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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
De Bonecas, Flores e Bordados:
Investigações Antropológicas
no Campo do Artesanato em Brasília
Aline Sapiezinskas Kras Borges Canani
Brasília, 2008
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De Bonecas, Flores e Bordados:
Investigações Antropológicas
no Campo do Artesanato em Brasília
Aline Sapiezinskas Kras Borges Canani
Tese de Doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Roque de Barros Laraia
Brasília, outubro de 2008.
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Agradecimentos
À Capes e Cnpq, pelas bolsas de estudo que permitiram a realização desta pesquisa.
Aos professores do Departamento de Antropologia da UnB com quem tive oportunidade de
aprender: Carla Teixeira, Ellen Woortman, Eurípedes Dias, Gustavo Lins Ribeiro, Luís
Roberto Cardoso de Oliveira, Wilson Trajano e Paul E. Little.
Aos meus colegas de turma e, especialmente, aqueles que se tornaram amigos: Carla
Coelho Andrade, Juliana Melo e Bruno Reinhardt.
Aos amigos antropólogos com quem mantive diálogo: Paula Machado, Nicole Reis e
Bernardo Lewgoy.
Às artesãs e demais informantes entrevistados.
Ao meu orientador, pelo apoio, incentivo e presença constante durante todos os momentos
do doutorado.
À minha avó, Lélia Sapiezinskas, que foi sempre um modelo e me inspirou a seguir em
frente, e minha mãe, Lis Sapiezinskas, pelo apoio às minhas escolhas e pelo carinho.
Ao meu pai, José Kras Borges, pelas longas conversas e pela perspectiva diante da vida.
Ao meu marido, Ney Canani, pelo debate, por escutar, pelo ombro amigo nos momentos
difíceis, por ler atentamente cada parte da tese e contribuir com seus comentários.
Sem a contribuição e ajuda dessas pessoas, essa tese não teria sido possível.
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Dedico esta tese à minha filha, Maria Luiza, por trazer tanta alegria ao mundo.
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Resumo
Esta tese constitui uma investigação antropológica sobre o campo do artesanato em
Brasília. O trabalho de campo incluiu a freqüentação dos grupos “As Costureiras do
Varjão”, as “Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê” e “Flor do Cerrado”, de Samambaia.
Incentivados e apoiados pelo SEBRAE, os grupos de artesãs estão ligados a projetos de
desenvolvimento local e geração de renda. Analisa-se também o papel desempenhado pela
Instituição propositora de tais iniciativas, o SEBRAE, procurando revelar as estratégias
desse órgão de parceria público-privada na formação dos grupos e na construção de
referenciais identitários brasilienses, bem como o processo de produção artesanal e suas
ressignificações até o mercado consumidor.
Palavras-Chave: Artesanato, Políticas Públicas, Parcerias, Moda e Design, Cultura Popular.
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Abstract
This thesis constitutes an anthropological investigation on the field of articraft in Brasília.
Fieldwork was carried out in three administrative regions of Brasília: Varjão, Taguatinga
and Samambaia and comprised participant observation of the artisan groups “As
Costureiras do Varjão”, “Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê” and “Flor do Cerrado”,
respectively. Supported by SEBRAE (Brazilian Service to the Promotion of Micro and
Small Enterprises), the formation of artisan groups is promoted in the context of projects to
local development and income generation. The role of this institution is analysed with a
view to identify the institutional strategies employed by this organization, created to be a
public-private partnership, to promote artisan groups as well as to evaluate its impact on
identity references in Brasilia. The signification and resignification process to which
articraft production is submitted from production until consumption is also analysed.
Key-words: Artcraft, Public Policies, Partnerships, Fashion and Design, Popular Culture.
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Sumário
Introdução, 09
Parte I – As Artesãs de Brasília, 27
1. Brasília, 30
2. As Costureiras do Varjão, 46
3. As Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê, 83
4. Grupo de Produção Flor do Cerrado de Samambaia, 101
Parte II – Parcerias Institucionais, 124
1. Sobre o SEBRAE, 125
2. Desenvolvimento Local e Identidade, 131
3.“O Parceiro do Seu Crescimento”, 147
4. Artesanato, Moda e Design , 166
5. O Projeto Via Design, 176
6. Apoena Fashion, 183
7. Renato Imbroisi, 198
8. Questão de Gosto, 206
9. Artesanato de Design, 215
10. A Carteirinha do Artesão, 226
11. Negociando Significados, 239
8
Parte III – Circulação de Significados, 250
1. Brasília tem gente do Brasil todo, Brasília é assim..., 251
2. A Circulação do Objeto, 264
3. “Sabe a novela? A Gente tá na Globo, 284
4. Elas são as artistas! 296
Considerações Finais, 307
Índice das Imagens, 314
Referências Bibliográficas, 317
9
Introdução
10
Introdução
O trabalho que resultou nessa tese teve início com pesquisas de campo nas
chamadas “cidades satélites” de Brasília. Começou a partir do contato com os grupos de
mulheres que vivem na região do Cerrado, mais especificamente na área urbana que
constitui a região periférica de Brasília. A fim de conhecer as mulheres e o trabalho que
estavam desenvolvendo, me dirigi a localidades como o Varjão, Samambaia e Taguatinga.
Portanto, a pesquisa foi realizada no âmbito da cidade, em áreas urbanizadas próximas ao
Plano Piloto de Brasília.
Vivendo num meio de poucas oportunidades de trabalho, e contando com poucos
recursos, essas mulheres produzem artesanato como meio de vida. Organizadas em grupos,
conseguem se ajudar mutuamente de forma a cumprir com seus papéis de mãe e de mulher,
e ainda prover, em muitos casos sozinhas, o sustento da família.
Elas, que inicialmente ofereciam seus produtos nas feiras locais, de pouca
visibilidade e lucros modestos, buscaram apoio para se organizar e entrar num mercado
maior. Apoiadas pelo SEBRAE, circulam em instituições governamentais, qualificam-se,
credenciam-se, denominam-se e expandem-se. Passam a vender seus trabalhos nas grandes
feiras nacionais, que ocorrem bianualmente em São Paulo (a “Paralela Giftou Gift Fair”,
durante a “São Paulo Fashion Week””) e no Rio de Janeiro (paralelamente à “Rio
Fashion Week”).
No ano de 2005, alguns grupos chegam a fornecer objetos decorativos para os
cenários das novelas da Rede Globo. Tais novelas, transmitidas à noite, no horário entre as
19 e 22 horas, são os programas de maior audiência da televisão brasileira, com poder de
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lançar modas e difundir tendências através da comunicação. Lançar os produtos artesanais
em rede nacional equivale a obter um alcance de divulgação nacional ou até mesmo
internacional.
Foram três os grupos de trabalho que acompanhei, situados em localidades distintas:
o “Mulheres em Ação”, no Varjão, a “Associação das Bordadeiras de Taguatinga Flor do
Ipê”, em Taguatinga e o Grupo de Produção “Flor do Cerrado Semeando Arte na
Comunidade”, de Samambaia. Os trabalhos realizados por esses grupos receberam maior
destaque, tanto na dia local quanto na imprensa nacional, além do reconhecimento que
vêm recebendo no meio empresarial.
As “Mulheres em ão” estavam, durante o ano de 2007, trabalhando com
encomendas de bonecas de pano feitas pelo Ministério da Saúde, que foram utilizadas na
confecção de um prêmio para profissionais cuja atuação obteve destaque na área da Saúde
Infantil. Tanto a “Associação das Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê” quanto a “Flor do
Cerrado Semeando Arte na Comunidade” receberam o selo TOP 100, do SEBRAE, como
reconhecimento da qualidade do trabalho, no ano de 2007. O selo é como um certificado de
qualidade concedido para as 100 melhores empresas artesanais do Brasil, que contou com a
participação de 13 representantes do artesanato de Brasília.
Ao visitar os grupos e tomar conhecimento do trabalho realizado pelas mulheres,
chamou-me atenção a força das lideranças locais, capazes de mobilizar a comunidade em
função de um projeto, e surgiu uma indagação sobre o potencial das atividades artesanais
para gerar o desenvolvimento local dentro daquelas comunidades. Considerando-se que o
artesanato é tradicionalmente uma atividade de baixa remuneração, com lucros limitados e
incertos, eu me indagava como seria possível que aquelas mulheres estivessem sustentando
suas famílias com base no desempenho daquela atividade.
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Assim, comecei a investigar quem estava apoiando esse tipo de projeto e se haviam
outras forças motivadoras por trás das iniciativas locais. Buscava descobrir de onde surgia a
idéia de trabalhar com artesanato, qual foi a motivação para isso e como foi que tudo
começou. Essas perguntas me levaram a conhecer quais eram os atores envolvidos nesse
processo.
Não demorou a se destacar a intensa participação do SEBRAE/DF na promoção de
iniciativas, e no apoio institucional, na forma de cursos e consultorias de profissionais
especializados em criação de produtos, os designers. Por meio da promoção do artesanato,
o SEBRAE/DF sustenta um projeto de desenvolvimento local. Esse projeto conta com
incentivos financeiros do Governo Federal, através do Ministério do Desenvolvimento, da
Indústria e do Comércio Exterior (MDIC), previstos no orçamento da União. Constatada a
relevância do SEBRAE para a informação das práticas artesanais de Brasília, essa
instituição tornou-se central para a pesquisa, e todas as outras instâncias que aqui são
retratadas estão vinculadas diretamente ao SEBRAE/DF.
O SEBRAE é o responsável por definir conceitualmente as bases sobre as quais o
projeto de desenvolvimento local através do incentivo ao artesanato será implementado.
Através do SEBRAE/DF, assim como das outras unidades regionais do órgão, é realizado
um levantamento das potencialidades e das características de cada região e, a partir disso, é
traçado um plano do incentivo ao desenvolvimento de determinadas atividades.
