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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE
GIOVANA CRISTINA ZEN
CONFABULAÇÕES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
A EXPERIÊNCIA E O SABER ÉTICO COMO SABERES DOCENTES
Salvador
2007
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GIOVANA CRISTINA ZEN
CONFABULAÇÕES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
A EXPERIÊNCIA E O SABER ÉTICO COMO SABERES DOCENTES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Educação e Contemporaneidade
da Universidade do Estado da Bahia - UNEB
como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Stella Rodrigues dos
Santos.
Salvador
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
ELABORAÇÃO: Biblioteca Central da UNEB
BIBLIOTECÁRIA: Neuza Tinôco Melo Nunesmaia – CRB-5/229
Zen, Giovana Cristina
Confabulações na formação de professores : a experiência e o saber ético
como saberes docentes / Giovana Cristina Zen. _ Salvador: [s.n.], 2007.
166 f. : il.
Orientadora: Stella Rodrigues dos Santos
Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Campus I.
Departamento de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade
Inclui referências e anexos.
1. Professores – Formação. 2. Professores - Ética profissional. 3. Ensino –
Aspectos morais e éticos. I. Santos, Stella Rodrigues dos. II. Universidade do
Estado da Bahia. Campus I. Departamento de Educação. Programa de Pós-
Graduação em Educação e Contemporaneidade.
CDD: 371.11
TERMO DE APROVAÇÃO
Giovana Cristina Zen
Confabulações na formação de professores: a experiência e o saber ético como
saberes da docência
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Educação, na Universidade do Estado da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
_______________________________________________
Profa. Dra. Stella Rodrigues dos Santos (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
_______________________________________________
Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
_______________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Fonseca de Carvalho
Universidade de São Paulo (USP)
_______________________________________________
Profa. Dra. Sandra Regina Soares
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
- Marceeeeelô!
- Diga Júlia!
- Você sabe qual é a melhor coisa do mundo?
- Olha Júlia! Eu acho que são os filhos.
- Tá errado, tá errado!
- Tá errado? Qual é então?
- Ah Marcelo! A melhor coisa do mundo...
É VIVER!
Aos personagens dessa história, meus amores,
... porque, fundamental mesmo, é o amor.
AGRADECIMENTOS
Certa feita estava o coelho concentrado, diante de seu notebook, a escrever sua
dissertação. De repente chega um gato do mato e pergunta:
- Coelho! Qual seu caso?
- Tô escrevendo minha dissertação.
- Oh! Que interessante! E sobre o que é?
- Comida de gato do mato metido à besta!
- Como é?
- É isso mesmo! Vamos ali naquela caverna que eu te mostro.
Dali a uns 10 minutos volta o coelho para o seu trabalho lambendo os beiços.
De repente chega uma hiena e também se interessa pela atividade do coelho:
- Coelho! O que você está fazendo aí?
- Minha dissertação.
- É mesmo?! Do que se trata?
- Comida de hiena enxerida.
- Como?
- É isso! Vamos ali naquela caverna que eu te mostro.
Passados 10 minutos, volta o coelho alisando a barriga de satisfação.
Por fim chega uma raposa que faz a mesma pergunta e novamente o coelho
responde:
- Minha dissertação é sobre comida de raposa frouxa. Vai ali na caverna dar uma
olhadinha.
Quando lá chegou a raposa encontrou um forte leão que repousava satisfeito no
escurinho da caverna. O coelho então arremata:
- Tá vendo aí! O mais importante não é o que você estuda, mas quem lhe orienta.
Stella
Você tem a mesma força humanizadora que tem uma Fábula.
E eu não poderia lhe agradecer de outra forma.
Ao meu pai, pelo seu amor incondicional. Queria ter você por perto pra viver esse
momento comigo.
A minha mãe, por suas velas e rezas, por seu orgulho e admiração, e principalmente
por me lançar ao mundo acreditando que eu poderia conquistá-lo.
Aos quatro irmãos, pelo desejo de me ter. E aos agregados também, é claro!
A João e Pedro, pelo prazer de ter vocês na minha vida.
À Família Faria, pelo silêncio que respeita e pela palavra que acolhe.
Aos integrantes da banca examinadora, Verbena, Zé Sérgio e Sandra, pelos
alinhavos, ajustes e emendas. A tessitura não seria a mesma sem as contribuições
de vocês.
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Educação e
Contemporaneidade, em especial à Cristina D´Avila, Elizeu Clementino de Souza,
Jacques Jules Sonneville e Lourdinha Ornellas.
Aos colegas da turma, principalmente aos da Linha 2, que reviveram comigo a
experiência de ser aluna novamente. Foi um prazer conhecê-los.
Aos meus alunos queridos, que me colocam cotidianamente num lugar que adoro
estar, o de professora. A vocês todo o meu carinho e respeito.
Por fim, um agradecimento muito especial aos amigos. Quero compartilhar com
vocês esse momento tão especial da minha vida. A Carmencita por todos os dias
dos namorados, a Maria Eugênia pela laje que lhe prometi, a Wal e Dudu pela casa
sem campainha pra visitar, a Virgínia e Waldô pelo doce de leite, a Sarah pelas
regras de pontuação e pela afilhada maravilhosa, a Jonei pelas confidências, a Bete
pelas rezas pra Nossa Senhora Desatadora de Nós, a Maíza pelo sol, pelo mar e
pela presença, a Fran pela sombra do coqueiro, a Neuri pela casa de Patrícia em
Batalha, a Cândida, Clara e Tadeu pela vida que sempre nos reencontra, a Mônica
pela intensidade do viver, a Tina pelas voltas completas que a vida dá, a Lila, Liu e
Sil pela cumplicidade do olhar. A Paulinho, Zé, Márcea, Chico e Mute pela deliciosa
tabela.
Uma coisa é pôr idéias arranjadas,
outra é lidar com país de pessoas,
de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias ...
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
RESUMO
Este trabalho busca analisar os sentidos atribuídos por professoras em formação às
situações dilemáticas de natureza ética, presentes nas relações que se estabelecem
no exercício docente. Para tanto, foi realizada uma pesquisa-ação, mediada por
Fábulas, com dois grupos de concluintes do Curso Normal Superior, no decorrer do
primeiro semestre letivo de 2006, em um Instituto Superior de Educação, localizado
na cidade do Salvador/Ba. Para compor o quadro teórico da pesquisa, fez-se uma
retomada histórica dos sentidos e deslocamentos do conceito de Ética em diferentes
momentos e contextos; uma revisão bibliográfica em torno das produções
concernentes à formação de professores, principalmente aquelas que relacionam
ética e experiência no contexto das práticas educativas; por fim, uma incursão na
literatura para compreender as características sócio-culturais da Fábula e sua
fecundidade para a metodologia desse estudo. Os resultados mostraram posições
ancoradas em um individualismo exarcerbado que conduzem à precarização das
relações subjetivas com forte apelo à competitividade frente à centralidade do
trabalho. Além disso, foram recorrentes os apelos a fundamentos religiosos que
cristalizam o bem e o mal e negam sua complementariedade na vida cotidiana. No
entanto, quando desafiadas a desnaturalizar posições e práticas cristalizadas no
senso comum e assumir o confronto próprio do espaço público, tiveram as
professoras a oportunidade de ampliar suas leituras e pôr em causa a formação que
receberam. Isto sugere mudança de perspectiva das instituições formadoras no
sentido de incluir na formação de professores o saber de si e do outro, das crenças e
valores que se expressam na trama experiencial do ato educativo, entendido, no
âmbito desse trabalho, como um saber ético.
Palavras-chave: Formação de professores; Docência; Experiência; Saber ético.
ABSTRACT
The present work searches to analyze the sense, imputed by teachers during their
formation process, of ethics dilemmatic situations presented in the docent relational
activities. I proposed an action-research based on fables, involving two groups of
graduating teachers of the first semester 2006, at Curso Normal Superior
(Pedagogical College) in Salvador- BA. To compose the theoretical approach of the
research, I did a historical study about the different senses and displacements of the
ethic concept within different moments and contexts; I also made a bibliographical
revision of the research production concerning teachers formation, specially those
which make relations between ethics and experience in the context of educational
practice; To end this work, I did an incursion through literature to try to understand
the socio-cultural characteristics presented in the fables and their fecundity to the
methodology of this research. The results showed positions anchored in a highly
individualistic character which conducts to the precarisation of subjective relations,
with a strong competition sense attributed to work relations. Beyond this, religious
beliefs were recurrent, putting good and evil as natured concepts, what denies their
complementarity in every day life. When the teachers were challenged to question
their positions and practices, based on common sense, and to assume the confront
proper to public space, they had the opportunity to broad up their comprehension of
the problem and to question their formation process. This suggests the necessity of
change in the perspective of the pedagogical institutes at College level to include self
knowledge and knowledge related to social relations, and also to discuss the beliefs
and values which are expressed in the experience net of educational act,
understood, within this work, as ethic knowledge.
Key-words: Teacher formation; Experience; Teaching; Ethic knowledge.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
1 ÉTICA : CONCEITO, SENTIDOS E DESLOCAMENTOS....................................21
1.1 SIGNIFICADO ETIMOLÓGICO...........................................................................22
1.2 A ÉTICA E SEUS FUNDAMENTOS....................................................................24
1.2.1 Entre desejos e fins, escolhas e meios..............................................24
1.2.2 Entre deus e o diabo.............................................................................34
1.2.3 Entre a racionalidade e o progresso...................................................37
1.2.4 Entre o desalento e a esperança.........................................................46
2 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES E O SABER ÉTICO.....................................51
2.1 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO BRASIL ..............................................53
2.2 A DIMENSÃO ÉTICA DO EXERCÍCIO DA DOCÊNCIA......................................59
2.3 O SABER ÉTICO COMO UM SABER DOCENTE...............................................64
3 A TRAMA FABULOSA DA PESQUISA.................................................................78
3.1 AS BASES DA CONSPIRAÇÃO..........................................................................78
3.2 FABULOSO INSTRUMENTO DE PESQUISA.....................................................81
3.3 TRÊS ENCONTROS FABULOSOS.....................................................................86
3.3.1 O cenário...............................................................................................86
3.3.2 Os personagens....................................................................................89
3.3.3 Cena 1....................................................................................................92
3.3.4 Cena 2....................................................................................................99
3.3.4 Cena 3..................................................................................................105
4 CONFABULAÇÕES DE TRAMAS DILEMÁTICAS.............................................109
4.1 CADA UM POR SI E NINGUÉM POR NÓS.......................................................110
4.2 PRA FRENTE É QUE SE ANDA........................................................................114
4.3 A VIDA DÁ VOLTAS COMPLETAS...................................................................117
4.4 A NATUREZA É SÁBIA......................................................................................122
4.5 NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO...........................................126
ARREMATE FINAL..................................................................................................134
REFERÊNCIAS........................................................................................................137
ANEXOS..................................................................................................................143
11
INTRODUÇÃO
Este estudo busca analisar os sentidos que professoras em formação atribuem às
situações dilemáticas, de natureza ética, fundantes da tomada de decisões nas
práticas educativas da sala de aula, que emergiram no decorrer da pesquisa-ação,
através de intervenção pedagógica mediada por fábulas conhecidas e utilizadas na
educação de crianças das séries iniciais. E, a partir dessa análise, problematizar a
formação inicial de professores quando reduzida às tendências que incentivam a
mera instrução, criando um abismo no que concerne às lacunas referentes ao saber
ético entendido como saber docente.
A preocupação inicial do estudo emerge da minha experiência como educadora,
atuando ora como professora, ora como assessora pedagógica. Nesse trajeto não
foram poucas as oportunidades de levantar questões sobre decisões de professores
no enfrentamento de acontecimentos engendrados no seu cotidiano. Dentre as
inúmeras situações vividas que exigiram escolhas, destaco dois episódios que
marcaram a minha inserção nos estudos sobre a ética.
O primeiro episódio: uma escola situada em um bairro de classe média-alta, numa
capital brasileira, séc. XXI, uma sala de aula, meninos e meninas, uma professora.
A turma era composta por 16 crianças de 4 anos e por Lucas
1
, portador da Síndrome
Asperger
2
. Sempre que contrariado ou desafiado a realizar atividades além da sua
possibilidade, ele corria pela sala, empurrava os colegas e gritava. A professora,
com formação superior e com 15 anos de experiência, decidiu convocar os alunos a
falar para Lucas o que sentiam e achavam do seu comportamento na escola. Para
tanto, solicitou que todos ficassem em roda e colocou o menino ao seu lado, para
ouvir o que seus colegas tinham a dizer. Em seguida, registrou as opiniões em um
cartaz para ficar exposto na sala de aula.
1
O nome da criança foi alterado para preservá-la.
2
Na década de 1940 a Síndrome de Asperger (AS) foi oficialmente reconhecida no Manual de Diagnóstico e
Estatísticas de Desordens Mentais pelo pediatra vienense Hans Asperger. Esta síndrome caracteriza-se
principalmente pelo isolamento social, com extremo egocentrismo, que pode incluir a falta de habilidade para
interagir com seus pares, falta de desejo de interagir, apreciação pobre da trança social e respostas socialmente
impróprias.
12
Na condição de assessora pedagógica acompanhei o episódio, relatado pela
coordenadora. Tal acontecimento me remeteu para o final da década de 80. Pensei
nos meus alunos, na minha relação com eles, no que fiz e no que deixei de fazer.
Pensei na formação pessoal e social daquelas crianças e da minha responsabilidade
sobre isso. Quantas vezes não devo ter feito algo parecido?
O segundo episódio, meses depois: um Instituto de Formação de Professores, um
palestrante, um evento.
A proposta consistia em organizar um evento para discutir o tema Ética.
Coordenadores e professores das Licenciaturas e do Curso Normal Superior de um
Instituto de Educação reuniram-se com a finalidade de promover uma reflexão a
respeito da Ética. Durante o evento, os alunos participaram de discussões que
favoreceram uma aproximação ao próprio conceito de Ética. Além disto, também
foram provocados a refletir acerca das atitudes e valores presentes nos diferentes
contextos sociais, incluindo aí o cotidiano da escola.
Nesse encontro deparei-me com as representações desses estudantes, na maioria
professoras, sobre o tema em questão. Na ocasião, percebi o quanto era confuso o
entendimento sobre as questões ali em debate. As representações das professoras
situavam-se entre a necessidade de um conjunto de normas para educar “os
selvagens” e de mecanismos de repressão para os que não se submetem às normas
estabelecidas pela instituição escolar. Decorria desta compreensão um mal-estar
nas relações cotidianas da escola pelo fato de não se entender as razões do
assujeitamento de uns e a transgressão de outros. Naquele momento emergia a
seguinte pergunta: Em que momento da sua formação tiveram essas professoras a
oportunidade de refletir sobre os dilemas de natureza ética que emergem de suas
práticas educativas?
Os dois episódios relatados remetem à necessidade de aprofundamento de estudos
que articule Ética e Educação. A professora de Lucas, quando questionada sobre o
ocorrido em sua sala, afirmou que considerava sua intervenção um procedimento
adequado, que fez aquilo pelo “bem de todos.” Não há como condenar a professora
em sua ação sem se pensar no espaço que a discussão sobre a Ética tem ocupado
nos programas de formação inicial e continuada.
13
Apesar da situação extremamente constrangedora a que foi submetido, Lucas não
foi a única personagem desta história; também compunham a cena as demais
crianças, que convocadas a julgar o colega, desempenharam o papel de também
condená-lo, sob a legitimação da professora.
Provavelmente boa parte dos motivos que levaram a professora a promover tal
situação encontra explicação em sua história de vida, na sua formação pessoal e
social. Mas, se tratando de um profissional da educação, não há como ignorar que
para exercer a docência, a mesma foi marcada por práticas formativas. Que
oportunidades teve essa professora de refletir sobre situações semelhantes a que
viveu com seu aluno?
Atualmente, os programas de formação de professores, desde as orientações
apresentadas nos documentos oficiais, até os que embasam a seleção de conteúdos
e princípios para nortear as práticas formativas, têm privilegiado o conhecimento
instrumental em detrimento ao estudo filosófico, sociológico, histórico e
antropológico da educação.
Sem dúvida, nas últimas duas décadas, há uma mobilização crescente em torno da
formação de professores, o que trouxe efetivas contribuições ao desenvolvimento
profissional dos educadores. No entanto, as orientações oficiais, baseadas em
competências e habilidades e acolhidas acriticamente pela maioria dos institutos de
formação, têm ignorado a compreensão de que a ação educativa é essencialmente
uma prática relacional e coloca um saber como a Ética à margem dos processos de
formação dos professores. Parte-se do pressuposto de que não será um conjunto de
técnicas do bem ensinar que poderá promover o espaço de reflexão sobre as
decisões que um educador precisa tomar na efetiva prática cotidiana. A atividade
docente, como as demais atividades humanas, obriga o professor a escolher e,
considerando que não há escolha inocente, não há como negligenciar a
obrigatoriedade da escolha e as implicações disso na formação do professor.
Posto isso, tanto os episódios aqui relatados quanto as indagações decorrentes da
minha reflexão impulsionaram o interesse em elucidar questões que relacionem ética
e formação de professores. Some-se também o lugar que o discurso sobre a ética
tem ocupado nos documentos oficiais. Os objetivos a serem alcançados no que
14
tange a normas, valores e atitudes, apontados nos atuais Parâmetros Curriculares
Nacionais, em todos os seus segmentos, têm por base as orientações forjadas no
contexto das reformas educacionais espanholas. As orientações para incluir, nos
currículos escolares, normas, valores e atitudes, são as seguintes:
[...] nos Objetivos Finais referentes a valores, normas e atitudes, os
resultados esperados da aprendizagem dos alunos com freqüência
aparecerão formulados mediante os seguintes verbos: COMPORTAR-
SE (de acordo com), RESPEITAR, TOLERAR, APRECIAR,
PONDERAR (positiva ou negativamente), ACEITAR, PRATICAR, SER
CONSCIENTE DE, REAGIR A, CONFORMAR-SE COM, AGIR,
CONHECER, PERCEBER, ESTAR SENSIBILIZADO, SENTIR,
PRESTAR ATENÇÃO A, INTERESSAR-SE POR, OBEDECER,
PERMITIR, ACEDER A, PREOCUPAR-SE COM, DELEITAR-SE
COM, RECREAR-SE, PREFERIR, INCLINAR-SE A etc. (COLL, 1998,
p. 166)
Orientações dessa natureza povoam os cursos de formação de professores por todo
o país, seja na modalidade inicial ou continuada. Também não faltam oportunidades
para que os professores sejam convocados a implementar ações pedagógicas no
sentido de incutir valores nos seus alunos. A questão que se coloca não está
relacionada apenas à legitimidade desses valores, mas principalmente, às
possibilidades dos mesmos serem ensinados através de uma mera
instrumentalização, ou seja, como um saber cristalizado e não como dilemas
relacionais.
Os programas de formação de professores, em grande parte, fortemente
influenciados pelo pensamento tecnocrático, restringem-se a discutir apenas a
relação dos alunos com o conhecimento, mas se eximem da responsabilidade de
analisar as ações educativas como uma prática eivada de valores, como uma
relação entre seres sociais diante do conhecimento e do mundo, reduzindo a
educação a um conjunto de técnicas com o fim de se alcançar metas propostas por
interesses extrínsecos aos sujeitos concretos da educação.
Para compreender a Ética como uma base fundante das relações do homem com o
outro, é preciso um aparato conceitual filosófico, como supõe Tugendhat (2000) e
isso exige tempo e coragem porque seus resultados não poderão ser quantificados
em índices estatísticos. Salta de imediato a pergunta: qual o fim desejado quando se
escolhe colocar a Ética à margem dos processos educativos? Se concordarmos com
15
Aristóteles, quando relaciona desejos e fins, escolhas e meios, temos que admitir
que uma educação cujo fim seja a instrução, os meios estarão sempre ancorados
em uma determinada pedagogia que muito se diferencia de outra que tem como fim
uma educação mais ampla dos sujeitos e não apenas sua instrução.
A decisão de excluir a Ética dos currículos de formação não é apenas de um
Secretário de Educação ou de um Diretor Acadêmico, mas da elite responsável
pelas políticas públicas e pelos princípios que deverão formar homens para dirigir os
negócios de uma dada sociedade. Portanto, políticas orientadas por escolhas
racionais e conscientes de seus fins, logo expressam posição ideológica e política.
Compreender então tais posições exige uma retomada histórica que possibilite o
encontro das raízes que foram sendo forjadas nas tramas constitutivas das
sociedades em tempos diversos. No Brasil, por exemplo, a história da educação é
farta em exemplos que mostram os fundamentos do ensino da Ética sobre a égide
da moral religiosa. Temos como resultado uma formação baseada na heteronomia
moral. Com o declínio da fundamentação religiosa, as normas morais baseadas em
preceitos cristãos perdem lugar para os interesses do estado, fazendo surgir a
Educação Moral e Cívica que deveria expressar e imprimir os ideais civilizatórios de
ordem e progresso, sobre a égide de governos déspotas.
Frente às mudanças que vêm ocorrendo no mundo pós-guerra, desde a metade do
século XX, é perceptível o declínio dos alicerces que sustentaram o funcionamento
dos referentes reguladores da vida em sociedade, a exemplo do Estado-Nação, a
idéia de ordem e progresso e a instituição familiar. Nesse cenário de mudanças os
sistemas educacionais de todo o mundo vêm sofrendo modificações. No Brasil,
desde a promulgação da Lei 9.394/96 que estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), as reformas não cessam de elaborar proposições,
redimensionar as organizações de ensino e reorientar os currículos, ecoando
profundamente na formação dos professores.
No âmbito dessas proposições, a discussão em torno do ideal humanista de
educação, que amplia a compreensão sobre o humano, está à margem da formação
de quem, diariamente, lida com a formação de jovens e crianças. O espaço para as
reflexões em torno da conflitualidade própria da prática educativa está reduzido a
16
prescrições normativas explicitadas em objetivos ditos atitudinais, o que esvazia a
praxis formativa de reflexões necessárias à formação pessoal e profissional do
professor.
Entende-se que a forma de ensinar, destituída do debate sobre as intenções
educativas que norteiam a seleção e a hierarquização dos conteúdos escolares,
acaba por dar autonomia à técnica, reintroduzindo assim a formação de professores
no âmbito do tecnicismo, há muito criticado. A forma que essa operação assumiu
nas práticas concretas foi a fusão da tecnocracia e da burocratização do ensino,
travestidos de construtivismo. Neste império absoluto da técnica não há lugar para a
discussão acerca dos conflitos que surgem das relações entre os sujeitos e as
tensões que emergem nos momentos em que os mesmos são obrigados a fazer
escolhas. A possibilidade de refletir sobre essas questões é sempre negligenciada,
também a própria formação pessoal e profissional dos professores e
conseqüentemente de seus alunos.
Nesse sentido, a indagação acerca das relações que o professor estabelece com o
saber ético na sua prática educativa justifica-se no fato de que ele está inserido
numa coletividade humana estruturada por relações sociais em que é obrigado a
escolher frente aos dilemas vivenciados no espaço da sala de aula. O professor tem
o direito de vivenciar na sua formação experiências que lhe forneça o conhecimento
necessário para refletir sobre as suas escolhas, sobre o seu agir e sobre as decisões
que precisa tomar frente a um fazer fundado no conflito, porque trata-se de relações
entre pessoas portadoras de valores.
Com efeito, considerando as lacunas existentes no processo de formação que
privilegie a reflexão acerca da dimensão ética inerente às práticas educativas, como
os professores se situam no seu cotidiano frente às situações que exigem escolhas?
Responder a essa questão supõe primeiro tecer algumas considerações sobre as
mudanças ocorridas nos tempos atuais e suas implicações na redução do valor da
vida à mercadoria e ao imperativo do consumo. Segundo, é necessário o
enfrentamento dos sentidos e deslocamentos do conceito de Ética em diferentes
momentos e contextos históricos, até o alcance dos problemas éticos na
contemporaneidade. Tal percurso supõe uma revisão bibliográfica em torno das
17
produções concernentes à formação de professores nas últimas décadas,
principalmente aquelas que relacionam Ética e experiência no contexto das práticas
educativas.
Problematizar os discursos e as práticas formativas no que tange aos valores
subjacentes às propostas de formação e ao mesmo tempo desenvolver uma
experiência focada na reflexão ética no campo da formação inicial exige a inserção
do problema no cruzamento de, ao menos, três eixos de reflexão: a formação de
professores na sociedade atual, a filosofia moral e a pesquisa-ação como um modo
fecundo de articular pesquisa, intervenção pedagógica e análise.
Posto assim, para o alcance do intento aqui anunciado foi preciso entrecruzar
subsídios teóricos dos três eixos referidos anteriormente. No campo da filosofia
moral foi realizada uma retomada histórica dos sentidos e deslocamentos do
conceito de Ética no âmbito de diferentes correntes, a exemplo de Aristóteles,
Epicuro, Santo Agostino, São Tomás de Aquino, Rousseau e Kant. Com Marshal
Berman (1987) e Zigmunt Bauman (1997, 1998, 2001, 2004) buscou-se a
compreensão das reconfigurações da sociedade contemporânea e suas implicações
para a educação dos homens. Some-se ainda a compreensão de espaço público em
Hannah Arendt (1997) no sentido de inserir a prática formativa nessa esfera.
Para o conhecimento sobre as produções concernentes à formação de professores,
as referências vêm de Antônio Nóvoa (1992, 1995a, 1995b, 1999, 2002), Maurice
Tardif (2005a, 2005b), Donald Shön (1997), Selma Garrido Pimenta (2005) e outros.
Sobre o saber ético como saber docente foram valiosas as contribuições de José
Sergio Fonseca de Carvalho (2004), Julio Groppa Aquino (2000), Ilma Passos Veiga
(1998, 2005), Terezinha Rios (2001) e Paulo Freire (2003).
Por fim, do ponto de vista metodológico, a escolha recaiu na abordagem da ênfase
qualitativa, que busca compreender os condicionantes sócio-históricos que
influenciam a formação do professor e procura dar relevo aos sentidos que vão
sendo explicitados no decorrer do processo, sem descuidar do suporte teórico
necessário às analises pretendidas. Para Minayo (1994), uma pesquisa de caráter
social supõe conhecimento teórico, domínio do conjunto das técnicas e capacidade
crítica do pesquisador.
18
Desde a emergência deste estudo, a motivação inicial impulsionou à realização de
uma pesquisa-ação para apreender os sentidos que professores em formação
atribuem às situações dilemáticas, logo de natureza ética e, ao mesmo tempo,
problematizar a formação inicial de professores quando reduzida às tendências que
enfatizam a mera instrução, em detrimento a uma educação voltada à humanização.
Justifica-se assim a eleição da sala de aula como um campo empírico privilegiado
para problematizar as questões de interesse deste estudo e promover uma prática
reflexiva em torno da dimensão ética. A opção por pesquisa-ação deve-se ao fato de
entender a fecundidade desse tipo de pesquisa quando se pretende ao mesmo
tempo compreender uma dada situação e nela intervir.
Desse modo, o próprio procedimento de pesquisa transforma-se numa situação de
intervenção. Os momentos de codificação, decodificação e levantamento de
situações-problema constituem-se em aprendizagens que favorecem o envolvimento
pessoal dos participantes, o que exige uma atenta observância a princípios éticos,
uma vez que se coloca em jogo crenças e valores firmemente estabelecidos em
importantes setores da vida das pessoas.
Assim, a pesquisa de campo, de natureza qualitativa, do tipo participativa, porque
pesquisa/ação, tem a intenção de compreender o sentido que professoras em
formação atribuem às situações dilemáticas, de natureza ética, presentes nas
relações que se estabelecem no exercício docente.
Tal opção metodológica motivou uma outra escolha: a de situações que
privilegiassem a emergência de conflitualidades de natureza ética. Neste sentido, as
atividades pedagógicas com textos literários, em especial as Fábulas, foram as que
se mostraram com maiores aberturas para fazer emergir as reflexões pretendidas
pela pesquisa. As Fábulas trazem situações conflituosas em que os professores se
vêem desafiados a se posicionar. Esse posicionamento refere-se tanto às escolhas
que fazem quanto ao encaminhamento pedagógico.
Vale destacar que a preferência pelas Fábulas justifica-se tanto pela sua principal
característica em transmitir ensinamentos morais, como pelo uso freqüente desse
gênero textual nos planejamentos pedagógicos das séries iniciais. No decorrer da
19
pesquisa, o uso das Fábulas revelou-se como uma experiência singular do narrador
tal qual concebido por Walter Benjamim (1984, 1993a, 1993b). Desde este ponto, a
dinâmica da pesquisa ganhou um movimento que encontrou apoio nos estudos
recentes de Larrosa (2002, 2003, 2004) quando este afirma que o saber da
experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos
acontece.
Das muitas lições no decorrer desse percurso, é preciso reafirmar a tese de que a
educação para os fins de humanização e não de mera instrução é possível, ainda
que tenhamos que lidar com as contradições próprias de uma sociedade desigual. E
mais: a sala de aula, eleita como espaço de debate público, pode promover a
dialogicidade de que tanto ensinou Paulo Freire e nisso se encerra uma opção
política, uma opção de classe, uma ética que resista às tendências de transformar
também o homem, numa mercadoria.
Com efeito, este estudo está organizado e apresentado aqui em quatro capítulos. No
primeiro, Ética: conceito, sentidos e deslocamentos, apresento uma retomada
histórica sobre o conceito de Ética e dos sentidos a ela atribuídos, a partir de alguns
deslocamentos sofridos ao longo do tempo por conta dos determinantes sócio-
culturais e políticos. Busca-se também a compreensão das reconfigurações da
sociedade contemporânea e suas implicações para a educação dos homens.
O segundo capítulo, A formação de professores e o saber ético, traz uma revisão
bibliográfica em torno das produções concernentes à formação de professores nas
últimas décadas, principalmente àquelas que relacionam ética e docência, para
então apresentar os argumentos que sustentam a proposição do saber ético como
um saber docente, constituído na trama experiencial das práticas educativas.
No terceiro capítulo, A trama fabulosa da pesquisa, explicito as bases teóricas que
sustentam a opção pela pesquisa-ação e justifico a escolha da Fábula como
instrumento de reflexão ética. Ainda neste capítulo, apresento uma descrição
reflexiva dos encontros realizados com os dois grupos de concluintes do Curso
Normal Superior, no decorrer do primeiro semestre letivo de 2006, em um Instituto
Superior de Educação, localizado na cidade do Salvador/Ba.
20
No último capítulo, Confabulações de tramas dilemáticas, me proponho a analisar
com mais verticalidade as posições assumidas frente às situações dilemáticas, de
natureza ética, implícitas ou explícitas, nas Fábulas utilizadas com mais freqüência
nas práticas educativas das professoras com as quais trabalhei. Do confronto de
opiniões, próprio de um debate público, emergiu um rico diálogo que na sua
dinâmica traz contribuições importantes para se pensar a relevância da reflexão
ética no âmbito da formação de professores.
21
1 ÉTICA: CONCEITO, SENTIDOS E DESLOCAMENTOS
Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa.
Mas, então, todos são maus.
Mas, mais então, todos não serão bons?
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
A tensão entre o Bem e o Mal sempre esteve no cerne da própria condição humana,
no entanto, nem Bem, nem Mal existem para além de formações sociais concretas,
situadas histórica e geograficamente, logo são datadas e determinadas por
condicionantes sociais, culturais e ideológicas.
Essas formações sociais encontram-se em permanente transformação e em
processo constante de re-siginificação, pois o homem no seu processo de
homonização está condenado a ser com o outro, o que impõe a necessidade de um
questionamento constante sobre valores, crenças e ações práticas. Essa reflexão
orienta também a realizar escolhas, seja no plano individual como no coletivo, que
indiquem os melhores caminhos, ou os caminhos possíveis, a serem trilhados.
No plano individual, assim como nas relações sociais coletivas, as ações, crenças e
pensamentos devem ser sempre pensados como construções históricas, ainda que
irredutíveis à História. É na prática social cotidiana que as crenças, conceitos e
instituições se produzem, reproduzem ou se modificam, portanto são, dessa forma,
construções sociais históricas e não dados de natureza. Com efeito, os valores, os
significados e os sentidos derivam da relação que homens estabelecem entre si, no
encontro com a diferença e da necessidade de encontrar referentes que possibilitem
a vida em sociedade.
É nesta busca que se constroem, por exemplo, as concepções de Bem e Mal que
orientam e regulam as ações individuais e sociais nos diferentes contextos histórico-
geográficos. Em qualquer circunstância, as ações dependem sempre de escolhas
que se faz em função de determinados valores e crenças que servem como
orientadores de condutas aceitas socialmente.
22
Este capítulo percorre a construção do conceito de Ética ao longo da história do
pensamento ocidental, para possibilitar a análise do sentido que os professores em
formação, do Curso Normal Superior, atribuem às situações dilemáticas, de natureza
ética, fundantes da tomada de decisões nas práticas educativas da sala de aula.
Nessa perspectiva, é forçosa a retomada histórica do conceito de Ética, dos sentidos
a ela atribuídos e seus deslocamentos ao longo do tempo, para então situá-la no
mundo contemporâneo.
1.1 SIGNIFICADO ETIMOLÓGICO
Do ponto de vista etimológico, o vocábulo “Ética” é de origem grega, ethike, que
procede do substantivo ethos. No entanto, na língua grega, ethos recebeu duas
grafias distintas, designando matizes diferentes da mesma realidade. O primeiro
ethos, com a vogal breve epsilon e de pronúncia mais aberta, significa caráter,
índole natural, temperamento, ou seja, o conjunto de disposições físicas e psíquicas
de uma pessoa. O segundo ethos grafado com a vogal longa eta, com a pronúncia
mais fechada, refere-se a costumes. Segundo Lima Vaz (2002, p. 13) “ethos (com
eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social,
ao passo que ethos (com epsilon) refere-se à constância do comportamento do
individuo cuja vida é regida pelo ethos-costume”.
