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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
MESTRADO EM TEATRO
CAROLINE MARIA HOLANDA CAVALCANTE
A INTERPRETAÇÃO COM O OBJETO:
REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO DO ATOR-ANIMADOR
FLORIANÓPOLIS
2008
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CAROLINE MARIA HOLANDA CAVALCANTE
A INTERPRETAÇÃO COM O OBJETO:
REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO DO ATOR-ANIMADOR
Dissertação apresentada como requisito à
obtenção do grau de Mestre em Teatro,
Curso de Mestrado em Teatro, Linha de
Pesquisa: Poéticas Teatrais.
Orientador: Prof. Dr. Valmor Beltrame
FLORIANÓPOLIS
2008
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CAROLINE MARIA HOLANDA CAVALCANTE
A INTERPRETAÇÃO COM O OBJETO:
REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO DO ATOR-ANIMADOR
Esta dissertação foi julgada ________________ para a obtenção do Título de
Mestre em Teatro, na linha de pesquisa: Poéticas Teatrais, e aprovada em sua
forma final pelo Curso de Mestrado em Teatro da Universidade do Estado de Santa
Catarina, em 11 de dezembro de 2008.
Prof Milton de Andrade, Dr
Coordenador do Mestrado
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:
Prof. Valmor Beltrame, Dr.
Orientadora
Prof. José Ronaldo Faleiro, Dr.
Membro
Prof. Felisberto Sabino da Costa, Dr.
Membro
“Minha mãe me deu ao mundo
de maneira singular
me dizendo uma sentença:
pra eu sempre pedir licença,
mas nunca deixar entrar.”
Caetano Veloso
A minha mãe,
porque me deixou sonhar.
Sempre.
A Amelie...
minha mais nova e preciosa
companheira de estrada.
AGRADECIMENTOS
A Amelie, que sempre me ensina ser gente.
Ao meu pai, José Ronaldo, por tudo que teve que aprender para me aceitar assim,
como sou.
A Marilena... [sem palavras]
A Regina, sem a qual não teria sido possível esta dissertação. Por seu apoio
material e espiritual.
Às figuras: Karenine e Glauber, meus irmãos e companheiros; Eliacy e Thiago (da
Rebeca). Os quatro acreditam com tal verdade no que sou e no que posso ser, que
nos momentos de desânimo e descrença, eu acreditei também.
Ao Juracy, ao apoio dado em meio a nossa dura caminhada de aprendizado.
Ao Daniel Silva.
À Frédéric Besnard, diretor da Aliança Francesa de Florianópolis em 2007 e 2008
porque sem sua generosidade e sua credibilidade é provável que eu não
continuasse a jornada que se consolida hoje nessa pesquisa. MUITO OBRIGADA
MESMO!
Também agradeço à tia Bernardo e Adriana Bohnenberger, da Aliança
Francesa de Florianópolis, por toda a delicadeza e ajuda que sempre me
ofereceram.
Ao Souza, Alex de Souza. Agradeço profundamente a ele, que convive, entre os
ganhos e as perdas do encontro artístico. Compartilhando e possibilitando algo que
é imprescindível a mim: fazer arte.
Às pessoas da Cia. Cênica Espiral, pelos risos e momentos de trabalho juntos.
A Kátia Arruda, amiga que aqui ganhei e sem a qual o fundo do poço parecia
sempre mais perto. Olhar sensível para o mundo.
Às professoras do Colégio de Aplicação, do ensino fundamental I, do grupo C
porque foram sempre alimentadoras da minha necessidade de arte. A você, Carla
Loureiro, que foi muito mais que uma colega de trabalho, foi mãe-companheira, foi
médica-pediatra, conselheira em assuntos conjugais e sempre me aceitou assim,
como sou agora. A Inês, lutadora delicada que me serve de exemplo. A Silvinha,
porque sempre ri de mim. A Adri, Josi e Gabi. A Berna, sempre acolhedora.
A Conceição Rosière, que pacientemente me atendeu com material bibliográfico e
toda a disponibilidade de sua subjetividade alegre e competente.
Ao Sérgio Mercúrio, que cedeu um pouquinho do que aprendeu em sua caminhada
com o teatro de bonecos em forma de texto.
À Professora Susana Jimenez, que me ensinou também a pesquisar, mas me
ensinou sobre a vida por meio da visão marxista, entre a dor de enxergar a realidade
e a força e a certeza da possibilidade de mudança.
Ao Professor Valmor Beltrame, porque foi o desejo de estudar sob sua orientação
que me trouxe até Florianópolis. Mas antes, foi a sua paixão por essa arte que o
encaminhou para essa condição de profundo conhecedor do teatro de animação.
Obrigada por ter-se deixado levar por essa paixão com tanta competência. E,
sobretudo, por ter compartilhado um pouco desse saber comigo.
A Cristina e Mila pela paciência com que sempre me ajudaram enquanto exerciam
seu trabalho na secretaria do mestrado.
RESUMO
Este estudo se apóia na compreensão de que o teatro de animação sofreu
intensas transformações no século XX. Nesse contexto, a técnica vem ocupando um
importante espaço na prática do ator-animador, consolidando um conjunto de
reflexões e saberes pertinentes ao trabalho desse intérprete. A pesquisa tem como
foco o estudo dos princípios específicos à interpretação mediada pelo objeto,
consistindo em organizá-los, tomando como referência as reflexões de autores
especialistas nessa arte. Esse percurso investigativo foi enriquecido pelo diálogo
com alguns espetáculos. Após as leituras e reflexões realizadas o material foi
organizado em três eixos: o primeiro trata de questões pertinentes à relação entre o
ator-animador e o objeto; o segundo eixo levanta reflexões sobre a neutralidade e o
terceiro eixo trata de questões referentes ao movimento na animação do objeto.
Palavras-chave: teatro de animação, ator-animador, princípios técnicos, pedagogia
do teatro, formação profissional.
ABSTRACT
This study is based on the understanding that the puppet theater has
undergone intense changes during the twentieth century. In this context, the
technique is occupying an important space in the puppeteer practice. It results in a
number of reflections and knowledge relevant to the work of the interpreter. The
focus of this research is study principles specifics to interpretation by means of
object. It consisted to organize these principles by reference to the ideas of authors
specialist in this art. This route has been illustrated by spectacles. After readings and
reflections, it was organized in three points: the first deals with relevant issues to the
relationship between the puppeteer and the object, the second point raises thoughts
about the neutrality and the third deals with matters relating to the movement in the
animation of the object.
Keywords: puppet theater, puppeteer, technical principles, theater pedagogy,
professional training.
.
ÍNDICE DE IMAGENS
Imagem 1 – Cena em que Eliza chora e abre a torneira-cabeça...............................47
Imagem 2 – Espetáculo L’Avar – Grupo Tábola Rassa.............................................49
Imagem 3 – Espetáculo Relações Naturais – Grupo Giramundo.............................50
Imagem 4 – Capitão de Mestre Pedro Rosa e
Soldado de Mestre Luiz da Serra..............................................................................52
Imagem 5 - Desdobramento Objetivado segundo Rafael Curci.................................60
Imagem 6 – Espetáculo O Velho da Horta.................................................................73
Imagem 7 – Espetáculo L’Avar: a personagem caolha..............................................75
Imagem 8 - Espetáculo Peer Gynt. Neutralidade e co-presença...............................76
Imagem 09 e 10 - Espetáculo Peer Gynt. Neutralidade e co-presença.....................77
Imagem 11 e 12 - Espetáculo Peer Gynt. Neutralidade e co-presença.....................77
Imagem 13 - Espetáculo Peer Gynt. Neutralidade e co-presença.............................78
Imagem 14 - Espetáculo Peer Gynt. Neutralidade e co-presença.............................78
Imagem 15, 16 e 17 - O Incrível Ladrão de Calcinhas
Cena na qual o ator-animador assume o papel de animador....................................81
Imagem 18 – Espetáculo El Titiritero de Banfield:
Bobi encontra sua mãe...............................................................................................83
Imagem 19 - Ches Panses Vertes..............................................................................85
Imagem 20 - Espetáculo O Princípio do Espanto do Grupo Morpheus 12................96
Imagem 21 - Três situações para animação de um objeto e sua relação com olhar
direcionado para o público.........................................................................................97
Imagem 22 – O direcionamento do olhar e a construção...........................................98
Imagem 23 - Olhos inclinados para dentro. Boneco de Serguei Obrazstsov.............99
Imagem 24 – Espetáculo de Sérgio Mercúrio, El Titiritero de Banfield....................105
Imagem 25 Roteiro visual de Amorós e Paricio - Espetáculo Retablo de
Natividad...................................................................................................................119
Imagem 26 – Storyboard de Jean Pierre Lescot………………………………………125
..
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12
CAPÍTULO I: ALGUMAS QUESTÕES CINCUNSCRITAS AO TRABALHO ATOR-
ANIMADOR................................................................................................................18
1.1. Inquietações e mudanças. ..................................................................................18
1.2. Transformações no teatro de animação: traços da heterogeneidade e
contemporaneidade na linguagem.............................................................................30
1.3. Traços do ator-animador.....................................................................................34
1.4. Percurso de transformações, modelagem de saberes........................................37
1.5. cnica e poesia: pequena, mas importante consideração em uma pesquisa
sobre saberes artísticos.............................................................................................41
CAPÍTULO II: O ATOR E O OBJETO: A ESCUTA, O DESDOBRAMENTO
OBJETIVADO, DISSOCIAÇÃO E SÍNTESE.............................................................43
2.1. A escuta do objeto...............................................................................................44
2.1.1. A escuta no sentido da atenção no trabalho....................................................44
2.1.2. A escuta na composição dramatúrgica........................................................... 46
2.1.3. A escuta na movimentação do objeto............................................................. 52
2.2. Desdobramento objetivado................................................................................ 56
2.3. Dissociação........................................................................................................ 62
2.4. Economia dos meios, síntese e precisão........................................................... 64
CAPÍTULO III: A NEUTRALIDADE ..........................................................................67
3.1. A neutralidade e o ator-animador à vista............................................................ 71
CAPÍTULO IV: O MOVIMENTO E A PARTITURA CÊNICA.....................................87
4.1. Delineando termos..............................................................................................91
4.2. Movimento e palavra...........................................................................................92
4.3. Movimento e subtexto.........................................................................................94
4.4. Movimento e a escuta do objeto..........................................................................95
4.5. O olhar.................................................................................................................95
4.5.a. O olhar e a relação frontal..............................................................................101
4.5.b. O olhar e a triangulação.................................................................................102
4.5.c. O olhar como indicador da ação.....................................................................103
4.6. Foco...................................................................................................................104
4.7. Respiração........................................................................................................108
4.8. O andar..............................................................................................................109
4.9. Entrada ou apresentação .................................................................................112
4.10. Tonicidade, nível, eixo e ponto fixo.................................................................114
4.11. Partitura de movimentos.................................................................................117
4.11.1. Três esferas da partitura..............................................................................118
4.11.2. Notação e teatro...........................................................................................122
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................130
12
INTRODUÇÃO
O interesse por realizar esta pesquisa nasce do desejo particular da autora de
buscar conhecimentos para sua formação como professora e artista de teatro de
animação. Movida por esse desejo pessoal, esta pesquisa tem como objetivo geral
investigar a prática do ator-animador. Assim, uma questão fundamental norteou as
etapas deste estudo: como artistas que atuam neste campo dialogam com um objeto
de modo a nele imprimir a idéia de vida, ânima, fazendo parecer que esses objetos
agem com autonomia?
Até o início do século XX o teatro de animação se apresentava como
linguagem homogênea e as fronteiras com as demais artes eram visitadas
timidamente. O bonequeiro realizava seu trabalho de maneira mais intuitiva e/ou
num aprendizado por tradição. Sua formação profissional consistia num longo
processo de trabalho no qual o artista ia acumulando um conjunto de saberes,
princípios técnicos, com os quais desenvolvia sua atuação. Com o passar do tempo
as fronteiras do teatro de animação se tornam mais porosas, dialogando com outras
artes. Esse intercâmbio é provocador de experimentações e investigações artísticas
em múltiplas direções, como a relação entre teatro de animação e música, teatro de
animação e artes plásticas, teatro de animação e cinema, e principalmente com
outras manifestações cênicas. Nesse contexto, a arte do teatro de animação se
torna mais complexa e passa a exigir de seus praticantes um maior grau de
apropriação dos conhecimentos pertinentes à atuação nessa linguagem.
A pesquisa se propõe a dialogar com a prática do ator-animador, organizando
e estudando um conjunto de princípios cnicos nela presente. A expectativa é de
poder somar-se às demais pesquisas desenvolvidas e contribuir com o
aprofundamento e ampliação das reflexões existentes sobre essa linguagem teatral,
no intuito de que os aspectos aqui tratados interajam com o campo da formação de
artistas iniciantes nessa linguagem.
Entende-se que os termos teatro de animação e ator-animador abrigam uma
amplitude de práticas e visões artísticas.
Assim, alguns recortes foram realizados e
tomados como parâmetro. Primeiramente, sobre o tipo de matéria a ser animada. O
campo do teatro de animação é muito rico em possibilidades expressivas, podendo
ser agrupadas em áreas como teatro de sombras, teatro de máscaras, teatro de
bonecos, teatro de objetos. Todavia, este modelo de agrupamento é ainda
13
insuficiente para abranger todas as expressões artísticas dessa linguagem,
excluindo os trabalhos que animam materiais (água, terra, dentre outros), som, luz,
pintura e tudo o que possa alcançar a criação e imaginação artística. Dada a
impossibilidade de abraçar esse vasto terreno de formas animáveis, os campos de
expressão escolhidos foram: animação de objetos e bonecos, tomados aqui sob o
termo e o entendimento de objeto, que o boneco é um objeto construído para a
cena. Contudo, ainda que as reflexões se apliquem tanto ao boneco quanto aos
demais objetos, os espetáculos com os quais se dialogou são quase todos de
bonecos do tipo antropomorfo, excetuando apenas o espetáculo L’Avar, da Cia.
Tábola Rassa. Esse espetáculo leva à cena objetos utilitários aos quais são
acrescidos detalhes que colaboram para a conformação da personagem - figurinos e
partes do corpo do ator-animador.
Em seguida foi traçado um recorte sobre o tipo de interpretação na qual o
ator-animador imprime no objeto animado uma personagem de comportamento
humano, podendo ser uma personagem mais ou menos esquemática.
Ainda outro recorte foi trabalhado: este se relaciona com a concepção de que
o bonequeiro é intérprete, ator. Esta pesquisa parte da compreensão de que o teatro
de animação está categorizado como uma linguagem teatral e, portanto, é regido
pelos princípios pertinentes à arte do teatro. Assim sendo, o ator-animador, na
realização de sua tarefa, utiliza os conhecimentos concernentes ao trabalho do ator,
pois entende-se nesta pesquisa que a atividade fundante da animação de um objeto
é a interpretação. Entretanto, o teatro de animação traz em si peculiaridades. Neste
estudo, as investigações foram desenvolvidas com o foco voltado para as
particularidades do trabalho do ator no teatro de animação.
A opção por recortar o estudo das particularidades da interpretação do ator-
animador, na animação de um objeto e para a construção de uma personagem de
comportamento humano parece relevante na medida em que coincide com o
panorama preponderante do teatro de animação nacional. Tal afirmativa pode ser
constatada nos programas dos festivais nacionais e internacionais ocorridos no
Brasil, que selecionam espetáculos brasileiros ou internacionais com esse caráter de
interpretação. Assim, estudar a animação sob esse recorte não está no sentido de
reforçar a manutenção do atual panorama, mas no de colaborar para compreender a
atividade artística que se realiza neste momento. Outro aspecto que motivou a
14
escolha desse recorte foi a crença de que essa proposta de interpretação pode
sedimentar a base do aprendizado de artistas nessa arte.
Para o desenvolvimento da dissertação utilizou-se uma metodologia que a
identifica como uma pesquisa qualitativa e caracteriza-a preponderantemente como
pesquisa bibliográfica. A bibliografia consultada foi desenvolvida,
sobretudo, por
artistas que refletem acerca de um conjunto de saberes acumulados em seu próprio
percurso artístico. As referências bibliográficas dialogam também, nessa abordagem
metodológica, com dados recolhidos na observação de espetáculos de 05 grupos de
teatro de animação que se apresentaram no Festival Internacional de Teatro de
Animação - FITA nos anos de 2007 e 2008. Os espetáculos são: El titiritero de
Banfield, de Sérgio Mercúrio (Argentina); El avaro de Molière, da Cia. Tabola Rassa
(Espanha/França); O Incrível Ladrão de Calcinhas, TRIP Teatro de Animação
(Brasil/SC); O Princípio do Espanto, do Grupo Morpheus Teatro (Brasil/SP) e Juan
Romeu y Julieta María, El Chonchón Teatro de Muñecos (Argentina/Chile). Também
foram incluídos os trabalhos O Velho da Horta e Peer Gynt, da Cia. Peqod
(Brasil/RJ) que estão em deo e foram gentilmente cedidos pela companhia para
realização de pesquisas. O constante diálogo entre as reflexões presentes em textos
sobre a prática do ator-animador e a observação dos espetáculos contribuiu para a
realização de um movimento importante na pesquisa, qual seja o de ir e vir entre
teoria e prática.
No corpo do texto da pesquisa foram inseridas algumas imagens de
espetáculos, visando facilitar a compreensão do leitor, agregando informações
visuais. Em notas de rodapé as citações foram apresentadas em seus idiomas
originais. Vale sublinhar também que as traduções foram realizadas somente para
fins de estudo.
O trabalho foi dividido em quatro capítulos. O primeiro é oriundo da opção por
delinear o panorama no qual se insere a pesquisa, dada as profundas
transformações pelas quais passou o teatro de animação no culo XX. Para tanto,
as reflexões apóiam-se nos estudos de Henryk Jurkowski, que explicitam as
metamorfoses ocorridas no teatro de animação europeu e apresenta os conceitos de
homogeneidade e heterogeneidade. O teatro de animação homogêneo é definido
como “um teatro de bonecos não contaminado por outros meios de expressão.”
(2000, p.64). E o “Teatro de bonecos heterogêneo é aquele no qual o boneco deixa
de ser o elemento dominante. Ele não é mais do que um componente entre outros,
15
como o ator animador à vista, o ator mascarado, os objetos e os acessórios de todos
os gêneros. ”(2000, p.08).
Subsidiado por estes conceitos, o capítulo tem como foco algumas questões
vinculadas à interpretação, identificando um período onde tais transformações
desembocam em rupturas no teatro de animação, ocorridas preponderantemente na
Europa nas décadas de 1950-60 e no Brasil na década de 1970. No percurso
desses anos essa arte assume múltiplas configurações, distancia-se do caráter de
atividade diletante e se complexifica. Ela se transforma, modifica os códigos que a
tornaram conhecida do grande público, e assume também características de uma
arte híbrida. O fator mais evidente desse processo de transformação é a presença
do ator-animador, antes velado, que rompe as tapadeiras e divide a cena com os
objetos que anima. Essa mudança provoca também mudanças na prática desse
intérprete.
Nos capítulos II, III e IV o empenho direcionou-se em identificar e refletir sobre
alguns parâmetros de trabalho que têm se evidenciado nos textos de artistas e
pesquisadores dessa linguagem. Esses autores apresentam como característica
comum uma preocupação com a formação do ator que se expressa por meio dessa
linguagem. São eles: Ana Maria Amaral (1997, 2002), Anne Cara (2006), Paulo
Balardim (2004), Carlos Converso (2000), Felisberto Costa (2001), Hubert Japelle
(1980), Joan Baixas (1994), Michael Meschke (1988), Pilar Amorós e Paco Parício
(2005), Rafael Curci (2007), Tito Lorefice (2006) e Valmor Beltrame (2008).
Após leituras e estudos uma tabela foi organizada com os princípios
apontados por estes autores, a partir da qual foram agrupados eixos que tomaram o
corpo dos capítulos apresentados na dissertação, quais sejam: O ator e o objeto: a
escuta, o desdobramento objetivado, dissociação e síntese; a neutralidade e o
movimento.
O ator e o objeto: a escuta, o desdobramento objetivado, a dissociação e a
síntese é um capítulo que orienta a reflexão para aspectos da relação entre o ator-
animador e o objeto. O ator estabelece uma relação na qual ele direciona seu
potencial interpretativo para o objeto, sendo sua atuação a resultante desse diálogo
entre corpo e objeto. No teatro de animação o ator pode trabalhar com aquilo que
SORINHO (2004) apresenta como um estado de consciência alterado, que no
contexto da presente pesquisa é entendido como um estado em que é possível a
percepção dilatada e o diálogo extracotidiano com os objetos, apreendendo as
16
qualidades deste e interferindo nelas no processo de composição da animação.
Nesse capítulo, portanto, vêem-se elencados alguns conceitos pertinentes à
interpretação do ator-animador, que estabelece uma relação outra com o objeto, sob
um estado de consciência dilatado, em um diálogo sensorial, no desenvolvimento de
sua atividade teatral.
O segundo capítulo trata da Neutralidade, abordada como um estado
psicofísico que pode assumir distintas qualidades conforme a presença cênica do
ator-animador com relação ao objeto. Assim, a neutralidade configura-se como um
princípio técnico que pode estar presente na interpretação do ator-animador esteja
ele oculto ou à vista, pois ela é entendida como uma disponibilidade para o diálogo
com o objeto, de modo a valorizar a presença cênica do objeto à medida adequada
de sua própria presença cênica. Para tanto o ator-animador no estado de
neutralidade busca limpeza, economia e precisão em sua interpretação, eliminando
os excessos.
No capítulo terceiro o movimento é o tema central e é visto como a matéria
fundamental com a qual se modela a animação. O ator-animador tem sua principal
via de relacionamento com o objeto pelo movimento. Para Marco Souza, o
movimento é um dos componentes que define o conceito de animação de um objeto:
[...] a ação do manipulador (o movimento) e a presença cênica do objeto
(imobilidade) são a combinação indispensável para que aconteça um
espetáculo que possa ser realmente classificado como um modelo de
animação teatral. Por isso, qualquer tipo de teatro de animação depende,
de maneira imprescindível, de uma interação harmoniosa entre objeto,
movimento e manipulador que, por um esforço reunido, estabelecem uma
espécie de unidade conjunta (que só funciona no momento exato da
encenação em que acontece o desempenho dessa conjunção) capaz de
demarcar o princípio organizador que impulsiona toda forma de
performance animada.
(2005, p. 24)
Desse modo, a investigação é orientada para aspectos do movimento
encontrados nas referências bibliográficas da pesquisa que podem contribuir com a
interpretação do ator-animador.
As observações de espetáculos, as leituras e as reflexões tecidas no
processo de realização da pesquisa evidenciam que cada ator-animador identifica
um conjunto de princípios que orientam sua prática. Alguns desses saberes
coincidem e parecem constituir um conjunto de princípios técnicos específicos da
prática do ator-animador. Esta pesquisa aponta para o entendimento de que esses
17
princípios podem contribuir com a formação inicial de artistas, subsidiando o
desenvolvimento de criação de percursos poéticos individuais.
18
CAPÍTULO I:
ALGUMAS QUESTÕES CINCUNSCRITAS AO TRABALHO ATOR-ANIMADOR.
1.1. Inquietações e mudanças:
As rupturas ocorridas nos campos artísticos no início do século XX
reverberam no teatro de animação. As reflexões apresentadas por Henry Jurkowski
apontam as influências da vanguarda modernista, na Europa desse período, como
um contexto que direciona o olhar de diversos artistas e escritores para essa
linguagem artística:
No final do século XX, o boneco entra em moda pelo teatro de Maurice
Maeterlinck, os delírios burlescos de Alfred Jarry e as experiências
teatrais de Paul Fort e Lugné-Poe. A “super-marionete” de Craig, as
diversas experiências dos futuristas, dadaístas ou surrealistas elevam
sua imagem ao patamar de gênero artístico. (JURKOWSKI, 2000, p. 11).
Vale sublinhar que as idéias e as práticas teatrais que trazem o boneco como
modelo fonte de reflexão, tem como um de seus antecessores Heinrich von Kleist,
romântico alemão, em seu ensaio escrito em 1810, intitulado Sobre o Teatro de
Marionetes. Somente quase um século depois este ensaio atrai o interesse de
artistas, num momento em que coincide com o pensamento da época.
O modernismo, numa reação ao realismo e às idéias do naturalismo, procura
ultrapassar os limites da idealização do real e busca apresentar o que está para
além das aparências, levando à cena questões humanas pautadas num discurso
mais lacônico e poético. O boneco serve como uma referência para o
comportamento do ator em cena, numa procura por afastar-se da interpretação
predominante no começo daquele culo. Ele parecia responder à crise da
representação teatral e pictórica, pois
Enquanto objeto e como forma plástica, a marionete permite uma grande
liberdade de invenção e experimentação de materiais; forma teatral
essencialmente visual, acompanhou a afirmação do espaço cênico
concebido como espaço plástico; personagem abstrata, facilitou o
abandono da verossimilhança narrativa e da coerência psicológica,
fundamentos do teatro tradicional; ator lacônico, a marionete
acompanhou as mudanças ocorridas na escrita teatral e no uso da voz,
usada como instrumento sonoro, separada da personagem ou do corpo
que a pronuncia
.
(ERULLI, 2008, p. 13).
A vanguarda modernista operou inegável influência para o fortalecimento do
teatro de animação dada a visibilidade e a importância concedida a esta linguagem,
19
desencadeando um processo que começa a elevá-la ao patamar de arte como os
demais gêneros artísticos. Entretanto, as verdadeiras transformações na linguagem
do teatro de animação são identificadas, nas reflexões de Jurkowski, não como
produto desse momento das interferências da vanguarda modernista, mas ocorridas
nas décadas de 1950 e 1960, no período do pós-guerra.
1
As inquietações da
vanguarda valorizam a arte do teatro de animação, mas não provocam rupturas com
a prática artística da época. Nas palavras de Henrik Jurkowski:
[...] é verdade que a arte moderna foi a principal impulsionadora do teatro
de bonecos contemporâneo. Mas afirmar que esta evolução se produziu
bruscamente exige um certo cuidado. [...] As tendências poéticas e anti-
realistas só se manifestaram com força após a Segunda Guerra Mundial.
Essa época traz, inegavelmente, a marca da metamorfose e da história
do teatro de bonecos no século XX. Ele se torna uma arte por inteiro.
(2000, p. 6-7).
O autor observa que essa transformação foi muito mais que um desejo
artístico, pois relacionava-se com um momento de reconstrução após a devastação
provocada pela II Guerra Mundial, no qual o mundo presenciava cidades demolidas,
famílias inteiras destruídas, miséria, mutilação. Os movimentos artísticos integraram
em suas expressões a “desumanização” do ser humano, em seus mais variados
aspectos, com a presença das próteses e as máquinas substituindo partes ou um
ser humano inteiro. Em meio a este clima de grandes metamorfoses sociais, os
movimentos artísticos assimilam essas novas dinâmicas em suas poéticas e
estéticas.
Ao analisar as transformações ocorridas no teatro de animação, Jurkowski
apresenta importantes conceitos que colaboram para refletir sobre as
transformações no trabalho do ator no teatro de animação. Dentre eles encontramos
os conceitos de homogeneidade e heterogeneidade. Consideramos importante
retomar a definição apresentada por esse autor, na qual o teatro de animação
homogêneo é definido como “um teatro de bonecos não contaminado por outros
meios de expressão.” (JURKOWSKI, 2000, p. 64). O autor aponta, ademais, que
esse teatro de animação homogêneo, do qual o teatro de animação tradicional é
parte, também sofreu nesse período grandes transformações com o
1
Embora possam ser identificados alguns artistas que parecem prever, com sua prática, o futuro do
teatro de animação, como por exemplo Geza Blattner, diretor francês do Teatro Arc-en-Ciel,em
Paris, em 1929 ou Vladimir Sokolov, ator e diretor russo, com seu Teatro de Dinâmica Musical, na
década de 20.
20
desenvolvimento das artes, a estilização plástica e gestual, provocando renovação
na linguagem.
nesse momento de mudanças no teatro de animação homogêneo, o
trabalho do ator-animador começa a se modificar. Ele inicia a transgressão do uso
do boneco e introduz objetos que assumem a função de personagem
2
, como o faz
Yves Joly, que utiliza em cena, em 1949, na França, mãos, objetos e figuras planas
de papelão na representação de historietas curtas, de um modo metafórico, nos
espetáculos Ombrelles et parapluies. (Sombrinhas e guarda-chuvas) e Les Mains
Seules (As Mãos sós). A introdução de objetos propõe ao animador uma nova
relação com a construção da personagem. Essa relação demanda que ele busque
as características da personagem não mais nos limites das referências humanas ou
animais, exigindo uma escuta mais aguçada das possibilidades físicas do objeto e a
criação de personagens mais pautadas na metáfora.
Outro aspecto que se evidencia com a utilização de objetos (que não os
bonecos) ou materiais é a opalização, conceito que Jurkowski também desenvolve.
O autor (1990) afirma que no boneco a opalização é apenas uma possibilidade,
enquanto com os demais objetos ela consiste num pré-requisito. Por isso as
inquietações que levaram o teatro de bonecos ao teatro de objetos representaram
além de um rompimento plástico, a construção de um caminho amplamente
metafórico no qual a opalização é um elemento importante. Em seu livro
Metamorfoses o autor cita o trabalho de Yves Joly enfatizando esse aspecto. Ele
apresenta como exemplo um número do espetáculo de Joly intitulado Tragédia de
Papel no qual figuras planas recortadas em papel representam cada qual uma
personagem das histórias clássicas do cabaré. A certa altura da apresentação uma
personagem é cortada em pedaços com tesouras e queimada, provocando a
comparação do destino do papel com o do homem. Tecendo reflexões acerca desse
trabalho de Joly, Jurkowski esclarece o conceito de opalização:
2
Dados os limites de nossa discussão não adentraremos a questão do conceito de personagem e
não-personagem. Entendemos que muitas vezes o objeto assume funções daquilo que
SOBRINHO (2004) caracteriza no teatro de imagens como figuras, que se afastam das
personagens criadas com base na individualização, na psicologia, nos aspectos sociais e em suas
origens históricas. Esse conceito por ele apresentado não abrange a noção de tipos como os
presentes na comédia. Entretanto, em nosso trabalho, para afinação de uma palavra que sirva
como instrumento de comunicação, utilizaremos o termo personagem com a possibilidade de
abrigar desde sujeitos cênicos extremante esquemáticos até as personagens mais psicologizadas
e historicizadas nessa linguagem.
21
Trata-se de uma metáfora, de um oxímoro [referindo-se à cena citada],
de um efeito de opalização devido à presença alternativa de um
personagem fictício sobre dois planos existenciais (aqui, o universo do
homem, a historieta, e o universo da matéria, as operações sobre a
cartolina). O artista rejeita a mimese e introduz seu universo (as figuras
de papel confrontadas às destruidoras ferramentas de verdade), mas
também sua poética com um efeito de opalização (alternância entre o
caráter e a materialidade da figura). (2000, p. 35).
A opalização consiste na utilização do objeto como personagem, bem como
assumi-lo como objeto em si, provocando uma quebra na ilusão de vida autônoma
do objeto, evidenciando o trabalho do animador como responsável desse processo.
Tal efeito começa a mostrar-se na interpretação do ator-animador, que o
utiliza não apenas em objetos cotidianos, partes do corpo ou materiais, mas também
nos bonecos antropomorfos, como podemos observar no trabalho de Albrecht
Roser. O artista desmistifica o boneco enquanto sujeito, apresentando sua natureza
artificial, por meio da opalização e quase que imediatamente remistifica a vida
autônoma do boneco. A opalização apresenta o boneco em suas duas dimensões:
objeto e personagem. É o depoimento de Serguei Obraztsov sobre o Festival de
Bucarest
3
, que narra a opalização presente na relação entre Albrecht Roser e o
boneco, o clown Gustaf:
Certo, via-se Roser puxar o fio para que Gustaf levantasse a mão e
tocasse seu joelho, mas isso não impedia de parecer autônomo o gesto
de Gustaf. Ele levantava os olhos para Roser tentando atrair sua atenção
e indicando-lhe com a outra mão uma pequena cadeira que era preciso
aproximar do piano. Ina, a assistente de Roser, a aproxima. Gustaf
senta-se e vai se pôr a tocar quando um de seus fios se prende na
guarda da cadeira, impedindo-o de levantar o braço. Tal incidente às
vezes gera catástrofes e todos os marionetistas o temem. Dessa vez, o
perigo é conjurado por Ina que solta o fio. Gustaf se volta e lhe agradece
por um movimento de cabeça. Os espectadores reagiram com risos e
aplausos. Gustaf era ao mesmo tempo uma marionete - cujo fio se tinha
enganchado e uma criatura viva -, ele agradecia a Ina por tê-lo soltado.
(OBRAZTSOV apud JURKOWSKI, 2000, p. 31).
A remistificação da vida do boneco ocorre, sugerindo uma vida própria do
boneco quando ele toma também consciência de sua condição de boneco e solicita
ajuda para desenganchar seu fio ou realizar outra atividade dificultada por essa
condição.
