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JUSCELINO BATISTA RIBEIRO
ESTÉTICA E POLÍTICA NA DRAMATURGIA DE
VLADIMIR MAIAKÓVSKI
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia, como requisito parcial para a obtenção
do título de mestre em História.
Área de concentração: História Social.
Orientadora: Professora Drª Rosangela Patriota.
UBERLÂNDIA – MG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
2001
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BANCA EXAMINADORA
:
_____________________________________________________
Prof. Drª Regma Maria dos Santos
_________________________________________________
Prof. Dr. Alcides Freire Ramos
_________________________________________________
Profª Drª Rosangela Patriota
Uberlândia, julho de 2001.
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À minha família, em especial, aos
meus pais, pelo carinho, estímulo e
compreensão.
4
AGRADECIMENTOS
À professora Drª Rosangela Patriota Ramos que vem me orientando pelos
caminhos da história muito tempo. O presente trabalho é a realização de mais uma
etapa desta caminhada, na qual, eu e mais um grande número de alunos do curso de
História da Universidade Federal de Uberlândia, tivemos o prazer e a honra de poder
desfrutar um pouco da grande sabedoria, e também da companhia da professora.
Ao professor Dr. Alcides Freire Ramos que, muito tempo, também vem
contribuindo para o desenvolvimento das minhas pesquisas. Obrigado pelas observações
feitas no exame de qualificação, que foram de fundamental importância para a
conclusão do presente trabalho.
Agradeço também a professora Drª Vera Puga pelas importantes observações
feitas no exame de qualificação.
A Marcos Menezes, grande amigo de longa data que sempre me deu muito
estímulo, além de colocar à disposição sua biblioteca particular.
Aos meus colegas do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da
Cultura - (NEHAC) -, especialmente, Luciano Carneiro que, com sua presteza peculiar,
esteve sempre pronto a me ajudar, especialmente, nas questões relativas à “máquina”, e
Thaís Vieira pelas inestimáveis ajudas na solução de problemas que surgem naqueles
momentos mais difíceis.
Um agradecimento muito especial ao curso de Pós-Graduação em História,
coordenado pela Profª Drª Maria Clara Tomaz Machado, e a Maria Helena Moura,
secretária que, com sua grandeza de espírito e eficiência nunca disse não.
Mais uma vez, muito obrigado à minha família, meu porto seguro.
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De todos os lados
O anel do bloqueio
em todo lugar os canhões
vos olham de frente...
Contra a primeira república
de operários e camponeses
Entre o clarão dos tiros
e o brilho das baionetas
os ricos de todo o mundo
e aqueles
estes
lançavam exércitos
e frotas...
Moscou
como uma pequena ilha
e nós esfomeados,
nós miseráveis
Com Lênin na cabeça
e um revólver no punho
Maiakóvski
6
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................07
INTRODUÇÃO.........................................................................08
CAPÍTULO I
Os movimentos de vanguarda e a atuação dos cubo-
futuristas nas Rússia...................................................................................30
1.1 Futurismos italiano e russo: uma mesma origem,
porém, com desfechos contrários...............................................................47
CAPÍTULO II
Maiakóvski: uma breve, mas intensa vida dedicada às
revoluções russas..........................................................................................61
CAPÍTULOIII
A Revolução Russa à luz de obras do poeta
revolucionário..............................................................................................80
3.1 A Rússia rumo à Terra Prometida.............................86
3.2 Da Expectativa à Frustração e a Crítica..................109
CONCLUSÃO
.......................................................................................132
BIBLIOGRAFIA......................................................................150
7
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal analisar o processo revolucionário
russo que culminou em outubro de 1917, quando os bolcheviques
ascenderam ao poder. Foram muitos, os autores que se dedicaram à análise
da Revolução Russa, e a leitura que a grande maioria deles fez do tema foi,
essencialmente, política, dando importância capital às ações do partido, e
negligenciando a contribuição de um expressivo número de pessoas, em
especial, trabalhadores do campo e das cidades, artistas e intelectuais que
ajudaram a derrubar, em fevereiro de 1917, uma autocracia que vinha
oprimindo e explorando os trabalhadores desde o século XVI. Estas pessoas
também participaram, ativamente, no processo de implantação do
socialismo, em outubro do mesmo ano. Apesar de sua atuação decisiva no
decorrer dos acontecimentos de 1917, de maneira geral, eles não figuram na
abordagem de muitos autores que estão consubstanciados na historiografia
tradicional. Por acreditar que este importante período da história da Rússia
não pode ser apreendido somente sob a perspectiva política, sem fazer
mediações com as questões sociais e culturais, procuramos abordar o tema a
partir de uma bibliografia que resgata também a contribuição destes aspectos
para a implantação do socialismo. Concomitante aos acontecimentos
políticos na Rússia, no começo do Século XX, estava havendo também uma
verdadeira revolução no campo da cultura. Para resgatarmos este universo
cultural russo utilizamos como documentos primários duas peças teatrais de
Maiakóvski: Mistério-Bufo de 1917, e Os Banhos de 1930. Entendendo as
peças como uma representação, uma leitura que o poeta fez de seu tempo,
ele que além de atuar em defesa da revolução socialista, também
empreendeu uma grande batalha para mudar a estética das artes que, em
última instância, deveria se desprender dos moldes burgueses e se aproximar
dos trabalhadores. Maiakóvski dedicou sua vida e seus trabalhos, incluindo
poemas, peças de teatro, roteiro de cinema, cartazes, em defesa das
revoluções no campo da estética e da política.
8
INTRODUÇÃO
Acreditando, como Max Weber, que o
homem é um animal amarrado a teias
de significados que ele mesmo teceu,
assumo a cultura como sendo essas
teias e a sua análise; portanto, não
como uma ciência experimental em
busca de leis, mas uma ciência
interpretativa, à procura do
significado.
Clifford Geertz
A vasta historiografia acerca do processo revolucionário russo, que teve
como momento culminante a ascensão do partido Bolchevique ao poder, em outubro de
1917, privilegia sobremaneira o aspecto político. Dentro dessa perspectiva de análise, o
Partido assume um papel preponderante se constituindo no agente, por excelência, do
processo histórico. É, portanto, uma leitura institucional dos acontecimentos que
marcaram não a Rússia mas também o mundo nas duas primeiras décadas do século
XX.
De acordo com essa historiografia, na qual estão consubstanciados Marc
Ferro, Jean Michel Palmier, Maurício Tragtenberg, além de Lênin e Trotsky, dentre
outros, o desencadeamento da revolução russa está associado a fatores internos e
externos. A população há muito tempo, desde o século XVI, vivia sob a égide do regime
czarista que se caracterizava, fundamentalmente, por uma autocracia sustentada pela
igreja ortodoxa, a aristocracia e o capital estrangeiro. Este regime autocrata espoliava a
maioria da população, em especial, camponeses e proletários, em favor de uma minoria
burguesa.
A situação de inópia na qual viviam os trabalhadores russos, que
enfrentavam dificuldades de toda sorte para sobreviverem, foi um fator determinante
para a eclosão das revoluções que, ao final de um processo, implantaria o socialismo no
9
país. Nesse sentido, os grupos que estiveram à frente destas manifestações, ao longo do
processo revolucionário, foram os camponeses e os trabalhadores das cidades, muitos
dos quais não eram filiados ao partido bolchevique, o que não diminui, no entanto, o
importante papel desempenhado por esses grupos nas lutas por um novo país, livre das
agruras do czarismo. Contudo, o que se pode apreender é que por muito tempo a
historiografia dominante deu muito relevo apenas às ações do partido bolchevique,
desconsiderando o que acontecia fora do âmbito institucional.
1
Fernando Haddad, em O Sistema Soviético: relato de uma polêmica, faz a
sistematização de uma ampla bibliografia acerca da revolução russa, a partir das
análises empreendidas por diversos autores, dentre os quais destacamos: Charles
Bettelheim, Tony Cliff, Karl Wittfogel, James Burnham, Claude Lefort, Cornelius
Castoriads, Lênin e Trotsky.
Haddad conclui sua pesquisa afirmando que as teorias que, em mais de meio
século, têm tentado decifrar a natureza do sistema soviético, embora abordem aspectos
importantes de sua realidade, não conseguem apreendê-lo no cômputo total. Segundo o
autor, são estudos que analisam alguns pontos relevantes da história do país, sem, no
entanto, abarcar toda a sua complexidade.
Durante um longo tempo, a análise que muitos autores fizeram do processo
revolucionário russo foi, essencialmente, centrada nas questões políticas, o que é
inteligível se levarmos em conta que para a historiografia tradicional, entendida como
aquela que foi dominante até bem pouco tampo no interior da história, o centro das
abordagens era o aspecto político. Havia uma nítida hierarquia na concepção dos
defensores dessa história na qual o aspecto político estava acima das questões
econômicas, sociais e culturais.
Não obstante, essa concepção de historia que não entendia o processo
histórico como multifacetado, no qual todos os aspectos são relevantes, imprescindíveis
para a compreensão do todo, que a questão política, de maneira isolada, não daria
conta de apreender a pluralidade dos acontecimentos, perdeu muito vigor a partir de
meados do século XX quando foram abertas novas vias, novos caminhos no interior da
história.
1
Há registros de revoltas camponesas na Rússia desde o século XVI.Embora elas não tenham conseguido
derrubar o regime czarista, abalaram-no profundamente. Após a industrialização do país, o que aconteceu
por volta de 1860, o foco das revoltas transferiu-se para as cidades, como a Revolução de 1905 que ficou
conhecida como Ensaio Geral.
10
Com essa grande abertura verificada no campo da história puderam vir à
baila uma série de novas e antigas questões de fundamental importância para a
compreensão do processo histórico, mas que, no entanto, não figuravam, ou não tinham
espaço dentro dos limites da concepção dominante de história que insistia em ignorar a
ligação e a contribuição de algo que não estivesse relacionado ao Estado ou que fosse
determinado por ele. Tudo que fugisse à esfera institucional não cabia dentro dos limites
estreitos desta história.
Nesse sentido, foram abertas muitas possibilidades de análises de temas
históricos, sob as mais variadas formas, dentro de perspectivas totalmente diferentes
daquelas abordadas pela história tradicional. A partir de então, o componente político
não figurava mais como o “protagonista da história” mas sim, como um aspecto muito
importante para o estudo da mesma mas em correlação com a economia, a cultura e o
social, pois é o conjunto desses aspectos que vai delinear, determinar os contornos de
uma sociedade. Dessa forma, se se privilegia um aspecto em detrimento de outro, a
história, ao final, não dará conta da complexidade do todo.
A partir de então, a hierarquia existente dentro da história foi rompida. Cada
vez mais a história eminentemente política foi perdendo terreno para novos enfoques,
abrindo espaços para outras histórias”, o que enriqueceu incomensuravelmente o
campo de possibilidades no interior do processo histórico, tornando-o muito mais rico e
instigante.
AS VICISSITUDES DA HISTÓRIA E OS NOVOS TEMAS
Essa nova maneira de se pensar e escrever a história proporcionou a
emergência de novos objetos de estudo, como o corpo, a feminilidade, a loucura, a
sexualidade, a infância, a leitura; enfim, uma vasta gama de temas que dentro da
história eminentemente política, eram vistos como destituídos de história, que eram
previamente considerados como imutáveis. No entanto, a partir dessa renovação tudo
passava a ser pensado como uma construção social, estando, portanto, sujeito a
variações tanto no tempo quanto no espaço, sendo passíveis de mudanças, e assim,
merecendo o estudo e o registro da história.
11
É no bojo dessas importantes mudanças que temas como o processo
revolucionário russo pode ser reavaliado sem ficar preso somente às questões políticas
institucionais, o que proporcionou um redimensionamento do mesmo, resgatando a
inestimável contribuição dos trabalhadores, artistas e intelectuais que fizeram a defesa
intransigente do socialismo na Rússia, mas, que no entanto, não figuravam nos anais da
história dominante. Era o momento, portanto, de se resgatar vozes que haviam sido
caladas pela tradição.
Roger Chartier
2
, ao analisar as profundas mudanças pelas quais a história
passou a partir de 1960, afirma que a história dominante baseava-se no estruturalismo,
ou seja, tratava de identificar as estruturas e as relações que comandam os mecanismos
econômicos, organizam as relações sociais, engendram as formas do discurso. Segundo
o autor, havia uma separação entre o objeto do conhecimento histórico, propriamente
dito, e a consciência subjetiva dos atores, posto que o paradigma estruturalista não
levava em conta as percepções e intenções dos indivíduos. Era uma história, portanto,
alheia à atuação daqueles que integravam a sociedade, e que por mais paradoxal que
possa parecer não figuravam na história.
À medida que a história se fragmenta e tudo passa a se constituir em objeto
de sua investigação, os historiadores, sensíveis a novas abordagens antropológicas e
sociológicas, procuraram restaurar o papel dos indivíduos na construção dos laços
sociais. A micro-história
3
, de acordo com o historiador francês, foi a tradução mais
viva dessa transformação na abordagem histórica. Ela pretende construir, a partir de
uma situação particular, normal porque excepcional, a maneira como os indivíduos
produzem o social por meio de suas alianças e seus confrontos, seja nas dependências
que os ligam, ou dos conflitos que os opõem.
O objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as
estruturas e os mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as
relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas
comunidades, as parentelas, as famílias, os indivíduos.
4
Depreende-se, portanto, que houve um deslocamento no foco da história que
não ficava mais presa somente aos grandes feitos, elegendo heróis, já que ao restante da
humanidade, “às pessoas comuns”, era reservado um papel secundário, bastante
2
CHARTIER, Roger. “A História Hoje”. IN: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. V.7, nº13. 1994.
3
De acordo com Chartier, a micro-história teve sua gênese na Itália, onde podemos destacar nomes como
Giovanni Levi e Carlo Ginzburg.
4
CHARTIER, Op. Cit p.102.
12
marginal na história. A partir de então, as pesquisas históricas estarão centradas também
nos pequenos acontecimentos, nos fatos que acontecem no dia-a-dia no interior da
sociedade; e a essa história as relações que se estabelecem entre pessoas e/ou grupos
sociais são de fundamental importância para a compreensão da mesma.
A partir do momento que acontece esse redimensionamento no conceito de
história, o aspecto cultural, entendido como o conjunto de valores, costumes, crenças,
hábitos, visões de mundo, enfim, a forma como uma sociedade se representa, passou a
desempenhar um importantíssimo papel que não se podia mais pensar o processo
histórico desvinculado dos atores sociais. A ação do indivíduo passa a ser determinante
na construção de sua história. E os contornos que uma sociedade vai assumir estão
intimamente relacionados, dentre outras coisas, à forma como as pessoas vão pensar e
agir naquele momento, como elas vão representar as suas vidas.
O objeto fundamental de análise de uma história cujo projeto é reconhecer a
maneira como os atores sociais investem de sentido suas práticas e seus discursos, a
forma como eles se representam, parece residir na tensão, nos conflitos que se
estabelecem entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e os
constrangimentos, as normas, as convenções que limitam o que lhes é possível pensar,
enunciar e fazer. São nesses espaços de múltiplas manifestações que se encontram os
elementos necessários para a abordagem dessa nova história.
Os indivíduos estão sempre ligados por dependências recíprocas,
perceptíveis, ou não, que acabam interferindo sistematicamente na formação do mesmo,
moldando e estruturando sua personalidade, definindo, em última instância, as formas
de afetividade e a racionalidade. Portanto, este conflito que se estabelece entre a prática
social e as normas, que são estabelecidas, muitas vezes, independente da vontade do
indivíduo, se constituem no pano de fundo, ou para usar uma expressão cunhada por
Karl Marx, no “motor da história”.
Tudo isto, essa nova maneira de se pensar e entender a história faz com que
a sua relação com questões como o tempo e o espaço, bem como a forma de se escrever
os acontecimentos históricos também sejam redefinidos, posto que dentro desta nova
concepção, a história não é pensada como pronta, acabada e imutável, mas sim, como
uma construção de um grupo ou grupos de pessoas, uma sociedade que está ligada a um
determinado período e a um espaço delimitado e que, portanto, interferem
sistematicamente nos contornos da história, são determinados e determinantes para o
desfecho dos acontecimentos se constituindo em elementos de capital importância para
13
a compreensão do processo histórico. A história não mais se restringia a um grupo
seleto de pessoas como apregoava a história tradicional, ela passava a abordar toda a
humanidade.
OS DOCUMENTOS E A RELAÇÃO TEMPO / ESPAÇO
NA HISTÓRIA
Em meio ao turbilhão de acontecimentos que solaparam as estruturas da
sociedade capitalista nos importantes anos sessentas a história não podia ficar incólume;
assim ela também passou por um amplo processo de revisão. Nesse sentido, vários de
seus conceitos foram repensados, como o seu próprio conceito que foi alargado de
maneira inaudita que, a partir de então, tudo passava a se constituir em objeto de sua
investigação.
À medida que o conceito de história é ampliado, a noção de documento
também passa por um amplo processo de revisão. A partir dessa nova concepção de
história, o historiador não precisava mais ficar preso somente a documentos escritos e
oficiais, outras fontes também passavam a ser consideradas legítimas, como as orais,
imagéticas e estatísticas.
Jacques Le Goff
5
se constitui em referência obrigatória para se pensar as
questões relativas ao documento na história. Em seu importante estudo Documento /
Monumento o autor faz um histórico do papel desempenhado pelo documento ao longo
dos tempos. Ele advoga que o termo documento entendido como testemunho histórico,
data apenas do início do século XIX., e o seu triunfo está relacionado à escola
positivista que o concebia como fundamento primordial do fato histórico. A partir de
então, segundo Le Goff, todo o historiador que trate de historiografia ou do mister de
historiador recordará que é indispensável o recurso ao documento, pois a história
inexistiria sem ele.
5
LE GOFF, Jacques.”Documento / Monumento”. IN: Enciclopédia Einaudi. Memória – História. V.1.,
Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 95-106.
14
A princípio, documento era essencialmente um texto que, via de regra,
estava atrelado ao Estado, ou seja, documento histórico poderia ser considerado
como tal se fosse escrito e oficial. Quaisquer outras fontes documentais que fugissem a
estas normas deveriam ser minuciosamente analisadas que, de maneira geral, eram
consideradas apócrifas e por isso não serviam como documento histórico, não tinham
validade. No entanto, com o passar dos tempos a noção de documento foi sendo
ampliada. Certamente, os grandes responsáveis pela ampliação da noção de documento
foram, em grande parte, os fundadores da revista Annales.
6
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando
estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos,
quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite
utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com
palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas
daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os
exames das pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas
pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem,
depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a
actividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.
Toda uma parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso
trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer
falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem
sobre os homens, sobre as sociedades que a produziram, e para constituir,
finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entre - ajuda que
supre a ausência do documento escrito?
7
O alargamento do conteúdo do termo documento, que passava a significar
documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra
maneira, foi somente uma etapa para a grande explosão que ocorreu a partir de 1960 e
que desencadeou uma verdadeira revolução documental, tanto no que se refere à
quantidade como à qualidade.
Além disso, os documentos não são mais entendidos como portadores de
verdades, mas sim, como uma leitura possível, uma interpretação, ou ainda como uma
representação de um dado acontecimento, ou um determinado contexto histórico, que
eles traziam consigo as marcas inexoráveis de seu tempo. Deixando de ser, portanto,
objetivos, neutros, como preconizavam os defensores de uma história com explícitas
6
A revista Annales foi fundada na França, em 1929, por Marc Bloch e Lucien Febvre.
7
FEBVRE apud LE GOFF (1982).
15
tendências positivistas defendendo que os historiadores deveriam extrair as verdades
dos documentos.
8
Não obstante, nossas mentes não refletem diretamente uma realidade, pois
o historiador não pode recompor o real na sua totalidade, primeiro pela questão do
distanciamento no tempo e no espaço e também devido ao fato de que os documentos
utilizados pelos estudiosos da história são apenas fragmentos de uma determinada
realidade.
Outro dado relevante que diz respeito a essa questão é que não podemos
evitar olhar o passado de um ponto de vista particular, que o mundo é percebido
por nós através de convenções, esquemas e esteriótipos que variam de uma cultura para
outra e que o historiador, voluntariamente, ou não, passa as suas impressões de mundo
para o seu trabalho. Cai por terra, portanto, a noção de neutralidade, objetividade e
universalidade advogada durante muito tempo pela história positivista.
Michel de Certeau, historiador francês da terceira geração dos Annales,
enriqueceu bastante a discussão acerca da relação do historiador com os documentos, na
medida em que aponta para uma relação intrínseca entre os dois. Os documentos, na
perspectiva do historiador francês, não estão deslocados, e sim, inseridos no tempo e no
espaço, trazendo consigo, portanto, essas profundas marcas. Dessa forma, a idéia de
documentos objetivos é colocada em xeque, posto que são mediadores entre o
historiador e seu tempo.
Em conformidade com Certeau, não se pode ignorar a particularidade do
lugar de onde se fala, e do domínio por onde é conduzida uma investigação. Assim, o
trabalho de um historiador não pode ser isolado do período em que foi concebido, e nem
as circunstâncias em que este foi gerado podem ser descartadas. O autor reafirma a
estreita ligação do trabalho historiográfico com a prática, com as implicações sócio-
econômicas e culturais. A partir do momento que o historiador não releva essas
implicações ele fica preso a dogmas ou teorias suspensas, além de outros erros que pode
incorrer.
Outro pensador de fundamental importância para se pensar as questões
concernentes à história e a sociedade é Michel Foucault, em especial, A Arqueologia do
Saber obra em que o pensador francês discute, fundamentalmente, a idéia de ciência e
8
Havia uma grande desconfiança por parte de historiadores positivistas, ou representantes da “Escola
Metódica”, como Langlois e Seignobos, na utilização de fontes documentais que não fossem as escritas e
oficiais, pois eram consideradas apócrifas.
16
como ela foi pensada e consolidada ao longo dos tempos. Para Foucault, o contexto em
que foi produzido o texto é de grande contestação de toda ordem na medida que
acontece, nesse momento, um repensar da sociedade, da educação e da própria
historiografia.
Nesse sentido, a ruptura vai marcar decisivamente o processo histórico. A
partir daí, colocar em dúvida um conceito não mais se constitui em uma heresia, posto
que ele é forjado à luz da pesquisa. Os conceitos são históricos são forjados em
conformidade com um período ou o pensamento de uma determinada sociedade. Assim,
eles deixam de ser entendidos como algo estático e imutável, para serem analisados
enquanto uma construção sujeita às mudanças tanto no espaço quanto no tempo.
A grande mudança qualitativa no que concerne à relação de fonte
documental e a história, portanto, está alocada na crítica que se faz ao documento que
passa a ser entendido como portador de um propósito claro: ele tem a intenção de ser
resgatado na posteridade. Dessa forma, não se pode mais pensar o documento como se
fosse neutro.
Referenciado em Michel Foucault, Certeau afirma que a história deve ser
pensada tendo em vista a combinação de um lugar social e de práticas científicas. A
história faz parte da realidade da qual se trata, e esta pode ser captada enquanto
atividade humana, sendo, portanto, uma operação social.
Quem também uma substancial contribuição para se repensar a noção de
documentos é Lynn Hunt
9
que, ao analisar as intrincadas questões concernentes à
história cultural, estabelecendo um diálogo bastante profícuo com a antropologia,
especialmente, com Clifford Geertz, afirma:
Os documentos que descrevem ações simbólicas do passado não são
textos inocentes e transparentes; foram escritos por autores com diferentes
intenções e estratégias, e os historiadores da cultura devem criar suas próprias
estruturas para lê-los.
10
Com toda a ampliação verificada no campo da história, ela não precisava
mais ficar circunscrita à narração dos grandes acontecimentos, elegendo heróis e
ignorando a atuação dos sujeitos na história. Ela se esmigalha e passa a resgatar, sob os
mais variados prismas, os agentes históricos que foram soterrados pela tradição que
não mais poderia haver hierarquização dentro da história.
9
HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
17
Quem construiu Tebas das sete portas?
Nos livros constam os nomes dos reis.
Os reis arrastaram os blocos de pedra?
E a Babilônia tantas vezes destruída
Quem a ergueu outras tantas?
Em que casas da Lima radiante de ouro
Moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros
Na noite em que ficou pronta a Muralha da China?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os levantou?
11
Era o momento, portanto, de “abrir os porões da história o que
proporcionou um fantástico enriquecimento de abrangência da mesma, já que muitas
vozes que haviam sido caladas puderam vir à tona. Em decorrência desse processo,
houve um redimensionamento e um enriquecimento da historiografia que passou a
incorporar temas que haviam sido marginalizados, durante um longo tempo, pela
história dominante.
Incontestavelmente, a década de 60 do século XX teve grande importância
no sentido de trazer à baila o que havia sido sufocado pela história tradicional. No
entanto, essa renovação teve sua arrancada um pouco antes. Foi a partir do final da
década de 20, mais precisamente, em 1929, que esse processo teve início com a criação
da revista Annales por March Bloch e Lucien Febvre. A partir daí, a história
fragmentou-se passando a incorporar novas temáticas, para muito além dos grandes
acontecimentos o que possibilitou uma ampliação do seu leque de abordagens de forma
nunca antes pensada.
Peter Burke,
12
ao analisar a emergência de uma “nova história”, faz um
histórico afirmando que os fundadores das Annales não estavam sozinhos no “combate”
ao paradigma tradicional. O autor atesta que a primeira vez que a expressão “a nova
história” foi usada, data de 1912, quando o estudioso norte-americano James Harvey
Robinson publicou um livro com esse título. História, segundo Robinson, ‘inclui todo
traço e vestígio de tudo o que o homem fez ou pensou desde seu primeiro aparecimento
sobre a terra’.
13
10
Ibidem, p.18.
11
Fragmentos do poema “Perguntas de um trabalhador que lê” de Bertolt Brecht.
12
BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: Ed. Da Unesp, 1992.
13
ROBINSON apud BURKE (1992).
18
Não obstante, as tentativas de se escrever uma história mais abrangente que
aquela com ênfase nas questões políticas, de acordo com Burke, remontam a meados do
século XIX, quando o suiço Jakob Burckhardt publicou um estudo, The Civilization of
the Renaissance in Italy, referendado na história cultural e descrevendo mais as
tendências do que narrando os acontecimentos.
Burke afirma ainda que no século XVIII houve um movimento internacional
para a escrita de um tipo de história que não estaria atrelada aos acontecimentos
militares e políticos, mas relacionados às leis, ao comércio, à maneira de pensar de uma
determinada sociedade, com seus hábitos e costumes, com o “espírito da época”.
Nesse sentido, o que é novo não é a existência dessa história mas sim o fato
de seus profissionais serem bastante numerosos e se recusarem a ser marginalizados,
embora muito tempo historiadores estivessem escrevendo “outras histórias”, e o
somente uma história que girasse em torno das questões políticas institucionais, foi
somente a partir da década de 70 que a historiografia incorporou esses novos tópicos,
resgatando temas e autores que haviam sido relegados pela história dominante. Dessa
forma, a historiografia abriu espaço, passando a incorporar esses novos temas , que a
história adentrara profundamente os recônditos do social e da cultura, fazendo com que
o processo histórico ficasse muito mais rico e instigante.
Na perspectiva de Burke, essa nova forma de se pensar e escrever a história,
é uma reação ao paradigma tradicional da história considerado a maneira de se fazer
história, ao passo que deveria ser entendido como uma abordagem possível do passado.
Essa nova concepção de história começou a se interessar por toda a atividade humana,
que tudo tem um passado que pode, a princípio, ser reconstruído e relacionado ao
restante do passado. A base filosófica dessa nova história, segundo o autor, é a idéia de
que a realidade é social ou culturalmente constituída. Um pensamento compartilhado
por muitos historiadores sociais e antropólogos.
A partir desse momento, autores de várias partes do mundo que davam
ênfase em suas abordagens a outros aspectos, como o social e/ou cultural puderam ser
retomados e analisados. Indubitavelmente, nosso referencial teórico se constrói tendo
como norte a historiografia francesa, no entanto, não podemos deixar de mencionar os
avanços que a historiografia alemã e a italiana propiciaram aos estudos relativos à
cultura.
Devem ser mencionadas também as contribuições de Johan Huizinga na
Holanda e Robert Darnton nos Estados Unidos; autores que contribuíram
19
significativamente para o enriquecimento da abordagem histórica na medida em que
lançaram novos olhares sobre o processo histórico, promovendo estudos abalizados seja
a respeito da emergência de uma nova perspectiva histórica ou da apreensão desse
processo a partir da lógica daqueles que eram jogados na sarjeta da história, ou então
calados pela tradição. Essa nova forma de se entender e escrever a história foi
convencionalmente denominada “história vista de baixo” além de outras denominações
que recebeu.
Dentre as várias obras de Robert Darnton que enriqueceram muito as
discussões relativas à história e a cultura como O Grande Massacre de Gatos e O Beijo
de Lamourette, destacamos Boemia Literária e Revolução. Uma obra que nos apresenta
uma leitura numa perspectiva completamente diferente daquela que foi eleita pela
tradição no que concerne à Revolução Francesa de 1789. Ao abordar o tema, o
historiador norte-americano o faz a partir do estudo de autores que foram relegados pela
tradição que os classificaram de “ralé da literatura” eram os subliteratos. A análise
apresentada por Darnton não se pauta em nomes tradicionais como Voltaire ou
Rousseau, mas sim, de autores populares que escreveram a história da Revolução sob a
forma de panfletos.
Darnton recupera a atuação de um grupo que foi negligenciado pelos
historiadores e pela historiografia tradicional - “os filósofos falidos” - que constituem o
submundo literário. Os “Rousseaus de sarjeta”, termo que já no século XVIII havia sido
aplicado a editores piratas e livreiros clandestinos, foram escritores que viveram o
período revolucionário e registrou os acontecimentos do período numa perspectiva
totalmente diferente dos representantes do Iluminismo.
O autor contrasta a carreira de subliteratos, como Jean Baptiste Antoine
Suard, ou o abade Le Senne, com o prestígio gozado por autores como Voltaire ou
Diderot. Enquanto os grandes nomes do iluminismo apresentavam uma análise
superficial da revolução, os “subliteratos”, por outro lado, proporcionavam um
conhecimento desse processo nos seus aspectos mais palpáveis, ou seja, expondo as
mazelas de uma sociedade de privilégios, de exageros por parte do Estado, e muitos
escândalos envolvendo as classes dominantes. Assuntos estes que interessavam
imensamente à população o que podia ser constatado pela procura incessante por este
tipo de literatura.
O trabalho do historiador norte-americano resultou de uma pesquisa
minuciosa feita nos arquivos intocados de uma das maiores editoras, dentre tantas que
20
surgiram em torno das fronteiras da França, com o objetivo de atender à procura, no
interior do reino, por livros piratas ou proibidos. A particularidade de seu trabalho
reside, em grande parte, no uso das fontes e do método por ele aplicado, que não eram
nada convencionais.
Objetivando retratar, com maior eficácia, o underground literário Darnton
preparou um conjunto de esboços, já que, segundo ele, o esboço em ciência histórica
permite transfixar os homens no momento da ação, iluminar os assuntos sob uma luz
insólita, focalizar complexidades por ângulos diferentes. De acordo com Darnton, o
esboço no curso da pesquisa pode fazer-nos deparar e comunicar-nos esse vívido
sentimento, com variedades surpreendentes da humanidade. Ele afirma ainda que
enquanto mergulhava nos arquivos, percorrendo carta por carta, dossiê por dossiê, tinha
a impressão de que a vida se projetava da obscuridade, adquiria caracteres distintivos e
pessoais, revelava-se enquanto escrevia, imprimia ou traficava com livros.
Estas cartas podem ter vindo de qualquer lugar e revelar qualquer
coisa. O mundo acionado pela imprensa tem sua própria comédia humana, tão
rica e complexa que não caberia entre as capas de um só livro.
14
Um dos objetivos principais dessa obra é alargar a história intelectual,
sugerindo que um gênero híbrido, a história social das idéias, poderia contribuir para
uma nova avaliação do iluminismo. Darnton destaca a importância de se ir além dos
livros para se defrontar com um novo conjunto de questões, as quais não poderiam ser
apreendidas dentro da concepção elitista de história que não leva em conta os aspectos
mais gerais, o que se passa, efetivamente, fora dos limites do institucional, o que está
colocado no dia-a-dia da maioria da população.
Incontestavelmente, a historiografia inglesa também deu uma substancial
contribuição para o avanço da história no sentido de adentrar os difíceis e tortuosos
caminhos do social e da cultura. Dentre os vários historiadores ingleses que
proporcionaram esse enriquecimento podemos destacar: Edward Thompson, Eric
Hobsbawn e Natalie Davis, todos historiadores de formação marxista mas que
avançaram em seus estudos, não se restringindo somente a uma análise econômica, mas
sim, resgatando a atuação dos sujeitos na construção da sociedade.
14
Robert Darnton. Boemia Literária e Revolução: O submundo das letras no antigo regime. São Paulo:
Cia das Letras, 1989, p. 10.
21
De maneira completamente diferente da história tradicional que
desconsiderava a ação do indivíduo no meio que estava inserido, a história social, ou
cultural, procurou pensar o sujeito e a sociedade numa perspectiva inter-relacional,
dialética na qual o indivíduo não pode ser entendido de maneira isolado, dissociando-o
do seu contexto, pois ao mesmo tempo em que o meio interfere no seu pensamento e
nas suas ações, esse mesmo sujeito também é determinante na construção, nos contorno
que via assumir esta sociedade.
À medida que a história adentra o campo do social, com toda a sua
complexidade, entendido como um espaço de manifestações múltiplas dos indivíduos
que expressam seus sentimentos e suas impressões de mundo por meio de símbolos,
signos, a história cultural pôde ser redimensionada, compreendida, assim, enquanto um
produto do meio social mas que também interfere sistematicamente, na constituição do
mesmo.
Este, certamente, foi um grande avanço verificado no campo das abordagens
históricas que traz uma concepção totalmente nova de história que leva em conta a
atuação dos sujeitos no processo histórico, o que efetivamente, não se verificava dentro
da hermética concepção de história que prevaleceu durante um longo tempo e que se
apresentava como se fosse a única forma possível de se ter acesso à história.
A FRAGMENTAÇÃO DA HISTÓRIA E OS NOVOS
TEMAS
A partir do momento em que os historiadores começaram a analisar o
processo histórico sob um novo prisma, fazendo novas indagações acerca do passado,
escolhendo novos objetos de pesquisa, passaram a utilizar novos tipos de fontes como as
orais, as imagéticas, estatísticas e outras. Eles foram encorajados a serem
interdisciplinares, passando a estabelecer um diálogo bastante profícuo com
antropólogos sociais, economistas, críticos literários, psicólogos, sociólogos e outros.
Nesse sentido, os paradigmas tradicionais não mais atendem à urgência
desses novos tempos, e nem aos anseios de historiadores que estão imbuídos de novas
questões que, em última instância, não podem ser problematizadas nos limites estreitos
da abordagem econômica ou política. A partir de então, nomes como o do historiador
22
Carlo Ginzburg, passam a se constituir em referência obrigatória para se pensar a
emergência de um novo paradigma, que é o indiciário baseado nos pormenores, em
detalhes negligenciáveis.
Essa nova concepção de história contou com importantes representantes na
Itália com autores que centravam as suas análises na “micro-história”. Nomes como
Giovanni Levi e Carlo Ginzburg que se destacou com suas pesquisas sobre a feitiçaria, e
também com sua importante obra O Queijo e os Vermes pesquisas cujos temas são
sempre marginais não cabendo, portanto, dentro dos paradigmas tradicionais que
privilegiavam os grandes acontecimentos. Por estarem diante de novos temas estes
historiadores tiveram que pesquisar, ir à procura de um novo paradigma que pudesse
contemplar os seus objetos de estudo.
A documentação concernente ao moleiro, Domenico Scandella, Menocchio,
que viveu na Idade Média, figura central de O Queijo e os Vermes nos possibilita ter
acesso às suas leituras e discussões, pensamentos e sentimentos: temores, ironias,
raivas, desesperos e esperanças. As fontes, quase sempre tão diretas, trazem Menocchio
para bem próximo de nós. Ele é um homem como qualquer outro, mas é também um
homem impar, um sujeito bem diferente, dotado de particularidades que o distinguem.
A análise calcada nessas singularidades possibilitou a reconstrução da fisionomia, de
sua cultura e contexto social no qual ela se moldou.
A história oral, patrimônio de um vasto segmento da sociedade do século
XVI, fez com que uma investigação que a princípio girava em torno de um indivíduo,
acabasse apontando para uma hipótese geral sobre a cultura popular, mais
especificamente, a cultura camponesa da Europa pré-industrial, marcada profundamente
pela difusão da imprensa e da Reforma Protestante, fatos que tiveram muitas
implicações à vida de Menocchio.
Por ter um temperamento que não se conformava com o caráter
extremamente dogmático da Igreja Católica que, por meio de seus dogmas
incontestáveis, impunha um rigoroso controle à vida das pessoas, e também por ter um
pensamento que diferia da igreja acerca das questões que regem o universo, o moleiro
friulano foi mais uma vítima dos arbítrios impostos pela instituição mais poderosa
daquele período, sendo levado aos tribunais de inquisição para ser interrogado e julgado
devido às suas idéias tão subversivas.
Ginzburg atesta que por meio das confissões de Menocchio era possível se
ter contato com um estrato ainda não explorado de crenças populares, de obscuras
23
mitologias camponesas. O que complica o caso de Menocchio é o fato de esses obscuros
elementos populares estarem impregnados de um conjunto de idéias bastante claras e
conseqüentes que vão do radicalismo religioso ao naturalismo com fortes tendências
científicas, às aspirações utópicas de renovação social, o que nos sugere que o moleiro
era uma pessoa que tinha plena consciência dos problemas que cercavam a sociedade
naquele período; uma consciência que incomodava bastante os poderes instituídos,
representava uma ameaça à ordem social.
A impressionante convergência entre as posições de Menocchio e as
de grupos de intelectuais dos mais refinados e conhecedores de seu tempo
repropõe com toda a força o problema da circularidade da cultura formulado por
Bakhtin.
15
(grifo nosso).
Mikhail Bakhtin
16
, um importante historiador russo que deu contribuições
inestimáveis ao estudo da cultura resgatando a força da cultura popular na Idade Média
e no Renascimento por meio de suas manifestações genuinamente populares. Suas
análises têm como ponto de partida as várias festas populares que aconteciam no meio
das ruas, como a festa dos asnos, a festa dos loucos e, principalmente, o carnaval.
De acordo com o historiador, no momento em que aconteciam essas festas
populares a gida hierarquia, característica da Idade Média, era posta a baixo. Nas
festas todos ficavam em uma mesma condição; as distâncias e hierarquias que
separavam os segmentos sociais deixavam de existir. Naquele momento tudo era
permitido, muita extravagância, palavrões e, principalmente, muitos risos.
Para Bakhtin, houve na Europa pré-industrial um relacionamento circular
feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, assim como de cima
para baixo. Nesse sentido, o autor cunha o termo circularidade da cultura para
defender a idéia de que não uma cultura estanque, sempre existem elementos da
cultura popular na cultura erudita, assim como o contrário também é verdadeiro.