Na tradução do termo Ética para a língua portuguesa, Lima Vaz chama a atenção da
possibilidade de um desvio semântico, podendo o termo se referir tanto a costumes
como a caráter.
3
Uma das implicações desse desvio é o uso do termo Ética apenas
para adjetivar o caráter. O ser ético pressupõe ter um bom caráter e o “anti-ético”,
um mau-caráter. Isso, inclusive, pode explicar o fato de que a discussão em torno da
Ética, nos mais diversos campos profissionais, esteja reduzida a normatização de
condutas, muitas vezes confundida com disciplina e obediência.
A distinção entre Ética e Moral também se faz necessária para a ampliação dos
sentidos do vocábulo. Os dois termos confundem-se, pois ambos possuem a mesma
3
Sobre o problema semântico da tradução do termo ética para a Língua Portuguesa ver Lima Vaz, Escritos de
Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Ed Loyola, 1999. (p. 11 – 28)
23
definição em sua origem etimológica. Os romanos traduziram o ethos grego para o
latim mores, que quer dizer costume, de onde vem a palavra moral. Então, os
vocábulos Ética e moral designam o mesmo objeto, “seja o costume socialmente
considerado, seja o hábito do indivíduo de agir segundo o costume estabelecido e
legitimado pela sociedade” (LIMA VAZ, 2002, p. 14).
Entretanto, as duas expressões receberam contornos mais delineados a partir da
necessidade de se pensar o agir humano social e individual decorrente
“provavelmente do crescente teor de complexidade da sociedade moderna e, nela,
da emergência do indivíduo, pensado originariamente em confronto com o todo
social “(LIMA VAZ, 2002, p.14). Nessa perspectiva,
[...] a significação do termo Moral refluiu progressivamente para o
terreno da praxis individual, enquanto o termo Ética viu ampliar-se seu
campo de significação passando a abranger todos os aspectos da
praxis social, seja em suas formas históricas empíricas [...], seja em
sua estrutura teórica, da qual, segundo pensamos, deve ocupar-se a
Filosofia [...]. (LIMA VAZ, 2002, p. 15)
Na tentativa de distinguir os dois vocábulos, Lima Vaz apresenta a Moral como “uma
tendência a privilegiar a subjetividade do agir, enquanto a Ética aponta
preferencialmente para a realidade histórica e social dos costumes” (2002, p.15).
Vásquez (2002, p. 23) apresenta outra distinção entre os termos quando afirma que
Ética estaria ligada à teoria do comportamento moral dos homens em sociedade, e
Moral como
[...] um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são
regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes
e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um
caráter histórico e social, sejam acatadas livres e conscientemente,
por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa
ou impessoal. (VÁSQUEZ, 2002, p.84)
Ambos os autores concordam em situar a Ética relacionada a um saber acerca do
comportamento dos homens em sociedade. Lima Vaz refere-se ao ethos e comenta
a existência de uma transposição metafórica que está na origem da significação
moral. Para o autor, primitivamente ethos referia-se à morada do animal e
posteriormente passa a ser a casa (oikos) do ser humano. Assim, o ethos, de sua
materialidade que proporciona fisicamente abrigo e proteção ao homem, passa a ser
24
[...] a casa simbólica que o acolhe espiritualmente e da qual irradia
para a própria casa material uma significação propriamente humana,
entretecida por relações afetivas, éticas e mesmo estéticas, que
ultrapassam suas finalidades puramente utilitárias e a integram
plenamente no plano da cultura. (LIMA VAZ, 2002, p. 39-40)
Decorre da etimologia do termo Ética a compreensão de uma “casa simbólica” que
acolhe o ser humano e o orienta a viver em sociedade. Ela toma para si a reflexão
acerca dos fundamentos da moral e dos diversos princípios que balizam a
necessária inter-relação entre individuo e sociedade.
1.2 A ÉTICA E SEUS FUNDAMENTOS
1.2.1 Entre desejos e fins, escolhas e meios
Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não
é um ser bom e proceder honesto; dificultoso,
mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o
poder de ir até no rabo da palavra.
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
O itinerário histórico da Ética tem sua origem na Grécia Antiga. Aristóteles (384-322
a.C.) foi o fundador da Ética como uma disciplina específica e distinta no corpo das
ciências. No entanto, seu pensamento em torno da Ética situa-se no prolongamento
da ética socrático-platônica e a principal característica que distingue o pensamento
ético aristotélico de sua raiz platônica é a definição de seu objeto. Para Aristóteles “a
idéia não existe separada dos indivíduos concretos, que são o único existente real; a
idéia existe somente nos seres individuais” (VASQUEZ, 2002, p. 272).
Assim, diante da premissa de que o homem depende de sua atividade para realizar-
se como ser humano, torna-se oportuno uma reflexão sobre as contribuições do
pensamento aristotélico para pensar tanto a escola como a própria atuação do
professor. Antes porém, uma apresentação panorâmica das bases fundantes do
pensamento ético do autor para então propor uma ponderação acerca dos sentidos
25
da escola e do exercício docente no que tange a relação entre desejos e fins,
escolhas e meios.
Entre a extensa obra aristotélica destaca-se Ética a Nicômaco. Alguns historiadores
afirmam que Nicômaco tanto pode ser o pai de Aristóteles quanto seu filho,
responsável inclusive pela edição dos dez livros após a sua morte. O certo é que
Ética a Nicômaco impõe-se pelo peso da tradição e pela abundância da bibliografia
a ela dedicada. Além disso, e principalmente, continua sendo uma das bases
fundamentais do pensamento humano e uma das referências mais importantes para
nortear as reflexões acerca do tema.
Ética a Nicômaco inicia por perguntar o que é o bom ou o bem, seguida da
afirmação de que todo indivíduo, como toda ação e escolha mira um bem e este bem
é o que todas as coisas tendem, ou seja, todas as coisas tendem a um fim e o fim de
nossas ações é Sumo Bem. Contudo, como o conhecimento de tal fim joga
importante papel na nossa vida, é preciso determiná-lo para saber de qual ciência o
Sumo Bem é objeto.
Tal ciência é a Política e cabe à Ética estudá-la. É objeto da Ética poque as ações
belas e justas admitem variedade de opiniões, podendo ser consideradas como
existindo por convenção social, e não como um atributo da natureza. O fim que se
busca não é o conhecimento do bem, mas a ação do mesmo; e o estudo será útil
àqueles que desejam e agem de conformidade com um princípio racional.
Contudo, se todo conhecimento e toda ação visam a algum bem, qual será o mais
alto de todos os bens? Certamente será a felicidade, embora o vulgo não a conceba
da mesma forma que o sábio. Com efeito, a felicidade entendida como o Sumo Bem
(eudaimonia) é o maior dos bens alcançáveis pela ação humana; o fim último da
natureza humana. Entretanto, é preciso analisar com mais cuidado, porque,
[...] a maioria das pessoas pensa que se trata de alguma coisa
simples e óbvia, como o prazer, a riqueza e as honras, embora
também discordem entre si; e muitas vezes o mesmo homem a
identifica com diferentes coisas, dependendo das circunstâncias: com
a saúde quando está doente, e com a riqueza quando é pobre.
(ARISTÓTELES, 2003, 19-20)
26
Esses bens (prazer, riqueza, saúde e honras) seriam apenas meios em favor de um
fim. Para então compreender o sentido da felicidade como Bem Supremo, vale
analisar as distinções que o estagirita faz entre meios e fins. No Livro III da sua Ética
a Nicômaco, quando passa a examinar a escolha por estar intimamente ligada à
virtude, Aristóteles adverte que ninguém delibera sobre coisas eternas, apenas
sobre as coisas que estão ao nosso alcance e que podem ser realizadas. Ele afirma
também que o desejo se relaciona com os fins, a escolha com os meios e que não
deliberamos sobre os fins, mas sobre os meios. Para exemplificar, cita o caso do
médico que não delibera sobre se deve ou não curar, do orador sobre se deve ou
não persuadir, assim, enfatiza que nenhum homem delibera a respeito da própria
finalidade de sua atividade. A finalidade está estabelecida e cabe ao homem
procurar maneiras de alcançá-la. A escolha se relaciona com os meios para
chegarmos ao fim.
Aristóteles (2003) afirma ainda que somente o que parece bom a cada homem é por
ele desejado, no entanto coisas diferentes e contrárias parecem boas a diferentes
pessoas. Aquilo que em verdade o homem bom deseja é que é verdadeiramente um
objeto de desejo e que ele saberá avaliar corretamente as coisas. Talvez a maior
diferença entre o homem bom e os outros está em aquele perceber a verdade em
cada classe de coisas, e ser dessas coisas, por assim dizer, norma e medida.
Então, se o desejo tem por objeto o fim, o Bem Supremo que o homem deseja é sua
própria felicidade e todas as suas escolhas versam para esse fim. Mas é possível
alcançar esse fim? Como? Aristóteles (2003) responde que o bem do homem vem a
ser a atividade da alma em consonância com a virtude e, se há mais de uma virtude,
em consonância com a melhor e mais completa entre elas. Mas, “é preciso
acrescentar uma vida inteira, pois uma andorinha não faz verão, nem um dia
tampouco; e da mesma forma um só dia, ou um curto espaço de tempo, não faz um
homem feliz e venturoso” (ARISTÓTELES, 2003, p. 27). Decorre que a felicidade
está nas atividades virtuosas, e isso é tarefa de toda uma vida.
O homem bom para Aristóteles (2003) é o homem virtuoso e para explicar o que é a
virtude distingue também duas espécies, a intelectual e a moral. A virtude intelectual
desenvolve-se a partir do ensino. A virtude moral é adquirida em resultado do hábito
e não por natureza. “Não é, portanto, nem por natureza nem contrariamente à
27
natureza que as virtudes se geram em nós; antes devemos dizer que a natureza nos
dá a capacidade de recebê-las, e tal capacidade se aperfeiçoa com o hábito”
(ARISTÓTELES, 2003, p. 40). As virtudes são adquiridas pelo exercício, é pelos atos
que praticamos em nossas relações com outras pessoas que nos tornamos bons ou
maus. Assim, a prática da virtude torna o homem virtuoso.
Aristóteles (2003) postula, então, que a virtude está no meio termo entre o excesso e
a falta, duas tendências humanas opostas, que constituem vícios em oposição. Para
praticar a virtude, o agente deve se encontrar em certas condições: em primeiro
lugar deve ter conhecimento do que faz; em segundo lugar, deve escolher os atos, e
escolhê-los em função dos próprios atos; e em terceiro lugar, sua ação deve
proceder de uma disposição moral firme e imutável.
Ainda sobre a virtude, Aristóteles (2003) destaca três espécies de coisas que se
encontram na alma humana, a saber: as paixões, as faculdades e as disposições.
Descarta as paixões como virtudes porque não somos chamados de bons ou maus
por causa de nossas paixões. As faculdades também são desconsideradas como
virtude porque temos as faculdades por natureza, mas não é por natureza que nos
tornamos bons ou maus. E Aristóteles conclui: “Se, então, as virtudes não são
paixões nem faculdades, só podem ser disposições” (2003, p. 47). Conclui afirmando
que a virtude do homem também será a disposição que o torna bom e que o faz
desempenhar bem a sua função.
Entretanto ao se referir à felicidade como fim último da natureza humana afirma que
esta se constitui como atividade e não como uma disposição. Argumenta que “se o
fosse, ela poderia pertencer a alguém que passasse a vida inteira adormecido,
vivendo como um vegetal, ou, da mesma forma, a alguém que sofresse os maiores
infortúnios” (ARISTÓTELES, 2003, p. 227). Sendo assim a felicidade deve ser
incluída entre as atividades desejáveis em si, aquela em que nada mais se tem em
vista além da própria atividade. As ações virtuosas têm a mesma natureza, visto
que, para Aristóteles (2003, p. 227), praticar atos nobres e bons é algo desejável em
si. Nesse sentido, para o homem bom, a atividade que concorda com a virtude é a
mais desejável.
28
Aristóteles (2003) esclarece que se a felicidade consiste na atividade conforme a
virtude, será razoável que ela seja também uma atividade em consonância com a
mais alta virtude, e essa será a virtude do que existe de melhor em nós. Para o
filósofo grego o que há de melhor em nós é a razão, como também os objetos com
os quais a razão se relaciona são os melhores entre os objetos cognoscíveis. Atesta
também que a atividade contemplativa é a mais contínua de todas atividades, uma
vez que a contemplação da verdade pode ser mais contínua do que qualquer outra.
A felicidade tem um elemento de prazer e a atividade da sabedoria filosófica é
reconhecidamente a mais agradável das atividades virtuosas.
No último livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles (2003), em tom conclusivo, traz que
a atividade racional será a felicidade completa do homem, desde que tal atividade
lhe seja agregada por toda a existência, pois nenhum dos atributos da felicidade
pode ser incompleto. Acrescenta ainda que aquilo que é próprio de cada coisa lhe é,
por natureza, o que há de melhor e de agradável. Por esta ótica, para o homem, a
vida conforme a razão é a melhor e mais agradável, pois a razão, mais que qualquer
outra coisa, é o homem.
Delineado este esboço, depreende-se de Aristóteles (2003) que o exercício das
virtudes constitui a perfeição da atividade contemplativa, é dessa forma que é
possível alcançar a felicidade. Mas, é preciso lembrar que a ética aristotélica é
pensada na pólis, pois não há ainda a concepção de indivíduo separado de sua
comunidade política, a cidade. A vida ideal e feliz é a vida racional; essa vida feliz
supõe a estima de si mesmo e a amizade.
Acrescente-se tambem que há uma medida para todas as ações humanas, que é o
justo-meio; e se a felicidade é definida como atividade da alma, dirigida pela virtude
perfeita, ela não é presente de deuses e nem produto do acaso, é preciso conquistá-
la mediante a árdua tarefa da prática da virtude.
Uma análise mais precisa sobre o problema da Ética em Aristóteles envolveria,
claro, muito mais elementos do que os que estão aí colocados, no entanto, para o
escopo deste trabalho pretende-se explorar mais especificamente a questão da
articulação entre meios e fins, no que se refere ao que se pode chamar de
29
“comunidade escolar”, espaço eleito para realizar a pesquisa empírica deste projeto,
no âmbito da experiência de formação de professores.
Segundo Francis Wolff (1999), ao comentar a Política, e, mais especificamente, a
formação das diferentes comunidades em Aristóteles, o que une os homens em uma
determinada comunidade é seu interesse comum, ou aquilo que ele denomina de
uma finalidade comum, para a qual colaboram os membros que têm como efeito
ligá-los por relações de proximidade, que Aristóteles chama de philia (amizade).
Para o autor, a amizade se constitui, em Aristóteles, como um “sentimento de
afetividade” ligado à finalidade comum buscada pelos membros de uma
comunidade. Diversos são os tipos de comunidades citadas por Aristóteles, cada
qual com sua finalidade, mas todas funcionando segundo este ordenamento comum
de um sentimento de amizade e de justiça entre seus membros, fruto da busca de
um bem comum a ser alcançado.
Então, ainda com Wolff (1999), há dois caracteres gerais definidores da idéia de
comunidade, ou seja, a existência de uma finalidade comum e a unidade na
pluralidade, visto que os membros de uma comunidade têm interesses comuns, mas
não são iguais. Além disso, para que uma comunidade exista, ou mesmo siga
existindo, é necessário que a justiça seja considerada como a virtude da
comunidade, aquela que regula as relações entre seus membros, graças à qual uma
comunidade existe ou pode continuar existindo.
Seguindo o raciocínio proposto por Aristóteles, há um aspecto, investigado por Wolff,
que parece central para a análise que pretendo realizar. O autor considera que uma
das premissas centrais para a existência dessa comunidade é que “toda comunidade
visa um certo bem” (WOLFF, 1999, p. 42). É importante verificar que o que está em
jogo não é o Bem – no sentido moral do termo –, mas a existência de um Bem,
ligado à finalidade de determinada comunidade e intrínseco à ação humana.
Segundo Wolff,
[...] a ação humana não visa, portanto, o bem (único, universal e
eterno), mas visa forçosamente um fim, isto é, um bem (pouco importa
se aparente ou real, particular ou geral). Toda ação é, com efeito,
finalizada por definição. Fazer alguma coisa, o que quer que seja, é
30
procurar obter qualquer coisa (“um bem”) com a modificação que se
opera; é simplesmente adaptar os meios a um fim. (1999, p. 42)
Essa diferenciação entre O bem e Um bem é fundamental para abordar a questão
da “comunidade escolar”, cujos membros se reúnem em seu interior com a finalidade
de educar as crianças. Como dito anteriormente, com Aristóteles, não deliberamos a
respeito da própria finalidade de nossa atividade, então, se os fins estão postos uma
vez que não decidimos sobre se devemos ou não educar nossas crianças, então o
que cabe a esta comunidade definir?
Para Aristóteles resta deliberar sobre os meios. Entretanto, para definir os meios
torna-se imprescindível refletir acerca dos sentidos que atribuímos a este fim. Nos
exemplos apresentados por Aristóteles sugere-se que não há dúvida sobre esse fim,
como no caso do médico cuja finalidade é curar. No caso específico do professor,
considero que não seja assim tão simples e objetivo porque há vários sentidos para
o educar, todos localizados num determinado tempo e espaço. Minha indagação
reside em como os professores concebem esse fim. Se para eles educar é instruir,
por exemplo, escolherão uma determinada pedagogia que certamente se diferencia
significativamente de outra que tem como fim uma formação mais ampla dos sujeitos
e não apenas sua instrução. Arrisco-me a afirmar que o sentido que atribuímos a
nossa finalidade determina os meios que buscamos para realizá-la. Mais ainda, se o
professor não possuir pleno domínio sobre o que faz poderá estar subordinado ao
seu próprio fazer, como afirma Franklin Leopoldo e Silva (2001),
Essa subordinação do ser humano ao seu próprio fazer configura a
base da tecnocracia, que significa a autonomia da técnica e o controle
técnico sobre todas as dimensões da vida. É a perda da capacidade
de refletir sobre a atividade técnica, de conduzi-la de tal maneira que
ela venha a atender aos fins requeridos pelo aprimoramento do
gênero humano. (p. 243)
Com isto, reafirmo que não estou aqui desprezando a grande contribuição das
pesquisas em torno do “como ensinar”, mas alertando para a ausência de reflexão
acerca dos sentidos que atribuímos às escolhas que realizamos ao ensinar. O
requinte dos meios técnicos e instrumentais produziu uma certa cegueira, de tal
forma que já não refletimos sobre seus fins. Isso porque os programas de formação
de professores foram preenchidos com a reflexão sobre os meios e esvaziados de
discussão em torno dos fins. Reitero então, mais uma vez, a urgência em assegurar
31
espaços para uma reflexão acerca do equilíbrio entre desejos e fins, escolhas e
meios.
Vale dizer que o espaço da escola, concebido em sua dimensão pública, é
considerado por esta pesquisa como o lócus privilegiado de construção do saber
ético enquanto saber docente, que se dá a partir do diálogo e da negociação, ou
como indica Aristóteles, pelos atos que se pratica com as outras pessoas. Essa
prática refere-se à prática da virtude, já discutida anteriormente, mas retomada
nesse momento para ampliar as reflexões em torno das finalidades da “comunidade
escolar”.
Para Aristóteles, a virtude é adquirida pelo exercício, através do hábito e não por
natureza. Sendo assim, parece razoável afirmar que se aprende a ser virtuoso. O
que resta agora é indagar se a virtude pode então ser ensinada. Para responder a
tal questão, José Sérgio Fonseca de Carvalho (2004) afirma que
[...] é sendo um professor justo que ensinamos o valor e o princípio da
justiça aos nossos alunos, sendo respeitosos e exigindo que eles
também o sejam é que ensinamos o respeito, não como um conceito,
mas como um princípio de conduta. Porém, é preciso ainda ressaltar
que o contrário também é verdadeiro, pois se as virtudes, como o
respeito, a tolerância e a justiça são ensináveis, também o são os
vícios, como o desrespeito, a intolerância e a injustiça. E pelas
mesmas formas. (p.102)
O que propõe o autor nos remete a responsabilidade do professor diante de seus
alunos e reitera novamente o intento dessa pesquisa ao propor a inserção do saber
ético como um saber docente. Os dilemas e conflitos experienciados pelo professor
na arena da sala de aula precisam ser considerados conteúdos de sua própria
formação. Para tanto, torna-se também necessário que a “comunidade escolar”
esteja articulada em torno da reflexão sobre a finalidade que lhe constitui como tal, a
de não apenas instruir, mas de educar suas crianças.
Uma outra referência que entendida como importante para discutir a organização da
“comunidade escolar” e sua finalidade comum também vem da Grécia. Trata-se de
Epicuro (341-270 a.C.), um ateniense que desde muito cedo se dedicou à Filosofia.
Em 306
a.C. abriu a sua famosa escola nos jardins da sua vila, que se tornou o
centro das reuniões com seus admiradores, discípulos e amigos.
32
A Grécia de Epicuro não era mais a mesma Grécia de Aristóteles. Com a dominação
macedônica, as Cidades-Estados não decidiam mais seus destinos e passaram a
integrar um vasto império onde o poder estava centralizado. Reinava a miséria
econômica e política. O medo e a insegurança assolavam a população com receio
da delação, do exílio, da pobreza e da morte.
A filosofia epicurista emerge nesse contexto marcado por conflitos, decadência e
adversidade. Suas premissas centram-se no prazer, na serenidade e na alegria, pois
entendia que a humanidade estava enferma e necessitada de tratamento. A causa
dessa doença se baseia nas falsas crenças e seu remédio seria então “o logos
filosófico enquanto portador da verdade aclaradora, o discurso enquanto phármakon,
enquanto curativo porque discurso-razão que espanca as trevas das crendices,
expulsando os males da alma” (JOSÉ PESSANHA, 1992, p. 58). Esses remédios
constituem-se pelas verdades fundamentais da ética epicurista, sob a forma de
tetrapharmakon: Não há o que temer quanto aos deuses. Não há o que temer
quanto à morte. Pode-se alcançar a felicidade. Pode-se suportar a dor.
Ancorado nesses preceitos, Epicuro fundou sua escola filosófica, o Jardim, na
verdade uma confraria laica, centrada na valorização do humano, que admite entre
seus membros também mulheres e escravos. Destaca-se aqui uma distinção
significativa da filosofia epicurista em relação à aristotélica. Para essa última,
somente os homens adultos, com certa quantidade de bens materiais que pudessem
garantir sua segurança econômica, seriam livres para interferir nos assuntos
políticos e dedicar-se às investigações científicas e filosóficas. Para Aristóteles a
felicidade estava ao alcance apenas de uma parte privilegiada da sociedade, da qual
estavam excluídos os escravos, as mulheres e os estrangeiros. No entanto, para
Epicuro, segundo Pessanha (1992),
[...] se as condições históricas, objetivas, impossibilitam que a
liberdade seja conquistada no plano social e político, resta, todavia,
todo o mundo interior, subjetivo, a ser libertado das ilusões e
crendices que atormentam e escravizam a alma. E, se a felicidade não
pode mais advir da participação num projeto coletivo de procura do
bem e da justiça, isso não impede que se busque a felicidade pessoal,
íntima. (p.67)
Contudo, essa felicidade íntima em Epicuro supõe uma conquista interior alcançada
na convivência com seus pares, ou seja, conforme Pessanha, 1992 : “[...] o convívio
33
no grupo de amigos que são também amigos da sabedoria” (p. 78). Se por um lado a
philia em Aristóteles está ligada a aristocracia e aos homens de condição para se
dedicarem ao ócio e a vida especulativa, no Jardim de Epicuro o direito à felicidade é
aberto a todos, mesmo aos excluídos ao direito de cidadania pela democracia
ateniense: mulheres, estrangeiros e escravos.
No pensamento epicurista, a philia é responsável pela aquisição e difusão de sua
filosofia já que através dela seus discípulos estariam ligados a uma sociedade de
amigos com fortes vínculos ao mestre e em torno de uma mesma doutrina. O que
sustenta essa relação e move o sentimento de philia é o amor à sabedoria. Epicuro
sustenta ainda que “de todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a
felicidade de toda a vida, a maior delas é a aquisição da amizade” (EPICURO apud
PESSANHA, 1992, p. 79).
Assim, se para Aristóteles o espaço público era o universo da liberdade, no qual os
homens deliberavam, através do diálogo e da negociação, os caminhos a serem
percorridos pela comunidade, Epicuro, diante de uma democracia esfacelada,
propõe que a liberdade seja uma conquista pessoal de cada um, mas com os
amigos.
Para Epicuro a felicidade (eudaimonía) era o bem último da vida humana, aquilo
pelo qual a vida vale ser vivida. Entretanto, a felicidade consiste na ausência de
sofrimentos do corpo e de perturbações da alma. É o prazer duradouro da
serenidade do espírito. Assim, a ética epicurista é reconhecida como um hedonismo,
onde o motor e a meta da vida humana são identificados ao prazer. Como afirma o
próprio filósofo, “chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito,
sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda escolha ou
recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos
produz” (EPICURO apud PESSANHA, 1992, p. 74-75).
O hedonismo epicurista relaciona ao prazer a serenidade e busca a conquista da
imperturbabilidade de espírito (ataraxia). Cabe ao homem então, administrar seus
próprios desejos. A infelicidade não está em não conseguir algo, mas da ansiedade
relacionada a expectativas futuras. Epicuro ensina que “não deves corromper o bem
presente com o desejo daquilo que não tens: antes, deves considerar também que
34
aquilo que agora possuis se encontrava no número dos teus desejos” (EPICURO
apud PESSANHA, 1992, p. 76). Importante se faz reafirmar que esse direito à
felicidade é aberto a todos.
Para o filósofo, a idéia de comunidade está intimamente relacionada com a de
amizade (philia), uma vez que aquilo que une os indivíduos em uma determinada
comunidade é seu interesse comum. Com isto retomo a proposição inicial deste
trabalho, qual seja a de considerar a escola como lócus privilegiado de construção
do saber ético como um saber docente. Assim como os Jardins de Epicuro, a escola
pode também, apesar de todas as adversidades sociais e políticas que a
contemporaneidade impõe, se constituir em um espaço público em que os sujeitos
ali envolvidos estejam articulados em torno de um bem comum.
A escola, concebida como um espaço público, deve se organizar de tal forma que
seus integrantes tenham a oportunidade de pôr em questão os princípios e
finalidades da tarefa de educar e assim se constituir como uma comunidade que
reflete acerca de seu bem comum. Uma escola compreendida dessa forma
preocupa-se em buscar o equilíbrio entre meios e fins, mesmo que os programas
governamentais e os discursos pedagógicos insistam em uma determinada
concepção de educação que privilegia apenas a transmissão de um determinado
lote de conhecimentos aos seus alunos.
1.2.2 Entre deus e o diabo
Como não ter Deus?! Com Deus existindo,
tudo dá esperança; sempre um milagre
é possível,o mundo se resolve.
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
Perseguindo os sentidos e os deslocamentos da Ética no ocidente, o pensamento
ético cristão coloca categorias distintas daquelas orientações do mundo antigo, a
exemplo da substituição da felicidade pela liberdade. Se os fins da Ética visavam a
felicidade, agora, é a liberdade posta no horizonte da vida. Tal deslocamento passa
35
a instituir valores e crenças que se arrastam por toda a modernidade, encontrando
apenas no século XVIII o ápice do seu acabamento.
Na esteira dos acontecimentos do mundo medieval sem dúvida o de maior impacto
foi a centralidade em um Deus único responsável pelas ordens e desordens do
mundo. Ser criado à imagem e semelhança do homem que determina as razões de
ser e viver, que define os caminhos a serem seguidos e que promete a vida eterna.
Um alento para uma multidão sem rumo em busca de um pai onipresente e
onisciente que a proteja e a oriente.
O declínio do racionalismo clássico e a difusão do Cristianismo marcam uma
mudança cultural profunda, um fenômeno histórico-cultural extremamente complexo
entre os séculos I e II da chamada era cristã. A religião passa a garantir uma certa
unidade social diante da profunda fragmentação econômica e política da época.
Nesse contexto, o Cristianismo propaga-se pelo mundo antigo de forma
surpreendentemente rápida, tendo em vista a admirável capacidade de inculturação
e assimilação da doutrina cristã. A partir do século III, o sentimento religioso domina
os espíritos, a religião inspira os modos de vida e propõe regras de conduta. O
pensamento ético grego perde sua força para dar lugar à Ética Cristã fundada em
um conjunto de verdades a respeito de Deus e do modo de vida prático que o
homem deve seguir para obter a salvação em um outro mundo. A experiência ética
passa a traduzir
a radical dependência do ser humano do Deus único e criador, que se
revela como seu verdadeiro fim, como fonte primeira de normas de
seu agir, em face do qual o homem é convocado a uma atitude de
total obediência na fé, princípio e condição de sua verdadeira bem-
aventurança
. (LIMA VAZ, 2002, p. 171)
Deus é o criador do mundo e do homem, concebido como um ser pessoal, bom,
onisciente e todo-poderoso. Na religião cristã os ideais éticos e sua prática
correspondente não possuem mais como fim a felicidade a ser obtida pelo próprio
ser humano, seguindo os caminhos traçados pela razão. A essência da felicidade é
a contemplação a Deus, ou seja, a beatitude, onde o amor humano está
subordinado ao divino. Como explica Vázquez (2002),
[...] o homem é e o que deve fazer definem-se essencialmente não em
relação com uma comunidade humana (como a polis) ou com o
36
universo inteiro, mas, antes de tudo, em relação a Deus. O homem
vem de Deus e todo o seu comportamento – incluindo a moral – deve
orientar-se para ele como objetivo supremo. (p.276)
Assim, se é possível que alguém possa atingir os ideais de perfeição e esse alguém
se personifica na imagem de Deus, então tudo o mais que não seja perfeito é tratado
como desvio, precariedade ou até pecado, o que remete à idéia de punição. Com a
ética cristã cristaliza-se o bem e o mal na figura de Deus e do Diabo, uma forma
maniqueísta de conceber a vida e que hoje ainda se faz atual em expressões do tipo
“do bem” ou “do mal”.
A ética cristã negou a complementariedade entre o bem e o mal que constitui os
seres humanos e lhes reservou o direito ao livre-arbítrio. Entretanto, o homem é livre
apenas para seguir a Deus e não para deliberar sobre suas próprias escolhas.
Assim, aquilo que não está em conformidade com a vontade de Deus “é coisa do
Diabo”.
Para compreender melhor esse preceito, recorro a Santo Agostinho (254-430), um
dos responsáveis pelas bases fundantes da ética cristã, nos primeiros tempos do
Cristianismo. Ele estabelece uma relação entre o mal e o livre–arbítrio e consagra
esse último como atributo da liberdade humana, como um bem que procede de
Deus. O homem possui uma alma racional que possibilita o pensamento deliberado
e a ordenação de sua vida e de seus padrões morais de acordo com os
conhecimentos adquiridos. Entretanto, a mente humana é fraca, sempre perturbada
pelos desejos. Justifica-se então a necessidade de uma ordenação divina, uma
assistência que poderá ajudar o homem a escolher entre o bem e o mal e assim
utilizar seu atributo divino – o livre arbítrio – de forma adequada, ou seja, em nome
de Deus, pelo amor de Deus. Para Agostinho, todos os homens querem ser alegres
e felizes, mas a verdadeira alegria só vem de Deus. Deus é a felicidade porque é a
verdade. E a alegria reside na verdade.
Decorridos mais ou menos dez séculos de história, em 1225 surge outro
representante da Igreja, São Tomás de Aquino, que vê o bem como um fim, como
uma virtude e um valor próprio da natureza humana, posto que a bondade de cada
ser consiste em que se comporte conforme a sua natureza. No entanto, a noção de
fim como bem é correlata “à noção de perfeição, o que implica uma ordem dos fins
37
segundo a escala das perfeições e, portanto, um fim último do qual, uma vez
alcançado, deve proceder a perfeição do agente, ou seja, sua auto-realização
(LIMA VAZ, 2002, p.220).
Nesse sentido, as coisas boas são aquelas que são perfeitas e perfeito é o ser que
nada lhe falta segundo o modo de sua perfeição. Assim se entende que o homem é
bom porque ele foi criado segundo o modo de perfeição que Deus lhe imprimiu e lhe
determinou um fim perecível que é o bem infinito. A Ética de Tomás de Aquino é
uma ética da perfeição e da ordem e ancora-se no pressuposto filosófico de uma
antropologia da liberdade, que situa a teoria do livre-arbítrio como fundamento
racional para a possibilidade de elevação à forma superior da liberdade moral.
Também é uma ética pautada na idéia de virtude em que o agir ético é concebido
como um agir virtuoso. O exercício das virtudes, entretanto, está implicado na
constância do agir e no progresso do bem, e requer, dada a condição humana, o
auxílio divino que se manifesta pelos dons do Espírito Santo.
Com Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, as bases fundantes da cosmovisão
cristã estariam assim apresentadas, na sua forma acabada, ao mundo ocidental e
continuam informando valores e crenças encontradas na grande parte das ações do
enfrentamento de dilemas da tomada de decisões no mundo contemporâneo.
1.2.3 Entre a racionalidade e o progresso
O mal ou o bem, estão é em quem faz;
não é no efeito que dão.
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
O surgimento do capitalismo, na Europa do século XVI, como forma dominante de
organização econômica, e o enfraquecimento da Igreja Católica, como referente
único dos valores, repercutiram de forma definitiva para o surgimento de novas
questões no campo da Ética. A Era Moderna, de forma bastante genérica, se
caracteriza por uma crença na razão humana como única forma explicativa do
38
mundo, combinada com um ideal de domínio técnico-racional do mundo, cuja
expressão mais significativa é a noção de progresso ilimitado do potencial humano.
Marshal Berman (1987) divide a Era Moderna em três fases: a primeira, associada
ao processo das Grandes Navegações e a descoberta do Novo Mundo; a segunda,
associada às revoluções que se processaram no interior das sociedades européias;
e a terceira ao turbilhão social do século XX. Cada uma delas com importantes
contribuições para a fundação de uma nova forma dos seres humanos existirem e se
relacionarem no mundo.
