sua filosofia. É inseparável destas, a ponto de ser impossível falar de “método” no sentido
formal do termo: trata-se do próprio pensamento de Heidegger na sua relação com o objeto poético. Nesse
sentido, as interpretações de Heidegger sobre Hölderlin se limitam a formular o seu próprio pensamento. Estas se
servem de Hölderlin como de um pretexto, e mesmo como de uma referência prestigiante que daria autoridade às
suas afirmações. São muitas as heresias cometidas por Heidegger! Paul de Man afirma: “Heidegger comenta os
poemas independentemente uns dos outros e estabelece analogias para ajudar a sua própria tese. Quando uma
passagem perturba a sua interpretação, simplesmente afasta-a. Ignora contextos, isola versos ou palavras para
lhes dar um valor absoluto, sem nenhuma consideração pela sua função específica no poema aonde os vai
buscar” (Paul de Man; O ponto de vista da cegueira, p. 272). Acreditamos que esse diálogo é intrincado e que
dificilmente se deixa medir ou avaliar em toda sua amplitude, já que envolve temas concernentes ao destino do
pensamento ocidental. A respeito das correções feitas por Heidegger nos textos de Hölderlin, ao interpretá-los,
Beda Alemann observa: “Nas correções arbitrárias de Heidegger se oculta muito mais do que um simples ensaio
de “adequar Hölderlin à sua própria filosofia” (Alemann, Beda; Hölderlin et Heidegger, p. 15). Na verdade,
pensamos que esta ligação de Heidegger à Palavra de Hölderlin o transforma no intérprete da escala poética do
pensamento, sempre ao encontro da finitude do ser. Todavia, uma discussão aprofundada do encontro de
Heidegger com Hölderlin foge ao âmbito deste trabalho.
269
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 13
270
DUBOIS, Christian; Heidegger: introdução a uma leitura, pp. 177-178
118
118
mesma. O pensamento é desta forma hermenêutica no sentido mais elevado, ou seja, escuta
pensante daquilo que na poesia permanece velado como o não-dito. Mais precisamente, o
mistério mesmo do ser se apenas como ausculta hermenêutica, como experiência
[Erfahrung] do pensamento. É a coisa mesma do pensamento que necessita do colóquio com o
dizer poético.
Essa necessidade do pensamento é clareada por Heidegger no prefácio de uma recolha
de colóquios com Hölderlin, onde ele afirma: “as seguintes elucidações não pretendem ser
contribuições à investigação historiográfica da literatura ou à estética. Elas brotam de uma
necessidade do pensamento”
271
. Ou seja, a Kehre do pensamento de Heidegger em direção à
poesia pertence à questão mesma do ser, no sentido que precisamente no caráter dialogante do
pensamento com a poesia ele entrevê um modo de experimentar o ser na sua diferença respeito
ao ser do ente da metafísica. É precisamente o colóquio que faz reverberar o mistério do ser
como diferença: o movimento que o colóquio dinamiza é o recíproco aproximar-se de anúncio e
ausculta. Quando a poesia é verdadeiramente falante e o pensamento auscultante o colóquio
pode reverberar o mistério do ser.
O destino do ser é um jogo que por sua vez é tal enquanto é sem “porquê”.
Essencialmente, o jogo se joga jogando. O ser se mostra como abismo, mistério; dele se pode
dizer apenas Es gibt, pura doação. Ele joga (se dá) apenas como fundo abissal que, enquanto
Geschick, se envia como fundamento. Aqui não princípio de causalidade; precisamente o
princípio de todos os princípios, o princípio do fundamento, se alimenta deste jogo abissal. A
proveniência de todos os fundamentos é um jogo sem fundamento. Como conclusão deste
raciocínio Heidegger observa: “Permanece a pergunta, se nós e como é que nós, ouvindo os
princípios deste jogo, nele participamos e a ele nos submetemos”
272
. Ora, a poesia, enquanto
essência da arte, é precisamente um modo pelo qual o homem participa do jogo do ser. o
poetizar agora se mostra como um jogo sem “porquê”, ou melhor, como participação do jogo
abissal.
Também cabe destacar que os poetas possuem o poder de nomear o sagrado. “O
que diz a poesia de Hölderlin? Sua palavra é o sagrado [Heilige]”
273
. É mesmo este o desejo
poético por excelência: o sagrado seja o meu Verbo. Que o sagrado seja o meu Verbo: eis,
neste tipo de apelo desejante, tudo o que nos é revelado da relação entre o poeta, a palavra e o
Sagrado. Que a realidade da poesia seja justamente a realidade deste anseio e que o poeta seja
aquele que saiba escutar a língua dos deuses. Mas como pode o poeta dizer a palavra do
sagrado? Como pode antecipar na palavra um tempo histórico? A sua palavra é fruto do
271
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 7
272
HEIDEGGER; O princípio do fundamento, p. 163
273
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 195
119
119
colóquio com os acenos do sagrado; assim, o lugar deste colóquio é o “entre” que une e
distancia mortais e divinos. É por isso que Hölderlin chama os poetas “semi-deuses”. Nesse
sentido, é o poeta o desejo que pressente, a esperança silenciosa de uma promessa fundamental:
“Mas agora faz-se dia! Esperei e o vi chegar, / E o que vi, o sagrado, seja minha palavra”
274
.
A poesia de Hölderlin surge como o dizer da possibilidade de uma nova coexistência
entre os homens e os deuses. Ela acolhe esses dois elementos, estabelecendo uma relação
apropriada para que o sagrado realmente possa dar seus sinais. E como se determina, segundo
Hölderlin, a vocação poética? Essa vocação se determina essencialmente pela busca do que se
mantém oculto no sumiço dos deuses, e que é o sagrado. “O saber poético é a condição
fundamental para a escuta da palavra poética dos deuses”
275
. Em outras palavras, o âmbito de
interpretação do sagrado cabe em primeiro lugar àquela atividade solidária ao pensamento a
qual também é requerida a preparação de um outro início: a poesia.
O poeta é necessitado a um dizer que nada mais é do que uma nomeação em silêncio.
(...) O lugar a partir do qual o poeta deve nomear os deuses é necessário que seja tal
que aqueles que são nomeados permaneçam longínquos na presença de sua vinda
que eles permaneçam assim justamente: aqueles que vêm. A fim de que essa
longitude se abra como longitude, o poeta deve se reprovar e recuar da proximidade
opressiva dos deuses; é necessário ao poeta “somente” lhes “nomear em silêncio”.
(...) Nomear é mostrar abrindo; nessa abertura se abre enquanto que e como alguma
coisa está a apreender e a guardar em sua presença. Nomear desvela, libera da
proteção. Nomear é o mostrar que deixa fazer a prova. Entretanto, se essa aparição
deve ter lugar, de tal sorte que ela se afaste da proximidade do que se está a dizer,
então um tal dizer do longínquo, sendo dizer-ao-longe, torna-se “apelo”. Mas se o
que está a apelar está suficientemente próximo, é necessário – a fim de que o apelado
seja salvaguardado em sua distância que ele seja, enquanto nomeado, “obscuro”
por seu nome. O nome deve velar. A nomeação é, enquanto apelo liberante do
abrigo, um re-colocar no abrigo
276
.
Para Heidegger, nascida do fervor pensante, a poesia recorda o essencial, o ser
esquecido, num recuo até o manancial sagrado. Essencialmente, o poeta é o fundador da
essência da verdade como verdade do ser. Para Heidegger, Hölderlin é o maior dos poetas (“o
poeta dos poetas”) porque enuncia a essência da poesia. Seu privilégio está no fato de ser o
poeta dos deuses foragidos (e daqueles que ainda não vieram). “Ser poeta em tempo indigente
significa: cantar, tendo em atenção o vestígio dos deuses foragidos. É por isso que, no tempo da
noite do mundo, o poeta diz o sagrado. É por isso que a noite do mundo é, no idioma de
Hölderlin, a noite divina”
277
. Como todo poeta Hölderlin cumpre a sina de permanecer entre os
274
HEIDEGGER; Erläuterung zur Hölderlins Dichtung, p. 49-77
275
HEIDEGGER; lderlins Hymne “Der Ister”, p. 39
276
HEIDEGGER; Approche de Hölderlin, pp. 248-249
277
HEIDEGGER; Erläuterung zur Hölderlins Dichtung, p. 312
120
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deuses e os homens, a partir de onde capta e instaura a mensagem sagrada. Ele assume e vive o
risco de ter sua morada onde existe o traço infinito da ausência divina.
O poeta, porém, na palavra cantante, faz apelo a todas as claridades que instauram a
fisionomia do céu e a todas as ressonâncias de seus cursos e ares, trazendo à luz e ao
som o que assim se faz apelo. O poeta, quando é poeta, não descreve o mero aparecer
do céu e da terra. Na fisionomia do céu, o poeta faz apelo àquilo que no
desocultamento, se deixa mostrar precisamente como o que se encobre e, na verdade,
como o que se encobre. Em tudo o que aparece e se mostra familiar, o poeta faz
apelo ao estranho enquanto aquilo a que se destina o que é desconhecido de maneira
a continuar sendo o que é - desconhecido. O poeta dita poeticamente somente quando
toma a medida em que pronuncia a fisionomia do u de maneira a articular os seus
modos de aparecer como a que se destina o deus desconhecido.
278
Vivendo solitariamente o tempo vazio da ausência, o poeta anuncia obstinadamente o
infortúnio de nossa errância. Ser poeta em tempo de aflição é, então, cantando, ser atento ao
traço dos deuses fugidos, ficar sobre esse traço, e traçar assim aos mortais, seus irmãos, os
caminhos da virada. Os poetas são compreendidos como videntes, como profetas que devem
anunciar o tempo da aflição e intuir o florescer de um novo dia. A poesia anuncia o tempo que
vem, ou melhor: prepara aquilo que vem. A poesia de Hölderlin tem esse caráter antecipatório.
Ela antecipa um tempo histórico: o tempo da penúria, que é marcado pela fuga dos deuses.
Trata-se de um tempo de extrema penúria para o Dasein: “o tempo da noite do mundo é o
tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele se tornou tão indigente que
nem é capaz de notar que a falta de Deus é mesmo uma falta”
279
. A antecipação de um tempo
histórico por parte do poeta é visto por Heidegger como aquilo que é próprio do profeta, mas
não no sentido judeu-cristão. “Os profetas destas religiões não se contentam simplesmente de
anunciar as palavras do sagrado como fundamento antecedente. Eles predicam bito o deus
como garantia segura de salvação e bem-aventurança ultra-terrena”
280
. Esta explicação é
importante, pois a palavra poética, sendo ausculta dizente dos acenos do ser, deve assumir em si
a característica de aceno e superabundância, que, como tal, não garante jamais a chegada da
salvação ultra-terrena. A poesia é ressonância do não dizível, que, no entanto, se anuncia,
mesmo se de modo indizível.
No mundo moderno os deuses desviam-se e o homem deve entender o sentido sagrado
dessa fuga divina, não a disfarçando mas realizando-a por sua parte. Por essa fuga em que se
afirma o desaparecimento dos deuses, afirma-se também a pureza da lembrança divina. Por um
lado, é o poeta constrangido a manter-se à margem dos deuses e dos homens, que deve suportar
essa dupla separação, manter puro esse distanciamento sem enchê-lo de vãs consolações. Por
278
HEIDEGGER; Erläuterung zur Hölderlins Dichtung, p. 177
279
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 309
280
HEIDEGGER; Erläuterung zur Hölderlins Dichtung, p. 114
121
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outro, o poeta continua sendo ainda, essencialmente, o mediador. No hino Wie wenn am
Feiertage o poeta coloca-se de diante do Deus, está com que em contato com a mais alta
potência que o expõe, portanto, no maior perigo, perigo da queimadura pelo fogo, da dispersão
pelo abalo, e que ele tem por tarefa apaziguar acolhendo-o em si mesmo no silêncio de sua
intimidade, a fim de que aí nasçam as palavras felizes que os filhos da terra poderão então ouvir
sem perigo.
A palavra poética não pertence nem ao dia nem à noite, mas sempre se pronuncia entre
a noite e o dia, e de uma vez diz o verdadeiro e o deixa inexpresso. Todavia, vemos que a
poesia ou bem passa a ser tratada como coisa do passado, como suspiro nostálgico, como vôo
ao irreal e fuga para o idílico, ou então passa a ser considerada como parte da literatura.
Precisamente, o poetizar é agora encarado como “a ocupação mais inocente de todas”
281
. Todo
esse processo parece sancionar o julgamento daqueles que entendem a poesia como algo pouco
sério, um jogo que tem fim em si mesmo. “A poesia é como um sonho, certamente não uma
realidade, é um jogo feito de palavras, não uma ação séria. A poesia é inócua e ineficaz”
282
. A
poesia, por sua vez, alimentando-se da linguagem transmite a esta seu caráter inocente e
inócuo; isso leva-nos a considerá-la a coisa menos perigosa possível. Com efeito, a
modernidade representa justamente esse tempo em que a palavra poética somente pode dizer:
para que servem os poetas?
“E para que poetas em tempo indigente?” A palavra tempo significa aqui a era do
mundo à qual ainda pertencemos. Com o surgimento e o sacrifício mortal de Cristo
teve início, segundo a experiência histórica de Hölderlin, o fim do dia dos deuses. A
tarde vai avançando. Desde que “trindade”, Héracles, Dionísio e Cristo, deixou o
mundo, a tarde do tempo do mundo foi-se aproximando da noite. A noite do mundo
estende a sua escuridão. Esta era do mundo caracteriza-se pela ausência de Deus,
pela “falta de Deus”.
283
Fundamentalmente, precisamos dizer que o poetizar é a ocupação mais inocente não
porque se trata de uma atividade pouco séria, mas porque participa do jogo abissal do ser, e
como tal não tem finalidade: joga enquanto joga e basta. O caráter inocente do poetizar tem
afinidades com aquilo que nomeia o jogo sem porquê, uma afinidade que é ditada pelo colóquio
que se instaura entre doação do ser e dizer auscultante do poeta, entre anúncio e ausculta (que
rediz), entre dom e agradecimento. A inocência do poetizar é a pura ressonância do jogo do ser,
um jogo do qual o jogador pode participar apenas quando se abre completamente em seu ser.
