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UNIVERSIDADE DE SOROCABA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA
Sílvio César Silva
A REPRESENTAÇÃO DO MALANDRO EM “A GRANDE FAMÍLIA”: DAS
RELAÇÕES IDEOLÓGICAS E CULTURAIS À COMUNICAÇÃO DE MAS-
SA
Sorocaba/SP
2008
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Sílvio César Silva
A REPRESENTAÇÃO DO MALANDRO EM “A GRANDE FAMÍLIA”: DAS
RELAÇÕES IDEOLÓGICAS E CULTURAIS À COMUNICAÇÃO DE MAS-
SA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
do Programa de Pós-Graduação em Comunica-
ção e Cultura da Universidade de Sorocaba, co-
mo exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Percival Leme Britto
Sorocaba/SP
2008
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Dedico este trabalho à minha esposa, cuja contribuição foi maior do que ela pode imaginar.
Agradecimentos
Pelo incentivo e encorajamento sempre presentes em forma de palavras e ações, agra-
deço aos meus pais e irmão, que sempre demonstraram acreditar.
Ao meu orientador por sua fundamental contribuição e, sobretudo, por ajudar a divi-
sar qual caminho a seguir.
À Viviane Tanner, da Globo Universidade, que disponibilizou alguns episódios de “A
Grande Família” dos anos 70.
Agradeço também aos professores do programa do mestrado em Comunicação e Cul-
tura da UNISO que, com suas aulas, em muito ajudaram na elaboração dessa dissertação.
Finalmente, à minha esposa, a quem devo vários finais de semana.
Resumo
Esse trabalho teve por objetivo analisar a representação da malandragem na personagem A-
gostinho de “A grande família. Buscando fundamento teórico interdisciplinar – que passou
pela sociologia, antropologia, teoria da literatura – com a finalidade de resolver uma questão
de interesse da comunicação e estudos da cultura, examinamos as principais características
que compõem a personagem bem como o que há de ideológico na maneira pela qual essa é
representada. O corpus consistiu em episódios da série transmitidos pela televisão, além de
textos e fotografias disponíveis no site oficial do programa. A análise foi realizada em duas
fases distintas. A primeira consistiu em uma pré-análise em que buscamos as principais carac-
terísticas da personagem no material disponível no site do seriado bem como em diversos
episódios da série. Utilizando os resultados da pré-análise como pano de fundo, examinamos
o conteúdo de dois episódios da temporada de 2007 a fim de verificar o modo pelo qual a per-
sonagem era representada e o que havia de ideológico nessa representação. Alicerçada no
aporte teórico que compôs o trabalho, a análise revelou que, ao ser retratada como possuidora
de uma malandragem ineficiente e burlesca, a personagem mostra-se, na verdade, como uma
caricatura de malandro, o que a leva a perder a criticidade que esse tipo de personagem pode
conter, coadunando-se, assim, com a ideologia do capitalismo-tardio.
Palavras-chave: malandragem, malandro, ideologia, capitalismo-tardio, televisão.
Abstract
This work aimed at analyzing the representation of the malandragem in Agostinho, a charac-
ter in the sitcom “A grande família”. Making use of an interdisciplinary theoretical basis
sociology, anthropology and literary theory to elucidate a question pertaining to the com-
munication studies and the studies of culture, we examined the main features that composes
the character in question, as well as the ideological contends in the way he is represented. The
data comprised of the sitcom’s episodes as well as texts and pictures available on its official
website. The analysis was carried out in two distinct steps. The first one consisted of a pre-
analysis through which we tried to determine the main features of the character based on the
data available on the official website as well as in various episodes of the series. Utilizing the
results of the pre-analysis as a background, we assessed the contends of two episodes from the
2007 season in order to verify the way the character was represented and what was ideologi-
cally oriented about that representation. Using the theoretical fundaments upon which this
study was built, the analysis demonstrated that, when portrayed as one whose malandragem
proves itself inefficient and burlesque, the character is depicted as a caricature of the malan-
dro, losing any critical elements this type of character may contain, thus, being coadunate to
the ideology of late capitalism.
Key-words: malandragem, malandro, ideology, late capitalism, television.
SUMÁRIO
1. Introdução ......................................................................................... 7
2. Ideologia, comunicação e cultura de massa ...................................... 15
2.1 Ideologia .......................................................................................... 16
2.2 A ideologia no capitalismo tardio ................................................... 28
2.3 Comunicação, cultura e ideologia ................................................... 44
3. O malandro brasileiro ........................................................................ 69
3.1 O interesse a respeito da malandragem ........................................... 70
3.2 As especificidades do malandro brasileiro ...................................... 71
3.3 A representação do malandro .......................................................... 79
4. O malandro em “A grande família” ................................................... 91
4.1 A grande família do malandro ......................................................... 92
4.2 As duas grandes famílias ................................................................. 92
4.3 “A grande família”: uma comédia de costumes televisiva .............. 98
4.4 O malandro da família ..................................................................... 107
5. Os episódios ....................................................................................... 122
5.1 Antes da análise ............................................................................... 123
5.2 Análise dos episódios ...................................................................... 130
a) A bala perdida ............................................................................. 130
b) A bonequinha do papai ............................................................... 146
5.3 Comparando os episódios ............................................................... 173
6. Conclusão .......................................................................................... 178
Malandragem e ideologia em “A grande família” ........................... 179
Referências ............................................................................................ 184
7
1. Introdução
É bem conhecida a metáfora da televisão como janela para o mundo, mas nem sempre
suas implicações são consideradas. O que significa dizer que a televisão é uma janela para o
mundo? Em primeiro lugar, temos que considerar que, a partir do momento em que aceitamos
a afirmação, conseqüentemente aceitamos a neutralidade da TV: algo como se disséssemos “a
realidade está lá fora, vamos contemplá-la!” A metáfora nos obriga a aceitar a neutralidade do
meio pelo fato de considerar que a realidade é, em si, neutra. Em outras palavras, é como se a
realidade humana fosse feita de “coisas-em-si” (CHAUÍ, 2006). Essa metáfora deixa escapar
um ponto essencial: a realidade humana não é feita de “coisas-em-si”, mas é um construto
socialmente determinado. O homem vive imerso em um universo cultural, uma semiosfera
onde tudo significa (LOTMAN, 1996).
Estarmos imersos numa semiosfera, num universo cultural, significa habitarmos uma
dimensão dupla, composta por duas realidades: a primeira, a realidade física e biologicamente
determinada; a segunda, a realidade construída pela cultura, que transcende o mundo físico-
biológico ao qual estão presas as outras espécies. Dito de outro modo, estarmos imersos em
uma semiosfera significa sermos partícipes de um universo onde a realidade não é apenas
composta por aquilo que é, mas também por aquilo que poderia ser.
A metáfora é então descabida justamente pelo fato de a televisão não poder ser uma
janela para o mundo, para “a” realidade, pois a realidade não é algo que essimplesmente lá,
como quem diz “a farmácia fica logo ali na esquina”: a realidade não é auto-evidente. A tele-
visão não pode ser “janela” pelo fato de, ela mesma, pertencer à realidade humana, à realidade
determinada sócio-historicamente, a realidade significante. A televisão significa. Este é o pon-
to que a impede de ser janela, ela não mostra o mundo, ela mostra signos, ela é um signo
(BAUDRILLARD, 2007).
Do mesmo modo é descabida a afirmação de que a teledramaturgia nacional faz com
que “o Brasil se veja na TV”. Em primeiro lugar, poderíamos objetar que a idéia mesma de
“Brasil” não passa de uma abstração, de signo. Não vamos entrar nessa questão, deixare-
mos indicado que, se na realidade humana, tudo é constituído por signos, também a idéia de
nação o é. Entretanto, a questão que queremos abordar é que o que se na televisão não é o
Brasil, nem o povo brasileiro, mas sim uma representação e esta não é inocente nem neutra:
ela significa. O fato de ser verossimilhante não implica que seja realidade, afinal de contas,
nossa percepção da realidade (que como vimos não é constituída de “coisas-em-si”) não é
8
imediata, ela se faz por intermédio de nossas relações sociais, logo, mesmo que a representa-
ção seja baseada “na realidade”, ela é baseada numa realidade já interpretada.
Os meios de comunicação em massa, em especial a televisão, são nossos modernos
criadores e difusores de mitos (BUCCI e KEHL, 2004). Mitos, não no sentido de inverdades
ou afirmações fantasiosas; mito, aqui, guarda seu significado antropológico de narrativas sim-
bólicas sobre os aspectos gerais da condição humana.
Tendo em mente o mito como narrativa, Barthes (1993) define-o de modo bastante di-
reto: o mito é uma fala. Para Barthes, ao constituir-se como sistema semiológico, o mito de-
sempenha uma função bastante específica, a saber, transforma sentido em forma, história em
natureza. Naturalização do que é histórico, isto é, em essência, a concepção de ideologia no
pensamento barthesiano.
As observações até agora discutidas permitem que coloquemos o ponto de interesse
deste trabalho, qual seja, estudar a ideologia na teledramaturgia. Nossa análise terá como foco
a representação da figura do malandro na série de TV “A Grande Família”, exibida pela Rede
Globo desde março de 2001, e seus aspectos ideológicos.
Percebemos a complexidade da empreitada, que começa pelo próprio fenômeno que
pretende analisar.
Com efeito, não há qualquer definição consensual a respeito do fenômeno da ideologia
e não faltam aqueles que, por dificuldades epistemológicas, proponham seu abandono. Entre-
tanto, por razões que explicitaremos, ainda acreditamos na validade do conceito, especialmen-
te pela agudez crítica que encerra.
As sociedades contemporâneas ainda se organizam em torno dos meios de comunica-
ção de massa, o que faz com que eles desempenhem papel privilegiado de arena política,
mesmo que, na maior parte das vezes, as pessoas não se dêem conta disso. Assim, acreditando
não ser possível falar sobre ideologia nas sociedades contemporâneas sem levar em conta os
meios de comunicação de massa e a cultura de massa (THOMPSON, 1995), faz-se necessário
estabelecer a relação entre os conceitos de ideologia, comunicação e cultura, bem como de-
monstrar os meios pelos quais esses fenômenos se relacionam em nossa sociedade.
Nesse sentido, nosso trabalho se organiza essencialmente em três frentes: a primeira
consiste em buscar definições de ideologia, comunicação e cultura que nos forneçam os ele-
mentos necessários para operarmos a análise, bem como em estabelecer relações entre esses
fenômenos nas sociedades do capitalismo tardio; a segunda resume-se em fazer um estudo
antropológico da malandragem na vida social e também de sua significação enquanto catego-
ria cultural; por último, descreveremos as principais características que definem a personagem
9
como malandro para depois fazermos a análise da representação do malandro em dois episó-
dios de “A grande família”, de modo que, ao confrontar com outros significados que esta re-
presentação assume na cultura nacional, poderemos identificar seus aspectos ideológicos. As
três frentes que compõem o trabalho serão distribuídas em cinco diferentes capítulos (sobre os
quais falaremos mais tarde).
O caráter interdisciplinar (comunicação, antropologia, teoria literária) adotado não pre-
judica a unidade e a organicidade do trabalho, ao contrário, se encaixa perfeitamente ao nosso
objeto de estudo, um programa de televisão, considerando-se que essa, em si é um amálga-
ma de linguagens, em outras palavras, um meio híbrido.
O fato de a televisão ser multifacetada e constituída pelo amálgama de diferentes mei-
os, associado ao fato de trabalharmos com teledramaturgia, permitiu encarar o programa em
questão (o seriado A Grande Família” da rede Globo) a partir de uma perspectiva literária,
classificando-o como comédia de costumes. Isso, todavia, não significou ignorar o fato de ser
ele um seriado televisivo e produto da indústria cultural, o que fez com que fosse compreen-
dido pelo prisma dos estudos da comunicação de massa.
Tendo claro que a análise ideológica do programa como um todo envolveria o exame
minucioso de vários aspectos do seriado inclusive um estudo detalhado a respeito da consti-
tuição e tratamento de cada uma das diversas personagens (preferivelmente, incluindo tam-
bém aquelas que não são permanentes) – e estando conscientes da impossibilidade de sua rea-
lização no curto tempo que uma dissertação de mestrado tem para ser elaborada, optamos por
dirigir nossa atenção a uma personagem apenas: Agostinho. Logo de início, vislumbrávamos
nessa personagem a possibilidade de compreender como a malandragem é tratada nesse seria-
do.
Figura que habita nosso imaginário – estando constantemente presente em nossa litera-
tura, música, teatro, teledramaturgia –, o malandro do seriado “A Grande Família” suscitou
em nós a seguinte pergunta: Quais seriam as características que permitiriam incluí-lo no rol
dos malandros presentes no imaginário nacional e personificados na nossa tradição literária,
dramatúrgica, cinematográfica e teledramatúrgica? E a partir desta, outras questões também
surgiram: haveria algo de ideológico na caracterização e no tratamento da malandragem no
seriado? De que maneira se configuraria o conteúdo ideológico na caracterização e tratamento
do malandro em um programa televisivo, produto de uma já consolidada indústria cultural
brasileira, especialmente tratando-se do maior e mais importante canal de televisão no Brasil,
a Rede Globo?
10
Responder as perguntas acima constituiu o objetivo central desse estudo, contudo, a
elaboração do trabalho acabou por contemplar outros objetivos acessórios como, por exemplo,
propor a reflexão interdisciplinar que envolveu elementos da antropologia, sociologia, teoria
literária e teoria da comunicação no esclarecimento de uma questão de interesse da comunica-
ção; defender a relevância dos conteúdos televisivos como ferramenta ideológica; e traçar
brevemente, a partir do nosso aporte teórico, as raízes da malandragem em nossa cultura bem
como as principais características de suas várias representações.
Sendo a malandragem um elemento fortemente presente no imaginário brasileiro e,
como elemento participante de nossa cultura, ela é constantemente retratada na produção cul-
tural nacional, quer seja na literatura, no cinema e também na teledramaturgia.
No universo acadêmico, a partir do final dos anos 60, a reflexão acerca da malandra-
gem transformou-se em objeto de reflexão nos campos da sociologia, da teoria literária, da
antropologia e da crítica da cultura. Porém, em comunicação, este tópico tem recebido muito
pouca atenção.
Ademais, para Machado (2000), a maioria dos trabalhos em comunicação que envolve
a indústria cultural, especialmente a televisão, segue basicamente os pressupostos teóricos de
dois autores: Theodor Adorno e Marshall Mcluhan. Sem questionar a validade das contribui-
ções dos dois estudiosos (que, por sinal, nos serão extremamente úteis), um ponto em comum
entre eles pode ser destacado. É certo que suas visões se encontram em opostos extremos (A-
dorno vendo-a como essencialmente e Mcluhan como essencialmente boa), mas ambos
têm, em suas análises, a televisão apenas enquanto meio, ou seja, apenas sua estrutura externa.
Não há uma preocupação em se analisar os trabalhos realizados em televisão. Dessa forma, os
estudos feitos nos modelos de Adorno e de Mcluhan (MACHADO, 2000) tem a tendência de
considerar a televisão enquanto estrutura, não se debruçando em descrever, analisar ou criticar
programas específicos.
Para Machado (ibidem), a conseqüência disso é uma escassa literatura especializada
no que a televisão produziu, de modo que aqueles que estudam ou trabalham com televisão
diferentemente do caso da literatura, por exemplo, que dispõe de uma crítica literária es-
tabelecida encontram dificuldades em conhecer a história das produções do meio no qual
estão envolvidos.
Percebemos, dessa forma, a necessidade de uma pesquisa que refletisse especificamen-
te sobre a inserção da malandragem e sua possível implicação ideológica dentro do universo
dos meios de comunicação de massa através do exame de um programa de televisão em parti-
cular – A grande família –, esperando, assim, contribuir como possível referência à disposição
11
daqueles que se interessam pela produção televisiva, quer sejam críticos, estudantes de televi-
são ou de comunicação em geral, entre outros.
Durante a pesquisa bibliográfica, encontramos três trabalhos que tiveram o seriado “A
Grande Família” como objeto de estudo. Embora todos tenham sua devida importância para a
maior compreensão do seriado, eles não tiveram seu foco de análise voltado para a questão da
malandragem. Naturalmente, enquanto elemento componente desse seriado, esses trabalhos
perpassaram por essa temática, entretanto devido a seus objetivos diversos, nela não se detive-
ram. Com isso, este trabalho, por ter tido uma orientação diferente dos outros, permitiu que se
obtivesse um maior entendimento com relação a esse seriado de televisão em específico, es-
pecialmente com relação à malandragem.
O objetivo principal de compreender a maneira pela qual é realizada a composição da
figura do malandro dentro do seriado de televisão “A Grande Família” e suas imbricações
ideológicas caracterizou esse estudo como uma pesquisa empírica, cujo corpus analisado con-
sistiu em dois episódios do seriado: “A bonequinha do papai”, exibido em 20/09/2007; e “A
bala perdida”, exibido em 27/09/2007. Os dois episódios que compõem o corpus foram esco-
lhidos dentre aqueles veiculados pela Rede Globo e colhidos em DVD entre setembro de 2006
e dezembro de 2007, bem como aqueles lançados comercialmente em DVD pela Som Livre e
Globo Vídeo em 2002 e 2003. Os critérios para a seleção dos episódios, de maneira geral,
levaram em consideração a proeminência da personagem Agostinho na narrativa, bem como
terem sido exibidos em 2007
1
.
Inicialmente, pensamos em examinar os episódios por meio da análise do discurso ou
da análise semiótica, porém o fato de o propósito último desse trabalho ser a análise da di-
mensão ideológica de um produto televisivo inibiu o uso exclusivo da análise do discurso ou
da análise semiótica, dando preferência assim a uma análise de conteúdo. Essa escolha meto-
dológica teve a vantagem de dispensar a utilização de conceitos teóricos fundamentais da teo-
ria do discurso e da teoria semiótica que, por sua demasiada preocupação com a linguagem,
desviariam a atenção da esfera cultural e midiática, ao mesmo tempo em que não impediu que
alguns elementos dessas teorias fossem utilizados como ferramental teórico subordinado à
análise de conteúdo.
1
Em 2007, o seriado foi levado às telas do cinema em forma de filme. Nossa opção metodológica por reduzir a
análise à ideologia presente na representação do malandro em “A grande família” enquanto programa de televi-
são fez com que não considerássemos o filme no momento de seleção dos episódios que comporiam o corpus a
ser analisado. Além disso, mesmo que o tivéssemos considerado, pelos critérios utilizados na escolha do corpus,
o filme não poderia compô-lo, dado a pequena participação da personagem no enredo cinematográfico.
12
Funcionando como uma análise preliminar, as características da personagem foram le-
vantadas por meio de diferentes episódios que compõem o seriado. Utilizamos também, como
fonte, as descrições da personagem disponíveis no site oficial do programa “A grande famí-
lia” na internet. Esse exame preliminar forneceu subsídios importantes para um maior enten-
dimento sobre a composição e o tratamento da personagem nos dois episódios analisados.
Dessa forma, a análise qualitativa do conteúdo dos episódios citados acima dependeu
não apenas da utilização de elementos da análise discursiva e semiótica, mas também do le-
vantamento das características atribuídas à personagem tanto em episódios diversos de dife-
rentes temporadas, bem como de informações do site do programa na internet, além do fato de
que seu tratamento qualitativo tomou por base o referencial teórico sobre o qual o estudo foi
construído.
Portanto, embora se trate de uma pesquisa empírica, o aporte teórico tomou parte im-
portante ao servir de pano de fundo contra o qual foram contrastadas as conclusões advindas
da análise dos episódios de forma a possibilitar que se atingisse uma conclusão geral sobre o
papel ideológico da representação do malandro em “A grande família”.
O capítulo essencialmente teórico é “Ideologia, comunicação e cultura de massa”, em
que os conceitos que permeiam o trabalho são desenvolvidos. Nele, o conceito de ideologia
presente no estudo é construído por meio de um debate teórico envolvendo autores como Al-
thusser, Roland Barthes e Terry Eagleton. Já o debate sobre a ideologia no capitalismo tardio
é realizado a partir do pensamento de autores como Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Fre-
deric Jameson, entre outros. Ainda nesse capítulo, associamos a questão da ideologia à da
comunicação e cultura de massa, discussão essa que toma por base os trabalhos de Adorno,
Horkheimer, Mcluhan, John Thompson, entre outros.
O capítulo seguinte, também teórico, procurou dar conta da questão da malandragem e
sua representação na cultura brasileira. Reconhecendo a especificidade da malandragem no
contexto brasileiro, debatemos a questão baseados em autores como Sérgio B. de Holanda,
Antônio Cândido e Roberto DaMatta. Também nesse capítulo, na tentativa de compreender
como ocorre a representação da malandragem na produção cultural nacional, fizemos um le-
vantamento de algumas personagens malandras presentes na tradição oral, literária, fílmica e
dramatúrgica de nossa cultura.
O capítulo “O malandro em ‘A grande família’” teve por objetivo contextualizar a per-
sonagem foco do estudo descrevendo o seriado do qual faz parte e, ao mesmo tempo, de for-
necer uma descrição da personagem que justificasse sua inserção no universo das personagens
malandras. Tendo em vista que o objetivo do trabalho era dar conta da personagem Agosti-
13
nho, procuramos aprofundar a descrição do seriado até o ponto em que fosse coerente com a
orientação e o foco do trabalho. Dessa maneira, evitamos analisar aspectos do seriado que
fugissem ao assunto principal, a saber, os aspectos ideológicos da representação do malandro.
Conseqüentemente, aspectos importantes como a composição da família, ou a própria idéia de
família do seriado, foram deixados de lado e poderão ser abordados em estudos posteriores.
O capítulo final apresenta a análise dos episódios de acordo com os procedimentos
metodológicos mencionados acima. É importante atentar para o fato de que, por se tratar de
análise de imagem em movimento, o leitor poderá encontrar certa dificuldade em acompanhar
as análises pelo fato de desconhecer os episódios. Diante da impossibilidade de reproduzi-los
aqui exatamente como foram transmitidos pela televisão e da impossibilidade legal de incluí-
los em vídeo como anexo, a fim de facilitar a compreensão da análise, elaboramos uma sinop-
se antecedendo cada uma das análises. Gostaríamos de frisar que as análises, em nenhum
momento, foram feitas a partir da sinopse oferecida, mas sim com base nos episódios de fato
veiculados pela Rede Globo, de maneira que a função da sinopse limita-se a dar ao leitor con-
dições para um melhor entendimento da análise.
Do mesmo modo, como auxílio no acompanhamento da análise, foram utilizados ter-
mos concernentes à análise da imagem em movimento provenientes da linguagem cinemato-
gráfica. Por não se tratar de análise fílmica, mas sim de conteúdo, limitamos seu uso ao neces-
sário à argumentação.
Por último, apresentamos a conclusão como um ponto de chegada do percurso realiza-
do através da reflexão aqui empreendida. Tendo a função de concatenar e sintetizar num todo
orgânico os pontos desenvolvidos nos diferentes capítulos, nela finalmente respondemos as
perguntas levantadas na elaboração desse estudo.
Nossa pesquisa revelou o malandro como um ser das brechas, não pertence plenamen-
te à desordem, muito menos faz parte da ordem: habita os interstícios entre o lícito e o ilícito,
entre o moral e o imoral, não se confunde, portanto, com o criminoso. Sua aversão ao trabalho
formal leva-o a viver de pequenos golpes e é por meio deles que tenta compensar sua posição
de desigualdade. A análise do perfil de Agostinho, bem como o exame dos episódios mostra-
ram que essa personagem possui essas características gerais que definem as personagens ma-
landras. Porém, enquanto as demais representações do malandro tendem a conter, bem ou
mal, uma metáfora de antagonismo à ordem vigente, Agostinho, ao ser representado como
caricatura de malandro, acaba por afirmá-la. O estudo revelou que a personagem é um malan-
dro que deseja entrar para ordem: possui em si um impulso “desmalandralizador” que o em-
purra em direção a ordem, representada, principalmente, pela família. Além disso, o fato de
14
suas tentativas de acesso à ordem ao serem realizadas pela malandragem invariavelmente
resultarem em reveses para a personagem, desarma por completo qualquer componente crítico
que essa personagem possa conter, de forma ser esse o aspecto ideológico na representação do
malandro em “A grande família”.
2. IDEOLOGIA, COMUNICAÇÃO E CULTURA DE MASSA
16
2.1 Ideologia
A tese de que o capitalismo contemporâneo prescinda de qualquer ideologia para fun-
cionar uma vez que pouco importaria o quanto os dominados divergissem ideologicamente
dos dominantes, já que os primeiros, por causa de sua situação econômica, necessitam subme-
ter-se para que sua sobrevivência material seja garantida é, em si, ideológica. Por mais
que se possa reconhecê-la como verdadeira, ainda assim, ou melhor, por isso mesmo, tal tese
deve ser submetida a uma reflexão mais criteriosa. algumas justificativas para que se de-
fenda a necessidade dessa reflexão.
A primeira delas está justamente no fato irremediável de que, conforme aponta Slavoj
Žižek (1996), quando pensamos estar saindo da ideologia é que, justamente, tornamos a cair
nela. Uma segunda justificativa para que se dê atenção maior à tese de “fim da ideologia”, que
está na verdade coadunada à primeira, é a própria tendência de reconhecê-la como verdade
(absoluta). Em outras palavras, é justamente o fato de imaginarmo-nos sob a égide da “verda-
de” que nos deixa a mercê da ideologia. A terceira justificativa é decorrente das duas anterio-
res: a tese, em si ideológica, de que o capitalismo tardio prescinda de ideologia para seu fun-
cionamento e, mais, sua concepção de “fim da ideologia” (juntamente com o “fim da histó-
ria”) desloca a questão da luta de classes para a ideologia como integração.
Entendemos ser importante que essas justificativas, baseadas na questão de se estar ou
não sob a verdade, devam ser mais bem desenvolvidas e, com efeito, planejamos fazê-lo Con-
tudo devemos, por enquanto, deixar esta discussão em suspenso e nos dedicarmos a um outro
ponto de igual importância pelo qual, por razões argumentativas, deveremos começar.
Parece-nos fundamental, antes de qualquer coisa, que se faça uma discussão de caráter
epistemológico acerca do conceito de ideologia, bem como uma discussão que lance luz sobre
o que estamos falando quando usamos o termo ideologia. Uma outra questão deve, porém,
antecedê-las e esta pode ser formulada nos seguintes termos: Até que ponto é interessante
insistir em um conceito por demais amplo como o de ideologia?
Atualmente, muitos são os teóricos que evitam o uso deste termo substituindo-o por
outros conceitos que julgam mais precisos ou adequados à investigação social. Pierre Bourdi-
eu, por exemplo, em um debate com Terry Eagleton
2
, afirma evitar a palavra ideologia pelo
fato de ela ter sido freqüentemente mal usada ou utilizada de maneira vaga. De fato, o debate
2
Este debate foi realizado no Instituto de Artes Contemporâneas de Londres em 15/05/1991 e sua transcrição
editada está disponível no livro “Um mapa da Ideologia” organizado por Žižek sob o título de “A doxa e a vida
cotidiana: uma entrevista.
17
que procura balizar o que é ideologia não é, de maneira alguma, simples. Terry Eagleton
(1997) havia admitido esta dificuldade ao dizer que nunca foi proposta uma definição de
ideologia que fosse adequada e, vai além, ao reconhecer que seu livro intitulado Ideologia
também não o faria. Eagleton (op. cit.), no capítulo inicial de seu livro, enumera dezesseis
definições de ideologia que têm sido utilizadas correntemente. Apesar do grande número de
definições, elas ainda o dão conta de todas as acepções comumente associadas ao termo,
uma vez que esse levantamento, conforme o próprio autor afirma, baseou-se nas acepções
que, sem nenhum critério formal, foram por ele lembradas ao escrever o livro. Devemos tam-
bém chamar a atenção para o fato de que, enquanto algumas das definições apontadas por ele
são complementares umas às outras, outras são conflitantes. Deste modo, utilizar um termo
que, pelo seu uso excessivo, tornou-se vago e, pode-se dizer também, de senso comum e que,
conseqüentemente, perdeu seu poder descritivo pode parecer pouco fértil.
Eagleton (1996), ao comentar sobre o porquê muitos teóricos têm abandonado o con-
ceito de ideologia, menciona não o desgaste gerado pelo uso demasiado, mas também a-
ponta para outros fatores que levaram a este abandono. Um desses fatores é que a teoria da
ideologia depende de alguns modelos de conceito de representação que têm sido questionados
e, por conseqüência, também a noção de ideologia. Um outro fator mencionado brevemen-
te, o qual será depois retomado, é que muitas vezes a ideologia é tida como mistificação e
falseamento da realidade. Assim, para se poder julgar uma forma de pensamento como ideo-
lógica, supõe-se que exista uma verdade absoluta de onde esse julgamento poderia ser feito
o que é bastante questionável. Desta maneira, “se a idéia de verdade absoluta é contestada, o
conceito de ideologia parece desmoronar com ela” (ibidem, p. 266). O teórico inglês aponta
ainda para duas outras razões: uma é que, na era pós-moderna, a idéia de que as pessoas pos-
sam se deixar iludir por uma falsa consciência é muito simplista. Para ele as pessoas, “na ver-
dade, estão muito mais cínicas ou astutamente cônscias de seus valores do que isso sugeriria”
(ibidem). A outra razão é justamente a tese que mencionamos no começo de nossa argu-
mentação: o capitalismo tardio é um sistema auto-suficiente, ou seja, mantém-se funcionando
menos por qualquer retórica, discurso ou conjunto de crenças do que pela sua própria lógica
operacional.
Diante disso tudo, a resposta que se espera para pergunta de que até que ponto é válido
insistir em um conceito tão amplo, com tantas contradições e falhas teóricas parece ser um
ressonante “abandonemos! Para que insistir?”. Entretanto, neste ponto nos colocamos ao lado
de Eagleton que, embora reconheça certa validade em todas as razões contrárias ao conceito
de ideologia acima mencionadas, não as julga suficientes para que o abandonemos. Os moti-
18
vos principais que o levam a sustentar essa posição é que, para ele, a tese de que o capitalismo
contemporâneo prescinda de ideologia parece exagerada
3
. Ademais, ele ainda crê que o con-
ceito de ideologia corresponde, em certa medida, à noção de falsa consciência.
Aos argumentos de Eagleton, gostaríamos de acrescentar que reconhecemos a ampli-
tude do conceito, entretanto entendemos que isto não poderia ser diferente, uma vez que, o
termo ideologia tenta cobrir um conceito extremamente intricado e vasto e, em si, contradi-
tório. O que acontece com os novos termos que tem por objetivo substituir o, desgastado,
“ideologia” é que eles procuram abranger porções menores do universo conceitual que se tem
tentado atribuir ao termo. Bourdieu (1996), por exemplo, no lugar de ideologia, tem usado
conceitos como “doxa”, crença espontânea e “habitus”, entretanto eles acabam por funcionar,
em certo sentido, similarmente às noções de ideologia, uma vez que doxa, por exemplo, seria
uma verdade incontestável e natural. A isso, acreditamos que mais uma questão deva ser a-
crescentada e que pode ser formulada da seguinte maneira: Mesmo que os termos propostos
por Bourdieu não tenham as mesmas dificuldades e inconvenientes teóricos que o (termo)
“ideologia”, o que nos garante que, no momento em que eles ganharem larga elaboração teó-
rica e escaparem ao controle de seu proponente, não comecem a apresentar as mesmas contra-
dições e dificuldades do termo a que vieram substituir? Mesmo que concordemos que o fato
de se retirar o peso conceitual que carrega o termo ideologia e dividi-lo entre conceitos meno-
res (como doxa, habitus, etc.), não estariam eles ainda se referindo à mesma realidade intrica-
da, contraditória e inacessível em sua completude ao conhecimento humano?
Assim, podemos concluir que os termos que se pretendem substitutos (melhores) do
“problemático ideologia” talvez se revelem igualmente problemáticos, de um lado, por não
conseguirem abarcar todo o conceito e, de outro, na esperança de superar os paradoxos, serem
ainda mais abrangentes que o já amplo “ideologia”. É o que acontece a Foucault e seus segui-
dores. Devido à natureza microfísica do poder (FOUCAULT, 2001), a ideologia estaria pre-
sente em tudo, sendo assim substituída pela noção de discurso. Entretanto fica a pergunta: que
palavra poderíamos utilizar para discriminar os diferentes discursos dependendo da relação
que têm (ou não têm) com o poder, que o adjetivo ideológico deve ser abandonado? Consi-
derando o enunciado “os trabalhadores negros são menos ou mais produtivos que os brancos”;
poder-se-ia chamá-lo de falso, mesmo que ele seja inverídico em um nível imediato de signi-
ficado, mas extremamente fiel quanto ao seu significado ulterior e seu comprometimento polí-
tico? Percebemos então que somos novamente remetidos à oposição verdade/falsidade. Ou
3
No devido tempo, gostaríamos de desenvolver melhor este ponto.
19
ainda, como poder-se-ia classificar o enunciado “os americanos não deveriam assumir o papel
de polícia do mundo”, que não é necessariamente verdadeiro e nem tampouco falso? Se o
chamarmos simplesmente de enunciado político, não esclareceríamos muito que todos os
enunciados analisados em ciências sociais são políticos. E se decidirmo-nos simplesmente por
dispensar o adjetivo político, a situação fica ainda mais confusa, porque o que o diferiria do
enunciado “eu não gosto de goiabada”? É neste sentido que Eagleton afirma que:
Fiéis a essa lógica, Foucault e seus seguidores abandonaram por completo o concei-
to de ideologia, substituindo-o por um discurso mais capaz. Mas isso talvez seja de-
sistir muito rápido de uma distinção útil. A força do termo ideologia reside em sua
capacidade de distinguir entre as lutas de poder que são até certo ponto centrais a to-
da uma forma de vida social e aquelas que não o são. (Eagleton, 1997, p. 21)
Ademais, como afirmaram Abercrombie e outros (1996) em sua resenha do livro “A ideologia
do poder e o poder da ideologia” de Göran Thereborn, essa tendência de se adotar uma con-
cepção de ideologia que abrange indiscriminadamente todos os tipos de saber e que, por con-
seqüência, priva o conceito de sua agudeza crítica mais importante faz com que os marxistas
ataquem a sociologia do conhecimento.
Percebe-se então que a mera substituição ou abandono do conceito, ou não resolve os
problemas, ou pode resultar numa perda ainda maior de força descritiva. Nesse sentido, con-
vém citar Frederic Jameson (1996) que menciona o desejo de simplificação dos proudhonistas
que acreditavam poder eliminar os problemas trazidos pelo dinheiro abolindo-o, tese contes-
tada por Marx para quem é a própria contradição do sistema de trocas que se expressa através
do dinheiro e que continuaria a se expressar em qualquer substituição que viesse a ser adota-
da. O mesmo ocorre com as tentativas de substituição do termo ideologia, em que mesmo um
substituto novo, como o doxa de Bourdieu, depois de passar por diversas elaborações teóricas
apresentaria os mesmos problemas, contradições e limitações do termo ideologia por que é
exatamente a complexidade e as contradições inerentes à ideologia que continuarão a se ex-
pressar em qualquer substituto que venha a ser usado. Dito de outro modo, as ideologias ope-
ram em desordem, logo não é surpreendente que a “própria teoria da ideologia seja confusa”
(ABERCROMBIE e outros, 1996, p. 155). Desta maneira, podemos postular que as mudan-
ças e dilatações que o termo sofreu, bem como as contradições que se descobriram nele, são
na verdade constitutivas do fenômeno ideologia.
De fato, desde sua primeira aparição na França no início do século XIX até os dias de
hoje o termo se ampliou de maneira a dificultar sua manipulação teórica. Ademais, pode-se
dizer que entrou para o léxico comum, ficando assim sujeito às mudanças de ordem lingüísti-
ca da relação entre significado e significante sobre as quais Saussure (2002) falava em seu
20
Curso Geral de Lingüística. Cremos, todavia, que algo que deve ser reconhecido: Se o ter-
mo sofreu um inflacionamento em seu sentido, ele, muito provavelmente, se deve menos ao
fato de ele ter sido adaptado ou redefinido em virtude de interesses teóricos ou políticos que
pela complexidade da realidade que ele tenta compreender. Não queremos, absolutamente,
negar que muitas vezes o termo tenha sofrido uma “reinvenção” de conveniência teórica ou
política, porém não teriam essas “reinvenções” surgido justamente porque tanto o conceito
quanto a realidade que ele propõe abarcar deram-lhe condições para isso?
Ao levar em consideração que em sua primeira aparição, conforme reporta Chauí
(2006), o termo referia-se a uma ciência da gênese das idéias que, procurando estabelecer uma
teoria sobre as faculdades sensíveis responsáveis pela formação das idéias, tratava-as como
fenômenos naturais que exprimiam a relação do corpo humano com o meio ambiente, fica
fácil compreender que o termo carregava, em seu bojo, as condições necessárias para a mu-
dança de significado. Dizemos isso porque logo se pode lançar algumas perguntas a esse res-
peito: seriam mesmo as idéias fenômenos naturais? Não seria a naturalização daquilo que é
histórico, como demonstra Barthes (1993), um processo ideológico?
Na verdade, ao tentar estabelecer a ideologia como uma ciência positivista, antiteoló-
gica e antimetafísica, calcada na experimentação e observação que reconhecia as causas
“naturais” (físicas ou materiais) para as idéias, os ideólogos franceses falharam em perceber
suas determinações histórico-sociais. Essas não foram (conscientemente ou inconscientemen-
te) ignoradas pelo seu ex-aliado e, posteriormente, oponente político Napoleão Bonaparte
que atribuiu todos os problemas da França à ideologia, chamando-a de “tenebrosa metafísica
que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação
dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da histó-
ria” (BONAPARTE apud CHAUÍ, 2006, p. 27). Aos ideólogos franceses foi atribuído um
adjetivo que jamais suspeitariam: metafísicos. É evidente que esta manipulação do conceito
por Napoleão é ideológica no sentido de falseamento, uma vez que não era exatamente ver-
dade que os problemas enfrentados pela França eram de responsabilidade dos ideólogos e sua
ciência. O que nos importa neste exemplo é que temos o termo, pela primeira vez, assu-
mindo um sentido negativo e é esse sentido napoleônico, conforme argumenta Chauí (2006),
que Marx usará ao falar sobre os ideólogos alemães, ou seja, para ele o ideólogo é aquele que
inverte a relação entre as idéias e o real.
De ciência da gênese das idéias a falseamento ou mascaramento da realidade para fins
de expropriação de uma classe social sobre outra ou de manutenção de regimes totalitários ou
tirânicos, o conceito de fato foi encarado de várias formas. Mas poderia isso ser diferente ao
21
tratarmos de idéias e crenças que vão pautar nossas relações sociais? E incluímos mais
uma acepção do conceito, desta vez não mais o falseamento, mas ideologia como idéias e
crenças sobre as quais nossa vida em sociedade é pautada.
Com efeito, ao definirmos ideologia desta maneira, o caráter de verdade/falsidade pa-
rece pouco importar. Entretanto outro problema teórico aparece. Se ideologia é apenas o cor-
po de crenças que governa nossa sociedade ela, por um lado, parece ajudar pouco na análise
dos conflitos de poder que ocorrem dentro da sociedade e, por outro, confunde-se com o con-
ceito de cultura. Ao reconhecer a dificuldade do termo ideologia, Raymond Williams (2000)
aponta que seu primeiro nível de dificuldade está no fato de se saber se ele está sendo usado
para descrever crenças formais e conscientes de uma classe ou uma visão de mundo caracte-
rística de uma classe com crenças formais e conscientes, mas também com hábitos e senti-
mentos menos conscientes caso em que, a menos que se faça algumas ressalvas, corre-se o
risco de que o conceito de ideologia se confunda com o de cultura.
Realmente, ressalvas são necessárias sob pena de perdermos um conceito que nos aju-
daria a descrever e compreender situações de desigualdade social, de modo que o caráter de
falsidade e mascaramento parece novamente importar. Entretanto, diante da diversidade e
amplitude do termo, será que é o caráter de falsidade aquele a ser determinante na definição
de ideologia? Não seria justamente isto, conforme nos aponta Eagleton (1997), que faz com
que ideologia seja um conceito tão impopular? Se for este caráter duvidoso de realidade
versus falsidade que distingue o fenômeno da ideologia, será que ele realmente pode nos ser
útil? Bem, parece-nos agora ser apropriado retomarmos a discussão referente à verda-
de/falsidade (ideológica) que deixamos em suspenso.
Embora reconheça a diversidade inerente ao termo, bem como a conseqüente impossi-
bilidade de se comprimir toda esta diversidade sob uma definição única e infalível, Eagleton
(1997), ao tratar sobre o conceito de ideologia, faz uma longa discussão baseada, por um lado,
em formulações que têm a ideologia como ilusão, mistificação e distorção e aquelas que, por
outro, se preocupam menos com seu caráter real ou ilusório do que com a função das idéias na
vida cotidiana. Um dos grandes problemas em se tomar a ideologia como sendo a distorção ou
mistificação do real reside justamente no fato de que isso pressupõe de que o real possa ser
tido como um dado objetivo e acessível, ou ainda, pressupõe a existência de uma verdade (ab-
soluta e definitiva). Isto implica, diretamente, a dificuldade de se estabelecer os limites do que
pode ser considerado ideológico, a partir do momento que a própria delimitação da ideologia
é ideológica; conforme argumenta Althusser (1996), é típico de a ideologia negar a sua essên-
cia: a ideologia nunca admite ser ideológica.
22
O próprio pensamento de que seja possível conceber um corpo de idéias que seja abso-
lutamente verdadeiro e inquestionável revela sua inconsistência na medida em que a posição a
partir da qual se poderia, sem nenhuma distorção ou bias, ter acesso ao real poderia ser
preenchida por um observador onipresente e onisciente, o que certamente excluiria qualquer
observador humano. Nossa percepção do real é sempre parcial e formada a partir do nosso
lugar no corpo social. Isso decorre do fato de que o real não é composto de coisas-em-si, ele
não pode ser acessado de maneira imediata uma vez que é sempre mediado pelas nossas rela-
ções sociais.
O argumento straussiano faz uma separação fundamental entre o “homeme a “natu-
reza” que nos permite compreender a impossibilidade de se ter acesso inequívoco ao real. Ao
concebermos o homem como um ser desnaturado, propõe-se que sua relação com o mundo e
com o semelhante é mediada por padrões que foram (e ainda estão sendo) fabricados e adota-
dos pela sociedade em que está inserido. Marilena Chauí (2006) faz menção a essa “antinatu-
reza” das relações humanas ao afirmar que a realidade (humana) não é composta por coisas,
pois para o ser humano em sociedade as coisas são:
Formas de nossas relações com a natureza mediadas por nossas relações sociais, são
seres culturais, campos de significação variados no tempo e no espaço, dependentes
de nossa sociedade, de nossa classe social, de nossa posição na divisão social do tra-
balho, dos investimentos simbólicos que cada cultura imprime a si mesma através
das coisas e dos homens. (CHAUÍ, 2006, p. 21)
Chauí fala em “campos de significação”, isto nos permite compreender que o homem
é animal simbólico e é nesse sentido que Žižek (1996) nos traz o argumento lacaniano de que
o que vivenciamos como realidade não é a “coisa-em-si”, mas sim o real simbolizado. Esta
oposição homem/natureza e a simbolização do mundo podem ser mais bem apreendidas atra-
vés do conto de Jorge Luís Borges, “Os animais dos espelhos”, que nos apresenta a metáfora
de que antigamente:
O mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomuni-
cáveis. Eram, além disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as co-
res e nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano, viviam em paz; en-
trava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, a gente do espelho invadiu a Terra. Sua
força era grande, porém ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Impera-
dor Amarelo prevaleceram. Este rechaçou os invasores, encarcerou-os nos espelhos
e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todos os atos dos ho-
mens. Privou-os de sua força e de sua figura e reduziu-os a meros reflexos servis.
(BORGES, 2000, p. 22 e 23)
No trecho acima percebemos que o mundo da natureza, representado pela diversidade
especular, foi subjugado pela técnica (as artes mágicas) da humanidade (representada pelo
imperador Amarelo). Entretanto, conforme nos mostra Barthes (1993), essa antinatureza ou
23
antiphysis assume o papel de pseudophysis. Temos aí uma primeira característica da ideologia
que vai nos interessar e que retomaremos mais tarde: a transformação do que do histórico em
natural. Ademais, é importante dizer que o trecho também ilustra que a percepção (humana)
da realidade é na verdade o reflexo (especular) de nossas relações sociais: não vemos o mun-
do tal como é, em sua real diversidade; nossa representação do real depende ou da função
sintetizadora de nossos conceitos ou da imagem especular que fazemos da realidade.
No que se refere a esta síntese promovida pela nossa apreensão conceitual, Peter Dews
(1996) descreve a tese nietzscheana de que a fixidez dos sistemas de conceito é sobreposta à
fluência do mundo do devir de modo a engendrar perspectivas parciais da realidade e, ao
mesmo tempo, impedir que se atinja uma compreensão inequívoca de sua totalidade. Para
Dews, o pensamento de Nietzsche revela que todo sentido e toda coerência são, na verdade,
projetados em um mundo que, em si, é desprovido de qualquer sentido. Esta tentativa de aco-
modar o mundo caótico do “real” dentro de conceitualizações resulta na redução da diversida-
de à identidade. No pensamento nietzschiano a natureza não conhece formas nem conceitos e
que todo o conceito é construído por um abandono arbitrário das diferenças individuais, uma
vez que uma nuvem, por exemplo, nunca é exatamente igual à outra: não há, na natureza, uma
“nuvem-conceito” que determinaria a forma, o tamanho, a cor que todas as outras deveriam
possuir. Nestes termos, Nietzsche parece fazer uma inversão do pensamento platônico que
sustenta que o nosso “real” é na verdade apenas imagem especular do mundo como ele apa-
renta ser, ou seja, nossa realidade é determinada por conceitos já pré-existentes. No livro X da
república, Platão reporta o diálogo de Sócrates com Glauco em que o primeiro fala do caráter
mimético da arte, no qual as coisas existentes no mundo humano são meras mímesis de seu
conceito; o real em sua essência é obra de Deus
4
e o que os homens criam são apenas imagens
dessas obras. De um modo ou de outro, o que nos interessa tanto na tese nietzscheana quanto
na socrático-platônica é que a realidade humana não é composta de coisas-em-si, seja por ela
ser amputada pela força dos conceitos, seja por ela ser simples imitação, não das coisas como
elas são, mas de como elas parecem ser.
Žižek (1996) também nos fala a respeito da incapacidade de produzirmos simboliza-
ções que abarquem de maneira completa e definitiva o real de modo que a parte do real não
simbolizada retorna sob forma de aparições espectrais. Žižek (1996) argumenta que foi Jac-
ques Derrida quem fez uso do termo espectro para se referir à pseudo-realidade que desfaz as
4
A idéia de Deus pode muito bem ser substituída pela idéia do Outro lacaniano de modo que o conceito seria
resultado de nossas interações que, em última instância, constituem este Outro cuja posição não é de ninguém e
que, por natureza, supera os indivíduos.
24
oposições clássicas entre realidade e ilusão e chega à conclusão de que é aí que se deve buscar
a matriz formal a partir da qual se obtém todas as formações ideológicas. Žižek, entretanto,
alerta que não devemos confundir espectro com ficção simbólica, ou seja, com o fato de que a
realidade (humana) em si tem estrutura ficcional que é construída simbolicamente. O es-
pectro é justamente o que a ficção simbólica foi incapaz de compreender, incapaz de compati-
bilizar. Esta incompatibilidade, todavia, os faz co-dependentes:
A realidade nunca é diretamente “ela mesma”; só se apresenta através de sua simbo-
lização incompleta/falha. As aparições espectrais emergem justamente nessa lacuna
que separa perenemente a realidade e o real, e em virtude da qual a realidade tem o
caráter de uma ficção (simbólica): o espectro corpo àquilo que escapa à realidade
(simbolicamente estruturada).
5
(ŽIŽEK, 1996, p. 26)
Diante desse argumento, a conclusão que Žižek nos apresenta é de que “o que o espec-
tro oculta não é a realidade, mas seu recalcamento primário, o X irrepresentável em cujo re-
calcamento fundamenta-se a própria realidade” (ibidem). O que nos interessa nas conclusões
de Žižek é que, mais importante que se ater à questão de falsidade e veracidade, devemos nos
concentrar exatamente no que está sendo recalcado, pois o autor afirma que mesmo que obte-
nhamos uma visão não distorcida da realidade, perderíamos de vista “o real do antagonismo
social” (ibidem p. 31).
Porém, será isto o suficiente para que possamos dispensar a noção de ideologia como
falsidade? Não haveria espaço dentro do conceito para que mantivéssemos a noção de falsida-
de sem por em risco sua validade epistemológica?
A princípio, poder-se-ia imaginar um aspecto sob o qual a noção de falsidade e misti-
ficação da ideologia poderia ser considerada. Este aspecto não diz respeito a uma visão de
“verdade” deformada pela ideologia e nem à concepção habermasiana que tem ideologia co-
mo comunicação sistematicamente distorcida por um poder interessado em manter sua domi-
nação. Sob este aspecto, seu caráter falso não estaria em seu interior, mas diria respeito a sua
origem. Ao definir ideologia, Chauí (2006), afirma que ela é o resultado da divisão do traba-
lho, em que a separação dos trabalhos manual e intelectual promoveu uma separação dos re-
sultados produzidos pelo último (as idéias) de seus produtores (a classe dominante) de modo a
dar autonomia a essas idéias, fazendo parecer que a realidade fosse determinada por elas,
quando na verdade o que ocorre é o contrário. Podemos assim concluir que quando se diz que
a ideologia é um falseamento ela não se opõe necessariamente à idéia de uma verdade absolu-
ta, mas sim a uma inversão na relação entre a produção das idéias e a realidade social. Žižek
(1996), ao tratar sobre este mesmo princípio, afirma que para Marx a ideologia emerge “com
5
Grifos nossos.
25
a divisão do trabalho e a cisão das classes, quando as idéias “erradas” perdem seu caráter “i-
mediato” e são “elaboradas” pelos intelectuais, a fim de servir (para legitimá-las) às relações
de dominação existentes” (ibidem, p. 24). Está claro, porém, que na argumentação de Žižek
(1996) temos o processo de mistificação em dois níveis: o primeiro quando ele reafirma a
posição marxista, como Chauí, que a ideologia é resultado da divisão da sociedade em classes
através da produção de idéias pelos que se ocupam do trabalho intelectual que resulta na
inversão sobre a qual Chauí se refere; o segundo é quando ele chama as idéias produzidas por
estes intelectuais de erradas”. Esta concepção de idéias “erradas”, na verdade, também está
presente na apresentação de Chauí pelo fato de se tratar de uma definição de ideologia de cu-
nho marxista. Entretanto, como havíamos afirmado anteriormente e é essa a mesma con-
clusão a que Žižek chega a questão da falsidade no conteúdo ideológico é extremamente
questionável, pois suporia a existência de uma verdade absoluta, e nos levaria, em última ins-
tância, a conceber tudo como ideológico. A conseqüência inevitável do inflacionamento do
conceito é que, se tudo é ideológico, o uso do conceito invalidar-se-ia do ponto de vista teóri-
co.
Embora a conclusão de Žižek tente tirar o foco da questão da veracidade/falsidade da
ideologia, privilegiando a questão da inversão da relação entre as idéias e a realidade social
o que não ocorre na apresentação de Chauí a nosso ver, esta tentativa não parece ser consis-
tente por três razões fundamentais. Em primeiro lugar, uma vez que admitimos que a ideolo-
gia seja determinada por uma base econômica ela, inevitavelmente, assume o aspecto de ilu-
são, de pura aparência, conforme a concepção gramsciana, apontada por Michèle Barrett
(1996). Em segundo lugar, mesmo que possamos desconsiderar o laço indelével entre esta
inversão e as falsas elucubrações ideológicas, esta perspectiva traz em si noção de que a ideo-
logia é apenas um “corpo de idéias” que refletem “o espírito da época” não levando em conta
sua existência material (ALTHUSSER, 1996 e DEBORD, 1997). A terceira razão é que acei-
tar a ideologia como um resultado da divisão do trabalho implica sua redução a um fenômeno
classista. Gostaríamos de desenvolver este argumento um pouco mais.
Em primeiro lugar, ao tomarmos a noção de classe, corremos o risco de falarmos de
burguesia e proletariado como se fossem realidades empíricas, unidades fechadas em si mes-
mas, além de termos a impressão que essas “unidades” são pré-dadas ao conflito de classes
(tese central do marxismo), coesas e livres de qualquer contradição. Abercrombie e outros
(1996), ao abordarem o reducionismo classista da concepção marxista de ideologia, locali-
zam-no como uma conseqüência de um dos dois grandes dilemas do marxismo. O primeiro
dilema é o discutido caráter de falsidade e o segundo, no qual se insere a redução da ideo-
26
logia como sendo um fenômeno de classes, diz respeito à autonomia da ideologia na visão
marxista. Os autores afirmam, em oposição ao argumento gramsciano de que a compreensão
escassa da ideologia no marxismo deve-se àqueles que a encararam como algo determinado
por uma base econômica, eles afirmam que quase todos os teóricos marxistas disseram que a
ideologia não é determinada pela economia, ao contrário sua existência é autônoma. Aber-
crombie e outros (1996) apontam três implicações para esta autonomia da ideologia. A pri-
meira é o fato de que a ideologia se rege pelas suas próprias leis de movimento, alheias às
determinações econômicas. A segunda é a eficácia que a ideologia deve ter para dar uma for-
ma particular à economia e a terceira é justamente que nem todas as ideologias são de classe.
Ter a ideologia como sendo um fenômeno de classes é resultado do reducionismo econômico
ao qual o marxismo tem, de fato, uma grande dificuldade em escapar, pois, conforme afirma
Jameson (1996, p. 284), falta ao marxismo uma filosofia política propriamente dita:
Decerto existe uma prática marxista na política, mas o pensamento político no mar-
xismo (...) refere-se exclusivamente à organização econômica da sociedade e ao mo-
do como as pessoas cooperam para organizar a produção. Isso significa que o socia-
lismo não é exatamente uma idéia política, ou, se preferirmos, que ele pressupõe o
fim de um certo pensamento político.
Porém, se é verdade que vários teóricos marxistas tinham a ideologia como autônoma
das determinações econômicas, em outras palavras, tinham-na como sendo determinada por
uma superestrutura que (unidirecionalmente) influenciava, dava forma ou sustentava as con-
dições de produção de uma base econômica, o mesmo não pode ser dito a respeito do próprio
Marx, pelo menos não na leitura realizada por Althusser. Althusser (1996) lembra que a con-
cepção de sociedade de Marx, estruturada em base e superestrutura, funciona como uma metá-
fora em que, como em um edifício, os andares superiores da superestrutura não podem erigir-
se senão sobre sua base. Assim defende que, no conceito marxista clássico, a superestrutura é,
em última instância, determinada pela base. Desse modo, nas palavras de Althusser uma
“autonomia relativa” por parte da superestrutura em relação à base, uma vez que ela tem uma
ação recíproca sobre a base ou infra-estrutura. Frederic Jameson (1996, p. 279 e 280) também
defende esta interdependência, ou autonomia relativa das duas esferas:
De certo modo, ela (a ideologia) é gerada pela coisa em si, como sua pós imagem
necessária: de algum modo, as duas dimensões tem que ser registradas juntas, tanto
em sua identidade quanto em sua diferença. Elas são (...) semiautônomas (...) o con-
ceito marxista de ideologia sempre pretendeu respeitar e repetir e exercitar o para-
doxo da mera semi-autonomia do conceito ideológico.
27
Embora continue a reduzir a ideologia a um fenômeno classista
6
, Althusser esforça-se
ainda para eliminar a impressão de que a ideologia dominante se realize livre de conflitos nos
aparelhos ideológicos do estado (AIE), uma vez que esses são o local e o meio desta domina-
ção como coloca Pêcheux (1996, p. 144). A esta altura, é fácil perceber que a posição de Al-
thusser é semelhante à tese gramsciana de que a ideologia é um campo de luta (BARRET,
1996, p. 237) e, embora se possa admitir que Gramsci não seja claro quando se refere a uma
ideologia orgânica (ibidem), podemos também compará-la à concepção althusseriana de ideo-
logia como práticas vivenciadas. Eagleton, ao se referir sobre a tese de Althusser, afirma que
na abordagem althusseriana a ideologia é menos uma questão de falsidade do que crenças que
tendem a reproduzir os meios de produção existentes:
Para Althusser, a ideologia de fato representa mas aquilo que ela representa é o
modo como eu “vivencio” minhas relações com o conjunto da sociedade, o que não
pode ser considerado uma questão de verdade ou falsidade. A ideologia, para Al-
thusser, é uma organização específica de práticas significantes que vão construir os
seres humanos como sujeitos sociais e que produzem as relações vivenciadas medi-
ante as quais tais sujeitos vinculam-se às relações de produção dominantes em uma
sociedade. (Eagleton 1997, p. 30)
Assim, segundo Eagleton, na concepção althusseriana, não é relevante se a ideologia
expressa algo verdadeiro ou falso, o que importa é que ela revela nossas relações com o todo
social. Desse modo, embora possa aparentar descrever uma realidade, o discurso ideológico
teria um caráter muito mais performativo do que descritivo ou constatativo de uma determi-
nada realidade. Chauí (2006, p. 84), embora tenha a ideologia como falsidade, corrobora com
esta visão ao afirmar que “não se trata de supor que os dominantes se reúnam e decidam fazer
uma ideologia, pois esta seria, então, uma pura maquinação diabólica dos poderosos” e, mais
adiante ela reforça a tese althusseriana dizendo que “ideologia resulta da prática social” (ibi-
dem). Percebemos, assim, que não podemos considerar apenas a inversão da relação entre
“idéias” e realidade social como sendo o aspecto de falsidade no conceito de ideologia.
Embora reconhecer a inversão como sendo o aspecto de falsidade que o conceito de
ideologia comporta seja problemático, acreditamos haver outro aspecto de falsidade mais fun-
damental e que não apresenta tantos problemas epistemológicos quanto a questão da inversão.
A ideologia pode de fato ser considerada como falsa na medida em que se faz parecer como a
única forma que podemos viver, a forma exclusiva pela qual podemos nos relacionar com o
todo social, em suma, faz-se crer como a única possibilidade histórica, relegando todas as
alternativas como inconcebíveis e utópicas. Aqui podemos perceber que realmente pode-se
6
Podemos perceber isso claramente ao conceber ideologia como ideologia geral e as ideologias particulares,
sendo que as últimas, independentemente de sua forma (política, ética, religiosa), em última análise, se expres-
sam como posições de classe.