Apropriando-se do conceito - circularidade da cultura -, cunhado por
Mikhail Bakhtin, Ginzburg chama a atenção para o fato de um simples moleiro ser
15
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1991, pp25-26
16
Mikhail Bakhtin é uma referência obrigatória para se pensar as questões concernentes à cultura popular.
Contrapondo-se à tradição clássica que tem como parâmetro a cultura greco-romana e o pensamento
aristotélico que faz uma contundente defesa da tragédia, situando-a como gênero de primeira grandeza, na
medida em que ressalta nos homens o que eles têm de melhor, enquanto que a comédia é tida como um
gênero menor, de baixo escalão, pois ênfase ao que homem tem de pior. Numa perspectiva
completamente distinta da tradição clássica, Bakhtin faz um estudo minucioso da cultura popular na Idade
Média e no Renascimento ancorado nas obras de um autor que foi relegado pela tradição: François
Rabelais que ao resgatar a cultura popular na Idade Média o faz a partir do grotesco.
24
possuidor de conhecimentos e de uma cultura que, a princípio, não eram acessíveis à sua
classe, apontando, assim, para uma inter-relação cultural.
As discussões que têm como ponto de partida as relações entre a cultura das
classes subalternas e a das classes dominantes é muito recente entre os historiadores. O
que se deve, em grande parte, a uma concepção aristocrática de cultura.
Freqüentemente, idéias ou crenças originais são definidas enquanto produto das classes
superiores.
Os historiadores enfrentam ainda problemas de ordem metodológica, na
medida em que a cultura das classes subalternas é, predominantemente, oral, fazendo
com que eles tenham que utilizar fontes escritas e arqueológicas que são duplamente
indiretas: por serem escritas e, em geral, de autoria de indivíduos ligados à cultura
dominante. Nesse sentido, os pensamentos, as crenças, esperanças dos camponeses e
artesãos do passado chegam até nós passando por filtros e intermediários que os
deformam. Esses fatores acabam desencorajando pesquisas nessa direção.
Não obstante, o historiador italiano afirma que não é preciso exagerar ao se
falar em filtros e intermediários deformadores. O fato de uma fonte não ser “objetiva”,
se é que há alguma fonte que seja totalmente objetiva, não significa que seja
inutilizável. Mesmo uma documentação exígua, dispersa e renitente pode servir de
referência e ser aproveitada.
Os muitos problemas enfrentados por Ginzburg, quando enveredou, em suas
pesquisas por vias nada convencionais, que elas têm como centro temas marginais, o
levou a desenvolver trabalhos de grande vulto para a história, como a obra Mitos
Emblemas e Sinais que reúne artigos nos quais ele discute questões relativas à cultura
popular, à psicanálise, à história da arte, entre outros.
Um desses artigos memoráveis é “Sinais: Raízes de um Paradigma
Indiciário”
17
que apresenta como tema central o resgate do momento de emergência de
um novo paradigma, final do século XIX, quando começou a se afirmar nas ciências
humanas um paradigma indiciário baseado na semiótica.
Contudo, as raízes desse paradigma eram muito antigas, remontando à
sociedade dos caçadores. Talvez a própria idéia de narração tenha surgido pela primeira
vez em uma sociedade de caçadores a partir da experiência de decifração de pistas. O
17
GINZBURG,Carlo. “Sinais: Raízes de um paradigma indiciário” In: ___. Mitos Emblemas e Sinais.
Morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
25
caçador teria sido o primeiro a ‘narrar uma história’ porque era o único capaz de ler,
nas pistas mudas (se o imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de
eventos.
18
O paradigma indiciário referenciou-se no método utilizado por um crítico de
arte, Giovanni Morelli, que escreveu uma série de artigos sobre a pintura italiana, entre
1874 e 1876. Os artigos propunham um novo método para atribuição dos quadros
antigos baseando-se em detalhes que, quase sempre, fugiam do controle dos artistas.
Naturalmente, o método morelliano suscitou muitas discussões entre os historiadores
das artes e lhe rendeu bastantes críticas.
Para Morelli, o que é mais importante na observação das obras de arte é o
exame dos pormenores negligenciáveis e não o que o artista apresenta como traço
característico. O crítico defende que o conhecedor de arte é comparável ao detetive que
descobre o autor do crime, (do quadro), baseando-se em indícios imperceptíveis para a
grande maioria.
O método Morelliano foi defendido pelo renomado psicanalista Sigmund
Freud que afirmava que ele aproximava-se da técnica da psicanálise médica que tem
como objetivo penetrar nas coisas concretas e ocultas através de elementos pouco
notados. Um método centrado nos resíduos, sobre os dados marginais, pormenores
considerados sem importância, mas que na realidade possibilita aceder aos produtos
mais elevados do espírito humano. Esses dados marginais eram, portanto, bastante
reveladores.
Ginzburg afirma que se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas
sinais, indícios que permitem decifrá–la
19
. Essa idéia, ponto essencial do paradigma
indiciário, penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos modelando profundamente
as ciências humanas. O historiador italiano afirma ainda que alguns indícios mínimos
podem ser reveladores de uma visão de mundo de uma classe social, de um escritor ou
de toda uma sociedade.
Incontestavelmente, os trabalhos desenvolvidos por Carlo Ginzburg ocupam
um importante lugar na historiografia contemporânea. Seus estudos enriqueceram de
maneira incomensurável a história, especialmente, no que respeita à história cultural,
tanto no que se refere às discussões teóricas, quanto aquelas que dizem respeito ao
método. Se levarmos em conta que o terreno da história cultural ainda é muito
18
Ibidem, p. 152.
19
Ibidem, p.177.
26
movediço, enfrentando muitas resistências por parte dos historiadores que insistem em
continuar defendendo uma visão estreita e hermética de história, pesquisas como as
empreendidas pelo historiador italiano, ocupam um lugar de destaque.
Outro nome que se constitui em referência obrigatória àqueles que se
arvoram pelos difíceis caminhos da história cultural é do historiador francês Roger
Chartier, que foi citado anteriormente, e que será retomado aqui para ancorar nossas
discussões em torno do aspecto cultural, pensado enquanto uma representação de um
dado acontecimento, ou de um dado período histórico. Distanciando, assim, da
concepção tradicional de história que desconsiderava completamente a intervenção dos
diversos grupos sociais na construção da sociedade e da história.
As idéias apreendidas por meio da circulação das palavras que as
designam; situadas nos seus enraizamentos sociais, pensadas na sua carga afetiva
e emocional tanto quanto no seu conteúdo intelectual, tornam-se assim, tal como
os mitos ou os complexos de valores, uma dessas ‘forças coletivas pelas quais os
homens vivem o seu tempo’ e, portanto, uma das componentes da ‘psique coletiva
de uma civilização
20
.
Em conformidade com o historiador francês, o objeto fundamental de uma
história que visa reconhecer a forma como os atores sociais representam suas práticas e
seus discursos, reside na tensão que se estabelece entre as capacidades inventivas dos
indivíduos ou das comunidades e os constrangimentos, as normas e convenções que
limitam o que lhes é possível pensar, enunciar e fazer. É no embate entre o indivíduo e
seu meio que a história e os historiadores devem se debruçar.
Cada época é dotada de estruturas de pensamento, comandadas pelas
evoluções sócio-econômicas que organizam as construções intelectuais como as
produções artísticas, as práticas coletivas como os pensamentos filosóficos.
21
Na perspectiva de Chartier, a obra de um artista, assim como a produção
cultural e intelectual, é o produto de uma negociação que se estabelece entre um criador
ou uma classe de criadores, e as instituições e práticas da sociedade. O eixo central do
trabalho do historiador deve ser as relações complexas e variáveis forjadas a partir do
embate estabelecido entre o modo como uma sociedade organiza e exercita o poder e,
20
CHARTIER, Roger. História Cultural entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Difel/Bertrand
Brasil, 1990. p.43.
21
Ibidem, p. 35.
27
de outro lado, as configurações sociais que tornam possível essa forma política e que
são por ela engendradas.
As obras não têm sentido estável, universal, congelado. Elas são
investidas de significações plurais e móveis, construídas na negociação entre uma
proposição e uma recepção, no encontro entre as formas e motivos que lhes dão
sua estrutura e as competênci as ou expectativas dos públicos que dela se
apoderam.
22
Chartier chama a atenção para se pensar a relação que se estabelece entre o
produto, a obra de um artista, e o contexto no qual ele está inserido. Essa relação não é
unilateral, ou seja, da mesma forma que as manifestações artísticas e culturais são
expressão de um determinado contexto elas também influenciam, sistematicamente, nos
contornos, nos caminhos que vão trilhando os acontecimentos.
23
A partir das inestimáveis contribuições de Chartier para a análise da história
cultural, entendendo a cultura enquanto uma representação, inúmeras possibilidades se
abriram dentro da história. Assim, foi possível fazer uma releitura de muitos
acontecimentos sob um viés totalmente novo, numa perspectiva diferente levando em
conta a inter-relação entre o sujeito e o meio no qual está inserido.
O conceito de cultura que norteia as análises de Chartier é o preconizado por
Clifford Geertz:
Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, a cultura não é
um poder algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos
sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto,
algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos
com densidade
24
.
Para Geertz, a cultura é composta de estruturas psicológicas por meio das
quais os indivíduos ou grupos de indivíduos guiam seu comportamento. O objetivo
precípuo da cultura, segundo o antropólogo, é alargar o universo do discurso humano.
É certo que são vários os problemas enfrentados por estudiosos que se
propuseram a trabalhar com história cultural, pensando, especialmente, nas questões
22
CHARTIER, Roger. A História Hoje. In: Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol.7, nº 13, 1994. p. 107.
23
Quem também apresenta uma discussão bastante salutar a respeito da relação texto/contexto é Antônio
Cândido em sua importante obra Literatura e Sociedade ressaltando que assim como o contexto social
influencia uma obra, esta também é determinante nos contornos da sociedade.
28
relativas às fontes e a metodologia, na medida que é um campo extremamente novo de
investigação, ou é novo, ao menos, o enfoque dado a este objeto de pesquisa. No
entanto, o que é instigante e encorajador é observar que há um grande número de
autores das mais variadas áreas que, há algum tempo, vêm se debruçando sobre o tema
da cultura; algo bastante salutar e enriquecedor para a história. A abordagem cultural é
muito instigante por que lança novos olhares sobre o processo histórico. Muitos
aspectos, muitas particularidades que não tinham relevância até um determinado
momento, ganharam importância, e espaço, dentro da história, revelando uma outra
história totalmente diferente da história tradicional.
Entendendo, portanto, a cultura enquanto uma representação, e as
manifestações artísticas e culturais como uma leitura possível de um determinado
acontecimento ou um dado período histórico que estão impregnadas de uma
concepção de mundo, elas são, portanto, uma leitura, uma interpretação de uma pessoa
ou grupos acerca de uma realidade; é a forma que esses artistas estão entendendo o
período; uma visão de mundo que é traduzida nas suas obras. Nesse sentido,
defendemos a possibilidade de apreensão do processo revolucionário russo
incorporando as contribuições do viés cultural nesse processo.
A cultura deve ser concebida, portanto, como um conjunto de significações
que se exteriorizam nos discursos ou nos comportamentos aparentemente menos
culturais. As idéias que são apreendidas a partir dos discursos sociais tornam-se uma das
forças coletivas, podendo, assim, interferir sistematicamente nos contornos da história,
determinando os seus rumos.
O conceito de cultura denota um padrão, transmitido historicamente, de
significados que se materializam em signos. Um sistema de concepções herdadas e
expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam,
perpetuam e desenvolvem o seu conhecimento e as atitudes perante a vida. Portanto,
pensando a cultura nestes termos não podemos negligenciar a sua importância para a
compreensão dos fenômenos históricos.
Incontestavelmente, se tomarmos como referência manifestações artísticas e
culturais produzidas no período revolucionário, muitas no calor da revolução, estas
produções também darão conta da discussão relativa à Revolução Socialista de 1917,
isso porque elas estão intrinsecamente ligadas ao seu contexto, trazendo, portanto,
24
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koagan, 1989. p.24.
29
profundas marcas, muitos registros daquele período. Podendo ser interpretadas,
portanto, como uma possibilidade de apreensão de uma realidade, na medida em que
elas se constituem em uma leitura possível de um período no qual foram concebidas.
Uma boa interpretação de qualquer coisa um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual,
uma instituição, uma sociedade – leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar
25
A partir das discussões que foram estabelecidas até aqui no que concerne às
mudanças ocorridas na história e que possibilitou alargar o seu campo de atuação e
entendendo a cultura como um espaço no qual os povos, os mais variados, desde os
primitivos às sociedades mais complexas se manifestam e se representam que os
homens, desde os tempos mais remotos, sempre sentiram necessidade de se
representarem, é que defendemos a possibilidade de apreensão dos acontecimentos que
revolveram a Rússia em 1917 e que tanto preocupou o mundo capitalista, temeroso de
que o exemplo russo foi seguido por outros países, a partir de outras vias e não somente
as institucionais que giram em torno da atuação do Partido Bolchevique.
Naturalmente, essa leitura diferenciada do processo revolucionário não
poderia ser feita tendo como referência a historiografia tradicional, o que nos impeliu a
buscar uma outra perspectiva de análise do processo revolucionário russo que pudesse
dar conta dessas “outras histórias” daquele momento tão importante, tão marcante na
história daquele pais, e que, no entanto, foi asfixiada pela história dominante.
Nesse sentido, para que pudéssemos apreender o processo revolucionário
russo para além do que foi registrado pela historia dominante, ou seja, apreendê-lo
também por meio das questões sociais e culturais, objetivando compreender a atuação
de trabalhadores e artistas na construção da nova sociedade, recorremos a uma outra
historiografia que fez a leitura dos acontecimentos de 1917 levando em conta a inter-
relação dos vários aspectos, como a cultura, por exemplo, sem, no entanto, deixar de
fazer as mediações tão necessárias com todo o complexo da sociedade.
25
Ibidem, p.24.
30
31
CAPÍTULO I
OS MOVIMENTOS DE VANGUARDA E A ATUAÇÃO DOS CUBO-
FUTURISTAS NA RÚSSIA
A ninguém é dado saber que
imensos is hão de iluminar a vida futura.
Talvez os pintores transformem a poeira cinzenta
das cidades em arco-íris centicores, talvez das
cumieiras das montanhas então ressoe sem
cessar a música tonitroante dos vulcões
transformados em flautas, talvez obriguemos as
ondas dos oceanos a ferir as cordas das redes
estendidas entre a Europa e a América. Uma
:coisa está clara para nós: fomos nós que
inauguramos a primeira página da novíssima
história das artes.
Maiakóvski
As duas primeiras décadas do século XX representam, para a maior parte do
mundo ocidental, um período contraditório e de transição, marcado por inúmeros
conflitos e rupturas relacionados a muitos valores e idéias que tinham suas origens no
início da modernidade, e que prevaleceram até aquele período, quando todos os setores
da vida humana social, político, cultural, econômico, científico e tecnológico
passaram por mudanças que alteraram profundamente a visão de mundo do homem. Era
um momento, portanto, de se rever todos os valores cultuados pela sociedade burguesa
que se fundamentava na idéia de progresso, racionalidade e técnica como redentores da
humanidade.
Dentro deste contexto de mudanças, a Primeira Guerra Mundial (1914-
1918) teve importância fundamental na medida em que pôs fim ao excesso de otimismo
32
da belle époque
26
. A sensação de equilíbrio, na qual se alicerçava a sociedade capitalista
burguesa, foi, inicialmente, solapada pelas tentativas frustradas de se evitar a guerra, e,
posteriormente, o conflito viria a confirmar a fragilidade dessas nações e o sentido
ilusório dos valores apregoados pela burguesia.
Terminada a guerra, em 1918, um clima de incerteza domina toda a década
de 20. As nações envolvidas no conflito, essencialmente, os países de proa do
continente europeu como Inglaterra, Alemanha, Itália e França que se envolveram em
disputas coloniais e concorrência econômica, viveram no pós-guerra graves crises
econômicas e sociais que foram determinantes para definir os contornos do futuro da
Europa e de grande parte do mundo ocidental.
27
Ao lado deste quadro extremamente conturbado, em todos os meandros da
sociedade que passa por uma profunda reflexão, surgiram por toda a Europa diversas
correntes artísticas que refletem o espírito caótico e violento da época representando,
através de suas artes, uma nova etapa da história da humanidade. São as denominadas
vanguardas européias:
28
movimentos de caráter agressivo e experimental que rompem
radicalmente os padrões da arte tradicional suscitando polêmicas e debates inflamados
nos meios em que se difundem.
Como uma clara reação ao racionalismo e ao objetivismo das correntes
científicas e literárias ainda predominantes na cultura, desde a segunda metade do
século XIX, as vanguardas defendem uma outra racionalidade, que foi
preconceituosamente, denominada de irracionalismo, valorizando o decadentismo
simbolista, os estudos psicológicos de Freud e a teoria intuicionista de Bérgson, ambos
pensadores que rejeitam a análise positivista e buscam uma compreensão mais subjetiva
e interior do homem e de seus problemas.
26
Belle époque refere-se, em linhas gerais, à arte que representava burguesia e se caracteriza por uma
intensa atividade artística, principalmente, em Paris e Viena. Estas cidades concentravam um grande
número de artistas de toda a parte da Europa, atraídos por seu ritmo de vida, pelos modismos, pela vida
noturna, pelos bares e cafés e pelas novidades artísticas.
27
A situação de miséria na qual se encontravam muitos países europeus após a Primeira Guerra, em
especial, Alemanha e Itália, os mais penalizados com o conflito, foi determinante para o surgimento de
regimes totalitários, fascismo e nazismo que atrelavam a situação de caos destes países à incompetência
política das democracias liberais. Com este discurso e com um forte apelo nacionalista, Benito Mussolini,
na Itália, e Adolf Hitler na Alemanha arregimentaram milhões de pessoas em seus países e por todo o
mundo, passando a governar os seus países de forma totalitária.
28
Entende-se por vanguarda, do francês avant-garde, grupos, movimentos ou correntes que estão à frente
de seu tempo, seja no campo da política ou das artes. Estes grupos apresentam uma proposta e uma
prática inovadoras, como que numa visão profética. Captando as tendências do futuro, as vanguardas
acreditam perceber, ou compreender, antes de todos o que predominará.
33
Neste sentido, as vanguardas propõem a implantação de uma nova estética e
de uma outra ordem de valores artísticos, ao mesmo tempo subjetiva e moderna,
levando em conta a relação do indivíduo com o exterior e consigo mesmo, atualizada
em relação às grandes conquistas da era da máquina e da velocidade, o que se constituiu
no grande fascínio destes movimentos revolucionários.
Devido a este caráter contestatório e demolidor, quase todas as correntes de
vanguarda européias assumem, a princípio, uma postura destruidora em relação ao
passado, propondo uma ruptura brusca com a arte tradicional o que não as impediram,
contudo, de realizar importantes conquistas graças ao seu espírito investigativo e
experimentalista, tais como integração maior entre os vários domínios da arte e a busca
de novas técnicas e linguagens comuns à música, literatura e artes plásticas o que,
indubitavelmente, enriqueceu de maneira inaudita o campo de abrangência das artes que
foram beneficiadas por este intercâmbio.
Apesar de as primeiras décadas do século XX caracterizarem-se por um
clima de caos e destruição, trazidos pela guerra, e pelo caráter demolidor dos
movimentos modernistas, em todos estes grupos, seja no Futurismo, Expressionismo,
Dadaísmo e Surrealismo, encontram-se os elementos que construirão uma nova arte que
deveria estar assentada em uma, também, nova concepção de homem seja em relação ao
universo ou consigo próprio.
Estes grupos, dentre os quais nos deteremos no Futurismo, propugnavam
conceitos inéditos de arte e cultura que, em última instância, negavam a concepção
clássica da arte burguesa, como aconteceu com o Dadaísmo que, reafirmando seu
caráter revolucionário, iconoclasta, irreverente e radical, chegou à conclusão que a arte
não era nada; assim como o dadá que também não era nada. Dessa forma, os estatutos
da arte foram bruscamente alterados.
No bojo das discussões relativas às artes, cujo alvo principal de críticas
destes movimentos de vanguarda foram as artes de viés realista-naturalista que vinha
prevalecendo há muito tempo, os modernistas propugnavam um novo homem destituído
dos valores e da ideologia burgueses.
Nesse sentido, podemos afirmar que todo o radicalismo, característico dos
movimentos de vanguarda do início do século XX, estava muito bem fundamentado em
uma análise crítica da sociedade e dos homens, mesmo que esta análise, para alguns
grupos, tenha ficado somente no campo do filosófico já que não partiram para a
34
militância política, demonstra que estes movimentos estavam assentados em um estudo
racional. Uma razão, entretanto, que ia de encontro à razão burguesa.
EXPRESSIONISMO
No início do século XX, tanto na França quanto na Alemanha surgem
grupos de pintores que desejam alterar o enfoque da pintura impressionista, percorrendo
o caminho contrário, isto é, partindo da subjetividade para o mundo exterior. Esses
pintores, denominados de expressionistas na Alemanha e de fauvistas na França,
buscam fazer da obra de arte uma representação direta do seu mundo interior. uma
valorização clara da expressão, isto é, do modo como forma e conteúdo livremente se
unem para dar vazão às sensações do artista no momento da criação.
O Expressionismo empenhou-se em criar um mundo visionário, liberto da
linguagem e dos valores e modelos da sociedade burguesa, capaz de expressar os níveis
mais profundos da personalidade utilizando símbolos derivados do mundo industrial.
Durante, e depois da Primeira Guerra, o Expressionismo assumiu um caráter
mais social e combativo, interessando-se pelos horrores da guerra e pelas condições de
vida desumanas das populações carentes, ou seja, a posição do homem diante desses
novos tempos.
Nesses termos, os expressionistas que, a princípio, não representavam
nenhum movimento coeso não tinham nenhuma dúvida com relação às suas intenções
destrutivas, incluídas a sociedade burguesa. O ódio a esta sociedade derivava, em
grande parte, de suas convicções de que as instituições do capitalismo industrial
mutilavam e distorciam a natureza humana desenvolvendo o intelecto e a vontade a
serviço da produção material, descurando da alma, dos sentimentos e da imaginação. A
aparente ordem consciente e tecnológica da sociedade contemporânea, segundo eles,
ocultava uma crescente desordem psíquica.
Se os expressionistas rejeitavam o mundo banal da sociedade
industrial devido aos seus produtos sintéticos e descarnados, também rejeitavam a
arte e a literatura impressionista por apresentarem uma bela “superfície” externa
sem conteúdo interno, disfarçando o caráter pernicioso da sociedade de onde
surgiam. Em contraposição, o artista expressionista tendia a se considerar um
visionário profético, eleito para explodir a realidade convencional, romper a
35
crosta que se formara em torno das psiques humanas e dar expressão irrestrita às
energias aprisionadas. Incapaz de representar, descrever ou imitar o mundo
convencional “decaído”, o artista visionário do expressionismo almejava abstrair
os objetos do mundo cotidiano, retirá-los de seu contexto normal e recombiná-los
em sinais fulgurantes do Geist interior perdido
29
.
Dentre as muitas proposições defendidas pelos expressionistas, destacamos
a sua afirmação de que a arte não é imitação mas criação subjetiva, livre; a arte é
expressão dos sentimentos; a realidade que circunda o artista é horrível e por isso ele a
deforma ou a elimina, criando a arte abstrata. Assim, a arte se desvincula do conceito de
belo e feio, tornando-se uma forma de contestação.
Os princípios defendidos pelos expressionistas ficaram muito visíveis
especialmente na literatura que apresenta características como: uma linguagem
fragmentada, elíptica, constituída por frases nominais, basicamente aglomerados de
substantivos e adjetivos, sem verbos, sem sujeito; despreocupação formal: sem rimas,
sem estrofes e sem musicalidade. Ideologicamente, os poetas expressionistas
objetivavam combater a fome, a inércia e os valores do mundo burguês.
30
O Expressionismo mira a realidade mediante um olho interior, que
penetra o envoltório do social e procura perscrutar, de modo agudo, as variações
mais sensíveis do homem em sua trajetória no mundo. O empenho maior do
movimento expressionista visa alcançar esse interior, rompendo a casca da
superfície, que atrela o homem à matéria, à circunstância, às aparências. O herói
expressionista é fundamentalmente um Eu em busca de um Outro em si mesmo: um
novo homem que possa avançar na reconquista de sua dignidade humana. É uma
busca da essência, uma procura não de identidade psicológica ou social embora
o seu deslocamento no mundo tenha, na base, uma causa de ordem social -, mas de
sua natureza ontológica
31
.
Segundo Malcolm Bradbury, o problema da relação entre a arte
revolucionária e a revolução social acrescenta mais uma dificuldade à questão de definir
o expressionismo, pois embora muitos expressionistas a considerassem crucial, poucos
concordavam quanto à resposta. Os sérios problemas que a Alemanha viveu,
imediatamente após o término da Primeira Guerra, desencadeando uma grande
convulsão social, colocaram este problema na ordem do dia para os expressionistas.
29
BRADBURY, Malcolm & MAcFARLANE, James. Modernismo. Guia Geral, 1890-1930. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p.225-6.
30
Dentre os artistas ligados ao Expressionismo, destacamos: na pintura, Kandinski, Chagall e Munch; na
literatura, August Stramm, kasimir Edschmid e, posteriormente, Herman Hesse e Thomas Man; no teatro,
Kayser e Brecht, em sua fase inicial.
31
GARCIA, Silvana. As Trombetas de Jericó: teatro das vanguardas históricas. São Paulo:
HUCITEC/FAPESP, 1997. P. 26.
36
Conseqüentemente, muitos expressionistas, a partir daquele momento,
sentindo a impotência de suas teorias moderadas, ou amargando a desilusão com o
socialismo de classe média da República de Weimar, passaram para a esquerda
doutrinária; ao passo que outros caíram num insípido intelectualismo político; outros
ainda passaram de uma recusa do capitalismo industrial para uma recusa obscurantista
de toda a ciência, a tecnologia e a indústria em nome de organizações pré-industriais
tornaram-se, em outras palavras, protonazistas.
Diante de um mundo esvaziado de sentido, muitos expressionistas
tentaram preencher o vazio com seus próprios egos; quando a tentativa falhava ou
o mundo reagia, muitas vezes sucumbiam à loucura ou a um desespero
aniquilador, ou vendiam-se a um sistema totalitário.
32
DADAÍSMO
Durante a Primeira Guerra, a Suiça mantém-se neutra. Para lá acorrem
artistas e intelectuais de todos os pontos da Europa, abrigando-se em Zurique. Alguns
desses “fugitivos de guerra” se reúnem no Cabaret Voltaire do alemão Hugo Ball,
espaço cultural onde nasce o movimento dadaísta.
O Dadaísmo, segundo Bradbury, não se identificava com nenhuma
personalidade, ponto de vista ou estilo único, e nunca teve um programa coerente. O
ponto central do movimento deslocava-se de modo contínuo, principalmente durante os
anos de guerra na Suíça.
Criado, fundamentalmente, a partir do clima de instabilidade, medo e
revolta, provocados pela guerra, o movimento dadá pretende ser uma resposta à nítida
decadência da civilização que o conflito representa. Daí provém a irreverência, o
deboche, a agressividade e o ilogismo dos textos e manifestações dadaístas. Para os
integrantes do movimento dadaísta, enquanto a Europa se banha em sangue, o cultivo da
arte não passa de hipocrisia e presunção. Por isso mesmo é preciso ridicularizá-la,
agredi-la, destruí-la.
37
Foram muitas as atitudes demolidoras dos artistas dadaístas a partir de 1916:
noitadas em que predominavam palhaçadas, declamações absurdas, exposições
inusitadas, além de espetáculos relâmpagos que faziam do improviso nas ruas, em meio
a urros, vaias, gritos, palavrões e, quase sempre, à total incompreensão da platéia.
O pensamento dadá, expresso em seus manifestos que tem como um dos
principais, o assinado por Tristan Tzara, em 1918, no qual ele afirmava que era contra
os princípios em favor da contínua contradição; era contra até mesmo os manifestos,
refere-se à arte apenas tangencialmente. Seu conteúdo marcadamente iconoclasta
diversifica-se no ataque generalizado à burguesia, à filosofia, à moral, à lógica, enfim a
tudo e a todos, terminando por incluir-se a si mesmo no rol dos suspeitos.
Em lugar do criador de formas, o surrealismo postulava uma nova
imagem do artista, como um indivíduo caracterizado pela sua abertura ao acaso,
às induções do inconsciente e dos impulsos interiores, acolhendo tudo o que
ocorresse de maneira espontânea. O poeta era um aventureiro ou explorador
espiritual: a produtividade tinha importância apenas secundária, e a arte
comumente entendida era restritiva. Atribuía-se significação poética a certo estilo
de vida e à capacidade de dar rédeas ao desejo, e as exigências morais teriam
prioridade sobre as exigências estéticas. Desse modo, a absoluta autenticidade,
que o Dada e o surrealismo levavam ao extremo, corria o risco de terminar como
uma renúncia total: o poeta e o artista estavam sendo conclamados não à arte,
mas ao silêncio ou à ação.
33
No que concerne às obras artísticas, a produção do movimento dadaísta
suíço não foi numerosa. Não obstante, o movimento será reforçado pelas experiências
análogas do americano Marcel Duchamp que ridicularizam o mito mercantilista da
civilização norte-americana, com os seus ready-mades, uma técnica que consiste em
extrair um objeto de seu uso cotidiano e, com nenhuma, ou pequenas alterações,
atribuir-lhe um valor artístico.
34
Dentre os nomes que se envolveram com o movimento dadaísta podemos
destacar: Max Ernest, Francis Picabia, Philippe Soupault e André Breton. A orientação
anarquista e niilista do movimento, assim como a falta de um programa de arte, não lhe
permite longa duração, especialmente, após o desentendimento entre Tzara e Breton por
volta de 1922.
32
BRADBURY, op. cit., p. 229.
33
Ibidem, p.237-8
34
Ficaram famosos certos objetos como o urinol ou uma roda de bicicleta enxertada numa cadeira,
elevados à condição de objetos de arte por Duchamp.
38
Na literatura o dadaísmo caracteriza-se pela agressividade, pela
improvisação, desordem, pela rejeição a qualquer tipo de racionalização e equilíbrio,
pela livre associação de palavras e pela invenção de palavras com base na exploração
apenas do seu significante.
Com o término da guerra era hora de reconstruir o que fora demolido: a
Europa e a arte. Tzara insiste em manter a linha original do movimento; Breton,
rompendo com o Dadaísmo, abandona o grupo para criar o movimento surrealista.
Ele [dadá] não é portador de nenhum programa, estético ou político,
tampouco estabelece com clareza as diretrizes do movimento que dizer de seus
princípios, negados no próprio corpo do texto! Ele é fiel ao espírito do movimento.
Em sua aritmética elementar de dois e dois são cinco, Dada se define no jogo das
contradições, como tudo e nada (tudo é nada)
35
.
SURREALISMO
O movimento surrealista tem início na França, a partir da publicação do
Manifesto do Surrealismo de André Breton em 1924. De todas as vanguardas este foi,
sem dúvida, o que apresentou uma associação mais estreita com um partido político. O
que não implica, no entanto, que esta vinculação tenha se dado de maneira orgânica, ao
contrário, a relação do Surrealismo com o Partido Comunista Francês foi marcada,
desde o início, por muito tumulto, polêmicas e contradições.
O Surrealismo caracteriza-se, essencialmente, pela procura de um fluxo de
pensamento liberado de qualquer constrangimento racional e desvinculado de uma
proposta estética ou terapêutica. O movimento refere-se, menos ao plano das artes e
muito mais, ao campo do desenvolvimento pleno do indivíduo por meio da ampliação
de seus horizontes para muito além do campo das associações lógicas, incluindo as
zonas limites do inconsciente e seus correlatos, da magia à loucura, passando pela
atividade onírica.
Esta vontade de penetrar no âmago do desejo do homem de rebuscar seus
motivos e motivações, revela-se, em última análise, como uma maneira de
problematizá-lo em sua inserção no mundo, de flagrá-lo no exato instante de eclosão do
conflito entre desejo e consciência.
35
GARCIA, op. cit., p. 51.
39
O argumento mais contundente dos surrealistas é que se se conseguisse re-
estimular e desenvolver a faculdade de associação mental o mundo certamente deixaria
de ser um aglomerado de fragmentos avulsos, nos quais o homem se sente estranho e
perdido. A proposta é de recuperar o uso de capacidades que possuímos antes de terem
sido castradas por uma civilização materialista, as quais parecem existir apenas nas
crianças, nos loucos e nos povos primitivos.
Para os surrealistas, a analogia poética tem a capacidade e o poder de revelar
o princípio de identidade entre a mente humana e o universo exterior. Nesse sentido, é
capaz de transformar a idéia dos homens sobre seu lugar no mundo. A imagem poética
ou plástica, principalmente a que unifica elementos que, para a razão, nada teriam em
comum, muitas vezes gera uma luminosidade misteriosa e se apresenta
inexplicavelmente adequada e até inevitável. Como atesta André Breton em Les vases
communicants (Os vasos comunicantes) de 1932:
O espírito é maravilhosamente rápido para apreender a mais pálida
relação entre dois objetos reunidos ao acaso, e os poetas sabem que sempre podem
dizer, sem medo de engano, que um deles se assemelha ao outro: a única
hierarquia possível de ser estabelecida entre os poetas baseia-se apenas na maior
ou menor liberdade que demonstram a tal respeito
36
.
Esse pensamento, mais do que isso, esta atitude é amplamente
compartilhada por pintores surrealistas dentre os quais podemos destacar nomes como
Hans Bellmer, Max Ernst e o genial Salvador Dali.
No que concerne às questões sociais, elas não transparecem aos surrealistas
como preocupação imediata. Breton e seus companheiros tinham preservado do
Dadaísmo uma rebeldia de forte inspiração anarquista, um comportamento que se
traduzia por um claro sentimento antipatriótico e antiburguês que justificava, em grande
parte, a necessidade daquela revolução.
Toda a rebeldia característica do movimento, contudo, não tinha uma
direção precisa do ponto de vista político. A Revolução Russa, que viria a ser o grande
foco de inspiração revolucionária, sofria as conseqüências de um certo isolamento
decorrente, em parte, pelo envolvimento interno com a guerra civil (1918
a 1921); por
outro lado, o boicote imposto pelos governos do Ocidente dificultava a divulgação de
notícias daquela parte do mundo.
36
BRETON apud BRADBURY (1989).
40
O certo é que neste momento os surrealistas demonstram uma certa
desconfiança para com a então União Soviética. Contudo, essa animosidade não
perdurou por muito tempo que em 1925 Breton toma contato com um artigo de
Trotski sobre Lênin que o impressiona bastante, levando-o a rever sua posição acerca da
situação soviética tanto no que se refere à sua política interna quanto externa.
Outro surrealista que também se interessou pelas questões soviéticas foi
Louis Aragon que participou, como convidado, da Segunda Conferência Internacional
dos Escritores Revolucionários, um congresso promovido pela União dos Escritores
Revolucionários UIER -, organismo que tem na sua retaguarda a Associação Russa
dos Escritores Proletários a RAPP.
A participação na Conferência foi determinante para o futuro do movimento
surrealista e de Aragon que se tornou um adepto ainda mais entusiasta da revolução
soviética, em contraste com suas posições propaladas ainda nos primórdios do
movimento. A adesão desses membros às idéias socialistas provoca uma cisão interna
no grupo que se agrava a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e colabora
para a sua desarticulação.
O exaustivo debate acerca do papel do homem e da arte no processo
revolucionário, essa busca incessante de adequação entre um projeto de
desenvolvimento global do homem e as tarefas da ação revolucionária
repercutirão, ao longo da década de 1924 a 1935, no cotidiano dos surrealistas e,
principalmente, deixarão sua marca no trajeto de pequenos escândalos e
controvertidas cisões (dissensões e expulsões) que caracterizou o movimento.
37
A despeito das divergências e todas as vicissitudes, o grupo conseguiu
manter um certo equilíbrio entre as admissões e as expulsões, o que assegurou uma
longa e conturbada trajetória do movimento surrealista.
Apesar da aparência muitas vezes anárquica e chocante de suas
obras, os surrealistas defendem um maior controle do homem sobre seu destino e
buscam por trás da desordem da experiência um princípio superior de ordem. Não
se contentam simplesmente em se manterem fiéis ao caos, mas espera que, do
confronto ente a razão e seu oposta, surja um racionalismo mais rico e mais
aberto.
38
Partindo dos pressupostos defendidos pelos surrealistas, uma questão crucial
que está presente nas discussões relativas aos movimentos de vanguarda vem à tona: a
37
GARCIA, op. Cit, p.243.
38
BRADBURY, op. cit., p.250.
41
relação da irracionalidade proposta por estes grupos em contraposição à racionalidade
burguesa que prevalecia há tanto tempo.
A crítica acerbada que os grupos de vanguarda faziam à razão propugnada e
estandarte da sociedade burguesa, não era contraposta por uma irracionalidade. O que
ocorreu, efetivamente, foi uma reformulação de muitos conceitos que haviam sido
perpetrados pela tradição. No bojo dessa reformulação, encontra-se o embate entre o
racional e o irracional, posto que a racionalidade burguesa não era mais compatível com
os novos tempos.
Boris Schnaiderman quando discute esta questão em A Poética de
Maiakóvski afirma que não concorda com a identificação de vanguarda e irracionalismo,
considerando mais correto vislumbrar, nestes movimentos vanguardistas do início do
século XX, uma dialética de irracional e racional com predomínio ora de um ora de
outro desses elementos.
A racionalidade burguesa tinha dado provas contundentes de sua
incapacidade de resolver questões tão prementes relativas aos homens e suas relações
sociais. Se durante muito tempo, problemas dessa ordem não tinham espaço para
discussões dentro da lógica e racionalidade burguesas, era urgente a tarefa de
redefinição do que seria lógico e racional. Em última instância, essa redefinição de
conceitos é que vai nortear, em grande parte, o trabalho destes movimentos modernistas.
Diante disso, é certo que o motivo central que moveu todas as vanguardas
está atrelado ao desprezo por tudo aquilo que pudesse associar-se aos clássicos,
especialmente, o século XIX e o Simbolismo, e ao lado do desprezo pelo que estava
sedimentado encontra-se a defesa da necessidade de uma arte que estivesse vinculada ao
futuro acima dos escombros das velhas estruturas tanto artísticas quanto sociais. Uma
arte que pudesse representar esta nova sociedade e também um novo homem.
As profundas mudanças que estavam se processando no interior da cultura
russa, no período revolucionário, resultaram, em grande parte, deste movimento maior
que solapou as estruturas do velho continente, especialmente, a partir do final da
Primeira Grande Guerra quando entraram em cena estes grupos de vanguarda artística
com propostas radicais de mudanças a serem operadas no campo da cultura, com o
objetivo de demolir os padrões e a ideologia realista-naturalista vigentes. Este espírito
revolucionário fez com que muitos artistas também vinculassem seus trabalhos às
questões políticas.
42
Nesse sentido, as artes passam a desempenhar um decisivo papel de
engajamento nas questões políticas, o que fica bastante evidenciado na ssia ao longo
do processo revolucionário. Artistas, movimentos artísticos e culturais, no afã de buscar
novos horizontes para a cultura, muitas vezes vincularam os seus trabalhos à defesa de
uma nova sociedade. Indubitavelmente, na Rússia, em 1917, essa relação arte/política
ficou muito explícita, que vários artistas, em especial, os representantes do cubo-
futurismo, viram na revolução a possibilidade de mudanças seja na sociedade ou no
âmbito da cultura.