A primeira fase da Modernidade, segundo Berman (1987), é inaugurada com as
grandes descobertas que, ao mesmo tempo e em único movimento, colocou
diferentes culturas em contato e através de um processo violento de dominação,
transbordou a cultura européia ocidental, fortemente marcada pelos valores e
princípios da Igreja Católica Apostólica Romana, por grandes extensões do espaço
mundial. Esse contato, além de firmar o poder político-econômico-militar europeu,
serviu também para a afirmação de uma série de valores e princípios do
pensamento ético cristão, cujos fundamentos foram, em parte, apresentados no item
anterior.
De uma forma geral, mas nem sempre muito precisa, considera-se que as
comunidades pré-modernas viviam até então isoladas em micro espaços que lhe
protegiam do confronto com outras culturas. Suas verdades eram absolutas e suas
crenças e valores inquestionáveis. Com as Grandes Navegações o homem começou
a romper barreiras e deparar-se com o outro.
4
Descobriu outras verdades, outras
formas de viver e outras explicações para a vida. Constatou que suas crenças não
eram as únicas verdadeiras, nem mesmo suficientes para explicar e justificar a
complexidade do mundo que ali se iniciava. Nesse processo, algumas certezas se
desfazem, barreiras morais são destruídas, e a contradição passa a ser um
imperativo. Aos poucos, em meio a esse turbilhão, o homem começa a considerar
que era o único responsável pelo seu destino.
4
Sobre o encontro com o outro cultural, consultar o livro A conquista da América: a descoberta do outro de
Tzvetan Todorov. Nele, Todorov aponta a dificuldade de entendimento entre a cultura européia do século XVI e
as culturas pré-colombianas na América.
39
A segunda fase da Modernidade coincide com o período das revoluções, no final do
século XVIII. Destaca-se aqui o processo de industrialização, o avanço tecnológico,
os sistemas de comunicação em massa e o surgimento do Estado-nação. As
relações de trabalho foram profundamente abaladas nessa fase da Era Moderna. A
fábrica provocou profundas transformações na estrutura e na vida das pessoas que
a partir de então não decidiram mais acerca dos objetivos de seu trabalho, do seu
processo produtivo e do uso de seu tempo. O homem chegou a ser confundido com
as máquinas e a burguesia teve aí a sua consolidação.
Ainda na segunda fase se anuncia o triunfo da Razão. As idéias e os valores
medievais cuja finalidade era conduzir a Deus ou atender aos desígnios da fé cristã,
foram substituídos pela crença na Razão como forma dominante de explicação e
justificação do mundo.
As transformações porque passaram as sociedades, sobretudo na Inglaterra e na
França, tiveram efeitos objetivos na organização da produção, mas também foram
acompanhadas por profundas transformações na forma de compreensão do mundo
e das relações entre os homens. Como escreveu Berman (1987), a modernidade
despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e
contradição, de ambigüidade e angústia. A Supremacia da Razão associada à idéia
de Progresso, ligada ao desenvolvimento econômico, ao avanço e extensão do
conhecimento, difundiu a crença de que os homens finalmente caminhavam em
direção à felicidade.
A terceira fase da Modernidade corresponde ao século XX e seu avassalador
processo de modernização. Ainda segundo Berman (1987), nesta fase, a idéia de
modernidade perde muito de sua nitidez, ressonância e profundidade e
conseqüentemente sua capacidade de organizar e dar sentido à vida das pessoas.
O desenvolvimento do conhecimento fomentado pela Razão desencadeou
significativas mudanças. A ciência e a tecnologia, incorporadas na produção e na
vida dos homens, provocaram impactos enormes na organização das sociedades.
Fundaram hierarquias e princípios de organização social e redefiniram formas de
compreensão do mundo e do papel de cada uma das instituições sociais que se
adaptavam ao novo mundo. Neste sentido, pode-se notar uma positividade bastante
40
significativa do papel da racionalidade técnico-científica na organização da
sociedade moderna. No entanto, como observa Hobsbawn (1997), o século XX deve
ser compreendido como a “Era dos Extremos”. A mesma racionalidade técnico –
científica, responsável pelo progresso dos homens que viveram naquele período,
trouxe impactos negativos não menos importantes. A mudança tecnológica na
indústria gerou a exclusão, e conseqüente marginalização, de enormes contingentes
populacionais que não seriam mais assimilados pelo mercado de trabalho. Em sua
versão bélica, o desenvolvimento tecnológico dos armamentos, aumentou a
capacidade de destruição da vida humana como nunca antes registrado.
Enfim, um século marcado pelo contraste. A barbárie da guerra colocou a
Modernidade em questão e a promessa iluminista de um futuro cada vez melhor se
desfez diante de seus horrores. O avassalador progresso científico, cultural e
tecnológico parecia perder o sentido diante de tamanha tragédia humana. O projeto
moderno de construir um mundo estável, seguro, coerente, limpo e sólido atingiu seu
ápice com as duas grandes guerras e como nos provoca Bauman (1998), os
grandes crimes, freqüentemente, partem de grandes idéias. Os ideais de beleza,
pureza e ordem foram perseguidos até as últimas conseqüências com o propósito de
exterminar do mundo os que não se enquadravam nos padrões vigentes. Esses
ideais não se referem apenas à última fase da Modernidade, eles estão no cerne de
todo o projeto moderno. E é preciso reconhecer que, apesar dos horrores e terrores,
a humanidade ganhou muito com o projeto moderno e seus ideais.
O papel da educação escolarizada na consolidação deste “projeto civilizatório” foi
fundamental. A educação, até então de formação religiosa e restrita aos
monastérios, passa a ser compreendida como um meio fecundo para impulsionar o
progresso. Nessa perspectiva, a escola é o lócus privilegiado para a formação do
cidadão culto, e, mais que isso, para a afirmação da burguesia como bloco social
hegemônico. Os valores liberais, responsáveis para a consolidação do capitalismo
encontram, na escola, seu lugar de legitimação.
Nesse contexto, emerge também a necessidade da formação de setores mais
amplos da sociedade com intuito de preparar uma mão-de-obra qualificada para a
reprodução do sistema fabril. Dessa forma, a formação escolar passa a ser um
imperativo, a sala de aula a primeira bancada de trabalho do futuro trabalhador e o
41
professor o primeiro capataz
5
. A escola se constitui então como um cenário
adaptativo que antecede as relações sociais da fábrica e determina aquilo que é
preciso ser e fazer. Para ilustrar essa relação entre a fábrica e a escola, Enguita
(2004, p.30) traz à tona procedimentos e atitudes que se aprende na escola, como
por exemplo, a se submeter a uma autoridade impessoal e burocrática, a conceber o
tempo como um contínuo passível de ser fragmentado e valioso por si mesmo, a não
esperar de sua atividade dirigida uma gratificação intrínseca, a competir de maneira
destrutiva uns com os outros, a se submeter aos ditames de uma avaliação alheia
constante e a desenvolver hábitos de conduta de acordo com as necessidades do
trabalho organizado.
Desde essa organização cabe pensar sobre os fundamentos no campo da ética que
emergem nesse período da História. Entre os pensadores que constituem o
pensamento ético moderno, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant destacam-se
como expoentes importantes na fundação das premissas que vão sustentar toda a
modernidade guiada pela razão.
Rousseau (1712-1778) trouxe à humanidade outra forma de ver, entender e
conceber verdades até então inquestionáveis. No Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens (1756) Rousseau explicita a máxima
de que o homem é bom e a sociedade o corrompe. Apresenta a sociedade e a
cultura como sendo responsáveis pela degeneração das exigências morais mais
profundas da natureza humana. Afirma que o homem primitivo era totalmente feliz,
porque vivia apenas de acordo com suas necessidades inatas, satisfazendo-as sem
dificuldades e sem angústia, tornando-se assim um ser auto-suficiente. No homem
natural, o que opera não é a razão. Ele é solitário e sua alma tem realizações
simples.
Rousseau identifica dois tipos de desigualdade entre os homens, uma natural ou
física e outra moral, ou política, e se detêm nesta última para argumentar acerca da
origem e dos fundamentos da desigualdade entre os homens. Para tanto, remete o
seu pensamento ao tempo em que o direito sucedeu a violência e a natureza se
submeteu à lei humana, quando o mais forte começou a se servir do mais fraco.
5
Segundo Mariano Enguita, no livro Educar em tempos incertos.
42
A passagem do indivíduo de um estado de natureza para o de membro de uma
sociedade civil produz, para o filósofo, uma mudança radical referente à
compreensão do homem e de sua inserção na sociedade. Ao substituir sua conduta
instintiva por uma ação baseada na moralidade e nos ideais de justiça, o homem
conquista sua liberdade individual, que passa a ser um de seus principais direitos,
pois ao se reconhecer livre, ou seja, ter consciência de sua liberdade, ele mostra a
espiritualidade de sua alma.
Embora não deva ser considerado um educador, Rousseau é uma das referências
mais destacadas da história da pedagogia moderna por ter tocado na questão de
como educar a razão para assegurar que os indivíduos sejam capazes de
estabelecer o contrato social, exigência do seu tempo. As bases desse projeto estão
explicitadas no seu ensaio em forma de romance, Emílio. Nele o autor procura traçar
as linhas gerais que deveriam ser seguidas com o objetivo de fazer da criança um
adulto bom para concretizar o projeto moderno.
Rousseau trata dos princípios para evitar que a criança se torne má, já que seu
pressuposto básico é a crença na bondade natural do homem. Outro pressuposto de
seu pensamento consiste em atribuir à civilização a responsabilidade pela origem do
mal. Os objetivos da educação, para Rousseau, comportam dois aspectos: o
desenvolvimento das potencialidades naturais da criança e seu afastamento dos
males sociais. A criança, segundo Rousseau, deve estar liberta da tirania das
opiniões humanas, e assim, por si mesma, e sem nenhum esforço especial, se
identificará com as necessidades de sua vida imediata e tornar-se-á auto-suficiente.
Vale lembrar que, com o movimento iluminista do século XVIII, a exaltação da razão
alcançou o seu apogeu, entendida como fonte e estratégia para a regeneração
coletiva das sociedades. Destoante da idéia de uma razão pura como origem do
conhecimento verdadeiro, como queria Descartes, Rousseau defende a dimensão
da vontade humana como verdadeiro traço distintivo do homem com relação ao meio
natural.
[...] não é pois tanto o entendimento que estabelece entre os animais
a distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre.
A natureza manda em todo anima, e a besta obedece. O homem
experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de
aquiescer ou de resistir; e é sobretudo, na consciência dessa
43
liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física
explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das
idéias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no
sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais,
dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica.
(ROUSSEAU, 2005, p. 41-42)
Infere-se do trecho transcrito que o acento do pensamento rousseauniano reside na
qualificação do dilema ético, entendido como um problema anterior à vontade
humana. Assim, não é na razão que se deve buscar orientações para a tomada de
decisões, mas na força da vontade, traço distintivo de humanidade. A piedade
constitui-se na virtude originária, que fornece ao homem civil a capacidade de fazer
a distinção entre o bem e o mal e aí estaria dada a escolha ética.
Para Rousseau, a criança, assim como o homem no estado de natureza, não
conhece essa distinção, o que justifica a ausência de virtude na bondade natural,
portadora apenas da piedade originária. Mediante o exemplo, a revelação e a
imitação viriam o aprendizado da Ética. Em Rousseau, assim como em Aristóteles, a
Ética seria antes uma prática do que um aprendizado conceitual. Desse modo,
recomenda que seja ensinado ao infante a amar todos os homens, inclusive os que
o desdenham, fazendo assim com que não se coloque em nenhuma classe, mas
que se encontre em todas. Salienta ainda que se fale com ternura e piedade do
gênero humano e nunca com desprezo.
É preciso, então, pela educação, alcançar a prudência e o discernimento das
paixões, bem como o domínio dos afetos, para fazer de si próprio seu senhor, ou
seja, é essa aprendizagem constante que vai demarcar o campo do que se pode
compreender como autonomia da vontade. Com efeito, a condição humana seria,
para Rousseau, o livre-arbítrio e as demarcações de escolhas que, sendo
autônomas e espontaneamente engendradas no homem bem formado e bem
cultivado, contribuam para orientar o sentido de sua ação prática.
Para o intento desta dissertação, que optou por trabalhar com os textos literários
como instrumento de reflexão dos dilemas éticos, vale a pena trazer a posição de
Rousseau sobre o acesso a qualquer tipo de literatura destinada a crianças até os
doze anos. No Emílio adverte que a literatura, nessa fase da vida, é nociva e
argumenta que a sociedade que se apresenta através da literatura pode estimular a
44
imaginação que, segundo o filósofo, se configura como um implacável algoz porque
pode desencadear frustrações e sofrimentos desnecessários. Em seu tratado dedica
especial atenção à análise das Fábulas de La Fontaine, a literatura infantil por
excelência de sua época, e adverte que “não há uma única criança que as entenda.
Mesmo que as entendessem, seria ainda pior, pois a moral é tão impura e tão fora
de proporção com a idade, que as conduziria mais ao vício do que à virtude”
(ROUSSEAU, 1999, p.121).
Assim, no entendimento de Rousseau, não apenas as Fábulas, mas qualquer
literatura é capaz de corromper a criança porque até os doze anos ela não tem ainda
condições de discernir entre o certo e o errado, entre a mentira e a fantasia. Dessa
forma, a educação das crianças até os doze anos deverá limitar-se ao exercício e a
educação dos sentidos e do aparelho motor.
Na mesma direção, Immanuel Kant (1724-1804) demarca o campo da Ética como
aquele da distinção humana, da especificidade e particularidade do homem perante
sua circunscrição. Para Kant, como em Rousseau, o homem por natureza está
destinado a escolher, a eleger caminhos e propor trilhas, obrigado também a
justificar suas escolhas. A sua filosofia moral, com destaque para a obra
Fundamentos para uma metafísica dos costumes (1785), exerceu profunda
influência no desenvolvimento do pensamento ético moderno e contemporâneo.
Kant revolucionou a filosofia quando sustenta que no terreno do conhecimento
não é o sujeito que gira ao redor do objeto, mas ao contrário. O que o
sujeito conhece é o produto de sua consciência. E a mesma coisa se
verifica na moral: o sujeito – a consciência moral – da a si mesmo a
sua própria lei. O homem como sujeito cognoscente ou moral é ativo,
criador e está no centro tanto do conhecimento quanto da moral.
(VÁZQUEZ, 2002, p. 282)
Kant situa a moralidade em termos de “leis morais”. Ele busca esclarecer a idéia
comum do dever e das leis morais e defende que uma lei que é moralmente válida
deve trazer consigo uma necessidade absoluta e deve ser válida para todos os
seres racionais. Distingue ainda as leis morais das leis da natureza. As leis morais,
também chamadas de leis de liberdade, são leis segundo as quais tudo deve
acontecer. Contudo, Kant inicia sua investigação da moralidade não pela discussão
45
direta do que sejam as leis morais, mas pela busca de compreender qual a natureza
de uma ação moralmente boa.
Ele argumenta que o único bem em si mesmo é uma boa vontade e que as pessoas
comuns sabem perfeitamente que ações são moralmente boas, que ações são
moralmente más. Defende que a reflexão acerca do que é uma boa vontade, sobre o
que significa agir com boa vontade, possibilita a compreensão da natureza essencial
da moralidade. Segundo o filósofo a bondade de uma ação não se deve procurar em
si mesma, mas na vontade com que se fez.
Kant coloca o bem no horizonte, expresso como imperativo categórico, ou seja,
como intuição primeira posta como dever, o que a torna uma obrigação de
consciência e não uma obediência às normas. Ao escolher as normas o sujeito da
ação instaura uma validade universal, na medida em que, como dever de
moralidade, torna-se justa a intenção, que regulará o campo do agir. Para Kant, agir
com uma boa vontade é algo bom em si mesmo, independente de ser alcançado ou
não os propósitos almejados. É boa a vontade que age por puro respeito ao dever,
sem razões outras a não ser o cumprimento do dever ou a sujeição à lei moral.
A vontade moral estaria, pois, em concordância com leis universais irredutíveis, as
quais se remeteriam à máxima posta na grande referência da ação prática kantiana:
“age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei
universal da natureza” (KANT, 1980, p.130).
O princípio da universalização, segundo Kant, é o único que pode motivar a vontade
independentemente de qualquer inclinação e que orienta o homem a agir de maneira
que possa desejar que sua máxima se torne uma lei universal. Kant, através da
formulação do “princípio da universalização”, fornece um critério para que as
pessoas possam identificar e decidir qual é o seu dever. Ele acredita que o homem é
legislador de si mesmo, ou seja, é capaz de formular leis de conduta e agir segundo
essas leis, porque como ser racional e dotado de vontade pode demonstrar a sua
liberdade como expressão de vontade para todos os seus iguais, porque
[...] não contendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade
da máxima que manda conformar-se com esta lei, e não
contendo a lei nenhuma condição que a limite, nada mais resta
senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da
46
ação deve ser conforme, conformidade essa que só o imperativo
nos representa propriamente como necessária. O imperativo
categórico é, portanto, só um único, que é este: age apenas
segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne lei universal. (KANT, 1980, p.129)
Ao considerar as linhas mestras da filosofia moral formulada por Kant é necessário
entendê-las no âmbito da idéia de um a priori, que independente da ação empírica
são colocadas as condições necessárias para o agir conforme a vontade e o bem.
Assim como Rousseau, Kant fornece à modernidade o alicerce constitutivo da
sociedade pautada não mais na vontade divina, mas na razão humana.
1.2.4 Entre o desalento e a esperança
Tem horas em que penso que a gente carecia,
de repente, de acordar de alguma espécie de
encanto. As pessoas, e as coisas, não são de
verdade!
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
Os pilares de sustentação da sociedade moderna encontraram no século XVIII as
condições para o seu apogeu e desde o final do século XIX esses pilares vêm sendo
tematizados. A exacerbação da razão, a confiança no futuro, a fé no progresso e a
linearidade do tempo são ícones postos em causa a partir dos horrores que a
modernidade produziu paradoxalmente, ao lado de conquistas louváveis e
irreversíveis para a humanidade.
O mundo moderno imprimiu um ritmo próprio ao desenvolvimento civilizatório e
torna-se cada vez mais difícil identificar uma linearidade entre passado, presente e
futuro. O homem moderno parece vagar pelo mundo, desconectado de suas origens
e sem qualquer relação com o passado da época em que vive. No entanto, é
obrigado a realizar escolhas frente aos dilemas vivenciados nas diferentes relações
sociais. Essas decisões se pautam em valores e crenças que muitas vezes se
apresentam de forma efêmera e contraditória. Assim, relacionar-se com as outras
pessoas tornou-se um dos grandes desafios da contemporaneidade. A capacidade
de colocar-se no lugar do outro se torna cada vez mais difícil diante de um
47
individualismo exarcerbado cada vez mais difuso, fruto da exigência capitalista e de
sua ideologia.
Nesse contexto de relações breves e aligeiradas, o presente, como afirma
Boaventura de Souza Santos (2004, p.779) transformou-se num instante fugidio,
entrincheirado entre o passado e o futuro. A velocidade do mundo e da criação
humana ameaça constantemente o homem que já não consegue atribuir sentidos às
suas próprias conquistas e descobertas. O homem moderno foi capaz de façanhas
inimagináveis para os tempos pré-modernos, no entanto, não conseguiu responder
questões básicas do cotidiano que atormentam a sua própria existência. A
humanidade parece atribuir sentido apenas as coisas que de alguma maneira
possam atender as necessidades do indivíduo, geralmente criadas pela lógica
capitalista.
A vida moderna abandonou o homem aos seus sentidos e sentimentos facilmente
descartáveis, forçou homens e mulheres à condição de indivíduos preocupados
exclusivamente consigo mesmos e com suas vidas fragmentadas. Freud (1969)
parecia prever tudo isso quando em 1930 disse:
Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a
defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à
distância das outras pessoas. A felicidade passível de ser conseguida
desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o
temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de
afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós
mesmos.
(p.85)
Nessa furiosa individualização relacionar-se está cada vez mais difícil. Como diz
Bauman (2004, p. 8), no líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez
sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente
sentidos da ambivalência.
As tentativas de compor e impor uma moralidade que pudesse balizar a conduta
humana e assim amenizar o sofrimento humano fracassaram diante da
fragmentação e das contradições modernas. Não é por acaso que as discussões em
torno da Ética invadiram diversos segmentos da sociedade atual, banalizando e
esvaziando o seu sentido. Parece que Bauman (1997, p. 23) acerta novamente
quando diz que de muitas coisas podemos afirmar que quanto mais delas se
48
necessita, tanto menos facilmente estão disponíveis. O homem contemporâneo
carece de normas éticas que o ajudem a balizar seu comportamento e segundo
Bauman (1997, p. 246), a única moralidade de que dispomos ainda é a que
herdamos dos tempos pré-modernos, mas é uma moralidade de proximidade e como
tal infelizmente inadequada numa sociedade em que toda ação importante é a ação
à distância.
A modernidade nos submeteu a uma ácida erosão de nossos valores e crenças.
Nessa terra de ninguém, o que sabemos de nós e dos outros é fácil e imediato,
talvez seja demasiadamente insuficiente para nos aventuramos nesse mundo e
corrermos os riscos necessários. Nessa desordem mundial em que vivemos
precisamos tratar a incerteza moral que nos aflige cotidianamente como o grande
desafio do homem moderno. Isso não significa incorporar valores e crenças dos
tempos pré-modernos, mas conectar-se novamente a nossa história, re-significar o
presente porque o passado não está morto, juntar os pedaços dessa sociedade
composta de episódios e fragmentos e definir o bem que buscamos.
Mas qual o bem que buscamos? A pluralidade de caminhos e a ambivalência dos
juízos morais configuram a crise ética contemporânea. Na modernidade, como vimos
no pensamento ético de Kant e Rousseau, a liberdade assumiu um lugar importante
e significativo nas discussões em torno da Ética. O homem moderno é livre para
escolher, para julgar e para ser o que desejar. Entretanto é também responsável por
suas ações e como afirma Bauman (1997, p.27) “esse fato não torna mais fácil a
vida, [...] sentimos muita falta da responsabilidade quando ela nos é negada, mas
quando a conseguimos de volta, faz-se sentir como carga demais pesada para se
carregar sozinho”.
Assim não cessam as tentativas de encontrar fundamentações que balizem nossas
escolhas. Estamos vivendo uma moralidade sem prescrições, com regras e leis que
beneficiam cada vez mais alguns poucos privilegiados. Nesse tempo sem ilusões
descobrimos que somos responsáveis pela nossa vida moral e que não haverá mais
nenhuma transcendência capaz de nos proteger e orientar. “Ser moral significa ser
abandonado à própria liberdade” (BAUMAN, 1997, p.73), ou seja, a liberdade nos
deixou órfãos.
49
O desalento trouxe também o reencantamento. Nesse mundo sem rumo cada um
também está livre para buscar seus próprios referentes. Segundo Bauman (1997,
p.42), “restituiu-se dignidade às emoções; legitimidade às ‘inexplicáveis’, e mesmo
irracionais, simpatias e lealdades que não se podem ‘explicar’ em termos de
utilidade e propósito”. Aprendemos também a admitir que nem tudo está explicado e
que talvez nunca possa ser explicado. O mistério deixou então de ser “um
estrangeiro maltolerado à espera da ordem de deportação” (BAUMAN , 1997, p.42).
A ruptura da couraça rígida dos códigos éticos modernos abriu espaço para outra
moralidade em que a negociação ética é possível. O reencantamento do mundo
[...] traz a oportunidade de encarar a capacidade moral humana sem
rebuços, tal como é realmente, sem disfarces e sem deformações; de
readmiti-la no mundo humano vindo de seu exílio moderno; de
restaurá-la em seus direitos e sua dignidade; de apagar a memória da
difamação, o estigma deixado pelas desconfianças modernas.
(BAUMAN, 1997, p. 43)
Bauman afirma ainda que todo tipo de fundamentação é ilusória. As tentativas que
filósofos e legisladores empreenderam ao longo da construção do pensamento ético
já não são suficientes para ancorar o agir humano. Ressalva o autor (p.90) que “é
precisamente o ato de buscar que funda o eu moral, sendo, por assim dizer, a única
fundamentação que a moralidade pode ter e a única que ela suportará”. Mas em que
consiste o ato de buscar? Também não se sabe ao certo, no entanto é preciso
considerar que
a incerteza embala o berço da moralidade, a fragilidade a persegue
pela vida. Não há nada de necessário no ser moral. Ser Moral é
oportunidade que se deve assumir; ainda que se possa, e muito
facilmente, perder. O busílis, porém, é que perder a oportunidade da
moralidade é também perder a oportunidade do eu. (BAUMAN, 1997,
p.91)
Assim a única fundamentação possível é a ambivalência. E para desespero dos que
procuram herméticos códigos para a conduta humana, esse certamente não é um
fundamento razoável. Mas Bauman (1997, p. 92) defende que a ambivalência reside
no coração da moralidade: sou livre na medida que sou refém. A liberdade não é
absoluta, “cada liberdade celebrada é uma liberdade da dependência mais temida,
mas não uma dependência como tal” (BAUMAN, 1997, p. 101).
50
Segundo o autor os grandes temas da Ética precisam ser revistos e tratados de
modo inteiramente novo. A contemporaneidade pode representar uma alvorada e
não um entardecer para a Ética. Para Bauman a dor de hoje é um avanço sobre a
dor de ontem e talvez o progresso moral não signifique menos sofrimento. Entretanto
conseguiremos descartar os sofrimentos sem função e passar “do sofrimento sem
sentido para o sofrimento com sentido”. Assim, mais uma vez, se configura a
frustração oriunda da incerteza moral como uma conquista para a moralidade. Se
nada disso nos ajudará a tornar a vida mais fácil, pelo menos poderemos imaginá-la
mais ética.
Na perspectiva do reencantamento do mundo, minha esperança recai sobre a
educação de nossas crianças. O caminho não é fácil, mas talvez o único possível
para garantir uma vida mais digna. Nunca antes na história fomos tão lúcidos acerca
dos processos educativos e nunca tivemos tantas dúvidas e incertezas sobre o fazer
pedagógico. Entretanto é urgente que tenhamos ousadia e coragem para abandonar
o plano do choro e incorporar o plano da ação.
Por este motivo é que assumi, como propósito, o desafio de questionar a formação
de professores que se realiza em nosso país, e principalmente, de inaugurar uma
discussão acerca da inserção do saber ético como um saber docente nos programas
de formação, seja na modalidade inicial ou continuada.
Posso, desde já, afirmar que, pelo menos no âmbito dessa pesquisa, as professoras
em formação do Curso Normal Superior, tiveram o direito de refletir, em seu
processo de formação, sobre as suas escolhas, sobre o seu agir e sobre as decisões
que precisam tomar em seu exercício profissional.
51
2 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES E O SABER ÉTICO
Os esclarecimentos conceituais trazidos no capítulo anterior, bem como os
deslocamentos do termo Ética no âmbito da civilização ocidental, impõem-se neste
trabalho, porque é com superficialidade que a palavra ética tem aparecido nos
discursos contemporâneos, o que a torna esvaziada de sentido, próximo ao
opinativo.
No que se refere a relação entre ética e docência – objeto deste estudo – o tempo
presente, contudo, não traz um fundamento que substitua o que o passado deixou.
Após o percurso realizado no capítulo anterior fica o sentimento de que tudo já foi
dito, mas não é bem assim. Compreender a Ética supõe o entendimento da sua
relação com a vida justa e esta só pode ser apreendida quando pensada na
realidade social, na vida com os outros e na interação coletiva, em última instância,
na esfera pública, como proposta por Hannah Arendt (1997), quando defende a
autonomia e a dignidade da política – condição perdida, segundo ela, com a
inversão de valores ocorrida na modernidade, quando a lógica privada ganha
dimensão pública e a política passa a se constituir numa mera esfera administrativa
atribuída ao Estado.
Por essa orientação, pensar a formação de professores articulada com a Ética e com
o saber ético supõe uma inversão lógica no sentido de deslocar a discussão da
perspectiva individualista que está na base das recentes propostas oficiais, para
situá-la no campo da experiência concreta dos sujeitos implicados. Isto sugere a
compreensão do campo formativo como espaço relacional, que se publiciza com o
outro, em que os princípios do agir e as escolhas se exprimam no exercício
continuado para aprender a escolher, no plano dos valores, pois esses não estão
dados de partida.
A formação de professores sempre ocupou espaço central, seja nos discursos
oficiais, quando de cada reforma da educação, seja no campo da produção
acadêmica. No entanto, nas duas últimas décadas, os discursos em torno da
52
formação de professores foram intensificados, em especial daqueles que lidam com
a Educação Infantil e com as Séries Iniciais do Ensino Fundamental.
Marli André (1999) realizou uma pesquisa com o objetivo de fazer uma síntese
integrativa do conhecimento sobre o tema formação do professor, com base na
análise das dissertações e teses defendidas nos programas de pós-graduação em
educação no país, no decorrer da década de 1990, dos periódicos da área e das
pesquisas apresentadas no Grupo de Trabalho Formação de Professores da
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação - ANPED. Conclui
a pesquisadora, dentre outras questões, que “[...] as diversas fontes analisadas
mostram um excesso de discurso sobre o tema da formação docente e uma
escassez de dados empíricos para referenciar práticas e políticas educacionais” (p.
309). Nas fontes pesquisadas por Marli André não se verifica uma atenção à
problemática deste trabalho, qual seja, o de articular ética e docência na formação
de professores.
Por outro lado, as inúmeras publicações tanto nacionais como internacionais
confirmam a intensidade de pesquisas no campo da formação de professores nas
últimas décadas. Donald Schön (1997); António Nóvoa (1992, 1995a, 1995b, 1999,
2002); Isabel Alarcão (1995, 1996); Maurice Tardif (2005a, 2005b); Selma Garrido
Pimenta (2005); José Carlos Libâneo (2005a, 2005b); Ilma Passos Veiga (1998,
2005) e tantos outros.
No entanto, produções que articulam ética e formação de professores ainda se
mostram tímidas e incipientes, ou ausentes das elaborações acadêmicas, muito
menos verificadas nos currículos em ação. Os programas de formação de
professores têm atribuído pouca importância sobre uma questão inconteste, a de
assumir a ação educativa como prática relacional, portanto, uma instância por
excelência de conflitualidade intrínseca à docência, logo, rica de possibilidades de
estudos e reflexões, desde que não seja reduzido a prescrições normativas.
O exercício da docência está fundado nas interações e nos seus decorrentes
conflitos em que o professor, inserido nessa categoria, vê-se obrigado a escolher
frente aos dilemas vivenciados nas relações sociais mais amplas e, por extensão, no
exercício da sua profissão na instituição social chamada escola, no espaço da sala
53
de aula. Nesse sentido, é possível dizer que os professores possuem um saber que
baliza as suas relações com o conhecimento, com os seus alunos e com o mundo,
mesmo que à revelia dos interesses políticos, econômicos, das reformas, ou dos
conhecimentos validados pela ciência.
No exercício profissional, a escolha também se impõe como imperativo categórico,
porque constitutiva da atividade docente, atividade tipicamente humana. Enquanto
prática relacional, a docência, campo de interesse desta pesquisa, se configura
como uma atividade que se expressa em uma rede constituída de fios que se
entrelaçam, muito além de uma mera atividade mecânica. Não há como ignorar a
natureza prática do exercício docente, contudo, tal exercício envolve subjetividades
e subjetivações, que forjam teias de vidas entrecruzadas.
2.1 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO BRASIL
Os anos 1980 foram marcados por um acirrado debate em torno da democratização
do ensino, colocando em evidência as interfaces entre educação e sociedade.
Temas como o acesso e a permanência dos estudantes na escola, a elevação dos
padrões de qualidade da educação e a formação dos professores integravam a
pauta das discussões em todo o país. No entanto, a concepção de formação vigente
desde então carrega a marca empresarial, ou seja, a preparação de recursos
humanos para a educação dentro da ótica tecnicista que impera até hoje no
pensamento oficial. Confirma-se mais uma vez a relação direta entre os processos
de produção e os processos educativos e a subordinação das práticas educativas
aos interesses do capital.
Nessa perspectiva, os programas de formação continuada dos professores são
realizados de forma isolada, fragmentada e desarticulada. As secretarias de
educação não conseguem consolidar políticas de formação que assegurem a
continuidade das ações formativas, ficando, geralmente, à mercê dos programas
governamentais que são, na sua maioria, financiados pelo Banco Mundial. Este, por
sua vez, exerce forte influência no processo de desenvolvimento da sociedade
brasileira, definindo inclusive políticas educacionais para o país, o que, de certa
54
forma, contribui diretamente com a posição mercantilista em que a educação
brasileira se encontra. Sobre esse ponto, Boaventura de Sousa Santos (2000)
informa que,
Partindo das necessidades econômicas, geradas no setor produtivo e
nas formas como ele se estrutura e se organiza, o BM destaca o papel
da educação para o desenvolvimento das sociedades
contemporâneas. Depois de mostrar as altas taxas de retorno trazidas
por investimentos no campo educacional, o BM define políticas, nesse
campo, para os países do terceiro mundo com o objetivo de melhorar
a sua competitividade no mercado internacional. (p.174)
Desse modo, o Banco Mundial priorizou três eixos com vistas à qualidade do ensino:
o aumento do tempo de instrução, a melhoria do livro didático e a capacitação em
serviço dos docentes. Desde então a formação continuada passou a ocupar um
lugar de destaque nos discursos oficiais e a ênfase dada à formação continuada
decorre da análise de aspectos econômicos, baseada em estudos de custo-
benefício, com vistas à formação de profissionais tecnicamente competentes.