28
afirmar que a ideologia é sim falsa e mistificadora. Conforme Marcuse (1973, p. 125) “o que
não é, pode ser verdadeiro”. A ideologia não apenas se impõe como a única forma aceitável,
possível, coerente e necessariamente real de vida – obnubilando toda e qualquer possibilidade
histórica mas também se coloca no caminho da emancipação humana, tornando possível a
exploração do homem pelo homem. Assim, não podemos ignorar que a ideologia favorece
uma classe. Com efeito, Althusser (1996) não ignora isso. Fica claro que, apesar de a ideolo-
gia dominante ser, em certa medida, contraditória em si mesma (tendo em vista que a burgue-
sia não é uma unidade homogênea e fechada) e não se realizar sem conflitos e oposições, é
através dos AIE que a ideologia dominante se torna dominante e garante, assim, a reprodução
do sistema de produção capitalista.
Após esta discussão, acreditamos não apenas termos defendido o uso do termo “ideo-
logia”, mas também termos aberto caminho para que possamos colocar o que temos em mente
quando nos referirmos ao conceito. Assim, ideologia aqui é entendida não como um corpo de
idéias ou elucubrações realizado a partir de uma superestrutura para dar forma ou manter uma
base econômica, nem o seu contrário, ou seja, como uma ilusão necessária proveniente das
relações de uma base econômica. Entenderemos a ideologia como determinada, simultanea-
mente pela base econômica e pela superestrutura, a partir de uma relação de interdependência
de ambas (JAMESON, 1996 e ALTHUSSER, 1996). Ideologia também não deverá ser enten-
dida como tendo uma existência homogênea, nem como sendo comunicação distorcida ou
proposições de veracidade questionável. Em nosso entendimento, falsidade e mistificação são
de fato componentes da ideologia, mas somente na medida em que esta se coloca, de maneira
falsa, como única possibilidade, funcionando como força integradora. Além deste aspecto
bastante particular de falsidade, entenderemos aqui a ideologia como idéias e práticas que
impeçam a emancipação humana e mantenham uma realidade social falsa, por não ser nem a
única possível e nem a melhor. Por último, conforme apontamos, a ideologia tende a es-
conder as contradições reais de nossa sociedade (ŽIŽEK, 1996) fazendo com que este estado
de coisas, na verdade histórico, pareça natural (BARTHES, 1993).
Naturalização do que é histórico, mistificação (no sentido de se fazer crer como única
possibilidade de organização social), ocultação das contradições da realidade social, obstáculo
à emancipação e à realização plena das capacidades humanas; tudo isto é, em poucas palavras,
“ideologia”.
2.2 A ideologia no capitalismo tardio
29
Antes que se diga qualquer coisa a respeito da ideologia no capitalismo tardio, é ne-
cessário que se teçam alguns comentários com relação a este último termo; é necessário que
se considerem quais são as características principais do capitalismo tardio. Na verdade, enten-
demos que ao nos atermos às suas características, a questão da ideologia deverá entrar na pau-
ta de discussão como uma conseqüência necessária e inevitável, uma vez que o fenômeno
mesmo da ideologia se faz presente de forma constitutiva.
Para começarmos, devemos nos lembrar da posição gramsciana que defende a concep-
ção de que o capitalismo não é apenas um sistema de produção; muito mais do que isso, ele
envolve toda uma forma de vida e organização sociais. Esta concepção está, é claro, longe do
reducionismo economicista tão freqüentemente encontrado nas análises marxistas contra o
qual, com efeito, Gramsci sempre se colocou. Entretanto, deve-se ser dito que as formas de
vida do capitalismo presentes nas superestruturas são de extrema importância por conforma-
rem a cultura e a sociedade civil com as necessidades do capital. Todavia, conforme Jameson
(2006), após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade capitalista entra em uma nova fase, co-
nhecida, dente outras maneiras, como sociedade pós-industrial, capitalismo multinacional,
sociedade de consumo, sociedade do espetáculo, e assim por diante. E é este novo momento
da sociedade capitalista ocidental que chamaremos de capitalismo tardio.
Devemos atentar para o fato de que o surgimento de uma nova fase não implica que
houve uma derrota da fase anterior; em outras palavras, ao se dizer que passamos de uma era
industrial para uma pós-industrial, não significa que a primeira tenha sido superada pelo seu
desaparecimento, ao contrário, a necessidade teórica de um novo conceito surge exatamente
do fato de seu projeto de expansão ter alcançado o limite máximo, nada mais lhe escapa: sua
superação vem de sua vitória. Sobre isso, Jameson (2006, p. 96) afirma que:
Nunca houve um momento na história do capitalismo em que ele gozasse de maior
campo de ação e espaço para manobra; todas as forças ameaçadoras que ele havia
gerado contra si mesmo no passado os movimentos trabalhistas, as rebeliões, os
partidos socialistas de massa e até mesmo os próprios Estados socialistas parecem
hoje em total desordem quando não, de uma maneira ou de outra, efetivamente neu-
tralizadas, visto que o capital global desse momento parece capaz de seguir a sua
própria natureza e inclinações.
De fato, o fim da Guerra Fria, a derrocada do regime comunista soviético, a abertura
do mercado da China “comunista” e sua inserção no mercado mundial, o isolamento e as difi-
culdades de Cuba – o único Estado socialista na América Latina – trouxe a concepção dos fins
da história e da ideologia. É claro que a noção de fim da história não deve ser rechaçada com
o ingênuo argumento de que nada parou, os eventos históricos continuarão a ocorrer, novas
30
guerras eclodirão, novas políticas econômicas internas e externas continuarão sendo ado-
tadas pelos governos nacionais, etc. Entretanto, devemos nos lembrar que a concepção de fim
da história está ligada à teleologia presente na visão marxista (só que neste caso com o resul-
tado inverso, pois é o capitalismo e o mercado mundial e não o comunismo que são tidos
como a forma derradeira da história). Além da teleologia marxista, a concepção de fim da
história está também ligada à dialética materialista (ou mesmo hegeliana) suspensa no capita-
lismo tardio, em que a (antiga) oposição senhor e escravo, burguês e proletário funciona(va)
como a força motriz da história. Pode-se imaginar que a perspectiva do fim da história, do
triunfo do capitalismo como única forma possível de organização e relação social, pode ter
como conseqüência o fim da ideologia, pois se o capitalismo é de fato a forma vitoriosa e,
portanto, o melhor e mais “natural” meio de se organizar a sociedade e não há nenhuma alter-
nativa a se escolher, logo não qualquer necessidade de uma ideologia que tenha por função
assegurar sua reprodução. De fato, esta é a primeira dificuldade que encontraremos em nosso
percurso à compreensão da ideologia na sociedade pós-industrial, contudo, deixaremos esta
discussão para depois. O que nos interessa neste momento é que, ao nos depararmos com os
chamados fins da história e da ideologia, é que somos levados a reconhecer que estamos, de
fato, em um capitalismo avançado, em uma era pós-industrial, estamos, efetivamente, no capi-
talismo tardio.
Jameson (2006) afirma também que se pode chegar à conclusão acerca deste novo
momento do capitalismo seguindo outro caminho. Para ele, tanto marxistas quanto não-
marxistas perceberam o surgimento de uma nova sociedade após os anos da Segunda Guerra
Mundial e, dentre os aspectos sobre os quais se pode pensar a ruptura com a antiga sociedade
do pré-guerra na qual, seguindo o argumento de Jameson, o modernismo ainda desempe-
nhava o papel de uma força negativa e marginal e subversiva – podemos citar:
Novos tipos de consumo, a obsolescência planejada, um ritmo ainda mais rápido de
mudanças na moda e no estilo, a penetração da propaganda, um nível de inserção na
sociedade, até então sem paralelo, da televisão e da mídia em geral, a substituição da
velha tensão entre a cidade e o campo, o centro e a província, pela tensão entre o su-
búrbio e a padronização universal, o crescimento de grandes estradas de alta veloci-
dade e a chegada da cultura do automóvel. (JAMESON, 2006, p. 43)
Com efeito, em sua obra, Jameson liga o modernismo à ordem capitalista estabelecida
no período pré-guerra, o capitalismo tardio é ligado ao pós-modernismo. Para Jameson a
modernidade é o momento em que o homem deixa de ser a medida; o corpo individual não é
mais importante em seus próprios termos (JAMESON, 2006, p. 300). Assim a modernidade,
pensada cientificamente, é o momento cosmológico heliocêntrico de Copérnico. Pensando
31
tecnologicamente, é o momento em que a ferramenta – vista como extensão do corpo do arte-
são – é substituída pela máquina, à qual o corpo individual é apenas um anexo. Finalmente, ao
tomarmos a questão da modernidade a partir de um ponto de vista econômico, ela se no
momento em que o comércio, tido como uma atividade essencialmente humana, é transcendi-
do em direção ao sistema capitalista, no qual o dinheiro e os ciclos econômicos têm sua pró-
pria lógica alheias ao controle individual.
Entretanto, o período moderno é revolucionário, ele guarda em si sua negatividade na
produção artística. Conforme Jameson (2006) e Marcuse (1973), a grande arte do alto moder-
nismo era essencialmente subversiva, ela sempre se colocava em desconformidade com o sis-
tema: ela era feia, destoante, não combinava com a decoração vitoriana, era agressiva e, por
isso mesmo, sublime. Para Herbert Marcuse (1973) ela continha uma bidimensionalidade por
apontar para uma realidade outra, que transcendia o imediatismo da vida cotidiana conforma-
da pelo establishment. A avant-guard modernista fazia com que fosse possível conceber múl-
tiplas possibilidades, em outras palavras, lutava por trazer a heterogeneidade em um mundo
dirigido por um sistema cujo projeto sempre foi realizar a homogeneidade e a padronização.
Se o período moderno comporta elementos de negação às formas de vida estabelecidas
pelo capitalismo, o mesmo não poderá ser dito a respeito do pós-modernismo que funciona
como “transcrição da lógica cultural do capitalismo tardio” (Anderson, 2006, p. 15). O mo-
mento pós-moderno é a confirmação da vitória do establishment capitalista que foi capaz de
incorporar tudo à sua lógica, até mesmo os movimentos revolucionários do alto modernismo;
a arte moderna, que no período anterior incomodava, invadiu os museus e universidades:
Esses estilos, primeiramente subversivos e polêmicos o expressionismo abstrato, a
grande poesia modernista de Pound, Eliot ou Wallace Stevens, o International Style
(Le Corbusier, Gropius, Mies van der Rohe), Stravinski, Joyce, Proust e Mann -, re-
cebidos por nossos avós como escandalosos e chocantes, são tomados agora, pela
geração que desponta na década de 1960, como o sistema estabelecido e o inimigo
mortos, asfixiados, canônicos, esses são os monumentos reificados que devem ser
destruídos para que se faça qualquer coisa nova. (Jameson, 2006, p. 18)
O mesmo pode ser dito do movimento modernista brasileiro, tanto em sua primeira
quanto em sua fase tardia Villa Lobos, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de
Andrade, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, entre outros, perderam sua força subversiva ao
serem aceitos e, mais ainda, ao se tornarem cânones da academia e esta “qualquer coisa no-
va” a qual Jameson se refere, no entanto, não está sendo feita. O pós-modernismo, como rea-
ção às formas estabelecidas do alto modernismo, tem sido apenas pastiche (JAMESON,
2006). Neste ponto, relembrando a discussão feita a pouco a respeito do fim da ideologia e do
fim da história, podemos acrescentar a esta lista de fins” o fim da arte. A morte da arte en-
32
quanto tal pode ser pensada nos termos colocados por Marcuse (1973), ou seja, sua dessubli-
mação dentro de uma sociedade industrial unidimensional, cuja vocação necessária é a produ-
ção do dessublime.
Na previsão hegeliana de fim da arte, esta passaria pelos estágios clássico e romântico
em direção à supressão da estética, “a autotranscendência da estética em direção a algo outro,
a algo supostamente melhor que o seu espelho escurecido e figurativo ao esplendor e à
transparência da própria noção utópica de filosofia de Hegel” (JAMESON, 2006, p. 132).
Dessa forma, na filosofia hegeliana, a arte encontraria seu final na sua superação pela filosofi-
a, que na verdade, não viria a ocorrer. Jameson (2006) afirma que Hegel, ao invés de ser o
precursor de uma era filosófica, foi o último filósofo da tradição pelo fato de ter sido tomado
e reformulado pelo marxismo como um tipo de pós-filosofia e também pelo fato de ter exerci-
do a filosofia de um modo tão completo que toda a filosofia posterior passou a ser identificada
muito mais como teoria. Com efeito, este “fim” da filosofia, sua transformação em teoria, não
ocorre pelo fato de ela ter tornado-se um nada, ao contrário, seu “ fim” deve-se à sua difusão e
expansão ao fato de não ser mais uma disciplina independente e fechada sobre si mesma
por todos os aspectos da vida.
7
Assim, de uma forma ou de outra, a profecia” hegeliana em-
bora pudesse estar certa com relação ao fim da arte, se enganou com relação à sua superação
pela filosofia. Na verdade, este fim acometerá apenas um tipo de arte, já que:
Um tipo novo e diferente de arte apareceu repentinamente, depois do fim daquele
velho tipo, para tomar o lugar da filosofia e para usurpar todas as pretensões filosó-
ficas quanto ao Absoluto, para ser o “mais alto modo no qual a verdade consegue vir
a ser”. Essa foi a arte que chamamos de modernismo. (JAMESON, 2006, p.141)
Cabe aqui colocar a distinção entre dois tipos de arte: o Belo e o Sublime. A essência
da arte moderna é o Sublime, sua existência enquanto arte transcende “o ser arte”. Assim, a
previsão hegeliana de fim da arte é na verdade o fim da arte do Belo, desse modo é o “Belo
que chega ao fim (...) mas o que toma seu lugar, ao final, não é a filosofia, como pensou He-
gel, mas sim o próprio Sublime, ou em outras palavras, a estética do moderno ou, caso se pre-
fira, do transestético” (JAMESON, 2006, p. 142).
A idéia é circular, pois ser Sublime é o que empresta à arte moderna seu poder negati-
vo e é esse mesmo poder que lhe confere a sublimidade; e é justamente esta negatividade que
é perdida, no pós-modernismo ou capitalismo tardio, caso queira através do processo de
dessublimação identificado por Marcuse.
7
Outro “ fim” da filosofia pode também ser visto em Adorno, para quem a filosofia é superado pelo positivismo.
33
Não se pode negar que o peso dos anos tenha contribuído para que a grande arte do al-
to modernismo perdesse seu caráter subversivo, entretanto o passar do tempo não deve ser
tido como o fator preponderante na perda de sua agudeza contestadora. O pós-modernismo é
contemporâneo à sociedade de massa, ou ainda mais bem colocado, ele se torna possível
com a expansão e o estabelecimento dela. Desta forma, não é (somente) por ter envelhecido
que a arte de Picasso não choca mais, muito menos isto consegue explicar o caráter de pasti-
che inócuo, fútil e positivo da arte pós-moderna, a liquidação de sua bidimensionalidade: sua
dessublimação “não ocorre por meio da negação e rejeição dos “valores culturais”, mas por
sua incorporação total na ordem estabelecida, pela sua reprodução exibição em escala maciça”
(MARCUSE, 1973, p. 70).
Com relação à reprodução maciça da obra de arte, Walter Benjamin nos anos 30 a-
firmava que “a preponderância absoluta de seu valor expositivo lhe empresta funções inteira-
mente novas, entre as quais pode ocorrer que aquela da qual temos consciência a função
artística – apareça depois como acessória” (BENJAMIN, 2000, p. 232). Com efeito, para Ben-
jamin, o resultado da reprodução em massa não é apenas o fato de transformar a função artís-
tica da obra de arte em um acessório, mas a conseqüência última, não obstante a possibilidade
de acesso a um público até então privado de seu conhecimento, é a perda de sua aura. No caso
do cinema, essa supressão da aura ocasiona a construção artificial da ‘personalidade’ do
ator: o culto da ‘estrela’, que favorece o capitalismo dos produtores cinematográficos, protege
essa magia da personalidade, que há muito já está reduzida ao encanto podre do valor mercan-
til” (ibidem, p. 239). Para reforçar este ponto, cabe trazer o argumento brechtiano apontado
por Benjamin (ibidem) de que a partir do momento que a obra de arte passa a ser mercadoria,
a noção de obra de arte deve ser abandonada: novamente temos a questão do fim da arte, fim
este trazido não pela mercantilização pós-modernista do Belo (que agora é apenas um a-
dorno à realidade), mas também pela conquista e dessublimização do Sublime:
As críticas neoconservadoras à crítica esquerdista da cultura de massa ridicularizam
o protesto contra o uso de Bach como música de fundo na cozinha, contra Platão e
Hegel, Shelley e Baudelaire, Marx e Freud na banca de jornais. Insistem os neocon-
servadores em que deve ser reconhecido o fato de os clássicos terem saído do mau-
soléu, voltando à vida, em que o povo está sendo mais educado. É verdade, mas vol-
tando à vida como clássicos, eles voltam à vida diferentes de si mesmos; são priva-
dos de sua forca antagônica (...). O intento e a função dessas obras foram, assim,
fundamentalmente modificados. (MARCUSE, 1973, p. 76)
De fato, a função é fundamentalmente outra: antes elas se opunham, hoje elas garan-
tem o sistema. O moderno sucumbe à sua própria proliferação:
Onde apenas o moderno existe, o “moderno” deve agora ser rebatizado de pós-
moderno (já que o que chamamos de moderno é a conseqüência da modernização
34
incompleta e deve, necessariamente, definir-se em contraposição a um residual não-
moderno, que não mais vigora na pós-modernidade ou melhor, cuja ausência defi-
ne esta última) (JAMESON, 2006, p. 107 e 108)
Essa crise da arte é apenas uma parcela da crise geral da oposição à sociedade estabe-
lecida (MARCUSE, 2000), pois o capitalismo contemporâneo da sociedade pós-industrial
consegue incorporar com facilidade “todas as atividades não-conformistas e que, em virtude
desse mesmo fato, invalida a arte como comunicação e representação de um mundo outro que
o do establishment” (MARCUSE, 2000, p. 260), sendo que mesmo o surrealismo que se pre-
tendia não sucumbir ao establishment, muito se tornou uma mercadoria vendável” (ibi-
dem, p. 261).
Com efeito, nossa sociedade é pós-industrial não pelo fato de as características da so-
ciedade industrial terem desaparecido, mas, ao contrário, somos sociedade pós-industrial jus-
tamente pelo fato de o projeto industrial ter se completado; nada lhe escapa (escapou). É neste
sentido que se pode dizer que a sociedade industrial de Marcuse, a sociedade da indústria cul-
tural de Adorno e Horkheimer é diferente da sociedade pós-moderna de Jameson, da socieda-
de do espetáculo de Guy Debord: sua diferença não está no fato de que as características da
sociedade do período anterior tenham deixado de existir, mas sim no fato de que hoje as vi-
vemos plenamente.
Não vemos como concordar com John B. Thompson que duvida “que alguma coisa se
possa ainda resgatar hoje dos escritos mais antigos dos teóricos da Escola de Frankfurt, como
Horkheimer, Adorno e Marcuse” pelo fato de sua crítica ser “muito negativa e se basear em
conceitos questionáveis sobre as sociedades modernas e suas tendências de desenvolvimento”
(THOMPSON, 1998, p. 16). De fato, fica a pergunta: como havemos de concordar com
Thompson se ele não se ao trabalho de especificar quais são esses conceitos questionáveis
sobre as sociedades modernas e suas tendências de desenvolvimento? Estaria ele se referindo,
por exemplo, à afirmação de Marcuse de que “o aparato produtivo tende a tornar-se totalitá-
rio” (MARCUSE, 1973, p. 18)
8
? Ora, não teria esta tendência se confirmado com a pós-
modernidade?
Por certo, algumas das críticas mais severas a chamada indústria cultural e à sociedade
industrial precisam ser revistas, que, na verdade, o próprio Adorno de alguns anos depois
do célebre A indústria cultural: O iluminismo como mistificação de massa reconhece que se
pode utilizar a televisão para emancipação, entretanto é preciso saber ver televisão (ADOR-
NO, 2003), contudo o essencial (infelizmente) é ainda válido. A possibilidade de se reconhe-
8
Grifos nossos.
35
cer que entramos em uma nova era a do pós-modernismo, ou capitalismo pós-industrial ou
tardio não invalida a teoria crítica dos escritos mais antigos do grupo de Frankfurt, pelo
contrário, os faz mais necessários. Se a sociedade industrial tinha o totalitarismo como proje-
to, a sociedade pós-industrial o tem como vitória. Tudo é produzido em escala industrial, para
as massas: nossa música, nossa arte, nossas roupas, nossa comida (não apenas os enlatados e
os fast-foods, mas até nossas frutas e verduras o produtos do agronegócio industrial)
não existe nada na cultura e na natureza, que não tenha sido transformado e poluído segundo
os meios e os interesses da indústria moderna” (DEBORD, 1997, p. 173).
É exatamente este totalitarismo que penetra em todos os aspectos da vida social, é exa-
tamente desculpem a tautologia, mas é realmente isso que queremos dizer este totalitaris-
mo total que torna difícil conceber como pode haver oposição a essa sociedade que incorpora
e transforma a oposição em mercadoria; mesmo as mais ofensivas formas de arte (como o
punk rock e filmes com material sexualmente explícito) são, hoje, aceitas sem muito espanto e
são, do mesmo modo, comercialmente bem sucedidas (JAMESON, 2006); ou, como colocado
por Marcuse (2000, p. 260), como de se fazer oposição “a uma sociedade que, afinal de
contas, entrega suas mercadorias”? Com relação à obliteração da oposição, em outro momen-
to Marcuse diz que:
A sociedade industrial desenvolvida confronta a crítica com uma situação que parece
privá-la de suas próprias bases. O progresso técnico, levado a todo um sistema de
dominação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que parece reconciliar as
forcas que se opõem ao sistema e rejeitar ou refutar todo protesto em nome das per-
ceptivas históricas de liberdade de labuta e de dominação. (MARCUSE, 1973, p. 15
e 16)
Diante desta inexistência ou ineficiência de oposição à sociedade estabelecida, pode-se
chegar à conclusão de que não há oposição de fato, pois, afinal de contas, este é o único modo
de se viver. Ademais, como podemos fazer oposição se esta sociedade tem, de fato, melhora-
do padrão de vida para “todos”? Mas a pergunta fundamental não é esta. O que devemos per-
guntar é: Qual o preço de nossas vidas confortáveis? Qual é o preço de se substituir os compu-
tadores, hoje ultra-modernos, a cada dois anos quando estarão ultrapassados ? Qual o preço
para se ter a conveniência de ter um carro mais possante, mesmo que jamais toda sua potência
seja utilizada? Qual o preço que se paga trocar a velha televisão por uma moderníssima TV de
plasma? Com certeza a resposta está muito além das etiquetas de preço de qualquer uma des-
tas mercadorias: o planeta não agüenta tanta industrialização, tanto consumo e tanta descarta-
bilidade. De fato, ninguém parece mais levar a sério qualquer que seja a alternativa ao capita-
lismo tardio, mesmo com o fantasma de um futuro (não distante) sem água potável em meio
36
ao lixo restos do consumo dos anos anteriores –, com um clima cada vez mais hostil devido
à crescente industrialização e consumo. “Parece-nos mais fácil hoje imaginar a completa dete-
rioração da terra e da natureza do que a quebra do capitalismo tardio, mesmo que isso se deva
a alguma debilidade de nossas imaginações” (JAMESON, 2006, p. 91).
Esta impossibilidade de se conceber outro sistema, mesmo diante das previsões de um
futuro catastrófico, e a possibilidade de se aceitar este sistema como realidade inquestionável,
relegando tudo mais à condição de utopia sem sentido, revelam-se como a ideologia por de
trás do capitalismo tardio. Esta ideologia se confirma na afirmação (pela qual começamos e a
qual agora retornamos) de que o capitalismo em sua fase contemporânea não necessita mais
de qualquer ideologia e novamente temos as famosas teses dos fins (da ideologia, da histó-
ria, etc.).
A ideologia é uma questão de significado e para funcionar o sistema depende muito
menos de significado do que de sua própria gica sistêmica, (EAGLETON, 1997). Esta falta
de significado é o que o sistema quer que acreditemos, mas a ideologia está lá: como nos a-
ponta Pêcheux, a ideologia, como o inconsciente, opera ocultando sua existência e produz
“uma rede de verdades ‘subjetivas’ evidentes, com o ‘subjetivas’ significando, aqui, não ‘que
afetam o sujeito’, mas ‘em que o constitui’ (PÊCHEUX, 1996, p. 148). Além disso, como
nos aponta Eagleton (1997), qualquer sociedade que abolisse completamente o significado,
enveredando por um caminho niilista, estaria alimentando a ruptura social em massa.
No começo do século XX, Max Weber (2006) já ligara a ideologia ao estabelecimento
do capitalismo ao relacionar o ascetismo cristão, presente na ética protestante de trabalho e
acúmulo de capital como forma de certificação de se estar na da graça divina (uma vez que
a natureza e os desígnios de Deus, no protestantismo, transcendiam a compreensão humana) –
ao espírito do capitalismo:
A avaliação religiosa do trabalho sistemático, incansável e contínuo na vocação se-
cular como o mais elevado meio de ascetismo e, ao mesmo tempo, a mais segura e
evidente prova de redenção e genuína deve ter sido a mais poderosa alavanca
concebível para a expansão dessa atitude diante da vida, que chamamos aqui de es-
pírito do capitalismo. (WEBER, 2006, p. 128 e 129)
Entretanto, Weber conclui que este sentido ideológico serviu apenas como mola pro-
pulsora do capitalismo, pois uma vez vitorioso, o capitalismo “repousa em fundamentos me-
cânicos” e não precisa mais do suporte religioso a partir do qual teria garantido seu sucesso
(ibidem, p. 135). Weber não especifica quais seriam esses “fundamentos mecânicos”, todavia,
diante de nossa presente discussão, eles não nos parecem (sejam quais forem) suficientes para
manter o sistema coeso e operando.
37
Insistimos bastante no fato de que a não-oposição é uma característica ideológica fun-
damental e constitutiva do capitalismo tardio. E o que de falácia ideológica nisso? Sua fal-
sidade consiste exatamente em vangloriar-se de ser o único modo racional de vida e fazer com
que qualquer idéia de oposição seja ridícula ou incorporada ao sistema – de modo que o que, a
princípio era subversivo, passa a colaborar para sua realidade totalitária: “a integração de for-
cas sociais antes negativas e transcendentes com o sistema estabelecido parece criar uma nova
estrutura social” (MARCUSE, 1973, p. 143). De fato esta nova estrutura é a sociedade pós-
industrial assentada sobre o capitalismo tardio, em que o pós-modernismo é a pós-imagem
necessária do capitalismo (JAMESON, 2006, p. 85).
Gostaríamos de colocar algumas outras características do capitalismo tardio, contudo,
sentimos a necessidade de falarmos um pouco mais sobre a afirmação acima de que sua falsi-
dade está no fato de que este sistema se auto-intitula racional. Marcuse (1973, p. 29) diz que
um dos aspectos mais perturbadores da civilização industrial é o caráter racional de sua irra-
cionalidade:
Sua produtividade e eficiência, sua capacidade para aumentar e disseminar comodi-
dades, para transformar o resíduo em necessidade e a destruição em construção, o
grau com que essa civilização transforma o mundo objetivo numa extensão da mente
e do corpo humanos tornam questionável a própria noção de alienação. As criaturas
se reconhecem em suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, hi-fi,
casa em patamares, utensílios de cozinha. (ibidem)
O que leva os indivíduos a identificarem-se com mercadorias? Muito provavelmente
podemos fundamentar essa resposta em outra característica da sociedade pós-moderna, a qual
Jameson (2006, p. 23) chama de a morte do sujeito. Com efeito, Jameson a identifica com a
morte do individualismo enquanto tal, ligando este individualismo à estética modernista:
Os grandes modernistas foram, como dissemos, definidos pela invenção de um estilo
pessoal, particular, tão inconfundível quanto a nossa impressão digital, tão incompa-
rável quanto o nosso próprio corpo. Mas isso significa que a estética modernista é,
de certo modo, organicamente ligada à concepção de um eu único e de uma identi-
dade particular, de uma personalidade singular e de uma individualidade, da qual se
espera que gere sua visão própria e singular do mundo e que construa o seu próprio
estilo, singular e inconfundível. (ibidem, p. 23 e 24)
Todavia este sujeito individual burguês, se é que alguma vez existiu (ibidem, p. 24),
não existe mais. Stuart Hall (2002) argumenta que as velhas identidades que davam estabili-
dade ao mundo social estão em declínio e seu lugar está sendo ocupado por um indivíduo
fragmentado. Hall coloca três concepções de sujeito, a saber, o sujeito do iluminismo, o sujei-
to sociológico e o sujeito pós-moderno. O primeiro era baseado em um individuo totalmente
centrado e unificado, dotado de capacidades de razão, consciência e ação. a segunda con-
cepção era baseada na crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que o
38
núcleo interior do sujeito não era auto-suficiente, mas sim formado na relação com outras
pessoas. Nesta concepção o sujeito ainda possui um núcleo interior que Hall chama de eu
real”, entretanto este, no seu processo de formação, é modificado em um “diálogo contínuo
com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL,
2002, p. 11). o sujeito pós-moderno é composto de várias identidades, muitas vezes contra-
ditórias entre si ou não-resolvidas: para Hall a identidade torna-se uma celebração móvel, de
forma que a “identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”
(HALL, 2002, p. 13). Hall liga esta volubilidade do sujeito tanto ao processo de globalização
quanto às rápidas mudanças constantes das sociedades pós-modernas.
Com efeito, é este sujeito centrado a que se refere Lacan em seu O estádio do espelho
como formador da função do Eu (LACAN, 1996) e é este sujeito lacaniano que Althusser tem
em mente ao dizer que a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos (ALTHUSSER,
1996), ou seja, aquele indivíduo (sempre já-sujeito) que, ao chamado da ideologia, responde
afirmativa e inequivocamente: é comigo que estão falando. Também é este Eu lacaniano que
Althusser (1996) usa ao dizer que “a estrutura de qualquer ideologia, ao interpelar os indiví-
duos como sujeitos em nome de um Sujeito Único, é especular, ou seja, uma estrutura em
espelho” (ALTHUSSER, 1996, p. 137).
9
Este não é o sujeito pós-moderno.
Dessa forma poder-se-ia supor que esta fragmentação leva à identificação com a mer-
cadoria sobre a qual nos referimos acima? Provavelmente sim, mas apenas em certa medida:
este processo depende de muito mais do que isto. Adorno e Horkheimer (1985) argumentam
que o animismo dera alma às coisas e o industrialismo reificou as almas. Percebemos uma
inversão dialética entre sujeitos e objetos, ativos e passivos, de forma que o indivíduo, cuja
alma fora reificada, nada pode contra o conjunto da sociedade estabelecida. Lembramo-nos
então da observação de Marcuse de que:
As aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensura-
velmente maiores do que nunca antes o que significa que o alcance da dominação
da sociedade sobre o indivíduo é incomensuravelmente maior do que nunca dantes.
A nossa sociedade se distingue por conquistar as forcas sociais centrífugas mais pela
Tecnologia do que pelo Terror, com dúplice base numa eficiência esmagadora e num
padrão de vida crescente. (MARCUSE, 1973, p. 14)
Desse modo, que importa a estes indivíduos o fato de serem alienados de sua própria
identidade e se reconhecerem nos objetos que possuem conquanto tenham uma vida confortá-
9
Isto de fato poderia causar um segundo problema teórico em nossa argumentação caso tivéssemos adotado a
posição althusseriana de sujeito (unificado), pois se compreendemos que o sujeito pós-moderno tem uma identi-
dade em mosaico como poderia ele então responder ao chamado de um Eu especular lacaniano centrado? Mas,
para nós a ideologia em si é fragmentada e contraditória, sua existência não é homogênea, não obstante ela fun-
ciona e privilegia parte da sociedade.
39
vel ou que tenham a “liberdade” de escolher dentre as marcas A, B ou C de um novo modelo
de automóvel? Sem dúvida a questão de uma vida com as conveniências que a tecnologia po-
de proporcionar tem seu peso, entretanto duas outras considerações importantes com rela-
ção à pergunta do por que as pessoas se deixam seduzir pelas mercadorias que a indústria po-
de-lhes entregar.
Em primeiro lugar, a sociedade, principalmente através da publicidade e da propa-
ganda criam novas “ necessidades” nos indivíduos, de modo que eles nunca são de fato livres.
Com efeito, a tecnologia empregada na produção poderia ter como resultado a redução da
labuta, mas por que não o faz? O trabalho e o sofrimento não são reduzidos justamente pelo
fato de que o indivíduo tenta buscar a satisfação dessas falsas” necessidades superimpostas
por interesses particulares e, embora a satisfação dessas necessidades seja momentaneamente
agradável, ela não garante sua felicidade, aliás, esta última não chega a ser o que se busca
oferecer. A felicidade nunca pode ser alcançada, pois, se felicidade é o sentimento de uma
vida completa, ela não deixaria espaço para que se criassem novas necessidades a serem satis-
feitas, desse modo, “a satisfação denuncia-se como impostura e cada mentira que publicidade
conta é, ao mesmo tempo, a confissão da mentira anterior” (DEBORD, 1997, p. 47 e 48).
A segunda consideração diz respeito ao status que determinadas mercadorias conferem
a quem quer que as possua. Se para Weber, o acumulo de capital dava garantia ao indivíduo
de estar repleto da graça divina, pode-se dizer que na sociedade pós-moderna o ostentar a pos-
se desta ou daquela mercadoria é garantia de estar na “graça social”. Na verdade, pode-se ir
mais longe: para a sociedade pós-industrial, basta aparentar ter. Com efeito, esta é a sociedade
do espetáculo (DEBORD, 1997) onde o parecer importa mais que o ter já que “tudo o que era
vivido diretamente, tornou-se representação” (ibidem, p. 13).
Como podemos perceber, a racionalidade não pertence mais ao indivíduo, ou nas pa-
lavras de Chauí (2006, p. 106) é a organização que “é racional e é o agente social, político e
histórico, de sorte que os homens enquanto tais e as classes sociais enquanto tais são destituí-
dos e despojados da condição de sujeitos sociais, políticos e históricos” ou ainda nas de Hor-
kheimer (1976, p. 139) o indivíduo que “outrora concebia a razão como um instrumento do eu
(...) hoje experimenta o reverso dessa autodeificação”. Com efeito, o indivíduo fragmentado e
sujeito às determinações e pseudo-necessidades superimpostas revela-se vazio de pensamento,
o mesmo vazio identificado por Arendt (1999) em Adolf Eichman durante seu julgamento em
Israel:
Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dis-
sera era “conversa vazia” só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o
40
acusado queria encobrir outros pensamentos que, embora hediondos não seriam va-
zios. Essa idéia parece ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann,
apesar de sua memória, repetia palavra por palavra as mesmas frases feitas e cli-
chês semi-inventados (...) Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que
sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de
pensar. (ARENDT, 1999, p. 62).
Esta incapacidade para o pensar revelada pelo uso de clichês foi também discutida por
Marcuse (1973, p. 98), para quem “o fato de um substantivo específico ser quase sempre liga-
do aos mesmos adjetivos e atributivos explicativos transforma a sentença numa fórmula hip-
nótica que, infinitamente repetida, fixa o significado na mente do receptor”. De certo este va-
zio de pensamento, esta incapacidade de pensar ou o pensar por conceitos que Arendt iden-
tifica como a banalidade do mal não se refere a nenhum tipo de limitação cognitiva, mas
sim ao padrão de pensamento unidimensional, no qual as idéias que poderiam transcender o
universo estabelecido são rechaçadas ou reduzidas a termos desse universo, ou seja, “são re-
definidos pela racionalidade do sistema dado” (MARCUSE, 1973, p. 32) e “a linguagem fun-
cionalizada, abreviada e unificada é a linguagem do pensamento unidimensional” (ibidem p.
101)
10
. O que é repelido ou reduzido é justamente o pensamento emancipatório, e esta exclu-
são do pensamento bidimensional (MARCUSE, 1973) emancipatório está na base da raciona-
lidade ocidental.
Para Horkheimer e Adorno (1985), o iluminismo foi derrotado em seu projeto de e-
mancipação do homem e essa derrota é muito bem representada pelo genocídio ocorrido du-
rante a segunda guerra mundial. O fato de os autores se posicionarem contra a filosofia ilumi-
nista que privilegia a razão e a ciência humanas não quer dizer que se coloquem contra o
saber. Muito pelo contrário. Reconhecem que a superioridade do homem é exatamente o sa-
ber. Porém o iluminismo acabou por instrumentalizar o saber, perdendo assim sua capacidade
crítica. Dessa forma o esclarecimento fez com que a ciência tivesse a técnica como objetivo, o
que torna a operacionalidade mais importante do que a descoberta da verdade. Por isso, para-
doxalmente, o esclarecimento supostamente libertador acaba por escravizar o homem à técni-
ca. Além disso, os autores argumentam que no momento que a sistematização matemática
tenta abarcar o todo, tenta explicar até mesmo o que não se deixa compreender através de seus
teoremas, essa identificação antecipatória do mundo totalmente matematizado com a verdade,
já é em si uma regressão ao mítico. Logo o esclarecimento, ele próprio, sucumbiu à mitologia
da qual pretendia escapar. Assim, eles assinalam a semelhança, ou ainda melhor, identificam
10
O capítulo intitulado O fechamento do universo da locução da obra Ideologia da Sociedade Industrial de Mar-
cuse – especialmente na seção A linguagem da administração total – traz um excelente argumento com relação à
abreviação das palavras através de acrônimos e sua relação com a “abreviação do pensamento” na sociedade
unidimensional.
41
o mundo antigo, mitologicamente explicado, com o mundo moderno que, sob a égide do es-
clarecimento, é cientificamente explicado. Dessa maneira, procura-se explicar fenômenos
sociais, extremamente intrincados, a partir do raciocínio lógico-dedutivo/indutivo, como se
estes pudessem ser reduzidos a simples relações de causa e conseqüência ou comparados às
fórmulas matemáticas. Também para Marcuse (1973, p. 178), a racionalidade científica afigu-
ra-se como mito:
Não está claro qual lado está empenhado em mitologia. Sem dúvida mitologia é um
pensamento primitivo e imaturo. O processo de civilização invalida o mito (isso é
quase uma definição de progresso), mas pode também levar o pensamento racional
de volta à condição mitológica.
Ao afirmar que o mito é iluminismo e o iluminismo é mito, os autores pretendem dizer
que o mito trazia uma explicação sendo que a diferença da explicação científica para a ex-
plicação mitológica é justamente o fato que a primeira é eficientemente dominante e manipu-
ladora. E esta ciência, “em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, projetou e
promoveu um universo no qual a dominação da natureza permaneceu ligada à dominação do
homem” (ibidem, p. 160). O espírito científico positivista iluminista, com sua ênfase na efici-
ência e na dominação, com sua matematização e controle e sua “ neutralidade” atinge também
as ciências sociais, que, por causa destas características “científicas”, perde seu poder crítico
conformando-se à racionalidade do sistema. Esta racionalidade “neutra”, livre dos “excessos
metafísicos” do pensamento crítico, mostra-se tendenciosa dentro de sua própria neutralidade
uma vez que ao se abolir “o excesso ‘irreal’, a investigação fica trancafiada dentro dos enor-
mes limites nos quais a sociedade estabelecida valida e invalida proposições” (ibidem, p.
116). Isto denota o caráter ideológico deste tipo de empirismo e garante a “não-liberdade do
homem e demonstra a impossibilidade ‘técnica’ de a criatura ser autônoma” (ibidem, p. 154)
assim a racionalidade “científica” perpetua, em vez de suprimir “a legitimidade da domina-
ção, e o horizonte instrumentalista da razão se abre para uma sociedade totalitária” (ibidem).
Chauí (2006) traz à baila a questão da gerência científica nas organizações do capita-
lismo tardio. Ela argumenta que a partir dos anos de 1930, ocorreu uma mudança no processo
social do trabalho que passou a ser organizado segundo um padrão conhecido como fordismo,
em que administrar significa introduzir a racionalidade nas formas de organizar as empresas.
Segundo este modelo, uma organização será racional se for eficiente e o será “quanto mais
todos os seus membros se identificarem com ela e com os objetivos dela, fazendo de suas vi-
das um serviço a ela que é retribuído com a subida na hierarquia de poder” (CHAUÍ, 2006, p.
103). A este tipo de ideologia, Chauí o nome de “ideologia da competência” (ibidem, p.
105) e suas conseqüências são que, ao sustentar o discurso de que existe racionalidade nas
42
leis do mercado e há felicidade na competição e no sucesso de quem se torna vencedor
desta competição, aqueles que não têm uma posição de destaque na corporate ladder”ou,
para não mencionar os que estão desempregados já que a forma do capitalismo atual, por
causa da tecnologia e do capitalismo financeiro, o precisa de muita gente trabalhando na
produção são vistos e, o que é pior, sentem-se como fracassados sociais, e culpam-se pela
situação em que se encontram, quando na verdade é para o sistema e sua cientificidade e ra-
cionalidade eficientes que deveríamos apontar os dedos.
Antes de terminar, gostaríamos de discutir um pouco mais a respeito de uma das ca-
racterísticas do capitalismo tardio que foi mencionada indiretamente: seu caráter totalitário.
Jameson (2006) observou que, pós-modernismo, a tendência à mercantilização global é
mais conspícua do que no período moderno, no qual ainda havia elementos pré-modernos que
se colocavam contra o projeto de modernização total. O avanço da sociedade industrial para
todas as áreas do globo e para todos os aspectos da vida, ou seja, a transformação da socieda-
de industrial moderna na sociedade pós-industrial pós-moderna implica o apagamento das
diferenças em escala mundial e o triunfo da homogeneidade sobre qualquer heterogeneidade
que possa ser imaginada. A padronização não atinge apenas o modo de produção, haja vista
que o capitalismo nunca foi especialmente o capitalismo em sua forma contemporânea
apenas um modo de produção, ele também atinge os modos de consumo, de vida, de compor-
tamento e de pensamento. Padronização é a palavra de ordem. Adorno e Horkheimer (1985)
haviam identificado os produtos da indústria cultural como sendo todos iguais e, além dis-
so, condenavam a mímesis que estes faziam da vida cotidiana. Com efeito, este caráter mimé-
tico pode muito bem ser associado à unidimensionalidade marcusiana. Todavia, pode-se ar-
gumentar que nunca houve tantas mudanças em tão pouco tempo como na sociedade contem-
porânea e isto bem é verdade, entretanto como Jameson (2006) nos previne, é preciso repen-
sar nossa concepção de mudança:
Se a mudança absoluta na nossa sociedade é muito bem representada pela rápida
transformação das vitrines sugerindo a questão filosófica sobre o que realmente
muda quando lojas de vídeos são substituídas por lojas de camisetas -, então, a for-
mulação de Barthes passa a ser extremamente recomendável, ou seja, é crucial dis-
tinguir entre os ritmos de mudança inerentes ao sistema e por ele programados e
uma mudança que substitui, de uma vez, um sistema inteiro por outro. (JAME-
SON, 2006, p. 102)
De fato a “mudança” constante é a condição sine qua non para o sistema, contudo, esta
é uma mudança estável e sem movimento (JAMESON, 2006) suas “mudanças” jamais atin-
gem a essência do sistema, o que nos deixa a “constatação de que nenhuma sociedade jamais
foi tão padronizada quanto esta e de que a corrente da temporalidade humana, social e históri-
43
ca nunca fluiu de maneira tão homogênea” (ibidem, p.104), sendo assim a única mudança
radical seria colocar um fim à própria mudança (ibidem, p. 105). Esta persistência do mesmo
através da absoluta diferença (ibidem: 105) nos permite dizer que no pós-modernismo vive-se
um eterno presente, uma vez que o que vale não é a mudança real, basta apenas a aparência
de mudança: “o fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de
sua superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto, na contem-
plação espetacular” (DEBORD, 1997, p. 121).
Ao articular a idéia de “invenção democrática”, Lefort (1983) concebe a idéia de que a
democracia para ser verdadeira não pode estar presa à fixidez das coisas, ela precisa estar i-
mersa na fluência do devir (lembrando o argumento nietzschiano), em outros termos, ela pre-
cisa ser inventada constantemente e, como nos aponta Žižek (1996), essa articulação é feita
com referencia às categorias lacanianas do Simbólico e do Real, assim, a invenção democráti-
ca lefortiana consiste na afirmação de um lugar vazio e simbólico do Poder, que jamais um
sujeito real poderá ocupar. Ademais, Lefort (1983) define o totalitarismo (contrastando-o à
democracia) como sendo a abolição de todos os signos de autonomia da sociedade civil, em
que o espírito político se propaga em toda a extensão da sociedade, e esta, por coerção estatal,
é forçada a configurar-se como povo-Uno que é o fundamento do totalitarismo, que a
heterogeneidade não é, e nem pode ser, jamais tolerada – (LEFORT, 1983, p. 112).
Usando o argumento lefortiano, podemos conceber o capitalismo tardio como totalitá-
rio na medida em que ele toma conta de toda a extensão social e suas famosas liberdades e
fugas se enquadram no todo organizado (MARCUSE, 1973, p. 65), e também na medida em
que ele busca a configuração de um povo-Uno através de sua crescente padronização. Há que
se dizer que concordamos com o fato de que na configuração do capitalismo tardio não
(pelo menos não essencialmente) coerção física para que haja homogeneidade, entretanto,
como nos aponta Marcuse (1973) esta homogeneidade e conformismo são conquistados, na
sociedade industrial e pós-industrial, através da tecnologia. O totalitarismo do capitalismo
tardio, embora raramente faça uso da violência física, é tão perverso quanto o totalitarismo do
estado stalinista por ser velado, disfarçado em liberdade (quase) total: “na fase mais avançada
do capitalismo, essa sociedade é um sistema de pluralismo subjugado no qual as instituições”
competidoras cooperam para a solidificação do poder do todo sobre o indivíduo (MARCUSE,
1973, p. 64). Neste sentido, Marcuse (ibidem, p. 65) conclui que “a realidade do pluralismo se
torna ideológica e ilusória”.
Bem, para resumiremos toda esta discussão na curta resposta que daremos a seguinte
pergunta: Quais são as principais características da ideologia no capitalismo tardio? Esta res-
44
posta, a exemplo da discussão acima, não pode e nem tem a pretensão de esgotar o assunto,
entretanto nossa reflexão nos sugere que a ideologia no capitalismo tardio é, como colocou
Chauí (2006), invisível; ela assume ares de fim da ideologia. Entretanto, como afirmamos
logo de início, é que a descobrimos ideológica: ela se revela ideológica em sua natureza de
se colocar (falsamente) como a única alternativa obliterando todas as demais possibilidades,
relegando a existência humana a uma unidimensionalidade e dessublimação repressivas. A-
demais ela é perversa por esconder seu caráter totalitário e por, como disse Marcuse (1973, p.
14), ajudar a sustentar uma sociedade que é irracional como um todo cuja “produtividade é
destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas”.
2.3 Comunicação, Cultura e Ideologia
O reconhecimento de que os termos dos quais tratamos são, não somente de difícil
conceitualização, mas também de difícil manejo não pode ser impedimento para que se em-
preenda, devido à relevância e à urgência dos mesmos, sua discussão. Com efeito, tanto co-
municação quanto ideologia são fenômenos que estão longe de produzirem qualquer consenso
a respeito de sua definição e das maneiras pelas quais devem ser abordados. No caso da ideo-
logia a situação é ainda mais complicada uma vez que, epistemologicamente, a validade
mesma do conceito seja este qual for e sua real utilidade como ferramenta teórica são,
com freqüência, postas em xeque (EAGLETON e BORDIEU, 1996, p. 265 - 278).
Tendo discutido o conceito de ideologia, a tarefa, todavia, continua deveras compli-
cada diante da necessidade de se levar em conta um terceiro termo dessa difícil equação: a
cultura. Embora seja mais um complicador de um problema que, de início, se apresenta
como de difícil solução, qualquer que seja a resposta com relação à equação “comunicação e
ideologia” obtida sem que se tenha levado em conta o conceito de cultura será incompleta.
Poder-se-ia perguntar por que motivo a falta da conjugação do conceito de cultura com
os de comunicação e ideologia levaria, essencialmente, a um entendimento manco dos proces-
sos ideológicos e comunicacionais; a resposta, no entanto, seria relativamente simples: cultura
é o elemento distintivo de humanidade e a matéria-prima da amálgama que torna possível a
sociedade. Contudo, ao concebê-la como traço que define a humanidade, não devemos conti-
nuar vendo a velha oposição humano vs. natural, ou ainda, cultura vs. natureza, como pro-
põe a antropologia estrutural. Seguindo Eagleton (2005), ao invés de imaginarmos uma rela-
45
ção oposicional, devemos ter em mente que a relação cultura/natureza trata-se de uma relação
dialética:
Se cultura significa cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente,
o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao
mundo e o que o mundo nos faz (...) implica a existência de uma natureza ou maté-
ria-prima além de nós; mas tem também uma dimensão “construtivista”, que essa
matéria-prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. (EA-
GLETON, 2005, p. 11)
Cultura não pressupõe a anulação da natureza frente àquilo que é humano; pelo contrá-
rio, pressupõe a transformação daquilo que é natural: “a natureza produz cultura que trans-
forma a natureza” (EAGLETON, 2005, p. 12). Se a natureza é quem fornece os meios para
sua própria transcendência, então o homem deixa de ser concebido como não-natural e passa a
ser visto como um instrumento (natural) de transformação, uma vez que as culturas são cons-
truídas por meio do intercâmbio que ele realiza com a natureza através do trabalho:
A idéia de cultura (...) é uma rejeição tanto do naturalismo como do idealismo, insis-
tindo, contra o primeiro, que existe algo na natureza que a excede e a anula, e, contra
o idealismo, que mesmo o mais nobre agir humano tem suas raízes humildes em
nossa biologia e no ambiente natural. (EAGLETON, 2005, p. 14)
Assim, todo o processo social é construído com base naquilo que denominamos cultu-
ra (mesmo quando não há uma cultura comum, como no caso de palestinos e judeus em Gaza,
em que seu processo social dá-se justamente através do resultado da tensão entre duas cultu-
ras, ao mesmo tempo em que é promovido através das duas culturas separadamente e em con-
junto). Diante disso, torna-se patente o ponto de comunhão entre comunicação e cultura, haja
vista que, utilizando uma definição inicial de comunicação como portadora básica do processo
social (HARTLEY e HARTLEY, 1972, p. 23), podemos verificar a existência de uma profun-
da relação de interdependência entre elas: a cultura se propaga e sobrevive pela comunica-
ção e esta depende da cultura para se constituir como comunicação humana de fato.
Faz-se, então, necessário que, antes de se propor uma definição de comunicação e de
se discutir suas relações com a noção de ideologia, tornemos claro o que entendemos por cul-
tura e, conseqüentemente, aprofundemos nossa discussão acerca da importância da cultura
para uma melhor compreensão dos processos comunicacionais e ideológicos. A fim de expli-
citar ainda mais a relação entre cultura, comunicação e ideologia, é preciso contemplar a
questão da absorção da cultura pela esfera comercial através do conceito de “indústria cultu-
ral”.
A exemplo de ideologia e comunicação, a definição de cultura também é de difícil
formulação, em parte pela própria complexidade do fenômeno e, em parte pela longa história
46
do conceito. Não pretendemos abordar as vicissitudes do conceito nem discutir as diferentes
concepções que podem ser adotadas, mas sim fornecer uma definição que nos servirá de apoio
para a discussão que propomos, qual seja, as relações entre comunicação e ideologia. Ade-
mais, compreendemos que, por ser um fenômeno extremamente complexo, intrincado e multi-
facetado, a cultura não pode ser reduzida a uma definição simplista e parcial e qualquer defi-
nição de cultura não deve fechar os olhos à complexidade inerente ao termo, muito menos
pretender-se como a última palavra com ambição de abarcar toda a complexidade do fenôme-
no.
No entanto, para nosso argumento será ilustrativo apontar que o conceito, de maneira
bastante geral, pode ser divido em duas grandes categorias. Enquanto a primeira refere-se à
cultura em seu sentido sociológico, a segunda diz respeito a seu sentido antropológico, ou nas
palavras de Thompson (1995, p. 166), diz respeito a suas concepções antropológicas. A con-
cepção sociológica de cultura está ligada às grandes obras artísticas e intelectuais, geralmente
à disposição de uma pequena elite (KUPER, 2002, p. 25). Cultura em seu sentido antropoló-
gico é determinada principalmente por processos sociais, diretamente ligados à vida e à pró-
pria existência, ou seja, os modos de ser, viver, pensar e sentir o mundo de uma determinada
formação social (EAGLETON, 2005). Thompson (1995), entretanto, subdivide a concepção
antropológica de cultura em descritiva e simbólica. Ele resume a primeira como sendo o con-
junto de crenças, idéias, valores, costumes, artefatos e objetos adquiridos por indivíduos en-
quanto membros de uma sociedade e a segunda como padrão de significados incorporados nas
formas simbólicas, incluindo ações, manifestações verbais e objetos significativos, que pro-
movem a comunicação dos indivíduos entre si, partilhando experiências, crenças e concep-
ções.
Embora Thompson vincule a divisão das concepções antropológicas de cultura a tradi-
ções de pesquisas diferentes – e, na verdade, é isso que tem ocorrido na prática –, acreditamos
que esta divisão não tenha razão de ser, uma vez que não nenhum impedimento em conce-
ber os artefatos, canções populares, crenças e costumes como manifestações significantes, ou
seja, como textos culturais. E é nessa direção que aponta Bystrina (1995), para quem cultura é
o conjunto de atividades que ultrapassa a mera finalidade de sobrevivência material, ou seja,
tudo aquilo que é aparentemente supérfluo (como a criação de canções, jogos, modos de pre-
parar alimentos). Com isso, além de assumir esta concepção que se coaduna com o conceito
antropológico descritivo de cultura, o autor situa a cultura dentro de uma segunda realidade,
uma realidade imaginária e afirma que esta segunda realidade é um fenômeno psíquico trazido
para o mundo físico através do suporte (também físico) dos signos e dos códigos. Deste mo-
47
do, os signos têm importância fundamental tanto na composição da cultura, quanto na sua
transmissão, ou seja, a cultura é organizada como realidade sígnica. Em outros termos, Bys-
trina conjuga a dimensão descritiva com a dimensão simbólica da cultura, o que a liga muito
intimamente à comunicação, uma vez que a cultura não dependerá da comunicação apenas
para sua propagação e manutenção, mas também para sua própria constituição, uma vez que a
cultura é composta pelo que ele chama de códigos terciários (BYSTRINA, 1995).
A contribuição de Thompson reside no fato de, ao se filiar ao que ele chamou de con-
cepção simbólica, conceber a cultura inserida em contextos sociais estruturados. Isto possibili-
ta estabelecer a relação entre cultura e poder, abrindo assim as portas para a relação entre cul-
tura, comunicação e ideologia.
Entretanto, fazem-se necessários alguns esclarecimentos. Ao nos referirmos à cultura
da maneira como temos feito, tem-se a impressão de que, considerada tanto em seu sentido
antropológico quanto em seu sentido sociológico, cultura seja algo homogêneo: falamos dos
costumes, das crenças, das canções, artefatos, textos culturais, produzidos por um povo, como
se esse povo e essa produção fossem unos. Não os são. É neste mesmo sentido que Alfredo
Bosi (1992) argumenta que se fala em cultura brasileira, por exemplo, como se houvesse uma
unidade que amalgamasse todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro.
Entretanto, ele argumenta que essa unidade não existe nas sociedades modernas, especialmen-
te nas sociedades de classes. Para Bosi, os critérios de classificação são diversos racial, eco-
nômico, etário, etc. –, sendo assim, defende que o reconhecimento da pluralidade é essencial.
Continuando seu exemplo sobre a cultura brasileira, Bosi (1992) pluraliza o termo
subdividindo-o em cultura universitária, cultura criadora fora da universidade, cultura de mas-
sa produzida pela indústria cultural e a cultura popular, organizando-as em dois grupos. O
primeiro, formado pela indústria cultural e a cultura universitária, que estaria do lado das ins-
tituições e o segundo situado fora das instituições. A classificação da cultura brasileira pro-
posta por Bosi é apenas uma classificação possível; ao admitir a diversidade de critérios, a
classificação poderia ter sido feito em outros termos, como faixas etárias, por exemplo, de
modo a se falar em cultura infantil, cultura adolescente, adulta.
O que interessa na proposta de Bosi é o fato de tomarmos o cuidado para não conce-
bermos cultura como algo homogêneo. Entretanto, esta concepção não está livre de seus pró-
prios perigos. Ao classificar as diferentes culturas da maneira como Bosi propõe, corremos o
risco de imaginar que estas diferentes categorias são entidades discretas, quando, na realidade,
não é este o caso. A separação deve ser tida apenas como elemento didático para facilitar a
descrição e análise, pois, conforme Canclini (2006), esses “elementos discretos” estão em
48
contínuo processo de fusão com outros elementos discretos num ciclo de hibridação (CAN-
CLINI, 2006 p. XIX) promovendo o trânsito de formas discretas para bridas e, a partir des-
sas, a novas formas discretas. A fórmula dos ciclos de hibridação demonstra que nenhuma
forma seja de fato pura ou plenamente homogênea (ibidem): “todas as culturas estão envolvi-
das umas com as outras; nenhuma é isolada e pura, todas são híbridas, heterogêneas, extraor-
dinariamente diferenciadas e não monolíticas” (EAGLETON, 2005, p. 28 e 29).
O fato de as culturas estarem mergulhadas num contínuo processo de hibridização de-
monstra uma importante característica: a dinamicidade. A cultura é essencialmente dinâmica
porque nossas relações sociais também o são (LOTMAN e UPENSKI, 1981). Tanto os pro-
cessos de hibridação quanto a dinamicidade que este sugere foram esquematizadas pela teoria
da semiosfera de Lotman (1996), que, em termos gerais, é o espaço (imaginário) onde habi-
tam os signos e os textos culturais. A associação dos conceitos propostos por Lotman e Bys-
trina (em que a cultura é composta por signos) com os estudos sobre hibridação de Canclini
remete-nos de volta ao conceito antropológico simbólico de cultura de Thompson.
A rápida discussão acima nos servirá de pressuposto teórico sobre o qual proporemos
nossa compreensão sobre o que é cultura. Conscientes das limitações de nossa definição e
também do fato que ela não é o único modo de se conceitualizar o fenômeno, entenderemos
cultura como o conjunto de crenças, idéias, valores, costumes, artefatos, em suma, manifesta-
ções que, estando sempre inseridas em contextos sociais estruturados, constituem uma dimen-
são simbólica dinâmica, construída, adquirida e praticada por indivíduos enquanto membros
de um grupo social. É importante acrescentar que a cultura constitui-se na amálgama que uni-
fica, ao mesmo tempo em que distingue, os agrupamentos humanos.