ORDEM Nº 2 AO EXÉRCITO DAS ARTES
A vós
- Barítonos redondos -
cuja voz
desde adão até à nossa era
nos atros buracos chamadas teatros
estronda o ribombo lírico de árias.
A vós
- Pintores -
cavalos cevados,
rumino-relinchante galardão eslavo,
no fundo dos estúdios, cedidos como dragos,
pintando anatomias e quadros de flores.
A vós
rugas na testa entre fólios de mística
- Micro-futuristas,
-imagistas,
-acmeístas –
emaranhados no aranhol das rimas.
A vós –
descabelando cabelos bem-penteados,
barganhando escarpins por soados,
vates do Proletcult,
remendões do fraque velho de Puchkin.
A vós –
bailadores, sopradores de flautas,
amolecendo às claras
ou em furtivas faltas,
e figurando o futuro nos termos
de um imenso quinhão acadêmico.
A vós todos
eu –
que acabei com berloques e dou duro na Rosta –
gênio ou não gênio, tenho a dizer: basta!
43
Abaixo com isso,
Antes que vos abata o coice dos fuzis.
Basta!
Abaixo,
cuspi
no rimário,
nas árias,
nos róseos açafates
e mais minincolias
do arsenal das artes.
Quem se interessa
Por ninharias
como estas: “Ah pobre coitado!
Quanto amou sem ser amado...”?
Artífices,
é o que o tempo exige,
e não sermonistas de juba.
Ouvi
o gemido das locomotivas,
que lufa das frinchas, do chão:
“Dai-nos, companheiros,
carvão do Don!
Ao depósito, vamos,
Serralheiros,
Mecânicos!”
A nascente dos rios,
deitados com furos nas costas,
- “Petróleo de Baku!” – pedem navios
uivando nas docas.
Perdidos em disputas monótonas,
buscamos o sentido secreto,
quando um clamor sacode os objetos:
“Daí-nos novas formas!”
Não há mais tolos boquiabertos,
esperando a palavra do “mestre’.
Dai-nos, camaradas, uma arte nova
- nova -
que arranque a República da escória
.
39
Levando em conta as especificidades e as variáveis históricas e geográficas,
podemos afirmar que esses artistas, rebeldes aos cânones clássicos
40
e dotados de um
39
SCHNAIDERMAN, Boris. Maiakóvski: Poemas. São Paulo: Perspectiva, 1997. pp 91 a 93.
40
O modelo de arte que serviu de inspiração à sociedade burguesa e que reinou absoluta durante muito
tempo até o século XX quando os movimentos modernistas questionaram a estética clássica, tem suas
origens na arte moderna, ou seja, a partir das importantes mudanças que marcaram a história no século
XVI, quando os renascentistas criticaram a arte praticada durante toda a Idade Média e se inspiraram na
cultura clássica, greco-romana, que buscava, em linhas gerais, a simetria, o equilíbrio, visando atingir a
perfeição. Esta arte inspirada na cultura da Grécia e de Roma do período clássico passou para a história
44
caráter investigativo, agruparam-se em torno de pesquisas e invenções objetivando a
integração entre os vários segmentos das artes e explorando o intercâmbio de elementos
retirados das diferentes linguagens artísticas, especialmente, as artes plásticas. Visando
responder de modo ousado e inovador ao clamor da modernidade os artistas de
vanguarda produziram uma arte muito mais rica e interessante do que aquela praticada
até então; uma arte circunscrita aos estreitos limites da estética burguesa que não
deixava quase nenhum espaço para experimentações.
De acordo com Silvana Garcia, o intenso trânsito de personalidades e
informações entre as principais capitais culturais da Europa tais como Berlim, Paris e
Zurique, bem como a exibição de mostras e exposições internacionais; além da edição
de revistas e almanaques favoreceram a divulgação de idéias e a disseminação de
propostas inovadoras e iconoclastas por parte dos movimentos vanguardistas que, na
defesa intransigente de uma nova estética nas artes, atacou impiedosamente a cultura
dominante.
No âmbito local, os artistas reuniam-se em coletivos artísticos,
exercitando com habilidade ambidestra mais de uma arte. As noitadas em torno
das mesas dos cabarés propiciavam o agrupamento, exaltavam os ânimos criativos
e abriam espaço para a expansão de novas propostas artísticas. As artes visuais
rompiam as molduras tradicionais e dependuravam-se displicentemente por
paredes e espaços não convencionais; a poesia saía do papel para os palcos
improvisados, proferida teatralmente por seus autores. O vigor excedente desses
jovens artistas alcançava, por extensão, as ruas, nas quais perambulavam,
excêntricos e irreverentes, deixando estupefatos e temerosos os transeuntes
desavisados. Em breve essa prática tornou-se marca e destacaram-se nomes.
Produziram-se panfletos, manifestos e obras. As artes confundiram-se em novos
produtos híbridos e os artistas adotaram seu duplo de agitadores. Os movimentos
se fortaleceram em torno de idéias e programas, que extrapolaram a esfera
puramente artística para alcançar a atualidade sociopolítica.
41
O componente político ocupou um grande espaço na reflexão e nas obras
desses artistas embebidos na modernidade e na ousadia de promover o choque do novo.
Chocar e inovar eram os seus principais propósitos. Esses movimentos vanguardistas
operaram contra os conceitos dominantes nas artes tradicionais buscando, cada um de
acordo com seus princípios, uma reorganização de conteúdos, materiais e processos que
pudessem projetar o homem em seu novo tempo.
como cultura clássica. Uma ótima referência para se pensar as questões relativas aos cânones clássicos é
Harold Bloom com sua importante obra O Cânon Ocidental.
41
GARCIA, Silvana. As Trombetas de Jericó. Teatro das Vanguardas Artísticas. São Paulo:
Hucitec/Fapesp, 1997. p. 20.
45
As denominadas vanguardas históricas, imbuídas de um forte propósito de
renovação, de mudanças, respeitando as suas especificidades, vão se apropriar desse
espírito transformador que caracterizou o começo do século XX, e procurarão desdobrá-
los em novas possibilidades que, em última instância, incluía até mesmo a negação da
própria herança.
Nesse sentido, as idéias de ruptura e desconexão estão intimamente
atreladas à noção de vanguarda que rompe qualquer vínculo que se estabelecia entre o
momento presente e o passado, negando a continuidade de uma geração a outra. Ao
romper esse elo, esse grilhão, as vanguardas se inserem em outra tradição assumindo
um sentido totalmente diferente na medida em que se funda se re-inaugura a cada
momento que surge.
Devido à dinâmica dos acontecimentos e ao ritmo vertiginoso da
modernidade, algo que deslumbrava e era tema central da obra dos modernistas, nada se
perpetrava nas artes que acompanhavam essa corrida alucinada e levava, a passos
largos, a uma nova realidade que exigia mudanças constantes que tudo era muito
efêmero.
Contrapondo-se à aura de universalidade, perenidade e sublimidade da obra
de arte cultivada pelo gosto do espectador do século XIX, as vanguardas opuseram a
atitude rebelde, inventiva, de oferecerem a si próprias como espetáculo, o que podia ser
constatado pelos artistas que saíam às ruas trajando roupas extravagantes e com as faces
pintadas, causando uma grande confusão e provocando escândalos, e o público nem
sempre os recebia de maneira amável. Controvertendo a relação passiva entre palco e
platéia, as vanguardas propuseram o escândalo como resolução de comportamento
artístico.
No contraponto com as normas e padrões literários vigentes, o
Futurismo pretende ser uma poderosa vassoura: Não queremos mais nada com o
passado’, decreta o manifesto, incitando a rebeldia contra os estandartes da
cultura comportada: ‘Ateiem fogo às estantes das bibliotecas!... Desviem o curso
dos canais, para inundar os museus!... Empunhem as picaretas, os machados, os
martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas
!’
42
.
Indubitavelmente, os futuristas se constituem em um exemplo lapidar dessa
irreverência característica das vanguardas. Com o intuito de atingir os seus objetivos
que eram chamar a atenção das pessoas para a renovação das artes e também da
42
Ibidem, p. 29.
46
ebulição política que solapava o país esses artistas iam aos bares e cafés onde liam seus
poemas que desferiam severas críticas aos burgueses denunciando a exploração e a
miséria da maioria da população. A relação dos futuristas russos com o público nem
sempre era pacífica, em várias oportunidades era necessário a intervenção da polícia.
Com essa atitude rebelde e escandalosa, os futuristas chamavam a atenção
das pessoas para refletirem acerca das mudanças que o país estava vivendo, e que não se
restringiam às questões políticas. Eles vislumbravam uma nova realidade que se
afastasse daquela que a população russa presenciava há tanto tempo. Nesse novo tempo,
a liberdade, que era defendida em todos os setores da sociedade, era uma condição e um
direito que deveriam ser estendidos a todos. A liberdade formal, bandeira de luta do
futurismo russo, vinha acompanhada de uma defesa irrestrita de libertação também no
campo da política.
Além das aparições espetaculares, marcadas por uma forte componente
teatral, o que é bastante coerente, já que esses artistas estavam “representando uma nova
era” que se inauguraria no campo das artes russas, os artistas de vanguarda levaram suas
artes para as ruas com o objetivo de romper qualquer obstáculo, qualquer fronteira que
insistisse em dificultar o acesso da população ao universo artístico. O intuito era,
também, transpor os obstáculos que se transpunham entre o palco e a platéia ou entre as
massas e as artes.
O discurso estético-ideológico, adquire, a partir de então, um estatuto de
manifesto que visava objetivamente levantar e problematizar questões não somente
relativas à estética, mas também, especialmente, no que diz respeito ao cubo-futurismo
para chamar a atenção de todos para a necessidade de estarem atentos com relação aos
acontecimentos políticos.
As obras de artes não servem mais somente à contemplação e para acalentar
o espírito burguês, elas passam a se constituir também num veículo, um instrumento que
tem a possibilidade de mobilizar um grande número de pessoas em torno de um
objetivo, muitas vezes, explicitamente, político. Havia, portanto, naquele período um
intercâmbio bastante profícuo, uma relação muito estreita entre as artes e as massas na
Rússia em torno de um objetivo comum que era a reestruturação da sociedade.
Nos projetos estéticos das vanguardas, encontra-se implicado um
componente de ordem política que pertence intrinsecamente à própria revolução
47
que elas pretendem encarnar contra a arte burguesa. Em seus modos de se e na
ruptura que visam operar contra os cânones da ordem artística vigente, as
vanguardas realizam um gesto eu é fundamentalmente político, dado seu escopo
contestatório e escandaloso, dessacralizador e irreverente, violento e subversivo
43
.
A relação arte/política revela-se como a própria essência da revolução
proposta por esses movimentos. Não se tratava de acomodar um novo conteúdo às
velhas formas, mas sim, configurar o novo, que na tradição da ruptura é político, na
medida em que se insere em atitude de confronto no interior do próprio sistema
produtivo artístico. É certo que essa relação não aconteceu de maneira homogênea em
cada movimento, variando quanto ao seu radicalismo e extensão.
Incontestavelmente, um dos movimentos artísticos de vanguarda que mais
atuaram politicamente colocando seus trabalhos em defesa da renovação, seja no campo
da estética, ou no âmbito da política, foi o cubo-futurismo na Rússia que vislumbrava a
possibilidade de profundas mudanças na cultura do país objetivando, em última
instância, romper as fronteiras entre a arte e as massas, concomitante aos
acontecimentos que inauguravam uma nova etapa política na qual as massas pudessem
ter representatividade e suas vozes pudessem ser ouvidas.
As elaboradas articulações cubo-futuristas estavam em perfeita harmonia
com o cenário daquele momento que exigia muita prontidão devido à dinâmica dos
acontecimentos. Toda a teatralidade embutida no cotidiano dos artistas aliado ao
desprezo por qualquer arte que se pretendesse universal, aproximou-os da função
utilitária que a revolução exigia das manifestações artísticas e culturais.
Os integrantes do cubo-futurismo foram os primeiros a inculcar em suas
obras os temas e o ritmo vertiginoso da revolução assumindo, assim, a tarefa de
disseminador das idéias socialistas, fazendo a defesa incondicional da causa
revolucionária e, acima de tudo, assegurando a vitória da Revolução Socialista de 1917.
Os futuristas russos acolheram a revolução que seria como um furacão que
varreria a Rússia levando para bem distante a velharia retórica e todo o academicismo
característico da arte burguesa. Estes artistas sonhavam com a possibilidade de que o
novo regime pudesse libertar-se do lastro cultural burguês. Da mesma forma que os
acontecimentos que estavam revolvendo a Rússia naquele período, o país também
passaria por mudanças substanciais no âmbito da cultura mudando radicalmente seus
estatutos.
43
Ibidem, p.16.
48
As artes que até então estavam representando a sociedade burguesa sem
muitas, ou nenhuma preocupação com as injustiças sociais, passavam a ter uma
perspectiva totalmente diferente que os trabalhos de muitos artistas que se dedicaram
à causa revolucionária serviram como armas poderosas que contribuíram para a
derrocada da cultura e política burguesas.
Naqueles dias futurismo e revolução pareciam identificar-se, a
novidade das formas coincidindo com a renovação política Os artistas de
vanguarda, que na ruína dos velhos hábitos avistavam a chegada de uma
inesperada liberdade formal, consideravam o futurismo a única tendência capaz
de expressar o fermento da época.
44
1.1 FUTURISMOS ITALIANO E RUSSO: UMA MESMA
ORIGEM PORÉM COM DESFECHOS CONTRÁRIOS
Silvana Garcia, em As trombetas de Jericó, afirma que a inauguração desses
movimentos modernistas se deu com a publicação de um manifesto: Manifesto do
Futurismo escrito por Filippo Tommaso Marinetti, precursor do futurismo italiano, no
dia 20 de fevereiro de 1909 no periódico Le Figaro de Paris.
Não um programa estético nem uma exegese de arte do momento, mas
um panfleto incendiário, espontaneamente escandaloso no fluxo anárquico de seu
pensamento iconoclasta. Ali encontram - se as bases de toda a rebeldia que
explodirá como fogos de artifícios, incessantemente, no céu das primeiras décadas
do século.
45
Este foi o primeiro, de uma série de manifestos que ainda seriam
publicados, especialmente entre 1910 e 1913, nos quais os futuristas faziam a defesa
intransigente da necessidade de se dar novos rumos às artes urgentemente. Podemos
apreender, por meio desses escritos, a essência do movimento futurista: as críticas à arte
tradicional, defendendo uma profunda renovação no campo das artes, aliada à defesa de
mudanças que deveriam ser operadas também no campo da política tal como a via o seu
predecessor. Estes manifestos se constituíram na forma literária, por excelência, do
movimento futurista.
44
RIPELLINO, A. M. Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971. p.71.
45
Ibidem, p. 29.
49
Marinetti era dotado de um grande talento para expor suas idéias
iconoclastas de modo atraente e agressivo sob esta modalidade. Seu exemplo foi
seguido por vários outros artistas que trouxeram prestígio ao movimento, dentre os
quais podemos destacar os nomes de Apollinaire e Wyndham Lewis. Outros artistas,
inicialmente ligados à escola de escritores florentinos, como Papini
46
se converteram ao
movimento futurista.
Além de bastante talentoso para a escrita, o precursor do futurismo havia
trabalhado em Milão como editor de poesia, publicando obras dos simbolistas franceses
na Itália, contra os quais ele se voltaria muito brevemente já que uma das mais
marcantes características dos futuristas era a negação de seus mestres.
Os manifestos escritos pelo futurista italiano se caracterizavam por uma
forte tendência nacionalista, o que facilitou a ligação do futurismo italiano com o
fascismo, uma relação marcada por avanços e recuos. Estes escritos surpreenderam os
meios culturais europeus em virtude do caráter extremamente violento e radical de suas
propostas.
Uma das principais preocupações de Marinetti, [...] era distinguir
entre o movimento artístico de vanguarda e o novo partido político. Fez o possível
para ressaltar a diferença entre o futurismo artístico, que despertara tanta
hostilidade entre as pessoas comuns, e o partido futurista, ao qual poderiam
pertencer todos os que desejassem o progresso e amassem a Itália. [...]. Em março
de 1919, Marinetti, Vecchi e outros futuristas participariam da fundação dos fasci
de combattimento, as equipes de combate que viriam a formar o partido fascista
original. Em abril, futuristas e arditi formaram as forças fascistas que atacaram as
salas do jornal socialista Avanti, em Milão. Depois de perder as eleições para os
socialistas, Marinetti passou 21 dias na prisão com Mussolini, Vecchi e outros
arditi, acusados de ameaçarem a segurança do Estado e de organizarem grupos
armados. Naquela época, ele escreveu Além do Comunismo, condenação futurista
do comunismo como coisa burocrática, detalhista e passadista. Olhando para além
do comunismo, Marinetti via um futurismo no qual a nova educação geraria uma
raça de heróis e gênios italianos. A arte seria o meio e o fim desse processo, e ao
final ‘não teremos o paraíso terrestre, mas o inferno econômico será alegrado e
pacificado pelas inúmeras festas da arte’.
47
(grifo nosso)
Muito se tem comentado a respeito da relação futurismo/fascismo. Se, de
um lado, não é verdade que o futurismo se constituiu na arte oficial do fascismo, é certo
também que Marinetti nunca esteve alheio ao partido o que se deveu, inclusive, pelos
46
Papini escreveu uma série de ensaios sobre o futurismo, defendendo-o nos anos heróicos. Contudo,
posteriormente o escritor afastou-se do movimento.
47
BRADBURY, op. cit., p. 206.
50
laços de amizade que uniam os dois líderes. Por muitas vezes, Marinetti recebeu
mostras de respeito do regime que apoiava muitas proposições defendidas pelo
futurismo, o que não implica, no entanto, que o seu projeto artístico/político ocupasse
um espaço maior que o da simples tolerância por parte dos fascistas.
Nem o fascismo assimilou por completo o futurismo. Ele se apropriou de
muitas idéias futuristas tais como a agitação violenta levada para os locais públicos e o
patriotismo exacerbado. Entretanto, Marinetti afirma que, com o passar do tempo, o
movimento fascista afastou bastante de seus princípios de época da militância de rua o
que possivelmente pode ter sido um fator determinante para que os dois não tivessem
uma ligação ainda mais estreita.
A saída de Marinetti e Carli dos fasci de combattimento, em maio de 1920,
deveu-se, em grande parte, à política prática e a necessidade de transgredir a respeito
das questões relativas à monarquia e a Igreja. Entretanto, quatro anos depois, em 1924,
Marinetti escreveu Futurismo e fascismo onde reuniu discursos e relatos deste tempo
deixando claro que as diferenças haviam sido acertadas e ele se empenhava em
apresentar o futurismo como precursor e parceiro do fascismo.
Benito Mussolini, o líder fascista, compartilhou e apropriou-se de muitas
idéias defendidas pelos futuristas como por exemplo, a agressividade à burguesia e a
resolução de problemas econômicos, em conseqüência da Guerra, vendendo obras de
arte italianas. Esta proposta ia ao encontro dos sonhos futuristas de destruição dos
museus e galerias de arte e a possibilidade de adquirir lucros a partir da comercialização
de obras artísticas.
Os futuristas italianos defendiam arduamente a queima dos museus e a
destruição das bibliotecas para que nada que remetesse ao passado ao que estava
sedimentado e pudesse se perpetuar. Em sua defesa intransigente do novo que estaria
alicerçado no futuro, não era admissível, aos futuristas, que a tradição tivesse
continuidade. Dessa forma, tornam-se inteligíveis os ataques e as críticas acerbadas que
os futuristas desferiram aos artistas clássicos que representavam um modelo de cultura
que deveria ser enterrado.
A Itália, segundo Marinetti, era, muito tempo, um imenso mercado de
coisas velhas e por isso mesmo este movimento que defendia o rompimento com tudo
que fosse clássico, com o que estava cristalizado, encontrou naquele país condições
bastante propícias à sua disseminação.
51
Certamente, não haveria um cenário mais apropriado para essa proposta de
renovação do que a própria Itália, país com uma tradição milenar de pátria da
civilização ocidental um grande baluarte do que pudesse se associar à tradição, era
representação máxima do tradicional. Nesse cenário Veneza se apresenta como símbolo
maior, mais representativo do passado e da cultura esclerosados.
Veneza dos forasteiros, mercado de antiquários falsificadores, ímã do
esnobismo e da imbecilidade universais, leito roto de caravanas de amantes,
semicúpio enfeitado para cortesãs cosmopolitas, cloaca máxima do passadismo
48
.
Os futuristas proclamam a chegada de um novo tempo, que traria em seu
bojo a abolição do culto ao passado, e de tudo que estivesse cristalizado e que remetesse
à contemplação, à admiração de uma grandeza perdida no tempo. O presente deveria ser
ressaltado e exaltado que ele traz consigo o germe do futuro que estaria prenhe de
uma grande força renovadora, enterrando para sempre o que era clássico, passado e
inaugurando uma nova era que se caracterizaria, essencialmente, pela ruptura e
mudanças constantes.
A proposta dos futuristas era libertar o país dos grilhões que ainda o
prendiam ao passado, romper qualquer amarra, com tudo que estivesse atrelado ao que
estava instituído e consolidado. Esse mesmo grito libertário encontrou muitos adeptos
em muitos outros países europeus não se restringindo, portanto, aos limites territoriais
da Itália e influenciou vários outros movimentos de vanguarda, como aconteceu com o
Dadaísmo que incorporou idéias futuristas, chegando a pregar o fim da arte.
Marinetti era um artista; mais do que isso, e ainda mais importante
para o futurismo, era um grande patrono e organizador de artistas, com uma
habilidade propagandística e um gosto por viagens longas que contribuíram mais
do que qualquer outra coisa para divulgação do movimento. Hoje, o futurismo é
em larga medida lembrado como um movimento artístico, e não literário. Quadros
como “Cidade Adormecida(1909-10) e “A Revolta” (1911), de Russolo, e “Luta
na galeria” (1910), de Boccioni, inspiram-se claramente nas idéias de Marinetti.
O dinamismo e a simultaneidade termos-chaves do futurismo, que expressam a
beleza da velocidade vieram a significar, na pintura, aqueles estranhos estudos
do movimento sugeridos por experiências cinematográficas então desenvolvidas,
como “Moça correndo num balcão de Balla”, com seus oito quadros instantâneos
da moça na corrida, ou seu Cão em movimento, com o bassê disparando numa
nuvem de muitas pernas e muitos rabos.
49
48
BERNARDINI apud GARCIA (1997)
49
BRADBURY, op. Cit., p.200.
52
Havia um grande fascínio dos futuristas pela velocidade, pelas máquinas e
também pela eletricidade que, para eles, substituiria a luz romântica da lua inspiradora
dos velhos poetas. Tudo isso representava a “nova era”, um novo período da história.
Um dos mbolos da modernidade, para os futuristas, era o poste de luz elétrica que
anularia o luar que era o baluarte da linguagem poética romântica, e junto com ela, a
idéia de Belo na arte e na vida também passa por uma ampla revisão. A beleza passa a
associar-se aos novos símbolos da modernidade como a velocidade, por exemplo, que
foi uma grande fonte de inspiração para muitos poetas futuristas que declaravam em
seus trabalhos o fascínio que exercia sobre eles.
A luz artificial estava carregada de toda uma simbologia, representava os
novos tempos, um futuro que suplantaria definitivamente a era que perpetuou, durante
um longo tempo, o romantismo. As fábricas e suas altas chaminés também eram
destacadas pelos futuristas, elas também estavam associadas aos novos tempos.
O poste da luz elétrica é o novo mbolo da modernidade, a substituir
o do berço esplêndido do passado. [...] Em contraposição às imagens que exaltam
o enlevo romântico dos pares enamorados, os futuristas propõem a poesia
concreta dos edifícios, pontes e usinas. O automóvel é a expressão poética do novo
tempo.
50
Não obstante, o que era muito marcante nas artes futuristas era o seu
deslumbramento pela velocidade. O que explica o fato de o movimento, a princípio ter
se chamado “Dinamismo”.
Marinetti em vários poemas declarou sua profunda admiração pela máquina,
estabelecendo com ela uma romântica relação e fazendo exaltação da velocidade bem
em conformidade com o espírito dos futuristas que exaltavam um movimento dinâmico.
Hourrah! Plus de contact avec la terre immonde!...
Enfin, je me détache et je vole em souplesse
Sur la grisante plenitude
des Astres ruisselant dans le grande lit du ciel.
(Hurra! Fim do contato com a terra imunda!... Finalmente me desprendo e vôo
agilmente na inebriante plenitude dos Astros correndo no grande leito do céu.)
51
A euforia dos futuristas com a velocidade dos carros, máquinas que
representavam um novo tempo, logo se intensificou diante da possibilidade de voar,
algo que assumia um caráter quase místico para Marinetti.
50
GARCIA, op. cit., p.30.
53
A grande bandeira empunhada pelos futuristas era a libertação do país dos
laços que ainda o prendiam a tudo aquilo que pudesse representar, ou personificar o que
era velho, rompendo qualquer vínculo com o passado, o que explica o ódio aos
arqueólogos, professores e antiquários. O que não implicou, no entanto, que esse bravo
grito de liberdade ficasse circunscrito às fronteiras italianas pois o movimento teve
ressonância em várias regiões da Europa.
Marinetti, além de ser um artista, era também um grande patrono e
organizador de artistas, com uma marcante habilidade propagandística e um gosto por
viagens longas que contribuíram, mais do qualquer outro fator, para que o movimento
fosse divulgado para muito além das fronteiras italianas.
O futurismo sempre esteve atrelado à questão política, como atesta
Bradbury:
Já em 1909, fora publicado um breve Manifesto político para as
eleições, com uma mensagem anticlerical. Em 1911, apareceu um segundo
Manifesto, em defesa da guerra Líbia. Para as eleições de 1913, foi lançado um
Programa político futurista mais desenvolvido, e a primeira frase repetia o
Manifesto de 1911: ‘A palavra Itália deve dominar a palavra Liberdade’. A base
ideológica era anticlerical e anti-socialista, e todas as propostas construtivas
defendiam a modernização na indústria e na agricultura, o irredentismo e uma
política exterior agressiva. Esses três Manifestos, junto com outros textos
politicamente agressivos, foram publicados em Guerra, única higiene do mundo,
em 1915 – ano da entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial.
52
O anticlericalismo que perpassou vários manifestos redigidos
posteriormente, refletia-se no programa para o ensino público e facilidades para o
divórcio. Além disso, esses manifestos acenavam para a efetivação de mudanças
parlamentares que significariam uma Câmara dos Deputados da qual fizessem parte
pessoas jovens, defendendo a abolição do Senado em favor de um governo composto
por vinte especialistas cnicos que seriam eleitos por sufrágio universal. Outros itens
importantes defendidos pelos futuristas por meio de seus manifestos eram: a introdução
da representação proporcional; nacionalização da terra, minas e cursos de água;
modernização da indústria; jornada de oito horas; remuneração igualitária e a extinção
da burocracia.
As idéias futuristas estavam registradas nos inúmeros manifestos que foram
publicados especialmente nos primeiros anos de sua existência quando a sua melhor e
51
Cf, BRADBURY & MAcFARLANE. P.199.
54
mais importante safra de produções teóricas alcançou as diferentes áreas de expressão.
Foram editados, entre 1910 e 1913, manifestos sobre pintura, música, dramaturgia,
escultura, cinema e literatura. O princípio maior que norteava todos os manifestos era a
necessidade de inovação, no campo dos materiais, das cnicas, temas e motivos
tradicionais. Era uma proposta de ampla renovação tanto no conteúdo quanto na forma.
Arte e artista desvencilham-se dos padrões e normas para ganhar
espaços mais amplos e inauditos. Uma literatura e uma poesia livres requerem
novas condições de existência que as das páginas confortáveis dos compêndios e
edições. Se Marinetti afiança como o fez em seu “Manifesto técnico da
literatura” que é necessário ‘renunciar a ser compreendido’, isso não implica,
no entanto, abdicar do desejo de comunicação. Ao contrário, o projeto futurista
pressupõe a difusão, o convívio, o confronto para se realizar plenamente.
53
Os futuristas propunham mudanças radicais no campo das artes com a
incorporação de sons, ruídos da rua, gritos e estrondos que serviriam como base para
composições musicais. Considerando-se que os movimentos de vanguarda têm como
característica marcante o coletivismo, essas noções exercerão grande influência nas
reflexões e produções de outras áreas de expressões artísticas.
O projeto inovador das artes futuristas ficou muito visível no teatro.
Marinetti, ainda em Paris, antes mesmo de se proclamar futurista, publicou seu drama
Rei Baldoria. Como foi salientado, anteriormente, o movimento futurista cultivava um
gosto muito peculiar pela dramaturgia. A arte e os artistas ligados ao futurismo se
realizavam, de forma mais ampla, na teatralidade. Eles eram, essencialmente, teatrais.
Essa teatralidade, que alcança não as representações mas o
cotidiano desses artistas e pauta o tom de suas atividades, vincula-se de imediato
logo à natureza escandalosa pretendida pelo movimento como postura de impacto
e comunicação com seu público. Esse caráter manifesta-se nas primeiras
apresentações públicas dos futuristas.
54
O tom provocativo, que marcou as produções futuristas, ficou muito
explícito, especialmente, na dramaturgia produzida no período. Era uma dramaturgia
que ia totalmente de encontro com o que se fazia em termos de teatro até aquele
momento, foram mudanças substanciais, tanto no que se refere a questões estéticas
quanto à temática que passara a ser notadamente política, e devido a esses fatores o
52
BRADBURY, op. Cit., p.205-206.
53
GARCIA, op. cit., p. 36.
54
Ibidem, p. 37.
55
teatro futurista encontrou muita resistência por parte dos conservadores que lutavam
para preservar o teatro tradicional que era o espaço privilegiado de representação da
cultura burguesa.
Uma das críticas mais contundentes que muitos futuristas receberam,
especialmente, Maiakóvski, foi em conseqüência da introdução de questões políticas nas
artes o que feria os princípios da arte tradicional. Vladimir Maiakóvski enfrentou toda a
ira dos defensores da estética burguesa que ele denominou de “estética do bonitinho”. O
teatro praticado até então era essencialmente fundamentado em bases realista-
naturalistas o que estava muito distante do teatro proposto pelos dramaturgos cubo-
futuristas que viam no teatro, além de proporcionar espetáculo, uma tribuna viva na qual
as artes não estivessem separadas das questões sociais.
É certo que o cubo-futurismo russo está vinculado aos movimentos de
vanguarda, que emergiram na Europa no início do século XX, em especial, ao futurismo
italiano. No entanto, na Rússia o movimento ganhou contornos, características
completamente distintas de seu predecessor. Os dois, embora apresentassem muitas
semelhanças, compartilhando, por exemplo, um grande fascínio pela modernidade e
tudo o que a ela estava associado. Entretanto, divergiam em muitos assuntos, como a
relação com a política que certamente foi o fator que mais os distanciaram.
55
Enquanto os futuristas italianos caminharam lado a lado com o fascismo
italiano, um regime fechado, totalitário no qual a liberdade de expressão e a participação
política das massas foram suprimidas, dentre tantas outras coisas, os futuristas russos,
por seu turno, em sua maioria, estiveram muito empenhados na defesa da revolução
socialista, percorrendo, assim, caminhos totalmente diversos. Outra diferença marcante
entre os dois futurismos concerne à tradição cultural popular que era totalmente
desprezada e negada pelos futuristas italianos, o que não acontecia com os russos que,
ao contrário, valeram-se das tradições, no que elas tinham de essencialmente popular,
fazendo com que seus trabalhos tivessem um grande alcance e pudessem ser
compreendidas por todos.
É inteligível o fato de muitos artistas representantes do cubo-futurismo se
apegarem à tradição popular, pois as suas artes tinham um propósito e objetivos bastante
definidos, muito claros que era arregimentar, mobilizar o maior número de pessoas
55
Em 1914, Marinetti visitou a Rússia e foi muito mal recebido pelos futuristas locais. Maiakóvski que
acabara de chegar de uma viagem pelo país divulgando seus trabalhos interferia em suas palestras,
entregando panfletos e fazendo intervenções discordando do futurista italiano.
56
possíveis em defesa da revolução socialista e também romper os limites que se
interpunham entre a cultura e as massas. Para alcançar tais objetivos eles não poderiam
prescindir das tradições populares, pois somente uma arte que estivesse bastante
próxima da vida real das pessoas faria com que as massas pudessem entender o
propósito de suas mensagens mais facilmente.
Se o conteúdo dessas artes futuristas não estivesse relacionado à história da
população, se fosse algo distante e alheio a ela, como a cultura clássica que estava fora
da realidade da grande maioria das pessoas, certamente, a mensagem veiculada pelos
futuristas não atingiria o público desejado que era um extrato menos privilegiado da
população.
Muitos artistas futuristas, como Maiakóvski, enfrentaram a ira de seus
adversários, especialmente, os guardiões e fiéis defensores da cultura burguesa. Embora
tenha feito todos os esforços, no sentido de facilitar a compreensão das mensagens que
eram passadas, por meio de suas artes que tinham caráter de propaganda e panfletagem,
foram muito criticados afirmando que elas eram incompreensíveis para as massas.
Vladimir Maiakóvski chegou a escrever um poema com esse título no qual fica evidente
a sua preocupação com o papel do poeta na sociedade.
INCOMPREENSÍVEL PARA AS MASSAS
Entre escritor
e leitor
posta-se o intermediário,
e o gosto
do intermediário
é bastante intermediário.
Medíocre
mesnada
de medianeiros médios
pulula
na crítica
e nos hebdomadários.
Aonde
galopando
chega teu pensamento,
um deles
considera tudo
sonolento:
-Sou homem
de outra têmpera! Perdão,
lembra-me agora
57
um verso
de Nadson...
O operário
não tolera
linhas breves.
(E com tal
mediador
ainda se entende Assiéiev!).
Sinais de pontuação?
São marcas de nascença!
O Senhor
corta os versos
toma muitas licenças.
Továrich Maiakóvski,
por que não escreve iambos?
Vinte copeques
por linha
Eu lhe garanto, a mais.
E narra
não sei quantas
lendas medievais,
e fala quatro horas
longas como anos.
O mestre lamentável
repete
um só refrão:
-Camponês
e operário
não o compreenderão.
O peso da consciência
pulveriza
o autor.
Mas voltemos agora
ao conspícuo censor:
Camponeses só viu
há tempo
antes da guerra,
na datcha,
ao comprar
mocotós de vitela.
Operários?
Viu menos.
Deu com dois
uma vez
por ocasião da cheia,
dois pontos
numa ponte
contemplando o terreno,
vendo a água subir
e a fusão das geleiras.
Em muitos milhões
para servir de lastro
colheu dois exemplares
o nosso criticastro.
Isto não lhe faz mossa –
58
é tudo a mesma massa...
Gente – de carne e osso!
E à hora do chá
expende sua sentença:
...-A classe
operária?
Conheço-a como a palma!
Por trás
do seu silêncio,
posso ler-lhe na alma –
Nem dor
nem decadência.
Que autores
então
há de ler essa classe?
Só Gogol,
só os clássicos.
Camponeses?
Também.
O quadro não se altera.
Lembra-me agora –
a datcha, a primavera...
Este palrar
de literatos
muitas vezes passa
entre nós
por convívio com a massa.
E impinge
Modelos
pré-revolucionários
da arte do pincel,
do cinzel,
do vocábulo.
E para a massa
flutuam
divas de letrados –
lírios,
delírios,
trinos dulcificados.
Aos pávidos
poetas
aqui vai meu aparte:
Chega
de chuchotar
versos para os pobres.
A classe condutora,
também ela pode
compreender a arte.
Logo:
que se eleve
a cultura do povo!
Uma só,
para todos.
O livro bom
é claro
59
e necessário
a mim,
a vocês,
ao camponês
e ao operário.
56
Neste poema Maiakóvski sugere que quem não conhece as massas são os
clássicos da poesia russa que estavam muito distantes da realidade da maioria da
população. Poetas que praticamente não tiveram contato com os operários e
camponeses, o que não acontecia com Maiakóvski que, seja na vida ou na arte, exerceu
grande militância, estando defendendo, sempre, os interesses dos menos favorecidos.
Este foi apenas um dos escritos do poeta que propugnou uma arte digna,
elevada, sem concessões, pois, segundo Maiakóvski, as massas é que deveriam ser
educadas para compreender a verdadeira poesia. A crítica direcionada a Maiakóvski
afirmando que os operários não o compreendiam, algo que o perseguiu durante toda a
sua vida, não se fundamenta se levarmos em conta que o poeta tinha muito claramente o
público que ele desejava atingir. Além disso, ele se dava ao trabalho de ir a vários
lugares como praças e fábricas para ler os seus poemas e comentá-los para as pessoas.
Esta crítica é totalmente infundada se levarmos em conta que o poeta fez
uso de vários recursos para aproximar as suas artes do público em geral. Para atingir tal
objetivo, as produções cubo-futuristas, nas mais variadas áreas das artes, além de
incorporarem a linguagem e os temas do cotidiano estavam impregnadas de referências
religiosas, um aspecto que perpassou o conjunto da obra futurista russa e que também
contribuía para aproximar as pessoas de seus trabalhos artísticos, na medida que
penetrava no universo cultural das pessoas. Estes artistas recorriam à religião com o
intuito de aproximar suas artes da população que, em geral, era muito carente de
informações e com um índice muito alto de analfabetos.
No caso específico do teatro, muitos artistas, dramaturgos e diretores além
de se valerem da religião, como forma de aproximação com as massas, recorreram a
espetáculos encenados no meio das ruas, nos moldes das feiras nos quais todos
participavam do processo de elaboração e criação dos textos. Nestas montagens
56
“Incompreensível para as massas” escrito em 1927, extraído do livro Maiakóvski Poemas .de Boris
Schnaiderman.
60
utilizavam-se muitos recursos circenses, uma arte eminentemente popular e de uma
forte tradição naquele país, com o intuito de se estabelecer uma relação direta entre
suas artes e o público mais geral.
Na realidade, a participação do espectador no momento da apresentação
deve ser tão somente o ponto máximo de um processo de envolvimento que tem início
ainda na preparação do espetáculo. Trata-se de socializar ao máximo o processo de
criação para que assim possa instituir um espectador privilegiado que não apenas frui a
apresentação mas também participa crítica e ativamente de todo o processo de
montagem.
Nos espetáculos procura-se também fazer o espectador participar como
atuante nos grupos representando as cenas de massa, na aclamação de slogans e cantos
revolucionários. Indubitavelmente, um dos mais grandiosos e empolgantes espetáculos
que contou com a participação de um grande número de pessoas, cerca de seis mil,
obviamente nem todos atores foi A Tomada do Palácio de Inverno dirigido por Kugel,
Petrov e Nicolai Evreinov, e encenado em comemoração ao terceiro aniversário da
Revolução de Outubro.