3
Apontado por Jurkowski (2000) como o “primeiro grande festival de marionetes” que aconteceu
nesta atmosfera de grande efervescência (artística, ideológica, política um momento de pós-
guerra), o Festival de Bucareste, ocorrido em 1958. Nesse festival Albrecht Roser foi destaque
com o clown Gustaf, no espetáculo Gustaf und sein Ensemble.
22
Também encontramos a opalização em animação de bonecos no trabalho de
Philippe Genty, com seu Pierrot que, ao perceber os fios que o sustentam,
inconformado com sua condição de marionete, arranca-os, um a um até a sua morte
(1977).
4
O efeito da opalização é encontrado tanto no teatro de animação homogêneo
como no heterogêneo.
O aparecimento de um teatro heterogêneo, a partir dos anos de 1950, é dado
marcadamente pelo compartilhamento do espaço cênico com o ator que interpreta
sem a mediação do objeto ou o ator-animador não ocultando sua condição de
intérprete do objeto. “Teatro de bonecos heterogêneo é aquele no qual o boneco
deixa de ser o elemento dominante. Ele não é mais do que um componente entre
outros, como o ator animador à vista, o ator mascarado, os objetos e os acessórios
de todos os gêneros” (JURKOWSKI, 2000, p. 08). O autor sublinha ainda que o
fortalecimento do teatro de animação heterogêneo não implica nem uma evolução,
no sentido de mudança de nível qualitativo, nem o desaparecimento do teatro de
animação homogêneo. Pelo contrário, o teatro de animação homogêneo tem seu
espaço junto ao público e se reinventa em meio a esse processo de mudanças.
No Brasil essa ruptura verifica-se mais evidenciada a partir dos anos de
1970. Os autores Amaral e Beltrame (2007) apontam como amostra as
experiências do radialista Geraldo Casé, que praticava teatro amador numa esfera
mais fechada: “Seu teatro acontecia entre amigos, numa coincidência feliz de
talentos, entre eles, sua mulher Heleida, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e
Guilherme de Figueiredo.” (AMARAL e BELTRAME, 2007, p.13). Ele apresentava
em 1973 um espetáculo no qual usava as mãos nuas manipulando objetos.
Entretanto, o espetáculo dirigido por Ilo Krugli, História de Lenços e Ventos, com
estréia datada de 1974, é considerado entre os pesquisadores e estudiosos da área
como um dos espetáculos que marcam a passagem à heterogeneidade. Nesse
espetáculo os atores-animadores se apresentavam à vista, interpretando junto com
os bonecos. O pesquisador Humberto Braga descreve: “Para um segmento do
teatro de bonecos, houve certa resistência em considerá-lo como um espetáculo de
bonecos uma vez que os atores interagiam com eles numa nova concepção de
cena. Pouco a pouco o estilo se alastra e a discussão vai perdendo o sentido”
4
É possível assistir essa cena pela internete no endereço:
http://www.youtube.com/watch?v=SphHaiW7fzg
23
(2007, p. 253). Essa década foi de grande efervescência para o teatro de animação
brasileiro, que se expressa na ruptura do teatro de animação homogêneo para o
heterogêneo, e ainda, nas mudanças ocorridas no teatro de animação homogêneo.
As transformações representam não apenas uma ruptura com o princípio que
regia até então a linguagem e orientava para o velamento das fontes motrizes e
vocais do objeto. É uma modificação que exige do ator-animador outra qualidade de
presença cênica que se altera segundo a relação estabelecida entre ator-animador e
objeto animado, tendo, por exemplo, que investigar e ajustar as nuances de
neutralidade e o delineamento da partitura de gestos e ações ao modo escolhido
para estar em cena:
A partir de então o ator passa a ocupar um lugar na cena do teatro de
bonecos. Com funções diferentes e segundo os personagens, ele pode
ser de um lado o elemento lógico e natural do teatro de bonecos [...] e de
outro, um elemento visível da convenção teatral enquanto animador de
bonecos, ponto de partida da animação à vista, e manter relações
metafóricas com eles, ou transformar em matéria para “fabricar” um
personagem (JURKOWSKI, 2000, p. 79).
Assim, o ator-animador começa a estabelecer outras diferentes formas e
relações para estar em cena junto ao objeto animado. Sem intenção de conseguir
abrangê-las em sua totalidade, apresentamos nesta pesquisa algumas dessas
variações encontradas nos escritos de alguns estudiosos, como Meschke e Curci, e
que também verificamos no diálogo com os espetáculos estudados. Trata-se da
animação oculta e à vista, esta última tomando quatro variações, a saber: o ator-
animador como não-presença, o ator-animador como co-presença, o ator-animador
como animador e o ator-animador como contraparte.
5
a. O animador oculto:
Jurkowski (1990), percorrendo a teia histórica do teatro de animação europeu,
conclui que houve largo período em que o animador estava oculto aos olhos do
5
Os termos aqui utilizados são aqueles que encontramos nos discursos de artistas e pesquisadores.
Por vezes fizemos algumas pequenas modificações, como por exemplo, a substituição do termo
“manipulação” por “animação”. Desse modo entendemos que se tomarmos em sentido literal,
nenhuma animação é oculta, pois apresenta-se no objeto, logo seria um termo inadequado.
Todavia, optamos por trabalhar com os termos em uso entre os sujeitos dessa arte. Nesta
perspectiva, animação oculta e à vista referem-se, portanto à visibilidade ou o do ator na
realização da animação do objeto. O mesmo acontece com os termos referentes às variações da
animação à vista. Não existe uma não-presença do ator, mas podemos pensar o termo presença
referindo-se à presença da personagem. Assim, “o ator como não-presença”, por exemplo, refere-
se a não presença de uma personagem sendo apresentada no corpo do ator.
24
público. Na Idade Média, os bonecos eram usados por atores itinerantes, e tinham,
sobretudo, uma função ilustrativa da narração proferida pelos artistas. Sendo os
bonecos uma maneira de atrair o público, interessava aos artistas o velamento das
fontes motoras desses objetos que, por vezes, não passavam de figuras móveis,
retiradas dos quadros sagrados da igreja. Segundo o autor, esse tipo de
manifestação com bonecos são os mais descritos nos documentos acessados,
todavia, havia uma grande variedade de manifestação com bonecos. Em meio a
essa variedade, Jurkowski cita outro modo de utilização dos bonecos que também
intencionavam provocar no público a idéia de que o boneco possuía vida própria:
Era um autêntico teatro barroco em miniatura, com o cenário de caixa,
cortinas, bastidores, com possibilidade de perspectiva e todos os
recursos necessários. [...] Diferenciando-se do teatro vivo, o cenário de
bonecos está mobiliado com uma rede de arame fino estendida através
da abertura do proscênio [...] A função desta rede era esconder o arame
e os fios dos bonecos, para criar a ilusão de que os bonecos eram atores
vivos em miniatura.
6
(JURKOWSKI, 1990, p. 66-67, tradução nossa).
Essa afirmação de Jurkowski reforça a idéia de que esse teatro que utiliza o
boneco como imitação e substituição humana esforçava-se por isso em velar as
técnicas de animação. Meschke (1988) e Curci (2007) apontam esse processo de
busca de reprodução das distintas formas e estilos teatrais do “teatro vivo” no teatro
de bonecos tradicional europeu - exibindo por vezes uma miniaturização de
espetáculos de atores - como um dos motivos pelo qual durante muito tempo era
comum o animador manter-se longe do alcance visual do público.
No intuito de ocultar o animador, utilizam-se variados artifícios segundo a
técnica de animação empregada. Podemos observar o animador velado em
espetáculos de bonecos de luva que utilizam a empanada. No passado (e
encontramos nos dias atuais) essas empanadas ou telas eram decoradas para atrair
o olhar do público e reforçar o desaparecimento do animador e a idéia de vida
própria dos bonecos. Nos bonecos animados a fio, com ou sem tringle, utiliza-se
cenário por detrás do qual se posicionam os atores ou mesmo sobre uma plataforma
que eleva os animadores acima dos bonecos que geralmente se encontram no nível
do solo.
6
Era un auténtico teatro barroco en miniatura, con el escenario de caja, cortinas, bastidores, con
posibilidad de perspectiva y todos los recursos necesarios. [...] Diferenciándose del teatro vivo, el
escenario de títeres está amueblado con una red de alambre fino extendida a través de la apertura
del proscenio [...] La función de esta red era esconder el alambre y los hilos de los títeres, para
crear la ilusión de que los títeres eran actores vivos en miniatura.
25
Outra maneira mais contemporânea de velamento é a cortina de luz. Os
animadores ficam em áreas não iluminadas e intenciona-se direcionar a luz apenas
para os objetos animados e para outros elementos que interessem à cena.
No Brasil as informações mais antigas sobre teatro de bonecos foram
apresentadas por Luiz Edmundo (1932) e apontam para as manifestações ocorridas
no século XVIII, distribuídas em sua pesquisa em três modalidades: títeres de porta,
títeres de capote e títeres de sala. De suas indicações depreende-se que os títeres
de porta eram empunhados atrás da empanada, isto é, com bonecos animados por
baixo (vara e/ou luva). O títere de capote, também denominado de homem-palco,
veste o palquinho de onde se animam os bonecos, ocultando o animador que se
encontra dentro da estrutura, o capote. E os títeres de sala são bonecos animados a
fio, também ocultando seus animadores. O Mamulengo, representante da tradição
popular brasileira, também apresentava os bonecos e suas histórias atrás da
empanada. Nos dias de hoje, o Mamulengo mantém sua tradição de velamento do
animador.
Seja a serviço das narrações, como ilustrações, seja para provocar a
impressão de seres com vida própria ou com a função de imitação do teatro vivo,
interessava a esses artistas ocultar a técnica e os mecanismos de animação. Esses
artifícios evitam a disputa do olhar do espectador entre o objeto e o animador. A
personagem é visualmente composta por uma única imagem. O corpo humano,
como um corpo vivo, tem grande potencial de retenção da atenção do público com
relação à matéria inerte. Dessa maneira, o animador oculto, na visão de Meschke,
situa-se em uma condição diferenciada de trabalho para animação: “a situação de
trabalho do titeriteiro é, em certa medida, privada, não tem que preocupar-se com
seu aspecto e maneira de conduzir e pode concentrar-se na manipulação.”
7
(1988,
p. 31, tradução nossa).
Concordamos com o autor no sentido da possibilidade de concentração do
ator sobre o trabalho de animação do boneco, podendo preocupar-se menos com a
emissão de signos advindos de seu próprio corpo. Pode parecer que para o ator
nessa condição é indiferente, por exemplo, fazer caretas e movimentos iguais aos
do boneco, como é comum ao ator-animador iniciante em adaptação com a
interpretação com o objeto. Todavia, entendemos que, mesmo não sendo visto, é
7
La situación de trabajo del titiritero es, en cierta medida, privada, no tiene que preocuparse de su
aspecto y manera de conducirse y puede concentrarse en la manipulación,
26
importante não descuidar da animação do objeto, pois permanece ainda a divisão de
movimento dos corpos e da atenção do ator, que podem interferir em elementos
como tonicidade, foco, olhar ou mesmo provocar a imobilidade ou diminuição do
ritmo da personagem. Dito de outro modo, mesmo velado, o ator-animador continua
a trabalhar nas duas dimensões de espaço-tempo e o direcionamento inadequado
de sua energia pode resvalar na neutralidade necessária à impressão de vida no
objeto, arriscando trazer a ação da personagem para seu corpo.
b. O animador à vista:
Jurkowski (2000) aponta o surgimento da animação à vista (na Europa) como
o momento da passagem do teatro de animação homogêneo para o teatro
heterogêneo:
A tendência de multiplicar os meios de expressões provocaram em 1960
a destruição de alguns elementos do teatro, por exemplo, a destruição do
cenário de bonecos, do personagem da obra e do boneco em si. Todos
esses elementos foram transformados em cacos:
1. A barraca e a tela foram demolidas para facilitar aos operadores dos
bonecos e objetos a representação em um espaço cênico ilimitado.
2. A destruição da barraca e dos biombos mudou o modo de existência
dos personagens da obra. Nunca mais foram unidades integradas
visualmente. Os manipuladores se fizeram visíveis, mas não eram
somente visíveis os poderes vocal e motor. Às vezes adicionavam aos
bonecos sua própria mímica facial e seus próprios gestos expressando
os sentimentos dos personagens. A situação era mais complicada
quando o boneco era simultaneamente operado por dois ou três
bonequeiros.
8
(1990, p.76-77, tradução nossa).
Para o autor esse momento em que foram quebradas as empanadas e que o
animador se expõe visível, o objeto-personagem perde sua unidade visual, sendo
então necessário recorrer a meios complementares. Para ele, essa composição da
personagem com base em vários meios que se completam em sua constituição,
deveria enriquecer a personagem teatral, todavia levou a uma crescente passividade
do boneco o que, por sua vez, foi um estímulo para ampliar a experimentação com
8
La tendencia a multiplicar los medios de expresión provocaron en 1960 la destrucción de algunos
elementos del teatro, por ejemplo la destrucción del escenário de títeres, del personaje de la obra,
y del títere en sí. Todos estos elementos fueron hechos añicos:
1. La barraca y la pantalla fueron demolidas para facilitar a los operadores de los títeres y
objetos la representación en un espacio escénico ilimitado.
2. La destrucción de la barraca y de los biombos cambió el modos de existência de los
personajes de la obra. Nunca más fueron unidades integradas visualmente. Los
manipuladores se hicieron visibles, pero no eran solamente los poderes visibles vocal y
motor. A veces añadíam a los títeres su propria mímica facial y sus próprios gestos
expresando los sentimientos de los personajes. La situación era más complicada cuando el
títere era simultaneamente operado por dos o tres titiriteros.
27
os bonecos. Esses experimentos levaram à cena desde a relação entre animador e
animado a a desintegração do boneco em partes (o boneco não estava mais
“completo”, mas partes dele representavam o todo) e agora também dividia a cena
com outros objetos. Aconteceram também, como pontua Meschke (1988),
confrontos “positivos e negativos” entre diretores e bonequeiros, provocados pela
nova situação de trabalho, na qual o animador é agora um elemento presente na
cena. Também os cenários abandonam a miniaturização e o espaço da cena se
ampliou.
Nesse contexto, muito se questionou sobre a recepção espetacular, sobre
como o público reagiria e se seria possível ou não realizar um teatro de animação no
qual o se escondiam os processos empregados para a realização do espetáculo.
Recorremos mais uma vez aos estudos do pesquisador polonês,
transcrevendo um
trecho escrito em 1953, por Purschke, na efervescência das discussões da época:
Ao surgir em seu mundo, (o homem) tira de imediato (ao boneco) sua
realidade de boneco; ele perde sua força de persuasão, o encantamento
se rompe e não se nele nada além de sua verdadeira natureza de
papel machê. De madeira ou de pano. Porque o aparecimento do homem
ao espectador a possibilidade de comparar e ele repara então na
imperfeição da aparência e dos movimentos do boneco. [...] O mundo
dos bonecos e o dos homens são separados, eles excluem um ao outro.
É flagrante no que diz respeito ao boneco e ao jogo de sombras irreal.
Tem-se vontade de dizer, para parafrasear Kipling, que um homem é um
homem e um boneco um boneco e que eles jamais se encontrarão.
(PURSCHKE apud JURKOWSKI, 2000, p. 74-75).
Essa preocupação com as novas tendências do teatro de bonecos, logo foi
diluída com as experiências artísticas que se apresentavam - mudança de idéia
visível quando o mesmo autor abre espaço em sua revista Perlicko-Perlacko, em
1958, a escritos como o trecho abaixo transcrito:
O boneco conserva a distância tanto com respeito ao espectador quanto
com respeito à coisa representada. Seus gestos não são naturais”.
Mesmo quando ele imita, ele cria uma distância, ele “mostra” também em
conseqüência o que ele representa. É isso que torna cômica a figura que
imita um pianista virtuoso. É importante compreendê-lo para o estilo do
espetáculo. Tanto nos esforçávamos ansiosamente no final do século
XIX em manipular as figuras da maneira mais dissimulada, mais
misteriosa e mais opaca possível, quanto hoje admitimos revelar o
indivíduo que manipula o boneco... E não é de modo nenhum uma idéia
aberrante reutilizar, no lugar dos fios introduzidos pela primeira vez no
final do século XIX, sólidos tubos metálicos aparentes, para dirigir as
figuras. O espectador deve ficar consciente de que essas figuras são
bonecos que atuam, que é um jogo, uma parábola de nossa realidade,
um jogo observado até mesmo por aqueles que representam (DORST
apud JURKOWSKI, 2000, p. 75).
28
Esse trecho bem reflete as preocupações que nos parecem ainda pertinentes
ao trabalho do ator-animador, na medida em que ele também pode utilizar-se dessas
noções da apresentação da artificialidade do objeto (opalização) ao público na
composição da cena. Claude Monestier (1974), artista do Théâtre sur le Fil, conta
que na pesquisa desenvolvida pelo grupo à época, alguns aspectos da animação à
vista e também da utilização de objetos (que não bonecos) na composição de
personagens, apontavam esse modo de trabalho (animação à vista) como um
caminho que abria maior espaço para que o público compusesse a obra,
preenchendo-a com suas referências. Acrescenta ainda que a visibilidade do ator-
animador corresponde à confissão da materialidade do objeto, levando o público a
identificar-se com ele, ator vivo, colocando-se no mesmo plano que o artista. Para o
autor, essa identificação entre artista e público desperta o interesse do espectador
em assistir a uma ficção e perceber a metamorfose do ator-animador, do objeto-
personagem e dos demais elementos nas criações artísticas particulares de cada
obra. Curci (2007) também percebe que essa renovação da animação à vista levou
a mudanças não apenas na maneira de fazer teatro de animação, por parte dos
artistas, mas reverberou também na maneira de ver, por parte do público. A quebra
com a tradição do animador oculto deixa marcas profundas e fundamentais no que
conhecemos hoje como teatro de animação contemporâneo.
Essa nova maneira de intervir no espaço cênico do teatro de animação trouxe
para o ator-animador uma abertura das possibilidades de experimentações/criações
artísticas e algumas exigências cnicas para que ele dialogue com seus próprios
propósitos artísticos. Por exemplo, exige a pesquisa por uma interpretação
adequada em seu próprio corpo para dialogar com o objeto em cena, segundo as
distintas relações que deseja assumir com o objeto. A presença visual do animador
na cena leva à tomada de funções diferentes, segundo a criação de personagens. O
animador pode levar à cena relações metafóricas advindas da relação real entre
animador e animado (quem anima quem?), ou se transformar em matéria para
“fabricar” uma personagem. Sua presença à vista pode variar desde a máxima
descrição até a criação e expressão de uma personagem ao mesmo tempo em que
interpreta também outra personagem no objeto. Na seqüência o entendimento de
algumas formas de presença nica com o objeto foi apresentado, dado que os
termos voltarão a ser utilizados.
29
b.1. O ator-animador como não-presença:
Presença cênica compartilhada entre o objeto e o ator-animador, na qual o
último utiliza um conjunto de técnicas e artifícios para permanecer o mais possível
despercebido pelo público, procurando não diminuir a carga interpretativa da
apresentação da personagem que está no objeto. Estando no palco como um corpo
que não apresenta personagem e possibilita o movimento do objeto, o animador
pode gerar uma significação de inexistência por convenção ou ele “pode ser
metaforicamente uma “sombrado boneco, como ocorre no Bunraku.” (BELTRAME
e SOUZA, 2008, online).
b.2. O ator-animador como co-presença:
Nessa condição o ator-animador apresenta a mesma personagem no objeto e
em seu corpo. A co-presença pode desdobrar-se em variações, como a co-presença
por complemento, na qual alguns signos dessa personagem são emitidos pelo
animador que complementa outros signos emitidos pelo objeto. Assim, signos
emitidos por meio da mímica facial do ator-animador, por exemplo, podem reforçar o
conjunto de signos emitidos pelo objeto. Outra variação desse modo de estar em
cena é a co-presença por alternância, na qual o animador se coloca em
determinados momentos da encenação como a personagem, alternando a
apresentação da mesma personagem, ora em seu corpo, ora no objeto. De todo
modo, por alternância ou complemento, os signos emitidos visam compor uma
mesma personagem, possibilitando apresentar diferentes perspectivas da mesma.
b.3. O ator-animador como animador:
É a situação em que o ator assume no espetáculo sua própria condição de
animador do objeto. Esse contexto pode originar possibilidades na dramaturgia do
espetáculo como afirma Meschke:
Essa missão pode consistir em mostrar uma relação de contraponto com
o títere como manifestar a total dependência do títere com relação ao
titeriteiro: sim isto não possui vida!. Ou ao contrário. Pode intensificar-se
até resultar em uma competição entre títere e manipulador e em conflitos
entre eles. Mas o manipulador continua sendo o manipulador e sua
participação no que acontece é como tal.
9
(1985, p. 35, tradução nossa).
9
Esa misión puede consisitir en mostrar una relación de contrapunto con el títere como poner de
manifesto la total dependencia del títere respecto al titiritero: !sin este no hay vida!. O al contrario.
Puede intensificarse hasta resultar en una competición entre títere y manipulador y en conflictos
30
Essa modalidade de atuação possibilita também o posicionamento do ator
como deus ex-machina. Nessas situações o animador intervém na cena para
solucionar um problema que é resolvido com sua interferência direta e não via objeto
animado, evidenciando ao público sua condição (de animador), podendo originar o
efeito da opalização, como no caso do clown Gustaf, anteriormente citado.
b.4. O ator-animador como contraparte:
Nessa modalidade de relacionamento com o objeto o ator-animador interpreta
uma personagem apresentada em seu corpo, ao passo que interpreta também outra
personagem no objeto. Exige uma partitura cênica muito clara para as personagens
apresentadas no corpo do ator-animador e no objeto.
A interpretação no teatro de animação é parte, portanto, desse contexto maior
em que essa linguagem se reinventa. O ator-animador antes restrito à animação de
bonecos antropomorfos e fora do alcance visual do público, rompe esses códigos e
avança em experimentações que re-configuraram o que se entende por teatro de
animação e ator-animador. Este último passa a se apresentar também visível ao
público com diferentes possibilidades de presença com o objeto. Seu boneco, agora
tanto pode ser o material em si (como argila, por exemplo), um pedaço de papel ou
um objeto utilitário re-significado na cena. O teatro de animação se aprofunda no
desenvolvimento de espetáculos poéticos e metafóricos pautados, muitas vezes,
pela relação entre o ator-animador e o objeto animado.
1.2. Transformações no teatro de animação: traços da heterogeneidade e
contemporaneidade na linguagem.
Quanto mais se afastava daquilo que se havia estabelecido como teatro de
bonecos, mais difícil ficava de traçar os limites dessa arte. O teatro de sombras
começa a ser visto como uma linguagem abordada sob o termo teatro de bonecos.
O teatro feito com a animação de objetos (que não bonecos) e o teatro com
materiais também são agregados ao termo. O teatro de bonecos se abre à
experimentação e mescla de linguagens de tal maneira que o termo começa a não
dar conta da vastidão da prática. Essa linguagem abriga desde os teatros mais
entre ellos. Pero el manipulador sigue siendo el manipulador y su participación en lo que acontece
es como tal.
31
tradicionais até aqueles em que o hibridismo e o rompimento de fronteiras não
possibilitam identificar com precisão as práticas que pertencem ou não a este campo
artístico.
Assim, as nomenclaturas também sofreram modificações a fim de
acompanhar e dar conta do que se configurava na prática daquele teatro. No Brasil,
à medida que o termo teatro de bonecos parecia não abranger o que se levava à
cena, alguns pesquisadores e artistas, notadamente Ana Maria Amaral, propunham
a utilização de termos como teatro de formas animadas e mais recentemente teatro
de animação. Este último termo, adotado nesta pesquisa, retira o foco da forma
animada (se esta é silhueta-sombra, boneco, objeto utilitário, dentre outras) e o
direciona para o ato que confere a significação de vida às formas: a animação.
Desse modo, o termo abrange diferentes trabalhos, como o teatro de sombras, de
bonecos (incluindo os bonecos constituídos com partes do corpo do ator), de objetos
e máscaras. Abriga também outras formas teatrais mais híbridas como os teatros
apontados por Jurkowski (2000) como “teatro de projeção”, “teatro de matéria” e
“teatro visual”, manifestações teatrais menos convencionais e sem uma terminologia
claramente definida.
A pesquisadora Cariad Astles (2008) apresenta o conceito do teatro de
bonecos
10
(teatro de animação) não mais como um tipo de teatro em que se animam
bonecos, mas como uma abordagem pautada na animação de qualquer elemento de
cena - inclusive o corpo do ator - e com um forte caráter de transformação e
transitoriedade, baseado no conceito de animismo.
A autora observa que esse processo de diluição de fronteiras pelo qual
passou a linguagem desembocou na perda ou na alteração do corpo do boneco. Ela
relata como é cada vez mais difícil encontrar bonecos em trabalhos que se
autodenominam teatro de bonecos (teatro de animação). A autora conta ter voltado
recentemente (2008) de um festival de estudantes de teatro de bonecos em
Bialystok, Polônia, no qual a presença de bonecos era tão escassa que raramente
encontravam-se espetáculos apresentados com eles. Nesse sentido, ela aponta a
10
Como a pesquisadora escreve na língua inglesa, é preciso lembrar que o termo “puppet theatre”
adquire a mesma abrangência que os termos espanhóis e franceses (títere e marionnette). No
Brasil, como antes explicitado, se mantivéssemos o mesmo caminho para a construção da
nomenclatura, utilizaríamos o termo “teatro de bonecos”, substituído em muitos contextos atuais
por teatro de animação.
32
presença do interesse dos artistas por “bonecos” de natureza híbrida, construído por
elementos de diversas fontes. Nas palavras da autora:
[...] o corpo do boneco tem sido substituído por um corpo multiplamente
articulado, criado a partir de diferentes fontes, que geram seu próprio
significado. Com isso, quero dizer que a figura unificada do boneco tem
sido substituída em muitos casos por sombras, projeções e tecnologia
multimídia; por objetos; por matéria e por ação cênica animada que criam
sua própria percepção do “corpo” do boneco. (ASTLES, 2008, p. 53).
Em um teatro de animação de fronteiras claramente definidas o espetáculo é
fundado na apresentação de bonecos nos quais são interpretados personagens bem
delineadas ou seres fantásticos como deuses, espíritos, dentre outros. A
apresentação da personagem é em grande medida marcada pela composição
plástica do boneco. No teatro de animação de fronteiras borradas o corpo do boneco
é articulado por elementos de múltiplas fontes e ganha a cena contemporânea com
um caráter de transitoriedade e de transformação: eles são, muitas vezes,
construídos e destruídos no momento do espetáculo e com materiais ou objetos que
se transformam em outros objetos, sejam objetos de cena ou objetos-personagens.
Destarte, os significados no teatro de animação passaram a se relacionar com a
idéia de criação e transformação no palco, mais do que com a ficção de bonecos
enquanto personagens, traço que tem a marca da ruptura da animação oculta.
Astles acredita que o boneco construído e destruído no palco se caracteriza por
instigar a ampliação da participação do público no processo de criação de
significação da obra.
Nesse contexto, em meio à multiplicidade de elementos na cena, o ator passa
a ser apenas mais um elemento, dando a impressão de que toda a matéria que se
encontra no palco possui vida - noção apresentada no conceito de animismo. Desse
modo toda a matéria que está em sua volta pode manifestar-se - tudo pode ganhar
vida. “Mais do que estar no comando, o bonequeiro com freqüência parece ser
dominado e estar à mercê dos corpos animados à sua volta.” (2008, p. 51).
A pesquisadora observa também que a compreensão e a interpretação das
personagens e da cena, ao se afastar do vínculo da ação apresentada pelo boneco,
passa a uma compreensão mais ampla da relação entre o ator e a matéria, de tal
modo que, por vezes, nem mesmo se animam personagens, mas é forte a presença
da interação com os materiais como produtora de significação. Esses materiais
podem ou não assumir traços de personagens. A autora evidencia que esse teatro
33
híbrido parece “marionetizar” o espaço cênico, ou seja, “o corpo do boneco agora é
o palco inteiro” (ASTLES, 2008, p. 61).
As considerações de Astles não se afastam das reflexões apresentadas pelo
artista Mario Kotliar, que ao tecer o conceito de teatro visual
11
, em 1990, nos oferece
indicações sobre o caráter do teatro de animação contemporâneo:
A arte dramática entrou numa etapa de “composição aberta” onde a
comunicação verbal perdeu sua supremacia e onde as concepções
realistas e psicológicas do teatro não bastam mais. O teatro se encontra
assim submisso à subjetividade dos espectadores que reagem sobretudo
às imagens. O papel do ator perdeu sua importância, e sua situação se
reduziu a de um elemento da composição. Isto abre caminho a um teatro
visual que reúne vários meios de expressão e não é freado pelas
categorias tradicionais porque se volta para as artes plásticas, a poesia,
a música e a dança. No drama convencional, o espectador se encontra
num mundo identificável e, mesmo se esse drama exprime uma
subjetividade, ele obedece a leis universais. No teatro visual, é a lógica
“pessoal” que a lei, repousando sobre as livres associações de idéias
do artista. E o visual sempre suplanta o verbal. As concepções do artista
são às vezes de tal modo herméticas e subjetivas que podem ser
incompreensíveis. É um risco a correr. (KOTLIAR apud JURKOWSKI,
2000, p. 120).
Em seu depoimento podemos observar algumas características encontradas
não apenas no teatro visual, mas também em outros trabalhos do teatro de
animação contemporâneo. O artista fala de um teatro que privilegia o aspecto visual;
que entende o ator como mais um elemento da composição cênica; que aposta na
emissão de signos que possibilitam e necessitam do complemento dado pela
percepção do espectador; que dialoga com as outras artes para a constituição da
obra; e que está pautado na subjetividade do artista.
Joan Baixas diversifica o modo de atuação e se apresenta como pintor e
animador. Ao falar de seu trabalho se auto-define como um animador de sua pintura:
“Pratico um teatro de animação. Animar é dar vida. Animo bonecos, máscaras,
objetos, imagens, fotos. Animo a pintura e a pintura me anima.”
12
. Baixas, no
espetáculo Tierra Preñada pinta com terra uma grande tela que oferece certo grau
de transparência. Essas imagens são combinadas com projeções e música.
11
O teatro visual é considerado por alguns autores como sendo uma vertente do teatro de animação,
ou intimamente a ele vinculado, como podemos perceber nas considerações de Jurkowski, em seu
livro Metamorfoses.
12
Practico un teatro de animación. Animar es dar alma, dar vida. Animo muñecos, máscaras,
objetos, imágenes, fotos. Animo la pintura y la pintura me anima a mi.
34
Desse modo, percebe-se que o conceito de animação se amplia, a forma
animável perde seu corpo integrado, ganhando um caráter de transitoriedade e
transformação na cena, produzindo um discurso mais lacônico. Os materiais
ganham espaço na animação. O teatro de animação contemporâneo se produz do
diálogo com as outras linguagens artísticas, num espaço cênico onde tudo pode ser
animado, podendo inclusive o ator-animador ser visto com um elemento animável.
Por outro lado as formas de teatro de animação tradicional co-existem e alimentam
as experimentações do teatro heterogêneo, assim como outras formas de teatro de
animação homogêneo se desenvolvem. Assim, verifica-se nessa prática teatral um
amplo campo de criações artísticas que são abrigadas sob o termo teatro de
animação.
1.3. Traços do ator-animador:
Entre as discussões que permeiam a linguagem do teatro de animação, a
concepção, a formação e as competências cabíveis ao animador são motivos de
debates entre os artistas/pesquisadores dessa arte. Discussão cabível e
compreensível dado que, sendo tarefa difícil, nos dias de hoje, definir as fronteiras
do teatro de animação, cada modo diferente de realizar esse teatro e seus afins
demanda profissionais com características específicas.
O professor Marcos Malafaia, que compõe a direção do grupo Giramundo
Teatro de Bonecos, em palestra proferida no III Seminário de Formas Animadas,
realizado em Jaraguá do Sul, em agosto de 2006, defende a posição de que, na
contemporaneidade, essa linguagem artística é, sobretudo, uma arte de fronteiras,
dialogando com as artes plásticas, dança, cinema de animação, dentre outras
linguagens. Para ele, aquilo que caracteriza fundamentalmente o animador é sua
capacidade de entender, articular e imprimir movimentos. Em sua perspectiva o
animador o precisa necessariamente ser ator, ensaiando propor uma nova
nomenclatura: o cineplastista. Assim, o animador seria aquele que tem como
característica fundamental a habilidade de movimentar, de animar formas plásticas.
O animador, segundo Malafaia, poderia animar um ator, um boneco de stop-motion
13
ou um bailarino.
13 Técnica do cinema de animação que consiste em capturar por vídeo ou fotografia uma imagem
estática por vez. Cada imagem tem pequena diferença quanto ao posicionamento dos objetos e
partes do boneco ou das pessoas de tal modo que reproduzindo essas imagens em seqüência e
35
O diretor trabalha também com a concepção na qual o animador é aquele que
constrói e manipula o boneco na cena. Essa visão não é particular ao Grupo
Giramundo, mas se faz presente no olhar de muitos artistas brasileiros, que
freqüentemente assumem não somente a função de construtor, mas também a
função de iluminador, de diretor, dentre outras. Ressaltamos que, na abordagem do
presente estudo o que parece caracterizar o animador não é fundamentalmente sua
habilidade para a manufatura do boneco (sobretudo numa concepção que se
estende à animação de objetos do cotidiano), mas sua capacidade de imprimir-lhe
vida em cena.