Esta definição de cultura apresenta algumas vantagens para nosso trabalho: em primei-
ro lugar, ao adotar o conceito de cultura a partir de uma concepção antropológica, evidencia-
se que o fenômeno está intimamente ligado a vivência e experiência humanas, sugerindo que
cultura é algo continuamente construído por todos que fazem parte de uma dada comunidade;
em segundo lugar, evidencia-se a dimensão comunicativa da cultura, uma vez que ela é cons-
tituída e transmitida através de signos, demonstrando, assim, a maneira pela qual ela funciona
como elemento unificador e humanizador; finalmente, ao concebê-la como inserida em um
contexto social estruturado, vislumbramos, desde o início, sua relação com o poder e ideolo-
gia.
Contudo, a definição acima falha em revelar um aspecto importante da cultura nas so-
ciedades industrializadas. Aceitar a cultura como sendo construída, adquirida e praticada por
indivíduos que compõem uma dada formação social não permite perceber claramente o fato
49
de a cultura ter sido, nessas sociedades, subsumida na esfera do consumo. É por isso que,
mesmo que admitamos que ela esteja inserida em contextos sociais estruturados, a percepção
de sua relação com ideologia não consegue ser mais que um vislumbre. Com efeito, ao falar
sobre cultura de massa o risco de se ficar sob a impressão que o termo se refere a um tipo
de cultura produzido e vivenciado pelas massas, quando, na verdade, trata-se de uma cultura
produzida numa outra esfera e entregue verticalmente para o consumo das massas. É nesse
sentido que o conceito de indústria cultural trabalhado em diversos momentos por Adorno,
cujo desenvolvimento exemplar pode ser acompanhado no capítulo “A indústria cultural: o
esclarecimento como mistificação das massas” de “Dialética do esclarecimento” (ADORNO e
HORKHEIMER, 1985) – será fundamental neste trabalho.
Ter em mente o conceito adorniano de indústria cultural possibilita a percepção de
que “a cultura contemporânea é de segunda geração, onde a história, a experiência e os ansei-
os de cada um são moldados pela literatura, os quadrinhos, o cinema e a TV (...) Todas estas
histórias foram vividas, todos estes lugares visitados” (PEIXOTO, 1988 p. 363). A utiliza-
ção do termo permite desvelar o fato de que, nas sociedades do capitalismo tardio, uma
inversão na relação entre a esfera comercial e a cultural: se antes o capitalismo era um traço
cultural, ou seja, fazia parte da esfera cultural, nas sociedades sob a égide do capitalismo tar-
dio, a cultura foi absorvida pela esfera capitalista, cujo agigantamento invadiu e incorporou
todas as esferas da vida.
Os textos culturais deixam de ser formas simbólicas e se transformam em bens simbó-
licos (THOMPSON 1995, p. 203). A atribuição de valor, no entanto, não é estranho às formas
simbólicas que, em contextos estruturados, sofrem processos de valorização que se distin-
guem em dois tipos principais: valorização simbólica e valorização econômica (THOMPSON,
1995, p. 203). O grande mérito do conceito de indústria cultural é descortinar o triunfo da
valorização econômica sobre a simbólica, convertendo formas simbólicas em bens simbóli-
cos, reduzindo-as, assim, à lógica da mercadoria. E é a partir do ferramental teórico do mar-
xismo que Adorno e Horkheimer (1985) fazem sua crítica à indústria cultural, utilizando con-
ceitos fundamentais da teoria marxista como alienação e fetichismo da mercadoria para abor-
dar a dita “cultura de massa”.
Mais adiante, aprofundaremos a questão da indústria cultural em Adorno e Horkhei-
mer. Por hora, basta reafirmar a importância do conceito em nosso trabalho, bem como atentar
para o fato de que a indústria cultural, para esses autores, está profundamente ligada à racio-
nalidade iluminista que, instrumentalizando o saber, falhou em cumprir as promessas de e-
mancipação humana que fizera e acabou por se tornar instrumento mistificador
50
Assim, o conceito de indústria cultural faz a ligação necessária entre cultura, comuni-
cação e ideologia, permitindo conceber com clareza a relação íntima entre os termos, o que,
torna impossível conceber um sem levar em conta os outros.
Se a produção de cultura é o traço distintivo de humanidade e ela, por ser constituída
por textos (signos), constitui uma dimensão simbólica (a semiosfera lotmaniana) e dinâmica
na qual se dão os processos sociais, a comunicação – que, conforme definiram Hartley e Har-
tley (1972, p. 23), é o portador desses processos “é o instrumento mais singularmente hu-
manizador” (GERBNER, 1973, p. 58)
Este ponto é de grande interesse: ver na comunicação e, por conseguinte também na
cultura, um instrumento humanizador significa ver comunicação e cultura como elementos de
(con)formação social. Se a comunicação, como supõe Hartley e Hartley (1972), é responsável
por padronizar o meio para o indivíduo possibilitando-lhe a sensação de pertencimento, ela
também padroniza os próprios indivíduos tornando possível toda uma rede de acordos mútuos
que compõe a sociedade:
A própria sociedade pode ser definida como uma “vasta rede de acôrdos mútuos”.
Êstes serão contratos escritos ou convenções não escritas sobre o que se deve ou não
se deve fazer por exemplo, qual o comportamento apropriado em situações especi-
ficadas; o que é e o que não é considerado crime. (HARTLEY e HARTLEY, 1972,
p. 24).
A pergunta que devemos fazer neste ponto é: se vemos na comunicação e cultura as
forças que tornam possível a coesão social através da padronização do meio e dos indivíduos
por meio do estabelecimento de contratos mútuos, como isso ocorre exatamente? Ou, em ou-
tros termos, de que maneira a comunicação promove o estabelecimento de contratos e a pa-
dronização dos indivíduos? São os próprios Hartley (ibidem) que nos fornecem a resposta ao
definir, de forma sucinta, comunicação como meio pelo qual um indivíduo influência o outro
e, por seu turno, é por ele influenciado. Essa concepção de comunicação não somente ajuda a
esclarecer, de maneira bastante simples, o meio pelo qual os indivíduos são submetidos de
maneira a possibilitar a coesão da sociedade, mas também deixa entrever o papel dos moder-
nos meios de comunicação de massa nas sociedades contemporâneas.
Gerbner (1973) concorda com a concepção de comunicação enquanto meio humaniza-
dor pelo qual os indivíduos se influenciam mutuamente, possibilitando assim os processos
sociais: “comunicação (...) é a produção, percepção e entendimento de mensagens portadoras
de idéias humanas do que existe, do que tem importância e do que está certo” (GERBNER,
1973, p. 58). Entretanto a maneira pela qual os indivíduos influenciam-se mutuamente para
51
tornarem-se humanos e empreenderem processos sociais é radicalmente alterada pela emer-
gência dos modernos meios de comunicação de massa:
Novos meios técnicos tornam possíveis novas formas de interação social, modificam
ou subvertem velhas formas de interação, criam novos focos e novas situações para
a ação e interação, e, com isso, servem para reestruturar relações sociais existentes e
as instituições e organizações das quais elas fazem parte. (THOMPSON, 1995, p.
296)
A emergência dos meios de comunicação de massa trouxe um novo tipo de interação
social que modificou profundamente a maneira pela qual nos socializamos; mais: modificou a
maneira pela qual nos tornamos humanos: se existe algum truísmo na história da comunica-
ção humana é o de que qualquer inovação nos meios externos de comunicação trazem no seu
rastro choque sobre choque de mudança social” (MCLUHAN, 2000, p. 160).
Thompson (1998, p. 78 - 85), discute três modos de interação nas sociedades contem-
porâneas. Primeiramente ele trata da interação face a face, que pressupõe uma situação de co-
presença; em seguida fala sobre as interações mediadas definidas como as interações que
fazem uso de meio técnico (papel, telefone, ondas eletromagnéticas) –, e finalmente em “inte-
rações quase-mediadas”, definidas como as interações ou quase-interações (cf. THOMP-
SON, 1995, p. 299) que se dão através dos meios de comunicação de massa. Thompson
argumenta que a “interação quase-mediada”
11
é uma quase interação na medida em que o flu-
xo de comunicação é predominantemente de mão-única, uma vez que os meios de comunica-
ção de massa instituem um corte fundamental entre a produção e a recepção das formas sim-
bólicas.
Antes advento das indústrias de mídia e das telecomunicações, o entendimento de lu-
gares distantes e passados de um grande número de pessoas era obtido pelo intercâmbio co-
presencial de formas simbólicas; a narração de histórias teve um papel central na formação
do sentido de passado e do mundo muito além das imediações locais” (THOMPSON, 1998, p.
38). A tradição oral e as interações face a face modelavam as experiências dos indivíduos e
produziam relações sociais basicamente fixadas no aqui e agora. Com a invenção da imprensa
em 1450 e seu crescente desenvolvimento nos séculos subseqüentes, o intercâmbio de formas
simbólicas e a formação da experiência humana perdem sua ancoragem no aqui e agora e,
com a chegada das telecomunicações (como o telefone e o telégrafo) no século XIX, uma
reorganização do espaço e do tempo é instituída. Se, anteriormente, o mesmo tempo exigia o
mesmo local, as telecomunicações deram um novo sentido à simultaneidade ao introduzir a
11
Acreditamos que a diferença na nomenclatura adotada nas duas obras é fruto de duas traduções diferentes, de
modo que, nas obras, os termos se equivalem.
52
disjunção do espaço e do tempo: o agora não se liga mais, necessariamente, a um lugar
(THOMPSON, 1998, p. 37 e 38).
É verdade que o aparecimento da interação mediada trouxe mudanças na maneira que
o homem se relacionava com o mundo, mormente seu relacionamento com o espaço e sua
nova concepção de simultaneidade. Este tipo de interação também mudou os meios pelos
quais as pessoas podiam adquirir experiência e conhecimento de mundo: a difusão da impren-
sa possibilitou a propagação de idéias em um nível supra local, ao mesmo tempo em que fun-
cionava como um novo suporte de memória coletiva: outrora, a cultura e a tradição orais ti-
nham este papel. Entretanto, foi o surgimento e o fortalecimento das indústrias de mídia, já no
século XVII, e emergência e o desenvolvimento dos meios eletrônicos de comunicação de
massa no século XX que provocaram as mudanças mais profundas.
Segundo Gerbner (1973, p. 58), a produção de cultura como tecedura feita com o “fio
caseiro da experiência cotidiana” privada e compartilhada, num processo milenar de transmis-
são pessoa-a-pessoa foi substituída por uma produção e difusão em massa de informações,
idéias, imagens e produtos em todos os níveis da sociedade e, potencialmente, em todas as
partes do globo (GERBNER, 1973, p. 59). Tal mudança alterou profundamente a ambiência
simbólica que significado às atividades humanas, modificando assim, a maneira mesma
por que nos tornamos humanos. Mcluhan (2000, 2001 e 2005) coloca essas mudanças em
termos de três estágios consecutivos: o primeiro, pré-tecnológico, identifica-se com as civili-
zações baseadas na tradição oral de comunicação co-presencial (ou ainda as civilizações ágra-
fas contemporâneas); o segundo identifica-se com o desenvolvimento da imprensa associado
ao alfabeto fonético, quando, por conta do nova maneira de relacionar-se com o mundo que
esta instituía através da palavra escrita, linear, baseada no alfabeto fonético houve uma
primazia da visão sobre os outros sentidos que teriam se atrofiado; o terceiro estágio identifi-
ca-se com os meios eletrônicos de comunicação que seriam capazes do promover a restaura-
ção dos sentidos atrofiados pelo uso exclusivo do alfabeto fonético, levando assim a uma re-
tribalização, a um reencontro com nossas raízes pré-tecnológicas em plena sociedade tecnoló-
gica.
Embora tenha sido perspicaz em perceber as mudanças trazidas pelas novas tecnologi-
as de comunicação, o pensamento de Mcluhan tem suas limitações.
Mcluhan baseia sua hipótese de hipertrofia da visão e conseqüente atrofia dos outros
sentidos em dois diferentes pressupostos que se articulam. Primeiramente, a sociedade ociden-
tal teria alcançado este estado de hipertrofia visual pelo uso da página impressa como meio de
perceber o mundo que, aliada à linearidade e abstração do alfabeto fonético (responsável pela
53
redução da multissensorialidade da palavra oral à visão), teria provocado a ruptura entre a
experiência visual e a auditiva. O segundo pressuposto sobre o qual Mcluhan baseia sua hipó-
tese diz respeito à concepção da tecnologia (e, por conseqüência, dos meios de comunicação)
como extensão do homem (MCLUHAN, 2001), de modo que o superdesenvolvimento de uma
tecnologia visual (a palavra escrita na página impressa) teria necessariamente levado a um
superdesenvolvimento da visão humana.
No entanto, o pressuposto de que, durante os séculos de desenvolvimento da imprensa,
toda a comunicação humana ocorria se não totalmente, pelo menos preponderantemente
através da palavra escrita é, no mínimo, questionável. Devemos recordar que, entre os séculos
XVI e XIX, a grande maioria da população era constituída de analfabetos; além disso, Mclu-
han ignora manifestações como a música popular (ou mesmo a erudita), danças e festividades
populares, montagens teatrais e toda uma vida cultural que ultrapassava a esfera literária.
a tese de que toda a tecnologia humana representa uma extensão do homem carrega
em si, pelo menos nos termos em que Mcluhan (2001) a desenvolve, uma armadilha que põe
em xeque sua conclusão. Ele fundamenta sua tese no mito grego de Narciso que, entorpecido
pelo reflexo que vê na água, o toma por outra pessoa e por ela se apaixona. A fascinação pelo
reflexo embota suas percepções e provoca um esquecimento de si a ponto de o próprio Narci-
so se tornar um servomecanismo de seu próprio prolongamento na imagem refletida. Para
Mcluhan, os homens, tal qual Narciso, são hipnotizados pelas extensões de si próprios e se
conformam a elas ao invés de conformá-las a si: “os homens se tornaram naquilo que contem-
plaram” (MCLUHAN, 2001, p. 64). Para ele, as extensões tecnológicas cumprem um proces-
so de auto-amputação, em que um órgão, sob grande pressão ou estresse, tende a ser elimina-
do pelo corpo que busca equilíbrio.
Ao falar de auto-amputação, Mcluhan baseia-se nas pesquisas médicas de Hans Selye
e Alphonse Jonas sobre as reações do corpo humano a agentes estressantes. Em situações de
estresse constante, a auto-amputação funciona como um mecanismo de defesa empregado
pelo sistema nervoso central, através do qual o órgão atingido pela irritação é isolado ou eli-
minado a fim de evitar que o próprio sistema nervoso central entre em colapso.
Para Mcluhan, os processos de auto-amputação equivalem às extensões tecnológicas
do homem, de forma que, o termo extensão refere-se a um projetar-se para fora de si, em ou-
tros termos, o ser encontra sua existência projetada em outro lugar. Assim, esta auto-
amputação, ou extensão, provoca um auto-esquecimento (como no caso de Narciso) por que,
na tentativa de isolar o local atingido, o corpo desliga-o do todo e o transforma num sistema
fechado.
54
Com isso, embora Mcluhan não use a palavra “substituição”, sua argumentação parece
sugerir que a operação psicológica da auto-amputação se completa com a substituição do ór-
gão em crise pela extensão que tomada como sistema fechado, servirá de modelo a partir do
qual os homens se conformam:
A seleção de um único sentido para estimulação intensa, ou, em tecnologia, de um
único sentido ‘amputado’, prolongado ou isolado é a razão parcial do efeito de en-
torpecimento que a tecnologia como tal exerce sobre seus produtores e consumido-
res. (MCLUHAN, 2001, p. 62)
Estamos agora a um passo da conclusão inevitável para a qual a argumentação de
Mcluhan o leva.
Ao assumirmos que a tecnologia funciona como auto-amputação e, conseqüentemente,
como extensão do órgão amputado e, em seguida, ao aceitarmos que esta amputação e exten-
são provocam um entorpecimento e um esquecimento de si que transforma os homens, tal
qual Narciso, em servossistemas desses prolongamentos, configurando assim um sistema fe-
chado –, o fato de o período entre meados do século XVI e fins do século XIX ter mostrado
um enorme desenvolvimento da imprensa assim como um salto extraordinário no grau de al-
fabetização das pessoas (lembrando que Mcluhan considera o alfabeto fonético uma tecnolo-
gia) traz a conclusão de que os desenvolvimentos dessas tecnologias refletir-se-iam nos ho-
mens: se, durante esse período, a tecnologia do alfabeto fonético e da imprensa se desenvolve-
ram muito mais intensamente do que as outras tecnologias de comunicação, logo os homens –
ao tornarem-se simulacros delas teriam fortalecido o sentido ligado a elas (a visão) em de-
trimento dos outros sentidos.
A conclusão de Mcluhan está totalmente condicionada ao pressuposto da extensão
como auto-amputação e conseqüente entorpecimento, e a armadilha de sua tese consiste jus-
tamente na falta de evidência de que a tecnologia como extensão de fato possa cumprir um
processo de auto-amputação.
Mcluhan adere muito rapidamente à tese médica da "auto-amputação"; não estamos
questionando a validade das conclusões das pesquisas de Jonas e Selye, pois, mesmo que fos-
se nossa intenção, não teríamos competência para tanto. A questão que queremos colocar,
entretanto, diz respeito ao modo pelo qual Mcluhan transfere as conclusões médicas para o
campo social. Diz ele que “fisiologicamente, sobram razões para que uma extensão de nós
mesmos nos mergulhe num estado de entorpecimento”, contudo fornece apenas uma: meca-
nismo de defesa empregado pelo corpo em situações de estresse. Embora Mcluhan fale bre-
vemente sobre o papel do conforto como contra-irritante, a ação deste mecanismo de defesa é
definida essencialmente em termos fisiológicos, sendo que a maneira pela qual a tecnologia,
55
de algum modo, pode ser uma “reação do organismo” em situações de estresse permanece
pouco explicada.
Ademais, Mcluhan pretende nos fazer crer que a invenção de gadgets é uma resposta
fisiológica do corpo em situações de estresse:
Embora não estivesse na intenção de Jonas e Selye fornecer uma explicação para a
invenção e a tecnologia humanas, o certo é que nos deram uma teoria da doença que
chega a explicar por que o homem é impelido a prolongar várias partes de seu corpo,
numa espécie de auto-amputação. Sob pressão de hiperestímulos físicos da mais vá-
ria espécie, o sistema nervoso central reage para proteger-se, numa estratégia ampu-
tação ou isolamento do órgão, sentido ou função atingida. Assim, o estímulo para
uma nova invenção é a pressão exercida pela aceleração do ritmo e do aumento de
carga. (MCLUHAN, 2001, p. 57).
Considerar que apenas a necessidade fisiológica disparada pelo estresse causado por
hiperestímulos físicos é a única, ou mesmo a principal, deflagradora da invenção e tecnolo-
gia humanas significa ignorar motivações sociais e, sobretudo, econômicas que podem de-
sempenhar e, no caso dos meios de comunicação de massa, de fato têm desempenhado
papel determinante. Com efeito, o desenvolvimento da imprensa e, especialmente, dos meios
eletrônicos de comunicação foram impulsionados e moldados menos por necessidades fisio-
lógicas advindas do estresse do que por interesses econômicos.
Entretanto, embora duvidemos que o uso de aparatos tecnológicos tenha mergulhado o
homem num estado de entorpecimento e que a adoção do alfabeto fonético aliado ao desen-
volvimento da imprensa tenham provocado um estímulo excessivo da visão e uma conseqüen-
te debilitação dos outros sentidos, não podemos deixar de concordar com a tese de que as alte-
rações nos meios de comunicação e, sobretudo, a emergência de uma indústria da comunica-
ção, sob a égide de uma indústria cultural crescente, tenham alterado radicalmente as socieda-
des humanas, especialmente no que se refere ao seu modo de organização.
Se para Mcluhan (2005, p. 56 e 2001, p. 100-107), o desenvolvimento da imprensa
teria provocado o isolamento do indivíduo, para Jürgen Habermas (1984), ele teria possibili-
tado a emergência de uma esfera pública burguesa que, configurada no campo de tensão entre
Estado e sociedade civil e formada por indivíduos desta, funcionava como um fórum de dis-
cussões sobre os assuntos que envolviam a administração pública e sua influência no dia-a-dia
da sociedade civil.
Deste modo, a esfera pública burguesa, por ser independente da administração pública,
era capaz de exercer a função de fiscalizadora das atividades do Estado. Contudo, a expansão
dos media como atividade comercial e industrial e a contaminação da esfera estatal nas ativi-
dades da sociedade civil, em outras palavras, o que, no pensamento de Habermas (1984), pode
56
ser concebido como uma confusão entre as esferas públicas e privada, teriam implodido o
que antes fora uma próspera esfera pública burguesa.
Outro modo de pensar a falência da esfera pública burguesa é a partir do desapareci-
mento da própria burguesia clássica. Para Eagleton (2005, p. 31), aquilo que era concebido
como burguesia desintegrou-se numa “multidão de subculturas” e, de igual modo, a classe
trabalhadora tradicional, cujo elemento aglutinador era a consciência de solidariedade políti-
ca, desapareceu (ibidem, p. 34).
No entanto, o fim da burguesia e esta também é a posição de Eagleton (2005) não
significa o fim da exploração e uma conseqüente superação de categorias centrais do pensa-
mento marxista como alienação, luta de classes, mais-valia e ideologia. Ora, como argu-
mentou Lessa (2005), acreditar neste tipo de conclusão é aceitar o fim da era das ideologias e,
bem ao gosto de um pós-marxismo pretensamente de esquerda, é aceitar a transformação da
natureza mesma do capital que, coincidindo com a totalidade da esfera social, deixaria de ser
extrator de mais-valia e passaria a ser concebido como capital social e, do mesmo modo, o
proletário, que no velho pensamento marxista era tido como produtor de mais-valia para uma
burguesia parasitária, é tido agora como trabalhador social. Assim, viveríamos, para os pós-
marxistas, numa época em que consumir e produzir seriam ambos produtivos.
De fato, o movimento de expansão do capitalismo mudou sua natureza, converteu-o
em capitalismo de consumo. Contudo, para Lessa (2005), o cuidado que devemos tomar com
este tipo de conclusão, principalmente se seguirmos o enfoque dado pelos pós-marxistas, é
começar a crer numa superação da era das ideologias por meio de uma estranha lógica em que
a expansão do capital à totalidade social teria levado à superação do próprio capitalismo!
Entretanto, a situação é bem mais complexa do que os pós-marxistas podem imaginar:
uma coisa é aceitar a transformação do capitalismo de produção em capitalismo de consumo,
outra é aceitar a idéia de trabalho imaterial, para a qual consumo e produção equivaler-se-iam,
de modo a concebermos o fim da alienação e extração de mais valia. Aceitar a passagem para
o capitalismo de consumo não deve significar necessariamente aceitar a teoria do trabalho
imaterial e tudo o que ela implica (equivalência de consumo e produção, transformação do
capital extrator de mais-valia em capital social, fim da alienação, etc.), mas, antes, deve signi-
ficar, simplesmente, que o consumo estabelece uma relação de interdependência com a pro-
dução, sem que isso implique que eles sejam equivalentes, mas sim complementares. Este tipo
de conclusão permite-nos perceber que as relações de exploração ainda fazem parte da produ-
ção bem como, agora, a alienação está tanto na esfera da produção quanto na esfera do con-
sumo.
57
Com efeito, Eagleton (2005) não pretende sugerir o fim da exploração com o fim da
burguesia clássica ou a equação entre capital e sociedade. Ao contrário, ao afirmar o fim da
burguesia clássica enquanto classe social, Eagleton não admite uma expansão tamanha do
capital ao todo social, mas também sugere, como conseqüência, a submissão desse todo ao
capital; o capital em si torna-se extrator de mais valia:
Em princípio (...) o capitalismo é um credo impecavelmente inclusivo: não se impor-
ta, realmente, com quem ele está explorando. É admiravelmente igualitário em sua
pronta disposição de arrasar praticamente qualquer um. Está preparado para convi-
ver com qualquer de suas antigas vítimas, por menos atraente que seja. Na maior
parte do tempo, pelo menos, está ansioso para juntar o maior número de culturas di-
ferentes a fim de poder mascatear seus produtos para todas elas. (EAGLETON,
2005, p. 34 e 35).
Embora Eagleton fale sobre o “desaparecimento da classe média tradicional”, o que
desaparece de fato são os valores e as normas da burguesia tradicional, que foram substituídos
pelo único valor que interessa ao capital: o lucro. Afinal, ainda aqueles que se beneficiam
do empobrecimento de nações inteiras, ainda que a esses beneficiados não possa ser dado um
rosto nem, ao menos, incluí-los numa categoria contra a qual, na primeira metade do século
XX, Picasso, Buñuel e outros modernistas teriam lançado sua arte.
O argumento acima nos interessa na medida em que sugere que o próprio movimento
de expansão do capital foi responsável por aniquilar os tradicionais valores da sociedade bur-
guesa ao mesmo tempo em que arrancou pela raiz o sentimento de pertencimento e solidarie-
dade política da classe trabalhadora. E foi este mesmo movimento de expansão do capital o
responsável por ter forçado a passagem de um capitalismo de produção para um capitalismo
de consumo, por ter implodido a esfera pública burguesa provocando uma confusão entre pú-
blico e privado, ajudando assim a transformar as bases da própria indústria cultural, dando
origem a uma sociedade do espetáculo (DEBORD, 1996).
Se for verdade que, como defende Habermas (ou mesmo Mcluhan), a mudança da es-
trutura e organização da sociedade está condicionada aos meios de comunicação, não é menos
verdade que a expansão e o desenvolvimento dos meios de comunicação são moldados pela
expansão do capital. Afinal de contas, o surgimento e o desenvolvimento da indústria cultural,
num dado momento, trouxe para a esfera da cultura o impacto da revolução industrial
(GERBNER, 1973, p. 74) do mesmo modo que, num momento subseqüente, a mesma expan-
são do capital deu origem à sociedade do espetáculo (DEBORD, 1996).
Desta maneira é importante dar-se conta do real significado dos meios de comunicação
enquanto empreendimento comercial (GERBNER, 1973, p. 63).
58
A despeito de um pensador como Mcluhan (2005, p. 37 e 54) reconhecer o âmbito
comercial e industrial da imprensa e dos meios eletrônicos de comunicação de massa, ele não
faz uma reflexão sobre as conseqüências do avanço voraz de uma “galáxia industrial” sobre
outras “galáxias” (ibidem, p. 40); pelo menos não uma que ultrapasse a simples constatação
de uma reconfiguração de padrões de interação e organização. Mesmo ao considerar a eletri-
cidade como extensão do próprio sistema nervoso central (MCLUHAN, 2001) e os meios
eletrônicos como redentores de nossos sentidos atrofiados pelos séculos de primazia da visão
(MCLUHAN, 2005), ele falha em dar a devida importância ao significado de esses meios
estarem submetidos a um sistema de produção cuja expansão parece ser o único interesse.
Contudo, se para ele, o impulso para a invenção e a tecnologia estão muito mais ligados a
estímulos fisiológicos do que motivações sócio-econômicas, o mesmo não é verdade para
Horkheimer e Adorno (1985).
Para eles, o rápido avanço tecnológico, fruto do Aufklãrung, está ligado a um projeto
de dominação da natureza pelo homem. O mito é esclarecimento e o esclarecimento acaba
por reverter-se à mitologia (ADORNO e HORKHEIMER, 1985): sugerindo um movimento
dialético entre pensamento mítico e pensamento esclarecido, os filósofos sustentam que o
primeiro, por propor certo tipo de explicação e promover um conhecimento (ainda que mítico)
acerca do mundo e dos fenômenos naturais, é em si científico, sendo que o único elemento
que o diferencia do segundo é o fato de a explicação oferecida pela ciência positivista ser efi-
ciente.
Com efeito, a questão da dominação é proeminente nos escritos dos filósofos frankfur-
tianos e, embora seu trabalho não se restrinja aos meios de comunicação de massa, estes ocu-
pam posição importante no seu pensamento:
Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva fornecia, a disso-
lução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a ex-
trema especialização levaram a um caos cultural. Ora essa opinião encontra a cada
dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de se-
melhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coe-
rente em si mesmo e todos o são em conjunto. . (ADORNO e HORKHEIMER, 1985
p. 113)
O esmagamento do indivíduo perante a pujança da sociedade é efetuado através da
indústria cultural que se impõe como esclarecimento mistificante”. A tese nietzschiana de
que a fixidez do sistema de conceitos liquida a fluência do devir ao reduzir diversidade à iden-
tidade, tornando o homem capaz de dominar conceitualmente um real que, em si, é caótico e
foge a qualquer conceitualização é, em Nietzsche (2000) pensada pelo viés da religião. Ador-
no e Horkheimer (1985) assumem o mesmo ponto de vista, entretanto, para eles, o papel ou-
59
trora exercido pela religião é, nas sociedades modernas, exercido pela indústria cultural: é ela
quem assumirá a função de normatizar e padronizar a realidade, evitando assim que o “caos
cultural” se instale, tornando toda cultura que esteja sob o poder do monopólio idêntica (A-
DORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 114).
A limitação da diversidade (a fluidez do devir nietzschiana) à identidade
12
é o ponto
central da tese adorniana sobre ideologia, daí a insistência do filósofo a esse respeito no en-
saio sobre a Indústria Cultural. No entanto, à concepção de ideologia como identidade, outro
aspecto é acrescentado: para eles, a ideologia da sociedade organizada em torno da indústria
cultural é o próprio lucro, “o cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A
verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a
legitimar o lixo que propositalmente produzem” (ibidem, p. 114).
Numa combinação da filosofia nietzschiana com o pensamento marxista, Adorno e
Horkheimer articulam a questão da mesmice programada à questão da dominação:
Ele é o triunfo do capital investido. Gravar sua omnipotência no coração dos esbu-
lhados que se tornaram candidatos a jobs como a omnipotência de seu senhor, eis
o que constitui o sentido de todos os filmes, não importa o plot escolhido em cada
caso pela direção de produção. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 117).
Com isso, podemos ver o quão ligados à gica capitalista de produção estão os em-
preendimentos comerciais da indústria cultural. Constituem um sistema que representa o capi-
tal ao mesmo tempo em que promove seu avanço sobre todas as esferas da vida social, contri-
buindo assim para o declínio do indivíduo descrito por Horkheimer (1976) e a dessublimação
da arte e da cultura (MARCUSE, 1973).
Para Adorno e Horkheimer (1985), assim como para Marcuse (1973), a dessublimação
é uma conseqüência inevitável da indústria cultural. Os bens simbólicos produzidos por ela
planifica os indivíduos da mesma maneira que, ao obliterar a diferença entre a arte erudita e a
arte advinda da cultura popular, planifica-as e tira aquilo que é original a ambas. Arte erudita
burguesa e arte popular, antes da indústria cultural, sempre tiveram trajetórias distintas de
desenvolvimento.
No capítulo “A indústria cultural: O esclarecimento como mistificação das massas”
(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 113 156), os filósofos afirmam que o falso estatuto
de pureza e liberdade artística da arte erudita burguesa sempre se opôs à práxis material, sen-
do assim tributário da privilegiada condição sócio-econômica desfrutada pela burguesia que
podia subtrair-se do trabalho como forma de garantir sua subsistência material à custa da ex-
12
Contra qual Nietzsche propunha a transubstancialização dos valores e, Adorno, a dialética negativa.
60
clusão de boa parcela da população que se encontrava nos estratos inferiores da escala social.
a arte popular, ao contrário, sempre esteve ligada a práxis material das classes inferiores; é
nesse sentido que Adorno e Horkheimer argumentam que a arte popular nunca fora uma for-
ma degenerada ou decadente de arte, mas uma forma de diversão necessária àqueles que ti-
nham que enfrentar o infortúnio de quem tem sua subsistência material condicionada à venda
de sua própria força de trabalho: “a arte ria recusou-se àqueles para quem as necessidades e
a pressão da vida fizeram da seriedade um escárnio e que têm todos os motivos para ficarem
contentes quando podem usar como simples passatempo o tempo que não passam junto às
máquinas” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 127).
A indústria cultural não produz cultura de fato, mas garante a produção de suas mer-
cadorias através da pilhagem que realiza das culturas erudita e popular. Nesse processo, ela
provoca prejuízos a ambas. Ao entregar à massa seus produtos sob o falso rótulo de cultura, a
indústria cultural tira-lhes a autêntica diversão advinda das práticas sociais das classes subal-
ternas e os substitui por uma pretensa cultura imposta de cima para baixo ao mesmo tempo
em que planifica os elementos da arte erudita.
Isso leva os pensadores alemães a concluírem que, embora a indústria cultural se apre-
sente como a indústria da diversão, ela, na verdade, não pode proporcionar aquilo que prome-
te: o amusement. Para os autores o falso amusement, o prazer de fachada, que a indústria cul-
tural oferece é, no capitalismo tardio, um prolongamento do trabalho uma vez que este é ofe-
recido aos espectadores no intuito de subtraí-los temporariamente dos processos do trabalho
mecanizado para que possam, em pouco tempo, ter de novo as condições necessárias para
enfrentá-los. Dessa forma, o pretenso prazer, para manter sua fachada de prazer, não pode
evocar esforço algum, não deve exigir que o espectador faça associações não habituais, de
maneira que, a experiência da vida real não seja diferente dos bens culturais aos quais os es-
pectadores têm acesso.
A mistificação promovida pela indústria cultural não está apenas na possível manipu-
lação dos conteúdos de seus produtos, mas faz-se presente, também, por meio dessa recusa
(disfarçada em oferta) de entregar o prometido prazer.
Pode-se perceber entre Adorno e Horkheimer, de um lado, e Habermas, de outro, pon-
tos de convergência e, concomitantemente, pontos de divergência. Se para os primeiros a e-
mergência da indústria cultural teve um profundo impacto negativo para a cultura e para a
estrutura da organização social, o mesmo é verdade para Habermas que afirma que o cresci-
mento do aspecto comercial e industrial das empresas de mídia, em especial o agigantamento
dos meios eletrônicos, teria provocado o aniquilamento da esfera pública burguesa. Contudo,
61
ao considerar a existência de uma esfera pública burguesa, pré-existente a uma indústria cul-
tural, como uma espécie de ágora moderna, Habermas rompe com Adorno e Horkheimer.
Entretanto, as teses de Adorno, Hokheimer (1985) e Habermas (1984) têm um pro-
blema que, ironicamente, é similar a um dos problemas apontados no argumento de Mcluhan
(2000, 2001 e 2005). Assim como Mcluhan, os autores pressupõem um isolamento completo
do indivíduo; ignoram a possibilidade de as pessoas estabelecerem relações entre si que não
envolvam a mediação técnica promovida pela indústria cultural. Isso faz com que os autores,
de igual modo, ignorem a possibilidade de que as mercadorias simbólicas impingidas às mas-
sas serão reelaboradas por elas e, assim, convertidas em cultura.
Ao considerarem a força das instituições sociais e, também, a pujança e a ubiqüidade
dos meios massivos e o conseqüente aniquilamento do indivíduo que, levado à completa iden-
tificação com o universal, transforma-se em indivíduo-massa (ADORNO e HORKHEIMER,
1985, p. 114) sem considerar a possibilidade de maturação e re-elaboração realizada pelos
indivíduos em suas interações cotidianas, Adorno e Horkheimer acabam por conferir aos me-
dia e à indústria cultural poderes que vão além dos que de fato eles têm.
Nesse ponto, parecem relevantes as considerações feitas por Merton e Lazersfeld
(2000, p. 112) de que se tem exagerado sobre o impacto dos meios massivos de comunicação.
Com efeito, o que esses dois autores sugerem como principais preocupações trazidas pelos
meios de comunicação de massa sua a ubiqüidade; os efeitos que podem causar no enorme
público; a deterioração do gosto popular –, em partes, coincide com as preocupações de A-
dorno e Horkheimer (1985, p. 113 - 156). Mas, entretanto, eles as analisam a partir de outra
perspectiva, nomeadamente, as funções e disfunções que os meios de comunicação de massa
desempenham na sociedade.
Construído sobre um paradoxo – reconhecido pelos próprios autores –, o texto de Mer-
ton e Lazersfeld pode ser dividido em três momentos distintos. No primeiro, eles afirmam ser
exagerada a crença de que os meios de comunicação de massa tenham poderes quase absolu-
tos sobre a sociedade para, em seguida, descrever os maneiras pelas quais os meios massivos
de fato influenciam suas platéias. Entretanto, a terceira e última parte do ensaio vem para so-
lucionar o aparente paradoxo que sobre o qual o ensaio é construído. Denominada “propagan-
da com objetivos sociais”, esta última parte relativiza o suposto poder dos meios ao conceber
três formas pelas quais eles agem: a neutralização, a canalização e a suplementação.
A primeira, neutralização, diz respeito ao fato de que a aceitação de toda propaganda –
e eles também estendem o exemplo a anúncios publicitários – está sujeita a contrapropaganda,
62
cujos efeitos neutralizam-se mutuamente.
13
a canalização refere-se ao fato de que os pa-
drões ou atitudes de comportamento preexistem à publicidade, de modo que o papel desta é
apenas canalizá-los para este ou aquele produto ou doutrina. A terceira que, a nosso ver, den-
tre as três, é a que mais relativiza o poder dos meios, consiste em afirmar que os meios de
comunicação de massa não agem sozinhos, ou seja, sua eficiência depende de uma suplemen-
tação realizada pelo contato face a face.
Passemos agora a considerar os pontos fortes e as limitações do ensaio de Merton e
Lazersfeld.
Ao descreverem os modos através dos quais os meios de comunicação de massa efeti-
vamente podem influenciar sua imensa platéia, Merton e Lazersfeld indicam três conseqüên-
cias sociais dos meios, duas funcionais e uma disfuncional.
Consideram a atribuição de status e o reforço das normas sociais como funções e a-
pontam a disfunção narcotizante como conseqüência disfuncional. A concepção de funções e
disfunção está baseada na analogia entre corpo social e corpo biológico, de modo que algo
que traga desequilíbrio ao bom funcionamento corpo é tido como disfuncional. E é exatamen-
te neste ponto que encontramos a primeira limitação na tese de Merton e Lazersfeld. Como
apontou Lima (2000, p. 107), ao tomar a terceira conseqüência como disfuncional, supõem
que “não seja do interesse da complexa sociedade moderna ter uma grande parcela da popula-
ção apática e inerte” (ibidem).
Um segundo ponto deve ser levantado. Ao falarem sobre os modos pelos quais os
meios de comunicação influenciam as platéias, os autores subdividem a argumentação em
duas partes. Primeiramente, abstraem os meios da realidade sócio-econômica a qual estão
incorporados estratégia argumentativa um tanto questionável, que pouco adianta debru-
çar-se sobre uma análise das funções sociais de qualquer coisa sem que se leve em conta fato-
res sociais ou econômicos. Isto resulta numa incoerência para o ensaio: abstraídos não se
sabe muito bem por que motivo dos fatores sociais e econômicos, a possível apatia que os
meios podem provocar em suas platéias é considerada pelos autores como uma disfunção.
Porém, ao concebê-los como parte da engrenagem do sistema capitalista de produção e con-
sumo, no qual “aquele que paga é quem manda” (MERTON e LAZERSFELD, 2000, p. 120),
aquela “disfunção” que parecia ser desinteressante para todos na organização social, revela-se
extremamente interessante para alguns – especialmente “àqueles que pagam”.
13
É importante notar que “propaganda” aqui deve ser entendida com o sentido restrito que a palavra possui em
língua inglesa – original do ensaio – de propagação sistemática de doutrina que reflete as visões e os interesses
daqueles que pregam tais doutrinas, como por exemplo, a “propaganda nazista”.
63
Outra questão a ser colocada é que o leve espírito crítico que o ensaio consegue alcan-
çar ao recolocar os meios de comunicação de massa dentro contexto sócio-econômico capita-
lista é anulado pela terceira parte do ensaio. Sim! Justamente aquela parte que relativiza os
poder dos meios, pois ao tentar colocá-los numa dinâmica social mais ampla (levando em
consideração a existência de contra-propaganda, canalização de tendências preexistentes e
suplementação face a face), os autores acabam por não conseguir dar a devida importância
que os meios podem ter, em outros termos, acabam por relativizar demais
Se esses são alguns dos calcanhares-de-aquiles da tese de Merton e Lazersfeld, não
podemos nos esquecer que seu mérito principal é alertar sobre o equívoco de se crer na onipo-
tência dos meios de comunicação de massa, além de abrir caminho para outros estudos que
terminaram por propor outros meios de ação das indústrias de media, como por exemplo, ga-
tekeeping, agenda setting, líderes de opinião, a exposição seletiva, entre outros.
Gerbner (1973, p. 66), ao falar sobre a crença exagerada dos meios de comunicação na
eficácia da propaganda, propõe uma alternativa interessante:
Os efeitos dos meios de comunicação de massa devem ser concebidos com muito
maior amplitude que a simples persuasão de pessoas no sentido de aceitarem os pon-
tos de vista veiculados por eles. Os meios de comunicação de massa tem muitos e
mais sutis e complexos efeitos, quer pelo que dizem como por sua existência como
instituição.
Com isso, Gerbner alivia a excessiva preocupação com a eficiência dos meios de co-
municação de massa como difusores de propaganda e persuasores mudando o foco para os
efeitos de sua existência como instituição. Assim, mesmo que a análise empreendida pelos
frankfurtianos peque ao conceber os meios de comunicação de massa como fenômenos onipo-
tentes a serviço de um sistema em constante expansão, o fato de ela ir muito além da crítica da
indústria cultural, promovendo uma contundente crítica a todo o sistema no qual a indústria
cultural está inserido – de modo a alcançar um nível de profundidade crítica dificilmente igua-
lado –, faz com que ela reflita, de maneira pertinente, toda dimensão econômica, política e
ideológica na qual os meios de comunicação de massa estão mergulhados.
Com efeito, as sociedades do capitalismo tardio estão organizadas em torno dos media
(GERBNER, 1973, p. 66) e a avultação das indústrias com base nesses meios não apenas aca-
bou por transformar a cultura num produto manufaturado como também transformou os pró-
prios meios de comunicação de massa em nova arena de luta social (GERBNER, 1973, p. 60).
É nesse sentido que, para Thompson (1995, p. 11), não se pode falar sobre ideologia sem que
se considere sua relação com os meios de comunicação de massa.
64
A aglutinação da esfera comunicativa e cultural pelo capitalismo é fundamental ao a-
nalisarmos as relações entre ideologia e comunicação. Na verdade, falar sobre esta aglutina-
ção já é falar sobre essa relação, uma vez que tal relação consiste, essencialmente, na submis-
são da comunicação, da cultura e da arte à lógica do capitalismo.
É assim que, no argumento de Adorno e Horkheimer (1985), a indústria cultural fun-
ciona como um importante sustentáculo para o capitalismo tardio. Este se utiliza dessa indús-
tria para arregimentar pseudo-indivíduos e mantê-los conformados ao status quo. Como vi-
mos, esta conformação se pela frustração da promessa de prazer realizada pela indústria
afinal ela é pornográfica e pudica ao mesmo tempo – e também pela sua onipresença que con-
fere ao seu discurso o poder de um falso mandamento, não permitindo que ninguém lhe esca-
pe. Finalmente, uma das principais funções dos produtos da indústria cultural, e também sua
ideologia, é a geração do lucro; nada mais resta dos impulsos artísticos e do poder de subli-
mação da arte. Esses foram derrotados ao serem nivelados, através da mímesis, à experiência
cotidiana e ao serem subjugados por impulsos que irrompem, não da esfera artística ou cultu-
ral, mas sim da comercial.
Segundo Benhamou (2007), foi a mudança no estatuto da obra de arte identificada por
Benjamin (2000) que permitiu que ela se tornasse mercadoria. Com efeito, apesar de Benja-
min ver com bons olhos as técnicas de reprodução das obras – por possibilitarem a democrati-
zação do acesso à arte –, não ignorava que essas técnicas, submetidas ao sistema capitalista,
falhariam em cumprir qualquer promessa de revolução além daquela de revolucionar a própria
noção de arte e originalidade e de provocarem o deslocamento da função cultual e ritual, que
arte tivera até as modernas técnicas de reprodução mecânica, para uma função expositiva
(BENJAMIN, 2000, p. 230 -232).
O desenvolvimento histórico das indústrias dos media foi descrito por Thompson
(1995) e, através de sua descrição, pode-se perceber não apenas um agigantamento dessas
indústrias, mas também uma forte tendência de concentração desses grandes conglomerados
nas mãos de poucos. em Benhamou (2007), a força do empreendimento comercial no cam-
po da cultura de massa pode ser vista através das diversas estratégias empresariais que a in-
dústria cultural lança mão para se manter ativa e em expansão.
Segundo Benhamou (2007, p. 109 145), algumas dessas estratégias consistem em:
controlar a distribuição; diminuir a vida útil dos produtos; medo da inovação tarefa esta de-
legada às pequenas empresas, que funcionam como laboratório das majors, de modo que, as-
sim que os artistas dessas pequenas empresas fazem sucesso, eles são arrebatados pelas ma-
jors –, formar oligopólios para promover concentração nos diversos mercados que atuam.
65
Todas as transações empresariais, comerciais e financeiras de compras, fusões e entrada em
outros segmentos de mercado para aumento de rentabilidade e diminuição de riscos não es-
condem do que realmente tudo isso se trata: negócios.
Diante dessa dimensão comercial que toma conta, cada vez mais preponderantemente,
da esfera cultural, a seguinte pergunta se impõe: Qual sua principal conseqüência para a vida
social e para a cultura?
Samain (2007, p. 64 e 65) argumenta que os mitos são os fundamentos ideológicos e
existências das sociedades ágrafas e, ao descrever os mitos, afirma que eles pertencem a um
tempo e a um lugar que não coincidem com o tempo e o espaço presente, em outras palavras,
é necessário que haja um distanciamento espaço-temporal que contribui para que o mito per-
tença à ordem do sagrado. Se para Samain (2007), a divindade do mito esligada ao distan-
ciamento espaço-temporal, para Adorno e Horkheimer (1985, p. 149) o rádio também adquire
este sentido de divindade através da onipresença. Já Bucci e Kehl (2004) argumentam que a
televisão, acima dos outros media, é a grande produtora de mitos do nosso tempo. Embora
eles fundamentem sua afirmação na definição de mito como “fala roubada” proposta por Bar-
thes (1993), pode-se dizer que tanto o argumento de Samain (2007) acerca do distanciamento
de espaço e tempo quanto o de Adorno e Horkheimer (1985) com relação a ubiqüidade podem
ser utilizados para ratificar a tese de que os meios de comunicação de massa – e, a exemplo de
Bucci e Kehl, estamos pensando em especial na televisão são de fato os grandes produtores
de mito de nosso tempo.
A conclusão é que se, segundo Samain, os mitos realmente desempenham o papel de
alicerce ideológico das sociedades sem escrita, os meios de comunicação de massa especi-
almente a televisão – desempenham papel análogo nas sociedades modernas. Assim, o fato de
esses meios de comunicação e produção de cultura em escala industrial estarem subjugados
por interesses econômicos revela a conseqüência da invasão da esfera da cultura pela dimen-
são comercial que, a princípio, deveria ser-lhe alheia.
Gerbner (1973, p. 73) afirmou que “o cultivo de padrões de imagens dominantes é a
principal função das organizações de comunicação dominantes em qualquer sociedade” e para
Adorno (1973, p. 551) as histórias veiculadas nos meios de comunicação de massa enviam
uma mensagem de ajustamento e obediência ao sistema. Essa é a ideologia de nossos tempos:
se, como argumentamos antes, não há mais uma burguesia clássica com seus valores justifica-
dos por uma ideologia burguesa, agora a ideologia do próprio sistema; é ele que importa e
pertencer a ele é o novo mandamento.
66
O esforço concentrado de controle do sistema é a ideologia de nosso tempo (ADOR-
NO, 1973, p. 548) e uma das maneiras que a indústria cultural utiliza para a realização desse
controle é o mimetismo de seus produtos. Ao eleger a mímesis como característica essencial,
a indústria cultural, uniformiza a arte e a conforma com a hierarquia social e, conseqüente-
mente, lhe subtrai a rebeldia, o estranhamento, em outras palavras, a indústria cultural tira-lhe
aquilo que a faz arte. Logo, para Horkheimer e Adorno a arte na indústria cultural não existe
ou está morta.
A veiculação de mensagens com níveis diferentes de significado é outra maneira de
realizar o controle e garantir a inserção “voluntária” no sistema. Para Adorno (1973, p. 551):
Os meios de comunicação de massa também consistem em várias camadas de signi-
ficados, superpostas umas às outras, e todas as quais contribuem para o efeito. É
verdade que, em virtude da sua natureza calculadora, esses produtos racionalizados
parecem melhor delineados em seu significado do que as autênticas obras de arte,
que nunca podem ser reduzidas a uma “mensagem” inconfundível. Mas a herança do
significado polimórfico foi encampada pela indústria cultural na medida em que se
organiza o que ela transmite a fim de fascinar os espectadores em vários níveis psi-
cológicos. Na verdade a mensagem oculta pode ser mais importante do que a evi-
dente.
O fato de o público nem sempre ter consciência do significado oculto das histórias
que consome não impede que padrões de comportamento sejam fixados (ibidem, p. 554). Na
verdade, é o próprio fato de serem incapazes de perceber a mensagem oculta que os deixa a
mercê dela, pois se a compreendessem poderiam, ao menos, tentar defender-se. Neste ponto,
poder-se-ia imaginar que os conteúdos ocultos são colocados nos produtos da indústria cultu-
ral deliberadamente, como uma espécie de plano diabólico. Todavia, não podemos nos esque-
cer que os produtos da indústria cultural são alienados a tal ponto que as motivações dos auto-
res não são tão determinantes quanto se imagina, em outros termos, a organização objetiva da
indústria cultural limita a projeção do artista (ibidem, p. 555). A alienação na indústria cultu-
ral é conseguida do mesmo modo que nas indústrias convencionais, ou seja, através da divisão
e especialização do trabalho. A celeuma para se decidir de quem é o filme produzido nas en-
grenagens do sistema (produtor, diretor, diretor de fotografia, etc.) não chega a qualquer con-
clusão: o trabalho é de todos e o filme não é de ninguém. Com efeito, nem sempre os autores
(seja quem forem) estão conscientes dos conteúdos ocultos de seus produtos, o que não
anula o caráter ideológico desses; ao contrário, haja vista que a ideologia tende a operar ocul-
tando sua existência (ŽIŽEK, 1996).
Para Adorno (1973), outro fator que contribui para a ação ideológica da televisão é a
construção e a manutenção de estereótipos. Devido à tecnologia e organização de produção da
TV, a estereotipagem é praticamente inevitável e para Adorno (ibidem, p. 557 e 558) quanto
67
maior seu uso nos produtos da indústria cultural, tanto menos pessoas serão capazes de mudar
idéias pré-concebidas, além de afastá-las das reais questões sociais.
A diferença entre a cultura popular antiga (pré-indústria cultural) e a cultura popular
recente (industrial) reside no fato de que esta constitui um sistema (ADORNO, 1973, p. 547).
A expansão do capitalismo, a transformação de sua natureza (de capitalismo de produção para
capitalismo de consumo), a expansão, consolidação e concentração das indústrias dos media
fazem parte de um mesmo movimento.
A crise atual do capitalismo tardio não é uma crise estrutural que põe em risco a pró-
pria sobrevivência do sistema. Se podemos falar em “crise do capitalismo, devemos nos lem-
brar de que ela é uma crise de identidade apenas e, na verdade, nem chega a ser vivida como
tal: pouco importa ao capitalismo tardio ter uma identidade. Com efeito, não ter um rosto nos
tempos estranhos em que vivemos é a grande vantagem do sistema. Diz-se que a maior difi-
culdade na guerra contra o terror é justamente não saber contra quem se luta: a grande tragé-
dia de não conhecer o rosto do inimigo consiste no fato de ele poder ser qualquer um e, desse
modo, tem-se a impressão de que ele está em todos os lugares. Todavia, as coisas com o capi-
talismo tardio são um tanto diferentes. Como observou Eagleton (2005, p. 35) o capitalismo
“na maior parte do tempo (...) está ansioso para juntar o maior número possível de culturas
diferentes a fim de poder mascatear seus produtos para todas elas”; a grande descoberta do
capitalismo tardio foi o pluralismo. “Aceitamos todos! Não nos importamos com as diferen-
ças... Desde que se submetam!” proclamam incansavelmente, numa semelhança pouco criati-
va com os dizeres das vitrines de “aceitamos todos os cartões de crédito”. A diferença básica e
principal entre esses dois fenômenos sem rosto é o fato de que, enquanto o desconhecimento
da feição do primeiro leva a supor que ele possa estar em todos os lugares (daí o sentimento
de terror diante da apreensão de poder ser pego de surpresa), a identidade volátil do segundo
faz-nos esquecer de que ele, de fato, está em todos os lugares (daí nosso sentimento de con-
forto).
O fato de o capitalismo pouco se importar com os antigos valores burgueses é sua
principal estratégia de sobrevivência. O que importa são os negócios. O fim da sociedade bur-
guesa clássica não significa o fim da era da ideologia, mas sim a condição de poder assumir,
sem meias palavras, qual é a verdadeira ideologia: o lucro. O que é mais ideológico de tudo
isso é o fato de se considerado natural.
A desintegração da burguesia clássica em uma miríade de subculturas e a evaporação
da classe trabalhadora tradicional fundamentada na solidariedade política foi responsável pela
despolarização entre as categorias marxistas “capital” e “trabalho”, destruindo assim os ele-
68
mentos tensivos básicos do movimento dialético da história. Resumidamente, é nisso que se
baseiam aqueles que falam sobre o fim da história e o fim da ideologia.
Admitir o fim da história é aceitar a teleologia marxista ao mesmo tempo em que se
acredita que se chegou a uma situação imutável da vida social. O equívoco sobre o argumento
do “fim da história” e do “fim da ideologia” é que ele cai na armadilha que acredita não mais
existir. Em primeiro lugar, ele não percebe a atual ordem das coisas como histórica e, portan-
to, passageira. Além disso, não consegue ver que o fim da burguesia e da classe trabalhadora
tradicionais significa apenas fim de identidades mais ou menos consistentes, persistindo desse
modo aqueles que são explorados pelo sistema e aqueles que se beneficiam dessa situação.
Em segundo lugar, a tese do fim da ideologia” falha em perceber a ideologia dos novos tem-
pos, que é um fenômeno que diz respeito muito mais à integração do que à tensão entre clas-
ses, e isso explica a facilidade que essa tese teve em “se integrar” a nova ideologia.
Como apontou Baudrillard (2007, p. 25) o lugar do consumo é a vida cotidiana. Igua-
lar consumo e vida cotidiana leva a concepção de consumo como força integradora. E, ao
concebermos o consumo como força integradora, também assim concebemos o consumo dos
bens simbólicos produzidos pela indústria cultural. É nisso que consiste o fato de a cultura ter
se transformado em mercadoria e a comunicação em indústria: consumo, indústria da comuni-
cação de massa (ou indústria cultural) e cultura de massa funcionam como partes integrantes
de um fenômeno, em si, integrador: a ideologia.
3. O MALANDRO BRASILEIRO
70
3.1 O interesse a respeito da malandragem
Gostaríamos de lançar aqui pressupostos teóricos que servirão de fundamento à análise
da questão da malandragem como categoria cultural presente em um produto mediático. A
compreensão da genealogia da malandragem, que em si comporta o entendimento do pró-
prio conceito, ajudará a evitar prejuízos morais, evitando a perda de foco naquilo que o tema
traz de mais interessante.
No campo da sociologia, os anos 70 foram particularmente frutíferos no que diz res-
peito à produção científica e cultural acerca da temática da malandragem, a ponto de Gilmar
Rocha (2005, p. 108) usar a expressão “sociologia da malandragem”. O ensaio de Antônio
Candido, Dialética da Malandragem, publicado em 1970, sobre o romance “Memórias de um
sargento de milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, é uma das principais produções aca-
dêmicas que inaugurariam os estudos sobre o tema na década de 70. Na verdade, a questão da
malandragem na produção acadêmica e cultural começa a tomar corpo na década de 60
(GOTO, 1988, p. 12). Em 1961, estréia a peça Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, transfor-
mada em filme sob direção de Nelson Pereira dos Santos dois anos mais tarde; em 1966, Mil-
lôr Fernandes parodia Manuel Antônio de Almeida com a peça “Vidigal: memórias de um
sargento de milícias”; em 1969, sob direção de Joaquim Pedro de Andrade tem-se a adaptação
do romance Macunaíma, de rio de Andrade; em 1973, é a vez de Hugo Carvana fazer a
direção de Vai trabalhar vagabundo
14
; em 1977, Gilberto Vasconcelos e Matinas Suzuki fa-
zem interpretações sobre a malandragem na música popular; Chico Buarque faz um elogio à
malandragem na peça musical “Ópera do Malandro” em 1978 (adaptada para o cinema em
1986 sob a direção de Ruy Guerra) e em 1979, temos a obra de Roberto DaMatta “Carnavais,
malandros e heróis”.
O fato é que o interesse pela malandragem não se circunscreveu ao período acima
15
,
nem se limitou às obras mencionadas: várias personagens e obras malandras poderiam ser
arroladas, desde comerciais de TV e personagens de telenovela até outras produções acadêmi-
cas. Alguns exemplos: comercial de TV dos cigarros Vila Rica, protagonizado pelo ex-
jogador da seleção brasileira Gerson, põe em evidência o princípio do “levar vantagem em
tudo”; a personagem Beto Rockfeller (da telenovela homônima veiculada pela Tupi em 1968);
14
Cujo roteiro é assinado por Carvana e Armando Costa, um dos co-autores, ao lado de Oduvaldo Vianna Filho,
da versão 72-75 de “A grande família”.
15
Podemos citar, por exemplo, os estudos de Claudia Matos sobre a relação malandragem e o samba na era Var-
gas e Malandragem Revisitada de Roberto Goto datam da década de 80 (1982 e 1988 respectivamente).
71
e o ensaio de Roberto Schwarz (1979) “Pressupostos e salvo-engano da dialética da malan-
dragem”, tendo por referência o ensaio já citado de Antonio Cândido.
Poder-se-ia estender a lista de personagens e obras malandras quase à exaustão. Entre-
tanto, mais que fornecer nomes e dados de personagens e obras, o intuito, ao citar alguns, é
destacar o quanto se produziu, especialmente a partir da década de 60 e entrando pela década
de 70, tendo a malandragem como eixo temático, de modo que, nas palavras de Gilmar Rocha
(2005, p. 109), “a malandragem deixou de ser um tema marginal para tornar-se um problema
sociológico”.