Nesta abertura (o Da do Da-sein) o jogador se decide pela autenticidade da própria existência,
que em Sein und Zeit corresponde ao ser-para-a-morte. Neste sentido, o jogador pode participar
281
HEIDEGGER; Erläuterung zur Hölderlins Dichtung, p. 33
282
HEIDEGGER; Erläuterung zur Hölderlins Dichtung, p. 35
283
HEIDEGGER; Caminhos de floresta, p. 309
122
122
do jogo do ser apenas quando assume sua mortalidade. Assim, na inocência do poetizar se
recolhe o perigo mais profundo para o ente humano: a sua finitude. Perigo no qual o Dasein
encontra-se desde sempre lançado. A autenticidade do Dasein não está em fugir do perigo, mas
em assumí-lo em toda sua angustiante plenitude.
O primeiro encontro significativo de Heidegger com a poesia de Hölderlin dá-se em
1934-1935 nas preleções dedicadas aos hinos Germanien e Der Rhein. Por isso, coloca-se
agora a necessidade de nos colocarmos sob a autoridade do seguinte poema:
O Reno
I
Na hora escura eu estava sentado, às portas
Da floresta, quando o meio-dia de ouro,
Visitando a fonte, desceu
As escadas das montanhas dos Alpes,
Que para mim, segundo velha crença,
Se chama o castelo dos celestiais,
Construído divinamente, mas onde
Em segredo ainda muitas coisas decididas
Chegam até aos homens; de lá
Aprendi sem o supor
Um destino, pois recém
A alma estava conversando consigo mesma
Em sombra quente,
E se direcionou para a Itália
E mais longe para as costas da Moréia.
II
Mas agora, dentro da montanha,
Fundo entre os picos prateados
E entre o verde alegre,
Onde as montanhas olham para ele,
E as cabeças das pedras olham
Umas sobre as outras para baixo, dias inteiros, lá
123
123
No mais frio abismo escutei
O jovem implorar por salvação, ouvia-se como bramava,
E se queixava à mãe terra,
E ao tonante que o gerou,
Compadecendo-se os pais, mas
Os mortais fugiram do lugar,
Pois era terrível quando, sem luz,
Se rolava nos grilhões,
A fúria do semi-deus.
III
A voz era a do mais nobre dos rios,
Do Reno nascido livre,
E outras coisas esperava ele, quando lá em cima do irmãos,
O Tícino e o Ródano,
Ele se apartou e queria migrar, e impaciente
A alma régia o impulsionava para a Ásia.
Porém, é incompreensível
O desejar diante do destino.
Mas os mais cegos
São filhos dos deuses. Pois o homem conhece
Sua casa e animal não foi dado saber
Onde deve construir, foi-lhes dado
A falta na inexperiente alma, tanto
Que não sabem para onde ir.
IV
Um enigma é o que decorreu puramente. Mesmo
O canto mal pode desocultá-lo. Pois, assim como
Inicias, assim permaneces,
A necessidade também faz igual efeito,
E a disciplina, a maior parte, a saber,
É permitida pelo nascimento,
E o raio de luz, que
Vai ao encontro do recém-nascido.
124
124
Mas onde há alguém,
Para permanecer livre
Toda a sua vida, e para preencher sozinho o
Desejo do coração, assim de alturas favoráveis, como o Reno,
E nascido assim de colo sagrado?
V
Por isso é um júbilo sua palavra.
Ele não ama, como outras crianças,
Chorar nas enfaixas;
Pois onde por primeiro as margens
Andam devagarinho pelo seu lado, as tortuosas,
E sedentas o envolvem, a ele,
O irrefletido, e desejam
Puxá-lo e protegê-lo bem
Nos próprios dentes, sorrindo
Ele arrebenta as cobras e cai
Com a pressa e quando na pressa
Alguém que é maior não o domina,
Deixa-o crescer, como o raio ele precisa
Cindir a terra, e como que encantadas,
As florestas e as montanhas sucumbindo o seguem.
VI
Mas um Deus quer poupar aos filhos
A vida atribulada e sorri
Quando rios como aquele,
Incontroláveis mas contidos
Por Alpes sagrados, se encolerizam
Contra eles nas na profundeza.
Em tal refeição tudo o que é
Puro é então forjado.
E belo é, quando lá fora,
Depois de deixar as montanhas e
Em silêncio se modificando na terra alemã,
125
125
Ele se contenta e satisfaz a saudade
Numa bela ocupação, quando constrói a terra,
O pai Reno, e queridas crianças nutre
Em cidades que ele fundou.
VII
Pois nunca, nunca mais ele esquecerá.
Antes necessita a moradia se desfazer,
E a norma, e se desfigurar
O dia dos homens para que um tal rio
Possa esquecer a origem
E a pura voz da juventude.
Quem foi que por primeiro
estragou
Os laços de amor e deles
Fez cordas?
Então zombavam pelo próprio direito
E sabedores do fogo celestial os arrogantes, então, por primeiro,
Desprezando as trilhas,
Escolheram a audácia
E tentaram se igualar aos deuses.
VIII
Mas os deuses têm o suficiente
Com a própria imortalidade e se precisam
Os celestiais de algo,
Então são de heróis e de homens,
E de mortais em geral. Pois, porque
Os bem-aventurados nada sentem sozinhos,
Deve, se tal coisa é permitido falar,
Em nome dos deuses, tomando parte,
Sentir um outro. Deste os deuses necessitam.
Contudo, sua sentença é a
De que sua própria casa se estrague
126
126
E o que é o mais amável tanto quanto o inimigo anuncie
E que pai e filho enterrem
Sob os escombros
Se alguém quiser ser como eles e
Não admitir desigualdades, o visionário.
IX
Por isso é feliz aquele que achou
Um destino bem concedido,
Onde ainda a lembrança
Das andanças e das dores
Docemente sussurra na praia segura,
Que possa olhar com gosto
Para aqui e ali até nos limites
Que no nascimento Deus
Lhe delimitou para residência.
Então ele repousa, modestamente feliz,
Pois tudo o que ele queria,
O que é celestial, por si envolve,
Em sorriso agora, sem coação, o audacioso,
Enquanto ele repousa.
X
Em semi-deuses penso agora,
E conhecer devo os caros,
Por que muitas vezes suas vidas
Moveram tanto meu peito saudoso.
Mas se, como para Rousseau, a ti,
Insuperável, a alma
Foi bastante resistente,
Foi lhe dado sentido seguro
E doce dom de ouvir, para discursar, para em plenitude divina,
Como o deus do vinho, totalmente divino
E sem lei, tornar aos bons compreensível
A linguagem dos mis puros, mas com razão
127
127
Atingir os desatentos na cegueira,
Os escravos profanadores, como nomeio o que é estranho?
XI
Os filhos da terra são como a mãe,
Amantes de todos, assim os felizes também aprendem,
Sem esforço, tudo.
Por isso também surpreende
E assusta ao homem mortal,
Quando repensa o céu, que
Ele juntou sobre as costas
Com braços amáveis, e
O fardo da alegria.
Então muitas vezes parece-lhe o melhor
Quase totalmente esquecido aí
Onde o raio queima,
Na sombra da floresta,
O estar junto ao Bielersee na fresca verdura,
E despreocupado e pobre em sons
Como principiantes, aprender com os rouxinóis.
XII
E glorioso é ressurgir de sono sagrado,
Acordando do frescor da floresta,
Ir ao encontro
Da suave luz, quando
Aquele que construiu as montanhas
E traçou o trilho dos rios
Depois de em sorriso também
Ter dirigido a vida atribulada dos homens,
Esta que é pobre de fôlego,
Assim como guiou barcos com seus ventos,
Também descansa e para a discípula agora
O Criador acha mais coisas boas
Do que más.
128
128
E para aterra de hoje o dia se põe.
XIII
Então festejam a festa de noivado homens e deuses,
Festejam todos os viventes,
E concluído está
Um momento do destino
E os fugitivos procuram o albergue,
E doce sono os valentes,
Mas os amantes são
O que eram, estão
Em casa, onde a flor se alegra
Do calor inofensivo e o espírito
Sussurra em torno de árvores escuras,
Mas os inconciliados
Se transformaram e se apressam
Para estenderem-se as mãos,
Antes que a luz amiga
Sucumba e a noite chegue.
XIV
Mas, para alguns, isso passa depressa, outros
Guardam-no por mais tempo.
Os deuses eternos estão por todo tempo
Sempre cheios de vida; até na morte
Pode, no entanto, um homem manter
Na memória o que é melhor,
E então ele revive o que é o mais alto.
Todavia, cada um tem sua medida.
Pois difícil é carregar a desgraça,
Mas mais difícil a sorte.
Mas um sábio conseguirá
Do meio-dia até a meia-noite
E até a manha brilhar,
Durante o banquete, permanecer lúcido.
129
129
XV
A ti, meu Sinklair, poderá surgir Deus, oculto em aço,
Em caminhos quentes sob pinheiros
Na escuridão da floresta de carvalhos
Ou nas nuvens, você o conhece,
Pois na juventude você conheceu a força
Do bem e não mais está-lhe oculto
O sorriso do dominador
Junto ao dia, quando
Em febre e acorrentado
O que vive surge, ou também
Na noite, quando tudo está misturado
Em desordem e retorna
A antiqüíssima confusão.
284
Em Der Rhein Heidegger conduz uma reflexão sobre os semi-deuses [Halbgötter].
Quem são os semi-deuses dos quais os poetas devem pensar a essência. Não certamente deuses,
mas também não os seres humanos ordinários. Eles são intermediários, mas não no sentido neo-
platônico, hierárquico, de realidade intermediária: a sua essência não é determinável pela
subtração de algo da essência divina ou pelo acréscimo de algo à essência humana. E como
podemos pensar a essência dos semi-deuses se não conhecemos ainda nem a essência dos
deuses nem a essência dos homens? E, contudo, quando nos perguntamos sobre a essência dos
homens vamos sempre além dela, e quando nos perguntamos sobre os deuses pensamos sempre
algo que se encontra abaixo de sua natureza. Os semi-deuses não são desta maneira deuses, mas
seres que se colocam em direção a Deus, em uma direção que se encontra além dos homens:
são super-homens e sub-deuses. Isso não significa nenhuma topografia, mas é apenas uma
indicação de investigação. Na ordem da interrogação, a questão dos semi-deuses precede àquela
dos homens e dos deuses; e é a questão decisiva
285
. Aquilo que se encontra em jogo na questão
que diz respeito à essência dos semi-deuses é a questão mesma da diferença entre homens e
deuses; e apenas na medida em que esta diferenciação se torna questão o pensamento pode
enfim ter acesso à diferença enquanto tal. Pensar os semi-deuses não significa permanecer em
uma terra intermediária, de ninguém, mas instaurar o âmbito do ser em geral.
284
Tradução de Marco Aurélio Werle (Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger, pp. 161-167)
285
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 160
130
130
Mas como pensar os semi-deuses? Que ser é aqui instaurado? A resposta de Hölderlin
se encontra logo no início de Der Rhein: é o destino. Destino é o nome para o ser dos semi-
deuses, que oferece ao mesmo tempo indicações para pensar também o ser dos deuses e dos
homens. Mas não se trata do destino no sentido de fatum, de fatalidade, de um ser sem escopo,
de um agir cego sem vontade e sem saber. A experiência do destino esta incluída naquela da
morte e naquela do saber a que esta se refere, isto é, no caráter do absolutamente estranho
[Ungeheuren] da determinação e da divisão que colocam limites
286
. O destino diz respeito ao
fato que o homem encontra-se lançado e o conhece nem mesmo a trajetória desse
lançamento; no entanto, na medida em que assume seu próprio ser lançado ele é também
projeto, projeção [Ent-wurf]. Neste assumir, o homem se expõe totalmente ao ser, sofre, no
sentido literal do termo. E é nesta paixão, que é sempre paixão de si, que o ser como destino se
torna manifesto. Esta paixão não tem nada de passiva, mas é criativa, é aquilo pelo qual o
destino mesmo se sabe como destinado. Por isso o tom fundamental a partir do qual deve ser
pensada a essência dos semi-deuses (aqueles que mais do que ninguém sofrem o ser como
destino) é a compaixão: é necessário compartilhar a paixão dos semi-deuses para participar da
mesma paixão do ser. Ou, dito de outra maneira: se o ser dos semi-deuses não é senão paixão, a
instauração de tal ser em geral não pode se dar senão através de uma compaixão. A figura
paradigmática do sofrer o destino dos semi-deuses é Dionísio.
Dionísio é o “sim” da vida mais selvagem, inexaurível em seu impulso gerador, e o
“não” da morte mais terrível, aquele da anulação [Zernichtung]. É a alegria do
encantamento mágico [zauberischer Berückung] e o horror de um terror
desordenado. É uma coisa sendo a outra, isto é, sendo, ao mesmo tempo não é.
287
Na figura de Dionísio se encarna toda a ambivalência dos semi-deuses: vindo à
presença eles se ausentam e ausentando-se eles se fazem presentes; sendo não são, não sendo
são; é a máscara, o símbolo da presença ausente e da ausência presente. Dionísio é o portador
para aqueles que se encontram privados de Deus. E esta é a tarefa dos semi-deuses: trazer os
traços, transmitir os acenos dos deuses, realizar a mediação entre o ser dos deuses e o ser dos
homens. Esta função é exercida pelos poetas: aos poetas é dado o sofrer que percebe o “inicial
do início em seu iniciar”, a experiência da origem em sua nascente. É precisamente nesta escuta
da origem que a função intermediária dos semi-deuses se revela plenamente.
A escuta poética não diz respeito nem aos deuses nem aos homens. Os deuses escutam
cheios de piedade: seu escutar é um er-hören, um conceder audiência. Eles deixam surgir a
origem, liberando-a a si mesma. A escuta dos mortais é ao invés über-hören, um ir além da
origem, um fugir, um desligar-se dela. Eles buscam perder a memória dela, e com isso
286
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 166
287
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 180
131
131
pretendem evitar seu caráter terrível. Por isso, os mortais se limitam a escutar aquilo que da
origem surgiu [was entsprungen ist] e não a origem mesma, não o puro fato do surgir. A origem
é então pensada sempre a partir de seus resultados (sucesso, beneficio...), mas desta maneira ela
é inevitavelmente perdida com vantagem para aquilo que origina. Tanto os deuses quanto os
homens mesmo se em maneira totalmente oposta perdem a origem, se distanciam dela: os
deuses dando-lhe excessiva liberdade, os homens ao invés fugindo-lhe ou esquecendo-a. Nos
dois casos a origem é deixada a si mesma.
