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que, ao seu lado, libertar-me-ia dele. Amor? Desejava acompanha-lo, para estar do lado mais
forte, para que ele me poupasse, como quem se aninha nos braços do inimigo para estar longe
de suas flechas. Era diferente de amor, descobria: eu o queria como quem tem sede e deseja
água, sem sentimentos, sem mesmo vontade de felicidade.
Concedia-me às vezes outro sonho, sabendo-o mais impossível ainda: ele me amaria e
eu me vingaria, sentindo-me... Não, não superior, mas igual a ele... Porque, se me quisesse,
estaria destruída aquela sua poderosa frieza, seu desdém irônico e inabalável que tanto me
fascinava. Enquanto isso eu nunca poderia ser feliz. Ele me perseguia.
Oh, sei que me repito, que erro, confundo fatos e pensamentos nesta curta narrativa.
No entanto, mesmo assim, com que esforço reúno seus elementos e lanço-os sobre o papel. Já
disse que não sou inteligente, nem culta. E sofrer apenas não basta.
Sem falar, os olhos fechados, há qualquer coisa abaixo do meu pensamento, mais
profundo e mais forte, que pretende o que se passou e que, em fugidio instante, vejo com
nitidez. Mas meu cérebro é fraco e não consigo transformar esse minuto vivo e reflexão.
Tudo é verdade, no entanto. E devo reconhecer outros sentimentos ainda, igualmente
verdadeiros. Muitas vezes, nele pensando, numa transição lenta, via-me servindo-o como uma
escrava. Sim, admitia, trêmula e assustada: eu, com um passado estável, convencional,
nascida na civilização, sentia um prazer doloroso em imaginar-me aos seus pés, escrava...
Não, não era amor. Horrorizava-me: era o aviltamento, aviltamento... Surpreendia-me a olhar
para o espelho buscando no rosto algum novo traço, nascido da dor, de minha vileza, e que
pudesse conduzir minha razão aos instintos em tumulto que eu ainda não queria aceitar.
Procurava aliviar minha alma, mortificando-me, sussurrando entre os dentes apertados: “Vil...
desprezível...” Respondia-me, pusilânime: “Mas, meu deus, (letra minúscula, como ele me
ensinara), eu não sou culpada, eu não sou culpada...” De quê? Eu não o definia. Qualquer
coisa horrível e forte crescia dentro de mim, qualquer coisa que me estarrecia de medo. Era
apenas isso o que eu sabia.
E confusamente, diante de sua recordação, encolhia-me, unia-me a Jaime,
aconchegando-o a mim, no desejo de proteger-nos, a ambos, contra ele, contra sua força,
contra seu sorriso. Porque, sabendo-o longe embora, imaginava-o assistindo a meus dias e
sorrindo a algum pensamento secreto, daqueles de que eu apenas adivinhava a existência, sem
jamais conseguir penetrar o sentido. Procurava, depois de tanto tempo, mais de um ano, como
que justificar-me, a Jaime, e à nossa vida burguesa, de tal modo ele se apoderara de minha
alma. Aquelas longas conversas em que eu apenas ouvia, aquela chama que acendia nos meus
olhos, aquele olhar lento, pesado de conhecimento, sob as pálpebras grossas, haviam me
fascinado, acordado em mim sentimentos obscuros, o desejo doloroso de me aprofundar em
não sei quê, para atingir não sei que coisa... E sobretudo haviam despertado em mim sensação
de que palpitava em meu corpo e em meu espírito uma vida mais profunda e mais intensa do
que a que eu vivia.
De noite, sem dormir, como se falasse a alguém invisível, dizia-me baixinho, vencida:
“Concordo, concordo que minha vida é confortável e medíocre, concordo, é pequeno tudo o
que tenho.” Sentia-o balançar a cabeça benevolente. “Não posso, não posso!”, gritava comigo
mesma, abrangendo nesse lamento minha impossibilidade de deixar de querê-lo, de continuar
naquele estado, de, principalmente, seguir os caminhos grandiosos que ele começara a
mostrar-me e onde eu me perdia, minúscula e desamparada.
Soubera de vidas ardentes, mas voltara à minha própria, banal. Ele me deixara
entrevero sublime e exigira que também eu queimasse no fogo sagrado. Eu me debatia, sem
forças. Tudo o que eu aprendera com Daniel fazia-me apenas enxergar a pequenez do meu
cotidiano e execrá-lo. Minha educação não terminara, ele bem o dissera.
Sentia-me sem apoio, tentava evadir-me em lágrimas. Porém minha atitude diante do
sofrimento era ainda de perplexidade.