A proposta de Malafaia com o termo cineplastista afina-se com a importância
atribuída ao movimento na construção de significação presente nesta pesquisa.
Todavia, entendemos que os movimentos realizados no teatro têm também suas
particularidades exigindo mais do que a compreensão de seus fundamentos para o
manuseio de um objeto. Esses movimentos relacionam-se com os demais sistemas
de signos presentes nessa arte em função da composição dramatúrgica
14
. Nesse
sentido é que se trataria de um artista com capacidade de interpretação, nesse caso
particular, uma interpretação mediada pelo objeto. Visto dessa forma, é que
assumimos o conceito do animador como ator, por ser um artista que se utiliza do
conhecimento teatral para o desenvolvimento de seu trabalho. Nas palavras de
Margareta Niculescu:
Poderíamos definir o bonequeiro como o artista que cria formas, formas
no espaço, pequenas ou grandes, bi ou tridimensionais com diferentes
tipos de material. Isto o converte num artista plástico que deveria se
formar numa escola de Belas Artes? O bonequeiro também é um artista
que dá vida a objetos através de movimentos e da energia de seu próprio
corpo. E precisa de uma grande destreza física e imaginação para
traduzir os movimentos do seu corpo em movimentos do boneco. O
bonequeiro seria, assim, mais coreógrafo? Mas também cria situações
dramáticas, o que talvez o aproxime mais do ator. [...] Creio que o
bonequeiro é, essencialmente, uma pessoa de teatro, um artista
intérprete. (NICULESCU apud BELTRAME, 2001, p. 118).
Esse ator, entretanto, possui características específicas que o diferenciam do
ator não mediado pelo objeto, modificando todo seu trabalho de intérprete: fora do
teatro de animação o processo de criação da personagem ocorre no corpo do
numa velocidade adequada tem-se a impressão de movimento contínuo. É popularmente
conhecida no Brasil como animação de boneco de massinha.
14 O termo “dramaturgia” é utilizado nesta pesquisa em sentido mais amplo que o texto escrito,
relacionando-se ao teatro em ato.
36
próprio ator, ao passo que no teatro de animação esse processo repousa sobre seu
corpo em função do diálogo com o objeto, sendo a imagem da personagem
apresentada no objeto.
Joan Baixas, numa reflexão sobre sua prática de ensino sistematizado dessa
arte no Instituto de Teatro de Barcelona, reforça a idéia do trabalho do animador
como uma tarefa interpretativa:
A prática pedagógica me obriga a sistematizar minha experiência
profissional para tentar fazer compreender uma arte da qual os jovens
não têm praticamente nenhum conhecimento. Com eles me dou conta
que o elemento primordial é a interpretação. Nesse sentido, o teatro de
marionetes não se distingue das outras formas cênicas.
15
(1994, p. 40,
tradução nossa).
Baixas discorre ainda sobre a noção de que interpretar não é o mesmo que
manipular. Ele aponta que a manipulação acontece no que entende por Teatro
Visual ou arte das imagens em movimento. Em seu conceito, nessa forma teatral o
ator manipula os objetos e a interpretação limita-se em seu corpo que intervém ou
interage com as/nas imagens. Ele lembra que o verbo manipular significa “trabalhar
com as mãos” e que esse conceito, ainda que se configure como uma parte da
interpretação do ator-animador está longe de contemplar a totalidade de seu
trabalho.
É nesse sentido que afirmamos como premissa desse esforço investigativo o
entendimento de que o teatro de animação é antes, teatro, não podendo, assim, ser
concebido separado dos princípios que regem a linguagem teatral. Entendido como
um ator, todavia, com peculiaridades e saberes específicos, esse artista tem
necessidade de uma formação não apenas teatral, mas ainda mais ampla, de tal
maneira que permita a apropriação de certos códigos e princípios.
O trabalho dos intérpretes no teatro de animação transita desde aquele que
anima o objeto, ao mesmo tempo em que dirige, constrói e ilumina até o ator-
animador que se ocupa exclusivamente da composição da animação. Na relação
com o espetáculo o ator-animador pode ter maior ou menor participação no seu
processo de criação. Todavia, um dos aspectos que parecem permear e caracterizar
a interpretação do ator-animador é a relação dilatada que ele tem com os objetos,
15
La pratique pédagogique m’oblige à systématiser mon expérience profissionnelle pour essayer de
faire comprendre un art dont les jeunes gens n’ont pratiquement aucune connaissance. Avec eux
je me rends compte que l’élement primordial est l’interprétation. En ce sens, le théâtre de
marionette ne se distingue pas des autres formes scéniques.
37
fazendo dele um poeta dos materiais. Essa é a concepção do animador apontada
por Tito Lorefice
16
na qual ele é visto como um poeta, ultrapassando os limites de
mero ilustrador:
O teatro de animação o] território natural da metáfora O fascinante da
posta em cena e dramaturgia para títeres é o desafio de trabalhar sobre o
ilimitado da matéria como elemento expressivo. Quando o poeta titeriteiro
consegue que a matéria transcenda o limite natural de seu silêncio e se
torne eloqüente, o títere se torna insubstituível. (2006, p. 15, tradução
nossa)
17
.
E ainda:
Interpretar (dentre outras coisas), não é somente reproduzir um
movimento no corpo do títere, transferindo o do próprio corpo, senão que
consiste em definir um ordenamento de signos que permitam a projeção
simbólica. É fazer encarnar a metáfora. É poetizar o espaço. É dar alma
a um corpo.
18
(2006, p.16, tradução nossa).
Margareta Niculesco, num artigo sobre a formação para teatro de animação,
questiona: “Qual escola para aquele que escolheu se exprimir pela metáfora?
19
(1994, p.18, tradução nossa). Frase que demonstra sua visão sobre o ator-animador
como um criador de metáforas através da matéria, sendo mesmo a criação de
metáforas uma substância constitutiva da linguagem. Na realização de sua função
interpretativa o ator-animador realizaria a criação de uma poesia em cena que têm a
matéria e o jogo como suporte da metáfora.
1.4. Percurso de transformações, modelagem de saberes:
Em meio a esse efervescente processo de mudanças, entre as discussões de
manutenção e ruptura do teatro de animação homogêneo, verificou-se o início de um
percurso de profissionalização, tanto na Europa dos anos de 1950, quanto no Brasil,
no seio dos anos de 1970. Essa profissionalização caracterizava-se pelas reflexões
acerca das especificidades da linguagem e do animador, e pela busca de novos
16
Tito Lorefice é ator e diretor de Teatro de Animação. É também professor da Escuela de Titiriteros
del Teatro General San Martin, en Buenos Aires, Argentina.
17
El Teatro de Títeres. Território natural de la metáfora. Lo fascinante de la puesta en escena y
dramaturgia para títeres es el desafio de trabajar sobre lo ilimitado de la matéria como elemento
expresivo. Cuando el poeta titiritero consigue que la matéria trascienda el límite natural de su
silencio y se vuelva elocuente, el títere se vuelve insustituible.
18
Interpretar (entre otras cosas), no es solamente reprodicir un movimiento en el cuerpo del títere
transfiriendo el del proprio cuerpo, sino definir un ordenamiento de signos que permitan la
proyección simbólica. Es hacer encarnar la metáfora. Es poetizar el espacio. Es darle alma a un
cuerpo.
19
Quelle école pour celui qui a choisi de s’exprimer par la métaphore?
38
rumos num processo que levou muitos artistas a refletir sobre seu próprio fazer,
tanto técnico quanto poético.
Nesse contexto, alguns saberes são consolidados e expressos de distintas
maneiras, estabelecendo vias de formação para o ator-animador. Dentre os
espaços de formação e divulgação de saberes existentes nesse período no Brasil,
podemos citar a publicação da revista Mamulengo, que congregava informações dos
eventos e grupos de teatro de animação, textos dramáticos e artigos que refletiam
sobre a linguagem; os festivais especializados na linguagem do teatro de animação,
que constituíam um espaço intenso de troca de experiências; as oficinas que tiveram
grande impulso dado pelas organizações associativas nacionais e internacionais e
que, aos poucos deixaram de ser oficinas para iniciantes e se orientaram para o
aprofundamento de conhecimentos na área; o intercâmbio com outros países em
oficinas e festivais; e a formação em escolas internacionais. Estes foram fatores que
contribuíram para a consolidação de saberes nesse contexto. Contudo, a
sistematização escrita aproxima-se mais timidamente do universo do teatro de
animação. Um dos fatores que contribuem para a efetivação da sistematização
escrita é a inserção de disciplinas relativas ao teatro de animação nos cursos de
teatro das universidades brasileiras. Segundo a pesquisa de Valmor Beltrame,
O ensino de conteúdos sobre teatro de animação na universidade teve
como precursores Madu Vivacqua Martins, Teresinha e Álvaro
Apocalypse, professores da Universidade Federal de Minas Gerais, que,
em meados dos anos 70, passaram a oferecer a disciplina optativa
dentro do Curso de Belas Artes. No mesmo período, 1975, na
Universidade de São Paulo, o curso de Licenciatura em Artes Cênicas,
os Bacharelados em Interpretação e Direção Teatral e o Programa de
Pós-Graduação passaram a oferecer disciplinas com esse tipo de
conteúdo, sob a responsabilidade da Professora Ana Maria Amaral.
(2001, p. 52).
Com a professora Ana Maria Amaral a pesquisa escrita se fortalece no Brasil,
com o lançamento de livros sobre a linguagem.
Nossa pesquisa dialoga com alguns desses saberes que se consolidam nas
reflexões escritas de alguns autores.
20
Estes, por sua vez, produzem suas reflexões
pautadas em suas práticas artísticas, sejam elas no desenvolvimento de espetáculos
e/ou como professores. Apresentam diferentes princípios de trabalho que parecem
20
Os autores não se restringem ao âmbito nacional. Foram escolhidos autores com produções que
conseguimos acessar, no idioma francês e espanhol. Adotamos também como parâmetro
trabalhar com autores que estejam vinculados à prática artística e pedagógica.
39
coincidir em uma mesma noção sob diferentes nomenclaturas. São eles: Ana Maria
Amaral (1997, 2002), Anne Cara (2006), Paulo Balardim (2004), Carlos Converso
(2000), Felisberto Costa (2001), Hubert Japelle (1980), Joan Baixas (1994), Michael
Meschke (1988), Pilar Amorós e Paco Parício (2005), Rafael Curci (2007), Tito
Lorefice (2006) e Valmor Beltrame (2000).
Para melhor visualização e organização do trabalho, mapeamos os autores e
as contribuições com as quais dialogamos, apresentando na tabela que se segue.
Para agrupar nos três eixos utilizados na pesquisa, a primeira etapa consistiu em
identificar os princípios apresentados pelos autores. A referência primeira era a
pesquisa realizada pelo pesquisador Valmor Beltrame. À medida que as leituras iam
sendo feitas, íamos acrescentando e agrupando “subprincípios” que se relacionavam
com maior proximidade ou que nos pareceram fundamento de outro princípio. Como
por exemplo, o conceito de “tela de projeção”, encontrado no texto da autora Anne
Cara, foi incorporado no tópico O olhar e a relação frontal”. Após realizar essa
primeira organização, agrupamos os princípios encontrados nos três eixos que se
consolidaram em capítulos do trabalho. Assim, um eixo sustentou as reflexões sobre
a relação do intérprete com o objeto, o outro adentrou na questão da neutralidade
presente no trabalho do ator-animador e por fim estruturou-se um eixo sobre
movimento, dado a importância do tema para a animação de objetos.
40
TABELA
41
1.5. Técnica e poesia: pequena, mas importante consideração em uma
pesquisa sobre saberes artísticos.
Consideramos importante salientar que a proposta desse esforço investigativo
não intenciona esgotar-se em sim mesmo. Vale ressaltar também que visualizamos
a técnica como uma ferramenta que serve à modelagem da poesia pessoal de cada
artista, como aponta Brunella Erulli, ao refletir sobre a relação entre técnica e
espontaneidade na formação em uma Escola: “Para escrever um poema, é preciso
ter aprendido a língua, mas é preciso também ter alguma coisa a dizer com ela.
21
(1994, p. 10).
A técnica apenas faz sentido quando contribui com a criação e consolidação
de uma prática artística. Desse modo, num processo de formação, não entendemos
como um procedimento interessante, oferecer o primeiro contato de um artista
iniciante por meio da apresentação de um conjunto de princípios técnicos. É preciso
encontrar a melhor medida para criar um ambiente propício à experimentação e ao
gosto pelo jogo com a matéria. Essa medida passa pela dosagem entre o
oferecimento de ferramentas para a concretização da inquietação artística, mas de
um modo e num momento em que estas ferramentas não se tornem amarras. Nesse
sentido, Erulli escreve:
A escola tende freqüentemente a se concentrar sobre os aspectos
técnicos – que se transformam em um fim em si – ou ao contrário tende à
negligenciá-los perigosamente, em proveito de uma pretensa
espontaneidade, de uma pretensa liberação das energias do indivíduo
em geral e do ator ou do marionetista em particular.
22
(1994, p.10,
tradução nossa).
O equilíbrio entre os dois pontos é uma necessidade na utilização pedagógica
da técnica, percebendo-a como um suporte para a expressão particular do artista.
Nosso esforço orientou-se no sentido de organizar didaticamente alguns saberes
particulares à interpretação com objetos, para que possam orientar a constituição de
metodologias na formação do ator-animador. O ensino da cnica possibilita o
encurtamento de caminhos para o acesso a ferramentas da criação artística,
oferecendo ao iniciante saberes que foram acumulados e consolidados pelo esforço
21
Pour écrire un poème, il faut avoir appris la langue, mais il faut aussi avoir quelque chose à dire
avec.
22
L’école tend trop souvent à se concentrer sur les aspects techniques – qui deviennent une fin en soi
ou au contraire à les négliger dangereusement, au profit d’une prétendue spontanéité, d’une
prétendue libération des énergies de l’individu en général et de l’acteur ou du marionnettiste en
particulier.
42
de muitos outros artistas no percurso histórico percurso inquieto e sob intensas
transformações – da arte do teatro de animação.
43
CAPÍTULO II:
O ATOR E O OBJETO: A ESCUTA, O DESDOBRAMENTO OBJETIVADO,
DISSOCIAÇÃO E SÍNTESE.
Este capítulo foi reservado às reflexões sobre a relação estabelecida entre o
ator-animador e o objeto na realização da interpretação teatral. Por esse motivo, a
escuta do objeto tem um sentido de aproximação do ator-animador com o objeto, de
percepção das possibilidades oferecidas pela matéria, de experimentação de
propostas do ator-animador ao objeto. É um momento de diálogo, momento de
estabelecer uma cumplicidade importante à realização da animação. O ator-
animador indisponível a esse diálogo perde oportunidades de reforçar os aspectos já
disponíveis na materialidade do objeto e arrisca a frustração da impossibilidade da
imposição de sua imaginação. Acerca dessa relação entre o ator-animador e o
objeto, Clair Heggen nos apresenta uma reflexão consistente com a qual
concordamos:
O objeto, pois, te formaliza, te objetiva, mas ele é também objeção aos
movimentos do corpo e este deve se organizar em função do objeto. Ele
faz também objeção ao nosso pensamento, à nossa razão, não fazendo
aquilo que esperamos dele. Ele nos escapa, se recusa a mexer-se como
quereríamos, nos remete à sua impassibilidade, sua resistência a fazer o
que nós gostaríamos. Ele é exigente, intransigente e sem estado d’alma.
Para mim, o objeto é um grande professor para o ator (ator no sentido
daquele que atua em cena). Meu aforismo preferido neste caso é: “É
preciso fazer com”. Cabe ao ator ir ao encontro do objeto (e não ao
objeto de se adaptar a ele) e resolver a equação que este lhe apresenta
em termos de peso, forma, centro de gravidade, matéria, presença
concreta... (HEGGEN, 2003, online, tradução nossa)
23
.
O desdobrameto objetivado consiste num fenômeno peculiar ao teatro de
animação, no qual o ator-animador, ao mediar sua interpretação pelo objeto, é
solicitado a desenvolver uma capacidade de habitar a dimensão espaço-temporal do
objeto e a sua própria dimensão, estabelecendo uma relação com o objeto por meio
desse mecanismo.
23
L'objet donc te formalise, t'objective, mais il est aussi objection aux mouvements du corps et celui-
ci doit s'organiser en fonction de l'objet. Il fait aussi objection à notre pensée, à notre raison en ne
faisant pas ce que l'on attend de lui. Il nous échappe, refuse de bouger comme on le voudrait,
nous renvoie son impassibilité, sa résistance à faire ce que nous aimerions lui faire faire. Il est
exigeant, intransigeant et sans état d'âme. Pour moi, l'objet est un très grand professeur pour
l'acteur (acteur au sens de celui qui agit sur scène). Mon aphorisme préféré dans ce cas est : « Il
faut faire avec ». C'est à l'acteur d'aller vers l'objet (et non pas à l'objet de s'adapter à lui) et de
résoudre l'équation qui lui pose en terme de poids, forme, centre de gravité, matière, présence
concrète...
44
A dissociação é um princípio que aparece intimamente vinculada ao
desdobramento objetivado, pois se trata também da capacidade de perceber em
dois corpos diferentes (ou partes diferentes do mesmo corpo) o universo da
personagem e aquele do ator-animador. Em decorrência dessa compreensão, a
dissociação é um princípio que aponta para a realização de movimentos
dissociados.
Por fim, o entendimento de que o objeto estabelece uma relação de caráter
sintético em sua produção de significação na interpretação do ator-animador, as
noções de economia dos meios e precisão se agregam ao contexto das relações
estabelecidas com o objeto na composição da animação teatral.
2.1. A escuta do objeto
24
:
Quanto à escuta do objeto, distribuímos seus efeitos em três subtítulos. O
primeiro relaciona o termo com a disponibilidade de perceber os estímulos do
ambiente de trabalho e do objeto animado. Essa disponibilidade não é peculiaridade
do teatro de animação, mas é particularmente exigente nessa arte dada as
particularidades da relação ator-objeto e o caráter sintético da animação. Ainda
tomando a escuta no sentido da atenção, percepção, incluímos o aspecto de que o
ator, para realizar sua tarefa que passa pelo desdobramento objetivado, precisa
escutar, no sentido de observar o objeto que anima para efetivar a composição
adequada à personagem. O segundo tópico reflete sobre o modo como os aspectos
da materialidade do objeto servem à composição dramatúrgica do espetáculo. Por
fim, o terceiro tópico pontua alguns aspectos de como as características concretas
do objeto se interligam à movimentação do objeto para o surgimento da
personagem.
2.1.1. A escuta no sentido da atenção no trabalho:
Do ator no teatro de animação é demandada uma atenção ampliada ao
objeto. Essa atenção é solicitada pelo fato de que tal linguagem é bastante exigente
no que concerne à precisão dos movimentos. Assim, o ator-animador precisa estar
concentrado nos trabalhos que se propõe a desenvolver. Seu corpo e seus sentidos
24
O termo “escuta” foi usado no sentido conotativo para indicar percepção, absorção de informações
pelos sentidos do corpo-mente.
45
se dirigem para o processo de animação, não implicando isso uma atenção voltada
a um único aspecto, mas à atmosfera de trabalho na qual está inserido.
Em cena essa atenção é caminho não apenas para a aquisição da
concentração necessária à animação, mas é fator que colabora para que o público
tenha a impressão de vida no objeto. A postura de envolvimento do ator-animador
(atenção, concentração e convicção na vida encarnada no objeto) convida o público
a envolver-se também na cena.
Essa escuta é também necessária à animação em sua passagem pelo
desdobramento objetivado. O ator-animador inserido nas distintas dimensões
espaços-temporais precisa sempre observar, “escutar” a atuação que está sendo
realizada no objeto, pois é a partir dela que obtém material sobre o qual poderá
desenvolver e afinar seu trabalho de animação. Observando a reação do objeto às
suas experiências, o intérprete poderá selecionar signos (sejam eles gestos,
palavras, sons, dentre outros) à composição da personagem e da cena. O ator-
animador que não se propõe a escutar o objeto na criação de personagens arrisca
interpretar mais em seu próprio corpo do que no objeto, uma vez que pouco ou nada
se disponibiliza a realizar essa exteriorização da interpretação, que seguramente
atravessa a escuta das possibilidades e disponibilidades dadas pelo material. A
escuta tem um caráter de disponibilidade, percepção, apreensão e conscientização
de informações. O ator que não anima objetos pode utilizar essa ferramenta com
relação ao seu próprio corpo. O ator no teatro de animação desenvolve escuta
dupla: a do seu próprio corpo e a do objeto.
Essa atenção sobre o objeto repousa também sobre outro aspecto. O objeto
enquanto matéria plástica emite informações ao blico antes mesmo de receber
qualquer outra informação adicional, seja uma informação dada pelo movimento, luz,
o olhar do ator-animador ou a disposição espacial relativa aos outros objetos e aos
atores/atores-animadores na cena. Trata-se também de sua forma, sua cor, seu
volume e no caso de personagens interpretados em objetos não fabricados para o
espetáculo, trata-se de seu uso na vida extra-teatral, isto é, sua funcionalidade, cor e
matéria da qual é composta. Assim, o ator pode adquirir material a empregar na sua
tarefa de imprimir vida à matéria inanimada observando essas características
funcionais, formais e cromáticas. Nesse sentido, a escuta pode ser compreendida
também como certo nível de consciência da imagem que está sendo gerada pela
animação, podendo refazer ou manter elementos do trabalho, pois o mesmo
46
movimento, por exemplo, origina diferentes imagens se é realizado em diferentes
bonecos.
2.1.2. A escuta na composição dramatúrgica:
Sobre a escuta na composição dramatúrgica, recorremos ao exemplo
esclarecedor e ilustrativo dos professores e artistas Tito Lorefice e Maurício Kartun:
Um aluno apresenta um exercício: um títere feito de gelo que se
enamora de uma vela acesa. Enquanto tenta enamorá-la, se derrete.
Que melhor poderia representar o homem enamorado, de aparência fria,
dura e que, todavia, se desfaz junto à mulher que ama? A água que caía
do títere finalmente apagava a vela e ali terminava o exercício e seu
amor. O personagem não necessitou dizer me derreto por você” nem
explicar o paradoxo de apagar o ser amado com sua própria paixão,
simplesmente o metaforizou da maneira mais eloqüente. (2006 p.15,
tradução nossa)
25
.
A composição de uma cena desse tipo apenas foi possível devido à escuta do
objeto, pois ela parte das características materiais químico-físicas do objeto como
elemento de composição dramatúrgica. Esse exemplo nos auxilia a pensar a
potencialidade poética do uso metafórico dos dados emitidos pela matéria ao
relacionar seus aspectos físico-químicos com os aspectos subjetivos da humanidade
e as relações estabelecidas entre os homens.
Outro caminho interessante da escuta do objeto foi aquele tomado pelo grupo
Tábola Rassa em sua adaptação de O Avarento, de Molière. Em uma cena a
torneira-personagem Elisa, preocupada com a situação, começa a chorar. Para
iniciar o choro, ela abre a torneira que toma o lugar da cabeça na personagem e
quando resolve parar, fecha antes a torneira, fecha a si mesma.
25 Un alumno presenta un ejercicio: un títere hecho de hielo que se enamora de uma vela encendida.
Mientras intenta enamorarla se derrite a su lado. ¿Qué mejor podría representar al hombre
enamorado, de aparencia fría, dura, y que sin embargo se deshace junto a la mujer que ama? El
agua que caía del tere finalmente apagaba la vela y allí terminaba el ejercicio y su amor. El
personaje no necesidecir “me derrito por vos”, ni explicar la paradoja de apagar al ser amado
com su propria pasión, simplesmente lo metaforizó de la manera más elocuente.
47
Imagem 1 – Cena em que Elisa chora e abre a torneira-cabeça.
Fonte: imagem de vídeo, arquivo pessoal
Nessa imagem podemos ver à esquerda a personagem Elisa com a mão em
um de seus olhos que é uma parte da torneira-cabeça. Esta é uma composição
dramatúrgica advinda da sensibilidade da escuta do material dos atores-
animadores/diretores do espetáculo. Eles utilizaram uma característica da
materialidade da torneira que consiste em abrir-fechar para passagem da água e
associá-la à passagem das lágrimas através dos olhos.
É também a estrutura de todo o espetáculo pautada em um aspecto da
matéria: trata-se de associar o problema da água, sua escassez no planeta Terra, às
questões humanas da peça de Molière. A avareza humana é codificada na
adaptação do espetáculo à avareza e desespero pelo acúmulo de água de uma
velha torneira, em um tempo em que a água é escassa. As personagens são
interpretadas em objetos relativos ao universo da água sob a interferência humana
(água canalizada, água engarrafada), dialogando com o material de tal forma que as
torneiras que compõem as personagens guardam uma relação entre o modelo e a
personagem: as personagens mais jovens são torneiras de modelos mais recentes,
as personagens mais velhas são torneiras de modelos mais antigos.
Nas palavras do grupo:
Em nosso caso é a água que serve de eixo à nossa adaptação. Os
personagens dessa comédia não cobiçam mais o dinheiro, mas esse
precioso quido, eles não são falidos, mas estão a seco. É por isso que
todos os personagens são objetos que têm uma relação com a água:
torneiras, tubos de PVC, garrafas, etc.
48
Devido a essa transposição nós nos situamos constantemente no plano
alegórico, justificando o uso dessa família de objetos. Tudo aquilo que diz
respeito à água é que adquire então outra significação e lugar a todo
tipo de trocadilhos e brincadeiras... mas tratamos também de um tema de
extrema gravidade e de uma atualidade preocupante: a falta d’água.
(RASSA, 2008, online, tradução nossa)
26
.
O grupo deixa explícita a consciência do potencial que o objeto engendra na
produção de alegorias ou metáforas que, por conseguinte, podem ser incorporadas
à dramaturgia.
Consideramos ainda relevante transcrever outras palavras que apresentam
um olhar sobre a escuta do objeto, reflexão que evidencia a base sobre a qual o
grupo erigiu o espetáculo L’Avar:
Com efeito, os objetos que os homens criam têm, todos, algum resquício
da humanidade que os engendrou. A simetria, por exemplo, se encontra
tanto no corpo humano quanto em uma torneira, em uma cadeira e
mesmo em uma árvore ou nas nervuras que estruturam suas folhas.
O uso que faz o homem também define o objeto e o dotar de alavancas,
por exemplo, é deixar a marca humana. Assim, se observarmos com
atenção uma torneira, poder-se-á encontrar nela uma fisionomia, uma
máscara e uma sorte de personalidade. Resta em seguida encontrar um
tema que convenha ao gênero de objetos que utilizamos e que, ao
mesmo tempo que os justifica, lhes dá matéria para jogar. (RASSA, 2008,
online, tradução nossa)
27
.
O grupo aponta um aspecto importante da relação da humanização do objeto.
O homem historicamente transforma a natureza, humanizando o meio habitado à
medida que constrói objetos que contêm sua marca. Marcas de suas necessidades,
de distintos estágios e processos de criação, marcas do contexto e organização
social em que vive. Desse modo, o objeto é impregnado de humanidade que pode
ser “escutada” pelo artista na criação da personagem interpretada com o objeto.
26
Dans notre cas c’est l’eau qui sert d’axe à notre adaptation. Les personnages de cette comédie ne
convoitent plus l’argent mais ce précieux liquide, il ne sont pas fauchés mais à sec. C’est pourquoi
tous les personnages sont des objets qui ont une relation avec l’eau: des robinets, des tubes en PVC,
des bouteilles etc.
Grâce à cette transposition nous nous situons constamment sur le plan allégorique tout en justifiant
l’usage de cette " famille" d’objets. C’est tout ce qui a trait à l’eau qui acquiert alors une autre
signification et donne lieu à toute sorte de jeux de mots et facéties... mais nous traitons aussi d’un
thème d’une extrême gravité ainsi que d’une actualité préoccupante: le manque d’eau.
27
En effet, les objets que créent les hommes ont tous quelque reste de l’humanité qui les a
engendrés. La symétrie par exemple se retrouve aussi bien dans le corps humain que dans un
robinet, une chaise et même un arbre ou les nervures qui structurent ses feuilles. L’usage qu’en fait
l’homme aussi définit l’objet et le munir de manettes par exemple, c’est y laisser l’empreinte humaine.
Ainsi, si l’on observe avec attention un robinet on peut lui trouver une physionomie, un masque et une
sorte de personnalité. Reste ensuite à trouver un thème qui convienne au genre d’objets que l’on
utilise et qui ,tout en les justifiant, leur donne matière à jouer.
49
Outra questão que podemos levantar nesse contexto da animação pelos dados do
objeto é a capacidade humana de projetar-se nele, de olhar um objeto e enxergar
nele traços fisionômicos de um ser humano. O grupo aponta ainda a procura de um
tema que esteja afinado às proposições do objeto, ou seja, a partir do objeto, da
escuta de sua materialidade, encontrar idéias que melhor dialoguem com essas
características. Em seguida, a partir desse material - idéias e objetos dar espaço
para o jogo. Dessa forma, as indicações dadas pelo material podem interferir
profundamente na composição dramatúrgica do espetáculo, desde a construção da
personagem até as relações que se estabelecem na cena.
Imagem 2 – Espetáculo L’Avar – Grupo Tábola Rassa
Fonte: http://www.tabolarassa.com
A imagem 02 nos permite visualizar a conformação física de duas
personagens erigidas a partir de torneiras. À esquerda o velho avarento e à direita
seu jovem filho. Nesse caso, diferentemente da cena de exercício dos alunos citados
pelos professores Tito Lorefice e Maurício Kartun, as torneiras não foram
transformadas em personagens enquanto objetos em si. Elas se encontram
adaptadas para compor outra forma, ou seja, elas não se tornaram personagens a
partir somente dos objetos-torneiras, a estes foram acrescentados um vestuário e os
braços dos animadores, a fim de mais aproximá-los à figura humana. Essas
torneiras-personagens estariam entre o objeto extra-teatral e o boneco, nos
50
oferecendo um exemplo dessa percepção da materialidade do objeto para a
configuração de uma personagem entre o objeto de uso cotidiano e o boneco.
O Grupo Giramundo Teatro de Bonecos, no espetáculo Relações Naturais, da
obra de Qorpo Santo, vincula as deformações subjetivas das personagens às
deformações formais dos bonecos. “A adequação do texto à cena foi encontrada
através da correspondência entre a deformação moral das personagens e a
grotesca deformação plástica das marionetes.” (APOCALYPSE, 2000, p. 10).
Imagem 3 – Espetáculo Relações Naturais Grupo Giramundo
Fonte: http://www.giramundo.org/teatro/relacoes.htm
O fundador do Grupo Giramundo utilizou nesse espetáculo a ampliação de
aspectos que considerava de grande importância para a composição de uma
personagem: a construção do boneco: “Digamos que o caráter que queremos
imprimir à nossa personagem aflore até a superfície de suas feições.”
(APOCALYPSE, 2000, p. 66). Nesse contexto, o autor reafirma a idéia de que o ator,
quando interpreta a personagem em seu corpo, representa, a personagem-objeto
não representa, ela é.
Apocalypse visualizava um caminho de composição da dramaturgia para
teatro de animação com base nos aspectos formais do boneco supondo a existência
de uma relação coerente entre texto e imagem enraizada na própria história da arte.
Ele exemplifica que um texto barroco seria muito bem expresso por meio de um
boneco de forma barroca, assim como um texto romântico com um boneco de forma
51
romântica. O autor cita também o caso do Mamulengo, no qual, em sua concepção,
a palavra rude tem seu correspondente na aspereza técnica com a qual se constrói
o boneco. Havendo essa relação de correspondência entre forma e texto,
também a possibilidade de estabelecer relações de contraste, fonte da multiplicação
das possibilidades de novas combinações. Essas relações “dependem do contexto”.
Evidente que esse é um olhar possível para o teatro de animação, sob o qual os
aspectos plásticos têm grande relevância. É um olhar que se insere na poética
própria desse artista que em seu percurso primou pelo trabalho com bonecos
antropomorfos e zoomorfos.
Partindo de outra linha de trabalho, o artista francês Philippe Genty escreve
sobre seu processo de criação de cena, no qual a escuta do objeto também tem
espaço privilegiado. Sobre as etapas de ensaio-criação de cena ele elucida:
1) Dispersão: Durante esta etapa a supressão do julgamento e da
autocensura. Os intérpretes a partir de um tema e por vezes de objetos,
de materiais ou de bonecos, têm o campo livre para se lançar em
improvisações. No curso dessa etapa, o trabalho de escuta é
fundamental no que diz respeito aos intérpretes, aos materiais, que têm
sua dinâmica e resistem às proposições do script e à sujeição do cenário.
(GENTY, 2008, online, tradução nossa)
28
.
Em seu depoimento, Genty evidencia um momento de seu trabalho em que
a presença da improvisação a partir de bonecos, objetos e outros materiais, e
demonstrando clareza de que a matéria possui uma dinâmica própria que propõe
redirecionamentos do roteiro-base, que apresenta resistências às vontades do
ator.