Mas e os poetas? Não sendo deuses eles não podem simplesmente limitar-se a liberar a
origem, não podem igualmente fazer de seu escutar um puro conceder audiência; e, à diferença
dos homens, eles não podem também permanecer surdos ao apelo da origem. O poeta é aquele
que procura enfrentar o caráter terrível da origem enquanto tal, que procura escutar seu dar-se e
não apenas aquilo que dela se origina. Se os deuses deixam escapar a origem, o escutar do poeta
a persegue, a acompanha em seu surgir. Aprender o destino como ser dos semi-deuses significa
desta maneira colocar-se na escuta da origem em seu originar-se. Trata-se, com efeito, de uma
experiência arriscada, incerta, exposta à possibilidade de mudanças radicais – como o Reno que
enquanto semi-deus muda bruscamente de direção. Os semi-deuses são cegos, não sabem para
onde ir; mas sua cegueira depende do fato que têm um olho a mais, o olho que fixa a origem.
Os semi-deuses são inermes diante da origem, são precários: sua única proteção está
exatamente em sua simplicidade, que deriva da tarefa de enfrentar a desmedida da destinação
divina.
Os semi-deuses poetas devem desta forma enfrentar o enigma da origem, enigma que
depende da duplicidade estrutural da origem:
A origem pura [Der reine Ursprung] não é aquela que se limita a fazer sair de si
outra coisa e abandona a si própria, mas aquele início [Anfang] cujo poder passa
constantemente por cima do originado [Entsprungene], lhe sobrevive passando à
sua frente e está, assim, presente na fundação do que permanece; presente não
como o que é apenas um efeito que vem de um tempo anterior [früher
Nachwirkende], mas como o que precede [Vorausspringende] e, assim, enquanto
início, é ao mesmo tempo o fim decisivo [das bestimmende Ende], ou seja, o
escopo [Ziel] propriamente dito.
288
Nestas preleções de 1934-1935, através de considerações sobre a essência da poesia,
Heidegger coloca as bases para uma efetiva interpretação sobre a essência do sagrado. Essa
vem à luz no comentário a Wie wenn am Feiertage, conferência várias vezes proferida nos anos
1939-1940 e publicada pela primeira vez em 1941.
289
288
HEIDEGGER; Hinos de Hölderlin, p. 227
289
HEIDEGGER; Erläuterung zur Hölderlins Dichtung, pp. 49-77
132
132
Assim como em dia santo
Assim como em dia santo, para ver as terras,
o lavrador sai, pela manhã, quando
Da noite quente caíram os relâmpagos refrescantes
Todo esse tempo e o trovão ruge ainda ao longe,
O rio regressa de novo ao seu leito,
E fresco o solo verdeja,
E da chuva alegre do céu
Goteja a videira, e resplandecentes
Ao sol tranqüilo se erguem as árvores do bosque:
Assim se erguem eles em tempo propício,
Aqueles, a quem nenhum mestre só, a quem maravilhosa
E omnipresente forma e cria em leve enlace
A potente, a divinamente bela Natureza.
Por isso, quando ela parece dormir em certas estações do ano
No céu ou entre as plantas ou nos povos,
Se enche de luto também a face dos poetas,
Parecem estar sozinhos, mas eles pressentem sempre.
Pois, pressentindo, ela própria repousa também.
Agora, porém, rompe o dia! Eu esperava e vi-o vir,
E o que eu vi, o Sagrado, seja o meu Verbo.
Pois ela, ela mesma, que é mais velha que os tempos
E está acima dos deuses do Oeste e do Oriente,
A Natureza, acordou agora com ruído de armas,
E do alto do Éter até ao fundo do abismo
Segundo lei fixa, como outrora, saído do caos sagrado,
Sente-se de novo o entusiasmo
Que tudo cria.
E como no olhar do homem brilha um fogo
Quando concebeu altas coisas, assim
Se incendeia de novo c’os sinais, c’os os feitos do mundo agora,
133
133
Um fogo na alma dos poetas.
E o que outrora aconteceu, mas mal se sentiu
Eis o que só agora se revela,
E as que a sorrir nos lavraram aterra
Em figuras de escravos, são-te agora conhecidas,
As sempre vivas, a força dos deuses.
Queres interrogá-los?: na canção sopra o seu espírito,
Quando do sol do dia e da terra quente
Ela surge, ou das trovoadas do ar, e de outras
Que, mais preparadas nas funduras do tempo
E mais ricas de sentido e a nós mais distintas,
Vagueiam entre céu e terra e entre os povos,
São pensamentos do espírito comum
Que acabam calmos na alma do poeta,
Tais que ela, ferida de repente, há muito já
Patente ao infinito, treme de recordação,
E, inflamada do raio sagrado, lhe é dado
O fruto nascido do amor, obra de deuses e homens,
O canto, que a ambos dê testemunho,
Assim caiu, como os poetas contam, por ela desejar
Ver com os olhos o deus, o seu rabo sobre a casa de Sémele,
E ela, ferida do deus, pariu,
Fruto da trovoada, o Baco sagrado.
E por isso bebem fogo celeste agora
Os filhos da terra sem perigo.
Mas a nós cabe, sob as trovoadas do deus,
Ó poetas! Permanecer de cabeça descoberta,
E com a própria mão agarrar o raio do Pai,
O próprio raio, e, oculta na canção,
Oferecer ao povo a dádiva celeste.
Pois se nós formos puros de coração
Como crianças, e as nossas mãos sem culpa,
O raio do Pai, puro, não o queimará,
E, fundamente abalado, sofrendo do mais forte
As dores, nas tempestades do Deus que do alto
134
134
Caem, quando Ele se aproxima, o coração fica firme.
Mas, ai de mim! Quando de...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ai de mim!
E se eu disser,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Que me aproximei pra contemplar os Celestiais,
Eles mesmos me precipitam fundo entre os vivos,
A mim falso sacerdote, para as trevas, para que eu
Cante aos que queiram aprender a canção de aviso,
Ali...
290
Primeiramente, podemos encontrar em Wie wenn am Feiertage um outro entendimento
sobre a natureza. Este muito se distancia de nossa atual visão tecnológica que simplesmente a
reduz à esfera do poder da ordenação matemática do comércio mundial e da maquinação.
Heidegger deseja recuperar, a partir do verbo poético de Hölderlin, o sentido originário desta
palavra: “a expressão de Hölderlin a natureza’ poetiza nessa poesia sua essência segundo a
verdade oculta da palavra iniciante e fundamental que é physis
291
. Para Heidegger, Hölderlin
abre o caminho para o entendimento da natureza não como uma realidade particular, nem
mesmo como o conjunto do real, mas como o “Aberto”, o movimento de abertura que permite a
tudo o que aparece aparecer. E esse aberto em que a poesia deve se encontrar engajada engaja-a
também no dar-se essencial do ser.
Para Heidegger, a physis é que cria e anima tudo; o que sem cessar se ergue e
desabrocha. É aquilo que está presente e ausente em tudo que é, a luz da qual se origina toda
luz, a sede da luz, a clareira. Physis denomina a apreensão, pelos gregos, da manifestação
inicial pela qual todo ente vem ao aparecer. Physis não é, originariamente, aquilo que, porque
desabrocha, vem ao aparecer e se conserva na presença, mas a própria emergência de todo o
ente como tal, a sua vinda ao aparecer, a sua entrada em presença. Não nomeia nenhum ente,
mas o ser”
292
. Na verdade, estamos falando de uma das mais altas determinações do ser
290
HÖLDERLIN; Poemas; prefácio, seleção e tradução de Paulo Quintela, pp. 254-59
291
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 57
292
ZARADER, Marlène; Heidegger e as palavras da origem, p. 51
135
135
encontradas pelo homem ocidental. Mesmo a técnica não é outro modo de revelação, paralelo a
physis, mas um dos tantos modos através dos quais o desvelamento se apresenta.
Physis é o se avançar, o levantar, o desabrochar, a abertura que, desabrochando
retorna ao mesmo tempo no avançado e assim volta a se fechar a cada vez que a
todo presente a sua presença. Physis, pensada como palavra fundamental, significa o
desabrochar no aberto, a fonte desta clareira na qual alguma coisa pode vir a aparecer
(...) e ser presente como isto ou aquilo. (...) Physis é o levantamento, a fonte da
clareira; ela é assim o foco e o lugar da luz, (...) é o que é presente em tudo.
293
Infelizmente ignoramos, segundo Heidegger, a força significativa dessa palavra
fundamental que ainda hoje apenas começamos a compreender. A natureza é tanto a irrupção
no aberto quanto a retração em si daquilo que surge, pela qual aquilo que faz presente tudo o
que é, e encontra-se presente em tudo o que é, permanece velada enquanto tal. Sustentamos que
a conferência Wie wenn am Feiertage precisa o modo de como Heidegger pensa o sagrado; de
fato, na medida em que a natureza desperta, se desvela a sua autêntica essência enquanto o
sagrado. O próprio Hölderlin diz que guiado pela natureza, este poder anterior que ultrapassa
tanto os deuses quanto os homens, viu o sagrado. “O Sagrado é o ser da natureza”
294
. Para
Heidegger, o poeta nada mais é do que aquele que deseja acordar e desabrochar no abraço da
natureza. De acordo com Wie wenn am Feiertage, o ser (a natureza) educa o poeta: a natureza
lhe serve de exemplo de um estado que deseja atingir e imitar. Esta imitação não é a mimesis
aristotélica, mas antes a Bildung romântica: a iniciação através da experiência consciente do
ser
295
. Assim, o sagrado é a imediação que somente se anuncia (mas nunca em si) quando passa
pela mediação. A mediação se privilegiadamente pela natureza como physis, que está acima
dos deuses (do céu) e dos homens (da terra), mas retém ambos e possui um ser mais próximo do
ser do sagrado.
Essencialmente, o descerrar a partir do qual o aberto se abre para conceder a cada ente
distinto o seu presentar-se definido é o próprio sagrado. Das Heilige não é um ente, e como tal
se apenas como physis. A natureza assim entendida, despertando-se sempre e a cada vez,
inspira cada coisa. Ou melhor, a natureza mesma (o sagrado) é a inspiração. O sagrado,
enquanto a natureza que desperta, possui um caráter de superioridade e de anterioridade em
relação aos deuses e mortais: “Ela (a natureza) não esta abaixo dos deuses como se eles fossem
um domínio do real separado e superior. Ela reina sobre os deuses. Ela [...] é capaz de mais
ainda que os deuses: é somente nela, enquanto clareira, que tudo pode ser presente”
296
. Os
deuses podem se tornar presentes e se mostrarem em sua essência divina, graças ao sagrado
293
HEIDEGGER; Approche de Hölderlin, p. 74
294
HEIDEGGER; Approche de Hölderlin, p. 77
295
DE MAN, Paul; O ponto de vista da cegueira, p. 280
296
HEIDEGGER; Approche de Hölderlin, pp. 63-98
136
136
que se mostra como uma epifania luminosa, ou seja, como um Wesen que se dá como luz, sopro
que tudo anima. Assim, o sagrado enquanto essência da natureza é a condição de possibilidade
dos deuses. É por isso que Heidegger acrescenta: “A’santidade’ não é, então, de forma alguma,
uma qualidade emprestada a um deus determinado. O sagrado não é tal porque divino, mas é o
divino que é tal porque sagrado”
297
.
Aparentemente Wie wenn am Feiertage é totalmente dedicado a natureza, “maravilhosa
onipresente”, “potente” e “divinamente bela”. A onipresença não indica aqui uma determinação
de caráter quantitativo, mas o caráter inelutável da natureza: a natureza encontra-se presente
mesmo no jogo de opostos, em tudo aquilo que parece se excluir reciprocamente. De maneira
análoga, a potência não deve ser entendida como uma propriedade extrínseca: precisamente ao
contrário, a natureza é aquilo que potência. É ela então um deus ou uma deusa? A resposta é
inequívoca: “Se assim fosse, a natureza, que encontra-se presente em tudo, também nos deuses,
seria de novo mais uma vez medida [gemessen] em base ao ‘divino’ e não seria mais a
‘natureza’”
298
. Assim, não é possível entender a natureza a partir do divino, mas ao contrário,
uma vez que, na sua onipresença, a natureza se encontra também nos deuses. Por isso apenas a
natureza pode ser considerada verdadeiramente bela; um deus ou uma deusa podem suscitar a
“mais alta aparência de beleza”, mas a “pura beleza não se encontra no entanto em seu poder”.
O deus pode apenas emular a beleza da natureza, e alcançar a máxima semelhança, sem
contudo se identificar com esta
299
. A natureza deve ser aqui entendida em seu sentido originário
como physis: “o desabrochar [Hevorgehen] e brotar, o abrir-se, que brotando retorna ao mesmo
tempo em seu ter desabrochando e assim se fecha naquilo que paulatinamente torna presente
uma presença”
300
. A natureza é tanto a irrupção no aberto quanto a retração em si daquilo que
surge, pela qual aquilo que surge, pela qual aquilo que faz presente tudo o que é, e encontra-se
presente em tudo que é, permanece velado enquanto tal.
Mas vemos Hölderlin também chamar a natureza de sagrado. Natureza torna-se
improvisadamente uma palavra poética superada, inadequada, a ser ultrapassada enquanto tal: e
esta ultrapassagem “é a conseqüência e o sinal de um dizer que começa em modo mais inicial
[anfãnglicher]”
301
. Mais precisamente, o sagrado é a natureza que desperta, é a natureza “mais
antiga que os tempos” e o tempo mais antigo, pois esta anterioridade não alude a nenhuma
forma de super-temporalidade ou eternidade. Ao contrário, a natureza entendida como o
sagrado precede os tempos porque é aquilo que oferece a cada existente a clareira na qual pode
se manifestar, “a natureza é anterior respeito a todo real e a toda realização, é também anterior,
297
HEIDEGGER; Approche de Hölderlin, pp. 63-98
298
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 53
299
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 54
300
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 56
301
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 58
137
137
respeito aos deuses”
302
. Ela tem um poder que falta aos deuses enquanto tais: “nela apenas,
enquanto clareira, tudo é presente”
303
. Mas esta prioridade não significa que ela seja über den
Götten” – acima dos deuses com em uma região separada ainda mais essencial, mas que ela é
über die Götter sobre os deuses –, pois é ela que define seu ser deuses. Os deuses são
deuses porque são sob, isto é, no interior do sagrado
304
.