Apesar de se poder dizer, a respeito da produção cultural sobre a malandragem nos
anos 60 e 70, que ela foi uma representação de segunda mão haja vista que, na época, se
anunciava o fim “daquela malandragem de outros carnavais”
16
, do malandro de terno branco,
chapéu de palha, lenço no pescoço e navalha no bolso ela fornece pistas importantes para
compreender as características e o significado da malandragem e do malandro brasileiros.
3.2 As especificidades do Malandro Brasileiro
Logo no início de “A genealogia da moral”, Nietzsche (1998), buscando uma compre-
ensão de caráter histórico acerca da moralidade humana, faz um levantamento etimológico
das palavras bom e mau. A conclusão a que chega é que “nobre” e “aristocrático” são os con-
ceitos fundamentais a partir dos quais se desenvolveu o entendimento ocidental de “bom” e,
paralelamente, a compreensão do que é “mau” surge, etimologicamente falando, de “comum”
e “plebeu”.
A conclusão leva a refletir se o mesmo não poderia ser feito com o termo “malandro”.
É neste sentido que, antes de começarmos a responder a pergunta de quem é o malandro brasi-
leiro, acreditamos que seria não apenas curioso, mas relevante, se submetêssemos ao exame
etimológico a palavra “malandro”.
Sem querer repetir o caminho realizado por Nietzsche, bastará apontar que a questão
de interesse de sua análise consiste em demonstrar o fato de que a compreensão do que é bom
ou mau e, consequentemente, certo ou errado, puro ou impuro, etc., está pelo menos a partir
de um ponto de vista etimológico condicionada por relações sociais entre grupos que detêm
o poder e grupos sociais subjugados por este poder.
16
Fazemos aqui referência à letra da canção “Homenagem ao malandro” de Chico Buarque
72
A análise da origem do termo “malandro” permite conclusão similar. Conforme o di-
cionário Houaiss da Língua Portuguesa, sua entrada no português se deu, provavelmente, pela
redução da palavra italiana “malandrino” cujo significado é salteador –, mais tarde assu-
mindo também o significado de pedinte leproso, derivado do termo latino malandrìa (uma
espécie de lepra). Ademais, ao analisar o antepositivo “malandr-”, pode-se perceber a presen-
ça do radical latino “malus” (mau), derivado do grego “melas” (negro), cuja análise feita por
Nietzsche aponta sua relação com as classes populares. O que se está tentando demonstrar
com esta pequena digressão etimológica é a possível relação, desde sua origem, entre o termo
“malandro” e a plebe e grupos marginais, o que, seguindo o argumento nietzscheano, faria
com que fosse visto como moralmente condenável ou inferior.
Melo e Souza
17
(2008, p.5) afirma que o “malandro, como o pícaro, é espécie de um
gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores”, Goto (1988, p. 11)
vai além, ao dizer que:
Provavelmente tão velha quanto o homem, que lhe tem dado várias formas
em sua prática histórica e social e na produção artística, desde os contos de
tradição oral, passando por clássicos como a Odisséia e o Decamerão, a ma-
landragem também é tema antigo na chamada cultura brasileira.
Se Cândido filia o malandro a um gênero mais amplo e universal sem especificar se
seria exclusividade de alguma cultura (pensamos na cultura brasileira), Goto estende a malan-
dragem como categoria sócio-cultural a várias culturas, desde tempos imemoriáveis. Além
disso, destaca seu caráter histórico, o que possibilita postular vários tipos de malandragem,
que difeririam não apenas de cultura para cultura, mas também por apresentarem diferentes
aspectos e significados sócio-culturais em diferentes momentos históricos dentro de uma
mesma cultura. Isto permite questionar qual seria a especificidade da malandragem e, por
conseguinte, do malandro – dentro da cultura brasileira.
nas primeiras aproximações da malandragem como objeto de estudo, percebemos
que ela parecia assumir características bastante particulares no contexto brasileiro. Um fato
que vale a pena ser mencionado, pelo menos por sua curiosidade, é que a enciclopédia eletrô-
nica Wikipédia traz a definição do verbete “malandragem” em duas línguas: português e in-
glês. O curioso é que, embora na explicação em português do verbete seja dito que a malan-
dragem possa ser considerada um modo de navegação social tipicamente (mas não
unicamente) brasileiro, na versão correspondente em inglês, os termos malandragem e
malandro são mantidos em português:
17
Doravante, também referido por Cândido ou Antônio Cândido
73
Malandragem is a Brazilian Portuguese term for the Bohemian lifestyle an
ethos of idleness, fast living and petty crime traditionally celebrated in
samba lyrics, especially those of Noel Rosa. The exponent of this lifestyle,
the malandro, has become significant to Brazilian national identity as a folk
hero. Constantly present in Brazilian literature, besides other arts such as
cinema and music, the malandro resembles the Spanish Picaro, but,
differently from this, he has a more criminal character, and frequently sees
his espertezas (Portuguese for smart and/or cunning) actions not working as
expected. (http://en.wikipedia.org/wiki/Malandragem. Acesso em
24/04/2008)
As palavras inglesas que mais se aproximam da definição de malandragem e malan-
dro, respectivamente, são “rascality” e “rascal”
18
. Elas, contudo, não correspondem perfeita-
mente aos termos malandragem e malandro em português. Embora “rascality” e “rascal”
comportem a idéia de manha / manhoso e desonestidade / desonesto, deixam de lado caracte-
rísticas importantes como a preguiça ou a aversão ao trabalho formal, a contravenção, a li-
gação com o samba e o papel na identidade nacional brasileira na definição de seu equiva-
lente em português.
Palavras com a mesma origem etimológica de “malandro” fazem parte de boa parte
dos idiomas neolatinos: malandrín (espanhol), malandrino (italiano) e malandrin (francês).
Em todas estas línguas, o vocábulo tem em comum o fato de estar ligado à idéia de certo grau
de perversidade ou ladroagem. Todavia, em português, a palavra, além das acepções acima,
ganha contornos diferentes, assumindo o sentido também de sagaz, boêmio. De certa forma,
pode-se dizer que esta nova dimensão significativa seria responsável por uma possível visão
positiva sobre o malandro e a malandragem no contexto brasileiro. Esta percepção positiva a
respeito do malandro é posta em discussão por Michel Misse (2005) ao admitir que, ao ser
chamado de malandro, alguém pode se sentir tanto ofendido quanto elogiado, dependendo do
contexto e da intenção:
Em certos contextos, posso gostar de ser chamado de malandro. Elogiam
minha astúcia, minha esperteza, o que pode ser positivo em certas situações.
É comum hoje em dia eu desejar ser chamado de malandro. Em outros mo-
mentos, no entanto, posso odiar ou reagir a que me chamem assim. Depen-
dendo do tom e da situação, posso até achar que me xingam, que me recri-
minam. (MISSE, 2005, p. 1)
18
Que podem ser usadas para descrever personagens da literatura norte-americana como Tom Sawyer e Huckle-
berry Finn, cujas malandragens m um caráter mais de molecagem e aventura do que a tentativa de tirar vanta-
gem de outras personagens: “The minister related many a touching incident in the lives of the departed, too,
which illustrated their sweet, generous natures, and the people could easily see, now, how noble and beautiful
those episodes were, and remembered with grief that at the time they occurred they had seemed rank rascalities,
well deserving of the cowhide.” (TWAIN, 1994, p. 118)
74
Para Misse (2005), esta ambivalência não diz respeito apenas aos diferentes sentidos
que a palavra pode assumir em diferentes situações, mas, sobretudo, à ambivalência do pró-
prio ser social a que ela diz respeito. Some-se a isso o fato de que a malandragem como cate-
goria social no Brasil pressupõe a indolência, a aversão ao trabalho, e estaremos nos aproxi-
mando da compreensão deste ser social.
assim a necessidade de sermos mais específicos e voltarmos à pergunta inicial:
como responder a questão de quem é esse malandro presente na cena sócio-cultural brasileira
através de sua genealogia sociológica?
De maneira geral, a concepção construída pela academia a respeito da figura do ma-
landro brasileiro é a de um ser sócio-cultural que se insere nas zonas intersticiais da sociedade
(MATOS, 1982), ou seja, caminha entre o permitido e o interdito; não se situa no moral nem
no imoral, habitando o amoral, onde certo e errado são relativizados, onde ordem e desordem
se (con)fundem (MELO E SOUZA, 2008). Além de sua existência límbica, tem por caracte-
rísticas a aversão ao trabalho formal e a preguiça, sobrevivendo de pequenos expedientes, não
se confundindo com o criminoso, apesar de o fio que os distingue ser, muitas vezes, bastante
tênue e sua conduta moral questionável. Para completar, pode-se dizer que o malandro brasi-
leiro é aquele que não prevê e nem provê, vive o momento.
Desse modo, a questão que se coloca é: o que levou o termo malandro a ganhar cono-
tações positivas na cultura brasileira?
A resposta a esta questão deve passar necessariamente por um exame de fundo sócio-
antropológico da genealogia da figura do malandro e da malandragem como categoria social
no Brasil.
Na visão de Melo e Souza, a personagem Leonardo de “Memórias de um sargento de
milícias” seria o primeiro grande malandro da novelística brasileira (MELO E SOUZA, 2008,
p. 5) e o malandro seria alçado à condição de símbolo através de Macunaíma, personagem do
romance homônimo de Mário de Andrade. Embora o próprio Mário de Andrade, no primeiro
e segundo prefácios do romance (ANDRADE, 2008), rejeite a condição de símbolo de seu
herói, admite que o que lhe interessou em Macunaíma foi a preocupação de trabalhar e desco-
brir “a entidade nacional dos brasileiros” (ANDRADE, 2008, p. 217).
Símbolo ou não, o que o romance de Mário de Andrade e o ensaio de Cândido têm em
comum é o fato de trabalharem com as características atribuídas ao malandro como um refle-
xo da própria sociedade brasileira.
Mario de Andrade (2008, p. 217) estende o subtítulo de “Macunaíma”, “O herói sem
nenhum caráter”, ao brasileiro. É importante ressaltar que ao se referir a “caráter”, o autor não
75
se restringe apenas a seu aspecto moral, mas, antes disso, refere-se à falta de caráter psicoló-
gico. Em outras palavras, Mario de Andrade fala sobre uma instabilidade identitária que se
deve à falta de uma civilização própria e de uma consciência tradicional. Para ele, essa falta
de caráter psicológico conduziria a uma falta de caráter moral: “daí nossa gatunagem sem
esperteza, (a honradez elástica /a elasticidade de nossa honradez), o desapreço à cultura ver-
dadeira, o improviso e a falta de senso étnico nas famílias. E sobretudo uma existência (im-
provisada) no expediente” (ANDRADE, 2008, 218). Efetivamente, como o próprio Mário de
Andrade aponta, seu livro não tem a pretensão de servir para estudos científicos de folclore,
afinal, em suas palavras, Macunaíma é um livro de “pura brincadeira” (ANDRADE, 2008,
225). Não obstante, de um ponto de vista sociológico, é capaz de trabalhar pontos chaves de
nossa identidade cultural.
A leitura que Cândido faz do romance de Manuel Antônio segue por este mesmo ca-
minho. Se, por um lado, recusa a concepção deMemórias de um sargento de milícias” como
um documento que reproduzisse fielmente a sociedade brasileira no período joanino, por ou-
tro, admite que seu caráter representativo advenha menos de uma reprodução documental da
sociedade daquela época do que uma reprodução do jogo dialético entre a ordem e a desordem
presentes na dinâmica social do Brasil joanino. É nisto que Goto (1988) se apóia ao concluir,
a partir de sua leitura do ensaio de Melo e Souza (2008), que o romance de Manuel Antônio
de Almeida seria, ao invés de um romance picaresco – como a crítica literária costuma defini-
lo –, um romance malandro, por caracterizar a sociedade brasileira através da malandragem.
Até aqui, a busca pela resposta de quem é o malandro brasileiro parece apontar para a
sociedade brasileira em seu conjunto. Destarte, parece importante, nesta busca genealógica
pelo malandro nacional, ir um pouco mais fundo no exame sócio-antropológico.
Holanda (1995), ao retratar as origens da sociedade brasileira a partir dos portugueses,
fornece dados importantes sobre nossa psicologia social. Para ele, os países periféricos da
Europa, por servirem como “territórios pontes” por onde a Europa se comunica com as outras
culturas, não portariam de maneira proeminente o modo “europeu” de ser. Povos como os
alemães e os portugueses pautariam suas ações a partir de éticas diversas: a ética do trabalho e
a ética da aventura, respectivamente. Enquanto a primeira vincular-se-ia ao planejamento e
diligência na conquista dos objetivos, a segunda compreenderia características como audácia,
imprevidência, irresponsabilidade e instabilidade. Para os povos do primeiro tipo (trabalha-
dor), o objeto final seria sempre tido como fruto do processo; para os do segundo tipo (aven-
tureiro), importaria mais o objetivo final.
76
Seguindo a argüição de Holanda, conclui-se que a repulsa ao culto ao trabalho foi típi-
ca dos povos ibéricos, de modo que a ociosidade sempre pareceu aos portugueses e espanhóis
mais nobilitante que o trabalho árduo. E é este ponto, um dos centrais no argumento de Ho-
landa, que o liga, na visão de Jessé de Souza (1999), à tese weberiana que relaciona o desen-
volvimento do capitalismo moderno à ascese protestante. Para Weber (2006), o protestantis-
mo ascético, principalmente através do calvinismo, rompe com o ethos católico na medida em
que não qualquer mediação sacramental entre Deus e os homens, havendo um abismo in-
transponível entre os dois. Ademais, de acordo com a doutrina calvinista da predestinação,
apenas alguns homens seriam escolhidos para a vida eterna, sendo que os critérios utilizados
por Deus para determinar quem seria digno de salvação escapariam à compreensão humana
(Weber, 2006). Esta concepção de desígnios divinos e de um Deus que transcendem a esfera
mundana intensificam a solidão e a incerteza humana e, desta maneira, cria-se a ética do tra-
balho árduo para a glória de Deus como forma de certificação de se estar na graça divina, de
modo que o acúmulo material provindo deste trabalho em nome de Deus funcionaria como
um certificação da salvação divina. Assim, de acordo com Jessé de Souza (1999), os países
ibéricos, por serem predominantemente católicos, não seguiriam a ética ascética protestante.
Mesmo que não se possa concordar com a concepção da sociedade brasileira como
uma sociedade fundamentalmente malandra, no sentido até aqui colocado, há que admitir que
a malandragem compõe, em maior ou menor grau, traços importantes da personalidade social
brasileira. Para DaMatta (1997), a cena social nacional é representada através de três rituais
que se complementam: as paradas militares, as procissões e os carnavais. É importante sali-
entar que o autor chama atenção para o fato de os ritos não serem momentos substancialmente
diferentes da vida cotidiana, mas um rearranjo dos elementos que compõe a cotidianidade que
propiciará um close up nas coisas do mundo social. Dito de outro modo, para DaMatta, não é
a transformação dos elementos do mundo cotidiano que faz o ritual, mas a manipulação des-
ses elementos e também das relações sociais que compõem a cotidianidade.
Seguindo o argumento desse autor, os rituais servem para salientar os aspectos do co-
tidiano e, na cena brasileira, isso ocorreria de três maneiras básicas: o reforço, a neutralização
e a inversão. Desse modo, ele relaciona o reforço da ordem às paradas militares – tipo de ritu-
al em que as autoridades estão marcadamente separadas do povo e este, por sua vez, participa
apenas passivamente ao assistir ao desfile e elege como personagem principal deste rito o
“caxias”. Às procissões religiosas, ele relaciona a neutralidade, basicamente devido ao caráter
77
renunciador
19
(da mundanidade e sua ordem) que estas teriam; o carnaval seria o rito de inver-
são da ordem, em que o povo não mais as autoridades ocupa o centro do ritual, sendo sua
personagem chave o malandro.
Desta maneira, pode-se concluir que não é o caso de afirmar que a sociedade brasileira
seja uma sociedade exclusivamente malandra, mesmo porque o autor, além da personagem
malandra, identifica duas outras instâncias em que a personalidade social brasileira se mani-
festa: o caxias e o renunciador. Todavia, baseado em sua argumentação, é razoável reafirmar
que o elemento “malandragem” faz parte da constituição da psique social brasileira. A leitura
de Memórias de um sargento de milícias feita por Cândido parece corroborar o pensamento de
daMatta, afinal, para ndido, os universos da desordem (do malandro) e da ordem (o do ca-
xias) movem-se dialeticamente fazendo com que a malandragem seja o fio condutor do ro-
mance. Há que dizer, todavia, que o jogo dialético promovido pela coreografia da ordem e da
desordem é substituído, no texto de DaMatta, pela descrição, conseqüência da introdução de
uma nova categoria, a renunciação, além do reforço (ordem) e a inversão (desordem).
Um ponto, contudo, precisa ser mais bem explorado: a sagacidade amoral do malan-
dro. Ao referirmos à amoralidade, o que interessa analisar é o que leva o malandro a confun-
dir o lícito e o ilícito, adotando um padrão de comportamento que, embora reprovável, não
chega a ser criminoso e ainda é, muitas vezes, aceito. Em que se baseia a ética egoísta e utili-
tarista que orienta seu comportamento e ações no mundo social?
Em um artigo de 2004, Castro afirmava que a incoerência entre as normas burocráti-
cas e as regras da vida prática permitiria a interferência das relações pessoais nas leis univer-
sais, o que facilitaria a utilização do “jeitinho brasileiro”. Cândido (2008) dizia, em seu
mencionado ensaio, que a ordem da sociedade brasileira no período representado por “Memó-
rias de um sargento de milícias” era apenas aparente, (especialmente por que dela fazia parte a
desordem, confundidas em um jogo dialético); a ordem nunca foi um princípio puro e absolu-
to na sociedade brasileira. A essa incoerência entre normas e vida prática, acrescenta-se a ca-
rência de moral no trabalho que tem por conseqüência o enfraquecimento das organizações
sociais, levado a cabo pela falta da noção de solidariedade, que existe onde vinculação
de sentimentos, como na família e entre amigos, mas nunca em um ambiente impessoal como,
por exemplo, o trabalho (HOLANDA, 1995).
19
E é interessante observar que DaMatta coloca como personagens renunciadoras tanto os beatos quanto os
bandidos. A exemplo de Sebastião e Corisco em “Deus e o diabo na terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha,
tanto o beatismo quanto o banditismo promovem uma fuga do mundo. A diferença é que no último a personagem
sai da ordem estabelecida voltando depois para ela. É importante salientar que banditismo e beatismo diferem da
malandragem, pois enquanto os primeiros são renunciadores, apontando para caminhos externos ao sistema, o
segundo se insere nas zonas intersticiais, está concomitantemente dentro e fora da ordem. (conf. daMatta, 1997).
78
A existência da solidariedade apenas em ambientes onde haja um contato humano
mais próximo é fruto de uma cultura de personalidade em que as relações pessoais tendem a
invadir todas as outras esferas da vida. Para Holanda (1995), esse personalismo em todas as
relações, associado à fidalguia (o sentimento do direito a privilégios), gera maior valorização
de interesses particulares em detrimento de interesses universais. Holanda condensa esse per-
sonalismo nas relações na figura do “homem cordial”. Central na argumentação de Holanda, o
homem cordial não é aquele das boas maneiras, nas palavras de Cândido (1995, p.17), o ho-
mem cordial:
Não pressupõe bondade, mas somente predomínio de comportamentos de aparência
afetiva (...) é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da po-
sição do indivíduo, e não de sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na
intimidade dos grupos primários.
Para Jessé de Souza (1999), o homem cordial de Holanda é o oposto ideal do protes-
tante ascético weberiano, sendo, assim, o malandro que o título do livro de Souza sugere
20
. É
importante dizer também que, para Souza (1999), o mazombo – filho de português nascido no
Brasil compartilha muitas características com o homem cordial de Holanda: o individualis-
mo personalista, a busca por prazeres imediatos e o descaso por ideais comunitários de longo
prazo.
Para Holanda (1995), o imediatismo nas ações, a ausência de preocupação com o futu-
ro, a aversão ao trabalho formal, o personalismo nas relações e sua conseqüente valorização
do particular sobre o público, o sonho do enriquecimento fácil estariam, dessa forma, presen-
tes no Brasil de forma congênita. Tomando por base este argumento, muitas das característi-
cas comumente associadas à malandragem estariam presentes no comportamento e na ma-
neira de ser dos portugueses que deixaram sua marca de maneira indelével na identidade cul-
tural nacional.
Desta maneira, parece que a resposta para a pergunta de como a figura do malandro
logrou uma conotação positiva na cultura brasileira deve-se, em parte, às suas características
de povo. Se, em algum nível, o “brasileiro” compartilha dos principais traços definidores da
personalidade malandra, torna-se compreensível por que ele tende a ser complacente com
personagens que, de alguma forma, nas quais, de alguma forma, se reflete.
Se, por um lado, pode-se dizer que a malandragem assume conotações aceitáveis por
causa da identidade brasileira com as personagens malandras, por outro, que considerar
que, em uma sociedade onde o trabalho regular nem sempre traz as compensações pregadas
20
SOUZA, Jessé (org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasí-
lia: Ed. Universidade de Brasília, 1999.
79
pela ideologia dominante, a sagacidade para descobrir maneiras alternativas de sobrevivência
acaba impressionando positivamente. É desse modo que as travessuras e malandragem de um
“Pedro Malasartes” para ludibriar personagens que exploram as classes subalternas funcionam
como elemento catártico. Assim, identificação, sagacidade e catarse são elementos que, alia-
dos ao humor (como nas histórias de Malasartes) ou a certo glamour marginal (como em Ma-
lagueta, Perus e Bacanaço de João Antônio), promoveriam uma aceitação e avaliação positiva
das personagens malandras.
3.3 A representação do Malandro
Até o presente momento, não fizemos qualquer diferença entre o malandro como ser
social e sua representação nos diferentes textos culturais. Fazê-la, todavia, será central para o
desenvolvimento desse estudo.
A razão pela qual essa diferenciação é importante consiste no fato de este não ser um
trabalho em sociologia ou história (ainda que, de certa forma, dependa dessas ciências para
seu desenvolvimento), mas sim em comunicação mediática em que, ao trabalharmos com te-
ledramaturgia, é a representação dessa figura social, e não a realidade sociológica, que nos
possibilitará desvelar o que há de ideológico na maneira pela qual essa personagem é constru-
ída e apresentada: não é o malandro enquanto realidade sociológica que nos interessará, mas
sim sua representação, num primeiro momento, nos textos culturais em geral e, num segundo,
no seriado de TV “A grande família”.
Desse modo, importa dizer de início que a existência da pessoa (ser real/empírico) e a
da personagem ocorrem em níveis diferentes, sendo o critério epistemológico aquele que se-
para esses dois níveis de existência de maneira mais nítida (ROSENFELD In: MELO E
SOUZA e outros, 2007, p. 27): a ficção é o único lugar (...) em que os seres humanos se
tornam transparentes à nossa visão” (ibidem, p. 35). A diferença fundamental entre pessoa e
personagem reside no fato de a última nunca alcançar a determinação completa à qual está
submetida a primeira; a pessoa se apresenta como unidade concreta, composta de infinitos
predicados, sendo que apenas alguns podem ser tomados por meio de operações cognosciti-
vas, que são sempre limitadas e fragmentárias diante da infinitude do ser real.
Diferentemente da pessoa real, a personagem adquiri caráter definido de tal maneira
que a observação das pessoas reais dificilmente poder-nos-ia oferecer:
O autor pode realçar aspectos essenciais pela seleção dos aspectos que apresenta,
dando às personagens um caráter mais nítido do que a observação da realidade cos-
80
tuma sugerir, levando-as, ademais, através de situações mais decisivas e significati-
vas do que costuma ocorrer na vida. Precisamente pela limitação das orações, as per-
sonagens têm maior coerência do que as pessoas reais (...); maior exemplaridade
(...); maior significação; e, paradoxalmente, também maior riqueza não por serem
mais ricas do que as pessoas reais, e sim em virtude da concentração, seleção, densi-
dade e estilização do contexto imaginário, que reúne os fios dispersos e esfarrapados
da realidade num padrão firme e consistente (ROSENFELD In: MELO E SOUZA e
outros, 2007, p. 35).
Rosenfeld (In: MELO E SOUZA e outros, 2007), ao apresentar a personagem como
“ser intencional” – construída através da seleção de traços verossimilhantes que resultam num
padrão mais “firme e consistente” comparado àquele da pessoa real –, não apenas aponta para
o fato de ela revelar-se mais prontamente que as pessoas reais, mas também a define como
signo. É seu estatuto de “ser significante” que, pelo fato de ter sua existência e características
manipuladas ainda que se admita a autonomia relativa da personagem frente a seu(s) au-
tor(es) – possibilita sua dimensão ideológica.
Por um lado, porém, que se considerar que as representações do malandro por meio
de personagens presentes nos mais variados textos culturais partem do malandro enquanto
ator social sem, no entanto, com ele se confundir (MATOS, 1982, p. 13). Por outro lado, é
necessário dizer que essas representações também tomam por base a figura do malandro que
habita o imaginário, de forma a estabelecer com esse uma relação de reciprocidade, pois, ao
mesmo tempo em que o imaginário acerca do malandro determina, em parte, a maneira pela
qual a representação é produzida, ele – ao ser atualizado – é por ela modificado. Dessa forma,
ainda que o malandro como ser social não seja nosso foco, é preciso ter em mente sua impor-
tância para a configuração da personagem nele baseada.
Deixar de lado a análise do ser social para ocuparmo-nos de sua representação desloca
a discussão do âmbito sócio-antropológico para o da representação ideologicamente orientada,
sem que percamos de vista a determinação sócio-histórica dessa representação. Simultanea-
mente, levar em conta sua dinâmica recíproca com o imaginário possibilita inserir a discussão
ideológica na esfera da cultura e, tomando como pressuposto as considerações (feitas pou-
co) sobre comunicação de massa, esperamos ter condições de, no devido tempo, alcançar
uma melhor compreensão das implicações ideológicas do malandro em “A grande família”.
O malandro é, destarte, mais que um ser social; é um ser de linguagem. É uma metáfo-
ra, de modo que está ligado mais a um tipo de discurso do que a um tipo de conduta (MA-
TOS, 1982, p. 67). Tendo estabelecido sua condição de figura de linguagem questão a qual
mais tarde voltaremos –, passemos agora a outro ponto que, similarmente, merece nossa aten-
ção: a tipologia do malandro.
81
Trabalhando primordialmente com contos da tradição oral reconhecendo, assim, que
as nuances que caracterizam as personagens analisadas decorrem de condições narrativas
(como, por exemplo, a habilidade em narrar e a capacidade, por parte do narrador, de incluir
mais ou menos detalhes na caracterização das personagens) e do aspecto moral que o narrador
deseja enfatizar –, Costa (2005) delimita, em linhas gerais, três tipos de malandro: o esperto, o
besta e o preguiçoso.
De acordo com Costa, o esperto, na maioria das vezes, vive numa situação de desi-
gualdade social e conta apenas com sua esperteza para sobreviver. Para ela, esse tipo de ma-
landro tem, em geral, a simpatia do público uma vez que suas ações, pouco ortodoxas, produ-
zem um efeito de desforra e do estabelecimento de um tipo bastante peculiar de justiça. Afir-
mando ser o “esperto” o malandro por excelência, Costa menciona alguns exemplos desse
tipo, dentre eles podemos citar Carioca (das HQs), Max Overseas (“Ópera do Malandro”),
Dino (“Vai trabalhar vagabundo!”), André (“O homem que copiava”), Leonardo (“Memórias
de um sargento de milícias”), João Grilo (“Auto da compadecida”), Macunaíma, Brás Cubas,
além de exemplos filiados à tradição popular como nos contos de animais personificados
(“A onça e o coelho”) e nas histórias de Maria Sabida e Pedro Malasartes
21
.
O segundo tipo, o besta, também conta com a simpatia do público, porém em menor
grau que o esperto. Segundo ela, essa simpatia é mais um resultado do fato de ele ser inofen-
sivo; somente fazendo mal a si próprio, ele é frequentemente recompensado no final por seu
bom coração, ou então, salvo pela sorte ou por alguma solução mágica. Como exemplo, Costa
cita O Malasartes interpretado por Mazzaropi no filme “As aventuras de Pedro Malasartes”
(1960) e, na tradição popular oral, Mané Sabido.
O preguiçoso completa a tipologia proposta por Costa. Argumenta, a pesquisadora,
que no preguiçoso diversamente do esperto toda malícia é esvaziada e, embora sua pre-
guiça provoque o riso, ela é condenável; poucas vezes, entretanto, o preguiçoso é castigado,
ao contrário, é freqüentemente recompensado ao fim da história.
Embora a tipologia oferecida pela pesquisadora pareça ser suficiente para abordar seu
objeto de pesquisa (a malandragem e a preguiça nos contos de tradição oral), ao ser aplicada a
outros objetos, no entanto, ela mostra-se inadequada. Em primeiro lugar, percebe-se que, en-
quanto para a categoria “esperto” a pesquisadora fornece com facilidade um grande número
de malandros exemplares, ao passar para a categoria “besta”, os exemplos escasseiam e, ao
descrever o último tipo (o preguiçoso), a autora não chega a fornecer exemplos concretos.
21
Com relação às personagens de histórias da tradição oral, a pesquisadora coletou diversas delas, apresentando-
as, como apêndice, ao final de sua pesquisa.
82
No que se refere ao reduzido número de exemplos para a segunda categoria (besta),
observamos o fato de que, enquanto um dos exemplos por ela citado (Pedro Malasartes) tam-
bém figura na categoria “esperto”, o outro (Mané Sabido) não possui a sagacidade típica do
malandro, o que põe em questão a própria condição da personagem como tal. É bem verdade
que, no caso de Malasartes, a personagem que a pesquisadora inclui na categoria de “besta”
trata-se de uma representação bastante específica (o Malasartes interpretado por Mazzaropi),
sendo que, via de regra, as outras representações desse malandro, configurar-se-iam na cate-
goria “esperto”. Todavia, é preciso mencionar que, a nosso ver, mesmo o Malasartes interpre-
tado por Mazzaropi apresenta-se mais como uma personagem sagaz do que como tolo. O fato
é que seu jeito modesto e pouco refinado o faz parecer parvo, entretanto, é justamente dessa
aparência que a personagem de Mazzaropi, astutamente, faz uso para ludibriar aqueles que
acreditavam poder passá-la para trás.
Já no caso do segundo exemplo (Mané Sabido), o fato de ele lograr sucesso ao final da
história, como a própria pesquisadora reconhece, deve-se, não a sua astúcia, mas sim à sorte e
a expedientes mágicos. Logo, mesmo os poucos exemplos que Costa cita para a categoria de
malandros bestas revelam-se pouco efetivos, uma vez que se tratam de uma personagem es-
perta (caso do Malasartes de Mazzaropi) e de outra não efetivamente malandra (caso de Mané
Sabido).
Com relação às personagens preguiçosas, o fato de a pesquisadora não fornecer qual-
quer exemplo desse tipo de malandro
22
, faz parecer que não existam exemplos a serem men-
cionados, quando, todavia, a própria personagem João Preguiçoso seria o exemplo por exce-
lência, mas que, por algum motivo, não é mencionado por Costa. Entretanto, mesmo que fos-
se mencionado, João Preguiçoso teria o mesmo problema de Mané Sabido, haja vista que a
personagem alcança sucesso, na maioria das vezes, por meios mágicos e não por sua astúcia.
Além disso, não fica claro se a tipologia oferecida por ela refere-se a personagens ma-
landras como a pesquisadora faz parecer em algumas partes de seu texto: “que tipos de ma-
landros estão presentes no nosso texto cultural e de que modo se configuram?” (COSTA,
2005, p. 124) –, ou uma tipologia de personagens marginalizadas que, de alguma forma (seja
pela sagacidade, pela sorte ou por meios mágicos) conseguem lograr sucesso ao fim da histó-
ria. A confusão se dá, pois enquanto em certos momentos a pesquisadora fala de tipos de ma-
22
Com efeito, o único exemplo fornecido refere-se a um conto popular em que Jesus e São Pedro usam de arti-
manha para corrigir moralmente um preguiçoso que fazia com que a esposa trabalhasse em seu lugar. Entretanto,
além de não se tratar de uma personagem recorrente como Malasartes, ao preguiçoso mencionado na história
reportada, não é dada nenhuma característica (física ou psicológica) além da preguiça, que o configuraria como
malandro. Portanto, o exemplo diversamente dos exemplos do tipo “esperto”, torna-se pouco eficaz em sua
argumentação.
83
landro, em outros ela contrapõe o “besta” e o “preguiçoso” ao “malandro” ( e não ao “esper-
to”), deixando passar assim que aos dois primeiros não caberia o título de malandro, uma vez
que a esperteza não seria uma de suas características.
Isso tudo faz com que a categorização proposta por Costa seja demasiadamente fluida.
Essa fluidez é explicada pela autora como sendo resultado das escolhas e habilidades de cada
narrador (no caso do Malasartes de Mazzaropi, aqueles que fizeram o filme se instauram co-
mo narradores) que, ao atualizarem a história, são, em última instância, os responsáveis pelas
características da personagem. Outra explicação por ela oferecida para a mobilidade das cate-
gorias consiste no fato de o malandro ser fugidio, intersticial e, por essência, resistir ser fixado
em qualquer tipo de categorização.
Com isso, pensamos que a tipologia das personagens malandras sugerida por Costa, a
despeito de parecer suficiente para seu estudo em específico, figura-se mais como característi-
cas que as personagens (malandras) poderão ter em maior ou menor grau. Por certo, esperteza,
embora seu grau também possa variar, é característica essencial de toda personagem malandra
ainda que tal esperteza seja ultrapassada pela de outrem; ou ainda que se mostre ineficaz,
revelando, assim, um pretenso malandro, com características similares a do “besta” (apesar da
– ou por causa da – pretensa sagacidade) citado por Costa.
Assim sendo, ao invés da tipologia de Costa, consideramos ser mais apropriado divi-
dir as personagens malandras em dois grandes grupos: malandros urbanos e malandros rurais.
A vantagem dessa categorização consiste no fato de, por ser mais abrangente e depender me-
nos da caracterização da personagem no momento da narrativa, ser mais consistente que a
tipologia de Costa. Igualmente, além disso, ao estabelecer claramente de que se trata de uma
categorização de personagens malandras, e não de personagens marginalizadas que logram
sucesso no fim da história, é possível aumentar o leque de exemplos, incluindo malandros
que, por qualquer motivo, falham em alcançar tal sucesso.
Ainda que a tipologia de Costa tenha fornecido características importantes sobre o ma-
landro enquanto personagem, acreditamos que, antes de tratarmos das diferenças entre as re-
presentações urbana e rural do malandro brasileiro, seria útil aprofundar a questão de quais as
características que tornariam singular a representação brasileira do malandro.
A personagem malandra não é exclusiva à cultura brasileira. Como exemplo de perso-
nagens malandras na produção cultural de outros povos, podemos citar o forasteiro que logra
a personagem de Mark Twain, Jim Smiley, no conto “A famosa rã saltadora do condado de
Calaveras”, ou então as personagens Salabaeto e Madonna Iacofiore, de Boccacio. Admitindo
a existência de personagens malandras em outras culturas, Antonio Cândido concebe a repre-
84
sentação da malandragem em dois níveis: por um lado, teríamos a malandragem genérica,
sinônimo de esperteza, de modo que qualquer aventureiro astucioso cuja presença é consta-
tada em todos os folclores pode ser considerado malandro. Esse malandro genérico, muitas
vezes identificado pela figura do pícaro, tem, na visão de Cândido (2008), uma malandragem
pragmática, sempre em busca de uma finalidade. Dentro desse universo genérico, Cândido
(ibidem) afirma haver a malandragem voltada para si; uma malandragem lúdica que consiste
em praticar a malandragem pela malandragem, sendo este, muitas vezes, o caso da persona-
gem Leonardo de “Memórias de um sargento de milícias”.
Nossa concordância com Cândido tem algumas reservas. Colocamo-nos de acordo
quando ele admite que a representação da malandragem tal qual o fenômeno social equiva-
lente não é exclusiva ao contexto cultural brasileiro. Ao lado dos exemplos acima citados
advindos das literaturas americana e italiana, acrescente-se o pícaro “El Lazarillo de Tormés”,
de modo que, como Cândido, consideramos também personagens picarescas como malandras.
Além disso, basta lembrar que a própria personagem Pedro Malasartes, apesar de também
fazer parte da cultura brasileira, tem sua origem em Portugal.
Contudo, ao tomar “a malandragem com fim em si mesma” como subgênero da ma-
landragem geral, Cândido faz crer que a especificidade da malandragem brasileira resida no
fato de ela ser imanente e lúdica. Sendo isso verdade para a personagem foco de sua análise,
corre-se o risco de supor que todas as personagens malandras serão como Leonardo. E é nisso
que consiste nosso desacordo. Aceitar Leonardo como o primeiro malandro da novelística
brasileira não significa aceitá-lo como modelo único ou prototípico. Sem dúvida, ele compar-
tilha várias de suas características com outras personagens malandras, como a falta de talento
para o trabalho regular e formal (como Zé Carioca), a falta de provisão e o interesse em viver
para o momento (como Firmo, personagem de Aluísio Azevedo em “O cortiço”
23
), sem ser
igual a nenhuma delas por completo. Primeiramente, falta-lhe a condição de excluído de um
Carioca e, em segundo lugar, falta-lhe também aquele aspecto de violência (que chega à
criminalidade) de um Firmo.
23
Pode-se aqui traçar um paralelo interessante: O Leonardo, ao mesmo tempo em que pode ser comparado a
Firmo, aproxima-se também de Jerônimo. No romance de Aluísio Azevedo, Firmo representa, desde o início, a
pândega e a alegria dos moradores do cortiço, ao passo que Jerônimo, ao chegar, representa a austeridade e o
trabalho árduo daquele que ambiciona vencer na vida (e, um dia, deixar o Brasil e voltar para Portugal). Dessa
maneira, é como se em “O cortiço” a ordem e a desordem, tal qual no romance de M. A. de Almeida, também se
contrapusessem dialeticamente, através de Firmo e Jerônimo, sendo Rita Baiana a personagem responsável pela
fusão dessas duas esferas, ao trazer Jerônimo à esfera da desordem. Do mesmo modo, no romance de Almeida,
enquanto Luisinha – tal qual Piedade – seria a personagem que atrai Leonardo para a esfera da ordem, Vidinha –
tal qual Rita Baiana – atraí-lo-ia para desordem. Contudo, uma das principais diferenças é o fato de que, diferen-
temente de Firmo e Jerônimo, Leonardo é, desde o início, uma personagem intersticial. Além disso, falta a Firmo
o elogio à malandragem visto em outras obras, de modo que, se a personagem é malandra, o romance não o é.
85
Assim, são outras as especificidades que devemos buscar para as personagens malan-
dras em nossa cultura. Antes de buscá-las, porém, é necessário lembrar que, conforme nos
aponta Ciscati (2000, p. 220), “a cara do malandro não é uma, são várias, e assim também o
são as suas práticas e seus espaços de atuação”. Desse modo, reconhecemos os limites de nos-
sa tentativa de categorização, ao mesmo tempo em que acreditamos que nossa tentativa seja
útil como forma de refletir sobre quais têm sido as mais recorrentes características de algumas
das principais personagens malandras na nossa cultura.
Sobre a personagem malandra nacional, não basta dizer que seu intento seja lograr o
próximo; é necessário perceber que seu logro está sempre vinculado à condição social de
marginalidade sendo que, algumas vezes, esse logro liga-se também à vingança e à busca de
justiça (como é o caso das personagens da tradição oral como Malasartes) e, na maioria das
vezes, à improvisação da sobrevivência e ao arranjar-se temporariamente.
Essa é a verdade de personagens como João Grilo (personagem de “Auto da Compa-
decida” de Ariano Suassuna), Carioca (das HQs), Nana e Gegê (da Telenovela “Cambala-
cho”, exibida pela Globo em 1986), Castelo (personagem de Lima Barreto no conto “O ho-
mem que sabia Javanês”).
Com relação a João Grilo, nem sempre suas artimanhas são para benefício próprio.
Muitas vezes a personagem lança mão delas para conseguir acomodar situações envolvendo
outras personagens. Já, ao contrário, as personagens Carioca, Castelo Nana e Gegê têm
seus golpes como meios de conseguir dinheiro ou posição social. Todas essas, por meio das
situações cômicas em que se envolvem, tendem a obter a simpatia do público, haja vista que
suas artimanhas não chegam a causar grandes prejuízos àqueles que lhes servem de vítimas.
Com relação à personagem Carioca (conhecida nos EUA como Joe Carioca), é in-
teressante notar que se trata de uma personagem nascida num estúdio norte-americano (Walt
Disney) durante a “política da boa vizinhança” do governo de Franklin D. Roosevelt nos anos
40. Em um trabalho apresentado na Intercom de 2003, Marcília Luzia Gomes da Costa Men-
des divide a trajetória da personagem em duas fases: a primeira quando suas histórias eram
produzidas por cartunistas americanos e a segunda que compreende sua fase nacional de pro-
dução. Para Mendes, (2003), na fase americana, o estereótipo da brasilidade era representado
pelo papagaio através da esperteza e da malandragem. a fase nacional é dividia por ela em
duas subfases e em ambas a malandragem e a preguiça da personagem são acentuadas. No
entanto, enquanto na primeira subfase Carioca é retratado como um malandro dócil que
tem sua malandragem e astúcia sempre premiadas, na segunda, seu perfil de caloteiro se so-
bressai e a malandragem do papagaio é continuamente castigada.
86
Outras personagens, como Malagueta, Perus, Bacanaço e Paulinho Perna Torta (de Jo-
ão Antônio); Tucão e Tony Carrado (respectivamente das telenovelas “Bandeira 2” e “Manda-
la”, exibidas pela Rede Globo em 1971 e 1987); e Max Overseas (Ópera do Malandro) têm
suas artimanhas ligadas ao mundo da jogatina e da contravenção. E, embora se possa dizer
que as personagens Tucão, Tony Carrado e Paulinho Perna Torta não sejam de fato desfavo-
recidos por ocuparem posições de comando, que se lembrar como o faz o próprio Pauli-
nho no conto de João Antônio que essas personagens vieram de baixo e pertencem ao sub-
mundo e, se elas ocupam lugar de destaque, esse lugar é ainda o submundo.
Outra característica que compõe muitas das personagens malandras é o fato de serem
dadas a mulheres, como é o caso de Bonitão (do filme “O pagador de promessas”), Macunaí-
ma, Laércio Arrudão (do conto Paulinho Perna Torta) e Max Overseas, sendo que, para esses
dois últimos, as mulheres também são fonte de exploração financeira, revelando a relação
comum entre a malandragem urbana e o submundo da prostituição (CISCATI, 2000).
Dessa maneira, voltando à separação entre malandros urbanos e malandros rurais, po-
demos vislumbrar certo padrão no que se refere à composição de suas personalidades. É bem
verdade que ambas as categorias tendem a ser marcadas pela preguiça ou aversão ao trabalho
formal, bem como pela sagacidade. Há, porém, mais diferenças que semelhanças.
Uma diferença importante diz respeito à narração. Se de um lado a narrativa das histó-
rias envolvendo os malandros rurais tendem a ser cômicas, de outro, o mesmo nem sempre é
verdade com respeito às histórias que envolvem os malandros urbanos, veja-se, por exemplo,
os contos de João Antônio. Esses, ao explorar a vida daqueles que circulam pela “boca do
lixo”, aprofundam a dimensão humana das personagens de modo a afastar qualquer julgamen-
to maniqueísta com relação a elas, ao mesmo tempo em que criam algo como um glamour
marginal ao redor da existência dessas personagens.
Ademais, para os malandros rurais (Malasartes, João Grilo, João Preguiçoso, etc.) as
artimanhas tendem a produzir efeito de desforra (cujo resultado, no mais das vezes, consiste
em tirar a personagem da condição desfavorável de onde partiu) ou de acomodação de uma
situação desfavorável (nem sempre em benefício próprio) e suas ações embora amorais
não tangenciam a contravenção ou a criminalidade, caracterizando-se mais como engodo ou,
“conto do vigário”.
a artimanha utilizada pelos malandros urbanos visa ao benefício próprio (geralmen-
te financeiro) e, muitas vezes, é permeada pelo crime ou contravenção (como, por exemplo,
Max Overseas: contrabando e porte ilegal de armas; Castelo: estelionato; Tucão: jogo do bi-
cho; Bacanaço: jogatina), embora nem sempre essa dimensão criminosa apareça em foco na
87
narração da história como é o caso de Castelo em “O homem que sabia Javanês”. Dessa
maneira, o malandro urbano, diferentemente do rural, se não faz parte do submundo do crime,
da contravenção e da exploração da prostituição, pelo menos transita por ele ou a ele tem a-
cesso.
Assim, percebemos que a malandragem urbana, além de estar mais próxima do sub-
mundo e da criminalidade, é aquela que está mais próxima do “arranjar-se”, em outros termos,
está mais ligada à falta de provisão típica do malandro brasileiro, situação decorrente de uma
explosão demográfica urbana em que as cidades cresceram mais rapidamente que a industria-
lização, gerando assim um exército de desempregados ou subempregados. Esse determinante
sócio-histórico que produziria o malandro urbano como ser social é o mesmo que serve de
inspiração e base sociológica para o aparecimento da representação desse ser social através da
personagem malandra.
Se o malandro rural representa a desigualdade social e sua malandragem funciona co-
mo metáfora de inversão em que aqueles que ocupam as bases da organização social são
lançados a posições de liderança (caso de João Preguiçoso, que ao final torna-se rei) –, como
instrumento de vingança (caso de Malasartes que, através da sagacidade, vinga o irmão ao
ludibriar o patrão perverso) ou como forma de levar vantagem sobre aqueles que estão em
posição de poder (caso de João Grilo e de Malasartes), o malandro urbano representa parte
dos excluídos como elemento dissidente da tensão entre capital e força de trabalho. Isso é
verdade tanto com relação ao malandro enquanto representação quanto com relação ao ma-
landro como ser social, conforme aponta Ciscati (2000, p. 198) ao dizer que “o destino da
maioria da população que vivia no Brás ou em qualquer outro bairro operário, na primeira
metade do século XX era tornar-se mão-de-obra de uma fábrica ou ser perseguida como vadi-
a”.
Nesse ponto, então, retornamos à questão do malandro como ser de linguagem.
Matos (1982) argumenta que o malandro, ao existir como ser intersticial entre o anta-
gonismo capital versus trabalho, ordem versus desordem (para utilizar as palavras de Cândi-
do), funciona como utopia coletiva, representando a voz dos setores mais baixos da sociedade,
cujos direitos de se expressar são mais decisivamente tolhidos por uma organização social que
tende a esmagar o indivíduo. Assim, ao conceber o malandro como metáfora, a pesquisadora
nele uma crítica velada à sociedade global e ao discurso do capitalismo tardio que se pre-
tende absoluto:
Para se contrapor a esse poder e fazer ouvir sua própria voz, o discurso marginal dos
que não participam do poder não poderia usar das mesmas armas. Partindo de uma
88
classe econômica e politicamente subalterna, o recurso para se fazer ouvir é a disso-
nância sutil. Para se opor a um sistema moral rígido e vigoroso, o discurso malandro
buscará justamente o oposto de qualquer moral, o descoroamento de toda verdade.
Ele procurara ser um discurso em movimento constante, um discurso dialógico.
(MATOS, 1982, p. 186).
Nesse mesmo sentido se coloca a conclusão de Costa, para quem, as personagens tipi-
camente malandras dos contos populares como, por exemplo, Pedro Malasartes e João Pre-
guiçoso –, ao alcançarem seus objetivos por meio de regras morais próprias, desafiando assim
as regras sociais, estariam do outro lado do poder, combatendo-o com suas armas e, portanto,
pondo em risco a estrutura social de exploração do trabalho. Reconhece, porém, que essa
atitude anti-exploratória e anti-capitalista depende fundamentalmente da ocupação, por essas
personagens, dos interstícios da sociedade; em outros termos, a metáfora poderia produzir
mudanças concretas ao manter seu posicionamento fronteiriço, caso contrário acaba por bene-
ficiar o próprio sistema. Portanto, para Costa (2005), mesmo como figura de resistência, essas
personagens podem contribuir para organizar a hierarquia à qual resistem no instante em que
a ameaça que representam ao sistema faz surgir mecanismos de defesa. Esses mecanismos de
defesa operam por meio de estereótipos: situados na marginalidade eles têm a mobilidade
necessária para serem fugidios às regras sociais, mas ao serem fixados como estereótipos pas-
sam a ocupar um lugar baixo na estrutura social, sendo assim, finalmente, domados e subju-
gados pelo poder servindo assim para reforçar as estruturas de dominação (COSTA, 2005).
Ciscati (2000) parece concordar ao afirmar que a imagem do malandro paulistano
serve de contraponto à imagem da São Paulo do trabalho incansável, modelo de modernidade
e progresso, imagem essa alardeada durante o período do Estado-novo e que permanece até os
dias de hoje. A pesquisadora afirma que a malandragem funciona como elemento catártico
àqueles que precisam se submeter a uma jornada de trabalho penosa a troco de salários ínfi-
mos que mal lhe garantem a sobrevivência:
Somos, de certa maneira, vingados pelo malandro, pois ele não se rende ao eterno
trabalhar, tampouco resigna-se da miséria absoluta e humilhante. Ao contrário, bus-
ca alternativas e ainda por cima, reverte mesmo que momentaneamente a des-
vantagem da pobreza ou exclusão em alegria zombeteira sobre o otário, que caiu no
“conto do vigário”. (CISCATI, 2000, p. 93)
Porém, a pesquisadora reconhece que, embora o malandro represente resistência, essa
não é capaz de trazer mudanças de fato para a sociedade:
Por outro lado, (o malandro) parece registrar a situação de provisoriedade que carac-
teriza as alternativas encontradas ou a corda bamba na qual todos nós nos equilibra-
mos sem, no entanto, efetuarmos ações que provoquem alterações efetivas em nossa
organização social ou em gritantes desigualdades que, sabidamente, não são altera-
das por via do trabalho formal e do ganho salarial registrado em carteira que faz
89
oferecer a ilusão de segurança, ou de um status pretendido. (CISCATI, 2000, p. 93 e
94).
E é esse caráter provisório da inversão desempenhada pelo malandro que DaMatta
também reconhece afirmando que, exatamente por estar sempre no meio termo, pode servir
aos dois lados (DAMATTA, 1997, p. 172 e 173).
Goto (1998) também propõe duas possibilidades de compreensão da dimensão ideoló-
gica da representação do malandro. A primeira aponta para a sua aura anti-capitalista, que se
recusa a ser transformado em força de trabalho ao driblar as regras do sistema ou inverter suas
táticas. Portanto, o malandro, situando-se na zona fronteiriça do proibido e do consentido, do
lícito e do ilícito, em suma, do moral e do imoral, sugeriria por entre as brechas do sistema, a
possibilidade de mudança. Porém, a segunda possibilidade revela que, a despeito de a lin-
guagem malandra possuir esse componente crítico, a representação da malandragem esgota-se
em si, uma vez que o malandro não é sujeito da história, sendo esses somente a burguesia e o
proletariado. Assim, destituída de poder de ação a malandragem sobreviveria apenas enquanto
metáfora.
A apreciação revolucionária da representação do malandro apresentada por Goto está
baseada na concepção marxista de história, revelando, portanto, que sua concepção de ideolo-
gia está vinculada à ideologia enquanto fenômeno classista. Sem ter a intenção de engrossar o
coro daqueles que parecem felizes em afirmar o fim da história, o fato de acreditar que, na
época em que o capitalismo mostra suas pretensões globais, haja um deslocamento do foco da
ideologia como uma questão de classes para ideologia como integração, faz com que tome-
mos como menos importante a questão de o malandro não ser sujeito da história. Desse modo,
nossa crença de que a linguagem malandra esgota-se em si mesma deve-se menos ao fato de o
malandro não ser sujeito da história do que à transitoriedade das soluções por ele encontradas.
Apesar da possível simpatia do público e de seu possível efeito catártico, o malandro,
exatamente por estar sempre “na corda bamba”, não consegue que a identificação seja com-
pleta. O público, embora “vingado pelo malandro”, não pode e nem quer se identificar plena-
mente com um ser que signifique instabilidade e, apesar do glamour marginal que algumas
personagens evocam, ele não está disposto a trocar sua estabilidade e segurança (mesmo sob
condições que atravanquem sua emancipação) pelas incertezas da vida malandra. Em outras
palavras, embora o público possa usar a personagem malandra como válvula de escape, não
quer ocupar seu lugar.
DaMatta (1997) concebe o carnaval como um ritual de inversão e elege o malandro
como sua personagem principal. Ora, sua própria condição de rito determina sua brevidade,
90
assim sendo, a inversão instaurada pelo carnaval e pela figura do malandro, por sua própria
fugacidade, acaba por reforçar o sistema nos momentos extra-rituais (esses em nada passagei-
ros).
De um modo ou de outro, Goto está certo ao afirmar que o componente crítico das
personagens malandras não consegue ultrapassar o nível da linguagem. Nesse sentido, não
concordamos com Costa (2005, p. 182) quando conclui que a representação da malandragem
funciona como “potência que poderia resultar em ações efetivas de transformação social”
sem aprofundar de que maneira isso ocorreria –, entretanto concordamos quando diz que, ao
ser transformado em estereótipo, o malandro pode servir à ideologia com a qual, a princípio,
estaria em dissonância.
Resumidamente, embora a representação do malandro possa carregar elementos críti-
cos, eles falham em trazer qualquer mudança real à organização social. Mais perigosamente,
seu caráter de inversão, por ser provisório, corre o risco de reforçar a própria ordem das coi-
sas, ordem essa que se pretende passar por natural daí a questão da ideologia enquanto
pseudophysys (BARTHES, 1993). Somado a isso, ao ser fixada como estereótipo, a represen-
tação do malandro também corre o risco de ir ao encontro da ideologia do capitalismo-tardio,
ou seja, de participar da ideologia em que tudo e todos devem se integrar, inclusive o malan-
dro.
4. O MALANDRO EM “A GRANDE FAMÍLIA”
92
4.1 A grande família do malandro
Após termos analisado o fenômeno da malandragem na cena social brasileira, bem
como sua representação na produção cultural, passaremos à personagem que motivou a reali-
zação deste estudo. Mais especificamente, cabe-nos agora contrastá-la com o que foi dito so-
bre a tipologia do malandro presente na cultura brasileira para encaixá-la no rol dos malan-
dros personificados em nossa produção artístico-cultural.
Antes, porém, não podemos nos esquecer de localizar a personagem dentro de seu
contexto, a saber, o seriado televisivo “A grande família”. Para tanto abordaremos sua histó-
ria, os aspectos estruturais que o caracterizam como seriado bem como o situaremos dentro da
tradição da comédia de costumes. É necessário atentar para o fato de que o objetivo deste tra-
balho não é fazer uma descrição e caracterização completa do seriado enquanto produto cultu-
ral e midiático. Assim, mesmo não sendo uma caracterização exaustiva, entendemos que de
forma alguma poderíamos nos furtar de fazê-la, haja vista que ela deverá servir de pano de
fundo necessário à análise a que o trabalho se propõe.
Nossa descrição e caracterização tomarão por base trabalhos que já se ocuparam do se-
riado, uma vez que em nossa busca bibliográfica encontramos alguns estudos que trataram do
seriado em questão direta e indiretamente. Do lado dos trabalhos cujo cerne foi o seriado em
si, Oliveira (2004) e Ruiz (2002) debruçaram-se não apenas sobre aspectos diferentes, mas
também usaram para sua análise duas versões diferentes do seriado. Já Betti (1994), apesar de
não ter o seriado “A grande família” como centro de sua análise, ao lançar-se em um profundo
estudo da dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho um dos principais criadores do seriado –,
levou em consideração sua produção em televisão, sendo que suas considerações serão extre-
mamente importantes para nossa compreensão deste produto midiático e também para a cons-
trução de nossa argumentação.
Desta forma, acreditamos que tanto a caracterização da personagem Agostinho en-
quanto representante de um tipo presente em nossa tradição cultural, quanto o entendimento
mais esquemático e profundo do produto cultural em que a personagem habita nos deixará em
posição privilegiada para desvelarmos os possíveis aspectos ideológicos implicados no trata-
mento do malandro no seriado.
4.2 As duas Grandes Famílias
93
Em 26 de outubro de 1972, “A grande família” estreava pela rede globo de televisão.
Inicialmente ela era uma adaptação do seriado americano All in the family, com a redação de
Max Nunes e Roberto Freire e direção de Milton Gonçalves. Esta primeira versão de “A
grande família” tinha no elenco Jorge Dória (Lineu), Eloísa Mafalda (Nenê), Osmar Prado
(Júnior) Luiz Armando Queiroz (Tuco), Brandão Filho (Seu Flor), Djenane Machado (Bebel)
e, no papel de Agostinho, Paulo Araújo (MAIOR, s/d, p. 94).
Em seus seis primeiros meses no ar, o seriado teve problemas com a criação e não
conseguia atingir o nível de audiência necessário para que permanecesse na grade de progra-
mação da emissora. De maneira geral, o problema consistia no fato de que o seriado america-
no, ao ser transportado para a realidade brasileira, perdia o caráter de identificação com o pú-
blico, caráter esse que não podia ser recuperado através do processo pelo qual os episódios
estavam sendo criados: Roberto Freire que a despeito de haver anteriormente escrito para
televisão, nunca tivera experiência com comédia escrevia os episódios em São Paulo e os
mandava para o Rio de Janeiro para que Max Nunes inserisse neles elementos de humor.
Na tentativa de reverter a situação, o produtor Daniel Filho convidou o dramaturgo
Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), que algum tempo atrás fora contrato para compor o qua-
dro de autores da rede Globo, para que fizesse uma reformulação no programa e, juntamente
com Armando Costa, passou a assinar a criação do seriado a partir de 05 de abril de 1973. De
acordo com Ruiz (2002), as mudanças introduzidas por Vianinha começam logo em seu epi-
sódio de estréia (Papai é o maior) com a proletarização da família. Com a diminuição de seu
poder aquisitivo, a família se forçada a se mudar da zona sul do Rio de Janeiro para o bair-
ro de Realengo, na periferia carioca. Conforme nos mostra o trabalho de Oliveira (2004), para
Vianinha essa proletarização era importante para que houvesse identificação com o público,
que passava a ver de forma bem humorada suas próprias dificuldades, ou ainda nas palavras
de Ruiz (2002, p. 99), com “a diminuição de seu poder aquisitivo, temos a chance de observar
as características que os tornariam cada vez mais cúmplices na difícil sobrevivência”.