No Mamulengo também podemos observar a relação entre o material com o
qual é construído o boneco e distribuições de personagens. Os soldados no
Mamulengo são bonecos rígidos, como um pedaço de madeira inteiro pincelado. Em
contrapartida, os Babaus e Cassimiros
29
, que driblam em esperteza a tudo e a todos,
28
1) Dispersion : Durant cette étape il y a suppression du jugement et de l’autocensure. Les
interprètes à partir d’un thème et parfois d’objets, de matériaux ou de poupées, ont le champ libre
pour se lancer dans des improvisations. Au cours de cette étape, le travail d’écoute est
fondamental par rapport aux interprètes, aux matériaux qui ont leur dynamique et résistent aux
propositions du script et aux contraintes du décor.
29
A manifestação do Teatro de Bonecos de Mamulengo tem distintas características e recebe
diferentes nomes em cada Estado do Nordeste. Assim, no Ceará ele é denominado Cassimiro
Coco, no Rio Grande do Norte ele chamado de João Redondo, na Paraíba é chamado de Babau e
em Pernambuco, Mamulengo. “O berço dessa linguagem é Pernambuco, por isso o uso da palavra
mamulengo ficou generalizado entre a população” (ESCUDEIRO, s/p, online)
52
são confeccionados no gênero
30
da luva, com toda movimentação de corpo
permitida pela munheca do ator-animador.
Imagem 4 – Capitão de Mestre Pedro Rosa e Soldado de Mestre Luiz da Serra
Fonte: Arquivo pessoal. Foto: CHAN
Com as imagens podemos observar que os bonecos são pouco articulados e
seus corpos de madeira impossibilitam um conjunto de movimentos. Entretanto, no
Mamulengo a polícia e o exército são “caçoados” em sua tentativa de implementar a
autoridade que foi, na realidade extra-teatral, sempre muito repressiva com o povo e
com o próprio Mamulengo.
2.1.3. A escuta na movimentação do objeto:
Outro importante fator da escuta é sua relação com a movimentação do
objeto. A materialidade do objeto interfere em seu manuseio. Por exemplo, um
boneco pesado exige muito da musculatura do ator-animador. É preciso, ao
conceber um boneco, questionar-se sobre a necessidade ou não desse peso. Caso
não seja necessário, indagar-se que outro material poderia substituí-lo. Por sua vez,
evidencia-se a questão da durabilidade, que pode a seu turno, remeter a outras
30
O termo é utilizado na pesquisa no sentido dado por Álvaro Apocalypse (2000) que compreende os
gêneros de animação como sendo as diversas formas de movimentar um objeto, como por
exemplo, o gênero do boneco de luva, o gênero do boneco de fio, dentre outros. Cada gênero
originará códigos particulares, como se fossem “sub-linguagens” do teatro de animação.
53
questões. O Mamulengo, por exemplo, demanda um boneco de material leve, pois é
na maioria das vezes um boneco de luva empunhado durante muito tempo. Exige
também material resistente, pois tem uma dramaturgia cheia de “cacetadas e
pauladas” que atingem a cabeça dos bonecos. Assim é que o mulungu, madeira
típica da região nordestina, preenche as características exigidas. Caso esse boneco
seja construído em material quebradiço, terá sua durabilidade em risco nos primeiros
impacto recebidos na cabeça. Essa leveza comumente encontrada nas cabeças dos
bonecos do Mamulengo pode não ser interessante quando se trata de um boneco
em miniatura animado por fios, por exemplo. Ela pode, no entanto, o representar
um problema à animação de um boneco em miniatura com extensores na animação
direta.
As articulações de um boneco devem ser pensadas segundo os movimentos
que delas serão demandados. Tomando essa noção da relação entre o boneco e as
necessidades do movimento no planejamento da construção, é possível evitar
articulações excessivas que podem atrapalhar a animação, sobretudo ao ator-
animador iniciante. Articulações não ativadas tornam-se suscetíveis à realização de
movimentos e rangidos indesejáveis.
Ana Maria Amaral sublinha a importância da escuta do boneco para o
trabalho do ator-animador:
Para animar um boneco o ator deve observá-lo bem antes, captar sua
essência e procurar transmiti-la. Para dar vida ao inanimado é preciso
ressaltar a matéria, ressaltar essas peculiaridades intrínsecas da
materialidade com que todo boneco é feito.
Essa autonomia, essa vida interior própria que caracteriza o boneco, é
criada a partir de sua construção. Antes de o ator-manipulador animar um
boneco, ou seja, antes de habitá-lo, no sentido de dar-lhe vida, quem o
construiu o habitou, colocou ali um personagem. É verdade que
qualquer objeto inerte pode vir carregado de significações; assim, as
feições de um boneco determinam o personagem. Na construção de um
boneco também são criadas as suas possibilidades cnicas, o que, para
sua encenação, é um fator determinante. (AMARAL, 2002, p. 80).
O caráter da palavra “determinante” utilizada por Amaral nos parece que não
deve ser tomado no sentido estrito, mas no sentido de que o boneco conta ao ator-
animador suas regras e a este cabe o papel de escolher os encaminhamentos dessa
relação no processo criativo: aceitá-las, burlá-las, enfatizá-las como características
físicas ou psicológicas da personagem, etc. Assim, é que no momento da
construção se encontra uma personagem em potencial. Isto tanto do ponto de
54
vista plástico, que imprime um conjunto de signos na pintura, volume e forma;
quanto do ponto de vista das articulações, mecanismos e resistência/maleabilidade
do material com o qual foi construído. Todos esses caracteres são fontes de
informações para a criação e animação de uma personagem. É nesse sentido que o
construtor do boneco está nesse momento começando o processo de animação da
personagem.
Ainda dentro da mesma noção de que o material interfere nas possibilidades
cinéticas em sua animação, Álvaro Apocalypse orienta tomar como referência o
objeto, visualizando suas potencialidades efetivas de movimentação na criação
dramatúrgica:
Conhecendo a limitação natural de cada gênero de manipulação, o autor
encontrará o caminho exato para que a relação forma/gesto/palavra saia
perfeita. (APOCALYPSE, 2000, p.43).
Entretanto, ainda que o boneco seja meticulosamente projetado e executado
em conformidade com tal projeto, o ator-animador precisa, ainda assim, escutar o
boneco. Antever na mente o funcionamento do boneco não elimina as surpresas e
descobertas que a prática pode trazer. Descobertas sobre a maneira mais
coerente de pegar as partes do boneco, de colocar impulso em seus movimentos, de
garantir sua visibilidade em detrimento das mãos que cobrem (quando da animação
direta), de virar com mais facilidade o boneco de luva e, partindo desses achados,
descobrir também posições, gestos, ações e deslocamentos que se ajustem à
relação do ator-animador com os limites e possibilidades do boneco.
Construímos nossas reflexões sobre a escuta na movimentação do objeto
dialogando com a referência do objeto-boneco, mas também percebemos que
quando se trata de um objeto de uso cotidiano ou não-figurativo a posição de escuta
e as descobertas da matéria permanecem. Esses objetos (não bonecos) demandam
ainda mais a escuta do ator-animador. Os objetos utilitários, por exemplo,
deslocados de suas funções primárias, levados ao teatro, exigem que o ator-
animador busque suas maneiras de caminhar, falar, agir, a partir das características
dadas. É assim que, por exemplo, uma caneta ativada por molas pode ser pensada
para andar apenas correndo sua ponta de escrita sobre uma superfície (e o fato de
estar com a ponta para dentro ou para fora pode ser um gesto da personagem),
pode rolar seu corpo cilíndrico sobre a superfície, pode pular sobre a mola que
provoca a saída e entrada da carga de tinta. Todas essas alternativas, por
55
conseguinte, podem representar variações de estados de ânimo da personagem
(alegre, usa a mola para se deslocar; deprimido, a caneta rolaria na horizontal;
normal, escorregaria sobre uma superfície) ou características psicológicas mais
constantes (se é uma personagem mais “elétrica” pode deslocar-se sempre sobre a
mola e representar suas angústias apenas em pulos mais baixos e mais lentos, por
exemplo).
A escuta está fortemente ligada à neutralidade do ator-animador. Balardim
tece a seguinte consideração a esse respeito: “Poderíamos equivaler a neutralidade
a um estado contemplativo, um estado em que nos colocamos a serviço do objeto
animado, auxiliando a atuação das forças da natureza sobre ele.” (2004, p. 88-89).
Ao escutar as leis que regem o objeto, o ator-animador pode encontrar pontos
de atuação de maneira a reforçar, sem maiores dispêndios inúteis de energia, os
movimentos que lhe são mais naturais. Encontrar esses pontos e evitar a impressão
de energia excessiva no objeto pode contribuir para a realização de uma atuação
neutra. No deslocamento excessivo de energia para o objeto o ator-animador arrisca
chamar atenção do público para o seu esforço de transferência e pode ainda
desestabilizar o objeto deixando-o desajeitado ou com movimentos indesejados em
cena.
A escuta do objeto, portanto, refere-se num primeiro aspecto (o da atenção no
trabalho) à disponibilidade de estar no processo de animação do objeto, de colocar
os sentidos no trabalho realizado. Nos outros aspectos apontados a escuta do objeto
implica também colocar os sentidos em função de absorver informações dos objetos
com os quais se trabalha a fim de utilizá-las nos processos de criação da animação
desse objeto, seja ela do ponto de vista dramatúrgico ou cinético. Amaral atribui
tanta importância à escuta do objeto quanto à capacidade técnica oferecida por ele:
“Portanto, a capacidade de o ator se expressar através de um boneco é não
relativa às suas características e possibilidades técnicas, mas também à capacidade
de observá-lo, respeitá-lo e perceber o “nervo vital que vem do seu interior.” (2002,
p. 81).
Com efeito, é de pouca valia um boneco com muitas articulações a um
intérprete com pequena disponibilidade perceptiva, que deseja primeiro impor suas
vontades antes de escutar as variações de funcionamento desse objeto. A escuta
não representa uma passividade do ator-animador ante a matéria. Pelo contrário, ela
56
consiste em unir potencialidades numa relação dialética em que, por um lado, o
objeto apresenta seus dados e a partir deles o ator-animador organiza um conjunto
de elementos orientados para conferir uma aparência de vida autônoma ao objeto.
Por outro lado, esse objeto reage às proposições do ator-animador, devolvendo-lhe
outros dados. Estamos aí, portanto, diante da dialética animador-objeto necessária à
composição cinético-dramatúrgica, à composição da animação. Escutar ou não,
perceber mais ou menos, e o direcionamento dado às informações da matéria é uma
peculiaridade de cada artista.
2.2. Desdobramento objetivado:
O desdobramento objetivado é uma habilidade fundamental na interpretação
com o objeto. Essa habilidade é particularmente exigida no teatro de animação, pois
consiste na capacidade do ator-animador em colocar sua carga interpretativa em
uma forma que é externa a ele. Significa, para o ator-animador, organizar-se
psícofisicamente em função desse outro que é ele (ator-animador), mas ao mesmo
tempo não é. Exige do ator-animador a capacidade de expressar-se em
dissociação
31
, habitando duas dimensões espaço-temporais distintas e agindo
segundo as leis destas duas dimensões: a de seu próprio corpo e o universo
circundante da representação; e as leis do objeto (leis inerentes à sua materialidade)
e aos aspectos teatrais que o orientam (personagem, cena, espetáculo).
O ator-animador argentino Ariel Bufano tece as seguintes considerações:
O ator mantém a preocupação plástica no interior do espaço cênico que
não deixa de modelar e remodelar ao ritmo de seus deslocamentos e de
seus gestos. O bonequeiro por sua vez encontra mais dificuldade para
situar-se no espaço. [Ele] é portador de uma idéia, de um propósito de
ação, mas apesar disso tem de se expressar em um volume distinto do
seu próprio e em outra dimensão espaço temporal. Parece que, no
trabalho do bonequeiro, existem sempre dois níveis de experimentação,
dois planos da realidade, devendo criar um laço "indissolúvel" entre
ambas as condições para desembocar em uma genuína expressão
artística. Essas duas condições são, do ponto de vista psíquico, uma
entidade real: a psique do bonequeiro e a outra imaginária dramática (a
31
Esse conceito é abordado em geral sob dois aspectos preponderantes: a dissociação dos
movimentos realizados no corpo do ator e no corpo do objeto; e como a distinção existente entre
animador e animado e os mecanismos que este tem de desenvolver e desempenhar para
interpretar nessa condição dúbia, diferenciando com clareza a esfera do ator e a esfera do objeto
em prol de realizar os artifícios necessários à composição da animação. A primeira visão
relaciona-se mais ao aspecto físico, cinético e a segunda, que não exclui a primeira, estaria mais
ligada a uma compreensão do ator nessa condição engendrada, no cerne do teatro de animação,
no processo de exteriorização da interpretação no objeto. Esse princípio será tratado na
sequência.
57
da personagem). Em contrapartida, do ponto de vista físico, esses dois
termos são dois corpos em um espaço que, embora aparentemente seja
um não é: são duas dimensões distintas. (BUFANO apud CURCI,
2007, p. 113-114, tradução nossa)
32
.
O ser humano tem uma percepção do mundo que o rodeia, uma imagem de
seu próprio corpo em relação aos demais corpos e objetos, compondo mapas
mentais a partir de nosso esquema corporal. Cria mapas e imagens de seu próprio
corpo com relação aos aspectos volumétricos, espaciais e temporais que lhe servem
de referência para agir e reagir aos estímulos que o cercam. Dito de outro modo,
essa percepção espaço-temporal gera uma noção de um “eu corpóreo”, parâmetro
segundo o qual interagimos com o mundo e realizamos as mais variadas atividades.
Nosso corpo é referência para proporções, distâncias, comprimento, peso, volume e
assim, medimos a distância necessária para alcançar um objeto, para desviar de
uma bola que venha em nossa direção ou pular uma poça d’água numa distância
adequada. Nas palavras de Balardim:
Esta imagem é como se fosse um mapa mental de nossa fisicalidade e
norteia toda nossa relação com o meio externo, pois o corpo, a carne, é o
envelope do que somos no plano mental e espiritual. É por meio do corpo
que nosso ser se manifesta e interroga o espaço ao nosso redor. É por
meio dele que o universo se faz reconhecer e atinge nossa consciência.
(BALARDIM, 2004, p.62).
O ator que não interpreta com o objeto compõe personagens em seu próprio
corpo pautado nessas referências. Ele realiza deslocamentos, constrói gestos,
relaciona-se com o espaço e demais elementos de cena segundo essa noção de si
em relação ao que lhe é exterior. Traz ao teatro o esquema corporal e noções
constituídas ao longo de sua experiência de vida e a coloca a serviço das
necessidades da personagem. Em seu percurso artístico, o treinamento corporal
pode reorganizar seu esquema corporal a fim de desenvolver seu processo de
criação. Entretanto, quando a personagem não é levada à cena em seu próprio
corpo, é preciso que o ator se habitue a transportar-se para o objeto e a perceber o
32
El actor mantiene la preocupación plástica en el interior del espacio escénico que no deja de
modelar y remodelar al ritmo de sus desplazamientos y de sus gestos. El titiritero por su parte
encuentra más dificultades para situarse en el espacio. Es portador de una idea, de un propósito
de acción, pero a pesar suyo se tiene que expresar para lograrlo con un volumen distinto del
próprio y en otra dimensión espacio temporal. Pareciera que en el trabajo del titiritero existen
siempre dos niveles de experimentación, dos planos de la realidad, debiendo crear un lazo
”indisoluble” entre ambos términos para desembocar en una genuína expresión artística. Esos dos
términos son, desde el punto de vista psíquico, una entidad real: la psiquis del titiritero y la outra
imaginaria dramática (la del personage). En cambio desde el punto de vista físico esos dos
términos son dos cuerpos en un espacio que aunque aparentemente es uno solo no lo es: son dos
dimensiones distintas.
58
espaço e seus estímulos a partir desse outro corpo, bem como referenciar-se nas
leis do plano da ficção da personagem. O ator-animador necessita reestruturar seu
esquema corporal para estabelecer essa outra relação com o meio externo mediada
pelo corpo do objeto, sendo capaz de deslocar de seu próprio corpo a pronta reação
para o objeto que manuseia. Esse condicionamento físico e mental permitirá
desenvolver no ator-animador o imediatismo com o qual o objeto reagirá aos
estímulos externos tais quais fossem em seu próprio corpo. É comum o ator iniciante
no teatro de animação reter gestos e movimentos da personagem–objeto em seu
próprio corpo, esquecendo o objeto parado ou com reduzida movimentação no
desenvolvimento de seus gestos e ações.
Na constituição do desdobramento objetivado, o ator-animador pode percorrer
uma relação de projeção no objeto, bem como de dissociação dele. Ele pode
projetar seu “eu” para o objeto, imaginando reações subjetivas, ações, gestos e
movimentos a partir da análise de seu corpo, e adequar essas impressões
recolhidas à realidade do objeto. A projeção é muitas vezes entendida como o
fundamento da animação, como se animar um objeto consistisse em imitar o
movimento humano. Entendemos que o mecanismo de projeção oferece elementos
para a animação do objeto. O ator-animador que possui uma ampla biblioteca de
gestos e ações em seu corpo, freqüentemente tem mais facilidade em transformá-la
em experiências para a descoberta da animação da personagem impressa no
objeto. Nesse sentido, podemos pensar o em imitação do humano ou
transposição dos movimentos e contextos humanos para a animação, mas um
processo de identificação na concepção explicitada nas reflexões de Baixas:
A prática do ator [animador] não consiste em manipular objetos no
espaço, mas em exteriorizar as emoções e as energias pessoais. A
máscara não serve para ocultar e sim para mostrar, tornar visível. [...] No
momento em que ele joga [o ator-animador], ele exibe certos extratos de
sua personalidade que talvez lhe são habitualmente desconhecidos. [...]
O que representa aqui a manipulação [em oposição à animação] se o
ator se imerge intuitivamente nas águas noturnas para pescar o grotesco
e a poesia?
33
(BAIXAS, 1994, p.41-42, tradução nossa).
Em nossa compreensão, o processo de identificação tem um caráter de
provocação, estabelecendo entre ator-animador e objeto uma relação outra que
33
La pratique de l’acteur ne consiste pas à manipuler des objets dans l’espace mais à extérioriser des
émotions et des énergies personelles. Le masque ne sert pas à occulter, mais bien à montrer, à
rendre visible. [...] Au moment où il joue, il exhibe certaines strates de sa personnalité qui peut-être
lui son habituellement inconnues. [...] Que représente ici la manipulation, si l’acteur s’immerge
intuitivement dans les eaux nocturnes pour y pêcher le grotesque et la poésie?
59
extrai do ator-animador uma série de elementos que são acrescentados à sua
biblioteca interpretativa e que não constitui, portanto, simplesmente a extração e
transposição dos elementos existentes. Trata-se da criação de uma outra relação
balizada na presença de um objeto, a partir da qual consolida-se o surgimento de
novos elementos para a interpretação do ator-animador. Outra vez Baixas,
defendendo a animação como algo que se encontra muito além da manipulação: “A
marionete não é um objeto que nós manobramos a nosso bel prazer, mas uma
forma que veicula a expressão de energias profundas e brutais de nosso espírito.”
(1994, p.42, tradução nossa)
34
. A identificação é apresentada nas idéias desse autor
como uma relação nada fácil de adquirir e que se faz indispensável para o
atendimento daquilo que entende como condição primeira da relação entre objeto e
público, qual seja, oferecer ao público a impressão de estar diante de um ser que
possui vida própria.
Na animação de um objeto cria-se, por outro lado, um mecanismo de
dissociação de seu universo, diferenciando seu “eu” psicológico e cinesiológico do
“eu”- personagem do objeto e seu respectivo conjunto cinético. Dos movimentos do
ator-animador derivam movimentos distintos daqueles do objeto. Distintos no sentido
da produção de sentido originada pelo movimento. Para que um boneco acene
numa partida, o ator-animador deverá descobrir que movimento de seu corpo ligado
ao boneco provoca na personagem esse gesto. Assim, é necessário descobrir que
movimentos seus geram os movimentos desejados no objeto, adequando o objeto
ao seu corpo:
Quando aprendemos a dirigir, também somos obrigados a reestruturar
nosso mapa corporal. Passamos a controlar e perceber não apenas
nosso corpo, mas um objeto maior que o envolve. Aprendemos a
reconhecer o espaço tendo como referência o porte do veículo e suas
possibilidades de deslocamento. Pouco a pouco vamos condicionando
nossos reflexos de tal forma que o veículo passa a reagir
automaticamente ao nosso comando. No entanto, não somos nós quem
se desloca, e sim o veículo, comandado por nós. Todo o esquema
corporal e o mapa do ambiente são recriados sob o referencial do
veículo. Com o objeto manipulado acontece algo semelhante a esse
processo. Desenvolvemos uma habilidade em movimentar coisas a partir
de uma competência inata que propicia recriar nossa percepção da
relação do corpo com o meio espaço-temporal. Nosso corpo passa a
“habitar” um outro corpo que se torna o corpo referencial. (BALARDIM,
2004, p. 63).
34
[...] la marionnette n’est pas un objet que nous manoeuvrons selon notre bon plaisir, mais une forme
qui véhicule l’expression d’énergies profondes et brutales de notre espirit.
60
Esse exemplo retirado da vida cotidiana ilustra essa relação com o objeto que
é exterior ao corpo do ator-animador e que exige, para a impressão de um comando,
a referência da relação de objeto com o entorno. O intérprete precisa aprender a
interagir com o meio mediado pelo objeto. Balardim lembra também que essa é uma
competência inata e, portanto, precisa ser aprendida, ante a descoberta dessas
novas teias relacionais estabelecidas entre o “eu”, o objeto e o meio.
Rafael Curci vincula o desdobramento objetivado também ao espaço físico
ocupado pelo ator na animação do objeto. Para ele, o gênero de animação utilizado
determina o ângulo de visão que terá o intérprete para animar a personagem
(animada por cima, por trás, por baixo). Em sua concepção, o animador realiza
desdobramentos específicos para cada tipo de localização espacial do objeto com o
ator-animador. Desta concepção, o autor apresenta o gráfico abaixo:
Imagem 5 - Desdobramento Objetivado segundo Rafael Curci.
Fonte: CURCI, 2007, p. 116.
Ele esclarece que não é o espaço físico e o ângulo de visão o fator principal
de interferência na aquisição e implementação desse princípio, mas o espaço
sensorial que se amplia segundo a percepção de que dispõe o ator-animador no ato
da interpretação. O autor define o desdobramento objetivado como “’a cnica de
dissociação em dois planos que o bonequeiro utiliza para animar objetos, e que está
constituída por uma série de mecanismos psicofísicos que põe em jogo durante a
61
representação.” (CURCI, 2007, p. 116, tradução nossa)
35
. Concordamos e
enfatizamos essa idéia de que os ângulos físicos de visão do animador para com o
objeto são uma realidade inegável no teatro de animação e que esse campo de
visão diz respeito à “visão” sensorial. Essa percepção sensorial é o vetor central do
treinamento para aquisição da capacidade de realização do desdobramento
objetivado. Independentemente do gênero de animação, é a capacidade de habitar,
no ato interpretativo, as duas dimensões espaço-temporais nas quais se inserem
respectivamente ator-animador e objeto, afinando a relação entre essas dimensões,
que caracteriza o desdobramento objetivado como uma ferramenta na interpretação
com objetos.
O professor Tito Lorefice aponta o desdobramento objetivado como sendo um
dos pontos que delineia a peculiaridade do teatro de animação e aquilo que marca a
distinção entre essa linguagem teatral e o teatro não mediado pelo objeto:
No teatro de bonecos se produz o que todos conhecemos como
desdobramento objetivado, isto é, não é mais subjetiva a interpretação
e sim que o mesmo ator que encarna Hamlet não o encarna, encarna-se
em uma coisa, em outra matéria, em outro elemento que está fora de si,
ele mesmo pode ver o corpo de Hamlet entrando em cena. E então me
vinha na cabeça uma frase que dizia Javier Vilafañe sempre, que dizia
que o teatro de bonecos nasceu quando a primeira mancha, quando o
primeiro homem viu pela primeira vez sua sombra e descobriu que era
ele, mas [que] ao mesmo tempo não era. (LOREFICE, 2006, informação
verbal, tradução nossa)
36
.
A interpretação é, pois, objetivada em uma forma a ser animada e o ator-
animador encontra nesse processo uma particularidade fundamental do seu
trabalho, ao passo que não prescinde das leis do teatro em geral. É importante
encontrar dentro das peculiaridades do trabalho com a matéria as afinidades com as
leis da representação teatral e as especificidades tanto técnicas quanto
dramatúrgicas e poéticas que diferenciam essa linguagem, abrindo um universo a
investigar.
35
[...] a técnica de disociación en dos planos que el titiritero utiliza para animar objetos, y que está
constituída por una serie de mecanismos psicofísicos que pone en juego durante la
representación.
36
Palestra gravada no III Seminário de Pesquisa sobre Teatro de Formas Animadas, durante o 6º
Festival de Formas Animadas de Jaraguá do Sul – S.C.
En teatro de títeres se produce lo que todos conocemos como desdoblamiento objetivado, es decir,
ya no es subjetiva la interpretación sino que el mismo actor que encarna Hamlet no lo encarna, se
encarna en una cosa, en otra matéria, en otro elemento que está fuera de si, él mismo puede ver el
cuerpo de Hamlet entrando en escena. Y a esto me vina en la cabeça una frase que dicia Javier
Vilafañe siempre, no, que decia que el teatro de títeres nasció quando la primera mancha, quando
el primer hombre vió por la primera vez su sombra y descobrió que era él pero que a la vez no era
él.
62
O desdobramento objetivado encontra-se presente tanto na animação onde o
ator-animador não é visto, quanto na animação onde ele está à vista como não-
presença. O desdobramento torna-se ainda mais complexo e exigente quando o
animador é também personagem (distinta da personagem interpretada no objeto).
Nessa situação ele precisa desdobrar-se para a interpretação no objeto e realizar a
interpretação de seu personagem. Ele possui um desafio complexo também quando
anima mais de um objeto ao mesmo tempo, podendo ou não ainda, compor
personagem em seu corpo.
O grupo El Chonchón nos oportuniza a observação mais clara dos efeitos do
desdobramento objetivado na animação. O espetáculo Juan Romeu y Julieta María
abre grande espaço à improvisação. Nesse jogo o ator-animador reage no boneco a
todas as provocações externas do público e das demais personagens. Caso o ator-
animador não tivesse desenvolvido sua capacidade para a realização do
desdobramento objetivado, o boneco poderia perder sua carga interpretativa, sendo
a resposta dada no corpo do animador. Tal como no espetáculo citado, os efeitos
deste princípio são mais facilmente observáveis nos espetáculos que trabalham com
improvisação, como também o fazem os mamulengueiros.
Destarte, o desdobramento convoca a percepção do ator-animador a sair de
si e perceber o ambiente a partir do ponto de vista do objeto, levando à realização
da interação do ator-animador com o mundo sob a perspectiva do objeto. O ator-
animador é protagonista e observador ao mesmo tempo. O objeto duplica seu olho,
seu tato, sua audição, seu olfato, duplica a imaginação do ator-animador que tem a
personagem interpretada “diante” de si. Capacidade de percepção importante para a
composição da animação de uma personagem encarnada num objeto.
2.3. Dissociação:
Esse princípio é recorrente na literatura sobre teatro de animação,
apresentando diferentes concepções sobre as quais nos propomos desenvolver
algumas reflexões.
37
Sob o olhar de Balardim (2004), a dissociação refere-se ao uso simultâneo e
independente de diferentes partes do corpo de tal maneira que o ator-animador seja
37
A dissociação se aproxima muito do conceito de Desdobramento Objetivado e por vezes podem
coincidir. Todavia, na realização do desdobramento objetivado é possível que o ator-animador
passe pela dissociação, mas também pode permear os campos apresentados sob os conceitos de
projeção e identificação.
63
capaz de movimentar as partes do corpo necessárias à animação do objeto e
mantenha imóvel ou possua o controle das demais partes. Vale lembrar que esse
movimento ou imobilidade é entendido não apenas como um movimento corporal,
mas também como um movimento psíquico ou uma tensão. Para o autor, a
dissociação, vista desse modo, é essencial para a obtenção da neutralidade,
sobretudo para gerar a ilusão de que a matéria inanimada tem vida autônoma,
especialmente no modo de cena do ator-animador como não-presença.
Amorós e Paricio (2005) citam a dissociação como uma “técnica” que
possibilita ao ator-animador “desdobrar-se” em mais de uma personagem. Nesse
sentido, nos parece que a competência de atuação simultânea em mais de uma
personagem relaciona-se à capacidade de dissociação cinética e psíquica a serviço
de múltiplos desdobramentos objetivados. A dissociação aparece aqui como o
elemento necessário ao ator-animador para desdobrar-se na forma animada,
realizando a dissociação entre o seu “eu-ator” e a personagem-objeto.
Outro autor que trabalha com esse princípio, Carlos Converso (2000), define o
vocábulo de duas maneiras, a saber: a realização de distintos movimentos em
diferentes partes do corpo, principalmente nas mãos e braços; também apresenta o
mesmo sentido apontado por Curci, na qual o ator encontra-se na condição
simultânea de observador e protagonista da representação, devendo dissociar o seu
plano e aquele do objeto.
Na abordagem desta pesquisa a dissociação é compreendida primeiramente
como um fundamento para o distanciamento entre o espaço-tempo da forma
animada e o espaço-tempo do ator-animador. Assim a dissociação é base primeira
para a realização do desdobramento objetivado. Por conseguinte, ocorre a
dissociação cinética e psíquica entre o ator-animador e a personagem materializada.
No exercício da função do ator no teatro de animação lhe é demandada a
dissociação dos movimentos de seu corpo, que pode estar a serviço da realização
de duas (ou mais) tarefas simultâneas, seja animar um boneco de luva enquanto
alcança um acessório dependurado na empanada sem perder o controle da
animação, seja em função de animar mais de uma personagem, uma em cada mão,
por exemplo. Assim, podemos pensar também na dissociação do olhar do objeto e
do ator-animador. O animador que trabalha como não-presença evita grandes
deslocamentos de olhar, não seguindo necessariamente o olhar do objeto, evitando
chamar atenção sobre si com a carga do seu olhar.
64
Compreendemos a dissociação como um princípio de grande relevância à
implementação da neutralidade em seus mais variados dégradés, no sentido de que
o ator-animador ao atingir o controle sobre a realização de movimentos dissociados
possui uma consciência e domínio corporal que lhe permite selecionar os
movimentos necessários ao seu trabalho, bem como desenvolveu no plano mental a
capacidade de guiar-se pelos parâmetros de seu plano e o da personagem
objetivada.
2.4. Economia dos meios, síntese e precisão
O teatro de animação é uma linguagem que trabalha com a síntese. Por mais
que um artista escolha em seu trabalho aproximar-se da realidade, o teatro de
animação é sempre uma composição na qual um elemento pode representar mais
que a si mesmo, mais que aquilo que apresenta enquanto fonte de significação.
Deste modo, um objeto do cotidiano, sem braços ou pernas, pode representar um
ser humano. Ou um boneco que não possui mecanismos faciais pode dar ao público
a impressão de riso ou choro.
A professora Anne Cara orienta o aprendizado do “princípio da economia”
como um princípio fundamental do movimento do objeto. A esse respeito ela
esclarece:
A marionete mais sofisticada permanece muito distante da complexidade
expressiva do ser humano. O registro gestual, e, portanto expressivo, é
sempre limitado pela marionete, e o manipulador poderia ser tentado a
remediar essa carência com um suplemento de movimentos, um excesso
gestual. Mas tratar-se-ia de um erro, de uma contradição fundamental. A
marionete é antes de tudo, e deve continuar sendo, um objeto
sóbrio. A expressividade da marionete é ainda maior na medida em que
ela é comedida e precisa
.
38
(2006, p. 31, grifos da autora, tradução
nossa).
A autora aponta como caminho para a eficácia expressiva uma seleção de
gestos que privilegie aqueles com maior poder de evocação. Aponta, ademais, que o
excesso de gestos é o que confere um caráter de agitação à personagem-objeto,
consistindo em um dos principais defeitos na animação de um objeto. Essa agitação
38
La marionnette la plus sophistiquée demeure très éloignée de la complexité expressive de l’être
humain. Le registre gestuel, et par même expressif, est toujours limité pour la marionnette, et le
manipulateur pourrait être tenté de pallier cette pauvreté par un surcroît de mouvements, une
pléthore gestuelle. Mais il s’agirait d’une méprise, d’un contresens fondamental. La marionnette
est avant tout, et doit rester, un objet sobre. L’expressivité de la marionnette est d’autant plus
grand qu’elle est mésurée et précise.
65
é comum na animação dos atores-animadores iniciantes, por vezes devido a certa
ansiedade em desenvolver no objeto a impressão de vida quando, pelo contrário, um
boneco agitado perturba o processo de impressão de vida e sua recepção pelo
espectador. Após o surgimento dos movimentos de uma personagem, o trabalho do
ator-animador pode consistir numa limpeza, numa eleição daqueles que
potencializam a expressividade do objeto.
Outro artista que sistematizou questões sobre o teatro de animação, Carlos
Converso, levanta ainda outro aspecto relacionado ao caráter sintético nessa
linguagem:
Esta limitação espacial, unida à limitação de movimentos que possui o
boneco em si mesmo, obriga que os movimentos dos bonecos devam ser
precisos, muito claros e também mais exagerados que os do ator vivo.