Salta aos olhos o foco na instrução, um indicativo das rupturas pelas quais a
concepção de educação vem sofrendo com rebatimento na formação do professor.
Claude Lefort (1999) chama a atenção para o que vem ocorrendo no nosso tempo e,
com relação à posição do educador, acentua que “o mestre perde a noção de seus
próprios fins, a idéia que a sua própria identidade se acha engajada em seu trabalho
de formação” (p.220).
A educação reduzida à instrução retira da instância formativa a possibilidade de
reflexão sobre o próprio fazer e mais ainda sobre a relação com o outro, porque o
que importa é o domínio das técnicas para mobilizar o outro a também dominar
essas técnicas. Sob essa ótica o trabalho docente torna-se [...] uma técnica que, de
resto ele pode gostar ou não gostar, na qual pode ou não ser competente, porém, no
melhor dos casos só será capaz de lhe trazer benefícios secundários (LEFORT,
1999, p.220).
Configura-se, assim, a formação continuada como um meio mais econômico e mais
eficiente para formar professores porque, segundo essa premissa, para otimizar o
tempo de instrução dos futuros trabalhadores basta instrumentalizá-los na
conformação das diretrizes e normas pré-estabelecidas. Assim, o Banco Mundial
55
organizou com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF, da
Organização das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura - UNESCO e do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, no ano de 1990, em
Jomtiem, Tailândia, a Conferência Mundial de Educação para Todos, em que foram
definidas as diretrizes a serem seguidas na educação para todos, sintetizadas em
um documento mais conhecido como “Relatório Jacques Delors”.
A partir de então, o Ministério da Educação - MEC propõe um Plano Decenal de
Educação para o período de 1993 a 2003 e ataca diretamente a falta de habilitação
dos professores e demais profissionais da educação. Três anos depois, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional é aprovada e a capacitação em serviço e
os programas de educação continuada para os profissionais de educação dos
diversos níveis ganham destaque. Finalmente, em 1998, o MEC publica os
Referencias para a Formação de Professores (RFP), que sugerem um currículo
mínimo para a formação desses profissionais.
Na primeira parte do RFP, há uma alusão ao Relatório Delors que apresenta os
quatro pilares
6
da educação para as próximas décadas e que exige uma formação
profissional muito superior à atual. O documento ressalta ainda que,
[...] o próprio relatório (Delors) enfatiza a relevância do papel dos
professores para a formação dos alunos e, conseqüentemente, a
urgência de uma formação adequada ao exercício profissional e de
condições necessárias para um trabalho educativo eficaz. (BRASIL,
MEC, 1998, p.26)
Na segunda parte do documento são apresentadas as bases epistemológicas da
proposta que se ancoram em teorias que situam o professor como ser reflexivo, cuja
principal referência é a atuação profissional, com ênfase no “aprender fazendo”
(BRASIL, MEC, 1998, p.61). O RFP utiliza a concepção de formação de professores
que emerge a partir de estudos e pesquisas realizadas, principalmente, por Donald
Schön (1997), António Nóvoa (1992, 1995a, 1995b, 1999, 2002) e Isabel Alarcão
(1995, 1996). Esses autores propõem uma formação profissional baseada numa
epistemologia da prática, ou seja, na valorização da prática profissional como
momento de construção de conhecimento, através da reflexão, análise e
problematização de situações vivenciadas no âmbito do exercício profissional.
6
Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser.
56
Inicia-se aí a consolidação da concepção de profissional de educação que tem na
docência a sua particularidade e especificidade. A tríade conhecimento na ação,
reflexão na ação e reflexão sobre a reflexão na ação passa a ser o discurso oficial
explicitado nas diretrizes de formação de professores em todo país. As pesquisas
realizadas por Antônio Nóvoa e Isabel Alarcão, a partir das contribuições de Schon,
encontraram um terreno fértil no Brasil porque, segundo Pimenta (2005, p. 28 – 35),
esse movimento, conhecido como “professor reflexivo”, se configurou como uma
alternativa para minimizar a distância entre os cursos de formação e as práticas
escolares e subsidiar os debates, ocorridos no interior das universidades, em torno
da necessidade de se proceder a uma transformação paulatina da formação dos
professores para a escolaridade básica a ser realizada no ensino superior.
Contudo, como afirma Pimenta (2005, p.22), as contribuições dos referidos autores
acerca do “protagonismo do sujeito professoral” também geraram preocupações
acerca da possibilidade de um “praticismo” e de um “individualismo”. Entende-se aí
uma interpretação deturpada, mas extremamente oportuna para o discurso
neoliberal dos anos 90, de uma prática que por si só seria capaz de ser re-
significada e de um professor que, individualmente, seria responsabilizado pelo
sucesso ou fracasso de seu trabalho, totalmente desconectado das condições sócio-
histórico e culturais que configuram sua atuação profissional.
A partir dessa orientação verifica-se um esvaziamento das discussões filosóficas,
sociológicas e antropológicas que dão sentido a ação educativa. Os programas de
formação de professores, seja na modalidade inicial ou continuada, consolidaram a
instrumentalização em detrimento a formação em seu sentido mais amplo, mas
como afirma Sacristán (1999):
A ação do ensino não pode ser considerada como um mero recurso
instrumental, uma técnica para conseguir metas abstratamente,
porque essas metas não podem ser qualquer fim e porque os meios
para consegui-las operam em contextos incertos, sobre seres
humanos que impõem critérios ao que se faça com eles: o fim não
justifica os meios, muito menos na educação, em que os frutos são
efeitos das ações avaliados como valiosos (p.44).
A epistemologia da prática, enquanto concepção de formação de professores, corre
o risco de se transformar num tecnicismo travestido de reflexividade. A formação de
professores não pode se restringir à reflexão acerca de instrumentos ou estratégias
57
metodológicas. Antes disso, é imperativo que se discuta os fundamentos do ato
educativo e do sentido de ser professor no mundo contemporâneo.
Na contramão dos discursos oficiais e longe de reduzir os espaços em que os
professores experimentam a vida em sociedade, parto do pressuposto de que a
escola é um lócus de construção do saber ético, portanto, do saber docente. Lugar
em que alunos e professores se encontram, cada qual com suas crenças e seus
valores, onde aprendem a se mover em meio aos dilemas éticos com os quais se
deparam. Uma esfera pública por excelência, na medida em que, os que ali se
encontram, são convidados a tornar-se para o outro e a objetivar o seu mundo
singular. Nessa perspectiva, assumir a escola como espaço público pressupõe o
entendimento de que “a realidade da esfera pública conta com a presença
simultânea de inúmeros aspectos e perspectivas, nos quais, o mundo comum se
apresenta e para os quais nenhuma medida ou denominador comum pode jamais
ser inventado” (ARENDT, 1997, p. 67).
Nesse sentido, a escola, enquanto espaço público, se constitui como um dos
primeiros e mais ricos ambientes de encontro com a diferença e no qual se
estabelecem as primeiras negociações para a construção de regras de convívio
social que devem ser internalizadas por todos, não apenas em seus resultados, mas
na sua forma de construção e na prática de seu cumprimento.
Na escola a possibilidade do diálogo e da negociação pode se configurar como um
conteúdo de formação dos sujeitos ali envolvidos, professor e aluno. No entanto, é
importante considerar que esse diálogo se constitui do confronto dos diferentes
valores e princípios oriundos da vida privada de cada um. Cabe à escola então,
como instância pública, garantir o espaço para a negociação porque, como informa
Arendt (1997):
Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos
vêem e ouvem de ângulos diferentes. É este o significado da vida
pública, em comparação com a qual até mesmo a mais fecunda e
satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou a
multiplicação de cada indivíduo, com os seus respectivos aspectos e
perspectivas (p. 67).
A escola é também o encontro da diversidade de fundamentos que balizam a vida
em sociedade e seus decorrentes embates. Isso porque a posição que cada sujeito
58
assume frente aos dilemas que enfrenta em seu cotidiano está ancorada em
determinados fundamentos axiológicos, os quais nem sempre estão para a
consciência de quem os exprimem.
A escola, tal qual a concebemos ainda nos dias de hoje, é fruto do projeto moderno
que visava principalmente a supremacia da razão, da racionalidade científica e dos
princípios liberais, como forma de elevação do sujeito. Assim, ao fazer do saber um
instrumento de poder, a instituição escolar, poderia desempenhar seu papel
ideológico na produção, reprodução e legitimação do conhecimento, além de
contribuir para a propagação de um determinado modelo cultural através das
práticas educativas institucionalizadas.
Entretanto, de uma forma geral, podemos dizer que o que nutre os fins, que movem
e dão impulso ao ideal de educação universalizada é, antes de tudo, a manutenção
do sistema de produção industrial, a socialização e controle dos indivíduos a serviço
de uma sociedade caracterizada pelo modelo capitalista de produção e a
preservação de valores enraizados na cultura ocidental.
Como em qualquer outra instância social, a educação moderna também sobrevive
de suas contradições. Nunca antes na história da humanidade fomos tão lúcidos e
criativos acerca dos processos educativos e nunca tivemos tantas dúvidas e
incertezas sobre o fazer pedagógico, mesmo porque romper com os ideais que
estão na base do projeto educativo moderno não é tarefa fácil. O primeiro passo
talvez seja tomar consciência dos valores e princípios que regem nossas escolhas
quando estamos diante da tarefa de educar as crianças, e reconhecer que esses
princípios devem ser analisados sempre com relação a um determinado tempo-
espaço.
Os atuais programas de formação de professores propõem estratégias retóricas em
torno de termos como solidariedade, justiça, dignidade, vida comum, o que é
contradito quando enfatiza a instrução. Isto pode ser verificado nas prescrições
normativas de comportamentos “politicamente corretos” presentes nos Parâmetros
Curriculares Nacionais.
59
Não há como enfrentar problemas éticos ou morais como, por exemplo, aqueles
enfrentados pelos professores em formação, diante de situações dilemáticas
inerentes às suas práticas educativas, sem situar o contexto em que estão inseridos.
Não somente o professor, mas todo ser humano, diante da necessidade de escolher
seu próprio caminho, busca e institui fundamentos a fim de balizar sua vida em
sociedade. Nesse sentido o espaço de formação pode ser ao menos provocativo.
2.2 A DIMENSÃO ÉTICA DO EXERCÍCIO DA DOCÊNCIA
O enfoque instrumentalista e o aligeiramento da formação de professores, de fato,
colocaram importantes fundamentos da prática educativa à margem das propostas
formativas nos últimos anos. Dentre outras questões, a dimensão ética e política
como princípio formativo, sofreu um apagamento na educação e por extensão, nas
orientações formativas. Esclarecedor é o que traz Claude Lefort (1999):
O que há de notável, no tempo como o nosso em que nunca antes se
falou tanto de necessidades sociais da educação, em que nunca antes
se deu tanta importância ao fenômeno da educação, em que os
poderes públicos nunca antes com ela se preocuparam tanto, é que a
idéia ético-político da educação se esvaziou. (p.219)
Como contraponto a este vazio, referências como Paulo Freire continuam sendo
uma indicação para educadores que não se curvam diante dessa marginalização e
continuam heroicamente insistindo em assegurar princípios caros para
sustentabilidade da condição humana, tais como pensar, estabelecer relações,
produzir sentidos, projetar-se para além do presente. Só o homem é capaz de
realizar essas tarefas, caso as condições concretas favoreçam.
Na década de 1990, Paulo Freire apontou alguns saberes necessários à prática
educativa em seu consagrado livro Pedagogia da autonomia e reiterou a posição
que havia assumido na Pedagogia do oprimido sobre a não neutralidade da
educação, por ser o processo educativo necessariamente um ato político, e como
tal, uma relação de poder, que se expressa sob a forma de opressão ou de
libertação dos sujeitos constitutivos dessa relação.
60
Desde então, Paulo Freire tem sido o grande inspirador de práticas pedagógicas na
perspectiva do enfrentamento das conflitualidades frente às contradições que se
instalam para o agir do professor no mundo contemporâneo. A referência ao autor
tornou-se quase uma unanimidade para aqueles que continuam a defender o ato
educativo como um ato político. Para o intento deste trabalho, importa destacar o
vínculo que Paulo Freire estabelece com a Ética.
Ao definir o ato educativo como um ato político, Paulo Freire, conseqüentemente
vincula Ética e docência, na medida em que é suposto nesse ato a obrigação com a
escolha e só o homem pode escolher. Nessa perspectiva, destaca, logo nas
primeiras linhas de Pedagogia da autonomia, que se acha “absolutamente
convencido da natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente
humana” (2003, p.17).
Entretanto, a ética à qual Paulo Freire (2003, p.18) se refere não é a ética do
mercado que se curva obediente aos interesses do lucro. Refere-se a uma ética
“enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável
à convivência humana”.
[...] mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma
presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que,
reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece
como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe
presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas
também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que
decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da
liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da
ética e se impõe a responsabilidade. (FREIRE, 2003, p.18)
A natureza da ética freireana ancora-se na certeza do inacabamento, na condição
humana de ser um ausente de si mesmo e que, por isso, passa a ser obrigado a
aprender a ser. Segundo Freire (2003, p.52), é impossível existir sem assumir o
direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. A consciência do
inacabamento é que nos faz seres responsáveis, daí a eticidade de nossa presença
no mundo. É nesse sentido que para o autor
[...] estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e
com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser
feito, sem fazer cultura, sem "tratar" sua própria presença no mundo,
sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da
61
terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem
pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem
assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem
idéias de formação, sem politizar não é possível. (FREIRE, 2003,
p.57-58)
O professor, inserido no mundo, também é um ser inacabado e condicionado.
Enquanto sujeito ético é obrigado a fazer-se a si mesmo, na relação e comunhão
com o outro, ao mesmo tempo em que se propõe a construir com este o seu próprio
“si mesmo”. Como assevera Freire (p.58-59), esse é um saber fundante da nossa
prática educativa, da formação docente, da nossa inconclusão assumida. O
inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos. O respeito à
autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que
podemos ou não conceder uns aos outros. Quando se refere ao ensino, esse ofício
relacional, Paulo Freire instiga o pensar e encoraja os que lidam diariamente com a
tarefa de educar.
Ensinar e, enquanto ensino, testemunhar aos alunos o quanto me é
fundamental respeitá-lo e respeitar-me são tarefas que jamais
dicotomizei. Nunca me foi possível separar em dois momentos o
ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos. A prática
docente que não há sem a discente é uma prática inteira. O ensino
dos conteúdos implica o testemunho ético do professor. A boniteza da
prática docente se compõe do anseio vivo de competência do docente
e dos discentes e de seu sonho ético. Não há nesta boniteza lugar
para a negação da decência, nem de forma grosseira nem farisaica.
Não há lugar para puritanismo. Só há lugar para pureza. (FREIRE,
2003, p. 94-95)
Nessa instigante reflexão, Paulo Freire torna explícita a dimensão ética do exercício
docente. Quando afirma que a ética é inseparável da prática faz alusão à maneira
como lidamos com os conteúdos que ensinamos. Assim, a discussão epistemológica
é também uma discussão ética, que vislumbrados os fins seleciona-se os meios,
como sustentou Aristóteles. Desde as intenções inerentes à escolha de
determinados conteúdos em detrimento de outros podem fomentar, por exemplo,
uma fecunda reflexão acerca dos valores morais implícitos nessa escolha. Insisto
ainda que a reflexão ética acerca do ato educativo não deve estar desassociada das
demais dimensões que o constitui.
Assim como Paulo Freire, outros educadores brasileiros ressaltaram a dimensão
ética da ação pedagógica e sua relação com a formação de professores. Destaca-se
62
aí Aquino (1996a, 1996b, 1999 e 2000) que em seus estudos fomenta a discussão
em torno de impasses recorrentes do cotidiano escolar como a indisciplina, a
violência, a crise de autoridade e os confrontos na relação professor-aluno.
Especialmente no seu livro Do cotidiano escolar: ensaios sobre a ética e seus
avessos, Júlio Groppa Aquino (2000, p.11-33) ressalta a lacuna bibliográfica sobre o
tema e o estado incipiente das discussões na área. Reconhece a iniciativa dos
Parâmetros Curriculares Nacionais ao inaugurar um corpo de discussão sobre a
ética no meio escolar, entretanto critica a sistematização curricular da ética como
“tema transversal”, afirmando que essa abordagem enfoca o currículo e os
conteúdos pedagógicos stricto sensu. Longe de substituir um pelo outro, o autor
enfatiza os dilemas intrínsecos ao cotidiano dos protagonistas escolares, a que
chama de “ética no convívio”. Indica que deveríamos promover uma ênfase mais
nítida no dia-a-dia da sala de aula, isto é, na “qualidade” mesma da intervenção
escolar – parte daquilo que entende como “ética pedagógica”. Arremata ainda,
afirmando enfaticamente, que é no espaço sagrado das aulas, no instigante
confronto cotidiano entre agentes e clientela, no coração mesmo da relação
professor-aluno, que a ética pedagógica (ou a falta dela) se presentifica com mais
força.
Outra contribuição vem de Ilma Passos Veiga que, em 2005, divulgou uma pesquisa
sobre a construção ético-profissional da docência. Nesse trabalho, propõe-se a
refletir sobre a fundamentação ético-profissional para a docência, como uma
dimensão inerente à profissionalização docente. Assim, busca evidenciar a
historicidade da docência, os marcos do seu processo de profissionalização e
algumas demarcações éticas que estão na base da atividade docente. Além disso,
analisa códigos de ética profissional vigentes no país e o ensino de ética profissional
na educação superior.
Em relação à constituição ética na atividade docente a autora propõe duas
dimensões: de um lado a dimensão interativa entre os sujeitos implicados no
exercício da docência e de outro a dimensão socioinstitucional. Identifica-se aqui
uma proximidade ao já exposto por Aquino, quando atenta para os dilemas
intrínsecos ao cotidiano da sala de aula. Ambos situam o exercício docente como
uma prática moral, assim, também coincidem com o pensamento freireano no que
63
tange à necessária eticidade que conota a natureza da prática educativa, enquanto
prática formadora.
Diante dessa congruência de perspectivas, destaco o trabalho de Terezinha Azeredo
Rios. Em sua tese de doutorado, publicada em 2001 pela Cortez Editora com o título
Compreender e ensinar: por uma docência da melhor qualidade, propõe uma
articulação entre Didática e Filosofia, trazendo ao campo da Didática a reflexão
filosófica. O núcleo de sua reflexão situa-se na formação e prática dos professores e
na necessidade de pensá-las. Dessa forma, avança na problematização de
conceitos como competência e qualidade, largamente difundidos no campo
educacional na década de 90.
A autora defende a idéia de que a competência pode ser definida como saber fazer
bem o que é necessário e desejável no espaço da profissão e que isso se revela na
articulação de suas dimensões técnica e política, mediadas pela ética. Assim, afirma
que
no espaço do trabalho competente, acham-se instalados os valores
que norteiam a prática do profissional na direção da melhoria
constante de sua qualidade. Procurar o fundamento desses valores,
perguntar criticamente pelo sentido da atuação do profissional é
exigência que hoje se coloca a todos nós. (RIOS, 2001, p. 25-26)
Nesse sentido, torna-se urgente ampliar as discussões realizadas junto aos
professores e abrir espaço nos programas de formação de professores acerca dos
fundamentos éticos que balizam a ação educativa. Nessa perspectiva um programa
exemplar vem sendo implementado por um grupo de professores da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo desde 2001, orientado para desenvolver
ações conjuntas no interior das escolas públicas daquela cidade. A premissa que
sustenta o projeto fundamenta-se no entendimento que é na concretude dos
desafios cotidianos que uma comunidade escolar pode estabelecer de forma
significativa seus parâmetros de ação ética.
Um dos integrantes do referido projeto, José Sérgio Fonseca de Carvalho (2004),
intitula um capítulo do livro Educação, cidadania e direitos humanos com a seguinte
pergunta: Podem a ética e a cidadania ser ensinadas? Para responder retoma
64
Aristóteles que pontua três fatores que tornam os homens bons e virtuosos:
natureza, hábito e razão.
Com efeito, aprender valores supõe o exercício contínuo de formação de hábitos e
não a transmissão de um conteúdo em um momento determinado por leis ou por
autoridades. O autor sugere que,
[...] o ensino de valores fundamentais não é objeto de um momento
especial, de uma preocupação pontual ou de simplesmente de uma
“tematização transversal”, à qual se expõe o aluno, como a um ponto
de um programa. Ao contrário, os princípios e valores característicos
da instituição escolar estão contidos nos próprios conteúdos
aprendidos, nas próprias formas de conhecimento ensinadas e,
portanto, se encarnam nas atividades e práticas docentes que o
materializam como conteúdos didáticos. Assim, o cultivo de valores
fundamentais pode - e deve - estar presente no desenvolvimento de
cada uma das atividades e disciplinas de nosso ensino. (CARVALHO,
2004, p.99).
Assim, se podemos afirmar que os alunos aprendem valores e princípios a partir
daquilo que vivenciam na escola, então, reitero a proposição de que também os
professores constroem, no exercício da profissão, um saber que baliza as relações
com o conhecimento, com os alunos e com a própria instituição escolar, mesmo que
não tenham consciência disso.
Motivada pela indagação radical de José Sérgio Fonseca de Carvalho e pelo modo
como acerca a questão do ensino de valores, me encoraja a tencionar ainda mais o
espaço da formação docente entendido como espaço propício a aprendizagem de
valores éticos. O ponto de partida gira em tono das seguintes questões: O que é o
saber ético? Em que medida o saber ético pode se configurar como um saber
docente? Desde então, se faz necessário fazer uma distinção entre saber e
conhecimento, para depois adentrar na questão sobre os saberes docentes com
destaque ao saber experiencial, para finalmente situar os argumentos que
sustentam a proposição do saber ético como um saber docente.
65
2.3 O SABER ÉTICO COMO UM SABER DOCENTE
Inaugurar uma discussão em torno do saber ético como um saber docente impõe,
em primeiro lugar, uma análise do que é possível compreender quando falamos em
“SABER”. Esse vocábulo domina os discursos atuais no que tange ao exercício da
docência e é preciso se questionar sobre o sentido do emprego desta palavra.
Embora os discursos venham enfatizando que vivemos a era do conhecimento, a
Pedagogia insiste em falar em saberes. Será mais um modismo esvaziado de
sentido? Por que saberes e não conhecimentos?
Para situar a questão do saber, nos discursos vigentes, recorro às bases
epistemológicas que fundam a noção de conhecimento a partir da emergência da
ciência moderna. No século XVIII, a ciência moderna consagra a racionalidade
científica como forma dominante de saber e legitima o conhecimento científico como
forma oficialmente privilegiada de conhecimento. No entanto, segundo Boaventura
de Sousa Santos (2004b), no paradigma científico,
[...] é total a separação entre a natureza e o ser humano. A natureza é
tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível,
mecanismos cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar
sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade
que nos impeça de desvendar os seus mistérios, desvendamento que
não é contemplativo, mas antes activo, já que visa conhecer a
natureza para a dominar e controlar. (p. 25).
Esta constatação pode ser melhor compreendida nas palavras de um dos arautos da
ciência moderna. Francis Bacon (1561 – 1626) foi o primeiro a situar o saber como
principal agente do desenvolvimento humano e do progresso das condições
materiais de vida da humanidade. Segundo o filósofo, todos os esforços do homem
e da sociedade deveriam ser dirigidos ao progresso do saber e toda a ciência para a
melhoria da vida humana sobre a Terra.
Segundo Fritjop Capra (1982), o espírito baconiano mudou profundamente a
natureza e o objetivo da investigação científica. A partir de Bacon, o objetivo da
ciência passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado para dominar e
controlar a natureza, que passa assim, a ser “acossada em seus descaminhos”,
“obrigada a servir” e “escravizada”. Deveria ser “reduzida à obediência”, e o objetivo
do cientista era “extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos”. Assim, o
66
antigo conceito da Terra como mãe nutriente foi radicalmente transformado nos
escritos de Bacon. Determina-se aí um corte radical entre homem e natureza o que
implicou outras cisões profundas, inclusive entre os homens.
A concepção de conhecimento posta pela ciência moderna pressupõe uma
idealização da totalidade, do controle e de universalidade. Nega as demais formas
de conhecimento como seguras para fazer avançar a ciência, bem como a
subjetividade, e reduz o conhecimento aos limites da razão instrumental. O
conhecimento é algo estável, exato e imutável e assim facilmente controlado e
mensurado, é “[...] uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional,
reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que
pela capacidade de o dominar e transformar” (SANTOS, 2004b, p.31).
O conhecimento científico, delineado pela ciência moderna não estava a serviço do
bem viver, mas dos interesses econômicos que impulsionaram o progresso técnico-
científico da humanidade. A compreensão do real se configurava como algo externo
ao sujeito que não mantinha nenhuma (inter) relação com o objeto. Ao homem
restava apenas quantificar, dividir e classificar.
Para a ciência moderna o conhecimento científico seria o saber necessário e
legítimo para transformar e dominar o mundo. Entretanto, “não há uma única forma
de conhecimento válido. Há muitas formas de conhecimento, tantas quantas as
práticas sociais que as geram e as sustentam” (SANTOS 2003, p.328). Por
conseguinte, entende-se que o conhecimento científico se constitui em um tipo de
saber, uma das tantas formas de relacionar-se com o mundo, que vez em quando
sofre rupturas e quebra a acumulação linear.
As contribuições de Thomas Kuhn (1990) ampliam esse entendimento ao retomar o
modo como a ciência se estabeleceu na história, por rupturas paradigmáticas. O
autor parte do princípio de que os paradigmas são as realizações científicas
universalmente conhecidas, que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade praticante de uma ciência, ou seja, um
paradigma é toda a constelação de crenças, valores e técnicas partilhadas pelos
membros de uma determinada comunidade.
67
Kuhn utiliza a metáfora do quebra-cabeça para situar a ciência. Afirma que a
existência de uma “sólida rede de compromissos ou adesões – conceituais, teóricas,
metodológicas e instrumentais – é uma das fontes principais que relaciona à ciência
normal à resolução de quebra-cabeças”. Assim, a ciência soluciona o quebra-cabeça
e faz aumentar ainda mais a clareza e a confirmação do paradigma adotado, até
mesmo porque os resultados a que se quer chegar já estão definidos a priori.
Entretanto, nem sempre a utilização do paradigma vigente alcança os resultados
esperados pela ciência. Configura-se, assim, uma violação das expectativas que
provoca uma crise paradigmática denominada pelo autor como uma anomalia. Esta
seria uma “brecha” do paradigma provocada pelo processo contraditório que marca
as revoluções do pensamento científico.
Conclui o autor que a evolução da ciência não se dá de forma linear, como
geralmente se supõe, mas sim pela ruptura dos conhecimentos científicos
anteriormente aceitos pela comunidade científica e utilizados nas diversas
pesquisas. Quando as anomalias denunciam a insuficiência de um determinado
paradigma para explicar a realidade, este é total ou parcialmente substituído por um
novo paradigma, incompatível com o anterior. As revoluções científicas além de
inevitáveis são também necessárias.
Os esclarecimentos de Kuhn possibilitam entender o que Bernard Charlot (2000,
p.63) afirma sobre o fato de que “não há saber que não esteja inscrito em relações
de saber”. Para ele, o saber é o produto de relações epistemológicas entre os
homens. Sendo assim, pode-se inferir que a noção de saber inclui necessariamente
o sujeito. Só existe saber a partir das relações que o sujeito é capaz de estabelecer
com e no mundo em que vive. Santos (2004b, p. 44) também afirma “que não
conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos
do real senão a nossa intervenção nele”.
Para Charlot (2000, p. 62) “se a questão da relação com o saber é tão importante, é
porque o saber é relação”. Nesse sentido, o saber se constitui de diferentes formas,
tantas quantas são as relações que estabelecemos com o mundo. Não há um único
tipo de saber, como a ciência moderna defendia, o que há é uma variedade infinita
de saberes. Saberes que são caóticos, mutáveis e provisórios. Para Santos (2004a),
68
[...] não há ignorância em geral nem saber em geral. Toda a
ignorância é ignorante de um certo saber e todo o saber é a
superação de uma ignorância particular. (...) O confronto e o diálogo
entre os saberes é um confronto e diálogo entre diferentes processos
através dos quais práticas diferentemente ignorantes se transformam
em práticas diferentemente sábias. (p. 790)
O professor, enquanto sujeito, é portador de saberes e de ignorâncias. A prática
docente é palco desses tantos confrontos e diálogos que montam a cena cotidiana
da sala de aula. Em tais confrontos entram em jogo valores e crenças, oriundos da
esfera privada de cada sujeito. Desse modo, reitero novamente o argumento da
escola enquanto lócus privilegiado para a construção de um saber sobre as tensões
próprias das relações na esfera pública.
Por este motivo, esse saber não pode ser compreendido como um conhecimento
pronto e acabado porque depende das relações entre os sujeitos. Também jamais
poderá ser utilizado para controlar as inúmeras situações dilemáticas que emergem
na arena da sala de aula, fruto do embate da própria diversidade entre os indivíduos
que a compõem. O saber das relações não é um saber passível de ser quantificado
e classificado, mas um saber subjetivo que se constitui nas mais diversas práticas
sociais, por isso mesmo caótico e provisório.
Entretanto, como exposto anteriormente, os programas oficiais de formação de
professores insistem em privilegiar a instrumentalização do ensino e colocam
saberes constitutivos do exercício docente, como o defendido neste trabalho, à
margem dos processos formativos. Os saberes necessários à prática educativa
confundem-se então com a aplicação de métodos eficientes que se configura em
uma abordagem tecnicista que reduz o trabalho docente a estratégias e
procedimentos, que se bem aplicados, podem garantir a aprendizagem de todos.
Assim como na ciência moderna, os saberes dos professores estão ancorados na
razão instrumental. Segundo Schön (2000),
A racionalidade técnica diz que os profissionais são aqueles que
solucionam problemas instrumentais, selecionando os meios técnicos
mais apropriados para propósitos específicos. Profissionais rigorosos
solucionam problemas instrumentais claros, através da aplicação da
teoria e da técnica derivadas de conhecimento sistemático, de
preferência científico. (p. 15)
69
Nesse sentido, com o intuito de superar a hegemonia de uma concepção
instrumental da docência, surgem pesquisas que passam a considerar a prática
profissional uma instância de produção de saberes, quebram a dicotomia entre a
dimensão pessoal e profissional da formação docente e recolocam os professores
no centro dos debates educativos. Nóvoa (2002), um dos precursores dessa
discussão, afirma que
[...] os professores não são apenas consumidores, mas também
produtores de materiais de ensino; que os professores não são
apenas executores, mas são também criadores e inventores de
instrumentos pedagógicos; que os professores não são apenas
técnicos, mas também profissionais críticos e reflexivos. (p.35)
Nessa perspectiva surgem pesquisas em torno dos saberes que alicerçam o trabalho
docente e apresentam uma efetiva contribuição para compreender a natureza da
prática educativa. Para Tardif (2005a)
[...] o saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos
professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a
identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história
profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e
com os outros atores escolares da escola, etc. (p.11)
A reflexão trazida por esses autores, ainda que descolada da concretude da
instituição escolar, convoca a se pensar que um professor não pode ser considerado
apenas como um técnico que aplica metodologias produzidas por outrem, mas o
sujeito do saber construído em seu ofício. Entendo que é necessária uma ação
concreta no interior das instituições formadoras, no sentido de possibilitar a
transposição do discurso sobre o professor sujeito e reflexivo, para as práticas
cotidianas de formação de professores. De certo modo, esse entendimento me
encorajou a propor uma experiência de pesquisa-ação com professores em
formação, cujo propósito consiste em saber dos limites e das possibilidades de uma
formação que inclua os saberes éticos.
Tardif (2005a, p. 36) aponta para cinco saberes presentes no exercício docente:
70
TABELA 1
Saberes das
ciências da
educação
Conjunto de saberes provenientes das ciências da
educação transmitidos pelas instituições de formação de
professores.
Saberes da formação
profissional
Saberes
pedagógicos
Doutrinas ou concepções provenientes de reflexões sobre a
prática educativa no sentido amplo do termo, reflexões
racionais e normativas que conduzem a sistemas mais ou
menos coerentes de representação e de orientação da
atividade educativa.
Saberes disciplinares
Correspondem aos diversos campos do conhecimento, aos
saberes de que dispõe a nossa sociedade e que emergem
da tradição cultural e dos grupos sociais produtores de
saberes.
Saberes curriculares
Correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e
métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e
apresenta os saberes sociais por ela definidos e
selecionados como modelos da cultura erudita e de
formação para a cultura erudita.
Saberes experienciais
Conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários
no âmbito da prática da profissão docente. São saberes
práticos (e não da prática: eles não se superpõe à prática
para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são
partes constituintes enquanto prática docente) e formam um
conjunto de representações a partir das quais os
professores interpretam, compreendem e orientam sua
profissão e sua prática cotidianamente em todas as suas
dimensões.
Fonte: elaboração própria com base em Tardif 2005
a.
Essa descrição dos saberes docentes é de extrema importância para as discussões
em torno da formação dos professores, mas corre o risco de se transformar em mais
uma legislação. Não basta que pesquisadores e estudiosos definam os saberes
docentes sem que os professores se reconheçam neles. Como afirma Nóvoa (2002,
p.36), o professor tem que possuir certos saberes, mas sobretudo tem que os
71
compreender de modo a poder intervir sobre eles, desestruturando-os e
reorganizando-os.
Assim torna-se também imprescindível analisar as relações que os professores
mantêm com os diferentes saberes que integram a prática docente. Tardif (2005a, p.
41) afirma que a relação que os professores estabelecem com os saberes da
formação profissional se manifesta como uma relação de exterioridade, ou seja, não
são os professores que efetivamente produzem esses saberes, mas se utilizam e se
apropriam dos mesmos no exercício da profissão. O autor complementa sua
proposição dizendo que “os saberes científicos e pedagógicos integrados à
formação dos professores precedem e dominam a prática, mas não provêm dela”.