O espetáculo, que foi assistido por um público aproximado em cento e
cinqüenta mil pessoas, foi apresentado no próprio local do acontecimento histórico: a
praça do Palácio de Inverno. É interessante ressaltar que a seqüência dos fatos foi
reconstituída não apenas de acordo com os dados registrados mas também, e sobretudo,
contando com a ajuda de pessoas que haviam participado, real e efetivamente, do
episódio. Assim, este espetáculo era ao mesmo tempo reconstrução histórica e alegoria
da própria revolução.
Este grande esforço que se percebe em aproximar as multidões das artes,
que aliás era condição essencial aos artistas empenhados na defesa das revoluções, seja
no campo da estética ou política algo que, especialmente, no período revolucionário não
podia ser dissociado, ficou muito claro nas peças escritas e encenadas por Maiakóvski
como Mistério–Bufo, de 1917, que faz recorrência às questões religiosas, como a
passagem pelo céu e o inferno fazendo uma analogia à situação da ssia, e Os
Banhos, de 1930, que tem início com fogos de artifício.
Silvana Garcia, referenciando-se nas discussões de Boris Schnaiderman e
Ripellino, afirma que a influência da cultura popular sobre os artistas desta nova
geração na Rússia se manifesta mediante a recuperação da tradição pictórica as obras
dos primitivistas, os ícones religiosos, as singelas ilustrações da literatura romanesca
61
popular - , da tradição oral das canções e ditos do saber popular, bem como do teatro,
em especial o teatro de feira, das marionetes às arengas dramatizadas dos charlatões.
Também foi incorporada e nesse sentido ressaltam-se os poetas
Kliébnikov e Maiakóvski o linguajar das ruas aproveitado em seus modismos, gírias e
regionalismos. Foi essa a tradição que também deu sustentação ao trabalho de
Maiakóvski, e que ia totalmente de encontro ao que se convencionou chamar de tradição
clássica da cultura russa que tem como expoentes, no campo da literatura, Dostóievski,
Tolstói e Púchkin, nomes que foram duramente criticados pelo futurismo russo por que
essa sim era a tradição que deveria ser superada, suplantada em favor de uma cultura
que estivesse mais próxima da nova realidade da Rússia, uma cultura que pudesse
representar uma nova era na qual os trabalhadores, os populares tivessem possibilidade
de participação política e pudessem ser representados e representantes dessa nova
cultura.
62
CAPÍTULO II
MAIAKÓVSKI: UMA BREVE, PORÉM, INTENSA VIDA
DEDICADA ÀS REVOLUÇÕES NA RÚSSIA
Sei o pulso das palavras a sirene das palavras
Não as que se aplaudem do alto dos teatros
Mas as que arrancam os caixões da treva
e os põem a caminhar quadrúpedes de cedro
Às vezes as relegam inauditas inéditas
Mas a palavra galopa com a cilha tensa
ressoa os séculos e os trens rastejam
para lamber as mãos calosas da poesia
Sei o pulso das palavras Parecem fumaça
Pétalas caídas sob o calcanhar da dança
Mas o homem com lábios alma carcaça
Maiakóvski
Pesquisar o poeta Vladimir Maiakóvski, um dos maiores poetas da
modernidade, é algo de extrema relevância, especialmente, nesses momentos em que
vivemos a tão decantada morte das ideologias o que se deveu, em grande parte, ao fim
do suposto comunismo e triunfo do sistema capitalista que embora tenha se mostrado
cada vez mais incapaz de resolver os inúmeros problemas que foram suscitados por ele
como o distanciamento das classes, uma péssima distribuição de renda, enfim,
problemas de ordem econômica, políticos e sociais que geraram complicações sérias na
vida prática de milhões de pessoas que vivem à beira da miséria e atordoadas, sem rumo
dentro da lógica capitalista. Mesmo dentro deste quadro de horror o capitalismo se
apresenta como único sistema possível.
Diante desta perspectiva não muito animadora da nossa sociedade, nada
mais necessário e justo que resgatar um grande poeta que fez do seu instrumento de
trabalho - a palavra - para “pisar a garganta de seu tempo”, como ele mesmo afirmou
no poema A Plenos Pulmões. Na sua obra, além de estar presente uma pesquisa relativa
63
às questões formais, baseada na experimentação, é muito claro também o seu
envolvimento com as questões sociais, uma de suas preocupações maiores de sua vida.
A poesia de Vladimir Maiakóvski, além de ser dotada de uma natureza
épica, apresenta também uma face lírica, além de poemas extremamente satíricos que
tinham como alvo principal os burgueses, e ainda poemas nos quais ele atacava
veementemente os clássicos da poesia russa. Assim, suas construções poéticas visitavam
os mais variados temas que diziam respeito ao homem e sua inserção social, questões
relativas ao cotidiano e aos fatos políticos.
Maiakóvski se constitui em um exemplo de pessoa que lutou
incansavelmente em defesa das questões sociais, jamais dissociando sua vida de suas
concepções políticas, tendo denunciado as injustiças da sociedade russa, sob os
auspícios do regime czarista, e lutado bravamente em defesa de uma nova sociedade
alicerçada nas idéias socialistas de Karl Marx.
O grande poeta russo que acompanhou, viveu e imortalizou, por meio de
suas obras, um período importantíssimo da história de seu país, que foi a
desestruturação de um regime autocrata que prevalecia séculos e a possibilidade de
implantação de uma nova sociedade, embora tenha morrido tão precocemente, sem estar
de acordo com a situação política da Rússia, que vivia uma fase de concentração de
poderes em torno do Estado, que naquele momento fundia-se com o Partido, ainda
assim, continuava firme nas suas convicções políticas. Maiakóvski suicidou-se, em abril
de 1930, acreditando que o socialismo ainda seria possível e viável para combater tantas
injustiças sociais, mesmo que fosse implantado em um futuro longínquo
57
.
Levando em conta que estamos vivendo, há muito tempo, o triunfo do
individualismo, em detrimento do coletivo, tão característico das sociedades capitalistas,
a história de Maiakóvski, e de toda a sua atuação política, é de fundamental
importância, posto que sua vida não pode ser dissociada das questões sociais. Ao lado
disso, não podemos deixar de ressaltar também a verdadeira revolução que o poeta
ajudou a fazer no campo da estética das artes na Rússia, inaugurando, uma nova fase na
história da cultura daquele país que enriqueceu de forma inaudita o campo de
57
Em sua peça Os Banhos um de seus últimos trabalhos, concebido pouco antes de seu fim trágico, o
suicídio em abril de 1930, o poeta russo estava no horizonte da crítica ao Estado soviético que passou a
tutelar a sociedade não deixando espaço para o exercício da liberdade; algo que a população russa
conhecia muito bem.
64
abrangência das artes. Esta é uma questão de fundamental importância ao nosso
trabalho e que será analisada logo em seguida.
58
Boris Schnaiderman, um grande estudioso da vida e da obra de Vladimir
Maiakóvski, refere-se ao poeta da seguinte forma:
Maiakóvski é quem apresenta uma obra que se destaca pela marca
pessoal, pelo vigor expressivo, pela criação de algo absolutamente novo, e quem a
coloca diante do leitor como um todo organizado e coerente. Sua poesia é sempre
hiperbólica, descomunal. Quase nunca procura a suavidade. Áspero e revoltado,
exigente consigo e com os demais, é bem o representante típico daqueles que
‘pisavam a garganta do seu canto’, conforme se expressou em ‘A Plenos Pulmões’.
Revolucionário nas concepções sociais e na forma que utilizou,
desabusado, amigo do palavrão e do coloquial, poeta das ruas, dos comícios, das
salas de conferência, Maiakóvski aparece-nos como um dos artistas mais
coerentes que jamais existiram
59
.
O poema A plenos Pulmões é um dos mais representativos, dentre as
inúmeras obras-primas produzidas pelo poeta, pois além de condensar grande parte de
suas propostas inovadores, no que concerne às questões formais, tais como a nova
maneira de se fazer rimas, baseando-se na assonância, e também a incorporação de
palavras e temas do cotidiano, percebe-se também neste poema o engajamento político
em defesa do socialismo. Este poema, portanto, é emblemático e representativo da vida
e da carreira meteórica de Vladimir Maiakóvski.
Morre,
meu verso,
como um soldado
anônimo
na lufada do assalto.
Cuspo
sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória, -
entre nós todos, -
o comum monumento:
o socialismo,
forjado
na refrega
e no fogo.
58
Rosangela Patriota apresenta uma discussão de fundamental importância nesse sentido em artigo
“História e Teatro: dilemas estéticos e políticos de Vladimir Maiakóvski”, publicado na Revista História,
v.13, 1994, no qual a professora chama a atenção para a não dissociação da vida do poeta futurista russo
de sua atuação política, como quiseram fazer muitos críticos.
59
SCHNAIDERMAN, Boris. Maiakóvski: Poemas. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p.14.
65
Vindouros,
varejai vossos léxicos:
do Letes
brotam letras como lixo –
“tuberculose”,
“bloqueio”,
“meretrício”.
Por vós,
geração de saudáveis, -
um poeta,
com a língua dos cartazes,
lambeu
os escarros da tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora
um monstro,
fossilcoleante
60
.
No decorrer do conjunto de sua importante obra, percebe-se uma evolução
de formas e uma constância que expressavam as novas realidades. Numa literatura cujos
maiores representantes se distinguiram freqüentemente pela veemência com que
viveram as suas contradições, ele não procurou outra glória senão a de expressar, com o
máximo de vigor e apuro, o seu momento, a sua revolução, o seu desafio a tudo aquilo
que fosse mesquinho, perecível e limitador.
Como os futuristas russos insurgiram-se contra a poética tradicional, isso fez
com que estes poetas se esforçassem no trabalho de pesquisas que pudessem expandir o
campo das artes. Maiakóvski afirmava que não havia nenhuma regra para que uma
pessoa pudesse tornar-se poeta e escrever versos, que poeta, na sua concepção, é
justamente o homem que cria estas regras poéticas. Nesse sentido, o grande poeta russo
faz muitas experiências em seus trabalhos que primavam pelas aliterações, assonâncias
em geral, dissonâncias, combinações sonoras pesquisadas em cada frase, em cada
palavra.
Atribuía grande importância à rima, que devia ser inusitada e
afastar-se o mais possível dos clichês poéticos estabelecidos pelas gerações
precedentes. Essas rimas inusitadas, freqüentemente rimas por assonância,
formam-se muitas vezes pela justaposição de duas ou mais palavras, o que
permitiu uma exploração absolutamente nova dos recursos sonoros da língua
russa, embora o procedimento como tal existisse na tradição popular e tivesse
sido utilizado pela poesia humorística anterior, e sobretudo, por Khlébnikov
61
.
60
Excerto do poema A Plenos Pulmões escrito por Maiakóvski entre dezembro de 1929 e janeiro de 1930.
61
SCHNAIDERMAN, op. Cit., p.15.
66
Maiakóvski no esboço de uma biografia, Eu Mesmo, nos possibilita
conhecer um pouco de sua vida que foi marcada por muitos percalços e problemas que
começaram ainda cedo. O “gigante da blusa amarela”
62
nasceu a 07 de julho de 1893,
ou 94, já que ele mesmo afirma que há divergências a respeito do ano de seu nascimento
na aldeia de Bagdádi, na ensolarada Geórgia. Ainda criança, ficou sem o pai que morreu
de septcemia, doença contraída depois de uma picada de alfinete em um dedo.
Imediatamente após a morte do pai a família foi viver em Moscou o que a
princípio Maiakóvski não entendeu que não conheciam ninguém na cidade. A
adaptação da família de parcos recursos na nova cidade não foi nada fácil, aliás como
nada foi facilitado na curta vida do poeta que sofreu muitas desilusões, como
normalmente acontece na vida de um poeta, especialmente se for um revolucionário
como Maiakóvski que, devido às suas idéias transformadoras, enfrentou a fúria de muita
gente.
Maiakóvski, ainda criança, na Geórgia, interessava-se pelas questões
políticas e lia obras proibidas que lhes chegavam às mãos por meio de uma irmã que ia
a Moscou e lhe traziam estes livros. A partir destas leituras, que o levavam quase à
exaustão, o “menino perscrutador” procurou saber mais sobre conceitos e palavras até
então desconhecidas e muito cedo ainda foi introduzido em um grupo de estudos
marxistas. Filiou-se muito novo ao Partido Bolchevique o que não determinou que sua
militância se restringisse aos limites do campo institucional, dentro do partido político,
ele militava também nas ruas, nos bares, cafés, fábricas ou onde julgasse necessário. A
sua atuação política lhe rendeu três prisões que dificultaram muito seu ingresso nas
escolas que em sua maioria exigiam atestado de bons antecedentes.
Foi em uma dessas instituições de ensino, uma escola de pintura, escultura e
arquitetura que ele conheceu uma pessoa que passou a ter uma importância muito
grande em sua vida: David Burliuk, considerado o pai do futurismo russo. Eles se
conheceram em um concerto enfadonho. Ao saírem do teatro os dois começaram a
conversar, a princípio a respeito da chatice do concerto, depois sobre a Escola de
Pintura e daí para toda a chatice clássica. Em David havia a ira de um mestre que
ultrapassara os contemporâneos, em mim o patético de um socialista, que conhecia o
inevitável da queda das velharias. Nascera o futurismo russo
63
.
62
Maiakóvski era conhecido assim devido à sua estatura e também por trajar uma camisa amarela que
lembrava o sol da Geórgia, sua terra natal.
63
SCHNAIDERMAN, op. cit., p.40.
67
Naturalmente, a gênese do futurismo russo está colocada por Maiakóvski de
maneira sintética e romântica. Na realidade, a história do surgimento do futurismo russo
é mais complexa e está atrelada a um movimento de contestação e renovação que
marcou o final do século XIX e início do século XX tendo chegado à radicalização com
o cubo-futurismo que foi o mais revolucionário de todos os movimentos daquele
período, uma revolução que não se limitou somente às questões estéticas, abarcando
também os problemas políticos e sociais.
De acordo com Jean Michel Palmier, na Rússia, no início do século XX,
várias escolas poéticas disputavam o fervor do público. Dentre elas, as que mais se
destacaram foram o simbolismo, o acmeísmo, o imagismo e o futurismo. Assim, ao lado
dos acontecimentos que marcaram profundamente o país tanto no que se refere à
política, bem como a sociedade e economia, também a cultura russa passou por um
amplo processo de transformação inaugurando, junto com o novo século, uma nova era
também no campo cultural.
O simbolismo se afirma na Rússia entre 1890 e 1900 quando três cadernos
foram intitulados de simbolistas russos, cuja inspiração vinha de Mallarmé e
Meterlinck. Dentre os artigos publicados havia um de Briussov que propunha um
programa teórico à poesia russa que devia seguir a escola de Baudelaire, de Verlaine e
de Verhaeran. Embora o movimento simbolista russo tenha tomado o nome de
empréstimo ao movimento francês os dois apresentam diferenças significativas.
Enquanto o movimento francês não passou de escola poética, na Rússia ele é dotado de
muitas especificidades. Os simbolistas russos, para muito além dos limites da poesia,
ansiavam em ser uma mística e uma filosofia de vida.
O simbolismo revolucionou o conjunto da poesia russa entre 1890 e
1910; deu mesmo um estilo particular a toda a cultura eslava, influenciando quase
todas as artes. Em França, o simbolismo não foi mais do que uma nova escola
poética, na Rússia tornou-se uma filosofia e uma concepção de vida. Tudo foi
transformado, como diz Baudelaire numa floresta de símbolos: as flores, os
animais. Deus e os homens. Um mesmo impulso místico e metafísico caracteriza
toda esta inspiração
64
.
64
PALMIER, Jean Michel. Lenine A Arte e a Revolução: ensaio sobre a estética marxista. Lisboa:
Moraes Editores, 1976. p.11.
68
Para os simbolistas russos o poeta tem qualquer coisa do profeta e do mago,
e assim sua poesia passa a se constituir em um verdadeiro culto que se presta a Deus e
ao Universo enigmático; um oceano de mensagens e sinais que precisam ser
interpretados. A poesia simbolista tem uma característica religiosa muito marcante, mas
além da religião é também musical. A linguagem devia ser dotada também de um
caráter musical pois somente a música pode exprimir o inexprimível. Os sentidos, para
os simbolistas, remetem para correspondências misteriosas entre as palavras e as coisas
e as imagens devem exprimir o fundo da consciência, enfeitiçar, arrastar o espírito para
o sonho.
Nesse sentido, a poesia simbolista procura libertar as palavras de seu sentido
habitual propondo torná-las independentes de toda e qualquer lei semântica e sintática.
Esta proposta de libertação da palavra foi radicalizada pelos futuristas russos,
especialmente Khiébnikov e Maiakóvski que defendiam a abolição dos acentos, da
pontuação a liberdade de criação de palavras, de aumento do léxico gramatical e até
mesmo de uma nova linguagem transmental, que foi denominada de Zaúm
65
.
Além de uma forte tendência religiosa e musical, os simbolistas
apresentavam como princípios mais marcantes: a divisão do conhecimento em exterior e
interior; na poesia a fonte do conhecimento intuitivo e no símbolo o meio de a
alcançar; opõe ao raciocínio lógico a associação simbólica; considera o símbolo como
um intermediário entre o mundo material e o mundo da idéia; o poeta é tido como um
mago portador de segredos sobrenaturais.
Palmier afirma que a teoria simbolista é vaga por que é feita de uma ntese
sumária dos mais diversos materiais filosóficos, colhidos muitas vezes em
Schopenhauer e em Nietzsche.
Schopenhauer dá-lhes a idéia de que a intuição é superior ao
conhecimento racional, de que a música é a primeira das artes, a mais apta a
reproduzir a vontade da natureza, e, enfim, de que a arte exerce uma influência
libertadora em relação ao sofrimento e aos desejos. Quanto a Nietzsche, torna-se
popular na Rússia em 1892-1893, após a publicação de artigos sobre a sua obra
em Voprossy psikhóguit i filosofii. É a Nietzsche que os simbloista vão buscar a
aversão ao ‘burguês’ que os confirma no seu individualismo exacerbado
66
.
65
A princípio, acreditava-se que esta nova linguagem que os futuristas criaram não tinha nenhum nexo,
no entanto, algumas pesquisas posteriores confirmaram que a linguagem Zaúm tinha origem no antigo
vocabulário russo.
66
PALMIER, op. cit. P12.
69
É interessante observar que a mesma aversão que os simbolistas nutriam em
relação aos burgueses, também se estendia às massas, pois os representantes do
simbolismo russo praticamente não se interessavam pela problemática social, aliás este
foi um fator determinante para o esfacelamento do movimento simbolista.
Especialmente após a Revolução de 1905
67
, quase todos os simbolistas sentiram-se
tocados pelos acontecimentos daquele período. No entanto, enquanto a maioria
mergulhou em um pessimismo profundo, regressando ao misticismo, apenas alguns
representantes do movimento simbolista, como Blok e Briussov aproximaram-se do
proletariado.
As questões políticas que dividiram os simbolistas por volta de 1905,
fizeram com que o movimento ficasse enfraquecido e sua desagregação aconteceria
pouco tempo depois, em torno de 1910, quando foi duramente criticado por outras
escolas, como o acmeísmo e o futurismo.
O acmeísmo constituiu-se em 1912 e teve como principais expoentes os
poetas Gumilev, Mandelstam e Akhmatova. Embora este movimento, que também ficou
conhecido por adamismo, tenha suas origens no movimento simbolista, ele revoltou-se
contra muitos princípios apregoados pelo seu predecessor, tais como a sua obscuridade
e o seu crescente hermetismo e, sobretudo, a paixão pelo desconhecido. Para os
acmeístas a beleza poética está no que ela realmente apresenta de belo, como a rosa que
se tornou bela novamente por si mesma, por causa das pétalas, do perfume, da cor, e não
por analogia com o amor místico ou coisa parecida, como afirma o adamista Gumilev:
Os acmeístas querem reconduzir a poesia à vida, ao homem, à
natureza, o que os leva a um estilo naturalista, ao realismo, às imagens concretas.
Amam as palavras densas de matérias, preferem os substantivos aos verbos, a
forma plástica `a musicalidade. Regressam aos estilos da linguagem falada. No
entanto, não negam o mundo místico, somente não fazem dele o centro do seu
pensamento, do qual, contudo, aquele não está ausente. São continuadores do
simbolismo também no domínio da forma, conservam o símbolo e o verso livre
68
.
67
Esta revolução tem grande importância no calendário revolucionário da Rússia. Os trabalhadores
ficaram insatisfeitos com a situação do país, especialmente após a desastrosa campanha na guerra contra o
Japão entre 1904-5 quando o exército russo sofreu uma dura derrota. A situação miserável da população
agravou-se ainda mais. Assim, um grande número de trabalhadores decidiu entregar um Manifesto ao
czar Nicolau II. A manifestação foi reprimida à bala pelo exército. A partir dos acontecimentos de 1905 a
insatisfação contra o regime czarista generalizou-se, preparando o caminho para a tomada definitiva do
poder em outubro de 1917.
68
GUMILEV apud PALMIER (1976).
70
Assim como os simbolistas, também os acmeístas mantiveram-se afastados
dos acontecimentos sociais, e mesmo na poesia não pretendiam promover nenhuma
revolução. Seu objetivo era muito mais reformar do que revolucionar. Este,
incontestavelmente, foi um dos pontos que mais particularizaram os futuristas russos
pois enquanto os outros movimentos poéticos, contemporâneos seus, não exerceram
quase nenhum papel de engajamento político, os futuristas russos, em sua maioria,
fizeram de seus trabalhos uma verdadeira e poderosa arma política. Para além da
revolução política da qual participaram ativa e decididamente os cubo-futuristas
radicalizaram a forma e a estética da arte russa.
É inegável que um dos mais atuantes artistas russos que se empenharam
nestas revoluções, tanto estética quanto política, foi Maiakóvski, especialmente, depois
do seu contato com David Burliuk e Kliebnikov considerados por ele seus grandes
mestres.
Pouco tempo depois que Maiakóvski conheceu Burliuk ele leu alguns
poemas para o futurista afirmando que haviam sido escritos por um amigo.
Naturalmente, Burliuk sabia que os poemas eram do próprio Maiakóvski e o disse que
ele era um poeta genial. A partir de então, o pai do futurismo russo começou a dar-lhe
algum dinheiro para que ele pudesse escrever em paz.
O futurismo russo passou a ter notoriedade por volta de 1910; ele articulou-
se em dois ramos principais: o ego-futurismo e o cubo-futurismo. O primeiro, que não
tinha quase nada a ver com o cubo-futurismo, foi fundado por Igor Sievieriánin e como
sugere o próprio prefixo retomava fórmulas decadentistas já esgotadas, ou seja, os
poemas ego-futuristas eram amaneirados, carregados de vocábulos estrangeiros. Sua
cultura poética se abeberava nas águas do final do século XIX e seu repertório estava
relacionado a temas fátuos e pretensiosos, e pequenas histórias de folhetins
sentimentais. Não obstante, seus versos eram dotados de uma musicalidade sugestiva
particularmente quando desejava exprimir o ritmo dos automóveis.
Segundo Ângelo Maria Ripellino, os cubo-futuristas surgiram em abril de
1910 com o almanaque Sadók sudiéi (O Viveiro dos árbitros) redigido por Vielímir
Khliébnikov, os irmãos David e Nicolai Burliuk, além de Elena Guro e Vassíli
Kamienski. Ripellino afirma que a estréia de Vladimir Maiakóvski no cenário da poesia
russa infundiu vigor e impetuosidade ao movimento futurista.
71
Ao final de 1912, os cubo-futuristas redigiram o seu primeiro manifesto:
Uma bofetada no gosto do público que foi apresentado por Maiakóvski, Khliébnikov,
Burliuk e Krutchônik, e estava repleto de ácidas críticas a Dostoiévski, Tolstói e
Puchkin, aos clássicos da literatura russa e a tudo que estivesse atrelado ao passado. Um
dos pontos principais deste documento foi a defesa feita pelo grupo de que o poeta teria
direito e liberdade para aumentar o volume do vocabulário com palavras arbitrárias e
derivadas. A poesia não precisava ficar presa às regras rígidas da estética realista-
naturalista.
Em conformidade com Palmier, o mais empenhado nas causas políticas
dentre todos os grupos artísticos foi sem dúvida o cubo-futurismo que surgiu em meio
ao processo revolucionário russo, chamando a atenção para as suas origens além dos
pontos de concordância e divergência entre eles, refere-se da seguinte maneira a
respeito das primeiras atuações destes excêntricos artistas russos:
As suas primeiras manifestações são violentas, agressivas: visam
chocar os burgueses a quem detestam. Os poemas são armas, mas também
disfarces. Querem multiplicar as acrobacias verbais, o gosto do sonho e do
fantástico, a libertação total da imaginação, desarticulando o verso russo e
criando novos ritmos, com a repetição de sílabas, o emprego do calão, para
traduzir esta cidade nova. A boemia burguesa tornará sua a palavra de
Maiakóvski: Outubro foi a sua revolução.
69
Outra referência importantíssima para se pensar as questões culturais russas
à época da revolução Angelo Maria Ripellino. Segundo o autor, os cubo-futuristas
construíram de fato as próprias líricas como empastos cromáticos e relações de volumes
a partir da influência que receberam da pintura cubista.
Pela rudeza arrojada do verso, pela superposição de planos
semânticos opostos, pela consistência tangível dos objetos, que parecem furar com
pontas agudas o tecido verbal, as páginas destes poetas derivam inteiramente da
nova pintura. A poesia não é mais um espelho de reflexos fulgurante, uma
distensão polida, como na época do simbolismo, mas uma escabrosa seqüência de
torções e desmoronamentos
70
.
A poesia cubo-futurista, tomando a pintura cubista como modelo, adquiriu
uma textura concreta e rugosa. O verso rebuscado dos simbolistas, libertou-se de sua
inércia melódica e, enriquecendo-se de elementos mímicos, de um extremo rigor
69
PALMIER, op. cit. P. 23.
70
RIPELLINO, op. Cit. P.32-33.
72
acústico, fez-se, a partir do cubo-futurismo, nodoso, desigual, como uma superfície
remendada.
As técnicas da pintura cubista correspondem, na literatura, à fragmentação
da realidade, à superposição e simultaneidade de planos como por exemplo a mistura
de assuntos, espaços e tempos diferentes. Dessa forma, a literatura cubista apresenta
características como ilogismo, humor, antiintelectualismo, simultaneidade, linguagem
predominantemente nominal e mais ou menos caótica.
Os futuristas russos se inspiraram em grande parte no cubismo, tendo levado
muitas de suas proposições, tais como a libertação das palavras ao total radicalismo,
desprendendo-a de qualquer regra.
Um dos pontos principais da estética futurista diz respeito às pesquisas e
experiências que os artistas desenvolveram em torno da teoria da palavra em seu
aspecto sonoro como o único material e tema da poesia. A base desta teoria encontrava-
se no conceito cubista de artes visuais. Para os futuristas russos, o elemento sonoro é
igualado aos elementos pictóricos, figuras e linhas geométricas, tornando-se, assim, um
fenômeno independente a ser experimentado e fruído como a única poesia pura e
verdadeira.
A estreita conexão entre pintura e poesia foi salientada pelo fato de
que todas as coletâneas de poesia futurista apareceram com uma abundância de
ilustrações e foram intituladas com freqüência de coletâneas de ‘versos e
desenhos’. O desenho não pretendia ser simplesmente um elemento explanatório
ou ornamenta; era uma parte intergral da obra poética, juntamente com a palavra,
por causa da orientação gráfica futurista. O signo gráfico era na verdade um
aspecto da palavra registrada. Aqui reside a explicação de tanta preocupação e
tantas discussões a respeito da pontuação. Publicando suas edições em papel de
parede ou em forma litográfica, os futuristas tentaram também acentuar o lado
técnico-formal da poesia: isso era parte da ‘forma difícil, cuja finalidade era
forçar a atenção do observador. Em geral, tudo que dizia respeito ao processo de
escrever ou qualquer aspecto de sua forma estava agora integrado no plano
‘temático’ da poesia.
71
Dentro dessa perspectiva, os futuristas russos empreenderam uma árdua
luta em defesa da “palavra pura”, sem a obrigação de estar relacionada a qualquer
função referencial ou simbólica, no que diz respeito ao objeto. Nesse sentido, tanto a
arte verbal quanto a arte visual não tinham a obrigação de imitar a natureza pela
71
POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 106.
73
descrição de seus objetos e o mundo poético tornou-se válido por si só, sem estar
atrelado à necessidade de simbolizar algo.
A defesa da libertação das palavras, desobrigando-as de simbolizar algo,
assim como a conjugação de jogos sonoros e jogos de imagens, numa tentativa de
relacionar de modo inovador o som, a imagem e o sentido de um texto poético, podem
ser claramente percebidos no poema De Rua em Rua escrito por Maiakóvski ainda em
1913, no começo de sua empreitada como “construtor da palavra”
DE RUA EM RUA
Ru
as
As
ru -
gas dos
dogues
dos
anos
sona
dos.
Nos cavalos de ferro
das janelas das casas que correm
saltaram os primeiros cubos.
Cisnes de pescoços-campanários,
torcei-vos nos fios do telégrafo!
No céu se grava o guache das girafas,
desaviva a ferrugem dos penachos.
Brilhante com truta
o filho
da leiva sem lavra.
O mágico
puxa
da goela do bonde os trilhos,
oculto pelo mostrador da torre.
Estamos ganhos.
Banhos.
Duchas.
Elevador.
A dor leva o corpete da alma.
Ao corpo queimam os dedos.
Grites ou não grites
‘Eu não queria!’ –
ao corte
queimam
os medos.
O vento farpado
arranca
da chaminé
um farrapo de lã esfumaçada.
O lampião calvo
74
despe voluptuosamente
da rua
uma meia preta
72
.
Os futuristas aspiravam por categorias lingüísticas que expressassem na
poesia exatamente os mesmos elementos que tinham sido expressos na pintura cubista
pelas categorias da forma geométrica, espaço e cor.
Em lugar do vocalismo, da liquidez dos simbolistas, os novos poetas
entremeavam seus versos de consoantes gratejantes, formas estridentes, roucas
aliterações. As palavras, que anteriormente estavam submersas no fluir do canto,
tornaram-se quase que tangíveis, surgindo como escolhos no leito de um rio
ressecado.
73
Para além da proposta revolucionária de mudança na estética da cultura
russa, deixando para trás todo o misticismo e o sentimentalismo barato, características
dos outros movimentos poéticos, os cubo-futuristas, especialmente Maiakóvski se
empenharam também na efetivação de uma grande mudança nos quadros políticos do
país. A poesia atrelava-se ao sofrimento do cotidiano, aos inúmeros problemas
enfrentados pela população russa, à imensa revolta que abalava todo o país, ao mundo
novo, à realização dos sonhos que emergiam dos escombros, enfim, estava
indissociavelmente ligada à Revolução, às transformações que o país estava vivendo
desde o início do século XX.
Poeta boêmio, futurista anarquizante, é um dos raros artistas que
aceita completamente a Revolução e se põe incondicionalmente ao seu serviço.
Desde a infância, anima Maiakóvski um profundo sentimento de revolta. É esse
espírito de revolta que o leva a participar na agitação clandestina e a juntar-se
aos futuristas e às suas provocações antiburguesas
74
.
De toda aquela ebulição, que caracterizou a Rússia no começo do século
XX, esperava-se que um novo mundo pudesse ser construído. A luta política do poeta
maior da Revolução, Vladimir Maiakóvski, tinha este propósito. Não era somente uma
arte de propaganda e agitação, mas também, e acima de tudo, um projeto de vida, era
um sonho acalentado muito tempo e que, acreditava-se, possível. O próprio
Maiakóvski nunca abandonou suas convicções, ele morreu acreditando que uma
sociedade mais justa ainda poderia ser implantada mesmo que num futuro distante.
72
Poema extraído do livro Maiakóvski. Poemas de Boris Schnaiderman.
73
RIPELLINO, op. cit, p. 35-36.
75
Com a Revolução, em face do desmoronamento de uma determinada forma
de vida, vislumbra-se a possibilidade de ver surgir na Rússia uma nova realidade
erguida a partir deste momento de convulsão. È neste contexto que ganha muita
importância a atuação de milhões de pessoas, dentre eles trabalhadores organizados, ou
não, intelectuais, artistas que acreditavam na possibilidade de nascimento de uma nova
sociedade.
A vida privada parece ter deixado de existir; o novo espaço é o
espaço da cidade, da rua, da fábrica onde se trabalha, combate e vive em comum.
É que começam as manifestações, as greves, os combates. Os próprios poetas
parecem arrebatados pelo furacão e os poemas que eles escrevem tentam seguir a
Revolução em marcha.
75
No período da revolução russa havia no país um grande número de poetas
que se proclamavam revolucionários. No entanto, seus trabalhos não ultrapassavam os
limites da propaganda. Não obstante, em meio tantos, quatro nomes sobressaíram:
Blok, Pasternak, Essenine e Maiakóvski o mais violento, impaciente, voluntarioso... , o
mais genial de todos eles.
Para Maiakóvski, a Revolução representava um novo período, no qual todo
o passado deveria ser sepultado, e em seu lugar pudesse surgir uma nova sociedade e
um novo homem com sentimentos, idéias, desejos, enfim, com valores diferentes. É
certo que a tão sonhada revolução não concretizou os seus sonhos e de tantos outros
que depositaram suas esperanças na Revolução de Outubro, o que não impediu, no
entanto, que o poeta continuasse acreditando no socialismo.
A revolução socialista era um dos principais temas das obras desses artistas,
especialmente na vasta e riquíssima obra de Maiakóvski que escreveu peças de teatro,
inúmeros poemas, roteiros de cinema, cartazes, nos quais ele fazia a defesa intransigente
de uma sociedade mais justa sempre denunciando as injustiças sociais e chamando a
atenção de todos para a necessidade de se envolverem na defesa de uma nova
sociedade.
Maiakóvski, juntamente com outros futuristas russos, saía às ruas vestindo-
se de forma extravagante com roupas bastante coloridas e com as faces pintadas. Todos
eles dotados de uma forte teatralidade, aliás uma característica marcante de muitos
74
PALMIER, op. Cit., p.132.
75
PALMIER, op. cit. P.27.
76
artistas de vanguarda que agiam dessa maneira para chamar a atenção e chocar as
pessoas. Estes artistas reuniam-se nos bares e cafés onde liam seus poemas que
atacavam veementemente os burgueses. A relação com o público nem sempre foi
tranqüila, precisando, às vezes, da intervenção da polícia.
Nesses poemas Maiakóvski chamava a atenção dos burgueses para o fato de
que sua vida de conforto e abundância, enquanto a grande maioria da população estava
na miséria, tinha os dias contados. Eles seriam assolados por um grande movimento que
promoveria mudanças profundas na sociedade, colocando fim àquele longo período de
privilégios concedidos à burguesia.
A VOCÊS!
Vocês que vão de orgia em orgia, vocês
Que têm mornos bidês e W.C.s,
Não se envergonham ao ler os noticiários
Sobre a cruz de São Jorge nos diários?
Sabem vocês, inúteis, diletantes
Que só pensam encher a pança e o cofre,
Que talvez uma bomba neste instante
Arranca as pernas ao tenente Pietrov?...
E se ele, conduzido ao matadouro,
Pudesse vislumbrar, banhado em sangue,
Como vocês, lábios untados de gordura,
Lúbricos trauteiam Sievieriânin!
Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos,
Dar a vida por suas bacanais?
Mil vezes antes no bar às putas
Ficar servindo suco de ananás
76
.
Desde o começo século XX, muitos artistas russos vinham contestando a
arte burguesa e defendendo uma ampliação do campo de abordagens das artes. Este
movimento teve início dentro das artes plásticas e, posteriormente, foi absorvido por
outras modalidades artísticas.
Os cubo-futuristas defendiam uma proposta radical de mudanças a serem
operadas nas artes tanto no que se refere ao conteúdo quanto à forma. Mudanças essas
que pudessem possibilitar uma ampliação dos horizontes de suas abordagens que
deveriam incorporar novas palavras e temas, recolhidos, especialmente, do cotidiano.
Era uma proposta de aumento no léxico gramatical criando e misturando palavras que a
77
princípio não tinham nexo, era a defesa irrestrita de liberdade do artista. Suas criações
não estavam sujeitas a nenhuma regra que não fosse a da liberdade.
Em 1917, a parcela mais militante dos artistas e intelectuais russos, adere
inconteste à revolução. Eles saíam às ruas expondo a arte de uma vanguarda inquieta e
perscrutadora. Os cubo-futuristas vinham desmontando há algum tempo os princípios
da arte tradicional, produzindo uma literatura inventiva e formalista, levada às últimas
conseqüências, buscando uma nova linguagem abstrata. Nesses moldes, a poesia
aproximava-se muito mais das artes plásticas do que dos modelos tradicionais de
poética literária.
Os traços distintivos do conceito futurista de poesia foram obviamente
transplantados da ‘arte sem objeto’ dos cubistas. Os futuristas aspiravam por
categorias lingüísticas que expressassem, na poesia, exatamente os mesmos
elementos que tinham sido expressos na pintura cubista pelas categorias da forma
geométrica, espaço e cor
77
.
Os temas das artes também passam por uma profunda revisão já que, a partir
de então, os seus propósitos não se restringiam a acalentar almas românticas, e agradar a
burguesia. Severas críticas são direcionadas à cultura burguesa, a cultura clássica. Era
uma forma totalmente nova de conceber as artes que passavam a se constituir também
em armas com as quais lutavam os artistas.
Não!
Hoje também
a rima do poeta
é carícia
slogan
açoite
baioneta.
78
Os artistas de vanguarda na Rússia, especialmente, Vladimir Maiakóvski,
acolheram muito rapidamente os propósitos da revolução. que, na perspectiva dos
vanguardistas, seria como um furacão que levaria para bem longe toda a velharia
76
Poema escrito em 1915, extraído do livro “Maiakóvski Poemas” de Boris Schanaiderman. P.74
77
Krystyna Pomorska. Formalismo e Futurismo. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 103.
78
Fragmento do poema “Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas” de Maiakóvski extraído do livro
Maiakóvski Poemas de Boris Schnaiderman,
78
retórica concernente à arte burguesa, abrindo caminho para a consolidação de uma nova
arte mais popular no sentido de estar ligada às tradições russas, uma arte que falasse
diretamente às massas, representando um novo período da história do país.
Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
Se eu falo
“A”
este “a”
é uma trombeta-alarma para a humanidade.
Se eu falo
“B”
é uma nova bomba na batalha do homem.
79
Maiakóvski, diferente dos clássicos para quem era importante o significado
dos hinos e orações de Púchkin e Tolstói, apegou-se a trechos de cânticos e orações em
sua literalidade como fragmentos vivos do cotidiano, a par da rua, da casa e de
quaisquer palavras da linguagem coloquial. Certamente, esses acervos de uma arte
“antiga” sugeriam ao artista a possibilidade de uma construção parodística de seus
poemas.
Os recursos poéticos desenvolvidos na poesia russa, pelas vanguardas do
século XX, permitiam aproveitar, de forma mais cabal e sistemática, as ricas
possibilidades de orquestração da língua russa que eram percebidas e utilizadas há
séculos. Os futuristas, em especial Maiakóvski e Khliébnikov, contribuíram
incomensuravelmente para a ampliação do vocabulário russo.
