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PEDRO GONZAGA
A POÉTICA DA MINIFICÇÃO: DALTON TREVISAN E
AS MINISTÓRIAS DE AH, É?
PORTO ALEGRE
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DE LITERATURA
ESPECIALIDADE: MESTRADO
LINHA DE PESQUISA: LITERATURAS BRASILEIRA, PORTUGUESA
E LUSO-AFRICANAS
A POÉTICA DA MINIFICÇÃO: DALTON TREVISAN E
AS MINISTÓRIAS DE AH, É?
PEDRO GONZAGA
ORIENTADOR: PROF. DR. LUÍS AUGUSTO FISCHER
Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira, apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2007
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A Sérgio Luís Fischer, in memoriam.
4
AGRADECIMENTOS
A realização desta dissertação foi possível graças ao suporte do PPG-Letras,
na figura de seus professores, professoras e funcionários, e ao apoio de uma série de
pessoas, às quais agradeço, não por ordem de importância, mas sim de acordo com o fio
condutor de uma memória nem sempre ativa. Primeiramente a meu orientador, Luís
Augusto Fischer e por sua (quase) inabalável de que um dia eu poderia concluir este
trabalho, mas, sobretudo, por sua honestidade intelectual e amizade ao longo dos anos.
Agradeço também a todos os amigos e apoiadores, gente que teve muito mais
esperanças do que eu de ver cumprida esta tarefa, à minha mãe (pesquisadora nata), a
meu pai e sua biblioteca indispensável, ao mestre J. H. Dacanal, aos amigos Prego,
Fabio Pinto e Eduardo Wolf, que sempre trouxeram, em nossas conversas, alguma luz
aos problemas impostos ao longo da jornada e à Mariana Silva, cuja ajuda, no momento
de conclusão do presente estudo, foi fundamental. Agradeço ainda a Marcelo Spalding,
que também tratará das minificções em seu trabalho, por nossa recente e proveitosa
interlocução, e ao Prof. Lauro Zavala, da Universidade Autônoma do México, que, com
toda gentileza, enviou-me suas obras e discutiu comigo os problemas da nomenclatura e
dos métodos aqui adotados.
5
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo a investigação das formas poéticas de
minificção, no geral, e o modo como delas se utiliza Dalton Trevisan na obra Ah, é?, em
particular. Para isto será feita uma breve análise da história do conto a partir do século
XIX, quando Poe o define, dividindo-a em três épocas (até a última evolução com Jorge
Luis Borges), e estabelecendo algumas tipologias essenciais para a compreensão da
linha evolutiva do gênero, a fim de consolidar uma trajetória que una as formas
modernas do conto e as produções ficcionais mais concisas, como o miniconto, por
exemplo, que se verá ser apenas uma das possibilidades entre as minificções.
Estabelecidos os critérios poéticos para a melhor compreensão destas novas
formas em um estudo mais detalhado (oferecendo uma tipologia bipartida), proceder-se-
á à análise da contística de Dalton Trevisan, determinando características de sua obra
convencional (temas, aspectos, personagens e linguagem) para depois observar se essas
mesmas características se mantêm em suas minificções e/ou são alteradas por elas, em
especial na obra Ah, é? (1994). Tal estudo específico se dará por meio da análise de dez
de suas ministórias, escolhidas por exemplaridade, ou seja, pelo modo como melhor
representam o conjunto de histórias semelhantes a que pertencem dentro das tipologias
aventadas. O objetivo desta parte analítica é fornecer ao pesquisador do gênero uma
série de ferramentas interpretativas, além de um modelo para que o trabalho com contos
ultracurtos.
O resultado final deste trabalho será, pois, a demonstração dos potenciais
poéticos das formas breves do conto, nas suas vertentes narrativas (miniconto) e não-
narrativas (minificção). O objetivo desta última parte é revelar que, mesmo com
economia extrema, um autor pode manter, e inclusive desenvolver, elementos básicos
de seu estilo, alcançando um alto poder de realização literária mesmo trabalhando com
forma tão exígua.
Palavras-chave: teoria do conto miniconto minificção Literatura
Brasileira — Dalton Trevisan — Ah, é?
6
ABSTRACT
The objective of the present work is to proceed an investigation of the poetic
forms of very short fiction (sudden fiction), in general, and the ways Dalton Trevisan
uses them in his book Ah, é?, in particular. In this effort, an analysis of the short stories’
history will be made (from Poe to the Borges), divided in three different periods, with
the finality of establish some essential typologies, extremely relevant to determinate a
progressive line inside the own genre, a line that leads to the an unification with more
recent and concise productions, as sudden stories and very short kinds of fiction.
Once the criteria to understand these new forms are settled, the focus of the
present analysis changes to Dalton Trevisan’s short story production. In this moment,
the characteristics of his conventional work (in length) will be studied, considering the
following aspects (themes, characters, language) that, afterwards, will be observed in
his very short stories, included in Ah, é? (1994). This specific study will be done by the
dissection of ten of his “tinystories”, with the ambition to offer to the genre’s researcher
a new series of possibilities in patterns of interpretation, besides an analytic model
designed to very short stories further interpretations.
The final goal of this work will be demonstrate the poetic potentials included on
this brief forms, showing how, even with the most extreme textual economy, an author
can keep and also develop the basic elements of his style, reaching high degrees of
literary accomplishments.
Keywords: short story’s theory sudden story short shorts Brazilian
Literature — Dalton Trevisan
7
A vida não é um ensaio, ainda que
tratemos de muitas coisas; não é um conto,
ainda que inventemos muitas coisas; não é
um poema, ainda que sonhemos muitas
coisas. O ensaio do conto do poema da vida
é um movimento perpétuo; isto sim, um
movimento perpétuo.
Augusto Monterroso (1921—2003)
8
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS 4
RESUMO 5
ABSTRACT 6
INTRODUÇÃO 10
CAPÍTULO 1 — O CAMINHO DO CONTO À MINIFICÇÃO
1.1 — OBJETIVO 17
1.2 — ORIGENS DO CONTO 17
1.3 — ASPECTOS DO CONTO 18
1.3.1 — BREVIDADE E NARRAÇÃO MÍNIMA 19
1.3.2 — DUAS HISTÓRIAS E UM SEGREDO 21
1.3.3 — EPIFANIA E ABERTURA 23
1.4 — O CONTO CLÁSSICO, MODERNO E PÓS-MODERNO 25
1.4.1 — O CONTO CLÁSSICO 26
1.4.2 — O CONTO MODERNO 26
1.4.3 — O CONTO PÓS-MODERNO 27
1.5 — MINICONTO: UM HISTÓRICO 28
1.5.1 — FORMAS BREVES 29
1.5.2 — O SURGIMENTO DO MINICONTO 31
1.5.3 — A ERA DE OURO DO MINICONTO NAS AMÉRICAS 32
1.5.4 — O CRESCIMENTO DA PRODUÇÃO DE MINIFICÇÕES 33
1.5.4.1 — NOTÍCIA DO CENÁRIO BRASILEIRO 34
CAPÍTULO 2 — TIPOLOGIA DA MINIFICÇÃO
2.1 — O CONCEITO DE MINIFICÇÃO: UMA METODOLOGIA 36
2.2. — AS DIVISÕES DA MINIFICÇÃO: DUAS TIPOLOGIAS 37
2.2.1 —A DIVISÃO FORMAL 39
2.2.1.1 — CONTOS CURTOS 40
2.2.1.2 — CONTOS MUITO CURTOS 41
2.2.1.3 — CONTOS ULTRACURTOS 42
2.2.2 — A DIVISÃO POÉTICA 43
2.2.2.1 — O MINICONTO 44
2.2.2.1.1 — A MÍNIMA UNIDADE NARRANTE 47
2.2.2.2 — A VINHETA 48
2.2.2.3 — A PERCEPÇÃO 50
2.2.2.4 — A MINIMETAFICÇÃO 52
2.3 — COMPLEXIDADES TIPOLÓGICAS: A HIBRIDIZAÇÃO 53
CAPÍTULO 3 — DALTON TREVISAN, DO CONTO ÀS MINISTÓRIAS
3.1 — VIDA E OBRA 57
3.2 — TEMÁTICA E UNIVERSO 58
3.2.1 — CURITIBA-MACONDO 58
3.2.2 — A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 60
3.2.3 — O UNIVERSO FECHADO 63
3.2.3.1 — A SOLIDÃO 64
3.3 — CARACTERÍSTICAS DA CONTÍSTICA DE DALTON TREVISAN 65
3.3.1 — O HUMOR 66
3.3.2 — IRONIA E REVERSÃO DA IRONIA 67
3.3.3 — A EXPLORAÇÃO FUNCIONAL DA VIOLÊNCIA 68
3.4 — O ESTILO DE DALTON TREVISAN 69
3.4.1 — CONCISÃO DE LINGUAGEM 69
3.4.2 — METÁFORAS, COMPARAÇÕES, DIMINUTIVOS 71
3.5 — DALTON TREVISAN E O MINICONTO 73
CAPÍTULO 4 — AS MINISTÓRIAS DE AH, É?
4.1 — OBJETIVO 78
4.2 — ANÁLISE DAS MINISTÓRIAS DE AH, É? 79
4.2.1 — Ministória 54 79
4.2.2 — Ministória 85 82
4.2.3 — Ministória 92 86
4.2.4 — Ministória 103 88
9
4.2.5 — Ministória 121 90
4.2.6 — Ministória 123 92
4.2.7 — Ministória 131 94
4.2.8 — Ministória 160 97
4.2.9 — Ministória 161 100
4.2.10 — Ministória 182-183 102
CONCLUSÃO 104
ANEXOS 111
BIBLIOGRAFIA 115
10
INTRODUÇÃO
Forma mais recente da prosa, o fenômeno da minificção, em especial de sua
forma mais conhecida, o miniconto, vem se desenvolvendo com rapidez nos últimos
anos, principalmente nas Américas, de maneira sólida, profícua e irreversível. Em
recente obra sobre o gênero, o professor Lauro Zavala da Universidade Autônoma do
México lista pelo menos 84 obras exclusivamente dedicadas ao estudo gênero e suas
produções.
Fruto da aceleração dos tempos modernos, de um novo contexto de leitura
fundado pela fragmentação do próprio tempo dedicado à palavra impressa com a
explosão dos multimeios, da impossibilidade de totalização ficcional da vida (crise do
romance), do rescaldo das vanguardas modernistas — em especial a surrealista no
universo hispano-americano —, da pressa e da escassez dos tempos dedicados à leitura,
do esgotamento das formas tradicionais, especialmente do romance, ou fruto das
possibilidades inéditas que os escritores vêm descobrindo quando postos frente à
concisão extrema da forma (muitas antologias são programadas com limites de
palavras), a minificção começa a demarcar seu espaço, conquistando aos poucos o
espaço em edições em papel, dando suporte a um fenômeno que se desenvolveu, em boa
parte das vezes, longe dos interesses das casas editoriais, principalmente em concursos,
antologias impressas e digitais e também em variados rincões da Internet. Certa vez,
Óscar de La Borbolla, importante minificcionista, determinou em sua Minibiografia del
Minicuento, que as lápides estavam entre as melhores produções do gênero. Conta ele
que tinha o hábito, quando jovem, de passear pelo cemitério. Em certa jornada se
deparou com um epitáfio composto de uma única palavra, formando assim um dos
menores minicontos de todos os tempos. Estava ali gravado apenas “Desgraçada”. Tal
exemplo, ainda que cômico, fornece, em excelente medida, as três características
presentes nas maiores obras do gênero: concisão extrema, nesse caso apenas uma
palavra; intertextualidade, pois é o local onde a palavra está posta que faz ecoar todos os
outros textos não escritos daquela personagem e de sua vida imaginária; e a ironia, a
capacidade de reverter e revelar novos sentidos para um texto que exercia então outra
função. Tal versatilidade das minificções torna sua presença ubíqua nos meios digitais,
desde muito, mas também é preciso salientar, até porque este trabalho está baseado
em textos impressos que, pelo menos duas décadas, uma enorme quantidade de
11
coletâneas vem povoando as livrarias e forçando as grandes editoriais a investirem em
obras para esse novo público, inclusive no Brasil.
Seguindo a clássica idéia de sistema literário proposta por Antonio Candido em
sua Formação da literatura brasileira, poderíamos afirmar que a minificção chegou ao
seu momento de maturidade. Cumprem-se os três requisitos: autores seminais, obras
e público leitor.
Quanto ao primeiro quesito, poderíamos dizer que no México, país onde a
minificção floresceu de modo mais luxuriante, já há três gerações de minicontistas
consolidados, dentre os quais se poderia destacar os da primeira geração, os mais
conhecidos por aqui: Juan José Arreola (1918-2001), Julio Torri (1889-1970) e Augusto
Monterroso (1921-2003), este último autor do mais divulgado e apreciado miniconto
desenvolvido até o presente momento, o internacionalmente famoso O dinossauro
(1959).
No que tange às obras, a quantidade e mesmo a qualidade das produções, que
começam depois dos anos 1920, mas que se intensificam na metade do século XX,
adquiriram fortuna crítica e maturidade analítica. Há pelo menos uma dezena de estudos
acadêmicos sobre o conto do animal pré-histórico acima referido, sem mencionar nomes
como o do pesquisador Lauro Zavala, que se dedica ao fenômeno da minificção com
afinco, compondo um grande panorama que envolve autores de todo o continente
americano. Atualmente congressos literários exclusivamente voltados para o gênero,
como o realizado em Tucumán, em 2007 e o programado para 2008 na Patagônia.
Sobre o público leitor pode-se dizer que não apenas a grande proliferação de
oficinas, onde o gênero é deveras praticado, como também os espaços digitais (revistas
on-line, blogs, portais, mensagens de celulares, etc.) vêm impulsionando fortemente a
produção e a leitura dos textos ultracurtos. Como destaca Zavala em um de seus
estudos, a popularidade da forma se inicia de forma marginal, até alcançar o centro do
mercado, tocando as grandes casas editoriais. Hoje se pode contar com publicações
impressas que se assemelham muito à divulgação de que dispõem os contos
tradicionais, seja em obras em que um determinado autor reúne somente minficções
(caso de Ah, é?, de Dalton Trevisan), em obras em que contos e minificções se
misturam, ou mesmo em antologias compostas inteiramente de minificções, como a
coletânea produzida por Marcelino Freire, Os cem menores contos brasileiros.
12
Se admitimos, então, pelos dados apresentados, que um sistema literário para
a minificção, que, além disso, voltando à formação do Candido, estabelece-se uma
tradição (a partir de Monterroso) e uma continuidade (os mexicanos já falam em terceira
geração de minicontistas, aqui no Brasil estamos entrando na segunda), não só em plano
internacional, mas também em plano brasileiro, parece-nos mais do que natural que se
iniciem estudos sistemáticos sobre essa produção, estudos, aliás, que vem crescendo de
modo considerável. Quando se olha, por exemplo, a bibliografia de uma obra como La
minificción bajo el microscopio (2006), de Lauro Zavala, que é em si uma coletânea
de artigos do autor, têm-se aquela sensação que reconforta e a um tempo angustia de
se estar diante de uma considerável fortuna crítica. Infelizmente, como mencionado,
no Brasil o estudo ainda é bastante incipiente.
O objetivo do presente trabalho, pois, é solidificar um mínimo instrumental
analítico para a minificção, que permita olhar com mais propriedade para essas
produções, em específico sobre como elas ocorrem na obra de Dalton Trevisan. Assim,
o ponto de chegada desta dissertação serão as minificções contidas no livro Ah, é?,
lançado em 1994.
Para tal tarefa, buscamos aporte na crítica desenvolvida mormente fora do
Brasil, visto que o fenômeno aqui é ainda muito recente. Desde o momento de
publicação da referida obra de Dalton Trevisan, resulta-nos que ainda o se chegou a
um enfoque adequado. Ou os motes das análises têm girado em torno de uma
equivocada interpretação, e.g., de que a concisão dos textos está diretamente
relacionada com uma vocação ou compromisso programático do autor curitibano com o
silêncio, com as sucessivas revisões de suas obras em que acaba cortando mais e mais
palavras, com a aproximação a determinados estilos que, sim, influenciam, mas não são
definidores do gênero (poesia haicai), quando não se restringiram a linhas
interpretativas que, por não enxergarem na minificção um tipo particular de
composição, tomaram-na como forma deteriorada de conto, como simples paródia ou
apenas uma espécie de experimentalismo de valor duvidoso.
Faça-se a ressalva necessária de que nos últimos anos têm surgido novos
estudos nas academias brasileiras, inclusive no âmbito da UFRGS, como o trabalho de
Marcelo Spalding, em dissertação ainda a ser defendida, que mapeia o histórico do
miniconto no Brasil. De todo modo, fica registrado aqui, para amenizar a eventual
ignorância deste autor para outros estudos produzidos no âmbito universitário brasileiro,
13
que, para o presente trabalho, preferimos priorizar a fortuna crítica mais sólida
estabelecida na América Latina e nos Estados Unidos.
Voltando ao presente estudo, o caminho aqui percorrido será o de estabelecer
uma tipologia para o estudo da minificção, tipologia esta divida em duas categorias
fundamentais, a saber, formal e poética. Dentro dessa primeira será apresentada uma
divisão estatística das minificções, de acordo com o número de palavras que elas se
utilizam. Teremos três divisões internas: contos curtos (de 1000 a 2000 palavras),
contos muito curtos (de 200 a 1000) e contos ultracurtos (de 1 a 200). A segunda
categoria estará voltada para o aspecto composicional. Dentro dessa divisão teremos:
miniconto, percepção, fragmento e minimetaficção, que podem, pela natureza protéica e
elíptica desses pequenos textos, se hibridizar e até mesmo se converter em uma estrutura
diversa, de acordo com o caráter que a mesma apresente ao fim da leitura. Ainda assim,
apesar da instabilidade da forma, tais divisões, seguindo a linha latino-americana de
interpretação, permitem uma análise bem mais detalhada e visível dos objetos aqui em
questão. Acreditamos ser útil, sim, buscar ferramentas estáveis mesmo diante desses
objetos em mutação, pois nos parece contraproducente ou inócuo, ao menos nas atuais
circunstâncias, apelar a versões vulgarizadas de teorias quânticas, apelo aos fractais
(quando não são claramente visíveis) ou mesmo à imprevisibilidade que sempre
encontra guarida em termos como pós-modernidade e entrelugar (sic).
Quanto à sua estrutura, esta dissertação está assim disposta:
No primeiro capítulo se fará um breve histórico do conto moderno, desde que
Poe o produz e o define, e como dentro desse próprio gênero de prosa foi sendo gestado
o espaço para o surgimento da minificção, lato sensu (Kafka, Borges, Cortázar), e do
miniconto, stricto sensu (Monterroso, Luisa Valenzuela, Marco Denevi, Sergio
Golwarz). Nesta etapa serão analisadas certas características definidoras do conto que,
salvo alterações provocadas pela concisão da forma, também se revelarão no miniconto.
Para isso, nos apoiaremos em diversas obras de estudiosos do gênero, a destacar o
brilhante trabalho do argentino Enrique Anderson Imbert, em Teoría y técnica del
cuento e o do americano Hust Hills, que, entre dezenas de livros sobre contos e sua
escritura, parece sempre ver com clareza e simplicidade os intrincados fenômenos da
composição. Além disso, utilizaremos o processo evolutivo do gênero como pensado
por Ricardo Piglia em Tese sobre o conto. No paradigma Borges-Piglia, um conto
sempre narra duas histórias, uma aparente e outra oculta. A relação entre essas duas
14
histórias compõem, para o crítico argentino, não só as etapas evolutivas do gênero, mas
também o modo como os grandes autores do conto fundaram combinações particulares
entre essas duas histórias.
Ainda no primeiro capítulo teremos um histórico da produção minificcional e
sua caracterização (classificação por número de palavras), passando, claro, pelo boom
mexicano e o desenvolvimento posterior da forma em boa parte dos países de fala
hispânica das Américas do Norte, Central e do Sul, pela sudden fiction produzida nos
Estados. A repercussão da chegada do gênero ao Brasil, com o lançamento da obra Ah,
é? de Dalton Trevisan, que será tomada, posteriormente, como marco zero do gênero no
Brasil, será abordada somente no terceiro capítulo.
No segundo capítulo estabeleceremos as bases metodológicas deste trabalho.
Falaremos, então, das três características básicas e duas tipologias da minificção, que
permitirão um estudo mais elaborado das produções breves, além de apresentar o
instrumental a ser utilizado na análise das minificções de Dalton Trevisan nosso
objetivo final. Quanto à tipologia, serão apresentadas duas divisões, a primeira com três
e a segunda com quatro divisões internas, que tentarão dar conta das possibilidades
formais e poéticas do gênero. Ainda que já explicitadas acima, são elas, pela ordem:
divisão formal e poética. Na divisão formal buscaremos classificar alguns contos de
acordo com sua extensão, seguindo o modelo de Lauro Zavala. Na divisão poética, o
que será relevante é a tentativa de diferenciação interna do gênero minificcional. Dessa
maneira, apresentaremos quatro subdivisões: miniconto, percepção, fragmento e
minimetaficção. Chamaremos de miniconto a minificção que mantiver os principais
elementos da forma conto de alguma maneira preservados, como narrador, unidade
espaço-temporal, personagens, trama, etc. Percepção, normalmente de caráter poético
ou metafísico, dará conta dos textos do que se costuma chamar poesia em prosa ou
prosa poética, textos que por seu grau de elipse e lirismo habitam essa nue fronteira
entra a prosa e a poesia. Vinheta englobará todas as minificções que não se realizam
completamente: fragmentos, trechos de diálogos, sketches, esboços de personagens ou
cenários, recortes de um todo que não existe ou não pode ser recomposto.
Minimetaficção comportará as minificções em que a intertextualidade é a base para a
compreensão do texto. Nesta tipologia estarão presentes as paródias de fábulas e
bestiários, como as de Monterroso e Arreola, respectivamente, as falsificações de textos
15
canônicos, como as de Denevi, além de outras duplicações, ironias, paráfrases ou
sátiras.
A essa altura, acreditamos, deve estar evidente que se tratam de divisões amplas
e que necessitam, as mais das vezes, serem hibridizadas. Além disso, é da natureza das
minificções (Zavala) serem híbridas. E por mais que estas classificações não possam
dirimir nem lidar com as diversas imprecisões que se apresentarão no meio do caminho,
acreditamos ter encontrado um ponto de partida estável e simples (ainda que
insuficiente), mas que tem a virtude, esperamos, de servir de vereda para as análises,
vereda que também possa ser percorrida pelos que acompanham as conclusões aqui
expostas, seja para verificá-las, melhorá-las futuramente ou refutá-las.
No terceiro capítulo será feito um histórico da obra de Dalton Trevisan,
buscando características gerais de sua composição e de seu universo temático, a
Curitiba-Macondo ali registrada (os arrabaldes, a cidade provinciana que se faz
metrópole, as violências domésticas, os infernos entre quatro paredes, a morbidez
sempre constante e os desvios sexuais), especialmente evidenciados em livros como
Vampiro de Curitiba e Guerras Conjugais. Em um segundo momento deste capítulo,
observaremos a trajetória do escritor em direção às suas obras de minificção,
principalmente com o lançamento de Ah, é? e a repercussão que à época teve a obra. Em
um terceiro momento seanalisada essa repercussão por meio das críticas publicadas
na ocasião e como o desconhecimento do que se produzia na América latina e nos EUA
naquele momento levou boa parte desta mesma crítica a conclusões apressadas, quando
não completamente errôneas.
No quarto e último capítulo desta dissertação serão analisadas as minificções de
Ah, é?, por meio da seleção dos dez textos que mais evidenciam a nosso ver as
potencialidades do gênero. Tais análises, além de objetivo final do presente estudo,
buscam fornecer um caráter exemplar às críticas de minificção, e se constituem de
aplicação da metodologia desenvolvida no capítulo três. Ainda que não haja ineditismo
em tais análises, trata-se de solo movediço, o que o nos impedirá, contudo, de seguir
em frente. Assim, também não haverá mal se o esforço crítico servir mais como uma
espécie de carta de intenções aos novos e bem-vindos exploradores do gênero. Haverá
sempre nas arqueologias os ecos dos futuros dissecadores dessas formas breves. Se a
concisa complexidade dessas ministórias (definição dada por Dalton Trevisan) com
títulos numerados em ordem crescente, se o modo como remetem a outros textos, além
16
das ironias instáveis de que estão compostas podem muitas vezes paralisar o
pesquisador, também é desafio inversamente proporcional tentar decifrá-las.
Finalmente, no que diz respeito a essas palavras introdutórias, cabe esclarecer
que estamos esboçando no presente estudo uma ferramenta metodológica para a análise
das minificções em geral e uma posterior aplicação formal desta ferramenta,
demonstrando sua utilização nas minificções de Ah, é?, objetivo anunciado
anteriormente. Pode ser que neste momento, ou até mesmo antes dele, outros estudiosos
estejam ou já tenham se debruçado com maior ou menor sucesso sobre essas mesmas
questões, ainda que sobre obras diferentes. Nosso objetivo neste trabalho pode acabar se
tornando mais restrito que o desejado, mas esperamos que as descobertas aqui existentes
sirvam de base para outras futuras. Se tiverem ao menos virtude suficiente para trazer à
tona o potencial oculto dessas pequenas criaturas, para usar uma imagem do Rubem
Fonseca, nossas melhores intenções estarão cumpridas.
17
CAPÍTULO 1 — O CAMINHO DO CONTO À MINIFICÇÃO
1.1 — Objetivo
Este capítulo tem como objetivo traçar uma mínima linhagem evolutiva do conto
convencional, fixando alguns aspectos principais de sua forma, dos primórdios do
século XIX (Edgar Allan Poe) às renovações borgeanas, para então chegar à brevidade
dos minicontistas, como o guatemalteco Augusto Monterroso, mundialmente
reconhecido como o mestre do gênero.
Quando falamos em linha evolutiva, porém, é preciso pensar no critério de
evolução específico da arte, de natureza distinta, por exemplo, do conceito biológico ou
das ciências duras, um universo onde um autor não supera o outro, mas sim vai se
somando, acrescentando e compondo o que conhecemos por tradição literária.
A linha evolutiva aqui organizada não exerce outra função que não estabelecer
as características mínimas do conto, os aspectos mantidos ao longo da trajetória até
chegarmos às manifestações breves e brevíssimas do miniconto e suas variantes. Para
isso, faremos um breve apanhado das origens do conto, estabeleceremos alguns aspectos
que são razoavelmente aceitos pela crítica como características definidoras da forma e
depois procederemos a uma espécie de quadro cronológico das fases do conto até
chegar ao miniconto.
1.2 — Origens do conto
A origem do que a crítica moderna hoje define como conto se mistura com as
mais remotas experiências de oralidade humana. quase que consenso entre os
estudiosos de que nenhuma outra forma literária, levando-se em consideração também a
lírica e o teatro, mantém o traço de suas origens de maneira tão presente, não pelo
aspecto enunciativo, como também pelo aspecto dialogístico: a presença de um
interlocutor ideal (ou vários) na própria estrutura narrativa
1
.
Antes mesmo da invenção de qualquer espécie de escrita, podemos facilmente
enxergar no primeiro contista aquele narrador que, no centro de uma tribo, ou ainda na
1
Segundo Piglia, em Novas teses sobre o conto, Borges considerava o romance como não sendo uma
narrativa visto ter se tornado demasiado alheio às formas orais, tendo perdido de vista a idéia de um
interlocutor presente, que pode ser vítima de subentendidos e elipses.
18
caverna (para apelar a certa imagem hiperbólica) relatava aos seus pares histórias sobre
viagens, grandes feitos dos heróis, sobre as fúrias e benesses divinas, exemplos
ilustrativos para condutas morais e comportamentais, etc.
Contudo, seja para limitar o foco desse estudo, seja para estabelecer alguma
solidez conceitual, faz-se necessário um esclarecimento prévio: este trabalho não
pretende se ocupar destas origens acima citadas nem das remotas raízes do que
modernamente se conhecerá como conto, termo universalmente aceito para designar a
forma de prosa curta a partir do século XIX (Imbert, p. 17). Tal afirmação se faz
evidente se pensarmos em contos clássicos do renascimento, como os do Decamerão ou
mesmo os da Cantuária de Chaucer, ou ainda em histórias curtas mais remotas, como
os relatos entrelaçados de As mil e uma noites, as parábolas cristãs, os contos dentro de
relatos da literatura greco-romana (Odisséia, Satiricon e Asno de ouro), além das
produções orientais (chinesas, indianas, etc.). Chamamos, claro, a essas produções de
contos, mas não se trata da mesma visão que se tem de conto a partir de Poe. Também
não se ocupará propriamente de detalhar cada uma das fases por que passou o conto.
Trata-se apenas de estabelecer a linha-mestre até o miniconto. Portanto, toda
arqueologia da forma somente será trazida à tona por necessidade de se enxergar
determinado ponto específico ou característica poética de uma ocorrência em questão.
1.3 — Aspectos do conto
Dentro da contística, são inúmeros os aspectos levantados pelos estudiosos do
gênero, desde o modelo formulado por Poe, passando por Cortázar, até chegar a Ricardo
Piglia (sem mencionar os autores americanos a quem tanto encantam as definições e as
técnicas), reconhecendo que alguns são mais e outros menos idiossincráticos.
Buscaremos nos ater aos aspectos que nos parecem visíveis mesmo na forma mais
reduzida do conto, que é o miniconto. Se na configuração mais elíptica e metafórica do
gênero determinados elementos podem sobreviver é porque não eles já estavam
presentes nas formas mais longas como também se mantêm visíveis no assunto que aqui
nos interessa.
Assim, fixaremos alguns aspectos razoavelmente aceitos, que tem por objetivo
servir de ponte, de elo de ligação, entre a forma de mais fôlego e as produções
ultracurtas. Entre os aspectos importantes, estabelecemos três pares: brevidade e
narração mínima, duas histórias e um segredo, e epifania e abertura.
19
1.3.1 — Brevidade e narração mínima
Embora toda e qualquer tipologia ou terminologia seja problemática, visto que
e aqui secundamos as palavras de E. A. Imbert as classificações por gêneros,
espécies e conjuntos já se mostram problemáticas até para as ciências formais e
empíricas, pode-se, com o auxílio da tradição crítica, chegar a uma certa estabilidade
conceitual, fundamental para qualquer estudo. Se não se pode afirmar o que é necessário
para se ter um conto (muitos tentaram) outra contribuição importante de Imbert,
pode-se, com alguma tranqüilidade, elencar as características que lhe são
indispensáveis. Parece haver um consenso, cada vez mais estabelecido, de que a única
característica realmente segura para determinar um conto diz respeito a sua brevidade,
ou, melhor dizendo, à forma breve como narra um episódio ou trama. O que não se
distancia muito daquilo que Poe observara em relação à obra de Hawthorne e que viria a
cunhar como unidade de efeito
2
. É uma forma agônica, que nasceu com a idéia de que
não pode, nem deve se desenvolver além de um certo limite, sob o risco de perder sua
própria essência fundada pela brevidade. Este limite, na verdade, segundo Imbert,
acabará por originar todas as suas demais características. Hust Hills em Writing in
general and the short story in particular (1977) comparando o conto com o romance
diz:
Todos sabem o que um conto é de fato seja ele uma prosa
narrativa descrita superficialmente como “mais curto que um
romance”, ou como o primeiro observador do gênero, Edgar
Allan Poe, especificou “não tão longo que não possa ser lido em
uma sentada”. (HILLS, p.1)
Ainda no que diz respeito a esta relação entre conto e romance, e suas extensões,
Imbert afirmará que
uma conseqüência artística da brevidade é que o romance, por
ser longo, pode relegar a trama a um plano secundário; o conto,
por ser curto, ostenta em primeiro plano uma trama bem visível.