Além da pauperização da família, para Oliveira (2004), outras mudanças introduzidas
por Vianinha foram: o aprofundamento do perfil psicológico das personagens que possibili-
tou que suas ações ganhassem em tipicidade –, a inserção de fatos reais recentes no universo
ficcional e uma mudança no tom de humor:
Passamos de uma comédia de costumes rasgada para uma comédia dramática, na
qual tem espaço o riso empático, conseqüência do estreitamento dos limites que se-
param ficção e realidade. Dessa forma o telespectador ri por sua identificação direta
com a família Silva que em cada episódio enfrenta os mesmos problemas que ele vi-
vencia em seu “drama” diário. A catarse surge no momento em que aquele que assis-
te se desprende do seu cotidiano, vendo-o transferido para um outro mundo onde as
94
soluções dos problemas ordinários caminham em passas rápidos e alegres, da mesma
maneira como ele sonha que os seus devam ser resolvidos. (Oliveira, 2004, p.130)
As mudanças introduzidas por Vianinha surtem efeito e logo o programa se torna um
grande sucesso de público e crítica na época. Além dessas, outras mudanças ocorreram em
1973: Milton Gonçalves foi substituído por Paulo Afonso Grisolli na direção do seriado e a
atriz Djenane Machado por Maria Cristina Nunes no papel de Bebel.
Entretanto, a relação de Vianinha com a televisão e especialmente com a rede Globo,
sempre foi criticada por alguns, e de fato a questão é pertinente o suficiente para ser levantada
antes de continuarmos nossa descrição do seriado. Assim, é nesse sentido que os trabalhos de
Betti (1994) e Ruiz (2002) são especialmente elucidativos para compreendermos os motivos
que levaram o autor (membro do Partido Comunista Brasileiro) a compor o quadro de criação
de uma rede de televisão que sempre foi a preferida pelos governos militares na concretização
de seu projeto de integração e pacificação nacional (Bucci, 2004, p. 222 e 223).
O trabalho de Maria Silvia Betti (1994) mostra Oduvaldo Vianna Filho como alguém
que, além do teatro, dedicou-se à militância política, filiando-se ao PCB (Partido Comunista
Brasileiro) ainda no início da juventude. Esta junção de homem de teatro e militante político
quase sempre se deu de maneira orgânica nos diferentes grupos do quais participou Arena,
CPC e Opinião sendo que, nos moldes dos teatros brechtiano e piscatoriano e com orienta-
ção marxista, buscava sempre fazer um teatro de responsabilidade que tivesse interferência
direta e imediata na realidade.
De fato esses eram os objetivos do Arena e de seu projeto nacional de cultura, o qual
Vianinha sempre perseguiu. Entretanto, agir no sentido de obter mudanças na realidade social
a nível nacional era um objetivo bastante ambicioso para ser realizado através de apresenta-
ções em uma pequena sala de teatro como a do Arena e, sobretudo, freqüentada por membros
das classes média e média-alta, com dinheiro suficiente para freqüentar apresentações de tea-
tro. Deste modo ficava evidente para Vianinha a necessidade de contato com um público mai-
or e, acima de tudo, proletário para que a conscientização e a conseqüente mudança pudessem
ocorrer. Esta era a via do CPC. Através de pequenos autos de rua, em que a elaboração artís-
tica de alto nível dava lugar à necessidade de provocar a reflexão e a emancipação, tentava-se
levar adiante o projeto nacional de cultura tendo como objetivo, inclusive, a implantação de
centros culturais nas localidades por onde este teatro itinerante passava. Durante o tempo do
CPC, além dos autos de rua, Vianinha escreveu a peça A mais-valia vai acabar Seu Edgar”,
montada fora do circuito do teatro comercial, abordava de maneira didática o conceito marxis-
ta.
95
Porém, com a implantação da ditadura militar, o trabalho do CPC inviabiliza-se e o
grupo encerra suas atividades. Apesar de a via aberta pelo CPC ter sido interditada pelo novo
regime instaurado, o trabalho dramatúrgico e militante de Vianinha continuaria através do
grupo teatral opinião, formado a partir de uma peça homônima co-escrita por Armando Costa
e Paulo Pontes (sendo que, na década seguinte, o primeiro viria a ser seu parceiro na criação
dos episódios para “A Grande família” e o segundo viria a substituí-lo por ocasião de sua
morte).
Num primeiro momento, o grupo arregimentava artistas e intelectuais que se coloca-
vam contra o regime autoritário recém instaurado: se no CPC a prioridade era a construção de
um projeto totalizador, a prioridade dentro do novo cenário que se impunha passava a ser a
articulação de forças contra o regime. Dessa forma, que se notar que o contato com o pú-
blico proletário não pagante é perdido, e somente poderá ser restabelecido na década seguinte
com o trabalho do autor na televisão (Betti, 1994).
Num segundo momento, porém, o grupo vê surgir dentro de si duas facções. De um
lado um grupo ao qual Vianinha pertence defende uma abordagem mais leve e aparente-
mente descompromissada dos problemas considerados fundamentais, de outro se postula uma
abordagem de problemas gerais ligados aos grandes impasses de ordem internacional correla-
cionando-os com os problemas imediatos do Brasil. Esse racha dentro do grupo Opinião
permite-nos vislumbrar os motivos pelos quais parte da esquerda não via com bons olhos sua
participação no que era por eles tido como um veículo do sistema bem como a decisão de Vi-
aninha de trabalhar em televisão.
Contudo, ainda falta outro ponto importante: a consolidação do regime militar pós-AI5
apresenta um novo quadro para a produção artístico-cultural do país. Nessas novas circuns-
tâncias o “fazer teatro” encontra-se em risco, o que leva muitos artistas de esquerda para a
televisão como forma de sobrevivência material e como forma de manter viva a dramaturgia
em tempos pouco propícios a ela.
Desta maneira, percebemos que o são três os principais fatores que levam Vianinha ao
trabalho na TV. Em primeiro lugar, havia a necessidade e a vontade de retomar o projeto na-
cional de cultura perseguido desde os tempos do Arena e que possibilitaria o contato perdido
com o público do CPC – desta vez em escala massiva – que não tinha o costume de freqüentar
as salas de teatro. Segundo, Vianinha acreditava que este era o momento de tratar os assuntos
fundamentais de uma maneira leve, uma resistência dentro das reais possibilidades. Finalmen-
te, a ida para a televisão representava a oportunidade de levar adiante o fazer teatral. É com
esta base que Ruiz (2002) chega à conclusão de que a cooptação de Vianinha pela rede Globo
96
no momento da consolidação de uma indústria cultural no Brasil está na verdade inscrita den-
tro da ética profissional e política que pautara toda a vida do autor.
Ruiz (2002) demonstra de que maneira a participação de Vianinha ajudava a criticar a
realidade que o país enfrentava, em outras palavras, seu trabalho demonstra como Vianinha se
propunha a lutar contra o sistema dentro do próprio sistema:
A linguagem da comédia, capaz de promover o riso descompromissado, resultante
de situações corriqueiras, possibilita a Vianinha driblar a censura e ao mesmo tem-
po, se aproximar de questões embaraçosas calcadas no falseamento da realidade,
promovido pela eliminação de qualquer oposição ao regime (RUIZ, 2002, p. 110).
A participação de Vianinha na redação dos episódios de “A grande família” encerra-se
em 1974 com sua morte. Seu substituto, Paulo Pontes, também viria a falecer em 1975 o que
levou ao enceramento da série que teve seu último episódio exibido em 27 de março de 1975.
Entretanto, em 1987 a Globo decidiu fazer um especial de fim de ano dirigido por Pau-
lo Grisolli (o mesmo diretor do seriado nos anos 70). Este episódio especial mostrou que ru-
mo tomara a família Silva nos 12 anos que ficaram fora da televisão. É interessante notar que
neste episódio Bebel havia se separado de seu marido Agostinho e estava apaixonada por um
jovem estudante de arquitetura interpretado por Pedro Cardoso que curiosamente assumiria
o papel de Agostinho na versão de 2001.
Pouco mais de 13 anos após a transmissão do especial de 1987, mais especificamente
em 29/03/2001, a nova versão de “A grande família” estréia na rede Globo. Creditando sua
criação a Oduvaldo Vianna Filho e Armando Costa, a nova versão de maneira geral manteve-
se como nos anos 70. Ainda se trata da mesma família Silva e, com exceção de Júnior (perso-
nagem que na primeira versão era interpretada por Osmar Prado) conta com as mesmas per-
sonagens, mas desta vez vivenciados por um novo grupo de atores: Marco Nanini (Lineu),
Marieta Severo (Nenê), Rogério Cardoso (Seu Floriano), Guta Stresser (Bebel), Lúcio Mauro
Filho (Tuco) e Pedro Cardoso (Agostinho). Produzida por Guel Arraes, a versão dos anos
2000 é dirigida por Maurício Farias com uma nova equipe de roteiristas encabeçada por Cláu-
dio Paiva.
Tendo trabalhado para o “Pasquim” – jornal de oposição ao governo militar –, Cláudio
Paiva participou da redação de programas de sucesso na TV brasileira como TV Pirata, Sai de
Baixo e Casseta e Planeta Urgente!. Compôs também a equipe de criação da revista humorís-
tica Planeta Diário, embrião do programa televisivo Casseta e Planeta Urgente!.
Não obstante as semelhanças – como, por exemplo, o núcleo principal de personagens,
as temáticas (sintonizadas com o dia-a-dia do público e envolvendo a típica família brasileira
97
de classe média), a utilização da comédia de costumes na qual os enredos são tidos como crô-
nicas sociais – algumas mudanças ocorreram na adaptação do antigo sucesso dos anos 70.
Embora alguns dos episódios escritos por Vianinha tenham sido adaptados e utilizados
nos primeiros programas da série em 2001 e apesar da liberdade de adaptação, podia ser sen-
tido nas palavras de Paiva o peso da época
24
. De fato as circunstâncias que se impunham
no início e meados dos anos 70 eram diferentes das dos anos 2000. Em 1972, ano de estréia
do seriado, vivia-se o período pós-AI5, ato institucional que traria uma nova fase ao regime
autoritário que se instalara no país anos antes, fase esta que ficaria conhecida como os “anos
de chumbo”. Como aponta Oliveira (2004, p. 134) “a postura crítica de Vianinha fez com que
nos episódios fossem acesas chamas de contestação ao regime político da época e à situação
em que o povo estava vivendo”. Embora uma das características que sobreviveram na segun-
da versão tenha sido o tom crítico (OLIVEIRA, 2004), a nova realidade política do país, que
começou a se configurar com o fim do período ditatorial nos anos 80, fez com que a ênfase
nos aspectos políticos fosse diminuída em favor de uma crítica voltada aos costumes advindos
das condições de vida da baixa classe média (OLIVEIRA, 2004). Essa diminuição da discus-
são política pode ser observada na eliminação de Lineu Júnior, a personagem politizada que,
na primeira versão, era um dos recursos utilizados para que se trouxesse à tona o debate polí-
tico que interessava na época.
Tendo ocorrido de maneira paulatina, outra mudança que pode ser apontada diz respei-
to à estrutura do seriado. Se na primeira versão e no início da segunda os episódios tinham
como universo a família Silva cujos membros compartilhavam a mesma casa com o de-
correr dos episódios da segunda versão o universo de personagens e cenários onde a ação se
desenrola aumentou. Algumas dessas personagens compõem ou já compuseram o elenco fixo
do seriado, enquanto outras apesar da maior ou menor freqüência integram o que pode ser
chamado de personagens ocasionais. Dentre as personagens não pertencentes ao núcleo prin-
cipal (fixas ou ocasionais) que transitam ou transitaram pelo seriado podemos citar Marilda
(Andréa Beltrão), amiga de Nenê e dona do salão de Beleza da rua; Mendonça, chefe de Li-
neu (Tonico Pereira); Paulão da Regulagem (Evandro Mesquita); Beiçola, dono da pastelaria
(Marcos Oliveira); Vivi (Leandra Leal), primeira namorada de Tuco; Gina (Natália Lage),
segunda namorada de Tuco; Tio Juvenal (Francisco Milani); Remela (Diogo Vilela), etc.
24
BORTOLOTI, Marcelo. O chefe da Grande Família. (Entrevista com o redator-chefe do seriado A Grande
Família, Cláudio Paiva). Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jun. 2002. TV Folha apud OLIVEIRA, Anderson,
2004.
98
No que tange ao aumento dos cenários onde as ações se passam, além da casa dos Sil-
va (que ainda permanece como o centro do seriado) temos o salão de beleza e a casa da Ma-
rilda, a oficina do Paulão, a repartição onde Lineu trabalha, o Paivense (o clube do bairro), a
pastelaria do Beiçola e a casa onde Agostinho e Bebel agora vivem, que embora seja vizinha à
casa de Lineu e Nenê constitui-se com um novo campo de atuação nos episódios.
Para Oliveira (2004) este aumento de personagens e cenários não se dá apenas em fun-
ção do grande sucesso que o seriado alcançou, mas deve-se também ao fato da perda da per-
sonagem de Seu Floriano (o avô da família) decorrida da morte, em 2003, de Rogério Cardo-
so, o ator que o interpretava.
Ainda no que concerne as diferenças entre as duas versões, Oliveira (2004, p. 134),
mencionando entrevista com o redator-chefe do programa Cláudio Paiva
25
, descreve a neces-
sidade de adaptação da linguagem televisual do programa que se dava de forma mais lenta no
passado. Oliveira argumenta que com a presença dos videoclipes e grande quantidade de in-
formação disponível na Internet, a quantidade e o volume de informação dentro dos episódios
tiveram que ser aumentados e argumenta também que a maior velocidade narrativa possibili-
tou um aumento no número de temáticas contidas em um mesmo episódio.
4.3 “A grande família”: uma comédia de costumes televisiva e serializada
Além de termos em mente a perspectiva histórica do produto televiso em questão, será
de igual importância pensarmos a respeito do gênero televisual em que ele se enquadra. Essa
tarefa, embora não tenhamos a intenção de fazê-la de maneira exaustiva, será feita de maneira
cuidadosa, aos poucos, tendo a consciência de que a discussão em torno da problemática dos
gêneros tem sido fortemente questionada nos últimos tempos, especialmente pela crítica estru-
turalista e também pelo pensamento pós-moderno (MACHADO, 2000, p. 67).
Concordando com o argumento de Machado, entretanto, acreditamos ainda na idéia de
gênero como força aglutinadora e estabilizadora, como um núcleo mais ou menos duro ao
redor do qual gravitam um sem número de trabalhos realizados que seguem, em algum nível,
as normas que compõe esse núcleo – normas essas que foram se acumulando através das dife-
rentes gerações de enunciadores.
A partir desta argumentação, percebemos que a questão do gênero deve ser pensada
como uma via de mão dupla: se por um lado suas normas são formadas pelos trabalhos que o
25
Idem
99
compõe, por outro esses mesmos trabalhos seguem (não de maneira igual) as normas de um
gênero dado. Em outras palavras, as normas do gênero orientam a produção dos trabalhos e
esses, em seu turno, (re)definem o gênero. É neste sentido que Machado (2000, p. 67) afirma
que “o gênero é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce
e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um
dado gênero. Nisto consiste sua vida”.
De fato, por estar inserido na dinâmica cultural, o gênero assim como a língua atra-
vés do princípio de mutabilidade e imutabilidade do signo lingüístico identificado por Saussu-
re (2002) está em constante transformação. Assim, do mesmo modo que o gênero não é
algo completamente uniforme uma vez que é constantemente modificado pelos trabalhos
que o compõe também os enunciados que o formam não seguirão de maneira rígida suas
normas, podendo assim fazer uso concomitante de normas de outros gêneros. Podemos pensar
a questão dos gêneros utilizando o conceito de semiosfera de Lotman (1996): as produções
que seguem mais fielmente as normas de determinado gênero estariam mais próximas do nú-
cleo, aquelas das regiões fronteiriças possuiriam maior volatilidade e, além de estarem em
contato com os elementos fronteiriços de outras esferas de gênero, funcionariam a exemplo
da semiosfera lotmaniana como tradutores com a função de filtrar elementos externos à es-
fera de nero para dentro, modificando de maneira paulatina o núcleo. Acreditamos assim
que o conceito de semiosfera de Lotman não apenas ilustra a dinâmica dos gêneros de manei-
ra eficiente, mas também se coaduna com a concepção bakhtiniana que tem os gêneros como
força aglutinadora cuja característica geral mais marcante reside em sua estabilidade instável
(MACHADO, 2000, p. 68 e 69).
Por certo, devido a sua busca por estabilidade no instante mesmo em que continua-
mente se transforma, não se pode determinar quais, nem ao menos quantos, são os gêneros. O
que estamos tentando dizer é que a rígida concepção aristotélica de gênero precisa ser relati-
vizada, ainda melhor, flexibilizada para dar conta da complexidade dos fenômenos com os
quais nos deparamos (ibidem). Acreditamos assim que a idéia de gênero, mesmo diante da
necessidade de relativizá-la, irá nos fornecer uma importante base sobre a qual nossa análise
será fundamentada.
No que se refere à televisão, embora reconheça a impossibilidade de se dizer ao certo
quantos e quais seriam, Machado (2000) descreve seis gêneros que considera exemplares de
sua grande diversidade, são eles: as formas fundadas no diálogo, as narrativas seriadas, o tele-
jornal, as transmissões ao vivo, a poesia televisual, o vídeo clipe e outras formas musicais.
Para nosso trabalho, nos interessará o que o autor diz a respeito das narrativas seriadas.
100
A princípio, a concepção de serialidade que Machado propõe é por demais abrangente:
Como se sabe, a programação televisual é muito freqüentemente concebida em for-
ma de blocos, cuja duração varia de acordo com cada modelo de televisão (...) Uma
emissão diária de um determinado programa é normalmente constituída por um con-
junto de blocos, mas ela própria também é um segmento de uma totalidade maior – o
programa como um todo que se espalha ao longo de meses, anos, em alguns casos
até décadas, sob a forma de edições diárias, semanais ou mensais. Chamamos de se-
rialidade essa apresentação descontínua e fragmentada do sintagma televisual.
(MACHADO, 2000, p. 84)
Tomando por base a definição que Machado nos oferece, a saber, a serialidade como a
apresentação descontínua e fragmentada do sintagma televisual, quase tudo o que a televisão
transmite pode ser tido como uma série. Talvez o caso seja realmente este, no entanto uma
definição tão ampla de pouco serve à análise. Desta forma a noção que importa ser adicionada
a essa idéia de serialidade é a de narrativa ficcional. E é exatamente essa noção que perpassa
de maneira essencial todo o trabalho de Oliveira (2004), desde o texto do título: “Formatos e
gêneros da teleficção
26
brasileira: A grande Família como modelo de seriado de comédia”.
A despeito de sua definição inicial e generalizante de serialidade, a argumentação de
Machado não se desenvolve por este caminho. Por certo, Machado compreende que a caracte-
rística principal da televisão é a fragmentação (MACHADO, 1996 e 2000) e que a principal
forma de estruturação de seus produtos audiovisuais é a serialização (2000). Assim sendo, ao
falar de serialização, Machado volta sua atenção à narrativa seriada e, embora não fale nome-
adamente em teleficção seriada, é justamente dela que ele se ocupará.
Considerando-se as narrativas seriadas de televisão, Machado divide-as em três cate-
gorias básicas. As telenovelas brasileiras constituem bons exemplares da primeira categoria
proposta por Machado, que consiste em uma única narrativa, ou narrativas entrelaçadas e pa-
ralelas, que seguem, predominantemente, uma linearidade aristotélica através de capítulos.
Machado também aponta o caráter teleológico deste tipo de construção narrativa, pelo fato de
resumir-se basicamente a conflitos originados no início da trama, sendo que toda evolução
posterior dos acontecimentos terá por objetivo apresentar as soluções para esses conflitos que,
em geral, só acontecerá nos capítulos finais.
Na segunda categoria cada emissão é uma história independente, com começo meio e
fim. Neste tipo de construção narrativa somente as personagens principais permanecem em
uma mesma situação narrativa. Nesta categoria os episódios, geralmente, não levam em conta
o que aconteceu anteriormente e, conseqüentemente, os acontecimentos de um determinado
episódio não interferem nos episódios futuros, assim, segundo Machado, a ordem de exibição
26
Grifos nossos.
101
dos episódios pode ser randômica, característica que permite a um telespectador ocasional
acompanhar o episódio sem maiores problemas.
Por último, na terceira categoria de serialização, as únicas coisas que se mantêm nos
diversos episódios são a temática e o espírito geral das histórias. Cada um dos episódios tem
personagens, atores, cenários e até mesmo diretores e roteiristas diferentes.
No que se refere às categorias da narrativa serializada, Machado chama atenção para o
fato de que o produto televisivo final realizado dentro do gênero de teleficção em série é o
resultado da tensão entre elementos fixos e elementos variáveis, em outras palavras, é o resul-
tado da tensão entre aquilo que se repete, aquilo que se tornou parte do repertório do teles-
pectador usual do programa, e algumas variantes que são introduzidas no decorrer da série
27
.
Machado afirma que é essa tensão entre o fixo e o variável que Lorenzo Vilches chama de
alternância desigual e Calabrese de estética da repetição e é a partir dela que ele pensa a seria-
lização.
Porém, como era de se esperar haja vista que Machado defende não a perma-
nência da idéia de gêneros no debate teórico, mas também sua relativização e flexibilização
como forma de tornar essa idéia ainda epistemologicamente válida para nossos atuais enfren-
tamentos teórico-práticos para Machado, esses tipos de estruturas narrativas podem, por
vezes, confundir-se. Diante disto, um seriado de televisão como “A Grande Família” pode
hibridizar-se, contendo alguns elementos do primeiro caso uma vez que um determinado
episódio pode ter influências em episódios futuros, mesmo sem o caráter teleológico, típico
do primeiro caso ao mesmo tempo em que cada um dos episódios é um todo em si, com
começo meio e fim, podendo ser assistidos independentemente uns dos outros, característica
típica do segundo caso. Esta é a conclusão à qual Oliveira chega em seu estudo, todavia antes
de apresentá-la mais detalhadamente analisemos quais são as diferenças entre Oliveira e Ma-
chado no que se refere ao entendimento e construção do conceito de gênero televisual.
Antes de qualquer coisa, devemos apontar o fato de que Oliveira (2004) toma por ba-
se, dentre outros, o livro de Machado (“Televisão levada a sério”), citado acima, e também o
trabalho do teórico italiano Omar Calabrese acerca da estética da repetição, teoria a partir da
qual Machado constrói sua argumentação. Desta forma, não obstante diferenças circunstanci-
ais, ambos os trabalhos de Oliveira e Machado repousam de maneira geral sobre as mesmas
bases teóricas. Isto nos permite fazer uso dos dois trabalhos em nossa caracterização uma vez
que, mesmo com diferentes pormenores, o resultado prático será o mesmo, restando assim
27
Os elementos fixos e repetidos e o que é variado ou variável dependerá de cada série e da categoria que ela
representa, tomando por base as três categorias fornecidas por Machado (2000).
102
apenas escolhermos qual o trabalho, ou ainda, quais partes dos trabalhos se adequarão melhor
ao nosso estudo. Bem, agora vamos ao estudo de Oliveira.
A primeira distinção que se nota entre o trabalho de Machado e o de Oliveira aparece
logo na nomenclatura utilizada. Enquanto o primeiro fala apenas em gêneros televisuais, o
segundo fala em formatos e gêneros. Não que para Machado não haja a questão dos formatos,
o que ocorre é que ele não utiliza um termo específico para o fenômeno, sendo que por vezes
fala a respeito de um determinado gênero como sendo composto por formas (fundadas no
diálogo), outras vezes fala sobre categorias (de serialização) e outras ainda como modos (de
serialização). De fato, duas questões se impõem: qual seria a diferença entre formatos e gêne-
ros? E o que Machado chama, indistintamente, de formas, categorias e modos poderiam figu-
rar sob a rubrica de formatos? O estudo de Oliveira (2004) nos fornece as respostas. De fato,
percebendo a confusão que os termos evocam, o pesquisador nos esclarece que:
Como os conceitos de gênero e formato muitas vezes se misturam dentro da aborda-
gem da programação televisiva é necessário (...) que se firme então suas diferenças
conceituais. Os formatos, assim como os gêneros, são um conceito hibrido e mutan-
te. O que difere é um certo grau de especificidade atribuído aos formatos. Estes res-
tringem uma “forma” de aplicação dos gêneros televisuais no âmbito da prática tele-
visiva efetiva, subdividindo esses gêneros em modelos pragmáticos relativamente
estáveis, portanto facilmente reconhecíveis pelo telespectador mais assíduo (OLI-
VEIRA, 2004, p. 24).
Assim, para a questão referente à diferença entre gêneros e formatos, temos que os úl-
timos são subdivisões dos primeiros, em outras palavras, se a teleficção seriada é um gênero
televisivo – assim como o são os programas de auditório, as transmissões ao vivo, os musicais
a telenovela, a mini-série, os seriados de televisão seriam as formas pelas quais o gênero de
fato acontece. Se assim o é, temos uma resposta afirmativa para a segunda questão levantada
acima.
Apesar de serem uníssonos no que diz respeito à compreensão geral do que seja o gê-
nero e também a respeito do que seja a narrativa seriada e suas diferentes formas, a nomencla-
tura utilizada por Oliveira mostra-se mais específica e, portanto, fornece mais elementos para
a caracterização do programa em questão. Enquanto para Machado (2000) as diferenças entre
os formatos de teleficção baseiam-se no fato de uma determinada obra ser ou não teleológica,
de ter ou não certos elementos variáveis e invariáveis em tensão (e quais seriam eles) e na
condição de que a estrutura de um episódio dado permita ou não que ele tenha fruição total e
independente dos outros que compõe o seriado, Oliveira (2004) apresenta, além desses, outros
elementos que podem ser característicos dos programas de teleficção seriada. Dentre eles,
destaca a temática, o nível icônico, a narrativa, e a questão da temporalidade.
103
Para Oliveira, a temática diz respeito ao trânsito que as personagens realizam entre o
bem e o mal, as relações familiares e amorosas, os negócios e a amizade, entre outros. A te-
mática está intimamente ligada à premissa dramática, sobre a qual Oliveira fala em um outro
momento de seu trabalho. O autor descreve-a como a base da argumentação, ou ainda, uma
proposição que funcionará como fio condutor até o desenlace como, por exemplo, em Ro-
meu e Julieta, um grande amor que desafia todas os obstáculos sociais e até a própria morte.
o nível icônico é aquilo que percebemos superficialmente no relato através de nossos senti-
dos. Em se tratando de narrativas televisivas, as percepções são apreendidas principalmente
através do espectro sonoro e visual, o que nos permite identificar, por exemplo, a recorrência
de atributos físicos e morais das personagens. Com relação à narrativa, Oliveira, chamando
este aspecto de modo narrativo dinâmico de superfície, afirma que ele é realizado com o em-
prego de cenas-clichê, como as perseguições motorizadas, o cavalgar dos cowboys ao por do
sol e as confraternizações dos heróis ao termino de aventura. No que se refere à temporalida-
de, o pesquisador afirma que a repetição se funda num princípio organizativo estruturado em
torno do ritmo. Desta forma, a ordem dinâmica da repetição opera sobre uma variação na me-
dida temporal, “o que redunda dizer que não é o objeto que é repetido que interessa, mas sim
a maneira como se organiza a cadência de sua repetição” (OLIVEIRA, 2004, p.71). Oliveira
(ibidem) ainda complementa:
Assim, levando-se em conta a presença de elementos variáveis e invariáveis na nar-
rativa seriada, pode-se perceber diferentes formas com as quais o tempo do relato
(duração real do episódio ou tempo do receptor) se insere no tempo relatado (dura-
ção da ação episódica) e no tempo da série (localização da ação na trama geral do
programa).
Com base também nas temporalidades, Oliveira divide os seriados em duas tipologias
básicas: as séries acumulativas e as séries prossecutivas. As primeiras trabalham com base e
uma sucessão praticamente infinita de episódios sem a necessidade ou previsão de um desen-
lace. Neste tipo de seriado não a necessidade de nenhum tipo de ligação com o tempo da
série na sua totalidade, ademais, as personagens parecem não acumular experiências. as
séries prossecutivas caminham para um objetivo final. Percebemos aqui mais uma vez a maior
acuidade na nomenclatura utilizada por Oliveira em relação à argumentação de Machado, pois
Machado, ao falar das categorias das narrativas seriadas, não utiliza qualquer tipo de nomen-
clatura específica, apenas descreve suas características. Assim o que Machado chama de pri-
meira categoria, Oliveira utiliza a terminologia prossecutiva e o que Machado chama de se-
gunda categoria, Oliveira chama de séries acumulativas. Ademais, Oliveira chama a atenção
para o fato de que aquelas ficções seriadas que se desenrolam para cadenciadamente para
104
um fim determinado (como por exemplo as telenovelas) e há também aquelas o qual o desen-
volvimento ocorre de forma “blocada”, dividido em diversas temporadas. Finalmente, Olivei-
ra argumenta que os seriados que se desenrolam através de uma linearidade aristotélica, em
que as personagens acumulam experiências através de uma memória narrativa, são chamados
especificamente de séries, e são na maioria dos casos teleológicos.
Na realidade, este último ponto traz uma ambigüidade na nomenclatura utilizada por
Oliveira, a saber, a diferença entre série e seriado. Num dado momento o pesquisador afirma
que:
A dupla denominação muitas vezes atribuída ao formato pode nos levar a considerar
que existem diferenças importantes entre o que é uma série e o que é um seriado. Se
tais diferenças realmente existem, elas podem ser percebidas sob o enfoque da re-
cepção, em especial quando perturbada pelo impacto das nos tecnologias de comu-
nicação da contemporaneidade
28
. (OLIVEIRA, 2004, p. 50)
As novas tecnologias de comunicação às quais Oliveira se refere dizem respeito à mul-
tiplicidade de canais trazidos pelas operados de TV a cabo e por satélite, o gravador de VHS e
DVD e, embora ainda não comercializada no Brasil em 2004 (data do trabalho de Oliveira), a
TV com disco rígido interno capaz de armazenar a programação para que possa ser assistida
no horário de conveniência do telespectador. Estas tecnologias quebrariam o contrato feito
entre emissor e telespectador, contrato este em que o emissor determina o horário e a freqüên-
cia com a qual o telespectador poderia assistir a um programa dado. Por exemplo, no caso das
TVs por assinatura, pelo fato de um determinado episódio ter diversas reprises em horários
alternativos, o telespectador não os acompanha necessariamente na ordem (e nem nos horá-
rios) na qual eles foram inicialmente concebidos. Assim, para Oliveira os programas que são
deslocados de suas grades horárias e que tem sua freqüência de exibição alterada seriam de-
signados sob a rubrica de séries. Porém, com base na argumentação de Oliveira, ao se seguir a
história desses tipos de programa na produção nacional, verifica-se ainda hoje que sua exibi-
ção se concentra nos canais abertos e se encaixa na estrutura das grades de programação vi-
gentes. Isso leva o pesquisador a afirmar que utilizará a rubrica seriado em seu trabalho, haja
vista que o programa mantém com os telespectadores o tradicional contrato semanal de exibi-
ção. Desta forma, embora haja uma intenção explicita e justificada de adotar o termo seriado,
não nos fica muito claro a distinção que de fato haveria entre as duas rubricas. Em certo ponto
da argumentação os dois termos são praticamente sinônimos se houver diferença ela está na
recepção –, em outro a diferença entre série e seriado é o caráter teleológico do primeiro
na verdade tem-se a impressão de que a série é uma subcategoria de seriado, pois o autor diz
28
Grifos nossos.
105
que os seriados em que a temporalidade desenvolve-se de maneira linear, deixando para os
personagens uma memória narrativa, chamam-se especificamente séries.
De qualquer forma, mesmo que o termo seja usado com alguma volatilidade, basean-
do-nos na justificativa que Oliveira oferece para sua preferência pelo termo seriado, seguire-
mos esta nomenclatura. Ademais, após a discussão sobre as bases teóricas sobre as quais Oli-
veira analisa o gênero e o formato do seriado “A grande família”, resta-nos agora reportar a
conclusão à qual ele chega com seu estudo e que nos servirá de fundamentação para a caracte-
rização do programa televisivo onde a personagem de nossa análise habita. Baseado na dis-
cussão teórica que acabamos de retomar de forma resumida, Oliveira conclui que o A grande
família é um seriado que apresenta na construção de sua temporalidade características mistas
de série acumulativa e prossecutiva. É importante também dizer que o pesquisador identifica a
premissa dramática do seriado como sendo “família que briga unida pelo seu bem-estar, per-
manece unida” (OLIVEIRA, 2004, p. 156) e também faz um levantamento das temáticas que
a série apresenta, afirmando que elas nascem como crônicas sociais das dificuldades que a
classe média baixa enfrenta no Brasil. Ainda com relação às temáticas, ao comparar as duas
versões do seriado, o autor afirma que nos anos 70 os episódios buscavam abordar, na medida
do possível, as restrições impostas pelo regime ditatorial vigente na época. Já na versão dos
anos 2000 a ênfase na vida política fora deixado de lado, ao menos de forma explícita, em
favor de uma crítica mais voltada aos costumes que advém das condições de vida da baixa
classe média.
Desta forma, percebemos que não é preciso caracterizar o programa enquanto um
seriado misto (prossecutivo e acumulativo), mas também como uma comédia de costumes, e é
exatamente isso que Oliveira faz. Vamos agora, de maneira sucinta, refazer o caminho teórico
percorrido por ele.
A comédia de costumes, conforme descrita por Flávio Aguiar (2003) caracteriza-se
por tratar de tipos e situações de uma determinada época, em outras palavras, analisa os com-
portamentos humanos e os costumes de um dado contexto social. A trama desenvolve-se to-
mando por base as normas existentes da sociedade que ela se propõe a retratar. Com tom de
sátira social, a comédia de costumes tem por temas mais freqüentes amores proibidos, a viola-
ção de certas normas de conduta social, desejos de ascensão social, entre outros, todos sempre
subordinados à comicidade. Por ter a cotidianidade como característica principal e ter suas
tramas e temas em consonância com aqueles frequentemente retratados por tantos outros e-
xemplares da comédia de costumes nacional, acreditamos pertinente a filiação do seriado “A
Grande Família” a esse gênero proposta por Oliveira (2004)
106
Para vários estudiosos, o inaugurador do gênero aqui no Brasil foi o dramaturgo Mar-
tins Pena.
Esta (a comédia), de acordo com a poética clássica encarnada por Molière, podia in-
clinar-se para o estudo psicológico (O Avarento), seja para a descrição de costumes
(As Preciosas Ridículas), seja para as complicações do enredo (As artimanhas de
Scapin). Em Martins Pena encontrava-se, em germe, um pouco dessas três possibili-
dades dramatúrgicas, que, evidentemente, não se excluem. Foi a segunda que pre-
dominou no Brasil, dando origem à nossa única tradição teatral: a comédia de cos-
tumes. (PRADO, 1999 p. 117)
Oliveira (ibidem) afirma que ao colocar o homem comum como protagonista e ao tra-
zer o cotidiano para os enredos, esse gênero introduzido no Brasil por Martins Pena, naciona-
lizou de maneira definitiva a cena teatral brasileira. O destaque do universo cotidiano realiza-
do por Pena serve ainda hoje de inspiração a muitas comédias produzidas no Brasil, tanto à-
quelas escritas para o palco quanto àquelas destinadas a outros media como o cinema, teatro e
a televisão.
A definição de “A Grande Família” como sendo uma representante da comédia de
costumes tem implicação direta com o nosso problema na medida em que as personagens ca-
racterísticas desse tipo de gênero são personagens-tipo, ou seja, representam um tipo padroni-
zado de comportamento conhecido, sendo, nesse caso, a encarnação de uma figura de ma-
landro presente no imaginário brasileiro. Complementarmente, Patrice Pavis (1999) define a
personagem-tipo como sendo aquela personagem que possui características físicas, fisiológi-
cas ou morais comuns e conhecidas de antemão pelo público e constantes durante toda a peça.
É importante reiterar que não pretendemos, com a discussão acima, dar conta da pro-
blemática dos gêneros e formatos televisivos ou da comédia de costumes enquanto categoria
teatral, nem pretendemos utilizá-la como aporte teórico a partir do qual os dados serão poste-
riormente analisados. Nosso objetivo é apenas fundamentar a caracterização de “A grande
família” como certo formato de programa televisivo, inserido em determinado gênero, se-
guindo determinada tradição de comédia de modo a facilitar nossa compreensão da persona-
gem (o malandro representado por Agostinho) que habita este produto mediático-cultural es-
pecífico. Nesse sentido, o nosso esforço de caracterização do seriado “A Grande Família” não
é, de modo algum, repetir os trabalhos de Oliveira (2004) e Machado (2000), mas apenas uti-
lizá-los como instrumentos para uma definição mais consistente do programa enquanto produ-
to televisivo.
Com isso, acreditamos ter explicitado as bases que definem o programa de televisão
“A grande família” como um seriado, ao mesmo tempo prossecutivo e acumulativo, que segue
a tradição da comédia de costumes.
107
4.4 O malandro da família
Antes de iniciar a descrição da personagem Agostinho de “A grande família” como
representação de certo tipo de malandro presente no imaginário brasileiro, gostaríamos de
relembrar a discussão realizada anteriormente a respeito da diferença fundamental entre o
malandro enquanto ser social real e sua representação através de uma personagem (CANDI-
DO e outros, 2007). Assim, é conveniente ressaltar que, ao apontar suas características princi-
pais, não se apontam as características de um malandro empírico, mas sim de um “Homo fic-
tus” (CANDIDO e outros, 2007, p. 63). É nesse sentido que este trabalho difere do de Ciscati
(2000) e aproxima-se do de Matos (1982):
O malandro do samba está ligado a seu personagem homônimo no contexto social,
mas com ele não se confunde inteiramente, assim como é verdade que a linguagem,
especialmente a linguagem poética, não conta da totalidade do real em termos de
transparência. Então, não é no contexto social, econômico ou político que vou con-
centrar minha atenção, mas no texto malandro. (Matos, 1982, p. 13)
É necessário dizer, entretanto, que este trabalho é similar ao de Matos (1982) somente
por levar em conta, não um ser social de fato, mas uma (dentre outras possíveis) representação
desse ser, uma personagem. Há, porém, diferenças. A primeira diferença fundamental é o fato
de que Matos não trabalha com uma personagem específica; sua leitura das letras dos sambas
do período de 1930 a 1954 leva em conta o malandro como personagem coletiva. Ademais,
trabalha com um tipo de malandro diverso, um malandro mais marginal, não necessariamente
ligado à contravenção, à navalha no bolso e à valentia, mas necessariamente ligado ao samba
e aos grupos negro-proletários dos quais toma a função de representante: “personagem soli-
tário e periférico por excelência, faz contudo parte de uma saga coletiva, carrega e expressa
em si a marginalização de todo o grupo” (MATOS, 1982, p. 68).
Trata-se aqui de analisar uma personagem específica (Agostinho, de “A grande famí-
lia”) que não tem pretensões de representar um grupo social marginalizado cuja única possibi-
lidade de se fazer ouvir é através da “linguagem da fresta” (MATOS, 1982, p. 186). Dessa
forma, Agostinho não funciona como representação simbólica de uma classe social, mas sim
de uma fatia da personalidade social brasileira (cf. DAMATTA, 1997), de modo que, ao con-
siderar o par antitético que compõe as personagens malandras (individual/solitário vs. coleti-
vo), há um predomínio do elemento individual/solitário sobre o coletivo.
Para a descrição da personagem, utilizaremos como material os textos que caracteri-
zam a personagem e que estão disponíveis no site oficial do programa (agrandefamili-
a.globo.com. Acesso em: 27/04/2008), bem como comentaremos, em linhas gerais, alguns
108
episódios que foram ao ar entre 2001 e 2007. É bom lembrar que não será feita a análise dos
episódios neste momento, sua utilização servirá apenas para debater quais são os elementos
que justificariam conceber Agostinho Carrara como uma personagem malandra. A análise
mais profunda de dois episódios será desenvolvida no próximo capítulo, porém os elementos
aqui levantados serão de importância crucial para sua consecução.
Gostaríamos de iniciar com a breve descrição da personagem fornecida pela Rede
Globo no site oficial do programa “A grande família”:
Sabe o genro que toda mãe pediu a Deus? Agostinho é justamente o contrá-
rio! Mas como Bebel é cega de paixão pelo marido, Lineu e Nenê acabam
sempre pagando o pato pelas confusões armadas pelo pilantra. Sempre em
busca da fortuna e de conquistas impossíveis, o cara se mete em cada en-
crenca... Ele foi vagabundo, trabalhou de porteiro em hotel e fez de
tudo, mas atualmente é motorista de táxi. Aliás, é bom lembrar que ele dirige
um carro dado por Lineu, porque se tivesse que juntar dinheiro pra comprar
um táxi, Agostinho estaria a pé até hoje!
Moradia também é outro capítulo à parte. Antigamente, Agostinho morava
com Bebel na casa de Lineu, mas recentemente se mudou para a casa ao la-
do, que é do Beiçola. E por falar nisso, pagar o aluguel também é um caso
sério... Como se não fosse problema suficiente, o cara vive deixando Bebel
furiosa por causa de suas armações.
(Disponível em <http://agrandefamilia.globo.com/Agrandefamilia >. Acesso
em: 12/04/2008).
A apresentação “oficial” de Agostinho fornece um elemento fundamental que tem
funcionado como pressuposto deste trabalho: a concepção de Agostinho como malandro. Essa
concepção aparece logo no início pelo epíteto “pilantra”. Malandro e pilantra fazem parte do
mesmo campo semântico, uma vez que ambas as palavras trazem a idéia de indivíduo finório,
de honestidade duvidosa, que se vale de astúcia enganosa. A caracterização da personagem
como “malandro” é reforçada no restante do texto: quer levar uma boa vida (“sempre em bus-
ca da fortuna e de conquistas impossíveis”); é avesso ao trabalho formal e regular, tendo tido,
ao longo das várias temporadas (2001-2007), muitas profissões, desde porteiro de motel até
motorista de táxi (profissão atual), passando pela “ocupação” de vagabundo. A malandragem
e a tendência de se aproveitar dos outros é enfatizada mesmo quando se trata do trabalho atual
da personagem: afinal de contas, como o texto faz questão de lembrar, o táxi utilizado por
Agostinho teve de ser comprado pelo sogro Lineu, porque, se dependesse da disposição para o
trabalho diligente e da capacidade de poupança da personagem, a compra do carro, que é seu
instrumento de trabalho, nunca teria acontecido. A tendência de viver à custa de outras perso-
nagens é também mostrada quando o texto afirma que Agostinho, até pouco tempo, vivia na
mesma casa de seus sogros e a mudança para sua própria casa, que a princípio significaria
109
independência financeira para o casal Agostinho e Bebel, não passa de medida paliativa
que, além de as casas serem vizinhas o que contribui para que Agostinho continue a depen-
der dos favores dos sogros –, Agostinho raramente paga o aluguel (“pagar o aluguel também é
um caso sério...”) e, na maioria das vezes em que o faz, é ou com a ajuda de Lineu ou através
de alguma artimanha (“o cara vive deixando Bebel furiosa por causa de suas armações”).
Além da descrição principal, outras páginas virtuais que compõem o site oficial do
programa mostram Agostinho Carrara como malandro.
Abaixo temos um comentário do resultado de um teste online que diz determinar com
qual das personagens de “A grande família” o internauta-telespectador mais se identificaria. O
resultado que apresentamos é referente ao perfil de Agostinho:
Você é a ovelha negra da família. Bem, se você fosse da família... Despreza-
do por muitos e rejeitado por todos: essa é a visão que você tem de si mes-
mo. Na verdade, você gosta mesmo é de se fazer de vítima e malandramente
sair levando vantagem em tudo. (Disponível em:
<http://agrandefamilia.globo.com/Agrandefamilia>. Acesso em: 12/04/2008)
Duas coisas chamam a atenção no texto acima. A primeira se refere à posição de A-
gostinho dentro da família e outra é o fato de querer levar vantagem em tudo. Como vimos, o
malandro sempre ocupa posição intersticial dentro da sociedade, não está dentro e nem fora da
ordem social (MELO E SOUZA, 2008 e DAMATTA, 1997); o mesmo ocorre com Agosti-
nho, sua posição de cunhado/genro faz com que, ao mesmo tempo, seja e não seja da família,
em outras palavras, na ordem familiar ele ocupa a posição intersticial (“bem, se você fosse da
família...”). Tal qual o malandro da sociedade, Agostinho sente-se marginalizado dentro da
família, ao mesmo tempo em que se considera como membro dela, e, semelhante ao que o
corre com o malandro enquanto ser social, sua presença significa perturbação da ordem (CIS-
CATI, 2000). Com relação ao fato de a personagem sempre querer levar vantagem em tudo
nem que para isso seja preciso proceder de forma desonesta, que para a personagem o fim
sempre justifica os meios –, o texto coloca isso de maneira direta (“malandramente sair levan-
do vantagem em tudo”).
A personagem Agostinho é caracterizada, direta e indiretamente na descrição de outras
personagens, como malandro em outros pequenos textos que podem ser encontrados em di-
versos lugares do site:
Se precisar de um taxista, pode chamar o Agostinho. Mas antes de começar a
corrida, confira o taxímetro porque o cara é o maior malandro. (Disponível
em: <http://agrandefamilia.globo.com> Acesso em: 27/04/2008).
110
O taxista mais malandro do pedaço não mede esforços para se dar bem. De-
pois é acertar as contas com uma furiosa Bebel. (Disponível em:
<http://agrandefamilia.globo.com/Agrandefamilia> Acesso em: 27/04/2008).
Essa é a filha que toda mãe gostaria de ter: meiga e atenciosa, só sai do sério
quando Agostinho apronta alguma de suas falcatruas. (Disponível em:
<http://agrandefamilia.globo.com/Agrandefamilia> Acesso em: 27/04/2008).
Dono da pastelaria do bairro, Beiçola nutre uma paixão pela Nenê. Seu pior
freguês é o Agostinho que vive com a conta pendurada. (Disponível em:
<http://agrandefamilia.globo.com > Acesso em: 27/04/2008).
Às vezes ele ganha dinheiro, às vezes não, às vezes ele gasta com o que não
deve... E aí, quem é que segura as pontas? Bebel e família, é claro! (Dispo-
nível em: <http://agrandefamilia.globo.com > Acesso em: 27/04/2008).
Os vários textos encontrados no site reforçam a caracterização da personagem como
um malandro, seja ao aplicarem-lhe o termo diretamente (“O taxista mais malandro do peda-
ço”; “o cara é o maior malandro”), seja ao se referirem à sua suposta falta de honestidade ao
aconselhar o internauta-telespectador a conferir o taxímetro para não ser enganado caso “ve-
nha a fazer uma corrida com a personagem”. A falta de honestidade e a disposição para a rea-
lização de expedientes escusos são referidas quando se alude às “falcatruas” da personagem.
Outro dado interessante é sua falta de estabilidade financeira e a falta de previdência, que,
como todo malandro, vive para o presente (“às vezes tem dinheiro, às vezes não tem, às vezes
gasta com o que não deve...”) e à custa de outros (“e quem é que segura as pontas? Bebel e
família, é claro!”). Finalmente, como todo bom malandro, a falta de previdência e de uma
vida disciplinada faz com que esteja sempre em meio a dividas (“vive com a conta pendura-
da”).
Dessa forma, os textos disponíveis no site de fato falam de uma personagem que tem
dificuldade de encontrar trabalho estável (sendo que nunca conseguiu ter por muito tempo um
trabalho com carteira assinada, que pressupõe o cumprimento de horários, posição dentro de
uma hierarquia, etc.) e cuja honestidade é preterida em favor de artimanhas com o objetivo de
se dar bem. A falta de aptidão para o trabalho formal, aliada à falta de previdência leva a per-
sonagem a ter constantes problemas financeiros, dependendo da ajuda de amigos e familiares
para atingir seus objetivos (ou, simplesmente, pagar o aluguel atrasado).
De maneira resumida, Agostinho de fato é um malandro. É importante acrescentar,
seguindo Antonio Candido (2007, p. 61 e 62), que Agostinho Carrara consiste em uma perso-
nagem-tipo, haja vista que suas características não mudam apesar das diferentes circunstân-
cias, o que faz com que suas ações e reações sejam sempre previsíveis, transformando-se em
111
caricatura. Este ponto seimportante quando formos discutir os aspectos ideológicos da re-
presentação do malandro em “A grande família”.
Se o site oficial do programa mostra uma personagem indubitavelmente malandra, o
mesmo ocorre com os episódios que compõe a série. Cabe citar alguns exemplos de episódios
com o intuito de demonstrar como a descrição fornecida no site coaduna-se com a conduta da
personagem no seriado e, principalmente, tentar identificar que tipo específico de malandro é
Agostinho Carrara.
O site fala de um Agostinho pilantra, sempre procurando se dar bem através de falca-
truas. Como ilustração de tais atitudes, podemos mencionar os episódios “A bonequinha do
Papai” (20/09/2007), “A bala perdida” (27/09/2007) e “Os miseráveis” (15/07/2004). No pri-
meiro, o taxista convida todos seus amigos do bairro para serem padrinhos de sua filha, a fim
de arrecadar dinheiro para pagar a inscrição do curso de gestantes para ele e a esposa. No epi-
sódio de 27/09/2007, planta uma suposta “bala perdida” na parede de sua casa para conseguir
um desconto no aluguel. Já o terceiro episódio é exemplar em termos de malandragem: Agos-
tinho faz uma ligação clandestina de energia elétrica na casa do sogro para que não precisem
mais pagar a conta, mas a ligação é descoberta pela companhia de energia que corta o forne-
cimento de eletricidade. Perguntado sobre o porquê de ele não ter feito a ligação em sua pró-
pria residência, explica que já tinha feito, mas como a companhia de energia descobriu, “não
teve alternativa” a não ser fazer a ligação clandestina na casa do sogro para poder puxar a
fiação também para sua casa. Além da fraude com a eletricidade, Agostinho canaliza a água
do sogro para sua caixa d’água e, como se não bastasse, para conseguir dinheiro para pagar o
aluguel e o IPTU atrasados, resolve abandonar o táxi em um terreno deserto com a chave no
contato para que o carro seja “roubado” e ele ganhe o dinheiro do seguro.
Estes casos são apenas alguns exemplos dos vários subterfúgios que a personagem
emprega em muitos dos episódios da série para “se dar bem”. Todavia, as expressões “se dar
bem” ou “malandramente sair levando vantagem em tudo”, utilizadas no site do programa
para descrever a personagem, são expressões que generalizam pelo menos três finalidades
recorrentes dos ardis de Agostinho.
Primeiramente, pode-se dizer que a personagem põe em prática suas velhacarias, a fim
de conseguir evitar ou contornar dificuldades (financeiras, em sua maioria), objetivo esse ilus-
trado pelos exemplos acima. Um segundo objetivo freqüente das ações de Agostinho é a har-
monia familiar: repetidas vezes a personagem se utiliza de expedientes escusos para conseguir
aquilo que acredita ser o melhor para a família. Um terceiro objetivo, embora menos freqüen-
te que os anteriores, é tentar ajudar alguma outra personagem como o que ocorre no episódio.
112
Contudo, que admitir que as duas últimas finalidades referidas e que subjazem as ações da
personagem acabam, em última instância, por converter-se em benefícios para si de maneira
indireta.
O que parece predispor Agostinho a se engajar com tanta freqüência em procedimen-
tos moralmente condenáveis é seu julgamento de que eles, apesar de sua ilicitude, são pratica-
dos por todos. Como exemplo disso podemos, novamente, citar o episódio “Os miseráveis”
(15/07/2004) e também “Bye-bye Bebel” (22/09/2005). Em ambos, ao ser descoberto sendo
que no segundo acaba preso pela polícia federal –, Agostinho justifica seu procedimento di-
zendo que o que fez “todo mundo faz”. Podemos dizer que a personagem toma toda a socie-
dade por malandra (concepção que se assemelha à dialética da malandragem de Cândido pre-
sente na sociedade do Brasil joanino). Esta generalização especular de Agostinho uma vez
que projeta na sociedade sua própria imagem e age de acordo com a imagem que com-
prova-se não apenas com o seu “todo mundo faz”, mas também ao ver em Lineu
29
uma perso-
nagem que, malgrado sua retidão de comportamento, pode por vezes tal qual o major Vidi-
gal de “Memórias de um Sargento de Milícias" escorregar para o universo da desordem
(MELO E SOUZA, 2008).
Mas o que faz com que Agostinho projete a ética que governa suas ações a toda soci-
edade? Como demonstram os trabalhos de Ciscati (2000) e Matos (1982), o malandro não é
uma figura isolada e, a análise de muitas das personagens com as quais Agostinho se relacio-
na no seriado permite perceber que elas são personagens marginais e criminosas, como, por
exemplo, Dentada e Remela, dois criminosos que vivem num mundo de violência (caso do
primeiro) ou com problemas com a polícia (tipicamente o segundo). Remela, além de amigo,
é também primo de Agostinho, o que possibilita entrever que a conduta moralmente questio-
nável da personagem tenha sido em grande parte determinada pelo ambiente familiar original
de duas maneiras. Primeiramente por ter crescido com os exemplos de comportamento que
dessem a impressão que atitudes que visam ao benefício próprio, a despeito de serem moral-
mente condenáveis, eram naturais e, em segundo lugar, pela falta de uma estabilidade famili-
ar, estabilidade essa que a personagem sempre busca preservar na família Silva (a família de
Lineu, na qual ocupa o lugar intersticial de genro/cunhado).
Isto pode ser comprovado nos episódios “Quem é morto sempre aparece”
(11/11/2004) e “Sem-vergonha é a mãe” (10/05/2007). No primeiro, o pai de Agostinho (in-
29
Personagem que funciona como seu contraponto ou, utilizando a classificação de DaMatta (1997), faz as ve-
zes do “caxias”.
113
terpretado pelo ator Francisco Cuoco) é um vigarista que não trabalha e sempre sobreviveu de
artimanhas para conseguir ganhar em corridas de cavalo. Embora o episódio mostre que A-
gostinho e seu pai compartilhem de muitas das características que compõem a personalidade
malandra, Agostinho não quer ter com ele um relacionamento justamente pelo fato de ele ser
embusteiro. A resistência ao pai por parte da personagem também ocorre em relação à mãe.
No episódio de (10/05/2007). sua mãe (interpretada por Betty Faria) é uma ex-chacrete e atual
atriz de filmes pornô e, por conta disso, Agostinho sempre se recusou a reconhecê-la como
mãe.
Se, em primeiro lugar, sua família tem influência direta na formação de sua personali-
dade através dos exemplos de comportamento fornecidos (sobretudo, pelo pai), a falta de es-
tabilidade da ordem familiar determinou seu comportamento malandro de forma indireta.
Com efeito, um dos objetivos freqüentes de sua malandragem é a manutenção da harmonia
familiar. Assim, o fato de nunca ter tido uma família de acordo como os padrões sociais leva
Agostinho a fazer qualquer coisa não para manter os Silva unidos, mas também para se
impor como um deles. A isso, acrescenta-se a falta de consistência dos laços familiares origi-
nais da personagem, o que a faz perceber um mundo em que cada indivíduo tenha que buscar
a realização de seus próprios anseios e objetivos, tendo por conseqüência aquilo que Meucci e
Barros Filho (2004) chamaram de ética utilitarista. De acordo com os pesquisadores, Agosti-
nho calcula seus atos sempre para que possa obter determinados fins que se traduzem em van-
tagens para si. Essas vantagens, porém, são vistas e justificadas pela personagem como sendo
para o benefício de toda a família.
Concordamos com os pesquisadores quando argumentam que, para Agostinho e seu
utilitarismo, os fins sobrepõem-se aos meios e, mesmo que busque algum benefício para o
grupo, na maioria das vezes, este benefício, em última instância, é para si. Portanto, embora a
personagem possa reconhecer o caráter ilícito e desonesto das ações que pratica, a desonesti-
dade e ilicitude são minimizadas pelas crenças que os fins justificam os meios e que todo
mundo agiria da maneira como ele agiu ou pelos exemplos de conduta dados por muitas das
personagens que compõem seu universo de relações e através da busca do que, a princípio,
parece ser um bem para todos (ainda que ele possa ser o maior beneficiado).
A minimização da desonestidade e da ilicitude e a lógica aparente de estar fazendo al-
go de errado por um bem maior para todos são responsáveis pelo fato de a personagem não
114
apenas considerar suas atitudes como perfeitamente aceitáveis, mas também levá-las a cabo
como se fossem necessárias
30
.
Desta forma, a personagem parece ser refém de uma situação da qual dificilmente con-
seguirá escapar. Por um lado, Agostinho quer renegar suas origens malandras as quais pare-
ce ter herdado tanto geneticamente quanto pelo convívio com outras personagens malandras e
marginais e fazer parte de uma família que, em seu ponto de vista, corresponde ao modelo
socialmente aceito de uma família “normal”. Por outro lado, suas tentativas de se inserir neste
universo, que representa estabilidade e segurança, costumam ocorrer através de expedientes
matreiros e malandros, dos quais dificilmente conseguirá se livrar pelo fato de que são eles
que o constituem.
Tendo demonstrado que, a partir do site oficial do programa e também dos diversos
episódios que compõem a série, Agostinho Carrara pode ser concebido como malandro, resta
identificar qual tipo de malandro a personagem representa.
Como foi visto, o malandro, tanto como ser social empírico bem como representação,
não é uniforme. Dividimos os malandros em dois grupos, rural e urbano, sendo que os malan-
dros pertencentes a esse último podem apresentar-se como malandros do submundo, malan-
dros do samba, entre outros, de modo que a representação clássica do malandro de terno bran-
co lenço no pescoço e navalha no bolso é apenas uma dentre várias possíveis. Por certo, não é
nesta última categoria que Agostinho Carrara se encontra.
Sendo uma personagem tipo, podemos facilmente identificar as características com as
quais é construída, lembrando que tais características pouco ou nada se alteram durante todos
os episódios de modo que basta tomar a personagem em alguns momentos exemplares para
que possamos localizá-lo numa categoria de malandro. Começaremos analisando sua compo-
sição física. Observe a seguir algumas imagens da personagem colhidas em diferentes episó-
dios:
30
Em alguns casos, suas atitudes são tomadas por ele não apenas como aceitáveis ou necessárias, mas, sobre
tudo, como a coisa certa a fazer. Tudo indica que a minimização do caráter ilícito e condenável de suas ações faz
com que a personagem não as perceba como tal. Isso leva à uma confusão entre o que é certo e errado sendo que,
nas palavras da própria personagem:“Perdão minha filha, às vezes a pessoa não sabe a diferença entre o certo e o
errado” (20/09/2007). Contudo, Agostinho não é completamente alheio à natureza condenável de seu compor-
tamento, o que pode ser confirmado na fala “às vezes eu piso na bola” (30/08/2007), justificando-o sempre em
nome de um bem maior “Eu fiz isso por amor” (20/09/2007).