O sagrado é a essência da natureza, aquilo que atravessa o “domínio de todas as
regiões”
305
: o éter e o abismo, os âmbitos mais extremos do real, mas também “as deidades
supremas”. Enquanto abertura, o sagrado concede o espaço onde os celestes e os mortais podem
se encontrar. O sagrado é a mediação que toca e coliga tudo. Mas em si mesmo, o sagrado é ao
invés o imediato, aquilo que se subtrai a toda possível mediação:
O aberto mesmo, que é o único a dar a todo “um para o outro” e a todo “um com o
outro” o âmbito onde se pertencer, não se origina de nenhuma mediação. O aberto
mesmo é imediato. Nenhum ente mediato, seja um Deus ou um homem, pode desta
forma alcançar o imediatamente imediato.
306
Assim, em primeiro lugar cabe destacar: nem os deuses nem os homens, como
explicitamente se afirma, têm acesso à origem como tal. Isso não depende de um seu defeito ou
impotência, mas da natureza mesma da origem, que não é representável, ou atingível como tal.
E em segundo lugar, mesmo sendo a origem absolutamente imediata, ela se apenas no jogo
das mediações
307
. Desta maneira somos remetidos à dualidade inelutável da origem. O sagrado
é ao mesmo tempo caos e forma, mediação e anarquia: em sua precária unidade originária,
princípio anárquico. Nesta perspectiva caos significa mais propriamente a cisão, a fenda: “o
descerrar a partir do qual o aberto se abre para conceder a cada ente distinto o seu presentar-se
definido”
308
. Assim, o caos é o próprio sagrado, a origem que permanece em si heil (sã, salva,
mas também santa). Heidegger observa:
Caos significa antes de tudo (...) um abismo que se escancara, o aberto, que se abre
em primeiro lugar, onde tudo é engolido (...) Pensado a partir da “natureza”
(physis), o caos permanece aquele escancarar a partir do qual o aberto se abre para
conceder a todo ente distinto o seu definido presentar-se.
309
302
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 59
303
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 59
304
HEIDEGGER; Wegmarken, p. 240
305
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 60
306
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 61
307
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 62
308
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 63
309
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 62-63
138
138
Os deuses e os homens estão profundamente ligados, cada um necessitando do outro: se
é verdade que o caráter imediato se dá apenas como mediação (e na mediação) é precisamente a
relação (a mediação) entre homens e deuses que garante paradoxalmente a máxima
proximidade ao imediato. Os deuses necessitam da finitude: é ela que os estabelece no mundo e
lhes o ser na consciência de ser. Sua luz, muito perto do jorro original, necessita espessar-se
para de fato os iluminar, para se tornar claridade sobre eles mesmos. Assim, os deuses podem
ser nomeados e assim vir ao aparecer apenas se eles mesmos nos chamam e nos reclamam. Isso
significa que deuses e mortais se pertencem no colóquio de anúncio e ausculta. Os mortais
anunciam os deuses apenas quando escutam seu anúncio, e seus indizíveis acenos. Anúncio e
ausculta são sempre reciprocamente transferidos: o anúncio é tal se ausculta aquilo que deve
dizer; e a ausculta, por sua vez, rediz aquilo que se anuncia. Esta dinâmica não ocorre apenas
entre dizer poético e a ausculta do pensamento, mas se em primeiro lugar entre a pura
doação do ser e o dizer pensante do poeta. Mas como os deuses se anunciam no colóquio com
os mortais (poetas)? É o aceno a palavra dos deuses. O aceno não é um sinal que denota um
significado, mas superabundância e por isso “precisa de um campo de oscilação muito
amplo”
310
. O aceno é em si mesmo silêncio. Quando o poeta ausculta os acenos dos deuses ele
deve, por sua vez, transmiti-los aos mortais, mas ao fazer isso a pureza do aceno (silêncio)
transforma-se em algo mais comum. Em razão disso, segundo Heidegger, Hölderlin em um
fragmento diz: “Tu falaste à deidade, mas isso esquecestes vós todos: as primícias não
pertencem nunca aos mortais, elas pertencem aos deuses. O fruto deve primeiro fazer-se mais
comum, mais quotidiano, e depois será próprio aos mortais”
311
.
É precisamente na polissemia da palavra poética que é custodiado o traço do aceno que
se anuncia ao poeta. A palavra poética é irredutível a um simples sinal, porque ela provém do
colóquio puro com o sagrado [Heilige]. Aliás, o diálogo entre deuses e mortais pode se dar
quando os deuses não são pensados como algo que simplesmente se encontra presente, como
um ente. Os deuses dão-se como mensageiros do sagrado, como pertencentes a um jogo sem
“porquê”. Encontrar-se prontos para a ausculta dos acenos do sagrado pode se dar apenas
quando o Dasein assume sua própria morte, na sua pura alteridade. Deste modo a questão da
religiosa não pode mais ser colocada nos termos da decisão sobre a existência ou não existência
de Deus, mas deve se dirigir ao diálogo do mortal com Deus. Deus se como aceno, como
anúncio silencioso, e é tal apenas quando é escutado e nomeado na palavra poética. O fato que
o dom não tenha doador o implica que não haja um beneficiário do dom: o Dasein, que,
contudo, é no diálogo. Isso significa que o diálogo não é fundado nem por Deus nem pelo
310
HEIDEGGER; A caminho da linguagem, p. 95
311
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 37
139
139
homem, mas é o escancarar de um “entre”, a diferença que separa unindo homem e alteridade.
Trata-se do evento do “sagrado caos”, do jogo abissal do ser [Seyn].
É manifesto que os deuses têm necessidade dos homens, e vice-versa. Nesta
dependência recíproca os poetas têm uma função de qualquer maneira excêntrica. Eles são
trocados pelos deuses, mas não para se dirigir aos deuses mesmo, mas para reascender o
sagrado: “o estado essencial próprio do poeta, com efeito, não se funda na concepção
[Empfängnis] do deus, mas no abraço [Umfängnis] do sagrado”
312
. Os poetas roçam o sagrado
apenas através da mediação, e precisamente por isso buscam saltar além da mediação.
Dirigindo-se ao sagrado, os poetas rompem o silêncio da origem e o trazem à palavra. Mas
exatamente por isso, eles trazem à mediação o imediato. A palavra poética é assim a mediação
uma mediação potenciada, que faz da origem de qualquer forma acessível também ao
povo
313
. Onde os poetas-vindouros encontram-se expostos ao supremo perigo, os mortais não
poetas não correm nenhum risco. Assim, a tarefa dos poetas mostra-se como paradoxal: “devem
deixar ao imediato seu caráter imediato e no entanto assumir ao mesmo tempo a sua mediação
como única coisa que a eles compete”
314
. Trata-se no fundo do problema do pensamento do
outro início que também pode ser formulado do seguinte modo: de que maneira o sagrado, que
é “incomunicável”, “desconhecido”, que é o que abre com a condição de não descobrir, o que
revela porque irrevelado, pode cair na palavra? Na realidade, justamente, isto não pode
acontecer, isto é o impossível. E o poeta é apenas a existência dessa impossibilidade, assim
como a linguagem do poema é apenas eco, a transmissão de sua própria impossibilidade, o
lembrete de que qualquer linguagem do mundo tem como origem um acontecimento que não
pode acontecer, está relacionada a um “falo, mas falar não é possível”, do qual, no entanto, vem
o pouco de sentido que resta às palavras.
Assim, quando a poesia consegue nomear o sagrado, ela se constitui em uma traição:
porque o sagrado não aparece nunca como tal, mas apenas na mediação. E isso vale também
para o pensamento: uma vez que a origem é sempre fora de si, ela não é pensável como tal.
Todo pensamento da origem é sempre traição, desentendimento, substituição. Os poetas, os
vindouros e até mesmo os deuses ao querer preservar o sagrado, o perdem enquanto tal, o
comprometem irremediavelmente. Estas são as razões pelas quais Heidegger insiste de uma
maneira que lhe é peculiar sobre o silêncio: seria o silêncio que levaria, sem ruptura, o sagrado
à palavra. Diretamente, o sagrado não pode ser apreendido ainda menos tornar-se palavra, mas,
pelo silêncio do poeta, ele se deixará acalmar, transformar e finalmente transportar até a palavra
do canto. A esse respeito observa o filósofo: Mas precisamente o fato que o sagrado seja
312
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 69
313
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 71
314
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 71
140
140
confiado a uma mediação por obra do Deus e dos poetas e que seja custodiado no canto ameaça
inverter a essência do sagrado em seu contrário. O imediato se torna assim algo mediato”
315
. E
mais adiante: “Tornando o sagrado palavra, a sua essência mais interior vacila. A lei é
ameaçada. O sagrado corre o risco de não ser mais firme”
316
. Os primeiros responsáveis por
esta ameaça não são os poetas mas os próprios deuses, que se encontram sobre o sagrado. Mas,
de outro lado, este sofrer faz parte da natureza do sagrado, uma vez que toda mediação é
sempre fruto de imediato. Neste sentido, a origem é sempre direcionada não apenas ao
esquecimento dos mortais, mas também e em primeiro lugar aos deuses. Na verdade, o sagrado
é o próprio ser, a própria origem, que se constitui no Zwischen onde celestes e mortais podem
se encontrar, mas que enquanto tal escapa necessariamente tanto aos deuses quanto aos homens.
Devemos, assim, entender o sagrado como fonte (abertura) inesgotável do mundo, como
aquilo que permite subsistir o escoamento do devir, o frêmito das coisas no início do dia. Das
Heilige, o Sagrado, palavra augusta, plena de clarões e como que proibida, que talvez, pela
força de uma reverência demasiado antiga serve apenas para esconder que ela nada pode dizer.
Todavia, se a aproximarmos daquilo que Heidegger sugere seguramente se desfaz o
entendimento de que esta respeitada palavra seja um saber tão simples que pode apenas nos
desapontar: o sagrado é a origem injustificável, é esta vida simples à flor da terra; o sagrado não
é nada mais que a fulguração do ser que continuamente remete para duas ausências, a do
aparecimento e a desaparecimento que lhe anda necessariamente associado
317
. Em outras
palavras, o sagrado é o que se abre, o que abrindo-se é para todo o resto apelo para se abrir,
para se iluminar, para vir à luz do dia. Princípio de aparecimento do que aparece, origem de
todo o poder de comunicar, se isto é o sagrado, compreende-se que, pressentindo-o, o poeta
habite na Lichtung do ser e que a aproximação do sagrado seja para ele a aproximação da
existência.
Assim, o poeta “diz os aspectos do céu de modo a adaptar-se às suas aparências
como ao estranho no qual o Deus desconhecido se ‘destina’[schiket]”
318
. Colhendo a medida
dos aspectos do céu, o poeta fala por imagens [Bilder], as quais são “incorporações
[Einschlüsse] visíveis do estranho no aspecto daquilo que é familiar”
319
. O poeta manifesta no
315
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 72
316
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 73
317
Para Heidegger, o Sagrado parece ser uma função da manifestação do ser, não da vontade de Deus. A
presença entrevista no seu brilho deslumbrante, abrupto, inaudito, consiste em uma mediação para alcançarmos o
sagrado. É a pura doação do ser que confere ao divino sua profundidade, sua consistência e seu mistério.
Qualquer comparação mais minuciosa de Heidegger com qualquer outro filósofo foge totalmente ao âmbito
deste trabalho. Todavia, podemos tomar como certa a profunda semelhança entre o pensamento heideggeriano e
a reflexão de Wittgenstein. Contemporâneo de Heidegger, Wittgenstein teve uma intuição semelhante quando
observou: “não é o modo como as coisas são no mundo que é místico, mas que ele exista”.
318
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 177
319
HEIDEGGER; Ensaios e conferências, p. 177
141
141
seu dizer aquele jogo de luz e sombra próprio da Lichtung: de um lado a claridade da imagem
poética, de outro o escuro e o silêncio do estranho. Mas é apenas a partir deste jogo de
luminosidade e escuridão que o homem funda o seu habitar na Lichtung do ser. Com efeito, se
o ser não é, mas se [Es gibt], então ele se tanto como luminosidade, enquanto ilumina
aquilo que o ente é, quanto como escuridão, uma vez que, como dom sem doador, permanece
obscura a sua proveniência. Luminosidade e escuridão são próprias do ser porque este se
como Lichtung, a “luz escura”. Luz escura que
não nega a claridade, mas o excesso de clareza porque este, quanto mais é claro,
mais impede a vista. O fogo muito ardente não apenas cega o olho, mas sua
excessiva clareza engole tudo aquilo que se mostra e é mais que o escuro (...) O
poeta pede o dom da luz escura onde a clareza é atenuada. Mas esta atenuação não
enfraquece a luz. De fato o escuro abre o aparecer daquilo que esconde outro e
preserva neste o outro que se esconde. O escuro preserva àquilo que é luminoso
a plenitude do quanto este pode doar em seu aparecer radiante.
320
4.3 – O Ereignis e a espera de um Deus pós-metafísico
Quando Heidegger usa a palavra Geschick se referindo ao ser, quer sugerir que o ser
se dirige a nós ordenando o espaço de jogo do tempo no qual o ente pode aparecer. A cada
vez que o ser se detém no seu destino, acontece, súbita e inesperadamente, uma determinada
configuração histórica. Cada época da história do mundo é uma época da afirmação de sua
errância. “Época não significa aqui um lapso de tempo no acontecer, mas o traço fundamental
do destinar, a constante retenção de si mesmo em favor da possibilidade de perceber o dom,
isto é, o ser em vista da fundamentação do ente”
321
. O ser é a sua própria doação (destinação
historial da presença), ela própria dada pelo tempo. O tempo é sua própria doação, ela própria
dada por uma misteriosa proveniência. Essa concessão do tempo é pura oferenda, gratuidade
absoluta do dom – dom pelo qual há tempo, logo, história, ser e presença.