(IMBERT, p. 39)
É a imagem cunhada por Cortázar para o conto como sendo uma integrada obra
de relojoaria, em que os mecanismos dentados devem todos girar em conjunto. Hills
retoma a idéia de Poe sobre a unidade de efeito da seguinte maneira:
2
Para mais, recomendo o detalhado estudo de Charles Kiefer em A poética do conto.
20
Tudo deve se relacionar dentro de um único conjunto. Todos os
elementos devem realçar-se mutuamente, entrelaçar-se, são
inseparáveis e tudo isso é feito com uma necessária e
perfeita economia (POE, p.267).
Tal idéia também está expressa no famoso paradigma de Tchekhov sobre a arma
que, se aparece no conto, deve disparar, ou então, retornando a Poe, que todo o conto
deve ser escrito tendo-se em vista o último parágrafo. Tudo gira em torno de se manter
um foco fechado, de restringir a narração a “uma ação central, ou uma mudança
significativa, ou o efeito que tal ão e tal mudança têm sobre o protagonista”
(Burroway, Janet, p. 52).
E eis que surge a tensão entre o ser breve e o que se narra. Porque para haver
conto é preciso contar alguma coisa
3
, é o que Imbert chamará dea primazia da trama”.
Brevidade e uma narração mínima. Desta relação, podemos organizar uma série de
outros aspectos, recolhido de vários estudiosos: concisão de personagens (fruto da
brevidade, pois não espaço para desenvolver personagens secundários ou com
funções fracas — ao contrário do romance), concentração espaço-temporal (se pouco
tempo para se contar uma história, é preciso reduzir, mesclar ou suprimir cenários
esforço oposto ao de muitos romances, em especial os do século XIX), redução,
convergência ou hibridismo de tramas narrativas (uma história tem que se sobressair,
uma trama visível, certeira, que aponta para seu próprio fim) circularidade (a brevidade
permitirá que na cabeça do leitor o início ainda esteja presente ao fim do relato — o que
dificilmente ocorrerá em um romance), etc.
Por algum tempo, porém, nos primórdios do conto moderno, ainda se manteve
um forte compromisso com a linearidade da história que estava sendo narrada. Havia
ainda, na mente de criadores como Poe e Maupassant uma idéia de encadeamento da
trama que iria de um início a um fim, sem alterações na ordem das partes, fruto,
possivelmente, de certa leitura que se fazia da poética aristotélica. Com Tchekhov (e por
que não Machado de Assis) o conto já começa a enfraquecer sua linearidade,
3
Tratamos aqui do conto de modo geral. Existem contos menos narrativos, como os sketches e mesmo
algumas formas de prosa poética, mas, se pensarmos em qualquer antologia de conto, teremos lá um
conjunto de contos compostos com ao menos um episódio sendo narrado. E mesmo alguns
experimentalismos como os de Anti-Story: an antology of experimental fiction (1971), que tinha por
objetivo cometer algum tipo de agressão à arte clássica de contar (contra a imitação, contra o tema, contra
o acontecimento de fatos, etc.) não conseguem mais do que orbitar em torno da idéia (pois carregam
consigo o que querem destruir) de que a imitação é necessária, os temas são necessários, a progressão dos
fatos é necessária, todos elementos integrantes do que poderíamos definir como uma história no universo
da literatura.
21
decompondo-a de vez a partir dos grandes mestres do século XX. Contudo, mesmo
fraturada e reorganizada, a força da narrativa se manteve estável.
Estabelecido o primeiro aspecto relacional, que dentro do miniconto será ainda
mais acerbado (basta que tenhamos em mente o famoso monstro de Monterroso),
passamos a segunda das relações, fazendo um apanhado das idéias expostas por Ricardo
Piglia em seu pequeno ensaio, Teses sobre o conto. De certo modo, acreditamos que ao
lado da idéia de unidade de efeito de Poe (que leva à brevidade), a idéia das duas
histórias que um conto sempre conta e de que toda sua estrutura depende de um segredo
é imprescindível para a compreensão não do conto convencional, como também de
nosso objeto em particular.
1.3.2 —Duas histórias e um segredo
Um conto sempre conta duas histórias, afirma Piglia um pouco depois do início
de seu Teses sobre o conto. Este hábil paradigma ele o recolhe de Borges, de um
prefácio para a obra Los nombres de la muerte de María Esther Vázquez. A idéia está
assim expressa:
Já que o leitor de nosso tempo é também um crítico, um homem
que conhece, e prevê, os artifícios literários, o conto deverá
constar de dois argumentos; um, falso, que vagamente se indica,
e outro, o autêntico, que se manterá secreto até o fim.
(BORGES, p. 643)
Contudo, Piglia aproveitará apenas as idéias de que duas histórias estão sendo
contadas e de que uma delas é secreta. A partir da relação de segredo da segunda
história, a subterrânea, com a primeira é que ele embasará sua esclarecedora tese sobre o
conto. De todo modo, chamaremos ao longo deste estudo, por uma questão de filiação,
de paradigma Borges-Piglia a esta idéia de que duas histórias sempre estão contidas em
um conto. Além disso, para reforçar ainda mais esta idéia de relação entre dois
vetores, acrescentamos também a visão de Tzvetan Todorov para quem todo relato é
movimento entre dois equilíbrios semelhantes, mas não idênticos”.
Retomando o argumento de Piglia, a primeira tese diz que um conto sempre
conta duas histórias, e a segunda que a história secreta é a chave do conto e de suas
variantes, entre as quais se pode incluir como se depreenderá deste estudo o
miniconto. Isto posto, Piglia demonstrará que é a partir da relação entre essas duas
histórias, a visível e a oculta, que a “microscópica máquina narrativa que é o conto” (p.
22
91) entrará em funcionamento. Esta relação, o modo como as duas histórias são tratadas
é que determinará o estilo de composição do conto.
Ele chamará de clássico
4
(Poe, Quiroga) aos contos em que a história aparente é
narrada em primeiro plano enquanto a história oculta se desenvolve em segredo. Caberá
ao artista o artifício de cifrar a segunda história na primeira. O efeito final, de surpresa
(ou anedótico, como nomeiam muitos críticos) se realizará quando a história secreta vir
à superfície.
Moderno será o conto em que essas duas histórias não mais se tocam nem se
resolvem (Tchekhov, Mansfield, Joyce), mantendo entre si uma tensão insolúvel ou
defectiva. O segredo aqui, sintetizado pela teoria do iceberg de Hemingway, está no
não-dito, no que está fora do conto.
Depois dessas duas divisões, Piglia passa a tratar de dois autores em específico e
das modificações que eles produzem nas relações entre as duas histórias. É de nosso
interesse tais distinções, pois elas muitas vezes são utilizadas em minicontos ou
minificções, embora o destino das duas histórias nas formas extremamente curtas seja
assunto para o segundo capítulo desta dissertação.
Para finalizar a idéia do paradigma Borges-Piglia, temos o exemplo dos
tratamentos dados por Kafka e Borges ao equilíbrio entre as histórias. “Kafka conta com
clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível, até
transformá-la em algo enigmático e obscuro” (p. 92). Já em Borges, e vejamos como ele
aproveita a idéia expressa pelo autor de O sul no prefácio acima reproduzido, “a história
1 é um gênero e a história 2 é sempre a mesma”. A variante que Borges, segundo Piglia,
introduz na história do conto é justamente fazer da construção da história 2 o tema do
relato. Da história visível, faz-se secretamente uma construção ardilosa e perversa,
como no poderoso Emma Zunz.
Por fim, não se poderia falar na forma moderna do conto sem passar pelo último
aspecto relacional, presente em boa parte das melhores produções ultracurtas, a relação
que se estabelece entre epifania e abertura.
4
A classificação de Piglia, embora não seja aqui nosso foco direto, de estabelecer um estilo de
composição mais do que uma divisão temporal. Embora a nomenclatura por ele utilizada leve em conta
expressões como clássico e moderno, torna-se claro que, antes de tudo, este é um modo de combinar as
histórias, circunscrito temporalmente apenas no sentido de seu surgimento cronológico.
23
1.3.3 — Epifania e abertura
Epifania é um termo inicialmente dotado de sentido religioso. Em sua origem
epifania (epiphaneia) significava “aparição”, oriunda de epi, que significa “para”, mais
phaineim, “aparecer”, logo, “aparecer para”. Com maiúscula diz respeito à chegada dos
reis magos a Belém, que, ao verem o menino Jesus, sofrem ou provocam a revelação de
estar diante do rei dos gentios. A festa ou festival da Epifania também celebra outros
dois eventos na vida de Cristo: seu batismo por João, quando sua filiação é revelada ao
mundo, e o milagre de Cana, quando Jesus transforma água em vinho, dando a conhecer
seus poderes divinos. Ao perder o E maiúsculo, epifania passa a ser qualquer
manifestação luminosa e divina. De Quincey, por exemplo (Hills, p. 19), fala em
“epifanias do intelecto grego”. A partir de Joyce o termo vai ganhando o sentido
literário que possui hoje. O autor de Ulisses, quando jovem artista, produziu uma série
de textos chamados “epifanias”, pequenos textos não-poéticos, cujo objetivo, e isso se
pode recolher de seu alter ego, Stephen Dedalus, era fazer com que “a alma dos objetos
mais comuns nos parecesse radiante”. Depois disso, como bem salienta David Lodge
em The art of fiction, o termo começa a ser aplicado “para qualquer passagem descritiva
na qual a realidade externa é carregada com algum tipo de significado transcendental
para o receptor” (p. 147). Dentro do universo da literatura moderna, a epifania ocupará a
função que na narrativa tradicional era executada pela “ação decisiva”, pelo clímax de
um relato ou episódio. Assim, e isso é visível nos Dublinenses, alguns finais que
parecem se resolver de modo defectivo ou em anticlímax de fato revelarão se tratar de
“um momento de [descoberta da] verdade para o protagonista, para o leitor ou para
ambos” (p. 147). Segundo Lodge, este poder revelador da epifania acabará por
aproximar muitos textos em prosa do efeito lírico que se obtém com a poesia.
Hills considera a epifania, seja ela uma técnica, ou um efeito, ou uma teoria ou
um gênero”, um conceito “muito mais útil no conto do que no romance”, visto que nem
o próprio Joyce foi capaz de desenvolvê-la plenamente em uma narrativa mais longa.
Tal idéia, a de que a epifania depende de certa brevidade, parece-nos relevante, dado
que para que ocorra epifania é preciso que haja uma revelação, muitas vezes posterior
ao término da leitura. Somente uma espécie de criptografia, de segredo a ser descoberto
(necessidade de iluminação), provocada pela brevidade (elipses e metáforas), parece ser
capaz de mantê-la.
24
Piglia em seu Novas teses sobre o conto corrobora com a idéia de que a arte de
narrar depende de uma leitura equivocada de sinais, que só o final revelador pode
dirimir e resolver. Temos novamente presente a idéia original do termo, o mostrar, o
fazer aparecer.
A arte de narrar é a arte da percepção errada e da distorção. O
relato avança segundo um plano rreo e incompreensível, e
perto do final surge no horizonte a visão de uma realidade
desconhecida: o final faz ver um sentido secreto que estava
cifrado e como que ausente na sucessão clara dos fatos.
(PIGLIA, p. 103)
A natureza epifânica dos relatos será extremamente importante para a
compreensão de muitos minicontos. Pela escassez, as mais das vezes quase que total de
índices dentro do próprio texto (tramas e personagens vagamente anunciados), sem
recorrer ao poder revelador da epifania, em geral somente na esfera do leitor, o
miniconto ou a minificção fracassará em seu efeito.
Abertura é um termo cunhado por Cortázar em Alguns aspectos do conto
(conferência proferida em Cuba, em 1963) para dar conta de um processo nem sempre
verificável de maneira estável, pois para a percepção desse processo o leitor exerce
papel fundamental: reconhecer que o recorte produzido pelo contista (assim como faria
um fotógrafo do porte de Cartier-Bresson) de uma determinada realidade pode abrir,
paradoxalmente, de par em par, em uma explosão, uma realidade muito mais ampla e
transcendente que a que por origem estava no retrato ou no conto. De um fragmento se
compõe um todo. Mas não o todo que havia ficado de fora da moldura, mas sim uma
outra espécie de todo, um todo mimético, um simulacro, liberto do estatuto da verdade,
que estimula a inteligência e a sensibilidade do leitor ou espectador para limites muito
mais amplos de compreensão da obra
5
.
A maior dificuldade para o conceito de abertura (não entraremos nos demais
elementos expostos pelo escritor argentino na ocasião), que é o que nos interessa aqui, é
operar com a idéia de que essa abertura não dispõe de qualquer prova material que a
legitime. Trata-se de questão plenamente interpretativa. O que pode ser uma abertura ao
infinito para determinado leitor, pode não representar nada para outro (e Cortázar sabia
5
De certo modo este conceito de abertura, capaz de construir um mundo paralelo à imitação realista é
responsável por boa parte do que é o fantástico dentro da obra de Cortázar, um fantástico, como ele
afirmou em uma entrevista, capaz de ocorrer à luz do meio-dia. Um fantástico que é estranhamento, que
será a tônica de muitos contos modernos, como os de Karen Blixen, por exemplo, na comparação feita
por Vargas Llosa entre os dois contistas.
25
disso). Por outro lado é evidente que qualquer leitor médio, independente do conto em
que tal processo se deu, experimentou a sensação descrita pelo autor de Rayuela. A
própria existência artística de vários minicontos é possível se pensarmos em uma
lâmina de microscópio que pode recompor, ao se abrir, um universo muito maior. Se o
conceito de abertura está na fronteira de um perigoso impressionismo, também é
necessário admitir que sem ele a moderna contística e suas formas cada vez mais
elípticas teriam muito a perder. Parece-nos que o mais adequado é, embora enfrentando
as imprecisões da crítica de impressão, traçar analiticamente elementos que possam ser
percebidos pelos estudiosos do tema.
Tomada esta limitação, que de certa maneira também se aplicam ao conceito de
epifania, seguimos para a relação entre essas duas forças, e como elas se complementam
a fim de possibilitar uma visão mais ampla para os fenômenos do conto e das
minificções.
Se epifania passa por uma revelação para o personagem, para o leitor ou para
ambos, uma revelação que ilumina os acontecimentos de uma história aparentemente
banal (pode-se notar o berço desse recurso em alguns contos de Tchekhov, como A
mulher do farmacêutico) ressignificando-os, a abertura não necessariamente passa por
uma revelação significativa. Abertura é uma expansão universal, também uma espécie
de revelação, mas de certa maneira ao estilo do Aleph do Borges, um uno que permite
uma visão que se abre para um todo, idéia que não está presente na epifania. Esta lança
luz sobre o que está escrito, contido materialmente pelo texto. A abertura recompõe o
mundo a partir de um instante, para além das fronteiras do texto.
1.4 — O conto clássico, moderno e pós-moderno
Adotando um ponto de vista mais cronológico, poderíamos considerar três
momentos distintos na história do conto a partir do século XIX, levando em
consideração os aspectos vistos anteriormente e acrescentando mais algumas
características pontuais. Utilizaremos aqui a divisão proposta por Lauro Zavala em Um
modelo para o estudo do conto (2006), de modo que se tenha em mente que qualquer
uma das terminologias expostas a seguir, quando usadas cronologicamente neste
trabalho, estarão remetendo às distinções desenvolvidas abaixo. Propomos, como
acréscimo à idéia de Zavala uma divisão por períodos e faixa de autores, o que nos dará,
é certo, um corte duro, mas bastante ilustrativo.
26
1.4.1 — O conto clássico (1842-1882)
Período que teria em Edgar Allan Poe o seu grande mestre, mas do qual farão
parte uma série de outros escritores que seguirão sob essa influência até as primeiras
décadas do século XX. As datas dizem respeito ao ano de publicação das concepções de
Poe sobre a poética do conto. Sete anos depois o autor americano morrerá de maneira
inglória, e não é demais lembrar que sua obraganhará visibilidade com a tradução de
Baudelaire (1856). A data final foi tomada do ano de lançamento das primeiras histórias
de Tchekhov e também do ano de lançamento de Papéis avulsos de Machado de Assis,
um livro que está bem mais próximo da tradição moderna do conto.
Por característica o conto clássico será anedótico (final surpreendente), com
personagens bem delimitados, narradores convencionalmente confiáveis e, acima de
tudo, a manutenção de uma estrutura fechada e linear, fiada em “uma tradição genérica
estabelecida de antemão” (Zavala, p.29). Um dos grandes mestres deste período será
Guy de Maupassant (1850-1893), autor de obras-primas como O colar, Dois amigos, A
morta e Bola de sebo, mas também podem ser incluídos na lista os nomes de Kipling, e
seus realísticos relatos de aventura, e também, tardiamente no sul das Américas, o do
uruguaio Horacio Quiroga.
O meio de divulgação dos contos, que levará o gênero ao apogeu comercial, é a
imprensa, em uma profusão de jornais e revistas que não param de surgir nas três
últimas décadas do século XIX, um processo que ocorreu em escala mundial.
1.4.2 — O conto moderno (1882-1944)
Tendo na figura de Tchekhov o motor propulsor de uma revolução estilística, o
conto moderno abandonará algumas das características que eram fundamentais para o
conto clássico, entre as mais marcantes, a obrigação de um final surpreendente e a
linearidade do relato. A idéia de uma ação clara e exterior, resquício da tradição oral do
conto lugar ao intimismo e à resolução epifânica. Surgem então nomes que serão
exemplares para a primeira fase do período: Henry James, Sherwood Anderson,
Katherine Mansfield e James Joyce.
Outra importante evolução para o conto moderno será dada por Kafka e suas
fantasmagorias, transformando uma das histórias contadas (paradigma Borges-Piglia)
27
em uma alegoria. Poderíamos enxergar esta operação em contos como Um artista da
fome ou Preocupações de um pai de família.
Um terceiro momento da evolução modernista seria o aporte dos contistas
americanos, a destacar Hemingway e Fitzgerald, no cenário internacional. A idéia do
iceberg de Hemingway, em que apenas o que está na superfície do relato é de capital
importância para as gerações posteriores.
Quanto à data tomada para delimitar o período, escolhemos o ano de publicação
de Ficciones (1946) de Jorge Luis Borges, tomado por muitos como o último autor a
promover uma divisão de águas na contística ocidental.
Por característica o conto moderno será então aberto (as duas histórias formam a
tensão do relato), de final muitas vezes deceptivo ou epifânico, os personagens perderão
seu caráter convencional, tornando-se “por se voltarem para suas intimidades,
metafóricos” (p. 31) e no que diz respeito à tradição genérica o conto moderno
começará a estabelecer uma relação de distanciamento, investindo, muitas vezes, em um
anti-realismo.
O meio de divulgação dos contos vai progressivamente migrando para os livros
e até o período anterior à Segunda Guerra Mundial o gênero terá ainda um forte
acolhimento do público. No Brasil, o conto, que teve em Machado de Assis e depois em
Lima Barreto e Arthur Azevedo uma produção considerável entrará em declínio,
ressurgindo apenas, de modo significativo, depois da segunda metade do século
passado.
1.4.3 — O conto pós-moderno
6
(1944- )
Período que se inicia a bem dizer depois do pós-guerra, e que se transfere de vez
para as Américas. Os grandes contistas dos últimos sessenta anos invariavelmente estão
em nosso continente: Juan Rulfo, Felizberto Hernandez, Julio Cortázar, Jorge Luis
Borges, Juan Carlos Onetti, J. D. Salinger, Flannery O’Connor, Truman Capote, entre
tantos outros. No Brasil, poderíamos citar pelo menos quatro grandes contistas: Rubem
Fonseca, Dalton Trevisan, Clarice Lispector e Murilo Rubião.
6
Cabe esclarecer que o termo pós-moderno é tomado apenas como o período em que vivemos, fazendo as
vezes do que muitos chamam de “contemporâneo”, simplesmente aquilo que vem depois do moderno. Ao
longo desse estudo, muitos dos autores aqui classificados também podem ser tratados por modernos, visto
que não há ainda uma definição — nem por parte dos historiadores — de como devemos classificar os
tempos atuais.
28
É, sem dúvida, o tempo de Borges. Já não se pode falar em qualquer tipo de
unidade composicional (basta que tenhamos em mente alguns contos dos autores
citados), mas, para seguirmos a linha de Zavala, podemos estabelecer, via Borges, a
característica diferencial do conto pós-moderno em relação aos seus antecessores. No
conto pós-moderno uma das histórias sempre estabelecerá uma relação intertextual com
a outra (paródias de parábolas bíblicas ou de algum gênero literário). O final é apenas
aparentemente epifânico, quando na verdade é irônico e também se realiza criando uma
intertextualidade. Os personagens “são em aparência convencionais, mas no fundo tem
um perfil paródico e metaficcional” (p. 30). Além disso, esses contos serão “anti-
representativos”, porque
no lugar de ter como dada a possibilidade de representar a
realidade ou de questionar as convenções da representação
genérica, apóia-se no pressuposto de que todo texto constitui
uma realidade autônoma, diferente da cotidiana e, apesar disso,
talvez mais real que aquela. (ZAVALA, p. 30)
O meio de divulgação dos contos pós-modernos segue sendo o livro, mas cada
vez mais os meios digitais vêm se tornando o espaço de experimentalismos e de porta
de entrada para os novos contistas. A chamada blogsfera concentra não um grupo
incontável de leitores, mas também abriga uma série de autores que publicam tanto em
forma impressa quanto na Internet.
1.5 — Miniconto: um histórico
Pensando na minificção como um todo que envolve textos curtos narrativos
(minicontos) e não-narrativos (outras formas breves hibridizadas
7
) —, pode-se dizer que
se trata “do gênero mais recente da história da literatura” (Zavala, p.7). A extrema
concisão de que estão compostas estas obras minúsculas têm levado estudiosos de
diversos países, especialmente da América Latina, onde a forma surgiu e floresceu com
mais vigor, ou como afirma Lauro Zavala, desenvolveu-se de maneira “mais
espetacular”, a produzir um sem número de artigos e teses acadêmicas a respeito do
tema.
7
Essas distinções serão apresentadas no capítulo 2.
29
Pretendemos aqui, no restante deste capítulo, traçar um histórico do gênero,
deixando a análise e a tipologia da minificção para o próximo capítulo, em que serão
elencadas suas características e divisões internas dentro deste rótulo geral.
As divisões cronológicas estabelecidas anteriormente (até 1.4) tentam dar conta,
dentro do possível, e em termos gerais, dos períodos evolutivos do conto, tomando-o
como uma forma breve e narrativa de prosa, que tem como estratégia narrar duas
histórias, uma aparente e a outra secreta e que, mais modernamente, costuma usar em
sua resolução os recursos da epifania e da abertura, quando não os dois combinados.
Onde, então, entraria o miniconto dentro desta linha evolutiva? Antes de chegarmos ao
ponto de intersecção do conto com os microgêneros, que darão origem ao miniconto e
às outras formas de minificção, é preciso fazer um rápido levantamento de alguns
modelos de textos curtos produzidos ao longo da tradição literária humana.
1.5.1 — Formas breves
Como bem salienta Enrique Páez, em todas as literaturas existem microgêneros
literários: os epigramas e as fábulas da tradição greco-romana, como os de Marcial e as
de Esopo e Fedro; os haicais japoneses; o koan zen; os relatos sufis; as máximas de La
Rochefoucauldt; alguns pensamentos de Leopardi, assim como alguns fragmentos de
Novalis; os aforismos de Karl Kraus, somente para citar alguns exemplos. Um dos
textos de predileção de Borges, uma obra-prima da concisão, é atribuído ao chinês
Chuang Tzu. Chamado O sonho da borboleta (300 a. C.), o recorte do pequeno
ensinamento taoísta é o seguinte:
Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar, ignorava se era Tzu
que havia sonhado que era uma borboleta, ou se era uma borboleta e estava sonhando
que era Tzu.
Os exemplos aqui poderiam ser inúmeros (a mordaz economia das fábulas de
Esopo, a amplitude temática dos exíguos haicais de Bashô), mas o que interessa para o
presente estudo é notar que os microgêneros, sempre que estiveram presentes,
mantiveram uma convivência pacífica com as formas de maior fôlego, tendo como
tônica as características que ainda hoje em parte definem as novas minificções:
brevidade, concisão, poder de síntese, etc.
Mas então o que diferenciaria essas formas antigas das modernas minificções?
30
A principal diferença — e tal problemática não inclui o miniconto, que é oriundo
da evolução do conto a partir de Poe
8
—, estaria no fato de que todos esses
microgêneros são tratados de modo paródico dentro da minificção do século XX e do
início do novo milênio. Os microgêneros clássicos (que desapareceram ao longo do
tempo) são retomados de maneira irônica, por meio de falsificações e paródias,
integrados dentro da composição pós-moderna de escritura, retirados do tempo e da
cultura que lhes conferiam materialidade. Nas bulas de Monterroso, por exemplo, é
simples enxergar a diferença entre a forma do fabulário clássico e o composto paródico
do escritor guatemalteco. Abaixo temos uma das mais famosas fábulas de Fedro, escrita
por volta do ano 30 d. C.. Infelizmente em nossa tradução não se pôde manter a métrica
dos versos do escravo liberto:
O lobo e o cordeiro
A um mesmo rio chegaram um lobo e um cordeiro
compelidos pela sede; na parte superior estava o lobo
longe e mais abaixo, o cordeiro. Então, com sua goela esfaimada
o ladrão, por ela incitado, forjou uma causa de disputa.
— Por quê? — perguntou — turvaste a água
que pretendo beber? O lanígero, temeroso, contra-argumentou:
— Como posso, por favor, fazer isso de que me acusas, lobo?
Corre de ti para mim a água cujos goles bebo.
Repelido aquele pela força da verdade, disse:
— Há seis meses tu falaste mal de mim.
Respondeu o cordeiro: — Mas eu nem era nascido.
— Por Hércules — disse o lobo —, teu pai falou mal de mim.
Ao dizer isso, agarrou-se a ele, lacerando-o em cruel e injusta morte.
Esta fábula foi escrita para aqueles homens que,
movidos por causas fictícias, oprimem os inocentes.
Eis agora a criação de Monterroso, que a um tempo parodia a construção
clássica e satiriza a humanidade de sua época e quiçá de todas as outras.
A ovelha negra
Em um país distante existiu, há muitos anos, uma Ovelha negra. Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido lhe erigiu uma estatua eqüestre que
sentou muito bem no parque.
Assim, na seqüência dos acontecimentos, cada vez que apareciam ovelhas
negras eram rapidamente passadas às armas para que as futuras gerações de ovelhas
comuns e correntes pudessem se exercitar também na escultura.
8
A relação do miniconto com os microgêneros clássicos poderá ser de natureza intertextual, mas sua
linha evolutiva está muito mais vinculada ao conto tradicional que a outras formas literárias, porque para
que haja miniconto é preciso que haja narrativa, narrativa que é herdada da contística que o antecede.
31
Por fazer ecoar o intertexto das fábulas originais, Monterroso pode dispensar a
linha de moral, aproveitando-se de modo mais livre do caráter alegórico do
microgênero. Estas considerações, porém, serão retomadas no próximo capítulo, quando
trataremos das características específicas da minificção e de suas tipologias.
1.5.2 — O surgimento do miniconto
Lauro Zavala costuma postular como marco fundamental do miniconto a
publicação de À Circe do mexicano Julio Torri (1917). Ainda que seja um texto de
complexa classificação (não se pode afirmar que se trate de uma narrativa), percebe-se a
virtude de sua concisão e a gênese do que viriam a ser as futuras produções do gênero.
À Circe
Circe, deusa venerável! Segui pontualmente teus avisos. Mas não me deixei
amarrar ao mastro quando divisamos a ilha das sereias, porque ia resolvido a me perder.
No meio do mar silencioso estava o grande prado fatal. Parecia um carregamento de
violetas errantes sobre as águas.
Circe, nobre deusa dos cabelos maravilhosos! Meu destino é cruel. Como ia
decidido a me perder, as sereias não cantaram para mim.
Para Pedro de Miguel, seria preciso buscar os antecessores do gênero em alguns
outros autores, ainda que concorde em dividir a primazia com Torri.
Algumas das greguerías
9
de Ramón Gómez de la Serna
são verdadeiros contos de apenas uma linha, e também
Rubén Darío e Vicente Huidobro publicaram
minicontos a partir de diversas estéticas.(MIGUEL, p.1)
Já o ensaísta Javier Perucho pensa que ao lado de Torri poderia estar o argentino
Leopoldo Lugones. O que convencionalmente se concorda, no entanto, é que este é um
fenômeno que surge nas primeiras décadas do século XX, mormente no México, fruto
em parte das experiências vanguardistas do modernismo latino-americano e também da
natureza dos espaços em revistas, que queriam textos curtos para suas ilustrações.
9
Breve composição em prosa, geralmente de uma só linha, em que se busca um pensamento original, às
vezes lírico, outras vezes humorístico. Na verdade, muito se parecem com os aforismos. Para La Serna
(1888-1963), tido como o criador do termo, uma greguería seria resultado da união do humor com uma
metáfora. Um exemplo de greguería é o seguinte: “As pombas são os pássaros vestidos com etiqueta”, ou
“Quando a mulher pede salada de fruta para dois, aperfeiçoa o pecado original”.
32
1.5.3 — A era de ouro do miniconto nas Américas
Se pensarmos em obras que hoje são consideradas decisivas dentro da estética
ultracurta, podemos tomar o final da década de 1950 como o ponto de maturação da
minificção latino-americana
10
. Ao longo das primeiras décadas do século XX, diversas
experiências de contos curtos e de outras formas sintéticas de relato foram tentadas,
entre as quais se destacam os textos breves de Franz Kafka, a experiência inovadora e
tida por muitos como genial de Raymond Queneau, em 1947, com Exercícios de estilo
(uma mesma história curta que é narrada em 99 estilos diferentes) e o interessantíssimo
caso de Yasunari Kawabata e suas histórias para caber na palma da mão
11
. Muito
embora a obra deste último escritor só fosse se tornar conhecida no ocidente em meados
dos anos 1960, não nos poderíamos furtar a registrar aqui sua contribuição.
No final dos 1950 e ao longo da década de 1960, formar-se-á o que Zavala
chama de “o cânone A.T.M.” (Perucho, p.2), composto por Juan José Arreola (1918-
2001), Julio Torri (1889-1970) e Augusto Monterroso (1921-2003). O primeiro publica
Varia invención, em 1955, e La feria, em 1962. O segundo tem uma coletânea de contos
ultracurtos publicada tardiamente em 1964, De fusilamientos y otras narraciones,
mantendo sempre sua complexa mistura de prosa com poesia. Monterroso lança Obra
completa y otros cuentos em 1959, livro em que está contido o famoso El dinosaurio.
Após um hiato de dez anos, sai seu segundo livro La oveja negra y demás fábulas
(1969), encerrando e consolidando, de certa maneira, a produção do que os estudiosos
consideram a primeira geração de minicontistas.
Dentro deste período, poderíamos destacar a obra curta de outros importantes
escritores fora do México, como o uruguaio Eduardo Galeano e principalmente os
10
De um ponto de vista cronológico é interessante pensar que esta era coincide diretamente com a época
do boom da literatura latino-americana, principalmente com uma plêiade de romancistas, como Alejo
Carpentier, García Márquez, Vargas Llosa, etc. Apesar dos contos de Chão em chamas (1953), que
acabaram aproveitando o movimento que ganharia força na década de 1960, o boom seria principalmente
caracterizado pelo gênero romanesco. Autores como Borges, um contista de ofício, passariam a ser
reconhecidos somente anos mais tarde. O próprio Cortázar ganha fama internacional mais com Rayuela
(1963) do que com seus contos. Em parte pode ser essa uma das explicações para que só recentemente a
produção dos minicontistas mexicanos da década de 1960 comece a ganhar reconhecimento internacional.