É interessante observar que o jogo de palavras, baseado na paranomásia, é
freqüente, tanto nos provérbios, como na obra dos poetas russos de vanguarda. Este é
um dos fatores importantes que comprovam que, ao contrário do que muitos tentaram
79
mostrar, estes artistas estão inseridos na tradição popular russa no que ela tinha de mais
autêntico.
Maiakóvski reivindica o direito de inventar palavras, de utilizar a linguagem
das ruas, de trazer o mundo urbano e cotidiano para o universo da poesia. O que se via
era uma defesa intransigente da libertação da linguagem poética. Com isso, o poema se
enriquece incorporando os ritmos da linguagem coloquial e adquirindo um ondular
inusitado na linguagem escrita.
A concepção de Maiakóvski do escritor e poeta como “trabalhadores da
palavra” e “organizadores da linguagem”, e da poesia como uma forma de produção
dificílima e complexa, porém, produção, atinge o cerne da visão moderna do poeta e do
artista.
Diante da necessidade de buscar aquilo que pudesse romper com a
linguagem redundante e previsível surge, em Maiakóvski, a exaltação das consoantes
que rangem. Nesse sentido, a poesia deixa de estar atrelada à busca das harmonias e
assonâncias, para aceitar, conscientemente, a dissonância e o fragor. Esse apelo ao
dissonante e ao desarmônico vem ao encontro das exigências máximas de toda a arte
moderna, demonstrando, assim, uma estreita ligação do artista russo com os
movimentos de vanguarda daquele período.
80
Assim, se explica o fato de esses artistas que faziam a defesa do novo,
voltarem à tradição, pois se não fosse dessa maneira, dificilmente conseguiriam chegar
até as massas, trabalhadores que na sua quase totalidade eram analfabetos. Nesse
sentido, eles buscavam fragmentos de uma nova cultura, essencialmente, popular.
Ao lado de temas como o amor, a religião e o suicídio, o tema mais
recorrente nos trabalhos destes artistas era a revolução. Suas obras eram na realidade a
arma mais eficaz que podiam lançar mão para a derrocada do regime czarista, além de
atacar a cultura burguesa e propor uma nova cultura que estivesse em consonância com
os novos tempos e também para levar à população o ideário socialista.
O Partido Bolchevique apropriou-se, muito sabiamente, do desejo de
mudança desses artistas engajados na causa revolucionária para mobilizar as massas
garantindo, assim, a vitória da Revolução. Entretanto, quando a revolução estava
consolidada esses artistas, que não mediram esforços na defesa da revolução,
79
MAIAKÓVSKI. “De ‘V Internacional’” Cf, Schnaiderman, Maiakóvski: Poemas. p.94.
80
começaram a sofrer a interferência do Partido que controlava muito de perto a produção
artístico-cultural russa.
O movimento do processo revolucionário russo, marcado por avanços e
retrocessos seja na política ou na cultura, pode ser apreendido tendo como referência
obras de Maiakóvski, especialmente a partir de sua dramaturgia como a peça Mistério-
Bufo escrita entre 1917e 1918 e Os Banhos um de seus últimos trabalhos concebido
pouco antes de seu trágico fim, em 1930.
Assim como grande parte da população russa que via na revolução a
possibilidade de se libertar das amarras de um governo autocrata, os cubo-futuristas
também buscavam a libertação da poesia dos grilhões que a prendiam à tradição. A
proposta era romper com a estética que foi denominada por Maiakóvski de “bonitinha”.
Não obstante, para além da preocupação com as questões relativas à forma,
com a emergência e a defesa de uma nova estética os artistas engajados na revolução
utilizaram seus trabalhos para arregimentar e doutrinar multidões em defesa do
socialismo. Um trabalho, como foi salientado, que a princípio recebeu total apoio do
partido. Essa mobilização e doutrinação das massas têm uma importância muito grande
se considerarmos que naquele momento a esmagadora maioria da população era
analfabeta.
Nesse sentido, se a função das artes naquele momento era a de mobilizar
multidões ela teria que ir para as ruas, juntar-se às massas. Foi o que realmente
aconteceu, especialmente, no caso do teatro. Um teatro que tinha uma base
improvisacional, ou seja, não havia uma dramaturgia pronta e todo o processo de
criação era coletivo. Ao longo do processo revolucionário foram encenados muitos
espetáculos grandiosos que contavam com a participação de um grande contingente de
pessoas que embora não fossem atores representavam um papel. É interessante observar
que muitas pessoas que trabalhavam nas peças haviam vivido os episódios que estavam
sendo encenados. Portanto, as fronteiras que separavam a arte e a vida real naquele
momento foram transpostas na Rússia.
81
80
A consonância do pensamento e da arte de Maiakóvski com outros artistas também de vanguarda, como
Breton, Piscator, Brecht, assim como integrantes do Dadaísmo em vários pontos da Europa foi discutida
por Boris Schnaiderman em A Poética de Maiakóvski (São Paulo: Perspectiva, 1984).
81
Um exemplo desses espetáculos grandiosos, foi a Tomada do Palácio de Inverno. A encenação se
passou no próprio local que havia acontecido o episódio histórico, ou seja, em frente ao Palácio. Este
espetáculo contou com a participação de cerca de seis mil atores, sob a direção de um coletivo de
diretores. A encenação foi assistida por uma multidão de cerca de 150.000 pessoas.
81
82
CAPÍTULO III
A REVOLUÇÃO RUSSA À LUZ DE OBRAS DO POETA
REVOLUCIONÁRIO
Se isso é obra de nossas mãos,
então que porta diante de nós não se abrirá?
Nós – somos arquitetos das terras,
da vida dramaturgos,
dos planetas somos decoradores,
nós – somos taumaturgos.
Ataremos raios como tufos de vassouras,
para os nimbos dos céus com eletricidade varrer.
Nós os rios dos mundos no mel derramaremos,
as ruas terrestres com estrelas pavimentaremos.
Escave! Bem fundo!
Martele!
Serre!
Fure!
Todos, hurra!
A tudo, hurra!
Adoradores do sol no templo do mundo.
Mostraremos como cantar sabemos.
Maiakóvski
Reforçando a tese do engajamento de Maiakóvski em defesa da Revolução
Socialista que, para ele, transformaria o mundo e o homem; a sociedade tal como os
sentimentos, realizar os sonhos unindo a poesia à modernidade, não podendo dissociar,
portanto, a arte da política, ou sua vida e seu trabalho, e levando em conta que as
manifestações artísticas e/ou culturais são representações de um determinado período,
são portadoras de história, na medida em que trazem muitos registros de sua época, é
que defendemos a possibilidade de conhecer a história da Revolução Russa de 1917, sob
uma nova ótica, a partir do estudo de duas peças teatrais que foram escritas em
momentos muito importantes na vida de Maiakóvski: Mistério-Bufo, concebida no calor
da Revolução de Outubro, e Os Banhos peça escrita pouco antes de se suicidar, em
abril de 1930
82
.
82
Rosangela Patriota apresenta uma discussão bastante pertinente a respeito da não dissociação do artista
com o seu tempo, não podendo dissociar, portanto, vida e obra do artista. Essa abalizada discussão
encontra-se em um artigo, já citado, da professora para a Revista História, vol. 13, 1994.
83
É repleto de amor e de ódio, de orgulho e de timidez, que Maiakóvski
vai encontrar a Revolução de Outubro e reconhecer-se nela. A sua sensibilidade,
que estava longe de vergar-se a todas as exigências do futurismo, não podia deixar
de derrubar todas as regras estéticas. O ‘eterno ferido de amor’ que cantava a
paixão, a tristeza, o orgulho, o ciúme, que se erguia sozinho contra todo o
universo, vai tornar-se porta-voz dos pobres, dos operários, dos famintos, a quem
dá as suas palavras.
83
Ficava bastante visível na obra de Maiakóvski a defesa que ele fazia dos
menos privilegiados, era, essencialmente, para eles que o poeta escrevia. Em todo o
conjunto de sua riquíssima obra encontra-se, no centro de suas preocupações, a
necessidade de revolucionar a sociedade, para livrar da opressão, da miséria e da
exploração a que eram submetidos a maioria da população russa sob os auspícios do
regime czarista. Ao lado de temas como o amor e o suicídio, que sempre o rondava, a
defesa intransigente da revolução socialista foi um dos assuntos mais tratados pelo
poeta. Percebe-se ao lado de uma proposta revolucionária no campo da estética, uma
não menos revolucionária proposta de mudanças no âmbito da sociedade. Uma questão
nunca esteve desvinculada da outra, na vida e na obra do maior poeta da Revolução
Russa.
O próprio Maiakóvski assim se pronunciou a respeito da relação entre o
conteúdo e a forma, em um debate no qual o tema estava em discussão a 13 de março de
1925:
O partido colocou em pauta o problema da arte, e este debate é
oportuno.
O problema do método formal não pode ser resolvido
academicamente. Trata-se do problema da arte em geral, da Lef.
Os problemas da arte estão colocados atualmente no campo da
execução prática, e a eles se liga a questão do método formal. O método formal e o
método sociológico são a mesma coisa, e fora disso não existe nenhum método
formal.
Não se pode contrapor o método sociológico ao formal, porque não
são dois métodos mas um só: o método formal continua sociológico. Onde acaba a
pergunta “porquê?” e surge o “como?”, termina a tarefa do método sociológico e
em seu lugar surge o método formal, com todas as suas armas.
É assim em qualquer ramo da produção. Se a moda para este ou
aquele modelo de calçado pode ser explicada por razões sociais, para cosê-los é
preciso habilidade, mestria, o conhecimento de determinados processos. É preciso
conhecer o método de elaboração do material, o método de sua utilização. Tal
conhecimento é indispensável também em arte, que é antes de mais nada um ofício,
e é justamente para estudar este ofício que o método formal nos é necessário.
O poeta orienta sozinho os seus canhões. No trabalho poético, o
social e o formal estão unidos.
83
PALMIER, op. cit., p. 147.
84
O companheiro marxista, que se dedica à arte, deve ter
obrigatoriamente conhecimentos formais. Por outro lado, o companheiro
formalista, que estuda o aspecto formal da arte, deve conhecer firmemente e ter em
vista fatores sociais.
Pecam ambas as partes, quando separam um do outro. O juízo
correto aparece unicamente quando se compreende sua relação mútua.
Eu tenho sempre prontas minhas objeções contra esta antítese
continuamente formulada.
Uma obra não se torna revolucionária unicamente pela sua novidade
formal. Uma série de fatos, o estudo de seu fundamento social, lhe imprime força.
Mas, a par do estudo sociológico, existe o estudo do aspecto formal.
Isto não contradiz o marxismo, mas sim a vulgarização do marxismo,
e contra esta nós lutamos e continuaremos a lutar
84
.
Muito se tem discutido a respeito da relação entre as questões formais e o
contexto histórico, ou seja, da inserção de questões políticas nas artes, algo muito caro
ao poeta maior da Revolução de Outubro. Alguns críticos tentaram dissociar a questão
estética da atuação política nos trabalhos de Maiakóvski, na tentativa de esvaziá-lo de
uma preocupação estética, que o seu engajamento em defesa das causas sociais é
indiscutível. No entanto, nesta intervenção de 1925 o poeta não deixou nenhuma dúvida
a respeito deste assunto. Fica bastante claro em sua exposição que não pode dissociar as
pesquisas formais de seu contexto histórico, que se estabelece uma relação dialética,
onde uma não pode ser desvinculada da outra, e que as pesquisas relativas à forma de
maneira isolada, por si só não promovem nenhuma revolução.
Maiakóvski, certamente, foi alguém que pôde falar com toda a tranqüilidade
do mundo a este respeito que a história sempre faria a sua defesa, pois ele nunca
dissociou suas pesquisas artísticas de sua atuação política; as duas coisas sempre
estiveram imbricadas em sua riquíssima obra. A sua militância política nunca impediu
que ele estivesse atento às questões formais, isto por que, para o poeta, as duas coisas
eram indissociáveis, muito embora tenha sofrido tantas críticas a este respeito.
O poeta, ao lado dessa e de tantas outras questões, também havia
defendido, em várias oportunidades, a necessidade de o teatro voltar a ser espetáculo, e
a sua poética teatral foi sendo desenvolvida neste sentido. O teatro, embora tivesse
atrelado às questões políticas, não poderia deixar de ser uma alegre arena de
publicidade; um espaço no qual pudesse se fazer experimentações, experiências com o
objetivo de criação de uma nova estética teatral, que se distanciasse daquela que vinha
prevalecendo tanto tempo no país. Para tanto, Maiakóvski contou com as
84
CF , SCHNAIDERMAN Boris. A Poética de Maiakóvski. (1971).
85
substanciais contribuições de artistas que também caminhavam nesta direção, como os
construtivistas.
Indubitavelmente, quem mais entendeu as propostas revolucionárias do
poeta futurista russo foi Meyerhold, um dos maiores, e mais importantes diretores de
teatro da Rússia, que trabalhou em parceria com Maiakóvski em várias montagens,
sendo que o primeiro trabalho desenvolvido pelos dois foi a encenação de Mistério-
Bufo. Assim como Maiakóvski, Meyerhold era revolucionário em suas propostas
estéticas, pesquisando novas possibilidades no campo teatral, reinventando a
teatralidade. Além das pesquisas formais, Meyerhold também atuou, com sua arte, em
defesa da revolução aderindo incontestavelmente ao comunismo.
Meyerhold ingressou como ator no Teatro de Arte de Moscou sob a direção
de Nemirovich Danchenko e Constantin Stanislavski a quem admirava muito. No
entanto, seu espírito inquieto, perscrutador fez com que ele muito rapidamente rompesse
com o Teatro de Arte e trilhasse seu próprio caminho, a partir de então como um dos
mais importantes encenadores do teatro moderno.
A princípio, Meyerhold negou os pressupostos em que se baseavam o
Teatro de Arte, ou seja, um realismo exacerbado e uma maneira de interpretação
calcada na identificação do ator com o personagem. Meyerhold, por outro lado, passou a
se dedicar às pesquisas sobre o universo do teatro popular, do teatro de feira, dos atores
ambulantes com seus virtuosismos corporais, com sua tipificação e teatralidade à
mostra, o que estava em perfeita sintonia com os propósitos defendidos por Maiakóvski
e também pela revolução russa.
À medida que as pesquisas de Maiakóvski estavam em harmonia com as de
Meyerhold, os dois passaram a trabalhar conjuntamente o que proporcionou um
fantástico resultado para o teatro russo que deu um grande salto qualitativo,
modernizando-se, pois Meyerhold conseguia captar exatamente os propósitos dos
escritos de Maiakóvski dando assim vida ao seu trabalho.
Meyerhold lançou o “Outubro Teatral” um movimento que se opunha ao
teatro tradicional e exigia a introdução de peças revolucionárias nos repertórios. Ele
propunha ainda o fim do reinado das antigas técnicas teatrais e o combate à ideologia
que subsistia na área artística relacionada aos valores burgueses.
O “Outubro Teatral” transformou o teatro russo. Os grupos de teatro amador
multiplicaram-se, muito rapidamente, buscando uma maior integração com as
manifestações artísticas e culturais populares, promovendo, assim, uma teatralização da
86
vida. Dentro dessa nova concepção teatral, o diálogo com o espectador passou a ser
sempre bem vindo, proporcionando muitos debates, verdadeiras tribunas onde se
discutiam questões concernentes às artes e, naturalmente, política. Dessa forma, o teatro
perde sua aura sacra, deixa de ser visto como um templo reservado às encenações
clássicas para se transformar em uma alegre tribuna publicista.
Maiakóvski, atuante como era, participava de muitos ciclos de debates
acerca de questões relativas à arte russa, especialmente, o teatro. Nestas intervenções
defendia, com argumentos bastante convincentes e coerentes dentro do que ele
propunha, a necessidade urgente de se promover mudanças no teatro russo, como atesta
o seu pronunciamento de 03 de janeiro de 1921 quando participou dos debates a respeito
da encenação de As Auroras de Verhaeren. O texto original havia sido adaptado para o
contexto soviético e o espetáculo tinha um clima de comício político no qual o público
era convidado a participar atuando como coro, como se presenciasse uma Assembléia
popular. O espetáculo foi dirigido por Meyerhold. :
...Agora, não nos retrucam, porque não há o que nos dizer, pois toda
a ideologia em que poderiam apoiar-se, toda a velha arte, constitui ideologia
burguesa, uma cobertura corpórea que despimos em Outubro. E ninguém viria
com ela a este teatro. O caso está em que, por trás deste acordo silencioso
conosco, existem milhares de pessoas que se ligaram ao velho pensamentozinho
burguês, e este arregala os olhinhos para esta nova arte, [...] Mas que divergência
existe entre este e aquele teatro? Peguem qualquer peça. Como se aborda o
problema de sua encenação? Peguem o “Cerejal’ como é abordado? Muito
simplesmente: vamos decorador, você viu como um cerejal floresce na primavera?
Pois toca em frente, dá-nos um cerejal. E eles tocam em frente, não levando em
conta nem as exigências do palco, nem o que já foi inventado pelos ofícios de hoje,
particularmente o ofício de pintor. Isto porque as cinco ou dez mil pessoas que
vieram aqui pedem em primeiro lugar um espetáculo, e não aquilo que Tchekhov
nos dá. Aqui exigem do decorador uma ilustração. Aqui procuram fazer com que
estas dezenas de milhares de pessoas venham e não se indignem com uma peça
ordinária. Mas não é esta a preocupação do diretor moderno. Ele se preocupa em
incluir a vocês todos na ação, para que não sejam espectadores inertes, mas vocês
mesmos se lancem a representar comédia ou tragédia. O que vinha fazer aqui o
velho autor? Procurava dar a vocês determinada moral, arrastar vocês para a luta
com tuberculose ou os males do fumo, que ele apresentava no palco.
85
Neste trecho da intervenção de Maiakóvski, fica bastante clara a crítica ao
teatro russo, Teatro de Arte de Moscou que se sustentava esteticamente no realismo-
naturalismo de Tchékov. Ao lado das críticas encontra-se a defesa que ele faz da
85
Cf. SCHNAIDERMAN, Boris. A Poética de Maiakóvski. o Paulo: Perspectiva, 1984. P.245.
87
necessidade urgente de o teatro russo continuar pesquisando, buscando promover
mudanças tanto no campo temático quanto na forma.
Havia muita coerência entre o que era apregoado por Maiakóvski e sua
prática, pois as suas peças, desde a primeira Tragédia Vladimir Maiakóvski, de 1913,
até a última Os Banhos, de 1930, suas encenações se constituíam em verdadeiros
espetáculos, nos quais se desenrolavam, aos olhos de todos, cenas que apontavam para
suas pesquisas formais que ficavam patentes, especialmente, na elaboração dos cenários
e figurinos.
86
Certamente, as análises de Mistério-Bufo e Os Banhos nos possibilitarão
discutir muitas questões que foram apontadas a respeito da vida e da obra do maior
poeta da revolução, seja no que se refere às suas elaboradas resoluções estéticas ou à sua
inserção política.
Maiakóvski escreveu Mistério–Bufo para comemorar o primeiro aniversário
da Revolução de Outubro. Ele a idealizou antes mesmo da Revolução, por volta de
agosto de 1917, período em que a Rússia viveu uma fase bastante tumultuada que
compreendia a derrubada do czarismo, com a revolução de fevereiro, e a implantação do
socialismo. Na realidade prevaleceu naquele momento uma dualidade de poderes: de
um lado uma República que havia sido implantada imediatamente após a derrocada do
“velho regime” dirigida pela burguesia russa, e que Maiakóvski afirma na peça que se
revelara “um czar de cem bocas”; e de outro lado, os Sovietes, que se opuseram a esse
governo, dando continuidade ao trabalho de construção da Revolução Socialista que
aconteceria pouco tempo depois.
A primeira vez que Maiakóvski leu a peça aos amigos foi no dia 27 de
setembro de 1918. Entre os ouvintes encontravam-se Óssipi e Lília Brik, Meyerhold e
Lunatcharski, Comissário do Povo para Instrução (ministro da Educação) que, bastante
entusiasmado, afirmou que a peça era uma obra poética e que seu conteúdo era
constituído por todas as grandes emoções da contemporaneidade. “O conteúdo, pela
primeira vez entre obras de arte dos últimos tempos, é adequado aos fenômenos da
vida.”
86
No caso específico do teatro, Maiakóvski, ao lado de Meyerhold, ancorou-se na estética construtivista,
utilizando estruturas tridimensionais, como escadas e andaimes, objetivando a abstração e a utilização do
espaço, em oposição ao ilusionismo realista.
88
É incontestável a adequação do conteúdo da peça aos problemas reais. Esta
era uma característica marcante de Maiakóvski que não produzia senão com o propósito
último de retratar a realidade, com o objetivo claro de intervenção na mesma,
vislumbrando a possibilidade de mudanças que atenuassem as grandes diferenças de
classes no país. Para atingir seus objetivos, em última instância, falar às massas russas,
Maiakóvski escreveu a peça utilizando diálogos rápidos, falas bastante claras e uma
linguagem acessível a todos que assistissem em qualquer parte do mundo, pois as
mensagens contidas na peça, como as denúncias contra a exploração dos trabalhadores,
característica marcante das sociedades capitalistas, era um problema universal. Os
problemas retratados em Mistério-Bufo dizem respeito à humanidade.
3.1. A RÚSSIA RUMO À TERRA PROMETIDA
Mistério-Bufo foi escrita em forma de versos. É um poema dramático que
trata, fundamentalmente, do tempo futuro que seria preparado pelas profundas
transformações implementadas pela sociedade socialista desencadeada pela Revolução
de Outubro. Fica claro nesta peça que o objetivo principal de Maiakóvski era
experimentar idéias estéticas e também éticas.
Visando atingir seus objetivos, Maiakóvski construiu uma representação que
se baseia na paródia e na sátira de toda a tradição institucionalizada; era o momento de
romper com o que estava cristalizado e lançar novas possibilidades no campo da
criação. Para tanto ele contou com a inestimável contribuição dos construtivistas na
construção dos cenários e figurinos, além da direção de Meyerhold, que também
estavam imbuídos do mesmo propósito que era buscar novas possibilidades de atuação
do teatro russo, rompendo os limites do realismo-naturalismo que vinha fundamentando
as representações teatrais do país há tanto tempo.
87
87
A contribuição dos construtivistas foi fundamental na composição dos cenários e figurinos. Eles
conseguiram captar todo o “espírito” da peça. Além disso, como já foi salientado, este foi o primeiro
trabalho de Maiakóvski em parceria com o grande diretor Meyerhold que também estava na vanguarda
estética russa.
89
A peça apresenta uma mescla de sagrado e burlesco na qual Maiakóvski,
com o propósito de transmitir a efervescência dos acontecimentos que estavam
revolvendo a Rússia, dá ao seu trabalho uma amplidão cósmica, nele incluindo o
paraíso, o inferno e a tão sonhada Terra Prometida.
Fazendo uma alegoria com o processo revolucionário que culminaria em
outubro de 1917, Maikovski nos permite, a partir de Mistério-Bufo, acompanhar a
trajetória que a Rússia percorreu a partir da revolução burguesa de fevereiro de 1917
até a Revolução de Outubro, quando finalmente os bolcheviques tomaram o poder e a
população esperava que pudesse ter início uma nova fase na história da Rússia que
passaria por profundas mudanças políticas, sociais, econômicas, pondo fim a um longo
tempo de miséria e, naturalmente, mudanças culturais que como o próprio
Maiakóvski havia afirmado no poema A propósito disto de 1923 o poeta “ansiava o
futuro”, esperava-se que as massas russas, os trabalhadores tivessem uma vida mais
digna, sem tanta exploração.
Para entendermos os acontecimentos que revolveram a Rússia em 1917, é
imprescindível retrocedermos pouco antes na história do país pois os acontecimentos de
1905 foram decisivos no processo revolucionário. Problemas externos, como o
envolvimento da Rússia na guerra contra o Japão, em 1904-5, uma luta imperialista por
territórios na China, que ao final a Rússia foi derrotada, teve um papel decisivo no
sentido de arrefecer os ânimos das massas contra o czarismo, que a difícil situação da
população agravava-se nos momentos que o país estava envolvido nestes conflitos. O
resultado desastroso desta guerra, aliado aos inúmeros e graves problemas que a
população vinha enfrentando como o alto custo de vida, o racionamento de alimentos,
os problemas com moradias, transportes, racionamento de água e baixos salários, todos
estes fatores foram determinantes para que várias manifestações populares fossem
desencadeadas como a revolução do dia 09 de janeiro de 1905, que ficou conhecida
como “Domingo Sangrento” ou “Ensaio Geral”.
Após demissões em massa, um grande contingente de operários reuniu-se
em frente ao Palácio de Inverno, na cidade de São Petersburgo, para entregar ao czar
Nicolau II um manifesto que exigia mudanças radicais e urgentes na política. Dentre as
principais reivindicações encontravam-se a defesa da liberdade de associação sindical,
direito de greve e expropriação dos latifúndios. A manifestação foi duramente reprimida
pelas tropas do governo que receberam os revoltosos à bala.
90
Embora tenha sido esmagada pelo exército, o “Ensaio Geral” desencadeou
uma série de greves urbanas por todo o Império, além de violentas reações no campo
contra os proprietários de terra. O clima de revolta, que contaminou o país, levou o czar
a fazer algumas concessões, tais como a ampliação do direito de voto e a convocação de
uma Assembléia Legislativa, DUMA, que rapidamente foi neutralizada. A repercussão,
e a extensão dos movimentos que assolaram o país no limiar do século XX, assustaram
a burguesia que era representada pelo Partido Constitucional Democrata CADETE
que, como era de se esperar, adotou uma postura contra-revolucionária, que a
derrocada do regime czarista significava a perda dos privilégios da burguesia.
Diante de tantas pressões, Nicoulau II promulgou, em 1905, o Manifesto de
Outubro, uma constituição que transformava a Rússia em uma monarquia
constitucional. A carta assegurava os direitos civis e liberdade das massas, ao permitir a
eleição da DUMA que aprovaria todas as leis. A grande maioria da população ficou
satisfeita com estas mudanças, e assim, não reagiram quando pouco tempo depois os
sovietes foram dissolvidos e seus líderes presos e exilados, como Lênin que mesmo em
seu exílio, na Sibéria, acompanhava atentamente os acontecimentos na Rússia.
Não obstante, Nicolau II não admitia a idéia de governar sob uma
Constituição que restringia o seu poder. Nesse sentido, o czar reformulou a lei eleitoral
para que a DUMA fosse representada pelos ricos proprietários da pequena burguesia
leal ao governo. A retomada de um governo com contornos absolutistas tão claros
renovou as agitações e o ativismo político de grande parte da população russa que, sob a
liderança de partidos socialistas que, mesmo sob severa repressão, trabalharam para
envolver as massas em ações revolucionárias contra o regime czarista.
Ao final de 1916, o governo autocrático perdia, gradativamente, suas bases
de sustentação, com o crescimento da oposição no seio da aristocracia e também da
burguesia. Em pouco tempo, o czar foi ficando isolado contando somente com o apoio
dos setores ligados à indústria bélica.
Fevereiro de 1917 é outra data importante do calendário revolucionário da
Rússia por que marcou o começo de outra revolução. Em comemoração ao Dia
Internacional da Mulher um expressivo número de tecelãs se organizou e foram às ruas
realizando concentrações e protestos em praças públicas que, muito rapidamente,
espalharam-se por toda Petrogrado. O movimento foi crescendo com adesões de outros
setores sob slogans que exigiam pão, fim do regime autocrático e da guerra. A polícia
foi acionada e choques violentos aconteceram. Os manifestantes, entretanto, receberam
91
o apoio de parte do exército. Muitos edifícios públicos foram tomados e a 27 de
fevereiro a revolução havia sido consumada.
Constituiu-se, em meio à abdicação do czar Nicolau II, no dia 02 de março,
o primeiro governo provisório da República, com Alexandre Kerenski à frente da pasta
da justiça e o príncipe Lvov no comando do governo provisório. As primeiras ações do
governo foram no sentido de acalmar o país. Para tanto, decretou a prisão do czar e
anistiou muitos presos políticos foram anistiados o que propiciou a volta de Lênin à
Rússia.
De fevereiro a outubro de 1917 a vida política do país caracterizou-se por
uma dualidade de poderes: de um lado estavam os sovietes que detinham o poder de
fato e congregavam deputados, operários e soldados de cada fábrica e regimento,
enquanto que do lado oposto encontrava-se a DUMA que era composta por
representantes de todos os partidos excetuando a extrema direita e os bolcheviques.
Durante este conturbado período de governo, algumas crises serviram para,
paulatinamente, minar o já precário equilíbrio de forças. Em julho de 1917,
manifestações espontâneas reuniram operários, soldados e marinheiros que clamavam as
palavras de ordem mais populares da época que eram: “paz, terra e pão”. Estas
manifestações que ficaram conhecidas como “Os Dias de Julho” foram tardiamente
lideradas pelo partido bolchevique que depois de lutas intensas e choques armados foi
derrotado e caiu na clandestinidade.
O governo considerou o partido bolchevique o responsável direto pelas
rebeliões espontâneas, e Lênin foi acusado de estar a serviço do Estado alemão.
Contudo, o que o governo russo pretendia era minar o apoio das massas e neutralizar os
bolcheviques que ampliavam cada vez mais sua participação nos sovietes até então,
ainda dominados por mencheviques e sociais-revolucionários. No entanto, a partir de
setembro, os bolcheviques assumiram a direção da maioria dos sovietes com Trotski
sendo eleito presidente do soviete de Petrogrado, pondo fim, portanto, à preponderância
dos outros partidos.
Diante disso, as forças burguesas perderam definitivamente o poder de
conduzir a República. Kerenski, ao criar um novo governo de coalizão burguês-
socialista, ficou desmoralizado e perdeu todo o apoio político. Assim, crescia por toda
parte o movimento popular. Soldados e marinheiros desrespeitavam ordens dos oficiais,
camponeses fazendo, por conta própria, a reforma agrária; e comitês de brica
92
assumindo o controle do emprego, do abastecimento e da produção. Dessa forma, havia
um desejo generalizado de que o poder fosse, definitivamente, transferido aos sovietes.
Objetivando dar continuidade ao movimento revolucionário, os
bolcheviques criaram um Comitê Militar Revolucionário e arrancaram do governo a
data de 25 de outubro para a realização do Segundo Congresso dos Sovietes que
elegeria os membros da Assembléia Constituinte agendada para novembro. Estas
decisões contaram com o apoio da maioria da população e de vários setores das forças
armadas.
No dia 19 de outubro, o comitê central do partido bolchevique que recusara
anteriormente a tese de Lênin na qual o partido deveria se organizar na luta armada, e
que o poder seria conseguido por meio da classe operária, aprova a tese consumando, de
fato, a tomada do poder pelo partido.
Na madrugada de 25 de outubro o governo provisório foi deposto pelo
soviete de Petrogrado que assumiu o controle da capital e reuniu o Segundo Congresso
dos Sovietes. A partir de então, ficou decidida a nova forma de organização do poder
através do conselho dos Comissários do Povo, coordenador de todos os sovietes russos,
sob a presidência de Lênin.
Depois de consumar a revolução socialista, o conselho dos comissários
procurou implementar medidas que iam ao encontro do ideário socialista, tais como a
supressão da propriedade fundiária entregando terra gratuita aos camponeses e também
a instituição do controle operário nas fábricas, além da nacionalização dos bancos e
estradas de ferro.
Não obstante, o que se verificou depois de outubro de 1917 que foi o partido
bolchevique que havia sido rebatizado de Partido Comunista, trair os seus princípios e
começam a controlar e centralizar todas as decisões políticas em torno de si. O que
deveria ser a ditadura do proletariado transformou-se em ditadura de um partido. Assim,
estava lançado o germe dos males que levaria a revolução socialista por caminhos não
imaginados, retornando à dura realidade dos povos russos que era a ausência de
liberdade e as contradições de classes, contribuindo para perpetuar a situação miserável
da maioria de uma população que, mais uma vez, via-se alijada do processo político.
O que se seguiu na Rússia pós Revolução de Outubro foi um período difícil
marcado por uma guerra civil (1918-1921) que agravou ainda mais os problemas que o
país enfrentava. E depois da morte de Lênin, em 1924, uma briga interna do partido
entre Trotski e Stalin que culminou com a morte de Trotski primeiro em 1940 no
93
México onde foi viver depois de ter sido expulso do partido e da Rússia em 1929.
Depois desse período, até 1953, a Rússia viveu sob a égide de Stálin. Um período de
exacerbado controle e autoritarismo, como atestam os expurgos stalinistas entre 1936-
1939 quando o chefe do governo russo exterminou todos os possíveis inimigos do
Estado.
Quando Lenine desencadeou a insurreição de outubro, não lhe vinha
à mente que a Revolução se limitaria a um só país, nem que poderia ser socialista,
se reduzida à Rússia. Não que ele pretendesse estendê-la à Europa inteira pelo
menos nessa ocasião: apenas pensava que uma revolução assim circunscrita não
seria viável. A tomada do poder na Rússia, o fim da guerra por uma paz
democrática, a revolução proletária na Europa, tais eram, a seu ver, os elementos
de um processo inelutável, inseparável
88
.
Esta trajetória pela qual seguiu a Revolução Russa até chegar à tomada do
poder, em outubro de 1917, e todos os problemas que se seguiram à Revolução de
Outubro foi analisada por muitos autores que se debruçaram sobre o assunto. Dentre a
vasta historiografia podemos destacar os nomes de Marc Ferro, Francois Furet,
Fernando Haddad, Maurício Tragtenberg, John Reed além do próprio Lênin e de Trotski
que também registraram suas impressões acerca da Revolução Russa. O que se pode
perceber é que a quase totalidade destes autores ao abordarem o tema o faz a partir do
referencial político, tendo o partido bolchevique como condutor do processo histórico.
Se nos ativermos somente a esta leitura não teremos contato com a pluralidade e toda
riqueza dos acontecimentos de 1917 que não podem ser analisados somente à luz dos
acontecimentos políticos. O processo revolucionário russo é muito rico em
possibilidades de abordagens; ele não pode ser reduzido à história da atuação de um
partido político.
O que se viu, no entanto, logo depois de outubro de 1917 foi a revolução
tomando rumos completamente diferentes daqueles apregoados por Lênin. O que
deveria ser um governo com ampla participação popular com os trabalhadores tendo
muita representatividade política acabou se transformando em um regime de exceção,
pois as decisões políticas eram tomadas por um grupo de técnicos designados pela
cúpula do partido comunista.
É este universo da Rússia que Maiakóvski trata em Mistério-Bufo sua peça.
Todos os percalços e as lutas que a maioria da população teve que enfrentar para
88
FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 92.
94
implementar um sonho que era o socialismo. O que não se esperava era que ao final
desta viagem, ou desse sonho a realidade fosse tão cruel.
É interessante destacar o grande número de referências religiosas presentes
na peça, uma característica marcante de muitos artistas que à época da revolução,
segundo Ripellino, folhearam ansiosamente a Bíblia e os Evangelhos, com o objetivo de
encontrar analogias com os acontecimentos que haviam transtornado a Rússia.
Embora pareça estranho num futurista, Maiakóvski aproxima-se,
nesta comédia, dos mistérios medievais, e não só pelo tema bíblico, mas pelas
intenções alegóricas, os personagens e os locais sobrenaturais, a pitoresca mistura
do cômico e do solene. O cômico prevalece sobre o “sagrado”, como naqueles
textos da Idade Média em que as cenas cômicas dilatam-se em prejuízo das
litúrgicas.
89
O fato de estes artistas apegarem-se a elementos religiosos, chamando a
atenção para seus trabalhos, torna-se inteligível se levarmos em conta que as relações
entre religião e política na Rússia, historicamente, eram muito complicadas, marcadas
por muitos conflitos que deixaram um grande número de fiéis descontentes com a
intervenção do Estado nas questões religiosas. A Igreja ortodoxa russa a partir do século
XVIII passou a ser controlada pelo Estado e muitas seitas foram jogadas na
clandestinidade. A subordinação da Igreja ao Estado levou a um rompimento entre a
igreja oficial e a religião praticada pelos povos o que levou, posteriormente, a um cisma
no interior da própria igreja oficial.
Até fins do século XVIII, existiam múltiplas seitas russas, do tipo
evangélico, racionalista, místico, seitas reforçadas por protestantes alemães e
influências batistas posteriores. Alguns dissidentes tinham posições radicais a
respeito do não pagamento de impostos ao Estado e da o-prestação de serviço
militar; quase todos eram partidários de uma ordem social oposta à autocracia,
rejeitando qualquer forma de governo estatal.
90
As perseguições do Estado levaram inúmeras seitas à clandestinidade,
promovendo migrações constantes e deslocamentos de população continuamente. No
início do século XX, segundo Tragtenberg, as inúmeras seitas religiosas espalhadas pelo
território da Rússia chegavam a abarcar 25 milhões de pessoas. A liberdade religiosa no
Império russo foi concedida em 1905 quando o czar foi forçado a fazer reformas no
governo diante de uma insatisfação quase geral da população.
89
RIPELLINO, op. cit., p. 78.
95
Quando o processo revolucionário atinge o cume, e os bolcheviques
ascendem ao poder, a prática da religião passou, novamente, a ser proibida e as escolas
religiosas foram fechadas.
Podemos apreender, portanto, que, historicamente, as relações do Estado
/religião na Rússia haviam sido muito conturbadas, marcadas por muitas perseguições e
autoritarismo por parte do governo. Assim, uma retomada das tradições religiosas pelos
artistas de vanguarda na Rússia, no período revolucionário, era muito importante para
resgatar essa história e arrefecer os ânimos revolucionários desses povos para
insurgirem-se contra o regime czarista.
Nesse sentido, o apelo religioso fazia renascer uma tradicional polêmica
envolvendo questões políticas e religiosas.
Havia naquele dias, nos poetas e nos homens de teatro, a febre de
tecer afrescos monumentais, alegorias complicadas que refletissem os
extraordinários acontecimentos da época. Olhavam ao longe, perdendo-se em
ingênuas tramas de comparações e símbolos.[...]
Maiakóvski não era alheio a esta tendência chamada “cosmismo”,
que alargava aos espaços do universo o fermento político daqueles anos. Os fatos
de Outubro foram para ele incentivo de estupendas utopias, fantasiosas visões
planetárias
91
.
Maiakóvski, ao dar uma amplidão cósmica à Mistério-Bufo, alargando, aos
espaços do universo, o fermento político daqueles anos, demonstra que os
acontecimentos de outubro deram a ele um grande incentivo, proporcionando, e
estimulando suas utopias e fantasiosas visões planetárias. O projeto de mudanças
desejadas por Maiakóvski não se limitava à Rússia; ele deveria se estender a todo o
mundo. Sua proposta era uma mudança radical que deveria ser operada na sociedade e
naturalmente nos homens, objetivando, em última instância, uma vida mais digna e justa
para todos.
Ao longo de uma viagem que conduziria à Terra Prometida, os personagens
da peça passariam pelo inferno e o paraíso, o que pode ser entendido como uma alusão
que o poeta faz à realidade da população russa que vivia num quadro de miséria total
fazendo com que os diabos de Mistério-Bufo ficassem assustados com a situação dos
russos e o inferno parecesse um bom lugar se comparado à situação daquele país. No
90
TRAGTENBERG, Maurício. A Revolução Russa. 3ª ed. São Paulo: Atual, 1990. p.46.