Enquanto o ator se desloca por um espaço mais ou menos amplo e de
forma natural, o bonequeiro o faz em um espaço reduzido, cuidando para
que seu boneco pareça mover-se livremente.
39
(2000, p.31-32, tradução
nossa).
Esse estudo de Converso é orientado para a animação do boneco de luva.
Por isso, ao citar o “espaço limitado”, refere-se à empanada. Ainda que haja uma
variação do espaço utilizado pelo ator segundo o gênero de animação,
consideramos relevante essa observação do autor como uma questão que interfere
na necessidade de precisão nos movimentos realizados no objeto. Ademais, ele
apresenta também a “limitação da própria construção do objeto, tal como
encontramos nas reflexões de Cara.
O caráter sintético do objeto, ao contrário do que poderia parecer - um
aspecto limitante - lança desafios ao artista nessa linguagem e oferece outras
possibilidades expressivas relativas à própria materialidade do objeto com a qual
trabalha. Possibilidades estas que estão vinculadas à sua forma, ao material de
composição, às cores, enfim, suas características plásticas juntamente com os
outros signos agregados na animação, sobretudo o movimento. A síntese é uma
particularidade dessa linguagem que traz consigo a exigência da economia dos
meios e a precisão. Com relação à economia dos meios, isto significa uma seleção
dos elementos mais expressivos, seja da iluminação, do movimento ou do texto.
39
Esta limitación espacial, unida a la limitación de movimientos que posee el títere en si mismo, obliga
a que los movimientos de los muñecos deban ser precisos, muy claros y también más exgerados
que los del actor vivo. Mientras el actor se desplaza por un espacio más o menos amplio y de
forma natural, el titiritero lo hace en un espacio reducido, cuidando que su muñeco parezca
moverse libremente.
66
Quanto à precisão, trata-se de realizar os movimentos com limpeza e definição, sem
excessos. O excesso de gestos pode provocar o dispêndio desnecessário de uma
energia que pode concentrar-se no refinamento da animação.
Beltrame apresenta a seguinte definição de economia dos meios:
[...] princípio que trabalha com o mínimo de recursos para realizar
determinada ação. Implica em selecionar os gestos mais expressivos, o
movimento preciso, limpo, sem titubeios e claramente definido. É como
compreender que “menos vale mais”, ou seja, não é a quantidade de
gestos que garante a qualidade da ação. (2008, p.28).
Vale ressaltar que essa noção de precisão não significa necessariamente
para um movimento atravessado por grande quantidade de pausas, mas um
movimento realizado com consciência e clareza dessa escolha pelo ator-animador.
Assim, o trabalho desse intérprete passa pela composição, pela organização
dos signos de que dispõe sob a referência do caráter sintético que possui a matéria.
Tito Lorefice afirma:
O títere, dada sua capacidade simbólica, interpreta além de seu papel o
universo que o contém. O titiriteiro se expressa através de um objeto
concreto, mas deve saber que sua arte sintetiza a realidade concreta e a
modifica em uma instância superadora.
40
(2006, p.15-16, tradução
nossa).
Nossa concepção delega ao ator-animador o trabalho e potencial de compor a
animação do modo mais consciente possível, tomando como referência a
característica particular de síntese dessa linguagem, elegendo os meios mais
relevantes e realizando uma execução precisa.
40
El títere, dada su capacidad simbólica, interpreta además de su papel al universo que lo contiene.
El titiritero se expresa a través de un objeto concreto, pero debe saber que su arte sintetiza a la
realidad concreta y la modifica en una instancia superadora.
67
CAPÍTULO III:
A NEUTRALIDADE
No processo de intensa transformação pelo qual passou o teatro de
animação, em que o animador rompeu os modos de ocultamento e passou a co-
habitar a cena com o objeto de modo visível, a neutralidade esteve presente como
um dos aspectos que permeou as preocupações acerca do trabalho do ator-
animador. Nesse sentido, dentre as concepções de neutralidade evidencia-se
constantemente a noção desse conceito como um princípio presente e peculiar à
atuação do ator-animador como não presença. Entretanto, nossa perspectiva de
entendimento desse princípio no teatro de animação afina-se com o conceito
apontado por Jacques Lecoq. Sua proposta contempla a neutralidade como um
estado “anterior a ação, um estado de recepção ao que nos cerca, sem conflito
interior.” (LECOQ, 1997, p. 09). Lecoq investiga em sua pedagogia a máscara neutra
como uma metodologia que possibilite ao ator o alcance desse estado que se
constitui numa condição de disponibilidade à descoberta. O estado de neutralidade
potencializa a interpretação, ampliando, através dos exercícios que colaboram à
constituição desse estado no ator, seu potencial de criação:
Um personagem traz com ele os conflitos, uma história, um passado, um
contexto, paixões. Ao contrário de tudo isso, a máscara neutra está em
estado de equilíbrio, de economia de movimentos. Ela se mexe justo o
que precisa com economia de gestos e ações. Trabalhar o movimento a
partir do neutro permite pontos de apoio essenciais para o jogo que virá.
Porque conhecendo o equilíbrio, o ator exprime melhor o desequilíbrio
dos personagens ou dos conflitos. (LECOQ, 1997, p. 11).
Assim, Lecoq se pauta na proposição de limitações que levem o ator ao
domínio de princípios presentes no estado de neutralidade e a partir deste
conhecimento possa desenvolver o domínio de outros aspectos do trabalho do ator.
As características do corpo neutro são apontadas por Sears Eldredge (1978)
como: um corpo simétrico, centrado, focalizado, integrado, energizado, um corpo
relaxado e envolvido em ser e não em fazer.
Todos esses aspectos relacionam-se ao estado de disponibilidade da
percepção e reação aos estímulos ao qual se submete o ator nesse estado,
conformando um corpo equilibrado e por isso o sentido de simétrico e centrado
explicitado por Eldredge. Trata-se de um corpo energizado, em condição de
disponibilidade, mas sem ansiedade ou excessos, de tal maneira que se configure
68
um corpo relaxado. O relaxamento corporal no estado de neutralidade implica em
manter o corpo sem tensões desnecessárias, sem, contudo abandoná-lo. Em outras
palavras, estamos nos referindo a uma “atenção relaxada”. O corpo envolvido em
“ser não em fazer” pode ser pensado ainda dentro desse estado de disponibilidade
como uma proposição em que o ator mais se dispõe aos relacionamentos e
instruções do jogo do que à busca de compor uma personagem ou um conjunto de
ações específicas:
um corpo neutro está envolvido em ser o em fazer. O corpo neutro
parado não está envolvido em nenhuma atividade que não seja seu
próprio estado de ser, ‘parado’ dentro da ação ‘parar’. Está apenas
envolvido em ‘se fazer presente o que significa ‘estar presente’.
(ELDREDGE, p. 31, 1978, grifos da tradução).
Eldredge acrescenta ainda duas características de um corpo neutro quando
em movimento, a saber: trata-se de um corpo econômico e coordenado. O corpo
econômico utiliza apenas a energia apropriada e necessária para o cumprimento de
uma tarefa, um corpo que evita excessos. A noção de corpo coordenado supõe um
movimento que deve fluir através de todas as partes do corpo, com todas as partes
ligadas em uma relação contínua e coordenada.
Destarte, a neutralidade é um princípio relacionado à capacidade de realizar o
desdobramento objetivado, à capacidade de transferir ao objeto a comunicabilidade
entre o interior do artista e o exterior. Essa condição demanda do ator-animador
pensar sob a referência dos traços da personagem-objeto e reagir aos estímulos
através do objeto, exigindo desse artista um acentuado nível de disponibilidade. O
desdobramento objetivado é um mecanismo do ator-animador intimamente
relacionado ao estado de neutralidade. Para o artista e pesquisador Paulo Balardim,
Estar em estado neutral é abrir uma porta de comunicação com o
inanimado. É necessário diminuir o ritmo do corpo para ajustar-se ao
nível de consciência do inanimado. O objeto é mais lento e mais
silencioso do que o corpo humano e, por isso, é necessário desenvolver
uma escuta exacerbada. (2004, p.88).
Portanto, o princípio da neutralidade diz respeito a um estado em que é possível
o deslocamento da centralidade do “eu” do ator-animador para coabitar o “eu” do
objeto, por meio do ajuste da intensidade da presença do corpo desse intérprete de
modo a dar espaço para que se amplie a presença do objeto. Nessa mudança de
intensidades, a escuta do objeto se entrelaça na constituição da neutralidade a fim
de conhecer as características e a metodologia mais adequada nesse processo de
69
ampliação da intensidade da presença de cena do objeto. Balardim sublinha a
importância da neutralidade para o ator que trabalha com objetos como sendo uma
condição para o desenvolvimento desse tipo de linguagem teatral. Paulo Balardim é
também um autor que identifica a neutralidade não apenas como uma opção de um
modo de estar em cena. Para ele a neutralidade é um estado assumido pelo
animador na busca de direcionar a percepção do público para o objeto e fazê-lo
entrar no jogo teatral no qual este objeto é autor de ações e emoções em meio às
situações postas em cena na função de personagem. “O estado neutral é a
preparação para o ator abandonar o próprio corpo à interpretação, é a comunhão
com o objeto manipulado, é a valorização da força que o objeto pode expressar
imbuído com a nossa expectativa.” (BALARDIM, 2004, p. 88). Para esse estudioso
do teatro de animação a neutralidade pode ser a “palavra-chave” para a animação
bem executada, que é uma referência que organiza todo um mecanismo de estar,
de se relacionar com o objeto.
Esse princípio cnico é também parte do trabalho do ator-animador na
concepção de Beltrame:
A neutralidade” é aqui concebida como predisposição do ator-animador
para estar a serviço da forma animada, tornar-se invisível” em cena,
atenuar sua presença para valorizar a do boneco. Supõe eliminar
caretas, suspiros, olhares e economizar gestos do ator-animador para
evidenciar as ões do boneco. Trata-se de trabalhar com a noção de
consciência de estar em cena, o que exige movimentos comedidos,
discretos, elegantes, suficientes para que se remeta o foco das atenções
ao boneco presente na cena e não ao seu animador. Quando os gestos
do ator-titeriteiro são mais eloqüentes que a presença do boneco, cria-se
um duplo foco que desvaloriza a cena. (2008, p.36).
O pesquisador apresenta uma definição que contribui para aclarar o
entendimento da neutralidade relacionando esse princípio com a consciência da
presença cênica. É fundamental que o ator-animador tenha o maior grau de
consciência possível de seu corpo e de sua relação no espaço. Portanto, o ator-
animador não procura nesse estado de neutralidade um corpo sem energia ou
atenção, como antes mencionamos. Pode ser um corpo ausente para a visão do
público, mas totalmente presente na atuação realizada com o objeto. Nesse sentido,
nos referimos a um corpo reorganizado para atender às exigências da animação de
um objeto, um corpo presente, consciente e preciso, reforçando a noção da
neutralidade como um estado do ator-animador. Dentro dessa concepção este
passa a ser um princípio presente nos variados modos de animação de objetos, ao
70
contrário do conceito mais recorrente que toma a neutralidade como um princípio da
atuação à vista. Embora o corpo do ator na animação oculta não seja a imagem
final com a qual se depara o público, ele é o responsável pela apresentação dessa
imagem e, portanto, organiza-se em função da representação.
A neutralidade contribui ainda para a inserção do público na relação com o
mundo inanimado, ela colabora para o direcionamento da atenção do blico para o
objeto, eliminando ao máximo o foco desnecessário sobre o ator-animador. Balardim
também sinaliza nessa direção quando escreve que “essa neutralidade do animador
é o meio de mostrar que a importância está no objeto manipulado, que é ele que irá
produzir a emoção almejada pelo público” (2004, p. 88). Assim, o movimento do
ator-animador, afinado às necessidades do modo da presença em cena, precisa
evitar o desperdício de energia com excessos gestos e ações, bem como deve
controlar seus movimentos faciais. O ator-animador realiza movimentos voluntários e
movimentos espontâneos. Para a neutralidade deve controlar os movimentos
voluntários segundo a necessidade da animação, utilizando a menor quantidade de
movimento e a melhor qualidade dele, procurando também suavizar os movimentos
involuntários e eliminar os residuais, pois “qualquer movimento imotivado, por
pequeno que seja, se nota e molesta o que o contempla. Quando o bonequeiro faz
pequenos movimentos com a cabeça para ver as marcas do chão parece que lhe
falta concentração.”
41
(MESCHKE, 1988, p. 32, tradução nossa). Na cena, na
animação de um objeto, o pequeno movimento torna-se grande, pois se trata de um
espaço diferente do cotidiano, com signos sintéticos e um espectador atento.
Meschke aponta não apenas que todo movimento está sob a possibilidade de ser
percebido e com isso oportuniza uma cena “suja”, mas que o impacto de certos
movimentos pode ser percebido pelo espectador como desconcentração ou descaso
com o trabalho realizado. Outro aspecto que contribui para trazer e manter o foco
do público sobre o objeto animado é apontado por Anne Cara (2006) como a
“postura de serviço”, que consiste principalmente no ajuste do corpo e do olhar para
direcionar a atenção do animador sobre o objeto e assim orientar o foco do público
ao objeto. À postura de serviço pode-se incluir a “máscara de impassibilidade” como
uma organização facial que busca eliminar todos os movimentos voluntários e
41
Cualquier movimiento inmotivado, por pequeño que sea, se nota y molesta al que lo contempla.
Cuando el titiritero hace pequenos movimientos con la cabeza para ver las marcas del suelo
parece que le falta concentración.
71
controlar ao máximo os movimentos involuntários da musculatura facial. Nesse
sentido, tanto nos músculos do rosto, quanto nos demais, é importante identificar e
desfazer os pontos de tensão desnecessários, buscando um corpo relaxado para
evitar que esses pontos de tensão dividam o foco do público entre objeto e o corpo
tenso do ator-animador quando essa não é a proposta do artista.
Enfim, a neutralidade é vista nesta pesquisa como um mecanismo físico e
psicológico, no qual o ator-animador passa por um processo de “esvaziamentode
qualquer coisa que possa sufocar a presença animada do objeto.
3.1. A neutralidade e o ator-animador à vista:
Quando aparecem as propostas estéticas com animação à vista, a
preocupação com o princípio da neutralidade vai encontrar-se como um dos
aspectos centrais. Meschke conta que os atores-animadores e diretores enfrentam
novos desafios com a chegada da animação à vista. Ele afirma que “o [ponto]
negativo é que o corpo do bonequeiro compete com a figura
42
[para obter a] atenção
do público e, inclusive, distrai a concentração.” (1988, p. 32, tradução nossa)
43
. O
depoimento de Meschke aponta que, ao colocar atores-animadores à vista, no
começo dos anos de 1950, procurava em sua pesquisa artística “elevar e melhorar a
situação cênica” dos animadores bem como articular questões pertinentes ao
espetáculo em si. Para tanto, “pensava que se o conteúdo era o suficientemente
forte, o espectador ia aceitar o bonequeiro visível, como acontece no bunraku. O
bonequeiro tinha que ser visto o suficiente para que se notasse sua existência, mas
sem distrair. Ser visto e não ser visto.” (1988, p. 32, grifos do autor, tradução
nossa)
44
. O diretor sueco refletia naquele momento de sua prática um caminho para
o desvelamento do ator-animador, numa neutralidade adequada às situações em
que a personagem do objeto seja de fato aquele que retenha a atenção do público,
isto é, o ator-animador como não-presença. Para tanto, seu primeiro parâmetro foi a
organização de um todo cênico que se mostrasse ao público de tal maneira que a
presença de cena do animador soasse menos interessante que o papel
desempenhado pelo objeto. Ele atribui ao puro exibicionismo a motivação do ator-
42
Nesse texto de Meschke, figura está no sentido de boneco-objeto.
43
Lo negativo es que el cuerpo del titiritero compite con la figura en la atención del público e, incluso,
distrae la concentración.
44
Pensaba que si el contenido era lo suficientemente fuerte, el espectador iba a aceptar al titiritero
visible, como pasa en el bunraku. El titiritero tenía que verse lo justo para que se notara su
existencia, pero sin distraer. Ser visto y no ser visto.
72
animador que se apodera do interesse do público em prejuízo da atenção que
deveria incidir sobre o objeto animado. O homem como ser social sabe, ainda que
em diferentes níveis de consciência, que o corpo humano move-se, age e gesticula
emitindo significações referentes aos sentimentos, pensamentos e emoções. Os
gestos do corpo humano possuem uma bagagem histórica implícita e revelam uma
atividade mental. No movimento do corpo o estado psicológico transborda. Assim,
ante o objeto inanimado, o corpo humano chama a atenção do público para si,
sendo necessário mensurar e ajustar a intensidade de sua presença em cena, seus
gestos, respiração, olhares, caretas, a fim de beneficiar a atenção do blico para a
personagem no objeto.
No intuito de alcançar o objetivo de uma proposta de ausência máxima do
ator-animador, alguns artistas optam por vestir-se de preto, cobrir o rosto ou mantê-
lo descoberto sem maquiagem e cabelos presos. Todavia, embora esses pontos
contribuam para manter o olhar do espectador sobre o objeto animado, as
experiências apresentadas pelos distintos artistas demonstram que outros aspectos
se configuram de fato como os pontos centrais para obtenção dessa modalidade da
neutralidade: a animação do objeto, o modo como ele é movido e inserido na
composição do espetáculo, a postura e movimento do corpo do ator-animador e sua
maneira de estar em cena. Para Curci, “[...] a neutralidade resulta mais ou menos
efetiva de acordo com como ou de que maneira o bonequeiro utilize suas fontes
motoras (física, gestual e vocal).” (2007, p. 122, grifos do autor, tradução nossa)
45
.
Para ele, quando o animador à vista não utiliza o rosto coberto, não deveria
transferir sua voz à personagem representada no objeto, deixando, desse modo,
mais clara, limpa e compreensiva para o público a relação de ausência e presença
entre animador-objeto (animador ausente e objeto presente). Esse critério de
utilização da voz consiste, em seu conceito, num requisito para a atuação à vista do
animador como não-presença. Como alternativas à utilização da voz do ator, Curci
sugere recorrer a outros artifícios, como a gravação em CD’s ou manifestar a voz da
personagem por meio de outro intérprete que se coloque oculto à visão do público.
Temos acordo com o autor sobre a importância atribuída ao controle e
consciência do corpo do ator-animador - conforme delineamos em nossas
afirmações antecedentes. Entretanto, entendemos que o ator-animador, ao animar a
45
[...] la neutralidad resulta más o menos efectiva de acuerdo a cómo o de qué manera el titiritero
utilice sus fuentes motoras (física, gestual y vocal).
73
personagem com o rosto descoberto, pode ser fonte vocal e obter uma neutralidade
onde sua presença seja significada como ausência pelo público. Podemos observar
essa situação no espetáculo O Velho da Horta da Cia. Pequod.
Imagem 6 – Espetáculo O Velho da Horta
Fonte: imagem extraída de vídeo, arquivo pessoal.
Neste espetáculo, o intérprete que anima a cabeça, aquele que se situa no
meio na imagem acima, é a fonte vocal do boneco. Embora seja impossível deixar o
rosto sem nenhuma expressão, sobretudo com a vocalização que exige o
movimento de vários músculos do rosto, o ator-animador se expressa com o mínimo
de movimentação facial possível (apenas o necessário para a exteriorização do
assobio). A imagem acima foi extraída do início do espetáculo. Nela, o ator-animador
assobia, mas não interpreta em sua expressão facial os sentimentos da
personagem, que cantarola alegremente. Todavia, mesmo que o animador como
não-presença reduza ao máximo a intensidade de sua presença em cena, não
poderá passar completamente despercebido. Meschke (1988) afirma que por mais
que o animador tenha grande capacidade de ficar despercebido, sua presença é
sentida. Essa presença não pode ser eliminada, pois tudo aquilo que está em cena
adquire um significado. Balardim (2004), que também compartilha da mesma
compreensão, sublinha alguns desses significados, tais como o contraste entre um
corpo vivo ao lado de um corpo inerte e silencioso, gerando uma reafirmação do
74
ator-animador vivo; a condição do ator, daquele que anima o objeto, lhe confere uma
carga semântica; as diferenças de escalas podem levar à associações de tamanho e
força, nas quais a personagem-objeto, sendo menor é mais frágil e quando este é
maior, pode causar a sensação de que o pequeno humano pode dominar o meio.
Quando o ator-animador está em cena por contraparte, evidentemente ele
trará atenção para si, assim como a atenção estasobre o ator-animador presente
em cena por co-presença. As reflexões aqui expostas procuram apontar no sentido
de que o ator no teatro de animação pode apreender princípios e cnicas
adequadas para direcionar a atenção do público para o componente desejado no
espetáculo, seja ele a personagem em seu corpo ou no objeto. A neutralidade pode
ser uma ferramenta a serviço do ator-animador para que este possa direcionar a
percepção do público nos momentos e durações necessárias à compreensão clara
do foco da cena.
Na atuação à vista por co-presença, o ator-animador pode optar por transitar
entre momentos de não-presença e outros momentos de atuação em seu próprio
corpo, direcionando a atenção do público. O grupo Tábola Rassa, por exemplo, que
desenvolve a animação de objetos relacionados ao universo da água, como
torneiras e tubos de PVC, realiza uma transição entre a neutralidade ajustada à não-
presença e a neutralidade na interpretação para complementar a interpretação
engendrada no objeto. Nesse trabalho do grupo, o trânsito entre esses dois modos
de presença cênica é conseguida por meio de uma cortina de luz, roupas pretas e
uma partitura cinética adequada dos atores-animadores. O complemento da
personagem aparece concentradamente no rosto dos animadores e alterna entre
aparecer e desaparecer na cortina de luz. O que se percebe é que esses artifícios
configurados para essa proposta realizam uma neutralidade na interpretação por
complemento que reforça as características das personagens ao invés de dividir o
foco da atenção. A percepção do espectador ocorre globalmente, sem haver uma
separação da atenção, concentrando todos os signos emitidos pelos intérpretes
como se eles adviessem da personagem-objeto. No espetáculo é expressiva, nesse
sentido, a cena interpretada pelo ator-animador Olivier Benoît, quando anima uma
personagem-torneira que é caolha. A torneira tem apenas um registro para fechar a
passagem da água enquanto outras personagens-torneiras possuem dois,
informação que contribui com a composição da noção de uma personagem caolha.
A torneira na qual se interpreta o avarento também possui apenas uma maçaneta
75
para fechamento sendo que esse mecanismo é centralizado com relação a um eixo
central imaginário, o que favorece na outra torneira a impressão de assimetria no
olho. Mas é a interpretação do ator-animador, com um olho fechado, articulado com
uma voz e movimentos daquela personagem que oferecem ao público a certeza de
estar diante de uma personagem caolha. Essa impressão não acontece como se
estivéssemos diante de uma torneira e um ator caolho, como corpos distintos, mas é
apreendida pela percepção apenas com a figura da personagem caolha, sem a
percepção permanentemente consciente de que é o ator-animador que emite esse
signo da personagem-torneira.
Imagem 7 – Espetáculo L’Avar: a personagem caolha.
Fonte: imagem extraída de vídeo, arquivo pessoal.
É importante observarmos que na realização desse trabalho o ator-animador
necessita afinar a neutralidade selecionando os movimentos convenientes à atuação
por co-presença, atentando para eliminar os excessos que concentraria o olhar do
público preponderantemente sobre si mesmo. Para isso, possui um corpo sem
tensões musculares desnecessárias, o olhar voltado para o objeto, um corpo que
tem consciência dos corpos e objetos no espaço, lhe permitindo inclusive
improvisações com base nessas referências. Um corpo concentrado, atento e
disponível à relação com o entorno.
76
Outra maneira de atuação por co-presença pode ser observada no espetáculo
Peer Gynt da Cia. Pequod. Neste espetáculo, o ator-animador Mário Piragibe, que
materializa a personagem protagonista pela animação de um boneco, também
materializa a mesma personagem em seu corpo. Ele executa co-presença por
complemento da personagem e também executa co-presença por alternância da
interpretação, que se dá em alguns momentos no corpo do ator-animador e em
outros momentos no boneco.
Na cena da qual extraímos as imagens abaixo, podemos observar as duas
maneiras citadas de co-presença: por complemento e por alternância. Na primeira
imagem, temos as duas personagens-bonecos que conversam.
Imagem 8 - Espetáculo Peer Gynt. Seqüência de imagens - neutralidade e co-presença.
Fonte: imagem extraída de vídeo – acervo pessoal.
Em seguida (imagem 09, abaixo), o ator-animador que executa a voz e
também a animação da personagem Peer Gynt, sai para girar o mecanismo que
elevará a atriz-animadora que anima a boneca-mãe. Quando o ator-animador se
retira, dizendo ainda o texto da cena, deixa o boneco sendo animado por outro ator,
mas leva o público a entender que a personagem agora está também em seu corpo.
Nesse caso, a personagem ficou no ator-animador e no boneco durante certo tempo,
pois enquanto ele vestia a personagem em seu corpo, a interpretação no boneco
mantinha-se. Na imagem 11, da direita, abaixo, o ator-animador se desloca (por trás)
em direção ao mecanismo e o boneco continua atuando.
77
Imagem 09 e 10 - Espetáculo Peer Gynt. Seqüência de imagens -neutralidade e co-presença.
Fonte: imagem extraída de vídeo – acervo pessoal.
Nas duas imagens subseqüentes (12 e 13) é possível perceber que o boneco
continua como meio de interpretação da personagem, animado somente por um dos
atores-animadores, enquanto o animador que realiza a voz (que o aparece nestas
duas imagens) interpreta também.
Imagem 11 e 12 - Espetáculo Peer Gynt. Seqüência de imagens -neutralidade e co-presença.
Fonte: imagem extraída de vídeo – acervo pessoal.
Na imagem seguinte (13) podemos ver o ator-animador que é a fonte vocal no
canto esquerdo, girando a roldana, e o boneco já não aparece em cena.
78
Imagem 13 - Espetáculo Peer Gynt. Seqüência de imagens - neutralidade e co-presença.
Fonte: imagem extraída de vídeo – acervo pessoal.
Na última imagem (14), a personagem Peer Gynt, instalada somente no corpo
do ator (no canto direito da imagem, à frente), conversa com a outra personagem
que nesse momento também se encontra interpretada no corpo da atriz (suspensa
por uma corda) que segura a boneca em suas mão.
Imagem 14 - Espetáculo Peer Gynt. Seqüência de imagens com neutralidade por co-
presença.
Fonte: imagem extraída de vídeo – acervo pessoal.
79
Com as imagens dessa cena procuramos mostrar a alternância entre o corpo
do boneco e do ator-animador na construção da mesma personagem. Vale observar
o mecanismo de transferência de um suporte a outro, usado nesse caso para
realização da alternância. Esse mecanismo consistiu da manutenção dos dois
corpos interpretando a mesma personagem durante um pequeno período de tempo.
Em outra passagem do espetáculo, a transferência da personagem é dada pela
transferência do olhar. O olhar do boneco é conduzido para o ator-animador e este
direciona o seu para o acontecimento da cena, ao passo que o corpo do boneco
desfalece, representando nesse jogo a entrega da personagem.
Na mesma seqüência de imagens podemos tomar um exemplo de co-
presença por complemento na atriz-animadora que interpreta a mãe de Peer Gynt.
Nas quatro primeiras imagens (9, 10, 11 e 12) ela executa a fala e os demais
movimentos da personagem na boneca-mãe. Na quinta imagem (13) podemos ver o
momento em que ela começa a ser puxada pela corda que a suspende no alto.
Quando ela está sendo suspensa, há a alternância da personagem para o seu corpo
e em seguida ela realiza uma interpretação por complemento, pois a boneca fica
exposta de maneira que empresta sua imagem plástica à personagem além de
executar pequenos gestos com a mão. Todavia a atriz-animadora também coloca
em seu corpo a personagem, como podemos ver na última imagem (15), quando ela
aponta seu dedo enquanto fala com Peer Gynt. O complemento realizado aqui tem
um caráter distinto daquele utilizado no espetáculo L’Avar, anteriormente
mencionado, pois enquanto neste o ator-animador complementa com menor
quantidade de signos aquilo que o boneco realiza e que constitui a maior fonte
emissora de signos, no caso dessa cena de Peer Gynt o boneco entra com a menor
quantidade de signos emitidos na composição dessa personagem que se faz pela
conjunção dos dois emissores de signos, o ator-animador e o boneco animado.
46
No espetáculo O Incrível Ladrão de Calcinhas, o ator-animador utiliza três
modos de presença de cena da animação à vista: o ator-animador como não-
presença, o ator-animador se assumindo como animador e também atuando por co-
presença. Na maior parte do espetáculo Willian Sieverdt encontra-se como não-
presença, seja animando o boneco com o qual realiza a co-presença ou na
animação das demais personagens-bonecos do espetáculo.
46
Esse espetáculo é rico em situações de co-presença.
80
No começo do espetáculo, antes de manusear qualquer boneco, o ator
aparece como a personagem-detetive que em seguida será representado no
boneco, realizando a co-presença por alternância. A atuação por co-presença
acontece em pequena dose nesse espetáculo. Além do momento inicial do
espetáculo, outro exemplo é quando o boneco faz menção ao ator-animador, através
de um gesto, dizendo que não pode confiar nem em si próprio. O primeiro momento
de co-presença citado desse espetáculo é dado pelos signos emitidos no conteúdo
da fala do ator-animador e pelo figurino utilizado que se apresenta igual ao do
boneco. No segundo exemplo, pelo conteúdo da fala e gesto de cabeça que aponta
para o animador.
O artista pode desenvolver, como vimos, distintas maneiras de co-presença
com o objeto animado. Essas maneiras atrairão, conseqüentemente, questões a
serem ajustadas às necessidade do trabalho de cada artista e o desenvolvimento da
proposta da obra em construção. Assim, a Cia. Peqod estabelece passagens para a
realização da alternância, mantendo os dois corpos habitados pela personagem em
cena por certo tempo ou pela entrega do olhar e modificação do estado dos corpos
(desfalecido ou em interação na cena). A Cia. Tábola Rassa, no espetáculo LAvar,
faz a co-presença por complemento sobretudo por meio da mímica facial. A
transição entre co-presença e não-presença se dá, sobretudo, pelo aparecimento ou
desaparecimento do rosto do ator-animador na cortina de luz. No espetáculo O
Incrível Ladrão de Calcinhas a passagem é trabalhada principalmente pelo foco do
ator-animador e do boneco e os conteúdos das falas.
A composição da personagem na animação à vista por co-presença abre a
possibilidade de variados ângulos de apreensão de uma mesma personagem pelo
público, que se ampliam as fontes emissoras de signos abrindo a combinações
compositivas que possibilitam o alargamento do campo de significações. Entretanto,
proporcionais à abertura de possibilidades são as exigências técnicas. É necessária
grande precisão na execução das convenções e transições, bem como uma medida
coerente dos signos emitidos pelo ator-animador na interpretação por co-presença
para que não sejam excessivos, sob o risco de confundir o espectador, caso esse
processo de criação de personagem em diferentes corpos não fique claro e preciso.
Essa maneira de compor no teatro de animação disponibiliza um campo de
possibilidades expressivas conforme os diferentes modos de organizar os signos
emitidos pelos elementos na cena.
81
O ator-animador pode levar à cena também a relação com o objeto na qual
assume sua função de animador. Essa opção pode ter também distintos
desdobramentos. Nesse jogo, o objeto animado pode demonstrar “consciência” de
ser objeto inanimado, quebrando a idéia construída durante o desenvolvimento do
espetáculo de que o objeto-personagem possui vida própria.
O ator-animador assumindo sua condição de animador, ao contrário do que
pode parecer, emprega uma qualidade de presença em cena. Trata-se de trazer à
cena as questões reais da relação entre um ator-animador e um objeto animado.
Nas palavras de Meschke (1988, p. 35, tradução nossa) o ator “tem que realizar uma
missão representativa própria ao mesmo tempo que manipula o boneco.”
47
Essa
relação pode gerar elementos para dramaturgia, como podemos observar na cena
descrita abaixo do espetáculo O Incrivível Ladrão de Calcinha:
47
Tiene que realizar una misión representativa propria al mismo tiempo que manipula su títere.
82
Imagem 15, 16 e 17 - O Incrível Ladrão de Calcinhas cena na qual o ator-animador assume
o papel de animador.
Fonte: imagem extraída de vídeo – arquivo pessoal
As imagens acima foram retiradas de uma cena na qual a personagem do tipo
“mulher irresistível”, Velda, após ter sido descoberto todo o seu plano pelo detetive
Bill Flecha, lhe diz que pode fazer “qualquer coisa” para que ele o a entregue à
polícia (primeira imagem). Ele responde:
“ – Qualquer coisa?
Ela afirma que sim, com a cabeça.
“- Então, tente isto!”
E começa a levitar (segunda imagem - 16). Ao terminar a levitação ele fala:
“- É a sua vez, boneca!”
Ela olha para o público e cai em lágrimas. Ele arremata:
“- Difícil, não?! Somente uma pessoa poderá salvá-la.”
Ela pergunta quem é essa pessoa e ele aponta o olhar para o ator-aniamdor,
conduzindo também o olhar dela (terceira imagem - 17). O ator-animador, nada
fazendo, implica que não se conivente com a criminosa. O detetive-boneco diz
ainda:
“- Você está perdida, boneca!”