11
As histórias de Kawabata, muitas vezes com extensão de uma página, são provavelmente o primeiro
caso moderno de miniconto consciente de sua forma breve. Filiado à escola do neosensorialismo, o autor
tinha como programa a brevidade dos textos, isso já na década de 1920. São narrativas completas,
elípticas, carregadas de metáforas e forte plasticidade. No anexo 2 deste trabalho, um de seus contos está
presente. Para mais detalhes de sua obra, recomendamos o rigoroso estudo da Profa. Meiko Shimon,
Concepção estética de Kawabata Yasunari. Ed. UFRGS, 2000.
33
argentinos, como Borges com El hacedor (1960), Cortázar com História de cronópios e
famas (1962), Marco Denevi com Falsificaciones (1966) e Enrique Anderson Imbert
com Cuentos en miniatura (1976).
Ao longo da década de 1970, a produção mexicana segue a pleno vapor com
nomes como Avilés Fabila, Salvador Elizondo e Sergio Golwarz. Por toda a América de
fala hispânica o miniconto em suas versões cada vez mais radicais (em tamanho)
começa a ganhar espaço. São inúmeras as produções do gênero na sua versão mais
reduzida, a ultracurta, que vai de 1 a 200 palavras
12
.
Nos Estados Unidos a narrativa breve também começa a ter vários seguidores.
Organizam-se antologias importantes a partir dos anos 1980, embora a forma fosse
praticada por autores como Raymond Carver (e suas narrativas elípticas de um realismo
brutal) e Joyce Carol Oates. As histórias breves recebem então uma série de
nomenclaturas tão ao gosto dos americanos —, mas as mais correntes são very short
stories, short shorts, sudden fiction (que tem em média 750 palavras, pouco mais que
uma lauda de Word) e flash fiction (textos de até 500 palavras).
No Brasil, apesar de alguns experimentos esparsos, de poemas em prosa (ou
prosa poética) de nomes como Drummond e Mario Quintana (Quintanares), que
poderiam ser classificadas como minificção, o miniconto desembarcará de vez com Ah,
é? de Dalton Trevisan, em 1994, tema que será tratado no capítulo 3.
1.5.4 — O crescimento da produção de minificções e do público leitor
Fruto da aceleração dos tempos modernos, de um novo contexto de leitura
fundado pela fragmentação do próprio tempo dedicado à leitura com a explosão dos
multimeios, da impossibilidade de totalização ficcional da vida, da pressa e da escassez
dos tempos dedicados à leitura, lida aos bocados nas horas vagas e em contato com
aparelhos eletrônicos, do esgotamento das formas tradicionais, especialmente do
romance, ou fruto das possibilidades inéditas que os escritores vêm descobrindo quando
postos frente à concisão extrema da forma (muitas antologias são programadas com
limites de palavras), a produção de minificção vem aumentando cada vez mais seu
espaço dentro do universo da literatura contemporânea, conquistando, nas últimas
décadas uma difusão inédita para o gênero. Inúmeras são as edições em papel, dando
12
No próximo capítulo veremos tais divisões.
34
suporte a um fenômeno que se desenvolveu, em boa parte das vezes, longe dos
interesses das casas editoriais, principalmente em concursos, antologias impressas em
pequenas tiragens, e-zines, sites pessoais, blogues e outras possibilidades eletrônicas.
Este novo contexto de leitura (em que o habito de ler está definitivamente sitiado
pelas outras mídias) é definido por Zavala em seu artigo Gênero y lectura en la
narrativa serial como um momento em que as possibilidades de interpretação
tradicionais de um texto exigem uma reformulação, pois cabe a cada leitor pôr em jogo
sua experiência de leitura (sua memória), suas
competências ideológicas (sua visão de mundo) e seus
apetites literários (aqueles textos com os quais está
disposto a comprometer sua memória e pôr em risco sua
visão de mundo). (ZAVALA, p. 18)
De certa maneira ecoa nas palavras do crítico mexicano as idéias lançadas por
Italo Calvino em Seis propostas para o novo milênio. Se tivermos em mento o artigo,
veremos que a minificção é, de certo modo, a aplicação daquelas proposições ao texto
literário.
Mesmo que este momento favorável para as histórias ultracurtas possa ser
passageiro ou resultado de uma moda fugaz, como salienta James Thomas no prefácio
de uma antologia de contos muito curtos
13
, a qualidade obtida por ao menos uma
parcela dessas criações (o que se pode comprovar na referida antologia) seguramente
permanecerá entre os textos que, com o passar do tempo, vão formando o novo cânone
ocidental. O dinossauro de Monterroso e A continuidade dos parques de Cortázar
estão lá.
1.5.4.1 — Notícia do cenário brasileiro
No Brasilatualmente pelo menos três sites (Overmundo, Veredas e Bestiário)
que dedicam espaços consideráveis à publicação de minicontos ou outras formas de
minificção. O sucesso de uma antologia como Os cem menores contos brasileiros
(2004) vem comprovar o crescimento de um público leitor interessado neste tipo de
produção.
Passados mais de dez anos do lançamento de Ah, é? (1994), que é por muitos
considerado o ponto de partida do miniconto no Brasil, percebe-se que a quantidade de
13
13
Flash Fiction: 72 very short stories, Norton, 1992.
35
obras dedicadas ao gênero cresce a cada ano
14
, assim como a adesão ao gênero de
escritores como Luiz Rufatto, João Gilberto Noll e Rubem Fonsceca. É de ressaltar
ainda o constante embate por espaço que os livros do gênero enfrentam dentro das
linhas de lançamento das casas editorias, uma resistência em parte semelhante ou até
mais feroz que a imposta aos livros de poesia). Apenas como dado circunstancial, o
escritor Leonardo Brasiliense recebeu um Prêmio Jabuti com um livro de minicontos
(2006).
14
Para um melhor acompanhamento do quadro nacional do miniconto ver a dissertação de Marcelo
Spalding, ainda em fase de conclusão.
36
CAPÍTULO 2 — TIPOLOGIA DA MINIFICÇÃO
2.1 —O conceito de minificção: uma metodologia
Aqui se chamará minificção a toda obra de caráter ficcional, em prosa e de
extensão curta, muito curta, e, em especial, a ultracurta (objetivo final de nosso trabalho
com a análise das ministórias de Ah, é?). Muitas vezes, e por uma questão de costume
tanto de crítica, quanto de público, toda e qualquer minificção é chamada genericamente
de miniconto. Embora em muitas circunstâncias possa ocorrer a conjunção de fatores
que transformam os termos em sinônimos, em outras oportunidades essas pequenas
obras não estão dotadas do caráter narrativo necessário para que se estabeleça a idéia de
conto, independente do seu tamanho
15
, assim como não possuem os demais elementos
necessários do estilo tradicional, como presença de narrador, personagem e as duas
histórias contadas simultaneamente (paradigma Borges-Piglia).
Assim, para as obras de ficção desprovidas de caráter narrativo comumente
não possuem também algum dos elementos comuns ao conto (trama, personagens, etc.)
será preciso buscar uma nova forma de análise, que leve em consideração as
potencialidades que as diferenciam e não suas deficiências, caso tomemos como índice
de medição as características que tradicionalmente encontramos nos contos de maior
extensão. Sob o preço de contar apenas com uma ferramenta imprecisa ao adotarmos o
grande rótulo miniconto, desenvolvemos, em acordo com os modelos dos críticos latino-
americanos, em especial o do mexicano Lauro Zavala, um instrumental mais adequado e
potente para valorar as mais variadas manifestações que, por terem a indiscutível e
unânime semelhança de tamanho (e isto é, sem dúvida, uma unidade) foram agrupadas
dentro de uma grande caixa (onde cabe muita coisa), que teria sido melhor organizada
se fora dotada por algumas divisões internas. Se não se pode alterar a idéia de que
miniconto é toda e qualquer forma de minificção muitas vezes tomada na leitura
pedestre como um simples divertimento ou produto de uma idéia não-desenvolvida —,
ao menos desejamos que para os leitores mais cuidadosos as tipologias propostas a
seguir sejam não apenas úteis, como também esclarecedoras.
Por ora, basta saber que para este trabalho o conceito mais amplo da produção
curta recebe o nome de minificção. Trata-se da definição mais ampla, que engloba não
15
Sobre a obrigatoriedade do caráter narrativo para se ter um conto, peço que a afirmação seja julgada ao
longo deste capítulo.
37
as três categorias fixadas pelo número de palavras (conto curto, conto muito curto,
conto ultracurto) como também as quatro categorias que os classificam por suas
naturezas poéticas (miniconto, vinheta, percepção e minimetaficção). Miniconto, o
nome mais popular para todo o nero de prosa ultracurta, será utilizado stricto sensu
como uma das possibilidades tipológicas deste universo poético.
Antes, porém, de proceder às divisões, é interessante afirmar, e essas
características se farão notar em diversas ocasiões, que as minificções, independente de
seu potencial narrativo ou não, possuem três características em comum: brevidade
extrema, intertextualidade e ironia. No que diz respeito à primeira, é a mais facilmente
observável das características, e em função dela está baseada uma das tipologias.
Quanto à intertextualidade, tema um pouco esgotado pelas ondas pós-modernas (aqui
com certo tom pejorativo), basta afirmar que se em um texto convencional ela
normalmente se faz acessória (vide o exemplo de Lolita), na maioria das minficções (em
especial nas paródicas) ela se torna fundamental. Por fim, quanto ao caráter irônico das
minificções, utilizaremos a idéia de ironia estável e instável presente em Booth, sendo a
última a mais comum nos textos ultracurtos
16
.
2.2 — As divisões da minificção: duas tipologias
Pode-se dividir a minificção de duas maneiras. A primeira delas diz respeito a
uma convenção razoavelmente aceita, sintetizada por Zavala, quanto ao número de
palavras de que estão compostos os relatos. Nesta divisão há três categorias, que
estabelecem uma divisão formal, semelhante, mutatis mutandis, às formas fixas de
poesia, como sonetos, redondilhas e alexandrinos. Chamaremos a essa primeira divisão
16
Em seu primoroso estudo, Booth faz uma distinção fundamental entre ironia estável e instável.
Basicamente, a ironia estável é aquela em que autor e leitor estabelecem um pacto razoavelmente estável
que permite uma comunicação acerca da natureza da ironia, onde ela começa e onde termina. Este
processo, como o autor demonstra em seu livro, é um processo que se dá na materialidade do texto, e que
ele esquematiza como sendo um processo em quatro etapas. A primeira etapa seria a rejeição do sentido
literal, em que é preciso discordar ou refutar o sentido do que se lê. A segunda etapa estaria composta
pelos inúmeros testes que o leitor faz para preencher o espaço deixado pela rejeição inicial do sentido do
que estava expresso. A terceira etapa exige uma decisão entre esses sentidos elencados, baseada na obra,
nas idéias e nas crenças que conhecemos ou acreditamos ser as do autor. A quarta e última etapa é quando
um novo significado é criado a partir do preenchimento que fizemos da lacuna. Já a ironia instável opera
de modo diferente. Não há índices suficientes no texto, muitas vezes não se pode nem dar início ao
processo com a rejeição inicial, mas a principal diferença reside mesmo no momento de parar. Na ironia
estável, o tom volta à estabilidade em que a ironia é suspensa. Na forma instável, como não há este aviso
por parte do autor (não há graduação de tom na voz narrativa), não resta qualquer ponto de apoio para
suspender a leitura irônica que porventura se tenha iniciado, gerando muitas vezes uma cadeia de ironias
com redução ao infinito, levando mesmo, em alguns casos, a destruição total de qualquer possibilidade de
sentido. Para mais, Booth, Wayne. A rethoric of irony. Chicaco. Chicago Press. 1974.
38
de formal. No entanto, tal divisão não pode dar conta da natureza precisa dos relatos,
por isso, decidimos partir para uma classificação mais fechada do gênero, que pudesse
dar conta de suas possibilidades poéticas, assim chegamos a uma divisão poética,
construída em conjunto com as observações de vários estudiosos e também oriunda de
nossas convicções. Esta tipologia estaria dividida em quatro tipos básicos: da seguinte
maneira: relatos muito curtos ou ultracurtos de caráter narrativo (minicontos);
percepção poética ou metafísica (percepção); fragmento, esboço ou sketch (vinheta);
fábula, paródia ou metaficção (minimetaficção).
Alguns estudiosos da minificção estabelecem divisões com nomenclaturas
distintas, mas que dão conta, de certo modo, dos mesmos fenômenos
17
. Para Lauro
Zavala, por exemplo, os minicontos, que “mantêm a estrutura lógica e seqüencial e
se concluem com uma surpresa, tratam-se das minificções clássicas (p. 16)”. os
micro-relatos, que “possuem sentido alegórico e tom irônico”, incluindo minicontos no
sentido mais moderno, vinhetas, aforismos e “diversos jogos de caráter alegórico (p.
17)”. E também as minificções híbridas, que para Zavala estão ligadas aos
fenômenos da pós-modernidade Este tipo de minificção será marcada por justaposições,
paródias de fábulas e outros estilos
como é o caso das fábulas de Monterroso (cuja indeterminação
está mesclada com as referências a outros textos), os relatos de
Eduardo Galeano (em que se integram mito, tradição oral e
fontes documentais), as parábolas de Bestiário de Juan José
Arreola (em que se mesclam ensaio, narração e poema em
prosa) e As Adivinhações de Manuel Mejía Valera (nas quais se
parodia o jogo infantil como veículo do poema em prosa).
(ZAVALA, p.19)
Pode-se observar que para o crítico mexicano a classificação dos tipos se por
um caráter mais histórico, ou mais ligado ao efeito que os sucessivos movimentos de
vanguarda do século XX estabeleceram como marca de realização artística. Optamos
aqui por duas tipologias, uma mais formal e outra mais temática e de realização
artística, voltada mais para a análise fechada do texto, para somente depois considerar
questões exteriores. Evidentemente que, com o passar do tempo, teremos estilos que
estarão mais em voga, sem entrar no mérito de que a senda aberta por Borges na
contística mundial faz com que o miniconto, um fenômeno que floresce no final da
17
Ao consultar Lauro Zavala sobre a tipologia aqui apresentada, obtive como resposta sua aprovação,
visto que também este importante estudioso chegou a conclusões semelhantes e de nomenclatura bastante
próxima, salvo as diferenças idiomáticas, que às vezes impossibilitam certas transposições.
39
década de 1950, esteja atravessado por ironias, referências a outros textos, finais
deceptivos e outros recursos usados desde então. Ainda assim, acreditamos que se pode
obter ganho interpretativo olhando para o objeto em busca de mais características em
comum do que a mera extensão de sua forma, simplesmente buscando explicações
históricas, ou atendo-nos a uma tipologia apenas interpretativa. É do composto dessas
variadas formas de análise que esperamos conseguir lançar um pouco mais de luz sobre
o tema.
A seguir serão delimitadas, definidas e exemplificadas as duas tipologias.
2.2.1 — A divisão formal
Os estudiosos do conto costumam classificar o conto convencional (em
tamanho) como uma produção em prosa que vai de 2000 (de 4 a 5 laudas de Word) a
10000 palavras. Dentro desta faixa estariam alguns dos mais famosos contos já escritos:
O barril de amontillado de Poe, 2300 palavras; Pai contra mãe de Machado de Assis,
3842; O colar de Maupassant, 2775; do mesmo autor, um conto como O Horla se
aproxima do limite com 8764 palavras. Este tipo de composição mais extensa não está
diretamente vinculada ao período em que esses escritores escreveram suas obras, pois
certamente se poderão encontrar contos inferiores a 2000 palavras nos autores citados,
assim como se poderá encontrar contos de tamanho convencional em escritores que
praticaram muitos contos curtos, como atestam os próximos dados. O sul de J. L.
Borges, 2391; A autopista ao sul de Julio Cortázar, 9243; Um encontro de James Joyce,
3139.
A divisão formal proposta por Zavala começa com o teto de 2000 palavras.
Essas medidas foram estabelecidas a partir da observação de centenas e centenas de
contos, além dos limites estabelecidos por antologias e concursos do gênero, como o
concurso de conto breve da revista El cuento e os concursos de revistas e instituições
americanas, que estabelecem limites que vão de 250 a 500 palavras
18
.
18
Zavala, Lauro. La minificción bajo el microscópio. (p. 50). Além disso, se pensarmos que os espaços
que precisavam ser preenchidos pelas revistas e periódicos do século XIX determinaram, em parte, a
forma do conto, qualquer estranhamento se esvai. Mais estranho é pensar que o formato de música
popular que temos no século XX nada mais é do que fruto da impossibilidade técnica dos primeiros
compactos de registrarem mais do que 3 minutos de música.
40
Isto posto, são três os tipos de narrativas mais breves que a tradicional. Contos
curtos, de 1000 a 2000 palavras; contos muito curtos, de 200 a 1000 palavras; e conto
ultracurto, de 1 a 200 palavras.
2.2.1.1 — Contos curtos
Com um piso de 1000 palavras e um teto de 2000, os contos curtos, que Cortázar
chama de contos breves, e o crítico americano Irving Howe sudden fiction em sua
introdução para a coletânea Short shorts (1983), constituem o primeiro patamar em
direção à brevidade extrema da forma. Dentro desta extensão ainda é possível a
presença de histórias completas, com personagens e tramas desenvolvidas, ainda que
sobre ainda menos espaço para qualquer vetor divergente no sentido inapelável do fim
do relato.
Charles Baxter, em sua introdução para a antologia Sudden fiction international
(1989), propõe uma proveitosa distinção entre o tratamento dado aos personagens no
romance, no conto de tamanho convencional e no conto curto. No primeiro encontramos
indivíduos no longo e complexo processo de maturar importantes decisões morais. Nos
contos convencionais, acompanhamos o momento de decisão (ou a ilusão de poder
tomar uma decisão). Nessas duas formas de narrativa de maior fôlego há para Baxter
um espaço para que o leitor de certa maneira participe de algum tipo de ão moral. No
conto curto, em contrapartida, o que observamos é a reação de um personagem ou uma
coletividade diante de um momento de súbita tensão. Assim, não parece haver espaço
para que qualquer decisão seja tomada.
Como exemplos de contos curtos, algumas obras famosas: A tristeza (também
traduzido por Angústia) de Tchekhov, 1803 palavras; Um lugar limpo e bem iluminado
de Hemingway, 1367; e As ruínas circulares de Borges, 1964
19
. Ainda estão nessa
subdivisão famosos contos de Dalton como O vampiro de Curitiba, 1407 palavras, e
Penélope, 1493.
19
Citado por Cortázar em seu Do conto breve e seus arredores in Valise de Cronópios, São Paulo,
Perspectiva, 1993.
41
2.2.1.2 — Contos muito curtos
Com um piso de 200 e um teto de 1000 os contos muito curtos podem receber
também o nome de flash fiction e começam a apresentar um caráter já bastante diferente
dos contos convencionais. Surgem então, nas palavras de Suzanne C. Ferguson, dois
tipos de contos muito curtos, que de certa maneira começam a apontar no caminho dos
ultracurtos. São esses tipos, de acordo com a estratégia adotada, elípticos e metafóricos.
Nos elípticos, palavras, fragmentos ou mesmo trechos do relato são omitidos. Nos
metafóricos, ocorre uma substituição de trechos ou fragmentos por outros elementos, ou
dissonantes ou inesperados. Não é à toa que a partir da utilização desses recursos muitos
contos comecem a adquirir semelhança com textos poéticos, muitas vezes
fundamentados justamente sobre os alicerces da elipse e da metáfora.
Como exemplo, selecionamos um relato de Paul Lisicky chamado Instantâneo,
Harvey Cedars: 1948
20
, com suas 248 palavras:
Minha mãe toca a testa, mergulhando seus olhos verdes na sombra. Sua boca é
rosa, seu cabelo loiro como trigo. Ela está bronzeada. É a mulher mais atraente em toda
praia, ainda que jamais poderá reconhecê-lo. Ela envolve seu corpo comprido num
sarong com padrões marinhos e balança, acredita que seus quadris são um sino. Mesmo
agora ela segue contando, esperando que o obturador da câmera se feche.
O braço de meu pai lhe enverga os ombros. Ele é um tipo musculoso, a barriga
lisa como uma chapa. Ele olha para o horizonte, fingindo estar com minha mãe, mas ele
está na Flórida, desenvolvendo novas cidades, aterrando pântanos com areia. Ele se
enxerga construindo sem parar. Ele terá boa saúde. Terá a fortuna ao seu lado. E daqui
muitos anos, depois que seus companheiros de Exército tiverem se tornado balofos e
efeminados, todo o seu trabalho duro valerá a pena: as pessoas lembrarão de seu nome.
Seus ombros se encostam: a pose diz: essa é a aparência que deve ter um casal
de jovens veja, não somos nós os escolhidos? Mas a cabeça da minha mãe está
inclinada. Para o quê ela está olhando? Será um olhar de soslaio para o tenista que se
banha na ducha externa, o de mãos suaves, aquele que lhe ensinará a desaprender as
coisas? Ou será que ela pode escutar o disparo da arma que meu pai pressionara
contra a têmpora, vinte anos depois?
Outros exemplos de produções consideradas contos muito curtas são os contos
de Histórias de cronópios e de famas (1962) de Cortázar, o conto O silêncio das sereias
(1924) de Kafka, as variadas falsificações de Marco Denevi em Falsificaciones, Uma
vela para Dario de Dalton Trevisan, etc.
20
Lisicky, Paul in Flash Fiction: 72 very short stories, Norton, N.Y., 1992
42
2.2.1.3 — Contos ultracurtos
De 1 a 200 palavras, os contos ultracurtos constituem as peças literárias de maior
complexidade dentro do gênero. Grande parte dos textos desta subdivisão não está
diretamente relacionada com o conto convencional do qual em teoria evoluíram. Muitas
das criações ultracurtas sobrevivem apenas se combinadas a outros textos, em uma
estratégia intertextual, seja na utilização paródica ou irônica dos microgêneros clássicos
(fábula, epigramas, bestiários, haicais), seja pela apropriação de conjuntos
extraliterários (lendas, tradições culturais, etc.)
Por sua brevidade radical, muitas das características atribuídas ao conto
convencional tendem a desaparecer. Será comum a falta de trama e personagens, e
mesmo a eliminação total do caráter narrativo. A epifania passa a ser textual (Zavala, p.
45) e não mais estrutural, pois a epifania não pode mais ser vivenciada por um
personagem ou conformada por sua situação. A epifania depende da aparição do
intertexto subjacente. Também a abertura aqui irá se realizar graças a uma superposição
de contextos literários ou imaginários. Somente a forma do miniconto, uma das
variantes dos textos ultracurtos poderá manter, sob tamanha compressão da forma, as
características intimamente ligadas à narrativa, conforme veremos no item seguinte.
Como exemplo de conto ultracurto tomamos primeiramente um texto de Borges
de El hacedor, A trama, de 117 palavras:
Para que seu horror seja perfeito, César, acossado ao da estátua pelos
impacientes punhais de seus amigos, descobre entre as caras e as lâminas a de Marco
Bruto, seu protegido, acaso seu filho, e não se defende e exclama: Tu também, meu
filho! Shakespeare e Quevedo registram o patético grito.
Ao destino lhe agradam as repetições, as variantes, as simetrias; dezenove
séculos depois, ao sul da província de Buenos Aires, um gaucho é agredido por outros
gauchos e, ao cair, reconhece seu afilhado e lhe diz com mansa repreensão e lenta
surpresa (estas palavras que ouvi-las, e não lê-las): Mas, tchê! Matam-no e ele não
sabe que morre para que uma cena se repita.
Aqui é nítida a referência à história subjacente, e como toda a estratégia do texto
é, por meio de sua estrutura exígua não se autocompletar com o substrato cultural da
tradição romana, mas sim reescrevê-la, reencená-la como simulacro, fazendo, no caso
de Borges, desta tradição pura literatura.
43
Outro exemplo bastante elucidativo é o conto ultracurto Pobreza de Edmundo
Valadés, do livro Sólo los deseos son imortales, Palomita (1986).
Os seios daquela mulher, que superam prodigamente os de uma Jane Mansfield,
faziam que pensasse na pobreza de ter unicamente duas mãos.
Extremamente irônico, o texto de Valadés representa uma vertente muito forte
dentro do gênero: a anedota, uma espécie de vinheta ou fragmento, quase um aforismo
em que já não há a tensão nem a obrigatoriedade da narrativa.
Por fim, apenas por curiosidade, vale destacar o que é considerado o menor
conto do mundo, o texto de apenas uma palavra de Sergio Golwarz. Sob o título de
Deus, todo o conto é apenas uma única palavra que repete o enunciado. Em defesa do
autor, pode-se dizer que a estrutura do livro Infundios ejemplares vai se afunilando. A
obra começa com um texto de 500 palavras. O último texto tem apenas uma.
2.2.2 — A divisão poética
Como afirmado no primeiro capítulo, para muitos estudiosos somente a extensão
do conto (e aqui falamos do convencional) pode garantir que ele seja uma novela ou
ainda um romance. Se aceitamos isso como premissa verdadeira, passamos a segunda
parte da questão, que é o que nos interessa: quais são as características que se originam
desta brevidade, ou melhor, em binômio já apresentado, o que resulta da vocação para a
brevidade e da obrigatoriedade de narrar?
Na divisão apenas formal, útil para pensar certos fenômenos, mas de certa
maneira ampla demais para estabelecer distinções que nos parecem fundamentais entre
os tipos de minificção, não se pode diferenciar o que parece ser uma das questões
cruciais para as produções do gênero: pode um texto em prosa ser chamado de conto se
deixar de narrar, se suprimir a ação narrativa? Em outras palavras: todo texto ultracurto
seria um miniconto ou microconto
21
?
A ferramenta anterior não tem como fazer essa distinção. O que ocorre é que, à
medida que a brevidade começou a se impor de maneira desigual sobre a narração,
outras estratégias foram sendo adotadas para tentar recompor este equilíbrio.
21
Alguns estudiosos chamam de microconto aos contos ultracurtos. Normalmente microconto é utilizado
para se referir a textos não superiores a três linhas, como certas produções de Monterroso e também de
Dalton Trevisan.
44
Semelhante processo ocorrerá com as duas histórias e o segredo do paradigma Borges-
Piglia e com o lugar da relação entre epifania e abertura dentro do texto. A estratégia
final parece ter sido a inevitável adoção de relações paródicas com outros textos
(intertextualidade) e a utilização de recursos irônicos capazes de suprir o que a
brevidade tomara do potencial narrativo (já substituído em parte pelo uso de elipses e
metáforas). Contudo, ao se hibridizar com formas não-narrativas (poesia, aforismos,
epigramas) os contos ultracurtos passaram a ser também outra coisa que não contos.
Para poder abarcar essas variantes, propomos uma divisão poética, ou seja, de acordo
com os tipos de composição das minificções.
22
Propomos quatro subdivisões, salientado que muitas vezes essas podem ser
hibridizadas, tema de que trataremos após a exposição das categorias. Apresentamos,
por uma questão de ordem, as quatro subdivisões: miniconto, vinheta, percepção e
minimetaficção.
2.2.2.1 — O miniconto
Comecemos com o seguinte exemplo de conto ultracurto, um verdadeiro
microconto, atribuído a Hemingway, que, segundo A. C. Clarke, teria apostado com
amigos em um bar, pelos anos 1920, que seria capaz de compor uma história
completa com apenas 6 palavras
23
. O resultado, seja ele de autoria ou não do autor de O
velho e o mar, constitui um dos primeiros minicontos de que se tem registro.
Vende-se. Sapatos de bebê. Nunca usados.
Desta simples linha, que não pode ser tomada como storyline, pois constitui uma
totalidade (ainda que a se realizar fora do miniconto), podemos recompor por meio
do que Cortázar chamou de abertura desta moldura de foto 3x4 um universo inteiro,
que vai se desdobrando como um mapa rodoviário, em um conto que acontece no
mundo e não nas seis palavras que o compõem. Objetivamente, estão preservadas,
22
A divisão poética não é uma descoberta do presente trabalho. Ela surge da combinação de impressões
deste autor frente aos problemas para a analisar as minificções, no geral, e as de Dalton Trevisan, em
particular. A divisão poética leva em conta as distinções feitas por Lauro Zavala e por outros estudiosos
como Pedro de Miguel e Javier Perucho. Ao estabelecer os nomes das subdivisões, inclusive, perguntou-
se ao Prof. Zavala sobre a compreensão do que as categorias queriam dizer, no que se obteve resposta
afirmativa.
23
Clarke, A. C., Greetings, Carbon-Based Bipeds, Collected Essays. 1999. p.354.
45
mesmo em tão pouco espaço, as características definidoras do conto convencional:
brevidade (aqui extrema), ação narrativa (um episódio está sendo contado), personagem,
trama, etc. A este tipo de minificção, que é capaz de manter a capacidade narrativa
(independente dos recursos de que se utilize), chamaremos de miniconto.
Seguimos para o mais clássico exemplo do gênero, O dinossauro (1959) de
Augusto Monterroso.
Quando despertou, o dinossauro ainda estava ali.
Extensamente analisado por dezenas de estudiosos (há inclusive uma tese de
doutorado apenas sobre este miniconto), cabe aqui apenas chamar atenção para o
aspecto narrativo desta pequena obra-prima. As possibilidades de leitura são tão amplas
que basta destacar que este “quando despertou”, dando conta da ação de um
personagem, abre espaço para uma série de protagonistas, ainda que um de cada vez,
pois este “ser que desperta” pode ser um homem, uma mulher, uma criatura qualquer e
até mesmo o próprio dinossauro, o que daria um sentido extremamente irônico ao
miniconto, quando não trágico.
Apenas a título de exemplo, que esta minificção de Dalton será analisada
fartamente no quarto capítulo temos a “ministória” 85:
— Meu pai foi me dar uma surra e nessa hora me ergueu do chão pelos
peitinhos.
Tomemos, por fim, outro exemplo, menos radical, que sua extensão o coloca
na categoria dos contos muito curtos e não dos ultracurtos, um texto de Tim O’Brien,
retirado de Flash Fiction (1992), coletânea norte-americana que impunha como limite o
número de quinhentas palavras. O texto a seguir tem 439:
Meias
Henry Dobbins era um bom homem, e um soldado excepcional, mas
sofisticação não era seu ponto forte. As ironias lhe passavam à margem. Sob vários
aspectos, ele era como a América, grande e forte, cheio de boas intenções, uma camada
de gordura pendendo da barriga, passos lentos, mas sempre firmes, sempre à disposição
se você precisasse dele, alguém que acreditava nas virtudes da simplicidade e da
franqueza e do trabalho duro. Como seu país, Dobbins tamm se deixava levar pelo
sentimentalismo.
46
Mesmo agora, trinta anos depois, posso vê-lo amarrar a meia-calça de sua
namorada ao redor do pescoço antes de se engajar em uma emboscada.
Era sua única excentricidade. A meia-calça, ele dizia, tinha as propriedades de
um talismã. Gostava de mergulhar o nariz no nylon e aspirar o cheiro do corpo da
namorada, das lembranças que isso lhe trazia, chegava algumas vezes a dormir com as
meias coladas ao rosto, do mesmo modo que uma criança dorme colada ao seu paninho,
segura e tranqüila. Mais que tudo, no entanto, as meias eram para ele um talismã. Elas o
protegiam. Davam-lhe acesso a um mundo espiritual, onde as coisas eram suaves e
íntimas, um lugar onde um dia talvez ele pudesse levar sua garota para viver. Como
muitos de nós no Vietnã, Dobbins estava suscetível aos apelos da superstição, e ele
acreditava firme e completamente no poder protetor das meias. Eram como uma espécie
de armadura, ele pensava. Toda vez que nos preparávamos para uma emboscada no
meio da noite, colocando nossos capacetes e coletes à prova de bala, Henry Dobbins
encenava um ritual com as meias, enlaçando-as no pescoço, com um cuidadoso,
fazendo com que as duas partes das pernas repousassem sobre seu ombro esquerdo.
