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sentação da malandragem em dois níveis: por um lado, teríamos a malandragem genérica,
sinônimo de esperteza, de modo que qualquer aventureiro astucioso – cuja presença é consta-
tada em todos os folclores – pode ser considerado malandro. Esse malandro genérico, muitas
vezes identificado pela figura do pícaro, tem, na visão de Cândido (2008), uma malandragem
pragmática, sempre em busca de uma finalidade. Dentro desse universo genérico, Cândido
(ibidem) afirma haver a malandragem voltada para si; uma malandragem lúdica que consiste
em praticar a malandragem pela malandragem, sendo este, muitas vezes, o caso da persona-
gem Leonardo de “Memórias de um sargento de milícias”.
Nossa concordância com Cândido tem algumas reservas. Colocamo-nos de acordo
quando ele admite que a representação da malandragem – tal qual o fenômeno social equiva-
lente – não é exclusiva ao contexto cultural brasileiro. Ao lado dos exemplos acima citados
advindos das literaturas americana e italiana, acrescente-se o pícaro “El Lazarillo de Tormés”,
de modo que, como Cândido, consideramos também personagens picarescas como malandras.
Além disso, basta lembrar que a própria personagem Pedro Malasartes, apesar de também
fazer parte da cultura brasileira, tem sua origem em Portugal.
Contudo, ao tomar “a malandragem com fim em si mesma” como subgênero da ma-
landragem geral, Cândido faz crer que a especificidade da malandragem brasileira resida no
fato de ela ser imanente e lúdica. Sendo isso verdade para a personagem foco de sua análise,
corre-se o risco de supor que todas as personagens malandras serão como Leonardo. E é nisso
que consiste nosso desacordo. Aceitar Leonardo como o primeiro malandro da novelística
brasileira não significa aceitá-lo como modelo único ou prototípico. Sem dúvida, ele compar-
tilha várias de suas características com outras personagens malandras, como a falta de talento
para o trabalho regular e formal (como Zé Carioca), a falta de provisão e o interesse em viver
para o momento (como Firmo, personagem de Aluísio Azevedo em “O cortiço”
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), sem ser
igual a nenhuma delas por completo. Primeiramente, falta-lhe a condição de excluído de um
Zé Carioca e, em segundo lugar, falta-lhe também aquele aspecto de violência (que chega à
criminalidade) de um Firmo.
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Pode-se aqui traçar um paralelo interessante: O Leonardo, ao mesmo tempo em que pode ser comparado a
Firmo, aproxima-se também de Jerônimo. No romance de Aluísio Azevedo, Firmo representa, desde o início, a
pândega e a alegria dos moradores do cortiço, ao passo que Jerônimo, ao chegar, representa a austeridade e o
trabalho árduo daquele que ambiciona vencer na vida (e, um dia, deixar o Brasil e voltar para Portugal). Dessa
maneira, é como se em “O cortiço” a ordem e a desordem, tal qual no romance de M. A. de Almeida, também se
contrapusessem dialeticamente, através de Firmo e Jerônimo, sendo Rita Baiana a personagem responsável pela
fusão dessas duas esferas, ao trazer Jerônimo à esfera da desordem. Do mesmo modo, no romance de Almeida,
enquanto Luisinha – tal qual Piedade – seria a personagem que atrai Leonardo para a esfera da ordem, Vidinha –
tal qual Rita Baiana – atraí-lo-ia para desordem. Contudo, uma das principais diferenças é o fato de que, diferen-
temente de Firmo e Jerônimo, Leonardo é, desde o início, uma personagem intersticial. Além disso, falta a Firmo
o elogio à malandragem visto em outras obras, de modo que, se a personagem é malandra, o romance não o é.