Ouve-se o barulho da sirene e ela volta a chorar.
É um momento em que o intérprete aparece na condição de animador,
explicitando a relação de dependência do objeto.
Essa configuração de presença de cena pode também originar na
dramaturgia uma ênfase na condição animador/animado, num acirramento dessa
relação, trazendo à cena uma disputa, uma competição entre objeto e animador, a
fim de mostrar quem manipula quem. Esse jogo é presente no espetáculo El
83
Titiritero de Banfield, de Sérgio Mercúrio, numa cena na qual o ator-animador e o
boneco discutem sobre ir ou não a uma viagem. Nesse entremeio a questão de
quem manda e quem obedece, Sérgio ou Bobi, dentro de uma discussão sobre a ida
ou não à viagem, desencadeia a situação em que o animador apresenta ao boneco
sua mãe, uma tesoura.
Imagem 18 – Espetáculo El Titiritero de Banfied: Bobi encontra sua mãe.
Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=BFwzwrNJjY0&feature=related
Do ponto de vista da dramaturgia, o espetáculo de Sérgio Mercúrio não se
desenvolve somente em torno dessa questão entre boneco e ator-animador, mas
todo ele transita nessa referência dada pela relação do ator-animador assumindo
sua condição de animador.
O animador pode se colocar também, ainda dentro desse modo de presença
de cena, na condição de um Deus ex-machina. Esse termo, encontrado nos
trabalhos de alguns pesquisadores como Meschke (1988), Curci (2007) e Souza
(2007), está relacionado a “uma noção dramatúrgica que motiva o fim da peça pelo
aparecimento de uma personagem inesperada” (PAVIS, 1999, p.92). Pautados
nessa referência, advinda desde as encenações das tragédias gregas, os autores
discorrem sobre a noção do animador como aquele que resolve o problema,
interferindo sem restrições na cena.
Distinguimos ainda outra variante da animação à vista na qual o ator-
animador interpreta uma personagem em seu corpo que é distinta daquela que
interpreta no objeto. Essa maneira de relacionar-se com o objeto exige uma partitura
84
corporal precisa e bem articulada dos gestos e movimentos do corpo da
personagem do ator-animador e aqueles pertencentes à personagem no objeto. Em
geral essa variante cênica tem por objetivo provocar no público a sensação de
dissociação entre as duas personagens, como sendo distintas e independentes uma
da outra. Nessa condição interpretativa o ator-animador geralmente estabelece
relação entre as duas personagens, sobretudo por uma questão física, pois em geral
não se estabelece grande distância entre o intérprete e o objeto por ele animado.
Assim, o animador precisa concomitantemente realizar o desdobramento objetivado
e manter a personagem de seu corpo. Precisa ainda orientar adequadamente seu
olhar e o olhar da personagem do objeto, bem como os gestos e movimentos para
permitir ao público a compreensão de quem está atuando como foco da cena. Para
tanto, os movimentos do animador e do objeto podem alternar-se, procurando
construir uma seleção cinética significativa. Nesse sentido, a utilização do que
denominamos nesta pesquisa de pequenos movimentos como indicação de vida
pode oferecer algumas contribuições. Trata-se da noção de que a personagem que
não possui o foco se move o mínimo necessário à indicação de que se mantém vivo,
presente, como por exemplo, a respiração. Nesse mesmo panorama, o
direcionamento do olhar pode reforçar a definição do foco de atenção do público,
através da triangulação. Por exemplo, quando a personagem no corpo do ator-
animador vai falar com o objeto animado, o ator pode olhar inicialmente para o
objeto e em seguida continuar falando para o público, enquanto o objeto se mantém
com o olhar para a personagem-ator. Esse processo de diferenciação entre as duas
personagens pode também ser facilitado quando o animador implementa distintas
vozes, uma para cada personagem.
Sobre a atuação por contraparte, Curci tece as seguintes considerações:
Neste caso, [o ator] sai dos sutis limites precisados anteriormente
[referindo-se à animação por co-presença] que tem que realizar uma
tarefa representativa própria e deve levar adiante um papel ao mesmo
tempo em que manipula seu boneco. D que pode utilizar a voz para
compor seu papel e para animar também os distintos bonecos que
aparecem em cena.
48
(2007, p. 124).
48
En neste caso, el titiritero se sale de los sutiles límites precisados anteriormente ya que tiene que
realizar una tarea representativa propia, debe llevar adelante un rol al mismo tiempo que manipula
su títere. De ahí que puede utilizar la voz para componer su rol y para animar también a los
distintos títeres que aparecen en escena.
85
O autor sublinha também o desafio posto ao ator-animador nesse modo de
trabalho em que constrói ao mesmo tempo as duas personagens, realizando aquilo
que denominou de doble desdoblamiento ou duplo desdobramento. Esse fenômeno
ocorre dentro dos campos categorizados pelo autor como atuação direta e atuação
indireta, que consiste respectivamente na interpretação realizada no próprio corpo
do ator e aquela na qual a interpretação acontece mediada pelo objeto.
Abaixo, a imagem do espetáculo Drames Brefs 2, da Companhia francesa
Ches Panses Vertes, no qual o ator-animador atua na condição de dupla
interpretação, anima o boneco e interpreta em seu corpo outra personagem.
Imagem 19 - Ches Panses Vertes
Fonte: (Lecucq, 2003, p. 77).
Há ainda considerações acerca de outro modo de estar em cena tratada pelos
autores de diferentes maneiras. Meschke (1988) se refere a essa maneira de estar
em cena como “o titiriteiro que se converte em ator”
49
. Para ele é “a mais difícil, a
mais delicada de todas as relações possíveis entre o boneco e o bonequeiro. No
instante em que o bonequeiro abandona sua voluntária ‘limitaçãocomo bonequeiro
49
El titiritero se convierte en actor.
86
para atuar, entra em um ofício novo: o ofício de ator.”
50
(1988, p. 35, tradução
nossa). O autor tem como concepção que ator e animador são ofícios distintos, pois
cada um deles exige competências peculiares e que diferem entre si, sendo mesmo,
para ele, uma raridade encontrar no mesmo artista as duas competências
desenvolvidas. Entretanto, admite a possibilidade desse acontecimento como
gerador de “resultados felizes ou desafortunados”
51
.
Curci (2007), por sua vez, o considera o ator-animador que deixa o objeto
para atuar apenas em seu próprio corpo como um modo de presença cênica da
animação, pois compreende como duas profissões, a do ator e a do animador, que
percorrem caminhos distintos. Isso não implica que haja desacordo na utilização da
interpretação não mediada pelo objeto em conjunto com a animação deste. Ele
delineia tão somente que são profissões diferentes, mas que essa fusão “de duas
formas de arte”
52
é muito estimulante, sendo uma característica da
contemporaneidade um teatro de animação que tem experimentado essa gama de
possibilidades de contato entre as variadas artes.
A neutralidade se reveste de diferentes nuances e transforma suas exigências
segundo os variados modos de estar em cena do ator-animador e do objeto. As
características do estado de neutralidade devem ser afinadas pelo ator-animador.
Elas se entrelaçam às noções de economia, disponibilidade, potencialização e
generalização para a configuração desse estado. Economia dos meios e
disponibilidade para a relação com o entorno: caminhos que se desdobram para
atingir aspectos dos fundamentos do jogo do ator-animador, naquilo que é mais
geral, com o objetivo de potencializar a interpretação no corpo do ator-animador ou
no objeto.
50
Esta es a más difícil, la más delicada de todas las relaciones posibles entre títere y titiritero. En el
instante en que el titiritero abandona su voluntária “limitación” como titiritero para actuar, entra en
un ofício nuevo: el ofício de actor.
51
[...] Resultados felices o desafortunados [...]
52
[...] “dos formas de arte” [...]
87
CAPÍTULO IV:
O MOVIMENTO E A PARTITURA CÊNICA
O movimento humano está vinculado à atividade mental, à sua capacidade de
pensar. Rudolf von Laban, em seu estudo acerca do movimento, critica o olhar que
se apropria do conhecimento do movimento humano como sendo submetido às
mesmas leis do movimento do inanimado. Nesse sentido, o autor concorda que o
corpo segue aspectos puramente físicos da produção de energia e na transformação
da mesma em movimento. Entretanto, o movimento humano, que está sob a
influência das leis físicas, apresenta distintas possibilidades de variação (diferente
do inanimado) devido à sua motivação:
O homem se movimenta a fim de satisfazer uma necessidade. Com sua
movimentação, tem por objetivo atingir algo que lhe é valioso. É fácil
perceber o objeto do movimento de uma pessoa, se é dirigido para algum
objeto tangível. Entretanto, também valores intangíveis que inspiram
movimentos. (LABAN, 1978, p. 19).
Laban atribui ao termo esforço “a função interior” que origina o movimento no
corpo vivo, que tem uma mecânica motora específica devido ao controle intencional
do “acontecimento físico”. O estudioso afirma que são indissociáveis os movimentos
humanos e os esforços que, por sua vez, têm origem na realidade. Esse esforço e a
ação que dele decorre podem ser ambos involuntários e inconscientes, mas são
componentes sempre presentes em qualquer movimento corporal humano.
O homem como produto e agente da história tem a constituição de uma
estrutura para o desenvolvimento do movimento fundado nas diversas relações
tecidas nesse processo histórico. Laban faz algumas considerações nesse sentido e
outras no que se relaciona à formação da individualidade e sua relação com o
movimento. O indivíduo seleciona movimentos apropriados às situações, ele pode
se entregar ou não às forças acidentais dos fatores de movimento
53
. Assim, ele
afirma que essa multiplicidade de atitudes possíveis frente aos fatores de movimento
originam a variabilidade do caráter humano, tornando certas tendências habituais no
indivíduo. Sublinha, ademais, a importância de que o “ator-bailarino” identifique o
fato de que tais atitudes habituais são as indicações básicas daquilo que se costuma
chamar de caráter e temperamento.
53
Os fatores de movimento nos estudos desse autor são: Peso, Espaço, Tempo e Fluência.
88
Destarte, Laban evidencia a distinção básica entre o movimento do homem e
do ser inanimado, apontando o esforço como mola propulsora. Ele não aprofunda
essa questão nos animais, mas sublinha sua distância com referência ao mundo
inanimado.
Partindo dessa compreensão, recorremos às idéias de Hubert Jappelle para
nossa reflexão acerca do movimento do objeto no teatro de animação. Ele
esclarece: “Na realidade, o objeto parece vivo porque ele parece pensar e, ele
parece pensar porque parece decidir ele mesmo os diversos movimentos que
podemos lhe imprimir.” (1980, p. 54, tradução nossa)
54
. Com isso, entendemos que
os movimentos devem remeter ao esforço da personagem, de tal modo que as
ações pareçam ser um ato teleológico.
O movimento é apontado em várias pesquisas como o coração da animação
de um objeto. Compartilham dessa concepção os artistas e autores Amorós e
Paricio
:
“o movimento é a verdadeira vida do boneco”
55
(2005, p. 68, tradução
nossa). Nesse sentido, o movimento distancia-se da noção de que qualquer
movimento, qualquer sacolejar, consiga dar a impressão de vida ao objeto. O objeto
para tornar-se personagem demanda uma seleção de movimentos que se ajustem a
sua materialidade de constituição e a sua personagem, dentro das relações com ela
estabelecida. Trata-se de buscar para a seleção de movimentos aqueles que
inferem a noção do pensamento oriundo do objeto animado. Jappelle afirma que a
marionete
56
é antes de tudo um objeto e aquilo que a transforma em marionete, no
sentido de um objeto inanimado como personagem, são os movimentos a ele
conferidos e a interpretação do espectador. Temos acordo com a importância dada
pelo autor ao movimento na animação do objeto, concepção sob a qual entendemos
estar a incumbência do ator-animador em pesquisar e eleger movimentos a fim de
constituir uma biblioteca cinética para o objeto, privilegiando aqueles que mais se
ajustam à personagem e à poética que busca levar à cena.
O objeto emite um conjunto de signos plásticos que se relacionam ao que o
artista deseja evocar, conotar ou aludir. O movimento, então, soma-se às qualidades
plásticas na animação da personagem. Jappelle atribui ao movimento do objeto a
54
En réalité, l’objet paraît vivant parce qu’il paraît penser, et il paraît penser parce qu’il paraît decider
lui-même des divers mouvements qu’on peut lui imprimer.
55
El movimiento es la verdadera vida del muñeco.
56
Como o texto é de origem francesa, o autor utiliza o termo marionnette com a abrangência de todos
os gêneros de animação.
89
responsabilidade pela impressão da “atividade espiritual” da personagem, dando a
entender que o objeto, enquanto matéria, abriga em si um conjunto de
significações, mas o movimento é o componente que lhe confere o caráter de ser
com uma atividade pensante:
Metaforicamente, evidentemente, o movimento da marionete será
interpretado como signo visível do pensamento invisível. A marionete não
nos parecerá viver” porque se move, mas porque ela se move ela nos
parecerá estar pensando. Parecer-nos-á ver seu pensamento agir. O
menor de seus movimentos será então percebido como o indício visível e
expressivo de seu pensamento em ação.
57
(JAPPELLE, 1980, p. 55,
tradução nossa).
Ao selecionar os movimentos para o objeto, o intérprete deve conhecer as
condições de esforço de sua personagem, ou seja, os impulsos internos a partir dos
quais surgem ou que originam os movimentos.
A animação de um objeto evidencia para o ator-animador o estudo do
movimento atravessando duas instâncias: os movimentos do corpo de seu corpo e
os movimentos do corpo do objeto. Se para mover um objeto é preciso selecionar
os movimentos que componham significação, de maneira a parecer que este se
move devido à sua capacidade de pensar, o ator-animador tem como esforço,
utilizando o termo de Laban, a movimentação das personagens que interpreta no
objeto e por vezes também em seu corpo. O animador e diretor Paulo Fontes, da
Cia. Gente Falante, aponta que o ator se movimenta tendo como referência o centro
de seu corpo, do qual se originam muitos de seus movimentos. No teatro de
animação o intérprete precisa aprender a deslocar esse centro para um objeto
exterior ao seu corpo e em torno do qual realizará os movimentos de seu próprio
corpo.
58
O centro de seus movimentos passa a ser o objeto que anima. No
deslocamento da centralidade do corpo do ator-animador para o objeto, o intérprete
pode adotar a postura de serviço.
Em todas as circunstâncias de presença cênica a consciência cinética de seu
próprio corpo é uma grande aliada na execução do trabalho do ator no teatro de
animação - não somente conhecer para adequar a interpretação com o objeto a
57
Métaphoriquement, s’entend, le mouvement de la marionnette sera interprété comme signe visible
de la pensée invisible. La marionnette ne nous semblera donc pas vivre” parce qu’elle bouge,
mais parce qu’elle bouge elle nous semblera en train de penser. Il nous paraîtra voir sa pensée
agir. Le moindre de ses mouvements sera alors perçu comme l’indice visible et expressif de sa
pensée en action.
58
Aula ministrada no projeto Espia Só! Na oficina de Construção da Forma e do Movimento, em Itajaí
– S.C, em 30 de junho de 2008.
90
partir do material cinético conhecido do ator-animador, mas para experimentar
novas descobertas no corpo, treiná-lo e alterar conscientemente esses padrões de
movimento, mudando suas qualidades por meio da modificação nos componentes
do movimento.
Michael Mescke tem em sua experiência a passagem pela escola de um dos
mestres do movimento, Étienne Decroux. Ele apresenta em seu estudo a iniciativa
de tornar esse conhecimento sobre a compreensão do movimento apreendida com
Decroux numa ferramenta de trabalho para a arte dramática inserida no campo do
teatro de animação. Algumas de suas contribuições perpassam as reflexões que se
seguem acerca do movimento.
Nessa vertente de estudo do movimento há a compreensão de que todo
pensamento e sentimento - os “movimentos interiores da alma” - se materializam em
movimentos físicos no corpo. Toda a vida é constituída de movimentos. Tudo é
movimento e, assim, um conjunto de inúmeros movimentos constituem a conduta de
uma pessoa. No teatro de animação, mover um objeto adequadamente,
organizando um conjunto de movimentos que consolidem a conduta da
personagem-objeto, é condição fundante para a realização da animação. Cada
movimento tem um significado e o ator-animador que trabalha com essa referência
concentra-se não apenas nos movimentos do objeto animado, mas também nos
movimentos de seu próprio corpo. A forma como se organiza esse conjunto de
movimentos reorganiza também o significado emitido. O mesmo movimento pode
ser realizado de distintas maneiras, produzindo em cada variação diferentes
conteúdos de significação do movimento. É trabalho do ator-aniamdor (em conjunto
com o diretor, quando é o caso) experimentar e descobrir os movimentos que melhor
se adaptam às demandas artísticas e técnicas da personagem.
O pesquisador Beltrame elenca em sua pesquisa esse aspecto da
importância do movimento para a interpretação com o objeto, considerado como um
princípio técnico do trabalho do ator-animador intitulado movimento é frase:
Movimento é frase – Trabalhar com essa noção supõe ultrapassar a idéia
de movimentar aleatoriamente ou sacudir o boneco em cena. Implica em
dissecar os movimentos, dando a “pontuação” adequada, incluindo
“ponto” e “vírgulas”. Cada ação tem seus movimentos realizados numa
seqüência que implica em finalizá-las para depois iniciar o movimento
subseqüente. Remete à necessidade de cuidar da finalização de cada
gesto e ação. Ajuda a definir os diferentes ritmos presentes em cada
ação. Binômios como ação-reação, imobilidade-movimento, silêncio-
91
ruído, podem ser referências importantes para o ator-bonequeiro realizar
esse trabalho. (2008, p. 33-34, grifo do autor).
Sua concepção do movimento na animação de um objeto vai ao encontro da
noção antes citada nas palavras de Meschke, advinda da escola de Decroux, que
chama atenção para o cuidado na realização dos movimentos no processo de
animação. O menor gesto, deslocamento ou variação de ritmo influi na totalidade
expressiva do objeto. Devemos observar que o estamos nesse contexto
reinvidicando o desaparecimento da palavra do teatro de animação, mas
sublinhando o movimento como base dessa linguagem teatral que demanda,
portanto, uma maneira peculiar de se organizar para constituir sua expressividade.
4.1. Delineando termos.
Adotamos como ponto de partida a definição de Meschke: “movimento é a
troca que ocorre entre duas imobilidades” (1988, p. 48, tradução nossa)
59
. Essa
mudança de imobilidades é selecionada de modo a parecer que o objeto reage a
estímulos internos e externos da personagem. Os estímulos internos geram
movimentos que aparentam surgir de uma intenção da personagem e os estímulos
externos geram movimentos advindos da relação da personagem com tudo o que
lhe é exterior.
Na definição de Ana Maria Amaral, “em teatro de animação, movimento é
uma ação com intenção.” ( 2002, p.120).
Com base na concepção adotada para o desenvolvimento desse trabalho na
qual qualquer mudança de imobilidade é movimento, trabalhamos com a noção de
que esses movimentos podem desdobrar-se em gestos, ações e deslocamentos.
Assim, todo gesto é movimento, mas nem todo movimento é gesto. Pontuemos
nosso entendimento de cada um deles.
Ação é aqui adotada no sentido apresentado por Pavis:
Seqüência de acontecimentos cênicos essencialmente produzidos em
função do comportamento das personagens, a ação é, ao mesmo tempo,
concretamente, um conjunto dos processos de transformações visíveis
em cena e, no vel das personagens, o que caracteriza suas
modificações psicológicas e morais. (1999, p. 02).
Ainda tomando as definições de Pavis, o gesto é um “movimento corporal, na
maior parte dos casos voluntário e controlado pelo ator, produzido com vista a uma
59
Movimiento es el cambio que ocurre entre dos inmobilidades.
92
significação mais ou menos dependente do texto dito, ou completamente autônomo”
(1999, p. 184). Amaral define o gesto como “um movimento intencional,
acompanhado de emoção. Por exemplo, entregar a alguém uma flor, ou dar-lhe um
tapa, abraçar, olhar com emoção.” (2002, p. 27). Em nosso entendimento, enquanto
o movimento pode não gerar “nenhuma” significação, como pode ser em uma
coreografia, o gesto é um movimento carregado de significação.
Os deslocamentos são movimentos que produzem mudanças no desenho
espacial no “palco”, a modificação de pontos no espaço e refere-se também à
forma da trajetória percorrida.
Animar um objeto significa, sobretudo, imprimir movimentos, gestos, ações e
deslocamentos selecionados. Assim, o ator-animador precisa definir e ordenar a
seqüência destes, construindo uma partitura que qualifica a presença da
personagem em cena.
4.2. Movimento e palavra
A palavra e o movimento são sistemas de signos que servem de material à
composição da animação de um objeto. Os registros encontrados sobre o Teatro de
Animação anteriores ao século XX, além de escassos, não contêm informações
sobre os movimentos realizados pelos bonecos, conservando apenas o texto escrito.
Apesar deste irremediável vazio histórico, hoje em dia não dúvida de
que parte importantíssima do resultado de um bom espetáculo de
bonecos se deve ao movimento dos personagens.
A dramaturgia, ligada tradicionalmente à palavra, es também
estreitamente relacionada com o gesto e o movimento; são informações
que o público recebe tão significativas quanto o próprio texto. (AMORÒS
& PARICIO, 2005, p. 67, tradução nossa).
60
Mesmo os registros sobre as indicações de movimentos sendo praticamente
inexistentes, como expressam os autores acima citados, isso não implica o não
reconhecimento da relevância desse sistema de signos, que nos dias de hoje tem
reconhecida importância. Quanto maior a intimidade, a consciência do artista acerca
do sistema de signos do movimento, melhor pode orientar seu trabalho utilizando-os
60
A pesar de este irremediable vacío histórico, hoy en día no cabe duda de que parte
importantíssima del resultado de un buen espectáculo de muñecos se debe al movimiento de los
personajes.
La dramaturgia, ligada tradicionalmente a la palabra, está también estrechamente relacionada con
el gesto y el movimiento; son informaciones que el blico recibe tan significativas como el proprio
texto.
93
como ferramentas em seu processo de criação. No entanto, é importante lembrar,
dado que encontramos nas práticas dessa linguagem artística, que os movimentos
não estão a serviço do acompanhamento do texto, caindo numa ilustração rítmica da
melodia verbal. Comumente esses são os mesmos casos em que o boneco é
sacolejado, pois parte de uma concepção da utilização do movimento na animação
que atribui à palavra o elemento central e o movimento como sistema sígnico
adjutório. Uma ilustração de Meschke contribui no entendimento dessa concepção:
Vamos estudar agora o lugar da palavra e do movimento colocando um
boneco imóvel no cenário.
O boneco pode, através de uma voz, apresentar um texto. Se o texto é
forte o espectador fica captado pelo conteúdo imediatamente e o mais
provável é que deixe de fixar-se na figura imóvel. Pode até fechar os
olhos para poder concentrar-se totalmente no que é dito. Em outras
palavras, a força do texto se apodera de toda a atenção, a figura imóvel
não aporta nada e o texto se desfrutaria melhor no rádio. (1988, p.49,
tradução nossa).
61
Esse exemplo procura reforçar a noção de que movimento é frase e constrói
significações na interpretação. Ambos os sistemas sígnicos palavra e movimento -
têm espaços importantes na composição da interpretação no objeto e se
complementam, não sendo o movimento subordinado à palavra, mas relacionado a
ela, de tal maneira que podemos ter ritmos diferentes entre a palavra e o movimento.
“Um rápido fluxo de palavras pode ter lugar paralelamente a um desenvolvimento
lento do movimento e vice-versa.” (Meschke, 1988, p. 50, tradução nossa)
62
. O autor
lembra que, na realidade extra-teatral, não encontramos ninguém que acione o
mesmo número de palavras e igual número de movimentos e que, ademais, esse
tipo de procedimento dá origem a “gestos espasmódicos” no objeto animado, sendo
importante que palavra e movimento tenham velocidades
63
próprias e diferentes.
61
Vamos a estudiar ahora el lugar de la palabra y del movimiento colocando un títere inmóvil en el
escenario.
El títere puede, a través de una voz, presentar un texto. Si el texto es fuerte el espectador queda
captado por el contenido inmediatamente y lo más problable es que deje de fijarse en la figura
inmóbil. Puede que hasta cierre los ojos para poder concentrarse totalemente en lo dicho. En
otras palabras, la fuerza del texto se apodera de toda la atención, la figura inmóvil no aporta nada
y el texto se disfrutaría mejor en radio.
62
Un rápido flujo de palabras puede tener lugar paralelamente a un desarrollo lento del movimiento y
viceversa.
63
Meschke define velocidade como “o tempo que se gasta em um processo”, podendo variar entre a
rapidez e a lentidão.
94
Sylvie Baillon, diretora do grupo francês Ches Panses Vertes, num exercício
com bonecos de luva
64
, orienta o trabalho dos alunos para que observem a relação
entre a palavra e o movimento executado. Na ocasião o aluno sonorizava o texto
muito forte e realizava um movimento de pouca intensidade em relação à força do
texto que consistia quase em um grito. Na situação, o boneco perdia força em sua
interpretação porque soava como falso uma voz o forte saindo de um boneco com
um movimento de intensidade não condizente.
4.3. Movimento e subtexto
Na criação de uma partitura de movimentos o ator-animador pode apoiar-se
em subtextos. Essa ferramenta pode funcionar como subsídio à composição da
gestualidade. Odete Aslan afirma que a criação do subtexto era um dos principais
pontos de trabalho de Stanislávski com relação à gestualidade e consistia no
“estabelecimento de um subtexto para exprimir nas peças de Tchékhov o que
encontra nas entrelinhas, no silêncio para nutrir o texto.” (1994, p. 71). O subtexto é
uma noção que o ator-animador cria a respeito da personagem e suas
características, bem como idéias que originam esse ou aquele movimento, gesto ou
ação na personagem animada. Ele não fica explícito ao público, mas auxilia na
composição do movimento e do texto da personagem no instante em que relaciona,
amplia ou acrescenta uma idéia aos movimentos e palavras utilizados na animação.
O subtexto pode ser um entendimento mais aprofundado das motivações da
personagem ou mesmo associações do ator-animador que podem contribuir para
orientar uma seleção de movimentos e palavras na composição partitura. Pavis
(1999) atribui à noção de subtexto um instrumento de aspecto psicológico que
informa sobre o estado interior da personagem, impresso pelo ator na criação de sua
personagem, que não é expresso no texto dramático, mas que transparece na
maneira como o ator interpreta esse texto. É para ele uma espécie de “comentário
efetuado pela encenação e pelo jogo do ator” (1999, p. 368).
Também o subtexto é um princípio técnico elencado por Beltrame, que o
define como “uma criação subjetiva do ator-animador pautada nas intenções de
cada personagem, e que apóia a construção e apresentação da partitura de gestos e
ações.” (2008, p. 32).
64
Oficina realizada em maio de 2008, no Instituto Internacional da Marionnette, em Charleville-
Mézières.
95
4.4. Movimento e a escuta do objeto.
É preciso considerar as possibilidades cinéticas do material animado, sua
linguagem própria, marcada por suas condições físicas. O ator-animador pode obter
material para seu trabalho se ao invés de simplesmente tentar imprimir seu
imaginário cinético ao objeto, pesquisar e entender seu funcionamento, descobrir os
movimentos que aparecem sem resistência, quais outros oferecem mais resistência,
encontrar os movimentos pendulares, os modos de deslocamentos propostos pelo
objeto, etc. Retirar do material uma composição que leva ao imaterial. Cada boneco,
cada objeto é diferente do outro. Não existe um boneco igual ao outro e é no
processo de estudo e descoberta que se encontram alguns dos movimentos da
personagem.
4.5. O olhar
O olhar é um elemento central na estruturação da animação. Na formação
voltada para a animação de objetos, a professora Anne Cara acentua que o
marionetista“[...] deve tomar consciência da importância expressiva do olhar da
marionete e o considerar como um dos vetores mais eficazes da ilusão de vida
autônoma do objeto manipulado.” ( 2006, p. 42, grifo da autora, tradução nossa)
65
.
Joan Baixas aponta nesse sentido:
O olhar é o órgão no qual reside o espírito da marionete. [...] Os
marionetistas experientes controlam com perfeição o olhar de seus
personagens e, através dele, lhes dão a aparência de seres
extraordinários, surpreendentes e dotados de espírito. Olhar e respiração
se fundem na composição das ações do personagem, na musicalidade
de seu desempenho, na estrutura rítmica de sua expressão. (1944, p. 42-
43, tradução nossa)
66
.
Nos escritos de Amorós e Paricio também encontramos a atribuição de
grande importância ao olhar do objeto animado: “o olhar dos bonecos reflete sua
intenção, seu interesse, é sua característica física mais importante.” (2005. p. 70,
65
[...] prendre conscience de l’importance expressive du regard de la marionnette, et le considérer
comme l’un des vecteurs les plus efficaces de l’illusion de vie autonome de l’objet manipulé.
66
Le regard est l’organe reside le génie de la marionnette. […] Les marionnetistes experimentés
contrôlent à la perfection le regard de leurs personnages et, à travers lui, leur donnent l’apparence
d’êtres extraordinaires, surprenants et doués de génie. Regard et respiration se fondent dans la
composition des actions du personnage, dans la musicalité de sa prestation, dans la structure
rythimique de son expression.
96
tradução nossa)
67
. Para os autores, não se pode construir bonecos sem olhos, salvo
se a proposta é uma personagem “completamente anônima, impessoal,
permanentemente coibido ou cego” (2005, p.70, tradução nossa)
68
. A personagem
num objeto emite signos visuais e tal como todos os elementos plásticos nele
contidos os olhos também emitem significados, possivelmente com maior força que
os demais signos plásticos existentes no material animado. Entretanto, em
desacordo com os autores, entendemos que o olhar da personagem não depende
fundamentalmente dos olhos físicos do boneco ou outro objeto animado. Podemos
observar o teatro de animação realizado com objetos retirados do cotidiano nos
quais não são acrescentados olhos, mas estes são “vistos” pelo público através dos
movimentos que são impresso no objeto.
Imagem 20 - Espetáculo O Princípio do Espanto do Grupo Morpheus 12
Fonte: http://www.fototech.com.br/galeria.php/120/1168
No espetáculo apresentado na imagem acima, o ator-animador trabalha com
um boneco sem olhos, existindo apenas o relevo no rosto. Sua animação em nada
perde por essa opção da poética do espetáculo. É o todo do movimento do objeto
que lhe confere a capacidade de olhar. Nesse sentido, a cabeça e o nariz do boneco
servem de referência, não somente para o público, mas também para o ator-
animador, para localização dos olhos “imaginários” e a identificação do
direcionamento do olhar do boneco. No caso de outras formas animáveis, mais
abstratas ou objetos cotidianos, por exemplo, o animador pode pesquisar diferentes
referências na morfologia dessas formas. Encontradas essas referências, o treino na
busca de possibilidades e precisão no direcionamento desse olhar são momentos
67
La mirada de los títeres refleja su intención, su interés, es su característica física más importante.
68
[...] completamente anónimo, impersonal, permanentemente cohibido o ciego [...]
97
subseqüentes. Esse olhar, proveniente dos movimentos de todo o corpo material do
objeto, encontra na cabeça, no rosto e no nariz, seus principais componentes. Nas
palavras de Cara, “é o posicionamento preciso e a manipulação da cabeça que
condicionam o “olhar” da marionete.” (2006, p. 42, tradução nossa)
69
.
A relação espacial entre o ator-animador e a personagem varia conforme o
gênero de animação. Em geral, a maioria dos gêneros se situam em três posições: o
ator-animador encontra-se abaixo do boneco, como nos bonecos de luva e de vara.
Ou os bonecos são animados por trás, como acontece na animação sobre mesa ou
balcão. E em outras situações os bonecos são animados de cima, como acontece
na animação com fio e com tringle. Existem outras formas de animação como, por
exemplo, o boneco que se encontra ao lado do ator-animador, no caso do
ventríloquo (que anima com a mão por trás, mas todo o corpo está na lateral);
também podemos lembrar o homem-palco e outros bonecos-máscaras em que o
animador veste a personagem e se encontra dentro dela. Essa relação espacial
exigirá do ator-animador encontrar movimentos que possibilitem à personagem o
direcionamento do olhar. Amorós & Parício (2005) apresentam em seu estudo uma
ilustração das três situações mais comuns para animação de um objeto:
Imagem 21 - Três situações para animação de um objeto e sua relação com olhar direcionado
para o público.
Fonte: AMORÓS & PARÍCIO, 2005, p. 73
69
C’est le positionnement précis et la manipulation de la tête qui conditionnent le “regard” de la
marionnette.
98
A ilustração evidencia que a localização do ator-animador com a personagem
deve atentar para a relação do olhar com o público. Quando o objetivo é estabelecer
uma comunicação direta com o público pelo olhar e o olhar da personagem não
encontra o do blico, a comunicação não se estabelece. Assim, na construção de
um boneco é importante o cuidado com a localização dos olhos e nariz, pois se o
boneco fala e olha para cima todo o tempo, perde sua força dramática. É necessário
construir o boneco de maneira a facilitar ou mesmo possibilitar que o boneco olhe
para o público, não sendo o mais apropriado efetuar o direcionamento do olhar
exclusivamente pelo ajuste de posição do boneco, sob pena de causar um desgaste
na musculatura do ator-animador. O melhor é que se delineie (com desenhos,
volumes, convencionando, etc) os olhos de maneira que olhe na direção do
espectador em sua posição “normal” e naquela que seja, portanto, menos
desgastante para o ator-animador. O Grupo Giramundo Teatro de Bonecos também
aborda essa questão em seus processos de formação de atores-animadores. O
grupo estabelece as três posições de animação, tais quais as apresentadas na
ilustração acima e orienta o cuidado da localização do olho no momento da
construção, como podemos ver na ilustração abaixo:
Imagem 22 – O direcionamento do olhar e a construção.