O mesmo acontece com os saberes disciplinares e curriculares. Novamente os
professores não decidem acerca das disciplinas que serão ministradas, não definem
seus respectivos conteúdos e na maioria das vezes não opinam nem sobre a forma
de ensiná-los e avaliá-los. Esse assujeitamento coloca o professor no lugar de mero
ator do ato educativo. O script já está previamente definido e ao professor resta
apenas cumpri-lo. Nesse contexto torna-se muito difícil atribuir algum sentido ao
exercício docente e suas finalidades. É nesta perspectiva que Tardif (2005a) indica
os saberes experienciais como aqueles com os quais os profissionais mantêm uma
relação de interioridade, porque
[...] surgem como núcleo vital do saber docente, núcleo a partir do qual
os professores tentam transformar suas relações de exterioridade com
os saberes em relações de interioridade com sua própria prática.
Neste sentido, os saberes experienciais não são saberes como os
demais; são, ao contrário, formados por todos os demais, mas
retraduzidos, “polidos” e submetidos às certezas construídas na
prática e na experiência.(p.54)
Dessa forma a experiência passa a ocupar um lugar central quando me refiro a um
saber ético que baliza as relações que o professor mantém com seus alunos, com o
conhecimento e com a própria instituição escolar. Pensar na experiência é pensar
na forma de ser e estar no mundo, em seus dilemas, valores e crenças. É considerar
que as experiências acumuladas ao longo da vida, nos mais diversos espaços
sociais, o constituem como tal.
72
Entretanto, vale ressaltar que a experiência tem sido tema de debates fervorosos no
campo educacional. Alguns lhe conferem uma posição de destaque inquestionável
enquanto outros a rechaçam. Mas, do que estamos falando quando nos referimos a
experiência? Que saberes experienciais são esses? É um saber da experiência? O
que é a própria experiência? Tudo que vivemos é uma experiência?
Inicialmente, podemos retornar à ciência moderna e situar a experiência nos ditames
da razão instrumental. O problema que se apresenta em relação à experiência é a
sua impossibilidade de ser quantificada, dividida e classificada. Assim, torna-se
cientificamente irrelevante e desprezada pela racionalidade técnica como um saber.
A ciência moderna, pela crítica de Larossa (2004), reduziu a experiência a
experimentos de laboratório, com vistas a resultados quantificáveis e controláveis.
Neste sentido, [...] es objetivada, homogeneizada, controlada, calculada, fabricada,
convertida en experimento (p. 22).
As tentativas de conceitualização têm apressado a discussão em torno da
experiência. É preciso recusar-se a naturalizá-la ou a banalizar o seu uso na
articulação dos discursos fáceis e frágeis que, muitas vezes, povoam inclusive o
senso comum acadêmico. Seria mais pertinente tratá-la como o que acontece e não
como o que é. Para ampliar essa reflexão, Larossa (2004) sugere que
La experiencia es siempre de alguien, subjetiva, es siempre de aqui y
de ahora, contextual, finita, provisional, sensible, mortal, de carne y
hueso, como la vida misma. La experiencia tiene algo de la opacidad,
de la oscuridad u de la confusión de la vida, algo del desorden y de la
indecisión de la vida. (p. 22)
A experiência não pode ser tratada como algo objetivo e impessoal como pretendia
a ciência moderna. Considerar a experiência como um saber docente é assumir o
risco do imprevisível, do incontrolável, do artesanal, porque ela
[...] es siempre impura, confusa, demasiado ligada al tiempo, a la
fugacidad y la mutabilidad del tiempo, demasiado ligada a situaciones
concretas, particulares, contextuales, demasiado vinculada a nuestro
cuerpo, a nuestras pasiones, a nuestros amores y a nuestros odios.
(LAROSSA, 2004, p.22)
No campo educacional, a racionalidade técnica aplicada aos programas e currículos
de formação de professores tentou efetivamente transformar a experiência em uma
73
estratégia formativa, homogeneizando discursos e práticas. O que acontece
atualmente é uma banalização da experiência no contexto da formação de
professores, uma confusão entre experiência, prática e trabalho. Como aponta
Larossa (2002), existe um clichê segundo o qual nos livros e nos centros de ensino
se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se
adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática. Assim, a hiper
valorização da experiência, no âmbito da formação de professores, atribui a ela um
poder sobrenatural, como se a experiência por si só garantisse a reflexividade
necessária ao fazer docente.
Nessa perspectiva, só a experiência não é capaz de resolver os problemas no
âmbito educacional. Até mesmo porque nem tudo o que vivemos se configura como
uma experiência. Para Larossa (2002, p. 21) “a experiência é o que nos passa, o
que nos acontece, o que nos toca. [...] A cada dia se passam muitas coisas porém,
ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”.
O autor propõe então o par experiência/sentido afirmando que um determinado
acontecimento só se converte em experiência quando o sujeito lhe atribui algum
sentido. O que dá autenticidade à experiência é a sua intencionalidade e o sentido a
ela atribuído. Dessa forma, a experiência é sempre pessoal e intransferível porque
“la experiencia es lo que me passa y lo que, al pasarme, me forma o me transforma,
me constituye, me hace como soy, marca mi manera de ser, configura mi persona y
mi personalidad (LAROSSA, 2004, p. 22)
Assim, o saber experiencial perpassa todos os outros saberes à medida que o
professor atribui a estes algum sentido. Para Larossa (2002), o saber da experiência
tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece.
Trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma
comunidade humana particular. Mais adiante o autor relaciona o saber da
experiência ao
[...] modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo
ao largo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer
do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da
verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do
que nos acontece. (LAROSSA, 2002, p. 27)
74
A experiência não pode ser ignorada nem tampouco confundida com uma técnica
para a formação de professores. O necessário reconhecimento dos saberes
experiencias pressupõe a negação do assujeitamento da experiência. O docente
invariavelmente precisa ser considerado e respeitado como o sujeito da experiência.
Em Benjamin o conceito de experiência remete a uma incursão mais acurada nos
seus escritos, pois, nele, este conceito é polissêmico, o que exigiria uma maior
dedicação, impossível de ser realizada no tempo da produção desta pesquisa.
Destaco aqui o texto intitulado <Experiência> de 1913, no qual o autor apresenta o
conceito em um tom ácido e irônico para criticar a presunçosa experiência dos
adultos em oposição à inexperiência dos mais jovens.
É Benjamim quem afirma: “A máscara do adulto chama-se experiência. Ela é
inexpressiva, impenetrável, sempre igual. Esse adulto já experimentou tudo:
juventude, ideais, esperanças, a mulher. Tudo foi ilusão” (1984, p. 23). Então, não
são os anos vividos, o conhecimento adquirido, tampouco as tristezas e alegrias
acumuladas que valem como experiência. Benjamin não acreditava que a criança
vivia em um mundo à parte. Afirma que a criança, apesar de viver nesse mundo,
reinventava suas relações com o mesmo.
Em Experiência e pobreza, publicado em 1930, logo após a Primeira Guerra
Mundial, Benjamim delineia o conceito de experiência a partir da constatação de
sua perda. Com a emergência da industrialização o mundo já não oferece a
possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana. A
transmissão de pai para filho, a arte de narrar e ouvir, fazem parte de uma
experiência que já não é possível, pois no mundo moderno já não há condições de
viver a experiência.
Em O narrador, escrito em 1936, Benjamim enfatiza as implicações da perda
acentuada em Experiência e pobreza. “É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências” (1993a, p. 198).
Diante da impossibilidade da experiência tradicional, aparece a vivência do
indivíduo solitário. Com a presença ostensiva dos meios de comunicação e a
75
conseqüente disseminação da informação de massa, forma de expressão que
demonstra as ruínas da experiência nas novas formas de existência, o que se
aspira é uma verificação imediata, que seja compreensiva e plausível. As notícias
no jornal são diagramadas de forma a não apresentarem nenhuma relação entre
si. O excesso de informação a que o homem moderno se vê confrontado não deixa
espaço para a experiência. Quanto mais informados somos, mais passivos nos
tornamos e menos coisas nos acontecem.
A velocidade com que nos chegam as informações de massa e a exigência
imediata de respostas impedem uma relação artesanal “ entre o narrador e sua
matéria - a vida humana. [...] Seria sua tarefa trabalhar a matéria prima da
experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e
úncio.” (BENJAMIN, 1993b, p. 221).
Apesar de breve, o percurso em três textos onde Benjamim trata dos conceitos de
experiência e vivência, constitui-se numa importante referência para encorajar os
que desejam continuar a obra artesanal de educar os homens para a justiça, para
as sensibilidades e solidariedade, que se contrapõem aos aligeiramentos
propostos pelas atuais políticas de formação.
Some-se, ainda, o modo como Larossa problematiza o conceito de experiência e
articula com a formação do professor, o que torna mais próximo do propósito aqui
defendido, qual seja o de incluir no campo da formação de professores a
oportunidade de narrar, ouvir, contar, debater, negociar e compartilhar com seus
pares os saberes éticos, sejam dilemas ou conquistas.
Nesse sentido, relacionar ética e experiência passa a ser uma exigência. A ação
educativa, enquanto prática relacional, está radicalmente presa a uma dimensão
ética porque como afirma Tardif (2005a, p. 266), o objeto do trabalho do docente são
seres humanos e, por conseguinte, os saberes dos professores carregam as marcas
do ser humano. Se considerarmos que o professor lida com gente em formação
então não há como negar que o ato educativo é uma prática moral. Segundo o autor,
a atividade docente:
[...] é realizada concretamente numa rede de interações com outras
pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e
76
dominante e onde estão presentes símbolos, valores, sentimentos,
atitudes, que são passíveis de interpretação e decisão [...] Essas
interações são mediadas por diversos canais: discurso,
comportamentos, maneiras de ser, etc. Elas exigem, portanto, dos
professores, não um saber sobre um objeto de conhecimento nem um
saber sobre a prática e destinado principalmente a objetivá-la, mas a
capacidade de se comportarem como sujeito, como atores e de serem
pessoas em interação com pessoas. (TARDIF, 2005a p. 50)
O professor é obrigado a escolher frente aos dilemas vivenciados nas relações
sociais mais amplas e, em especial, no espaço da sala de aula. As escolhas e
decisões que precisa tomar frente a um fazer que esteja fundado no conflito, porque
se trata de relações entre pessoas portadoras de valores, constitui-se em um saber,
em uma forma de relacionar-se com os dilemas que surgem no exercício da
profissão.
Assim, pode-se concluir que o professor não está destituído de um saber sobre as
suas escolhas, sobre o seu agir e sobre as decisões que precisa tomar frente a um
fazer fundado nas interações que envolvem afetos e conflitos. Mesmo que à revelia
dos interesses políticos e econômicos, os professores possuem um saber que
balizam as relações com o conhecimento, com os seus alunos, com o mundo, enfim.
O saber ético refere-se à forma como o professor se relaciona com as diversas
situações dilemáticas inerentes ao seu cotidiano. Esse saber se constitui na trama
experiencial do ato educativo, na sutileza de tons e nuances dos fios que escolhe
porque de algum modo despertam nele certos ecos. É um saber de si e do outro,
dos valores e princípios que alicerçam o tear e das palavras, expressões e gestos
que arrematam a tessitura das relações.
O argumento do saber ético como um saber docente pode ancorar-se também a
partir do entrecruzamento da etimologia das palavras saber e experiência. O
vocábulo saber, oriundo do latim sapere, quer dizer num só radical: saber e sabor.
Já experiência, também do latim, experiri, significa provar, experimentar.
Experimentar os sabores da vida. Os sabores da docência. É isso que propomos
quando sugerimos o saber ético como um saber docente, ou seja, a possibilidade da
legitimidade dos sabores e dissabores da própria condição humana.
77
Reconhecer o saber ético como um saber docente é dar vez e voz aos professores.
É compreender que a experiência é carregada de paixões e tensões e de que cada
professor tem o direito de experimentar “a dor e a delícia de ser o que é”.
A partir deste intento, me propus a realizar, no âmbito dessa pesquisa, uma
intervenção cujo objetivo foi o de colocar a reflexão em torno do saber ético no
centro da formação de professores. Muito mais do que apenas sugerir a inserção
desse saber como um saber docente a proposta foi a de produzir um conhecimento
acerca dos sentidos que as professoras em formação do Curso Normal Superior
atribuem às situações dilemáticas, de natureza ética, presentes nas relações
vivenciadas no contexto de suas práticas educativas.
No capítulo que seguem apresento a trama metodológica que compôs essa iniciativa
bem como as lições aprendidas nessa experiência.
78
3 A TRAMA FABULOSA DA PESQUISA
Confabular. {do lat. confabulare.}. V.int.1. Trocar
idéias; conversar; cavaquear; falar. 2. Conversar
sobre assunto misterioso, secreto ou suspeito;
maquinar, tramar, conspirar.
7
3.1 AS BASES DA CONSPIRAÇÃO
Esse não é apenas um jogo de palavras. Foi confabulando que esta pesquisa
nasceu. A partir de conversas secretas, de tramas e de conspirações fui delineando
o projeto. Contudo, foi num no Seminário de Ética realizado pelo Instituto Superior
de Educação – espaço empírico da pesquisa – que vislumbrei a possibilidade de
realizar um projeto de pesquisa. Motivada pela multiplicidade de vozes que vinham
das discussões entre os professores, iniciei, ali mesmo, a trama metodológica que
um projeto desta natureza poderia fomentar.
A problemática que emergiu no início da trama é a indagação acerca das relações
que o professor estabelece com o saber ético na sua prática educativa, pela
constatação através do debate promovido por aquele Seminário. O que se verificou
foi a confiança exacerbada na prescrição de normas de conduta e a ausência de
referentes que dessem sustentação às opiniões que eram emitidas sobre as atitudes
dos alunos. Expressou-se como problema a simplificação e o reducionismo frente a
questões dilemáticas que sistematicamente emergem no cotidiano da sala de aula, o
que me motivou a perguntar sobre as oportunidades que tinham essas professoras,
durante a sua formação, para estudar, debater, refletir e se posicionar diante de
situações dilemáticas.
Dessa problemática decorreu o intento de compreender o sentido que as
professoras em formação do Curso Normal Superior atribuem às situações
dilemáticas, de natureza ética, presentes nas relações que se estabelecem no
7
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Edição revisitada e
ampliada . 33ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
79
exercício docente, a partir de uma pesquisa-ação, mediada por Fábulas, gênero
textual comum nas práticas educativas nas séries iniciais.
Assim, este estudo gira em torno de quatro grandes conceitos: formação de
professores, docência, experiência e saber ético, que muito mais do que conceitos
são problemas, como foram tratados nos capítulos anteriores. No que se refere à
formação de professores, destaco, apesar da proliferação de discursos e de
proposições oficiais, o reducionismo à instrução, solapando desse modo os
fundamentos de sustentação do ofício de educar. Discutir formação de professores é
adentrar numa zona de eternos conflitos e embates onde vitórias têm sempre o
sabor de provisoriedade e indeterminação.
Decorre dessa discussão, indagações em torno da docência, confundida durante
muito tempo como mera aplicação de técnicas e destituída de seu caráter
multidimensional. A docência é sempre determinada pelas condições histórico-
sociais e se organiza, como acrescenta Claude Lefort (1999, p. 208), “em função de
uma representação da educação, de uma representação que implica um desejo –
desejo de os indivíduos alcançarem, com sua formação, uma certa maneira de ser,
de trabalhar, de se relacionarem entre si na sociedade”.
Não menos problemático é o conceito de experiência cuja referência basilar para
este estudo são os questionamentos apresentados por Walter Benjamim, na figura
do “narrador”, frente a um mundo que não oferece mais as condições para
“intercambiar experiências”. Acrescente-se ainda as contribuições de Larossa
(2004), quando encoraja os professores para
[...] dignificar la experiência, reinvidicar la experiência, y eso supone
dignificar y reivindicar todo aquello que tanto la filosofia como la
ciência tradicionalmente menosprecian y rechazan: la subjetividad, la
incertidumbre, la provisionalidad, el cuerpo, la fugacidad, la finitud, la
vida ... (p.23)
Do conceito de experiência emerge a noção de saber ético. Para o intento deste
estudo, parti da premissa de que o ofício do professor, fundado numa teia de
relações, mobiliza um conjunto de saberes elaborados nas relações mais amplas
com repercussão no exercício da sua profissão. Daí ter incluído esses saberes
naqueles de natureza experienciais como discutidos por Maurice Tardif (2005a).
80
Embora problemática, foi a partir dessa escolha que a investigação ganhou
amplitude e complexidade. Decorre que procurei me acercar de estudos e de
instrumentos de pesquisa que possibilitassem a realização da difícil tarefa da
abordagem qualitativa da pesquisa em educação. A Filosofia, no que concerne ao
esclarecimento do conceito Ética, foi um suporte teórico importante na medida em
que forneceu as bases para problematizar a questão da Ética entendida como uma
dimensão humana radical porque somos obrigados a escolher. Os estudiosos do
campo da formação de professores contribuíram para o enfrentamento do debate em
torno dos excessos e dos vazios.
Para compreender o sentido que as professoras em formação atribuem às situações
dilemáticas, de natureza ética, optei pela abordagem qualitativa por reconhecer as
marcas de subjetividade que estariam presentes na pesquisa em questão, cuja
apreensão seria inviável pelo viés da quantificação. A natureza deste trabalho
“busca a interpretação em lugar da mensuração, a descoberta em lugar da
contestação, valoriza a indução e assume que fatos e valores estão intimamente
relacionados” (ANDRÉ, 2004, p. 17).
Nesse sentido, entre os diferentes tipos de pesquisa qualitativa, escolhi a pesquisa-
ação pela coerência - já comentada anteriormente - com o problema e o objetivo da
pesquisa e pelo desejo de desempenhar um papel ativo na própria realidade dos
fatos observados. Essa escolha consiste em planejar uma ação a partir de objetivos
claros, em um processo de acompanhamento e controle da ação planejada e no
relato concomitante desse processo. Segundo Thiollent (2004), a
Pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que
é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou
com a resolução de um problema coletivo e no qual os
pesquisadores e os participantes representativos da situação ou
problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
(p.14)
Com o intuito de ampliar essa definição, o autor destaca alguns aspectos peculiares
da pesquisa-ação. Um deles é que nesse tipo de pesquisa há uma ampla e explícita
interação entre pesquisadores e pessoas implicadas na situação investigada. Outro
aspecto é que a pesquisa não se limita a uma forma de ação apenas, mas pretende
aumentar o conhecimento do próprio pesquisador e das pessoas envolvidas.
81
A partir desse esclarecimento, fica evidente que a pesquisa-ação não pode se
confundir com uma mera intervenção. De fato, para se caracterizar como tal é
necessário que a intervenção aconteça, entretanto, o que caracteriza a pesquisa-
ação é o conhecimento que se produz a partir dela. Nesse sentido, Thiollent afirma
que uma das especificidades da pesquisa-ação consiste na articulação de dois tipos
de objetivo: o de conhecimento e o prático. O objetivo de conhecimento consiste em:
1.obter informações que seriam de difícil acesso por meio de outros procedimentos e
2.aumentar o conhecimento de determinadas situações. O objetivo prático refere-se
às contribuições
[...] para o melhor equacionamento possível do problema
considerado como central na pesquisa, com levantamento de
soluções e propostas de ações correspondentes às “soluções” para
auxiliar o agente (ou ator) na sua atividade transformadora da
situação. (THIOLLENT, 2004, p.18)
Nessa pesquisa, o objetivo de conhecimento consiste em compreender o sentido
que as professoras em formação atribuem às situações dilemáticas, de natureza
ética, presentes nas relações que se estabelecem no exercício docente. O objetivo
prático consiste em contribuir a partir da análise de textos literários que trazem
situações conflituosas em que os professores se vêem desafiados a se posicionar.
Esse posicionamento refere-se tanto às escolhas que fazem quanto ao
encaminhamento pedagógico junto aos seus alunos.
Todos os aspectos pareciam de fato conspirar para a escolha, dentro da abordagem
qualitativa, da pesquisa-ação. Reconheci a coerência da escolha metodológica com
o próprio problema da pesquisa. Ora, se percebo a necessidade de um estudo
acerca da posição que ocupam os professores em formação frente às situações
dilemáticas, estava posto o desafio de realizar uma pesquisa que possibilitasse o
aprofundamento teórico sobre a Ética, mas ao mesmo tempo uma pesquisa de
campo, de natureza qualitativa, do tipo participativa. Esta opção contribuiu para
trazer para a arena da sala de aula de concluintes do Curso Normal Superior, a
dimensão ética que funda o exercício da profissão.
82
3.2 FABULOSO INSTRUMENTO DE PESQUISA
A Fábula foi o gênero textual escolhido como base de reflexão ética nos encontros
em que a pesquisa de campo se configurou. Essa escolha justifica-se através de
dois argumentos. O primeiro refere-se ao uso freqüente desse gênero textual nos
planejamentos de Língua Portuguesa das séries iniciais do Ensino Fundamental,
com destaque para as Fábulas atribuídas a Esopo e a La Fontaine. O segundo
argumento baseia-se na principal característica da Fábula que consiste em transmitir
determinados ensinamentos morais. Como afirma Lima Vaz (2002, p.54), o gênero
Fábulas mostra-se, de fato, como uma das expressões mais eficazes do saber ético
e como tal, aparece como expressão universal nas mais diversas tradições.
É importante lembrar que o acesso a esse gênero foi interditado por Rousseau até
os doze anos, como indicado no seu Livro III, Emílio. Paradoxalmente à época de
Rousseau a Fábula, reconhecida como literatura infantil por excelência, era
recomendada para edificar a moral. Some-se ainda que nesse momento a difusão
do hábito de ler proveniente das mudanças ocorridas pelo processo de
industrialização da sociedade burguesa passou a ser incentivada como
[...] um recurso para a integração do leitor mirim à existência
burguesa, marcada pela dicotomia entre o uso e a especulação, o
setor do trabalho e a privacidade, a atividade comercial e o lazer,
reforçando o individualismo e o isolamento, processos que a criança
passa a vivenciar desde cedo (ZILBERMAN, 2003, p.56).
A Fábula é um gênero literário muito antigo, há suposições de que esse tipo de texto
teve sua origem no século XVIII a.C., na Suméria. No entanto, foi na Grécia Antiga
(Séc. V a.C.), através de Esopo, que a Fábula foi reinventada no Ocidente. Há um
dissenso quanto à origem de Esopo. Para alguns ele era um escravo grego no
século V a.C. e teria sido um orador popular que contava histórias para convencer os
ouvintes. Apesar de gago, corcunda, feio e miúdo, como diziam, era inteligente,
esperto e de muito bom senso; por esse motivo, conquistou a liberdade e viajou por
muitas terras dando conselhos através das Fábulas.
Para outros, Esopo era uma figura lendária, uma entidade sem existência real. Como
a Fábula é um gênero que veio da tradição oral, acredita-se que foi o deslocamento
para a forma rítmica que fez porventura adotar o nome Esopo que em hebraico
83
“asoph” significa o verso, a poesia. Dessa forma, a Fábula aparece entre os povos
mais antigos como um produto impessoal, anônimo, que circula sem a
responsabilidade do autor e, por isso mesmo com maior poder moral.
No século XVII, coube ao escritor francês Jean de La Fontaine (1621/1692) o mérito
de revitalizar as Fábulas, dando-lhes um sentido humorístico refinado, expresso em
belas imagens poéticas. La Fontaine introduziu a Fábula definitivamente na literatura
ocidental, aprimorando sua forma e consagrando o gênero como uma das espécies
literárias mais resistentes ao desgaste dos tempos.
Jean de La Fontaine, filho de burgueses, teve o apoio da nobreza para se dedicar à
literatura. Escreveu poemas e adaptações de comédias. Porém, foram as Fábulas,
escritas em versos e reunidas em doze livros, publicados entre 1668 e 1694, que o
tornaram conhecido no mundo inteiro. Graças a uma apurada sensibilidade para
mesclar imagens poéticas e de humor, as Fábulas de Esopo ganharam vida nova
com La Fontaine. Tornaram-se verdadeiros retratos da sociedade, com seus vícios,
diferenças sociais e problemas.
A Fábula é uma narrativa alegórica de uma situação vivida por animais, que alude a
uma situação humana e tem por objetivo transmitir certa moralidade. É um gênero
literário que veio do conto popular com a finalidade de transmitir um ensinamento
moral. Os personagens são na sua maioria animais que se comportam como seres
humanos e representam as virtudes e defeitos de sua classe.
Para alguns professores a Fábula é qualquer história em que os personagens são
animais. De fato algumas associações entre animais e características humanas,
feitas pelas Fábulas, mantiveram-se fixas em várias histórias e permanecem até os
dias de hoje. Entretanto, o que de fato caracteriza a Fábula é a intencionalidade de
transmitir um ensinamento moral. Os animais são utilizados apenas com o intuito de
garantir a impessoalidade, mas também há na literatura Fábulas cujos personagens
são plantas, objetos e até pessoas.
A Fábula, tanto em Esopo como em La Fontaine, foi escrita originalmente para os
adultos. Foi no século XVIII que ela foi considerada literatura infantil por excelência,
recomendada para a edificação moral das crianças. No entanto Rousseau, como já
84
informado neste estudo, ao escrever o Emílio em 1762, desaconselhou a leitura das
fábulas até os 12 anos de idade. Aliás, Rousseau proibiu qualquer tipo de literatura
porque acreditava que “a leitura era o flagelo da infância” (1999, p. 127). Essa
posição está sustentada na premissa rousseauniana, já dita aqui anteriormente, de
que todos os homens nascem bons e que é a sociedade que os corrompe. Assim, o
acesso à literatura colocaria o Emilio, seu aluno imaginário, em contato com toda a
moralidade vigente na época.
No entanto, na contramão das indicações rousseaunianas, as Fábulas se
consagraram como um gênero altamente difundido entre os infantes, principalmente
nas instituições escolares. Na literatura brasileira encontramos, além das reedições
das Fábulas de Esopo e La Fontaine, escritores que encantam crianças há várias
gerações, a exemplo de Monteiro Lobato.
A escolha por Esopo e La Fontaine, no âmbito dessa pesquisa, se deu por
reconhecer que são os autores mais utilizados nas escolas de séries iniciais e, como
aponta Zilberman (2003), a arbitrariedade da escolha do adulto por uma ou outra
história revela o caráter ideológico da tomada de posição. Nesse sentido, a literatura
infantil assume um papel formador em dois sentidos: incute na criança certos
valores, social ou ético e propicia a adoção de hábitos de consumo e de
comportamento preferidos socialmente.
Na mesma direção, destaco as pesquisas de Yves de La Taille que além de se
debruçar sobre os estudos em torno da Psicologia Moral, abordando temas como
limites e indisciplina na escola, sugerem caminhos para uma formação ética. O autor
afirma que podemos trabalhar, e de forma muito rica, as virtudes com os alunos.
Indica inclusive que
como na literatura infantil, notadamente nas legendas e contos,
referências à coragem, à generosidade, à prudência, etc, são
encontradas com freqüência, podemos fazer os alunos identificarem
as virtudes que julgam estar presentes, pensarem sobre elas,
julgarem sua pertinência e seu valor. Ou seja, podemos abrir o leque
das interpretações ao invés de fechar a questão como se fazia
antigamente, quando professores e autores apresentavam seu
veredicto inapelável: a “moral da história é...”: assim como podemos
apenas desejar que os alunos sejam (e nós mesmos sejamos)
virtuosos, e não exigi-lo, tampouco temos legitimidade para impor uma
só versão do que seja a definição e o valor das diversas virtudes.
85
Fazê-lo seria cometer um abuso de poder, um erro pedagógico, enfim,
uma injustiça. (LA TAILLE, 2000, p. 10)
A partir desse estudo, foi possível constatar que a Fábula, além dos argumentos
expostos anteriormente, se configura em um instrumento fecundo de reflexão ética.
Inspirada em Antonio Candido de Mello e Souza (2004, p. 137), parto do
pressuposto de que a literatura é uma “manifestação universal de todos os homens
em todos os tempos” e que por isso “não há povo e não há homem que possa viver
sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de
fabulação”.
O autor defende que a literatura deve estar ao alcance de todos como um direito
humano e apresenta argumentos para justificar sua posição. Primeiro porque
verificou que
[...] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve
ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de
dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos
liberta do caos e portanto nos humaniza. Em segundo lugar, a
literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento,
pelo fato de focalizar as situações de restrição de direitos, ou de
negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.
(SOUZA, 2004, p. 151 -152)
Comungando com a defesa desses autores pela literatura, mais especificamente a
Fábula, constatei a fecundidade desse gênero literário utilizado neste estudo, como
instrumento de pesquisa, para compreender o sentido que as professoras atribuem
às situações dilemáticas de natureza ética. Contudo, a proposta de trabalhar com
este gênero textual produziu efeitos para além do objetivo indicado. As professoras
refletiam alto, intercambiavam suas indagações e transformaram a sala de aula num
espaço público de idéias compartilhadas. Só como exemplo vejamos o que traziam
as professoras desde os primeiros instantes dos encontros:
- Será que nós, como seres humanos, estamos sendo solidários ao outro? Ou
estamos cada vez mais nos preocupando com a gente mesmo?
- O trabalho da cigarra é cantar, cada um que faça o seu trabalho. Se a outra vai
carregar folhinha, o que que eu posso fazer?
- Por que sempre tem que prevalecer o seu ponto de vista?
86
- Quem aqui nunca sentiu inveja de uma amiga? Quem nunca quis ter a vida de sua
amiga?
3.3 TRÊS ENCONTROS FABULOSOS
3.3.1 O cenário
O Instituto Superior de Educação – campo empírico desta pesquisa – sediado numa
instituição privada de ensino superior, no município de Salvador, assume no seu
projeto pedagógico o compromisso de enfrentar lacunas na formação de professores
das séries iniciais no Ensino Fundamental, para responder o que preconiza a LDB
9394/96.
É sabido que professores para esse segmento de ensino tinham sua formação nas
chamadas escolas normais, depois curso pedagógico no então denominado 2º Grau.
Com as diretrizes curriculares para formação de professores as IES – Instituições de
Ensino Superior – passaram a conceber os currículos com ênfase na educação
infantil e nas séries iniciais.
No bojo dessas mudanças, o Instituto Superior de Educação referido neste estudo
põe um forte assento na concretização de um projeto orientado pelo princípio de
assegurar o direito aos alunos da educação básica de aprender na escola, uma vez
que estatísticas denunciavam o fosso entre o acesso e a democratização do
conhecimento elaborado que a escola tem por dever socializar. Ao definir o perfil do
profissional que se propõe a formar, a Instituição, de nome aqui preservado, admite,
no seu Projeto Pedagógico do Curso Normal Superior que,
[...] cada vez mais, a educação está sendo colocada como tendo papel
essencial no desenvolvimento das pessoas e da sociedade, a serviço de
um desenvolvimento humano mais harmonioso. No início de um novo
século a sociedade se obriga a repensar finalidades da educação e
meios de viabilizá-la. Nesse contexto, a instituição educativa que se
delineia como ideal é aquela voltada para uma cidadania consciente e
ativa, que ofereça aos alunos uma educação que lhes forneça bases
culturais que lhes permitam decodificar, na medida do possível, as
transformações em curso e operar uma triagem na massa das
informações afim de melhor interpretá-las.
87
Destaca ainda que,
[...] é necessária uma formação pessoal, social e cultural dos futuros
docentes. Não se pode partir do princípio que todo estudante
universitário teve oportunidade, pela sua formação escolar e não-
escolar anterior, de se desenvolver como pessoa e como cidadão o
suficiente para poder vir a ser um bom professor, pois nem sempre
isso acontece. A formação nestes campos pode favorecer o
desenvolvimento de capacidades de reflexão, autonomia, cooperação
e participação, a interiorização de valores, capacidades de percepção
de princípios, de relação interpessoal e de abertura às diversas
formas da cultura contemporânea, todos eles capacidades e valores
essenciais ao exercício da profissão.
Em segundo lugar, o Projeto Pedagógico destaca a formação científica, tecnológica,
técnica ou artística. Em terceiro lugar, uma boa formação no domínio educacional, a
partir das contribuições da investigação realizada pela Didática. E finalmente, em
quarto lugar, destaca as competências de ordem prática. Entendido assim, propõe
uma matriz curricular a partir de alguns campos de conhecimento profissional
distribuídos na estrutura curricular de acordo com o especificado no ANEXO A.
A partir da análise dessa matriz curricular é possível identificar algumas contradições
com o texto do projeto pedagógico do Curso Normal Superior. A primeira delas é a
promessa de uma formação voltada para uma cidadania consciente e ativa em
contraposição à carga horária reduzida destinada às disciplinas de fundamentos, em
especial para os estudos sociológicos, antropológicos e filosóficos que estão
reduzidos a uma disciplina de trinta e seis horas, no primeiro semestre do curso,
denominada ESAF – Estudos Sócio Antropológicos e Filosóficos da Educação.
A ementa da disciplina ESAF pretende discutir o conceito de educação concebido
como uma prática social; considerar o homem como um ser de cultura, situado na
sociedade em que está inserido; relacionar os conceitos de educação, currículo e
cultura e finalmente analisar os pressupostos sócio-antropológicos e filosóficos que
orientam os materiais e currículos escolares. Isso tudo em 36 horas semestrais, ou
seja, 2 horas semanais ao longo de 18 semanas.
A carga horária destinada a essa disciplina mostra-se insuficiente para tratar os
aspectos sociológicos, antropológicos e filosóficos em sua complexidade. Identifica-
se aí uma lacuna imensa na estrutura curricular do Curso Normal Superior do
88
referido Instituto, que se refere ao estudo dos fundamentos que ancoram a reflexão
em torno do sentido de ser professor na contemporaneidade.