Quando Platão representa o ser como idéa e como koinonía das idéias, Aristóteles
como enérgeia, Kant como posição, Hegel como Conceito absoluto, Nietzsche
como Vontade de Poder, não se trata de doutrinas produzidas ao acaso, mas
palavras do ser, que respondem a um apelo que nos fala no destinar que a si mesmo
oculta, que fala no “Se ser”. Cada vez retido na determinação que se subtrai, o
ser se libera da retração para o pensamento com sua multiplicidade epocal de
transformações. O pensamento permanece ligado à tradição das épocas do destino-
do-ser, mesmo e justamente onde se aprofunda no fato de como e a partir de
onde o próprio ser recebe cada vez suas próprias determinações, a saber, a partir
do: Se dá ser. O dar mostrou-se como um destinar.
322
320
HEIDEGGER; Erläuterrungen zu Hölderlins Dichtung, p. 119
321
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 261
322
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 262
142
142
Vimos que o ser, na medida em que leva o ente à não-ocultação, é, portanto, um
deixar-se desdobrar-se na presença. Mas a própria desocultação do ente é tornada possível por
um segundo “deixar”, que é a dádiva do desocultamento da presença, isto é, do próprio ser. O
ser, quando já não é pensado como o fundamento do ente, isto é, quando é compreendido no
que tem de próprio, é a dádiva do desdobramento da presença, e foi essa dádiva que
permaneceu impensada por toda a tradição metafísica. Devemos reconhecer que essa doação é
um destinar, ou seja, uma dádiva sem “sujeito” que dá. Em outras palavras, o que se faz
dádiva do desdobramento da presença, não pode ele mesmo entrar em presença.
O sero é como os entes. O ser se como presença. Esta presença é um dom. O
doador do dom está oculto. Por isso, a presença do ser é destinada. Os diversos
modos como o ser foi pensado na história da filosofia são determinados pelo
destino do ser. As muitas mudanças são sustentadas por algo comum que as
sustenta como doador do dom, que se retrai. Assim, surgem as épocas da história
do ser.
323
Permanecemos sempre confrontados com o enigmático “Se” que nomeamos quando
afirmamos: Dá-Se tempo, dá-Se ser. Aquilo que permite o dar-se de tempo e ser, o lugar que
lhes é próprio, podemos denominar como Ereignis. O Ereignis é, ao mesmo tempo, aquilo
que o destinar e o alcançar como presença e aquilo que sustenta o “e” que une ser e tempo
entre si. O Ereignis é o “se” que dá destinado no dá-se ser e alcançado no dá-se tempo. Ser e
tempo aparecem, em sua mútua apropriação, na relação objetiva que os une, através da doação
que se vela no destino e no alcançar revelador. Tanto o dar, enquanto destinar do ser, como o
dar, enquanto alcançar do tempo, repousam no Ereignis que propriamente não é nem se dá. O
Ereignis acontece. Ao pensamento importa apenas a preparação para a entrada em seu
interior. O Ereignis não é também um super-conceito compreensivo ao qual se subordina o
ser: é a reserva de sua história e, do mesmo modo, a possibilidade de um outro início.
Ao meditarmos sobre o próprio ser e perseguirmos o que lhe é próprio, afirmamo-lo
como o dom do destino da presença garantido pelo alcançar do tempo. O Ereignis à
história apoio e realidade, ele é sua reserva e profundidade, o risco de uma aposta, a medida
de um desafio desmedido. Ereignis refere-se à metafísica libertada para si mesma enquanto
história; do mesmo modo, sugere uma rememoração do ser como retração e recusa, re-
começo. Devemos nos lembrar que corresponder ao dom do ser nunca pode indicar, portanto,
um agarrar do próprio ser que se dá: o que é percebido é apenas e sempre o dom e nunca o
doar e o dar enquanto tal. O esquecimento ontológico de que nos fala Heidegger não remete
em nenhum sentido para uma possível condição final na qual se estabeleceria uma relação
323
STEIN, Ernildo; Compreensão e finitude, p. 210
143
143
com o ser onde não mais perceberíamos o seu mistério e profundidade. A verdade do ser não
admite nenhuma revelação final absoluta. Aliás, se o outro início significasse uma ruptura e
avanço, a história do ser se caracterizaria inevitavelmente como história da progressiva
revelação e auto-reconhecimento do absoluto. Mas a história do ser não é teleológica: nela a
noção de progresso não tem nenhum papel.
Não podemos saber de antemão o que é o Ereignis, nem se o devir ao qual o Ereignis
corresponde, ao mesmo tempo que o constitui por sua ausência, terá algum dia um significado
para o homem. O Ereignis está constantemente descentrado com relação a si mesmo, não
apenas porque se trata de um acontecimento ao mesmo tempo todo presente e todo em
movimento, mas também porque é nele que se elabora e dele que depende o próprio devir que
o desdobra. O tempo do Ereignis não é tomado de empréstimo ao nosso. Formado pelo
Ereignis, nosso tempo se opera nele. Ressoa através do Ereignis todo um apelo silencioso no
qual reclama o futuro, mas um futuro onde, em sua errância, o homem perdeu o sentido da
pergunta pelo ser. No entanto, este mesmo futuro se prolonga duplamente: por um futuro
anterior passado, mantido impensado e aparentemente não realizado e por uma possibilidade
inteiramente nova em direção à qual, para além de todas as negações e apoiando-se nelas, o
Ereignis se ergue ainda: o tempo da exceção, na atitude de um talvez. O que Heidegger
verdadeiramente pretende é caminhar até um Frühe que ainda está por vir, e que permanece
num duplo sentido: por um lado, abriga uma manhã nunca acontecida em claro; por outro, a
partir dessa manhã, poderemos finalmente perceber um outro início do pensamento.
O que nunca é dado ao olhar, o que, jogando na sombra, põe tudo em caminho,
permite o envio de toda a presença e de toda a história, e que, no entanto, se subtrai
ele próprio a toda a possível apreensão. Enteignis: o que, outorgando todo o
advento ao próprio, concedendo o tempo e o ser, se desapropria a si mesmo em
proveito daqueles que envia, e se revela assim como sendo simultaneamente o
Inapreensível e o Incontornável. Inapreensível porque sempre desapropriado de si
mesmo, função unicamente centrífuga, vazio não preenchível, “branco” primeiro;
incontornável, no entanto, porque é desse branco, desse irredutível afastamento que
não “é” nada, que procede tudo o que é e que não é. Incontornável portanto, em
última instância, porque ele, e ele, torna possível e pensável esta idéia
“simples”: que nada repousa em si, que presença e ausência, história e começo,
destino, linguagem talvez, tudo é apenas envio ou doação.
324
Pensar a respeito do Ereignis representa uma espécie de extenuação do pensamento.
Este conceito de Heidegger representa a sua procura por dizer aquilo que não pode ser dito, de
pensar aquilo que não pode ser pensado, de mostrar aquilo que se manifesta no seu próprio ato
de velamento. É porque o Ereignis é a derradeira palavra que conta do reino da presença
que é também a primeira de todas as que escapam a esse reino. Notamos que no momento em
324
ZARADER, Marlène; Heidegger e as palavras da origem, p. 335
144
144
que o pensamento de Heidegger sublinha a questão do Ereignis ele inevitavelmente se
aproxima do abismo. Sua reflexão abandona toda a vontade de compreensão imediata. E não
obstante se impõe um escutar atento, que se trata de pensar algo incontornável. O Ereignis
é, portanto, para o pensamento algo enigmático, mas também aquilo a partir de onde o pensar
retirará um novo fôlego e um novo compromisso. Diz Heidegger no início da conferência
Tempo e Ser: “Por isso não deve causar nem surpresa nem espanto se a maioria dos ouvintes
se escandalizar com esta conferência”
325
.
É importante ressaltar que o pensamento, penetrando no Ereignis, adquire um caráter
provisório. Por um lado, este pensamento é sempre apenas preparatório. Por outro, ele se
antecipa como precursor. Heidegger ainda observa: “a tônica posta sobre a provisoriedade não
brota, portanto de uma falsa modéstia, mas possui um rigoroso sentido objetivo, em conexão
com a finitude do pensamento e com aquilo que deve ser pensado”
326
. Para esta
provisoriedade (precursoriedade) do pensamento de Heidegger, podemos transpor, com o
cuidado exigido e com as necessárias reservas, aquilo que Hölderlin escreve em sua carta a
Böhlendorf (outono de 1802): “Meu caro, penso que nós não mais comentaremos os poetas
dos tempos passados; é a maneira mesma de cantar que irá tomar um caráter diferente...”
327
. O
despertar no interior do Ereignis deve ser experimentado, não pode ser demonstrado. Que é,
então, esta experiência? Seria a renúncia ao pensamento? De fato, porém, pensar e
experimentar não podem ser opostos como uma espécie de alternativa. Na verdade, deve
permanecer a tentativa de uma preparação do pensamento, portanto, do experimentar. Este
experimentar ocorre como exercício do próprio pensamento, na medida em que não é nada
de místico, nenhum ato de iluminação, mas a entrada na residência do Ereignis.
Assim, o despertar dentro do Ereignis permanece algo que deve ser experimentado,
mas justamente enquanto tal, algo que primeiro está necessariamente ligado ao
despertar do esquecimento do ser para o Ereignis. Permanece, portanto, primeiro,
um acontecer que deve ser mostrado e deve sê-lo. O fato de o pensamento estar no
estágio da preparação não significa que a experiência seja de outra natureza que o
pensamento preparador como tal. O limite do pensamento preparador reside em
outra parte. De um lado, no fato de que, possivelmente, a metafísica permaneça
assim em seu estágio final, de que o outro pensamento não pode chegar à
manifestação – e, contudo, é. Nesse caso aconteceria com o pensamento que, como
provisório (precursor), avança o olhar até o Ereignis, somente pode mostrar quer
dizer, dar indicações que terão como tarefa possibilitar a orientação para a entrada
na morada do Ereignis algo semelhante ao que aconteceu com a poesia de
Hölderlin, que durante um século não esteve presente e, contudo, era. De outro
lado, o limite do pensamento preparador reside no fato de a preparação só poder ser
produzida pelo pensamento numa perspectiva particular. A preparação é realizada,
325
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 257
326
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 281
327
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 283
145
145
sempre de outra maneira, também na poesia, na arte, etc., nas quais igualmente
acontece um pensar e um falar.
328
Segundo Heidegger, o pensamento empenhado no Ereignis aponta para deixarmos de
lado a idéia de uma superação da metafísica. Para ele, se alguma superação permanece
necessária, então interessa aquele pensamento que propriamente se insere no Ereignis, para
dizê-lo a partir dele e em direção a ele. Mas a verdade é que este pensamento “superou” de
fato a metafísica, não somente em direção à sua margem (impensada), mas em direção a um
caminho totalmente outro (ainda a pensar). Ao se encaminhar em direção ao Ereignis
podemos seguramente dizer que a filosofia alcançou o seu final. Na realidade, o Ereignis é a
sua última estação. Argumentamos que para o pensamento que se introduz no Ereignis a
história do ser chegou à sua consumação, enquanto aquilo que deve ser pensado. Mas
também, a partir deste momento, estaremos preparados para percebermos um outro início do
pensamento. O Ereignis apresenta-se assim como o fim de uma subida progressiva de um
caminho para trás levando do ente ao ser, do ser à presença, da presença ao tempo, do tempo
ao Es gibt doador.
O pensamento heideggeriano é marcado por estações num caminho de retorno que,
ao final, está aberto para o interior do Ereignis, no sentido de uma sempre maior radicalidade.
De fato, Heidegger afirma que o ser desvanece-se no Ereignis e que ser e tempo advêm ao seu
próprio no Ereignis. Como podemos compreender estas duas formulações aparentemente
contraditórias e irredutíveis? Primeiro, entendemos não haver nenhuma contradição entre as
duas afirmações. Ambas nomeiam uma formulação diferente do mesmo conteúdo da questão.
O filósofo parece querer combinar habilmente o preciso e o impreciso, variando os pontos de
vista, traçando, a partir dessas indicações diferentes, círculos em torno do mesmo
pensamento. Então, trata-se, sobretudo, de manter juntas as duas perspectivas: com o
Ereignis, o pensamento do ser e do tempo chega finalmente a termo, alcança enfim o que é
próprio destas duas questões mas não chega ao termo senão para ver desvanecerem-se as
questões, e os próprios conceitos pelos quais eram movidas, a saber, ser e tempo. Muito antes,
o Ereignis deve ser pensado de tal maneira que não pode ser retido, nem como ser, nem como
tempo. Deste modo, Heidegger acredita ser o Ereignis o lugar da despedida de ser e tempo.
Parece certo que quando sua obra atinge o pensamento do Ereignis abre a porta que
para além da questão do ser. Contudo, este seu gesto de abertura acesso a um horizonte
ainda inexplorado. Haverá um futuro possível para o pensamento que chega ao exame do
próprio ser como Ereignis? Para Heidegger, o Ereignis está na consumação da metafísica, no
máximo esquecimento técnico do ser, autorizando o nascimento de um outro início para o
328
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 293
146
146
pensamento. O Ereignis, pretendendo dar à história a possibilidade de um novo ponto de
partida, torna possível um futuro do pensamento, mesmo se não constitui mais do que o ponto
de partida deste último. Por mais longínquas que possam ser, o pensamento que aponta em
direção do elemento específico do Ereignis abre outras possibilidades, que ainda não se
deixam suspeitar. “A metamorfose do pensamento ocorre como uma migração, na qual um
lugar é deixado a favor de um outro (...). O primeiro sítio é a metamorfose. E o outro?