91
RIPELLINO, op. cit., pp. 79-80.
96
entanto, o poeta revolucionário e profético acreditava que este triste quadro situação
poderia mudar depois da derrubada do czarismo e implantação do regime socialista.
Naturalmente, para que isso acontecesse era necessário que todos se
envolvessem na defesa da Revolução Socialista.
A dimensão cósmica que Maiakóvski ao seu trabalho, certamente,
também está relacionada a uma questão que foi tema de debates acirrados entre Lênin e
Trotski. Enquanto Lênin que defendia a teoria da Revolução permanente, e a
necessidade de a revolução romper as fronteiras da Rússia e ganhar o mundo; a
internacionalização do socialismo e Trotski, que por seu turno, fazia a defesa da
Revolução num só país, se concentrando nos limites fronteiriços da Rússia.
Além disso, as referências religiosas apontam para a inserção de Maiakóvski
na tradição popular, condição indispensável a uma arte que tinha o firme propósito de
mobilizar e conscientizar multidões em torno da necessidade de derrubar o sistema
político vigente e construir uma nova sociedade dentro dos pressupostos socialistas.
Para atingir tal objetivo esta arte deveria estar muito próxima de todos, e assim, muitos
artistas, literalmente, levaram seus trabalhos para o meio das ruas onde foram encenados
vários espetáculos e onde muitos grupos auto-ativos, como os jornais vivos, cujo um
dos mais atuantes na Rússia foi o grupo Blusa Azul informavam a todos os últimos
acontecimentos.
O próprio Maiakóvski visitava muitos lugares, como fábricas, onde lia seus
poemas para os trabalhadores. Além disso, Mistério-Bufo chegou a ser encenada em um
circo, é certo que devido muito mais à recusa de muitos teatros que não queriam a
encenação de uma peça com tantas questões políticas, mas isso aproximou ainda mais as
pessoas da arte revolucionária do poeta futurista.
A relação de Maiakóvski com a tradição foi uma questão muito cara ao
poeta que integrava um movimento artístico que desconsiderava o que era tradicional.
No entanto, o que os críticos não se dispuseram a esclarecer é que ele jamais renegou a
verdadeira tradição popular russa que sempre esteve presente em sua obra. O alvo de
suas críticas eram poetas clássicos que pouco, ou nada sabiam da existência dos menos
privilegiados na Rússia. Sua crítica destinava-se, sobretudo, à arte produzida para
alguns privilegiados; era meramente uma arte de contemplação.
Muitas questões polêmicas estão no centro das discussões da peça Mistério-
Bufo que, como o próprio Maiakóvski havia dito, era uma obra inacabada e que por isso
97
mesmo deveria ser acrescido algo sempre que fosse lida ou encenada. Assim como a
Revolução que também deveria estar sempre em processo de (re) construção que a
partir do momento em que ela entra numa etapa de conformação perde seu caráter
revolucionário. O que explica o fato de Maiakóvski ter reescrito a peça várias vezes. Em
1920 ela foi encenada em comemoração ao terceiro aniversário da Revolução de
Outubro, mais uma vez sob a direção de Meyerhold.
A explicação a respeito do título que Maiakóvski deu à peça foi dada no
programa redigido por ele mesmo, em 1921, quando a comédia foi encenada em um
circo de Moscou:
Mistéria-Buf é a nossa grande revolução, condensada em versos e em
ação teatral. Mistério: aquilo que há de grande na revolução. Bufo: aquilo que
nela de ridículo. Os versos de Mistéria-Buf são as epígrafes dos comícios, a
gritaria das ruas, a linguagem dos jornais. A ação de Mistéria-Buf é o movimento
da massa, o conflito das classes, a luta das idéias: miniatura do mundo entre as
paredes do circo
92
.
A análise que empreenderemos da peça em si referenciar-se-á na novíssima
edição da Musa lançada em 2001 com tradução do poeta Dimitri Beliaev. O fato desta
peça de Maiakóvski ter sido lançada neste momento no Brasil só reforça a importância e
a atualidade do trabalho do maior poeta revolucionário da Rússia. Além disso, este
lançamento vem comprovar também que a obra desse poeta tem um alcance universal.
Seus trabalhos eram endereçados à todos aqueles que ansiavam por mudanças.
Nesse sentido, acreditamos que a obra de Vladimir Maiakóvski é de
fundamental importância, especialmente nesses momentos em que assistimos a um certo
distanciamento das massas com relação às questões políticas no Brasil. A tradução
inédita de Mistério-Bufo para a língua portuguesa deve ser muito comemorada, pois,
com toda certeza é um acontecimento de grande vulto. Sua obra é uma fragorosa mostra
de humanismo.
A peça apresenta como personagens sete pares de “puros” que são: um
gordo francês, um australiano com a mulher, um oficial alemão, um oficial italiano, um
mercador russo, o negus abissino, um chinês, um corpulento persa, um rajá hindu, um
paxá turco, um pope, um estudante, um americano.
Além dos puros havia também sete pares de “impuros”, que eram: um
limpa-chaminés, um lanterneiro, um chofer, uma costureira, um mineiro, um
92
MAIAKÓVSKI Apud RIPELLINO (1971).
98
carpinteiro, um trabalhador braçal, um doméstico, um remendão, um ferreiro, um
padeiro, uma lavadeira, um pescador e um caçador de esquimós. Estes são os
personagens que embarcarão rumo a uma viagem que os conduziria, não a todos,
naturalmente, pois alguns seriam descartados no meio da viagem, a um lugar longínquo,
que seria a Terra Prometida.
É interessante observar que na escolha dos personagens Maiakóvski faz
uma crítica contundente à sociedade russa contrapondo representantes das classes
dominantes, muitos burgueses contra-revolucionários, que a revolução socialista era
sinonímia de uma nova época na qual estava decretado o fim dos muitos privilégios
desfrutados por tanto tempo pela burguesia daquele país, e do outro lado, representantes
das massas que muito tempo sofriam sob a égide do czarismo apontando, dessa
forma, para a luta de classes que seria abolida na tão sonhada Terra Prometida, o destino
final dos russos e, esperava-se, de toda a humanidade que o desejo dos
revolucionários russos era que o seu exemplo fosse seguido por todos os trabalhadores
do mundo; tal como havia apregoado Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista,
escrito em 1848 quando conclamou todos os trabalhadores do mundo para que se
unissem na destruição do capitalismo.
No prólogo de Mistério-Bufo, Maiakóvski destaca uma série de questões
tais como a necessidade da luta política em defesa da revolução socialista, além das
propostas de renovação estética, questões que foram aprofundadas na peça.
PRÓLOGO
DOS SETE PARES IMPUROS
Por nós clamava a terra com som de canhão urrante.
Por nós inchavam-se os campos, embriagados de sangue.
Estamos aqui,
expulsos das entranhas da terra
pela cesariana da guerra.
Estamos glorificando
A ti,
Dia
De insurreições.
De rebeliões,
De revoluções –
A ti
Que passas, esmigalhando cabeças!
Do nosso segundo nascimento, o dia.
O mundo amadurece.
Acontece –
99
Ancora um navio ao longe,
Solta a fumaça
E, pelo espelho d’água, foge,
Por muito tempo você respira a fumaça das lendas baças, -
Era assim que a vida fugia de nós até hoje.
Para nós foi preparado
O Evangelho, o Alcorão,
“O paraíso perdido e reencontrado”,
e outros
e outros
inúmeros contos de fada.
Todos prometem a alegria do além, - inteligentes, espertos.
Aqui,
Na terra queremos
Viver
Nem acima,
Nem abaixo
De todos estes pinheiros, casas, estradas, cavalos e ervas.
Enjoraram-nos as gulodices do céu –
Deixem-nos comer o pão à vontade!
Enjoaram-nos as paixões de papel –
Deixem-nos viver com mulher de verdade!
Lá,
Nos vestiários dos teatros
Lantejoulas, a roupa fulgura
E capas mefistotélicas,
É tudo que se pode achar!
Empenhava-se o alfaiate velho: não para nossas cinturas.
Então,
Que seja desajeitada
As roupa –
Mas nossa.
Agora e nosso o lugar!
Hoje,
Sobre a poeira dos teatros,
Irrompe nosso rasgo:
“Tudo de novo!”
Pare e fique pasmo!
Pano, povo!
Dispersam-se. Esgarçam o pano, borrado com as relíquias do antigo teatro.
93
A peça, escrita em três atos, retrata o universo da Rússia no período da
revolução burguesa de fevereiro de 1917 quando caiu o czarismo e se instaurou um
governo provisório. Após um dilúvio os ocupantes da barca reúnem-se no pólo boreal,
único lugar que não havia sido atingido pelas águas. Como a inundação também ameaça
o pólo eles constroem uma arca e começam a navegar em direção ao monte Ararat. De
repente, enquanto os “impuros” estão sob a cobertura, os “puros’ dão um golpe de
93
Cf BELIAEV, Dimitri. Mistério – Bufo. São Paulo: Musa, 2001. p.17-21.
100
Estado, proclamando soberano o negus abissínio. No entanto, quando percebem que o
déspota é um devorador desbragado os “puros” decretam a autocracia superada e,
atirando-o ao mar, apaziguam os “impuros” para, com eles, instituir a república.
Entretanto, mesmo após a implantação da república tudo permanecia como antes, nada
havia mudado. Os “impuros” continuavam sendo obrigados a quebrar as costas a
serviço dos dominantes que tratavam de empanturrar-se.
Descontentes com uma república que havia se revelado muito mais voraz e
avassaladora que o regime czarista, os “impuros” atiram os burgueses ao mar e
continuam navegando, contra a sua vontade, em direção ao destino final.
Dando continuidade à viagem, os “impuros” penetram no inferno, alegrando
os diabos com suas presenças, pois eram presas inesperadas, portanto, uma grata
surpresa. Porém, o trabalhador os assusta ao relatar os horrores que estavam se passando
na terra; diante dos quais as torturas do inferno ficavam empalidecidas.
Depois de passarem pelo inferno, continuando a busca por alimentos,
penetram no paraíso que é descrito como um lugar monótono, onde os anjos matam o
tempo bordando as iniciais de Cristo nas nuvens.
Finalmente, após percorrerem toda esta trajetória os ocupantes da arca
chegam à terra prometida. As portas escancaram-se e os objetos vêm ao encontro dos
“impuros” trazendo pão e sal em sinal de boas vindas.
Percebe-se, nitidamente, que Maiakóvski retrata na peça a difícil realidade
da população russa, às voltas com inúmeros e graves problemas que ameaçavam sua
sobrevivência, como o racionamento de alimentos. Esta problemática é analisada ao
longo do tumultuado processo revolucionário que passou por várias etapas.
O espaço cênico do início da peça é a aurora boreal, na qual o globo
terrestre firma-se com o eixo no gelo do chão. Por todo o globo os cabos das longitudes
e latitudes cruzam-se como escadas. Entre duas morsas que escoram o mundo, o
esquimó-caçador, que tem o dedo enfiado na terra, berra para outro que se encontra
estendido diante dele perto da fogueira.
A peça tem início com um diálogo entre os dois esquimós: o caçador e o
pescador que logo se deparam com um francês relatando que, na tranqüilidade de sua
confortável casa em Paris, onde se comia filé foi surpreendido por uma grande
inundação. Será que estava começando o grande dilúvio que atingiria toda a terra? A
fala do francês pode ser interpretada também como uma alusão às várias revoluções que
assolaram o seu país, tendo início com a Revolução de 1789 que colocou fim ao
101
absolutismo e o feudalismo naquele país e que foi o modelo de revolução que inspirou a
revolução socialista russa de 1917. O ciclo revolucionário da França se encerra em 1848
quando o absolutismo foi restabelecido.
Francês
Fiquei todo
ensopadinho
que praga! –
está tudo seco,
mas alaga-se, e alaga-se, e alaga.
E de repente,
mais pomposo que a destruição de Pompéia em quadro abriu-se
com as raízes
foi arrancada Paris e
derretida num abismo,
na fornalha escaldante do mundo.
Voltei a mim na crista de aldeias fundidas, - mudo,-
juntei toda a minha experiência de iate-clube,
e eis
bem diante de você,
meu caríssimo,
está tudo,
o que sobrou da Europa, no fundo
.
Depois da chegada do francês, vão chegando pessoas de todas as partes do
mundo: um casal de australianos, um italiano, um alemão. Os dois últimos começam a
discutir dando início a uma briga que é apaziguada pelo francês. Certamente,
Maiakóvski faz alusão nesse momento da peça, ao envolvimento desses países na
Primeira Guerra Mundial, um conflito que teve a Alemanha como um dos principais
responsáveis, que o país, algum tempo, desde 1905, estava envolvido em uma
disputa imperialista com a França por territórios no continente africano, além de uma
acirrada concorrência econômica com a Inglaterra; tudo isso foi determinante para a
eclosão d a guerra que causou sérios danos ao velho continente, o que levou a profundas
reflexões como ocorreu com muitos movimentos artísticos que ficaram estupefatos com
o conflito.
A princípio, a Itália fazia parte da Tríplice Aliança, um bloco formado por
Alemanha e Áustria. No entanto, depois que a guerra foi desencadeada, a Itália mudou
de lado e passou para a Tríplice Entente da qual faziam parte Inglaterra, França, Rússia
e Estados Unidos que entraram no conflito um ano antes de seu término, em 1917,
mesmo período que a Rússia retirou-se da guerra.
102
Com o final da Primeira Guerra, um conflito que marcou profundamente a
humanidade, surgiu uma nova ordem mundial na qual os Estados Unidos da América
ascenderam como grande potência mundial, ao passo que a Europa estava se refazendo
dos prejuízos trazidos pela guerra.
Logo em seguida ao desentendimento do italiano com o alemão, quando o
dilúvio se espalhava rapidamente, juntam-se aos outros, os sete pares de “impuros”. O
primeiro a falar é o negus afirmando que acabava de deixar a sua África que estava
toda submersa. Quando ele começa a relatar a difícil situação na qual se encontrava o
continente africano, abandonado e miserável, é interrompido pelo pescador que afirma
que embora o respeitasse aquilo era frescura dele.
O francês indaga a origem daquelas pessoas, os “impuros” que respondem
afirmando que estavam acostumados a errar pelo mundo que não eram de nação
nenhuma.
Impuros
(juntos)
A errar pelo mundo
Nosso povão acostumou-se
Não somos de nação nenhuma.
Trabalho nosso – pátria nossa
Francês
Antigos! Árias!
As vozes assustadas dos puros.
São os proletários!
Proletários...
Proletários...
O fato de a origem dos “impuros” não ter sido revelada, chama atenção para
a realidade dos trabalhadores que é, basicamente, a mesma em todo o mundo, ou seja,
são explorados por uma minoria que detém os meios de produção enquanto os
trabalhadores contam com a sua força de trabalho para sobreviverem e por isso
mesmo são brutalmente espoliados. Esta situação só foi se agravando com o passar dos
tempos e com o desenvolvimento desenfreado do modo de produção capitalista.
Assim como havia acontecido no conflito entre a Rússia e o Japão em 1904-
5, uma luta por territórios na China, que ao final foi vencido pelo Japão, uma guerra
muito criticada pela população russa que não via nenhum sentido de seu país se
103
envolver já que o exército russo não estava preparado, assim também ocorreu na
Primeira Guerra Mundial.
A situação miserável da população, se agravava, ainda mais, quando o país
estava envolvido nestes conflitos, pois os esforços eram todos concentrados na indústria
bélica. O que se vivenciou na Rússia após estes períodos de guerras foi uma realidade
marcada por muitas privações e racionamentos, onde a já tão sofrida população chegava
a ficar horas em uma fila para conseguir um pouco de manteiga ou um pedaço de pão.
Esta situação aumentava o descontentamento da população que ansiava por
mudanças gerais e urgentes.
Após o choque causado pelo encontro dos “puros” com os “impuros”, eles
se juntam e começam a discutir a respeito do que estava se passando: a situação que eles
estavam vivenciando:
Os impuros passam, atravessando a multidão dos puros que se encolhe com
nojo, e tomam assento perto da fogueira. A multidão dos puros se fecha atrás deles em
círculo. O paxá entra no centro.
Paxá
Verdadeiros fiéis!
O que houve? É bom discutir detalhes.
Vamos entrar no miolo dos males.
Mercador
O negócio é simples –
é o apocalipse.
Pope
E a meu ver – é o dilúvio.
Francês
Qual dilúvio qual nada,
senão choveria
uma chuva no duro
Rajá
Sim,
não tinha chuvinha.
Italiano
Esta idéia é absurda e imatura...
Paxá
Mas a despeito de tudo –
o que é que, verdadeiros fiéis, aconteceu afinal?
Vamos analisar, verdadeiros fiéis, pela raiz.
104
Mercador
O povo, acho eu, ficou insubmisso.
Alemão
Eu penso que é a guerra, gente.
Estudante
Não!
A meu ver, a causa é diferente.
A meu ver, é metafísico...
Mercador
(descontente)
A guerra, metafísico!
Começaram com Adão.
Vozes
Um de cada vez!
Um de cada vez!
Não façam Sodoma!
Paxá
Ssch!
Vamos por partes.
A palavra é sua, estudante.
(Justifica-se diante da multidão)
Pois ele já está espumante.
Estudante
No começo
era tudo simplesmente:
a noite substituiu o dia,
apenas
a aurora celestiou-se louca escarlatemente demais.
Depois
leis,
conceitos,
Fés,
montões graníticos de capitais
e do próprio sol a laranjez constante –
tudo ficou como se fosse um tanto mais fluido,
mais rarefeito um tanto,
um tanto mais rastejante.
E como depois jorrou!
As ruas já alagadas jorram então
as casas fundidas em cima das casas rodeiam.
O mundo todo,
fundido nos fornos da revolução,
derrama-se qual catarata inteira...
105
Neste diálogo escrito de forma bastante poética muitos personagens
apresentam suas opiniões a respeito do que estava acontecendo, sobre todas as
transformações que assolavam a Rússia em decorrência da revolução de fevereiro de
1917; são visões múltiplas, várias interpretações a respeito do mesmo acontecimento.
Em meio a estas discussões, Maiakóvski chama atenção para as tradições
religiosas, para a relação entre o dilúvio da peça, com aquele que atingiu a terra antes da
era cristã quando a terra foi devastada por um dilúvio avassalador que acabou com
qualquer forma de vida, promovendo uma grande limpeza que os homens estavam de
tal maneira tão degenerados que não havia outra forma de se restabelecer a normalidade
das coisas senão por meio de uma total destruição para que uma nova vida pudesse
erigir. Assim como o dilúvio anterior à era cristã, a Revolução Socialista também
promoveria uma grande lavagem na terra eliminando os indesejáveis como os “puros”
dando início a um novo ciclo de vida na Rússia e no mundo. Seria uma reconstrução da
sociedade e do homem.
Assim como havia feito Noé que, de acordo com a tradição cristã, construiu
uma arca para salvar-se do dilúvio e pudesse dar continuidade à vida ao final dos
quarenta dias, quando o dilúvio tivesse fim, também os personagens da peça têm a idéia
de construírem uma arca. Mas certamente não haveria lugar para todos nessa
embarcação. O francês logo se adianta afirmando para os “impuros” não se animarem
pois eles não fariam a viagem. No entanto, quando o francês é indagado se saberia
ajudar na construção da arca ele muda de idéia e aceita que os “impuros” também
seguissem viagem, que poderiam ser úteis. Alguém teria que ficar encarregado de
fazer o trabalho pesado e este tipo de trabalho, certamente, não seria feito pelos “puros”.
Francês
(que ocupou o lugar do mercador examina com raiva o ferreiro que tinha
levantado a mão)
E você também se mete?
Não se orgulhe em vão!
Senhores,
os impuros não vamos levar!
Pra eles aprenderem a não nos xingar.
Voz do carpinteiro
106
E você sabe serrar e aplainar?
Francês
(desanimado)
Eu mudei de idéia.
Os impuros são bem vindos.
O primeiro ato termina com o consenso de que todos iriam construir a arca
para que pudessem escapar do dilúvio.
O segundo ato tem início com todos prosseguindo viagem rumo ao Monte
Ararat, a tão sonhada Terra Prometida. Ao longo do percurso, o francês sempre reclama
da saudade que sente de sua tranqüila vida burguesa, especialmente da sua mesa farta;
por outro lado o Padeiro afirma que não sente falta de nada. Naturalmente, o padeiro
não tinha muito, ou quase nada para perder, por isso não estava sentindo falta.
É muito interessante observar como que Mistério-Bufo foi escrita em forma
de poemas dotados de uma grande musicalidade que é uma das características marcantes
dos cubo-futuristas:
Alemão
(fazendo discurso)
Senhores!
Nós todos somos tão puros.
Será que é para nós o suor derramar?
Vamos obrigar os impuros a para nós trabalhar.
Estudante
Eu os obrigaria!
Mas isso não é para mim
Sou frágil, sombra!
E qualquer um deles – medem sua altura ombro a ombro.
Italiano
Deus nos livre de brigar!
Não brigar,
Mas enquanto aboletados eles
Vão devorar o menu daqueles,
Beber e berrar,
Nós vamos pegar e uma pra eles aporntar.
Alemão
Vamos eleger pra eles um tzar!
107
Todos
(com surpresa)
Para que um tzar?
Alemão
Porque o tzar promulgará um manifesto –
Todos os manjares para mim, como se diz,
Devem ser entregues com rapidez.
O tzar come,
E nós comemos –
Seus súditos fiéis.
Após um golpe de Estado, obra dos “puros”, o negus abissínio é
proclamado soberano. No entanto, ao perceberem que o déspota havia se revelado um
devorador desbragado eles decretam a autocracia superada e, atirando o soberano ao
mar, apaziguam os “impuros” para, com eles, instituírem a República. Contudo, mesmo
depois da implantação da República a situação permanecia a mesma, ou seja, somente
as classes privilegiadas, em especial a burguesia, estavam sendo favorecidas. Os
“impuros” continuavam sendo obrigados a “quebrar as costas” para servirem aos
“puros” que tratavam de se fartar, pois como observara com arrogância o francês: “A
um a rosca, ao outro o buraco. O mercador afirmava: “Alguém terá que comer as
sementes, não é para todos a melancia”.
Depois de atirarem os burgueses ao mar, os “impuros” seguem viagem,
contra a sua vontade, em direção ao Monte Ararat. Contudo, o homem comum afirma
que o destino não era o Ararat e sim a Terra Prometida. Ele descrev esta região como se
fosse um cenário paradisíaco.
Logo em seguida ao inferno, um lugar bom e tranqüilo se comparado com o
que as pessoas estavam vivendo na terra, eles penetram no paraíso descrito por eles
como um lugar muito chato. Logo adiante está o destino final. Quando chegam à Terra
Prometida os “impuros” são recebidos amavelmente pelos objetos, as coisas,
personagens comuns nas peças de Maiakóvski. Em sinal de boas-vindas as coisas
oferecem pão e sal aos visitantes.
A comédia, após percorrer esta trajetória que seria a mesma da Revolução
Socialista, que teria que trilhar um longo e difícil caminho até a sua consolidação,
encerra-se com um hino triunfal com uma mensagem, ou mais do que isso, uma
conclamação para que todos os trabalhadores pudessem empenhar-se na construção de
um novo amanhã colocando fim a uma longa história de torturas.
108
Hino
(solenemente)
O sono-sonho secular foi dispersado –
Um mar inteiro de manhãs.
Sítio do mundo, floresça!
Você é nosso!
E sobre nós o sol, o sol e o sol.
Alegrem-se todos os que são fortes,
Oficina dos criadores do mundo, dos operários.
Mais ébria do que os tonéis cheios de vinho
Está a vida.
Aqueça! Cintile! Brilhe!
Sol – nosso sol!
Basta!
Na roda do mundo torturado.
A despeito de tantas adversidades, como a luta para vencer os contra-
revolucionários, e as dificuldades para se implantar o socialismo, ainda assim,
Maiakóvski acreditava que os problemas da população seriam solucionados com a
implantação do socialismo. Quando chegassem à Terra Prometida os problemas
cessariam. Infelizmente, as expectativas alimentadas pelo poeta e também por uma
grande parcela da população, não se concretizaram.
A peça desprende-se dos moldes burgueses, atingindo as formas do teatro de
feira. Por ser dotada de um caráter muito político ela foi severamente criticada por
artistas e críticos conservadores que não admitiam a inserção da política nas artes. Por
isso, a peça encontrou muitas dificuldades para conseguir um espaço para que pudesse
ser encenada. Os velhos teatros, que se consideravam verdadeiros templos da arte pura,
recusaram prontamente uma comédia com uma tendência política tão acentuada.
As críticas endereçadas à peça foram muito fortes e destrutivas. Os
partidários do tradicionalismo nas artes afirmavam ainda que o trabalho não era
apropriado às massas operárias que não o compreendiam. Este, aliás, foi um estigma,
uma acusação injusta que acompanhou Maiakóvski por toda a sua vida. Mesmo se
dando ao trabalho de visitar os mais variados lugares lendo e explicando os significados
de seus trabalhos, “o poeta da blusa amarela”, teve que enfrentar essa acusação.
Assim foi lançada pela primeira vez uma acusação que acompanhará
com um som contínuo a existência do poeta até seus últimos dias. Escritores venais
e funcionários zelosos, fanáticos sacerdotes do Partido, divulgarão em ritmo
109
crescente a tola lenda da sua obscuridade, culpando-o injustamente de ser
ininteligível para o novo público
94
.
A experiência adquirida nos anos de trabalho dedicados à agência
telegráfica russa, ROSTA, quando Maiakóvski pintou inúmeros cartazes e redigiu
muitos comentários em versos todos de caráter panfletário fazendo a defesa da
revolução, fez com que ele reescrevesse Mistério–Bufo para o novo teatro que
Meyerhold estava organizando. Maiakóvski afirmava que assim como a revolução sua
comédia também não estava acabada. Devendo, portanto, ser retocada e acrescida
continuamente, para adaptá-la às circunstâncias recentes.
Mistério-Bufo é a estrada. A estrada da revolução. Ninguém poderia
prever com exatidão que montanhas teremos ainda que explodir, nós que a
percorremos. Hoje entra nos ouvidos a palavra Lloyd-George, mas aman
esquecerão seu nome os próprios ingleses. Hoje na comuna respira a vontade de
milhões, e dentro de cinqüenta anos, talvez lançarão ao ataque de longínquos
planetas seus couraçados aéreos.
Por isso, abandonada a estrada (forma), mudei algumas partes da
paisagem (conteúdo).
No futuro, todos aqueles que quiserem recitar, encenar, ler, publicar
Mistéria-Buf, que mudem o conteúdo, tornando-o contemporâneo, atual, imediato.
E o programa do espetáculo no circo acrescenta:
A revolução dissolveu todas as coisas: não existem desenhos
acabados, nem uma comédia acabada. Mistéria-Buf é o esqueleto de uma comédia,
um movimento que cada dia se acresce de novos acontecimentos, que passa cada
dia por novos fatos
95
.
Essa preocupação do artista em reescrever sua peça para atualizá-la,
demonstra que Maiakóvski estava atento aos acontecimentos e em consonância com o
seu tempo, e também que nada estava acabado na Rússia. Tudo estava em processo de
construção.
A segunda redação, como não poderia deixar de ser, reflete os
acontecimentos que estavam se dando no período que foi elaborada. De acordo com
Ripellino, ela é tão rica em dados políticos que faz lembrar um gênero muito difundido
nos primórdios do teatro soviético, o “jornal vivo” que comentava as circunstâncias do
momento em números de variedades que correspondiam às diversas manchetes de um
cotidiano, alternado com cenas satíricas, recitações corais, diagramas animados.
94
Ripellino, op. Cit, p.88.
95
Idem, p. 95.
110
Acena-se à guerra civil, à intervenção ocidental, à escassez de
víveres, ao racionamento, aos talões, à inflação. Fala-se das concessões ao capital
estrangeiro (lei de 23 de novembro de 1920), do projeto de eletrificação discutido
em dezembro de 1920 no VIII Congresso dos Soviet, do debate sobre os sindicatos,
realizado de novembro daquele ano a março de 1921: todos assuntos sobre os
quais Maiakóvski entrementes insistia em seus cartazes.
96
Tão logo souberam que Maiakóvski estava se preparando para a remontagem
de Mistério-Bufo, os burocratas e os poetas medíocres reiniciaram os protestos e as
críticas a ele. Diante disso, o poeta começou rodar de bairro em bairro, relendo o texto
em assembléias e comícios, para demonstrar que a comédia não era compreendida
mas também muito bem recebida pelos operários.
Apesar das críticas e de tantas dificuldades para encenar a peça, exatamente
como havia acontecido com a primeira versão, finalmente, ela foi encenada em
comemoração ao de maio de 1921. Mais uma vez sob a direção de Meyerhold, tendo
ficado em cartaz até o começo de julho.
Mesmo tendo sido duramente criticado, o que é compreensível se levarmos
em conta que o poeta maior da Revolução de Outubro apresentava uma proposta radical
de mudanças a serem operadas no campo das artes e da política russas, o que feria muita
gente, é indiscutível a sua contribuição para a reformulação dos quadros políticos e
estéticos no seu país naquele período. Seus trabalhos traziam as marcas de um tempo
que havia a necessidade urgente de mudanças radicais. Assim, sua obra nos fala, nos
informa sobre seu tempo.
As revolucionárias idéias de Maiakóvski continuam falando aos quatros
cantos do mundo, mesmo depois de transcorridos tantos anos. Exatamente como
desejava o poeta já que como ele mesmo anunciou “era preciso arrancar alegria ao
futuro pois para o júbilo o mundo estava imaturo”.
Esta imaturidade do mundo fica latente em Os Banhos, quando ele , no
horizonte da crítica, denuncia a centralização e a burocratização do Partido Comunista,
que não ajuda a colocar em prática uma grande invenção: uma máquina do tempo que
conduziria algumas pessoas ao ano de 2030, na Era Comunista, o que demonstra que
Maiakóvski continuava acreditando no socialismo.
96
RIPELLINO, op. cit., p.96.
111
3.2 DA EXPECTATIVA À FRUSTRAÇÃO E A CRÍTICA
Camarada, é preciso ajudar o
rapaz. Eu andei por toda parte onde “não entre
sem ser anunciado” e fiquei horas plantado em
todos os lugares onde “expediente encerrado” e
assim por diante e quase passei a noite sob uma
placa “se a pessoa a quem você busca está
ocupada, então saia” – e não consegui nada.
Por causa de tanta burocracia e do medo de
aprovar um punhado de notas de 10 rublos, vai
por água abaixo talvez uma grandiosa invenção.
Camarada, você deveria, com a sua autoridade...
Trecho da peça “Os Banhos”
Enquanto Mistério-Bufo foi escrita no limiar da revolução, Os Banhos foi
um dos últimos trabalhos concebidos por Maiakóvski. Se nos foi possível perceber na
primeira peça a expectativa que o autor alimentava em torno da revolução, esperando
que a derrocada do regime czarista pudesse representar uma nova etapa da história da
Rússia. No entanto, com o passar do tempo, depois de transcorridas mais de duas
décadas dos acontecimentos de outubro de 1917, em Os Banhos ficam muito evidentes
as críticas que Maiakóvski fazia ao processo histórico, ou seja, os rumos que a
revolução havia tomado: a centralização e a burocratização, algo que reforça a tese
de que Maiakóvski estava muito ligado ao seu tempo. O principal nome do cubo-
futurismo representava seu mundo, a sua sociedade através de suas criações artísticas.
O espírito atento de Maiakóvski, aliado à crítica que lhe era peculiar, o
poupou nem mesmo os dirigentes do partido, pessoas classificadas por ele como
incompetentes, ignorantes, corruptos e verdadeiros “chefes do umbigo” representados
pelo personagem Pobiedonóssikov. Os Banhos está recheada de críticas à administração
do país, especialmente no que se refere à burocratização e a centralização que impedem
a viabilização de projetos importantes como o cientista Tchudakóv que inventou uma
fantástica máquina que consegue parar o tempo, transporta pessoas para o futuro, mas
que não tem como colocar sua invenção em atividade por falta de recursos financeiros.
112
Na tentativa de colocar em funcionamento a sua criação, o cientista e seu secretário
Velocipiédkin, que sempre o acompanha, tentam sensibilizar os órgãos do partido da
importância de sua invenção.
No entanto, nestes escritórios onde os “chefes do umbigo” sempre muito
atarefados com a falta do que fazer, passando o tempo ditando relatórios inócuos e
fúteis à secretária, ou com um artista que está fazendo seu retrato, o inventor e seu
amigo não conseguem nem ao menos passar da anti-sala, pois o secretário não deixa as
pessoas se aproximarem de seu chefe.
A trama a ser desenvolvida é simples, pois atualiza cenicamente as
desventuras de um cientista, Tchudakov, nos meandros da burocracia do aparelho
de Estado. Tchudakov projetou uma máquina do tempo que acabará com os limites
entre o passado e o futuro, e mais do que isso, eliminará o sofrimento, a tristeza e
os momentos difíceis. Para concretizar o seu objetivo, ele necessita de um
financiamento, mas os labirintos burocráticos criam toda sorte de empecilhos.
Cada obstáculo enfrentado por Tchudakov permite ao autor estruturar a crítica
desse princípio administrativo que, paulatinamente, tomou conta do socialismo
soviético.
97
Com o desenrolar da ão dramática, que gira em torno da invenção de
Tchudakov, a Máquina do Tempo, são articuladas uma série de críticas ao governo
estabelecido seja no que se refere às medidas administrativas, burocratização, aspectos
da vida cotidiana, ou a sacralização dos dogmas do partido. Nesse sentido, os que estão
em posição de comando são caracterizados de forma negativa, ressaltando sua
ignorância, incompetência e a discrepância existente entre o seu discurso, o que pregam
e a sua prática; ao passo que as pessoas que acreditam e lutam por uma sociedade
pautada nos preceitos socialistas são abordadas de maneira positiva, assim como em
Mistério-Bufo.
A peça divide-se em seis atos recheados com fogos de artifício e números
circenses o que aponta, mais uma vez, para a inserção de Maiakóvski nas tradições
populares. Denunciando as grandes mazelas do país, o autor mergulha os burocratas e
seus pávidos bufões no grande banho fervente de uma sátira implacável que retoma os
esquemas dos cartazes, resultado de sua experiência na ROSTA e retomando a tradição
dos jornais vivos; uma arte panfletária, com um forte apelo popular.
De acordo com Reni Chaves Zacchi, o próprio Maiakóvski sintetizou os seis
atos da peça da seguinte maneira:
113
1 o inventor Tchudakóv inventa a máquina do tempo, capaz de levar ao
futuro e de retornar.
2 – A invenção não consegue, de modo algum, avançar através das barreiras
e ultrapassar a principal delas o camarada Pobiedonóssikov Chefe Supremo da
Direção para a Coordenação. (Chefe do Umbigo).
3 – O camarada Pobiedonóssikov vem em pessoa ao teatro assistir a si
mesmo e afirma que na vida não costuma ser assim.
4 Pela máquina do tempo surge do futuro a Mulher Fosforescente
encarregada da seleção dos melhores para o translado ao século vindouro.
5 Cheio de alegria, Pobiedonóssikov preparou para si mesmo passes e
credenciais e calcula as suas diárias por aproximadamente 100 anos.
6 A máquina do tempo disparou adiante a passos qüinqüenais,
decuplicados, levando operários e trabalhadores e cuspindo fora Pobiedonóssikov e seus
semelhantes.
98
Na tentativa de concretizar seu projeto, Tchudakóv, o cientista, juntamente
com Vielocipiédkin, seu secretário, bate às portas do burocrata Pobiedonóssikov,
presidente do Escritório de coordenação. No entanto, ele está muito ocupado por não ter
o que fazer e se recusa a recebê-los. Como não foi possível falar ao burocrata em seu
escritório os dois foram, então, procurá-lo no teatro onde ele discute irritado com o
diretor que ousou ridicularizá-lo em cena. Mais uma vez a tentativa foi frustrada. Assim,
eles resolvem levar a máquina e colocá-la nas escadas do edifício onde morava o
burocrata.
Pobiedonóssikov, que pretendia fugir com Mezaliânsova, sua secretária e
amante, assiste a uma explosão da máquina da qual surge a Mulher Fosforescente que
vinha do ano 2030, com o objetivo de levar ao futuro pessoas que desejassem, a uma
velocidade de um segundo por ano. O “Chefe Supremo dos Umbigos” aproveitou da
situação para transformar o empreendimento em uma intriga burocrática.
Quando a máquina fica pronta, após os discursos evasivos de
Pobiedonóssikov, os passageiros embarcam na viagem através dos séculos. Mas, muito
rapidamente a fabulosa máquina do tempo livra-se de passageiros indesejáveis, os
97
Rosangela Patriota. “História e Teatro: Dilemas estéticos e políticos de Vladimir Maiakóvski”. In:
História. São Paulo: Unesp, v.13, p.187.
98
Cf Reni Zacchi em “Os Banhos: uma poética em cena”. Mimeo.
114
estorvos, que são expelidos, mandados de volta à terra com alguns arranhões. Pessoas,
como o “Chefe de Nada” e sua amante, não tinham o direito de prosseguir viagem.
Assim como os personagens de Mistério-Bufo, que embarcaram em uma
arca que os levariam ao Monte Ararat, e que também se livram de passageiros
incômodos, os “puros”, os personagens de Os Banhos também fariam uma viagem rumo
ao longínquo ano de 2030. Na realidade a máquina do tempo era uma variante da arca
de Mistério-Bufo.
Maiakóvski tinha muita coerência e clareza em seus trabalhos, nunca
perdendo de vista a crítica aos clássicos e a cultura burguesa que era uma constante em
suas produções. Além disso, sempre houve também uma estreita ligação de seus
personagens com outros criados por ele em trabalhos anteriores, ou que haviam sido
criados por autores que também faziam referência ao problema da burocratização do
partido. Assim, reforçamos a tese do engajamento político de Maiakóvski sem nunca
perder de vista a questão estética.
A escolha dos personagens das peças de Maiakóvski nunca se dava de
maneira aleatória, Embora fossem personagens de ficção, eram inspirados em pessoas
reais. Todos eles estabeleciam ligações com pessoas, ou situações, com as quais ele
queria dialogar. Eram alusões que o autor fazia, às pessoas ligadas ao comando do
partido, ou personagens análogos a alguns que ele havia criado desde sua primeira peça,
a tragédia “Vladimir Maiakóvski” de 1913.
99
As críticas feitas por Maiakóvski ficam muito evidentes por meio dos
personagens que eram caracterizados por ele. Os burocratas, por exemplo, eram
satirizados, na peça, através do personagem, “Chefe dos Umbigos”, uma pessoa sem
escrúpulo, um mau caráter que tentava tirar proveito de tudo em benefício próprio. Esse
tipo de pessoa dificultava a efetivação e a viabilidade do socialismo, eram os contra-
revolucionários que não queriam perder seus privilégios.
Funcionário onipotente, como benemerências e antigüidade de
partido, Pobiedonóssikov encarna a adulação, o conformismo, a vulgaridade, a
ignorância retumbante dos hipócritas que oprimiram na idade staliniana. Obtuso,
autoritário, teimoso como os mercadores de Ostróvski, procede por seu
99
Ripellino em sua obra Maiakovski e o Teatro de Vanguarda que é uma referência obrigatória para
quem estuda Maiakóvski, faz uma discussão muito interessante a esse respeito. O autor dedica algumas
páginas para apontar a ligação entre os personagens de Maiakóvski com outros criados por autores
clássicos, como
115
microcosmo com a torpeza maciça de um plantígrado, com uma lentidão insolente
que é o oposto do ritmo precipitado de Vielossipiédkin.