Fonte: Giramundo Teatro de Bonecos, 2005, p.42, mimeo
Extraída de textos de estudo destinados à formação produzidos pelo grupo, a
imagem demonstra a preocupação com esse aspecto. Nesse exemplo, com o
boneco de luva, o grupo chama atenção para o risco de lesionar o pulso pelo esforço
necessário à correção, na animação, de um erro de construção. A construção,
portanto, tem relevância nos movimentos do olhar, mesmo entendendo que o olhar
não está na fisicalidade do boneco, mas em seus movimentos.
99
Distintas maneiras de olhar estabelecem diferentes significados. Meschke
(1988) apresenta duas noções dessa relação olhar-movimento. A primeira delas é
que os olhos dirigem o movimento do corpo e a outra é que o olhar não está
caracterizado apenas com os movimentos de cabeça, mas por movimentos e
posturas do corpo do objeto. Em seu trabalho, classifica e apresenta o que chamou
de tipos fundamentais de olhares. Primeiramente os olhares estão divididos em
estáticos e móveis. O olhar estático refere-se à máscara dada à personagem, é o
olhar que ela possui parado, somente com as feições materiais dadas ao/pelo
objeto. Trata-se das configurações da pintura, do relevo - ou ausência destes na
constituição física do objeto. Nas palavras do autor, “este é o olhar que o criador deu
à figura, todavia imóvel, a expressão que desde o princípio determina se a figura tem
irradiação ou possibilidade de trocar e enriquecer a expressão de seu rosto ao
colocar-se em movimento.” (MESCHKE, 1988, p. 61, tradução nossa)
70
. Amorós e
Paricio (2005) nos oferecem exemplos do olhar estático quando citam que olhos
inclinados para dentro sugerem enfado e se essa inclinação é leve dá impressão de
astúcia. Se a inclinação é para fora, dá a noção de tristeza. Olhos juntos são mais
infantis e pupilas pequenas resultam em olhos mais inquietos. Abaixo, uma imagem
para ilustração da presença de olhos inclinados em um boneco.
Imagem 23 - Olhos inclinados para dentro. Boneco de Serguei Obrazstsov.
Fonte: AMORÓS & PARICIO, 2005, p. 75
O olhar deixa de ser estático quando à máscara facial é combinado o
movimento impresso pelo ator-animador ou mesmo pela iluminação. Na definição de
70
Esta es la mirada que el creador ha dado a la figura todavía inmóvel, la expresión que desde el
principio determina si la figura tienne irradiación y posibilidad de cambiar y enriquecer la expresión
de su rosto al ponerse en movimiento.
100
olhar vel, Meschke aponta para os rostos articulados, mais presentes no Oriente
que no Ocidente, mas também para todo aquele olhar gerado no rosto não
articulado que se sustenta pelo movimento do conjunto das outras partes do objeto.
Esse conjunto cinético responsável pela criação do olhar é que provoca em algumas
pessoas do público a impressão de ter visto o movimento de uma boca ou olho que
na realidade são formas estáticas no rosto do boneco.
Dando seqüência ao entendimento das definições de Meschke sobre os tipos
fundamentais de olhar, encontramos:
1. Olhar de descobrimento: pode constar de uma partitura na qual o foco do olhar sai
de uma direção à outra onde se encontra a descoberta, ou a descoberta pode estar
na mesma direção desse foco, sendo apresentada pelos gestos e ações da
personagem. A maneira como se aproxima, rápido, lento, cambaleante, saltitante,
etc., compõe também a noção do olhar que essa personagem lança à descoberta. A
aproximação lenta pode indicar o conhecimento penetrante ou vacilante, curiosidade
ou um medo que faz hesitar a personagem. Uma aproximação rápida pode
evidenciar um olhar desejoso pelo que foi encontrado ou mesmo que estava sendo
procurado e foi (re)encontrado.
2. O olhar de reação: olhar por meio do qual a personagem pode expressar a
relação estabelecida com algo ou alguém e explicitar sua reação. “Uma reação é um
processo que tem lugar no rebro e no coração. Se materializa fazendo com que
olhar se mova com uma velocidade e em uma direção a eleger.” (MESCHKE, 1988,
p. 61, tradução nossa)
71
.
3. O olhar de seguimento: é o olhar que segue algo ou alguém que se move. Esse
olhar pode servir para direcionar o foco de atenção do público a esse outro algo ou
alguém; pode significar uma relação afetiva com esse outro que se move, como o
estarrecimento diante da ação da outra personagem ou o embevecimento na
contemplação da personagem que se desloca; pode também ser usado para
significar o deslocamento de algo que não existe materialmente, como um navio que
parte e leva a pessoa amada.
4. O olhar interior: é o olhar que não foca o mundo exterior da personagem, senão
que olha seu próprio universo interior. Esse olhar pode ser estabelecido pela escolha
71
Una reacción es un proceso que tiene lugar en el cerebro y en el corazón. Se materializa haciendo
que la mirada se mueva con una velocidad y en una dirección a elegir.
101
de um ponto fixo ou deslocar o olhar para diferentes direções com movimentos
predominantemente mais lentos, mais comuns no ato de pensar:
O olhar que expressa o vôo do pensamento deve alternar a direção,
deslizar ou resvalar sem rumo, com velocidades e longitudes diferentes.
“Os pensamentos vagam”. Um olha interior analítico, mais voluntário, se
dirige com intensidade para a terra, para a profundidade e as raízes. A
atitude e o movimento do corpo complementam o olhar. Uma assimetria
entre a cabeça e o corpo pode sublinhar o introvertido. (MESCHKE,
1988, p. 62, tradução nossa)
72
.
4.5.a. O olhar e a relação frontal
A questão da organização do olhar da personagem para estabelecer relação
com o público está também ligada à importância da relação frontal do objeto com o
público. Esse aspecto está presente na pesquisa de Valmor Beltrame como um dos
princípios pertinentes à interpretação na linguagem do teatro de animação:
Relação frontal mantê-la é atuar de forma que o público não perca de
vista a face (máscara) do boneco. Quando o boneco realiza ações que
escondem totalmente seu rosto por tempo prolongado, é difícil manter o
foco e a atenção do espectador na cena. A personagem perde força e
a impressão de que volta a ser o objeto ou matéria da qual o boneco é
confeccionado. (2008, p. 33, grifo do autor).
Anne Cara (2006) também considera relevante a relação frontal e escreve
sobre a importância da visualização de um rosto na personagem-objeto por parte do
público, sendo condição para que ocorra um fenômeno que ela denomina de “tela de
projeção” (l’écran de projection). Consiste na capacidade dos espectadores de
projetar o rosto humano sobre o objeto animado. Nessa noção, o público projeta
sentido sobre o objeto, identificando nele características antropomorfas, assimilando,
sobretudo a parte em que se encontram os olhos, por mais rudimentar que sejam as
formas desse objeto ou mesmo que não tenha fisicamente um par de olhos. Assim o
objeto seria uma tela de projeção à imaginação do espectador e, a relação frontal do
material animado, um importante elemento para o estabelecimento da comunicação
com o público. O olhar do objeto para o público estabelece um contato sobre o qual
evolui a personagem ante o espectador, no aumento da carga interpretativa de vida
72
La mirada que expresa el vuelo del pensamiento es una mirada que carece de objetivo. Para
distinguirla de la mirada que sigue un avión, debe alternar la dirección, deslizarse o resbalar sin
rumbo, con velocidades y longitudes diferentes. “Los pensamientos vagan”. Una mirada interior
analítica, más voluntária, se dirige con intensidad hacia la tierra, hacia la profundidad y las raíces.
La actitud y el movimiento del resto del cuerpo completan la mirada. Una asimetría entre la cabeza
y el cuerpo puede subrayar lo introvertido.
102
autônoma impressa no objeto concedida pelo ator-animador. Certamente não se
trata de uma regra imutável, lembramos mais uma vez, mas trata-se de uma noção
que se observa presente em ampla maioria das animações de objetos. Todavia,
cabe ao artista descobrir maneiras de usar ou subverter esse princípio mais geral a
favor da constituição de seu trabalho.
4.5.b. O olhar e a triangulação.
A triangulação é uma relevante ferramenta para o relacionamento entre
público e objeto pelo olhar. Ela consiste centralmente em lançar o olhar para o
público numa atitude de compartilhamento, de cumplicidade com relação ao que
acontece em cena. Retomando Beltrame em sua investigação:
A triangulação é um recurso que se realiza com o olhar e colabora para
“dialogar” com o espectador, fazendo-o “entrar” na cena. Trata-se de um
“truque” efetuado com o olhar para mostrar ao espectador o que
acontece na cena, evidenciar a reação de um personagem, destacar a
presença de um objeto. (2008, p. 30, grifo do autor).
O olhar é um meio de comunicação humana munido de forte potencial
expressivo e, no caso da triangulação, cumpre essa função de apontar e de
relacionar a personagem com o público. Cara grifa em seu estudo que “os
espectadores, para se sentirem interessados, devem se sentir “olhados” pela
marionete.” (2006, p. 42, tradução nossa)
73
.
Os autores Amorós e Paricio ao escreverem sobre a animação de um boneco
acrescentam: “Quando o boneco olha para o público, busca a comunicação direta, a
resposta, o comentário, o consentimento ou o rechaço; quando dirige seus olhos a
outro boneco, lhe está falando ou está pendente do que faz conduz a atenção do
público sobre ele.” (2005, p. 72, tradução nossa)
74
. Os artistas não denominam essa
questão em específico de triangulação, mas ressaltam a importância do olhar num
movimento que parece coincidir com nossa concepção do princípio da triangulação.
A triangulação pode acontecer entre personagem\ objeto de cena\ público;
personagem que escuta\ público\ personagem que fala; personagem 1\ objeto\
personagem 2\ (público); personagem 1\ personagem 2\ personagem 3\ (público),
dentre outras formas. A função do olhar é provocar um destaque dramático, assim a
73
Les spectateurs, pour se sentir concernés, doivent se sentir “regardés” par la marionnette.
74
Cuando el títere mira al público, busca la comunicación directa, la respuesta, el comentario, el
asentimiento o el rechazo; cuando dirige sus ojos a otro títere, le está hablando o está pendiente
de lo que hace – conduce la atención del público sobre él.
103
personagem que se relaciona com um objeto de cena, pode parar, olhar para o
público e retomar a ação, sublinhando o objeto, sua relação e sua ação com este.
Outra maneira conhecida da prática da triangulação -se quando dois bonecos
em diálogo. Aquele que escuta, olha para aquele que fala e aquele que fala, o faz
para o público terminando sua fala e ação voltando-se para a personagem que
escutava, entregando-lhe com esse gesto a vez à palavra e à ação. Dessa maneira
essa personagem agora se direciona ao público enquanto é escutada pela outra
personagem que a olha. Esse modo de distribuir os gestos e ações entre as
personagens e o público pode contribuir para o entendimento claro de quem está no
foco da cena e para onde o espectador deve direcionar sua atenção.
A triangulação, em suma, é um olhar compartilhado com o público que pode
evidenciar objetos, ações e relações que acontecem no tempo presente ou para
antecipar a ação que ainda acontecerá (relacionada aos acontecimentos
precedentes ou que ainda serão apresentados na dramaturgia). Ana Maria Amaral
descreve a triangulação como “um olhar de conluio lançado ao público” e ainda,
“triangulação é quando a intenção, que antecede a ação, é mostrada através de uma
troca de olhar entre personagem e público. Uma pequena pausa na qual a intenção
de uma ação é reforçada num diálogo mudo entre o palco e a platéia.” (2002, p.50 e
55).
Importa lembrar que nem todos os espetáculos utilizam a triangulação com o
público. O olhar que se comunica com o público pode inexistir em espetáculos que
utilizam a quarta parede, por exemplo, sendo uma opção vinculada às necessidades
artísticas do espetáculo e não uma regra inquebrável.
4.5.c. O olhar como indicador da ação.
Nessa compreensão o olhar direcionado do objeto pode orientar a atenção do
espectador, somando na produção de sentido acerca do acontecimento em cena. A
personagem pode utilizar esse recurso de olhar (antes de uma ação) para o ponto
onde pretende chegar com um deslocamento ou para um objeto que represente um
objetivo a ser alcançado e para/com o qual realizará ações relacionadas. A
professora Cara elege como um princípio fundamental a relação do olhar com o
deslocamento, devendo a personagem animada sempre apontar a direção do
deslocamento com o olhar. De outro modo a personagem parece deslocar-se como
um caranguejo, que olha para frente e se desloca em outra direção, lembrando,
104
ademais, a importância de não perder a relação frontal entre personagem e público.
Nesse sentido, trazemos a noção trabalhada por Meschke (1988), pautada em
Decroux, de que tudo o que se move, se move em uma direção. Essa direção está
não apenas no sentido do movimento físico, mas presente também no movimento
dramático, na atuação mesma da personagem no interior da obra, no subtexto, nas
idéias e características da personagem que impulsionam suas ações. Desse modo,
refere-se não somente às ações físicas, mas a um direcionamento interior. Diz
respeito também às partes do objeto animado ou do corpo do ator-animador. Mesmo
quando a proposição é a não-direção nos movimentos, essa proposta é já um
direcionamento. Trabalhar com a noção de que tudo possui uma direção não
implica sempre um planejamento preciso e a exclusão de processos de
improvisação, experimentação e descoberta na criação, pois a partir dessas
experimentações pode-se afirmar ou negar as alternativas encontradas. “A
consciência da direção do movimento é importante porque confere segurança e
energia ao movimento. Há que dirigir o movimento como o artilheiro que aponta para
o objetivo antes de disparar.”
75
(MESCHKE, 1988, p. 55, tradução nossa). Ele
descreve um exemplo no qual a personagem sonha acordada sentada num parque.
Retirada de seus pensamento pelo alvoroço de pessoas que a olham, o olhar da
personagem, antes errático, se dirige à frente e se imobiliza. Dessa maneira, a
direção do olhar é a indicação da troca dos dois mundos em que habita a
personagem: o mundo de seus pensamentos e a realidade.
Destarte, a clareza do ator-animador acerca das ações, gestos e
deslocamentos a serem executadas lhe permite investigar a maneira mais adequada
de implementá-los, bem como precisar um olhar como antecipação da ação ou para
sublinhar um signo ou conjunto deles em cena. A intenção do objeto animado se
conhece pela direção de seu olhar.
4.6. Foco
Dos princípios que se entrelaçam com a significação e execução do olhar, o
foco, que se relaciona intimamente às questões antes expostas, é noção
fundamental no desempenho da animação. O foco é o objetivo principal das
atenções dentro das cenas ou das ações no espetáculo. Quando a personagem
75
La conciencia de la dirección del movimiento es importante porque confiere seguridad y energía al
movimiento. Hay que dirigir el movimiento como el artillero apunta al objetivo antes de disparar.
105
concentra seu olhar sobre o outro que fala, aponta-o como o centro da atenção
naquele instante, orienta os sentidos do público. Em Beltrame, consonante com essa
noção cêntrica, o foco “é a definição do centro das atenções de cada ação, [...] é um
dos principais meios de comunicação entre as personagens, e isso se entre elas
mesmas ou com a platéia.” (2008, p. 28-29).
O princípio do foco é um dos eixos centrais nas reflexões do artista Sérgio
Mercúrio acerca da animação de um boneco. Ele trabalha com cinco princípios que
orientam seus espetáculos e as oficinas por ele ministradas, dentre os quais está o
foco. Para ele o foco é uma ferramenta sem a qual não é possível fazer teatro de
animação. Seu trabalho é embasado na relação que o boneco estabelece com o
público.
Imagem 24 – Espetáculo de Sérgio Mercúrio, El Titiritero de Banfield.
Fonte: http://www.eltitiritero.com.ar/
Além disso, como podemos ver na imagem acima, Sérgio Mercúrio assume
seu papel de ator-animador, de maneira que se não tivesse total domínio do seu foco
e do foco do boneco, o público não apenas poderia ficar confuso quanto àquele que
fala, mas também a personagem perderia no seu caráter de vida independente. A voz
também caracteriza e diferencia as personagens do boneco e do ator-animador, mas
o foco é essencial na promoção desse discernimento. “A importância do foco, na
comunicação é tão grande que inclusive pode chegar a gritar. [...] Quem não olha a
106
quem lhe fala, tem implícita a não comunicação.”
76
(2006, no prelo, tradução nossa)
O artista enfatiza que, sem foco, a personagem se desfaz e volta a ser somente um
objeto inanimado. Esse foco é dado, em seu conceito, pelo direcionamento do olhar.
Além do foco da personagem, o ator-animador deve ter controle sobre o seu
próprio foco. Em geral as reflexões encontradas a esse respeito sugerem que o
animador deve manter o olhar sempre sobre o objeto. Cara apresenta essa
concepção em seu livro com destaque: “REGRA: o olhar do manipulador é sempre
concentrado sobre o objeto que ele manipula.” (2006, p. 23, tradução nossa)
77
.
Entretanto, Jean-Louis Heckel, num exercício com cabeças de bonecos
78
, orienta os
atores-animadores a direcionarem seu foco ao boneco e ao ponto onde se encontra o
foco do boneco, fazendo circular a “energia” contida na carga do olhar.
Como o olhar tem um forte poder de significação, de orientação da atenção, o
ator-animador ao olhar para a personagem contribui para concentrar a atenção do
público sobre as ações do objeto. O olhar pode estar a serviço de outras situações
como a sua utilização nas transições de personagens antes citadas, ocorridas na Cia.
Pequod, no espetáculo Peer Gynt. O foco do ator-animador pode ser visto como uma
como ferramenta, utilizando-o segundo os objetivos do trabalho que desenvolve.
Convém ressaltar que o é somente o olhar que direciona o foco, ainda que
possa ser o principal meio. O objeto em cena pode recorrer a outros recursos para
implementação do foco. Podemos pensar na disposição espacial que os outros
personagens configuram no palco que pode implicar numa distribuição visual que
estabelece um “peso maior” a uma personagem ou objeto. O foco pode também ser
apresentado por meio de outros gestos (que não o olhar), pela posição do corpo da
personagem ou por outros sistemas de signos como a iluminação, por exemplo.
Outro aspecto que contribui com o foco é a redução da movimentação das
personagens quando não são o foco da ação. Com isso, a personagem que fala, em
tendo mais movimentos, chama a atenção do público para si. Se as outras
personagens não diminuem sua movimentação, a cena pode ficar confusa, com
multifocos que dão a sensação de sujeira e imprecisão na cena.
76
La importancia del foco, en la comunicación es tan grande, que incluso puede llegar a gritar. [...]
Quién no mira a quien le habla, tiene implícita la no comunicación.
Este texto foi gentilmente cedido pelo artista.
77
RÈGLE: Le regard du manipulateur est toujours concentré sur l’objet qu’il manipule.
78
Oficina realizada em maio de 2008.
107
A personagem na condição de observador pode ficar completamente parada
ou realizar os pequenos movimentos de indicação de vida. Alguns autores elegem a
imobilidade como princípio para atuação nessa situação de escuta no teatro de
animação. Amorós e Paricio orientam para alcançar a clareza da mensagem que
chega ao público: “o que fala se move [...] [e] os bonecos que escutam estarão
quietos e voltados para o que fala, atraindo desta maneira a atenção do público
sobre ele.
79
(2005, p.77, tradução nossa). Cara, a favor desse princípio, aponta uma
“regra de ouro” que estabelece um princípio fundamental para o jogo com o objeto. É
um princípio de correspondência anunciado do seguinte modo: “Regra: “Esse se
move esse fala. Esse não se move esse não fala.” [...] Ao inverso, um objeto
que não fala não deve se mover. [...] A associação estrita da palavra ao movimento
é um código que permite o reconhecimento
imediato do personagem que fala.
(2006, p. 51, grifos da autora, tradução nossa).
80
A opção por ficar absolutamente parado exige precisão no retorno ao
movimento, pois se essa personagem se mantém parada quando a ela é devolvida o
foco, isto pode evidenciar sua condição de matéria. O grupo Tábola Rassa utiliza
esse tempo em atraso a favor de sua dramaturgia, numa cena do espetáculo L’Avar
em que o velho avarento escuta outra personagem contar uma história. Ao terminar
de falar, a velha torneira continua inerte e a personagem que falava convocando sua
atenção, tem como resposta uma fala e um gestual daquele que se enfadou e até
dormiu ao escutar a história pouco interessante.
Na construção dessa relação de humanização que o espectador faz com o
objeto-personagem, um aspecto a pensar é que dificilmente na referência humana
alguém se encontra absolutamente parado. É bem verdade que o foco da cena
estando sobre aquele que se move e fala, pouco se percebe outro objeto-
personagem que se encontra com maior imobilidade, na escuta. Mas alguns
elementos podem ser observados na composição dessa diminuição cinética.
A manutenção do nível do objeto e de seu eixo central (princípios que
esclareceremos na seqüência da pesquisa) é necessária, tanto para a opção de
completa imobilidade, quando na execução de movimentação reduzida. Encontram-
79
El que habla se mueve [...] los títeres que escuchan estarán quietos y vueltos hacia el que habla,
atrayendo de esta manera la atención del público sobre él.
80
Règle: “Ça bouge ça parle. Ça ne bouge pas ça ne parle pas.” [...] À l’inverse, un objet qui ne
parle pas ne doit pas bouger. [...] L’association stricte de la parole au mouvement est un code
qui permet la reconnaissance immédiate du personage qui parle.
108
se personagens que começam a afundar ou amolecer na cena por esquecimento do
ator-animador em manter a tonicidade.
É importante também a manutenção do foco, seja ele para a personagem que
continua a ser foco da cena ou para as indicações de foco dadas pela personagem
em foco, seja quando ele aponta o foco para um objeto ou partes de seu corpo ou
quando ele mesmo se desloca.
A personagem em escuta, pode também realizar pequenos gestos, de
maneira a não atrapalhar a canalização da atenção que se encontra na outra
personagem, como um breve movimento de cabeça que confirma para o outro que
fala sua condição de escuta. A respiração pode ser também uma aliada nessa tarefa
de interpretação da personagem fora do foco. O objeto sem ação pode encontrar a
manutenção de sua interpretação na realização da respiração.
4.7. Respiração
A respiração é apontada como uma movimentação de grande valia na
interpretação com o objeto.
Joan Baixas atribui à respiração o meio pelo qual o ator-animador realiza a
identificação com a personagem no objeto animado, sendo que “o sopro da
marionete é o hálito do ator que se manifesta na voz e nos silêncios”
81
(19994, p.42,
tradução nossa). Ele apresenta em seu artigo uma analogia, na qual o ator-animador
respira no objeto animado como um cantor lírico o faz em sua coluna vertebral. “Ele
se funde com seu personagem no momento da inspiração e a exterioriza no
momento da expiração.
82
” (1994, p. 42, tradução nossa). Para Baixas, a respiração e
o olhar se fundem na composição das ações da personagem de tal maneira que
sem a realização desses princípios pode-se constituir um manipulador de belas
esculturas, mas dificilmente tornar-se-ia um ator-animador “persuasivo, no sentido
teatral”.
Paulo Fontes
83
quando orienta o estudo de criação de movimento solicita a
respiração, sublinhando sua importância. Ele apresenta a idéia de que o objeto
respira entre uma ação e outra. Quando o objeto está agindo (gesticulando, se
deslocando) ele não precisa dos movimentos que compõem a respiração, mas ao
81
Le souffle de la marionnette est l’haleine de l’acteur, qui se manifeste dans la voix et les silences.
82
Il se fond dans son personnage lors de l’inspiration et l’extériorise lors de l’expiration.
83
Aula ministrada no projeto Espia Só! Na oficina de Construção da Forma e do Movimento, em Itajaí
– S.C, em 30 de junho de 2008.
109
parar, a personagem pode respirar em meio ao direcionamento do seu olhar que
antecede a próxima ação. Essa respiração vai ser mais forte logo na parada,
sobretudo se a ação que a antecede é agitada, e vai diminuindo até parar com o
recomeço de outra ação. Ele orienta a respiração do objeto sempre ao final de cada
ação, pois isso potencializa a recepção do espectador daquela personagem como
vida autônoma.
A respiração deve ser realizada na parte que corresponde ao centro do corpo
do objeto-personagem, pois quando o ator-animador movimenta a respiração do
boneco com a cabeça (ou equivalente a essa parte) ele estará sujeitando a
personagem às constantes mudanças de foco. Como a matéria que serve à
interpretação da personagem é muitas vezes, mesmo nos casos de bonecos com
muitas articulações ou material flexível, constituída em blocos, é necessário procurar
então o movimento mais interessante à veracidade da respiração, pois o boneco e
demais objetos respiram na movimentação de todo o corpo. Nas afirmações de
Beltrame, “encontrar o movimento justo para dar a idéia de que o boneco respira
exige a ampliação desse movimento, uma vez que o boneco “respira” com o corpo
inteiro. [...] é necessário longo tempo de “convivência” com o boneco para encontrar
o movimento justo.” (2008, p. 35). Em sua compreensão também, a respiração
realizada adequada às necessidades da personagem no espetáculo faz com que
este objeto-personagem torne mais convincente a interpretação de uma personagem
proprietária de ânima.
Por fim, evidenciamos mais uma vez as idéias de Baixas: “Privado do
sopro/respiração vital, o personagem permanece um objeto e não se desprende de
sua pertinência às artes plásticas.”
84
(1994, p.43, tradução nossa). Assim, o objeto
que não dispõe de movimentos de respiração em sua partitura, sobretudo em seus
momentos de pausa cinética, pode despotencializar a composição da significação de
vida para o espectador.
4.8. O andar
O grupo francês Théâtre du Mouvement [Teatro do Movimento] realiza uma
pesquisa sobre os modos de andar, pois entende que o domínio desses movimentos
é fundamental para o trabalho do ator. O andar é uma espécie de pré-expressão que
84
Privé de souffle vital, le personnage demeure un objet et ne se dégage pas de son appartenance
aux arts plastiques.
110
segue à margem do jogo dramático de expressão realizado pelo ator, podendo
parecer falsa a sua interpretação se este deixa escapar o andar da personagem e
utiliza o seu. A pesquisa do grupo defende que o ator deve possuir uma biblioteca de
diferentes modos de andar disponíveis para a construção de personagens.
O andar é um conjunto de movimentos com grande potencial de
caracterização e expressão de uma personagem. “O andar é, para um observador
atento e sensível, uma janela aberta para sua intimidade. (THÉÂTRE DU
MOUVEMENT, 2008, online, tradução nossa).
85
Ele encerra muitas informações e
através dele é possível apresentar variados estados da alma, bem como apresentar
uma característica mais permanente da personagem, como por exemplo, um boneco
que anda mais saltitante e rápido, pode ser um indicativo de uma personagem mais
agitada.
O autor Michael Meschke concebe o andar como uma matéria de muita
importância e pouco sublinhada nos estudos sobre teatro de animação. O andar é
em sua concepção uma das tarefas mais difíceis na animação de um boneco,
sobretudo no boneco animado por fio.
O objeto-personagem desenvolve um andar distinto dos modos naturais de
andar do homem, ainda que o tome como parâmetro. Para desenvolver uma
partitura de movimentos do caminhar é preciso experimentar as possibilidades
cinéticas do objeto e sua relação com as características da personagem e as
demandas de seu contexto dramático. Para caminhar o objeto não precisa mover-se
como o corpo humano, lembrando mesmo que existe uma complexa gama de
morfologia da materialidade da personagem, que vai desde o boneco animado sobre
um balcão que se aproxima do movimento humano até objetos retirados do cotidiano
que não possuem pernas e braços pendulares. O corpo humano tem uma
articulação com as demais partes do corpo no caminhar. Por conseguinte,
observando os braços, é possível saber qual perna se encontra à frente.
Observando a cabeça podemos descobrir se o corpo está sobre as duas pernas ou
apoiada sobre uma só. “Não se caminha com as pernas, mas com o corpo. As
pernas somente ilustram o andar.“
86
(MESCHKE, 1988, p. 67, tradução nossa). No
teatro de animação essa noção de um movimento corporal conjunto para a
confecção do caminhar é de fundamental importância. Carlos Converso (2000)
85
La marche est, pour un observateur vigilant et sensible, une fenêtre ouverte sur son intimité.
86
No se camina con las piernas sino con el cuerpo. Las piernas solamente ilustran el andar.
111
apresenta três movimentos fundamentais do caminhar de um boneco antropomorfo:
o deslocamento horizontal; um movimento ondulatório na vertical, referente à troca
de pernas na execução dos passos; um movimento maleável no corpo, como um
pequeno giro devido ao desequilíbrio de cada passo, percebido, sobretudo nos
ombros. Esses três movimentos presentes no boneco oferecem a sensação de estar
diante de uma personagem que caminha. É devido a esse princípio que um boneco
de luva, que na maioria dos casos não possui pernas, não se ressente devido a esse
fato, sendo o movimento conjunto do corpo que imprime no boneco um caminhar.
Encontramos nas reflexões de André-Charles Gervais, que elaborou um
estudo sobre a animação com boneco de luva, uma convergência com as indicações
dadas por Converso:
Todo comediante conhece as regras que governam os deslocamentos do
ator no palco. No entanto, quão poucos, na rua ou no palco, sabem andar
bem. Quanto aos marionetistas, a maioria se esquece de que seus
bonecos devem ter pernas, isto é, ter um movimento geral do corpo
causado pelo movimento dos membros inferiores invisíveis. Geralmente,
se contentam em deslocar o boneco sobre um plano horizontal como se
ele deslizasse sobre patins. (GERVAIS, 1947, p.8)
87
.
Pare esse autor, o deslizamento pode ser uma maneira de evoluir o boneco, a
“mais simples de fazer”. Entretanto, orienta que o ator deve cuidar para não
acomodar sua pesquisa adotando o deslizamento em todos os deslocamentos,
ajustando sua utilização quando convier.
No espetáculo Juan Romeu y Julieta Maria, do grupo El Chonchón,
encontram-se dois bonecos que o apresentadores do espetáculo ao passo que
são também os atores que precisam interpretar vários papéis do espetáculo que
desejam mostrar ao público. Um dos bonecos começa a mancar quando interpreta
uma de suas personagens. Com este exemplo no qual o mesmo boneco de luva
apresenta mais de uma forma de caminhar, procuramos sublinhar que, qualquer
objeto pode caminhar desde que constitua uma partitura cinética que produza essa
significação. Cada gênero de animação terá particularidades no desempenho da
variação de modos de andar de suas personagens.
De modo geral, a maneira de deslocar-se no espaço pode acontecer em
diferentes velocidades e trajetórias. Existem diferentes maneiras de caminhar.
Meschke (1988) denomina essa variedade de “classes de andar”. O ator-animador
87
Ressaltamos que, no francês a palavra comediante tem significação do conteúdo da palavra ator e
marionetista é aquele que interpreta no teatro de formas animadas.
112
pode elaborar uma biblioteca de modos de andar e eleger o que melhor se adapta
ao caráter do objeto em sua experimentação de movimentos. Gervais sugere
algumas espécies de andar para exercício com o boneco de luva, dentre os quais
estão: o andar pesado, andar rápido, andar empetecado, andar saracoteado, andar
trêmulo, andar tremido, andar titubeante, andar ondulante, marcha militar e andar na
ponta dos pés.
O ator-animador deve preocupar-se em manter o nível durante a caminhada.
Do ponto de vista morfológico do andar, o corpo do objeto animado está vinculado
às posturas e atitudes da personagem, modelando o andar sob essas referências
que podem ser dadas a partir do posicionamento das distintas partes do objeto. Se o
nível, a tonicidade ou o eixo forem perdidos, a personagem provavelmente perderá
sua forma de andar. Devido à implicação direta do movimento do ator-animador no
movimento do objeto e da elevada capacidade de significação presente no andar, o
animador deve ajustar seu andar às necessidades de sua presença de cena. O ator-
animador como não-presença, por exemplo, precisa despojar-se de seus gestos e
atitudes cotidianos, dentre eles o andar, a fim de amenizar sua presença e reforçar a
atenção do público para o objeto.
Nesta pesquisa o andar é entendido como fonte expressiva da personagem e
como tal, demanda a constituição de uma organização dos movimentos mais
qualificados. Essa composição está vinculada às possibilidades físicas do objeto e
às necessidades do espetáculo e requer uma pesquisa do ator-animador para
encontrar o modo de andar particular ao objeto com o qual interpreta.
4.9. Entrada ou apresentação:
Denominamos de entrada o modo como a personagem aparece em cena, em
seu primeiro contato com o público. Esse momento de encontro com o público tem
sua relevância enfatizada nas pesquisas de alguns autores, como Amaral, que em
um trecho no qual cita “algumas regras básicas” válidas para qualquer gênero de
animação, destaca esse momento da presença cênica da personagem:
A entrada de um boneco em cena é um momento fundamental, deve
causar impacto. Ao ser visto pela primeira vez, por segundos que sejam,
o boneco deve ter uma postura tal que num primeiro instante dê a
impressão de existir por si. Depois dessa sua apresentação, seguem-se
os seus primeiros movimentos que vão transformá-los, de simples objeto,
em personagem vivo. (AMARAL, 2002, p. 87).