Deixamo-lo sem nome”
329
. E Marlène Zarader afirma:
Quando o pensamento atingiu finalmente o Ereignis, completou ao mesmo tempo o
seu gesto de retorno. A história do ser, chegado ao seu estado terminal
caracterizado pelo mais extremo retiro do ser foi conduzida até à sua abertura
inicial que é doação do ser como esse mesmo retiro. Partindo de uma (isto é, do
retiro ou, o que no mesmo, da história), o pensamento heideggeriano progrediu
lentamente em direção à outra (isto é, em direção à doação ou, o que dá no mesmo,
em direção à proveniência). Uma vez atingida esta (o que tem lugar no Ereignis), é
incontestável que o gesto heideggeriano chegou ao fim: retrocedeu até pensar o que
inaugurou o envio do ser (como retiro da presença nas suas diferentes “épocas”
historiais) e, assim, até ao que conta na totalidade da “fisionomia” da nossa
história. (...) O Ereignis é certamente algo como um vestígio, uma origem secreta,
mas esse vestígio é susceptível de funcionar segundo uma dupla orientação: é
retrospectivo e prospectivo. Torna pensável tudo o que dele deriva, e que
conhecemos com o nome de presença e história do ser, e torna experimentável o
que dele não derivou, e que se conserva desconhecido para nós, bem como não
nomeado. É vestígio retrospectivo do passado, esse passado que se perpetuava de
maneira não aparente, até no nosso presente, e é vestígio prospectivo do futuro,
esse futuro que se anuncia, de maneira igualmente não aparente, na orla desse
mesmo presente.
330
Mas é de suma importância perceber que a preparação do novo início é desta forma
também, essencialmente, a preparação para a passagem do “último Deus”. Neste sentido,
Christian Dubois acertadamente observa: “tudo o que Heidegger pensa do Ereignis pode, de
certo modo, ser atribuído a um pensamento do sagrado. Pensamento profundamente
desconcertante não apenas para nossas maneiras de pensar, mas também para nossas maneiras
de crer”
331
. O pressentimento do divino se com o salto do Dasein para o Ereignis. Inclui
que se pense toda uma riqueza do que deve ser pensado no próprio Ereignis. Ao assegurar sua
expectativa por um novo início do pensar que aponte em direção ao Ereignis, Heidegger
pretende inverter nosso modo habitual de compreender Deus: não podemos pensar o ser a
partir de Deus, mas Deus a partir do ser. “O ser não é uma determinação de Deus mesmo, mas
é aquilo de que a divinização de Deus tem necessidade, para permanecer contudo dele
completamente distinto”
332
. Precisamos apreender o ser como este horizonte promissor onde
329
HEIDEGGER; Unterwegs zur Sprache, p. 138
330
ZARADER, Marlène; Heidegger e as palavras da origem, pp. 340, 344
331
DUBOIS, Christian; Heidegger: introdução a uma leitura, p. 217
332
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) , p. 240
147
147
pode se dar o aparecimento de Deus (que não é causa sui). Se Deus é Deus ocorre a partir
da constelação do ser e dentro da mesma. Assim, para Heidegger, a palavra do ser,
manifestada no logos dos pensadores e dos poetas, constitui uma preparação real para o
acolhimento do Deus divino, no âmbito de uma fenomenologia em que a pergunta clássica
“como entra Deus na filosofia” se transforma na questão da relação recíproca que recolhe o
ser, o Deus e os homens.
Os deuses têm necessidade do ser [Seyn], para que através dele, que no entanto não
pertence a eles, possam pertencer a si mesmos. O ser é aquilo de que os deuses
carecem; é a sua carência, e esta carência do ser nomeia a sua essencialização
[Wesung], aquilo que é dos deuses requerido, sem nunca porém ser causável ou
condicionável.
333
A experiência de Deus deve passar pela experiência do mistério do ser e pela
compreensão da gratuidade de sua verdade. Assim, Heidegger deseja desenvolver, para a
renovar, a questão do ser, e situar a de Deus, na sua relação com a primeira. O ser fornece ao
pensamento uma via original para falar a respeito de um Deus pós-metafísico. Longe de excluir,
como ensina Paul Tillich
334
, a realidade da presença divina, o abismo do ser, de que nos fala
Heidegger, é talvez o único caminho que se à reflexão para compatibilizar, num mesmo
movimento, a transcendência e a imanência de Deus ao homem. Aliás, para se chegar a Deus é
preciso atravessar uma série de espaços de qualquer forma preliminares: a verdade do ser, o
sagrado, a deidade. Heidegger observa:
Somente a partir da verdade do ser deixa-se pensar a essência do sagrado. E somente
a partir da essência do sagrado deve ser pensada a essência da deidade [Gottheit]. E,
finalmente, somente na luz da essência da deidade pode ser pensado e dito o que
deve nomear a palavra “Deus”. (...) Pois, como poderia o homem da atual história
mundial mesmo apenas questionar, com seriedade e rigor, se o Deus se aproxima ou
se subtrai, se o homem deixa de lado pensar primeiro para dentro da dimensão, na
qual aquela questão unicamente pode ser desencadeada? Esta dimensão, porém, é a
dimensão do sagrado, que mesmo como dimensão já permanece fechada, caso não se
clarear o aberto do ser para, em sua clareira, estar próximo do homem. Talvez o
elemento mais marcante desta idade do mundo consista no rígido fechamento para a
dimensão da graça. Talvez seja esta a única desgraça.
335
O pressentimento de Deus torna-se um necessitar, à espera do que salva do
desamparo, restituindo ao homem à sua pertença ao ser. A disposição com que vamos ao
encontro do Deus divino corresponde ao estremecimento do ser liberado no ente. Heidegger
afirma a correspondência do Deus extremo com o Ereignis. “A Ereignis transfere [ubereignet]
333
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) , p. 438
334
TILLICH, Paul; A coragem de ser, pp. 121-146
335
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 168
148
148
o Deus ao homem, no momento em que apropria [zueignet] este último ao Deus”
336
. Com
efeito, podemos compreender que é no Ereignis que se o lugar de uma abertura original
onde está a possibilidade do reencontro entre homem e Deus. Diante do Ereignis o Dasein é
convocado a ouvir o apelo do ser, a guardar a sua verdade e a vigiar a possível vinda do
último Deus.
O Ereignis prepara a possibilidade do porvir do último Deus. Assim, o Ereignis é o
véu que torna visível o último Deus, que o torna visível precisamente porque o oculta e
dissimula. Sua possível chegada alimenta-se da aflição da noite sagrada e do céu constelado
de vazios. O último Deus encontra seu desenvolvimento na ausência de advento, assim como
na fuga dos deuses passados e sua secreta metamorfose.
Assim, o que observamos é a inovadora tentativa heideggeriana de pensar Deus
dentro da questão do distanciamento do ser enquanto doação. Mas afinal o que “Deus”
significa aqui? Será uma simples blasfêmia? Quem é ou o que é esse último Deus?
Primeiramente, tudo o que dele sabemos é que não é mais o Deus bíblico da tradição
hebraico-cristã, demasiadamente próximo da metafísica, força atuante na dessacralização, e,
portanto, também, do niilismo. Fundamentalmente, o que dele podemos saber é a sua
correspondência com o Ereignis. Neste nível, com efeito, observa Heidegger, até mesmo
não tem muito sentido se perguntar sobre a unicidade de Deus ou sobre a pluralidade dos
deuses, sobre monoteísmo ou politeísmo. A questão é em si insolúvel:
Falar de “deuses” não significa aqui uma afirmação decidida da simples presença à
mão [Vorhandenseins] de uma pluralidade respeito àquilo que é único, mas alude a
uma indecidibilidade [Unentschiedenheit] do ser dos deuses, se um ou muitos. Esta
indecidibilidade traz em si a necessidade de uma interrogação: se em geral pode-se
atribuir aos deuses algo como ser sem destruir tudo aquilo que é divino [alles
Gotthafte]. A indecidibilidade sobre qual Deus, e se um Deus se tornará ainda uma
extrema necessidade do homem, e para qual essência de homem, e em que modo, é
aqui denominada com o nome “os deuses”.
337
Precisamente porque o último Deus não é dado, não se encontra presente, não
sabemos de modo algum se é um ou uma pluralidade. Mas esta indeterminação não é
provisória: ela pertence estruturalmente ao dar-se de Deus. Para Heidegger, o fato de
tomarmos Deus como incognoscível e desconhecido não significa que estamos contra Ele
desferindo um duro golpe. Pensar Deus enquanto questão não significa fazer dele uma
resposta. “Como diz o velho Mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é
336
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) , p. 280
337
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 437
149
149
naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus”
338
. Temos que
compreender que a experiência da falta de Deus não é nunca a de sua radical ausência, não
indica um ateísmo puro e simples. Nesta mesma direção, Benedito Nunes assegura:
A fuga dos deuses e a morte do Deus moral cristão são dois fenômenos distintos e
conjugados; em torno de ambos, abrangidos pela passagem de um outro começo
para uma outra História, é que se tece, depois do anúncio do Ereignis, o prenúncio
do “último Deus”.
339
Para Heidegger, torna-se imperioso questionar a longa apropriação metafísica de
Deus. Do mesmo modo, não se trata de meramente recuperar a visão de mundo da
Antiguidade, nem de misturar a mesma com um difuso cristianismo esclarecido. O último
Deus não pode ser entendido como uma alternativa ao Deus cristão. Ele não se apresenta
como um novo Deus contra os antigos. Que o pensamento do ser insinue uma abertura a isto
que denominamos “Deus”, deixa-se compreender a partir de um conceito renovado de
transcendência. Heidegger observa:
O último Deus possui uma unicidade absolutamente própria e encontra-se fora
daquela determinação calculada que é indicada com as denominações
“monoteísmo”, “panteísmo” e “ateísmo”. O “monoteísmo” e todos os tipos de
“teísmo” se dão apenas a partir da “apologética” judaico-cristã, que pressupõe a
“metafísica” como horizonte de pensamento. Com a morte deste Deus caem todos
os teísmos.
340
Quando entendemos Deus como criador do céu e da terra, não estamos propriamente
falando de uma revelação” de Deus, e, sim, de uma explicação para a existência dos entes.
Deus não é o mais alto sendo, o último elo da cadeia dos seres. Deus não deve mais ser
identificado como a causa do sendo, como o sujeito infinito do pensamento ou algo que
permeia e sustenta as coisas ao constituir a sua essência última, o seu verdadeiro ser.
Heidegger não se interessa pelo Deus causa sui e sem divindade dos filósofos. Ele deseja o
338
HEIDEGGER; O caminho do campo, p. 69. Heidegger deseja que caminhemos rumo a um silêncio cada vez
mais profundo. Tal como Wittgenstein, Heidegger também está extremamente preocupado em fugir da espiral da
linguagem. Por isso, pensamos que o pensamento tardio de Heidegger carrega, inevitavelmente, um sabor de
misticismo ao buscar o inefável que está para além das fronteiras da palavra e por desejar romper o véu da
linguagem para chegar ao mais real. Não é que Heidegger desacredite na potencialidade do discurso filosófico,
ele simplesmente desdenha a confiante autoridade da metafísica ocidental. “O sentimento do mundo clássico e
cristão esforça-se por ordenar a realidade no interior do domínio da linguagem. A literatura, a filosofia, a
teologia, o direito, as artes da história representam empenhos de circunscrever nos limites do discurso racional a
totalidade da experiência humana, os registros de seu passado, sua condição presente e expectativas presentes”
(STEINER, George. Silêncio e Linguagem. pp. 31-32). Sabemos que mesmo Pascal não abandona a confiante
autoridade da metafísica quando diz que o silêncio do espaço cósmico infunde terror. Por sua vez, acreditamos
que Heidegger sugere que esse mesmo silêncio transmite tranqüilidade e o indício da presença de Deus. Em
poucas palavras, pensamos que ele abandona drasticamente a metafísica ocidental marcada por seu esforço por
ordenar a realidade no interior do domínio da linguagem.
339
NUNES, Benedito; Crivo de papel, p. 57
340
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 411
150
150
deus dos poetas. Libertar-se definitivamente da imagem de Deus construída pelos filósofos
para se aproximar do Deus verdadeiramente divino, interrogando o ser, esta é, para
Heidegger, a função do pensamento. O ser, revelando-se para além do absoluto, coloca Deus
para além de Deus. Somente alcançaremos um Deus verdadeiramente divino se podermos
aceitar, sem ressentimentos, o abismo do ser e a passagem transitória daquilo que é.
Para Heidegger, um dos principais meios de acesso ao divino é a poesia. Por isso,
para ele, concerne aos poetas prestarem atenção aos acenos da passagem silenciosa do lezte
Gott. Com este deus verdadeiramente divino vivenciaremos um outro início de
incomensuráveis possibilidades em nossa história. Deste modo, Heidegger insiste em afirmar
a idéia de que o último Deus ascende com o Ereignis, espécie de maturação do ser (Seyn)
exigido por esse outro início, em que se desvela a finitude mais íntima do ser. A chegada do
último Deus acontecerá não para perder de vista a realidade finita, mas, pelo contrário, para
poder considerá-la em seu conjunto e em seus pormenores. Deveríamos novamente nos
assombrar diante da revelação do ser e descobrir o sentido religioso do finito.
Pelo menos, sabemos que esse deus pertence ao futuro. Para Heidegger, no futuro
estaria a possibilidade para uma transformação do homem, alimentada pela recuperação da
experiência originária do ser. Como se dará essa manifestação do sagrado? Qual será o sinal
decisivo e indicador da vinda de Deus? O que verdadeiramente acontece é que nos
encontramos paralisados, pois chegamos demasiadamente tarde para os deuses e
demasiadamente cedo para o ser. Esperemos que o futuro nos presenteie com a abertura do
espaço de jogo da decisão sobre se o ser mais uma vez será capaz de um deus; apostemos em
uma outra história que não a história da revelação, outra que não um simples regresso aos
deuses do passado.
Isto equivale a dizer que o bem-estar do ser condiciona simultaneamente o
aparecimento de Deus e a eventual experiência que pode ser feita através do
pensamento. Precisamente através do pensamento, e não através da fé. não
estamos aqui na esfera da vida cristã, nem tão pouco religiosa. Trata-se mais da
experiência que o pensamento preocupado com o ser poderia fazer de um Deus
vindouro aquele que viria para além do tempo dos ‘deuses desaparecidos’, é a
razão pela qual Heidegger não fala de Deus, mais sim do Deus, ver até dos
deuses...
341
.