100
Optimístienko, secretário do burocrata, foi o personagem escolhido por
Maiakóvski para fazer severas críticas aos inúmeros secretários que trabalhavam e
colaboravam para a perpetuação da burocracia. O secretário é uma pessoa fria,
ignorante, completamente submisso ao patrão, impassível e confiante na autoridade dos
papéis.
Maiakóvski já havia abordado o tema da burocratização do partido em
outros trabalhos, como em seu poema Horrores de papel de 1927. Neste poema o poeta
compara o homem a rabiscos em imensas extensões de papel e prevê um futuro em que
o papel, naquele momento, patrão toma chá enquanto os homens rolam, amassados, sob
a mesa. Ele afirmava que chegaria o momento em que o papel dominaria o homem. Era
um alerta que o poeta fazia à centralização e burocratização do partido; algo que se
distanciava bastante dos princípios socialistas e que era uma realidade na Rússia.
Na última peça escrita por Maiakóvski, para além das críticas endereçadas
ao partido, o futurista, que não perdia de vista a questão formal, sempre atento à ligação
da forma com o conteúdo, faz acerbadas críticas ao teatro convencional, defendendo a
idéia de que o teatro deveria restituir o seu valor de espetáculo, fazendo do palco uma
tribuna. No entanto, as críticas mais contundentes eram direcionadas ao Teatro de Arte
de Moscou (TAM) e ao Bolchói que, na perspectiva dos artistas de vanguarda, os
trabalhados feitos pelo TAM assim como o Teatro Bolchói reviviam os teatros
imperiais, era uma retomada da arte burguesa.
A peça Os Banhos foi traduzida para o português por Luiz Sampaio Zacchi
e Boris Schnaiderman ficou encarregado de fazer a revisão.
O início da peça se com uma conversa entre Tchudakóv e Velocipiédkin
que gira em torno da necessidade do uso do relógio. O cientista afirma que era hora
de aposentar o relógio que, muito em breve, ele seria totalmente desnecessário, pois
ele estava trabalhando no projeto de criação de uma máquina que faria o tempo parar.
Tchudakóv:
Eu obrigo o tempo a estancar e a voar em qualquer direção e em
qualquer velocidade. As pessoas poderão saltar do dia, como passageiros do
100
Ripellino, op cit. P194.
116
bonde ou do ônibus. Com a minha máquina você pode para um segundo de
felicidade e deleitar-se um mês, a enjoar. Com a minha máquina você pode
redemoinhar num turbilhão os longos e arrastados anos de tristeza. Basta meter a
cabeça entre os ombros e, sobre você sem roçar e sem ferir, cem vezes por minuto
a bala do sol passará como um relâmpago dando fim aos dias negros. Olha, o
foguetório de artifício das fantasias de Wells, o cérebro futurista de Einstein, o
hábito que as feras têm de hibernar, como os ursos e o iogues tudo, tudo está
prensado, comprimido e reunido nesta máquina.
Ripellino afirma que a idéia da máquina do tempo foi tirada do romance de
Wells The Time Machine. Além disso, Maiakóvski acrescenta reminiscências das
doutrinas de Einstein quem ele muito admirava.
Dando continuidade à peça, ainda no primeiro ato, em meio às discussões
entre Tchudakóv e Velocipiédkin que deseja utilizar a máquina do tempo para ajudar o
comunismo, enquanto o cientista fala de processos químicos e físicos, eis que surge
Fóskin, um operário, que pede ao inventor que coloque uma apólice sua dentro da
máquina, e quem sabe dentro de pouquíssimo tempo ele poderia ter altos lucros.
Tchudakóv responde:
Mas vejam só! Eu estou abrindo para vocês as portas do futuro e
vocês rastejaram por um rublo... Fora, materialistas históricos!
A primeira vez que Maiakóvski critica abertamente a burocratização da vida
na Rússia, acontece ainda no começo da peça com o personagem Velocipiédkin que sem
dúvida é um dos personagens mais lúcidos e coerentes da peça. Ele sempre demonstra
firmeza em suas falas, lucidez e uma consciência de classe indiscutível:
Camarada é preciso ajudar o rapaz. Eu andei por toda parte onde
“não entre sem ser anunciado” e fiquei horas plantado em todos os lugares onde
“expediente encerrado” e assim por diante e quase passei a noite sob uma placa
“se a pessoa a quem você busca está ocupada, então saia” – e não consegui nada.
Por causa de tanta burocracia e do medo de aprovar um punhado de notas de 10
rublos, vai por água abaixo talvez uma grandiosa invenção. Camarada, você
deveria, com a sua autoridade...
A peça tem continuidade, e, após um tempo, Tchudakóv consegue dinheiro
para terminar a sua máquina que pode, finalmente, ser acionada; o que é um
acontecimento histórico, segundo ele. Quando a máquina foi ligada surgiu em seu
interior uma carta que foi escrita cinqüenta anos à frente. O cientista pede que leiam
117
a carta, mas seu fiel escudeiro, Velocipiédkin, afirma que não há nada a ser lido além de
“LG 4-20-24”. Ele indaga: será que é o telefone de algum camarada LG?
Tchudakóv explica que o estava escrito na carta :
Não é um “LG”, mas “lo-go”. Eles escrevem somente as consoantes,
e 4 é o indicador da vogal, pela ordem. A-e-i-o-u: logo”. Economia de vinte e
cinco por cento no alfabeto. Entendeu? 24 - é o dia de amanhã. 20 é a hora. Ele
ou ela estará aqui logo mais amanhã às 8 da noite. Catástrofe? O que?... Você vê,
vê, este canto todo rasgado e chamuscado? Significa: no caminho do tempo
encontrava-se um obstáculo, corpo, em um dos cinqüenta anos que ocupavam esta
superfície agora vazia. Daí a explosão. Imediatamente, para não matar os que vêm
de lá, precisamos gente e dinheiro... Muito! Precisamos imediatamente levar a
nossa experiência o mais alto possível, na mais deserta amplidão. Se não me
ajudarem, eu carrego nas costas esta máquina. Mas amanhã estará tudo resolvido.
A partir daqui começa uma grande batalha de Tchudakóv, que era a busca
pela capitalização de verba para evitar que pessoas fossem mortas. A peça vai se
desenvolver em torno dessa busca por capital, o que elementos a Maiakóvski para
fazer a crítica ao sistema soviético. O que se percebe, através dos personagens da peça,
é que o país estava sendo governado por pessoas incompetentes, irresponsáveis e
inescrupulosas.
Além disso, já fica bastante claro nesta fala de Tchudakóv, quando ele vai
decifrar o que estava escrito na carta, todo o trabalho de pesquisa feito por Maiskóvski
em torno da palavra, uma preocupação que era compartilhada por outros futuristas
russos e que foi de fundamental importância para o enriquecimento do léxico
gramatical, do vocabulário russo, além de aumentar de maneira inaudita a possibilidade
de uso de muitas palavras extraídas, por exemplo, do cotidiano. Uma linguagem
coloquial que foi acrescentada à linguagem artística. Como já foi salientado
anteriormente, com os vanguardistas, como Maiakóvski um deslocamento, uma nova
noção do que seria o Belo. A partir de então, a beleza estava localizada também no dia-
a-dia das pessoas; ela poderia ser extraída das situações cotidianas.
Velocipiédkin, no ímpeto de ajudar o cientista a viabilizar a sua invenção,
tentando evitar que pessoas perdessem suas vidas, afirma que vai agarrar os burocratas
pelos colarinhos, devorá-los e cuspir os botões.
O segundo ato da peça tem início no escritório de Optimístienko, onde é
procurado por muitas pessoas que buscam solucionar os seus problemas. Estas pessoas,
118
no entanto, conseguem falar ao secretário que lhes afirma que uma grande repartição
estatal como aquela não podia se ocupar de mesquinharias. O que se percebe é que o
“chefe de nadae sua repartição não serviam para coisa alguma, não tinham nenhuma
função. Optimístienko afirma que o Estado se interessava por grandes coisas, como o
fordismo e coisas afins.
Nesta fala deste personagem, fica nítida a crítica de Maiakóvski à situação
da Rússia naquele momento, sob a égide do governo de Stálin que adotava uma política
com características marcadamente capitalistas. Como se podia admitir que um país, que
se dizia socialista, pudesse se espelhar em práticas, medidas inspiradas no fordismo que,
em linhas gerais, e despido de sua carapaça de racionalidade do trabalho, o seu objetivo
principal era a exploração extrema dos trabalhadores que passavam a ser controlados
violentamente para que se pudesse extrair o máximo de trabalho num mínimo de tempo
possível. Era uma postura, uma racionalidade, uma lógica toda ela alicerçada nos
princípios do capitalismo. Na realidade, o que se percebia na Rússia naquele momento
era um controle rígido de toda a população, uma total subordinação ao Estado, um
aspecto característico de regimes totalitários, como aconteceu na Itália a partir de 1921,
sob o comando político de Benito Mussolini, e também com Adolf Hitler na Alemanha
dez anos depois.
Tchudakóv tem muita pressa em falar com o chefe Supremo da Direção para
a Coordenação, ansioso para saber qual a foi o resultado, a deliberação de seu pedido de
verba junto ao governo. Somos levados a crer que nem o Chefe sabia o que ele
direcionava e coordenava, ou melhor, ele sabia pois como Maiakóvski afirmou, ele era o
chefe do próprio umbigo. Apesar de perceber toda a pressa e aflição do cientista, o
secretário da repartição não permite que ele entre no escritório e afirma que havia
uma plena deliberação a respeito de seu caso. Velocipiédkin, sempre acompanhando o
cientista em sua difícil empreitada, anima-se indagando se haviam vencido os
burocratas?
Optimístienko responde:
Mas o que é isso, camarada? Que burocratismo pode haver antes do
expurgo? Eu tenho tudo nos indicadores, nenhum crédito, nenhum débito, graças a
um moderníssimo sistema de fichas. Zás eu acho a sua gaveta. Zás agarro o
seu assunto. Zás – nas mãos a plena resolução – atenção! Atenção!
Todos se paralisam.
119
Eu já disse – plena deliberação. Atenção! Re-cu-sar
.
Incansáveis, o cientista e seu amigo retornam à repartição estatal e mais uma
vez são recebidos pelo secretário que lhes afirmam que a invenção deles não estava
nos planos em perspectiva para o próximo trimestre, e os pedem que não atrapalhem a
ação governamental com fantasias. ão governamental que não sabemos quais, que
naquela repartição nada se resolvia.
Optimístienko diz a Tchudakóv:
A sua proposição não se enquadra ao Comissariado Popular da Via
de Comunicação da União Soviética e não é solicitação das grandes massas
operárias e camponesas.
Nota-se uma grande ironia nesta fala. Mais uma vez a crítica de Maiakovski
é direcionada aos burocratas pois o que o menos interessava àquela repartição, e por
extensão ao governo russo, eram os desejos, os anseios das massas operárias e
camponesas.
Tchudakóv tenta explicar ao ignóbil secretário que sua invenção será de
grande utilidade nas tarefas de transporte que poderão ser efetuados com a máxima
velocidade. Dada a estupidez do secretário, uma característica sua que salta aos olhos de
qualquer pessoa, ele não consegue enxergar nenhuma utilidade naquela invenção.
Enquanto isso, no interior do escritório Pobiedonóssikov continua ditando o
relatório para a datilógrafa. Ao discutir assuntos relativos à cultura russa e universal
com a datilógrafa, a camarada Underton, o “chefe do umbigo” revela toda a sua
estupidez e ignorância.
Logo em seguida, entra o retratista Belviedónski, uma pessoa sem
escrúpulos que fica enaltecendo supostas qualidades que passaram longe do chefe.
Quando o retratista pergunta a Pobiedonóssikov se ele conhecia Michelangelo, o “chefe
de nada” revela sua total ignorância:
Belviedónski
Quanta modéstia para tantos méritos! Deixe à vista o contorno de sua perna
de combatente. Como brilha a sua bota, até vontade de lamber. Somente em Miguel
Ângelo encontrou-se contorno tão perfeito. O senhor conhece Miguel Ângelo?
120
Pobiedonóssikov
Dos Anjos, armênio?
Belviedónski
Italiano.
Pobiedonóssikov
Facista?
Belviedónski
Não, nunca!
Pobiedonóssikov
Não conheço.
Belviedónski
Não conhece?
Pobiedonóssikov
E ele me conhece?
Belviedónski
Não sei... Ele também é pintor.
Pobiedonóssikov
Ah! Então ele deve me conhecer. Você sabe, pintores muitos, mas Chefe
Supremo da Direção para a Coordenação há apenas um!
É interessante observar que, muito embora o “chefe de nada” tente
demonstrar algum conhecimento cultural quando cita Tolstói e Puchkin, na realidade ele
é um grande ignorante que se julga mais importante e mais conhecido do que
Michelangelo.
Mais uma vez, Maiakóvski coloca em questão o debate em torno dos
clássicos. Quando o retratista vai falar de um grande nome da pintura ele cita aquele que
foi um dos mais expressivos representantes do Renascimento Cultural do século XVI;
um momento de muita importância para a história que houve uma profunda
redefinição de valores, mudando radicalmente a vida dos homens. Mudanças estas que,
via de regra, estavam atreladas ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. A
partir daquele momento, transformações radicais aconteceram no campo científico,
filosófico e naturalmente, cultural.
O modelo de cultura que inspirou os artistas do Renascimento, dentre os
quais podemos destacar na Itália os nomes de Rafael, Leonardo da Vinci, Ticiano,
Botticeli dentre tantos outros, por toda a Europa, foi a cultura clássica, greco-romana
que buscava alcançar com suas artes a simetria, o equilíbrio e a perfeição. Foi este
121
modelo de cultura que passou para a história como clássica. Tudo o que estivesse fora
desses padrões era jogado fora, não tinha valor.
101
Certamente, ao fazer esta discussão Maiakóvski estava chamando a atenção
para os novos tempos da arte na Rússia. Um grande dilúvio também tinha lavado o
campo das artes russas, levando para bem longe a cultura clássica, abrindo espaço para
novos artistas com idéias revolucionárias, como foi o caso dos futuristas russos que,
assim como criticavam a cultura clássica russa, também sofreram duras críticas de seus
defensores.
Mais uma vez, Tchudakóv e Velocipiedkin vão ao escritório de
Pobiedonóssikov tentando alertá-lo do risco que estavam correndo, que a máquina do
tempo podia explodir a qualquer momento.
Optimístienko
Explosão? Nem diga isso! Não ameace uma repartição estatal.
Enervar-nos e amedontrar-nos não convém, e quando houver a explosão, então
daremos pare de vocês a quem de direito.
Velocipiédkin
Mas se entende, cabeça dura!... Você tem que dar parte disso a
todo mundo a quem de direito e a quem não de direito. As pessoas ardem de
vontade de trabalhar em todo o universo trabalhador, mas você, intestino grosso,
com seu blá-blá-blá de burocrata, mija no entusiasmo delas. É ou não é?
Optimístienko
Peço, sem alusões pessoais! O indivíduo na história não tem um
grande papel. Este não é o tempo dos czares. Antigamente exigia-se entusiasmo.
Mas agora estamos no materialismo histórico e não está sendo solicitado nenhum
entusiasmo de vocês.
Depois dessa discussão entra a secretária, Mezaliânsova, pedindo que os
dois se retirassem pois o expediente estava encerrado. É o fim do segundo ato.
101
Certamente, é nesse ponto que reside a grandiosidade da obra Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento de Mikhail Bakhtin por que ele, para estudar a cultura popular daquele período, resgata
esse universo cultural tendo como referência obras de Francois Rabelais, um escritor que, para Bakhtin
tem a mesma importância de Cervantes ou Shekespeare mas que não faz parte dessa tradição que não
dava nenhum valor às manifestações da cultura popular. Bakhtin, ao estudar estas manifestações artísticas
122
É interessante observar que os funcionários do governo, embora façam
exatamente o contrário do que dizem, eles demonstram muita convicção quando
afirmam que estão fazendo tudo de acordo com os pressupostos de Karl Marx, dentro
dos preceitos socialistas. No entanto, o que pode se depreender é que estes funcionários
foram adestrados, doutrinados para falarem sobre questões que eles nada sabiam ou
então para repetirem discursos ou palavras de ordem do partido comunista.
Walter Benjamin, em Diário de Moscou, chamou a atenção para esse
assunto afirmando que naquele momento em que esteve na Rússia, final de 1926, havia
uma forte tentativa do partido no sentido de despolitizar ao máximo os cidadãos,
visando introduzir um período livre de conflitos de classes. Segundo Benjamin, a
juventude passa por uma educação “revolucionária” em organizações pioneiras como o
Komsomol, órgão encarregado da instrução pública. Dessa forma, fica bastante clara
que o revolucionário não lhes chega como experiência, e sim, como discurso.
O terceiro ato de Os Banhos tem início com uma discussão entre
Pobiedonóssikov e um diretor de teatro que o retratou em sua peça como um tipo
negativo, fazendo críticas a ele deixando-o enfurecido. Pobiedonóssikov afirma que na
vida real não era como estava retratado no teatro. Além disso, ele também não entendia
por que o chamaram de “Chefe Geral dos Umbigos”. Segundo ele, não havia aqueles
tipos entre eles; não se parecia com ninguém. Assim, era preciso refazê-lo; suavizar,
poetizar, aparar as arestas.
Percebe-se, claramente, no diálogo entre Pobiekonóssikov e o diretor da
peça, as perspectivas e as opiniões contraditórias dos dois com relação ao papel do
teatro. Enquanto para o “Chefe de nada” teatro servia para acariciar os olhos, para o
diretor, o teatro deveria estar a serviço da luta e da construção de um novo homem e
uma nova sociedade.
Pobiedonóssikov
Mas eu solicito em nome de todos os operários e camponeses que o
senhor não me deixe alvoraçado. Grande coisa – um despertador! O senhor
deveria acariciar os meus ouvidos, e não alvoraçar. O seu negócio é acariciar os
olhos, e não alvoraçar.
Mezaliânsova
Sim, sim, acariciar...
populares o faz a partir de seu lócus privilegiado, ou seja, as grandes festas populares que aconteciam no
meio das ruas ou em praças públicas, como o carnaval.
123
Pobiedonóssikov
Nós desejamos repousar após as atividades governamentais e sociais.
Retornemos aos clássicos! Aprendam com os grandes gênios do detestável
passado. Quantas vezes eu já lhes disse. Lembrem-se como cantava o poeta:
Após tanto discutir
Não temos alegria, nem penar,
Não temos desejos no porvir
E pa-ram, pa-ra-ram, não temos penar...
Pobiedonóssikov prossegue:
A leveza do gesto é moralizadora de toda carreira iniciante.
Acessível, simples, bom até para as crianças. Aqui entre nós; nós – a jovem classe,
o operariado somos uma grande criança. Mesmo assim, ainda está um pouco
rude demais; falta aquele arredondado, aquela suculência...
Diretor
Então, se isto agrada aos senhores, aqui os horizontes da fantasia são
infinitos. Nós podemos apresentar de cara uma cena simbolista com todo o quadro
de atores aqui presentes.
(Bate palmas)
Os quadros masculinos que estiverem livres – no palco! Apóiem-se em
um joelho e inclinem-se, fazendo ar de escravos. Cavem com uma picareta
invisível na mão visível o carvão invisível. As caras, expressões mais sombrias...
Forças do mal tenebrosamente vos oprimem... Muito bem! Estamos indo!...
O senhor será o capital. Fique em aqui, Camarada capital. Dance
por cima de todos, representando o domínio de classes. Abrace a dama imaginária
com a mão invisível e tome o champanhe imaginário. Estamos indo muito bem!
Continuem.
Os quadros femininos que estiverem livres - no palco!
A senhora será a liberdade; a senhora tem a postura conveniente. A
senhora será a igualdade; quer dizer, tanto faz quem vai representar. E a senhora,
a Fraternidade – já que outros sentimentos a senhora não saberia despertar.
Preparar! Ação! Levantem com um chamado imaginário as massas imaginárias.
Contaminem, contaminem a todos com o vosso entusiasmo! O que as senhoras
estão fazendo?!
Levantem mais a perna, simulando o levantamento imaginário.
Capital, uma dançada para a esquerda, representando a Segunda
Internacional. Por que agitar os braços! Distenda os tentáculos do imperialismo...
Não tem tentáculos?
Assim, o diretor continua sua encenação simbolista. Ao final,
Pobiedonóssikov fica muito entusiasmado, aplaude e questiona como um diretor de
tanto talento podia desperdiçá-lo com mesquinharias da atualidade com folhetins
insignificantes? Esta sim é a autêntica arte – compreensível a todos, inclusive às massas.
Velocipiédkin tentando falar ao Chefe do Umbigo da urgência de se liberar
dinheiro para que a máquina do tempo pudesse ser levada para um lugar alto, invade um
teatro, as primeiras filas reservadas às pessoas importantes. O diretor pede ao guarda
que não fizesse escândalo.
124
Pobiedonóssikov
Adeus, Camarada! Nada a declarar! O senhor se nomeia de teatro
revolucionário e o senhor mesmo exaspera... como foi que o senhor disse?...
alvoroça, ou algo assim, os trabalhadores responsáveis. Isto não é para as massas.
Nem operários, nem camponeses entenderão isto e ainda bem que não
entenderão e tampouco se deve explicar a eles. Como é que o senhor nos faz agir
como estes seus personagens? Nós queremos permanecer inativos... como é que se
diz? – espectadores. Não! Da próxima vez eu irei a outro teatro!
Esta discussão concernente ao papel do teatro aponta, mais uma vez, para as
preocupações estéticas de Maiakóvski que defendia um teatro que desse espetáculo, mas
que também estivesse em consonância com o seu tempo; que pudesse interferir na
realidade e não simplesmente entretenimento. Além disso, dentro dessa nova concepção
teatral defendida por Maiakóvski e outros nomes ligados ao teatro revolucionário, como
Meyerhold, o público não era meramente espectador, ele participava ativamente dos
espetáculos, nos debates que aconteciam, muitas vezes dentro dos teatros, e antes
mesmo de terminar a encenação. Nesse sentido, o teatro passa a ser também, como
dissemos, uma tribuna na qual questões importantes que dizem respeito aos homens e a
sociedade são discutidas.
Além disso, Maiakóvski retoma uma velha e incômoda questão que era a
crítica que lhe faziam dizendo que ele era incompreensível para as massas. Isso ficou
muito claro na fala de Pobiedonóssikov. Assim, podemos ter uma idéia do tipo de
pessoa que fazia estas críticas a Maiakóvski: eram pessoas que não mereciam nenhum
crédito como o “Chefe do Umbigo”, ou que estavam amedrontadas diante do alcance da
obra do poeta maior do futurismo russo; uma obra com um fenomenal poder de
mobilização.
Ripellino afirma que as críticas feitas por Pobiedonóssikov ao teatro
revolucionário e a pantomima, servem de pretexto a Maiakóvski para fazer uma sátira
dos teatros acadêmicos que recobriam de etiquetas revolucionárias os moldes mais
gastos, secundando as inclinações vulgares dos burocratas e os chefes do partido.
As críticas de Maiakóvski têm direção certa: o Teatro de Arte e o Bolchói,
especialmente, o ballet Krásni mak (A papoula vermelha) de Glier que representa os
marinheiros soviéticos como “estatuetas delambidas” como se fossem bonecos de
açúcar. A estréia desse ballet no Bolchói havia provocado violentas discussões, pois os
artistas de vanguarda viam nos seus recursos adocicados uma volta à retórica dos teatros
de tempos passados.
125
Além do terceiro ato, Maiakóvski emprega uma série de slogans em
rima para troçar dos teatros acadêmicos, slogans que afixa nos palcos, na platéia,
nos cenários. Estas estrofezinhas irônicas, que até hoje não perderam a sua
vivacidade, constituem quase que um compêndio das opiniões da vanguarda
teatral naqueles anos. A tendência a divulgar as teses do teatro de esquerda no
contexto de uma comédia ou de um espetáculo era comum a Maiakóvski e
Meyerhold
102
.
Dentre os vários slogans que Maiakóvski usou no terceiro ato, e que estão
citados no trabalho de Luiz Zacchi, vamos destacar alguns que são bastante
representativos do pensamento de Maiakóvski, no que concerne ao papel das artes e dos
artistas, e a sua inserção na sociedade; a eterna relação entre forma e conteúdo:
4 – A comuna se constrói com esforço e com suores,
A pena do dramaturgo ajuda os construtores;
6 – Vão banhar
e limpar
a cada burocrata
a vassoura operária
e o pincel da arte.
8 – Não emporcalhem o teatro com o visgo psicovigarista!
Teatro, sirva à propaganda comunista!
9 – Alguns dizem:
“Espetáculo maravilhoso,
mas ele é incompreensível
à grande massa.”
A arrogância senhorial
deixem de vez:
a massa
se vira
tão bem como vocês.
14 – Naufraga a luta
no mar da papelada,
que a luta contra os burocratas
seja revitalizada.
Não deixemos que,
por causa de alguns
cretinos – fôrmas,
piore,
a cretinice das formas.
16 – Aponte os projetores,
102
ALPERS apud RIPELLINO (1971)
126
ns ribaltas luz e cor.
Gire:
a ação arrebata
não arrasta o momento.
O teatro
não é espelho refletor,
mas
lente de aumento.
Reni Chaves Zacchi, em sua tese de doutoramento Os Banhos: uma poética
em cena, faz uma pesquisa minuciosa da parceria entre Meyerhold e Maiakóvski, os
dois revolucionários homens do teatro russo, à época da revolução de 1917. A autora
também destaca aspectos importantes da peça Os Banhos, bem como também a
concepção de Maiakóvski a respeito do papel do teatro. Segundo Reni Zacchi, para
Maiakóvski não bastava somente o texto encenado ser novo, era necessário que o texto
escrito também o fosse. O texto escrito deveria expressar as circunstâncias que a União
Soviética estava vivendo naquele período.
Além disso, a autora afirma que a essência do trabalho de Maiakóvski
estava na tentativa de fazer com que o teatro voltasse a ser espetáculo, mas que fosse
também uma tribuna. Maiakóvski, neste momento, estava dialogando com o Teatro de
Arte, os teatros psicológicos denominados pelo futurista de teatro com hábitos
esteriotipados.
Em contraposição a esse Teatro psicológico, Maiakóvski propõe um teatro
de luta e agitação, propagandista; um teatro de massas contra um teatro de câmara. A
idéia política é a de lutar contra a estreiteza de visão; contra a administração ordinária;
contra toda a burocracia, defendendo o ímpeto revolucionário, heróico, do trabalho
rápido da perspectiva socialista.
O quarto ato inicia com uma briga entre Pobiedonóssikov e sua mulher que
quer acompanhá-lo em uma viagem, e ele usa toda a sorte de desculpas, acusando a
mulher de querer tirar proveito de verba do governo para viajar, o que era inconcebível,
uma atitude e uma mentalidade pequeno-burguesa, algo imperdoável. Na realidade,
Pobiedonóssikov não queria a companhia da mulher porque ele tinha outra
acompanhante para a viagem.
Em meio às discussões do casal, surge Tchudakóv que, acompanhado de
outros homens, carregam a máquina do tempo para as escadas do prédio onde mora
Pobiedonóssikov. que a máquina ia explodir então que fosse na cara do “Chefe do
Umbigo”.
127
Logo em seguida, junto a tiros e estrondos, a máquina explode e surge a
Mulher Fosforescente trazendo consigo um pergaminho onde se a palavra
“Credencial” escrita em letras brilhantes.
Mulher Fosforescente
Salve, Camaradas! Eu sou uma delegada do ano 2030. Eu estou
inserida por vinte e quatro horas no tempo de hoje. O prazo é curto e a tarefa é
extraordinária. Verifiquem minhas credenciais e estarão informados.
Optimístienko
(Atira-se à delegada, examina atentamente a credencial,
murmurando, rapidamente, enquanto lê o texto).
“O Instituto de História do Nascimento do Comunismo...” Assim...
credencia com plenos poderes...” Correto... “Selecionar os melhores...” Está
claro... “para traslado à era comunista...” Mas o que está acontecendo? O que
está acontecendo, meu Deus..
Depois disso, o secretário corre para informar ao seu chefe da chegada de
um delegado do centro. Pobiedonóssikov pede ao seu secretário para investigar se era
possível uma coisa daquelas; se estava em conformidade como a ética do Partido e se
era possível a um ateu crer em tais aparições sobrenaturais.
Pobiedonóssikov faz daqueles acontecimentos uma ótima oportunidade para
fazer um discurso mentiroso num tom bastante formal, com o intuito de impressionar a
representante do futuro.
O início do ato se com vários personagens, dentre os quais estão
Pobiedonóssikov e sua “adorável” secretária, Mezaliânsova, esperando no Escritório de
Seleção e Translado à Era Comunista, um local que anteriormente era chefiado pelo
“Chefe Geral do Umbigo”.
Pobiedonóssikov, inconformado por ter que esperar, ele que sempre fez
tanta gente esperar por ele que nunca recebia ninguém na sua repartição, afirma que é
preciso lutar contra o burocratismo e o protecionismo. No entanto, exige que o deixem
entrar fora da fila, revelando mais uma vez seu mau caráter e sua falta de ética.
Diante da insistência de Pobiedonóssikov, seu ex-secretário, Optimístienko,
perde a paciência e repete a ele todas aquelas coisas que falava às pessoas que o
procuravam na repartição estatal:
Optimístienko
Chega! Pois então eu lhe digo: não se afobe com mesquinharias numa
grande repartição estatal! Nós nos ocuparmos com mesquinharias não podemos.
128
O Estado se interessa pelas grandes coisas: fordismos diversos, máquinas do
tempo, etc., etc....
É muito interessante observar como a situação das personagens vai
mudando e se invertendo com o desenrolar da peça, o que pode ser entendido como uma
analogia que Maiakóvski fez ao caminho percorrido pela Revolução Socialista que, a
princípio tinha uma perspectiva e acabou chegando a caminhos indesejados, ou seja, o
burocratismo e a centralização. A solução encontrada para solucionar estes problemas
era transportar algumas pessoas para o futuro, onde o socialismo seria possível.
O antigo escritório de Pobiedonóssikov está lotado. Um clima de exaltação
e a desordem de combate dos primeiros dias da Revolução de Outubro. Fala a Mulher
Fosforescente.
Mulher Fosforescente
Camaradas, encontro de hoje é às pressas. Com muitos de nós
passaremos anos. Eu contarei aos senhores ainda muitos pormenores da nossa
felicidade. Tão logo difundiu-se a notícia sobre o experimento dos senhores, os
sábios puseram-se de plantão. Eles muito auxiliaram os senhores avaliando e
corrigindo os vossos inevitáveis erros de cálculo. Nós avançamos uns em direção
aos outros, como duas brigadas abrindo um túnel, até nos encontrarmos no dia de
hoje. Os senhores mesmos não visualizam toda a grandiosidade da vossa invenção.
Para nós é mais claro: s sabemos o que passou a existir. Eu, com admiração,
dei uma olhada nos apartamentos existentes em vossa época e cuidadosamente
restaurados pelos museus, e olhei para os gigantes de aço e de argila, grata
memória daqueles cujas experiências ainda se elevam entre nós como exemplos da
construção e da vida comunistas. Eu olhei atentamente os jovens imundos
desapercebidos pelos senhores, mas cujos nomes ardem nas lápides do ouro
anulado. Somente hoje, no meu curto vôo de reconhecimento, eu dei uma olhada e
entendi o poder da vossa vontade e o estrondo da vossa tempestade, que se
transformou tão rapidamente na nossa felicidade e na alegria de todo o planeta.
Com que entusiasmo eu hoje olhei as letras vivificadas das lendas sobre vossa
luta contra todo o mundo armado dos parasitas e dos escravizadores! Devido ao
vosso trabalho, os senhores nunca se afastam para se auto-admirarem, mas eu
estou contente de vos falar sobre a vossa grandeza.
Nesta bela fala da Mulher Fosforescente, ou seria de Maiakóvski? Acredito
que a personagem fala pelo autor que destaca a importância da atuação de um grande
número de pessoas, dentre os quais, milhões de trabalhadores, intelectuais e artistas, ou
seja, os vários segmentos sociais que estiveram juntos nos importantes acontecimentos
que se desdobraram na Revolução de Outubro de 1917. Acontecimentos que revolveram
a Rússia, inaugurando uma nova etapa de sua história, e que teve grandes repercussões
por todo o mundo.
129
Tchudakóv pergunta à Mulher Fosforescente quantas seriam as pessoas
enviadas? O ano de destino e a que velocidade?
Mulher Fosforescente
Direção infinito; velocidade um segundo por ano; local ano
2030; quantos e quem desconhecido. Conhecida é apenas a estação de destino.
Aqui, os valores não estão claros. Para o futuro, o passado é a palma da mão.
Tomaremos aqueles que durarem cem anos. Adiante, Camarada! Quem o
acompanha?
O quinto ato se encerra com a Mulher Fosforescente pedindo para que
aqueles que fossem embarcar rumo à estação 2030 não se atrasarem pois a partida seria
dada às doze em ponto.
O sexto ato começa com os últimos ajustes para que a máquina do tempo
pudesse ser ligada e partisse rumo ao seu destino.
Dos quatro cantos, com cartazes “A Marcha do Tempo” afluem passageiros.
A Marcha do Tempo
Erga-se canção,
brilhe, minha,
sobre a marcha
dos rubros batalhões!
Avan -
te,
tem –
po!
Tem –
po,
avante!
Avante, nação,
como um astro, minha,
largue
o antigo
aos borbotões
Avan –
te,
tem –
po!
Tem –
po,
avan –
te!
Avance, nação,
não deixe rastro, minha,
a comuna
chega aos portões!
Avan –
130
te,
tem –
po!
Tem –
po,
Avante!
Os cinco anos,
cumprir em quatro,
é nosso prêmio,
é nosso pão!
avan -
te,
tem –
po!
Tem –
po,
avante!
Adiante, nação,
como um astro, minha,
sem interrupções
Avan –
te,
tem –
po!
Tem –
po,
avante!
Mais forte, comuna,
arrase, minha,
o cotidiano horrendo
aos paredões!
Avan-
te,
tem –
po!
Tem -
po,
avante!
Erga – se, canção,
brilhe, minha,
sobre a marcha
dos rubros batalhões!
Avan –
te,
tem –
po!
Tem –
po,
avante!
Depois de muitos discursos dos ocupantes da máquina do tempo,
especialmente Pobiedonóssikov que, mais uma vez, aproveita a oportunidade para falar
131
em benefício próprio. Os outros ocupantes da máquina não suportavam mais o antigo
“Chefe do Umbigo” que é desligado por Tchudakóv que desliga também Optimístienko.
Mulher Fosforescente
Camaradas! Ao primeiro sinal, nós avançaremos à toda, rompendo o
tempo decrépito. O futuro acolherá a todos nos quais se possa encontrar ao menos
um ponto em comum com o coletivo da comuna; - alegria de trabalhar, sede de se
doar, ser infatigável na invenção, vantagem de restabelecer o orgulho à
humanidade. Decuplicaremos e continuaremos os passos qüinqüenais. Mantenham
o grupo, mais forte, próximos um do outro. O tempo que voa ceifará o lastro
sobrecarregado de trastes, lastro dos devastados pela incredulidade.
Da mesma forma que em Mistério-Bufo, quando os “impuros”, ao longo da
viagem que conduziria à Terra Prometida, livram-se dos “puros” atirando-os ao mar;
também em Os Banhos, a máquina do tempo livra-se de um bando de pessoas
incompetentes, que atrapalhavam a construção do socialismo. Na Terra Prometida no
ano de 2030 não haveria espaço para pessoas tão mesquinhas.
Assim, a máquina do tempo tratou de livrar-se rapidamente de alguns
indesejados.
Fogos de artifício. “Marcha do Tempo”. Escuridão. No palco
Pobiedonóssikok, Optimístienko, Belviedónski, Mezaliânsova, Pont Kitch, Ivan
Ivânovitch, jogados fora e espalhados pela roda diabólica da máquina do tempo.
Maiakóvski acenava para a necessidade urgente do país livrar-se de tantos
estorvos, como inúmeros burocratas que, assim como Pobiedonóssikov,
atrapalhavam, não ajudando em nada a nação. Estas pessoas deveriam ser mergulhadas
em um grande banho.
A peça se encerra com Pobiedonóssikov dizendo a Mezaliânsova que estava
tudo bem, que se retiraria da vida privada para escrever memórias, convidando sua
secretária a acompanhá-lo. Mas a secretária faz duras críticas ao seu antigo chefe e
amante, afirmando que ele não havia dado conta de construir nem o socialismo nem a
mulher. Depois disso ela sai com Pont Kitch.
A fala final é de Pobiedonóssikov:
Ela, os senhores, o autor o que vocês quiseram dizer com isto? Que eu e meus
semelhantes não somos necessários para o comunismo?!?
Certamente, essa era a questão que Maiakóvski proporia a todos os inúteis
burocratas que estavam no comando político da nação: quem sabe se eles se
132
convencessem da sua inutilidade e do mal que estavam fazendo ao país, abdicando de
seus cargos, abririam espaços, oportunidades para outras pessoas que estivessem
verdadeiramente interessadas em construir uma nova nação, de acordo com o ideário
socialista. Até aquele momento ainda não tinha sido possível construir a sociedade que
Maiakóvski e tantos outros haviam sonhado, mas a esperança é que mesmo em um
futuro distante, quem sabe em 2030, a Rússia pudesse chegar à Terra Prometida.
Ripellino, em suas abalizadas análises de Os Banhos, faz um comentário
final sobre a peça:
O achado mais brilhante do espetáculo é o do final. A máquina parte
com grande alarde em direção ao Dois Mil. E na tela as breves seqüências de uma
cinemontagem mostram num apanhado rápido as etapas do regime soviético.
Aparecem brevemente os tratores dos estabelecimentos agrícolas coletivos, as
primeiras estações do metrô moscovita, a expedição do “Tcheljúskin”, o canal do
mar Branco, os novos edifícios construídos às vésperas da guerra, os “Katiúch”,
os fogos de alegria que saudavam as vitórias militares, o Dnieprogués
reconstruído. E eis os nossos anos: o canal Volga-Don, a Universidade de
Moscou. Fotogramas coloridos sucedem os em branco e preto.
Depois, um turbilhão de datas em círculos concêntricos, que saem
como que dos sorvedouros do tempo. E de repente um estrondo. O filme se
interrompe. Sobre uma plataforma redonda, perdida sobre o fundo de um céu
imenso, alongam-se numa luz avermelhada as sombras sumidas dos “puros”,
arremessados para fora pela máquina. Após um instante de desorientação, partem
um a um, dando as costas a Pobiedonóssikov, enquanto ao fundo a gigantesca
figura de Maiakóvski se levanta para incinerar o burocrata com seu olhar de
desprezo
103
.