Houve algumas piadas, claro, mas, com o tempo, passamos a apreciar o mistério daquilo
tudo. Dobbins era invulnerável. Jamais se feria, nem sequer um arranhão. Em agosto,
pisou em uma mina terrestre, que não detonou. Uma semana depois, foi pego em um
descampado durante uma feroz escaramuça, sem qualquer cobertura, mas ele levou
apenas à meia-calça ao rosto e a aspirou profundamente e deixou a mágica acontecer.
Aquilo nos transformou num pelotão de homens de fé. Ninguém podia negar.
Mas então, perto do fim de outubro, a namorada lhe deu um fora. Foi um golpe
duro. Dobbins ficou calado por alguns instantes, os olhos pousados na carta que ela lhe
escrevera. Passado um momento, puxou as meias e as amarrou ao redor do pescoço,
como um cachecol.
— Não faz mal — ele disse. — Eu ainda a amo. A magia não se acaba assim.
Aquilo foi um alívio para todos nós.
Também neste exemplo é possível notar a presença dos elementos da contística
convencional, expostos ao longo do primeiro capítulo e no exemplo anterior. No
entanto, é preciso chegar aqui ao mais próximo de uma definição. Afirmamos que para
haver miniconto deve haver uma narrativa nele contida.
Todos os estudiosos do conto ultracurto assinalam que o
elemento básico e dominante deve ser a natureza narrativa do
relato. De outra maneira, encontramo-nos diante do que alguns
autores chamaram de minitexto, mas não diante de um
miniconto; ou seja, diante de um texto ultracurto, mas não de
um conto ultracurto. (ZAVALA, pp. 49-50)
Em última instância haverá, pois, apenas uma característica que garantirá a
existência do miniconto dentro da esfera dos minificções: o potencial narrativo que se
apresenta nas formas mais extensas de conto, que estava diretamente relacionado, no
primeiro capítulo, com a brevidade.
Mas o que pode, afinal, garantir materialmente a capacidade narrativa de um
texto qualquer de ficção?
47
2.2.2.1.1 — A mínima unidade narrante
Se tomássemos o modelo de ação, seja no contexto propriamente aristotélico de
que cada ação, por si só, visa a um determinado fim ou não se constitui em ação, seja no
sentido meramente sintático-gramatical, de um verbo que expressa determinado
movimento em uma proposição, estaríamos diante de um problema analítico, visto que é
bastante elementar perceber que, dentro de uma narrativa, uma simples ação verbal não
garante que haja uma ação narrativa em um enunciado.
A idéia de ação narrativa desenvolvida E. A. Imbert em Teoría y Técnica del
cuento (1979) pode ser melhor compreendida a partir do seguinte exemplo por ele
apresentado:
João saiu de sua casa.
Percebe-se que na proposição uma ação, mas que tipo de ação? Poderíamos
falar em uma ação narrativa? Na verdade, logo perceberemos que nada está sendo
especificamente narrado, claro, se tomarmos como narração a idéia que se mantém
desde as origens orais do conto, preservada em todas suas formas, sobrevivendo,
inclusive, a idéia de que é preciso um início, um desenvolvimento e um fechamento da
ação, ainda que essas características não estejam necessariamente expressas no enredo.
Retomando o exemplo anterior e avançando, acrescentando um complemento àquela
ação que era ação, mas não ação narrativa, podemos entender melhor o funcionamento
da idéia de Imbert.
João saiu de sua casa, trombou com o inimigo que vinha buscá-lo.
Percebemos que esta segunda oração coloca a primeira em uma cadeia que é
capaz de despertar a curiosidade do leitor, aproximando-nos da idéia de E. M. Forster de
que uma história só tinha como virtude provocar a expectativa do próximo passo.
Contudo, estaríamos agora diante de uma ação narrativa?
Faz-se nítida a necessidade do fechamento para que tenhamos ao menos uma
linha narrativa, o que os americanos chamariam de storyline. Vejamos agora:
João saiu de sua casa, trombou com o inimigo que vinha buscá-lo e o
surpreendeu com um balaço
24
.
24
Op. cit. p. 123
48
Cada frase em separado tem um valor enquanto ação, mas o que narra, o
narrante é apreendido dentro do contexto da ação completa. Ao conjunto, Imbert,
chama de mínima subunidade narrante, sendo o conto completo a máxima unidade
narrante.
Reformulando a nomenclatura do crítico argentino, que tinha como horizonte
contos de maior fôlego, propomos apenas a mínima unidade narrante, ou seja, a
estrutura mínima narrativa de um miniconto. Esta mínima unidade seria então
semelhante a um storyline, como o apresentado por Piglia, tomado das anotações de
Tchekhov:
Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta pra casa,
suicida-se.
Desde logo, cabe estabelecer que a mínima unidade narrante por si só não
garante que determinado texto se constitua em miniconto, mas para que haja miniconto
sua presença, sim, é indispensável, o que não acontecerá a outros tipos de minificção,
que estarão mais próximos da poesia, do aforismo, da percepção metafísica e da
paródia, examinados posteriormente no detalhe.
Por ora basta, portanto, assegurar que miniconto, mantendo a característica
básica de narrativa (que o define), estará composto de ao menos uma mínima unidade
narrante. Todos os exemplos de contos ultracurtos apresentados acima dão conta desta
realidade.
2.2.2.2 — A vinheta
Para nossos fins será chamado de vinheta a toda minificção que, por uma razão
ou outra não se completa como narração, apresentando em seu aspecto, ainda que de
forma encerrada, uma idéia fragmentária, de uma possível história apenas ensaiada, um
esboço com que se registra um cenário ou uma personagem, o que dentro da contística
de um Sherwood Anderson, por exemplo, poder-se-ia chamar de sketch, termo de difícil
tradução para o português, que muitas vezes se assemelha a um frame, um retrato. É o
que observa Hust Hills em Writing in general and the short story in particular:
O sketch é por definição uma descrição estática de um
personagem ou de um lugar ou de qualquer outra coisa. (...) Se
há ação ou episódio, ele é usado meramente para ilustrar o
49
caráter do personagem, não para desenvolvê-lo; ele não aprende
nada com isso, não muda absolutamente nada. (HILLS, p.2)
Assim, é possível até que haja ação narrante nessas vinhetas, como também
elementos comuns às outras duas divisões, embora nunca plenamente desenvolvidos. O
que o significa, como dito acima, consignar que se trata de uma forma inacabada,
como o fragmento clássico. A vinheta, as mais das vezes, se realiza justamente por não
fornecer índices suficientes ao leitor para determinar com precisão a que ou a quem
pertence exatamente aquele texto, ao que se refere, do que abriu mão para se
concretizar.
Por questões metodológicas, entrarão nesta categoria retratos ou perfis de
personagens, comentários ou pensamentos que não estejam em relação paródica com os
microgêneros clássicos, e outras variantes de fragmentos independentes, como
minidramas e trechos de diálogos que não permitem que se depreenda uma mínima
unidade narrante ou um conjunto de trama que permita maiores elucubrações sobre os
personagens que estão em cena.
Ainda que seja a menos precisa das tipologias aqui propostas, é a de mais fácil
observação, visto que se trata sempre da idéia de um texto estático, ou interrompido, ou
recortado, ou meramente esboçado. Por meio dos exemplos e da prática, acreditamos
que o pesquisador poderá rapidamente se adaptar a esse instrumental.
Vejamos dois exemplos de Monterroso
25
:
Transparências
— Em tudo o que escrevo oculto mais do que revelo.
— É o que pensas.
Ainda há aulas
Meus alunos da Universidade, in illo tempore:
— Podemos te chamar de você, professor?
— Sim, mas somente durante as aulas.
Para completar, dois exemplos de Dalton Trevisan, de Ah, é?:
64
Na hora de assinar, todo soberbo o velhote, no oclinho torto:
— O meu nome, qual é? Quem mesmo sou eu?
25
Monterroso, Augusto. Tríptico, Fondo de Cultura Económica, México, 1995. (p. 344)
50
101
De gênio muito ruim. Brabo e violento, qualquer bobagem bate na gente.
Quebra tudo. De mim tira sangue.
— Te mato de arrocho de goela.
Cospe na minha cara. Afoga o pescoço. Me arrasta pelo cabelo. Não é que o
puto pede perdão? Arrependido me beija o pé. Assim a vida da gente.
Não é demais ressaltar que, mesmo que parecem fragmentárias ou inconclusas,
as vinhetas, como obras acabadas, exploram com as mesmas potencialidades aspectos
fundamentais da minificção: a brevidade extrema, a intertextualidade e a ironia.
2.2.2.3 — A percepção
Esta subdivisão trabalha com o objeto mais instável dentro da minificção, e
talvez dentro mesmo de boa parte das análises literárias, pois ela está nos limites do que
constitui prosa poética ou poesia em prosa é bizantina e secundária para nosso estudo.
Para Baxter, Imhof e Bell é apenas uma questão de graduação, dependendo, inclusive,
da maneira ou do que se quer enxergar naquela leitura. No entanto, vale evidenciar que
a minificção, por sua natureza elíptica, rica em figuras de linguagens (em especial
metáforas e metonímias), de caráter sintético e epifânico, seguidamente se aproxima da
poesia, pois, excetuadas as questões formais clássicas (métrica e rima, v.g.) o
sentimento do eu-lírico muitas vezes nada mais é do que esse esforço de condensação
que também a minificção, principalmente a de percepção procura.
Vejamos alguns exemplos, começando por Juan José Arreola:
Ágrafa muçulmana em papiro de oxirrinco
Estavas ao rés do chão e não te vi. Tive que cavar até o fundo de mim para te
encontrar
26
.
Por que não agregar a esta discussão uma obra de Monterroso? Eis uma de suas
mais famosas minificções, O mundo (1969):
Deus ainda não criou o mundo; está a imaginá-lo, como que entre sonhos.
Por isso o mundo é perfeito, mas confuso.
26
Em Varia invención, ed. Joaquín Mortiz, México, 1955.
51
Por fim, vejamos dois trabalhos de Dalton, os dois de Ah, é?:
7
O falo ereto — única ponte entre duas almas irmãs.
128
Amor — ó lírio ó petúnia ó rosa que perfumam no escuro o quarto vazio.
Características híbridas à parte, há uma certa unidade entre os exemplos citados.
Todos estão permeados por isso que poderíamos chamar de percepção poética da
realidade, de diferença de tom e tratamento que a prosa costuma adotar tratando dos
mesmos temas. Em todos os textos apresentados, é exigido do leitor aquele esforço de
complementação de sentido que Booth registra como base da leitura metafórica
27
.
Por isso nos parece acertada a escolha de Percepção para identificar este tipo de
produção que traduz uma percepção poética ou metafísica do mundo. Sem esforço é
possível traçar um paralelo, por exemplo, com as percepções (em prosa) de O livro do
desassossego de Fernando Pessoa. A incorporação do metafísica visa justamente
contemplar o aspecto filosófico e existencial que muita dessas minificções terminarão
por adquirir. Parece-nos, contudo, que uma determinação clara para a categoria que
tratamos aqui seja pensar na prosa poética ou poesia em prosa que se realiza na
economia das minificções. As mesmas dificuldades que o estudioso encontra para
determinar esta fronteira também estarão postas neste momento, com o agravante da
brevidade. Se o que fora dito inicialmente neste trabalho, que a brevidade, a extensão é
a única diferença visível entre o romance e o conto, mas que dessa singular diferença
decorrem todas as características que permitem a um leitor perceber a diferença entre as
duas produções, poder-se-á pacificamente afirmar que o rumo das ficções ainda mais
restritas espacialmente deverá acentuar e problematizar ainda mais questões que já
estavam postas no horizonte da prosa e da poesia antes que as minificções aflorassem.
27
A leitura metafórica, segundo o autor americano, exige um aporte de significados e experiências de
leitura ao texto para que o convite à interpretação metafórica proposto pelo autor possa ser respondido.
Em um convite à ironia, por exemplo, o convite é de natureza distinta. Há ali uma construção que deve
ser primeiramente rejeitada para depois ser completada com outro significado para que o trecho e mesmo
o texto ganhem o sentido adequado e pretendido. A rethory of irony, Chicago, 1974.
52
2.2.2.4 — A minimetaficção
Dentro desta categoria, que, grosso modo, poderia englobar quase todas as obras
de minificção
28
, incluiremos, por fins analíticos, os textos que nitidamente se referem a
outros textos literários, lendas, tradições, compostos culturais e mesmo obras que
remetem a outras obras de diferentes formas artísticas, como o cinema, a música, as
artes plásticas. As minimetaficções se realizam em duplicar, parodiar ou falsificar
microgêneros como as fábulas greco-latinas, as parábolas cristãs, pensamentos como os
de Leopardi, fragmentos como os de Novalis ou de Nietszche, etc. Sua intenção direta é
o vínculo intertextual, do qual dependerá sua própria existência. Se a intertextualidade
sempre existiu para a literatura ocidental, e há provas mais do que suficientes de tal
processo nos textos clássicos ocidentais
29
, é nas minimetaficções, por sua brevidade,
que os textos primeiros se tornam imprescindíveis. Porque se pode perfeitamente (ainda
que com evidentes perdas) ler a Eneida sem ter lido seu modelo original, assim como
Os lusíadas, sem os dois anteriores. na extensão dessas obras, no modo como as
referências são repetidas, uma autonomia muito maior do que em textos de poucas
palavras, que se tornam mesmo incompreensíveis sem o intertexto, como se percebe
pelo exemplo de Dalton Trevisan:
5
Aos quarenta anos você pede menos que Diógenes, nem reclama da sombra de
Alexandre na soleira do tonel.
30
Para que se possa compreender a minificção 5 é preciso estar familiarizado com
a figura do maior cínico da antiguidade clássica, Diógenes, e com o episódio em que
Alexandre, o Grande, vai lhe perguntar o que poderia fazer por ele, ao que o cínico, que
vivia dentro de um barril, responde que não lhe barrasse o sol. Por outro lado, quando se
traz à tona o contexto (o intertexto) que possibilita a abertura da paródia, podemos
perceber como funciona para a minificção a exploração deste recurso. Em uma linha
28
As relações intertextuais, paródicas e irônicas
29
Borges, em seu prefácio a uma antologia de Quevedo, registra que a intertextualidade sempre esteve em
mente para os poetas clássicos, que possuíam leitores que conheciam as grandes obras até então. O que
não era evidente era o recurso irônico e paródico com que hoje em dia as leituras são realizadas. O fato é
que o mesmo Borges estabelece a chave da intertextualidade moderna com seu Pierre Menard. A versão
de Menard é ipsis litteris o texto de Cervantes. Acontece que, deslocado de seu tempo e de seu contexto,
o mesmo texto, ainda que reescrito igual em aparência, será diferente.
30
Trevisan, Dalton. Ah, é?, Ed. Record. São Paulo. 1994. p. 8
53
subversiva, pode-se ter o gosto da corruptela e ao mesmo tempo ver emergir da
memória essas legendas culturais que vão se acumulando na alma do leitor de mediana
bagagem cultural. Tomemos mais um exemplo de relação paródica a fim de esclarecer
bem a tipologia:
Um altruísta
Shylock pratica a usura para que seus clientes não acrescentem, à dívida em
dinheiro, a outra dívida, a mais pesada de todas: a gratidão.
31
Sem o conhecimento do personagem shakespeariano, o pequeno ensinamento
acaba completamente esvaziado.
ainda outra vertente bastante comum dentro das minificções, também
paródica, que é a exploração de elementos relacionados à própria obra do autor que
compõe o texto, em um processo de autoparódia com resultados em que sobressai o
humor, como veremos no capítulo seguinte com Dalton Trevisan e agora com
Monterroso:
Fecundidade
Hoje me sinto bem, um Balzac; estou terminando esta linha.
32
A paródia acima se realiza em duas esferas. A primeira é extraliterária, ou seja a
fama de Monterroso como minicontista. A segunda é literária, mas em um sentido
amplo: a comparação entre as milhares de páginas escritas por Balzac e as poucas linhas
escritas por ele, como se cada miniconto equivalesse a um dos volumes da Comédia
Humana. Tal idéia é reforçada pelo título, relacionando as conquistas dos dois: ao
caráter exuberante da produção do francês, o sucesso de ter conseguido toda uma linha
em um dia inteiro.
2.2.2.5 — Complexidades tipológicas: A hibridização
É preciso deixar claro que, ao menos para os autores consultados para este
trabalho, essas classificações, incluindo as apresentadas aqui, são não mais que modelos
31
Denevi, Marco, Falsificaciones. Buenos Aires. Corregidor. 2005. p. 8. Esta edição contém uma série de
nova falsificações, incluídas posteriormente à edição de 1966.
32
Monterroso, Augusto. Tríptico. Cidade do México. F.C.A. 1995. p. 65
54
para pensar as minificções. Assim, sua natureza tende a ser híbrida, trazendo à tona não
o caráter protéico do gênero como a dificuldade, em muitos casos, de se ir além ou
mesmo de esmiuçar e extrair de um destes pequenos textos mais do que a idéia de que
se está diante de uma minificção, não importa de que natureza tipológica.
Em todos os estudos sobre a minificção unanimidade em
reconhecer que sua característica mais evidente é a sua natureza
híbrida. A minificção é um gênero híbrido não só em sua
estrutura interna, mas também em função da diversidade de
gêneros de que se aproxima. (ZAVALA, p.60)
É preciso frisar, contudo, que este estudo tipológico será de importante utilidade
em diversos casos, permitindo, como se pode perceber pela fortuna crítica latino-
americana, uma análise muito mais qualificada e metódica das mais variadas
nanoproduções, que, em contrário, seguiriam aparentemente misteriosas, quando não
incompreendidas
33
.
Para ilustrar o caráter híbrido das produções, no caso a seguir encontramos um
texto com todos os elementos narrativos do miniconto, mas também com um forte tom
poético, o que poderia engendrar uma leitura baseada na categoria de percepção.
Claridade
A mulher chegou para o marido com o rosto completamente iluminado e ele se
irritou porque há muito se esquecera como e onde se acendia essa luz. E por mais que se
esforçasse não conseguiu se lembrar.
A mulher iluminada foi se deitar ao seu lado e ele passou a noite sem dormir
porque se acostumara ao escuro
34
.
Nesta minificção de Maria Lucia Simões a unidade narrante do conto é visível.
A mulher chega, o marido reconhece que ela está mudada e não consegue dormir.
aqui a ação completa. Além disso, também se pode elencar dois personagens bem
definidos, um narrador clássico em terceira pessoa e até mesmo uma certa concepção de
cenário, neste quarto que se pode imaginar sem maior esforço.
Por outro lado, não se pode negar o aspecto poético presente no texto. Aliás, a
própria definição epifânica do conto deve se realizar pela percepção metafórica desse
jogo entre claro e escuro. Na compreensão dessa luz, esvaziada de poesia e entendida
33
Vide o caso da obra Ah, é? de Dalton Trevisan, uma das razões deste trabalho, e a total incapacidade da
crítica brasileira de, naquele momento, perceber o tipo de produção ficcional do autor curitibano. Para
mais, vide Capítulo 4.
34
Simões, Maria Lucia. Contos contidos. Editora RHJ. São Paulo. 1996. p.11
55
apenas como “um acender do interruptor” pela ação de outra pessoa, está a chave para
determinar que tipo de leitura será mais proveitosa. Vejamos outro exemplo da mesma
autora:
Destino
Seu nome era um pleonasmo. Chamava-se Dulce.
Tinha cabelos e olhos cor-de-mel. Numa belíssima manhã de abril acordou com
o zumbido de muitas abelhas que se enredaram pelos dourados fios dos cabelos e
trançaram com eles as primeiras casas de uma colméia. Mais tarde enriqueceu vendendo
o produto engarrafado e rotulado. E na porta de sua casa grandes filas se formaram
comprando sua doçura já agora inteiramente industrializada.
35
O caráter protéico da minificção aqui se evidencia. A nosso ver, porém, ambos
os exemplos ressaltam a necessidade das classificações aqui utilizadas. Se a força dessa
luz acessa, se este brilho é mais interessante ao crítico, uma leitura de percepção talvez
seja a mais indicada. Se, por outro lado, quisermos buscar uma leitura mais próxima da
contística clássica, enxergar ali um miniconto fornecerá os subsídios para um ponto de
partida. Por fim, uma terceira opção seria combinar as duas tipologias, produzindo uma
ferramenta mais precisa de que as utilizadas para analisar os contos convencionais.
Apenas para consolidar a dificuldade de certas formas híbridas, recorreremos a
mais um exemplo, um texto de forte lirismo.
Velho hábito
Foi nos limites da selva, na torre de pedra, onde os capturaste. Eu vi dois,
enredados em teus cabelos, e os coloquei em liberdade. Não foi fácil desprender as asas.
Teu sorriso me fazia pensar em outros lugares, e eu tinha vontade de te beijar. Tu sabes
que eles não me agradeceram. Mas não imaginei a eficácia de tua cabeleira. Somente
depois, quando meus dedos entraram em tua nuca e em teus suspiros eu os vi alçar vôo:
miríades de miríades, segundo o velho hábito, inquietos e bochechudos, os anjos
36
.
Ainda que o desfecho, carregado de imagens elusivas, invoque uma profunda
participação do leitor, dentro das expectativas normais da narrativa em prosa, passando
por toda herança da literatura fantástica, de seus primórdios ao real-maravilhoso, resta
ainda o caráter prosaico como o elemento mais forte do texto. Em outras palavras, a
35
Idem. p. 20
36
Garrido, Felipe. Vieja costumbre in Relatos Vertiginosos: antología de cuentos mínimos. Alfaguara,
México. 2001. p. 87
56
força narrativa é mais presente que a força poética. Ler aqui um poema em prosa
dependerá da graduação encetada por Baxter anteriormente
37
.
No caso das minificções que se assemelham a pensamentos, aforismos ou
mesmo memórias será preciso buscar a função que se torna mais evidente nas
produções. No caso específico de uma memória, por exemplo, ela pode ter força
narrativa para se tornar miniconto (como diversos casos de memórias ficcionais, Dom
Casmurro, A consciência de Zeno, v.g.), adquirir um caráter poético, de interpretação e
sentimento do mundo, que a colocaria dentro da subdivisão anterior; ser fragmentária e
indefinida, constituindo-se em vinheta, ou, quando se trata de parodiar a forma ou
memórias clássicas, como a de Casanova, por exemplo, estará incluída aqui entre as
minimetaficções.
37
A questão se mostra extremamente complexa também em minicontos de caráter prosaico em grande
parte de sua extensão, mas que ex abrupto se abrem em percepção poética. Apenas como ilustração deste
problema, sugerimos uma leitura do texto de Spencer Holst, aqui incluído no Anexo 3.
57
CAPÍTULO 3 — DALTON TREVISAN, DOS CONTOS ÀS MINISTÓRIAS
3.1 — Vida e obra
Dalton Trevisan nasceu em Curitiba, em 14 de junho de 1925. Formou-se em
Direito na Faculdade do Paraná. À época, liderou o grupo literário que publicou, entre
1946 e 1948, a revista Joaquim,
que ele tocou por 21 números com textos de escritores como
Drummond, Otto Maria Carpeaux e José Paulo Paes, traduções
de Joyce, Proust e Kafka e colaboração de artistas ilustres,
como Portinari, Di Cavalcanti e o então jovem como ele Poty,
destinado a ser seu mais conhecido capista. Com Joaquim,
Dalton comprou suas primeiras brigas com a Curitiba
provinciana.
(Revista Época, edição 22, 1998)
Na revista se encontrava o material de seus primeiros livros de ficção, incluindo
Sonata ao Luar (1945) e Sete Anos de Pastor (1948), ambos renegados pelo autor.
Praticamente dez anos mais tarde, publicaria aquela que é considerada sua primeira obra
literária, Novelas nada exemplares.
À medida que suas obras começaram a adquirir nomeada nacional, além do
sucesso muito forte junto à crítica, Dalton se tornou uma figura misteriosa, passando a
se esconder sistematicamente da imprensa, evitando participação em qualquer tipo de
debate ou de vida literária, além de evitar qualquer tipo de exposição pública. Neste
sentido, sua biografia se aproxima à de outros dois mestres da prosa brasileira do pós-
1960, Rubem Fonseca e Raduan Nassar, também dois reclusos inveterados. No caso de
Dalton, o que se sabe é o referido acima,
que estudou Direito, que fundou um jornal literário (revista) de
curta duração, que publicou seus primeiros contos em edições
de baixíssima tiragem, que foi repórter policial, que tirou seu
sustento de uma pequena fábrica de cerâmica ou algo similar,
que se casou e teve duas filhas. E é só. Raríssimas as fotos.
Ocultou-se (por timidez?, por arrogância?, por estratégia de
vendas?) atrás de suas obras e deixou que as lendas a seu
respeito proliferassem. Daí a imagem que ele construiu sobre si
mesmo: “Vampiro, sim, de almas. Espião dos corações
solitários. Escorpião de bote armado, eis o contista”.
(GONZAGA, Sergius, Curso de Literatura Brasileira, p.448)
Entre suas obras principais poderiam ser destacadas as coletâneas de conto:
Novelas nada exemplares (1959); Cemitério de elefantes (1964); O vampiro de Curitiba
58
(1965); Desastres do amor (1968); Guerra conjugal (1969); O rei da terra (1972); A
faca no coração (1975); Crimes de paixão (1978); Virgem louca, loucos beijos (1979).
Essas malditas mulheres (1982); e as de minificção: Ah, é? (1994) e Arara bêbada
(2004).
3.2 — Temática e universo
Autor de fortuna crítica restrita, seja no formato dos contos tradicionais, seja no
que diz respeito à minificção, poucas são as análises que conseguem ir além dos casos
particulares, ou que, apesar das generalizações, conseguem compreender a obra como
um todo. Para o objetivo do presente estudo, importa estabelecer uma temática comum
para a obra do autor curitibano, além de estabelecer de que maneira está constituído seu
universo ficcional e como se expressam as questões estilísticas na obra de Dalton
Trevisan, a fim de demonstrar que também na minificção por ele produzida podem ser
alcançadas, ainda que com diferença de forma, as mesmas altas realizações artísticas
amplamente reconhecidas por estudiosos e críticos das mais diferentes tendências.
3.2.1 — Curitiba-Macondo
Passando, então, para uma tentativa mínima de fixação das características da
obra de Dalton Trevisan, começamos com o que se poderia chamar de locus amenus
38
do poeta, o epicentro cujos tremores se farão sentir em grande parte de suas narrativas
curtas, o modo como ele transformou Curitiba em uma espécie de microcosmos. Em
entrevista de 1994, Séries Paranaenses 5, o escritor Cristóvão Tezza assim define a
cidade sob a óptica do “vampiro de Curitiba”:
O olhar microscópico de Dalton, hiper-realista, que transborda
em um ou dois parágrafos, criou uma cidade única, cuja
sordidez, impiedade e sarcasmo se tornam, no conjunto, marcas
emblemáticas da condição humana, segundo Dalton. Mas foi a
partir de um universo físico e mental estritamente curitibano,
representado em seus detalhes mais comezinhos e provincianos,
que Dalton construiu sua universalidade.
Sergius Gonzaga ressalta a comparação que alguns críticos fazem entre Curitiba
e Macondo pois
38
Ainda que, dada a habitual brutalidade desencadeada em tal local, devêssemos tratá-lo por locus
turbulentus.
59
assim como o escritor colombiano transformou a inexpressiva
Macondo numa cidade mágica, também Dalton Trevisan fixou
artisticamente a então desinteressante Curitiba, dando-lhe tal
sopro de vida e imaginação que esta acabou entrando no mapa
literário mundial. (Op. cit. p. 448)
Em verdade, Curitiba comporá grande parte do universo ficcional do autor de
Guerras Conjugais, assim como Santa María para Juan Carlos Onetti. Será, porém, uma
Curitiba que deixa de ser a pequena cidade e passa a se urbanizar a ritmo rápido, nas
profundas transformações socioeconômicas vividas pelas metrópoles regionais
brasileiras à época do milagre econômico da ditadura militar
39
. J. H. Dacanal, em já
clássico estudo sobre o tema, afirma que
o chamado milagre brasileiro resultou de uma radical e quase
instantânea mudança de patamar tecnológico, pela qual um país
de dimensões continentais, quase totalmente agrário, primitivo e
em grande parte virgem e desconhecido, saltou em poucos anos
da pré-história para a era do petróleo, do aço, da energia
elétrica, do motor a explosão, dos transportes rápidos e das
comunicações internacionais.
(DACANAL, J. H, Brasil, do milagre à tragédia, p. 19)
Contudo, essas transformações jamais se realizam homogeneamente, e, em parte,
Curitiba, como capital, havia enfrentado, ainda que de forma insipiente, certo grau de
modernização. Da disjunção de uma cidade que se moderniza e que vai perdendo seu
modus provincialis é que surge boa parte do que vigor e permanência a prosa de
Dalton: o justo registro da agonia das vidas privadas dos arrabaldes, em seus costumes e
conflitos, na violência ainda legitimada do pai de família, no círculo de traições e crimes
passionais, nos incestos e tabus católicos lato sensu, como a virgindade e o casamento
eterno, um pouco o que Nelson Rodrigues já havia feito (com um viés mais de cronista),
ao registrar os dilemas de um Rio de Janeiro que se modernizava em A vida como ela é.
Assim, a Curitiba de Dalton Trevisan ainda é suburbana em sua
mentalidade e em seus padrões morais conservadores. Tudo
nela parece induzir os indivíduos ao sossego e ao conformismo.
No entanto, à medida que se lêem seus contos, a cidade vai se
transfigurando. (GONZAGA, op. cit., p. 448)
O que se pode notar na obra de Dalton Trevisan é sempre a escolha pelo
ambiente privado como filtro para o público. Percebe-se, claro, que os valores de seus
39
Há que se registrar que muitos dos contos de Dalton se passam nos limites entre a cidade e o campo, o
que se poderia chamar de roça, mas que já não caracteriza a vida interiorana de fazendas e propriedades
rurais.
60
personagens estão em agonia. Com o avanço do divórcio pleno e da extensão dos
controladores sociais sobre o universo familiar brasileiro, o espaço para a temática do
curitibano tende naturalmente ao esvaziamento. Parece-nos, porém, que Dalton
Trevisan, ao fazer de sua Curitiba um topos literário (tal qual a citada Macondo),
permitiu que esse universo continuasse vivo e assombroso, preservando, como em uma
espécie de zoológico ou circo de horrores, seus tipos que circulam em uma cidade feita
de “opressões, pecados, transgressões e desespero”(op. cit.), tipos encadeados em uma
série repetitiva que parece ter como próprio fim a denúncia das existências medíocres
que cabem a qualquer um de nós.
Curitiba é um estado de espírito, um momento de angústia, um
gesto violento, sexo de modo decadente, ou um último suspiro
antes do desaparecimento definitivo.
(VIEIRA, N. H., Narrative in Dalton Trevisan, Modern
Language Studies, vol. 14, p. 11)
3.2.2 — A violência doméstica
Se uma constante na obra de Dalton Trevisan, constante que se mantém para
além das fronteiras do conto tradicional, chegando ao tema do presente estudo as
minificções do autor curitibano, é a violência, em grande parte doméstica, seja no que
um crítico chamou, em outro lugar, de conflitos do amor, a mais freqüente, seja na
violência contra os filhos, de caráter incestuoso ou não, como atestam os dois exemplos
seguintes:
35
Ao acordar, o distinto chama as filhas. Que uma lhe lave os pés. Outra penteie o
cabelo. E, todo nu, falam massagem pelo corpo.