Pude constatar que um trabalho semelhante é desenvolvido pelo SEBRAE em São
Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, apenas para citar
alguns. Na cidade de Porto Alegre observei também a existência de diversos grupos de
trabalho com artesanato, produzido bordados, tricô, crochê, patchwork e costura,
empregando materiais recicláveis e de características regionais, como o couro.
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Semelhantemente, a “Griffe do Morro da Cruz”, de Porto Alegre, ganhou visibilidade e
figurou em grandes eventos da moda nacional. Todavia, optei por restringir a pesquisa
somente à região do Distrito Federal, de forma a aprofundar melhor a análise,
concentrando-me nas relações entre o SEBRAE/DF e os grupos locais de produção. Isso
não quer dizer que em todas as regiões a mesma dinâmica social se apresente, significa
apenas que estou consciente de que Brasília não é o único local em que é desenvolvido um
projeto de artesanato do SEBRAE e que Brasília evidentemente não é o único ou mais
importante pólo produtor de artesanato do país.
Procuro me concentrar no artesanato produzido pelas mulheres em Brasília, com o
apoio do projeto de desenvolvimento local do SEBRAE/DF, focalizando nas ações e nas
relações desse órgão com outros atores sociais dessa localidade.
O SEBRAE tem uma concepção própria para o trabalho artesanal produzido no
Distrito Federal e este órgão atua como grande incentivador e órgão de fomento das
práticas, baseadas nos conceitos que ele mesmo formulou. O projeto de desenvolvimento
local através da atividade artesanal desenvolvido pelo SEBRAE/DF e o caráter de
circularidade que acaba resultando dele são apresentados na segunda parte da tese, embora
voltem a ser discutidos também em outros capítulos.
O SEBRAE/DF atua em parceria com a Secretaria de Trabalho do Governo do
Distrito Federal (GDF) no sentido de encaminhar a profissionalização do artesão e definir o
reconhecimento desse campo por meio da emissão da “Carteira do Artesão”. Do ponto de
vista institucional, pode ingressar no mercado do artesanato aquele que possui essa
“Carteira de Artesão”.
A obtenção de tal documento é conseguida mediante resposta a uma série de
exigências estabelecidas pela Secretaria do Trabalho do GDF, com base nas pesquisas
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sobre as características da região e no seu plano de ação. Acompanhei o processo de
registro de diversas artesãs, e pude perceber a dialética entre produtores e administradores
das atividades produtivas, entre aquele que exerce a atividade artesanal e os que dizem
como ela deve ser exercida para ser autêntica” e “regional”. Destacam-se alguns
conceitos-chave, empregados naquela instituição como referenciais do trabalho artesanal,
que serão analisados na segunda parte da tese.
Em meio a um emaranhado burocrático que constitui o registro e a emissão do
documento oficial, a Carteirinha de Artesão, observa-se que os procedimentos vão sendo
instituídos em diálogo com as práticas, em decorrência delas e algumas vezes
arbitrariamente.
Assim, com base na experiência de contato com os grupos de mulheres produtoras
de artesanato e com a principal instituição promotora de projetos de desenvolvimento local
empregando produção artesanal, o SEBRAE/DF, organizei a apresentação dessa pesquisa
em três partes distintas, sendo I As artesãs de Brasília, II- Parcerias Institucionais e III
Circulação de Significados.
Começo pelas mulheres e seu trabalho artesanal. Apresento na primeira parte da
tese, intitulada “As Artesãs de Brasília”, o trabalho desenvolvido por cada um dos três
grupos de produção observados e acompanhados durante o trabalho de campo.
Essa primeira parte, por sua vez, divide-se em quatro capítulos: (1) Brasília, (2) As
Costureiras do Varjão, (3) as Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê e (4) Grupo de
Produção Flor do Cerrado de Samambaia. Após sessão inicial que procura contextualizar
cada localidade, apresento os grupos de mulheres que desempenham atividade artesanal.
Inicio com uma breve introdução sobre a organização administrativa de Brasília.
Cidade construída para ser a capital federal, Brasília foi abrigando os servidores públicos
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que eram trazidos para ocupar as funções administrativas criadas na nova capital e os que
foram transferidos do Rio de Janeiro.
Antes da transferência da capital ainda, a própria construção da cidade exigiu a mão
de obra de inúmeros trabalhadores do setor da construção civil, e operou como um foco de
atração para muito outros interessados na obtenção de melhores condições de vida e
trabalho fora de suas cidades de origem. Brasília continua sendo o destino de muitos
migrantes brasileiros em busca de trabalho. De acordo com Roque Laraia (1996:3) “os
primeiros imigrantes atenderam ao apelo épico de Juscelino Kubistchek, ao mesmo tempo
que sonhavam- como todos os migrantes - com o enriquecimento fácil, com a possibilidade
de ocupar espaços sociais mais elevados.” Aparentemente, esse apelo continua mobilizando
um grande contingente de migrantes para Brasília ainda hoje.
O crescimento contínuo da população de Brasília representa um desafio
administrativo que levou à construção de diversas regiões administrativas distintas, hoje
num total de 29, sendo o início dessa contagem no Plano Piloto da cidade, a Região
Administrativa número 1. Incluo aqui uma revisão da bibliografia sobre as dinâmicas
urbanas do Distrito Federal. Essa introdução sobre a organização de Brasília é importante
para se entender o caráter do surgimento das várias novas regiões administrativas, ou
“cidades satélites”, e seu funcionamento no plano mais geral da capital federal, com a
finalidade de contextualizar o campo pesquisado.
Desde os capítulos iniciais da tese, podemos perceber a articulação entre a prática
artesanal dos grupos de mulheres, a atuação dos designers e o projeto do SEBRAE/DF para
o desenvolvimento local, conforme ela se desdobra em cada caso. Além disso, nessa
primeira parte se destacam algumas histórias pessoais que auxiliam a compreender o
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significado do trabalho para as mulheres, na relação entre as histórias pessoais e os fazeres
artesanais.
O segundo capítulo da primeira parte mostra o trabalho das “Mulheres em Ação”,
no Varjão. Contando com o apoio do SEBRAE para realizarem sua atividade artesanal,
essas mulheres preferem trabalhar sem a interferência dos designers, criando elas mesmas
as bonecas em todas as suas variações, e colocando ali a sua própria criatividade. Dessa
forma elas afirmam que se vêem representadas naquelas bonecas, pois colocam ali, além do
modo de fazer bonecas que aprenderam desde a infância e que trouxeram para Brasília,
também a criatividade de adaptar as bonequinhas ao contexto atual ou às exigências de
quem faz a encomenda. Nesse segundo capítulo analiso as práticas artesanais do grupo,
com as especificidades dessa produção bonequeira.
No terceiro capítulo dessa primeira parte, as “Bordadeiras de Taguatinga Flor do
Ipê” são retratadas. O grupo de mulheres que se reúne numa sala comercial no centro de
Taguatinga, formando uma associação de artesãs, produz almofadas, colchas e toalhas com
bordados feitos à mão. O tema dos bordados são as flores típicas da região do Cerrado e,
mais recentemente, os pássaros nativos da região. Contando com 20 associadas, e
aproximadamente 60 “terceirizadas”, elas atendem por encomenda e garantem uma renda
mensal que varia de 500 a 1000 Reais para cada uma delas.
As Bordadeiras de Taguatinga Flor do I estão em permanente contato com o
SEBRAE, que orienta e apóia o trabalho desenvolvido por elas, oferecendo cursos de
capacitação em vendas, “preço justo”, empreendedorismo e relações com o mercado, e
oferecendo ainda a consultoria do designer Renato Imbroisi para o desenvolvimento e
aperfeiçoamento do produto.
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Finalmente, no quarto capítulo dessa parte, apresento o trabalho do “Grupo Flor do
Cerrado Semeando Arte na Comunidade”, grupo de produção artesanal de Samambaia que
se reúne na casa de Roze Mendes e sob sua liderança e orientação produz bolsas, enfeites e
painéis utilizando flores confeccionadas a partir de matéria prima natural do Cerrado. Roze
conta com umas dez pessoas na produção e confecção das flores, e garante que um de seus
propósitos é exportar, embora uma boa parte da produção ela reserve ao mercado nacional.
O Grupo de Produção Flor do Cerrado recentemente optou por transformar-se em
micro-empresa do setor artesanal, o que não alterou o modo de trabalho habitual do grupo.
A finalidade dessa transformação em empresa seria facilitar os negócios, tanto na
distribuição para outros estados, quanto no caso de exportação, pois um montante maior de
produtos pode seguir com nota fiscal e ingressar formalmente no mercado. De acordo com
Roze, foram as exigências do próprio mercado que acabaram levando à necessidade de
formalização.
A segunda parte da tese, intitulada “Parcerias Institucionais” se divide em onze
capítulos sendo eles: (1) Sobre o SEBRAE, (2) Desenvolvimento Local e Identidade, (3)
“O Parceiro do Seu Crescimento”, (4) Artesanato, Moda e Design, (5) O Projeto Via
Design, (6) Apoena Fashion, (7) Renato Imbroisi, (8) Questão de Gosto, (9) Artesanato de
Design, (10) A Carteirinha do Artesão e (11) Negociando Significados.
A segunda parte da tese começa pela principal instituição incentivadora da criação
dos grupos artesanais, o SEBRAE, descrevendo a atuação dessa organização nesse campo e
buscando analisar quais são as práticas e conceitos que as orientam. Em se tratando de uma
abordagem antropológica dessa instituição, a idéia é tentar relativizar esses conceitos
conforme eles se apresentam. A teoria antropológica é incorporada gradualmente na medida
em que ela serve para a compreensão e análise dos fenômenos sócio-culturais observados.