Parece claro que não podemos contar com nenhuma prefiguração profética. A vinda
do último deus poderá surgir como um acontecimento singular exatamente onde não é
possível qualquer antecipação. “A única possibilidade que nos resta no pensamento e na
poesia é a disponibilidade para a manifestação deste Deus ou para a ausência deste Deus na
341
ZARADER, Marlène, A dívida impensada, p. 156
151
151
catástrofe”
342
. Para Heidegger, devemos ter a coragem para atravessar a noite, uma vez que a
voz divina muito raramente é clara. O movimento de Deus para o mundo não é uma
aproximação, é sim uma retirada
343
. Marchamos com Deus, mas na noite sagrada. “A noite é
o tempo que abriga o divino escondido. A duração dessa noite pode por vezes exceder as
forças do homem, até levá-lo a desejar perder-se no sono”
344
.
Somos obrigados a encarar o infinito da espera, este tempo do abandono e da
carência. Espera desesperada e sem fim que no entanto é também espera rica, plena do
pressentimento no qual se prepara a vinda e a visão daquilo que sempre vem: um novo início.
O que é visto? A vinda. Mas o que vem? Isto permanece indeterminado. O que somente
podemos perceber é esta alternância e esta oposição dos tempos, remetidos do clarão do
Ereignis na técnica (e a possibilidade do advento de um deus verdadeiramente divino) à dor
de uma espera para além da utilidade. Talvez, nesta incerteza esteja compreendida a possível
aproximação de um “agora” no qual pode se dar o amanhecer de um novo início e o porvir do
último Deus. Mesmo do mundo da técnica convém esperarmos ainda uma possibilidade
salvífica de saltarmos para a essência da metafísica.
O último Deus é tal porque se encontra fora da metafísica: o Deus extremo vem (se
vem) depois da morte do Deus da metafísica. E no entanto Ele não é último porque sucede
uma série de divindades que se tornaram caducas, e nem mesmo porque, no momento mesmo
em que sanciona o fim de todos os teísmos, ele fecharia definitivamente a questão do divino.
O caráter último indica aqui outra coisa, totalmente diversa: este Deus, subtraindo-se a toda
forma de presentificação ou de identificação ôntica típica da tradição metafísica, não pode se
dar senão como pura, absoluta, extrema possibilidade. Assim, aquilo que distingue o último
Deus é a passagem; uma passagem não triunfal, mas silenciosa, e por isso mesmo
extremamente inquietante; trata-se do traço de algo que já não é mais e ainda não é ao mesmo
tempo, e cuja natureza se exaure totalmente no horizonte desta dupla negação.
Mesmo que o ser não seja um predicado possível de Deus, ele permanece sendo o
horizonte dentro do qual algo como Deus pode ter lugar e se manifestar. Para Heidegger,
Deus difere onticamente de todos os outros entes, e no entanto permanece ao lado dos entes:
“mesmo o Deus, se é, é um ente, encontra-se como ente no ser e é na sua essência que se
dá”
345
. Parece que nos encontramos, deste modo, em uma espécie de argumento ontológico
342
HEIDEGGER; Only a God Can Save Us: The Spiegel Interview (1966). Trad. William Richardson. In
Heidegger: The Man and the Thinker, ed. T. Sheehan, pp. 45-67
343
Jean Greisch relembra-nos que na mística especulativa (nomeadamente em Mestre Eckhart), o próprio Deus
despoja-se de seu saber criador. Sobre esta questão, “La contrée de la serenité et l’horizon de l’espérance, in
Heidegger et la Question de Dieu”, p. 178-184.
344
HEIDEGGER; Approche de Hölderlin, p. 140-141
345
HEIDEGGER; La Svolta, p. 29
152
152
invertido: não porque Deus é o mais ente dos entes o ser lhe pertence essencialmente, mas, ao
contrário, enquanto Deus é o mais ente dos entes não é o ser, e dele depende. “O ser vem à
sua grandeza apenas quando é reconhecido como aquilo que o Deus, os deuses e toda
divindade precisam”
346
.
Assim, Deus deve de qualquer forma se encontrar em referência ao ser para que sua
divindade possa se manifestar. Fundamentalmente, trata-se de admitir que Deus tem
necessidade do ser. Mas também se torna imprescindível não negligenciarmos o fato de que
se Deus precisa do ser, o ser por sua vez precisa do homem como espaço-tempo de sua
abertura. Isso significa também que para precisar do ser, também os deuses devem precisar
dos homens, como afirma Heidegger no comentário a Wie wenn am Feiertage e no Seminário
sobre Heráclito, com E. Fink. Os deuses não são capazes de oferecer a abertura do ser: por
isso, a sua carência do ser passa essencialmente pela experiência de fundação (no duplo
sentido: ativo e passivo) do Dasein
347
. Assim sendo, uma vez que a fundação do Da é a tarefa
do pensamento do outro início, daí deriva enfim que mesmo os deuses precisam de tal
pensamento. Ernildo Stein de uma maneira esclarecedora clarifica:
A condição salvadora está na espera do sagrado como abertura para o ser. Nesta
atitude, o homem perscruta os tempos para captar nos “sinais dos tempos” a vinda
de Deus, enquanto a “noite do mundo” difunde suas trevas de modo irreparável.
(...) Heidegger parece que abre um novo caminho, quando sugere a inserção do
homem no ser como condição única da experiência do sagrado. A possibilidade de
comunicação com o sagrado seria um existencial do próprio Dasein, enquanto
inserido na ilimitada abertura do mistério do ser que suscita o próprio homem
como seu “lugar” e “pastor”. Assim, o homem, que reside na “quaternidade”
[Geviert], deve custodiá-la, protegendo-se, para que a revelação do sagrado torne
possível a comunicação dos Mortais e dos Deuses, da Terra e dos Céus. Haverá um
sinal? Será a angústia da procura uma resposta? Será a angústia o lugar do
apocalipse de Deus? Heidegger procura ser sensível a todos os sinais do seu longo
caminho. Numa região imensamente afastada de todo o pensamento metafísico, de
todo o pensamento que representa e determina, Heidegger procura ouvir e articular
a aproximação do ser como Ereignis. Sua espera de Deus é talvez a tentativa mais
delicada de nomear o inefável sem feri-lo com conceitos de representação.
348
O Deus pós-metafísico encontra suspenso entre o advento e a fuga, entre o não mais e
o não ainda, entre a proximidade e a distância. A decisão que ele requer não diz respeito a uma
das possibilidades (advento/fuga) mas à indecisão mesma, ou seja, à mutua comum-pertença
na passagem – das duas dimensões: “não se trata nem de uma fuga nem de um advento, e nem
de uma fuga que seja ao mesmo tempo advento, mas de algo mais originário, a plenitude da
346
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 243
347
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 263
348
STEIN, Ernildo; O transcendental e o problema de Deus em Martin Heidegger, pp. 50-51
153
153
salvaguarda do ser [die Fülle der Gewährung des Seyns] na negação
349
. A falta de Deus não é
de forma alguma um problema em si, assim como o advento de novos deuses não resolveria
nada; ao contrário, é a ausência contemporânea da fuga e do advento ou seja, o fato que a
comum-pertença não seja enfrentada como problema que constitui o limite histórico da
metafísica e da situação presente:
A carência da falta de carência [Die Not der Notlosigkeit], quando emerge, se
confronta com a ausência [Ausbleiben] de advento e fuga dos deuses. Esta ausência
[Ausbleiben] é tanto mais inquietante quanto com mais tempo e aparente solidez se
mantêm as Igrejas e as formas de culto de um Deus, que por isso são incapazes de
fundar uma verdade mais originária.
350
Enfim, o último Deus é tremor, palpitação, hesitação, não uma presença estável e
absoluta. E não se trata de determinar quem é Deus, mas a partir do que Deus pode ser Deus,
isto é, sua deidade. A existência de Deus se torna um fato menos importante, na medida em
que a existência é um acréscimo à pura essência divina. Portanto, segundo uma intuição a que
Eckhart, para Heidegger, não conseguiu ser fiel, o ser não é necessariamente um predicado
divino
351
. Mais precisamente, Deus não é o ser. É a deidade, é a pura possibilidade que,
diferindo de todo ente existente, faz de Deus de qualquer modo um nada; segundo uma
dinâmica análoga àquela pela qual, segundo Heidegger, o ser é o não-ente (nada) do ente.
Sendo assim, “Deus é por si mesmo o seu ‘não’, ou seja, é a essência mais universal, a mais
pura possibilidade ainda indeterminada de todo possível, o puro nada. Ele é nada respeito ao
conceito de todas as criaturas, em relação a cada determinação possível ou atualizada”
352
. A
Gottheit não é desta maneira senão o âmbito em que algo como Deus pode resultar possível:
é sempre e apenas em que algo pode chegar à presença ou à manifestatividade
353
. Esta
condição não diz ainda nada da existência, pois se assim fosse, Deus não seria em nada
diferente dos outros entes, mas mesmo assim representa o essencial do ser Deus, isto é, a
extrema relutância a toda forma de presentação e entificação. Uma vez que é precisamente
isso que diferencia (no sentido dinâmico do termo) o ser do ente, é neste vel que deverá ser
colocada a questão da relação entre ser e Deus.
349
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 405
350
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 237
351
HEIDEGGER; Aristote, Métaphysique IX, 1-3. De l’essence e de la réalité de la force. Paris: Gallimard.
1991 (al. 46-47; it. 36). Em suas preleções de 1927, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Heidegger
sustenta que é típico da mística medieval a tentativa de colher Deus a essência mais autêntica a partir de sua
essencialidade. Em outros termos, aquilo que conta aqui é a ontologização da essência enquanto tal, antes mesmo
da determinação do conteúdo particular da essência mesma tomada em consideração, ou seja, Deus. Com efeito,
a idéia mesma de essência em geral aquilo que de per si constitui apenas o fundamento ontológico ou a
possibilidade de cada ente que é aqui transformada em um ente autônomo; e desta maneira, para Heidegger, a
mística não representa uma alternativa à onto-teologia, mas se trata de sua perfeita sublimação.
352
HEIDEGGER; I problemi fondamentali della fenomenologia, p. 87
353
CACCIARI; M. Il problema del Sacro in Heidegger. Archivio di Filosofia, v. 57, pp. 203-217. 1989., p.215
154
154
CONCLUSÃO
Nosso trabalho procura entender a técnica como um modo possível de revelação do
ser e conseqüente nova abertura ao sagrado. Ela é tanto um destino enviado pelo ser quanto um
de seus modos de interpretação. Pensar a técnica como questão, só se coloca a quem se
interessa pelo ser, àqueles que, misteriosamente, de algum modo ainda ouvem o seu apelo,
apesar de estarem cada vez mais cercados por seu velamento em um mundo totalmente
administrado que se consolida na própria impressão de autônoma soberania sobre o ente. Face
ao poder da Machenschaft o pensamento deve procurar por um caminho que o leve novamente
ao Originário para se pôr a ouvir o apelo do próprio ser. Por um lado, não pode ser descartada a
possibilidade de se alcançar a essência originária da Machenschaft e assim daquele
determinado modo de dar-se do ser que nela transparece. Por outro, não podemos esquecer que
o dizer poético é também condição de possibilidade para que o próprio pensamento, sob a
pressão da Machenschaft, insinue seu movimento de retorno ao essencial, ao ser esquecido.
Sabemos que, para Heidegger, o dizer poético é, ao mesmo tempo, uma resposta ao niilismo, ao
pensamento objetivante e uma preparação para a vinda (sempre incerta) de um deus dançante.
Entendemos que a reflexão heideggeriana permite supor que um outro percurso,
potencial ou oculto, a ser por ventura trilhado pelo homem. Heidegger solicita nossa “tomada
de posição” e nos interpela no sentido de que devemos resguardar a terra da exploração
desenfreada, receber o céu, acompanhar os mortais na morte, aguardar o divino. Com efeito,
em sua filosofia nos deparamos com a urgência de decidir se o nosso presente crepuscular é
realmente o encerramento da história ocidental ou a contrapartida para um novo início. Quando
a palavra heideggeriana se mostra profética, não é o futuro o que ela nos dá, é o presente que
ela remove, e toda possibilidade de uma presença firme, estável e durável. Neste sentido,
pensamos que a maior característica de sua fala profética é a de nos remeter a um tempo de
interrupção, um outro tempo que está sempre presente em todo tempo. Quando tudo é
impossível, quando o futuro arde, entregue ao fogo, quando não mais morada senão no
niilismo, então a fala profética que diz o futuro impossível diz também o “porém” que quebra o
155
155
impossível e restaura o tempo. Quando as sombras se alongam, todas ainda apontam para o
nascente...
Ao mesmo tempo, a preparação deste outro tempo permanece uma tarefa de poucos e
raros indivíduos; aquilo que os une é o saber essencial, o saber que diz respeito ao evento do
ser. Por isso, eles mesmos são vindouros, são os “autênticos crentes” [eigentlich Glaubenden],
porque se mantêm no verdadeiro, na essência da verdade, “perseverando na decisão extrema”
que conduz a história ao seu fundamento, à sua origem (origem que não se encontra
cronologicamente no começo mas também no final, como fim)
354
.
Mas os vindouros são também os declinantes:
Com o que deve começar o saber daqueles que sabem verdadeiramente? Com o
autêntico conhecimento histórico; ou seja, com o saber do âmbito e com o estar
(interrogante) no âmbito a partir do qual se decide a história futura. Este
conhecimento histórico não consiste nunca no registro e na descrição das condições
atuais e no acumulo dos acontecimentos, e dos fins e pretensões que estes escondem.
Este saber sabe as horas daquele acontecer que unicamente constitui a história. A
nossa hora é a época do declínio.
355
O declínio não é porém aqui sinônimo de decadência, mas é o Untergang como
Übergang, a decisão que vai a fundo, na direção da origem que instaura a história futura.
Apenas indo na direção do fundamento, atravessando o espaço abissal, a desmedida distância
que a subtração do ser cria, é possível para os vindouros ser tais, ser os artífices do novo início
do ser, ao decidir por sua verdade. Por isso eles são os “marcados”, aqueles que trazem os
sinais do ser, investidos pela missão de mostrar aquilo que faz de um grupo de homens um
povo (antes de qualquer coisa, povo é povo não em função de uma raça, do sangue, ou da
cultura, mas apenas na sua referência ao ser, à unicidade de seu dar-se como Ereignis), através
do qual é possível ter acesso ao ser. Quem são estes homens? Antes de tudo, são aqueles
poucos indivíduos singulares que através da poesia, do pensamento, da ação e do sacrifício
fundam os âmbitos em que o Dasein pode guardar o ser.