115
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Figura 4
116
Figura 5
Diferentemente do clássico malandro carioca do período estado-novista que usava
terno branco, sapatos bicolores, chapéu panamá e lenço no pescoço, Agostinho Carrara é um
tipo malandro mais espalhafatoso, tanto no vestir quanto na maneira de se portar. Como pode
ser visto em todas as figuras acima, invariavelmente ele traja camisas com estampas extrava-
gantes e, boa parte das vezes, calças xadrez. Todavia, este tipo de vestimenta não é estranho
ao malandro, muitos dos sambistas que cantam ou cantavam sobre a malandragem freqüente-
mente recorriam a camisas com estampas chamativas, como pode ser visto nas imagens de
Bezerra da Silva (figura 6) e Germano Mathias (figura 7). Enquanto o terno branco está asso-
ciado à elegância e ao glamour marginais da malandragem, a camisa exuberantemente estam-
pada do malandro remete à folgança e ao comportamento tipicamente descompromissado de
quem se recusa a se enquadrar nos padrões mornos e monocromáticos de uma organização
social voltada ao trabalho e à responsabilidade.
Figura 6
117
Figura 7
O estilo colorido de Agostinho além de estar associado à folgança e ao não-
compromisso, pode estar diretamente ligado a outro traço de sua personalidade: a simpatia.
Agostinho é uma personagem que quer e precisa que todos gostem dele. É, portanto, uma
personagem que acredita em seu carisma, como pode ser comprovado nos episódios “Os ma-
las” (26/04/2007) e “Nem tudo que reluz é purpurina” (13/09/2007) em que Agostinho afirma,
textualmente, ser simpático e possuidor de carisma. Dessa forma, o colorido de suas camisas
de pronto nos revela uma personagem que quer e precisa ser notada, uma personagem de riso
fácil e que gosta dos prazeres da vida. Contudo, no que se refere a sentimentos, não é apenas o
riso que vem com facilidade. Para conseguir um julgamento que seja favorável a si, a perso-
nagem, dentro do estilo personalista que nos falava Sérgio Buarque de Holanda (1995),
exagera na expressão dos sentimentos de alegria (como pode ser visto nas figuras 1 e 4) e de
tristeza/sofrimento em busca de complacência (figuras 2 e 3).
Com efeito, Agostinho é uma personagem exagerada; beira o pastelão. Isso faz com
que os episódios que o têm como o centro da narrativa sejam, em geral, mais escrachados.
Esse exagero, esse escracho, essa bufonaria advêm do fato de que a representação de malan-
dro encarnada em Agostinho Carrara é uma caricatura. A personagem não tem a mesma serie-
dade e glamour-marginal das personagens malandras de João Antônio, nem a mesma sagaci-
dade (ainda que pense ter) de um Malasartes e nem a mesma valentia de um Max Overseas.
Agostinho é um malandro burlesco, um “malandro-mané”, um malandro cujas artimanhas
constantemente não produzem o resultado por ele calculado.
Ainda em relação à sua composição física, a figura esguia de Pedro Cardoso
31
, ator
que interpreta Agostinho Carrara, empresta à personagem certa ginga e ligeireza de movimen-
tos, típicas de quem parece pronto a esgueirar-se por entre as dificuldades. Por certo, esta é
31
O mesmo pode ser dito a respeito de Paulo Araújo, o intérprete de Agostinho na versão dos anos 70.
118
atitude posta em prática pela personagem para resolver seus problemas, ainda que para isso
seja necessário ludibriar os outros:
Agostinho: Não vai ter aumento de aluguel. Tô resolvendo isso com expediente, cri-
atividade, invenção da vida!
(...)
Bebel: É assim que você resolve as coisas na sua vida (...) enganando as pessoas?
(A bala perdida – 27/09/2007)
Além de ser um boa-vida e dono de uma sagacidade aparente, buscando sempre lograr
vantagem em tudo, disfarçando seus interesses próprios em nome dos demais, a personagem
tem outros traços que especificam o tipo de malandro que representa. Contudo, esses outros
traços de sua personalidade são, na verdade, apenas um vão esforço de se colocar como um
malandro sério. É nesse sentido que Agostinho Carrara se pretende valente, machão e mulhe-
rengo.
São vários os episódios em que a personagem tenta impor sua autoridade e virilidade à
esposa, sendo que no episódio “Me engana que eu gosto” (31/05/2007) chega até a ameaçar a
mulher dizendo “Eu vou dar em você”. Entretanto, entretanto essas ameaça da personagem
nunca poderia ter sido levada à sério nem pela esposa e muito menos pelos telespectadores,
acostumados que estão em ver que suas tentativas de ter autoridade sobre sua mulher são
sempre frustradas, afinal de contas, justamente ao contrário do que ocorre com o malandro
32
,
Agostinho é submisso à esposa. Esta tentativa frustrada pela submissão é exemplar no episó-
dio “A mãe da minha melhor amiga (07/12/2006) em que Agostinho quer obrigar Bebel a
cortar seu cabelo em casa dizendo:
Agostinho: Vai cortar meu cabelo, tô mandando!
Embora Agostinho seja enfático em sua “ordem” à esposa, Bebel que é quem real-
mente detém a autoridade na casa dos dois recusa-se a obedecer. Agostinho, contudo, não
desiste em fazer com que sua ordem prevaleça e vai ao salão de beleza onde a esposa trabalha.
Acreditando que por ser um cliente pagante, Bebel seria obrigada a cortar seu cabelo a perso-
nagem ao sentar-se na cadeira de corte diz:
Agostinho: Você inventou essa moda de ser desobediente dentro de casa, agora vai
ter que cortar meu cabelo aqui.
Mesmo assim, Agostinho tem sua “autoridade” mais uma vez desafiada por Bebel que,
por causa de sua insistência, propositalmente lhe faz um buraco no cabelo. Malgrado sua ten-
32
Aqui gostaríamos de lembrar o adágio popular que diz que “mulher de malandro gosta de apanhar”
119
tativa não ter correspondido à expectativa, mais tarde Agostinho tenta obrigar a mulher a pre-
parar um lanche sob o pretexto de ela ser sua esposa. Mais uma vez Bebel se recusa o que
deixa patente que quem realmente detém a autoridade não é ele e sim a esposa, desvelando
assim mais um traço caricato – e invertido – de sua malandragem.
O outro traço que denuncia Agostinho enquanto malandro-mané é sua suposta valenti-
a. O melhor exemplo de sua falsa valentia é o episódio “O apitaço” (06/12/2007) em que A-
gostinho, sem intenção, arruma briga com Juarez, um vizinho que acabara de se mudar. Agos-
tinho ao saber que o novo vizinho batia na esposa diz inadvertidamente perto de Juarez que
“cara que bate em mulher não vale a calça que veste! Uma coisa é falar firme, outra é bater!”
Ao descobrir que Juarez estava por perto Agostinho fica preocupado, mas tenta disfarçar sua
visível preocupação com demonstrações de falsa valentia:
Agostinho: Eu fui criado com tapa na cara! Não tenho medo de homem!
Todavia, a suposta valentia de Agostinho se desfaz aos olhos dos telespectadores
quando, na iminência de sua “morte” pelas mãos de Juarez, pede a Tuco para que prepare um
vídeo para que sua filha possa conhecê-lo mesmo depois de sua “morte”. A aparência de va-
lentia que ainda lhe restava perante as outras personagens é desfeita na seqüência em que A-
gostinho, ao saber que Juarez estava a caminho do bar onde ele se encontrava, tranca-se no
banheiro e de lá se recusa a sair.
Do mesmo modo que sua autoridade sobre a esposa e sua valentia não passam de mera
tentativa e aparência (respectivamente), sua outra característica típica de malandro que, por
sua caricaturalidade, revela-o como “mané” é seu fracasso em ser mulherengo. São vários os
episódios em que se pode ver as tentativas casanovescas da personagem, todavia citaremos
apenas alguns exemplos.
No episódio de 24/05/2007 (“Será que ela é?”), Agostinho aposta que com os amigos
no bar que conseguiria ter algum sucesso com uma mulher que começara a freqüentar a vizi-
nhança. Agostinho aborda-a com galantaria, mas sem nenhum sucesso:
Agostinho: Sério memo! Que coisa espetacular! Oh mulé gostosa, hein?
Paulão: Isso é uma potência! Uma potência! Isso pega no motor de primeira!
Qualquer um!
Tuco: É... pena que é tempo perdido! Que isso aí não gosta do negócio não!
Agostinho: Tu é muito criança, filho! Uma mulher dessa... você vai querer dizer pra
mim que essa mulher não gosta de homem!
Tuco: Qual é, Agostino? Isso aí é amiga da Gina! Eu conheço a mulher aí!
Agostinho: A mulher quando tem o homem certo... esse negócio de mulher não gos-
ta de homem é que não tem homem perto, cara!
Paulão: Exatamente! Isso é problema de falta de... de... de falta de homem!
Tuco: Que falta de homem, rapá!
120
Agostinho: É que o nego que ca mulé é froxo, num sabe pegar... num sabe o
recado ali na lata! Pá! Aí a mulé... quer ver?
Tuco: Quer ver o quê?
Agostinho: só!
Tuco: Que que foi?
Agostinho: Eu vou ali falar com essa mulher, vocês vão ver só
Paulão e Tuco: (riem)
Paulão: Vai! Vai! Eu quero ver!
Agostinho: Desculpa... eu trabalho aqui... eu sou o Agostinho e... não gosto de falar
com pessoa que eu não conheço, eu respeito muito a individualidade das pessoas...
eu sei que a pessoa tem direito de ter a vida dela... mas é que quando você entrou a-
li... sinceramente, a sua beleza... desculpa falar assim... eu senti um negócio forte!
Mulher: Não leva a mal, não, tá bom? Vamos deixar essa conversa pra um outro di-
a. Uma outra hora, tá?
Agostinho: Você é tipo braba, é?
Mulher: É que pra mim tá terminando... tô com um pouquinho de pressa!
Agostinho: Mas que que eu preciso fazer pra conquistar você, hein, oh?
Mulher: Faz o seguinte... por que você não pede pra sua mãe pra nascer de novo?
Agostinho: (embarassado) Eu nasço, ué...
Paulão e Tuco: (caçoando) Desenrolou! Já desenrolou!
Poder-se-ia argumentar que no exemplo acima a personagem não tenha tido sucesso
pelo fato de a mulher em questão ser lésbica. Entretanto, dentre os exemplos disponíveis, gos-
taríamos também de citar o episódio “Joga pedra na Nenê”, de 05/10/2006. Neste episódio,
por causa do ciúme que sente a partir da revelação de Bebel que admitiu ter sonhado com
outros homens, Agostinho anuncia à esposa que também sonhará com outras mulheres. No
sonho, a personagem vestida inteiramente de branco, se num corredor formado por lindas
mulheres sumariamente vestidas e presas em jaulas. Ao final do corredor nota uma mulher de
costas. Vai em direção a ela. Ao tocá-la vê que é Bebel que, ao ver o marido, solta uma risada
assustadora fazendo com que Agostinho acorde assustado. Uma breve análise do sonho da
personagem revela alguns pontos importantes acerca do tipo de malandro que representa.
Em primeiro lugar, no sonho, Agostinho é apresentado ao telespectador em trajes
brancos que, ao som de uma música que inspira sexualidade, conduz-se com meneios de cor-
po que em muito lembram a ginga malandra, ao mesmo tempo em que aprecia com volúpia as
mulheres que se encontram atrás das grades. Nesta primeira parte de seu sonho, pode-se per-
ceber a visão que a personagem tem de si: a roupa branca, a ginga e o “estar rodeado por mu-
lheres” lhe emprestam a malandragem séria e eficiente que deseja ter. Entretanto, essa aparên-
cia de malandragem já lhe é cerceada nessa primeira parte, uma vez que as mulheres estão
fora de seu alcance. A segunda parte do sonho vem coroar sua incapacidade como conquista-
dor: como já dissemos, o sonho é abruptamente interrompido pela visão e o som assustador da
risada da esposa, o que corrobora a concepção da esposa enquanto instância que detém autori-
dade sobre o malandro contribuindo em grande parte para que sua malandragem seja caricata
e controlada.
121
Com certeza, Agostinho é um malandro urbano. Porém é preciso dizer que ele se en-
caixa nesta categoria menos por estar ligado à violência e marginalidade provenientes de uma
situação de exclusão social vigente nas grandes cidades que pelo simples fato de a série se
passar em uma grande cidade brasileira, a saber, o Rio de Janeiro. As características específi-
cas da malandragem de Agostinho não se circunscrevem às características apresentadas por
outros malandros urbanos como Max Overseas, por exemplo -, sua sagacidade rasa, sua
valentia aparente e sua pretensa machidão lhe transformam num bufão que pode servir como
caricatura de todos os outros tipos de malandro, como que centralizando em si a imagem in-
vertida de todo o tipo de malandro.
Diferentemente de outros malandros urbanos, Agostinho não é um malandro do sam-
ba
33
, não é um malandro que representa a voz dos excluídos e marginalizados: a ele é vedado
este papel. É um malandro “da leve” (CISCATI, 2000) que ao ter seus principais atributos de
malandros caricaturados ou invertidos morre enquanto arquétipo e sobrevive enquanto metá-
fora do fracasso do malandro no mundo regido pela lógica do trabalho.
33
O seriado não apresenta nenhuma referência da personagem em relação ao samba.
5. Os episódios
123
5.1 Antes da análise
Realizado o percurso teórico acerca do fenômeno da ideologia no capitalismo tardio e
suas relações com os meios de comunicação de massa e a indústria cultural, bem como o es-
tudo da genealogia e do significado do malandro dentro da cultura brasileira, e a caracteriza-
ção da personagem que, dentro do seriado de televisão “A grande família”, representa a figu-
ra do malandro, empreendemos agora a análise de alguns episódios do seriado.
A análise detalhada de alguns episódios é fundamental para o trabalho por duas razões.
Em primeiro lugar, serve de ponto de convergência dos diferentes percursos teóricos; em se-
gundo lugar e esta na verdade é a razão principal, haja vista que a composição do quadro
teórico foi feita de modo a servir de pressuposto às conclusões –, a análise de dados concretos
fornece os elementos necessários à interpretação do que de ideológico na representação do
malandro no seriado.
Antes, porém, alguns esclarecimentos são necessários.
Thompson (1995, p. 139) adverte a respeito da “falácia do internalismo”, argumentan-
do que as formas simbólicas não são ideológicas em si, de forma que os conteúdos ideológi-
cos de determinado produto mediático podem ser interpretados levando-se em conta, além
da análise formal e estrutural das formas simbólicas, sua produção e recepção com sua sub-
seqüente apropriação. Para Thompson, uma abordagem que foque somente a análise das for-
mas e estruturas dos produtos mediáticos falha em perceber a importância das outras duas
dimensões, revelando aspectos apenas potencialmente ideológicos. O que Thompson chama
de “a falácia do internalismo” está intimamente ligado ao “mito do receptor passivo”
(THOMPSON, 1995, p. 409), uma vez que pressupõe que não elaboração por parte do re-
ceptor no processo de apropriação das mensagens.
Concordamos com Thompson quando enfatiza a importância de olhar com mais cui-
dado os contextos de produção e de recepção das mensagens na pesquisa em comunicação. De
fato, levar em conta estes dois contextos possibilita o entendimento mais profundo dos conte-
údos ideológicos que as formas simbólicas encerram. Entretanto, o imperativo de levar em
conta os contextos de produção e, especialmente, os de recepção se justifica, nesta aborda-
gem, por sua definição de ideologia, que implica considerar as maneiras pelas quais o sentido
é mobilizado para estabelecer e sustentar as relações sistematicamente assimétricas de poder,
ou seja, as relações de dominação:
Estudar ideologia é estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sus-
tentar relações de dominação. Fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos
124
significativos desde que eles sirvam, em circunstâncias sócio-históricas específicas,
para estabelecer e sustentar relações de dominação. Desde que: é crucial acentuar
que fenômenos simbólicos (...) não são ideológicos como tais, mas são ideológicos
somente
34
enquanto servem, em circunstancias particulares, pra manter relações de
dominação. (THOMPSON, 1995, p. 76).
Não discutiremos as limitações da concepção de ideologia nem do modelo de análise
propostos por Thompson. Não obstante, reconhecemos a validade de sua proposta por con-
cordar que a análise dos contextos de produção e de recepção/apropriação fornece pistas im-
portantes para entender o fenômeno da ideologia. Entretanto, ao conceber ideologia como as
“maneiras” pelas quais o sentido é utilizado para sustentar e estabelecer relações de domina-
ção, Thompson se obriga a ver na recepção e apropriação os momentos por excelência nos
quais a ideologia se atualiza. Neste sentido, a atualização dos fenômenos ideológicos, seguin-
do a proposta de Thompson, dependeria apenas parcialmente das intenções dos produtores e
das estruturas das formas simbólicas, uma vez que o caráter efetivamente ideológico depende-
muito mais do processo de recepção e, principalmente, do processo de apropriação das
formas simbólicas, momento em que as relações de dominação serão, com efeito, estabeleci-
das ou sustentadas. Antes disso, a ideologia é apenas potencial.
Nossa concepção de ideologia difere da de Thompson em dois pontos fundamentais.
Primeiramente, embora reconheçamos que a questão da dominação é pertinente ao considerar
a ideologia no capitalismo tardio, seguimos a proposta de Ricouer (1990) de deslocar o foco
da questão da dominação para o da “integração social”. Ademais, não entendemos ideologia
como “maneiras efetivas” (de estabelecer relações de dominação ou, no nosso caso, de pro-
mover integração social), mas sim como força em direção à integração a despeito das contra-
dições e desigualdades da realidade social. Desse modo, o fato de as formas simbólicas ape-
nas potencialmente promoverem a integração social não reduz o caráter ideológico que podem
conter. Se os receptores vão aceitar, rechaçar ou perceber como ideológico determinado con-
teúdo ou, ainda, se a inserção de elementos ideológicos foi ou não intencional, não muda o
caráter ideológico que as formas simbólicas carregam em si. A isso, acrescentemos que é pró-
prio da ideologia, no mais das vezes, não ser percebida. Posto de outro modo, ela tende a ser
tomada como coisa natural, tem caráter inconsciente: o fato de as pessoas não perceberem
como ideológicos filmes que mostram super-heróis americanos (Super-homem, Capitão Amé-
rica, Homem-Aranha, Mulher-Maravilha) com suas roupas na cor da bandeira nacional como
os grandes salvadores do mundo não invalida o reconhecimento de que esses filmes tenham
uma carga ideológica que pode ser atualizada em diferentes níveis. O trabalho do analista é
34
Grifo nosso
125
exatamente o de desnudar o conteúdo ideológico das formas simbólicas, tendo em mente, to-
davia, que sua análise traz consigo uma interpretação e, por conseguinte, ter acesso aos con-
textos de produção e recepção deixa de ser um imperativo e passa a ser algo desejável.
É na esteira desta argumentação que colocamos o foco da análise nas formas simbóli-
cas em si, sem o receio de fazer a “falácia do internalismo” tão atacada por Thompson. Assim,
estudos complementares que analisem os contextos de produção ou recepção poderiam forne-
cer um retrato mais completo de como a ideologia presente no seriado “A grande família”
opera nestes contextos, sem implicar mudança fundamental no conteúdo da análise.
Um segundo esclarecimento necessário diz respeito à escolha dos episódios.
A segunda versão do seriado “A grande família” começou a ir ao ar em 29/03/2001,
sendo que em 2008 o seriado entrou em sua temporada, havendo mais de 200 episódios a
analisar. Por questões de disponibilidade e suficiência, limitamos a análise à temporada de
2007. A escolha desta temporada em particular baseia-se em três razões. Em primeiro lugar,
esta foi a temporada completa mais recente disponível no momento da análise. Além disso,
nossa coleta começou a ser feita em 26/09/2006, de modo que, devido à dificuldade de conse-
gui-las com a Rede Globo, não tínhamos à disposição as temporadas anteriores completas,
apenas algumas coletâneas de episódios de diferentes temporadas lançadas comercialmente
pela Globo Vídeo e a Som Livre. Finalmente, achamos por bem focar a temporada de 2007
pelo fato de que nela encontraríamos a versão mais recente da personagem e do tratamento
dado a ela na ocasião da elaboração da pesquisa.
Mesmo tendo limitado a análise a 7ª temporada, havia ainda 36 episódios a serem ana-
lisados. Diante do grande número de episódios e do tempo limitado para a elaboração da dis-
sertação, estabelecemos critérios para reduzir este número para dois, quantidade condizente
com o limite de tempo.
Os critérios de escolha para análise dos episódios da temporada de 2007 foram dois:
os episódios deveriam ter a personagem Agostinho Carrara como personagem mo-
triz da narrativa televisual e
deveriam apresentar as principais características definidoras da personagem como
malandro discutidas no capítulo “O malandro em ‘A grande família’”.
Com a adoção desses critérios, o número de episódios foi enormemente reduzido e, a
partir dos episódios pré-selecionados, escolhemos os dois em que a personagem se destacava.
Os episódios escolhidos foram: A bonequinha do papai (20/09/2007) e A bala perdida
(27/09/2007).
126
A análise de conteúdo dos episódios aqui empreendida foi inspirada no modelo grei-
masiano de análise semiótica. Embora inicialmente concebido para a análise de textos literá-
rios, o fato de o seriado “A Grande Família” tratar-se de uma narrativa possibilita considerar
seus episódios utilizando-se de instrumental metodológico similar ao das narrativas literárias.
Ademais, “muitos dos fatos julgados específicos do objeto literário encontram-se também em
outros tipos de discursos figurativos e até mesmo nos não-figurativos” (BARROS, 2001, p.
78). Desse modo, esse modelo de análise serviu-nos de base, sendo, portanto adaptado para
atender as necessidades de análise impostas por nosso objeto e por nossos objetivos.
Faremos uma breve descrição dos principais pontos do instrumental metodológico
utilizado para a análise dos episódios sem, contudo, a preocupação de nos aprofundarmos, já
que, não se trata aqui de um trabalho em teoria semiótica ou discursiva. A função principal da
descrição que forneceremos será balizar os procedimentos analíticos por meio dos quais a
reflexão sobre os episódios foi estruturada, não tendo, assim, a intenção de por sob exame a
teoria semiótica tal qual Greimas e Fontanille a propõem (1993). Assim, não nos filiaremos
plenamente ao modelo semiótico de análise das diferentes camadas que, ao mesmo tempo em
que se sobrepõem umas às outras, implicam-se e engendram o sentido (GREIMAS e FON-
TANILLE, 1993); se de alguma forma o evocamos, da mesma forma o submetemos como
ferramenta à analise de conteúdo que, em última instância, ao contrapor-se à reflexão teórica
sobre os conceitos fundamentais com os quais trabalhamos, foi a responsável por desvelar a
condição ideológica na representação da personagem foco de nossa análise.
Barros (2001, p. 13) argumenta que a teoria semiótica considera o trabalho de constru-
ção do sentido como um percurso gerativo que parte da imanência à aparência. Assim, nossa
análise também se dividiu em três níveis distintos que se sobrepõe e se articulam segundo o
percurso gerativo.
O primeiro nível, chamado de estruturas fundamentais, parte do pressuposto de que o
sentido nasce da descontinuidade, da ruptura e da percepção da diferença. Assim, ele se orga-
niza em torno de pares semânticos opostos. As relações de oposição, responsáveis pela des-
continuidade e conseqüente geração do sentido, são esquematizadas segundo um “quadrado
semiótico” (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 40 e BARROS, 2001, p. 21) por meio do
qual podem ser vistos os diferentes tipos de relação de oposição, a saber, de contrariedade, de
contradição e de complementaridade.
127
S1 S2
S2’ S1’
relação de complementaridade
relação de contrariedade
relação de contradição
Dois componentes morfológicos de uma dada categoria semântica fundamental (S1 e
S2) estabelecem entre si uma relação de oposição por contraste e projetam, por uma operação
de negação, um novo termo que será seu contraditório (S1’ e S2’). Por meio de uma operação
lógica de asserção, cada um desses termos projetados (S1’ e S2’) remeterá ao termo oposto
daquele a partir do qual foram inicialmente projetados (S1 e S2), estabelecendo, assim uma
relação de complementaridade com o termo paro o qual remetem. A narratividade, dessa ma-
neira, é advinda das relações de oposição estabelecidas entre os componentes morfológicos de
nível fundamental.
O nível narrativo, imediatamente superior, consiste na atropomorfização das operações
lógicas realizadas no nível fundamental. Em outros termos, “entende-se a sintaxe narrativa
como o simulacro do fazer do homem que transforma o mundo” (BARROS, 2001, p. 28).
Entretanto é importante lembrar que, nesse nível, as operações de asserção e negação que
provocaram as mudanças de estado (e conseqüentemente engendram o significado) não são
concebidas como tendo sido realizadas por personagens e sim por actantes, cuja concepção é
desvencilhada de seu elemento psicológico e liga-se ao fazer narrativo (GREIMAS e FON-
TANILLE, 1993, p. 9).
Assim, articulando o nível narrativo com as estruturas fundamentais, percebe-se que a
narratividade é a transformação de estados:
O fazer do sujeito narrativo encontra-se assim reduzido, num nível mais profundo,
ao conceito de transformação, isto é, a uma espécie de pontualidade abstrata, esvazi-
ada de sentido, que produz ruptura entre dois estados. O desenvolvimento narrativo
pode, então, justificar-se como segmentação de estados que se definem unicamente
por sua “transformabilidade”. O horizonte do sentido que se perfila por detrás de tal
interpretação é o do mundo concebido como descontínuo, o que corresponde, aliás,
ao nível epistemológico, à colocação do conceito indefinível de “articulação”, pri-
meira condição para poder falar do sentido enquanto significação. (GREIMAS e
FONTANILLE, 1993, p. 10)
128
Desse modo, ao entendermos a narratividade como simulacro do fazer do homem
transformador do mundo, compreendemos que são esses (ou actantes antropomórficos) os
responsáveis pelas mudanças de estado que moverão a narrativa. Isso leva ao estabelecimento
de dois tipos de sujeitos da narrativa (ou actantes): o “sujeito-do-fazer e o “sujeito-do-
estado” (GREIMAS E FONTANILLE, 1993, p. 51 e 52), sendo o primeiro responsável pelas
mudanças de estado experimentadas pelo segundo (ainda que ambas as categorias possam ser
ocupadas pela mesma personagem na narrativa).
35
A unidade operatória elementar da sintaxe narrativa será chamada de programa narra-
tivo, entendido como um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. A seqüência
de um dado número de programas narrativos constituirá um percurso narrativo, que se identi-
fica com a totalidade da narrativa em si.
O terceiro e último nível no modelo de análise do qual fazemos uso é o nível discursi-
va. Entendido como lugar de desvelamento da enunciação e manifestação de valores (BAR-
ROS, 2001, p. 72), funciona sobre os elementos da análise narrativa retomando aspectos que
foram deixados de lado. É neste ponto que a análise, a despeito de ainda se inspirar no modelo
com o qual trabalhamos até aqui, tomará um caminho um tanto diferente.
Com efeito, Barros (ibidem) afirma que é no nível discursivo que se pode analisar as
projeções da enunciação no enunciado, os recursos de persuasão utilizados pelo enunciador
para manipular o enunciatário e a cobertura narrativa dos conteúdos narrativos abstratos. A-
firma também que os esquemas narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação que, ao
convertê-los em discurso, deixa “marcas” (ibidem). Ainda que façamos uso de algumas das
categorias a respeito das quais Barros discute, não seguiremos o modelo tal qual é apresentado
pelo fato de ele estar condicionado à teoria do discurso. Como já dito, não temos a intenção de
desenvolver um trabalho de análise do discurso (ainda que alguns de seus elementos possam
ser úteis), de modo que, ao invés de empreender uma análise discursiva, a análise do nível
mais próximo da superfície do texto será uma análise de conteúdo. O fato de preferirmos fazer
uma análise de conteúdo não significa que descartaremos o uso de elementos da análise dis-
cursiva. Ao contrário. Esses elementos nos servirão de ferramenta para elucidar pontos impor-
tantes na análise de conteúdo.
Acreditamos que o uso deste instrumental permitirá delinear com clareza a maneira
pela qual a malandragem é representada nos episódios analisados e a maneira como é recebida
35
Convém lembrar, entretanto, de que o sujeito-do-fazer deve obedecer a condições prévias que o tornarão com-
petente para esse fazer, isto é, ma competência modal do sujeito narrativo (GREIMAS e FONTANILLE, 1993,
p. 25 e 64-67)
129
pelas demais personagens e quais seriam os aspectos ideológicos desta representação e trata-
mento.
Outro ponto importante a ser considerado é o fato de o objeto analisado consistir em
imagem em movimento. Desse modo, a fim de facilitar a construção de nossa argumentação,
faremos uso de alguns conceitos referentes à linguagem cinematográfica e à análise fílmica.
Porém, pelo fato de tratarmos o corpus da pesquisa por meio da análise de conteúdo, limita-
remos o uso desses conceitos ao estritamente necessário para a realização da análise proposta.
Sendo assim, os conceitos referentes à linguagem cinematográfica aqui utilizados a-
companham a definição de Marcel Martin (1990) e Jacques Aumont (1995) e serão restritos à
escala de planos (plano geral, plano conjunto, plano americano, plano médio, primeiro plano e
close-up), a movimentação de câmera (panorâmicas, travellings, zoom in e zoom out), aos
ângulos de filmagem (câmera plana, plongée e contra-plongée) e à montagem (elipse, cena e
seqüência). Portanto, sem a preocupação de analisarmos minuciosamente as maneiras pelas
quais tais procedimentos da linguagem fílmica tem sido utilizados, faremos uma breve descri-
ção com a finalidade de facilitar o acompanhamento da análise. Embora nem todos os termos
acima sejam de fato utilizados neste trabalho, decidimos incluí-los nessa pequena descrição
no sentido de fornecer certo universo de elementos para se ter uma noção mais precisa dos
termos efetivamente aqui usados.
Primeiramente, no que se refere à gradação de planos, o plano geral é aquele que
mostra uma grande área de ação, filmada de longa distância. Em geral, é utilizado para apre-
sentar todos os elementos da cena sendo feito normalmente de um ponto mais elevado, com a
câmera inclinada para baixo. Já o plano conjunto cobre a área em que a ação de fato se desen-
rola, mostrando o conjunto de personagens que dela participa. O plano americano é aquele
que corta a figura humana por volta da altura dos joelhos, revelando, ao mesmo tempo deta-
lhes da expressão facial bem como da corporal. O plano médio enquadra o corpo humano da
cintura para cima, destacando-se a figura humana como o centro da atenção para o espectador.
O primeiro plano consiste em enquadrar a figura humana da metade do rax para cima. Fi-
nalmente, o close-up é aquele em que a câmera está bem próxima do rosto do ator, de modo a
praticamente eliminar o cenário.
Com relação à movimentação de câmera, na panorâmica, a câmera é fixa em um ponto
e o movimento é feito sobre sua própria base. no travelling, a câmera como um todo per-
corre o cenário onde se desenrola a ação. Por último, o zoom in e o zoom out simulam, através
das lentes, o travelling para frente e para trás.
130
No que concerne os ângulos de filmagem, aquele em que a câmera se posiciona à altu-
ra do olhar humano é conhecido como câmera plana. O plongée (ou câmera alta) enquadra o
ator, ou objeto, visto de cima, reduzindo o seu tamanho. Este procedimento é geralmente uti-
lizado para diminuir a força e enfatiza a inferioridade da personagem, mostrando-a frágil e
vulnerável. O contra-plongée (ou câmera baixa) enquadra o ator, ou objeto, visto de baixo,
dando a impressão de aumentar seu tamanho. Este tipo de ângulo em geral coloca a persona-
gem ou objeto em posição de superioridade ou dominância.
Finalmente, no que se refere à montagem, os termos que utilizaremos se limitarão a
seqüência, cena e elipse. Unidade de significação fílmica mínima, a cena se caracteriza, ge-
ralmente, pela unidade de espaço e de tempo. Um conjunto de cenas formarão uma seqüência,
cuja característica principal é a unidade de ação, sendo que sua unicidade advém da monta-
gem. a elipse consiste nos eventos que o espectador é levado a supor que ocorreram, sem
que eles necessitem ser exibidos. É o uso desse procedimento que torna possível que uma
ação que se desenrola por vários dias ou anos seja narrada em cerca de duas horas.
Tendo esquematicamente discutido a maneira pela qual será realizada, passemos agora
a análise dos episódios. Dividindo-a em duas partes distintas, primeiramente empreendemos
a análise tripartida de cada episódio separadamente. É preciso dizer que em um dos episódios,
mais do que um programa narrativo, de modo que, embora Agostinho seja a personagem
chave do programa narrativo central, o fato de haver programas narrativos paralelos (e que,
conforme demonstraremos, convergem para o principal) faz com que parte daão seja trans-
ferida para esses programas. Tendo delimitado nossa análise à personagem Agostinho, traba-
lhamos com esses programas paralelos até o ponto de interesse da análise. O outro episódio,
por sua vez, conta com apenas um programa narrativo em que a personagem é central para o
desenvolvimento. O fato de todos os eventos dependerem de sua ação fez com que a análise
fosse um tanto mais complexa por ter de levar em conta uma maior diversidade de elementos.
Arbitrariamente, decidimos deixar a análise do episódio mais complexo (20/09/2007) para ser
feita depois, a despeito de, cronologicamente, ter sido veiculado anteriormente.
Num segundo momento, compararemos as análises de cada episódio a fim de verificar
se um padrão de tratamento da personagem e de que maneira este padrão está relacionado
com a ideologia das sociedades do capitalismo tardio.
5.2 A análise
131
a) A bala perdida
A história começa com Agostinho implantando uma falsa bala perdida na parede exte-
rior da casa para evitar um iminente aumento do aluguel por parte de proprietário (Beiçola).
Surpreendido por Bebel, Agostinho conta-lhe seu plano de como evitar qualquer aumento. A
esposa desaprova a conduta do marido, no entanto, é tarde demais; Beiçola aparece em se-
guida dizendo que aquele seria o dia para que negociassem o aumento. Pressionada por Agos-
tinho, Bebel nada revela a Beiçola, que fica assustado quando Agostinho lhe diz que se hou-
ver qualquer reajuste, este deveria ser para baixo: o imóvel não teria mais o mesmo valor,
porque, estando na linha de fogo de traficantes e polícia, fora atingido por uma bala perdida.
Por causa da violência que chegara ao, antes pacato, bairro e do prejuízo financeiro
causado por ela, o pasteleiro, na reunião da associação dos moradores, queixa-se da situação e
exige providências. Contudo, Lineu, o presidente da associação, está viajando, de modo que
D. Nenê sugere que se espere a chegada do marido para se tomar alguma decisão. Beiçola e os
outros moradores discordam, dizendo que uma situação desse tipo não pode esperar e algo
tem de ser feito imediatamente. Marilda sugere que os moradores paguem segurança privada,
alarmes e sistema de câmeras.
Diante da necessidade de gastar dinheiro com segurança por conta de uma situação
forjada por ele próprio, Agostinho, pressionado por Bebel, propõe que a melhor solução seria
que os vizinhos se unissem e exigissem seus direitos ao poder público. Todos aprovam a idéi-
a, especialmente Marilda que sugere um abraço simbólico na rua. Pelo fato de o presidente da
associação não estar presente, surge o impasse de quem ficaria a cargo de organizar o movi-
mento, sendo que, como quem havia dado a idéia fora Agostinho, Beiçola propõe que esse
seja o organizador. Um tanto surpreso, o taxista aceita.
Quase toda vizinhança participa do tal abraço simbólico, à exceção de Paulão, que a-
caba confessando ao pasteleiro que a bala perdida fora uma armação de Agostinho. Furioso,
Beiçola vai atrás do taxista, exigindo o dinheiro do aluguel com o devido aumento. Todavia, o
movimento organizado por Agostinho fora bem sucedido, a ponto de conseguirem que se co-
locasse uma guarita com um policial na rua dos Silva. Ao ver a guarita chegando para ser ins-
talada, Beiçola por achar conveniente para sua pastelaria muda de idéia e propõe a todos
que Agostinho seja eleito o novo presidente da associação, em substituição a Lineu.
Agostinho aproveita a situação de estar prestes a ser nomeado o novo presidente da as-
sociação e sente-se uma autoridade no bairro. No entanto, o policial designado para ficar na
guarita e tomar conta do bairro (soldado Bastos) é tão caxias quanto Lineu e começa a impor a
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lei a todos que a desrespeitam, inclusive Beiçola. Nada satisfeito com a situação, Beiçola exi-
ge que Agostinho faça alguma coisa para tirar o policial da rua, ameaçando contar a todos a
farsa do taxista. Com isso, Agostinho vai à oficina de Paulão tomar satisfações por ele ter
revelado a Beiçola sua armação com a história da falsa bala perdida, alegando que o pasteleiro
o pressiona para que faça algo impossível: tirar o policial da rua. Paulão afirma concordar
com Beiçola, alegando que o soldado Bastos não permitia mais que ele consertasse os carros
na calçada da oficina, além de estar flertando com Marilda. Nesta conversa com Paulão, A-
gostinho bola um plano para tirar o soldado da rua e pede sua colaboração, assim todos sairi-
am ganhando.
O plano consiste em forjar um roubo de automóvel da oficina de Paulão no momento
em que o policial estivesse na casa de Marilda para um café para que todos vissem que, no
momento em que sua presença se fazia necessária, o guarda não estava onde deveria. Mas o
plano fracassa por o carro fornecido por Paulão que Agostinho finge roubar estar sem
freios, sendo que o taxista acaba batendo contra a guarita destruindo-a. Com o escândalo feito
por Paulão por causa do suposto roubo e com o barulho do veículo batendo contra a guarita, o
soldado Bastos vai até a rua e, diante de todos inclusive da família Silva e Lineu que acaba-
ra de chegar de viagem –, ameaça prender Agostinho. Neste momento, tanto a história da bala
perdida quanto o plano de Agostinho para desmoralizar o policial e, conseqüentemente, tirá-lo
da rua vêm à tona. Entretanto, o soldado Bastos, a pedido de Marilda, acaba por não prender
ninguém, dizendo que da próxima vez não poderia aliviar.
O episódio termina com a guarita sendo transferida para uma vizinhança que fosse de
fato violenta e com uma reunião da associação de moradores em que seria feita a substituição
do presidente. Entretanto, por não contar mais com nenhum voto, Agostinho perde a eleição e
Lineu continua como presidente da associação.
No nível das estruturas fundamentais, o episódio se constrói sobre a categoria semân-
tica “fracasso vs. êxito”, posta em movimento por operações sintáticas de negação e asserção
responsáveis por transformar o “fracasso” em “não-fracasso” (negação) e o “não-fracasso” em
“êxito” (asserção), ocorrendo o mesmo para a mudança de retorno (de êxito” para “fracas-
so”). A movimentação na estrutura fundamental do episódio pode ser esquematizada da se-
guinte maneira:
fracasso não fracasso êxito não-êxito fracasso
Neste episódio, a personagem parte de um momento inicial de fracasso, alcança certo
êxito temporário e retorna a seu ponto de partida, o fracasso. Este percurso que compõe a es-
133
trutura mínima da história, e a partir do qual o sentido do episódio é gerado, é mais bem com-
preendido através do esquema abaixo:
fracasso
(1;3)
êxito
(2)
não-êxito não-fracasso
relação de complementaridade
relação de contrariedade
relação de contradição
Os esquemas demonstram que a história parte de um momento inicial (1), em que a
personagem encontra-se em situação de fracasso (Agostinho não tem condições de pagar o
aluguel e muito menos o aumento); segue para o segundo momento (2), que corresponde ao
êxito temporário (Agostinho consegue evitar o aumento e o pagamento do aluguel e, ainda por
cima, é cotado para assumir o cargo de presidente da associação de moradores do bairro). O
terceiro momento (3) é a volta da personagem à situação inicial, subsumida na categoria se-
mântica do fracasso (a personagem é ameaçada de punição severa prisão e não consegue
se eleger presidente da associação por não contar com o voto de nenhum morador).
As mudanças do primeiro para o segundo momento e o retorno ao primeiro, realizadas
através das operações de negação (“fracasso não-fracasso” e “êxito não-êxito”) e de
asserção (“não-fracasso êxito” e “não-êxito fracasso”), estabelecem relações de com-
plementaridade (nos eixos fracasso/não-êxito e não-fracasso/êxito), de contradição (nos eixos
fracasso/não-fracasso e êxito/não-êxito) e de contrariedade (no eixo fracasso/êxito). Desta
maneira, percebemos que o sentido da história no nível fundamental é propiciado pela ruptura
da continuidade (descontinuidade) e percepção da contrariedade entre os pares semânticos
“fracasso” e “sucesso” sobre os quais os três momentos se estabelecem.
O nível imediatamente superior, o da narratividade, fornece – além de maiores especi-
ficidade e complexidade que aquelas encontradas na estrutura fundamental mais pistas de
como as mudanças de estado (fracasso êxito fracasso) ocorrem e o que/quem as opera.
Se, no nível fundamental, são as operações lógicas de negação e asserção que realizam
as mudanças de estado, no nível narrativo elas serão identificadas com as ações da persona-
gem sobre si e sobre as outras personagens, bem como com os reflexos dessas ações. No epi-
asserção
asserção
134
sódio em questão, as operações de negação e asserção, encontradas no vel fundamental, as
quais garantem a passagem do fracasso para o êxito temporário, identificam-se, no vel nar-
rativo, às artimanhas de Agostinho Carrara (que consegue enganar o pasteleiro e também a
vizinhança). Já o caminho de volta (êxito fracasso) é efetuado através da revelação, às ou-
tras personagens, da artimanha que provocou o êxito (num primeiro momento, o plano de
Agostinho é descoberto por Beiçola; este passa a chantageá-lo para que ele, ao ser eleito pre-
sidente da associação dos moradores, faça vistas grossas às irregularidades cometidas pelo
pasteleiro na condução de seu negócio. Num segundo momento, todas as artimanhas de Agos-
tinho vêm à tona quando o policial o ameaça de prisão).
Vale notar que é a artimanha inicial de Agostinho (implantar a bala na parede e enga-
nar Beiçola) que, de fato, deflagra toda a ação. Seu raio de alcance não se restringe a fazer
com que Agostinho evite o aumento do aluguel (na verdade, o taxista, devido à estupefação de
Beiçola, nem chega a pagá-lo), mas também leva Beiçola a exigir, na reunião da associação
de moradores, medidas urgentes contra a violência no bairro; é ela, além disso, que faz com
que se organize o movimento pela paz para o qual Agostinho é indicado como responsável; é,
indiretamente, através dela que se consegue a implantação de uma cabine de polícia no bairro
e, por último, é a descoberta desta artimanha que faz com que o taxista fique nas mãos de
Beiçola e que o levará, por exigência deste, a bolar uma segunda artimanha para tirar o polici-
al do bairro.
Portanto, é a malandragem de Agostinho que funciona como força motriz da narrativa.
É através da malandragem que a personagem consegue os benefícios para o bairro e, princi-
palmente, para si. No entanto, como foi visto ao analisarmos a estrutura profunda da história,
o percurso narrativo tem uma guinada de 180º, levando a personagem, novamente, para a si-
tuação de fracasso. É nesse sentido que a revelação (ainda que engendrada dentro e, portan-
to, dependente da artimanha inicial) assume importância no enredo. Embora sua importân-
cia não seja fundadora, como é o caso da artimanha inicial responsável pela primeira mu-
dança realizada no episódio (fracasso êxito) e também fonte de todo o enredo é por ela
que se realizará o retorno à situação inicial.
A revelação, neste episódio, pode ser dividida em duas partes. A primeira consiste em
descoberta e subseqüente ameaça de revelação (momento em que Beiçola descobre que a
bala perdida não passava de uma falcatrua de Agostinho para enganá-lo); a segunda é o da
revelação efetiva a todas às demais personagens dos ardis de Agostinho no episódio. Ambas
as revelações acontecem de maneira casual: fazê-las não foi intenção ou plano de nenhuma
personagem. No primeiro caso, Beiçola descobre a fraude em conversa com Paulão, que, ao
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deixar escapar que o caso da bala perdida de Agostinho não era sério, é instado por Beiçola a
contar o que aconteceu em troca de alguns pastéis. No caso da revelação efetiva, embora te-
nha sido indiretamente provocada pela ameaça de Beiçola de divulgar a fraude de Agostinho,
é a criação e a execução desastrosa da segunda artimanha (fingir roubar um carro para dene-
grir a imagem do policial, de modo a transferi-lo para outro bairro) que faz com que Paulão,
pressionado pelas circunstâncias, faça a revelação efetiva.
Embora as artimanhas e a revelação sejam os elementos narrativos responsáveis pelas
mudanças entre as categorias semânticas de “fracasso” e “êxito” verificadas no nível estrutu-
ral profundo do episódio, elas são operadas direta ou indiretamente – pelas personagens. As
artimanhas ficam por conta de Agostinho (ainda que, na segunda, conte com a ajuda, meio a
contragosto, de Paulão), que nelas a possibilidade de solucionar seus problemas. os e-
ventos que levam à revelação das artimanhas iniciam-se com Paulão; sua participação aconte-
ce tanto na descoberta e ameaça de revelação quanto na revelação efetiva. Na primeira, é
devido ao que diz inadvertidamente que Beiçola descobre que fora enganado pelo taxista. Na
segunda, além de ser a personagem que pressionada faz a revelação, participa no malfadado
plano, sendo peça importante para seu insucesso ao emprestar um carro sem freios a Agosti-
nho para que este fingisse roubá-lo.
Isso demonstra a diferença fundamental dos papéis de Beiçola e Paulão no que se refe-
re à revelação: o primeiro tem a intenção de revelar a verdade, mas não o faz; o segundo não
tem intenção, mas revela. A revelação acontece de maneira casual, sem intenção e através de
um amigo (Paulão), de modo que Beiçola pouco tem a ver com a revelação. Embora possua a
intenção (e interesse em poder revelar), sua ação pouco contribui para isso, se comparada à de
Paulão; sua ação direta e intencional sobre Agostinho não leva à revelação, mas à criação e a
execução das artimanhas. Esta construção narrativa pode ser esquematizada da seguinte ma-
neira:
PN1= [S1(Beiçola) (S2(Agostinho) +F) = (S2(Agostinho) +A1)]
PN2= [(S1(Agostinho) +A1) (S2 (Agostinho) +F) = (S2(Agostinho) +E)]
PN3= [(S1(Paulão) +I) (S2(Beiçola) -I) = (S2(Beiçola) +I)]
PN4= [S1(Beiçola) +I (S2(Agostinho) +E) = (S2(Agostinho) +A2)]
PN5= [S1(Paulão) (S2(Agostinho) +A2) = (S2(Agostinho) +Ac)]
PN6= [(S1(Agostinho) +Ac) (S2(todas as personagens) - I) = (S2(todas as personagens) + I)]
PN7= [S1(todas as personagens) (S2+E) = (S2(Agostinho) +F)]
PN: Programa Narrativo
: transformação
S1: sujeito do fazer
S2: sujeito do estado
I = informação
A1: 1ª artimanha
A2: 2ª artimanha
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Ac: artimanha comprometida
+: com
- : sem
=: igual a
E: êxito
F: fracasso
O esquema demonstra os sete programas narrativos sobre os quais o episódio se desen-
rola. No primeiro programa narrativo (PN1), o sujeito-do-fazer (Beiçola) transforma o sujeito-
do-estado (Agostinho), conjugando-o com artimanha (A). No segundo (PN2), o sujeito-do-
fazer (Agostinho), com artimanha, transforma a condição do sujeito-do-estado (Agostinho) de
fracasso para êxito. No terceiro (PN3), o sujeito-do-fazer (Paulão) transforma o sujeito-do-
estado (Beiçola) ao doar-lhe a informação sobre a artimanha. O quarto programa narrativo
(PN4) esquematiza o sujeito-do-fazer (Beiçola), dotado de informação, transformando o sujei-
to-do-estado (Agostinho) ao conjugá-lo novamente com artimanha (A2). No próximo progra-
ma (PN5), o sujeito-do-fazer (Paulão) transforma o sujeito-do-estado (Agostinho), conjugado
com artimanha, em sujeito com artimanha comprometida (Ac). No sexto programa narrativo
(PN6), temos o sujeito-do-fazer (Agostinho) que, dotado de artimanha comprometida, dota o
sujeito-do-estado (as outras personagens) de informação. No último programa narrativo
(PN7), o sujeito-do-fazer, com a informação adquirida (em forma de revelação), transforma o
sujeito-do-estado (Agostinho) em sujeito conjugado com fracasso.
O esquema também possibilita verificar que, se é a revelação que faz com que as ou-
tras personagens adquiram conhecimento sobre Agostinho, é a artimanha mal-sucedida que
provoca a revelação. Ora, se as artimanhas se configuram como a ação da personagem sobre
si própria, em última instância, Agostinho é seu próprio carrasco: o elemento que pode trazer
a mudança para uma situação melhor é, ele mesmo, o elemento que o traz de volta à situação
de dificuldade de onde saiu. Pelo esquema, pode-se perceber que as artimanhas (A1 e A2) de
Agostinho aparecem em função de uma personagem (Beiçola) responsável por colocá-lo em
uma situação de conflito: ter que pagar o aluguel com aumento, mesmo sem condição finan-
ceira para isso (caso da primeira artimanha); e ter que transferir o policial para outra localida-
de (caso da segunda) sem ter autoridade para isso. Assim, a personagem lança mão desses
expedientes para conseguir contornar situações que fogem completamente a seu controle; con-
tudo, os efeitos que esses expedientes surtem também escapam ao controle.
Examinar o episódio através da análise da estrutura narrativa não implica que ela seja
o único percurso narrativo sobre o qual a história se constrói.
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E, de fato, não é. Existem, pelo menos, duas outras estruturas narrativas concorrentes.
Nossa escolha pelo percurso narrativo se por dois fatores: em primeiro lugar, ele funciona
como espinha dorsal do episódio; como linha narrativa principal, as outras duas não apenas a
seguem paralelamente, mas acabam por confluir para ela. Em segundo lugar, além de ser a
estrutura narrativa principal, ela é o universo de ação da personagem foco. Desse modo, traça-
remos apenas em linhas gerais os outros dois percursos narrativos, limitando a análise àquilo
que influi na estrutura narrativa principal.
A primeira narrativa paralela à principal diz respeito às personagens Marilda e soldado
Bastos.
Preocupada em encontrar um par romântico íntegro, Marilda visita uma mandingueira
que lhe revela que logo encontraria um homem tal qual procurava. Para garantir que a previ-
são da vidente se realize, Marilda faz uma simpatia para santo Antônio. No momento em que
a está realizando, conhece o soldado Bastos, que lhe vem prestar ajuda no momento em que
Paulão a importuna. Marilda impressiona-se com a austeridade com que o policial despacha
Paulão e acredita ser ele o homem íntegro que a mandingueira lhe revelara. Realmente, o sol-
dado Bastos (o policial que, como resultado do movimento organizado por Agostinho, foi
designado para tomar conta da rua) é um servidor público reto e começa a atrapalhar os pla-
nos de Beiçola, que, contando com o apoio forçado do futuro presidente da associação dos
moradores chantageado por Beiçola –, esperava fazer o que quisesse na rua: desrespeitar a
lei do silêncio, distribuir as mesas e cadeiras de sua pastelaria pela calçada, etc. O soldado
Bastos, como autoridade institucionalizada e com poder de polícia, inibe não as pretensões
do pasteleiro, mas também impõem a lei a todos que, mesmo minimamente, a desrespeitem.
Esta narrativa paralela funciona como contraponto à narrativa principal, uma vez que,
enquanto Agostinho – apesar do êxito temporário que a malandragem lhe garantiu não pos-
sui qualquer autoridade, o soldado Bastos encarna em si a autoridade institucionalizada do
Estado. Desse modo, o contraponto baseia-se no contraste do “ter” e do “pretender ter” auto-
ridade. As duas linhas narrativas seguem paralelas (sendo que o percurso narrativo do soldado
Bastos é resultado do percurso narrativo de Agostinho e influi, durante todo o episódio, indi-
retamente sobre o percurso narrativo dessa personagem) até convergirem definitivamente no
final do episódio, em que a pretensa autoridade de Agostinho é superada pela autoridade insti-
tucional do soldado Bastos, quando este ameaça prendê-lo.
O segundo percurso narrativo paralelo que encontramos neste episódio diz respeito a
uma personagem coletiva: a própria comunidade. No nível fundamental, as categorias semân-
ticas que gerarão o sentido são “tranqüilidade” e “intranqüilidade”. O episódio começa com a
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rotina pacata do bairro que é abalada pela descoberta da bala perdida. Na tentativa de rega-
nhar a tranqüilidade perdida, os moradores se organizam para pedir mais segurança ao, anteri-
ormente, pacato bairro. Porém, é necessário lembrar que a intranqüilidade é gerada por um
perigo aparente, de modo que a medida posta em prática para recuperar a tranqüilidade não
passa de um engodo. Este percurso narrativo paralelo é importante para o percurso narrativo
central, pois é a coletividade que, no momento de intranqüilidade causado pela suposta vio-
lência que atingia o bairro, efetivamente coloca Agostinho como seu novo líder e é também
esta personagem que, de fato, consume o retorno de Agostinho à posição de fracasso.
É interessante notar também que estes dois percursos narrativos sempre se colocam em
contradição um com o outro. No início do episódio, quando a comunidade vive seu momento
de tranqüilidade, Agostinho encontra-se em posição de fracasso. É a intranqüilidade (fruto da
malandragem de Agostinho) que possibilita a Agostinho assumir o papel de liderança. Toda-
via, o retorno à tranqüilidade e a manutenção deste estado é garantido não mais por Agosti-
nho, e sim pela presença do policial. É precisamente neste momento que a autoridade conse-
guida por Agostinho se revela apenas como aspiração à autoridade: apesar de a comunidade
reconhecer que foi através dele que se conseguiu presença policial no bairro, a autoridade
valorizada enquanto tal é a autoridade instituída pelo Estado. Sua pretensa autoridade assim se
revela ao ser posta frente a frente com a autoridade de fato do policial e é, finalmente, desfeita
no momento em que se descobre que a situação de intranqüilidade que a comunidade vivera
no início do episódio não tinha razão de ser. Com isso, a comunidade volta a seu estado de
tranqüilidade. Isto permite concluir que, neste episódio, é somente a situação de intranqüilida-
de da comunidade que rende êxito e autoridade para Agostinho, ao passo que a tranqüilidade
para a comunidade significa fracasso e falta de autoridade para ele.
No nível narrativo, o episódio revela Agostinho como malandro não apenas por suas
artimanhas, mas também pelo fato de seu percurso narrativo mostrá-lo como uma personagem
solitária, que se contrapõe a todas as outras: por Beiçola, é pressionado financeiramente; pela
família, é pressionado a deixar de ser fracassado; e a condição de tranqüilidade da comunida-
de significa para ele falta de êxito e de autoridade. Em outras palavras, Agostinho, ainda que
queira, não pertence à ordem.
Acompanhando o percurso de geração de sentido do episódio, passamos agora a análi-
se para o nível discursivo. Importa, de início, considerar a maneira pela qual a é introduzida
ao telespectador já na seqüência inicial.
Na primeira seqüência, o modo como a personagem é mostrada ao telespectador é sin-
tomático: Agostinho, que está colocando em prática a primeira artimanha do episódio, traja
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uma camisa estampada laranja, calças laranja, cintos e sapatos também laranja (figuras 8 e 9).
A música-tema do seriado música acompanha a seqüência que de apresentação da persona-
gem e, ao ser executada instrumentalmente por metais com atenção especial ao baixo bem
cadenciado feito pela tuba e com uma caixa em ritmo de marchinha, empresta à seqüência
um ar circense. Esta atmosfera burlesca, aliada à vestimenta pouco convencional e com tons
vibrantes, sugere um Agostinho bufão. Logo de início sua artimanha é tratada como pastelão.
Figura 8 Figura 9
Esta versão da música-tema é executada outras duas vezes no episódio (com a diferen-
ça de que essas outras duas execuções contam com a linha melódica feita com trombone): a
segunda execução ocorre durante o “abraço simbólico” organizado por Agostinho; e a terceira
no início do segundo bloco, quando uma seqüência de cenas que mostram um dia de traba-
lho do soldado Bastos.
A música assim executada ajuda a dar o tom do episódio. É certo que, por se tratar de
uma comédia, o tipo de música deve acompanhar o espírito do texto e da interpretação. Entre-
tanto, vale notar que o caráter de pastelão só se completa ao ser associado, logo no início, com
uma personagem que é sabidamente um bufão. É uma via de mão dupla: a música confirma a
bufonaria de Agostinho ao mesmo tempo em que sua associação a esta personagem no início
da história possibilita que ela, ao ser executada outras vezes, repercuta o tom de pastelão. Isto
confirma algo que dissemos ao caracterizar a personagem: os episódios que têm Agostinho
como personagem central da trama beiram ao pastelão. Isto ocorre porque essa é sua caracte-
rística mais marcante, característica que acaba por afetar toda a história.
Agostinho é bufão. Mas também é malandro. É por isso que o motivo musical muda
no momento em que ele está, de fato, tentando ludibriar outras personagens.
Ainda na primeira seqüência, após implantar a suposta bala perdida na parede da casa
que aluga, Agostinho recebe a visita de Beiçola para tratar do reajuste do aluguel. Neste mo-
mento, ao enganá-lo sobre a bala, a música em que acompanha a seqüência deixa de ser aque-
la da cena inicial e passa a ser um samba jazzístico atributo conseguido não apenas pela
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marcação dada pela bateria, mas também pelo uso freqüente de acordes com sétima menor,
feitos ao piano. A música colabora na construção do aspecto de malandragem que a ação da
personagem tem, mas a representação de malandragem está contaminada pela bufonaria
sugerida pela primeira música, que, iniciada logo no primeiro plano da primeira cena, sustenta
o tom do episódio. O mesmo ocorre com as músicas executadas quando a personagem está
preparando a segunda artimanha com Paulão.