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O conjunto dos dados foi pensado partindo da noção bourdiana de “Campo”, como o
conjunto dos atores sociais somado às suas relações e diferentes posições relativas e a
ideologia que lhe é própria e específica. (BOURDIEU, 1999: 183) A ideologia é entendida
aqui não estritamente, no sentido marxista de “falsa consciência”, mas como conjunto das
formas de pensamento características de um determinado campo.
No primeiro capítulo abordo o SEBRAE como instituição, analisando o discurso
oficial que orienta as suas práticas. Procuro revelar e relativizar os conceitos que sustentam
o projeto de desenvolvimento local bem como o projeto de construção e afirmação de
identidades locais que está permeando as práticas institucionais.
No segundo capítulo dessa segunda parte, analiso os conceitos de Desenvolvimento
Local e Identidade, tais como articulados pelas instituições responsáveis pela promoção do
artesanato em Brasília. Nesse capítulo, discuto como se constroem essas noções e suas
vinculações com debates mais amplos, mesmo no âmbito de organizações internacionais.
No capítulo 3, discuto especificamente como se constrói a noção de parceria, termo
recorrente no discurso das entrevistadas. Ao realizar o trabalho de campo, percebi que
quando as artesãs se referiam à formação de “parcerias”, estavam apelando a uma categoria
que ia muito além do sentido habitual atribuído ao termo, configurando-se efetivamente
como uma categoria nativa.
No capítulo 4, descrevo e analiso a inter-relação entre artesanato, moda e design.
Aqui procuro mostrar como a produção artesanal é influenciada por esses “campos”, para
usar a terminologia de Bourdieu, e como os fazeres tradicionais são incorporados e, em
certa medida, reinventados, por eles.
No capítulo 5, analiso em detalhes o Projeto Via Design, por meio do qual o
SEBRAE encaminha consultores de design aos grupos de produção artesanal. Neste
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capítulo, analiso como se constrói o discurso institucional do SEBRAE sobre o incentivo à
produção artesanal e ao empreendedorismo.
Nos capítulos 6 e 7 concentro-me na atuação dos designers. Trata-se de dois casos
distintos de atuação de consultores de design nos grupos, razão pela qual dediquei um
capítulo a cada um. No primeiro caso, da Apoena Fashion, descrevo e analiso como uma
consultora do SEBRAE, Kátia Ferreira, decidiu desligar-se dessa instituição para criar uma
grife própria. A Apoena Fashion encomenda trabalhos a vários grupos, entre eles o das
costureiras do Varjão. Kátia Ferreira criou inicialmente uma ONG, o Instituto APOENA, e
atua de modo independente em Brasília. A designer coordena mais de 20 grupos de
produção de artesanato e atua na divulgação e comercialização dos produtos, imprimindo
sua marca. Sua fala permite observar com clareza o trânsito do objeto artesanal, trazendo
exemplos concretos do campo, desde a produção, passando por intermediários, no campo
da produção e das feiras, para finalmente chegar ao público consumidor. Sua participação
em eventos de grande repercussão midiática justifica que sua contribuição nessa pesquisa
venha figurar nesse capítulo específico. O percurso realizado por tia Ferreira mostra
como se o papel de intermediário do designer entre os grupos e o público consumidor e
como, a partir desse papel, o consultor pode encontrar para si outros caminhos, para além
do trabalho desenvolvido pelo SEBRAE. No segundo, descrevo e analiso o trabalho de
Renato Imbroisi, designer vinculado ao SEBRAE com atuação nos grupos Flor do Cerrado
e Bordadeiras de Taguatinga.
Os designers contratados pelo SEBRAE para atender às localidades e implementar
o projeto de desenvolvimento local através das práticas artesanais, propõe-se a resgatar os
“fazeres tradicionais” presentes em cada comunidade. Nessa parte serão detalhados tanto o
projeto do SEBRAE para o design, quanto a atuação do designer Renato Imbroisi, tratando
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da sua trajetória profissional, embora um número maior de designers tenha participado das
entrevistas. Focalizei minha análise no trabalho de Imbroisi porque trata-se do designer
responsável pelo formato final dos produtos comercializados pelos grupos de produção que
foram acompanhados durante a pesquisa de campo. Somente as costureiras do Varjão
relataram ter dispensado a consultoria dos designers no seu trabalho, apresentando as
razões que justificaram essa escolha. Tanto as Bordadeiras de Taguatinga quanto as da
“Flor do Cerrado” estão afinadas com Renato Imbroisi e consideram sua contribuição
fundamental para o trabalho delas.
No capítulo 8 procuro discutir como se forma, entre as artesãs, a noção de
que sua produção deve atender a determinados requisitos formais e estéticos para ir ao
encontro das expectativas do consumidor e ganhar o mercado. Considero essa discussão
fundamental, na medida em que coloca em questão vários “mitos” acerca do trabalho
artesanal e e em relevo as disputas simbólicas que se processam entre as artesãs e os
designers em torno da noção de gosto. Essa discussão é aprofundada no capítulo 9, em que
discuto como se forma o chamado “artesanato de design”, na confluência entre práticas e
saberes ligados ao mundo técnico e ao mercado e os “fazeres tradicionais”.
No capítulo 10, relato como se dá a relação entre o artesão e o poder público,
quando o primeiro se vê compelido a fazer sua “Carteirinha de Artesão”. O capítulo
procura mostrar como o poder público, a partir de determinados projetos de governo
desenvolvidos num plano muito afastado do artesão –, executa suas políticas e quais as
implicações disso para o trabalho artesanal. Ao analisar como são operacionalizadas as
políticas públicas, nesse caso no que diz respeito à formalização do trabalho do artesão, e o
que o artesão deve fazer para conseguir sua “carteirinha”, pude observar como as
instituições pensam”, para usar a expressão de Mary Douglas, e como funciona a lógica
21
burocrática no campo do artesanato. Essa discussão é aprofundada no capítulo 11, em que
analiso como categorias utilizadas pelo burocrata e pelo artesão são negociadas. Acredito
que essa discussão possa contribuir, mais uma vez, para desfazer certos “mitos”
freqüentemente encontrados em trabalhos sobre artesanato.
Uma referência importante para essa análise é a noção de “construção social da
realidade”, conforme proposta por Peter Berger e Thomas Luckmann (2005). Estes autores
propõem que as instituições, no sentido amplo do termo, são constituídas através das
práticas. Nessa mesma linha, Simmel refere-se às “formas sociais”. A perspectiva que
emprego na análise dos dados dessa pesquisa é construtivista, uma vez que tanto Berger e
Luckmann quanto Simmel concebem a realidade social como uma construção que se
através da interação entre os atores sociais.
Ao optar por uma abordagem qualitativa busco aprofundar um pouco mais a análise
do papel do designer de produto com relação ao universo pesquisado como um todo. Essa
abordagem permite retratar com maior detalhamento essa figura-chave no processo criativo
e produtivo do objeto artesanal.
Finalmente, a terceira parte da tese, intitulada “Circulação de Significados”, divide-
se em quatro capítulos: (1) Brasília tem gente do Brasil todo, Brasília é assim.., (2) A
Circulação do Objeto, (3) “Sabe a novela? A Gente tá na Globo e (4) Elas são as artistas.
No capítulo inicial, analiso a imagem construída de Brasília como “a síntese dos
fazeres tradicionais do Brasil todo”, que estaria aqui representado na pessoa de cada um dos
inúmeros migrantes que vieram para essa cidade oriundos de todos os estados da federação.
Essa imagem de “síntese do Brasil” surgiu repetidamente nos discursos dos entrevistados e
no material publicitário, e está presente também na bibliografia sobre a cidade. Questiono
em que medida podemos falar de uma “síntese do Brasil” e que significados estão
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implícitos no emprego desse termo. Não se trata de especulação sobre os possíveis
significados ocultos, mas de análise dos discursos das artesãs sobre a relação entre seu
trabalho e a cidade. Parto do pressuposto bourdiano de que todo discurso é marcado pela
posição relativa ao campo daquele que o profere.
No capítulo 2 procuro reconstruir o circuito da significação, com o propósito de
concentrar o olhar sobre o significado dos objetos, a partir de uma perspectiva semiótica. O
foco é o trânsito do objeto artesanal nos diferentes âmbitos que constituem esse campo.
Desde a sua produção, o objeto artesanal passa pelas mãos de diferentes atores sociais e
para cada um deles possui significados próprios, que lhe foram atribuídos. Perpassando
essas diversas instâncias, são atribuídos diferentes significados aos fazeres e às práticas
artesanais. Através dos discursos empregados para apresentar os objetos e falar deles em
cada etapa, podemos perceber os significados que são atribuídos por cada um dos atores,
desde a mulher que produziu uma peça de bordado, o designer que orientou essa produção,
o intermediário, que a conduziu ao mercado consumidor até a consumidora final, nesse
último caso através, sobretudo, dos discursos da mídia que falam diretamente a esse
público. Esse circuito da significação permite uma melhor compreensão do dinamismo do
signo e da complexidade das negociações de sentido dentro do campo, retratando um
processo de construção social do significado.
No capítulo 3, analiso especificamente um dos contextos em que o objeto artesanal
adquire novos significados, o da imprensa e das novelas de TV. O fato de o produto das
artesãs ter sido utilizado numa novela, por exemplo, tem efeito sobre a auto-estima da
artesã, na medida em que representa a valorização social de seu trabalho. Como pude
observar em conversas com as artesãs, essa valorização não é, de forma alguma, secundária
ou menos importante em relação a outros objetivos buscados na produção artesanal, como
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obter renda. Os impactos da exposição à mídia dos produtos são muito amplos e variados,
entrando no circuito de significação e ressignificação dos objetos e influenciando a prática
artesanal. Meu objetivo aqui é, sem esgotar o assunto – que poderia dar origem a uma outra
tese discutir um pouco a importância e o significado da aparição dos produtos das artesãs
na TV e em outros meios de comunicação, para tanto fazendo uso e revisitando alguns
autores de referência nessa discussão.