— Não sou o galã do barraco?
Agarra e beija as mais velhas — com força e na boca.
— Filha minha não é pra outro.
Você piou? Já viu: apanha sem dó.
— Essas eu fiz pra mim. Qualquer dia me sirvo
40
.
A barriga
A mulher para a filha de 13 anos:
— Se você pegar barriga...
— Credo, mãe.
— ... eu arranco ele vivo de dentro de você!
41
40
Ah, é? São Paulo. Ed. Record. 1994. p. 29
61
Esta violência sexual também pode ser cometida por estranhos, compondo, com
as agressões domésticas, parte de uma espécie de iniciação infantil no corrompido
mundo dos adultos, como no conto A visita (em Cemitério de elefantes), em que uma
menina espera no banheiro enquanto a mãe mantém relações sexuais com um homem,
ou em Todas as Marias são coitadas (em Desastres do amor), que se inicia com o
estupro de uma menina. Esta violência é direta, sem rodeios, como no próximo
exemplo:
A boneca
Manhã de sol, a menina vai pulando caminho da escola (...) Daí o cara se chega.
Diz que tem uma boneca para ela. (...) O tipo lhe a mão e seguem por uma trilha no
mato. Ela tem medo e quer voltar. Diz o cara:
— Quietinha. Senão te pincho no rio!
(...) O tipo manda que ela tire a calcinha. O que podia, a triste? Só dez aninhos...
Ela chora muito. Ai, como dói.
Ele sai de cima dela. Ainda se abotoando, foge depressa. A menina se ergue,
toda suja de barro — um fio vermelho descendo na coxa esquerda.
Em vez da escola, volta para casa. Tem a perninha trêmula. Muita febre. A
mulher olha para a filha e tudo entende. Acha que é dela a culpa. E, para aprender, lhe
dá umas boas palmadas
42
.
Retornando aos conflitos de amor, espécie de eufemismo para a natureza
belicosa dessas uniões, vejamos o exemplo entre inúmeros possíveis de A loira,
em Arara Bêbada:
Casei com uma sueca. Bem minha mãe disse: Moça loira? De olho azul?
Não é pra você, meu filho. Seis meses fomos felizes. Uma noite chego em casa. E a
minha loira: Até ontem, eu te amei. Hoje, não mais. Adeus. Já de malinha no corredor. O
que eu podia fazer?
— ...
— Só matar. E foi o que eu fiz
43
.
Na realidade, de Guerra conjugal e Essas malditas mulheres poderiam ser
retirados dezenas de exemplos semelhantes. Mas, apesar de esta ser a linha-mestra, nem
sempre estamos diante de uma violência passional. Muitas vezes, pelo contrário, essa
violência é fruto justamente da falta de paixão, do tédio absoluto de uma existência sem
horizontes, que talvez, por carecer de paixão, se converte então em violência verbal,
como se pode verificar no miniconto a seguir, também extraído de Arara Bêbada:
41
Arara Bêbada. São Paulo. Ed. Record. 2004. p. 36
42
Arara bêbada. São Paulo. Ed. Record. 2004. p. 55
43
Idem. p. 63
62
Chapéu velho
O marido:
— De que adianta ir ao salão mais caro?
— Ai, amor, menos que...
— Amanhã teu cabelo está que é um chapéu velho!
44
A promessa da felicidade eterna do casamento tradicional, a coleção de frases
feitas e lugares-comuns que Dalton Trevisan utiliza para tecer sua escritura, o que Leo-
Gilson Ribeiro chama de “a mais insólita e pungente Seleções do Kitsch reunida nas
Américas” acaba por se constituir no pano de fundo do cenário em que desfilam essas
criaturas furiosas, capazes dos atos mais vis. Os contos estão
povoados por maridos que invariavelmente maltratam,
humilham e traem as suas esposas, que as devolvem aos pais
quando, na noite conjugal, percebem (ou imaginam perceber)
que elas já não são virgens. Que as acusam de impostoras
frígidas ou de prostitutas pecaminosas, e por isso as espancam,
as ferem e as matam. (GONZAGA, op. cit. p. 449)
Como bem define Mário da Silva Brito:
Trevisan é, na verdade, o contista das guerras, surdas ou
veementes, contidas ou explosivas, recalcadas ou flagrantes
entre homem e mulher.(...) Seus personagens masculinos e
femininos são eternos inimigos, envoltos pelo tédio,
desgastados pelo convívio, demolidos pela mútua decepção,
adversários irados e agressivos a se ferirem incessantemente
45
.
Mesmo quando esse espírito belicoso cede espaço para tipos mais francos e
generosos, ainda sim os efeitos, ao fim do relato, parecem igualmente desastrosos. Tal
comportamento, se exercido pelos homens, parece merecer apenas o deboche, o
desprezo, ou mesmo o desejo de vingança por parte das personagens femininas. De
certa maneira, é como se este homem semi-urbanizado precisasse manter sempre em
guarda o ideário do macho exemplar, aos moldes de um malandro também desaparecido
com o desenvolvimento metropolitano (bom copo, mulherengo, cafajeste, viril, muitas
vezes cafetão
46
). Como exemplo desses personagens gentis, pode se citar alguns contos
de Guerra conjugal em que tal fenômeno aparece como: O martírio de João da Silva,
conto em que o marido que tolera todos os prazeres extraconjugais da mulher recebe
dela apenas desprezo e pensamentos homicidas; Leito de espinhos, em que a mulher
44
Ibidem. p. 84
45
Citado por Sergius Gonzaga em Curso de Literatura brasileira. Porto Alegre. Leitura XXI. 2004. p.449
46
Para mais, Do vampiro ao cafajeste de Berta Waldman. Ed. Huicitec. São Paulo. 1982.
63
seguidamente pensa em por vidro moído na comida do marido odiado; e O senhor meu
marido, em que, apesar da mulher acabar sempre voltando para o esposo, este a recebe
sempre depois que ela foi dos mais variados tipos de homem.
De fato, como salienta Sergius Gonzaga, e essa será uma tônica de praticamente
toda a contística de Dalton Trevisan:
A guerra entre homens e mulheres não é apresentada nem de um
ângulo machista nem feminista. A crueldade e a mansidão
alternam-se nos dois sexos. A mártir de ontem é a megera de
hoje e assim por diante, numa ciranda amarga e infinita. Por
causa disso, a contínua violência física, que infligem uns aos
outros, reveste-se também de uma terrível naturalidade. (Op. cit.
p. 489)
3.2.3 — O universo fechado do crime, do sexo e da solidão
Trata-se mesmo de um universo que passa a ter esse aspecto de mundo circular e
fechado em si mesmo. É como se em cada um desses lares da pequena classe média, se
reproduzisse, como em um laboratório as variadas gamas de complicações oriundas
especialmente do sexo. Muitas vezes quase se poderia sugerir que são essas pulsões
sexuais que arrastam os personagens para a perversão e para o crime. Nelsinho, o
vampiro de Curitiba, parece ser a melhor encarnação tipológica dentro desse universo
(Ver Anexos, ex: 1). Há, porém, uma galeria gigantesca de personagens que oscilam
entra as mais variadas formas de assassinato e de violências sexuais.
Na sua ânsia de satisfação da libido, os protagonistas passam
por cima das convenções, dos valores familiares e da ética.
Diante de nossos olhos, desfilam adolescentes tarados, velhos
pedófilos, virgens loucas, doutores libidinosos, maridos
adúlteros, esposas atormentadas pelo desejo insatisfeito, etc.
(Op. cit. p. 489)
Aqui, evidentemente, não se pode deixar de lado o aspecto propulsor do extremo
moralismo em que estava imersa a sociedade brasileira até meados dos anos 1960, ou
seja, antes da época da revolução sexual e da liberação dos costumes. Some-se a isso a
presença fortíssima dos valores católicos conservadores, característicos de cidades de
estrato imigrante como Curitiba, e se verão ainda mais exacerbados os elementos de
perversão e frenesi erótico provocados pela repressão e controles sociais.
Principalmente quando se leva em consideração que tais valores parecem não penetrar
as camadas mais fundas da psicologia dos indivíduos. É como se a lei exterior da
sociedade só precisa ser mantida fora do espaço individual. Não é à toa que tantas
64
virgens loucas e personagens consumidos pelos mais variados tipos de taras nas páginas
de Dalton Trevisan. Trata-se, amiúde, de impor valores urbanos a criaturas que sequer
chegaram a se urbanizar. Em um processo semelhante ao denunciado em Os sertões, é
como se o leitor se encontrasse diante de uma humanidade que não chegou a cumprir
nem um ciclo completo civilizatório e que se vê obrigada a aderir a uma nova etapa da
evolução ocidental.
E novamente não será excessivo dizer que, embora a realidade social que deu
origem a esse universo tenha desaparecido, as minificções de Dalton Trevisan, em
particular Ah, é? e Arara bêbada, continuam sendo nutridas por essa Curitiba mítica que
segue viva enquanto locus litterarius e que, dessa maneira, não se pode relacionar sua
vivacidade (ou falta de) diretamente, como se verá posteriormente, com a diminuição e
a progressão elíptica que levará o autor de Novelas nada exemplares do conto ao
miniconto ou à minificção.
3.2.3.1 — A solidão
Resultado final de muitos dos embates de suas vidas privadas, a solidão parece
ser o grande fantasma a rondar os personagens de Dalton Trevisan, seja no próprio
aspecto físico da solidão (e na grande quantidade de viúvos, viúvas e abandonados), seja
na incomunicabilidade final de um outro grande grupo de personagens. Em vários
contos facilmente se poderá notar a solidão insuportável do entre quatro paredes, o
desespero de uma existência divida diariamente por Joões e Marias, uma antevisão do
inferno.
De manhã ela arrumava as malas. João sugeriu pacto de morte, não foi aceito.
Abriu a porta do táxi, despediu-se com aperto de mão: ainda mais querido na gravata de
bolinha e óculo escuro.
Resolvido a morrer, não tinha revólver nem veneno. Enfiou a cabeça no forno
de gás, posição incômoda demais. Além disso, com muita dor de dente iria primeiro
ao dentista.
Um mês depois o encontrou na rua. Maria afastou-se da mãe, falou com
naturalidade. Ele mal pôde acender o cigarro tanto que a mão tremia.
47
Em certa medida, neste aspecto a obra de Dalton Trevisan se aproxima à do
americano Raymond Carver. Parece que seus personagens perderam ou nunca tiveram o
dom da comunicação, parecem sempre incapazes de chegar a uma solução satisfatória
47
A guerra conjugal. p. 158
65
para seus dilemas, e, mais, no caso dos dois autores, o leitor está sempre em uma
posição que lhe permite visualizar esta incapacidade.
Os personagens que habitam estes contos e romances o são
seres extraordinários (nem por sua bondade nem por sua
maldade), mas costumam ter uma capacidade para resolver
conflitos menor do que a que possuem a maioria dos leitores.
Ou, ao menos, no momento de suas vidas que está refletido no
relato, são mais torpes, mais incultos, mais fracos, mais pobres
ou mais tolos que o leitor.
(PÁEZ, Enrique, Escribir, p. 195)
Escritos com uma economia máxima de recursos, em um caráter que sempre
beira o minimalismo, os contos de Carver, também nesse aspecto semelhantes aos de
Trevisan, estão dentro de uma escola que os críticos definiram como realismo sujo,
embora o sujo aqui não tenha a ver com a sujeira física ou com tipos que
obrigatoriamente agem de modo baixo. Este sujo diz respeito ao tratamento dos temas,
sem enfeites desnecessários. Tal estudo comparativo entre a obra desses dois autores
poderia ser bastante rentável, trazendo ainda mais características semelhantes, mas, por
questões de espaço e foco, é tarefa que fica para outra oportunidade.
Retornando à obra do Dalton, vemo-nos diante da incapacidade dos personagens
em resolver seus dilemas pessoais, purgados, as mais das vezes, pela violência. É daí
que se origina, a nosso ver, um dos mais acentuados equívocos na interpretação das
últimas produções do autor, desde seu progressivo ingresso na minificção, a saber, a
confusão entre o silêncio existencial a que estão entregues os personagens, o silêncio
calculado que o autor deita sobre eles, e o silêncio que é dado pelo minimalismo da
escrita, como se esse minimalismo fosse responsável pelo silêncio. Como se pode
estabelecer esta relação? Está a brevidade necessariamente associada ao silêncio?
Retomaremos esta questão no próximo capítulo.
3.3 — Características da contística de Dalton Trevisan
Veremos a seguir algumas das características da obra do escritor curitibano. Será
dada prioridade aos elementos que aparecerão em suas criações minificcionais para que,
no quarto capítulo, momento em que faremos as análises das “ministórias”, as eventuais
ligações possam ser feitas. Destarte, foram escolhidos três aspectos: humor, ironia e a
exploração funcional da violência.
66
3.3.1 — O humor
Característica presente em boa parte de sua obra, o humor em Dalton Trevisan
costuma aparecer em duas vertentes: a primeira de um humor escrachado, normalmente
oriundo da escatologia ou do que lato sensu se poderia chamar de cultura popular; a
segunda daquilo que poderíamos chamar de humor negro ou corrosivo, um tipo de
humor que se realiza na desgraça alheia. No geral, porém, estes dois tipos de humor
nascem de uma mesma matriz comum, dos enredos e cenários de profundo mau-gosto,
quando não de um kitsch quase intolerável, que acabam por provocar um tipo de riso
que não é necessariamente o das histórias cômicas. Quanto à primeira vertente, realiza-
se, no geral, com um toque de melodrama suburbano, quase uma versão literária de
imprensa marrom (em aparência, fique claro), ou de novela mexicana. Vejamos um
exemplo do primeiro tipo na seguinte minificção 145:
A gringa rumbeira para o novo coronel:
— Pero que si. A escrava de tus desejos. Só me permita, papito, no momento
supremo, em tus braços, a usted chame Candinho
48
.
A segunda vertente se realiza de um modo um pouco diverso. Aqui será o espaço
da risada catártica de quem se livra de uma situação inconveniente, ou melhor e
apesar do grau pouco científico da observação —, a risada que se quando alguém cai
e se machuca, um riso sarcástico, quando não ominoso. Também haverá espaço aqui
para aquele riso que nasce do absurdo da situação, do inusitado de ver os dramas
familiares elevados a tais potências. Muitas vezes esse riso começa na superfície da
linguagem, nas expressões esdrúxulas, freqüentemente humilhantes, escolhidas para o
trato dos personagens. Então temos ali um conquistador com caspa na sobrancelha” e
“olho verde de gato ladrão”; uma viúva que possui o “olho estrábico da luxúria” e
personagens que se tratam por arara bêbada”, “barata leprosa”, “corruíra nanica”,
etc. Exemplos deste tipo de conto poderíamos encontrar seguramente nas obras de
maior fôlego de Dalton Trevisan, mas seguiremos com os exemplos de sua narrativa
ultracurta. Eis a minificção 113:
Ele encerra mais uma discussão:
— Ò grandíssima cadela!
48
Ah, é?. p. 104
67
— É você, carniça.
Enfia o chapéu e, quando abre a porta, dois tiros pelas costas, um na coxa
esquerda, outro de raspão na virilha. Volta-se, agarra-lhe o pulso, recebe terceiro tiro no
pé direito.
— Me acuda, que vou morrer.
Maria muito arrependida, de joelho e mão posta.
— Não sei onde a cabeça
49
.
3.3.2 — Ironia e reversão da ironia
O efeito da ironia, segundo Booth, se realizar com a apreensão mais funda da
trama e com a identificação, assim possível, da troca de tom na voz narrativa, o que
permite a rejeição do sentido aparente, tendo o leitor que preencher a lacuna formada
(para participar da intenção irônica do autor) com outros sentidos possíveis — daí nasce
a ironia, da frase ou contexto que não pode ser tomado no sentido estrito.
Embora em boa parte dos casos Dalton Trevisan trabalhe com ironias estáveis,
i.e., presentes no texto, acontecerá, às vezes, durante o processo de leitura, uma radical
reversão de expectativa quanto à história, transformando o que parecia um deslavado
conto de humor em um retrato trágico das existências miseráveis de suas personagens,
constituindo, talvez, um dos maiores desafios de sua obra, desafio sempre arriscado que
propõem os que utilizam a ironia, que é saber quando reverter o processo irônico, saber
onde parar. Booth nos diz em seu A rethoric of irony que, sem estabelecermos um
limite, o que deveria ser uma ironia estável, passa ao plano de instável, prejudicando
muitas vezes o sentido mesmo de uma leitura mais completa. Porque uma vez que perca
a referência de onde parar, o processo irônico entra em um processo de regressão ao
infinito. Se é verdade que todas as leituras são possíveis, também o é que algumas
leituras são mais ricas que outras. Verifiquemos o exemplo de um processo complexo
dentro das minificções de Dalton Trevisan quanto ao saber onde parar. Vê-se, a seguir, a
153:
Ele sai do banheiro, a toalha na cintura.
— Pai, deixa eu ver o teu rabo.
É a tipinha deslumbrada no baile da debutante de três anos.
— Rabo, filha? Ah, sei. O bumbum do pai?
— Seu bobo.
— ...
— Esse pendurado aí na frente
50
.
49
Idem. p. 79-80
50
Ibidem. p. 110
68
Pode-se ler ironicamente essa minificção e não suspender em nenhum momento
a leitura irônica do texto. Ocorrerá, porém, ao se proceder dessa maneira, a eliminação
de uma possível leitura mais drástica, que estaria de mais acordo com o universo do
autor curitibano. Eis aí, apenas em caráter de recapitulação, um dos elementos
fundamentais da ironia: testar a superfície de um texto de acordo com as convicções que
nos despertam as outras criações do autor e mesmo a idéia que fazemos desse autor. No
capítulo dedicado às análises das minificções de Ah, é? tal tema será retomado e
aprofundado.
3.3.3 — A exploração funcional da violência
Nas páginas de Dalton Trevisan, dos contos mais longos aos de extrema
brevidade, não se pode deixar de apontar uma constante: a violência doméstica ou
familiar. Cabe aqui, porém, pensar em como isso explorado enquanto elemento que
caracteriza sua contística. Pois é evidente que não se pode tomar a violência apenas
como tema na obra do autor curitibano. Trata-se quase de uma poética da composição
daltoniana: a violência como função. Como referido anteriormente, muitas vezes se tem
a impressão de se estar diante de manchetes policiais de jornais sensacionalistas, toda
uma galeria de crimes passionais que vão de assassinatos entre maridos e mulheres a
uma variada gama de delitos sexuais, da pedofilia ao incesto, da violação explícita ao
estupro consentido. Tem-se a impressão freqüentemente de que as personagens estão
indo ou participando da mais encarniçada das guerras, visão corroborada pelo próprio
autor na minificção 143, autoparódia de um de seus mais famosos livros.
Guerra conjugal: as mil e uma batalhas da minha, da tua, da nossa Ilíada
doméstica.
51
Qualquer leitor que se debruce sobre a obra do curitibano, logo encontrará uma
série de desfechos violentíssimos. Está nesses desfechos, no modo como os relatos
progridem, uma exploração da violência quase como sinônimo de clímax dos textos,
tomando como base aquele velho gráfico de Freitag, ainda útil, de avanço da trama. O
número de exemplos em que a resolução do conto está associada a este clímax violento
51
Ibidem. p. 103
69
é tão expressivo que talvez fosse mais fácil procurar os contos em que este tipo de
resolução não está presente.
O que impede, porém, que os contos de Dalton Trevisan não passem de uma
galeria de tipos selvagens e atrozes é, mais uma vez, a função que essa violência exerce
em sua obra. Em meio a tantos combates horrendos, parece não haver vencedores, o que
de certa maneira reverteria a resolução que no conto clássico sucede ao clímax. Nenhum
equilíbrio é estabelecido ou restabelecido depois do clímax. Quando o equilíbrio existe
ele é sempre precário ou incompleto. Estamos diante de um tipo de resolução deceptiva,
tão comum ao conto moderno e contemporâneo. Depois dos mais encarniçados
combates, nada está resolvido. A redenção parece estar existencialmente vedada para
ambos os lados engajados no conflito.
Envoltos na tensão permanente do amor e do sexo, os
protagonistas de Dalton Trevisan saem freqüentemente
destroçados. Neste momento, o leitor começa a perceber que o
tema fundamental dos contos não é propriamente o embate
entre homens e mulheres, mas a solidão e a perda. Algozes ou
vítimas dos crimes da paixão, todos (ou quase todos) terminam
presos a um rculo de infelicidade. Daí a quantidade de
bêbados, de assassinos e de suicidas que irrompem nas
histórias, todos querendo apagar em si ou nos outros as marcas
da dor e da maldade. A conseqüência de tais comportamentos
não é a expiação das lembranças, mas a certeza de que nascer,
viver e morrer são atos gratuitos e solitários.(GONZAGA,
Sergius, Op. cit. p. 489)
3.4 — O estilo de Dalton Trevisan
Pode-se agrupar, por questões metodológicas, o estilo de Dalton Trevisan em três
categorias básicas, presentes em seus contos, e, para nosso interesse, em suas
minificções:
1 — Concisão da linguagem.
2 Utilização de metáforas surpreendentes, comparações, diminutivos,
corruptelas de expressões populares.
3.4.1 — Concisão de linguagem
Desde seus primeiros contos de Novelas nada exemplares (1959), mas de
maneira mais nítida a partir de Cemitério de elefantes (1964), pode-se notar na
linguagem e no estilo de Dalton Trevisan um esforço pela concisão que muitas vezes
70
chega quase ao limite da compreensão do enunciado. Como bem aponta M. Silvermann,
nos contos do curitibano “só há lugar para o estritamente essencial”. Sabe-se que o autor
tem por hábito ir podando mais e mais os seus contos a cada edição. Tal esforço pode
ser observado claramente no primeiro parágrafo do conto Cemitério de elefantes,
reproduzido a seguir conforme o original de 1964 e depois de acordo com a antologia
pessoal Primeiro livro de contos (1979).
Há um cemitério de bêbados na minha cidade. Nos fundos do mercado de peixe
e à margem do rio ergue-se o velho ingazeiro — ali os bêbados são felizes. A população
considera-os animais sagrados e provém às suas necessidades de cachaça e peixe com
pirão de farinha. No trivial contentam-se com as sobras do mercado
52
.
E como ficou a versão posterior.
À margem do rio, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro
— ali os bêbados são felizes. A população considera-os animais sagrados, provê às suas
necessidades de cachaça e pirão. No trivial contentam-se com as sobras do mercado
53
.
Destacamos na versão original as palavras que foram cortadas. Alguns gostam
de enxergar nos cortes sucessivos promovidos por Dalton Trevisan em seus textos um
indicativo de que acabaria optando por produções textuais exíguas, como minicontos ou
haicais. Preferimos enxergar nesse apuro, nesse gosto por eliminar qualquer palavra a
mais dentro do texto como uma característica marcante de seu estilo, presente, ainda
que de modo menos radical, desde os primórdios de sua obra. No exemplo acima é
nítida a melhora da segunda versão. Se o título anunciava a palavra cemitério, não havia
nenhuma necessidade de reforçá-la na primeira frase. A nova organização do primeiro
período também é bem mais funcional do ponto de vista da fluência da frase. Por fim, a
idéia de pirão já inclui peixe e farinha.
A concisão é tão marcante em Dalton Trevisan que ela chega a contaminar até
mesmo os diálogos ou discursos indiretos livres, conferindo uma dicção muitas vezes
estranha aos personagens, mas que acaba se tornando funcional dentro da economia da
obra. Alguns exemplos, tomados de sua obra
54
. “Quieto no meu canto, ela que começou.
Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro
52
Cemitério de Elefantes. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1964.
53
Primeiro livro de contos. Ed. Record. Rio de Janeiro. 1979
54
Todos os exemplos a seguir foram retirados de Primeiro livro de contos. Os contos vêm indicados entre
parênteses.
71
não sinta gosta de sangue. Eunuco, ai quem me dera”. (Vampiro de Curitiba). “— É que
preciso vê-la. Pouco ligando seja sica ou leprosa. Não posso mais” (Vozes de retrato).
“— Sozinha. Morta de medo. Um ladrão no trinco da sala e a voz olhou para ele.
O senhor atrás de vagabunda?” (O maior tarado da cidade).
É como se o gosto pela elipse, por encurtar mesmo os diálogos que teriam que
ser travados, dominasse tudo. É quase como se nessa Curitiba se falasse um outro
idioma, composto de reticências, do tartamudear que acomete os assustados, os
exasperados dostoievskianos, um paroxismo que vai da letargia de tantos Joões e Marias
à afobação de um Nelsinho, produzindo lacunas, um espaço onde a qualquer momento,
dos hiatos verbais, pode irromper a violência doméstica.
3.4.2 — Metáforas, comparações, diminutivos e expressões populares
Juntos com as elipses e a concisão, o estilo de Dalton Trevisan está composto
por marcas muito particulares, como a utilização de metáforas surpreendentes,
diminutivos e expressões populares (muitas delas corrompidas).
No que diz respeito às metáforas, o autor curitibano as utiliza sem parcimônia,
dotando os textos de um ar que muitas vezes beira o expressionismo (pela distorção dos
traços) e o surrealismo (pelo inusitado das imagens). Da descrição sórdida de certos
cotidianos conjugais e familiares, irrompem metáforas carregadas de agudo lirismo,
como nos exemplos abaixo, a primeira e a última das “ministórias” de Ah, é?:
1
O amor é uma corruíra no jardim — de repente ele canta e muda toda a
paisagem
55
.
187
Em toda casa de Curitiba, João e Maria se crucificam aos beijos na mesma
cruz
56
.
Às vezes esse lirismo é só uma nota dentro de uma composição inteira:
55
Ibidem. p. 5
56
Ibidem. p. 136
72
Maria não aceitava sua condição de dona casada e mãe de uma filha. Queria
prazeres e mais prazeres, tais e tantos que ela era duas lágrimas azuis se não podia ir a
algum baile (...)
57
O azul das lágrimas se destaca da paisagem de descrição realista. A imagem é
lírica, rompendo com um início que parece saído de um folhetim de banca de revistas.
Em um conto que se chama Rato piolhento (1975) emerge do meio da narração um belo
retrato de mulher, mas vejamos que as metáforas estão no limite do que muitos
considerariam subliteratura: “Ela folheia aqui e ali: a coxa nacarada, instrumento de
tortura, portas do paraíso”. Mas muitas vezes a própria estratégia de Dalton Trevisan
será trabalhar diretamente sobre esses clichês. Em seus textos encontraremos expressões
como “o amor é uma faca no coração”, “O coração de Nelsinho disparou a mil por
minuto”, “Batia na porta, contava, um, dois, três e impunha o seu capricho de homem”.
Outro recurso será a constante exploração do imaginário popular como o marido que
acusa a noiva de não ser virgem na noite de núpcias, a coragem desbragada do
“motociclista do globo da morte”, o prometido e seleto bordel de normalistas, o
desaparecimento para comprar cigarros na esquina.
Além disso, um sem-número de interessantes expressões que ele usará de
maneira recorrente em toda sua obra, inclusive nas minificções, expressões como “beijo
de virgem é mordida de bicho cabeludo”, “arara bêbada”, “corruíra nanica”.
Por fim, é necessário salientar o uso freqüente que Dalton Trevisan faz dos
diminutivos. Todos os seus contos, em especial do livro O vampiro de Curitiba para
frente, estão carregados dos mais variados diminutivos, desde a voz do narrador às falas
dos personagens. Aparentemente parece que esse uso se apenas para reproduzir o
modo brasileiro de falar, o que ocorre com freqüência, compondo parte da
coloquialidade. Às vezes, porém, esta utilização se transubstancia em uma estratégia
bastante interessante por parte do autor. Por vezes são justamente os personagens que
recorrem à doçura dos diminutivos os protagonistas das maiores atrocidades e
violências assim que a oportunidade aparece. Por outras, é como se as vítimas,
indiferentes ou incapazes de reagir, seguissem tratando seus algozes com as mesmas
amenidades votadas a um ser amado. Uma hipótese é que tudo não seja mais do que
uma simulação de naturalidade, de identificação com a fala carinhosa, usada
francamente em ambiente doméstico, um artifício para acobertar a segunda história que
57
A guerra conjugal. Ed. Record. Rio de janeiro. Rio de Janeiro. 2006. p. 63
73
está sendo contada, a da violência. Gregory Rabassa, tradutor de Trevisan para o inglês,
de certa maneira identifica essa estratégia:
Com um estilo enganosamente natural, assustadoramente
natural, Dalton Trevisan, em cada uma dessas sutis narrativas,
fixa os pavores, as paixões e as angústias do homem do nosso
tempo (RABASSA, Gregory, An introduction, p.3)
Tal estratégia fica mais clara nos exemplos a seguir:
Quanta jóia
Legal vó. Quanta jóia bacana. Quando você morrer, deixa pra mim, né?
— Claro, filhinha. É a minha neta do coração.
— E pra morrer, vozinha...
— Sim, anjo.
— ... você não vai demorar, vai?
58
115
De repente o bofetão na orelha, que derruba na cama — pode ser com força, não
deixa marca.
— Ai, bem. Que é isso?
É tarde: ligeiro a cavalga, domina os frágeis pulsos. Na maior doçura alisa o
rostinho em fogo:
Tão lindinha, não sei o que... Ai, mãezinha, você aqui. Que rostinho mais...
Como estou tremendo. Veja só.
Olha-o com medo de outro tabefe. Mãos trôpegas sobre a blusinha xadrez.
Geme, baixinho:
— Ai, ai. Não posso. Não tenho coragem.
Sacudido de tremores:
— Ai, senhor. Não mereço.
Descobre o umbiguinho. Tapa-o mais que depressa.
— Não pode ser.
Funga e pasta no pescoço de cisne branco.
— Você acaba comigo. Vou ter um ataque.
Enterra as patinhas, mosca se afogando na compoteira de ambrosia.
— Não. Você me mata. Não faça isso.
Olhe a menina, coitadinha. Qual é a tua, cara? Igual a qualquer outra, dois
braços, duas pernas.
3.5 — Dalton Trevisan e o miniconto
Quando Dalton Trevisan lançou Ah,é?, em 1994, poucos críticos brasileiros
pareciam preparados, senão capacitados, para entender e analisar a obra não dentro
do contexto da própria contística do autor curitibano como também dentro do cenário da
literatura nacional e internacional.
58
Arara Bêbada. p. 26
74
Volume extremamente incomum, Ah, é? está composto por 187 minificções que
exploram as mais variadas possibilidades da prosa ultracurta. Com fartas ilustrações de
seu amigo de longa data, Poty, a edição da Editora Record tem 140 páginas e uma capa
sem orelhas. Não há na edição qualquer tipo de metatexto, seja por parte da editora, seja
por parte do autor. Na quarta capa apenas a reprodução de quatro minificções. Mais
nada. Internamente, a única informação fornecida por Dalton Trevisan é a classificação
de ministórias para as suas produções breves. Sem entrar no aspecto de que muitos
desses pequenos textos não possuem o aspecto de “estória”, ou seja, não estão narrando
um episódio, quanto mais uma história, esta é a única pista deixada pelo autor dentro do
livro. Para complicar ainda mais a recepção da época, as ministórias estão tituladas
apenas com números, que seguem em ordem crescente até o 187. Recurso semelhante
para titular minificções já tinha sido utilizado pela escritora argentina Ana María Shua,
em La sueñera, de 1984. Não queremos sugerir que Dalton Trevisan a tenha lido, mas
para mostrar que tal recurso também não era novidade dentro do universo da
minicontística latino-americana.