Fundamentalmente, esperamos ter clarificado suficientemente o fato de que Heidegger
propõe uma maneira diferenciada e renovada de pensar o sagrado, deslocando-o de sua estrita
ligação com a religião e com a experiência religiosa. Isso representa um aprofundamento, e
porque não dizer, uma ultrapassagem daquelas abordagens fenomenológicas que procuraram
descrever o sagrado. Tais abordagens procuraram entender o sagrado como a essência da
354
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 369
355
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), pp. 396-397
156
156
religião; Heidegger, ao pensá-lo na proximidade da poesia e do ser, levou-o à sua maior
radicalidade. O filósofo pensou o sagrado como um elemento inseparável da própria habitação
do homem sobre a terra, e não apenas em ligação com um dos aspetos dessa habitação, a saber,
a religião. Nosso trabalho também mostrou que podemos ousar o passo de volta da filosofia
para dentro do pensamento do ser, logo que nos tornamos familiares na origem do pensamento.
Percebemos que mesmo o problema de Deus pode ser colocado na filosofia, sem o risco de
desvio no ponto de partida, quando nela a pergunta fundamental do ser for colocada e
respondida em sua verdadeira dimensão.
O ser é o espaço possibilitante da história, da técnica, da obra de arte e o do
surgimento do próprio homem. Vimos que a história do ser não é nem a história do homem e da
humanidade, nem a história da relação do homem com os entes e com o ser. A história do ser é
o ser mesmo e isso. Como, porém, o ser, para a fundação de sua verdade nos entes, toma em
consideração o ser humano, fica o homem inserido na história do ser, mas sempre na
perspectiva do modo como ele, a partir da relação do ser consigo e conforme essa relação,
assume, perde, esquece, desconsidera, aprofunda ou dissipa a sua essência. Mostramos como
Heidegger acusa a metafísica ocidental de jamais ter abordado explícita e tematicamente o ser.
Desde sempre, a metafísica se movimentou no domínio da diferença ontológica, sem
experimentar essa diferença e sem interrogar em torno dela. Desde os gregos, o ser foi
confundido com uma ou outra de suas características, de suas manifestações: substância, idéia,
matéria, vida, vontade de poder, etc. Os efeitos deste esquecimento do ser em si mesmo foram
se acentuando na cultura ocidental, até o niilismo e a civilização técnica. Neste mesmo contexto
da metafísica foi colocado, em toda a história da filosofia, o problema de Deus, assim que
também ele herdou os efeitos negativos duma equivocada problematização da questão do ser.
O ser não é o ente mas justamente aquilo que dura e domina em todo ente, sem ser ele
mesmo um ente e sem reduzir-se ao seu próprio dominar e durar. O ser acontece justamente
quando se retira. Nós o compreendemos quando o reconhecemos como incompreensível.
Além do mais, o ser é fenômeno finito. A finitude do ser é por ele provocada em duplo sentido.
Por um lado, porque o ser se destina a si mesmo ao homem que por ele indaga e o deixa
manifestar-se, sendo o ser mesmo a abertura, de tal modo que, no homem, o ser se compreende
a si mesmo finitamente. Por outro lado, porque o ser suscita os entes para neles aparecer como
em algo diverso dele. Essa é a finitude fenomenológica do ser, porque ele mesmo se condiciona
em seu manifestar-se na finitude.
Na linguagem fala o próprio ser, mas sempre carente de uma linguagem humana. O
homem é o espaço lúdico para o supremo jogo do ser. O homem é homem porque recebe o dom
157
157
do aberto, da verdade, do ser. É por esse dom originário que o ser ao homem a sua essência.
Há o ser, diz Heidegger, es gibt, e nesse existir o ser se dá ao homem como dádiva [Gabe], jogo
de palavras que não encontra uma tradução possível, que imediatamente nos coloca diante do
silêncio respeitoso. Mesmo a espera por Deus deve ser entendida como uma preparação ao
advento da verdade do ser. Somos obrigados a viver o infinito da espera, neste nosso tempo de
indigência, de niilismo, em que se anuncia o crepúsculo dos deuses. Espera sem fim que, no
entanto, é também possibilidade salvífica, plena de pressentimento no qual se prepara a vinda
do último deus. Para Heidegger, poderemos ser tocados por este pressentimento quando
compreendermos que a verdade do sagrado somente resplandece quando o ser mesmo se
ilumina e é experimentado em sua verdade e que o sagrado (elemento fenomenal) é a dimensão
condicionante da fenomenização da deidade. O sagrado é a atmosfera possibilitante da
comunicação entre mortais e divinos. Segundo Heidegger, se novamente conseguirmos nos
relacionar com o aberto adquirindo a força que nos vem deste contato novo com o ser
enquanto tal retornaríamos à essência do sagrado e, assim, estaríamos prontos para a
superação do exílio, no qual erra e pervaga não apenas o homem, mas a essência do homem.
Com efeito, a filosofia heideggeriana não nega a existência de Deus. Para ela, simplesmente,
não é possível colocar essa questão do modo como o faz a metafísica. Porque se, de um lado, a
entrada de Deus na filosofia é um fato, de outro lado, Heidegger constata que essa presença de
Deus leva à sua morte, por destino da própria metafísica ocidental que sempre o tomou como
uma necessidade lógica de justificação da temporalidade e da finitude.
Com a determinação existencial da essência do homem, nada ainda está decidido
sobre a “existência de Deus” ou sua “não existência”, tampouco sobre a
possibilidade ou impossibilidade dos deuses. Não é apenas pressa, mas falso o
procedimento, a afirmação de que a interpretação da essência do homem a partir de
sua relação com a verdade do ser é ateísmo.
356
A onto-teo-logia não resolve nem o problema de Deus, nem o problema do ser. Este
é esquecido e aquele morre. Qual a posição de Deus num pensamento que se lança no abismo
de um perguntar “porque o ente e não antes o nada”? Eis o que se anuncia neste tempo em
que chegamos muito tarde para os deuses e muito cedo para o ser. Essencialmente, é justo
destacar que reenviado à verdade do ser, Deus aproxima-se novamente do pensamento. Para
Heidegger, Deus é aquele que se apresenta como tendo um parentesco mais íntimo com o
pensamento do que com a fé. Como tal, Deus não está morto, pois esta divindade vive. Ela
encontra-se mesmo mais próxima do pensador do que do crente. Além do mais, cabe não
356
HEIDEGGER, Conferências e escritos filosóficos, p. 168
158
158
esquecer e isto é de suma importância que o Deus do ser, de acordo com Heidegger na
Carta do Humanismo, não visa senão o Deus do poeta e não o Deus da fé. Em outras palavras,
o acesso ao divino (ao Deus divino, contraposto ao Deus tão pouco divino da onto-teologia)
não pode ser encontrado na teologia, na que pensa poder se tranqüilizar e, sobretudo, em
uma filosofia aferrada à representação, mas apenas nos âmbitos da poesia e do pensamento
essencial, do pensamento do outro início. Isso significa que o assassinato de Deus não
comporta o total eclipse do divino. O Deus extremo que se manifesta a partir da verdade do ser,
não dispõe do ser ou da Ereignis, mas, ao contrário, a estes pertence da mesma maneira que o
Da-sein. A Ereignis parece, assim, no final, como aquilo que permite ao deus divino ter acesso
aos homens e ao homem ser apropriado por Deus. Portanto, Heidegger se esforça, sobretudo,
para negar qualquer assimilação entre ser e Deus: o último Deus não é o ser ou a Ereignis mas
precisa do ser. Ou melhor, não é possível afirmar que a diferença ontológica, em Heidegger,
constitua uma diferença teológica, porque o ser de Heidegger, pelas suas características, não
pode ser identificado com Deus. Deste modo, a questão do último Deus se anuncia assim como
o horizonte último de todo movimento preparatório do pensamento (histórico) do outro início.
Reencontrar o Deus divino não tem nada a ver com a teologia ou com a fé: é uma
exigência do pensamento, ou melhor, mais precisamente, é uma exigência para o pensamento.
A procura de Deus é de certo modo uma expectativa da ontofania originária. O pensamento,
enquanto não reencontrar o espaço em que possa colocar o problema de Deus, fora dos
domínios da metafísica tradicional, nada pode dizer sobre Deus. Certamente diante deste Deus
não se pode dançar
357
, pois se trata de um Deus por definição ausente, ao qual o pensamento
pode apenas preparar o advento. Os vindouros (aqui sobretudo os pensadores) têm como tarefa
primária esta preparação; mas se trata de uma preparação que é fim em si mesma, uma
promessa que não será nunca cumprida, pois se o fosse o Deus extremo deixaria de ser tal.
Toda a construção heideggeriana parece excluir desde o princípio a possibilidade de um
cumprimento, de uma parousia, tanto do ser quanto de Deus. Ele apenas acena para a
possibilidade que a longa preparação pode dar início a uma nova história uma história que se
condensa no instante da passagem do último Deus
358
. Mas este instante “pertence ainda apenas
à mais solitária das solidões, à qual porém permanece interditada aquele entendimento fundante
que instaura uma história”
359
. E ainda mais, este instante não é de fato o cumprimento da
espera, mas seu puro adiamento: a extrema retração do ser, a recusa, o reconhecimento de sua
357
HEIDEGGER; Conferências e escritos filosóficos, p. 399
358
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 414
359
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 409
159
159
máxima finitude. “A máxima proximidade do último Deus se [ereignet] quando o Ereignis,
o hesitante refutar-se, se eleva ao grau de recusa [Verweigerung]”
360
. Aliás, é de suma
importância compreender que os acenos deste último Deus não são para todos; a tarefa que eles
indicam diz respeito apenas àqueles que podem verdadeiramente assumir a abertura do ser, ou
seja, os poetas e mais ainda os pensadores. Mas até que ponto pode a filosofia que agora tem
exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente à angústia – assumir o peso da espera de
Deus e salvaguardar o ser? Do mesmo modo, podemos ainda insinuar outras questões:
seguindo a trilha inaugurada por Heidegger, não corremos o risco de beatificar os textos
filosóficos e de supor que eles são detentores de um “sentido” cujo acesso estaria reservado
apenas à nossa época? Devemos mesmo acreditar que alguns textos filosóficos devem ser
cuidadosamente “escutados”, visto que sussurrariam algo que diz respeito à destinação do
nosso mundo?
Muitas complicações foram encontradas ao longo de nosso caminho. Particularmente,
quando decidi fazer doutorado tendo como companheiro desta jornada o filósofo Martin
Heidegger que para mim naquele momento era tão somente um filósofo existencialista não
tinha a menor idéia das tremendas dificuldades que me estavam reservadas. O que desde o
início impressionava eram as referências feitas por Heidegger aos mais diferentes filósofos. Na
verdade, eu desconhecia o fato de que ele trava um diálogo pensante com a maior parte da
longa tradição da metafísica ocidental. Para embaraçar ainda mais minha tarefa não leio
fluentemente o idioma alemão. Penso que o que mais desconserta qualquer pessoa que tenha
que enfrentar o difícil texto heideggeriano é mesmo o fato de que superando o formalismo dos
sistemas, a reflexão de Heidegger é itinerante. Não se encastela em escola nem se fecha na
concepção tradicional. É um pensamento a caminho... Segue no claro-escuro da interrogação e
seus escritos são marcos à beira do caminho. Heidegger itinerante é um pensador errante. Segue
de errância em errância na história da filosofia, em busca do verdadeiro caminho para o ser.
Nas várias etapas percorridas, ele não se depara com verdades absolutas. Mas, até nos
descaminhos há insinuações do mesmo ser que se vela e desvela.
E uma questão controvertida que apenas foi tangenciada neste trabalho e que
futuramente pode receber melhor tratamento diz respeito exatamente ao modo de conjugar as
duas tendências aparentemente divergentes no pensamento de Heidegger: de um lado, um
interesse filosófico e ontológico que representa uma constante de sua reflexão; de outro, uma
proveniência religiosa que não parece que se resolva unicamente no nível biográfico, depois de
360
HEIDEGGER; Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), p. 411
160
160
seu afastamento das próprias origens católicas. A respeito disso, pensamos que a dívida de
Heidegger perante a teologia é patente, embora sua atitude perante ela seja na maioria das vezes
ambígua. Ortega y Gasset, em sua obra Le Spectateur tenté, afirmou que em cada um de nós
tem um projeto essencial – talvez único – que passamos a vida recusando ou realizando,
lutando porém quase sempre contra ele, num combate obscuro, desesperado e vivo. E toda
existência é ruína, todo êxito brilhante um monte de escombros entre os quais o biógrafo deve
procurar aquilo que a pessoa deveria ter se tornado. Sendo assim, e levando realmente em
consideração as afirmações feitas pelo pensador espanhol, podemos afirmar que, como filósofo,
Heidegger passou sua vida traindo sua vocação autêntica: a teologia.
Deste modo, entendemos que Heidegger foi e nunca deixou de ser um teólogo com
uma insaciável sede de transcendência. Sabemos que Bernard Welte por ocasião da morte de
Heidegger acertadamente disse: “‘Aquele que procura’ – poderia ser o título de toda a vida e de
todo o pensamento de Heidegger. ‘Aquele que encontra’ poderia ser a mensagem secreta da
sua morte”
361
. Acreditamos que a teologia, mesmo que cada vez mais desligada de uma
confissão e de uma comunidade religiosa específica, foi sempre a sua única escolha que,
mesmo permanecendo enigmática, se afirmou como essencial em toda a sua vida. O próprio
Heidegger chega mesmo a afirmar: “Sem a proveniência da teologia, jamais teria chegado ao
caminho do pensamento. Ora, a proveniência é sempre por vir”
362
. Também, não deve ser por
acaso que ele mantinha um apreço especial pela seguinte estrofe de Hölderlin: “pois/ como
principiaste, hás de permanecer”. A teologia foi esse projeto secreto, inacessível e inexistente
cuja pressão constante se exerceu, de fato, sobre Heidegger. Nós a sentimos perto dele como
sua sombra, mesmo que ele, desertor de si mesmo, procure constantemente evitá-la.
361
Seeking and Finding: The Speech at Heidegger’s Burial, em Heidegger: The Man and the Thinker, org.
Thomas Sheehan, pp. 73-75
362
HEIDEGGER, A essência da linguagem, p. 79
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