Mais especificamente, busco aqui investigar as imagens que são construídas e
veiculadas sobre o fazer artesanal e a forma como esses conceitos são tratados pela mídia.
Teóricos da comunicação e antropólogos discutem o papel da mídia na sociedade e o poder
de constituir sujeitos através de um discurso que ganha público e se dissemina. Procuro
trazer esses debates para pensar como isso se deu no caso concreto das artesãs de Brasília.
Nas falas de alguns setores da mídia, tais como jornalistas e relações públicas e produtores
de marketing, observa-se o emprego de termos que evidenciam distinção, envolvendo
aspectos de um poder simbólico, que procuro desconstruir e antropologizar.
Para tanto, analiso material publicitário de divulgação e publicações da dia, tanto
de jornais e revistas quando capturadas pela internet, em que as artesãs figuram como as
grandes estrelas.
No capítulo 4, por fim, discuto a associação corrente da idéia de trabalho artesanal
com a produção artística e sua inserção em discursos sobre cultura popular” ou “arte
popular”. Como te ficado evidente, esses conceitos são utilizados de forma pouco
rigorosa pela imprensa e pelo público consumidor, sendo muitas vezes reproduzidos de
forma pouco criteriosa também no meio acadêmico. Essa discussão, pela sua abrangência,
também poderia dar origem a uma tese. Não tenho a pretensão de fazer um inventário
24
exaustivo sobre o tema, mas acredito que este trabalho não estaria completo se não
abordasse também essa dimensão associada ao trabalho artesanal.
Através da imprensa e dos designers, pode-se chegar, de forma indireta, ao ponto de
vista do consumidor, que fecha um circuito que envolve produtoras, intermediários e
planejadores de políticas públicas. Aqui direciono o olhar para o ponto de chegada do
produto artesanal produzido pelas mulheres, buscando desvendar significados.
Incidentalmente, discuto algumas teorias sobre o consumo e como elas se articulam
com a prática específica do mercado de artesanato conforme é produzido e vivenciado em
Brasília.
O objetivo geral com a presente divisão do trabalho é lançar um olhar sobre o
campo do artesanato em Brasília. Por meio de uma abordagem antropológica, desvendar as
práticas e papéis que o compõem, bem como os atores e as instituições envolvidas,
concentrando o foco sobre o papel mobilizador do SEBRAE nesse processo.
A pesquisa empregou o método etnográfico, utilizando abordagem qualitativa com
o uso de entrevistas individuais semi-estruturadas, dialogadas. Conta também com a
observação participante da pesquisadora nos grupos de trabalho, resultando em debates
coletivos a respeito de alguns tópicos. Os nomes das pessoas não foram modificados, por
não haver necessidade disso, uma vez que cada um dos participantes dessa pesquisa prefere
tornar-se conhecido pelo que faz a permanecer no anonimato.
Ao tratar desse tema, acabo por ter que lidar com alguns dos mitos de um
imaginário ligado ao artesanato que concebe o artesão como figura desinteressada dos
resultados de seu ofício e alienado do contexto social em que vive. O convívio com as
artesãs e a compreensão do funcionamento desse universo revela outras dimensões de suas
existências e também das complexas relações que estão em jogo. Abordar o artesanato de
25
Brasília como sendo um campo, com referência à teoria dos campos de Pierre Bourdieu,
nos permite identificar os atores sociais envolvidos e os papéis desempenhados por eles. E
o que é mais interessante, os jogos de poder que instituem práticas e conformam esse
campo.
Associo a abordagem de Bourdieu ao interacionismo simbólico de Georg Simmel,
guardadas as particularidades de cada autor, ambas compartilhando de uma noção de
realidade social construída através da vivência ou experiência dos atores no contexto
vivido. Estas são as principais referências que serviram de ponto de partida para a análise
como um todo. Dentro de cada capítulo figuram outras referências teóricas, empregadas na
análise de aspectos mais específicos desse trabalho.
Ainda como referência-chave em se tratando de antropologia simbólica, cabe
destacar a obra de Clifford Geertz, para quem o homem é um animal simbolizante,
conceptualizante e pesquisador de significados: “as pessoas usam conceitos da experiência
próxima espontaneamente, [...] não reconhecem, a não ser de forma passageira e ocasional,
que o que disseram envolve “conceitos”.” (GEERTZ, 1989:89).
Esse autor resgata a concepção weberiana do homem como um animal “amarrado a
teias de significados que ele mesmo teceu” e concentra no conceito de Cultura a chave para
a compreensão desses significados. Ele destaca que os mesmos processos ocorrem nos
diversos âmbitos da cultura que se queira tomar como análise. Uma mesma lógica reside e
opera tanto na economia quanto na religião ou nas artes, sendo a definição do objeto de
análise apenas um dos meios possíveis de se abordar tal sistema de significados.
Tendo em vista que uma artesã não se torna uma artesã apenas porque está
empregando uma técnica artesanal, mas porque está inserida num contexto em que ser uma
artesã possui um significado social em articulação com outros significados, dos quais ela
26
compartilha, destaca-se a relevância da contextualização das práticas observadas, conforme
é proposto por Geertz.
Para entendermos um objeto antropológico se torna necessário desvendar sua lógica
simbólica, a lógica que orienta as práticas dos atores dentro de um campo específico,
incluindo os conceitos com os quais estão lidando, mesmo que eles não se dêem conta de
que estão tratando de conceitos. Esse é o meu propósito aqui.
Em “Considerações Finais”, retomo as questões centrais que aparecem ao longo da
tese, buscando oferecer algumas reflexões sintetizadoras da análise e um fechamento da
abordagem proposta, mesmo que algumas questões surgidas ao longo do percurso não
tenham como ser respondidas. Ainda assim, é importante que sejam pensadas, o que
possivelmente apontará para a necessidade de novas investigações.
Durante a pesquisa de campo foram obtidas muitas fotografias, algumas das quais
são apresentadas ao longo da tese, complementando as informações, os relatos e as
descrições. As fotografias utilizadas são de minha própria autoria, tiradas com o
consentimento do fotografado.
27
Parte I
As artesãs de Brasília
“Para ler e escrever a cultura ordinária,
é mister reaprender operações comuns,
e fazer da análise uma variante do seu objeto.”
(Michel de Certeau. A Invenção do Cotidiano 1, 1990, p. 35)
28
Numa tarde de quarta-feira, eu sigo de carro pela Via Estrutural; passando o posto
de gasolina dobro à direita e subo... seguindo a indicação que me foi dada. Passando o
posto da Polícia Rodoviária, entro à direita novamente e já cheguei em Samambaia. Depois,
para voltar, é fazer a mesma coisa, sendo que tudo ao contrário... pelas tantas me
deparo com uma rotatória, com três saídas possíveis. E agora? Para que lado fica Brasília?
Eu estaciono o carro numa madeireira para perguntar aos homens que estavam ali pela
frente: “pra que lado fica Brasília?” Eles me olham intrigados: “Aqui é Brasília.”
A situação quase anedótica descrita acima ilustra bem o estranhamento de ambos os
lados no que diz respeito ao conceito e abrangência de Brasília. Eu me referia ao Plano
Piloto de Brasília, enquanto meu interlocutor se referia às Regiões Administrativas de
Brasília. O mais curioso para mim foi que, embora estivéssemos nos referindo a coisas
diferentes, nenhum de nós estava errado, pois tanto o Plano Piloto quanto a região do seu
entorno acabam sendo chamados de Brasília. Fui tentar compreender melhor esse fato.
As Regiões Administrativas são popularmente conhecidas como Cidades Satélites,
tendo existência independente do Plano Piloto e áreas adjacentes, mas o se pode dizer
que, do ponto de vista administrativo, sejam propriamente cidades, no mesmo sentido que
as demais cidades brasileiras. Seu administrador não é um Prefeito eleito, mas uma pessoa
indicada pelo Governador do Distrito Federal.
Brasília se organiza pela divisão em regiões administrativas cujo responsável é o
“administrador local”. Dentre as vinte e oito regiões administrativas que compõem Brasília,
destaco o trabalho artesanal feito em três delas, onde tive oportunidade de estabelecer um
contato mais direto com grupos de mulheres e pude observar de forma mais aprofundada o
seu cotidiano. Durante a pesquisa de campo, estive presente nas reuniões e encontros dos
grupos e realizei entrevistas individuais com a maioria das artesãs.
29
Nessa primeira parte da tese, apresento inicialmente uma contextualização do local
onde foi realizada a pesquisa, Brasília, no sentido amplo do termo, com o propósito de
situar melhor o leitor. Proponho aqui uma discussão sobre a abrangência da expressão
“morar em Brasília”, que está presente tanto na fala das artesãs quanto na das pessoas de
fora dos grupos, nas instituições ligadas ao artesanato e na mídia.
Em seguida, apresento as próprias artesãs de Brasília, falando um pouco sobre o
local onde se reúnem, mostrando como se organizam e descrevendo o tipo de trabalho que
elas desenvolvem. As mulheres observadas e entrevistadas durante a etapa da pesquisa de
campo foram as costureiras do Varjão do Lago Norte, pertencente à região administrativa
recentemente criada do Varjão, as bordadeiras da Associação Flor do Ipê, da região
administrativa de Taguatinga e as artesãs do grupo de produção Flor do Cerrado da região
administrativa de Samambaia.