É nesse contexto que se configura o cenário dessa pesquisa. Um curso de formação
de professores das séries iniciais, em uma instituição privada de ensino superior,
que negligencia a formação humanística de seus alunos incluindo nisso as questões
éticas, preocupação deste estudo. Ao lado dessa lacuna curricular, confortáveis
salas de aula com ar refrigerado, carteiras acolchoadas e recursos tecnológicos de
última geração contrastam com uma formação reduzida a instrução, na medida em
que inexiste o espaço público da discussão, da reflexão, da negociação, dos
conflitos inerentes à pluralidade de vozes.
Paradoxalmente, a sala de professores, os corredores e os refeitórios se constituem
em espaços produzidos pela gente que por lá circula como estratégia de resistência
a uma forma alienante de ser e estar juntos. O cotidiano ordinário mistura raças,
crenças e classes, aproxima pessoas e produz fecundas narrativas.
Na condição de Coordenadora do Curso Normal Superior, fui encontrando
ressonância a essas indagações com os colegas mais atentos. Tudo isso aguçava a
minha curiosidade quanto aos significados das práticas concretas que tencionavam
o currículo proposto e o currículo vivido, ou seja, o confronto entre o instituído e o
instituinte.
À medida que as reflexões transformavam as indagações em fatos, fui me sentindo
ainda mais comprometida com a formação daqueles alunos. Foi nas entranhas
desse cotidiano, em que se veicula saberes e poderes, que se confabulou uma
pesquisa dessa magnitude. Como afirma Minayo (1994):
[...] nada pode ser intelectualmente um problema, se não tiver sido,
em primeira instância, um problema da vida prática. Isto quer dizer
que a escolha de um tema não emerge espontaneamente, da mesma
forma que o conhecimento não é espontâneo. Surge de interesses e
circunstâncias socialmente condicionadas, frutos de determinada
inserção no real, nele encontrando suas razões e seus objetivos.
(p.90)
Foi neste cenário que realizei a pesquisa de campo, durante o primeiro semestre de
2006, com duas turmas de alunas concluintes do Curso Normal Superior – Séries
89
Iniciais. A sala de aula foi eleita como um campo empírico privilegiado para
promover uma prática reflexiva em torno da dimensão ética e assim problematizar as
questões de interesse dessa proposta. Essa escolha está ancorada na certeza de
que a sala de aula se configura como um espaço carregado de sentidos e
significados complexos que os sujeitos atribuem às suas ações e práticas.
A pesquisa de campo foi realizada no âmbito da disciplina Estudos e Problemas da
Educação Básica II que se propõe a discutir os problemas da educação
contemporânea. Nela, o professor tem a liberdade e a autonomia para selecionar
aspectos que julgue importantes para a formação de professores e que estejam
relacionados com questões atuais. Como docente dessa disciplina, reservei para
cada turma 12 horas/aula da carga horária prevista, distribuídas em 3 encontros de
4horas/aula, para realizar a pesquisa empírica.
Os registros das aulas foram realizados através de gravações com a aquiescência
das alunas e posteriormente transcritas para análise. No que diz respeito aos
encaminhamentos pedagógicos, o material por elas elaborado foi recolhido e
anexado junto às transcrições.
3.3.2 Os personagens
Todas mulheres. Na maioria negras, na maioria pobres. Entraram na faculdade pela
porta da frente, mas foram recebidas pelos colegas, de outros “cursos mais
elitizados”, como um refugo social. Ouviram comentários do tipo: “agora a faculdade
resolveu abrir a porteira” ou então, “o que essas mulheres horríveis estão fazendo
por aqui?”. No início, transitavam pelas áreas de convivência com o embaraço
estampado no rosto. Ficavam atrapalhadas com o cartão magnético que precisavam
passar na catraca e olhavam para a “lojinha” com um certo estranhamento, como se
aquele mundo não fosse real. Em algumas o deslumbramento, em outras o
constrangimento.
Eram todas professoras da rede municipal de ensino. A Secretaria de Educação do
Município de Salvador firmou parceria com o Instituto Superior de Educação dessa
faculdade para o cumprimento das determinações da LDB/96, Artigo 87, que até o
90
fim da Década da Educação, somente seriam admitidos professores habilitados em
nível superior ou formados por treinamento em serviço. O convênio atendeu em
torno de duzentas professoras que ainda não possuíam curso superior ou
habilitação adequada para o exercício do magistério. As alunas eram, na sua
totalidade, profissionais que já atuavam em sala de aula há alguns anos e que por
força da Lei 9394/96 ingressaram na formação dita inicial, no âmbito do ensino
superior. Além da própria titulação, esperava-se que esta parceria pudesse também
favorecer uma melhoria na qualidade do ensino da rede pública municipal.
As professoras atendidas pelo convênio tinham de fato uma situação privilegiada.
Todas tinham um regime de trabalho de 40 horas/semanais e estavam dispensadas
por 20 horas/semanais para fazer o Curso Normal Superior. Isso significava que
além de ter a possibilidade de fazer o curso gratuitamente ainda estavam sendo
“remuneradas” pelo tempo que ficavam na faculdade. Essa condição privilegiada
tinha seu preço. Um discurso subliminar deixava claro que essa iniciativa era um “ato
bondoso” do poder público e não um direito a elas assistido. Isso comprometia ainda
mais a possibilidade de legitimação dessas alunas tanto em sala de aula, como nas
áreas de convivência da faculdade.
Aos poucos as alunas foram ganhando confiança e legitimidade para ser e estar
naquele ambiente. Aprenderam a reivindicar direitos e a apontar falhas e lacunas.
No último semestre do curso já desfilavam absolutas pela faculdade. Muito longe de
incorporar os padrões elitizados que faziam delas os estranhos sociais daquele
contexto, as alunas se fortaleceram, passaram a ter orgulho de poder estar ali,
apesar de todas as adversidades. Uma amostra dessa conquista se explicita no
depoimento de uma delas durante a pesquisa empírica:
- Era um castelo! Eu até tinha medo de andar na área de conveniência, eu me sentia
pequena, eu não sei o que era, era um mundo como se fosse uma casa de vidro. A
gente passava o tempo todo aqui embaixo, escondidas. A gente se sentia num
shopping. Quando eu trazia alguma coisa para comer morria de medo de tirar da
bolsa, tinha vergonha, tinha medo de tirar porque era tanta gente “assim”. Eu achava
que seria censurada por tirar algo da bolsa para comer. Hoje eu chego, abro a minha
bolsa e como em qualquer lugar.
91
A fala dessa professora vem corroborar com a defesa que faço neste trabalho, a de
eleger a escola como espaço público, tal qual concebido por Arendt (1997) que
afirma ser a esfera pública o lugar da simultaneidade de pluralidades de aspectos e
perspectivas onde o mundo comum não encontra medida para a homogeneização e
a submissão dos que resistem. Em última instância o depoimento da professora
reafirma a importância de ser visto e ouvido por outros.
Cabe ainda dizer aqui que as alunas, concluintes do convênio com a Secretaria
Municipal de Educação de Salvador, não foram os únicos personagens dessa
pesquisa. Na pesquisa-ação, o pesquisador também é sujeito da pesquisa e,
portanto, personagem desse cenário. Segundo Thiollent (2004, p.21), a pesquisa-
ação não deixa de ser uma forma de experimentação em situação real, na qual os
pesquisadores intervêm conscientemente. Compreendo então que o pesquisador é
aquele que interage e propõe estratégias a fim de fomentar a reflexão dos sujeitos
envolvidos, ou seja, o pesquisador se coloca no lugar do formador à medida que
sugere avanços frente ao que está sendo problematizado. Neste cenário todos
somos sujeitos da pesquisa, professora e alunas.
Assim, incluindo-me como sujeito, reconheço o grande desafio dos limites próprios
de uma pesquisa em que o pesquisador se encontra na posição de professor. Como
afirma Thiollent (2004, p.22) “o que cada pesquisador observa e interpreta nunca é
independente da sua formação, de suas experiências anteriores e do próprio
‘mergulho’ na situação investigada”. Ainda mais quando se refere a um estudo que
traz no seu âmago a reflexão ética. Propor um trabalho em torno das questões éticas
é um desafio que exige muita coragem, de ambas as partes. Assume-se,
implicitamente, uma exigência moral acima do esperado porque quanto mais
refletimos mais descobrimos quem somos, o que amplia a responsabilidade, e este
não é um exercício fácil.
Desde esse ponto evoco mais uma vez Aristóteles para lembrar que se a Ética tem
como fim a felicidade, esta só pode ser alcançada pela disposição que emerge da
força do hábito e não por natureza. Sendo assim, é pelos atos que praticamos que
nos tornamos bons ou maus. Por comungar com esta abordagem é que procurei
exercitar com as professoras um convívio sustentado na Ética. Decorreram assim os
92
encontros fabulosos, denominados por ora de “cenas”, que foram sendo
configuradas ao longo do processo.
3.3.3 Cena 1
A primeira intervenção da pesquisa de campo se configurou como um grande
desafio. Uma estranha sensação de estréia invadiu meu cotidiano tão acostumado a
ministrar aulas para as alunas do Curso Normal Superior. Essa não era uma aula
qualquer, mas a consagração da minha escolha enquanto pesquisadora. Também
não era uma pesquisa qualquer, porque uma pesquisa em torno das questões éticas
supõe necessariamente viver com o outro, de modo que a coerência possível entre o
gesto e a palavra se conforme.
Iniciei o encontro com as duas turmas de concluintes do Curso Normal Superior com
uma conversa informal relembrando a chegada da turma na Instituição em fevereiro
de 2003, e a aula inaugural que contou com a presença do então prefeito da cidade
do Salvador. O jeito tímido com o qual as alunas transitavam pelos corredores, me
impulsionou a revelar minha satisfação com a oportunidade de reencontrá-las
naquele momento, não mais como coordenadora do curso, mas como professora da
disciplina Estudos de Temas e Problemas da Educação.
Em seguida, fiz uma breve apresentação da minha trajetória profissional até o
mestrado para então apresentar o projeto da pesquisa. Em ambas as turmas a
discussão ocorreu com diversos comentários e depoimentos de situações
vivenciadas no decorrer da formação. Algumas falas materializam a consciência das
professoras com relação à necessidade de se incluir o debate de fundamentos
humanísticos nas práticas formativas:
- Durante o curso tivemos muitas disciplinas de didática e poucas que discutiam
essas coisas;
- Agora a gente está aí nessa situação, sem nem saber direito o nome dos filósofos
e educadores...;
93
- Muitas vezes pedimos à coordenação para aumentar a carga horária de ESAF mas
não fomos atendidas;
- Alguns professores falavam alguma coisa, mas mesmo assim era muito pouco.
Nesse clima de fala e escuta percebi a insatisfação das professoras com a formação
que, apesar dos discursos, acabou se expressando na sua versão instrumental, o
que confirma as primeiras premissas deste estudo sobre as lacunas existentes nos
currículos em ação concernente a dimensões humanizadoras.
Após a apresentação do projeto em suas linhas gerais, aproveitei o ensejo para
convidar as alunas a participarem da pesquisa. Enfatizei a posição de co-
participantes - muito distante da condição de objetos ou cobaias - e apresentei os
princípios metodológicos da pesquisa-ação. Ressaltei a proposição de planejar as
aulas considerando o foco do estudo, qual seja, os dilemas de natureza ética, com
os quais os docentes se deparam cotidianamente no exercício dessa arte de educar.
Nesse momento a expressão estampada nos rostos das alunas denunciava o receio
da exposição: arregalavam os olhos, se retraiam nas carteiras, se entreolhavam,
traziam uma certa timidez no falar. Por outro lado, o fato de apresentar-me como
alguém que está realizando uma pesquisa sobre Ética e ao mesmo tempo realizando
o trabalho de docente instaurou um certo suspense que lembra o que Yves de La
Taille (2000, p. 7) comenta quando se fala em Ética: “[...] quem fala nela e a
defende situa-se a priori, imagina-se, do ‘lado do bem’: o referido vocábulo serve de
refúgio semântico que garante a seu ‘usuário’ um caráter moral irreprochável” Foi
mais ou menos essa impressão que ficou quando o objeto do estudo foi colocado
em discussão. Lembrava de Rousseau no que se refere ao imaginário das
professoras que com seus gestos transmitiam um certo desassossego por
imaginarem estar ali uma pessoa “ética” /investigando os “não éticos”, os
“selvagens” e “primitivos”.
Em seguida falei da escolha dos textos que fundamentaria o estudo da disciplina de
modo a também atender aos objetivos da pesquisa. Foi proposto então que o
trabalho utilizaria a Fábula como gênero literário que respondia a esses dois
intentos: o da pesquisa e o da disciplina ETPE. Justifiquei a escolha primeiro pela
94
constatação de que esses textos são freqüentemente utilizados nas séries iniciais,
logo eram textos conhecidos. Depois, por entender que esse gênero possibilita o
encontro com dilemas intrínsecos às relações humanas, houve um consenso
referente a essa escolha.
A partir desses primeiros esclarecimentos, as professoras foram orientadas para se
reunirem em pequenos grupos a fim de iniciar a reflexão em torno da Fábula e de
seu respectivo encaminhamento em suas práticas educativas. As questões
apresentadas para nortear a discussão foram as seguintes:
1. Vocês utilizam Fábulas no seu planejamento pedagógico? Justifique.
2. Quais os critérios utilizados na escolha das Fábulas?
3. Quais as Fábulas mais utilizadas?
Dessa proposta surgiram as primeiras pistas para compreender o sentido que as
professoras em formação do Curso Normal Superior atribuem às situações
dilemáticas, de natureza ética, presentes nas relações que se estabelecem no
exercício docente.
Os argumentos das professoras para justificar a presença das Fábulas em sala de
aula recaíram inicialmente sobre as questões comportamentais e disciplinares dos
alunos. As Fábulas, segundo as professoras, eram utilizadas como instrumento de
moralização, um pretexto para disciplinar os alunos. Destaco aqui duas respostas
que considero representativas:
- Eu utilizo as Fábulas em meu planejamento a fim de tentar corrigir algumas
atitudes dos meus alunos, sem demonstrar a eles aborrecimentos, fazendo com
que reflitam e percebam a negatividade de certas ações sejam com os coleginhas ou
pessoas que estão próximas deles.
- Utilizamos Fábulas no nosso planejamento, mas também outras modalidades
textuais como música e quadrinhas. As Fábulas são textos que possibilitam
despertar nas crianças valores e atitudes em relação ao outro. Os critérios para
seleção dos textos são a observação e análise de situações do cotidiano,
considerando questões em relação ao comportamento dos alunos.
95
Aqui a Fábula não é eleita como parte da herança cultural que o professor apresenta
aos seus alunos para instigar a participação dos mesmos em uma prática sócio-
cultural, de tempos remotos, na qual se pretendia transmitir determinados
ensinamentos morais. Ela é utilizada apenas como meio de normatização, um jeito
oportuno de “corrigir algumas atitudes dos alunos”.
Essa decisão em torno de trabalho com Fábulas me remete novamente ao século
XVIII, quando Rousseau proibiu o acesso a qualquer tipo de literatura até os 12 anos
por considerá-la nociva para a formação do homem. O filósofo argumentava que as
crianças não tinham condições de discernir entre o certo e o errado, entre a mentira
e a fantasia, que a moral que se apresenta na Fábula está tão turvada e é tão
desproporcional que as conduziria antes ao vício que à virtude.
Reduzir o trabalho com as Fábulas a prescrições de conduta é também uma forma
de proibir o acesso das crianças a esse tipo de literatura, é subestimar a capacidade
dos infantes de pensar a vida, de pensar o mundo. As professoras, assim como
Rousseau, acreditam que o afastamento dos males sociais se constitui em uma das
premissas fundantes da atividade educativa. E se, mesmo assim, apesar da
bondade natural do homem, a sociedade o corromper, é preciso então corrigir
determinadas atitudes para que se possa domesticar a vontade humana.
Para estas professoras a Fábula não tem um fim em si mesma, é apenas um meio
para se chegar a determinadas condutas. Funciona como uma espécie de guia, de
manual que orienta e conduz a uma verdade. Desse modo, os fundamentos morais
que lá se apresentam se constituem como prescrições de comportamento
inquestionáveis.
Totalmente descolada de seu tempo e de seu espaço, a Fábula assume nas práticas
educativas dos personagens da pesquisa um caráter atemporal e passa a ter
pretensões de universalidade. Entretanto, novamente aqui recorro a Larossa (2003),
que ao fazer referência a textos como os Guias Espirituais, as Meditações, as
Epístolas e as Confissões, afirma que:
Lo característico de ese tipo de textos es que, a pesar de ser humildes
em su pretensión cognoscitiva, a pesar de no pretender universalidad
em sus enunciados, a pesar de ser voluntariamente fragmentários, no
pierden de vista la situación de transformación de las vidas concretas
96
de la gente. Ese tipo de literatura no pretende decir la verdad de lo
que son las cosas, sino que pretende vehicular um sentido para lo que
nos pasa. (p. 37)
Assim como os textos citados por Larossa, a Fábula também não tem pretensões de
universalidades em seus enunciados, nem de dizer a verdade do que são as coisas.
Apesar de despretensiosa, as Fábulas objetivam a veiculação de um sentido para o
que nos passa. Constituem-se em um instrumento fabuloso de reflexão ética porque
ajudam a traduzir o que se sente, porque faz viver, faz sentir e faz saber de si e do
outro.
A proposta seguinte se baseou na elaboração, em grupos, de um plano de aula cujo
recurso central seria a Fábula O leão e o rato (ANEXO B), um texto freqüentemente
utilizado nas práticas educativas, de acordo com o relato das próprias professoras
no episódio anterior.
Suspeitava que as propostas sugeridas pelas professoras para trabalhar com um
gênero textual cuja principal característica é a existência de um dilema moral, me
dariam mais pistas para compreender o sentido que atribuem às situações
dilemáticas, de natureza ética, presentes em seu cotidiano profissional.
Minha suspeita se confirmou quando verifiquei que os objetivos não eram definidos a
partir de uma análise sobre aquilo que o texto em questão poderia suscitar. Mais
ainda que, em todos os grupos, em maior ou menor quantidade, a gramática, a
ortografia, a pontuação e principalmente a estrutura lingüística do texto se
configuravam como os legítimos conteúdos a serem trabalhados na Fábula. Para
exemplificar destaco um dos planejamentos propostos:
Habilidades:
9 Reconhecer rimas e estrofes
9 Identificar os verbos
9 Perceber o tempo verbal
9 Justificar o uso da pontuação
Conteúdos:
Rima e estrofe
Verbos
Pontuação
Leitura
97
Intervenções:
Os alunos receberão a Fábula distribuídos em grupos de 4 e em seguida serão orientados a:
Fazer uma leitura entre os componentes do grupo
Expor suas impressões
Identificar quantas estrofes há na Fábula
Identificar as rimas existentes na Fábula e circular
Identificar os verbos existentes na Fábula percebendo o tempo verbal
Escolher uma estrofe e reescrever no tempo passado e futuro
Realizar uma leitura pausada e reconhecer a pontuação existente.
As professoras pareciam estar condicionadas a determinadas prescrições, como se
houvesse uma matriz a ser aplicada a qualquer tipo de texto, independente de sua
finalidade enquanto prática social. Uma técnica para trabalhar os diversos gêneros e
assim ensinar os conteúdos determinados pelos órgãos governamentais como
aqueles que não podem faltar na “bancada de trabalho do futuro trabalhador”, no
dizer de Enguita (2004, p. 30).
As professoras não vislumbravam outra possibilidade para o trabalho com a Fábula
O leão e o rato senão a prescrição de conduta e o ensino de conteúdos
escolarizados da Língua Portuguesa. O trabalho com Fábulas precisava ter uma
utilidade, ou seja, precisava de uma promessa de algo passível de quantificação.
Novamente há uma negação do dilema moral como conteúdo de formação e a
Fábula passa, mais uma vez, a se configurar como um pretexto, um meio para se
chegar a um fim que não coincide com a reflexão acerca do comportamento humano
em sociedade. O sentido do trabalho com esse gênero literário limita-se ao estudo
das famílias silábicas como se pode identificar no planejamento proposto por um
grupo de professoras para uma aula com a Fábula em questão:
Objetivos:
9 Narrar acontecimentos e histórias deixando claro o que, quando e como
aconteceu.
9 Ler atribuindo sentido à leitura.
9 Estudar a família silábica para formação de novas palavras.
Conteúdo:
Fábula O leão e o rato
Intervenções:
Propor roda de leitura
98
Leitura em dupla.
Narração da Fábula considerando a seqüência dos fatos.
Selecionar a palavra RATO na Fábula para estudar a família silábica e construir
novas palavras:
r a ra t a ta
r e re t e te
r i ri t i ti
r o ro t o to
r u ru t u tu
Avaliação:
Observação do comportamento dos alunos diante da Fábula lida e analisando a
oralidade de cada um.
Neste planejamento é possível identificar novamente a expectativa em torno das
questões comportamentais. O que está sugerido para avaliar aquilo que as crianças
podem aprender com as Fábulas é a mudança de comportamento a partir do texto
trabalhado. Entretanto o que mais chama atenção é o uso da Fábula como pretexto
para ensinar os conteúdos escolarizados de Língua Portuguesa.
Os objetivos elencados para trabalhar com a Fábula O leão e o rato poderiam estar
em qualquer outro planejamento com qualquer outro texto. Isso ocorre porque
objetivos e conteúdos são definidos com base em determinadas prescrições
curriculares instituídas acriticamente nas práticas educativas. Esse encaminhamento
pedagógico tem conseqüências porque como afirma Lefort (1999)
[...] a leitura decai quando tratada como uma simples técnica; quando
não se deixa mais reconhecer como um momento privilegiado no
advento do Sujeito, de sua relação consigo e com os outros, na
constituição de sua imagem e na apropriação de uma dimensão da
Lei, em resumo, quando deixa de figurar como uma experiência
simbólica. (p.221)
A Fábula não é um modo de pensar definido por regras gramaticais e ortográficas,
ela existe a partir de práticas sociais reais entre sujeitos. O problema em fazer uso
desse gênero apenas para ensinar os aspectos normativos da língua é que a criança
perde a oportunidade de se posicionar como um leitor. Apreender o intento da
Fábula pressupõe o acesso aos sentidos de cada texto com o qual se possa pensar
por si próprio.
99
Eis a força do hábito se expressando conforme o exercício constante em torno de
objetivos. Ao planejar suas aulas com base nas Fábulas as professoras traduzem o
que foi tão enfático no percurso formativo: didatizar ao extremo os conteúdos com os
quais elas deveriam trabalhar com seus alunos.
3.3.4 Cena 2
No decorrer da primeira cena identifiquei que as professoras não concebiam a
Fábula como um objeto sócio-cultural real, apenas um pretexto para disciplinar os
alunos e ensinar determinados conteúdos da Língua Portuguesa. Essa constatação,
além de nortear a definição de intervenções para a segunda cena, reitera o
problema que desencadeou essa pesquisa, ou seja, os professores têm o direito de
vivenciar, na sua formação, experiências que possam fornecer o conhecimento
necessário para refletir sobre as suas escolhas e sobre o seu agir.
Essa experiência se constitui um direito a medida em que seja razoável que os
professores tenham uma formação acadêmica que assegure a apropriação de
saberes específicos, entre eles o saber ético, o qual não é natural, para que possam
com dignidade exercer o seu ofício. Depois, é direito porque há uma exigência em
forma de dever social e institucional para que os professores eduquem as crianças.
O alcance desta finalidade pressupõe a deliberação dos meios adequados a esse
fim, tal qual orienta Aristóteles. Se o professor não domina os meios para educar,
mais somente para instruir subordina o seu próprio fazer as prescrições curriculares
impostas, tal qual explicita uma professora:
- A gente está numa situação, porque fazendo o que não sabe fazer, se a gente faz
uma coisa que não sabe fazer, qualquer caminho que chegar é válido. A partir do
momento que tem um toque, nessa hora que a gente tiver planejando o trabalho
com Fábulas a gente vai lembrar disso. Não só com Fábulas, mas com tudo.
Se é exigido das professoras o dever de educar, é direito dessas professoras
acessarem os meios para responder aquilo que lhes é exigido como dever. Elas
sabem que não é “qualquer caminho” que possibilita o alcance da tarefa de educar e
100
clamam por “um toque” que oriente as práticas educativas, não apenas com
Fábulas, mas para as demais tarefas da docência.
Enquanto pesquisadora, que elegeu a pesquisa-ação como opção metodológica,
decidi apresentar características históricas e culturais desse gênero textual e,
principalmente, reservar um espaço para as professoras refletirem sobre as
situações dilemáticas, explícitas ou implícitas, nas Fábulas utilizadas com seus
alunos.
A partir de uma provocação inicial percebi que as informações que as professoras
possuíam sobre a Fábula eram muito incipientes, algumas já tinham ouvido falar em
Esopo, outras em La Fontaine, no entanto o que sabiam era insuficiente para situar
esse gênero textual na história.
Antes de apresentar aspectos sócio-históricos que caracterizam a Fábula, considerei
pertinente discutir a definição de gênero textual. Minha intenção era que as
professoras percebessem que além de peculiaridades lingüísticas, a Fábula,
enquanto gênero textual, caracteriza-se muito mais por suas funções comunicativas.
Apoiada em Luiz Antônio Marcuschi (2005) situei os gêneros textuais como artefatos
culturais construídos historicamente pelo homem para agir sobre o mundo e dizer o
mundo.
Na perspectiva do autor, convidei o grupo a pensar acerca das intenções
comunicativas desse gênero, sobre o que pretende a Fábula dizer do mundo. As
professoras afirmaram que a transmissão da lição de moral é a principal
característica da Fábula e reafirmaram a utilidade disciplinadora desse gênero, como
se pode notar no depoimento abaixo:
- Principalmente quando a gente tem algum aluno com alguma dificuldade na ética,
na forma de comportar dele, a gente sempre traz um trabalho (com Fábulas) onde
possa tá trabalhando aquele comportamento daquele aluno.
Para tencionar essa crença apresentei as principais características da Fábula e
ressaltei o intento de retratar a ordem social vigente e questionar vícios,
desigualdades e problemas sociais em geral. Desse modo, a principal função
comunicativa da Fábula é provocar o leitor a refletir sobre os dilemas que enfrentam
101
os homens em sociedade e as posições que assumem diante de determinadas
situações.
Entretanto, a participação das professoras foi muito discreta. Assumiram o lugar de
ouvintes e apesar das provocações não se autorizavam a debater o assunto, seja da
Fábula enquanto prática social, seja do trabalho pedagógico com ela realizado.
Para provocar o debate propus a discussão em torno do texto Rousseau e os
perigos da leitura, ou por que Emílio não pode ler fábulas? de José Oscar de
Almeida Marques disponível no ANEXO D. No referido texto, o autor examina os
argumentos utilizados por Rousseau para a recomendação de proibir a leitura de
Fábulas para crianças até doze anos e busca explicar seu alcance e consistência em
conexão com alguns dos princípios fundamentais do pensamento rousseauniano.
Entretanto, a discussão sobre as questões centrais apresentadas no texto em
questão ficou comprometida porque a maioria das professoras não tinha idéia de
quem era Rousseau e de suas contribuições para a Pedagogia. Com isto reafirmo a
crítica ao projeto pedagógico do Curso Normal Superior da Instituição na qual se
realizou essa pesquisa. Com apenas uma disciplina de trinta e seis horas para os
estudos sócio, antropológicos e filosóficos da educação realmente não há condições
para saber quem foi Rousseau. Para mim, as conseqüências dessa opção tornaram-
se explícitas quando me deparei com a necessidade de informar às professoras que
Rousseau e Jacques Cousteau eram “coisas” distintas.
Apesar disto, o texto suscitou a reflexão acerca das características sócio-culturais da
Fábula e também dos contornos históricos da concepção de infância. Diante do
argumento sustentado por Rousseau acerca da impossibilidade das crianças até 12
anos de discernir entre o “certo” e o “errado”, entre a “mentira” e a “fantasia”, as
professoras defenderam que a criança de hoje não é a mesma do século XVIII.
Segundo uma delas:
- A criança que Rousseau retrata não é essa criança que temos na sala de aula
hoje, porque essa criança que a gente tem hoje compreende a Fábula antes mesmo
da gente terminar de ler. Então eu não acredito nessa ingenuidade da criança de
hoje comparada com essa criança do tempo dele (Rousseau).
102
As professoras defenderam que a criança de hoje é mais esperta porque tem acesso
a várias coisas. Diante dessa proposição indaguei se o que mudou foi a criança ou a
forma como concebemos a infância. As alunas olharam espantadas e começaram a
desconfiar dos argumentos de Rousseau, mas ainda assim afirmavam
veementemente que a criança de hoje é mais esperta.
Decidi então afirmar que de fato não somos iguais às pessoas do século XVIII
porque vivemos em um contexto histórico e cultural cujo acesso à informação é
muito maior, mas que, no entanto isso não significa que crianças e adultos sejam
mais inteligentes ou mais felizes. Mesmo assim as professoras continuaram a dizer
que:
- A criança hoje está muito mais desenvolvida e até entende muitas coisas que
antigamente não entendia. Essa questão de dizer que é nocivo ou não, a criança
hoje já tem uma idéia, ela tem mais elementos pra isso.
Essa crença na “esperteza” humana me remete aos aportes que sustentaram o
projeto moderno, entre eles, a supremacia da razão como forma de elevação do
sujeito. Aliada a isso a promessa de que o progresso é possível e que a
escolarização é um meio essencial para concretizá-lo. A educação é a sua
alavanca, e o que ela proporciona representa, em si, um avanço para os sujeitos e
para a sociedade.
As professoras em formação do Curso Normal Superior fizeram uso, mesmo sem
consciência disto, dos ideais iluministas da modernidade. Para elas o homem será
sempre melhor, porque evolui continuamente, independente das condições sócio-
culturais que lhes são impostas. O discurso está impregnado dessa herança, o que
exige no espaço formativo um esforço na mediação de propostas que contribuam
para que as professoras possam re-significar crenças e valores fundados na cultura
que temos. A pista deixada pelas professoras indica que o trabalho pedagógico por
elas realizado parte de uma idealização de aluno sempre como uma promessa de
um futuro melhor. Isto gera decepção de expectativas de um lado, e do outro
resignação pela impossibilidade de atender a demanda do sujeito concreto.
103
Na seqüência desta cena, organizei uma sessão de leitura de Fábulas. Orientei as
professoras a ler o texto desconfiando do que estava ali escrito. Sugeri ainda que se
colocassem no lugar dos dois personagens para identificar o conflito humano
presente no texto. As Fábulas selecionadas para essa atividade foram as indicadas
pelas próprias professoras como as mais freqüentes em seus planejamentos, a
saber: A cigarra e a formiga, A lebre e a tartaruga e A raposa e a cegonha (ANEXO
B).
As sessões de leitura se constituíram numa experiência ímpar: um momento no qual
as professoras tiveram a oportunidade de posicionar-se frente às situações
dilemáticas apresentadas na Fábula. Com isto, não apenas analisaram o texto, mas
principalmente, traduziram o que sentiam e refletiram sobre sua própria conduta em
sociedade.
Ao contrário das prescrições disciplinares e curriculares que propuseram em seus
planejamentos, as professoras experienciaram uma prática com fecundas
potencialidades para fazer emergir posições subjetivas frente a dilemas de ordem
ético/moral:
- E eu que gosto de farra adorei a cigarra! Se eu arranjasse uma formiga pra me
sustentar eu ia virar uma cigarra.
- Eu mesma olho minha colega e queria ser seca como ela. Pronto é isso mesmo, eu
queria e pronto.
- Nem tanto cigarra, nem tanto formiga, um meio termo. Trabalhar e se divertir
também, ter tempo pra tudo, ter lugar e ter espaço pras duas coisas.
- É mesmo. Tem situações que a gente procura fazer o bem, por exemplo, NOTA,
eu quero que meu amigo tire uma nota boa, mas de repente você tem uma
oportunidade de ajudar o seu amigo pra ele tomar uma nota mais alta que a sua. Ai
vem, trava, por mais que a gente ache que não, mas trava. A gente coloca na
balança, justamente, então...
O confronto de opiniões promoveu o encontro de cada uma com seus valores e
crenças. A íntima relação entre o texto e a própria subjetividade fomentou reflexões
104
sobre a forma de ver e sentir o mundo. As Fábulas ajudaram a traduzir o que se
sente, porque faz viver e faz saber de si e do outro.
Duas referências teóricas deste estudo contribuíram sobremaneira para
compreender o que se passava ali naquele confronto. Larossa informa que a
experiência é sempre de alguém de carne e osso, traz algo de opacidade e de
confusão da vida. Benjamin reflete sobre a experiência a que recorre todo narrador e
toma a narrativa como instrumento fundamental para que o sujeito se sinta
progressivamente seguro dos limites, dos muros, das amplidões, dos claros, dos
escuros, de tudo o que constitui seu próprio mundo, no qual os fatos, os
acontecimentos, as tramas, ganham significado para si e só dentro de si.
Some-se ainda que a produção literária, segundo Antônio Cândido de Mello e Souza
(2004. p. 141), “tira as palavras do nada e as dispõe como um todo articulado”.
Através das Fábulas as professoras perceberam que não eram as únicas a sentir e a
ser de um determinado modo, se identificaram com os personagens e explicitaram
um saber ético que baliza as diversas relações sociais.
As sessões de leitura de Fábulas oportunizaram às professoras, mesmo que ainda
por um período muito curto, a possibilidade de experimentar, em seu processo de
formação profissional, os sabores da vida e da docência. Em uma das turmas, ao
final da sessão de leitura de Fábulas, uma das alunas me disse o seguinte: “É! Hoje
você conseguiu seu objetivo. Era isso mesmo que você queria, não é? Deixar a
gente assim, desse jeito, né? Valeu, valeu”.
Naquele momento tive mais clareza das contribuições dessa pesquisa para o campo
da formação de professores. Não apenas sugerir a inserção do saber ético como um
saber docente, mas principalmente apontar caminhos que possam concretizar essas
intenções. O trabalho com as Fábulas me colocou diante do conhecimento que
poderia produzir sobre ética e formação de professores.