Marcelo Spalding, em sua dissertação sobre o miniconto no Brasil, com vistas à
coletânea Os cem menores contos brasileiros, recompõe o cenário da época,
principalmente por que muitos como o organizador da referida coletânea, Marcelino
Freire tomarão este livro como pedra fundamental do gênero no país. Se é evidente
que outros autores haviam praticado textos fragmentários, curtos e ultracurtos no
Brasil (Oswald de Andrade, Murilo Rubião, Mario Quintana, etc.), nenhuma outra
criação até aquele momento havia se inserido de forma tão clara dentro do que na
América Latina se tinha como gênero consolidado mais de duas décadas, e um
gênero que apresenta como aspecto central o miniconto, das formas de minificção a
mais impressionante pelo seu poder de conter narração e outros recursos literários em
tão pouco espaço. Pois esta é uma forma sem paralelo anteriormente na produção
textual do ocidente. De qualquer maneira, não cabe aqui retomar os aspectos que nos
levam a considerar uma obra como inserida neste novo contexto e desconsiderar os
casos isolados de produções curtas citados anteriormente
59
. O que ocorre em Ah, é? é
um fenômeno de natureza distinta: estamos diante de uma obra construída de modo
particular, afirmação que mais adiante será devidamente comprovada. Quanto a textos
breves, o próprio Dalton Trevisan, desde Cemitério de elefantes, compusera contos
59
Para essa discussão, rever o capítulo 2.
75
que tranquilamente seriam considerados ultracurtos ou sudden fiction no padrão
americano (menos de 700 palavras), mas mesmo estes textos, se comparados com a
brevidade extrema das ministórias (definição do próprio Dalton Trevisan) de Ah, é?,
revelam não recorrer ao mesmo tipo de concisão de que estamos a tratar.
Diante de economia tão espantosa, mesmo para os padrões latino-americanos,
que já vinham operando com categorias inferiores a 200 palavras
60
, costumou-se pensar,
e isso é nítido nas críticas publicadas na época, que tal brevidade estaria diretamente
associada aos haicais. Parte desse equívoco pode estar associada à interpretação dada a
uma declaração de Dalton em uma de suas raras entrevistas, em que o autor confessa ter
por programa ir reduzindo seus textos até se aproximar à perfeição do haicai. O que em
nenhum momento, evidentemente, permite que se pense em uma relação direta entre as
formas sem mediação. Pois claro está, diante da tradição estabelecida por Monterroso e
outros, que os minicontos e, por extensão, as minificções são reduções da prosa, que
podem, sim, adquirir caráter lírico, assim como já havia ocorrido com outros textos
maiores em prosa, hibridizados com elementos poéticos, mas ainda sim compostos em
prosa. E por mais complexo que seja propor ou querer estabelecer uma fronteira
genérica nos dias de hoje, creio que teríamos a perder ao abandonar a idéia de que
sem verso não se pode ter poesia. Deste modo, um paralelo legítimo seria entre haicai e
poesia, e entre minicontos e contos. Por outro lado, nada impede que se tente o haicai
em prosa, e isso sim é realizado por Dalton Trevisan, como atestam, por exemplo, as
“ministórias” 15, 104 e 116, respectivamente:
15
Solta do pessegueiro a folha seca volteia sem cair no chão — um pardal.
104
Bolem na vidraça uns dedos tilitantes de frio — a chuva.
116
A chuva sovina conta e reconta suas moedas nas latas do quintal
61
.
60
E aqui não podemos esquecer da menor minificção do mundo, de Sergio Golwarz, composta apenas
pela palavra “Deus”.
61
Ah, é? pp. 16, 74 e 82
76
Se a tônica da obra fosse esta, a aproximação seria legítima e inclusive
perfeitamente elucidativa. Acontece que minificções como essas, e menos semelhantes
ainda aos haicais, chegam quando muito dez por cento do conjunto. A necessidade,
porém, de enxergar haicais em Ah, é?
62
acabou por forçar algumas análises da época a
limites quase esdrúxulos. Acompanhemos um exemplo do que se publicou então, de
uma resenha de Marco Chiaretti, recolhida no trabalho já referido de Spalding.
Não há rima nos “minúsculos contos, mas a idéia de fulguração,
de rápido clarão, contida no poema japonês, é o Leitmotiv da
obra do escritor curitibano desde seu primeiro livro”.
(SPALDING, p. 34)
Bem, se não rima, e mais, se o haicai possui uma série de exigências formais
para se cumprir, como tratamento de temas e números de sílabas, por que tentar uma
aproximação desta natureza? Leitmotiv da obra? Como o crítico pode determinar isso?
Essa fulguração e rápido clarão equivalem a epifania, abertura, o que isso quer dizer,
afinal? E por que o haicai e não outras formas tradicionais de composições breves,
como epigramas, aforismos e fábulas? Certamente, em caráter proporcional,
encontraríamos quase o mesmo número de minificções que seriam iluminadas por tais
céleres clarões.
Não está na aproximação com o haicai, porém, a maior confusão que se faz em
torno do minimalismo de Dalton Trevisan, radicalizado a partir de Ah, é? Por alguma
razão inaparente, diversos setores da crítica passaram a falar em silêncio na obra do
curitibano. Vejamos o que disse à época Berta Waldman:
Quando o autor aponta para essas formas poéticas cada vez
mais sucintas e epigramáticas, ele está revelando um programa
estético de enxugamento crescente, de silenciamento da
linguagem, o que coloca o leitor diante de um paradoxo, que
o conto existe na articulação da linguagem, e, na medida em
que tem por meta o silêncio, ele aponta para o lugar de seu
desaparecimento. (WALDMAN, 1994, p. 5)
Em primeiro lugar é preciso desfazer a idéia de que haja um programa estético
de enxugamento crescente na obra de Dalton Trevisan, idéia, aliás, não confirmada com
o lançamento de Macho não ganha flor (2006). Mais uma vez o fato de as constantes
revisões que o autor executa sobre seus textos anteriores, sempre no sentido de torná-los
mais concisos, serve para alimentar a fantasia da crítica sobre um processo irrefreável
62
E aqui é preciso dar o desconto para o fato de que não havia a circulação que há hoje das minificções
latino-americanas e também da fortuna crítica que hoje se acumula.
77
de elipses em direção ao silêncio. Brevidade e concisão foram tomadas por Poe e depois
por Cortázar como virtudes do conto. Em segundo lugar, o fato de uma minificção estar
constituída de uma frase apenas não significa em nenhum estante que a articulação da
linguagem esteja ameaçada. O que pode sim ocorrer, como vimos, é que não haja na
minificção um caráter narrativo. Finalmente chegamos ao momento em Waldman assere
que o dito “programa estético de enxugamento” tem por meta o silêncio. Como pode ser
isso? Onde está a relação direta entre concisão e silêncio? Aqui caberia resgatar a idéia
de haicai para salvar o vampiro de seu desaparecimento programático. Ninguém que
esteja familiarizado com os haicais pensaria em seu minimalismo e concisão como um
compromisso com o silêncio, antes pelo contrário. Por seu poder abarcador, pela
necessidade de grandes sínteses, muitos desses pequenos poemas japoneses adquirem
surpreendente grandiloqüência. Some-se a isso o fato de que ninguém acusaria um poeta
que praticasse o haicai de apontar o lugar de seu desaparecimento.
Contudo, tanto Waldman quanto Sanchez Neto encontraram pontos importantes
sobre Ah, é?, principalmente no que diz respeito aos recortes e reaproveitamentos
temáticos que Dalton Trevisan utiliza para compor suas minificções. Em várias ocasiões
se tem a impressão de reencontrar antigos personagens, velhos cenários, situações e
temáticas diversas vezes exploradas em sua obra. Sanchez Neto chega a falar até mesmo
em uma “relação de contigüidade”. Acontece, porém, que a forma mudou. É preciso
frisar este detalhe e o que dele decorre: Em arte, mudar forma é mudar também o
conteúdo.
Em algumas dos textos de Ah, é?, em função da contigüidade apontada pelo
crítico, o que veremos é um efeito que para Zavala é muito comum na minificção, que é
a formação de fractais: a partir daquele minúsculo recorte que compõem o texto é
possível enxergar o conjunto completo da Curitiba daltoniana.
As observações dos dois críticos corroboram ainda mais no sentido de que o
caminho em direção à minificção, a nosso ver, permitiu o surgimento de uma nova
forma para uma temática que não encontrava na forma do conto espaço para sua
renovação. Não se trata apenas de pinçar trechos ou recortar antigos relatos. Ao
transformar o texto em uma frase ou cena, ou fragmento, ou farsa, ou aforismo que
falsifica a si mesmo
63
, todo o fundo anterior que teve por fim originá-lo é embaçado, a
63
É conhecido um aforismo de Dalton Trevisan que diz: Se Capitu não traiu Bentinho, Machado de Assis
se chamou Jose de Alencar. Em Ah, é?, na minificção 45, o aforismo se transforma em “Se a filha de
Pádua não traiu, Machadinho se Chamou José de Alencar”.
78
nova criação adquire autonomia e, por sua concisão extrema, acaba por ressignificar (e
veremos isso nas análises posteriores) também as produções que lhe deram origem.
Nesta intertextualidade que se expande para as duas direções, ganham os contos antigos,
ganham as novas minificções de Dalton Trevisan.
79
CAPÍTULO 4 — AS MINISTÓRIAS DE AH, É?
4.1 — Objetivo
No presente capítulo, ponto final de nosso estudo, pretendemos analisar dez das
ministórias de Dalton Trevisan, da obra Ah, é? (1994), com o intuito de verificar e
problematizar as questões que foram levantadas ao longo dos três primeiros capítulos.
Nesta parte prática, de aplicação analítica dos recursos, queremos também demonstrar o
potencial e a riqueza para a crítica literária dessas pequenas obras de ficção. Os textos
foram escolhidos de acordo com o critério de exemplaridade, ou seja, de acordo com
suas virtudes aparentes, que, assim esperamos, possam se converter em materiais mais
amplos, servindo de base para futuras investigações e, para o atual momento, em
comprovação de que a visada aqui empreendida tem validade e é necessária.
As ministórias estão organizadas em ordem numérica e se priorizou a análise de
contos ultracurtos que fossem minicontos, ou seja, estivessem dotados de capacidade
narrativa. Procuramos, contudo, também englobar as outras tipologias da divisão
poética. Finalmente, sempre que possível, buscamos estabelecer relações com a obra
convencional de Dalton Trevisan e também com a de outros autores, sejam eles
minicontistas ou não.
4.2 — Análise das ministórias de Ah, é?
4.2.1 — Ministória 54
Você pode contar nos dedos as pequenas delícias da vida: o azedinho da pitanga
na língua do menino, a figurinha premiada da bala Zequinha, um e outro conto de
Tchekhov, o canto da corruíra bem cedo, o perfume da glicínia debaixo da janela, o
êxtase do primeiro porrinho, o beijo com gosto de bolacha Maria e geléia de uva, um
corpo nu de mulher.
A ministória 54 representa um dos casos em que os contos ultracurtos se
constituem em um material de difícil categorização. Por sua natureza não-narrativa,
antes reflexiva e memorialista, parece-me adequado classificá-la como percepção,
embora aqui de caráter mais metafísico que poético, mas aparentemente uma minificção
de percepção. Poderíamos, contudo, descartar classificá-la como vinheta ou
minimetaficção? Vejamos. Pode-se argumentar que a ministória é uma espécie de
80
fragmento de memória, o que seria suficiente para colocá-la entre as vinhetas. Mas é
preciso lembrar que, para que possa ser vinheta, é preciso que a minificção ou apresente
um retrato, ou um recorte, ou então um trecho que não apresente em si uma idéia de
totalidade. Pode o texto acima ser apreendido em sua totalidade evocativa?
Aparentemente a resposta é positiva. Assim, por enquanto descartamos uma leitura
como vinheta. Restar-nos-ia, então, uma leitura paródica, como se a ministória
parodiasse o estilo de certas crônicas memorialistas ou mesmo das reflexões filosóficas
de certos autores clássicos. Não se pode descartar essa leitura. A questão é saber se os
textos imaginados como base para a paródia oferecem um acréscimo interpretativo à
análise
64
. A minimetaficção, para se realizar, depende de uma utilização subversiva do
texto-base. Por ora avançaremos na análise tendo em mente a idéia de que lidamos com
uma percepção, como primeira hipótese, ou ainda com uma paródia, como segunda.
De início, pode-se identificar no tom adotado pelo enunciador um caráter
memorialista e intimista na ministória acima
65
. Estamos diante de uma voz que evoca,
que recupera as delícias da vida, em comunicação com o seu leitor, com quem busca
uma ligação afetiva. São delícias simples, de acesso comum a todos, e aqui Dalton
opera uma transmutação que é indiscutivelmente lírica. Como se pode saber disso? Pela
transposição de graus, comum a poesia. Basta lembrarmos de tantos versos de Bandeira
em que os elementos banais do cotidiano são alçados à forma literária, que os destaca e
os ressignifica
66
. Percebemos também se tratar de uma confissão. Em língua portuguesa
esta é uma tradição fortíssima, e não custaria lembrar, no século XX brasileiro, o senhor
do gênero, Nelson Rodrigues. Buscando ecos mais profundos, encontra-se na tradição
européia uma boa dezena de nomes. Pelo tom melancólico e saudosista, o Texto 54 bem
estaria relacionado a alguns dos Pensamentos de Giaccomo Leopardi. A esta relação,
porém, não se aplica a concepção de paródia. Temos, por enquanto, no máximo um
caráter de intertextualidade.
64
Não é demais esclarecer que uma relação paródia é intertextual, mas nem toda relação intertextual será
paródica. Como se apresentou no segundo capítulo, a intertextualidade é característica básica das
minificções, como de fato o é para toda a literatura. Acontece aqui, como já dito, um incremento de sua
função.
65
O você inicial do texto propõe um pacto com o leitor nos moldes daquilo que Luis Augusto Fischer
apontou como uma das características básicas do estilo memorialístico brasileiro, essa tentativa, via
Nelson Rodrigues, de fixar essas posições, de autor e leitor. Interessante seria a discussão sobre a inclusão
da ministória 54 dentro da linhagem de memórias proposta pelo crítico. Fischer, L. A. Linhagem das
memórias in Literatura Brasileira: modos de usar. Porto Alegre. Ed. LP&M. 2007.
66
Como é próprio das artes.
81
É preciso agora, contudo, estabelecer a grande diferença aqui presente em
comparação às obras tradicionais do estilo. A ministória 54 se constitui em produção
completa em si mesma. Não estamos diante de um fragmento ou de um excerto de
memória, e sim de uma obra completa, com caráter autônomo e independe. As
memórias ou percepções dessa voz não serão retomadas em nenhuma das outras 187
ministórias. Além do mais, este pequeno texto se constitui em memória, ou percepção
ou mesmo confissão sem um autor determinado. Seria a voz do próprio Dalton
Trevisan? Escutar a voz do autor é recurso comum em livros de memórias. A menina
sem estrela de Nelson Rodrigues, por exemplo. Dentro do gênero memorialista, nada é
mais natural do que escutar no texto, ainda que isso possa ser considerado simulacro, a
voz do autor que assina a obra. Bem ou mal, estão ali as memórias dessa voz, as
vivências e os acontecimentos de sua vida por ela interpretados, firmados sob o nome
do autor. No caso da ministória 54, não se pode afirmar que se trata de uma confissão,
de uma percepção direta do próprio Dalton Trevisan. Por outro lado, esse breve relato
também não pertence a nenhum personagem previamente apresentado. Dessa maneira,
ainda que o conto ultracurto se converta em memória ficcional, encontra-se a uma
distância quilométrica de outras memórias ficcionais, cujos personagens estão ali para
as legitimar (Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, A consciência de
Zeno, O túnel, etc.). Se há um personagem, essa voz está de acordo com o tom que lhe é
próprio. Mas o que fazer quando não há?
Vejamos o exemplo da ministória 86, também uma confissão, mas facilmente
atribuída a um personagem.
Pronto me calo, a minha mão ponho na boca. Todas as noites do velho são
dores, eis que vem o fim. No tempo das aflições minha alma é uma lesma aos uivos que
retorce o chifre e se derrete no sal grosso. Devo catar as migalhas debaixo da mesa?
Morder a pelanca do meu braço? Comi a gordura, engoli as delicadezas, cuspi os
ossinhos de sambiquira. E fui deixado só com o buraco do meu umbigo. Agora me deito
e sem falta morrerei.
Sem entrar em maiores detalhes da análise da minificção acima, é possível
perceber a diferença entre as duas vozes (a do primeiro texto e esta), vozes postas em
um mesmo esforço memorialista e confessional. A última está personificada. A primeira
pode pertencer a qualquer um, inclusive ao próprio autor
67
. Facilmente se verifica que o
67
Considerar, no entanto, que a voz ouvida na ministória 54 é a voz do autor criaria um problema de
incompatibilidade com a proposta expressa por Dalton Trevisan em Ah, é? Se esses pequenos textos são
“ministórias”, estamos diante de inequívoca produção ficcional. A não ser que consideremos o argumento
de que quando o autor fala com sua própria voz está, de fato, falando como um personagem de si mesmo,
82
exemplo recente possui um caráter bem mais narrativo que o primeiro, a presença
material e personificada desse narrador, principalmente uma configuração do
personagem. Se tivéssemos maiores e mais claros indícios poderíamos classificar a
ministória 86 como miniconto. Mas não os temos. Esta é a nêmesis de toda e qualquer
análise de contos ultracurtos: o que falta para que nossos interesses possam ser
comprovados faz parte da economia e da estratégia da composição utilizada pelo autor.
Retornando à ministória 54, teríamos então essa memória de um personagem
oculto, quase uma máxima ou um aforismo, mas ao mesmo tempo a evocação poética
do tempo perdido é a nota que se destaca. É a voz de alguém que não esna flor da
juventude, como costumam ser as vozes dos memorialistas. Não nota de ironia, não
se pode perceber o esforço parodístisco que caracteriza as minimetaficções. Sobra o
caráter poético inequívoco do texto. Mesmo a bolacha Maria com geléia de uva que por
seu toque de mesa humilde poderia provocar algum ruído compõe, associada ao beijo
que tem esse sabor, uma imagem ampla, potencializada ainda mais pela nudez de um
corpo de mulher, atingindo o objetivo que Merquior considera ser não só o da lírica,
mas também o de todos os gêneros literários: “a representação fictícia de situações
humanas, dotadas de interesse permanente”.
68
4.2.2 — Ministória 85
Na obra a seguir, Dalton Trevisan consegue na forma ultracurta
condensar, em uma única frase, uma série de elementos estáveis do conto (personagens
em ação, concentração de espaço-tempo, unidade de efeito, presença de trama), além, é
claro, do item básico do caráter narrativo que é a mínima unidade narrante. Segue o
texto:
— Meu pai foi me dar uma surra e nessa hora me ergueu do chão pelos
peitinhos.
Em primeiro lugar, em uma narrativa tão curta, não é exagero proceder a uma
breve observação de ordem sintática. O enunciado é nitidamente composto por duas
já que nenhum ser humano pode estar dentro de uma obra literária. Ver Cartas a un joven novelista de
Mario Vargas Llosa. Ariel. Barcelona. 1997.
68
Merquior, José Guilherme. A astúcia da mímese. São Paulo. Topbooks. 1997 p.17
83
orações unidas pelo conetivo “e”. Meu pai foi me dar uma surra/ nessa hora me ergueu
do chão pelos peitinhos.
Analisando mais profundamente a função deste conetivo, é possível perceber
que se trata quase de uma conjunção adversativa, não porque haja uma nítida
contraposição entre as ações expressas pelas orações, mas sim uma insinuação, de todo
fundamental para a realização do texto: Uma forma de violência que se anunciava como
puramente física deixa de possuir este caráter para passar a uma forma de assalto sexual:
Meu pai foi me dar uma surra, “mas” nessa hora me ergueu do chão pelos peitinhos.
Tal implicação será analisada posteriormente.
Um segundo detalhe, ainda dentro da esfera do enunciado, é que se pode
perceber a estrutura dialógica deste miniconto, já que o mesmo remete, de modo
simultâneo, a pelo menos um interlocutor interno e outro externo. O travessão indica a
presença deste primeiro ouvinte, o personagem a existência de pelo menos um a
quem a narradora (assim tomada por ser a única voz) comunica o ocorrido. Isto nos leva
a crer que se trata de um miniconto com pelo menos três personagens referidos na esfera
do texto. a menina que é erguida “pelos peitinhos”, o pai que pratica a violência e
mais um terceiro personagem a quem este anúncio é feito. Evidentemente que alguém
poderia argumentar que a menina poderia falar a si mesma sobre o ocorrido, como que
diante de um espelho, eliminando assim este terceiro personagem (que exerce função de
audiência). Seria, contudo, a nosso ver, extrapolar em demasia a função semântica do
enunciado, atentando, a um tempo, também contra a verossimilhança da narrativa:
alguém que falasse para si mesma utilizaria, ao menos para efeito literário, de outra
construção discursiva.
Confiar na presença deste terceiro personagem, o que escuta, e que esta fala é
endereçada para alguém no interior da esfera textual, além de fortalecer a história
subterrânea, propicia, ao leitor e ao crítico, uma pergunta bastante oportuna: quem seria
essa pessoa ou pessoas a quem a menina narra o ocorrido? Mesmo que essa entidade
não possa, pela escassez de elementos, jamais ser definida, é possível, em um exercício
interpretativo, excluir ao menos os parentes próximos da narradora. Se ela estivesse
falando para a mãe, irmão, irmã, ou a coletividade familiar, dificilmente poderia iniciar
a sua fala com “meu pai”. Este é um modo de tratamento por demais objetivo e
impessoal para dar conta de um interlocutor íntimo. Uma hipótese posterior seria pensar
que o fato é narrado a uma amiga, ou pessoa de fora da família. É plausível, mas
deixaria a história subterrânea um tanto debilitada. Em verdade, uma hipótese mais rica
84
veria nesse interlocutor alguém que desse ao anúncio um aspecto de depoimento, de
declaração que se faz a algum tipo de autoridade. no tom do diálogo (e isto é visível
na superfície da escrita) a falta de animação e capacidade reativa comum às vítimas de
abusos sucessivos.
O que nos leva, por fim, à análise da forma literária e da trama contidas no
miniconto e a uma tentativa de interpretação possível.
Antes de tudo, é preciso atentar para o fato de como estão preservados neste
conto ultracurto (16 palavras), os elementos narrativos da forma clássica do conto. No
caso do miniconto 85, está-se diante de um relato condensado e não híbrido, completo
na sua realização. Recorrendo à mínima unidade narrante de Imbert, pode-se perceber
uma ação que se inicia com a intenção paterna de aplicar a surra. Estivesse o miniconto
composto apenas por “meu pai foi me dar uma surra” e não teríamos nada além de uma
simples oração, ou melhor, de uma ação incapaz de narrar. Há, contudo, o
complemento, o complemento que dará narratividade à ação, que produzirá no leitor a
idéia de um acontecimento, que, neste caso, terá resolução fora do texto, em um
processo de sucessivas aberturas. De qualquer maneira, vê-se aí caracterizada a mínima
exigência aqui proposta para começarmos a classificação como miniconto.
Outros elementos presentes na forma mais ampla do conto e que podem aqui ser
elencados são o início in medias res, abertura clássica do gênero (embora tão antiga
quanto a Ilíada), o recorte do momento de tensão ou conflito entre os personagens,
seguindo a idéia da fotografia que se expande para fora da moldura proposta por
Cortázar, e o final aberto, que parece ser a tendência dominante da contística, desde que
Tchekhov abriu a senda da resolução defectiva.
Da trama em si, pode-se inferir que um pai comete um ato de violência contra
sua filha e que ela sobrevive a este ato para narrá-lo. De resto, os elementos, no que diz
respeito ao que os americanos chamariam de storyline, são escassos. Não quaisquer
informações internas sobre a composição dessa família, a que classe social pertencem,
em que cidade vivem. Há, no entanto, alguns elementos interessantes no enunciado, que
poderiam ser pequenas pistas, sem que se tenha que recorrer ainda aos empréstimos
externos ao texto, sempre lícitos em qualquer análise literária, e mais ainda quando se
estuda uma forma tão elíptica de texto
69
.
69
Muitos estudiosos defendem a análise de minicontos nos mesmos moldes da poesia, visto que, pela
economia de recursos, é quase impossível se ater a uma análise de caráter imanente. Além disso, as idéias
85
É possível, pela escolha do vocabulário, identificar mais alguns elementos que
caracterizem a personagem-narradora? Seria possível fazer uma identificação positiva
de sua idade, o que definiria também alguns traços do pai, apenas com a leitura
evidente?
Em primeiro lugar, é preciso atentar para a curiosa utilização que a personagem
faz do tempo verbal em sua fala. De acordo com o uso corrente, um falante médio da
língua utilizaria em vez do “foi” (Meu pai foi me dar uma surra) o “ia”, até pela
realização posterior do verbo que logo está explicitada. Tal confusão de tempos verbais
nos remete sempre a uma forma pueril de uso da língua. Exemplo disso se plasma no
famoso verso inicial da canção João e Maria, de Chico Buarque: “Agora eu era herói”.
Em segundo lugar, a escolha de “peitinhos”, termo ingênuo ou irônico demais para uma
mulher que desse conta do episódio. Por fim, o referido tom em que está pronunciada
a frase. Não parece natural que uma mulher revelasse tal acontecimento desta maneira.
Isto permite afirmar, ainda que de modo instável, que a personagem-narradora é uma
menina ou no máximo uma adolescente.
Teria sido ela abusada sexualmente por esse pai? Parece quase evidente no texto
que o pai é afetado por esse erguer do chão pelos peitinhos.
Há fundamentos para uma afirmação deste crime?
Não índices suficientes no texto para se chegar a uma resposta satisfatória. O
que está explícito é que este pai a agarra, que sua intenção inicial é surrá-la e que
alguma coisa possivelmente se opera, para fora da moldura do texto, ao erguê-la “pelos
peitinhos”. O próprio papel da história oculta é nebuloso. Como é próprio das
minificções, muitas vezes a história oculta, a história secreta pode se estabelecer por
meio da intertextualidade.
É quando precisa vir à tona as relações externas ao miniconto, começando
especificamente pelo conjunto de minificções de Ah, é? e depois pelos aspectos mais
amplos da obra de Dalton Trevisan.
Como apontado no terceiro capítulo, as circunstâncias em que ocorre violência
infantil dentro da obra do curitibano são inúmeras. Nos contos muito curtos e nos
ultracurtos, como os de Arara bêbada, essas circunstâncias parecem se intensificar. É
como se a economia natural da forma possibilitasse uma exploração mais aguda desta
temática que estava presente desde muito em seus contos convencionais. Se a
propostas, por Wayne Booth no seu A rethoric of irony e de certa maneira apresentadas em nosso segundo
capítulo.
86
violência familiar e doméstica acontece em surdina no interior de tantos lares, as elipses
exigidas pela brevidade extrema parecem vir diretamente ao encontro do tema. Por isso,
não se pode aceitar que a escolha pelas minificções esteja vinculada a um esgotamento
temático ou mero capricho de quem pode os próprios textos a cada nova edição. É no
radicalismo do que está fora da moldura, na violência implícita que se desenha depois
do fim do miniconto que o projeto ficcional de Dalton Trevisan se fortalece e se renova.
4.2.3 — Ministória 92
Tarde de verão, é levado ao jardim na cadeira de braços sobre a palhinha
dura a capa de plástico e, apesar do calor, manta xadrez no joelho. Cabeça caída no
peito, um fio de baba no queixo. Sozinho, regala-se com o trino da corruíra, um cacho
dourado de giesta e, ao arrepio da brisa, as folhinhas do chorão faiscando verde,
verde! Primeira vez depois do insulto cerebral aquela ânsia de viver. De novo um
homem, não barata leprosa com caspa na sobrancelha e, a sobra das folhas na
cabecinha trêmula, adormece. Gritos: Recolha a roupa. Maria, feche a janela. Prendeu
o Nero? Rebenta com fúria o temporal. Aos trancos João ergue o rosto, a chuva escorre
na boca torta. Revira em agonia o olho vermelho é uma coisa que a família esquece
na confusão de recolher a roupa e fechar as janelas?
Estamos diante de uma minificção que hibridiza as tipologias da vinheta (aqui
um legítimo sketch) e da percepção, esta última de caráter poético, podendo ser
averiguada nos diversos elementos textuais que aproximam o tom do texto da prosa
poética (as folhinhas do chorão faiscando verde, verde!). Examinemos os elementos
em separado e depois o efeito da combinação. Não é demais recuperar a idéia de Zavala
de que é próprio das minificções o alto poder de hibridização e também a instabilidade
de sua natureza protéica.
Tomando o texto dentro da primeira tipologia, logo se pode associá-lo a uma
série de retratos, recortes ou molduras (frames) bastante comuns dentro da prosa norte-
americana a que se costumou chamar de sketch. Sherwood Anderson é um expoente do
gênero, embora seja claro que o mesmo não é uma exclusividade dos estadunidenses.
Podemos encontrar textos de Tchekhov e Kafka neste estilo, para citar dois
exemplos. Às vezes também este tipo de recorte estático de uma história pode adquirir
um tom de crônica ou de relato memorialista. Observemos um trecho do primeiro autor
mencionado.
Era um homem já velho, de barba branca, nariz e mãos enormes. Muito antes da
época de que vamos tratar, ele exercia a medicina e ia de casa em casa, pelas ruas de
Winesburg, montado num esfalfado matungo branco. Mais tarde casou-se com uma
moça de recursos, que herdara do pai uma fazenda grande, de terra boa. Era moça
87
quieta, alta e morena. Muitos a achavam bela. O povo de Winesburg matutara muito
tempo sobre o casamento da moça com o doutor. Um ano depois de casada ela morreu.
Os nós dos dedos do médico eram extremamente grossos. Suas mãos, quando
fechadas, pareciam cachos de bolas de madeira, do tamanho de nozes, ligadas umas às
outras por hastes de aço. Fumava cachimbo, e depois da morte da esposa ficava o dia
inteiro no consultório vazio, perto de uma janela, em cujas vidraças fechadas havia teias
de aranha
70
.
O que se pode notar no sketch é o enfraquecimento da força narrativa em prol da
pintura de um personagem, da descrição de um cenário ou de ambos. É o que ocorre na
minificção 92. Um velho, vítima de um acidente vascular, é levado para o ar livre em
uma tarde de verão. Sentindo-se novamente um homem, revigorado pelo trino da
corruíra, ele adormece. Então é surpreendido por um temporal, sem que possa reagir e
escapar. Esquecido por quem ali o deixara, acaba encharcado pela chuva. Vozes são
ouvidas ao longe no rebuliço provocado pela tempestade, e a vinheta termina com uma
pergunta endereçada para fora do texto, inquirindo a razão para aquele abandono. Uma
pergunta que pode ser a voz do retratista ou o discurso indireto livre do retratado.
Sabemos muito pouco sobre esse personagem além de sua aparência suas ações são
mínimas —, mas temos nitidamente a imagem dessa tarde em que ele está. É importante
perceber agora como entra o recurso poético, comum também a alguns tipos de sketch:
o trino da corruíra, um cacho dourado de giesta e, ao arrepio da brisa, as folhinhas do
chorão faiscando verde, verde! Além disso, o retrato desse velho que também faz
parte do enquadramento do frame
71
: cabeça caída no peito, um fio de baba no queixo. E
então a chuva, verdadeiro agente de mudança dentro do quadro, que escorre pela boca
torta do velho e o faz revirar o olho vermelho.