Ao final dessa primeira parte, destaco os paralelos que podem ser traçados entre
esses grupos de mulheres. Procuro apontar semelhanças e diferenças, elaborando uma
espécie de síntese a respeito dos grupos de confecção de artesanato de Brasília, antes de
seguir adiante, onde tratarei das outras instituições envolvidas nesse universo de pesquisa.
Discuto ainda a noção de Brasília como “síntese dos fazeres artesanais do Brasil”, espécie
de mito descoberto em campo, que merece ser analisado.
30
Capítulo 1 – Brasília
31
Capítulo 1 - Brasília
“Deste planalto central,
desta solidão que em breve se transformará em cérebro
das altas decisões nacionais,
lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país
e antevejo esta alvorada com fé inquebrantável
e uma confiança sem limites no seu grande destino".
(Juscelino Kubitschek, 02 de outubro de 1956,
conforme se encontra no Monumento a JK,
na Praça dos Três Poderes)
1. Brasília
Brasília é uma cidade distinta das outras cidades brasileiras, não apenas por ser a
capital federal, mas também devido à sua ordenação espacial e à rapidez em que se deu a
construção e o processo de urbanização da cidade. Lidar com o crescimento acelerado da
cidade é um desafio de governabilidade. O rápido crescimento da cidade atrai milhares de
migrantes em busca de melhores oportunidades de vida e de trabalho e resultou na
formação de diversos aglomerados urbanos em torno do núcleo inicial da cidade.
Os “imigrantes”, oriundos de todas as regiões do Brasil, nem sempre encontram o
sucesso do projeto migratório que motivou sua vinda, ficando muitas vezes em situação de
pobreza e sem ter como retornar ao seu local de origem. O propósito da tese não é discutir
processos migratórios para Brasília. O termo “imigrantes” aparece aqui entre aspas apenas
como contextualização da situação relatada em campo pela grande maioria dos moradores
32
de Brasília, ou seja, não é empregado no sentido conceitual do termo, para o qual existem
inúmeros estudos e intensos debates, mas como categoria nativa usada para descrever sua
origem, operando dentro da lógica mítica da criação de Brasília.
O Governo do Distrito Federal é apontado como instância responsável por
apresentar soluções que possam reverter o quadro instalado de pobreza e condições
precárias de moradia em torno do núcleo original de Brasília.
Em busca de uma definição mais estrita sobre os limites de Brasília na literatura
especializada, visando complementar a observação de campo para finalmente compreender
o que é Brasília, constato a grande controvérsia que reina sobre o assunto. O Guia de
Urbanismo, Arquitetura e Arte de Brasília, publicado pela Fundação Athos Bulcão, (1997),
menciona que "Brasília é composta do Plano Piloto e das cidades satélites".
O material de informações turísticas oferecido pelo GDF tem no título Brasília”,
mas refere-se ao Distrito Federal como um todo, contribuindo para essa prática de emprego
dos dois termos indistintamente
1
. Conforme se pode observar nas informações sobre
Brasília obtidas no site do GDF (www.setur.df.gov.br), não distinção precisa entre os
termos empregados, abrigando-se, sob o título Brasília, informações gerais sobre o Distrito
Federal. Até mesmo no que se refere às informações históricas dessa mesma fonte, verifica-
se que os termos Brasília e Distrito Federal muitas vezes se confundem.
O Cartógrafo Adalberto Lassance (2003), do Instituto Histórico e Geográfico do
Distrito Federal, adota um conceito restrito de Brasília, que corresponderia apenas à Região
Administrativa I do Distrito Federal. Pelo conceito defendido por Lassance (2003), mesmo
locais como Lago Sul e Sudoeste não seriam parte de Brasília.
1
Não desejo implicar, com isso, que haja incorreção nessas informações. Apenas quero chamar a atenção para
o fato de que os dados nos revelam que Brasília e Distrito Federal são empregados como sinônimos.
33
Entre os moradores, o tema gera sempre grandes controvérsias, alguns consideram
que o Setor Octogonal e o Setor Sudoeste também fazem parte de Brasília, enquanto outros
consideram que não, o mesmo ocorrendo com relação a Taguatinga e Ceilândia,
consideradas como cidades satélites.
De acordo com Augusto Areal (2006), que pesquisou a Lei Orgânica do Distrito
Federal em busca de uma definição mais precisa, não nenhuma definição sobre quais
seriam os limites da cidade de Brasília:
“O Distrito Federal é dividido em Regiões Administrativas, sendo a Região
Administrativa I (RA-I) chamada "Brasília", mas não lei definindo que a cidade de
Brasília se limite à área da Região Administrativa de mesmo nome. A RA-I, inclusive, tinha
antes o nome de "Plano Piloto" (Lei 49/1989), passando a se chamar "Brasília" pela Lei
110/1990.” (AREAL, 2006)
O autor lembra que também outras cidades planejadas no Brasil extrapolaram o
seu projeto inicial, incluindo esse adensamento na noção de cidade:
“As cidades planejadas de Goiânia e de Belo Horizonte, por exemplo, têm hoje
área muito maior do que a área correspondente aos seus respectivos projetos originais.
Por que deveria a cidade de Brasília ser considerada eternamente limitada apenas à área
do seu projeto original?” (AREAL, 2006)
Areal chama a atenção para detalhes interessantes do cotidiano dos moradores da
cidade, tais como as placas de carro registradas no Distrito Federal, que levam todas o
nome de Brasília: “As placas de qualquer carro ou veículo registrado no Distrito Federal
são de "Brasília". Não há placas de "Taguatinga", por exemplo, o que deveria teoricamente
34
acontecer, se Taguatinga fosse de fato uma cidade separada.” (AREAL, 2006) Trata-se de
um detalhe trivial que reflete um dado importante de organização política da cidade.
O jornalista Hélio Doyle, em reportagem intitulada “Somos Todos Brasilienses”,
publicada no Correio Brasiliense, jornal de grande circulação de Brasília, critica a posição
de Lassance e procura “esclarecer o leitor” sobre a delimitação geográfica de Brasília:
“Brasília, a Capital Federal, é uma cidade que abarca todo o território do Distrito
Federal — uma unidade da Federação que não é estado, território ou município. Brasília é
conjunto do Plano Piloto, das chamadas cidades-satélites, dos bairros e vilas. Tem zonas urbanas e
zonas rurais. Tudo que está no Distrito Federal é Brasília, a Capital da República.” (Correio
Braziliense, 16 de março de 2002)
Outro fator de estranhamento está no toponímico empregado para designar o
indivíduo que nasce no Distrito Federal. Conforme observei no trabalho de campo e foi
destacado tanto por Doyle (2002), ao dizer que “somos todos brasilienses”, como por Areal,
quem nasce em qualquer região do Distrito Federal é, na prática, chamado de "brasiliense",
não existindo "gamense" ou "sobradinhense", por exemplo.
Hélio Doyle (2002) lembra ainda que, de acordo com o Plano Piloto projetado por
Lúcio Costa, havia previsão de espaço para o crescimento da cidade: “o crescimento de
Brasília se faria pelas penínsulas Sul e Norte (os bairros denominados Lago Sul e Lago
Norte) e pelas cidades situadas a certa distância do Plano Piloto, mas na área do Distrito
Federal. Em nenhum momento se separa Brasília das penínsulas e das cidades-satélites”.
(Correio Braziliense, 16 de março de 2002)
Para tentar explicar resumidamente as diferentes acepções do termo encontradas,
Brasília pode ser definida como a Região Administrativa número 1, que corresponderia ao
35
Plano Piloto, ou seja, Asa Sul, Asa Norte e região Central. Pode também ser entendida
como a soma da área urbana das 29 regiões administrativas. Considerando que essas duas
definições, além de uma série de outras, são amplamente empregadas para designar a
cidade, podemos dizer que o Plano Piloto seria a definição mais estrita do termo, ao mesmo
tempo em que o sentido amplo do termo “Brasília” incluiria, na sua acepção, todas as 29
regiões administrativas.
É esse sentido mais amplo do termo que adoto quando me refiro às “artesãs de
Brasília”, simplesmente porque é assim que aparece em todo o trabalho de campo. Muitos
dos relatos das mulheres sobre quando vieram morar em Brasília, por exemplo, empregam
esse sentido amplo do termo, como quando uma informante me conta “Sempre morei em
Brasília. Nasci na Ceilândia e depois que casei mudei pra cá, pra Samambaia”. Quando
aparecem na televisão e nas revistas, igualmente, as artesãs de Brasília se referem ao lugar
onde moram como Brasília, e as reportagens a seu respeito tratam do artesanato produzido
na capital, em Brasília.
Na história de Brasília está sempre presente o fenômeno da migração de famílias à
procura de emprego, tratamento de saúde, oportunidades de estudo e melhores condições de
vida, entre outros fatores, que, na medida em que o fluxo migratório é regular, tendem a
provocar mudanças constantes na vida urbana. O fenômeno da migração, com o aumento
gradual da população urbana acaba por resultar em invasões e apropriações de terras
públicas, não apenas pela população de baixa renda, mas também pela classe média.
O Governo do Distrito Federal encontra dificuldades em ordenar ou controlar o
crescimento desordenado, a ocupação de áreas de preservação e a apropriação sem
planejamento das terras públicas. Não um plano de ocupação futura com previsão de
inclusão das famílias que estão regularmente se somando à população. As tentativas de
36
solução são realizadas em ocupações já efetivadas, em geral a partir da legalização da posse
de terra, que se transformado, assim, em propriedade.
Os desafios enfrentados pelo migrante que chega em Brasília são grandes: além da
falta de moradia, este se depara com a precariedade do sistema de transporte urbano,
dificuldades de acesso à comunicação e informação e falta de oportunidade de trabalho no
setor produtivo.