105
3.3.5 Cena 3
O artigo Formação ética: direitos, deveres e virtudes de Yves de La Taille (ANEXO
D) norteou as primeiras discussões da terceira e última cena. Dessa leitura foram
retomadas questões que considero fundamentais para pensar a Ética articulada à
formação de professores.
O autor inicia o texto com uma provocação acerca da banalização do vocábulo Ética
e com isto ressaltei a freqüência com a qual ele aparece nos discursos dos mais
diversos setores da sociedade atual. Sem dúvida a palavra Ética é um dos termos
mais utilizados na contemporaneidade como estratégia retórica para seduzir
eleitores, telespectadores e consumidores.
Nessa perspectiva destaquei que por em causa um conceito supõe apreendê-lo para
além do seu significado, até porque as palavras não têm um significado intrínseco,
ou seja, só significam na medida em que as pessoas as usam de vários modos.
Assim, ressaltei que saber sobre os usos possíveis e efetivos do termo Ética,
sempre considerando os contextos do seu uso, é uma exigência que se impõe.
Desde esta premissa, elegi como ponto de partida o significado etimológico do
vocábulo Ética e sua diferenciação do termo Moral. Desse momento destaco dois
depoimentos:
- Infelizmente a educação é uma área que é muito desses termos, pega a palavra, e
aí começa a empregar a palavra. Você viu que fulano não é ético!
- Na escola que eu trabalho tinha um projeto que era “Valores para a Vida” e se
falava muita em ética, tinha até um livro. Mas a professora que trabalhava com esse
projeto não tinha ética nenhuma, era uma coisa impressionante. Eu fiquei me
coçando pra dizer pra ela como é que ela trabalha com ética e age daquela forma.
Ela vivia gritando, botando as crianças de castigo.
O vocábulo Ética está sendo usado aqui apenas para adjetivar o caráter da pessoa.
Isso decorre não apenas do desvio semântico na tradução do termo para a língua
portuguesa, como explica Lima Vaz (2002), mas também da deterioração de seu uso
nos discursos pedagógicos. Ética passou a ser palavra corriqueira no “pedagogês”,
principalmente para reiterar determinadas condutas. O ético e o não ético são
106
definidos de forma arbitrária, sem a necessária reflexão acerca das tensões que
marcam a natureza do exercício docente.
Convém aqui reafirmar que o problema não se concentra no professor em si, mas
nos atuais programas de formação, seja inicial ou continuada, que reforçam essa
estratégia retórica para seduzir também os professores. A Ética não aparece como
um questionamento dos valores e das práticas sociais, mas como prescrições
normativas de comportamentos politicamente corretos, definindo um jeito bastante
conveniente de ser professor.
Na seqüência apresentei a posição de Gimeno Sacristán (1999) quando defende
que o ensino é em si mesmo uma prática moral e instiguei as professoras a pensar
novamente em suas práticas educativas. Sugeri uma discussão em pequenos
grupos a partir das seguintes questões:
9 Como, então, ajudar as crianças a responder à pergunta fundamental da
existência: como viver?
9 Ou seja, como ajudá-las a responder a esta pergunta por si mesmas, serem
autoras de suas escolhas, aprendendo a responsabilizar-se por elas?
9 Como ajudá-las a se construírem autonomamente?
9 Como ajudá-las, enfim, a viver num mundo em constante mudança sem
perderem a si mesmas?
Para fomentar a discussão ressaltei as pistas que Yves de La Taille oferece em seu
texto. A primeira delas quando afirma que o próprio convívio escolar pode ser uma
‘escola’ para o exercício das escolhas e a segunda quando apresenta a literatura
infantil como uma fecunda possibilidade para pensar as questões éticas na formação
das crianças.
Ao invés de solicitar que as professoras compartilhassem as discussões realizadas
nos grupos, orientei que tomassem o planejamento feito a partir da Fábula O leão e
o rato como objeto de reflexão. Transitando pela sala percebi que continuavam a
privilegiar tanto as prescrições de conduta como os conteúdos escolarizados da
Língua Portuguesa. Nesse momento decidi relatar minhas impressões, com ênfase
107
no uso da Fábula como pretexto para ensinar outras coisas senão ela própria.
Imediatamente as professoras se pronunciaram:
- Ué, então não é para trabalhar com um conteúdo específico? Não é para trabalhar
com Língua Portuguesa?
- Eu não posso trabalhar uma área, ou Língua Portuguesa, ou História, ou
Matemática? Qual é a disciplina que eu coloco?
- Aí Giovana! Agora você deu nó na minha cabeça, agora eu não sei mais nada.
Diante desses comentários salientei que a questão não é se pode ou não trabalhar
com a Língua Portuguesa, mas compreender que o dilema moral constitutivo da
Fábula deve ser considerando como um conteúdo a ser ensinado. Questionei o que
seria uma interpretação de uma Fábula senão a discussão acerca da situação
dilemática, implícita ou explícita, nesse gênero textual. Afirmei ainda que ensinar
Fábulas pressupõe criar situações nas quais os alunos possam ler as Fábulas e
refletir sobre os dilemas morais que lá se apresentam.
A conclusão a que chegaram as professoras foi a seguinte:
- O que aconteceu e que nós pegamos a Fábula como gancho para trabalharmos os
nossos conteúdos.
- A maioria de nós, eu acredito que puxou muito a atividade para a Língua
Portuguesa escolarizada.
- A gente chegou a conclusão que nós pegamos a Fábula não como Fábula e que
nós deveríamos ter trabalhado a Fábula pela Fábula.
Ressaltei nesse momento que a Fábula é um instrumento fabuloso de reflexão ética
porque nos coloca diante de problemas morais que exigem uma tomada de posição.
Dessa forma, a Fábula suscita a reflexão acerca das conseqüências de cada
escolha e, além disso, incentiva adultos e crianças a argumentar, a justificar suas
respostas e a imaginar diferentes soluções para uma mesma situação.
108
Para finalizar solicitei que as professoras relatassem opiniões e impressões acerca
do trabalho realizado. Silêncio. De repente começaram a se pronunciar:
- O que a gente discutiu aqui foi que desconstruir tudo isso num curto espaço de
tempo é complicado, porque são coisas que a gente acredita e pratica o tempo todo.
- Também não é fácil abrir mão dos conteúdos escolarizados de Língua Portuguesa.
- Esse é um desafio muito grande e talvez ainda não seja possível inserir a ética no
trabalho da gente, mas você pode ter certeza que a gente nunca mais vai trabalhar
com a Fábula da mesma forma.
Com estas devolutivas, tornou-se oportuno encerrar esse trabalho com o texto A
moça tecelã de Marina Colassanti, disponível no ANEXO C. A personagem da
história me inspirou a encorajar as professoras a desconstruir práticas cristalizadas e
tomar a tessitura do exercício docente em suas próprias mãos. A moça tecelã nos
ensina que é preciso ser dono de si e do seu ofício.
Como pesquisadora posso afirmar que a trama fabulosa dessa pesquisa-ação
mostrou que uma intervenção de apenas doze horas, como esta, foi suficiente para,
ao menos, suscitar a reflexão em torno das finalidades da atividade docente e assim
manter a relação entre fins e meios mais equilibrada.
Sem correr o risco da redundância, reitero aqui, novamente, o problema que
desencadeou essa pesquisa. Agora não mais como um problema, mas como uma
proposição. Os professores em formação têm o direito de vivenciar experiências que
lhe forneça o conhecimento necessário para refletir sobre as suas escolhas, sobre o
seu agir e sobre as decisões que precisam tomar frente a um fazer fundado no
conflito, porque se trata de relações entre pessoas portadoras de valores.
109
4 CONFABULAÇÕES DE TRAMAS DILEMÁTICAS
Digo: o real não está na saída nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia.
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
No meio da travessia. É exatamente aí que o saber ético se fez presente como um
saber docente. Durante a pesquisa de campo as professoras em formação
explicitaram crenças e valores fundados em uma herança sócio-cultural nas quais
me apóio neste capítulo para discutir a relevância da reflexão ética no âmbito da
formação de professores.
Proponho-me aqui a analisar com mais verticalidade as posições assumidas frente
às situações dilemáticas, de natureza ética, implícitas ou explícitas, nas Fábulas
utilizadas com mais freqüência nas práticas educativas das professoras de séries
iniciais com as quais trabalhei. Para tal, retomarei os comentários feitos durante as
sessões de leitura de Fábulas, realizadas na Cena 2, já descrita no capítulo
anterior.
É importante esclarecer que em cada uma das turmas indiquei a organização de seis
grupos e distribui as três Fábulas mais utilizadas pelas professoras em seus
planejamentos, a saber: A cigarra e a formiga, A lebre e a tartaruga e A raposa e a
cegonha. Desse modo, dois grupos tinham a mesma Fábula e deveriam ler e
analisar a posição assumida pelos personagens. As professoras foram orientadas a
identificar provérbios, ditos populares ou máximas que pudessem traduzir a lição de
moral a partir da ação de cada um dos personagens da Fábula analisada.
Em seguida solicitei que cada grupo socializasse as discussões realizadas no
decorrer da atividade. Os grupos responsáveis por uma determinada Fábula
apresentavam suas sínteses para que os demais problematizassem as posições
apresentadas. Nesse momento, a partir dessas proposições, creio ter transformado
a sala de aula em um espaço público no qual as professoras tiveram a oportunidade
de confrontar com seus pares posições subjetivas, de natureza ética. Do confronto
entre os grupos emergiu um rico diálogo que na sua dinâmica traz dimensões
110
importantes para se pensar a posição que as professoras assumem frente às
situações dilemáticas presentes nas Fábulas selecionadas.
Não pretendo aqui emitir julgamentos acerca dos comentários realizados pelas
professoras, mas analisar o que estava na base das posições assumidas e assim
refletir acerca das crenças e valores explicitados naquele momento e que se
configuram como uma pequena amostra dos fundamentos éticos que balizam as
relações do homem contemporâneo. Ou, pelo menos, como as professoras o vêem.
Destaco aqui algumas posições que me pareceram mais significativas, pela maior
freqüência de seu aparecimento, ou por seu impacto com relação às outras
professoras no momento em que emergiram no debate. Pretendo com essa seleção,
estabelecer um campo mais restrito para a análise, a fim de compreender o sentido
que as professoras em formação atribuem às situações dilemáticas, de natureza
ética, presentes nas relações que se estabelecem no exercício docente.
4.1 CADA UM POR SI E NINGUÉM POR NÓS
De todas as posições assumidas certamente a que mais impressiona é o
individualismo exacerbado presente nos comentários das professoras, frente à ação
dos personagens das Fábulas. O que se verificou foi a reincidência de uma posição
que valorizava os interesses individuais em detrimento dos coletivos. Os argumentos
apresentados buscavam a garantia de bem-estar para o indivíduo, configurando
assim uma espécie de egoísmo ético em que o bom confunde-se com o que seja útil
para si, independente de ser ou não para os outros.
Os argumentos apresentados buscavam a garantia de bem-estar para o indivíduo, o
que revela uma centralidade da noção de indivíduo em detrimento de uma visão
mais coletiva da sociedade. Isso, por um lado, endossa a importância e a relevância
desta pesquisa, no entanto, nos obriga a refletir qual concepção acerca da Ética
pode ser validada para a compreensão do período atual. Sendo a noção de Ética,
desde seu princípio, fortemente vinculada ao coletivo da sociedade, essa
centralidade no indivíduo traz para o debate uma questão importante com a qual
temos que tratar na contemporaneidade. Algumas perspectivas apresentadas pelas
111
professoras, que trazem dicas para a compreensão de suas posições frente aos
dilemas, pareciam confundir a noção de um bem com aquilo que foi, ou é, útil para
um indivíduo em determinada situação, e que isso pode ser exportável para o
conjunto da sociedade. Vejamos alguns exemplos:
- O trabalho da cigarra é cantar, cada um que faça o seu trabalho. Se a outra vai
carregar folhinha, o que que eu posso fazer?
- [...] Eu cortei essas relações de emprestar coisas, ninguém empresta nada a
ninguém.
- Então você se mata de trabalhar e depois vai ajudar vagabundo?
- [...] Na hora que você precisa todo mundo que é sua amiga sempre tem alguma
coisa para fazer e você fica sozinha, e é ai que você realmente vê quais são as
pessoas que você pode contar, que você compartilhe.
O individualismo é uma posição e se constitui como uma ação regulamentada e
dotada de caráter histórico e social. A modernidade foi capaz de transformar a
sociedade num amontoado de indivíduos preocupados apenas com suas próprias
vidas. Como já previa Freud (1969), diante de tantas adversidades nos defendemos
com um isolamento voluntário porque se torna mais fácil viver quando estamos à
distância de nossos pares.
As professoras, representantes legítimas dessa realidade histórica e social, tanto
defendem que não devem assumir responsabilidades por outrem como reclamam
o desamparo. Essa é uma posição paradoxal, porque reivindicamos exatamente
aquilo que negamos, ou seja, queremos que o próximo nos acolha e proteja e não
somos capazes de reconhecer “o outro” como sujeito de iguais direitos.
De certa forma, podemos dizer que o homem moderno perdeu a capacidade de
questionar a sua própria existência enquanto membro de uma coletividade e
hipervalorizou o indivíduo como núcleo da ação e do pensamento. Tornou-se
insensível diante do sofrimento alheio e assumiu a condição de mero espectador. A
falta de um referencial coletivo, capaz de produzir certos parâmetros minimamente
razoáveis para a vida coletiva, somados à barbárie humana publicizada todos os
112
dias na tela da nossa televisão anestesiaram homens e mulheres que já não se
chocam mais com os horrores produzidos na contemporaneidade. Assim, como não
resta onde se apoiar, tomam a si como única referência para viver em sociedade.
-Às vezes a gente se acha. Se a gente julga o outro por nós eu não posso. Se eu
sou ágil, eu vou pensar que o outro também é igual a mim. Nós julgamos o outro por
nós.
- Toda pessoa que é falsa acha que o outro também é falso, toda pessoa que mente
acha que o outro também mente, porque a pessoa mais próxima de mim sou eu,
então eu só posso julgar o outro se tomar como referência eu mesma.
Considerar que “a pessoa mais próxima de mim sou eu” é um desalento demasiado,
é reconhecer-se só, é saber que não se pode esperar nada de ninguém, que é cada
um por si e ninguém por nós. Disso também decorre a compreensão da vida como
uma grande competição. Vejamos o que dizem as professoras:
- A lebre pensou: eu vou deitar aqui pra descansar um pouquinho, mas antes dela
chegar eu saio na frente porque eu sou veloz, eu vou ganhar. Só que ela se
descuidou e quem acabou ganhando foi a tartaruga.
- A tartaruga deu uma de esperta, foi inteligente, aproveitou que a lebre tava
descansando.
- Às vezes eu acho que eu construo um texto muito bem, mas aí tem uma colega
que tem mais dificuldade, e aí eu digo que não vou fazer o texto, vou deixar pra ela
fazer, ai eu não faço ou faço de um jeito que eu sei que eu poderia fazer melhor,
mas ela faz e me dá um banho. E aí? Eu que fui injusta, esperta, porque eu sabia
que a colega não sabia fazer ou eu quis ajudar ou competir de forma mais justa.
A ideologia capitalista alimenta o individualismo e mercantiliza as relações. O bom
confunde-se com o ter, ou seja, ser bom é ter a nota mais alta, o carro mais caro, a
casa mais equipada e a conta bancária mais gorda. A competição instala-se aí, no
anseio de suprir necessidades produzidas pela sociedade capitalista a qualquer
custo. Ser generoso com o outro passa a ser uma ameaça, porque ajudá-lo pode
fazer com que adquira mais “posses”.
113
Essa mercantilização parece não contribuir para a melhoria das relações entre os
homens, não garante que as pessoas se tornem mais respeitosas e solidárias. Ao
contrário, com ela assumimos uma posição utilitarista, em que o bom é o que serve
a um interesse pessoal, mesmo que isso tenha implicações negativas com relação
ao conjunto da sociedade. É bom se tiver boas conseqüências individuais,
independente do motivo que levou a fazê-lo ou da intenção que se pretendeu
concretizar. Na lógica das trocas reconheço o outro apenas para me beneficiar.
- A formiga foi avarenta, ela não foi solidária e a gente nunca sabe quando vai
precisar do outro.
- A cigarra também durante o período que ela estava cantando deve ter pensado na
questão da gratidão, talvez ela possa ter pensado assim: eu vou estar cantando para
a formiga porque ela deve estar gostando do meu canto, e ela vai ser grata quando
eu precisar.
- A lebre duvida da agilidade da tartaruga e se mostra assim meio monótona. Nessa
de dormir a outra vai e passa por cima dela. É, essa é a vida da gente, a gente olha
a pessoa e julga pela aparência em si, sem conhecer o que a pessoa realmente é
capaz de fazer.
Nessa ”vida da gente” nos deparamos com um desafio gigantesco do homem
contemporâneo: como educar as crianças sendo o que somos? Como atribuir
sentido ao exercício docente se estamos impedidos de refletir sobre nossa própria
condição humana? A que fim se quer chegar quando comprometemos nossas
escolhas apenas aos interesses individuais? Como educar a diversidade diante de
tanta adversidade?
Nunca fomos tão livres para escolher nossos caminhos e nunca estivemos tão
perdidos. Isso se torna ainda mais grave quando reconhecemos que o homem
depende de sua ação para realizar-se como ser humano. Como afirma Aristóteles,
as virtudes são adquiridas pelo exercício, ou seja, são pelos atos que praticamos em
nossas relações com outras pessoas que nos tornamos bons ou maus.
114
4.2 PRA FRENTE É QUE SE ANDA
Da discussão em torno da fábula A cigarra e a formiga merece destaque especial
uma posição das professoras que identificam a noção de virtude com a capacidade
produtiva de uma das personagens. Essa associação nos fornece dicas importantes
para a compreensão de um dos sentidos atribuídos às situações dilemáticas, de
natureza ética.
O confronto entre o esforço da formiga e a cantoria da cigarra gerou um debate que
evidenciou o valor que o trabalho tem para as professoras. Aliado a isto a fé no
progresso, uma vez que é o trabalho que impulsiona e garante um futuro melhor
para todos. Alguns dos provérbios escolhidos para equacionar o dilema moral da
Fábula demonstram essa crença:
- Quem nada faz nada tem.
- Você colhe o que você planta.
- Quem trabalha e guarda sempre tem.
- Quem não trabalha na hora do aperto nada tem.
Para compreender o valor atribuído ao trabalho pelas professoras é necessário
antes analisá-lo a partir de uma perspectiva histórica e social. Na modernidade o
trabalho foi elevado à condição de valor central da existência. Isto não significa que
em outros tempos o homem não tivesse que lidar com as necessidades relativas à
sobrevivência e de algum modo atribuir significado às atividades que visavam a sua
continuidade. No entanto, o trabalho era apenas decorrência de um valor supremo,
ou seja, a própria vida. A possibilidade de passar toda a vida a trabalhar era
considerada como castigo divino ou condição de povos vencidos e escravizados.
Com o advento do processo de industrialização e de suas conseqüentes condições
objetivas, o trabalho tornou-se referência absoluta para todas as atividades da vida e
modificou definitivamente os hábitos e as mentalidades. Do posto de desconfiança e
desprezo passou ao de credibilidade e dignidade.
115
O trabalho objetiva a vida moderna porque é meio de produção de alguma coisa,
que não está na natureza e que só existe em função da vida social. Hannah Arendt
(1997) afirma que a atividade de fabricação se distingue da que visa a mera
sobrevivência, a qual denomina labor e que se limita a produzir apenas as condições
objetivas de manutenção da vida. O labor relaciona-se à dimensão natural e
biológica da própria vida, enquanto que o trabalho
[...] é a atividade correspondente ao artificialismo da existência
humana. (…) O trabalho produz um mundo «artificial» de coisas,
nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas
fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine
a sobreviver e transcender todas as vidas individuais. (…) O trabalho
e seu produto, o artefato humano emprestam certa permanência e
durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo
humano. (ARENDT, 1997, p. 15-16)
Nessa perspectiva o trabalho não se configura como uma dimensão coletiva da
existência humana, mas uma atividade individualizada que se desdobra em um
mundo humano caracterizado por relações de desigualdade, de poder e de
dominação. Essa individualização e o apelo à competitividade conduzem à
precarização das relações subjetivas entre as pessoas e, com isso, agrava a
dificuldade de se atribuir sentido à produção, e à própria vida coletiva, pois, acredita
Arendt, os valores e os sentidos são produzidos coletivamente através de relações
intersubjetivas na produção material e imaterial do mundo. O resultado disso é o
desenvolvimento de condutas desleais, o isolamento voluntário e a desagregação do
viver junto.
Nos provérbios selecionados pelas professoras torna-se evidente que o trabalho
assume a promessa de substituir “o caos pela ordem e a contingência pela previsível
seqüência dos eventos” (BAUMAN, 2001, p. 157). Os ideais modernos de ordem e
progresso estão aí preservados nestes despretensiosos ditados populares. Nesse
sentido, o trabalho é uma condição para ser e estar no mundo moderno e sua
ausência representa uma anormalidade, como bem explicitou uma professora:
- Trazendo para a realidade aí, a gente vê que o trabalho é a construção da vida
da gente e o texto diz o tempo todo que a cigarra só cantou, folgou o verão todo. Eu
tô doida pra ficar igual à cigarra mas o trabalho chamando.
116
O trabalho toma para si o primeiro lugar entre as atividades humanas, certamente
porque essa escolha garante uma vida mais satisfatória, apesar dos esforços e
renúncias. De acordo com Bauman (2001, p. 155), “o encantamento moderno com o
progresso – com a vida que pode ser ‘trabalhada’ para ser mais satisfatória do que
é, e destinada a ser assim aperfeiçoada – ainda não terminou, e não é provável que
termine tão cedo”.
Segundo o autor a modernidade não conhece outra vida senão a “feita”. A vida dos
homens e mulheres modernos não é algo determinado, mas uma tarefa incompleta
que exige esforços. Assim, o homem bom é aquele que trabalha duro, ou nas
palavras de Sennett, (2005, p. 119) a necessidade de trabalhar duro torna-se uma
virtude.
Nesta perspectiva, o homem moderno torna-se virtuoso a partir de sua capacidade
produtiva e de sua preocupação com o futuro, a exemplo da formiga, que durante
todo o verão trabalhou duro para acumular riqueza. Vejamos a posição de um dos
grupos que discutiu a fábula A cigarra e a formiga:
- A gente achou assim, que os dois lados foram muito radicais, porque uma se
aprofundou demais no trabalho e a outra nada fez, só ficou de perna pra cima,
cantando e não se preocupou com o futuro. A formiga não, sempre preocupada
com o futuro.
O futuro é o tempo em que a prosperidade e a felicidade estarão asseguradas. Essa
certeza está associada à idéia de progresso e representa a autoconfiança no
presente. O sentido mais profundo do progresso, talvez único, segundo Bauman
(2001, p. 152), é feito de duas crenças inter-relacionadas – de que “o tempo está do
nosso lado”, e de que “somos nós que fazemos acontecer”.
No entanto, o progresso está cada vez mais privatizado. Deixou de ser um esforço
coletivo e se configura como um amontoado de projetos individuais que concorrem
entre si. O depoimento que destaco a seguir impressiona pela forma como esta
professora se posiciona frente às diferenças sociais que estruturam a vida em
sociedade na contemporaneidade:
117
- É que nem eu, que sou professora, que ganho esse salário mixuruca, depois eu
vou bater na porta de doutor pedindo ajuda, eu não, tenho que me virar com o que
eu ganho. Por que outro vai me ajudar?
A resignação desta professora demonstra que o trabalho é um esforço individual e
não a produção social da vida, um deslocamento para as relações objetivas de
produção e sua conseqüente hierarquização. Desse modo, a quantidade de posses,
seja material ou intelectual, é que atribui valor ao ser. Para Bauman (2001), o
progresso, como tantos outros parâmetros da vida moderna, está privatizado
[...] porque a questão do aperfeiçoamento não é mais um
empreendimento coletivo, mas individual; são os homens e mulheres
individuais que a suas próprias custas deverão usar, individualmente,
seu próprio juízo, recursos e indústria para elevar-se a uma condição
mais satisfatória. (p. 155)
Infelizmente a professora não está errada. Num mundo onde o que prevalece é o
interesse individual, não há mesmo como esperar algo de outrem. Entretanto
conformar-se com isto não tornará a vida mais fácil de ser vivida. Sennett (2005, p.
27) afirma que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter, sobretudo aquelas
qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um
deles um senso de identidade sustentável.
Fugir do presente em direção ao futuro, repelidos e empurrados pelos horrores do
passado, não contribuirá com o aperfeiçoamento moral e a elevação dos padrões
éticos da sociedade. Ao contrário, é no enfrentamento dessas questões que teremos
alguma chance de viver uma vida mais digna em sociedade.
Nesse sentido, inspirada em Paulo Freire (2003), reafirmo mais uma vez minha
esperança na educação de nossas crianças. Como orienta o célebre educador,
ensinar exige a convicção de que a mudança é possível, desde que tratemos o
saber do futuro como problema e não como inexorabilidade.
118
4.3 A VIDA DÁ VOLTAS COMPLETAS
A discussão em torno da Fábula A raposa e a cegonha incitou um posicionamento
que teve como principal fundamento algo que as professoras insistentemente se
reportaram como a ‘Lei do Retorno’. Os significados dessa “legislação” apontam
pistas para refletir acerca do sentido atribuído ao dilema moral da Fábula em
questão.
- As pessoas a fim de se promoverem e levarem vantagem em situações que se
encontram inseridas esquecem da lei do retorno e principalmente, esquecendo de
pensar no outro e de se colocar no lugar do outro.
- Às vezes dá vontade de fazer isso porque eu não sou boazinha, mas como eu sei
que tem a lei do retorno eu me policio a não fazer.
- A vida sempre dá voltas e assim devemos aprender a respeitar o próximo.
- Deixa estar. Um dia a lagoa seca, jacaré.
Esse posicionamento me obriga a pensar no que está na base dessa proposição.
Que retorno é esse? Que voltas são essas que a vida dá? Como podem ter certeza
desse retorno a ponto de tomá-lo como uma lei? Quem se responsabiliza por este
retorno?
A ‘Lei do Retorno’ é uma espécie de vingança imaginária, uma forma de canalizar a
raiva e o ódio e assim assegurar que as injustiças sejam corrigidas implacavelmente.
Essa justiça transcendente é um atributo que reflete a integridade moral de Deus,
que na condição de “perfeito”, consegue separar o falso do verdadeiro, o fingido do
autêntico, e o incrédulo do crente.
A justiça divina não inocenta os culpados, por mais escondidos que eles estejam,
nem culpabiliza os inocentes, por mais caluniados que eles sejam. Deus é
onisciente e conhece a dimensão exata da nossa culpa. Além disso, está em todas
as coisas e tudo vê, por isso consegue regular as paixões e garantir recompensas
aos injustiçados.
119
Os fundamentos religiosos, principalmente os da tradição cristã continuam presentes
na sociedade contemporânea, como se pode identificar na posição que assumiram
as professoras frente ao conflito vivido pela raposa e a cegonha. Entretanto, a
religião passa a ser de foro íntimo, fruto da construção subjetiva do indivíduo, que
dispensa a institucionalização de seus preceitos.
O homem contemporâneo, diante de uma sociedade composta de fragmentos que
exige escolhas pessoais, recorre a determinados fundamentos religiosos, de tempos
pré-modernos, que o ajudam a dar sentido e coerência a própria existência. O
indivíduo não se identifica mais com discursos universais, mas colhe da religião
aquilo que, de alguma forma, satisfaz sua necessidade de justificar a própria vida.
Essa busca provavelmente ocorre porque para muitos o reconhecimento de
fundamentos religiosos é mais reconfortante do que assumir a condição que lhe
impôs a modernidade. O ser humano passou a ser a medida de si e de suas
relações. A religião deixou de dar um sentido ordenador da realidade e o indivíduo, a
partir de sua racionalidade, torna-se, na lógica kantiana, legislador de si mesmo,
capaz de formular leis de conduta e agir segundo essas leis.
A modernidade deu ao homem a liberdade de escolher os próprios caminhos. Não
obstante, o fato de muitos ainda hoje acreditarem
[...] que uma moral somente pode ser fundamentada pela religião
pode provir da circunstância de muitos de nós terem sido socializados
desta maneira, e sobretudo da circunstância de até hoje não existir
uma fundamentação não-religiosa da moral que tenha encontrado um
reconhecimento universal. (TUGENDHAT, 2000, p. 72)
A moral cristã está ancorada no preceito que somos todos filhos de Deus e por isso
podemos, como ele, alcançar a perfeição, nos libertando de todo o mal. Essa forma
maniqueísta de conceber a vida também esteve presente no debate em torno do
compadrio entre a cigarra e a cegonha. Durante o confronto de opiniões, instiguei as
professoras a refletir sobre a relação entre os personagens da Fábula em questão:
Pesquisadora: Por que será que no texto a cigarra e a cegonha se tratam por
comadres?
- A falsidade. Porque elas são falsas. Elas não são amigas de verdade.
- Amizade, negócio de carinho, não tinha nada de amiga.
120
Pesquisadora: Amigas de verdade? Existem amigos de mentira?
- Existem amigos e amigos, pois para você ter um amigo, você conta nos dedos,
você tem muitos conhecidos, então se torna difícil aquela que você confie, aquela
que você compartilhe, que realmente lhe ajude, não são todas.
Pesquisadora: Então amigos de verdade não têm sentimentos “ruins” uns pelos
outros?!
- Mais ou menos, às vezes também sentimos, todos nós temos inveja, ciúme,
ficamos com raiva.
- Mas dos amigos de verdade a gente só sente inveja branca.
Pesquisadora: Como é que nós somos com os nossos amigos?
- Exatamente assim. (risos) Têm amigos e amigos. Têm amigos que a gente atura e
têm outros que a gente gosta de verdade.
O reconhecimento de uma “inveja branca” pressupõe a negação de sentimentos
considerados “ruins” para um filho de Deus. Inveja é um sentimento que não “vem
de Deus”, portanto um desvio que remete à idéia de punição. Entretanto como é
impossível negar que se sinta inveja, as professoras se absolveram deste pecado
com o argumento de uma “inveja branca”, que não faz nenhum mal a ninguém.
A moral cristã cristaliza o bem e o mal e nega sua complementaridade na vida
cotidiana de homens e mulheres feitos de carne, sangue e de mil e tantas misérias
8
.
Dessa forma encerra a possibilidade de negociação e transfere para o divino a
responsabilidade de ordenar o cosmos particular, seja através de manipulações que
constranjam o sagrado, seja pela eficácia simbólica que se deseja. Segundo
Tugendhat (2000, p.70) “uma moral religiosa é em princípio também incapaz de
discutir com outros conceitos morais; ela somente pode afirmar sua própria
superioridade a partir da fé, portanto dogmaticamente, ou fechando-se para os
outros”.
8
Expressão utilizada por Guimarães Rosa na obra Grande Sertão: Veredas.
121
A liberdade de escolher entre o certo e o errado passa a ser monitorada pela
providência divina, que determina a priori modelos e orientações de conduta que
orientam um modo de vida prático que o homem deve seguir para obter salvação em
outro mundo. A vontade livre só existe para seguir os preceitos de Deus, como se
pode verificar na orientação da professora:
- Ao invés de revidarmos, mostrássemos o nosso lado positivo e fazer o bem com
aquele que nos fez o mal. Aí citamos uma fala de um espírito chamado Joana de
Angeles. Ela diz: “Trabalha pelo bem em seu próprio bem”.
Verifica-se aí um bem transcendente, descolado de qualquer contexto, o que, por
extensão, também se aplica ao mal. Bem e mal não se constituem como conteúdos
para se pensar o agir humano social e orientar as escolhas em torno da vida que se
quer viver. Para tanto é preciso rejeitar a idéia de uma fundamentação absoluta
como tal e seguir na direção de conhecer o outro e construir um saber sobre o outro.
Que viver é viver com outros (outros seres humanos; outros seres
como nós), é óbvio a ponto de ser banal. O que é menos óbvio e
absolutamente não banal é o fato de que o que chamamos de “os
outros” com os quais vivemos (ou seja, uma vez que vivemos uma
espécie de vida que implica a consciência de que a vivemos com
outros) é o que sabemos sobre eles. (BAUMAN, 1997, p. 168)
Diante dessa necessidade de conhecer o outro para com ele viver, recorro
novamente ao que orienta Paulo Freire (2003, p. 52) quando afirma que não é
possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de
fazer política. A escola, concebida em sua dimensão pública, pode e deve se
configurar como o lócus privilegiado para aprender a viver com o outro. Um espaço
marcado pela diversidade que deve assumir finalmente sua função formadora para
além da mera instrução.
A imensa dificuldade da escola em tratar os dilemas éticos como conteúdo de
formação, seja de professores como de alunos, talvez resida ainda num ideal cristão
de educação, ou seja, numa busca incansável pela perfeição, pelo bem entendido
como único, universal e eterno.
A escola, tal qual a concebemos, ainda está profundamente marcada pelas tradições
cristãs que a idealizaram, especialmente no Brasil, pelas doutrinas da Companhia de
122
Jesus. Herdamos dos jesuítas não somente a aula coletiva e a disposição espacial
de carteiras, inspirada nos bancos da igreja, como também, e principalmente, os
princípios e valores que determinam os fins educativos que estão até hoje sob forte
influência da Ética cristã-medieval.
O professor ainda é visto como aquele que tudo sabe e que tem respostas para
todas as perguntas. Uma figura quase divina, sem dilemas, sem conflitos e pronta a
resolver qualquer situação inesperada. Novamente aqui incorporamos a tradição
cristã transformando professores em sacerdotes. Desse jeito fica mesmo impossível
discutir e analisar os dilemas éticos da atividade docente porque, nesta perspectiva,
eles nem deveriam existir.