Percebe-se uma grande coerência na vida e na obra de Maiakóvski que,
desde muito cedo, havia produzido uma arte panfletária e incendiária, denunciando as
mazelas do regime czarista e lutando por uma sociedade mais justa na qual os
trabalhadores não fossem tão sacrificados. Por todo esse engajamento do poeta ele teve
que conviver com as injustiças e as críticas de seus opositores que afirmavam que a arte
que ele produzia não era compreensível para as massas. Uma crítica infundada já que
Maiakóvski sempre procurava resgatar a arte russa no que ela tinha de verdadeiramente
popular, seja a arte circense, ou o teatro de feira, usando sempre temas e um vocabulário
extraído do cotidiano, pois o seu propósito era criar uma arte que traduzisse o
sentimento popular.
103
RIPELLINO, op. cit., p. 208-209.
133
A estas críticas que tentavam diminuir o alcance e a força da arte do maior
poeta da Revolução Russa, Maiakóvski respondia com poemas, como salientamos no
capítulo I, e também com intervenções em debates, como ocorreu em 1928:
Eu nunca vi alguém vangloriar-se assim:
“Como sou inteligente não compreendo a aritmética, nem o francês, nem a
gramática!”
Mas o grito alegre:
“Eu não compreendo os futuristas” ressoa quinze anos, extingue-se para em
seguida crescer novamente, mais excitado e jubiloso do que nunca.
Com este grito, houve gente que fez carreira, recolheu fundos e assumiu a
liderança de correntes literárias.
Se toda a assim chamada arte de esquerda se construísse com o simples cálculo de
não ser compreensível a ninguém (exorcismos, números, etc.), não seria difícil compreendê-la e
colocá-la no devido lugar histórico e literário.
Bastaria compreender que se procurava chegar à incompreensão, colar um rótulo
e esquecer o caso.
Mas o simples “Não compreendemos!” não é um veredicto.
Seria veredicto: “Compreendemos que é uma bobagem tremenda!”, seguido de
dezenas de exemplos sonoros, apreendidos de cor e cantados.
Mas não é o que se vê.
O que se encontra é demagogia e especulação com o que não se compreendeu.[...]
Fiz leitura a camponeses no palácio de Livádia. Este mês, li meus versos nas docas
de Baku, na Usina Schmidt, também de Baku, no Clube Chaumian, no clube operário de Tiflis,
li montado num torno, no intervalo do almoço, sob o rodar abafado das máquinas.
Vou copiar um dos muitos informes de comitê de usina:
“A presente é dada pelo comitê da Usina Metalúrgica Transcaucásica Tenente
Schimidt ao camarada Vladimir Vladímirovitch Maiakóvski, atestando que no dia de hoje ele
compareceu perante um auditório de operários, a fim de ler suas obras.
“Concluída a leitura, o camarada Maiakóvski dirigiu-se aos presentes com um
pedido para que dessem as suas impressões e indicassem o grau de assimilação do texto,
procedendo-se então a uma votação com este fim, a qual mostrou compreensão integral, pois
votaram “sim” todos os presentes, com exceção de um, o qual declarou, no entanto que,
ouvindo o autor em pessoa, passava a compreender suas obras melhor que durante a leitura
individual.
“Compareceram à reunião 800 pessoas.”
Aquele um era o guarda-livros da usina.
Pode-se passar muito bem sem os informes, mas o burocratismo é também
literatura. E ainda mais difundida que a nossa
104
.
Percebia-se, claramente, que as críticas endereçadas a Maiakóvski eram
tentativas de descaracterizar e diminuir a importância de seus trabalhos que se
constituíam em poderosas armas que atacavam e feriam mortalmente os contra-
revolucionários russos, seja no campo das artes ou da política; aspectos que jamais
estiveram dissociados na vasta obra do poeta futurista que continuava firme em suas
convicções, acreditando que o socialismo ainda seria possível.
104
Cf. SCHNAIDERMAN, Boris. A Poética de Maiakóvski. São Paulo: Perspectiva, 1984. p. 229.
134
Mesmo ao final de sua curta temporada na terra, o poeta das revoluções
continuava produzindo. E, a despeito dos caminhos que haviam tomado a revolução
russa e a sua vida, ainda assim, ele acreditava que o socialismo, mesmo que em um
futuro distante, no ano de 2030, seria viável e poderia ser implementado.
135
CONCLUSÃO
A instalação de uma classe no poder, mais do que a
própria revolução, é seu escamoteamento: as profundezas
abertas fecham-se outra vez, a nova classe dirigente
volta-se contra aqueles que haviam auxiliado seu triunfo,
e que a ultrapassavam, restabelece sobre eles seu
poder positivo, contestado. A revolução é progresso
quando comparada com o passado, mas decepção e
aborto quando comparada com o futuro que deixou
transparecer e sufocou.
Maurice Merleau-Ponty
À medida que tomamos como referência uma bibliografia que, ao tratar da
Revolução Russa, vai além das análises tradicionais, entendidas como aquelas que
creditam ao partido bolchevique, todo o peso da história, como se, somente o partido
tivesse importância naquele momento, assim, podemos ter acesso a outras versões desta
história, nas quais o aspecto político é de fundamental importância, porém, está
relacionado às questões econômicas, sociais e, especialmente, culturais, como atestam
as obras de Vladimir Maiakóvski, que faz as mediações, ressaltando as intrincadas
relações entre a política, a sociedade e a cultura russa no período revolucionário russo.
Certamente, outra referência importante de uma interpretação da revolução
russa que se distancia das análises clássicas, essencialmente políticas, é Diário de
Moscou de Walter Benjamin
105
. No livro são problematizadas questões cruciais, como a
relação do partido comunista com artistas russos; a maneira como estava sendo
conduzida a questão cultural; além de vários outros aspectos da vida na Rússia que são
discutidos pelo filósofo e crítico literário alemão, e que não figuram dentro dos limites
da historiografia tradicional.
136
Diário de Moscou nos possibilita apreender os acontecimentos de 1917, sob
um novo prisma, numa perspectiva diferenciada. Sua obra é fruto de um curto espaço de
tempo em que esteve na capital da Rússia. Apesar da brevidade de sua estada naquela
cidade, de dezembro de 1926 a final de janeiro de 1927, Benjamin, a partir de suas
impressões, nos traz informações importantíssimas a respeito da Rússia. Mesmo tendo
transcorrido uma década dos acontecimentos que revolveram o país, Benjamin nos
possibilita fazer uma análise dos acontecimentos de 1917, pois seus referenciais estão
assentados no período revolucionário.
Moscou, como se apresenta neste momento, permite entrever, sob
forma esquemática, todas as possibilidades – sobretudo as relativas ao fracasso ou
êxito da Revolução. Em qualquer dos casos, porém, resultará algo imprevisível,
cuja configuração será bem distinta de toda previsão programática, e isto
delineia-se hoje sólida e nitidamente nos homens e no seu meio.
106
Basicamente, foram três os motivos principais que levaram Benjamin à
Rússia no final de 1926 e começo de 27: o compromisso firmado com uma editora se
comprometendo a escrever artigos sobre a literatura russa; outro motivo muito
importante era o desejo de rever um grande amor, a atriz de teatro revolucionário, Asja
Lacis, que ele havia conhecido na ilha de Capri, em 1924, e que estava vivendo
algum tempo naquele país. Alem disso, ele desejava também ver de perto como estava a
situação do país após a Revolução de Outubro para decidir sua filiação ao Partido
Comunista. Os resultados dessa viagem, se ela foi bem sucedida, ou não, veremos
adiante.
No livro de Walter Benjamin estão registradas as impressões de um crítico
de arte bastante sagaz, dotado de um espírito perscrutador, fazendo com que quase nada
escapasse à sua observação. Para além das valiosas considerações acerca das artes na
Rússia, naquele momento atentando, especialmente, para a relação dos artistas que
tiveram uma atuação fundamental na consolidação da revolução, com o partido
comunista, observando como essa relacionamento vai se tornando cada vez mais
complexo, especialmente, quando tem início a exacerbação do controle do Partido, que
atinge o apogeu sob o influxo stalinista, Benjamin nos possibilita conhecer também um
105
BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
106
Ibidem, p.13.
137
pouco dos aspectos físicos da cidade, por meio de suas impressões daquela metrópole
tão peculiar
107
.
A relação da vanguarda artística com a vanguarda política na Rússia é
analisada também por Silvana Garcia em Teatro da Militância. A autora, analisando as
matrizes das artes políticas, uma expressiva contribuição para se pensar a relação do
Partido com a cultura russa no período revolucionário. Uma relação marcada por fluxos
e refluxos. A autora ressalta a importância que tiveram os grupos auto-ativos, os teatros
de agitação e propaganda – os agitprops – além dos jornais vivos, que promoveram uma
verdadeira revolução na cultura russa se distanciando da concepção burguesa que
prevaleceu por um longo tempo no país aproximando-a das massas.
Artistas que faziam parte desses grupos iam para o meio das ruas, levando
suas artes às pessoas, desempenhando um importante papel no sentido de informar os
últimos acontecimentos a um grande contingente de analfabetos, pessoas que não
tinham acesso à informação. Obviamente, esses grupos, ao lado de uma pesquisa
formal, também estavam imbuídos de um propósito político, que era arregimentar as
massas em torno da proposta socialista.
Diversas campanhas de agitação foram feitas, visando instruir as massas
acerca das idéias socialistas, com o propósito também de garantir a vitória da revolução.
A grande movimentação de grupos de teatro perambulando pelas vilas, casernas e locais
de batalha revive a tradição do teatro ambulante e nos grandes centros urbanos as ruas
se tornaram o cenário privilegiado das manifestações artísticas. A Rússia passa a ser,
naquele momento, um grande cenário, a céu aberto, onde a população se constitui em
107
Benjamin foi favorecido pela amizade com Bernard Reich, dramaturgo, diretor e crítico de teatro, que
ele havia conhecido em Capri em 1924. Como Reich estava bem mais tempo em Moscou, ele
possibilitou o encontro de Benjamin com muitos nomes importantes ligados às artes russas, como Petr
Semenovich Kogan que dentre tantas outras atribuições, era o presidente da Academia de Artes desde a
sua fundação em 1921. Além dele, conheceu também Meyerhold, um dos mais importantes diretores e
encenadores do teatro russo. Benjamin, valendo-se desses contatos de assistir a um grande número de
espetáculos de teatro, assistiu a vários filmes, visitou galerias de arte, enfim, empreendeu uma grande
jornada artística no curto período em que esteve na cidade. Dentre as várias encenações teatrais a que
assistiu podemos destacar: O Inspetor Geral, um clássico escrito por Nicolai Gogol, em 1836, e que foi
adaptado ao teatro revolucionário; Tempestade, peça escrita por Vladimir Bill Belotserkovsky, que
apresentava episódios do comunismo à época da guerra; Os Dias de Turbini montada por Stanislavsky.
Entre os muitos filmes que Benjamin assistiu destacamos: Mãe, filme de 1926, dirigido por Vsevolod I.
Pusovkin e baseado no romance homônimo de Gorky; O processo de Três Milhões, uma comédia policial
dirigida por Yakov Protazanov, também de 1926; Dentro da Lei, filme de Kuleshov baseado no conto de
Jack London, além de Potemkim de Eiseinstein.
Exercitando seu apurado senso crítico, Benjamin afirma que as peças teatrais russas, apesar de alguns
aspectos interessantes, como figurinos, por exemplo, ainda carecem de bons roteiros. Quanto ao cinema,
ele afirma que há um grande atraso se comparado com as produções ocidentais.
138
protagonistas de uma história viva e premente. Todos desempenham seus papéis. É no
bojo desses acontecimentos que ganha papel de destaque os grupos auto-ativos e os
agitprops.
Em conformidade com Silvana Garcia, a falência do auto-ativismo se no
período da Nova Política Econômica (NEP) a partir de 1921, determinando, assim, uma
tendência de concentração do agitprop. A partir daí os teatros foram remanejados,
submetendo-se, em sua maioria, ao controle das cooperativas de atores e ao exército
vermelho, numa tentativa de torná-los mais rentáveis.
Deve ser observado, que a esta mudança, corresponde uma outra de natureza
do trabalho dos coletivos, passando da agitação e propaganda, ou seja, da
arregimentação e da mobilização em torno dos objetivos imediatos da revolução, para a
construção do socialismo soviético. As artes, que ao longo do processo revolucionário,
desempenharam um papel de capital importância na construção do socialismo, passaram
a ser vigiadas pelos bolcheviques que a princípio tinham estimulado a atuação destes
grupos.
O teatro de agitprop representa uma subversão espontânea das formas
tradicionais e uma radicalização dos procedimentos de vanguarda. Seus objetivos
precípuos eram informar, educar e mobilizar para a ação. Além disso, ele visava
também extrapolar a relação palco/platéia, rompendo quaisquer limites, fronteiras que
se interpunham entre os dois.
Nesse sentido, para além do engajamento político, ou ao lado dessa questão,
era inaugurada uma nova concepção de teatro, com base improvisacional e coletiva
108
.
Levando em conta que o Teatro de Agitação e Propaganda deve estar na vanguarda de
todas as campanhas e tarefas do socialismo, ele, necessariamente, tem que ser ágil,
simples e muito objetivo.
Em última instância, é um teatro que visa um resultado concreto
mensurável por sua eficácia política, não apenas a nível da mobilização
conseguida para esta ou aquela campanha em particular mas no engajamento
mais amplo, que extrapola a relação palco-platéia e soma esforços na construção
do socialismo.
109
108
A base coletiva, na qual se assenta o agitprop é improvisacional, não há uma dramaturgia pronta. Sua
característica básica é sua prontidão, sua contemporaneidade, e todos participam do processo de criação.
109
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. São Paulo: Perspectiva, 1990. p 20.
139
A fase final do agitprop, segundo Silvana Garcia, tem como pano de fundo o
começo da ditadura autocrática de Stálin. Na cultura, de maneira geral, início a um
período conturbado, de cerceamento das liberdades, de interferências vindas de cima,
sobretudo na vida literária e de instrumentalização do teatro pela máquina do Estado.
À medida que vai avançando a ditadura stalinista, vão escasseando as
informações a respeito dos remanescentes do teatro de agitprop no seio do
movimento auto-ativo. O mais provável é que, de fato, após 1932, nada do que
existe nesse campo mereça qualquer registro. A história, a partir daí, é uma
sucessão de perdas e retrocessos, prenunciados pelo suicídio de Maiakóvski, em
maio de 1930, passando pelo discurso de Zdanov oficializando a tese do realismo
socialista, durante o I Congresso de Escritores Soviéticos, em 1934, e culminando
com a condenação do teatro de Meyerhold durante a Assembléia do Diretores de
Cena e a posterior prisão e execução do encenador em 1936. Ao fundo,
emoldurando o culto a Stálin, o cenário das retratações e as ondas de depuração
dos Grandes Processos (1936-38)
.
110
Nesse sentido, é relevante observar que a princípio, quando ainda interessa
ao Partido que esses artistas aproximassem as massas das propostas socialistas, para que
juntos pudessem defender a revolução socialista, eles tiveram seu irrestrito apoio, no
entanto, quando a revolução já havia se consumado, as manifestações artísticas e
culturais passaram a representar uma ameaça à ordem, a ponto de muitos artistas, como
ocorreu com Meyerhold, serem eliminados.
Essa conturbada relação da vanguarda artística com a vanguarda política,
seja no momento da revolução, ou posteriormente, também está presente na análise de
Benjamin, que constata que os movimentos de esquerda, tão de grande importância no
período revolucionário, eram descartados pelo Partido naquele período, não podendo
mais contar, portanto, com o apoio estatal.
Diário de Moscou é dotado de uma riqueza incomensurável, na medida em
que não trata pura e simplesmente de um relato de um crítico arguto acerca da realidade
russa. Muito mais que isso, embora sua permanência na cidade tenha se dado uma
década após a tomada do poder pelos bolcheviques, nos é permitido o acesso a um
panorama geral da Rússia no período revolucionário, por meio dos contatos que
Benjamin estabeleceu na cidade. Conscientemente, ou não, quase todos foram com
judeus, sempre de oposição, como o próprio Benjamin. Esses encontros e conversas nos
permitem ter uma noção da postura de comunistas que tiveram uma ão significativa
durante a revolução, e suas, nada fáceis, relações com o Partido naquele momento.
140
Pessoas que tiveram grande importância no calor dos acontecimentos de 1917, e que,
portanto, receberam irrestrito apoio do Partido, mas que naquele momento eram
descartados, alijados do processo.
Segundo Benjamin, as pessoas filiadas ao Partido que tiveram uma atuação
efetiva ao longo do processo revolucionário haviam mudado radicalmente de postura a
partir do desfecho da Revolução de 1917, ou seja, os comunistas combatentes e
defensores da revolução socialista de outrora, diante do controle do partido comunista,
foram perdendo espaço, sua liberdade passou a ser cerceada. Esse foi um dos fatores
que fizeram com que Walter Benjamin decidisse pela não filiação ao partido comunista.
Como a permanência de Benjamin em Moscou era muito curta, ele
empreendeu uma verdadeira peregrinação pela cidade. A despeito das adversidades que
teve que enfrentar, como o desconhecimento da língua,
111
e um inverno muito rigoroso
que quase o impedia de sair às ruas, ele visitou muitos museus, cinemas, teatros,
galerias de arte, igrejas, enfim, o maior número de lugares possíveis que pudessem lhe
dar referências a respeito da cultura russa naquele período, além de conversar com um
grande mero de pessoas para recolher mais informações sobre aquela metrópole tão
peculiar.
Durante suas caminhadas, com seu olhar atento, ele vai descrevendo as
características da cidade, o que nos possibilita conhecer um pouco das especificidades
de Moscou que, para ele, era uma “metrópole improvisada” que parecia ser o subúrbio
dela mesma, com calçadas muito estreitas disputadas por toda sorte de vendedores e que
por isso as pessoas precisavam andar em ziquezague, chama a atenção também pelo
multiculturalismo, devido à heterogeneidade de seus habitantes e multicolorida com
destaque para o vermelho e o amarelo, e dotada de uma arquitetura muito particular que
abrigava prédios com muitos séculos de história
Dentre tantas outras coisas que impressionam Benjamin, na cidade, estão os
brinquedos de madeira que são vendidos nas ruas. O brinquedo é uma antiga paixão do
filósofo alemão que chegou a escrever um livro sobre o assunto. Além disso, ele faz
referência também às igrejas de Moscou, que são em grande número, mal cuidadas,
vazias e geladas. A catedral de São Basílio, segundo Benjamin, foi transformada em
110
Ibidem, p. 19
111
A tumultuada relação entre Benjamin e Asja foi marcada muito mais por discussões, sobre os mais
variados assuntos, do que por conversas amigáveis. Em uma dessas brigas, Asja lhe diz que ele nunca iria
conseguir entender o que realmente estava acontecendo na Rússia , pois ele era um estrangeiro.
141
museu. As cruzes sobre as cúpulas parecem brincos gigantes pendurados no céu. Luxo
que se instalou na cidade empobrecida e sofrida, como tártaro numa boca doente.
112
Benjamin ressalta também as dificuldades que a população enfrenta no seu
dia-a-dia, tendo que se sujeitar a enormes filas para adquirir gêneros de primeira
necessidade, como a manteiga, o sal e o pão, além dos problemas com transporte,
abastecimento de energia, e um problema crucial que a maioria da população russa
enfrentava que era a moradia. As pessoas, em geral, moram em espaços de treze metros
quadrados que, normalmente, são divididos com cortinas. O preço do metro quadrado,
de acordo com Benjamin, era proporcional ao salário do inquilino que, se quisesse mais
conforto e privacidade, teria que pagar um preço exorbitante.
Vejamos as observações que ele faz a respeito de um edifício onde mora um
casal de amigos de Reich:
Nesses aposentos que se parecem com hospitais militares após a
última inspeção, as pessoas suportam a vida porque sua maneira de viver as
alieniam do seu ambiente doméstico. Vivem mais no escritório, no clube, na rua.
113
Toda essa confusão relacionada com a moradia em Moscou, com várias
famílias dividindo uma mesma casa, fazia com que a vida privada praticamente não
existisse.
Também conversamos sobre o desaparecimento da vida privada.
Simplesmente não tempo. Gnedin contou que durante a semana não outras
pessoas a não ser aquelas com as quais tem contato no trabalho, sua mulher e seu
filho. Outros tipos de relação ficam restritos aos domingos, mas são instáveis
porque se você perde o contato com seus conhecidos, mesmo que seja por apenas
três semanas, já pode ter certeza de que não vai ter notícias deles por muito tempo,
porque neste intervalo, eles substituíram os antigos conhecidos por novos
114
.
Em um de seus inúmeros diálogos com Reich, Benjamin trata da situação
dos intelectuais na Rússia e na Alemanha. Além disso, eles conversam também sobre as
técnicas de produção literária nos dois países, um assunto que dizia respeito diretamente
aos dois, especialmente Benjamin que havia se comprometido a produzir artigos
tratando das artes russas, como forma de pagamento pela viagem. Um dos pontos altos
dessa conversa é a hesitação de Reich quanto à sua filiação ao Partido.
112
BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.32.
113
BENJAMIN, op. cit., p.35.
114
Ibidem, p. 101.
142
Seu tema constante é a reacionária mudança de rumo do Partido em
assuntos culturais. Os movimentos esquerdistas, úteis à época do comunismo de
guerra, agora são completamente descartados. pouco, os escritores
proletários foram oficialmente reconhecidos como tais (a despeito de Trotski) pelo
Estado, deixando-se bem claro, porém, que não poderiam de maneira alguma
contar com apoio governamental.
115
Este é um momento lapidar do livro, quando nos são apontados os rumos
que a revolução vai tomando, qual o desfecho que teria a tão decantada revolução.
Caminhando, pouco a pouco, inexoravelmente, para uma centralização e controle de
todas as vias de liberdade de expressão não só de artistas. Essa censura e controle era
extensivo às massas russas, algo que feria mortalmente os princípios socialistas. que
se lembrar que foi a partir da defesa desses princípios, como a participação dos
trabalhadores no governo, a liberdade e igualdade, que Lênin, à frente do partido
bolchevique, conseguiu arregimentar as massas em defesa da revolução socialista.
Entretanto, o que se percebeu é que o gosto pela liberdade foi experimentado por um
curto espaço de tempo, já que o que era para ser uma ditadura do proletariado, havia se
transformado em uma implacável ditadura do partido.
A Rússia, segundo Benjamin, apresentava muitas contradições naquele
momento, pois em sua política externa o governo visa a paz, com o objetivo de
estabelecer acordos comerciais com Estados imperialistas, enquanto que, internamente,
ele procura deter o comunismo militante, com o intuito de introduzir um período livre
de conflitos de classe, objetivando despolitizar, tanto quanto possível, a vida dos
cidadãos. Por outro lado, a juventude passa por uma educação “revolucionária” em
organizações pioneiras, como o Komsomol, órgão encarregado da instrução pública.
Dessa forma, fica bastante claro que o revolucionário não lhes chega como experiência,
e sim, como discurso.
Existe a tentativa de deter a dinâmica do processo revolucionário na
vida do Estado entrou-se, querendo ou não, num período de restauração, ao
mesmo tempo em que se deseja armazenar a energia revolucionária na juventude,
como eletricidade numa pilha.
116
O controle imposto pelo partido, tão logo a revolução se consolida, e que foi
aumentando paulatinamente, passando a tutelar toda a sociedade, pode ser facilmente
verificado entre as pessoas que, de maneira geral, tinham muito receio em expressar
115
Ibidem, p. 20.
116
Ibidem, p. 67.
143
suas opiniões, o que pode ser verificado na observação que Benjamin faz quando assiste
à encenação de O Inspetor Geral, um clássico de Nicolai Gogol que foi adaptado para o
teatro revolucionário. A peça havia enfrentado problemas antes mesmo de sua
montagem, pois o próprio Partido havia se manifestado contra a encenação.
Os aplausos no teatro foram escassos, o que talvez seja conseqüência
mais da orientação oficial do que da impressão inicial que a peça causou no
público, pois a encenação foi certamente uma festa para os olhos. Isto certamente
está relacionado com a atmosfera geral de cautela que reina por aqui quando se
trata de expressar publicamente uma opinião
117
.
Dessa forma, fica bastante evidente que, naquele momento, a população
russa não tinha mais liberdade de expressão, algo que sempre havia sido uma bandeira
de luta empunhada pelas massas, que muito viviam sufocadas, sob os auspícios de
um regime opressor.
As manifestações de trabalhadores na Rússia, no período czarista, foram
marcadas por muita violência e repressão por parte da polícia, o que não os impedia, no
entanto, de fazerem suas reivindicações mesmo que tivessem que pagar um alto preço,
que chegava muitas vezes a ser a própria vida.
A liberdade também era uma condição indispensável para o socialismo. No
entanto, o gosto pela liberdade foi experimentado num curto espaço de tempo pelos
trabalhadores que não mediram esforços para edificarem uma nova sociedade que
acabou por se voltar contra eles. A esperança de libertação havia se transformado em
uma triste e velha realidade: a população sendo controlada, vigiada e espoliada.
Uma revolução, que para os russos era a esperança de liberdade ampla e
irrestrita, vai se transformando em algo bastante familiar para os trabalhadores: a velha
e indesejável autocracia. A democracia, condição essencial para o socialismo, sempre
considerando a importância de se consultar as bases nas tomadas de resoluções que
num governo democrático o povo está acima de tudo, vai se tornando, novamente, um
sonho distante para a sofrida população russa.
Nesse sentido, a hesitação de Reich, quanto à sua filiação ao Partido
Comunista é inteligível se levarmos em conta que naquele momento o Partido estava
muito distante de ser aquilo que se pretendia à época da revolução, ou seja, a
117
Ibidem, p. 43.
144
representação de uma sociedade sem privilégios de classe, com ampla liberdade de
expressão em todos os sentidos.
Assim como seu amigo, Benjamin também se mostra bastante reticente com
relação à sua filiação ao Partido. Ao analisar as vantagens e desvantagens de uma
possível filiação, ele acaba optando pela não filiação.
É interessante ressaltar que Benjamin chega a Moscou, trazendo na
bagagem muitas expectativas, tanto no campo profissional, quanto no particular. No
entanto, como a vida insistia em não ser muito generosa com o filósofo, que ao longo
dos seus quarenta e oito anos, teve que enfrentar muitos desafios e dissabores, o
desfecho da viagem também não lhe foi muito favorável. Ao final, não conseguiu
estreitar os laços amorosos com Asja Lacis que se casou com Bernard Reich; não se
filiou ao Partido Comunista; e nem conseguiu estabelecer contatos mais sólidos com
editoras russas.
Com o advento do nazismo, Benjamin se estabeleceu em Paris, mas foi
obrigado a fugir devido à invasão da França pelos alemães. O curto período de vida de
Walter Benjamin (1892 1940) encerrou-se na fronteira entre Espanha e a França,
onde se suicidou.
As leituras reducionistas que muitos autores fizeram do processo
revolucionário russo, não dão conta de que o processo histórico é multifacetado, não
podendo, dessa forma, ser apreendido, somente a partir de um determinado prisma.
Esses autores não vislumbram a relação intrínseca que se estabelece entre os vários
aspectos que compõem o conjunto de uma sociedade. Ao aspecto político não pode ser
concedido toda a dimensão do processo histórico, como se somente a questão política é
que tivesse relevância e peso para a história, que gravita tão somente em torno da
política, creditando ao partido bolchevique um peso muito grande no desenrolar dos
acontecimentos, sem mencionar a atuação de milhões de pessoas, muitas das quais, não
tinham nenhum vínculo partidário e que por isso não figuravam na história.
Jean Marabini, em sua importante obra A Rússia Durante a Revolução de
Outubro, também uma expressiva contribuição para o redimensionamento do tema,
na medida que ao abordá-lo, o faz a partir da perspectiva de um jornalista que nos
transporta para o inesgotável inventário das ruas na Rússia durante o período
revolucionário. Utilizando um termo do próprio autor, para designar toda a
efervescência daquele período, “a rua torna-se um grande teatro” onde milhares de
145
pessoas vão desempenhar os seus papéis. Os confrontos aconteciam abertamente e as
multidões, que sob a tutela do regime czarista, não tinham liberdade de expressão e nem
participação política, passaram a se constituir em protagonistas de uma história que
trazia consigo muitos elementos de uma tragédia. O desfecho desta história ainda era
uma incógnita, só o tempo poderia revelar.
Marabini, apreende o processo revolucionário numa perspectiva que o
distancia dos historiadores tradicionais. Fazendo críticas à história dominante, o autor
lança uma série de questões que para a historiografia clássica, não teriam nenhuma
relevância, como por exemplo, que influência teria na revolução a iconografia popular?
Como se representam os homens e os acontecimentos numa sociedade de analfabetos?
São estas, e várias outras reflexões, que nortearão a sua análise a respeito da revolução
russa e que muito contribuíram para se resgatar uma história da Revolução Russa que
não foi contada pela historiografia tradicional que não se interessava pelos aspectos
mais gerais, atendo somente às questões institucionais.
Nossa preferência repousava, evidentemente, nessa história ‘invisível’
da Revolução Russa. A aqui desprezou-se voluntariamente sondar, mesmo
caindo ao nível de um ‘correio sentimental’, certas correntes populares que, por
não serem ‘ortodoxas’, ‘virtuosas’, e não corresponderem a um ‘dogma’ de
catecismo, até hoje não foram exploradas nem pela ciência, que na Rússia é dita
‘burguesa’, nem pela ciência que na França se chama de ‘marxista’
118
.
Indubitavelmente, é na abordagem que Marabini dá à Revolução que o
difere de outros historiadores. A sua análise distancia-se das abordagens tradicionais
que deram muita ênfase ao caráter institucional da revolução, ao passo que ele trata do
processo revolucionário a partir do inesgotável inventário das ruas, resgatando a
atuação, a participação de pessoas “comuns”. É interessante observar como Marabini
aponta para a ligação do processo revolucionário com as mais arraigadas tradições dos
povos russos, o que foi determinante para o desfecho da revolução.
Aquele, era um momento de grande expectativa, que além da política e
economia, a despeito das agruras da guerra externa e interna, da fome, da miséria
generalizada, a vida continuava seu curso equilibrando-se entre a possibilidade de
destruição da velha ordem e a construção de uma nova, que significaria novos tempos
para aquela população sofrida.
118
MARABINI, Jean. A Rússia Durante a Revolução de Outubro. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p.12.
146
Em meio a todo este turbilhão que revolveu o país, verificou-se também um
grande fluxo criativo no campo das artes e na cultura de maneira geral. Era um período
de profundas mudanças, foram várias revoluções que aconteceram concomitantemente.
Os artistas russos que estavam buscando novos rumos para as artes, uma nova estética
que pudesse representar aqueles novos tempos, em sua grande maioria, não dissociaram
a revolução estética das questões políticas. Para muitos artistas engajados na revolução
política e arte eram indissociáveis.
Marabini afirma que cada uma das testemunhas do que estava acontecendo
nas ruas, experimentava uma sensação de vertigem ao constatar a ascensão de uma
efervescência que transcende qualquer limite ao mesmo tempo em que se consideravam
participantes das transformações. Ele afirma ainda que a Rússia era um caso singular na
história do mundo. Era como se o país fosse todo remexido, e cada pessoa, na confusão,
na desordem, provocasse e esperasse a eclosão da nova ordem.
As centenas de milhares de homens e mulheres que vão se agitar na
rua, nos bulevares, nas praças, nas pontes por motivos contraditórios,
freqüentemente essenciais, às vezes fúteis e mesmo cômicos, abalando todas as
regras de sua vida cotidiana, tornar-se-ão atores de uma espécie de tragédia
coletiva, personagens à espera de um clarão, de um autor que, após tê-las
ofuscado, as reúna num só conjunto, o de uma nova peça.
119
Todo esse turbilhão que remexeu a Rússia, como afirma Marabini, estendeu-
se também ao campo das artes. Essa ebulição pode ser apreendida por meio de obras de
artistas que lutaram em defesa da revolução socialista. Esses artistas nem sempre
tiveram um relacionamento tranqüilo com o Partido que foi mudando rapidamente de
conduta no que se refere aos assuntos culturais.
A efervescência que a ssia estava vivenciando no campo da política,
livrando-se de uma inexorável autocracia, com a perspectiva de implantação do
socialismo, um sonho que acalentou e mobilizou milhares de pessoas, entre elas,
artistas, intelectuais, trabalhadores, enfim, uma grande parcela da população que era
espoliada, para sustentar os privilégios de alguns segmentos da sociedade, como a
burguesia, essa mesma ebulição também ocorreu no campo da cultura.
Não obstante, se tomarmos como referência, para o estudo do processo
revolucionário russo, somente autores que se consubstanciaram na historiografia
tradicional, jamais teremos acesso ao rico universo cultural da Rússia no início do
147
século XX. Com todas as mudanças verificadas na história e na sua escrita, um processo
que teve início em 1929, com os Annales, mas que ganhou corpo a partir de 1960,
muitos temas puderam ser revisitados e abordados dentro de novas perspectivas, como a
cultural, por exemplo.
Assim, defendemos a possibilidade e a viabilidade de apreensão dos
acontecimentos que marcaram a Rússia e o mundo em 1917, a partir de uma outra
perspectiva, como, por exemplo, tomando como referência obras daquele que foi um
dos mais atuantes artistas russos à época da revolução: Vladimir Maiakóvski. O
futurista russo vivenciou e atuou em todas as etapas pelas quais passou a revolução,
acompanhando seus avanços e retrocessos, colocando suas artes em defesa da causa
revolucionária. Somente a partir desses novos referenciais é que teremos contato com o
inesgotável universo cultural russo do início do século XX.
Maiakóvski, ao lado de Walter Benjamin, Jean Marabini, dentre outros, nos
proporcionam conhecer uma outra história dos acontecimentos de 1917, que não figura
nas limitadas leituras que os historiadores tradicionais fizeram do processo
revolucionário russo.
Criticando Maiakóvski por excesso de eloqüência política, muitos
esquecem como ele era capaz de extrair sugestões fantásticas dos temas mais
áridos. Freqüentemente transpõe as miudezas concretas da vida soviética a uma
paisagem cósmica, numa espécie de espetáculo universal. Com seu inesgotável
gênio inventivo, criava tramas grandiosas, pontes imensas sobre os séculos e sobre
o espaço. Em 1923, no prefácio da coletânea Viéchchi étovo goda (Coisas deste
ano), publicada em Berlim, anunciou que estava escrevendo além do mais uma
comédia de 16 quadros, “da época de Adão e Eva em diante”
A ânsia de competir com o tempo e com o universo juntamente com
um gosto pelo complicado e pelo gigantesco levaram-no a projetar na própria
criação a longinqüidade da terra e do firmamento, as parábolas bíblicas, e
sobretudo as paisagens quiméricas do futuro. Em poucos poetas é tão assíduo, tão
exasperado, o tema do futuro.
120
Enquanto existirem pessoas que acreditam que o mundo pode ser
transformado, pode ser melhor, menos injusto, e artistas que compartilham estes
pensamentos, e que crêem no poder de intervenção das artes na sociedade, no sentido de
ajudar no processo de construção de um relacionamento menos desigual entre os
homens, os gritos libertários e revolucionários lançados por Maiakóvski, poderão
ressoar aos quatro cantos do mundo. Quem sabe se mesmo num futuro distante, um dia,
119
MARABINI, op. cit., p.50.
120
RIPELLINO, op. cit., p.111
148
talvez poderemos ter um mundo um pouco melhor, como desejava o grande poeta.
Certamente, ele continua falando “A Plenos Pulmões”.
A PLENOS PULMÕES
Primeira Introdução ao Poema
Caros
Camaradas
Futuros!
Revolvendo
A merda fóssil
De agora,
Perscrutando
Estes dias escuros,
Talvez
Perguntareis
Por mim. Ora,
começará
vosso homem de ciência,
afogando os porquês
num banho de sabença,
conta-se
que outrora
um fervido cantor
a água sem fervura
combateu com fervor.
Professor,
jogue fora
as lentes-bicicleta!
A mim cabe falar
de mim
de minha era.
Eu – incinerador,
eu – sanitarista,
a revolução
me convoca e me alista.
Troco pelo front
a horticultura airosa
da poesia –
fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim
virgem
vargem
sombra
alfombra.
“É assim o jardim de jasmim,
o jardim de jasmim do alfenim.”
Este verte versos feito regador,
aquele os baba,
boca em babador, -
149
bonifrates encapelados,
descabelados vates –
entendê-los,
ao diabo!,
quem há-de...
Quarentena é inútil contra eles –
Mandolinam por detrás das paredes:
“Ta-ran-rin, ta-ran-tin,
ta-ran-ten-n-...”
Triste honra,
se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
escarra a tuberculose;
putas e rufiões
numa ronda de sífilis.
Também a mim
a propaganda
cansa,
é tão fácil
alinhavar
romanças, -
Mas eu
me dominava
entretanto
e pisava
a garganta do meu canto.
Escutai,
camaradas futuros,
o agitador,
o cáustico caudilho,
o extintor
dos melífluos enxurros:
por cima
dos opúsculos líricos,
eu vos falo
como um vivo aos vivos.
Chego até vós,
à Comuna distante,
não como Iessiênin,
guitarriarcaico.
Mas através
dos séculos em arco
sobre os poetas
e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
não como a seta
lírico-amável,
que persegue a caça.
Nem como
ao numismata
a moeda gasta,
nem como a luz
das estrelas decrépitas.
Meu verso
150
com labor
rompe a mole dos anos,
E assombra
a olho nu,
palpável,
bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
mas terrível.
Ao ouvido
não diz
blandícias
minha voz;
lóbulos de donzelas
de cachos e bandós
não faço enrubescer
com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
- tropas em parada,
e passo em revista
o front das palavras.
Estrofes estacam
chumbo-severas,
prontas para o triunfo
ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
as maiúsculas
abertas.
Ei-la,
a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
alerta para a luta.
Rimas em riste,
sofreando o entusiasmo,
eriça
suas lanças agudas.
E todo
este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
não batido,
eu vos dôo,
proletários do planeta,
cada folha
até a última letra.
O inimigo
151
da colossal
classe obreira,
é também
meu inimigo
figadal.
Anos
de servidão e de miséria
comandavam
nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
volume após volume,
janelas
de nossa casa
abertas amplamente,
mas ainda sem ler
saberíamos o rumo!
onde combater,
de que lado,
em que frente.
Dialética,
não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
ao fragor das batalhas,
quando,
sob o nosso projétil,
debandava o burguês
que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada,
- glória -
se arraste
após os gênios,
merencória.
Morre,
meu verso,
como um soldado
anônimo
na lufada do asfalto.
Cuspo
sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória, -
entre nós todos, -
o comum monumento:
o socialismo,
Forjado
na refrega
e no fogo.
Vindouros,
varejai vossos léxicos:
do Letes
brotam letras como lixo –
“tuberculose”,
“bloqueio”,
“meretrício”.
152
Por vós,
geração de saudáveis, -
um poeta,
com a língua dos cartazes,
lambeu
os escarros da tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora
um monstro,
fossilcoleante.
Camarada vida,
vamos,
para diante,
galopemos
pelo qüinqüênio afora.
Os versos
para mim
não deram rublos,
nem mobílias
de madeiras caras.
Uma camisa
lavada e clara,
e basta, -
para mim é tudo.
Ao Comitê Central
do futuro
ofuscante,
sobre a malta
dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.
Dezembro, 1929/janeiro, 1930
153
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