O contexto de carência de oportunidades profissionais nessa região conduz a
necessidade de se desenvolver planos e projetos de absorção dessa mão de obra ociosa,
sempre crescente que renovada pelas novas migrações. Constata-se a necessidade de
promover também alguma assistência às famílias que, chegando na capital, se instalam
como e onde conseguem, muitas vezes em localidades de risco para elas próprias, à beira de
córregos ou em reservas naturais.
Alguns trabalhos acadêmicos foram realizados sobre Brasília e as dinâmicas
sociais que tem lugar no Distrito Federal. Gustavo Lins Ribeiro (1998, 2008) trata de
acampamentos de trabalhadores da construção civil, na época da construção da cidade de
Brasília, antes mesmo da sua inauguração (1957-1960). Lins Ribeiro (1998:25) emprega
uma abordagem teórica de inspiração marxista para analisar a “imobilização da força de
trabalho”, e salienta a importância dessa noção face aos grandes projetos e a “expansão de
sistemas econômicos” que resultam na formação de sistemas regionais.
No que se refere à Brasília de hoje, é relevante a fixação dos trabalhadores, que
teria sido uma decorrência dessa imobilização, resultando na criação de diversos núcleos
urbanos no entorno do projeto original.
Também Patrícia da Silva Osório, em sua tese de doutorado “Modernos e
Rústicos”, defendida no Departamento de Antropologia em 2005, analisa duas agremiações
37
criadas em Brasília para reunir pessoas provenientes de uma mesma região em torno de
características daquele local: a “Casa do Cantador Nordestino” e o “Centro de Tradições
Gaúchas Jayme Caetano Braun”.
Em sua tese, Osório (2005) analisa o processo por meio do qual moradores de
Brasília se reúnem em torno de temas e práticas ligados ao cultivo de tradições. Após
visitar um centro de tradições gaúchas e uma casa de cultura nordestina, Osório aponta
alguns traços em comum entre eles, apesar das grandes e sensíveis diferenças, e da
dificuldade em si de comparar expressões culturais: as duas instituições resgatam e
atualizam manifestações culturais identificadas com o local de origem dos participantes,
funcionando como uma das estratégias de adaptação dos migrantes ao solo brasiliense.
O geógrafo Aldo Paviani (1998), por sua vez, procura analisar o problema da
espacialização da cidade de Brasília, apontando para o fato de que nesse contexto, moradia
e trabalho estão intimamente relacionados. Para ele, as “lacunas de trabalho”, ao lado da
questão da moradia, estariam afetando a construção do espaço urbano no caso específico de
Brasília e suas cidades satélites.
Paviani destaca que a segregação urbana acaba sendo mais visivelmente notada
pela segregação habitacional, “sendo negligenciada aquela segregação que brota das
diversas formas assumidas pelo desemprego ou pela supressão de postos de trabalho, que
são cada vez mais responsáveis pela geração de injustiça social nas cidades dos países
subdesenvolvidos” (PAVIANI, 1998: 116)
Em artigo publicado no jornal Correio Braziliense (4 de maio de 2001, Caderno
de Opinião, p. 2), o geógrafo Aldo Paviani afirma que Brasília é constituída por toda a área
urbana do Distrito Federal, não se limitando apenas à região central. Ele esclarece que se
trata de uma cidade polinucleada, constituída por várias regiões administrativas, de modo
38
que as regiões periféricas estão articuladas às centrais, especialmente na questão do
emprego, e não podem ser entendidas como cidades autônomas.
Segundo o geógrafo, sua posição é sustentada juridicamente pela Constituição
Federal de 1988, que no artigo 32 define o Distrito Federal como uno, e proíbe a sua
divisão em municípios. Como Brasília não pertence a nenhuma Unidade da Federação, ou
seja, seria uma cidade que não pertence a nenhum Estado, mas sim à União, seus limites
territoriais se definem pelo distrito, situação que resulta na criação do Distrito Federal.
Luiz Alberto Gouvêa (1998:95) afirma, também empregando uma abordagem
teórica de inspiração marxista, que “o planejamento urbano e particularmente a habitação
em Brasília foram utilizados de forma ideológica para segregar e controlar a população”. O
autor sustenta que o governo em Brasília empregou a situação de monopólio das terras
públicas como forma de controlar a distribuição das terras e, ao deslocar sistematicamente
as favelas para localidades periféricas, contribuiu para a segregação espacial que caracteriza
a região.
Esse autor ressalta que sua pesquisa de campo (1988), realizada em duas cidades
satélites, revelou que o principal fator que motivou a migração para Brasília foi a busca por
oportunidades de trabalho, de estudo e por melhores condições de tratamento de saúde. A
dificuldade de apropriação social de seus espaços urbanos constituiria um grande desafio
para os moradores da periferia de Brasília.
Neio Campos (1998:98) trata da segregação residencial como resultado de
determinações das relações sociais capitalistas. Distingue diferentes momentos da história
da cidade de Brasília, analisando sua evolução espacial, desde os canteiros de obras, até a
formação do espaço urbano, consolidação da cidade e finalmente o crescimento acentuado
39
das áreas urbanizadas do entorno. Esse autor considera que a história de Brasília é a história
das lutas de classes que nela acontecem.
Inês Zatz, em sua dissertação de Mestrado (1986), também realizou um estudo
sobre moradores de uma cidade-satélite de Brasília: Planaltina. No trabalho, Zatz (1986)
analisou o impacto da demarcação definitiva do território do Distrito Federal naquela
cidade, que mais de um século pertencia ao estado de Goiás. As transformações da
cidade incluiriam acelerado crescimento demográfico, modificações estruturais no sistema
político, econômico, religioso, social e ainda na percepção do universo espacial e
simbólico.
Conforme se pode observar por esses trabalhos, as grandes transformações que
ocorreram na região em decorrência da criação do Distrito Federal têm sido objeto de
estudos em diferentes áreas do conhecimento, restando muito ainda a ser investigado, dado
a abrangência do fenômeno, especialmente no que tange aos processos mais recentes de
luta e de adaptação da população às condições de vida na Capital Federal. É importante
lançar um olhar sobre as chamadas “cidades-satélites” e o que tem sido investigado, dito e
escrito a respeito delas. As cidades-satélites, conforme foi exposto, não são municípios,
mas regiões administrativas do Distrito Federal. Nas próximas páginas procuro desenvolver
melhor o tema.
40
1.2 As Regiões Administrativas de Brasília
A socióloga Mara Resende (1998: 217), em artigo sobre a luta dos moradores dos
acampamentos de Brasília pela ocupação do espaço, com ênfase no movimento dos
moradores da Ceilândia, faz um breve apanhado da história de Brasília no que se refere à
criação das cidades satélites:
“Já no início da construção havia os ‘acampamentosdas firmas construtoras,
verdadeiras vilas onde viviam operários, engenheiros e técnicos, e que se esperava fossem
desaparecendo quando os trabalhos terminassem. Com o término das obras e a contínua
chegada de migrantes, repetiram-se as histórias de busca de moradia, a exemplo do que
ocorre nas cidades convencionais. Surgem os posseiros urbanos de Brasília, que invadem
áreas do Plano Piloto, originalmente não destinadas à habitação e muito menos à
habitação popular. A reação do Governo do Distrito Federal foi iniciar a criação de outros
núcleos urbanos, ‘cidades satélites”, para onde seria transferida essa população. Em
contraste com o caráter provisório dos acampamentos e das invasões, as cidades-satélites
são uma iniciativa oficial, dirigida, e sua implantação obedece a determinados planos e
traçados.” (RESENDE, 1998: 217)
A autora chama a atenção para o aspecto de planejamento, por parte do governo
distrital, da retirada dos moradores, com a previsão de sua transferência para áreas mais
afastadas do núcleo de Brasília:
“Assim, desde 1958, antes mesmo da inauguração de Brasília, cria-se
Taguatinga, para absorver invasões da Vila Sara Kubitschek. Em 1959, o Gama, e em 1961
o congresso aprova uma lei considerando o Núcleo Bandeirante a Cidade Livre como
cidade satélite.” (RESENDE, 1998: 218)
41
Ainda sobre o surgimento do Núcleo Bandeirante, criado a partir da fixação dos
moradores da então Cidade Livre, cabe mencionar o artigo da socióloga Nair de Sousa
(1998: 170), chamando a atenção para esse aspecto pouco lembrado da história de Brasília:
a existência de lutas e movimentos populares. A autora propõe resgatar esse passado de luta
e resistência popular: “Ficou para Brasília o registro oficial de sua construção e
consolidação feito pelo Estado.” Ela busca resgatar o significado das lutas sociais,
contribuindo para criar uma tradição que permita articular questões do presente com esse
passado que parece estar ausente da memória dos moradores de Brasília hoje.
Fala-se do apelo mítico de JK, que conclamou a todos para virem trabalhar na
construção de Brasília, permanecendo na memória somente uma parte da cidade. A mística
de Brasília perdura até hoje, com a exaltação da memória do Presidente e do seu grande
feito de interiorização da capital federal, mas pouco se fala sobre o imenso número de
trabalhadores que vieram para a então Cidade Livre, atendendo a esse chamado de JK, para
os quais o governo do Distrito Federal designou as localidades periféricas. Esses
trabalhadores, que permaneceram em Brasília depois da sua construção, juntamente com
seus descendentes, formam a população brasiliense de hoje.