113
O ator-animador Paulo Fontes, da Cia. Gente Falante, em suas orientações
de animação
88
sublinha a importância da entrada como a imagem e impressão
primeira que servirá ao espectador de referência para todas as demais aparições e
ações dessa personagem. Por isso, solicita ao aprendiz um cuidado com esse
primeiro momento do objeto com o público.
Podemos trazer também as considerações dos artistas Amorós e Parício
extraídas de seus escritos sobre o teatro de animação:
Existe certa tendência de sair com o títere para a cena diretamente para
fazer algo. Quando o boneco aparece pela primeira vez, o público
necessita de alguns segundos para conhecê-lo, visualmente falando, - o
títere é por sua vez, recordemos, um elemento plástico, uma escultura -.
Os espectadores desejam saber como é, como se move, que relação
mantém com o entorno, com o titiriteiro, com os espectadores. (2005,
p.48, tradução nossa).
89
Na pesquisa de Beltrame (2008) o item denominado de “apresentação do
boneco” é classificado em dois modos comuns de ocorrência: apresentação
tradicional e a apresentação silenciosa. No primeiro caso, a personagem entra em
cena se apresentando marcadamente por meio da fala, utilizando um texto que
muitas vezes é passado de geração a geração sem alterações de sentido. Esse
modo de apresentação é recorrente nas formas de teatro de animação tradicionais.
Na apresentação silenciosa o contato com o público é estabelecido pela entrada da
personagem seguida de um olhar mantido por alguns segundos antes de continuar a
cena. “O tempo de apresentação é realmente muito curto, apenas três segundos,
mas é suficiente para o blico identificar a figura, a forma animada.” (BELTRAME,
2008, p. 37).
Nesta pesquisa a entrada ou apresentação é abordada como a primeira
relação estabelecida entre o público e o objeto. Por isso, a composição desse
momento deve ser uma escolha consciente do efeito desejado com essa opção.
Assim, entendemos que esse contato pode acontecer pela fala ou em silêncio, em
movimento pido, lento ou quase pausado, com a presença ou ausência do olhar.
Concordamos que, tendo a personagem parte de sua composição na plasticidade de
88
Aula ministrada no projeto Espia Só! Na oficina de Construção da Forma e do Movimento, em Itajaí
– S.C, em 30 de junho de 2008
89
Existe cierta tendencia a salir con el títere a escena directamente a hacer algo. Cuando el muñeco
aparece por primera vez, el público necesita unos segundos para conocerlo, visualmente
hablando, -el títere es a la vez, recordemos, un elemento plástico, una escultura -. Los
espectadores desean saber cómo es, como se mueve, qué relación sostiene con el entorno, con el
titiritero, con los espectadores.
114
sua materialidade, é relevante a percepção desses elementos pelo público. Essa
idéia pode sugerir que as entradas devem ocorrer sem movimentos demasiados
rápidos, entretanto, quando a bruxa entra no espetáculo O Caso da Cobra-Pantera
de Augusto Bonequeiro e Ângela Escudeiro, ela atravessa a empanada tão
rapidamente que mal se pode perceber sua plasticidade. A intenção é provocar a
curiosidade das crianças que já haviam recebido outras informações sobre ela
através das falas das demais personagens. Assim, nesse caso não é o aspecto
visual, nem o olhar que a apresenta. Tampouco é uma fala realizada pela
personagem em questão, mas é o texto das demais personagens, combinada com
sua passagem rápida que a apresenta. Outro tipo de entrada pode ser observada na
Cia. Pequod, no espetáculo O Velho da Horta, no qual o velho não olha para o
público e segue o espetáculo sem interação direta com ele. A apresentação não
passa necessariamente pelo contato do olhar do objeto-personagem. Nesse caso a
apresentação é dada pelo contato visual com o movimento e plasticidade do boneco,
ou seja, os signos pelos quais a personagem se apresentou ao público diferem do
olhar e da fala de personagens.
Nesse sentido, as duas entradas citadas como ilustração são coerentes com
as propostas de atuação e demandas do espetáculo. O ator-animador precisa ter
clareza da importância desse primeiro contato com o público e a sua tomada como
referência pelo público, bem como da necessidade de obtenção das informações
plásticas emitidas pelo objeto. De posse dessa noção, o animador deve adequar os
elementos da apresentação de sua personagem constituindo sua partitura de
entrada.
4.10. Tonicidade, nível, eixo e ponto fixo
Esses elementos se relacionam diretamente com a movimentação do objeto
realizada pelo ator-animador. O termo tonicidade em geral relaciona-se às noções
de vigor ou energia. Essa noção se estende ao conceito com o qual trabalhamos no
teatro de animação referindo-se à idéia de que para transmitir ao blico a
impressão de presença de energia, de vida no objeto, é preciso que o animador
esteja em constante vigilância para não ‘amolecer’ o objeto animado. O corpo de um
boneco animado, por exemplo, precisa estar munido de certas tensões originadas no
corpo do ator-animador que o mantenha na postura de base característica de sua
personagem.
115
Anne Cara orienta, sobre a animação da forma, a manutenção do tônus como
uma exigência da técnica do teatro de animação, pois “para parecer vivo, indivíduo
autônomo, o boneco deve estar tonificado, com aparência erguida e dinâmica.”
90
(2006, p. 47, tradução nossa). A perda da tonicidade pode provocar a perda do
olhar, da visualização do olho do boneco, retirando do espectador esse importante
contato, sobretudo a possibilidade de utilização do boneco no processo mencionado
como tela de projeção. Em decorrência disso, a personagem perde verossimilhança
e pode voltar a ser objeto manipulado.
É comum o ator-animador iniciante ir abandonando a tonicidade com o
avançar do espetáculo. O cansaço do corpo ainda não habituado leva o animador a
sair da posição necessária à manutenção do tônus do objeto apresentado. Nos
diferentes gêneros de animação, se esta ocorre por cima, por trás ou por baixo, o
ator-animador encontra diferentes exigências físicas à manutenção da tonicidade.
Se a animação ocorre por cima ou por trás, o abandono da tonicidade pode significar
um amolecimento da personagem, um esvaziamento. Se pensarmos na animação
de um boneco de luva, o boneco pode paulatinamente desaparecer da empanada ou
murchar, encolhendo-se ante o espectador.
Nesse sentido, elencamos dois aspectos com os quais se relaciona a
tonicidade: nível e eixo. O nível é uma referência de chão com a qual o ator-
animador trabalha na animação da personagem. No gênero da animação a fio e na
mesa, por exemplo, o ator-animador deve afastar ou manter conscientemente essa
referência de chão para que a personagem apenas flutue quando esse for seu
objetivo. Na animação de um boneco de luva, perder o nível faz com que o boneco
afunde na empanada, desaparecendo da visão do público. Beltrame (2008) aponta
outro aspecto relativo ao nível: na animação de boneco de luva o nível determina
também o tamanho ou altura do boneco.
O segundo elemento relacionado à tonicidade é o eixo, tomado na pesquisa
de Beltrame na seguinte perspectiva:
O eixo do boneco e sua manutenção Consiste em respeitar a estrutura
corporal e sua coerência com a coluna vertebral do ser humano, ou
obedecer à postura animal quando a personagem é dessa origem. É
importante aproximar o boneco da forma “natural” da personagem que
representa. Exige observar a posição das pernas, coluna vertebral,
90
Pour paraître vivante, individu autonome, la marionnette doit être tonique, d’apparence érigée et
dynamique.
116
verticalidade do corpo do boneco quando se trata de boneco do tipo
antropomorfo. (2008, p.32).
Para a manutenção do eixo o pesquisador chama atenção para a
necessidade de observar toda a articulação corporal do boneco, de tal modo que o
ator-animador deve atentar para o posicionamento não apenas da coluna, mas
também das partes a ela vinculada.
O eixo pode ser tomado pela noção de um desenho da coluna vertebral da
personagem com a qual se trabalha como referência na execução dos movimentos
da personagem. Significa respeitar esse parâmetro adotado para a personagem
para que o animador não “perca a personagem”, no sentido de não perder a postura,
o andar e a gestualidade própria de seu corpo e de suas características subjetivas.
Philippe Genty trabalha com o eixo como um dos parâmetros da animação.
Todavia, o artista atribui outro caráter ao conceito. Para ele o eixo são pontos fixos
nas articulações do boneco que devem ser respeitados na movimentação das partes
ligadas a essas articulações. Assim cada articulação pode oferecer alguns pontos
fixos em torno dos quais giram as articulações. O eixo na perspectiva de Genty é
uma noção que se apresenta não apenas na coluna vertebral, mas em vários pontos
do corpo.
A idéia do ponto fixo também está no sentido de fixação do eixo nesses
variados pontos. O ponto fixo é um parâmetro de trabalho muito importante para o
ator-animador, pois evita deslocamentos e movimentos indesejados ou pouco críveis
no contexto da animação de uma forma. Para Beltrame o ponto fixo significa manter
o eixo central e o nível do boneco enquanto executa outra tarefa simultânea na
cena, como por exemplo, o deslocamento do ator-animador a fim de alcançar outro
objeto (outro boneco, controle de luz ou de som, por exemplo). Desse modo, o ponto
fixo consiste em realizar outra tarefa no mesmo instante em que mantém a presença
de cena da personagem que se apresenta ao público.
Em nossa compreensão, o eixo está presente em todas as articulações do
corpo do boneco e outros objetos, bem como se relaciona à orientação da postura
da coluna vertebral da personagem dada pela organização das partes do corpo do
objeto. O ponto fixo, por conseguinte, atua com a manutenção do eixo central e o
eixo das articulações.
Esses elementos apresentados são de grande relevância ao trabalho do ator
na animação da forma: manter a tonicidade é mantê-lo vivo, mantendo seu nível e
117
eixo (tanto central como os demais); manter o nível para que não se desarticule ou
desapareça ante o público. O ator-animador deve descobrir e aproveitar os eixos
imaginários do objeto, empregando-os a favor da animação, considerando os pontos
fixos das articulações e mantendo a postura adotada para a personagem pelo
parâmetro do eixo central.
4.11. Partitura de movimentos.
Ao nos remetermos ao termo partitura, em geral a idéia que surge num
primeiro instante é a noção de partitura musical: um sistema de notação através do
qual é possível registrar e reproduzir uma obra musical. No teatro, entretanto,
partitura não implica necessariamente registro, mas refere-se a um instrumento de
criação do ator e/ou encenador para a construção de um esquema objetivo e
diretivo, delineando pontos de apoio e referências para o desenvolvimento de seu
trabalho, que são ao mesmo tempo físicos e emocionais.
Tais pontos de apoio sustentam sua memória emocional e cinestésica,
seu “corpo pensante”. São particulares ao ator e não tem em si valor
absoluto. Trata-se muitas vezes de imposturas, de lugares de
indeterminação, de astúcias de memorizar mentalmente e corporalmente
a trajetória do papel e a situação cronotípica do ator. (PAVIS, 2003,
p.91).
A partitura como ferramenta de trabalho surge com maior evidência nos
trabalhos dos encenadores do século XX, como Stanislávski e Meyerhold, que
tinham o ator como componente fundamental do fazer artístico teatral e buscavam o
desenvolvimento de teorias de cena e métodos de treinamento para promover uma
maior expressividade ao corpo, combatendo a atuação como produto de uma
inspiração e atribuindo ao domínio técnico um caminho que liberta o ator para o ato
criativo.
91
Alguns destes encenadores trabalhavam com o conceito de partitura para o
ator, outros, como Artaud e Brecht, estenderam o papel da partitura a toda a
encenação e muito embora eles a tenham usado como uma metáfora para articular
o trabalho do ator ou a encenação, existiram tentativas de registro dessas partituras.
No desenvolvimento desse trabalho, elencaremos algumas reflexões acerca do
91 Sobre o conceito de partitura em cada um dos mais importantes encenadores novecentistas ver o
trabalho de conclusão de curso de Mônica Siedler (referência na bibliografia). Além das reflexões
tecidas, a pesquisa traz em seu anexo a tradução de um importante texto de Patrice Pavis sobre esse
assunto.
118
caráter notacional e de escrita da partitura no teatro e suas implicações nessa
perspectiva.
O ator no teatro de animação pode apropriar-se desses princípios de
composição cênica como uma ferramenta, adequando-os às demandas das
peculiaridades intrínsecas à linguagem.
4.11.1. Três esferas da partitura.
A partitura no teatro de animação pode tangenciar três esferas: a partitura da
encenação, do ator e do objeto.
A partitura da encenação se dispõe a dar conta do conjunto dos elementos
presentes na encenação, buscando criar e visualizar o todo como os diversos
instrumentos de uma orquestra.
Podemos observar uma amostra de partitura de espetáculo no teatro de
animação no trabalho dos artistas Amorós e Paricio.
119
Imagem 25 – Roteiro visual de Amorós e Paricio – Espetáculo Retablo de Natividad.
Fonte: (AMORÓS e PARICIO, 2005, p.60).
120
Os artistas denominam de roteiro visual (guión visual) a impressão em uma
folha de papel do esboço da composição gráfica das várias cenas do espetáculo.
Esse roteiro é apontado pelos artistas como uma importante ferramenta que permite
o acompanhamento do desenvolvimento plástico do espetáculo. Esse roteiro lhes
serve para visualizar as trocas e evolução dos elementos plásticos, sejam eles
objetos animáveis, objetos outros ou cenografia.
A partitura do ator-animador está estreitamente articulada à partitura da
personagem. Esta, por sua vez, é uma criação do ator-animador conjuntamente com
o diretor, detalhando a seqüência de movimentos, gestos e ações de cada
personagem no espaço e no tempo, em cada cena do espetáculo. Esta partitura é
pautada em aspectos como o gênero de animação utilizado; as limitações e
possibilidades do objeto enquanto matéria; a coerência entre a composição da
personagem e a concepção total da encenação; a subpartitura.
As partituras do objeto e do ator-animador podem ser organizadas tomando
duas perspectivas de um mesmo fenômeno cinético: a perspectiva eucinética e a
coreológica. Os conceitos aqui utilizados afinam-se ao entendimento apresentado na
pesquisa de Andrade e Petry:
A eucinética se ocupa da composição das ações dinâmicas segundo
princípios psicofísicos dentro de uma unidade espaço-tempo-energia
determinada nos limites do corpo do ator-dançarino. A eucinética,
segundo Rudolf Laban (1879-1958), é a pesquisa da composição do
movimento num domínio no qual são identificados os aspectos dinâmicos
da ação. (2007, p. 180).
O fenômeno do movimento tomado sob o recorte da eucinética realiza a
composição da partitura entendendo-o em suas diferentes qualidades de energia,
em suas variações de ritmo e na relação estabelecida entre as distintas partes do
corpo do ator-animador e do objeto, visualizando os múltiplos segmentos de
movimento que compõem um todo mais complexo.
A coreologia por sua vez, visualiza o movimento sob a perspectiva do
desenho e projeções que os corpos realizam no espaço. Nesse sentido, ao
desenvolver uma composição cinética, o olhar está apontado às possibilidades de
configuração formal constituída sobre elementos direcionais e segundo leis de
estruturação e de configuração espacial do movimento.
Assim, o ator-animador pode realizar a composição de gestos e ações sob
esses dois recortes, sendo possível buscar a criação de uma metodologia na qual
121
essas perspectivas do fenômeno cinético possam servir de subsídio à composição
da partitura.
A subpartitura constitui-se numa outra ferramenta para criação da partitura do
ator-animador e do objeto. Esse termo é encontrado nas reflexões de Eugênio
Barba para indicar a idéia por trás da ação. São os pontos de apoio, a mobilização
interna do ator na instauração de uma personagem que, no teatro de animação,
pode tornar-se suporte para a composição e execução da partitura do ator-animador
e do objeto-personagem. Segundo Barba, essa subpartitura é constituída de
“imagens detalhadas ou de regras técnicas, de relatos e perguntas a si mesmo ou
de ritmos, de modelos dinâmicos ou de situações vividas ou hipotéticas.” (1994,
p.167).
Os autores Parício e Amorós, ao tecerem considerações sobre a animação,
sublinham a importância de um repertório gestual, definido em seu estudo como o
“conjunto de gestos, posturas e movimentos que realiza [o boneco], que lhes são
peculiares e que estão em função de suas possibilidades técnicas. Serve para
identificá-lo e, se está adequadamente criado, dará a idéia de seu caráter e forma de
pensar.”
92
(2005, p.68, tradução nossa).
O repertório gestual é constituído de movimentos que caracterizam a
personagem. Trata-se de encontrar os gestos e outros movimentos que pertencem à
personagem em conformidade com suas características “físicas” e “subjetivas”. Esse
repertório, então, constituirá uma biblioteca, um conjunto de caracteres simples, que
serão empregados pelo ator-animador na partitura de gestos e ações.
Entre atores-animadores e diretores brasileiros a idéia de partitura quando é
utilizada, na maioria das vezes não é denominada dessa forma. Mas
depoimentos de trabalhos que registrem uma grande mudança qualitativa com a
utilização desse princípio. O ator-animador João da Silva, por exemplo, no
espetáculo Princípio do Espanto, revela o salto qualitativo que representou a adoção
desse instrumento em seu trabalho. Miguel Velhinho, diretor da Cia. PeQuod, ao
discorrer sobre seu processo de construção de personagem, explicita o uso da
partitura de movimento para o ator-animador e para o objeto, embora não utilize
esse termo. Ele conta que o primeiro passo na animação dos bonecos da Cia. é
92
[...] conjunto de gestos, posturas y movimientos que realiza, que le son peculiares y que están en
función de sus posibilidades técnicas. Sirve para identificarlo y, si está adecuadamente creado,
dará idea de su carácter y forma de pensar.
122
levantar detalhadamente quem é aquele personagem, suas características
emocionais e sua história. Em seguida o grupo confecciona o boneco e vai
caracterizar no movimento as particularidades dessa personagem, buscando seu
repertório gestual. “Tudo parte do humano”, ele conta, apontando a referência no
movimento humano para a criação das partituras das personagens. Antes de
trabalhar os movimentos nos bonecos ele realiza uma pesquisa cinética nos e com
os atores-animadores. Em seguida vai decupandoo movimento e experimentando
no boneco. Em outras palavras, o diretor vai selecionando ações, gestos e falas,
compondo uma partitura para o boneco a partir do material cinético oferecido pelos
atores-animadores.
93
Essa partitura tem conseqüência direta na partitura do
intérprete na animação dos bonecos.
4.11.2. Notação e teatro.
A utilização da partitura nesse sentido é pouco utilizada na arte do
teatro/teatro de animação. O registro apresenta dois aspectos funcionais:
a. O registro como documento histórico.
b. O registro como caminho para visualização do trabalho do ator/ator-animador ou
encenador e por conseqüência, uma forma de reflexão para criação e recriação de
sua obra.
No sentido de registro escrito de uma partitura, para constituir-se um sistema
notacional,
94
são necessários alguns requisitos que Cerri (2003) delineia:
a. Da composição dos caracteres: existem os caracteres atômicos aqueles que
compõem a menor partícula do “texto” e caracteres compostos aqueles que
resultam da combinação de inscrições atômicas. A partir das inscrições atômicas se
compõem regras para combinação dos caracteres compostos, que nem todas as
inscrições mescladas constituem um caractere composto. Para ilustração, pensemos
nas letras do alfabeto como caracteres atômicos e as palavras inscrições compostas
e que nem todas as combinações de letras originam palavras. A complexificação das
combinações variam de um sistema notacional a outro. Na música, os mesmos
caracteres podem tomar diferentes significações dependendo da clave onde estão
93 Depoimento dado em resposta ao questionamento de um dos presentes no lançamento da revista
Móin-móin, no VII Festival Internacional de Teatro de Bonecos, ocorrido em Belo Horizonte – MG, em
junho de 2006.
94 Cerri (2003) define notação como um universo estruturado de caracteres pertencentes a um
esquema simbólico que possibilita, a partir dessa notação, estruturar uma partitura.
123
inscritos.
b. Requisitos sintáticos: nenhum signo pode pertencer a mais de um caráter e este
por sua vez, necessita estar separado em classes distintas para que se reduza a
margem de erro na identificação dos signos, para que se coloquem sem confundir-
se. Um sistema notacional deve apresentar um número de caracteres atômicos
finitos e manter uma propriedade essencial, a da equivalência sintática, que implica
que os caracteres de uma notação possam ser trocados entre si, sem
conseqüências sintáticas (para ilustrar, pensemos nos caracteres do alfabeto).
c. Congruência: o termo refere-se à relação de correspondência que deve existir
entre um sistema notacional e sua execução.
d. Requisitos semânticos: implica na não ambigüidade, isto é, que a relação de
congruência entre objetos-referentes e notações-significantes seja invariável e não
permita margem a equívocos. Para que não haja ambigüidade, a composição dos
caracteres e seus aspectos sintáticos devem estar de acordo com os requisitos
acima expostos.
Outros requisitos são estabelecidos para que um sistema notacional possa ter
uma aplicabilidade prática:
Com os requisitos dos sistemas notacionais, propostos até agora, não se
definem ou asseguram um vocabulário e uma gramática adequada. Além
do requisito de um conjunto de caracteres atômicos razoavelmente
limitado, é preciso estabelecer outros requisitos como os da clareza,
legibilidade, duração no tempo, “praticidade” de uso, facilidade de
percepção e interpretação, subjetividade gráfica para as cópias e
facilidade mnemônica para a aprendizagem, rapidez de reprodução e
execução e muitos outros. (CERRI, 2003, p.51, tradução nossa)
95
.
A partitura como registro tem sido mais utilizada pelo encenador que pelo
ator. O diretor busca organizar as diversas esferas do espetáculo por meio dos
chamados “cadernos de direção”. Dado o seu caráter plurilinguístico, o teatro não
possui um sistema notacional que englobe as variadas dimensões de um
espetáculo. Desse modo é necessário construir variadas partituras, como por
exemplo, partituras cenográficas, cinéticas, luminotécnica, musical, dentre outras. No
teatro o existem caracteres sem que estes possibilitem muitas opções de
95
Con los requisitos básicos de los sistemas notacionales, hasta ahora propuestos, no se definen o
aseguran un vocabulario y una gramática notacional adecuada. Además del requisisto de un
conjunto de caracteres atómicos razonablemente limitado, hay que estabelecer otros requisistos
como la claridad, la legibilidad, duración en el tiempo, “praticidad” de uso, facilidad de percepción e
interpretación, subjetividad gráfica para las cópias y facilidad mnemónica para el aprendizaje,
rapidez de reproducción y ejecución y muchos otros.
124
interpretação, ou seja, são privados de separação e diferenciação semântica
delineando um caráter de ambigüidade à linguagem, contrariando os requisitos
notacionais antes explicitados. Assim a congruência exige uma correspondência
entre os elementos de diferentes natureza, isto é, classes de congruência. Nessa
perspectiva, um gesto do ator ocorre em harmonia com a notação inserida na
partitura da luz, bem como com a partitura cenográfica, por exemplo. Pavis faz
referência a essa questão em seu dicionário, num tópico que se intitula “A
Impossível Partitura Cênica”:
Se a música dispõe de um sistema muito preciso para notar
as partes instrumentais de um trecho, o teatro está longe de
ter à sua disposição semelhante metalinguagem capaz de
fazer o levantamento sincrônico de todas as artes nicas,
todos os códigos ou todos os sistemas significantes. (1999,
p.279).
Ele alude a alguns “puristas” que defendem o texto teatral como um fim em si
mesmo e para os quais a encenação não deve ser levada em conta como obra por
ser forçosamente falsificadora, atribuindo ao texto o valor de partitura e obra. Ele
considera os “hieróglifos de ARTAUD ou de GROTOWSKI, os gestus de BRECHT,
as ondas rítmicas de STANISLAVSKI e os esquemas biomecânicos de
MEYERHOLD” (2003, p. 279) tentativas de composição de uma escrita cênica
autônoma, a busca pela criação de uma linguagem de notação cênica.
No teatro de animação pouco se tem notícia de partituras escritas. Jean-
Pierre Lescot, artista francês que trabalha com teatro de sombras, monta uma
espécie de storyboard de todo o espetáculo de tal modo que é possível aproximar-se
da idéia original de seus espetáculos por meio dessa partitura, dado o nível de
congruência alcançado. Abaixo a imagem de um storyboard feito por Lescot, que
distribui as informações, nesse caso, em texto, imagem e ação:
125
Imagem 26 – Storyboard de Jean Pierre Lescot
Fonte: LESCOT apud REUSCH, s/p, 1997
O storyboard é uma ferramenta utilizada no cinema e no cinema de
animação. Cerri (2003) atribui a esse instrumento (no cinema) um relato que se
realiza por meio de desenhos. Para o cinema de animação, todavia, o storyboard
126
cumpre um papel mais importante na criação e execução da obra, como esclarecem
os animadores Whitaker & Halas (1981), constituindo um momento de planejamento
da obra fundamental para essa linguagem que envolve variado número de
profissionais. O storyboard apresenta a composição da cena, o texto das
personagens, os movimentos de câmera, os planos de cena, dentre outros aspectos,
que podem variar.
Marcos Malafaia, do Grupo Giramundo de Teatro de Bonecos, em palestra no
lançamento da revista Móin-Móin, no VII Festival Internacional de Teatro de
Bonecos, realizado em Belo Horizonte, em 2006, discorre sobre o interesse e a
opção do grupo em trabalhar entre fronteiras das linguagens artísticas. Conta
também sobre o interesse pelo campo da dança, com um olhar interessado nas
notações de movimento que essa linguagem tem usado como ferramenta de
composição e registro de obras.
Do exposto, podemos concluir que a partitura de movimento do ator-animador
e do objeto pode ser escrita numa partitura reprodutível, entretanto essa forma de
utilização é raramente encontrada no teatro/teatro de animação. No caso da partitura
da encenação, entende-se como uma notação impossível do ponto de vista da
reprodução. Ainda assim ela pode constituir um instrumento à criação de cenas,
bem como de movimentos, gestos e ações da personagem na cena.
A partitura no teatro de animação possibilita a organização de uma série de
dados que emergem no processo criativo de uma obra teatral, consolidando-se
como uma ferramenta de apoio à realização da animação de um objeto, trabalho que
pode muito exigir da precisão e de uma seleção de signos mais expressivos, numa
linguagem onde vale mais a qualidade do que a quantidade das cenas, elementos e
movimentos selecionados.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa pesquisa focou o trabalho do ator-animador envolvido num tipo de
relação com o objeto na qual lhe imprime uma personagem de comportamento
humano. O estudo priorizou o diálogo com autores e espetáculos, e apontou para a
existência de um conjunto de saberes empregados na realização da interpretação
com o objeto.
Ao analisar a relação com o objeto, o princípio de trabalho definido como
“desdobramento objetivado” desponta como necessário ao desenvolvimento da
animação. Compreendendo que existe a dimensão espaço-temporal do ator-
animador e outra do objeto-personagem, é importante que o animador consiga
manter-se nas duas dimensões a fim de realizar a interpretação em um objeto que é
externo ao seu corpo. Desse modo, é necessário que o ator-animador compreenda
que seus movimentos originam outros tipos de movimentos no objeto e descubra
mecanismos para realização do desdobramento objetivado. Retomamos o exemplo
do carro para ilustração, no qual apresentamos a idéia de que, quando dirigimos,
realizamos movimentos diferentes daqueles que se efetivam no automóvel.
O desdobramento objetivado pode ocorrer por projeção e/ou por dissociação.
A primeira situação consiste em buscar transferir as imagens de seu próprio corpo
(do ator-animador) para o objeto e mais, extrair elementos do ator a partir do
processo de identificação. No segundo caso é o afastamento do ator-animador e do
objeto a partir da compreensão clara da atuação nas duas dimensões espaço-
temporais (incluindo a dissociação cinética). Nas duas situações, a escuta do objeto
é uma aliada do ator-animador. Consiste fundamentalmente em apreender as
características e possibilidades da matéria em função da interação entre ator-
animador, objeto e os demais elementos da cena. Significa para o ator-animador,
substituir uma postura de imposição e assumir uma relação na qual se aproveita
aquilo que cada objeto tem a oferecer nesse processo. Assim, apresentamos
reflexões sobre a escuta do objeto para a composição da partitura cinética e,
também, como um modo de apreensão de elementos para a construção
dramatúrgica. Caracterizamos ainda dentro da escuta do objeto a necessidade de
estar atento no processo de animação. O objeto exige do ator-animador um elevado
nível de presença, de atenção ao trabalho, pois a animação de objetos solicita
precisão e consciência das imagens geradas. A escuta no sentido da atenção deve-
128
se também ao fato do teatro de animação tratar-se de uma linguagem pautada na
síntese. Autores como Anne Cara e Carlos Converso discorrem sobre a questão
lembrando que o objeto, por mais próximo do humano que seja sua animação e sua
construção, não se aproxima da complexidade humana. Por isso, é preciso uma
seleção de signos de qualidade expressiva e uma execução limpa e precisa destes.
A seleção parte da noção de que “menos vale mais”. Ao contrário do que
comumente se imagina nos primeiros contatos com a animação de um objeto, se
obtém maior expressividade quando se seleciona uma quantidade menor de signos
com maior potência significante.
Quando abordamos o tema “neutralidade” como um princípio técnico presente
na interpretação com o objeto percebemos a existência de algumas compreensões
acerca do conceito. Em geral, entre os atores-animadores brasileiros, a neutralidade
é compreendida como a busca de uma presença em cena que passe o mais
possível despercebida pelo público na animação à vista, livre, portanto, de um
figurino com cor, de maquiagem, de peruca, de movimentos bruscos, de um gestual
amplo e movimentos faciais. Outros autores parecem apontar para a neutralidade
como um estado anterior à interpretação. Nesta pesquisa defendemos a idéia de
que a neutralidade é um estado permanente na animação. Por isso o ator-animador
pode utilizá-la em seu trabalho tanto na animação velada quanto à vista. Desse
modo, a neutralidade precisa ser ajustada à necessidade de cada modo de presença
cênica.
Nosso argumento sobre a neutralidade como um estado presente na
interpretação de todos os modos de presença nica do ator-animador é dado pela
coincidência encontrada entre o que constitui um estado de neutralidade no conceito
de Sears Eldredge e os princípios elencados nesta pesquisa para o desenvolvimento
da interpretação mediada pelo objeto.
O movimento é considerado neste trabalho e por quase a totalidade dos
textos acessados, o elemento central da composição da animação de uma
personagem no objeto. O conceito utilizado de movimento abrange qualquer
mudança de imobilidade. Apresentamos a idéia de movimento na pesquisa de três
modos: gestos, ações e deslocamentos, sendo que todo gesto, ação e
deslocamento são movimentos, mas nem todo movimento está enquadrado em
alguma das três noções apresentadas. Explicitamos os parâmetros conceituais com
os quais trabalhamos e transitamos por algumas questões relativas ao tema.
129
Iniciando pela relação movimento-palavra, apontamos para a não submissão do
movimento ao texto, não estando, assim, a serviço de uma ilustração visual. O
movimento constitui outra fonte sígnica que pode ser mais bem utilizada se for
pensado numa composição complementar entre os dois sistemas sígnicos.
Apresentamos a composição de partituras de movimentos como uma
ferramenta de trabalho na animação. Ela pode organizar a seqüência de
movimentos do ator-animador, do objeto e por fim, pode servir à organização de
cenas, entradas e saídas de pessoas, cenários e objetos de todo o espetáculo. Para
a criação, organização e fixação de partituras do ator-animador e do objeto
evidenciamos a possibilidade do ator apoiar-se em subtextos.
Na partitura de movimentos frisamos a importância da presença de alguns
elementos como: o olhar (em aspectos como a relação frontal, sua participação na
confecção do foco e da triangulação e também o olhar como indicador da ação);
foco; a apresentação ou entrada do objeto; a respiração; o caminhar; e a
manutenção de elementos como a tonicidade, nível, eixo e ponto fixo.
Por fim, nesta pesquisa afirmamos também que os princípios técnicos
elencados não podem ser vistos como regras ou princípios rígidos, pois os atores-
animadores orientam suas práticas conforme sua subjetividade e necessidades
particulares de seu trabalho. Contudo, quase todos os princípios elencados na
pesquisa - organizados a partir do material bibliográfico - foram identificados nos
espetáculos observados, apontando para a existência de um conjunto de princípios
técnicos pertinentes ao trabalho do ator-animador. Apoiados nessa idéia
acreditamos que esses saberes podem contribuir na formação do ator-animador
iniciante, dado que pode encurtar um longo caminho para aquisição de
conhecimentos acumulados pelo fazer e reflexões de muitos artistas praticantes e
pensadores dessa arte. Todavia, é preciso cautela para que a apresentação de uma
técnica sistematizada não provoque a inibição do processo criativo do aprendiz. É
importante dosar a relação entre a técnica e a espontaneidade para que a primeira
sirva como aliada na busca e construção de um conceito artístico pessoal até que o
artista decida se necessita e deseja manter os princípios técnicos, rompê-los ou
reinventá-los.
130
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