Todavia, seguindo as orientações de Paulo Freire (2003), é preciso compreender
que ensinar exige consciência do inacabamento do ser porque sua inconclusão é
própria da experiência vital. Não são apenas os alunos que estão inacabados,
também os professores porque onde há vida, há inacabamento. Aí está a boniteza
da vida:
Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo,
inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei
sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os
outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de
sua presença no mundo me incomoda e me enraivece
. (FREIRE,
2003, p. 52)
Assumir a complementariedade entre o bem e o mal que nos constitui enquanto ser
humano ou mesmo sua dissolução como campo bipolar, é reconhecer que não é a
vida que dá voltas completas por si só e que não há uma transcendência que possa
aliviar nossas angústias, mas que somos nós que produzimos essa vida que
escolhemos para viver. Desse modo, torna-se imperativo o reconhecimento da
natureza eminentemente ética da prática educativa.
4.4 A NATUREZA É SÁBIA
Considerar a dimensão ética do exercício docente pressupõe o enfrentamento dos
conflitos que emergem das relações entre os homens e não a sua banalização, outra
123
posição assumida pelas professoras frente às situações dilemáticas explícitas nas
Fábulas.
As posições analisadas até aqui não se diferenciam das que encontramos
cotidianamente no senso comum, o que confirma a necessidade de mais espaço de
reflexão crítica com respeito às relações humanas na formação docente. De uma
forma geral, o que se verifica na fala das professoras são construções elaboradas no
seio da própria cultura e que tendem a se cristalizar quando não submetidas a
exames críticos sobre seus sentidos e significados. A banalização não pode ser
identificada com um descaso perante dilemas e conflitos vivenciados pelos seres
humanos, mas uma naturalização da complexa experiência que constitui a vida em
sociedade.
Nessa naturalização dos conflitos as professoras encontram um certo “conforto
moral”, uma forma simplista de equacionar determinados impasses que surgiram
durante o confronto, como se pode observar a seguir:
- A formiga tem uma sociedade avançada. A natureza também é sábia, deu a cada
um o seu papel e a sua função.
- A natureza fez assim e é assim que tem que ser.
-A tartaruga é lerda e acabou. A lebre é rápida e acabou.
Essa posição frente aos dilemas morais inerentes a vida em sociedade contribui
sobremaneira para a conservação e manutenção do estado das coisas. As condutas
humanas são construções históricas e sociais, a partir das interações entre os
homens, e não estão postas como naturais. Se, ao contrário, o ser humano for
concebido apenas como um ser da natureza e não como um ser de relações sociais,
sua condição passa a ser de aceitação acrítica de cosmovisões e padrões de
comportamento transmitidos pela tradição.
A naturalização reduz a realidade ao mundo natural e à nossa experiência sobre
este. A Moral, portanto, se baseia nos princípios que regem a natureza, tomados
como fundamentos das regras e preceitos de conduta que consistem apenas em
124
reproduzir a harmonia do próprio cosmo, a fim de atingir o equilíbrio que haveria na
natureza.
Desse modo, opõe-se à cultura, no sentido daquilo que é criado pelo homem, que é
produto de uma obra humana. Recusa também qualquer sociabilidade discursiva,
em que se gesta uma forma de comunicação entre os sujeitos, ou seja, aquela em
que se articulam argumentos na busca de um consenso.
A conformidade com a qual as professoras se posicionaram encerra o debate ético e
a conseqüente capacidade de negociar no espaço público. Decorre disso que nas
práticas educativas apenas transfiram para seus alunos valores inquestionáveis,
fruto de suas crenças. Mais uma vez isso reafirma o reducionismo da formação a
qual se submeteram, centrada apenas na instrução.
A resignação assumida frente ao estado das coisas, que parece estar dado como
tal, ou seja, naturalizado, me remete ao pensamento rousseauniano. Para
Rousseau, como exposto no Capítulo 1, todo homem nasce bom e é a sociedade a
grande responsável pela degeneração das exigências morais mais profundas da
natureza humana. Vejamos o que disse uma das professoras:
- Nós fomos para o lado mais romântico, porque a raposa não é toda ruim. Se a
raposa queria dar o troco na cegonha significa que ela também já tinha passado por
alguma peça.
Esse comentário ilustra a premissa rousseauniana porque, segundo essa
professora, a raposa só fez o que fez com a cegonha porque em outra ocasião
alguém fez o mesmo com ela, ou seja, foi ensinada a agir desse jeito e com isto
corrompida socialmente. Essa lógica tira do indivíduo a responsabilidade pelos seus
atos e transfere para a sociedade, que parece não ser constituída pelos homens, a
culpa por todas as atrocidades humanas.
Esse argumento justifica também a posição da professora que afirmou ter a formiga
uma sociedade avançada porque a natureza é sábia, dando a cada um o seu papel
e a sua função. Posto assim, também deve ter o homem uma sociedade avançada
por natureza, uma essência, como afirmaram outras professoras:
125
- Devemos aprender a não julgar pela aparência e sim pela essência.
- Eu vejo o preconceito, porque a gente age com preconceito com as pessoas,
julgando somente aparência e não a essência, eu escrevi a moral da estória,
deveremos com a estória aprender a nunca sermos preconceituosos.
- A gente julga logo, pelas aparências. Se fulana é assim e acabou, eu nem imagino
uma outra possibilidade, da pessoa ter uma atitude ou um comportamento diferente.
Ela é assim e acabou, mas pode não ser. As aparências enganam.
- E essa é a vida da gente! A gente olha a pessoa e julga pela aparência em si, sem
conhecer a pessoa, o potencial, sem saber como é a pessoa, os valores da pessoa,
o caráter da pessoa.
A essência é aquilo que um ser é por natureza, ou seja, inato e espontâneo. Aliado a
isto, a crença de que todo homem nasce bom, faz com que a essência seja, por
definição, boa também. Nesta lógica, a aparência passa a ser uma espécie de
ilusão, uma máscara que a pessoa utiliza e que oculta aquilo que ela é realmente.
Na mesma perspectiva, o preconceito é a impossibilidade de enxergar a verdadeira
natureza do ser, o limite entre a essência e a aparência.
Entretanto, como afirma Bauman (1997), homens e mulheres foram lançados à
posição de indivíduos, dotados de identidades ainda-não-dadas, confrontando-se
assim com a necessidade de construí-las, e fazendo escolhas no processo. São as
ações que a pessoa precisa escolher, ações que a pessoa escolheu dentre outras
que podia escolher mas que não escolheu, que constitui o homem como um sujeito
moral.
A essência não define nem revela a natureza humana, porque na condição de vir a
ser, o homem produz aquilo que ele é, ou seja, aquilo que, a partir de sua liberdade,
é capaz de fazer de si mesmo. Como revela Paulo Freire (2003)
[...] Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha
passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o
meu ‘destino’ não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja
responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a
História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é
um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista
126
tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade. (p.
52 – 53)
Problematizar o futuro pressupõe a desnaturalização do estado das coisas e o
enfrentamento dos conflitos inerentes à vida em sociedade. Para tal, torna-se
imprescindível que se parta do senso comum, entendido aqui como um conjunto de
crenças admitidas no seio de uma sociedade determinada e que seus membros
presumem serem partilhados por todos. No entanto, não basta considerá-lo, é
preciso tencioná-lo a ponto de provocar um “desconforto moral” que mobilize
homens e mulheres, adultos e crianças, professores e alunos a tratar as situações
dilemáticas, de natureza ética, como um conteúdo vital de sua existência.
4.5 NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO
9
O professor é um navegador. Ser professor nos dias atuais exige a mesma coragem
de quem enfrenta um mar revolto rumo a uma guerra. Todos os dias, ao entrar na
sala de aula, depara-se com o inesperado e se vê obrigado a decidir rotas,
instrumentos e possibilidades. Entretanto, nas tantas viagens que o professor realiza
descobre que nem sempre os instrumentos que utiliza para se localizar e dar rumo
ao seu curso são suficientes. O cotidiano da sala de aula revela aos navegadores
que há algo extremamente complexo e subjacente à prática educativa que eles, na
grande maioria, não conseguem compreender. Desta forma descobrem que já não é
possível reduzir a atividade docente à mera aplicação de técnicas e que é preciso
muito mais. Cientes dessa lacuna, definem esse algo mais como uma necessidade e
clamam por alguma ajuda:
- Nós precisamos pensar sobre isso enquanto ser humano mesmo, até para
adquirir um equilíbrio para fazer o trabalho que nós fazemos, afinal de conta nós nos
9
Navigare necesse; vivere non est necesse - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos
marinheiros, amedrontados com uma forte tempestade que se abateu sobre o mar, na hora de embarcar rumo a
guerra. A expressão também foi utilizada por Fernando Pessoa para intitular um de seus poemas: Navegar é
preciso.
127
envolvemos, e nós trabalhamos com gente, se a gente não adquirir esse equilíbrio
a gente não consegue entrar na sala todo dia.
- Você ta aí falando e eu tava lembrando que eu tava trabalhando profissões com os
meus alunos e um deles disse que o pai dele era ladrão e aí eu fiquei sem saber o
que fazer. Pra gente discutir isso, levantar questões sobre isso, a gente precisa
estar bem plantado, porque senão a gente pira e pira também o menino. É
muito perigoso, porque se a gente não souber como discutir a gente pode fazer um
estrago na cabeça dessa criança. Pra essa criança o certo é ser ladrão. O pai dele é
que é o ladrão, não é alguém da televisão. E aí? Faz o quê? Como? Deixa pra lá,
não diz nada. A gente não sabe mesmo. A gente precisa estar plantada mesmo,
equilibrado emocionalmente pra discutir isso porque quando a gente ouve essas
coisas a gente se choca também.
Diante desse grito de socorro, próprio de quem não sabe que rumo seguir, resta
então uma única pergunta: por onde navegar? Desnaturalizar as convenções
impostas e fazer emergir reflexões de natureza ética talvez seja um bom começo.
No entanto, vale dizer que, este é um ato de extrema coragem para homens
acostumados a viver suas vidas individualizadas e fragmentadas. Todavia, esse
parece ser o único caminho possível para nos livramos da deriva em que nos
encontramos.
A expressão “deriva” é utilizada por Richard Sennett (2005) para nomear o primeiro
capítulo de seu livro A corrosão do caráter. Lá o autor discorre, a partir de um
encontro casual com o filho de um velho conhecido, sobre como o capitalismo corrói
o caráter das pessoas, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres
humanos uns aos outros. Ao longo da digressão, um questionamento, em especial,
me inspira a pensar o lugar que ocupa a reflexão ética na formação de professores e
incorporar a palavra deriva nesta análise:
Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de
curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis?
Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade
e história de vida numa sociedade composta de episódios e
fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário,
a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego
em emprego. (SENETT, 2005, p.27)
128
Essa provocação me remete à escola e, conseqüentemente, ao trabalho do
professor. As relações breves e aligeiradas do mundo moderno atingem também o
professor, que vê sua prática fragmentada e prescrita por outrem que desconhece
seu contexto e seus alunos. Os professores, em meio a tantas tormentas, também
estão à deriva, em busca de algo que possa ajudá-los a atribuir algum sentido ao
exercício docente.
Essa condição é produto, dentre outras coisas, de uma formação que privilegia o
conhecimento instrumental em detrimento de um estudo de base humanista. No
âmbito deste trabalho, ganha destaque a marginalização da reflexão ética nos
programas de formação de professores.
Antes de ir a campo tinha apenas suposições sobre os efeitos dessa marginalização
e esperava que, de fato, as professoras demonstrassem dificuldades tanto em
posicionar-se diante da trama dilemática da Fábula como em propor
encaminhamentos pedagógicos que privilegiassem a reflexão ética. No entanto, fui
surpreendida com posições cristalizadas no senso comum e com a total ausência de
propostas que ao menos provocasse a reflexão acerca dos mais diversos dilemas
morais que emergem da prática educativa.
Também as professoras explicitaram indignação ao perceberem a lacuna na sua
formação. Durante todo o encontro ouvi depoimentos que confirmavam a sede por
uma discussão sobre as suas escolhas, sobre o seu agir e sobre as decisões que
precisam tomar frente a um fazer fundado no conflito. Vejamos o que disseram as
professoras:
- Quando você traz para discussão a questão de desenvolver alunos críticos. Nem
nós, professores no exercício da profissão, estamos preparados para isso, o
que a gente fala o tempo todo com os alunos que precisam questionar as coisas. [...]
A gente prega uma coisa e na hora H recua, talvez seja por medo, porque somos
conservadores mesmos.
- Nós tivemos várias disciplinas, inclusive de Didática da Alfabetização e Didática da
Língua Portuguesa e em nenhum momento se trouxe uma proposta diferenciada
para o que a gente já faz na sala de aula. Então o que vem de contribuição é muito
129
pouco para que seja pensado na formação de professores nessa perspectiva. O
resultado é isso na nossa prática agora. Agora é a gente que está aí tentando
mudar o resultado de reduzir a nossa formação à didática, mas agora o resultado já
está aí.
Realmente o que se tem feito para se pensar a educação como formação do homem
é muito pouco. Esse relato me remete novamente aos efeitos de uma formação
instrumentalista e como afirma Lefort, o trabalho do professor torna-se, com mais
freqüência, uma técnica, e este por sua vez, reconhece que sua posição enquanto
educador “tende a se apagar para dar lugar a um agente de transmissão de
conhecimentos” (LEFORT, 1999, p. 220).
Isso coloca o professor, de fato, em uma situação de deriva. Mesmo que ele tenha
clareza dos fins de seu exercício profissional, está resignado e rendido aos efeitos
das marés. Remar contra essa maré é tarefa árdua, porém, entre o grupo de
professoras, sujeitos dessa pesquisa, encontrei disposição para tal desafio:
- Os professores acham que só aprendeu a ler e a escrever e daí acabou.
Infelizmente, acho que não acabou não. A gente faz as coisas sem nem pensar
porque que ta fazendo, sem refletir sobre nada. A maioria dos professores tem
essa prática de maneira a não refletir, de maneira mecanizada. Agora é a gente
que vai ter que buscar, começar de novo.
Talvez não seja preciso começar tudo de novo. Se as instituições escolares se
reconhecessem como um espaço público, certamente já estariam contribuindo de
forma significativa para suscitar uma reflexão acerca dos sentidos atribuídos à
finalidade do educar e assim equilibrar meios e fins. Desta forma, insisto novamente
na idéia de “comunidade escolar” na qual os sujeitos ali envolvidos se articulam em
torno de um bem comum.
A riqueza de possibilidades do encontro com a diversidade, própria do espaço
público, é negada pelas instituições escolares, que em busca de uma pasteurização
impedem o confronto entre diferentes crenças e valores. A “comunidade escolar”
pode e deve privilegiar um espaço para a reflexão em torno do saber ético
constituído a partir das práticas educativas cotidianas de seus membros.
130
Nessa perspectiva, também a formação de professores deve ser pensada a partir da
“comunidade escolar”. A concretude de seus desafios reais deve servir de base para
restabelecer o rumo por onde navegar. As situações dilemáticas, de natureza ética,
vivenciadas no interior da escola não podem ser aniquilidas como se fossem
empecilhos que comprometem a harmonia da instituição.
É preciso enfatizar que a pretensão deste trabalho não é homogeneizar posições ou
reconduzir os professores ao caminho do bem, mas indicar que a formação de
profissionais que atuam em sala de aula seja ao menos provocativa. O genuíno
interesse dessa pesquisa é enfrentar os conflitos morais próprios da atividade
docente e não simplesmente negá-los a partir de sua naturalização, como se tudo já
estivesse pré-determinado, seja por alguma transcendência, seja pela própria
natureza. Este desafio apóia-se nos ensinamentos de Aristóteles (2003) quando
afirma que
[...] a virtude moral é adquirida em resultado do hábito (...) É evidente,
pois, que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza,
visto que nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito.
(...) Não é nem por natureza nem contrariamente à natureza que as
virtudes se geram em nós; antes devemos dizer que a natureza nos
dá a capacidade de recebê-las, e tal capacidade se aperfeiçoa com o
hábito. (p. 40)
Sendo assim, parece razoável afirmar que fundamental mesmo é criar o hábito de
debater e negociar com os pares. O confronto é formativo em si, independente de
seus resultados, até mesmo porque, nem sempre o debate deve vislumbrar a
superação do que esteja instituído. A discussão é importante, inclusive, para manter
determinadas regras e condutas necessárias à vida em sociedade, desde que os
envolvidos participem consciente e criticamente de tais deliberações.
Essa proposição justifica-se na certeza de que ninguém nasce com receitas ou
instruções para seguir um ou outro caminho. Construímos nossas rotas durante a
própria vida, e por este motivo que navegar é preciso, apesar de todas as
adversidades que possamos encontrar mar adentro.
Não nascemos prontos, mas devemos ser livres para escolher os melhores
caminhos, quando não, ao menos os possíveis. Agir autonomamente implica decidir,
131
de maneira consciente, pela adesão ou transgressão às regras sociais instituídas e,
conseqüentemente, assumir as responsabilidades dessa escolha.
Por este motivo, a escola, enquanto lócus privilegiado da construção do saber ético
como um saber docente, deve se configurar como um espaço público, onde se
possa debater e negociar as próprias escolhas e não, simplesmente, obedecer
cegamente às regras que são impostas.
Desse modo, todos poderão realizar um retorno radical sobre si mesmo, sobre o
outro e sobre o mundo. A reflexão ética deve estar a serviço da construção da
autonomia moral dos sujeitos, exigindo o descentramento necessário para coordenar
o próprio ponto de vista com o ponto de vista alheio, pois como afirma Aristóteles
(2003, p. 41), “pelos atos que praticamos em nossas relações com outras pessoas,
tornamo-nos justos ou injustos; pelo que fazemos em situações perigosas e pelo
hábito de sentir medo ou de sentir confiança, tornamo-nos corajosos ou covardes”.
As regras e condutas de um determinado grupo social devem ser construídas e
reconhecidas pelo coletivo. Desse modo, se é esperado do professor um
posicionamento crítico diante da tarefa de educar, é preciso coibir o aniquilamento
da vontade de escolha dos professores, como se eles não tivessem condições de
trilhar os próprios caminhos. A escola, enquanto espaço público, tem como
obrigação garantir o envolvimento dos professores nas deliberações para levá-los à
compreensão de quais são realmente os seus valores, para se sentirem
responsáveis e comprometidos com os mesmos, evitando, portanto, todo e qualquer
tipo de doutrinação.
O espaço para a construção da autonomia moral deve ser um direito assegurado
aos professores. Parto do princípio de que a natureza do trabalho docente é
eminentemente prática, ou seja, o professor se constitui como tal no exercício da
profissão, a partir das experiências que vivencia no enfrentamento cotidiano da sala
de aula.
Dessa forma, não há como exigir do professor que ele seja autônomo sem oferecer
as possibilidades de transformar suas vivências em experiências que lhe dêem o
conhecimento necessário para enfrentar os dilemas que emergem em sua sala de
132
aula. No entanto, é importante enfatizar que não se trata de qualquer experiência,
mas, como orienta Larossa (2002), da elaboração do sentido ou do sem-sentido do
que nos acontece.
Ao professor deve ser assegurada, no dizer de Benjamin (1993b), a faculdade de
intercambiar experiências. Com seus pares ele deve ter a oportunidade de aprender
a lidar com situações dilemáticas de natureza ética, de tencioná-las e problematizá-
las. O objeto de trabalho dos professores são as pessoas e saber conviver com elas
é um imperativo que se impõe.
No âmbito deste trabalho, especialmente durante as sessões de leitura de Fábulas,
as professoras tiveram a oportunidade de falar e ouvir o que sentiam e o que
pensavam. Para muitas, aquele momento se constituiu numa experiência nunca
antes vivenciada. A Fábula foi muito mais do que um simples conteúdo de Língua
Portuguesa a ser ensinado, mas um meio para se pensar as situações dilemáticas,
de natureza ética, que enfrentamos cotidianamente. A leitura teve um papel
extremamente formativo e como explica Larossa (2003)
Pensar la lectura como formácion implica pensarla como una
actividade que tiene que ver con la subjetividad Del lector: no solo
con lo que el lector sabe sino con lo que es. Se trata de pensar la
lectura como algo que nos forma (o nos de-forma o nos transforma),
como algo que nos constituye o nos pone em cuestión em aquello
que somos. La lectura, por tanto, no es solo um pasatiempo, um
mecanismo de evasión del mundo real y del yo real. Y no se reduce
tampoco a um médio para adquirir conocimientos. (p.26)
As sessões de leitura de Fábula também não foram apenas um passatempo, mas
uma oportunidade de pôr em questão os valores, as crenças e a própria
subjetividade. Em meio à discussão dos dilemas morais, apresentados nas Fábulas,
as professoras debateram e negociaram posições. A riqueza do confronto esteve
exatamente aí, na singularidade de cada posição assumida e na diversidade de seu
coletivo.
O papel formativo da leitura pode também ser explicado pelo argumento de Antonio
Candido de Mello e Souza (2004) quando afirma que a literatura é fator
indispensável de humanização. O autor entende por humanização
133
[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do
humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante. (p.144)
As fábulas deram forma às emoções e ajudaram a traduzir a subjetividade de quem
vivenciou aquela experiência. O sentido da leitura, naquele momento, estava em
buscar um espelhamento de quem somos, para compreender e redefinir o sentido de
nossas vivências. Nesse sentido, posso afirmar que as fábulas cumpriram sua
função humanizadora à medida que se constituíram como um instrumento de
reflexão ética.
Desse modo, em meio à deriva, foi possível identificar uma direção para
navegadores sem rumo, mesmo com o risco de uma trajetória de navegação nem
sempre tranqüila. Uma coisa é certa, não há mais tempo, não podemos e nem
devemos mais esperar que o mar revolto se acalme. É preciso navegar e assumir o
risco das intempéries da desconhecida meteorologia da vida em sociedade.
Por fim, para finalizar esse capítulo e fazer a síntese dos sentidos e significados
dessa pesquisa-ação, cedo a palavra a uma das professoras que vivenciou comigo
essa experiência:
- Estamos cansados de ouvir “Fulano não é ético”! Quando assim falamos estamos
sendo éticos? Estamos sabendo o que estamos falando? Ou apenas reproduzindo o
que ouvimos alguém falar? Foi nesse clima de chamada para a reflexão, de
entendimento e compreensão sobre a ética na escola, com os alunos, na vida com a
gente mesmo que realizamos os encontros com a Professora Giovana. Foi
enriquecedor dizer e ouvir das colegas o que e como vivemos a ética, de como
começamos a desvendar as fábulas e o que está por trás delas, o que não estava
posto nas discussões, a defesa da ética de cada personagem, enfim a construção
da seqüência didática tomando como tema central a fábula e sempre focando a
moral.
134
ARREMATE FINAL
Arrematar a tessitura da trama que foi se configurando ao longo deste estudo não
significa necessariamente decretar o seu fim. Até mesmo porque, somente agora me
sinto preparada para o começo. Prefiro então tratar esta última parte do trabalho
como pequenos ajustes que se tornam necessários antes de torná-lo público.
A pesquisa que por ora se interrompe teve sua origem muito antes de aventurar-me
a relacionar campos de extrema complexidade como é o da ética e o da docência. A
epígrafe desse trabalho revela uma inquietação latente desde os tempos de
estudante do curso de Pedagogia.
Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com
país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias ...
10
Gostava dessa frase sem nem ao menos saber ao certo o porquê. Dum jeito
condenado ela entrou na minha vida e me acompanhou até aqui. Não foram poucas
as situações nas quais me questionava acerca da minha condição, enquanto
professora, de lidar com gente em formação e me perguntava, repetidas vezes, se
era justa com os meus alunos.
As confabulações fabulosas desse trabalho têm origem na minha experiência
enquanto professora, naquilo que de alguma forma me tocou e que contribui de
forma significativa para a elaboração dos sentidos que atribuo ao ofício artesanal de
educar as crianças. Mais tarde, ao ser apresentada à formação de professores me
deparei com a incoerência entre as dilemáticas práticas educativas e os perversos
discursos pautados na instrumentalização do ensino.
Apesar da inquietude, faltava-me, já na condição de “formadora”, um aparato
conceitual para ampliar as discussões sobre os dilemas de natureza ética que
enfrentavam os professores no seu cotidiano. Tinha clareza dos limites da minha
própria formação, pautada pela racionalidade técnica e por uma pretensa ausência
10
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
135
valorativa. As experiências que me constituíram enquanto profissional tinham bases
teóricas fragmentadas e dicotomizadas. Por este motivo, a partir do reconhecimento
dessa imensa lacuna, assumi o desafio de relacionar Ética e docência.
Eu queria mesmo algum desespero.
Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há.
Que alarga o mundo e põe a criatura solta.
Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo.
11
Talvez esteja aí outra razão pela qual optei pela pesquisa-ação. Essa escolha me
tirou do lugar de mera espectadora e me colocou como autora do processo, portanto
também sujeito dessa pesquisa. Nessa condição, assumo que as interpretações
dependeram das minhas escolhas, das escolhas possíveis, e das análises que
realizei, sempre passíveis de outras formas de explicação e questionamentos. Este
estudo, portanto, tem seus limites.
Os dados levantados para a análise dos sentidos atribuídos por professoras em
formação às situações dilemáticas de natureza ética, são representações acerca das
experiências que se concretizam no exercício docente. Portanto são inevitavelmente
percorridas pela subjetividade dos sujeitos que, falando, objetivam suas
representações e pela pesquisadora/formadora que, escutando, interpreta a referida
fala.
Apesar dos riscos, a escolha pela subjetividade foi intencional porque revaloriza as
vozes dos indivíduos, quer sejam eles os sujeitos que falam, quer o sujeito que, na
qualidade de pesquisador/formador, ouve ou lê a fala do narrador e a interpreta num
encontro de subjetividades. A racionalidade técnica, confiante na objetividade do ato
educativo, negou ao professor a autoria de seu fazer. No entanto, é o sujeito que,
narrando, organiza o mundo para agir sobre ele e constituí-lo de algum modo.
A compreensão das posições e sentidos atribuídos às situações dilemáticas de
natureza ética é também mediada pelos contextos do ouvinte ou do leitor, que agora
as interpreta, e nessa interpretação, projeta a si mesmo. Esse estudo é de natureza
interpretativa e, nessa medida, assume o grau de subjetividade que
necessariamente comporta. Portanto, os resultados desse estudo são partilháveis,
11
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
136
no sentido da compreensão mútua de experiências comuns, como ponto de partida
para a compreensão do saber ético como um saber docente.
Posto assim, asseguro que a análise dos dados não pretende ser definitiva,
tampouco portar uma verdade, mas tão somente uma das tantas interpretações
possíveis. As idéias a que este estudo remete, considerando a provisoriedade e a
dinâmica do conhecimento, são idéias que demarcam um tipo de preocupação, um
tipo de interpretação e um determinado tempo e espaço. Em outras palavras, é um
estudo provisório e parcial.
No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam.
Melhor assim. Pelejar pelo exato, dá erro contra a gente.
Não se queira. Viver é muito perigoso ...
12
Apesar de suas limitações, espero que esse trabalho possa contribuir para o
enfrentamento dos dilemas de natureza ética escamoteados nas práticas educativas.
O estudo coloca em relevo algumas concepções éticas implicadas no cotidiano das
séries iniciais e indica pistas que podem orientar programas de formação
comprometidos mais com uma formação humanizadora do que com a transmissão
acrítica de um determinado conjunto de informações.
Transformar o espaço da formação em um espaço público e dar vez e voz aos
professores é condição sine qua non para incluir na formação o saber de si e do
outro, das crenças e valores que se expressam na trama experiencial do ato
educativo, entendido, no âmbito desse trabalho, como um saber ético.
Convido agora o leitor a tornar-se também sujeito desse trabalho, a refletir sobre sua
própria subjetividade e reconhecer, como bem disse Paulo Freire, que a boniteza da
vida está no nosso inacabamento.
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas –
mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.
Verdade maior. É o que a vida me ensinou.
Isso que me alegra, montão
13
.
12
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
13
Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
137
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144
ANEXO B – Fábulas utilizadas na pesquisa: O leão e o rato, A lebre e a tartaruga,
A raposa e a cegonha e A cigarra e a formiga.
O leão e o rato
Saiu da toca aturdido
Daninho pequeno rato,
E foi cair insensato
Entre as garras de um leão.
Eis o monarca das feras
Lhe concedeu liberdade,
Ou por ter dele piedade,
Ou por não ter fome então.
Mas essa beneficiência
Foi bem paga, e quem diria
Que o rei das feras teria
De um vil rato precisão!
Pois que uma vez indo entrando
Por uma selva frondosa,
Caiu em rede enganosa
Sem conhecer a traição.
Rugidos, esforços, tudo
Balda sem poder fugir-lhe;
Mas vem o rato acudir-lhe
E entra a roer-lhe a prisão.
Rompe com seus finos dentes
Primeira e segunda malha;
E tanto depois trabalha,
Que as mais também rotas são.
O seu benfeitor liberta,
Uma dívida pagando,
E assim à gente ensinando
De ser grata à obrigação.
Também mostra aos insofridos,
Que o trabalho com paciência
Faz mais que a força, a imprudência
Dos que em fúria sempre estão.
145
A lebre e a tartaruga
“Apostemos, disse à lebre
A tartaruga matreira,
Que eu chego primeiro ao alvo
Do que tu, que és tão ligeira!”
Dado o sinal de partida,
Estando as duas a par,
A tartaruga começa
Lentamente a caminhar
A lebre, tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitória
De peta ou de bagatela.
Deita-se, e dorme o seu pouco;
Ergue-se, e põe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;
Eis dita uma vista d´olhos
Sobre a caminhante sorna,
Inda a vê longe da meta,
E a pastar de novo torna.
Olha; e depois que a vê perto,
Começa a sua carreira;
Mas então apressa os passos
A tartaruga matreira.
À meta chega primeiro,
Apanha o prêmio apressada,
Pregando à lebre vencida
Uma grande surriada.
Não basta só haver posses
Para obter o que intentamos;
É preciso pôr-lhe os meios,
Quando não, atrás ficamos.
O contendor não desprezas
Por fraco, se te investir;
Porque um anão acordado
Mata um gigante a dormir.
146
A raposa e a cegonha
Quis a raposa matreira
Que excede a todas na ronha,
Lá por piques de outro tempo,
Pregar um ópio à cegonha.
Topando-a, lhe diz: “Comadre,
Tenho amanhã belas migas,
E eu nada como com gosto
Sem convidar as amigas.
De lá ir jantar comigo
Quero que tenha a bondade:
Vá em jejum porque pode
Tirar-lhe o almoço a vontade”.
Agradeceu-lhe a cegonha
Uma oferenda tão singela,
E contava que teria
Uma grande fartadela.
Ao sítio aprazado foi.
Era meio-dia em ponto.
E com efeito a raposa
Já tinha o banquete o pronto.
Espalhadas em um lajedo
Pôs as migas do jantar
E à cegonha diz: “Comadre,
Aqui as tenho a esfriar.
Creio que são muito boas, -
Sansfaçon, - vamos a elas”
Eis logo chupa metade
Nas primeirar lambidelas.
No longo bico a cegonha
Nada podia apanhar;
E a raposa em ar de mofa,
Mamou inteiro o jantar.
Ficando morta de fome,
Não disse nada a cegonha;
Mas logo jurou vingar-se
Daquela pouca vergonha.
E afetando ser-lhe grata,
Disse: “Comadre, eu a instigo
A dar-me o gosto amanhã
D´ir também jantar comigo”.
A raposa lambisqueira
Na cegonha se fiou,
E ao convite, às horas dadas,
No outro dia não faltou.
Uma botija com papas
Pronta a cegonha lhe tinha;
E diz-lhe: “Sem cerimônia,
A elas, comadre minha”
Já pelo estreito gargalo
Comendo, o bico metia;
E a esperta só lambiscava
O que à cegonha caía.
Ela, depois de estar farta,
Lhe disse: “prezada amiga,
Demos mil graças ao céu
Por nos encher a barriga”.
A raposa conhecendo
A vingança da cegonha,
Safou-se de orelha baixa,
Com mais fome que vergonha.
Enganadores nocivos,
Aprendi esta lição.
Tramas com tramas se pagam,
Que é pena de Talião.
Se quase sempre os que iludem
Sem que os iludam não passam,
Nunca ninguém faça aos outros
O que não quer que lhe façam.
147
A cigarra e a formiga
Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalhas
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Te voltar o aceso estio.
“Amiga, - diz a cigarra –
Prometo, à fé d´animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.”
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta:
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: “Eu cantava
Noite e dia, a toda hora.
- Oh! Bravo!, torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!”
148
ANEXO C – A moça tecelã, de Marina Colassanti
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da
noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre
os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que
nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra
trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava
sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam
os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol
voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes
do tear para a frente e para trás, a moça passava seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E
eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a
lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de
escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela
primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca
conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam
companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto
barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de
entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e
foi entrando na sua vida.
Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que
teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os
esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas
coisas todas que ele poderia lhe dar.
149
- Uma casa melhor é necessária - disse para a mulher. E parecia justo, agora que
eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os
batentes e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. - Por que ter casa, se podemos ter
palácio? - perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de
pedra com arremates de prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e
escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o
sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia,
enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal, o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e
seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
- É para que ninguém saiba do tapete - disse. E antes de trancar a porta a chave
advertiu: - Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos,
os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo
o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o
palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom
estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas
exigências. E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre,
sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário,
e, jogando-a veloz de um lado para outro, começou a desfazer o seu tecido.
Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os
criados e o palácio. E todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua
casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado
olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro
dos sapatos e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada
subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na
linha do horizonte.
150
ANEXO D - Rousseau e os perigos da leitura, ou por que Emilio deve pode ler
fábulas, de José Oscar de Almeida Marques e Formação ética: direitos, deveres e
virtudes de Yves de La Taille.
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