Brasília cresce com as suas características próprias. Visando dar conta das suas
particularidades, o Governo do Distrito Federal, além da criação de ‘cidades-satélites’,
distribuiu sua administração em pequenas regiões, indicando um administrador de sua
confiança para cada uma delas. De acordo com dados do Governo do Distrito Federal, são
29 as regiões administrativas de Brasília atualmente. Há dados disponíveis apenas sobre 19
regiões, criadas antes do Censo de 2000. Após o Censo, de 2003 a 2005, foram criadas
42
mais 10 regiões
2
. De acordo com os dados do Censo, as regiões têm as seguintes
características:
Região Administrativa Área (km2) População
(2000)
Densidade
Demográfica(hab/km2)
RA-I Brasília
473 198.422 419,4
RA-II Gama 276 130.580 472,9
RA-III Taguatinga 121 243.575 2.007,2
RA-IV Brazlândia 474 52.698 111,2
RA-V Sobradinho 569 128.789 226,2
RA-VI Planaltina 1.537 147.114 95,7
RA-VII Paranoá 852 54.902 64,4
RA-VIII Núcleo
Bandeirante
82 36.472 442,5
RA-IX Ceilândia 232 344.039 1.482,9
RA-X Guará 46 115.385 2.524,8
RA-XI Cruzeiro 9 63.883 7.098,1
RA-XII Samambaia 106
164.319 1.550,2
RA-XIII Santa Maria 211 98.679 467,1
RA-
383 64.322 167,9
RA-XV Recanto das Emas 101 93.287 919,3
RA-
190 28.137 147,9
RA-
55 41.404 759,3
RA-XVIII Lago Norte 54 29.505 541,5
RA-XIX Candangolândia 7 15.634 2.351,0
T O T A L
5.783
2.051.146
354,7 (média)
Fonte: CODEPLAN - IBGE - IDHAB/DF. Disponível no sítio www.setur.df.gov.br,
consultado em novembro de 2006.
2
O DF originalmente não tinha divisões, mas em 1964 foi dividido em 8 Regiões Administrativas. Em 1989
quatro novas regiões foram criadas, levando o número total a 12. De 1992 a 1994 mais sete divisões
resultaram num total de 19 regiões administrativas, mero que permaneceu o mesmo de 1994 a 2003. De
2003 a 2005 dez novas regiões foram criadas, chegando-se ao número atual de 29.
43
As novas Regiões Administrativas são:
RA-XX - Águas Claras (desmembrada da RA de Taguatinga)
RA-XXI - Riacho Fundo II
RA-XXII - Sudoeste / Octogonal (fazia parte da RA do Cruzeiro)
RA-XXIII - Varjão (fazia parte do Lago Norte)
RA-XXIV - Park Way
RA-XXV - Setor Complementar de Indústria e Abastecimento
RA-XXVI - Sobradinho II
RA-XXVII - Jardim Botânico
RA-XXVIII – Itapuã
RA-XXIX – SIA – Setor de Indústria e Abastecimento
As regiões administrativas atualmente possuem autonomia, apesar de inicialmente
terem sido criadas para abrigar o crescente fluxo de migrantes que chegava em Brasília,
juntando-se aos trabalhadores que aqui se encontravam. Não pretendo entrar em maiores
detalhes sobre as regiões administrativas e suas divisões, visto que isso fugiria dos limites
dessa tese. Na maioria das regiões administrativas existem projetos e iniciativas envolvendo
trabalho artesanal; entretanto, foi necessário estabelecer um recorte, para poder aprofundar
a pesquisa em algumas localidades. As artesãs de que trata a tese são moradoras de três
regiões: Varjão, Taguatinga e Samambaia.
44
1.3 As Mulheres em Brasília: papéis tradicionais na cidade moderna
Apresento nessa parte uma caracterização do contexto social das mulheres de
Brasília, expondo a problemática que a maioria delas relata vivenciar, especialmente
relevante, no que tange a essa pesquisa, como referência ao período que antecedeu o seu
ingresso nos grupos de trabalho com artesanato.
A mulher proveniente de camadas de mais baixa renda, com pouca instrução e sem
oportunidade de emprego, acaba muitas vezes por concentrar seus afazeres no cuidado da
casa e dos filhos. A maioria das mulheres entrevistadas era proveniente do meio rural,
acostumada ao trabalho da roça. A maioria delas veio para Brasília acompanhada, seja dos
pais, de um namorado ou marido, em busca de melhores oportunidades, em suma, buscando
melhorar de vida.
Muitas vezes as possibilidades de trabalho que surgem são de empregada doméstica,
auxiliar para serviços gerais, copeira ou babá. Para isso é necessário, no mínimo, ter bons
contatos, ser indicada. A falta de algum treinamento específico ou experiência anterior, que
é também desejável, para muitas representa um empecilho. Administrar a casa e cuidar das
crianças, apresentando uma média de 3 três filhos cada, requer tempo, disposição e muito
trabalho. Muitas delas criam os filhos sem nenhuma ajuda do marido ou companheiro.
Essa mulher de poucos recursos se numa situação praticamente sem solução
quando pensa em trabalhar para aumentar a renda familiar. Como vai sair e deixar os filhos
pequenos sozinhos em casa? Como vai fazer para conseguir um emprego que permita pagar
a creche dos filhos, onde eles poderiam ficar enquanto ela está fora, ou uma outra pessoa
que tome conta deles em seu lugar? Acaba tornando-se muito difícil seu ingresso no
mercado de trabalho.
45
Muitas vezes, esse tipo de situação acaba resultando no ingresso dos filhos no
trabalho muito cedo. As crianças são mandadas às ruas para vender balas, chicletes ou
pequenos objetos, para lavar carros ou mesmo para pedir dinheiro em meio ao trânsito,
como forma de ajudar na renda familiar. Tal situação gera um ciclo vicioso de reprodução
da miséria e vulnerabilidade social, pois a criança que troca a escola pelo trabalho torna-se
um adulto sem qualificação específica para o trabalho.
Essa situação, que atinge parte considerável da população brasileira, explica o
sucesso de programas como o “Bolsa Família” do Governo Federal ou o “Renda Minha” do
Governo do Distrito Federal. Tais programas oferecem um auxílio em dinheiro para que a
mulher mantenha os filhos na escola e possa ficar em casa e tomar conta deles no turno que
não corresponde ao horário escolar
3
.
A maioria das mulheres de baixa renda de Brasília, dentre as entrevistadas, relata
ser beneficiária de pelo menos um dos programas de renda dos governos. Tendo o sustento
básico da família garantido, ainda que de forma um tanto quanto limitada, a mulher
consegue pensar em si mesma e buscar em si os recursos para ingressar no mercado de
trabalho.
Em seguida apresento três casos de mulheres de Brasília que reunidas conseguiram
encontrar um modo de lidar com uma situação de vulnerabilidade social. Administrando
casa e família, acompanhando os filhos pequenos, e ao mesmo tempo garantindo seu
sustento ao exercer atividade remunerada, as artesãs de Brasília que analiso são exemplo de
sucesso que alia determinação, vontade de trabalhar e criatividade.
3
Não cabe discutir aqui os méritos e deficiências de tais iniciativas. É inegável que tais programas têm
impacto social, porém, o que foi possível constatar no trabalho de campo.
46
Capítulo 2. As Costureiras do Varjão
47
Capítulo 2 - As Costureiras do Varjão
“Vem pelo Eixão, entra quem vai pro Lago Norte, passando o Pão de Açúcar
faz o retorno e dobra à direita. Ali você vai ver a placa:
Varjão do Lago Norte”. (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
“A associação? Fica do lado da Escola Classe. Do lado.”
(Maria Anita da Silva, Varjão)
“É, realmente, acabou se criando um trabalho que é a cara do brasiliense
mesmo. É umas bonequinhas, um projeto chamado sonho de pano e que a
gente está fabricando essas bonecas para o mercado, e elas estão sendo
bem aceitas pelo fato de ser a cara da brasiliense.”
(Maria Anita da Silva, Varjão)
O Varjão é uma das novas regiões administrativas de Brasília. Localizado a apenas
dez minutos da Universidade de Brasília, é considerado como uma das regiões mais pobres
do entorno do Plano Piloto. O Varjão é atualmente uma vila formada por posseiros que ali
se estabeleceram em busca de moradia em Brasília, num processo característico do
fenômeno de migração de famílias e amigos que marca a região. É também um dos
assentamentos mais antigos do Distrito Federal. A Vila Varjão teve início cerca de 40
anos, quando chegaram as primeiras famílias que vieram para trabalhar na chácara de um
Deputado, apesar de se tratar de terra desapropriada e, portanto, de propriedade da
TERRACAP.
Passado algum tempo, o deputado posseiro repassou aos seus empregados as
terras ocupadas que, por sua vez, foram subdivididas entre parentes e amigos. A partir daí,
48
novas famílias foram se instalando nas áreas próximas à referida chácara, principalmente
no período de 1977 a 1982.
poucos anos, houve iniciativas no sentido de obter a remoção da Vila Varjão
daquele local, por considerar-se que a vila estaria situada dentro da Área de Proteção
Ambiental do Lago Paranoá, em áreas de nascentes d´água. Os moradores garantem que
esse argumento foi empregado apenas como desculpa para retirá-los dali, devido à
proximidade do Setor de Habitações do Lago Norte. O Governo do Distrito Federal tem
executado ações concretas no sentido de regularizar a posse das terras para os moradores do
local.
Foi realizado um Estudo de Impacto Ambiental na Vila Varjão, com o propósito
de determinar os riscos da ocupação da área. Segundo Liza Maria Souza de Andrade e Luiz
Alberto de Campos Gouvêa (2004), O primeiro estudo para manutenção da população no
local é realizado em 1984, pela GEPAFI (Grupo Executivo para Assentamento de Favelas e
Invasões).”