A construção do discurso sobre a personagem tem ainda outros aspectos que precisam
ser abordados e é novamente a primeira seqüência que fornecerá dados interessantes. A pri-
meira cena que compõe a seqüência inicial é composta por uma gradação de planos, resultado
de zoom in, que começam em plano conjunto e terminam por focar a personagem em um pla-
no médio. Este zoom in sugere a aproximação furtiva da personagem que está de costas –,
como se o telespectador fosse flagrá-lo em plena preparação de sua artimanha. Tal aproxima-
ção furtiva é, com efeito, feita por outra personagem: sua esposa Bebel. Embora, ao contrário
da aproximação feita pelo telespectador (através da câmera), Bebel aborda o marido pela fren-
te; este, entretanto, não a vê, assustando-se:
Bebel: Tinho!
Agostinho: Oi... Aí! Que susto!
Bebel: Poxa, o fim do mês tá chegando e você que o contrato vai virar, né?
Agostinho: Fica tranqüila que eu tô tratando disso! Não vai ter aumento nenhum!
Bebel: Tá tratando disso como?
Agostinho: Com expediente, criatividade, invenção da vida...
Bebel: Ih... que que é?
Agostinho: ... isso vai ser tranqüilo!
Bebel: Que que você tá inventando aí Ti?
Agostinho: É o seguinte... psiu... disfarça! Disfarça! (Beiçola chega)
A fala de Agostinho é reveladora. Naturalmente, pode-se afirmar que Agostinho ex-
clama “Que susto” simplesmente pelo fato de ser abordado de maneira inesperada, como mui-
tas vezes acontece em uma situação real.
Contudo, os traços que caracterizam a personagem, sua personalidade construída ao
longo dos diversos capítulos do seriado, fazem com que essa primeira hipótese de interpreta-
ção de seu “Que susto” seja pouco provável. Além disso, deve-se lembrar de que não se trata
da vida real, e sim de uma representação da vida real, de modo que esta fala de Agostinho não
é espontânea, mas sim a manifestação de um roteiro. Em outros termos, tudo o que passa na
mise-en-scène não é fortuito, pelo contrário, esta lá por ter uma significação e objetivar certo
efeito.
Assim, a frase de Agostinho traz duas outras interpretações mais condizentes com a
psicologia da personagem. Pode-se concluir, primeiramente, que a frase não resulte tanto de
141
interjeição espontânea (ainda que pudéssemos admitir que a espontaneidade da interjeição
reproduzisse mimeticamente uma situação cotidiana), quanto do fato de que Agostinho sabe
que está fazendo algo condenável (situação que também pode funcionar como mímesis de
cotidianidade, uma vez que, se admitimos que o susto possa ser resultado de uma abordagem
inesperada, igualmente devemos admitir que pode ter sido provocado pela apreensão diante da
possibilidade de ser surpreendido em plena ação de algo passível de censura). Em segundo
lugar, pode-se também concluir que Agostinho, ao perceber que fora surpreendido, dissimula
surpresa para tentar tirar o foco de sua ação.
Embora ambas as interpretações pareçam condizentes com a personagem, apostamos
na conclusão de que Agostinho, ciente da ilicitude de seu ardil, teme ser flagrado, de modo
que sua total atenção à execução da artimanha – talvez na tentativa de fazê-la tão rapidamente
quanto bem feita explica o susto que leva a ser surpreendido. Posto de outro modo, o susto
de Agostinho advém tanto de sua apreensão em ser flagrado quanto da própria distração que a
atenção dispensada à execução do plano (para que seja feito tão rápido quanto preciso) requer.
De um modo ou de outro, o susto, em última instância, advém do medo de ser surpreendido
fazendo algo que sabe ser condenável.
Percebe-se assim que a própria reação de Agostinho, associada a outros elementos da
mise-en-scène (música, figurino, etc.) acabam contribuem para a condenação dos atos da per-
sonagem e, por extensão, da personagem em si. Essa condenação também está presente no
comportamento (falas, gestos e ações) das outras personagens
36
.
O discurso de reprovação enunciado pelas outras personagens pode ser exemplificado
novamente na seqüência inicial da história. No momento em que Agostinho está aplicando o
golpe em Beiçola, podemos ver que Bebel, embora não interfira, desmascarando-o, reprova
sua atitude. A personagem, neste momento, comunica ao telespectador sua censura através de
linguagem gestual: enquanto Agostinho engana Beiçola, ela movimenta a cabeça de um lado
para o outro em negação, ao mesmo tempo em que acaricia a barriga de grávida com expres-
são de desgosto pela vida que leva e de pena da criança, que terá o destino de ter um pai feito
Agostinho Carrara. A reprovação e o desgosto de Bebel são confirmados em seguida pelo
diálogo que se realiza imediatamente após a cena:
Bebel: É assim! É assim que você resolve as coisa na sua vida, né Agostinho?
Agostinho: Não é... meu deus do...
Bebel: Enganando as pessoas!
36
Lembrando, mais uma vez, que na narrativa nenhum desses elementos representativos de comportamento
(fala, gestos, ações) são fortuitos, uma vez que colaboram para a construção do significado.
142
Agostinho: Você nunca valor às coisas que eu faço!Eu fazendo isso daí pelo
bem da nossa família? Por que nós não temos dinheiro pra pagar o aluguel! Tá? O
dia que a gente tiver um pouco mais de dinheiro, eu chamo o Beiçola e a gente reor-
ganiza as coisa do aluguel! Não me critica, não!
Bebel: Quer dizer... no dia de São Nunca!
Agostinho: Você é difícil Maria Isabel! Você é difícil!
Bebel: Que vida triste! (sai chorando)
Agostinho: Eu fazendo tudo pra... Oh, eu vou te falar o que pensei, sinceramen-
te... deixado falando sozinho mas, com o barulho do bater da porta, não consegue
terminar a frase)
A confirmação da desaprovação e do desgosto de Bebel está nas palavras “que vida
triste”, na entonação que a elas (o “é assim que você resolve as coisas na sua vida, né? En-
ganando as pessoas!” tem tom de acusação) e também nas suas ações (o fato de chorar e sair
sem ouvir aquilo que o marido tinha pra dizer em sua defesa).
Poder-se-ia imaginar que sua desaprovação se reduz a apenas esta ação do marido. En-
tretanto, não se trata disso. O foco da desaprovação vai além da ação específica do marido
para atingir a desaprovação do modo de ser de Agostinho. A fala da esposa “É assim que você
resolve as coisas na sua vida. Enganando as pessoas!” revela que Agostinho é acostumado a
enganar os outros e isso é comprovado pela descrença que Bebel tem de que um dia ele
chamar Beiçola para esclarecer a situação e pagar-lhe o que realmente lhe deve.
A reprovação pelas outras personagens ocorre em diversos momentos da história. Os
exemplos mais diretos vêm de Lineu: ao chegar de viagem e descobrir que os moradores cogi-
tavam substituí-lo como presidente da associação de moradores pelo genro, a reação de Lineu
foi de grande espanto, que se percebe pelo engasgo súbito com a água que tomava. A reação
de Lineu faz parte da construção da imagem de Agostinho, de modo que o engasgue e a cus-
parada da personagem baseiam-se no pressuposto de que seria absurdo substituir alguém ínte-
gro, responsável e capaz por alguém que é exatamente seu oposto: trapaceiro, irresponsável e
incapaz
A reprovação de Lineu prossegue com sua pergunta, a Nenê, de como ela permitira
que o “irresponsável do Agostinho” tivesse tomado a frente na associação. O uso do adjetivo
“irresponsável” mostra de maneira indubitável a censura de Lineu ao genro. Entretanto, a re-
provação de Lineu não se deve unicamente à irresponsabilidade de seu genro:
Lineu: O Nenê! Como é que foi que você foi deixar o irresponsável do Agostinho
tomar frente da associação se nem presidente de fato ele é?
Nenê: Eu não fiz isso Lineu!
Tuco: Sim, mas o Agostinho fez muita coisa sim pela rua, viu? Ele colocou uma
guarita e com guarda dentro!
Lineu: Ora, esse guarda então deve ser muito incompetente!
Nenê: Ué, por quê?
Lineu:Por que se ele fosse competente já tinha prendido o Agostinho!
143
Bebel: Pai! Pai! O guarda Bastos prendeu o Agostinho!
Tuco: Caraca popozão! Que boca!
A fala de Lineu traz implícita a desconfiança, comum entre as personagens, com rela-
ção à falta honestidade de Agostinho e mais: ao dizer que Agostinho deveria ter sido preso
pelo policial, Lineu revela tamanha reprovação ao genro de modo a sugerir (ainda que como
chiste) que seu comportamento seja passível de ser punido com prisão. Ora, prisão é o tipo de
punição destinado a criminosos e, como nosso estudo de caracterização revela, Agostinho não
é criminoso (ainda que ele, por vezes, beire a criminalidade através de suas amizades e de atos
ilícitos), e Lineu não acredita que ele o seja; sua afirmação é entendida como piada pelas ou-
tras personagens (e, muito provavelmente, também pelo telespectador), que comprova que
eles partilham da mesma opinião de reprovação da personagem.
Logo abaixo, trazemos outra fala de Lineu que demonstra claramente sua certeza a
respeito da desonestidade de Agostinho:
Agostinho: o há necessidade de algemar!
Bastos: Não, não, não! De jeito nenhum pode ficar quieto
Agostinho: Pô... Ah Lineu! Graças a deus que você chegou! Fala pro guarda ! Fa-
la que eu sou um homem de bem!
Lineu: Agostinho, eu não sei mentir! Mas o que é que está acontecendo?
Bastos: Esse sujeito foi pego no flagra roubando um carro na oficina mecânica!
Agostinho: Como é que eu ia roubar um carro do qual eu tinha chave! Paulão fala
pra ele! Se tu não falar eu vou (ininteligível) você! Hein Paulão!
Estas falas ocorrem na hora em que o soldado Bastos quer levar Agostinho à delegacia
de polícia e, para isso, insiste em colocar-lhe algemas, coisa que Agostinho, quase concor-
dando em ser preso, argumenta ser desnecessário. Nesse contexto, o “Eu não sei mentir” de
Lineu não apenas funciona como recusa de fornecer depoimento favorável acerca de Agosti-
nho por causa de sua incapacidade de mentir, mas também carrega o implícito de que Agosti-
nho não seja uma pessoa honesta, não seja uma pessoa de bem: justamente o contrário do que
Agostinho precisava que fosse dito ao policial que insistia em algemá-lo.
O fato de que a fala da personagem foi calculada apenas com a (provável) finalidade
de divertir o telespectador que, percebendo o desespero de Agostinho prestes a ser levado à
cadeia com sua esperança de salvação sumariamente desfeita por Lineu, deveria achar graça
em ver o resultado desastroso da armação do malandro, resultado este coroado pelo comentá-
rio sarcástico de Lineu em resposta a seu pedido de ajuda não quer dizer que não contribua
para a construção de uma certa imagem de malandro no seriado e para o modo como esta re-
presentação é tratada. Ao contrário. O fato mesmo de ela ser, aparentemente, apenas um co-
mentário para causar certo efeito de humor à custa do insucesso da personagem é em si
144
revelador da maneira que o malandro e a malandragem são representados nos seriado: com
escárnio. Diferentemente do que acontece com malandros como Malasartes e João Grilo, em
que se ri com suas malandragens e da situações e efeitos causados àqueles que são os alvos da
artimanha (geralmente pessoas que representam o poder instituído política ou economicamen-
te), o alvo da zombaria é o próprio malandro.
Poderíamos especular, também, que a fala de Lineu sobre a incompetência do policial
a entender que Agostinho também seja incompetente. O raciocínio que levaria a essa con-
clusão seria o de que, se o guarda é incompetente, isso se dá pelo fato de que a pessoa respon-
sável por sua vinda também o seja: estranho seria se Agostinho, com sua incompetência, fosse
capaz de trazer uma autoridade policial eficaz. Desse modo, a não-prisão de Agostinho pelo
policial funcionaria como comprovação da incompetência de ambos, ao mesmo tempo em que
a fala de Lineu implica a desonestidade do genro.
Todavia, dizer que, ao afirmar a incompetência do policial, Lineu estaria afirmando
indiretamente a incompetência de Agostinho não passa de especulação (por mais razoável que
possa parecer). Por isso, gostaríamos de trazer um outro momento do episódio em que sua
descrença na competência do genro manifesta-se de maneira inquestionável:
Agostinho: Eu proponho que nós façamos uma nova passeata!
Beiçola: Apoiado!
Tuco: É, uma passeata contra o pastel sem recheio.
(Confusão; várias pessoas discutindo ao mesmo tempo)
Lineu: (para Agostinho) Tá vendo, Agostinho? Se você fosse o presidente, a associ-
ação de moradores não ia durar um dia!
A última fala não deixa dúvidas de que Lineu acredita na incapacidade de Agostinho
além de tornar razoável a conjectura de que a incompetência do policial significa incompetên-
cia também de Agostinho.
Outro aspecto que chama a atenção nesse episódio diz respeito às relações personalis-
tas (HOLANDA, 1995). O primeiro momento em que esse tipo de relação aparece no episó-
dio é quando, sabendo que Agostinho o enganara e ao ver a chegada da guarita policial conse-
guida por meio da passeata organizada por Agostinho, Beiçola decide relevar e propor que ele
seja o novo presidente interessado nas futuras vantagens que a amizade com o malandro e,
acima de tudo, o fato de ter descoberto sua artimanha (podendo revelá-la à comunidade) ga-
rantiriam ao estabelecimento comercial do pasteleiro:
Beiçola: Agostinho! Mentiroso! Baixola! Farsante! Cadê meu dinheiro?
Agostinho: Que dinheiro, Beiçola?
Beiçola: Eu descobri a farsa toda! A bala não era perdida, era do Paulão! Você me
enganou e mobilizou o bairro inteiro por causa de uma mentira que você inventou!
145
Agostinho: Beiçola, Beiçola!
Beiçola: Ah!
Agostinho: A vida é muito complicada pra você ter tanta certeza do que que é real-
mente mentira e do que que é realmente verdade. Deixa eu explicar pra você...
Beiçola: Não! Quem vai explicar sou eu! Entendeu? O bairro inteiro vai entender a
história que você inventou. Você vai ser linchado! (interrompem o diálogo ao verem
um caminhão se aproximar)
Beiçola: Que novidade é essa?
Tuco: Esse aqui é o resultado da manifestação que o Agostinho organizou, pô! Pal-
mas pro Agostinho porque agora a gente tem uma cabine de polícia! O cara conse-
guiu, pô! (pessoas batem palmas)
Tuco: Cara, meu!
Agostinho: Eu não me sinto merecedor...
Beiçola: E não merece mesmo!
Agostinho: (olhar assustado)
Beiçola: Merece muito mais! Merece ser o futuro presidente da associação de mora-
dores no lugar do Lineu! Salve Agostinho Carrara! (bate palmas e abraça Agostinho)
Agostinho: Mudou rápido de opinião, né Beiçola!
Beiçola: (ao ouvido de Agostinho) É melhor ter um amigo como presidente do que
um reajuste no aluguel!
O segundo momento em que as relações personalistas aparecem se quando Agosti-
nho é ameaçado com prisão, sendo essa é evitada com um pedido ao guarda por parte de Ma-
rilda, personagem com quem o policial flertava:
Lineu: Bom, quem é que vai falar a verdade agora? Paulão, Agostinho, quem?
Bebel: Eu acho melhor você falar logo, hein neguinho! Que tua batata tá assando!
Agostinho: A verdade dos fatos é que o Paulão me pediu pra simular que eu estava
roubando um carro no intuito de prejudicar o soldado Bastos!
Lineu: Mas por que o Paulão quer prejudicar o soldado Bastos!
Marilda: Essa eu respondo na lata! Porque o Paulão com ciúmes do soldado Bas-
tos! Ciumento, enrolão!
Paulão: A história não é bem essa não! A verdade é que quem queria que o soldado
Faustos (sic) saísse daqui era o próprio Augusto! Sim, porque o Beiçola tava pres-
sionando ele por causa da falsa bala perdida! Falei! Falei!
Nenê: A bala perdida era falsa?
Lineu: Que bala perdida é essa?
Bebel: É que o Agostinho foi e implantou uma bala na parede da nossa casa que
era pro Beiçola não aumentar o aluguel... pronto falei!
Bastos: Espera aí! Isso não é uma família! É uma quadrilha! Tá todo mundo preso!
Lineu: Oh, soldado! O S. Guarda! Vamos fazer o seguinte, vamos resolver essa con-
fusão toda aqui! Aqui mesmo!
Bastos: Não, nada disso!
Lineu: Um momentinho! O Paulão não vai fazer nenhuma queixa de roubo de carro,
não é?
Paulão: Mas aí, também...
Lineu: Né, Paulão?
Paulão: Tá bom! Não vou fazer nenhuma queixa!
Lineu: E o Agostinho vai pagar todo o prejuízo com a guarita, não é Agostinho?
Agostinho: É! Quer dizer, eu acho que quem deveria pagar é a associação de mora-
dores... mas tudo bem! Não tem problema! Eu pago!
Bastos: Não, não, não, não! Nada disso! Eu acho melhor esclarecer isso tudo na
delegacia!
Marilda: Só um minutinho! Bastinhos, vem cá!
Bastos: (indo com Marilda, fala para os outros policiais) Olho neles aí!
Marilda: Não faça isso! Vovai ficar com uma visão antipática na rua! Você não
querendo se estabelecer aqui na rua, ficar bem assim com todo mundo? Não faça
isso não!
146
Bastos: Tá bom! Tudo bem, tudo bem! (volta para todos)
Bastos: Tudo bem, tudo bem! Dessa vez passa! Na próxima vai todo mundo em ca-
na! Circulando!
Embora no primeiro caso, as relações personalistas parecem beneficiar apenas Beiçola,
que se considerar que, indiretamente, são elas que evitam que a artimanha de Agostinho
seja revelada à comunidade poupando-o do possível linchamento previsto por Beiçola. Em
outros termos, é a perspectiva de ter o “amigo” Agostinho como presidente da associação de
moradores que evita que Beiçola conte a toda a vizinhança que a história da bala perdida fora
apenas um golpe de Agostinho. No segundo caso, as relações personalistas desempenham
papel direto na salvação da personagem da possibilidade de ser preso. No segundo caso, essas
relações são tão evidentes que deixam marcas lingüísticas, como o emprego do diminutivo
por parte de Marilda ao chamar o policial para convencê-lo (“Só um minutinho! Bastinhos
37
,
vem cá!"). É interessante notar que o argumento de Marilda também é baseado no estabeleci-
mento de relações personalistas, uma vez que lembra ao policial da importância de ele ter uma
imagem simpática na rua.
Diante disso, Agostinho encarna uma imagem de malandro que está longe de ser um
elogio à malandragem, como em Max Overseas ou Pedro Malasartes. Com efeito, a imagem
de incompetente, desastrado, possuidor de uma sagacidade às avessas e de uma malandragem
embotada fazem-no representar, ao invés da astúcia geralmente associada à malandragem, a
ineficiência e a inépcia. Nesse episódio, a malandragem não lhe traz o êxito por ele almejado
e, se consegue escapar de ser severamente punido, não é por conta de suas artimanhas, mas
sim por conta de relações personalistas.
b) A bonequinha do papai
No início do episódio, exibido em 20/09/2007, Paulão tenta consertar o carro de Agos-
tinho e quando este, saindo da pastelaria com um copo de cerveja na mão, se aproxima, Pau-
lão reclama que o problema será de difícil solução devido ao estado precário do carro.
Pelo fato de precisar do automóvel para trabalhar, Agostinho diz a Paulão fazer o que
fosse preciso para que o carro ficasse bom e, sem dinheiro para pagar pelos serviços, tenta
negociar com Paulão que, acreditando poder ser passado para trás por Agostinho, recusa suas
propostas de pagamento. Enquanto Agostinho tenta convencê-lo a dividir o valor do serviço
37
Grifos nossos
147
em doze parcelas, outro taxista, conhecido de ambos, chega. É Plínio. Antes que este desça do
carro, Agostinho diz para Paulão que não gosta de Plínio pelo fato de ele ser muito chato.
Assim que chega, Plínio pergunta se algum problema com o carro, mas Agostinho
responde, à queima-roupa, negando qualquer problema. Por sua vez, Paulão diz que o carro
está muito ruim. Plínio oferece ajuda, afirmando conhecer alguns “macetes” para aquele mo-
delo de automóvel que quando começou na praça há muito tempo tinha um modelo co-
mo aquele. Agostinho não gosta da insinuação de que seu carro estaria velho e tenta tomar
satisfações com Plínio, mas esse responde que não queria dizer que o carro de Agostinho es-
tava velho, mas muito bem conservado. Essa resposta faz com que Plínio e Paulão riam de
Agostinho, o que o deixa ainda mais irritado. Agostinho, porém, não consegue tirar satisfa-
ções porque Plínio recebe um telefonema de um cliente e, após ter falado ao celular em inglês
com seu cliente, Plínio diz que um executivo americano, que sempre utilizava seus serviços, o
aguardava no aeroporto e, por esse motivo, precisaria ir embora.
Ao despedir-se, Plínio diz que se encontrariam no curso no dia seguinte. Agostinho,
demonstrando não saber a qual curso Plínio se referia, pergunta-lhe e ele responde que se
tratava do curso de gestantes que Bebel os havia inscrito. Agostinho, fingindo saber sobre a
inscrição, concorda dizendo que o veria no dia seguinte.
Após a saída de Plínio, Agostinho volta a comentar com Paulão que Plínio tinha dado
sorte na vida: casara com uma mulher cujo pai era dono de uma empresa de ônibus e tinha
ganhado o carro do sogro sem nunca ter precisado trabalhar. Aos comentários de Agostinho,
Paulão responde que ele estava com inveja por ele ter um carro melhor do que o dele, uma
casa melhor e, também, por a mulher de Plínio estar esperando um menino, enquanto a mu-
lher de Agostinho estava grávida de uma menina.
Ao chegar a casa, Agostinho depara-se com Bebel sonhando com o futuro quarto de
sua filha: a cor das paredes, o berço, o armário, a babá eletrônica. Agostinho diz à esposa que
não haveria dinheiro para nenhuma daquelas coisas, uma vez que teriam a despesa do curso
de gestantes, para o qual Bebel os havia inscrito sem consultá-lo. Bebel responde que se não
fosse possível que fizessem o curso, não haveria problema e que depois poderia pegar algu-
mas informações com Rose, mulher de Plínio. Para não ficar por baixo, Agostinho pergunta a
Bebel se ela realmente gostaria de fazer o curso; diante da resposta afirmativa da esposa, A-
gostinho diz que eles farão o curso e ele arrumaria o dinheiro. Para conseguir o dinheiro ele
tem um plano: convidar várias pessoas para serem padrinhos de seu bebê e pedir-lhes ajuda
financeira.
148
Os primeiros a cair no golpe do taxista são Tuco e Gina; afirmando gostar deles, Agos-
tinho convida-os para serem padrinhos de sua filha e pede para que não comentem nada com
ninguém, pelo menos até que Bebel oficialize o convite, para não causar ciúmes em outras
pessoas. Em elipse, Agostinho aplica o golpe em outras duas personagens: Paulão e Beiçola.
Com dinheiro suficiente para inscrição, Agostinho e Bebel vão para o curso. Contudo,
na aula de cuidados com o bebê, Agostinho com a pressão de ser comparado a Plínio, que
está indo muito bem no curso se revela um pai relapso e descuidado chegando a arrancar a
cabeça da boneca que lhe servia de filha durante a simulação do banho do bebê – fato este que
faz Bebel, diante da displicência e da falta de cuidado do marido, chorar.
Enquanto isso, na pastelaria, Paulão inadvertidamente diz que será padrinho de uma
criança. Tuco, feliz com a coincidência, revela que também será padrinho; porém, quando
Beiçola, que ouvia a conversa dos dois, diz que também fora convidado para ser padrinho de
um bebê e que o pai pedira segredo em relação ao convite. Neste momento, Tuco percebe que
tudo não havia passado de uma armação de Agostinho para conseguir dinheiro.
Pelo fato de não ir bem nas aulas do curso de gestantes, Bebel obriga o marido a trei-
nar os fundamentos aprendidos no curso em casa: trocar fraldas, por o bebê para arrotar, ninar
a criança, etc. Durante uma dessas tarefas executadas com a utilização de um boneco o
casal Bebel e Agostinho recebe a visita inesperada de Plínio que os convida para o chá-de-
bebê de sua esposa. Embora Bebel tenha ficado feliz com o convite, Agostinho, que por não
gostar do colega – o recebe muito mal, recusa o convite tão logo Plínio tenha acabado de fazê-
lo. Furiosa com o tratamento dispensado pelo marido ao colega, Bebel briga com Agostinho e
o obriga a levar o boneco para passear.
Ao sair de casa, Agostinho é abordado por Tuco e Gina que dizem terem descoberto o
golpe e contarão para Bebel a artimanha que ele empregara para conseguir dinheiro. Agosti-
nho pede para que não contem nada e confessa que precisava do dinheiro para pagar o curso
de gestantes que a esposa queria fazer
38
. Para poupar Bebel do sofrimento que a revelação da
armação de Agostinho traria e, também, diante da reafirmação (de modo indireto) que Gina
seria a madrinha da criança, o taxista consegue convencê-la a não contar nada. Todavia, Tuco
o ameaça dizendo que ele ainda sair-se-ia mal da história.
Bebel continua obrigando o marido a praticar as lições aprendidas no curso e faz com
que ele até o futuro quarto do bebê dizendo que a criança estava chorando. Agostinho, que
estava dormindo, meio sonolento se levanta e faz menção de ir, contudo, antes de se levantar,
38
Na verdade, Agostinho deixa implícito que Bebel lhe obrigara a fazer o curso, o que de fato não ocorreu.
149
dá-se conta de que é apenas uma simulação e argumenta com a esposa que se trata de um bo-
neco. Porém Bebel, o obriga a ir. Ao chegar no quarto, Agostinho percebe que o boneco não
está mais no berço e, em seu lugar, encontra um bilhete escrito com recortes de jornal. A
mensagem, assinada por Tuco, Paulão e Beiçola, diz que se ele quisesse ver o boneco de vol-
ta, deveria devolver o dinheiro.
Sem que Bebel o saiba, Agostinho vai até a pastelaria de Beiçola onde encontra os três
com o boneco. Primeiramente, Agostinho pede; depois tenta tomar-lhes o boneco, mas eles se
recusam a devolver sem que ele pague o que deve. Agostinho, em tom ameaçador, diz que
conseguirá o dinheiro para pagá-los, mas que se fizesse qualquer besteira para isso, eles seri-
am os responsáveis.
De volta a casa, Bebel diz que o marido demorara e, para despistá-la, Agostinho res-
ponde que resolveu fazer uma mamadeira para que o “bebê” parasse de chorar. Bebel, conten-
te com a suposta iniciativa do marido, oferece-se para ensiná-lo a preparar mamadeiras, entre-
tanto Agostinho temendo que a mulher descubra que o boneco fora roubado em represália a
sua artimanha sugere ir à festa de Rose, mulher de Plínio. Bebel estranha a proposta do ma-
rido – que, há pouco, recusara o convite e parecia determinado em não ir –, mas aceita.
O plano de Agostinho para conseguir o dinheiro necessário para devolver a Paulão,
Beiçola, Tuco e Gina consiste em aplicar em Plínio o mesmo golpe que aplicara nos quatro.
Assim, minutos depois de chegar à casa de Plínio, na primeira oportunidade em que os
dois se encontram sozinhos, Agostinho o convida para ser padrinho de seu bebê. Emocionado,
Plínio aceita o convite de Agostinho que diz para que ele não se empolgue muito com o con-
vite porque não haverá muita comemoração, nem sequer cerimônia. Plínio pergunta se isso se
deve a algum problema de religião, mas Agostinho, fingindo não querer falar sobre o assunto,
revela que não fanada por não ter dinheiro. Plínio se prontifica a ajudá-lo e pergunta de
quanto ele precisava. Com uma resistência fingida, Agostinho acaba aceitando a ajuda finan-
ceira oferecida.
Assim que Plínio sai para buscar o cheque para entregar a Agostinho, as mulheres vêm
e o chamam para conhecer o quarto do bebê. Agostinho, que esperava o cheque, diz não poder
ir por que estava esperando por Plínio. A isso, Rose e Bebel respondem que Plínio poderia
encontrá-los no quarto. Agostinho, constrangido, vai.
Bebel fica maravilhada com o quarto que foi preparado para o bebê e se emociona di-
zendo que também sonhara com um quarto como aquele. Também emocionado, Agostinho,
com a voz afetada por um choro de tristeza, afirma que acha o quarto deles melhor pelo fato
de o pé-direito ser mais alto. Neste momento, Plínio entra no quarto perguntando se Agosti-
150
nho preferiria que o cheque fosse cruzado para depósito ou se ele sacaria no caixa. Ao ouvir
Plínio, Bebel limpa as grimas e pergunta que cheque era aquele sobre o qual eles falavam.
Agostinho ainda tenta disfarçar dizendo que eles tratariam daquilo outra hora, entretanto Be-
bel, percebendo que Agostinho pedira dinheiro a Plínio, lhe diz que não estavam lá para pedir
um empréstimo, porém Plínio lhe responde que não se tratava de empréstimo e sim um pre-
sente e conta a sua esposa que sobre o convite para serem padrinhos da filha de Agostinho e
Bebel.
Triste e irritada com o marido, Bebel diz para que Plínio guarde o cheque e, pedindo
desculpas, vai embora alegando não estar se sentindo bem. Plínio percebe que fora o pivô da
súbita saída de Bebel e pede desculpas a Agostinho e oferece ajudá-lo de outra forma. Agosti-
nho aceita prontamente e pede que lhe empreste o boneco para que o coloque em substituição
ao boneco roubado para que Bebel não dê falta dele. Plínio empresta-lhe o boneco.
Entretanto, ao chegar em casa e entrar no quarto para colocar o boneco no berço, A-
gostinho nota que seu boneco havia sido devolvido – pressionado por Gina, Tuco devolvera o
boneco enquanto o casal estava no chá-de-bebê. Neste exato momento, Bebel entra no quarto
e surpreende o marido com dois bonecos e pergunta o que significava aquilo. Agostinho tenta
enganá-la, mas sem sucesso. Neste momento, Bebel ouve uma discussão fora entre Tuco e
Beiçola.
Bebel vai até o quintal e pergunta o que estava havendo. Beiçola responde que Agosti-
nho os tinha enganado ao convidar todos no bairro para serem padrinhos de sua filha por di-
nheiro. Ao saber de toda história, Bebel, aos prantos, diz que nunca mais queria voltar a ver
Agostinho.
No dia seguinte, Agostinho vai até a pastelaria e lá encontra Tuco, Gina, Paulão e Bei-
çola. Dizendo que conseguira cancelar sua inscrição no curso e pegar o dinheiro de volta, ele
devolve o dinheiro para os quatro. De volta a casa, Agostinho diz a Bebel que havia devol-
vido o dinheiro para todos e que gostaria de se acertar com ela. Ainda irritada, Bebel recusa a
conversar com Agostinho, dando-lhe as costas e saindo em seguida.
No portão de casa, Bebel encontra com Plínio que diz querer seu boneco de volta. Be-
bel diz que vai buscá-lo. Ao entrar, se depara com Agostinho segurando o boneco nos braços
pedindo desculpas emocionado, como se conversasse com sua filha.
Com um sorriso, Bebel diz que finalmente o marido aprendera. Agostinho concorda
dizendo que havia de fato aprendido a lição, que tarde demais. Bebel corrige o marido di-
zendo que não estava falando sobre aquilo, mas sim que o marido finalmente aprendera a se-
gurar o bebê corretamente. Emocionado, Agostinho diz que só naquele momento tinha conse-
151
guido imaginar aquele boneco como sua filha e que o instinto de pai era o responsável por ele
ter conseguido segurar o boneco/bebê apropriadamente. Emocionada, Bebel o perdoa.
O episódio termina com Plínio entrando na casa de Agostinho para reaver seu boneco,
entretanto o casal, trancado no quarto para fazer as pazes, recusa-se a abrir a porta para devol-
ver o boneco a Plínio.
No que diz respeito às estruturas fundamentais, a categoria semântica sobre a qual o
episódio é construído é “dificuldade vs. solução”. As operações sintáticas de negação e afir-
mação são responsáveis por colocar a categoria semântica em movimento, como pode ser
observado no esquema abaixo:
dificuldade não dificuldade solução não solução dificuldade
Diante da dificuldade, Agostinho tenta anulá-la (negação da dificuldade: não dificul-
dade) e alcançar uma solução (afirmação); porém, esta solução, advinda da malandragem,
revela-se uma não solução (negação) geradora de uma nova dificuldade (afirmação). Estas
operações sintáticas podem ser ilustradas através do seguinte esquema:
dificuldade solução
não-solução não-dificuldade
relação de complementaridade
relação de contrariedade
relação de contradição
O ponto de partida (dificuldade) funciona também como ponto de chegada, pois as o-
perações de negação e asserção provocam continuamente o contrário de cada um dos pares
que compõe a categoria semântica em questão: num primeiro momento, a dificuldade de A-
gostinho consiste em não ter o dinheiro para pagar o curso de gestantes para o qual a esposa
os havia inscrito; a tentativa de negação da dificuldade e sua subseqüente solução leva a uma
segunda dificuldade: Agostinho precisa conseguir dinheiro para devolver a Paulão, Beiçola,
Gina e Tuco, sob pena de não ter sua boneco de volta o que pode resultar na descoberta de seu
golpe, por parte de Bebel. E, ironicamente, é justamente a negação desta segunda dificuldade
e sua subseqüente solução (a artimanha de aplicar o mesmo golpe em Plínio) que levará à
asserção
asserção
152
terceira dificuldade: Agostinho é flagrado por Bebel aplicando o golpe em Plínio. Continua-
mente, as soluções se revelam novos problemas, de modo que o episódio poderia se desenro-
lar indefinidamente sobre esta categoria semântica.
Desta forma, o desfecho do episódio pode vir (e de fato vem) de uma solução exte-
rior ao par semântico fundamental, dado que este, devido a sua dialética constante, não pode
trazer uma solução definitiva. É assim que, para conseguir que o desenlace da história, é so-
breposta uma segunda categoria semântica (“condenação vs. perdão”) ao par “dificuldade vs.
solução” sobre a qual, por meio das mesmas operações de negação e afirmação, é operado o
desfecho:
condenação perdão
não-condenação
relação de complementaridade
relação de contrariedade
relação de contradição
Como pode ser observado, ao contrário da categoria semântica principal (“dificuldade
vs. solução”) sobre a qual a história se assenta, o par “condenação vs. perdão” é capaz de por
termo ao episódio pelo fato de que o “perdão” não gera outra “condenação”.
Como estrutura fundamental da história, além das categorias “dificuldade vs. solução”
e “condenação vs. perdão”, ainda outra: “sentir-se inferior vs. sentir-se igual”. Cada uma
dessas categorias tem função específica na composição da estrutura fundamental da história.
A primeira (“dificuldade vs. solução”) é a responsável pela movimentação do episódio: a
constante geração de dificuldades faz com que a personagem sempre busque soluções. O se-
gundo par semântico sobre o qual falamos (“condenação vs. perdão”) tem a função de propi-
ciar o desfecho da história. Já a categoria semântica “sentir-se inferior vs. sentir-se igual” fun-
ciona como deflagradora da ação: é por sentir-se inferior a Plínio que Agostinho, na tentativa
de impor-se como igual, concorda que façam o curso para gestantes para o qual não tem
dinheiro, o que gera a primeira dificuldade. É necessário dizer que, embora esta categoria te-
asserção
153
nha sua função principal na irrupção da ação, ela está presente durante toda a história, fazendo
com que Plínio funcione como contraponto a Agostinho.
sentir-se inferior sentir-se igual
não sentir-se igual não sentir-se inferior
relação de complementaridade
relação de contrariedade
relação de contradição
A despeito de cada uma das três categorias semânticas terem papel específico na ela-
boração da história, elas podem ser subsumidas na categoria “fracasso vs. êxito”: “dificulda-
de”, “condenação” e “sentir-se inferior” estariam para “fracasso” do mesmo modo que “solu-
ção”, “perdão” e “sentir-se igual” estariam para êxito”. Contudo, que se dizer que, no
episódio, “solução” e “sentir-se igual” nunca são de fato alcançadas, pois no momento mesmo
em que “solução” e “sentir-se igual” são conseguidas pelas operações de asserção (não difi-
culdade solução; não sentir-se igual sentir-se igual), elas são anuladas pelas operações
de negação (solução não solução; sentir-se igual sentir-se inferior) para, logo depois,
serem reconvertidas em “dificuldade” e “sentir-se inferior”. Assim, as relações sintáticas es-
tabelecidas pelos pares semânticos que não conseguem atingir plenamente o “êxito” podem
ser ilustradas através do esquema:
dificuldade; sentir-se inferior; fracasso solução; sentir-se igual; êxito
não soulução; não sentir-se igual; não êxito não dificuldade; não sentir-se inferior; não fracasso
relação de complementaridade
relação de contrariedade
relação de contradição
asserção
asserção
asserção
asserção
154
as relações sintáticas entre os pares semânticos que atingem o “êxito” são ilustradas
segundo o esquema:
condenação; fracasso perdão; êxito
não-condenação; não fracasso
relação de complementaridade
relação de contrariedade
relação de contradição
Esta última estrutura na qual o êxito prevalece –, como dito, tem apenas a função
de provocar o desenlace da trama e, como será visto na análise da estrutura narrativa, ela não
depende das ações e nem do resultado das ações de Agostinho.
Ao observar as relações de complementaridade, contradição e de contrariedade estabe-
lecido entre os diferentes momentos da estrutura fundamental do episódio, pode-se perceber
que o sentido advém da percepção da ruptura da continuidade entre pares semânticos, em ou-
tros termos, é a oscilação entre dificuldade, não-dificuldade e solução, no caso da primeira
estrutura fundamental, entre sentir-se inferior, não sentir-se inferior e sentir-se igual, caso da
segunda e, finalmente, condenação, não condenação e perdão, na terceira estrutura fundamen-
tal, que gera o sentido da história.
O exame da história em seu nível narrativo demonstrará como a ruptura das continui-
dades geradoras de sentido são antropomorfizadas por meio das personagens. Desse modo, as
operações de negação e asserção, pelas quais são operadas as mudanças de estado (ou ruptura
de continuidade), são revestidas com os comportamentos e ações das personagens com reflexo
sobre si e sobre outras personagens.
Nesse episódio, às operações de asserção e negação do nível fundamental que garan-
tem a passagem da dificuldade para solução temporária, identificam-se as artimanhas da per-
sonagem (Agostinho Carrara) para conseguir o dinheiro necessário para fazer o curso de ges-
tantes e, por conseguinte, provar sua igualdade a Plínio, personagem com a qual Agostinho é
contraposto durante o episódio.
com relação à conversão do estado de solução para o estado de dificuldade nova-
mente, as operações de asserção e negação responsáveis por essa mudança no nível funda-
mental identificam-se à revelação, às outras personagens, da artimanha que trouxera a solução
asserção
155
temporária: primeiramente, a armação de Agostinho é descoberta por Tuco, Paulão e Beiçola
que, por meio de chantagem, trazem o risco de que essa armação seja revelada a Bebel; mais
tarde, são reveladas a ela todas as artimanhas do marido.
No episódio aqui analisado, é o “sentir-se inferior” que provoca o início da ão: é o
fato de sentir-se inferior a Plínio e a necessidade de provar-se igual que levam Agostinho a
arquitetar e executar a artimanha que possibilitará solucionar o problema da inferioridade. O
fato de o estopim do episódio ser o sentimento de inferioridade e a subseqüente necessidade
de provar o contrário não quer dizer que esses também sejam as forças que movem toda a
ação que se segue. E, com o efeito, não são. O que causa as mudanças de estado no episódio
e gera, assim, o sentido da história e, por conseguinte, funciona como força motriz da narrati-
vidade é o jogo dialético entre artimanha e (ameaça de) revelação.
Artimanha e revelação, com efeito, implicam-se mutuamente. Sendo verdade que a e-
xistência da possibilidade de revelação depende necessariamente da artimanha; essa, no mo-
mento mesmo em que é executada, carrega em seu bojo a revelação como potencialidade.
Desse modo, artimanha e revelação mostram-se como duas faces de uma mesma moeda: a
malandragem. Conseqüentemente, considerar artimanha e (ameaça de) revelação como as
forças motrizes do episódio significa considerar a malandragem enquanto tal.
Por um lado, temos o sentimento de inferioridade como o gatilho inicial do episódio e,
por outro, a malandragem funciona como combustível da ação que se segue. É através dela
que Agostinho, na esperança de provar a mulher que não é inferior a Plínio, consegue o di-
nheiro para que façam o curso de gestantes. Ao mesmo tempo, é a revelação dessa mesma
malandragem que lhe traz a perigosa possibilidade de revelação à esposa, revelação essa que
poderia significar o fim do casamento da personagem. Desse modo, é a própria malandragem,
através da revelação, que remete a personagem à situação de dificuldade e de inferioridade de
onde saíra.
Nesse episódio, a revelação pode ser dividida em três partes. A primeira delas é a des-
coberta do logro e a subseqüente ameaça de revelação: Tuco, Paulão e Beiçola descobrem
que foram enganados e “seqüestram” o boneco de Agostinho até que este lhes devolva o di-
nheiro. A subseqüente ameaça de revelação a que nos referimos consiste na possibilidade de
Bebel vir a dar falta do boneco, o que a levaria a descobrir a artimanha do marido. A segunda
parte na qual a revelação se divide é a revelação parcial das artimanhas de Agostinho a Be-
bel, que ocorre no momento em que Bebel descobre que Agostinho, sem consultá-la (ou nun-
ca sequer terem cogitado a idéia), havia convidado Plínio para ser padrinho de sua filha por
dinheiro. A terceira parte é a revelação efetiva de todas as artimanhas de Agostinho a Bebel.
156
Em todas elas a revelação acontece de maneira fortuita, sendo que, no primeiro caso, Tuco,
Beiçola e Paulão descobrem que foram passados para trás quando Paulão comenta, casual-
mente, que fora convidado par ser padrinho de uma criança. Tuco, feliz com a coincidência, o
cumprimenta. Ouvindo a conversa, Beiçola faz saber que também havia sido convidado; nesse
momento a primeira parte da revelação se concretiza.
a revelação parcial das artimanhas a Bebel tem caráter fortuito pelo fato de que ne-
nhuma personagem teve a intenção de fazê-la; a artimanha vem à tona simplesmente porque
Plínio, sem intenção de prejudicar, entrega o cheque em branco que prometera a Agostinho na
presença de Bebel e de sua esposa Josi e, com felicidade, conta que eles haviam sido convida-
dos por Agostinho “ e Bebel” para serem padrinho de seu bebê.
No caso da revelação efetiva, é a discussão entre Beiçola e Tuco que chama a atenção
de Bebel que, curiosa em saber o porquê da balburdia, vai até o quintal. Ao flagrar a alterca-
ção entre o irmão e o pasteleiro, esse, no calor do momento, revela a Bebel que o marido
convidara todos os vizinhos para serem padrinhos de sua filha por dinheiro.
Dessa maneira, percebemos que artimanha e revelação que no nível narrativo são
operadas pelas personagens correspondem às operações de asserção e negação responsáveis
pelas mudanças entre as categorias semânticas de “dificuldade” e “solução” observadas no
nível profundo do episódio. No nível narrativo, as artimanhas do episódio são planejadas e
executadas por Agostinho, que nelas o meio pelo qual conseguirá a solução de suas difi-
culdades. Entretanto, a artimanha, além de apresentar a possibilidade de solução, traz consigo
a possibilidade de revelação, sendo que essa, mesmo que não de forma planejada, depende da
ação das outras personagens.
A primeira parte da revelação (a descoberta e a ameaça de revelação) é deflagrada pela
ação de Paulão: é ele quem carrega um brinquedo que, ao ser repentinamente acionado, emite
um som que faz com que Tuco pergunte-lhe o que era aquilo. Ao responder que se tratava de
um presente que daria a uma criança da qual seria padrinho, Tuco revela também ter sido
convidado e, no momento em que Beiçola conta que o mesmo convite lhe fora feito por uma
pessoa que lhe pediu, além de dinheiro, discrição sobre o convite, dão-se conta do golpe.
A segunda é principiada e executada, inadvertidamente, por Plínio, no exato momento
em que ele entrega o cheque e conta a esposa (e a Bebel) respeito do convite que Agostinho
lhes fizera com a naturalidade de quem demonstrava felicidade com o fato.
A terceira parte da revelação inicia-se com Gina (namorada de Tuco) que obriga o
namorado a reaver a boneca que estava guardada com Beiçola e a devolvê-la a Agostinho.
Tendo feito isso, Tuco, mais tarde, discute com Beiçola que, ao ter descoberto que esse lhe
157
levara a boneca, vai tomar satisfações com ele em sua casa. E é essa altercação que Bebel
escuta e, ao perguntar o que motivara a discussão, Beiçola, devido à exaltação da discussão,
acaba por revelar o golpe que Agostinho lhes aplicara.
O exposto acima demonstra que praticamente todas as personagens do episódio
39
, sen-
do Josi a única exceção, têm importância fundamental na revelação das artimanhas de Agosti-
nho. Se no segundo caso, a revelação depende apenas da ação de Plínio, no primeiro e no ter-
ceiro, a participação de todas as quatro personagens (Paulão, Gina, Beiçola e Tuco) se faz
necessária, de modo que, a falta de qualquer uma delas inviabilizaria a revelação (pelo menos
na maneira que ela se configura na história). Tanto na ação conjunta quanto na ação individu-
al, a revelação jamais foi intenção ou planejamento de nenhuma das personagens (mesmo no
caso de Beiçola, que só conta tudo a Bebel por causa de sua exaltação devido à discussão com
Tuco), foi apenas uma conseqüência de suas ações.
Há, entretanto, uma diferença essencial entre as duas primeiras revelações e a terceira
(a revelação efetiva). As duas primeiras, ao colocarem Agostinho novamente em situação de
dificuldade, fazem com que o malandro elabore outras artimanhas para conseguir alcançar a
solução. a terceira não provoca nenhuma nova artimanha da personagem que, diante do
insucesso de suas armações, resignadamente decidi tentar reparar seus erros. Desse modo,
nem a primeira (descoberta com ameaça de revelação) e, muito menos a segunda, (revelação
parcial a Bebel) são os incidentes que fazem surgir a revelação efetiva (e definitiva), ao con-
trário, elas motivam a personagem a executar novas artimanhas.
No primeiro caso (descoberta com ameaça de revelação), Agostinho faz uso da mes-
ma artimanha (convidar alguém para padrinho de seu bebê) para conseguir o dinheiro neces-
sário para evitar que a primeira artimanha venha à tona. No segundo caso (revelação parcial
das artimanhas a Bebel), a personagem decidi usar o boneco de Plínio para substituir o seu,
que fora “seqüestrado”, na intenção de evitar que Bebel pudesse descobrir todas as suas arma-
ções, o que o colocaria numa situação ainda mais difícil.
Essa construção narrativa pode ser assim esquematizada:
PN1= [S1(Plínio) (S2(Agostinho)) = (S2(Agostinho) + Inf)]
PN2= [S1(Bebel) (S2(Agostinho) + Inf) = (S2(Agostinho) +D1)]
PN3= [(S1(Agostinho) + A1) (S2 (Agostinho) + D1) = (S2(Agostinho) +So1)]
PN4= [(S1(Paulão, Tuco e Beiçola) +IP) (S2(Paulão, Tuco e Beiçola) +IP) = (S2(Paulão, Tuco e Beiçola) +IT)]
PN5= [S1(Paulão, Tuco e Beiçola) +IT (S2(Agostinho) +So1) = (S2(Agostinho) +D2)]
PN6= [S1(Agostinho) (S2(Agostinho) +D2) = (S2(Agostinho) +A2)]
PN7= [(S1(Agostinho) +A2) (S2(Plínio) + IP) = (S2(Plínio) + So2)]
PN8= [(S1(Plínio) +So2) (S2(Agostinho) + D2) = (S2(Agostinho) + So2)]
PN9= [S1(Plínio) + IP (S2(Bebel) -I) = (S2(Bebel) +IP)]
39
É importante mencionar que nesse episódio não participam as personagens Lineu, Nenê ou Marilda.
158
PN10= [S1(Bebel) + IP (S2(Agostinho) + So2) = (S2(Agostinho) - So2)]
PN11 [S1(Agostinho) - So2 (S2(Agostinho) + So1) = (S2(Agostinho) +A3)]
PN12= [S1(Agostinho) + A3 (S2(Bebel) + IP) = (S2(Bebel) +IP)]
PN13= [S1(Beiçola) + IT (S2(Bebel) + IP) = (S2(Bebel) +IT)]
PN14= [S1(Bebel) + IT (S2(Agostinho) +So1) = (S2(Agostinho) + DF)]
PN15= [S1(Agostinho) + Pa (S2(Bebel)) = (S2(Bebel) +Pe)]
PN16= [S1(Bebel) + Pe (S2(Agostinho) + DF) = (S2(Agostinho) +SoF)]
PN: Programa Narrativo
: transformação
S1: sujeito do fazer
S2: sujeito do estado
Inf: inferioridade
IP = informação parcial
IT = informação total
A1: 1ª artimanha
A2: 2ª artimanha
A3: 3ª. artimanha
+: com
- : sem
=: igual a
D1: 1ª. dificuldade
D2: 2ª. dificuldade
D3: 3ª. dificuldade
DF: dificuldade final
Pa: Paternidade
Pe: Perdão
So1: 1ª. solução
So2: 2ª. solução
SoF: Solução Final
Com a ajuda do esquema acima, podemos acompanhar os programas narrativos sobre
os quais o episódio é construído.
No primeiro programa (PN1), o sujeito-do-fazer (Plínio) transforma o sujeito-do-
estado (Agostinho) conjugando-o com inferioridade. No segundo (PN2), o sujeito-do-fazer
(Bebel) transforma o sujeito-do-estado (Agostinho), conjugando-o com a primeira dificuldade
(conseguir o dinheiro para pagar o curso para o qual ela os havia inscrito). No terceiro pro-
grama narrativo (PN3), temos o sujeito-do-fazer (Agostinho com artimanha 1) transformando
o sujeito-do-estado (Agostinho com dificuldade 1) em sujeito-do-estado com solução 1. No
próximo programa (PN4), o sujeito-do-fazer (Paulão, Tuco e Beiçola), conjugado com infor-
mação parcial, confrontando-se entre si, transforma-se em sujeito-do-estado conjugado com
informação total
40
. No quinto programa narrativo (PN5), vemos que o sujeito-do-fazer (Pau-
lão, Tuco e Beiçola) transforma a condição do sujeito-do-estado (Agostinho) que, ao invés de
estar conjugado com a primeira solução (So1), passa a estar conjugado com a segunda difi-
culdade (D2). No programa seguinte (PN6), o sujeito-do-fazer (Agostinho) transforma o sujei-
to-do-estado (Agostinho), fazendo que seu vínculo com a segunda dificuldade (D2) transfor-
40
Ao somarem seus conhecimentos parciais acerca do convite que Agostinho lhes fizera, adquirem total conhe-
cimento da armação do malandro.
159
me-se em vínculo com a segunda artimanha (A2). No programa de número 7 (PN7), o sujeito-
do-fazer (Agostinho), com artimanha (A2), transforma o sujeito-do-estado (Plínio) em sujeito-
do-estado com solução (So2). No oitavo (PN8), o sujeito-do-fazer (Plínio) dotado de solução
(So2), transforma o sujeito-do-estado (Agostinho com dificuldade) ao transferir-lhe a solução
(So2) que possui. No PN9, o sujeito-do-fazer (Plínio), conjugado com informação parcial
41
transforma a condição do sujeito-do-estado (Bebel) conjugando-o com informação parcial. No
décimo programa (PN10), o sujeito-do-fazer (Bebel) com informação parcial, transforma o
sujeito-do-estado (Agostinho) tirando-lhe a solução (So2) que há pouco conseguira de Plínio.
No PN11, vemos que o sujeito-do-fazer (Agostinho) sem a solução advinda de Plínio (So2),
na tentativa de manter a associação a primeira solução (So1) do sujeito-do-estado (Agosti-
nho), torna-se sujeito-do-estado (Agostinho) conjugado com nova artimanha (A3). Na se-
qüência, no PN12, o sujeito-do-fazer (Agostinho), associado a terceira artimanha (A3), age
sobre o sujeito-do-estado (Bebel) com informação parcial, entretanto como podemos ver, não
consegue modificar o seu estado
42
. No próximo, PN13, o sujeito-do-fazer (Beiçola), com in-
formação total, modifica a condição do sujeito-do-estado (Bebel), fazendo com que ela tam-
bém esteja conjugada com informação total sobre as artimanhas de Agostinho. No décimo
quarto programa (PN14), temos que o sujeito-do-fazer (Bebel), conjugado com informação
total, transforma o sujeito-estado (Agostinho) conjugando-o com a dificuldade final (todas as
suas artimanhas são plenamente reveladas, todas as soluções que ele havia encontrado são
perdidas e ele é colocado diante de tamanha dificuldade que traz por terra qualquer possibili-
dade de novas artimanhas).
Como vimos com relação ao nível fundamental, o perdão de Bebel tem a função de
por um fim na descontinuidade geradora de sentido entre os pares semânticos dificulda-
de/fracasso e solução/êxito, provocando, dessa forma, o desenlace do episódio pelo fato que
a estrutura representada pelo esquema “dificuldade/fracasso não dificuldade/êxito solu-
ção/êxito” tendia a repetir-se indefinidamente. No nível narrativo, o desfecho do episodio
pode ser visto nos programas narrativos PN15 e PN16. No primeiro, o sujeito-do-fazer (Agos-
tinho), conjugado com paternidade (Pa) transforma o sujeito-do-estado Bebel ao conjugá-lo
com perdão (Pe). Por sua vez, o sujeito-do-fazer (Bebel), conjugado com perdão, muda a con-
dição do sujeito-do-estado (Agostinho), suprimindo-lhe a dificuldade final (DF) e conjugan-
do-o com a solução final (SoF).
41
Pensa ter sido o único convidado para padrinho, não tem informação de que outros já haviam caído no mesmo
golpe.
42
O que denota a completa ineficiência da terceira artimanha.
160
No episódio, Agostinho faz uso de artimanhas em duas situações. Na primeira, ele lan-
ça mão de expedientes escusos com o objetivo de pagar o curso de gestantes que o colocaria
em de igualdade com Plínio, personagem que o faz perceber-se inferior. A segunda situa-
ção que provoca o uso de artimanhas por parte de Agostinho diz respeito à superação de difi-
culdades que se instalam por conseqüência da própria artimanha inicial. Com isso, se a arti-
manha implica novas dificuldades, além de trazer em si a possibilidade de revelação efetiva
que causaria uma dificuldade da qual a personagem seria incapaz de superar por si (a perda do
amor da mulher e, por conseqüência, a perda da oportunidade de ser pai de família) –, são as
ações da própria personagem que acabam voltando contra si.
O sentir-se inferior de Agostinho está ligado a sua condição de fracasso, mas – ao ten-
tar se mostrar em de igualdade com alguém que, como ele, é taxista, mas diferentemente
dele, é bem sucedido, tem um carro novo e uma casa luxuosa ele luta para escapar dessa
condição. Entretanto, seu caráter de personagem malandra, circunstância da qual por cons-
tituição não pode escapar, limita suas ações ao uso de expedientes escusos e são esses, por
fim, que o colocam numa situação pior do que aquela de onde partira.
Neste episódio, a solução final não é alcançada por meio da malandragem, mas sim
por meio do perdão de Bebel, incitado pelo sentimento de paternidade surgido em Agostinho
ao fim da história. Na verdade, o perdão surge em um momento em que a malandragem, de-
pois de tantas tentativas frustradas, perde qualquer possibilidade de se afigurar como alterna-
tiva eficaz; ainda melhor: o perdão surge como elemento capaz de trazer a solução de fato
para aquilo que, por sua vez, a malandragem trouxera, não apenas soluções provisórias, mas
dificuldades ainda maiores.
Tendo analisado o percurso narrativo do episódio, empreenderemos a análise de con-
teúdo com o intuito de compreender de que maneira o malandro é aqui representado.
Logo na primeira seqüência, as circunstâncias nas quais a personagem é apresentada
ajudarão a definir um dos temas do episódio. Na primeira cena, em plano conjunto, vemos
Agostinho saindo da pastelaria segurando um copo de cerveja e caminhando em direção a
Paulão que está consertando seu carro. Já em plano americano seguido de plano médio, Agos-
tinho tem o seguinte diálogo com o mecânico:
Agostinho: E Paulão! Pô! Quarta vez, hein, filho! Tá tudo certo com esse car-
ro?
Paulão: triste a coisa aqui! Tem teia de aranha... até um rato eu tirei daqui de
dentro! Brincade... ó, pra fazer esse carro pegar eu vou ter que fazer milagre, hein!
Agostinho: Faz aí, Paulão, o que for necessário. Isso é meu instrumento de trabalho
não tenho condições de ficar sem. Tu trabalha com pré-datado, né?
161
Paulão: O rapá! Eu falei que tem que fazer milagre! Tu acha que santo vai aceitar...
cheque pré-datado?
Agostinho: (Tudo bem) Não desiste não! Te dou um cheque pra agora! Vam’bora!
Trabalha aí! (Eu) preciso do carro!
Paulão: Tu vê lá! Tu vê lá, hein Agostinho!
Agostinho: O milagre vai ser o banco pagar o cheque, né?
Paulão: Brincadeira Agostinho! Tu continua o mesmo!
Agostinho: Eu to precisando do carro pra trabalhar rapá!
(PLÍNIO CHEGA DE CARRO TOCANDO A BUZINA)
Agostinho: Ih o Plínio! O cara é chato pra caramba!
Paulão: Pô! O cara é maneiro!
(PLÍNIO PASSA COM O CARRO RENTE A AGOSTINHO)
Agostinho: Vai me atropelar Plínio!
Agostinho (para Paulão): Não sabe dirigir!
Agostinho (para Paulão): Vamo fazer em 12 vezes!
Paulão: Que doze vezes!
Do momento em que a câmera aborda Agostinho, até a chegada de Plínio e durante to-
do o diálogo acima, a música que acompanha a ação é executada por um contrabaixo elétrico
(com graves bem acentuados), um sintetizador simulando uma espécie de órgão jazzístico,
uma guitarra e, executando uma leve marcação em ritmo de samba, um chimbal. A música
desses instrumentos, o aspecto visual da personagem (sobre o qual trataremos em breve) e o
diálogo acima emprestam certo gingado à seqüência responsável por introduzir o episódio, ao
mesmo tempo em que deixam transparecer a comicidade da situação. A repetição desses
mesmos elementos (música, aspecto visual e diálogos), durante outros momentos da narrativa
fazem com que uma das temáticas do episódio seja a malandragem; todavia, trata-se de uma
malandragem burlesca.