Outro aspecto importante a ser percebido na vinheta, a respeito da imobilidade
do quadro é que os gritos registrados vêm de fora da moldura. É uma câmera
estacionária, ou a tela de um pintor. O velhinho recebe o temporal, transformado em
coisa, transformado em objeto.
Dentro da moldura tão fixa dessa vinheta, parece não haver espaço para a
abertura, muito menos para qualquer tipo de epifania. É então que isso é compensado
com a segunda natureza do relato, o toque poético de algumas escolhas, sempre
lembrando uma característica muito marcante na obra de Dalton Trevisan, que é
70
Anderson, Sherwood. Bolinhas de papel in Winesburg, Ohio. Porto Alegre. Ed. LP&M. 1987. p. 20
71
E essa é também uma característica comum ao sketch, essa idéia de que a natureza e as personagens
devem se acomodar ao enquadramento e não vice-versa, o que normalmente ocorre quando há um
narrador que conta o que vê e sente ao se movimentar.
88
espalhar apenas uma nota, uma metáfora de ordem lírica em meio a uma descrição de
todo realista e prosaica. E é interessante como em boa parte das vezes isso está ligado
ao uso das cores. Aqui é o verde das folhas do chorão, a agonia vermelha do olho
revirado (em outro lugar eram as lágrimas azuis). Ao trazer elementos poéticos para a
vinheta, o texto acaba adquirindo certa natureza híbrida, mas não acreditamos que tenha
força suficiente para se transformar em percepção. Trata-se de um recurso que também
utilizava Anderson em seus sketches, um recurso que talvez esteja mesmo ali para
compensar o texto de sua fraqueza narrativa.
4.2.4 — Ministória 103
A velha morre de medo de morrer. Cinqüenta quilos reduzidos a trinta e cinco,
quase cega. Pragueja o companheiro, ameaçando com a bengalinha trêmula. No último
dia, a cisma de que se espirrasse não morria. Espreme-se toda numa visagem:
— Pronto, espirrei. Hoje não...
Resfriada, espirra e espirra. João prepara o chá de sete folhas da janela atira
um beijo e dirige galanteio obsceno, quem pode ser? na cama, ao terceiro espirro, a
sua velha é finadinha.
Primeiros dias o pobre chora muito — as filhas até escondem o revólver.
Suspira, ai, sem sossego, ai. Ele, que nunca foi de igreja, três missas manda rezar.
Aflita, uma das filhas vai bem cedo visitá-lo. Não é que surpreendido, atrás da porta,
fazendo arte com a criadinha?
Formalmente temos um conto ultracurto de 124 palavras e poeticamente um
miniconto. O caráter narrativo é evidente, assim como o desenho dos personagens e
suas movimentações. Uma senhorinha doente e um marido idoso que mantém suas
safadezas. No entanto, há alguma coisa nesse conto que lhe retira o poder de se abrir ou
de possuir uma revelação, e se poderia até mesmo dizer que seu poder anedótico se
encontra diminuído se temos no horizonte o miniconto e toda a herança da contística,
pois aqui o final, pensado à moda clássica (opção que nos resta), também não se
sustenta.
Se formos ao detalhe, porém, perceberemos que este miniconto é quase uma
crônica de costumes. Os personagens se constituem em tipos, como muitas vezes ocorre
na obra de Dalton Trevisan, lembrando muitas vezes o mesmo recurso nas mãos de
Nelson Rodrigues. Importa o retrato do mundo popular, de um imaginário popular,
povoado de viúvas e viúvos alegres. Vejamos o trecho de um conto de A vida como ela
é, série de histórias muitas vezes extraídas de notícias ou crônicas policiais:
89
No fundo, achava que sentar, em pleno velório da esposa, seria uma
desconsideração à morta. Uma hora depois, no entanto, cansou. E esta contingência
física e prosaica fê-lo transigir. Ocupou uma cadeira entre dois amigos. Uma senhora
gorda, aliás vizinha, inclinou-se, suspirando:
— É por isso que eu não topo viajar de avião!
72
Salvas as diferenças de estilo, encontramos nos dois autores essa capacidade de
registrar com vivacidade as marcas de um Brasil suburbano, composto de malandros e
machões de arrabalde, senhoras gordas, damas suspeitas, adúlteras inveteradas, cortejos
fúnebres e velórios em casa, uma verdadeira fauna de tipos, que retratados em seu
habitat natural adquirem essa propriedade generalizante tão valorizada por Górki: a
habilidade de retratar em um tipo as características gerais de várias criaturas
semelhantes. Como o caso do viúvo tarado do miniconto em questão. Sua única função
na trama é agarrar a criadinha. A fúria da velhinha que morre, emaciada ao extremo,
supersticiosa, crente de que um espirro na hora certa poderia salvá-la (e aqui se vê o
humor de Dalton Trevisan conforme salientado no terceiro capítulo) se dirige a ele
apenas por ser a pessoa mais próxima. A fúria da velha é uma fúria, guardada as
proporções, semelhante à de Ivan Ilitch: vocês vão viver, sou eu quem morre. E também
para esta função não há qualquer mudança dentro do miniconto. Sabe-se de saída o que
vai acontecer. Não há surpresa nem reviravolta nenhuma, não há epifania, não há
abertura.
Não estaríamos, quem sabe, diante de um texto que se torna um brido com o
sketch? Uma crônica antes de um miniconto? Possivelmente sim. Vejamos por quê.
A utilização de tipos, o que resulta no que alguns estudiosos do gênero chamam
de conto de caráter, uma forma fronteiriça com a crônica. Além do mais, muitos contos
de caráter se realizam na transformação do personagem, passando a um conto que seria
mais psicológico ou intimista. Quando isso não ocorre, chegamos aos contos de humor
mais aberto, em um grau a mais, escrachado, em que esses tipos muitas vezes se
convertem em estereótipos ou caricaturas, tornam-se planos, usando a insuperável
distinção de E. M. Forster. Personagens planos rendem bons retratos, mas não bons
contos. Se analisarmos bem a ministória 103, perceberemos que não personagens
redondos na trama, nem se tentarmos recorrer a algum intertexto, como sucede em
outros casos dentro deste estudo. Tem-se a impressão, por fim, de que falta um poder
totalizador ao texto, também uma virtude dos minicontos com grande força narrativa.
72
Rodrigues, Nelson. Mausoléu in A vida como ela é. São Paulo. Companhia das letras. 1992. p. 7
90
Por tudo isso, pensamos que como sketch suas virtudes estariam realçadas,
virtudes que foram apontadas mais acima. Na hibridização inevitável das categorias,
muitas vezes é preciso selecionar entre as quatro possibilidades a que melhor pode tratar
do que o crítico tem em vista.
Neste caso, para libertar o tom jocoso do narrador, bastante comum em outros
momentos da obra do curitibano, para extrair todo o humor da ululante e desmedida
existência da baixa classe média, já quase desaparecida na sociedade dos serviços
terceirizados (o fim dos velórios na sala de estar), é preciso pensar na pequena anedota
de Dalton Trevisan como uma crônica de costumes. Porque, como bem dizia Nelson
Rodrigues em um de seus tautologismos, o bom cronista sabe que a vida é o que ela é.
4.2.5 — Ministória 121
A moça vaidosa apertou demais a cinta. Assim deste tamaninho nasceu a
criança. O que é pior, sem uma orelha.
Morreu de poucos meses, era um menino: lesão congênita. Os pais o
quiseram ver o pobre anjo.
A avó ficou embalando o corpinho, envolto no lindo cobertor rosa. Logo
improvisado o caixão no fundo do quintal.
Vai aninhá-lo no caixote forrado de papel crepom azul e branco. que o avô
protesta:
— Com esse, não.
Olha, surpresa.
— Ele é novo.
Obrigada a desmanchar o embrulho. E refazê-lo no velho cobertor cinza de
soldado.
Apesar das dimensões exíguas deste pequeno conto ultracurto, miniconto em sua
poética, Dalton Trevisan consegue cobrir, dentro dos limites do texto, ou seja, dentro da
moldura, uma enorme superfície da história de seus personagens. Na velha distinção
entre história e trama de E. M. Forster, que conta de que trama é o modo como a
história é armada dentro do texto, talvez estejamos diante de uma das maiores tramas de
Ah, é?, pois, à medida que o conto convencional passa a curto, depois muito curto, até
chegar no ultracurto, a tendência natural é que o foco vá se fechando em menos
cenários, menos personagens e menos acontecimentos. Na verdade, o que logo se
poderá perceber na presente ministória é que temos, não apenas um miniconto, mas dois
integrados, duas histórias aparentes, encadeadas por uma passagem temporal.
Como exercício, facilmente se pode destacar o primeiro parágrafo e, dentro da
linha da minicontística, encontrar ali um miniconto completo:
91
A moça vaidosa apertou demais a cinta. Assim deste tamaninho nasceu a
criança. O que é pior, sem uma orelha.
Não seria exagero pensar, inclusive, que a última frase é acessória. Teríamos
assim um miniconto sobre a vaidade extrema de uma moça, capaz de deformar a própria
criança para não ver alterada sua beleza. A frase final acrescenta um toque de humor
negro, um tanto escatológico, mas de certa maneira funcionando na graduação que
permitirá o resto do miniconto integral, que terá como dominante esse humor tétrico.
Há, então o segundo parágrafo, que exerce a função de modulador temporal.
Este, por si, não tem independência, está apenas convergindo a trama para a segunda
parte, dando conta de dois fatos, da morte do menino e da rejeição dos pais em vê-lo, o
que abre espaço para o funeral sui generis realizado pelos avós, sem que se possa
identificar de que personagem são os pais. De todo modo, seguindo no exercício
proposto, vejamos como a segunda parte pode se emancipar:
A avó ficou embalando o corpinho, envolto no lindo cobertor rosa. Logo
improvisado o caixão no fundo do quintal.
Vai aninhá-lo no caixote forrado de papel crepom azul e branco. que o avô
protesta:
— Com esse, não.
Olha, surpresa.
— Ele é novo.
Obrigada a desmanchar o embrulho. E refazê-lo no velho cobertor cinza de
soldado.
Que espécie de funeral é esse? Caixote forrado de papel crepom azul e branco?
E onde vão enterrar o corpo do anjo? E a brutalidade da sovinice do avô, que obriga a
desfazer o embrulho? E esta avó que parece ser a única fonte de afeto, não nesse
fragmento como no miniconto completo?
Aqui se percebe em certa medida a veia expressionista apontada por certo crítico
ao olhar a obra de Dalton Trevisan. Não que os traços estejam propriamente distorcidos.
Mas o grotesco dos personagens é tão grande, acentuado pelo uso das cores (que às
vezes contribuem para o lirismo, às vezes para o surrealismo), que se tem a impressão
de um realismo alterado, deformado, assustador. É o horror, que o curitibano tantas
vezes explorou em sua obra, o horror de dar a reconhecer uma humanidade de que todos
fazemos parte.
92
Recompondo o miniconto, tem-se assim as duas histórias encadeadas, cada qual
também com suas histórias secretas. O conjunto compõe uma galeria digna da Comédia
Humana. Está ali a mulher vaidosa e o marido omisso, que não mandou relaxar a cinta
nem assumiu o enterro do filho; a avó que tem humanidade suficiente para nos atrair
para dentro da trama a fim de que melhor possamos experimentar a máxima avareza e a
mesquinharia feroz do avô.
Como último detalhe a ser observado, salientamos a troca das cores do cobertor
que envolve o corpinho do anjo. De um lindo rosa para um cinza de soldado. Mais uma
vez se evidencia o gosto do autor por complementar seus cenários com essas transições
cromáticas. A simbologia, aqui, parece clara, do rosa para o cinza, do novo para o
velho, do que é amado para aquilo que pode ser jogado fora.
4.2.6 — Ministória 123
Solteirão hipocondríaco, trabalhando na farmácia, se injeta diariamente dose
generosa de vitamina C. Do excesso, brotam cem furúnculos no pescoço. Para se
desintoxicar, uma estação de águas.
conhece uma santa senhora, muito feia, com descamação na pele. Solitário e
aflito, se permite nos braços da vizinha uma noite de consolo. Meses depois, cada um na
sua casa, ela telefona: Estou grávida. Regra moral ou lei religiosa, ele casa, infeliz para
sempre. E, sendo pouco, resfriado um, gripada outra.
Primeiramente, estamos diante de um miniconto, pois há, de maneira tida, o
compromisso narrativo (há pelo menos quatro mínimas unidades narrantes), trama
desenvolvida (a história do casal está plenamente anunciada) e personagens, no caso
aqui dois, o protagonista e a antagonista. Trata-se ainda, algo raro no gênero, de um
miniconto de final fechado, ainda que paródico, “infeliz para sempre”, complementado
por um comentário circunstancial do momento presente da vida dos personagens: “E,
sendo pouco, resfriado um, gripada outra”.
Se há um elemento que merece destaque nesse miniconto é sua interessantíssima
construção temporal. Com 79 palavras, o que coloca o texto com folga na categoria de
ultracurto, tem-se um largo período de tempo para a ação desenvolvida. Mormente se
pensamos no mandamento proposto em Poe da unidade temporal. Aqui temos o
momento em que o solteirão se injeta ao longo dos dias a vitamina C, sua viagem em
busca de cura em uma estação de águas, o conhecimento então de uma senhora muito
feia, a relação entre os dois, a notícia posterior da gravidez, a obrigatoriedade (moral ou
93
religiosa) do casamento, a infelicidade eterna e ainda um plano que dá conta do presente
da história, esse comentário final que posiciona o plano temporal no instante mesmo da
própria narração.
Outro detalhe curioso pode ser percebido se pensarmos que o número de
palavras utilizadas no resumo acima (que se ateve, dentro de nossa capacidade, ao
essencial) é inferior em pouco mais que dez palavras a todo o miniconto. Tal
observação, em aparência supérflua, se converte em revelação ao relermos a obra de
Dalton e notarmos que, apesar disso, o texto está longe de ter um caráter de esboço ou
de semelhança com um storyline cinematográfico. sim o esforço minimalista e as
tradicionais construções elípticas, tão comuns a toda obra de Dalton Trevisan.
No que diz respeito à temática, o texto pode ser caracterizado como mais um dos
retratos que o autor faz do inferno conjugal, nem sempre dissolvido por um ato violento.
muitas vezes essa idéia de armistício que permite uma existência conformada, essa
corrupção paródica do “felizes para sempre” dos contos de fada. Neste caso a
infelicidade é anunciada, uma infelicidade sem fim, mas na verdade qualquer efeito
trágico que poderia surgir da proposição é anulado pela sentença seguinte. Ou de certa
maneira transformado em circunstância suportável. É esse caráter sem graça e
conformado da vida, anunciado ao longo de uns tantos contos de outros volumes do
vampiro de Curitiba.
Por fim, vale salientar a ironia instável presente no miniconto. Ainda que seja
uma ironia revelada possível identificar as frases que a estabelecem) não é fornecido
ao leitor o momento de parar, tornado a possibilidade irônica, seguindo os preceitos de
Booth, redutível ao infinito. Na prática, pode-se ver o efeito dessa ironia instável em
pelo menos duas possíveis leituras irônicas do final da minificção 143. Em primeiro
lugar, creio que consensualmente se pode tomar o “infelizes para sempre” como uma
proposição irônica, ou seja, somos convocados a rejeitar o sentido literal da expressão e
buscar na nossa experiência como leitores (em que ecoa o “felizes para sempre”) as
várias possibilidades de leitura. Em seguida, vamos testar nossas possibilidades de
acordo com o resto do texto e de acordo com as convicções que temos sobre a obra de
Dalton e sobre o que imaginamos ser a intenção do autor. E na seqüência do texto que
surge o problema, pois, uma vez iniciado o processo irônico, cabe ao autor (na ironia
estável) determinar o ponto de parada desse processo. Acontece que a frase final nos
fornece pelo menos duas possibilidades, a priori indeterminadas: seguir a redução
irônica ao infinito, ou tomar a proposição como um sinal de para, tomando-a como uma
94
mudança de tom, que lhe daria um sentido literal. Perceba-se, então, que teríamos,
baseados nessa graduação, dois encerramentos distintos. Na primeira possibilidade, sem
interromper o processo irônico, a última frase também seguiria o tom paródico e quase
farsesco da anterior, reduzindo a ironia a um processo infinito, dando assim um tom
satírico à existência do casal. Na segunda possibilidade haveria uma mudança de tom
estabelecida pela frase final, suspendendo o processo irônico e o tornando estável,
dando a última sentença o tom literal da proposição, o que levaria o miniconto a uma
resolução distinta, mais dramática, drama que se acentuará na repetição “para sempre”
da rotina medíocre de um casal mantido por circunstâncias religiosas ou morais.
Seguramente a leitura irônica, e não estamos nos referindo ao conteúdo
humorístico, poderia começar ainda antes, despertada pela hipérbole dos “cem
furúnculos”. Tal questão, porém, nos parece acessória, dado que o grande problema da
instabilidade da ironia do presente miniconto se faz crucial em sua resolução.
Impressionante, além disso, é pensar que esta é apenas uma das esferas a serem
exploradas nesta pequena obra.
4.2.7 — Ministória 131
O jantar para os dois casais de amigos. Na parede uma das mulheres nuas
de Mondigliani.
Tanta festa, muito riso: o lombinho uma delícia. Até que um dos
maridos:
— E essa moça do quadro. Ela sorri para você?
— É o meu consolo das horas mortas.
A dona acode, oferecida:
— Ela sou eu, não é, bem?
Um murro na mesa estremece prato e espalha talher:
— Ela é você? Quando você teve esse amor desesperado nos olhos? Esse
perdão infinito na boca?
Outro soco espirra vinho tinto na toalha:
— Não se conhece, sua bruxa?
Em um primeiro momento, descobre-se, principalmente na última linha de
diálogo, o caráter irônico deste miniconto. Porque também, ab ovo, pode-se perceber
uma estrutura que apresenta os elementos suficientes para a composição de um conto
completo. unidade espaço-temporal (o jantar dos dois casais), personagens
definidos, mínima unidade narrante (desenha-se a concepção do acontecimento, de uma
situação de repouso à explosão de violência do marido). Retomamos esses elementos
95
apenas com o intuito de eliminar eventuais possibilidades, ao menos neste caso, da
utilização da tipologia fragmento
73
.
Dentro das linhas evolutivas do conto, poderíamos considerar o texto 131 como
pertencente ao padrão tradicional, de final anedótico ou surpreendente. Da história
aparente, uma janta festiva entre amigos, emerge a história oculta, a violência
acumulada na existência convencional e burocratizada de um casamento infeliz, ao
menos para o marido, que, em um rompante de fúria, expõe o quão inadequadas se
mostram as pretensões da mulher. Se o efeito final do desvelamento da segunda história
é cômico, não deixa de guardar, ao mesmo tempo, esse aspecto de verdade libertadora
para o marido, impondo ao miniconto o recorte tão ao gosto de Hemingway, do conto
como a ponta de um iceberg que está submerso. Não se pode saber o que decorrerá da
explosão do marido, mas se pode perceber que isso é uma questão secundária para o
desenvolvimento da trama. Trata-se da libertação, como dito anteriormente, de uma
situação reprimida, além de não permitir — e esta parece ser o vetor principal do
miniconto — a redenção da esposa pela arte. A tela com o Mondigliani é o locus
amenus do protagonista. Ali está a mulher idealizada por ele, com “o amor desesperado
nos olhos”, o “perdão infinito na boca”. É preciso não apenas negar o espelhamento de
tais qualidades na sua companheira, é preciso afastá-la de uma vez por todas da
pretendida comparação que ela deseja: “— Não se conhece, sua bruxa?
Diante do gestual violento, do apelo poético que ecoa nas palavras do marido, de
certo modo artificiais para a verossimilhança do miniconto, e do impropério feroz que o
protagonista dirige à sua esposa, poderia passar despercebido, ao menos nas primeiras
leituras, um detalhe sutil, contido na pergunta do segundo marido e na resposta que leva
a trama ao seu ponto de mudança. Pois até então tudo era “tanta festa, muito riso: o
lombinho uma delícia”. É quando se introduz a pergunta do visitante, mormente a
segunda parte da pergunta, quando se opera a hábil transição de registro efetuada por
Dalton Trevisan: “ — E essa moça do quadro. Ela sorri para você?”
Não se pode deixar de marcar esta abertura executada de modo preciso, como
uma clássica abertura de xadrez. no “Ela sorri para você?” um tom ingênuo, curioso
e ao mesmo tempo metafísico, como se a tela pudesse sorrir para os eleitos, para os
73
Seguramente um ou mais gaiatos poderiam objetar que todo o recorte pode ser tomado como
fragmento. Bem, é claro que sim. Nesse sentido todo e qualquer conto seria fragmentário, posto que trata
de um ou mais recortes da vida de um personagem ou personagens. Vale sempre lembrar que aqui
fragmento é tomado como recorte que não possibilita o estabelecimento de uma unidade mínima narrante
ou, por expor um recorte muito fechado de determinada história, impossibilita uma interpretação
razoavelmente sólida da história visível ou da história latente.
96
que fossem capazes de atender ao convite velado. Importante é ressaltar que entre as
possíveis leituras que poderia fazer o marido à pergunta do outro, ele escolhe a resposta
menos evidente, mas a mais necessária naquele momento: “— É o meu consolo das
horas mortas.” Então as ambigüidades possíveis se desfazem. Havia a celebração do
encontro dos casais, agora desfeita. A escolha da expressão “horas mortas” para
designar os fins de noite e madrugadas contamina o texto com a carga tétrica do termo
mortas, sem falar que de certa maneira a expressão também evoca, por seu
anacronismo, tantos textos góticos do século XIX. se esfumaça assim a aura do lauto
jantar. Em breve não restará nada mais do que a sombra das convenções domésticas até
então representadas. Logo virá o momento de confronto, o clímax, incautamente
provocado pela mulher que não pôde perceber a mudança de tom, tanto do marido
quanto da própria atmosfera em que ela, como personagem, estava inserida. Assim, sua
pergunta será também sua condenação: “— Ela sou eu, não é, bem?
Mais uma vez a modulação explorada por Dalton Trevisan, baseada somente nas
vozes de seus personagens, no caso aqui no breve solilóquio do marido, permite que a
trama caminhe para seu desfecho. Sobrevém a explosão e a resolução entre cômica e
cruel.
Esta mistura de humor e crueldade, fruto da violência privada, revelada ao final
do miniconto, insere-se dentro de uma das linhas temáticas preferidas do autor
curitibano em suas obras de maior extensão. Tal aproveitamento pode ser demonstrado
no conto Batalha de bilhetes, em Guerra conjugal, ainda que aqui o ódio entre marido e
mulher se de modo muito mais duradouro e recíproco. O trecho a seguir se inicia
com o bilhete deixado pela mulher ao marido:
Sua filha deixou lembrança.
Nenhum bilhete mais cruel em tão pouca palavra. Afastada com
intrigas, a menina que amou até o delírio, rejeitara-o sem perdão, a ele que
tantos outros desdenhara. O diálogo revelador, quando lhe anunciou ser
abominado pela filha, bem feito para ele, que não soubera amar a ninguém:
— Sua filha o odeia.
— Ensinada por quem?
— Foi só você que lhe arruinou as ilusões.
— E você que respondeu?
— Triste de mim. Não fosse verdade, por que falaria assim?
Pela boca da filha clamava o ressentimento da mãe, vingada de todas as
derrotas.
74
74
A guerra conjugal. São Paulo. Ed Record. 11ª ed. p. 168
97
O conto em questão ocupa cinco ginas, e estaria também dentro do universo
do conto curto. A minificção 131, aqui caracterizada como miniconto, tem o tamanho
do trecho acima destacado. O que nos parece razoável é que através da minificção
Dalton Trevisan alcance um grau de realização artística igualmente poderoso e efetivo
ao de sua produção tradicional. Novamente se faz evidente a falácia da argumentação
que na migração do autor curitibano para o miniconto como uma jornada em direção
ao silêncio, ou, o que é ainda pior, um esgotamento de sua temática e mesmo de sua
obra. Se, como apresentado por nós, as possibilidades artísticas (do conto e miniconto)
se concretizam, se não de modo igual, ao menos de modo equivalente, não espaço
para a precária argumentação anterior. Parece-nos, portanto, mais do que necessária
alguma metodologia de análise, ainda que experimental, para este novo tipo de
produção em prosa que sim, é breve, concisa, elíptica e, em certo sentido, restritiva, mas
que em nenhum momento pode ser tomada como caminho ao silêncio, uma solução
simples para textos que não podem ou não merecem ser desenvolvidos, ou ainda forma
pouco elaborada de prosa. Na riqueza de interpretações possíveis de um miniconto
como o 131, percebe-se a necessidade de mais e reveladores estudos sobre o gênero.
4.2.8 — Ministória 160
Ai de Sansão, fosse bom amante, não o trocaria Dalila por um filisteu qualquer.
A melhor chave de leitura para a minificção 160 é classificá-la como
minimetaficção. Tal afirmativa se sustenta no fato de que somente conhecendo o
substrato cultural judaico-cristão, incluindo a legenda de Sansão, que tem seus
cabelos cortados por Dalila, que lhe toma a força, condenando-o a uma existência
miserável enquanto desposa outro é que pode dar significado a sentença única da
brevíssima obra de Dalton Trevisan. Como característico das minimetaficções, é a
intertextualidade que completa a escassez de recursos. Estamos aqui diante de uma
relação paródica, extremada em ironia, mas uma forma paródica que se utiliza de uma
subversão apenas de conteúdo, não entrando em uma assimilação com fins de distorção
também da forma. Para que esta paródia fosse feita nos dois níveis, seria preciso
também parodiar o modo bíblico de escritura. O que, claramente, o ocorre. A
minificção 160 está mais filiada ao gênero de falsificações que teve no argentino Marco
98
Denevi um momento alto na prosa brevíssima. Vejamos o seguinte exemplo, uma
evidente paródia em relação ao tema da traição na noite da última e sagrada ceia.
O mestre traído
Celebrava-se a última ceia.
— Todos te amam, oh, mestre! — disse um dos discípulos.
Todos não respondeu gravemente o mestre. Conheço alguém que tem
inveja de mim, e que na primeira oportunidade que se apresentar me venderá por trinta
dinheiros.
sei a quem te referes exclamou o discípulo. Também falou mal de ti
para mim.
— E para mim — acrescentou outro discípulo.
E para mim, e para mim disseram todos os demais (todos menos um, que
permanecia calado).
— Mas é o único — prosseguiu o que havia falado primeiro. — E para te provar,
diremos em coro o seu nome.
Os discípulos (todos, menos aquele que se mantinha mudo) se entreolharam,
contaram até três e gritaram o nome do traidor.
As muralhas da cidade oscilaram com o estrépito, pois os discípulos eram muitos
e cada um havia gritado um nome distinto.
Então aquele que não havia falado saiu à rua e, sem remorso, consumou sua
traição.
Não satisfeito com a paródia do tema da traição de Cristo, Denevi, em
Falsificaciones, ainda atribui o texto acima a um tal Jordi Liost, autor d’O Evangelho
herético, criando uma segunda camada de ruído. É preciso apenas fazer a ressalva de
que aqui a minimetaficção tem uma maior independência que a de Dalton, pois, por se
desenvolver mais em direção à parábola, poderia manter sua independência temática
ainda que empobrecida — sem a referência cristã. Para ilustrar a exploração paródica da
tradição bíblica na forma brevíssima, como na 160, tomamos outro exemplo de Dalton
Trevisan, de Ah, é?, a minificção 126:
Se Pedro, que era Pedro, negou três vezes a Jesus, e mais era Jesus, por
que não podia ele renegar o pobre pai?
Os mecanismos que se operam nesta categoria são os mais exigentes no que
dizem respeito à interpretação do leitor, uma vez que sem os referenciais adequados a
compreensão pode sair bastante prejudicada, impedindo mesmo a leitura irônica que a
intertextualidade sempre encaminha. Quando as referências são as figuras emblemáticas
da tradição judaico-cristã os problemas são relativamente poucos. Em um país cristão
99
(já não cabe o católico) seria preciso procurar com muito afinco por leitores que
desconhecessem a passagem dos evangelhos em que Pedro nega três vezes o
conhecimento de Jesus. Mais próxima ainda da falsificação de Denevi, e este poderia
ser um gênero literário depois de Borges, temos a minificção 56, paródia da tentativa de
apedrejamento da mais famosa das hetairas. O tom farsesco é inconteste.
Depois de escrever com o dedo na terra, Jesus fala aos acusadores da
mulher adúltera. Ali no meio do povinho, Ester, Safira e Jezebel, famosas
puritanas, cada uma com dois seixos na mão.
Mal Jesus remata com quem for sem pecado atire a primeira pedra, João
acode:
— Falou e disse, ai Jesus.
E a puxá-lo firme pela manga:
— Se abaixe, Mestre, lá vem pedra.
Para as falsificações a referência do texto que é parodiado é fundamental. O
conhecimento mínimo das obras de Homero é fundamental para entender a proposta de
Denevi no exemplo abaixo:
Silêncio das sereias
Quando as sereis viram passar o barco de Ulisses e se deram conta de que
aqueles homens haviam tapado os ouvidos para não ouvi-las cantar (a elas, as mulheres
mais bonitas e sedutoras!) sorriram com desdém e disseram para si mesmas: Que tipo de
homens são esses que resistem voluntariamente às sereias? Permaneceram, então,
caladas, e os deixaram seguir em meio ao silêncio que era o pior dos insultos.
75
Retornando à minificção a ser aqui analisada, temos, de uma vista-de-olhos, a
escarninha difamação do cabeludo herói israelita. É interessante notar que Dalton
Trevisan elimina por completo de sua paródia qualquer referência aos cabelos, que,
habitualmente, é a imagem que remete a Sansão. Liberto deste elemento mais óbvio e
um tanto desgastado, é relevante notar como a temática do autor curitibano se impõe. A
queda de Sansão, sina daltoniana, tinha que passar por ser mal amante, corno, ou uma
das tantas outras condenações destinadas aos homens mansos com suas mulheres nas
infindáveis ilíadas suburbanas.
75
Denevi, Marco. Falsificaciones. Calatayud. Buenos Aires, 1969. p. 51
100
4.2.9 — Ministória 161
Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um
consegue espiar lá fora.
Junto à porta, no fundo da cama, para o outro é a parede úmida, o crucifixo
negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, pergunta o que acontece.
Deslumbrado, anuncia o primeiro:
— Um cachorro ergue a perninha no poste.
Mais tarde:
— Uma menina de vestido branco pulando corda.
Ou ainda:
— Agora é um enterro de luxo.
Sem nada ver, o amigo remorde-se no seu canto. O mais velho acaba morrendo,
para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.
Não dorme, antegozando a manhã. O outro, maldito, lhe roubara todo esse
tempo o circo mágico do cachorro, da menina, do enterro de rico.
Cochila um instante é dia. Senta-se na cama, com dores espicha o pescoço:
no beco, muros em ruína, um monte de lixo.
Uma das maiores minificções de Ah é? (152 palavras), a ministória 161 se
realiza como um miniconto (há força narrativa, trama, personagens e cenário bem
desenhado), dentro dos moldes clássicos no que diz respeito à relação entre a história
aparente e aquela que está cifrada. O segredo emerge no final: a vista tão invejada pelo
outro não era mais que um monturo, uma estéril paisagem urbana.
Narrar um conto tradicional dentro da forma do miniconto é sempre desafiador,
pois o limite espacial se torna ainda mais restritivo, e o tipo de relação com outros
textos (que freqüentemente sustenta os microcontos) se enfraquece, já que o segredo, ou
o que dará significação para a leitura deve estar criptografado dentro do próprio texto.
Para conseguir manter a concisão do texto e mesmo assim jogar limpo com o leitor (as
pistas para o que estava cifrado têm que aparecer na segunda leitura), é preciso enxugar
a expressão do texto ao extremo. Além das elipses (diversas vezes destacada, aqui e
pelos demais críticos de sua obra) um desses recursos não tão visíveis, comum a muitos
contos de Dalton Trevisan inclusive aos de extensão convencional —, é o uso de
orações reduzidas de particípio, estratégia que aparece em abundância nos clássicos
greco-romanos, como bem se pode ver em uma das soluções de Fedro, extraída da
fábula O velho leão, o javali, o touro e o burro. Recuperando o enredo, o leão, incapaz
de reagir porque está velho e já não possui mais as forças que mantinham sua primazia
sobre os demais animais, é pisoteado pelos outros. Logo no início da fábula, para dar
conta do estado do leão, dispensando (por economia) proposições secundárias visto que
importava para a história que o leão estivesse velho e incapacitado, Fedro se vale do
101
elegante recurso das participiais: defectus annis et desertus viribus (o leão), derrotado
pelos anos e abandonado pelas forças. Resolve-se, assim, todo um conjunto
desnecessário de explicações, tanto narrativas quanto descritivas, que teriam como
resultado apenas um aumento textual.
Na ministória acima, conseguimos ver claramente esse funcionamento em ao
menos três circunstâncias. São elas: “Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa
cela de asilo”.Uma economia evidente. Depois: Deslumbrado, anuncia o primeiro”.
Aqui o particípio recupera o ar de ablativo latino, o modo como algo é feito (em estado
de deslumbre). Por fim, “O mais velho acaba morrendo, para alegria do segundo,
instalado afinal debaixo da janela”. Aqui o particípio adquire aspecto passivo,
novamente com grande economia para a narração (percebe-se a supressão de um “que
é” antes do “instalado”).
Tratando do conteúdo, estamos frente a um enredo em que o combate entre o
entre o escapismo da fantasia e a realidade se faz evidente. Dois idosos, defecti annis et
deserti viribius, estão em um asilo. Da janela, um deles conta ao outro o que passar
fora, onde ainda há vida e não a resignada espera pela morte. O que esmais longe
da janela, cuja visão é só uma parede úmida e um crucifixo negro, espera apenas pela
chance de que o amigo morra e que ele possa ocupar o lugar privilegiado para assistir
aos espetáculos que o outro narra. Aqui temos a história aparente. Então o da janela
morre, e à noite, enquanto não se pode ver nada lá fora, o outro, o sobrevivente, acalenta
as maravilhas do espetáculo do dia seguinte. Trata-se ainda da história aparente. Ao
raiar o dia, porém, a imagem exterior se revela, nada mais do que um beco desolador.
Eis onde emerge a segunda história. O que o primeiro velho não via, acabava por se
transformar em atrações de seu “circo mágico” (a pista deixada para a segunda leitura),
necessidade primeira de fantasia que precisa ser saciada, mesmo na mais escura das
celas. É a mentira que se faz verdade, o prazer que o ficcionista tem em narrar para
outrem aquilo que nem mesmo ele vê. Interessante registrar também a natureza das
atrações desse circo mágico, que nos remetem para aquela evocação das delícias da vida
realizada na ministória 54, delícias de um prosaísmo comovente, aqui “uma menina de
vestido branco pulando corda”, um cachorro qualquer a mijar, o enterro de luxo que
nenhum dos pobres velho jamais terá.
102
4.2.10 — Ministórias 182-183
182
Anos depois o túmulo da Rosinha foi aberto, o viúvo assistiu à exumação. O
mesmo tipo frio e durão. Quem me contou foi o seu Julinho. O coveiro abriu o caixão
ali dentro, esburacada, via-se a mortalha.
— Como é que o Pestana reagiu?
Fumando, respirando fundo, olhando para o chão. O coveiro pegou na
mortalha, se derreteu entre os dedos. E surgiu uma caveira perfeita. Os cabelos loiros
bem conservados. A aliança também. A longa meia de seda, inteirinha.
— Puxa, não me diga.
— O coveiro olhou para seu Julinho, que fez sinal de cabeça.
— ...
Com os polegares de unha roxa, o bruto partiu o queixo da Rosinha. Nessa
hora o Pestana perdeu a coragem.
183
— Nessa hora o Pestana perdeu a coragem.
— O que ele disse?
Não estou bem. Agora ficando tonto. E se apoiou no ombro do Julinho. A
cena foi rápida. Acho que fazem isso todo dia. Em pouco dobrado o esqueleto ali no
saco.
— Tinha dente de ouro?
— Os parentes vão por isso. Senão eles profanam.
— E os cabelos ainda...
Loiros e bem penteados. Ela morreu no fino da beleza. A única de quem o
Pestana gostou.
— Por que primeiro o maxilar?
— Não me pergunte. Sei que estalou feio. O resto foi fácil.
Este é o único caso dentro de Ah, é? de histórias diretamente interligadas, cujos
personagens nitidamente seguem o que faziam na primeira parte. Ao longo do livro
outras ministórias, a 140 e a 142, que podem ser tomadas como parte de uma série, pois
estão unidas pela mesma frase (no final a 140 termina com “Ao tirar a calcinha, ele
rasga”, mesma frase que servirá de abertura para a 142). Contudo, neste caso, uma
certa independência entre as duas ministórias, que se unem para se complementar, mas
que existem com autonomia. No caso das 182-183, ainda que o recurso da utilização de
uma frase como elo de ligação seja bastante parecido (a última frase da fala na 182 é
repetida no início da primeira fala na 183, “Nessa hora o Pestana perdeu a coragem”)
estamos diante de uma mera continuação, inclusive física (uma vem depois da outra),
recurso até então inédito dentro do livro e que cria uma relação de dependência entre as
duas. Por isso, agrupamo-las aqui.
103
Como poderíamos classificar esta minificção? Parece-nos que o mais adequado
seria classificá-la como vinheta, pois é como um recorte de um diálogo. Sabemos
apenas que os interlocutores conhecem as pessoas que participaram da exumação.
uma narrativa, evidentemente, mas ela é indireta, ou seja, a história se encerra sem que
toque os personagens que deveriam estar em ação.
Tão velho quanto o próprio conto, este recurso dos personagens que contam
histórias dentro da própria moldura do conto (Decamerão, Noite na taverna, etc.), a
diferença aqui é que esses interlocutores não aparecem, não encadeiam uma história na
outra, estão em cena apenas para dar conta do “causo” do Pestana. Sem abertura,
epifania ou história oculta, ao menos em nossa leitura, classificá-las como vinhetas faz
dessas duas ministórias interligadas um ótimo exemplo tipológico, fazendo com que se
enxerguem suas qualidades e que possam assim encontrar seus pares adequados, esforço
que não empreenderemos aqui.
Antes de concluir, resta-nos um questionamento técnico sobre o encadeamento
dessas ministórias, problema que não ocorre nas 140 e 142 (por ser um aproveitamento
diferente). Se os dois personagens vêm em um diálogo sobre a exumação da mulher do
Pestana, por quê, no início da 183, aquele que estava com a palavra, tendo já dito ao
final da 182 “Nessa hora o Pestana perdeu a coragem” repetiria a mesma fala? Em uma
conversação isso não seria natural. Se o diálogo é entre os dois personagens, para quem
eles fariam essa repetição oportunista?
Como último detalhe é interessante prestar atenção à articulação dos diálogos,
que segue o modo elíptico do estilo desenvolvido por Dalton Trevisan ao longo de sua
contística. O corte de partículas acessórias é tão radical que contamina tudo, atentando
mesmo contra a própria fluência da fala. Como dissemos anteriormente, é como se
nesse universo a parte criado pelo autor, até mesmo suas criaturas tivessem a impressão
de estar dizendo sempre demais.
104
CONCLUSÃO
O estudo de matéria recente, seja em qual for a área de conhecimento, oferece ao
pesquisador pelo menos dois desafios espinhosos:
a) as idéias expressas sobre a matéria em questão são inadequadas ou
equivocadas.
b) as idéias expressas sobre a matéria em questão parecem adequadas, mas logo,
sob o olhar de um observador mais arguto, revelam suas falhas, conceituais ou de
expressão.
Estamos cientes de enfrentarmos esses dois desafios, e talvez tenhamos de nos
resignar a tombar em uma dessas frentes. Por outro lado, é preciso pensar que tais
quedas são naturais diante dos esforços científicos. Mesmo quando a ciência depende de
mão brutas para se fazer. Muitas vezes uma série de fracassos, seguidos de novas
tentativas, é o que permite, em um esforço individual e coletivo, que um novo
conhecimento venha a se consolidar.
Procuramos ao longo deste estudo estabelecer uma mínima solidez para a análise
das formas curtas e ultracurtas de ficção, apoiando-nos, por falta de uma fortuna crítica
brasileira, nos excelentes trabalhos de pesquisadores latino-americanos, como o
professor Lauro Zavala, da Universidade Autônoma do México.
Tentamos aqui um trabalho interpretativo e de construção metodológica e
estamos cientes de que algumas imprecisões são inevitáveis ao longo do percurso. De
todo modo, o crescimento do número de obras literárias exclusivamente compostas de
minificção, antologias variadas e o vertiginoso incremento de praticantes de formas
curtas exige, cada vez mais, que os aparatos críticos também se fortifiquem e evoluam,
permitido que a avaliação das realizações artísticas se aprimore. É dentro deste espírito
que as conclusões deste trabalho pretendem se mostrar úteis.
Construiremos esta parte final de nossa pesquisa que retomará os aspectos
apresentados nos capítulos anteriores respondendo, primeiramente, a algumas
perguntas que o próprio Zavala considera cruciais para o entendimento das minificções,
e esperamos que as respostas oriundas desses questionamentos não sejam apenas um
recurso retórico a favor de nossas conclusões, mas que tais respostas possam realmente
ser apreendidas da leitura desta dissertação como um todo.
105
A primeira pergunta a ser respondida é de ordem genérica: as minificções são
contos? Como foi demonstrado nos capítulos 1 e 2, o miniconto (forma narrativa de
minificção) se origina diretamente do conto, fruto de um caminho em direção à
brevidade extrema e a vocação de seguir narrando uma história. As outras minificções
(não necessariamente narrativas) são formas híbridas e protéicas, divididas em vinheta
(quando recortes), percepção (quando poesia) e minimetaficção (quando paródia). A
segunda pergunta é de ordem estética: São as minificções literatura? Para responder a
esta indagação, buscamos apresentar um grande número de exemplos, tentando
demonstrar ao máximo as possibilidades artísticas do gênero e a riqueza de análise a que
se prestam contos como os de Monterroso e Denevi. Nossa resposta, assim como a de
muitos críticos é afirmativa. A terceira pergunta diz respeito à extensão da forma: Quão
breves podem ser as minificções? Para isso tomamos a tipologia formal de Zavala,
mostrando as variadas possibilidades incluídas apenas nesse aspecto, revelando como
por meio de poucas palavras se pode criar um conto ultracurto que tenha totalidade. A
última pergunta diz respeito à possibilidade de uma tipologia mais precisa: Quantos
tipos de minificção existem? Para responder a essa pergunta, de natureza mais poética,
foi que estabelecemos a divisão que leva em conta o caráter narrativo ou não-narrativo
das produções, permitindo uma tipologia mais acurada, que pode se hibridizar caso seja
necessário para atender a certas nuances.
Procederemos agora a uma retomada do que foi expresso ao longo desta
dissertação, revendo os principais itens dos capítulos e a maneiro como os assuntos
previstos foram tratados.
No primeiro capítulo se fez um breve histórico do conto, desde que Poe o definiu
nas primeiras décadas do século XIX até as revoluções borgeanas, sem deixar de
acompanhar o processo de evolução das características do gênero, de como de um
diferencial que poderia ser definido como basicamente de extensão em relação ao
romance, o conto clássico (e depois o moderno e o pós-moderno) foi gestando o espaço
para o surgimento da minificção. No primeiro capítulo foram analisados certos
elementos da contística que, salvo alterações provocadas pela concisão extrema da
forma (principal mutação das minificções), também se mostraram no miniconto (forma
narrativa das produções ultracurtas. Como estratégias para demonstrar todos esses
elementos, utilizamos o suporte bibliográfico de uma série de importantes teóricos do
conto (Imbert, Hills, Piglia) e testamos muitas das idéias em textos literários, a fim de
106
demonstrar, o que esperamos ter conseguido, a validade de se pensar nas minificções,
em especial no miniconto, como ponta de um processo evolutivo que vem desde o conto
clássico. Ponto-chave da questão nos parece a utilização do paradigma Borges-Piglia,
em que um conto sempre narra duas histórias, uma aparente e outra oculta e a
contribuição de Cortázar com sua idéia de abertura. A partir desses pólos, criamos três
relações binomiais que tinham como objetivo clarificar o processo de composição do
conto e, posteriormente, dos minicontos.
Ainda no primeiro capítulo, realizamos um histórico da produção minificcional.
Recuperando certas informações, pode-se dizer que ela é fruto da aceleração dos tempos
modernos, de um novo contexto de leitura fundado pela fragmentação do próprio tempo
dedicado à palavra impressa com a explosão dos multimeios, da impossibilidade de
totalização ficcional da vida, do rescaldo das vanguardas modernistas, da pressa e da
escassez dos tempos dedicados à leitura, do esgotamento das formas tradicionais,
especialmente do romance, ou ainda fruto das possibilidades inéditas que os escritores
vêm descobrindo quando postos frente à concisão extrema da forma (muitas antologias
são programadas com limites de palavras). O fato é que a minificção demarcou seu
espaço, conquistando aos poucos o espaço em edições em papel, dando suporte a um
fenômeno que se desenvolveu, em boa parte das vezes, longe dos interesses das casas
editoriais, principalmente em concursos, antologias impressas e digitais e também em
variados sítios da Internet. Nesse conciso histórico do gênero, tratamos do boom
mexicano e do desenvolvimento posterior da forma em boa parte dos países de fala
hispânica das Américas. Ainda que perifericamente, apresentamos alguns elementos,
quase a título de curiosidade da sudden fiction produzida nos Estados. Concluímos com
um rápido apanhado da repercussão da chegada do gênero ao Brasil, com o lançamento
da obra Ah, é? de Dalton Trevisan, em 1994, considerada pela grande maioria dos
estudiosos, o marco zero do gênero no Brasil.
No segundo capítulo, estabelecemos detalhadamente as bases metodológicas
deste trabalho. Tratamos das três características básicas das minificções e
desenvolvemos as duas tipologias da minificção, que permitiram um estudo mais
elaborado das produções breves. Além disso, cuidamos de apresentar o instrumental que
foi utilizado na parte analítica do trabalho, a dissecação das minificções de Dalton
Trevisan que era nosso objetivo final. Quanto à tipologia proposta, foram
apresentadas duas divisões, sendo a primeira de natureza formal, subdivida em três
107
partes (conto curto, muito curto e ultracurto) e a segunda de natureza poética, com
quatro subdivisões internas, buscando cobrir as possibilidades poéticas do gênero
(miniconto, vinheta, percepção e minimetaficção). Neste capítulo foram expressas
distinções fundamentais a nosso ver para uma tipologia sólida. No que diz respeito às
possibilidades poéticas, ficou assentado que miniconto é toda minificção que mantiver
os principais elementos da forma do conto, a começar pela mínima unidade narrante, e
depois por características circunstanciais como narrador, unidade espaço-temporal,
personagens, trama, etc. Percepção englobou os textos comumente chamados de poesia
em prosa ou prosa poética, e também textos mais confessionais ou que expressam uma
visão de mundo, textos que por seu grau de elipse e lirismo habitam essa tênue fronteira
entra a prosa e a poesia, entre o pensamento e o insight. Vinheta foi utilizado para todas
as minificções que não apresentam um aspecto totalizante: fragmentos, trechos de
diálogos, sketches, esboços de personagens ou cenários, recortes de um todo que não
pode ser apreendido ou recomposto. Minimetaficção comportou as minificções em que
a intertextualidade é a base para a compreensão do texto. Nesta tipologia entraram as
paródias de fábulas e bestiários, como as de Monterroso e Arreola, respectivamente, as
falsificações de textos canônicos, como as de Denevi, além de outras duplicações,
ironias, autoparódias, paráfrases e sátiras.
Ao fim deste capítulo foi incluído um segmento especial sobre um fenômeno
bastante evidente dentro da minificção que é o aspecto protéico e de hibridização dessas
formas. Além da limitada amplitude de nossas divisões, incapazes de abarcar cada
variante de minificção (objetivo irrealizável, não só para esta tipologia como para
qualquer uma), é da própria natureza das minificções (Zavala) serem híbridas.
No terceiro capítulo, fez-se um histórico crítico da obra convencional de Dalton
Trevisan, buscando características gerais de sua composição e de seu universo temático:
como se estabeleceu o seu locus litterarius (Curitiba) e como esse cenário está
registrado em seus contos (os arrabaldes e a cidade provinciana que se faz metrópole)
Além disso, detalhamos diversos dos seus recursos estilísticos e, em certa medida, as
recorrências em sua obra a fim de mostrar que elas estarão presentes (ainda que
transmutadas) também nas ministórias de Ah, é? Assim, deu-se especial atenção ao uso
que o autor faz das violências domésticas de todas as bandeiras, os infernos conjugais
entre quatro paredes, a morbidez sempre constante e os desvios sexuais. Em um
segundo momento deste capítulo, observamos de maneira breve como se deu a trajetória
108
do escritor em direção às suas obras de minificção, principalmente com o lançamento de
Ah, é?, em 1994. Em um terceiro momento se estudou esta repercussão por meio das
críticas publicadas no calor da hora e como o desconhecimento do que se produzia na
América latina e nos EUA naquele momento levou boa parte desta mesma crítica a
conclusões apressadas e, como demonstramos no local apropriado, errôneas.
No quarto e último capítulo da dissertação nos dedicamos a uma análise
detalhada das minificções de Ah, é? Para isso selecionamos dez textos (escolhidos por
sua exemplaridade) entre os que mais evidenciavam a nosso ver as
potencialidades do gênero, no geral, e em relação à obra de Dalton Trevisan, em
particular. Tais análises, além de serem o objetivo final do presente estudo, tinham em
vista fornecer um caráter modelar às críticas de minificção, ambição um pouco
desmedida, sabemos, nitidamente sujeita aos desafios espinhosos expressos no
primeiro parágrafo, mas que precisavam ser feitas para comprovar a aplicação da
metodologia desenvolvida no capítulo três. Ainda que não haja ineditismo neste tipo de
análise (os estudiosos de minificção as fazem décadas), trata-se de solo que segue
movediço. Tais percalços, porém, não impediram que certas asserções fossem feitas e
certos riscos tomados.
Esperamos que nas análises mais acertadas possam ser evidenciadas as
qualidades das pequenas criaturas engendradas por Dalton Trevisan.
Neste momento final, resta-nos, pois, expor, de modo mais evidente, as
hipóteses desta dissertação, que podem ainda não ter sido expressas com a concisão que
agora será tentada. Basicamente, trabalhamos com a idéia de que são três as hipóteses a
serem testadas, sendo que a última, em função do caráter amplamente demonstrativo do
quarto capítulo, talvez não tenha sido ainda expressa com correção, uma vez que estava
vinculada, em nosso plano, à necessidade de fazer o leitor participar da riqueza
interpretativa que se pode obter diante de uma observação mais detalhada das
ministórias escolhidas.
A primeira hipótese diz respeito à filiação da minificção, em especial o
miniconto, à linha maior da contística, da vertente clássica à pós-moderna. Por meio da
pesquisa bibliográfica, associada a outras demonstrações baseadas em exemplos
consolidados pela tradição literária, esperamos que esteja claro ao leitor, a essa altura,
que o miniconto deriva, sim, do conto, como parte das minificções, embora estas
estejam com freqüência combinadas a outros materiais literários e extraliterários, dando
109
origem a formas híbridas, progressivamente dependentes da intertextualidade e
tendentes à brevidade extrema.
A primeira hipótese prevê esta filiação.
A segunda hipótese está baseada na crença de que as minificções possam atingir
altos graus de realização artística, assim como as outras formas de prosa o fizeram, e
ainda que, assim como nas poéticas dos gêneros clássicos, é possível, a partir de certos
instrumentos de aferição e intenções (expressas nas presentes tipologias), determinar o
sucesso, ao menos dentro desse foco analítico, de algumas dessas criações brevíssimas.
Para isso, além de estabelecer solidamente as bases para as análises, elencamos o que a
crítica internacional considera os cânones do conto ultracurto, buscando, sempre que
possível, apresentar os exemplos literariamente mais ricos, que possibilitassem ao leitor
uma visão mais ampla do fenômeno aqui abordado como também lhe dessem a noção
de utilidade das ferramentas aqui propostas.
A segunda hipótese prevê esta potência de realização artística.
A terceira hipótese, e para isso foi necessário um capítulo de recuperação da
contística convencional de Dalton Trevisan, leva em consideração o resultado da
incursão do autor curitibano nas minificções, em especial na obra de 1994, Ah, é? A
terceira hipótese postula a seguinte idéia: independente dos caminhos que levaram
Dalton Trevisan a enveredar para as ministórias, esta foi uma escolha que não só
manteve os elementos característicos de sua obra como também os diversificou, ou seja,
em nenhum momento se trata de redução ou decadência de suas capacidades artísticas,
oportunismo mercadológico ou reaproveitamento vicário de velhos temas, mas sim de
uma nova forma de expressar sua visão artística, como um poeta acostumado a sonetos
que descobrisse as virtudes do haicai.
A terceira hipótese prevê um artista e um novo conteúdo artístico para uma
forma nova.
Reunidas as três hipóteses (complementares), chegamos ao objetivo final desta
dissertação, qual seja, mostrar que a minificção é um gênero de prosa, com potencial
narrativo, que possui uma poética própria, capaz de permitir realizações artísticas
elevadas, e que Dalton Trevisan, na sua incursão por esse gênero, logra absoluto êxito
em alguma de suas ministórias, como pode ser averiguado a partir das análises do
quarto capítulo.
110
A função dessas análises é justamente comprovar as três hipóteses, para de uma
só vez demonstrar as potencialidades do gênero, da poética e de um artista brasileiro.
111
ANEXOS
1. O VAMPIRO DE CURITIBA — DALTON TREVISAN
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Ai, me vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo beijo de
virgem é mordida de bicho cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que
molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o
suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro
de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não
sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada ai, querida, é uma folha
seca ao vento — e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me
derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela,
pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma
borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e o cartaz de cinema no
muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento.
Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria
pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de
uma por uma. Até enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que
vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho.
No fundo de cada filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai
quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode -dizer
amém! Muito sofredor ver moça bonita e são tantas. Perdoe a indiscrição, querida, deixa o
recheio do sonho para as formigas? Ó, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho
só. Mais um, mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro a seus pés. Por Deus
do céu não lhe faço mal — o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.
Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com
elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas
afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou oco de pau
podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando
no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que é então? Olhe
as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa
é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me
arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de
ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu?
Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o
adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu
esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto o sarampo da viuvez em flor.
Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com
leque recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela
está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o
joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a
coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela
dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!
Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não fa
isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com
a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho que ficaria inibido. No fundo, herói de
bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse um dos tais? Puxa, que olhar
feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda
mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda
o colibri e enraivece o vampiro.
76
O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1998. 20. ed.
112
Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e
arminho — rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. Ó bracinho nu e
rechonchudo se não quer por que mostra em vez de esconder? —, com uma agulha desenho
tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.
Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel.
Todas de azul e branco ó mãe do céu! desfilando com meia preta e liga roxa no salão de
espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte unos. Olhe, suspenso
nove centímetros do chão, desferia vôo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique
velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se
iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida,
o anel mágico — conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos?
Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que
marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta
a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fúlgida, as horas de delírio na alcova
— à palavra alcova um nó na garganta.
Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho
de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. envelhece,
cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.
Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe agora. Cara
feia, está perdido. Tarde demais, vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras.
Oxigenada, a sobrancelha preta — como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do
Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou
bonito, mas sou simpático, isso o vale nada? Uma vergonha na minha idade. vou eu atrás
dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.
Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila — onde
pisa, a grama não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do
pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.
Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta,
abandona-se na mesma hora. Ó morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas
instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na
cara?
Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar nem uma baixou sobre
mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam, a cola
peluda.
Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de
Quéops, Quefren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, ó
Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos.
Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca? Se o cego não a
fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais o sarnento
atormentado pelas pulgas, que voltas para morder o rabo. Em despedida ó curvas, ó
delícias — concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro - os
pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo — beijo de virgem
é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz.
2. UM LUGAR ENSOLARADO — YASUNARI KAWABATA
77
77
Historias en la palma de la mano. Buenos Aires. Ed. Emecé. 2005
113
No outono de meus vinte e quatro anos, conheci uma garota numa pousada à beira-mar.
Foi o começo do amor.
De repente a jovem ergueu a cabeça e tapou a cara com a manga de seu quimono.
Diante de seu gesto, disse a mim mesmo: devo tê-la incomodado com meu hábito inoportuno.
Fiquei constrangido e meu pesar se fez evidente.
— Fixei meu olhar em ti, não?
— Sim, mas não se preocupe.
Sua voz soava gentil e suas palavras, cálidas. Senti-me aliviado.
— Esse meu jeito de olhar te incomoda, não?
— Não, de verdade, está tudo bem.
Baixou o braço. Em sua expressão se podia notar o esforço que fazia para aceitar meu
olhar. Olhei para o outro lado, fixando a vista no oceano.
Fazia muito tempo que eu tinha esse hábito de fixar os olhos em quem estivesse a meu
lado, para desgosto da vítima. Muitas vezes havia decidido corrigir-me, mas sofria se não
observava os rostos dos que estavam próximos. Aborrecia-me ao me dar conta do que estava
fazendo. Talvez o hábito pudesse ser creditado ao fato de eu ter passado muito tempo a
interpretar os rostos das outras pessoas, logo depois que perdi meus pais e meu lar, quando
ainda era criança, e me vi obrigado a viver na companhia de estranhos. Talvez por isso tenha
ficado assim, eu pensava.
Em certo momento, desesperado, tentei definir se tinha desenvolvido esse costume
depois de ter sido adotado ou se o possuía desde antes, quando ainda tinha um lar. Não
conseguia, porém, encontrar as lembranças que pudessem aclarar-me o fato.
Foi então que, ao apartar meus olhos da garota, avistei um lugar na praia banhado pelo
sol de outono. E esse lugar ensolarado despertou uma recordação por longo tempo enterrada.
Depois da morte de meus pais, vivi sozinho com meu avô por quase dez anos numa casa
de campo. Meu avô era cego. Durante anos e anos, sentou-se no mesmo quarto, diante de um
braseiro de carvão, sem nunca mudar de lugar, voltado para o leste. De quando em quando,
virava a cabeça para o sul, mas nunca para o norte. Assim que me dei conta desse seu hábito de
virar a cabeça apenas numa direção, senti-me tremendamente perturbado. Às vezes me sentava
por um longo tempo à sua frente, observando seu rosto, perguntando-me se viraria a cabeça,
uma vez que fosse, para o norte. Mas meu avô virava a cabeça para a direita a cada cinco
minutos, como uma boneca mecânica, fixando os olhos somente no sul. Isso me provocava um
mal-estar. Parecia-me algo misterioso. Para o sul havia lugares ensolarados, e me perguntei se,
mesmo cego, ele não poderia perceber essa direção como sendo um pouco mais luminosa.
Agora, olhando para a praia, eu recordava esse outro lugar ensolarado de que havia me
esquecido.
Naqueles dias, fixava o olhar em meu avô, esperando que ele virasse a cabeça para o
norte. Como era cego, eu podia observá-lo fixamente. E agora me dava conta de que assim
havia se desenvolvido meu costume de estudar os rostos. E que esse hábito já existia quando eu
ainda tinha um lar, que não era um vestígio de servilismo. Pude me tranqüilizar em minha
autocompaixão por esse costume. Resolver a questão me provocou o desejo de saltar de alegria,
tanto mais porque meu coração estava tomado pelo desejo de me purificar em homenagem à
garota.
A jovem voltou a falar.
— Eu vou me acostumando, embora isso ainda me intimide um pouco.
Isso significava que eu podia voltar a vê-la. Seguramente havia julgado rude o meu
comportamento. Eu a observei com uma expressão radiante. Ela sorriu e me lançou um olhar
dissimulado.
Meu rosto deixará de ser interessante para você com o passar dos dias e das noites.
Mas não estou preocupada.
Falava como se fosse uma criança. Sorri. Pareceu-me que de repente nossa relação
havia adquirido uma outra intimidade. E eu quis chegar até aquele lugar ensolarado na praia,
com ela e com a lembrança de meu avô.
114
3. SILÊNCIO BRILHANTE — SPENCER HOLST
78
Dois ursos Kodiak nativos do Alasca entraram para um pequeno circo em que se
apresentavam numa parada noturna puxando um carro coberto por uma lona. Os dois foram
ensinados a dar cambalhotas, a girar, a ficar apoiados em suas cabeças, e a dançar sobre suas
pernas traseiras, pata com pata, os passos em harmonia. Debaixo dos holofotes os ursos
dançarinos, um macho e uma fêmea, logo se tornaram os favoritos da multidão. O circo foi para
o sul numa turnê pela costa oeste através do Canadá até a Califórnia e continuou para baixo até
o México, passando pelo Panamá em direção à América do Sul, cobrindo os Andes na extensão
do Chile em direção àquelas ilhas mais ao sul da Terra do Fogo. um jaguar atacou o
ilusionista, e depois feriu mortalmente o treinador de animais, e as pessoas, chocadas,
debandaram em desalento e horror. Na confusão os ursos tomaram o seu próprio caminho. Sem
um dono, eles vagaram a sós pela selva naquelas ilhas subantárticas densamente arborizadas e
assoladas por ventos violentos. Completamente isolados das pessoas, numa ilha remota e
deserta, e numa atmosfera que lhes era ideal, os ursos se acasalaram, prosperaram e se
multiplicaram, e depois de numerosas gerações povoaram toda a ilha. De fato, passados alguns
anos, os descendentes dos dois seguiram para meia dúzia de ilhas adjacentes, e depois de 70
anos, quando os cientistas finalmente encontraram e com entusiasmo estudaram os ursos
descobriu-se que todos eles, levando-se em conta que eram ursos, apresentavam esplêndidos
truques circenses.
Às noites, quando o céu está limpo e a lua cheia eles se reúnem para dançar. Reúnem os
filhotes e os jovens ursos num círculo ao seu redor. Reúnem-se e se juntam, abrigados do vento
no centro de uma cratera circular e cintilante produzida por um meteorito que havia caído num
leito de calcário. Suas paredes vítreas são brancas como cal, seu chão plano escoberto com
cascalhos brancos, e, além disso, o local conserva-se escoado e seco. Nenhuma vegetação cresce
por ali. Quando a lua surge no céu, a luz refletida nas paredes inunda a cratera como uma poça
de claridade, fazendo com que o a superfície do fundo seja duas vezes mais brilhante do que
qualquer outro lugar naquela vizinhança. Cientistas especulam que originalmente a lua cheia
lembrava os dois ursos dos holofotes do circo, e por isso eles dançavam. Ainda assim alguém
poderia perguntar que músicas os descendentes dançavam? Pata com pata, os passos em
harmonia... Que música eles podem ouvir, afinal, dentro de suas cabeças enquanto dançam sob a
lua cheia e a Aurora Austral, enquanto dançam imersos num silêncio brilhante?
78
in Flash Fiction: 72 very short stories. Nova Iorque: Norton, 1992.
115
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