A malandragem, ainda que burlesca, é o elemento que move o episódio no nível narra-
tivo e, ao elevarmos a análise para o nível do conteúdo, esse tema se faz presente não apenas
nos elementos externos à personagem; ela própria, além de suas ações, porta signos que repre-
sentam essa idéia.
O primeiro desses signos que nos chama a atenção refere-se a sua vestimenta. Como
podemos ver na figura abaixo (Fig. 10), Agostinho traja calças e camisa predominantemente
marrons, mas, apesar do tom sóbrio, as estampas da camisa e o quadriculado das calças asso-
ciados a um cinto marrom claro e uma corrente dourada que, vindo por de baixo da gola, vai
parar por cima da abotoadura da camisa, lhe rendem um ar malandro. O copo de cerveja na
mão em pleno dia reforça o aspecto malandro da personagem. Ademais, o diálogo que tem
com Paulão nessa seqüência durante o qual tenta, sem sucesso, levar vantagem sobre ele na
negociação do pagamento do conserto do carro (se é que, realmente, pretendia pagar)
consiste em outro elemento que define sua condição de malandro. Contudo, que se dizer
que esses mesmos elementos que ajudam a compor o caráter malandro da personagem tam-
162
bém, pelo seu aspecto estapafúrdio e caricato, fazem com que essa malandragem assuma as-
pectos de bufonaria.
Figura 10
Por ser um malandro bufão, Agostinho representa, na verdade, um malandro às aves-
sas, um “malandro-mané”. Esse status não se deve apenas a suas artimanhas desastradas – que
tendem a produzir o efeito justamente contrário do esperado –, está vinculado também a sua
falta de capacidade em se colocar como malandro. O aspecto que mostra isso mais claramente
é sua submissão à esposa. Diferentemente de um Maxoverseas ou de um Paulinho Perna Tor-
ta, Agostinho, malgrado suas tentativas, não consegue impor sua autoridade à Bebel. Nesse
episódio isso pode ser visto em diversos momentos como, por exemplo, no diálogo que se
segue:
Bebel: Que que você pensa que você está fazendo?
Agostinho: Eu agora vou ver televisão! Já botei a boneca pra arrotar!
Bebel: (gritando energicamente) Isto não é uma boneca! (em tom ameaçador) Isto é
nossa filhinha! E demorou! Passou da hora de leva ela passear!
Agostinho: (exaltado) Olha aqui Maria Isabel! Olha aqui! Se você pensa que eu vou
sair e vou levar uma boneca pra passear, você está redondamente enganada!
Na cena seguinte à sua veemente negação de atender às ordens da esposa, vemos A-
gostinho, a contragosto, saindo de casa com o carrinho de bebê levando a boneca para passe-
ar, sendo que, ao fazer um movimento brusco com o carrinho, é energeticamente advertido
pela mulher, advertência contra a qual, devido a sua submissão, não reclama (Fig. 11; fig. 12;
fig.13).
Figura 11 Figura 12 Figura 13
163
A submissão à mulher é confirmada com a articulação entre o texto, sua interpretação
por parte do atores e de elementos visuais, como, por exemplo, o contra-plongée no momento
em que Bebel grita com ele energicamente, seguido do Plano em que vemos Agostinho, numa
posição mais baixa que aquela da esposa olhando assustado enquanto essa, apontando-lhe o
dedo, lhe fala em tom ameaçador. Finalmente, outro aspecto visual que ajuda a representar
sua submissão consiste no seu andar cabisbaixo levando o carrinho de bebê em direção à rua,
enquanto a esposa o segue com as mãos na cintura, gesto que lhe rende um ar autoritário.
Poderíamos citar outros exemplos de submissão de Agostinho nesse episódio. Entre-
tanto, o mais eloqüente se na seqüência que mostra a chegada do casal do chá de bebê na
casa de Plínio. Depois da tentativa frustrada de explicar a esposa o motivo pelo qual convida-
ra Plínio a ser padrinho sua filha, Agostinho, após a entrada de Bebel na casa, sai do carro e,
olhando na direção para onde a esposa havia ido, diz por duas vezes, num tom de voz indiscu-
tivelmente temeroso, o ter medo dela, na clara tentativa de convencer a si mesmo acerca
daquilo que acabara de dizer.
Entretanto, a malandragem burlesca não é a única temática do episódio, uma vez que o
tema da história oscila entre malandragem e paternidade/família.
Semelhantemente ao primeiro, o tema da paternidade/família configura-se por meio de
diversos elementos durante o episódio. Em primeiro lugar, no que se refere à música, temos,
por exemplo, a melodia de ninar que um sintetizador, simulando o som de uma caixinha de
músicas, executa em na seqüência em que Bebel está limpando o que será o quarto da filha do
casal
43
. Esse mesmo elemento é repetido quando da execução da canção “Atirei o pau no ga-
to” por um sintetizador que simula uma caixinha de músicas na seqüência em que Plínio, Josi,
Bebel e Agostinho aparecem no curso de gestantes.
também aspectos visuais que constroem a idéia de paternidade/família como, por
exemplo, os cenários da seqüência do curso de gestantes e o da seqüência em que Bebel des-
cobre que Agostinho convidara Plínio para padrinho visando benefício financeiro. Nessas
duas seqüências, como pode ser observado pelas figuras abaixo (fig. 14 e fig. 15), o cenário é
montado com objetos relacionados à primeira infância, dentre eles podemos citar, banheira e
armário infantil, mamadeira, berço, quadros e papel de parede com motivos infantis além de
bonecos fazendo as vezes dos bebês (haja vista tratar-se de um curso pré-natal). A isso se po-
43
Na verdade, temos aqui a síntese musical dos dois temas do episódio: a música executada de maneira a sugerir
a primeira infância é a conhecida estrofe infantil “enganei o bobo, na casca do ovo”. Em si, a estrofe é uma mis-
tura de malandragem e inocência da infância; todavia, ao ser incluído no momento em que a personagem Bebel
está organizando o futuro quarto de sua filha, e com a chegada de Agostinho, o tema musical ganha contornos de
maternidade/paternidade. A conhecida letra, por sua vez, sugere a idéia de malandragem, sendo que a primeira
artimanha (enganar o bobo) será posta em prática na seqüência seguinte.
164
deria objetar dizendo que, tanto pela música, quanto pelos aspectos visuais (inclusive o abdo-
me grávido de Bebel e Josi), o episódio teria igualmente como tema a maternidade. Entretan-
to, o fato de o episódio ser focado na figura de Agostinho e, em menor grau, na de Plínio (pe-
lo razão de essa personagem ser a que se coloca mais diametralmente em oposição ao malan-
dro), a relação pai e filho é colocada em evidência em detrimento à relação maternal.
Figura 14 Figura 15
Ao invés de considerarmos apenas a paternidade como o outro tema com o qual a nar-
rativa é revestida, preferimos colocar ao seu lado a questão da família, de modo a ter o binô-
mio paternidade/família. A escolha justifica-se por percebemos nesse episódio as relações
personalistas e familiares assumindo importância fundamental conforme discutimos no ca-
pítulo a respeito da genealogia do malandro e que nos remete ao homem cordial de Sérgio
Buarque de Holanda (1995). Esse tema toma forma no episódio através da questão do apadri-
nhamento.
O objetivo de fazer o curso e, com isso, colocar-se em igualdade a Plínio, pode ser
atingido caso Agostinho possua a quantia necessária para o pagamento do curso, dinheiro que,
no entanto, lhe falta:
Agostinho: Oi...
Bebel: Ti! Ti, eu tava pensando umas coisinhas assim... pra reforma no quarto, né?
Bebel: Eu pensei dessa parede... a gente pinta assim... um rosa! Sabe, nessa parede
aqui... eu pensei de a gente botar um armariozinho... sabe desses bem de bebezinho e
do lado do bercinho: a babá! Eletrônica!
Agostinho: Maravilhoso...
Bebel: Não é legal?
Agostinho: Pena que não vaio ter dinheiro pra nada disso, né?
Bebel: Ué, por quê?
Agostinho: Alguém aí inventou de fazer curso de gestantes, né, Bebel?
Bebel: Ah Ti... eu ia te contar.
Agostinho: Só que ficou tarde demais pra você contar, né?
Bebel: Tinho, eu acho que esse curso é super importante pra agente aprender a cui-
dar direitinho da nossa filhinha.
Agostinho: Tem curso aí que ensina a pessoa a ganhar dinheiro pra sustentar a filha?
Tem curso que ensina a ganhar dinheiro pra pagar aluguel? Tem curso que ensina
ganhar dinheiro de um monte de coisa? Oh Maria Isabel! O dinheiro acabou... aca-
bou... e ainda por cima tem que consertar o taxi que quebrou... de novo...
165
Bebel: Olha Ti, a gente teve o maior trabalhão pra convencer o Beiçola a liberar es-
se quarto que era da mãe dele... e a gente conseguiu! Finalmente nossa filhinha tem
o seu lugar... não vamo brigar à toa. Viu meu amor... não tem problema! Olha, não
dá pra fazer o curso? Paciência! Depois, a Josi me dá uns toquezinhos!
Agostinho: Que Josi?
Bebel: Ué, a Josi! Mulher do Plínio!
Agostinho: Ué... que que tem? Eles vão fazer o curso?
Bebel: o... a Josi me falou que esse é o melhor curso de toda a cidade. Na verda-
de, ela nem queria fazer, mas o Plínio, né, fez questão.
Agostinho: Bebel! Quer fazer o curso mesmo?
Bebel: Não, pensando bem, sabe....
Agostinho: Amor, você quer fazer? (interrompendo Bebel)
Bebel: É um curso muito caro ... eu acho que esse tipo de coisa não é pra a gente
mesmo...
Agostinho: Amor, você quer fazer? Eu quero saber se você quer fazer mesmo... (in-
terrompendo Bebel) Por que se você quiser fazer...
Bebel: Ah, eu queira
Agostinho: Eu quero que você faça!
Bebel: E o dinheiro?
Agostinho: O dinheiro eu vou arrumar!
Bebel: Então tá?
Agostinho: Vou sair e vou arrumar! Porque eu acho importante pra minha filha e
pra mãe dela que eu faça o que eu puder... (em tom de choro)
Bebel: Tá, então eu quero!
Diante disso, a solução vislumbrada pela personagem consiste em estabelecer relações
de parentesco com aqueles que teriam condições financeiras de ajudá-lo:
Agostinho: E aí! Oi Gina! Oi Tuco!
Gina: Oi!
Agostinho: Eu gosto de você pa caramba! E eu gosto... (abraçando Gina e Tuco)
Tuco: Valeu!
Agostinho: (ininteligível, mas ouve-se que as últimas palavras são “em
lia”)
44
Como que tá tudo? E o caos aéreo? Te afetou?
Agostinho (para Gina): Como tá tudo? E o caos aéreo, te afetou?
Tuco: Que caos aéreo, Agostinho?
Agostinho: o! Eu quero saber porque...
Tuco:! A mulher trabalha num avião e você vai ficar com esse baixo-astral!
Agostinho: Eu sei... (ao mesmo tempo em que Tuco)
Agostinho: Não, não, não! Eu quero saber se afetou você assim no teu trabalho...
recebendo em dia? O mercado de trabalho tá firme?
Gina: Tá tudo... Tá tudo bem Agostinho... obrigada...
Agostinho: Queria falar com vocês... Tem dois minutos?
Tuco: Hum... (desconfiadamente)
Agostinho: É que eu queria pedir uma coisa super especial!
Tuco: Bom... mas tava demorando pra pedir alguma coisa, Agostinho? (sai, dan-
do as costas a Agostinho e deixando-o para trás)
Agostinho: A gente vem aqui de peito aberto, vendo? Eu ia convidar vocês pra
serem padrinho e madrinha da minha filha...
Gina: Ai Agostinho... ai que amor! É claro que a gente topa!
Tuco: Que é isso Agostinho? Você tá falando a verdade?
Agostinho: Tô cara! A Bebel até ia fazer um jantar pra convidar oficialmente, mas
eu tenho esse coração mole (ininteligível) me adiantei!
Tuco: Obrigado!
44
Note-se que uma das características principais da personagem é falar rápida e ininteligivelmente, especialmen-
te quando está aplicando seus golpes. Imaginamos que esse procedimento é muitas vezes usado para confundir
aquele a quem a personagem está tentando engambelar.
166
Gina: Pode deixar...
Agostinho: Eu ia pedir pra vocês não falar nada pra ninguém, pra Bebel princi-
palmente!
Gina: Não... (concordando)
Agostinho: Nem pra família porque isso pode gerar uma ciumeira (ininteligível),
né?
Gina: Tá.
Agostinho: Então, eu ia pedir pra manter esse... Aí, quando ela avisar, eu acho que
vai ficar tudo bem!
Gina: Ai que alegria! Que alegria! Eu quero dar um presentão pra minha afilhada! O
que vocês estão precisando?
Agostinho: (Nós) não tamo precisando de nada... de muita coisa...
Gina: Não pode falar!
Agostinho:o queremos nada...
Tuco: Não, não, não, não, não, não, não! Sério, pelo amor de deus, eu vou ser padri-
nho e eu quero dar tudo de melhor pra minha afilhada! Fala aí!
Agostinho: (junto com Tuco) Senão fica parecendo que chamei com intenção...
Agostinho:o precisa!
Tuco: Fala ai! Tá precisando de alguma coisa?
Agostinho: (simulando choro) Não precis...
Agostinho: (chorando) O plano de saúde... (recuperando-se) que eu fiz... pra Bebel,
era o plano de saúde melhor que eu podia pagar, mas ele não cobre a anestesia du-
rante o parto. Então, ela terá que passar pela dor bíblica do parto! Espero que você
não tenha que passar por isso, Gina... é uma dor inacreditável. Ela conformada,
ela treinando com o pau na boca assim... mas eu realmente... (simula choro nova-
mente)
Gina: Não Agostinho, imagina, imagina! A gente vai ajudar! A gente pode ajudar,
né Tuco?
Tuco: Claro! Claro! Claro!
Gina: Quanto você precisa!
Agostinho: É muito caro Gina...
Dessa forma, o apadrinhamento configura-se como um modo de personalizar ainda
mais as relações entre as personagens, fato que, em última instância, lhe renderá o auxílio
financeiro por ele buscado.
Compreendemos que se poderia argumentar que entre Agostinho e Tuco existam,
embora de modo indireto, relações de parentesco, afinal são cunhados. Entretanto, vale notar
que, ao abordar o casal, Agostinho dirige-se primeiramente a Gina e não a Tuco. Interessa-lhe
saber sobre a situação financeira de Gina, não perguntando, assim, nada a respeito de Tuco.
Muito provavelmente, isso se deva ao fato de Agostinho saber quão instável é a vida profis-
sional de Tuco e de sua, também constante, falta de dinheiro. Assim, estando mais interessado
em escolher um padrinho pelo retorno financeiro que poderá ter do que pela estima que tem
pela pessoa escolhida, não é Tuco a real escolha de Agostinho, mas sim Gina. Tuco, por sua
vez, é convidado para apadrinhar a criança por ser o namorado de Gina. Além disso, mes-
mo que pudéssemos afirmar que Agostinho teria interesse de que Tuco fosse o padrinho de
sua filha, esse interesse estaria condicionado à perspectiva de obter o dinheiro de que precisa-
va, validando assim nossa teoria de que, para obter o auxílio financeiro, a personagem busca
167
reforçar os laços de parentescos e, nesse caso, nada melhor para reforçar o frouxo laço que a
condição de cunhado possui do que sobrepor-lhe o grau de “compadre”
45
.
Desse modo, ao convidar Gina para madrinha de sua filha, Agostinho reforça laços
personalistas com duas personagens ao mesmo tempo, ou seja, além de Gina (sua vítima prin-
cipal), também Tuco.
O convite para tornar-se padrinho de sua filha traz outra vantagem a Agostinho. Diante
da dificuldade financeira dessa personagem, o oferecimento de ajuda do suposto padri-
nho/madrinha é quase que espontâneo, uma vez que se tornar padrinho significa tornar-se co-
responsável pela criança e o dinheiro, afinal, seria supostamente utilizado em benefício dela:
Tuco: Sério, pelo amor de deus, eu vou ser padrinho e eu quero dar tudo de melhor
pra minha afilhada!
O mesmo procedimento de estreitamento de relações é também utilizado com Plínio e,
muito provavelmente, com Paulão e Beiçola (entretanto, pelo fato de esse convite ter sido
feito em elipse, podemos apenas conjecturar sobre suas circunstâncias):
Bebel: (chegando à casa de Plínio para o chá de bebê) Dá licença!
Plínio: Bebel! Agostinho! Que surpresa!
Agostinho: s viemos...
Plínio: Que bom!
Agostinho: ...porque não poderíamos deixar de trazer, com nossa presença, o prestí-
gio para um casal tão excelente do bairro.
Josi: Ai que lindo!
Bebel: Antes de mais nada, tá aqui ó! Pro filhote que tá vindo aí!
Josi: Mas gente que fofo! Não precisava, né amor?
Plínio: Não precisava!
Agostinho: Tomara que seja o tamanho...
Josi: Ah... Uh... esse aqui é rosa, né?
Bebel: Tinho, eles vão ter um menino!
Agostinho: Pode trocar... É por que na loja, eu acho que a vendedora... (para Bebel)
lembra que a gente falou azul, a vendedora ela... ela... ela...
Josi: Tem um cartãozinho... que fofo! Olha “para Bebel e Agostinho, da Marilda”?!
Agostinho: (puxando o cartão da mão de Josi) Não, não, não, não... errado! Ah
meu deus! Eu acho que confundiu...
Plínio: Bom, o que importa é a intenção, né?
Josi: É... é!
Plínio: (chamando para dentro da sala) Por favor!
Josi: Vamos ali! Vamos conhecer as meninas! Vem Bebel! Seja bem vinda a minha
casa!
Plínio: Agostinho, vamos beber um “doze anos” aqui...
Agostinho: Claro!
Agostinho: Enquanto a gente bebe um bocadinho, eu queria falar com você. Sabe
(ininteligível) qual é a razão de eu tá aqui?
Plínio: Um?
Agostinho: É que eu queria... (ininteligível) com toda... convidar você... sua espo-
sa... vocês aceitaria... ser padrinhos... da minha filha!
Plínio: (depois de uma longa pausa) Agostinho... você tá de brincadeira comigo, uh?
45
Reforçando a temática da paternidade/família, é interessante lembrar que, etimologicamente, a palavra compa-
dre vem do latim tardio compàter, significando “o que tem parte na paternidade”.
168
Agostinho: Não... se vocês não quiserem, eu vou compreender, porque é um pouco
abrupto assim, né? Um convite meio inesperado!
Plínio: (gesticula para que Agostinho sente no banquinho ao bar)
Agostinho: Então, Plínio!
Plínio: (abraçando Agostinho fortemente e beijando-o na testa) Claro que eu aceito!
Agostinho: Que bom, Plínio...
Plínio: Que honra!
Agostinho: Pra mim também!
Plínio: Ai... agora me emocionei agora! É por que quando a gente fica grávido, a
gente fica muito sensível, né, você sabe como é isso!
Agostinho: É...
Plínio: Ih... Eu achava que você não... não gostava muito de mim, rapaz!
Agostinho: De maneira nenhuma... como é que você pode ter tido uma impressão
dessas... a gente sempre... olha, eu queria até falar pra você... pra você não ficar as-
sim muito empolgado com esse convite, por que não vai ter muita cerimônia religio-
sa. Vai ser uma coisa...
Plínio: (interrompendo) Por quê? Algum problema de religião? Alguma coisa as-
sim?
Agostinho: Não, não, não, não! Graças a deus, nós temo... nós tamo em dia aí! É
que... não quero falar! Não quero falar...
Plínio: Não... fala...
Agostinho: (junto com Plínio) s tamo sem dinheiro! Tamo sem dinheiro, por que
eu sustento aí... eu ajudo a sustentar meu sogro e... nós tamo sem dinheiro.
Plínio: (batendo amigavelmente em seu ombro) Agostinho, você precisando de
alguma ajuda financeira
Agostinho:o, não, não
Plínio: Fala...
Agostinho:o posso aceitar. Não posso aceitar...
Plínio: Por favor!
Agostinho: Depois fica parecendo que eu fiz o convite com segundas intenções
Plínio: Não! Agora a gente é amigo! Amigos são pra essas coisas! A gente é com-
padre agora!
Agostinho: Então tudo bem! Eu posso aceitar então!
Para o desenvolvimento de nosso argumento, é interessante comparar o diálogo acima,
entre Agostinho e Plínio, ao diálogo que ocorre um pouco antes, na seqüência em que Plínio
convida Agostinho e Bebel para o chá de bebê de sua esposa:
Bebel: É o Plínio! Oi Plínio!
Plínio: Boa tarde, Bebel! Tô incomodando?
Agostinho: Tá! Não...
Bebel: Que que você falou?
Agostinho: o falei nada. O bebê falou “ah”... Era uma brincadeira
Bebel: Entra Plínio! Entra!
Agostinho: Entra!?
Plínio: Treinando, né Agostinho
Bebel: É... tá!
Plínio: Eu queria convidar vocês pra uma festinha que vai ter lá em casa hoje à noite
que é o chá de Bebê da Josi!
Agostinho: (junto com Plínio) Ah não vai dar!
Bebel: Ai Plínio, obrigada!
Agostinho: Mas não vamo poder ir Plínio!
Bebel: A gente não vai?
Agostinho: Não, nós tamo cansado pra caramba; agradeço o convite, mas tchau Plí-
nio!
Plínio: A Josi ia ficar muito, muito, muito feliz se vocês fossem!
Agostinho: Que pena... não vai dar!
Bebel: Posso ficar?
169
Plínio: Quem sabe vocês mudam de idéia!
Agostinho: É...
Plínio: (indicando a porta) Por favor, pra eu voltar aqui!
Agostinho: Abre você! Deixa... Ah! Perdemos uma oportunidade...
Bebel: (olhando com reprovação para Agostinho) Faço questão! Faço questão!
Plínio: (Segura) senão o bebê cai, hein Agostinho!
Agostinho: Tchau Plínio! Valeu um abraço!
Bebel: Tchau - tchau, Plínio!
Agostinho: Obrigado por ter vindo...
Bebel: (gritando com Agostinho) Você precisava tratar o Plínio desse jeito, Agosti-
nho!
Agostinho: Ele é chato! Chato, Maria Isabel! O cara é chato!
Como vemos, Plínio tinha razão: Agostinho não gosta dele; nunca lhe dedicou amiza-
de. Contudo, a fim de perpetrar seu golpe, a personagem pretende dar a entender que sempre
foram amigos:
Agostinho: De maneira nenhuma... como é que você pode ter tido uma impressão
dessas... a gente sempre...
Essa é a estratégia de Agostinho: ele sabe que conseguirá a ajuda necessária sendo
amigo e tornando-se “compadre” de Plínio. É o dinheiro que lhe importa, não pretende de fato
chamar Plínio para apadrinhar seu bebê, por isso adverte o “amigo” que será algo bastante
simples, não haverá sequer cerimônia. Interessante também notar que, ao justificar o porquê
de sua dificuldade financeira visto que não quer aparecer inferior a Plínio –, Agostinho uti-
liza-se, igualmente, de relações familiares, afirmando que sua dificuldade financeira advém
do fato de ele ter de sustentar o sogro, o que é sabidamente mentira
46
.
Realmente, as relações personalistas/familiares estão ligadas ao homem cordial de
Holanda (1995). É, porém, importante lembrar que o homem cordial ao qual Holanda se refe-
re não está ligado à bondade ou à afabilidade. Sua concepção do termo “cordial” está direta-
mente vinculada à acepção latina de cordiális, significando “relativo ao coração”. Dessa ma-
neira, as relações personalistas, fortemente presentes na cultura brasileira, são “relações do
coração” em que o julgamento favorável sobre outrem depende, em grande medida, da condi-
ção de amigo ou de compadre.
Coincidência, ou não, a palavra “coração” é utilizada em dois momentos importantes
da história. O primeiro momento está na seqüência em que Agostinho aplica o golpe em Gina
e Tuco. Alegando ter vindo fazer o convite “de peito aberto” (leia-se, metonimicamente, “co-
ração aberto”), afirma não ter conseguido esperar Bebel fazê-lo formalmente por ter “coração
mole”. O uso da expressão “vim de peito aberto” antecedendo o convite de apadrinhar sua
46
O que ocorre é justamente o contrário: Lineu é quem constantemente ajuda o casal Bebel e Agostinho em suas
dificuldades com a falta de dinheiro.
170
filha reforça, dessa forma, a intenção de fortalecer os vínculos personalistas entre ele e as ou-
tras duas personagens que, pela importância desse tipo de vínculo no universo cultural brasi-
leiro, sentem-se lisonjeadas, o que torna a recusa ao convite virtualmente impossível.
O segundo momento importante em que a palavra coração é utilizada está na seqüên-
cia final na qual Agostinho é perdoado:
Gina: Bebel! Bebel! Bebel! Olha o que a gente conseguiu!
Bebel: Gente, mas... Que que é isso?
Gina: É o dinheiro do curso! Eu, o Tuco, o Beiçola e o Paulão resolvemos dar te
presente pra você
Bebel: Ai... ai gente obrigada! Gi, muito obrigada! Olha, eu não sei nem como agra-
decer!
Agostinho: (indignado) Depois de uma trabalheira do caramba, agora o dinheiro
vem de graça!
Tuco: Que de graça, Agostinho! O dinheiro veio do coração, tá? E eu espero que
com esse curso, você aprenda ser um bom pai!
Bebel: Olha aqui, ó Ti! Tem até nota de 100, eu nunca tinha visto!
Não o dinheiro veio do coração; de também vem a redenção da personagem: é
perdoado por Bebel e, com o curso que o dinheiro lhe dará a oportunidade de fazer, poderá vir
a ser um bom pai. Assim, o perdão de Bebel também depende do coração:
Agostinho: (para a boneca) Perdão, minha filha! Perdão! Papai fez várias coisas er-
rado, mas foi na intenção de fazer as coisas certa! Tem vez que a pessoa não sabe
bem a diferença entre o certo e o errado. Então, eu queria pedir a você que você me
perdoasse.
Bebel: (surpreendendo Agostinho): O Tinho!
Agostinho: Ai meu deus...
Bebel: isso daí não é nossa filha! É uma boneca!
Agostinho: Eu sei disso... eu tô falando com a boneca por que...
Bebel: Um?
Agostinho: ...não tenho certeza se vou poder falar com minha filha verdadeira. Por
isso eu estou falando com a boneca.
Bebel: Por quê?
Agostinho: Você não vai me expulsar daqui?
Bebel: E se eu expulsasse?
Agostinho: Sinceramente, acho que você estaria fazendo uma coisa certa pra defen-
der sua família duma pessoa que sou eu... que tenho demonstrado ser uma pessoa in-
capaz de viver em sociedade... em convívio (ininteligível)
Bebel: Finalmente você aprendeu, Ti!
Agostinho: Eu sei que agora eu aprendi a lição, embora seja tarde...
Bebel: Eu não falando da lição... falando que você finalmente aprendeu a se-
gurar direito a boneca...
Agostinho: (olhando para boneca) Ah!
Bebel: Você sempre errava!
Agostinho: (emocionado) Não é por que... não sei... acho que isso é uma coisa de
instinto. Agora eu tava realmente me imaginando, né? Como é que s... seria... será a
pessoa mesmo, minha filha, que tem a cara linda com os olhos... porque é um anjo
que eu acho que deus coloca na mão da gente pra gente criar uma criança pura, um
anjo, não é? Um anjo. Cada um tem uma responsabilidade, no casal de criar...
Bebel: (chorando) Ah Tinho, para Tinho, vai! Amor, isso não se faz!
Embora tenha agido mal em enganar tanta gente, Agostinho, resignadamente, afirma
ao boneco como se esse fosse de fato sua filha –, que seus erros teriam tido boas intenções.
171
Ao ouvi-lo, Bebel parece convencida de que, apesar de tudo, o marido tenha um bom coração
e, ao perceber que enfim ele aprendera a segurar o bebê de maneira correta, perdoa-o. Desse
modo, o perdão de Bebel, igualmente à aceitação dos falsos convites de apadrinhamento, vem
menos da razão do que dos sentimentos.
Com isso percebe-se o quanto ambos os temas (malandragem e paternidade/família)
que revestem a narrativa estão ligados. Tanto um quanto outro dependem das relações perso-
nalizadas identificadas por Holanda (1995), sugerindo assim que, nesse episódio, os dois te-
mas empreendem um movimento dialético nos termos filosóficos do hegelianismo.
A oscilação entre essas duas temáticas reflete a oscilação que a própria personagem
sofre nesse episódio. Agostinho oscila entre a malandragem e a esperança de ser um bom pai,
entre a ordem e a desordem, entre o certo e o errado. Ao se dar conta de sua inferioridade,
percebe-se fracassado e sua tentativa de anular esse fracasso não está vinculada apenas ao
individualismo da personagem, mas também ao seu desejo de se mostrar como alguém capaz
de prover uma família.
É dessa maneira que a oscilação entre ordem e desordem a que está sujeita a persona-
gem aparece também na sua contraposição a Plínio. A função dessa personagem no episódio
assemelha-se à de Lineu no seriado. Da mesma forma que Lineu (que não participa dessa his-
tória), Plínio faz o tipo caxias. Sua caracterização como caxias depende fundamentalmente de
seu aspecto visual bem como de seu empenho em ser bom pai, afinal fora dele a idéia de fazer
o curso de gestantes além de ter lido três livros sobre a importância da presença do pai nos
primeiros anos de vida de uma criança.
Ao contrário de Agostinho com seu visual vibrante e espalhafatoso, Plínio é dono de
um visual conservador (fig. 16): invariavelmente traja calças sociais, sapatos, camisa de man-
gas compridas fechada até o último botão, gravata e um suéter sem mangas usado por cima da
camisa, além de sempre apresentar seus cabelos penteados para trás com gel.
Figura 16
172
Plínio apresenta-se como o elemento que corporifica o tema de paternidade/família:
ele é o aluno exemplar do curso de gestantes, a quem Bebel afirma que seu marido tem de
superar; é o pai dedicado que compreende seu importante papel na educação do filho e, como
se não bastasse, é exemplo de profissional de sucesso, capaz de prover uma vida de conforto
para a família:
Plínio: Fala Agostinho!
Agostinho: Tudo bem, Plínio? (continua conversando com Paulão)
Plínio: Oh Paulão! Tá precisando de ajuda aí?
Agostinho:o, tudo bem! O carro tá ótimo! Fala aí, Paulão!
Plínio: uh-huh...
Agostinho: o tá ótimo Paulão?
Paulão: É... tem filtro de ar, né?
Plínio: Ih... deu problema no filtro de ar, é?
Paulão e Agostinho: Não!
Paulão: O filtro de ar tá bom...
Agostinho: É, tá bom!
Paulão: O resto do carro é que não presta!
Agostinho: Que é isso Paulão?
Paulão: É verdade!
Agostinho: Brincalhão!
Plínio: Deixa eu ver aí, porque... deixa comigo aqui que eu sei uns macetes porque,
quando eu comecei na praça, muito tempo atrás, eu tinha um carro igualzinho a
esse!
Agostinho: Você tá querendo dizer que meu carro tá velho, filho?
Plínio: Não, que é isso... o seu carro tá muito bem conservado (rindo com Paulão)
Paulão: Brincad... (rindo)
Plínio: (seu celular toca) Um momento, um momento!
Agostinho: (para Paulão) Que que foi que o cara falou que você achou engraçado?
Paulão: Ué... o carro queb...
Plínio: Psiu! Hello! Yes Mr. Fun! No problem! See you there!
Agostinho: O quê? Que que ele falou?
Paulão: (tentando repetir) si iu vê... Si iu vé...
Plínio: Oh Agostinho, desculpa, é que eu vou ter que pegar um executivo americano
no aeroporto! Cliente antigo, sabe como é, né? (para Paulão)
Paulão: É...
Agostinho: (com desdém) Sei como é isso, eu também tenho essa clientela de turis-
tas... são... executivos...
Plínio: Ah é...
Agostinho: É! São ótimos, pagam bem à beça!
Plínio: (mostrando descrença): Huh-huh... é tá... A gente se vê no curso amanhã!
Agostinho: Tá legal! Que curso? Curso de quê?
Plínio: Curso de gestante, minha mulher falou que você e a Bebel vão fazer tam-
bém!
Agostinho: (fingindo lembrar-se) Ah é...
Plínio: Tchau Paulão, prazer!
Paulão: Tchau Plínio!
Agostinho: Tchau Plínio!
Plínio: Tchau hein! Cuida bem do carro!
Agostinho: (assim que Plínio lhes as costas) Esse cara é marrento pra caramba!
Esse cara casou com a mulher dele... a mulher dele o pai dela tem negócio de ônibus
e aí deu esse carro pra ele! Esse cara nunca trabalhou! Tudo de mão beijada!
Paulão: Esse é sangue bom! Esse é sangue bom!
Agostinho: Que sangue bom o quê! Esse cara é marrento!
Paulão: Tu tá com inveja do cara!
Agostinho: Por que eu to com inveja do cara por causa de quê?
Paulão: Por que o cara tem um carro melhor que o teu
173
Agostinho: Isso não quer dizer nada!
Paulão: Tem uma renda melhor que a tua!
Agostinho: Isso não quer dizer nada!
Paulão: Tem uma casa melhor que a tua!
Agostinho: Isso não quer dizer nada!
Paulão: Tá esperando filho homem!
Agostinho: Isso não quer dizer nada!
Paulão: Tu é fornecedor! O filho dele vai acabar pegando a tua filha!
Agostinho: Que oh! O filho dele vai ser flozô, rapá!
Em outras palavras, é a confortável e estável situação de Plínio que Agostinho aspira,
mas não sendo como esse, não a tem. Com ele ocorre justamente o contrário, na tentativa de
se mostrar como igual, faz uso daquilo que conhece, daquilo que é, da malandragem; e é essa
que acaba por se revelar a responsável pelo seu constante insucesso.
Com efeito, não é somente a história que é composta por malandragem e paternida-
de/família, são esses os dois termos que compõe a própria personagem Agostinho. Do mesmo
modo que Leonardo, de Manuel Antônio de Almeida, Agostinho posiciona-se entre ordem e
desordem, entre a instabilidade da malandragem e a estabilidade da vida familiar. Vive em
uma, aspira à outra. O fato de não conseguir se desvencilhar da malandragem que o constitui
impede-o de chegar à estabilidade que a vida familiar lhe promete. Nesse episódio, não é a
malandragem que lhe apresenta a solução final e o redime, mas sim o prospecto de vir a ser
um bom pai – afinal tem um bom coração.
Para a personagem, que busca ainda que por meios escusos e que se mostram inefi-
cazes pertencer à ordem, tornar-se um bom pai significa ser admitido, de maneira incontes-
te, na ordem familiar: ele abandonaria sua condição de cunhado (portanto não pertencente de
fato à família) para assumir a de pai (não apenas indubitavelmente pertencente, mas como
membro fundador). Tornar-se pai, portanto, implica deixar sua condição mbica de malandro
(daí a importância de mostrar-se igual a Plínio) e projetar-se para a estável condição de Lineu,
personagem que lhe serve de contraponto no seriado.
5.3 Comparando os episódios
Em 2007, entre os dias 12/04 e 20/12, a Rede Globo levou ao ar 36 episódios de “A
grande Família”, sendo que, em todos houve a participação da personagem Agostinho Carra-
ra. Em alguns desses episódios a personagem tomou a frente da ação, em outros serviu como
personagem de apoio, mas, na absoluta maioria, demonstrou em maior ou menor grau, de-
pendendo da estrutura da narrativa e do tema do episódio as características que o definem
como personagem malandra.
174
Vários foram os episódios em que a malandragem de Agostinho teve importância no
enredo, como, por exemplo, no episódio exibido em 21/06/2007 em que se faz passar por Tu-
co para conseguir dinheiro do pai de Gina; ou o episódio de 17/05/2007, em que Agostinho,
na tentativa de aproximar Lineu e Nenê que estavam separados –, executa uma artimanha
para incriminar a nova empregada de Lineu a fim de fazê-lo voltar para casa. Todavia, nos
dois episódios escolhidos, levados ao ar em 20/09/2007 e 27/09/2007, não somente os princi-
pais aspectos que fazem com que Agostinho seja uma personagem malandra aparecem de
maneira proeminente, mas a própria malandragem é tema da história.
Com isso, é desnecessário dizer que haja semelhanças entre os dois episódios, visto
que, ao eleger a malandragem como tema principal, conseqüentemente ambos têm algo fun-
damental em comum. Contudo, para nossa análise, não bastará identificar apenas a temática
comum das duas histórias. Há mais para ser feito. Para podermos identificar o que há de ideo-
lógico na representação do malandro em “A grande família”, faz-se necessário que compare-
mos esses dois episódios – representativos do tratamento da personagem em toda a temporada
– um pouco mais cuidadosamente.
A comparação, porém, com intuito de evitar o risco de repetir desnecessariamente a
análise empreendida para cada episódio em particular, não deverá ser exaustiva; bastará,
assim, tecer comentários gerais que, além de identificar a existência de um padrão na repre-
sentação da personagem, funcionarão como ponto de partida para nossa conclusão a respeito
dessa representação.
Dessa forma, tendo a malandragem como tema principal, é interessante notar, malgra-
do suas diferenças específicas que tornam cada história singular, que ambas se assentam sobre
a mesma estrutura fundamental.
Se no episódio de 20/09/2007 a estrutura básica pode ser reduzida ao par semântico
dificuldade vs. solução, no episódio de 27/09/2007 ela reduz-se a fracasso vs. êxito. Como
vimos, porém, em última análise, dificuldade e solução podem ser subsumidas na categoria,
mais geral, fracasso e êxito, de sorte que as duas histórias apóiam-se sobre a mesma estrutura
fundamental. Ora, sendo a descontinuidade entre os termos constituintes do par semântico a
geradora do sentido, fica fácil de compreender o porquê o sentido dos dois episódios, apesar
de histórias diferentes, revelam-se o mesmo. Examinemos com mais detalhes.
Em ambos os episódios, a personagem parte de uma situação de fracasso/dificuldade e,
temporariamente, alcança êxito/solução através das artimanhas que executa. Entretanto, sem-
pre é levada de volta a situação de fracasso de onde havia partido, ironicamente, pela mesma
artimanha que lhe garantira êxito temporário. É interessante notar, também, que esse caminho
175
de volta ao fracasso é realizado nos episódios pela revelação. Essa, sempre dividida em partes
em que uma delas é sempre ameaça de revelação é responsável por impedir que a perso-
nagem mantenha o êxito conseguido e, como vimos, a revelação (ou a possibilidade de reve-
lação) está sempre vinculada à própria artimanha, o que demonstra assim a ineficiência desse
procedimento, visto que ele próprio contém o elemento que o anula.
A revelação efetiva é sempre feita a alguém com poder de punir a personagem. No
caso do episódio de 20/09, a personagem a quem cabe esse papel é a esposa Bebel: a desco-
berta de todas as artimanhas podem levar ao fim do casamento e arruinar as esperanças de
Agostinho de fazer parte efetiva de uma família. Em “A bala perdida” levado ao ar na se-
mana seguinte são o soldado Bastos e a comunidade (como personagem coletiva) as perso-
nagens capazes de punir Agostinho: fica a cargo do soldado levar Agostinho à prisão, enquan-
to a comunidade é responsável por repudiar sua candidatura a presidente da associação.
A despeito das diferenças superficiais, num nível mais profundo, as punições revelam-
se como metáforas para a mesma situação. Do mesmo modo que a possível punição de Bebel,
a do soldado Bastos também significaria para a personagem o esgotamento da possibilidade
de se integrar à ordem (fim último que a personagem persegue): ir a prisão tira-o da condição
intersticial de malandro para colocá-lo na condição de criminoso (afinal seria preso por furto),
além disso, a condenação criminal vedar-lhe-ia a possibilidade de constituir uma família nos
moldes tradicionais ao impedir-lhe de vivenciar a rotina familiar diária.
O mesmo ocorre com a punição de Bebel e a punição da comunidade, que metafori-
camente, mostram-se semelhantes. Para Agostinho, fazer parte da ordem significa ocupar um
lugar como o de Lineu. Sendo assim, ser pai de família (como Lineu) e ser o presidente da
associação dos moradores do bairro (cargo de Lineu) significam sua admissão para a ordem
(familiar e social). Desse modo, ao ser-lhe tirada essa possibilidade, tanto no caso de Bebel
quanto no caso da associação, o malandro é colocado para fora da ordem, situação essa que
interferiria em sua própria condição de malandro, uma vez que viver entre ordem e desordem
é o que o constitui. Contudo, uma diferença entre elas: enquanto a punição de Bebel, caso
fosse realizada, significaria sua exclusão definitiva da ordem, a punição de ser repudiado co-
mo candidato à presidência da associação o é capaz de tirá-lo completamente da ordem,
dado que ele continua parcialmente integrado à ordem familiar. Em outros termos, embora a
rejeição da comunidade impossibilite que ele integre-se à ordem, não lhe impede a existência
intersticial devida a sua integração parcial na ordem familiar.
É interessante notar também que, em nenhum dos dois episódios, a personagem sofreu
de fato as punições severas (perda da família diante da possibilidade da separação conjugal e
176
ir para a prisão sob a acusação de furto de um automóvel) trazidas, como possibilidade, por
suas próprias artimanhas. Isso nos demonstra que a personagem tem um trajeto circular, ou
seja, do mesmo modo que não consegue avançar em seu projeto de fazer parte da ordem, tam-
bém não enfrenta uma situação de fracasso maior do que aquela de onde partira. Agostinho é
uma personagem que é presa à sua posição pelo mesmo elemento que, ao mesmo tempo em
que promete levá-lo à condição aspirada, também o ameaça de punição rígida. Com isso, entre
a promessa de êxito e a ameaça de derrota total, a malandragem, por trazer a personagem
sempre ao seu ponto de partida, é representada como elemento ineficaz, porém sempre traz
em si o risco do fracasso absoluto.
Poder-se-ia dizer que a personagem é presa a sua situação inicial de fracasso mais pela
sua condição de personagem-tipo do que pelo tratamento que recebe no seriado. Ser uma per-
sonagem-tipo, com efeito, contribui para que suas características não mudem ao longo da nar-
rativa, entretanto não impede que ela logre sucesso através de suas ações, ou seja, embora sua
condição de fracasso mude, suas características permanecem as mesmas (como Pedro Mala-
sartes).
Além de conseguir evitar a punição severa em ambos os episódios (e, na verdade em
todos os episódios nos quais usa sua malandragem), outro ponto em comum consiste no fato
de que, nos dois episódios, o escape do castigo rígido é efetuado por meio de relações perso-
nalistas. No caso de “A bonequinha do papai”, Agostinho é perdoado no momento em que
Bebel, dando-se conta de seu bom coração, deixa de vê-lo como alguém que usou o nascimen-
to da própria filha como pretexto para obter vantagens para si e passa a -lo como pai amo-
roso. Com relação a “A bala perdida”, o perdão do soldado Bastos é obtido por meio da inter-
venção de Marilda, com quem estava flertando. De um modo ou de outro, são as relações pes-
soais baseadas em sentimentos que fazem com que a personagem obtenha um julgamento que
lhe é favorável: Agostinho livra-se da perspectiva de ser severamente condenado por suas
ações pelo seu bom coração e por meio das relações personalizadas e familiares, encarnando
assim, em ambos os episódios o homem cordial de Holanda (1995).
Nos episódios analisados, a sagacidade ineficaz revela uma malandragem às avessas,
Agostinho é representado como malandro-mané. Tanto pelos aspectos visuais, como pelas
artimanhas desastradas ou pela submissão à esposa, Agostinho adquire aspectos de bufão. Sua
malandragem nos episódios é representada como malandragem burlesca. Se o episódio de
20/09/2007 (A bonequinha do papai) beira ao pastelão por sua insistência na questão dos con-
vites para apadrinhamento ou pelo ridículo da situação da personagem que se empenha em
conseguir dinheiro para o resgate do boneco que lhe fora seqüestrado, no episódio de
177
27/09/2008 (A bala perdida) o caráter de pastelão é assumido plenamente, tanto pela persona-
gem que, da primeira à última seqüência, é assim retratada, quanto pelos motivos musicais
que revestem a história, não nos esquecendo do próprio percurso narrativo.
Assim, ao ser retratado como bufão em ambos os episódios, não é o caso de dizer que
Agostinho provoque o riso com suas armações; Agostinho é o alvo do riso, tanto pelas suas
artimanhas desastradas e sua esperteza desajeitada quanto pelo seu excêntrico aspecto visual:
não se ri com o malandro, se ri do malandro.
Porém, além de sua existência intersticial, outro aspecto de malandro lhe é preservado:
nos dois episódios analisados, Agostinho é uma personagem solitária. Não obstante estar par-
cialmente inserido na ordem familiar (sua condição de cunhado/genro não lhe garante posição
permanente na família), ao observar o percurso narrativo da personagem nas histórias analisa-
das, percebe-se que esse percurso põe-se em conflito com as demais personagens, sendo que
no caso do episódio de 20/09/2007, as revelações de suas armações ocorre por meio da parti-
cipação de todas as personagens do episódio (com exceção de Josi), e no episódio de
27/09/2007, a condição que lhe garante êxito significa intranqüilidade para a comunidade en-
quanto personagem coletivo.
Por fim, a análise dos episódios mostrou uma personagem em conflito: apesar de sua
posição límbica, de sua condição de não pertencer plenamente à ordem ao mesmo tempo em
que nela transita, Agostinho quer integrar-se. Suas ações e artimanhas nos episódios tinham
fim último de se mostrar como pai capaz de prover a filha daquilo que fosse necessário ou de
se colocar cidadão responsável e preocupado com o bem estar da comunidade. Desse modo,
atingir o objetivo de fazer o curso ou de eleger-se presidente da associação serviriam para a
personagem como sinal de objetivo alcançado, em outros termos, funcionaria como sinal de
que finalmente alcançou o pertencimento à ordem que sempre aspirou.
Entretanto, por buscar esses objetivos através da malandragem, ou melhor, ao tentar
ingressar na ordem através da desordem, Agostinho torna-se prisioneiro de si mesmo, man-
tém-se refém de uma situação por ele mesmo criada. Entretanto, a ele não é dada nenhuma
alternativa, afinal, a malandragem, ainda que caricata, é o que o constitui.
6. Conclusão
179
Malandragem e ideologia em “A grande família”
Com o objetivo de analisar os aspectos ideológicos na representação do malandro no
programa de televisão “A grande família”, percorremos um caminho interdisciplinar que con-
tou com aportes teóricos provindos da sociologia, antropologia, filosofia e teoria literária,
todos esses conjugados ao saber comunicacional que coordenou os subsídios advindos dessas
diferentes ciências.
A opção metodológica pelo uso de diferentes disciplinas revelou-se apropriada para o
esclarecimento de uma questão de interesse da comunicação, enquanto saber científico, e dos
estudos da cultura. Portanto, com intuito de finalizarmos a reflexão sobre a ideologia subja-
cente na representação do malandro e da malandragem no programa de televisão em questão,
julgamos essencial que retomemos alguns dos principais pontos discutidos neste trabalho.
Como ponto de partida, realizamos uma discussão de caráter epistemológico que pro-
curou delimitar o conceito de ideologia com o qual trabalharíamos. Dizemos “delimitar” por
compreendermos e aceitarmos, como admitido em nossa apresentação, a complexidade do
conceito como algo que lhe é inerente, ou seja, o próprio fenômeno que tenta abranger é, em
si, intricado e contraditório. Admitindo a validade de outras definições, não foi nossa preten-
são alcançar uma que fosse livre de imperfeições tarefa, aliás, jamais realizada pela própria
natureza do fenômeno –, mas sim estabelecer critérios suficientes que permitissem a manipu-
lação do conceito de modo que fosse útil e coerente ao tipo de reflexão que empreendíamos.
Embora a definição que adotamos para o conceito seja de inspiração marxista, procu-
ramos escapar do economicismo desse pensamento fazendo com que a discussão ultrapassasse
a questão da luta de classes e fosse considerada no âmbito político. Desse modo, a despeito de
o conceito de ideologia ainda comportar lugar para a questão classista, imaginamos que sua
condição no capitalismo tardio exige que seu foco seja mudado para a questão da integração.
Com isso, nesse trabalho, entendemos ideologia como força de integração que, constituindo-
se como pseudophysis, oblitera a concepção de outras possibilidades de existência social im-
pedindo, assim, a emancipação humana.
Vinculada a essa concepção, o exame da ideologia no capitalismo tardio buscou avan-
çar a discussão acerca da ideologia como integração. Dessarte, concebeu-se o capitalismo
como um projeto em constante crescimento que, alcançando extensão global, passa a cobrir
todo o tecido social, incorporando todos os aspectos da existência, inclusive aqueles que, num
primeiro momento, se mostram antagônicos.
180
É esse movimento de expansão da esfera capitalista à totalidade social que fez com
que fossem absorvidas por ela as esferas da cultura e da comunicação. Sendo cultura e comu-
nicação processos interdependentes, ao afirmar que, com o surgimento da sociedade burguesa,
a história dos meios técnicos de comunicação coincide com o agigantamento de seu caráter
industrial e comercial, afirmamos também a submissão da cultura à lógica do capital, sobretu-
do com o advento dos meios eletrônicos de comunicação. Essa é a evidência cabal de seu
constante crescimento: se antes o capitalismo era um aspecto cultural, figurando assim dentro
do universo da cultura, hoje essa relação se inverte, pois é a cultura que figura dentro do uni-
verso do capital e obedece à sua lógica.
Diante disso, fica fácil perceber qual a relação que se estabelece entre ideologia, co-
municação e cultura. Funcionando como uma das forças integradoras de um sistema, cujo
projeto sempre foi amalgamar tudo e todos, é através dos meios cnicos de comunicação de
massa que se tornam possíveis a conversão da cultura em mercadoria e a difusão dessa ideo-
logia que busca naturalizar e legitimar o capitalismo em sua forma contemporânea. Posto de
outro modo, o crescente caráter de empreendimento comercial dos media faz com que esses se
transformem em campo de luta ideológica, no qual é a ideologia do próprio capital que se faz
dominante.
Dessa maneira, a organização do cinema, da música, do rádio, da internet e da televi-
são como empresas comerciais tem por conseqüência a emergência de uma indústria cultural,
viabilizando a subordinação da cultura à lógica da mercadoria com perspectiva de lucro. Esse
é, aliás, em última instância, a ideologia do sistema. A necessidade de constantes incrementos
nos lucros torna fundamental a participação de todos, fazendo com que aquele que se coloque
de fora seja tratado com desdém e suspeita. E é essa subordinação que faz com que todos os
produtos da indústria cultural sejam, em si, ideológicos.
Diante desse quadro, inspirados pelo pensamento de Marcuse (1973, p. 71), pergunta-
mo-nos o que ocorre com os anti-heróis que, na literatura, representavam uma dimensão irre-
conciliavelmente antagônica à ordem burguesa. O próprio Marcuse fornece uma resposta ao
admitir que esses anti-heróis demolidores não desapareceram com o surgimento da sociedade
industrial, no entanto sobreviveram essencialmente transformados, servindo menos como i-
magens de outro modo de vida do que como aberrações ou estilos da mesma vida, afirmando,
assim, a ordem estabelecida.
Entretanto, falta à resposta de Marcuse uma reflexão mais profunda sobre o que con-
siste essa transformação. Foi essa reflexão que empreendemos ao nos questionarmos sobre a
representação do malandro na produção cultural brasileira.
181
Ser intersticial, não pertencente, portanto, à ordem, o malandro poderia potencialmente
representar essa dimensão irreconciliavelmente antagônica que, ao recusar submeter-se como
força de trabalho – preferindo ganhar a vida por meio de expedientes não previstos e não con-
trolados pelo capital funcionaria como crítica ao modelo dominante ao mesmo tempo em
que apontaria para outras possibilidades de existência.
É importante frisar que nesse trabalho tentamos escapar de concepções moralistas e
moralizantes sobre a malandragem. Buscamos, em nossa análise, ultrapassar a dimensão do
moralmente certo (mesmo porque essa dimensão muitas vezes é ideologicamente condiciona-
da), não na intenção de fazer uma apologia à malandragem enquanto categoria social, mas sim
com o objetivo de compreender qual a significação de sua representação em nossa cultura, de
maneira que pouco importava o quão condenável ou não é a malandragem. Em outros termos,
o que interessava era a compreensão do significado da persistência de heróis malandros nos
mais variados textos de nossa cultura.
Algumas das fontes consultadas apontavam a personagem malandra como proposta de
uma inversão metafórica na qual os dominados, representados pelo malandro, saiam vitorio-
sos ao terem sua esperteza confrontada com o oportunismo inepto de seus dominadores. Por
um lado, porém, essa visão falha em perceber que, ainda que a luta de classes seja um dos
aspectos da ideologia, ela, no capitalismo tardio, é ultrapassada em importância pela questão
da integração social. Por outro, que se considerar, também, que a criticidade das persona-
gens malandras não consegue ultrapassar o vel da linguagem, assim, embora a representa-
ção do malandro possa conter elementos críticos, eles não são capazes de acarretar mudanças
concretas à organização social: o malandro, na verdade, sobrevive apenas como metáfora.
Sendo assim, nosso propósito em analisar a personagem Agostinho de “A grande fa-
mília” constituiu-se, primeiramente, em identificar quais são as características dessa persona-
gem que, comparadas às de outros malandros de nossa cultura, permitem classificá-la como
uma personagem malandra. Por meio de uma tipologia geral das personagens malandras, que
as agrupou em dois grandes grupos (malandros rurais e malandros urbanos), definimos, com
base em algumas das mais importantes personagens malandras de nossa cultura, quais eram as
principais características que compunham essas personagens.
Ao analisar o perfil da personagem foco deste estudo, verificamos que ela compartilha
traços importantes com alguns dos malandros por nós elencados, o que deu condições de con-
siderá-la como tal. Todavia, ao mesmo tempo, algo em Agostinho que faz com que ele
destoe das demais personagens malandras, de forma que, nesse ponto, a análise do modo co-
182
mo a personagem é representada deu condições de compreender o que a difere dos demais
malandros.
A análise de dois episódios da temporada de 2007 revelou que, apesar de a persona-
gem ser de fato um malandro, sua malandragem, diversamente daquela de outras personagens
da cultura brasileira, é uma malandragem burlesca. O modo pelo qual ele é retratado trans-
forma-o em uma caricatura de malandro: o exagero de suas características dá-lhe um aspecto
estapafúrdio que, associado ao seu percurso narrativo no qual, por meio de uma esperteza
débil, é sempre mantido numa posição de fracasso –, faz com que se ria dele, ao invés de se
rir com ele. Sua pretensa sagacidade é retratada como sendo a causadora de seus constantes
fracassos, sendo que, se consegue algum êxito, esse além de insignificante e proveniente,
não de suas artimanhas, mas da ordem a qual o pertence serve apenas para mantê-lo nos
interstícios.
Ademais, diferentemente dos outros malandros, Agostinho é uma personagem que
aspira tornar-se parte da ordem, entretanto o modo pelo qual é apresentado torna-o refém de
um paradoxo ao qual nunca podeescapar, uma vez que sua tentativa de deixar a malandra-
gem e participar da ordem estabelecida é feita através da própria malandragem, que sempre se
mostra ineficiente (e grotesca). Desse modo, num plano mais profundo, os episódios que en-
volvem a malandragem da personagem não funcionam apenas como meio de inculcar com-
portamentos morais aceitáveis ou ridicularizar aqueles que não o são, servem também para
sugerir que todos, inclusive o malandro, devem estar desejosos para integrar-se, entretanto,
para isso devem jogar de acordo com as regras ditadas pelo sistema, sob pena de permanecer
numa posição de limbo social.
Provavelmente o “limbo social” de uma personagem malandra como um Malasartes
ou um Max Overseas não se apresente como alternativa tão ruim, entretanto o limbo ao qual
Agostinho é constantemente condenado é apresentado como sinônimo de escárnio. Desse mo-
do, se a produção acadêmica e cultural acerca da figura do malandro nos anos 60 e 70 confi-
gurou-se como um elogio à malandragem (sobretudo a malandragem dos anos 30), a represen-
tação do malandro encarnada em Agostinho nos anos 2000 consiste num “anti-elogio”.
Com isso, parece não haver muito mais a dizer sobre os aspectos ideológicos da repre-
sentação do malandro em “A grande família” além do que foi dito. No entanto, uma siste-
matização final é necessária para articularmos num todo orgânico as diferentes reflexões que
construíram esse trabalho.
A ideologia presente no capitalismo contemporâneo não se reduz a um Zeitgeist, sua
existência material possibilita sua ação como força de integração. A expansão global do capi-
183
talismo tardio transubstanciou arte e cultura em mercadoria; o alto modernismo não represen-
ta mais a antiga negatividade dos anos 20 e 30, muito menos a arte pós-moderna consegue
alcançar qualquer dimensão antagônica, assumindo, assim, sua condição de pastiche da arte
modernista.
Entretanto, apesar do fato de a ideologia se impor como totalizadora em sua época,
Vianinha ainda via a televisão como um meio democratizador, através do qual podia difundir
seu projeto político-cultural nacionalmente. Acreditava poder trabalhar contra o sistema den-
tro de suas próprias engrenagens. Ironicamente, a realização desse projeto através do seriado
“A grande família” nos anos 70, que passava pela identificação do público com aquela família
televisiva, era também a estratégia do governo militar através de seu plano de integração na-
cional. Desse modo, embora fiel ao que sempre acreditou, Vianinha acabou, desapercebida-
mente, tragado pelo sistema.
A crença na criticidade das personagens malandras que animou artistas e intelectuais
da geração de Vianinha foi, de certa forma, análoga àquela que o dramaturgo tinha com rela-
ção à TV. Não perceberam que o malandro não passava de uma metáfora ambivalente, pois,
ao correr o risco de ser transformado em estereótipo, podia acabar reafirmando a ordem que
pretendia negar. Porém, bem ou mal, tinha a seu favor, ainda que metaforicamente, a possibi-
lidade de antagonismo.
O malandro da segunda versão de “A grande família” sequer serve de pastiche do ma-
landro presente no imaginário nacional e personificado nas mais diversas obras literárias, fíl-
micas e musicais de nossa produção cultural. Sua representação caricata transforma-o num
malandro às avessas. Se aquela malandragem, elogiada nos anos 30 e revisitada, com o mes-
mo espírito elogioso, nos anos 60 e 70, não conseguia promover mudanças de fato, restava-lhe
ao menos a condição de metáfora negativa. Ao malandro de “A grande família” nos anos
2000 nem isso mais resta; transformado no estereótipo caricatural do malandro, a única metá-
fora que lhe é permitida é aquela que se põe em total harmonia, por meio da perigosa inocên-
cia do riso, com a ideologia do capitalismo tardio.
184
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