Ainda segundo esses autores,
“Em 1988, a Vila Varjão contava com uma população estimada de 3.200 pessoas. Em
1990, o IEMA/DF (órgão ambiental do DF na época), por meio do Estudo de Impacto Ambiental
do Setor Taquari, emitiu parecer técnico favorável à permanência do assentamento, condicionado
a uma série de providências que deveriam ser tomadas com o mínimo de impactos ambientais, para
promover uma melhoria da qualidade de vida da sua população.” (ANDRADE E GOUVEIA:
2004)
O Estudo de Impacto Ambiental é um procedimento administrativo de prevenção e
de monitoramento dos danos ambientais, com duas grandes orientações: deve oferecer
alternativas e deve apontar as razões de confiabilidade na solução a ser adotada. O estudo,
em conseqüência, gera o Relatório de Impacto Ambiental.
49
De acordo com Andrade & Gouvêa:
“O EIA-Rima funciona como um elo entre o componente político e social, responsável pela
execução das diretrizes ambientais e o componente técnico, científico e legal desses instrumentos.
No entanto, existe um distanciamento entre as informações obtidas nos estudos de impactos
ambientais e as análises e proposições para as intervenções urbanas, ou seja, apresentam um
caráter mais enciclopédico do que analítico. Esses estudos, em sua maioria, não evitam conflitos
no processo de licenciamento e, conseqüentemente, se estendem por muito tempo, privando a
população carente dos benefícios da urbanização da área.” (ANDRADE & GOUVÊA 2004:2)
A controvérsia em torno da ocupação da área do Varjão se deve ao fato de o
assentamento desrespeitar os afastamentos legais do Código Florestal , Lei no. 4.771, de 15
de setembro de 1965, que prevê, em seu artigo 2º, que:
“São consideradas de preservação permanente as florestas e demais formas de
vegetação natural situadas: (a) ao longo dos rios ou qualquer corpo d’água em faixa marginal
além do maior leito sazonal, medidas horizontalmente, cuja largura mínima será de 30 metros para
cursos d’água com menos de 10 metros de largura (Redação pela Lei n0 7.803/89); (b) Nas
nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados olhos d’água, qualquer que seja a sua situação
topográfica, num raio de 50 metros de largura (Redação Lei n0 7.803/89); (c) ao redor das lagoas,
lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais (Redação pelo art. 30 , alínea b, inciso II da
Resolução CONAMA 004/85); (d) a 30 metros em áreas urbanas.
Os moradores do Lago Norte, em ação coletiva apresentada ao Governo do Distrito
Federal no sentido de encaminhar providências para a retirada da vila daquele local,
salientam que o EIA/RIMA da Vila Varjão mencionava perigos ambientais (erosões,
inundações, poluição do solo e do lençol freático) que poderiam surgir numa área de grande
fragilidade ambiental em razão da decisão política de assentar chacareiros, mesmo que em
número reduzido (naquela época previam-se 630 lotes).
50
O documento salienta também que o EIA/RIMA da Vila Varjão também
preconizava a “necessidade de evitar a expansão da Vila Varjão”, devido à inviabilidade
das condições do solo e da sua localização em nascentes. Observa-se que, mesmo com as
recomendações e os perigos ambientais apontados em pareceres técnicos, a população
instalada na Vila continua sempre em crescimento. Existem hoje muitos lotes ainda em
condições irregulares.
Do ponto de vista dos moradores do Lago Norte, os assentamentos irregulares
provocaram um aumento de bolsões de miséria próximos às quadras QI e QL 01 e QL 03,
área residencial de maior prestígio, e disso resultaria uma redução do valor dos imóveis que
fazem vizinhança com o Varjão. Os furtos e assaltos que ocorrem frequentemente no Lago
Norte criam uma certa tensão entre aqueles moradores e os moradores da Vila Varjão, que
acabam atraindo olhares de suspeição, sua população resultando estigmatizada.
O Governo do Distrito Federal, visando promover melhorias nas condições de
habitação da Vila Varjão, e respondendo a uma antiga reivindicação da população dessa
área quanto à continuidade do projeto de urbanização iniciado em 1991, definiu a área
como de ação prioritária do Programa Habitar Brasil, financiado pelo BID (Banco
Interamericano de Desenvolvimento), que consiste na construção de moradias e
urbanização do local.
Por meio da SEDUH/DF
4
(Secretaria do Desenvolvimento Urbano e Meio
Ambiente do Distrito Federal), o governo elaborou uma proposta abrangente de intervenção
urbana, objetivando solucionar os graves conflitos habitacionais e sócio-ambientais dessa
comunidade, de acordo com as premissas estabelecidas pelo referido programa. A estrutura
do Projeto de Participação Comunitária contempla os seguintes eixos: Mobilização
4
http://www.seduh.df.gov.br/
51
Participação e Organização Comunitária, Educação Sanitária e Ambiental e Geração de
Emprego e Renda.
A Vila Varjão foi criada a partir da necessidade de assentar as famílias que foram
chegando e se fixando naquela área. Independentemente dos estudos e projetos urbanísticos
que foram realizados, a ocupação deu-se de forma desordenada, com barracos
entremeando-se a chácaras e áreas públicas. Embora o EIA-RIMA do Taquari tenha
definido a área como inadequada para assentamentos urbanos, “devido à existência de sítios
de elevada sensibilidade ambiental”, recomendou-se que fosse mantida a fixação, de forma
ordenada, priorizando o aspecto social das famílias que já estavam habitando o local.
A Associação “Mulheres em Ação” foi criada com o objetivo de fazer frente ao
problema da precariedade de moradia das famílias do local. O propósito, inicialmente, era
organizar um mutirão para construção de casas. Todos os moradores da própria vila
trabalhariam na construção, inclusive mulheres e crianças. O material de construção foi
fornecido pelo Governo do Distrito Federal, em parceria com o BID. As moradoras
informam que já houve um estudo na UnB sobre a construção das casas e o mutirão.
5
Maria da Guia Barros de Oliveira, artesã e moradora do Varjão, relata que ela
própria construiu a sua casa. Conforme relata, o pessoal da ONG “Moradia e Cidadania”
ensinou a fazer o mutirão, uns ensinando para os outros como fazer a construção, colocar
cimento, empilhar tijolo, incentivando a cooperação entre os moradores:
“Em 2002, foi quando a gente estava construindo essa casinha. Essa casinha foi
doação. Foi a ONG que deu aqui para o Varjão. Deu treze casinhas dessas. Eram mais,
5
A pesquisa realizada na UnB sobre a construção de moradias na Vila Varjão resultou no estudo “Vila
Varjão, Desenvolvimento Local Integrado Como Estratégia da Redução da Violência Urbana” de autoria de
Denise Fontes de Oliveira e Sérgio Ulisses Silva Jatobá, publicado em 2005.
52
eram trinta casinhas, mas o pessoal não tinha vontade para trabalhar e resultou em
treze famílias. Eu fui uma delas, eu não desisti não, entrei e fiz minha casa.” (Maria da
Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Nos fundos de sua casa, Maria da Guia mantém um galpão onde reúne as mulheres
do Varjão para trabalharem juntas com artesanato. As paredes de tijolos e o chão de
cimento denotam uma obra inacabada. No centro há uma mesa grande, com muitos pedaços
de tecidos. A máquina de costura foi colocada próximo à janela. Sacolas com panos estão
por toda parte, sobre a mesa, nos bancos, nas poltronas e até mesmo no chão. Foi ali que ela
me recebeu e começou a contar a sua história. Maria da Guia relata como foi que entrou na
organização para a construção das casas no Varjão. Ela começou sua vida profissional
trabalhando de empregada doméstica no Lago Norte e ganhou um lote de terra no Varjão.
Quando surgiu a oportunidade para construir sua casa, com doação do material, ela entrou
com vontade no trabalho, valorizando essa aprendizagem. Ali ela conheceu Maria Anita da
Silva, iniciando uma amizade que futuramente lhes renderia um trabalho compartilhado.
Desse mutirão para construção das moradias, que aproximou muitas mulheres com
dificuldades semelhantes, surgiu a idéia de criar uma associação. Nas palavras de Maria da
Guia,
“Antes mesmo, eu era empregada doméstica. Trabalhei bastante tempo nisso. Eu
tenho três filhos, tenho quarenta e dois anos. Meus filhos um tem dezessete, outro quinze e
o outro onze e toda vida cuidei sozinha deles, graças a Deus, e hoje eles estão terminando
o Primeiro Grau. Dois deles estão na Oitava Série e o outro na Quarta Série e eu
trabalhava de doméstica e morava no Varjão. Trabalhava lá em cima, no Lago. Eu
comecei a trabalhar em casa de família e que surgiu o negócio do lote. Eu ganhei esse
lote aqui, daí nesse lote aqui eu continuei trabalhando de doméstica até o dia que um
amigo falou que em tal lugar uma mulher trabalha assim e assim. Eu falei: não acredito!
Em construção civil! Falei: não tenho coragem de trabalhar em construção civil, não. Daí
53
ele insistiu. Falei então: me põe que eu quero aprender. Daí ele me colocou para
fazer aquelas coisas de rejunte, sabe? Aquelas coisas bem difíceis, mesmo, da construção,
muito difícil, mas eu achava tão bom, me apaixonei, gostava de fazer e trabalhava naquilo
ali. Um dia eu estava aqui em casa e me falaram que tinha reunião de umas casinhas
embaixo. Daí eu disse: então vou lá! Eu fui e cheguei lá. Era para deixar o nome das
pessoas que queriam a casa, que todo mundo já tinha botado o nome, tinham ido na
casa de várias pessoas e estavam com a lista prontinha. Eu disse: não, eu sou carente, sou
mãe solteira e eu quero participar, porque eu estou vendo pessoas que são casadas e
estão com condição financeira melhor que a minha e estão no projeto e então eu também
quero. As pessoas falaram que eu tinha direito. Daí um rapaz lá me colocou e eu fui e
fiquei. Daí, de cento e tantas pessoas escolheram treze e dessas treze eu fui uma das
pessoas que foi contemplada.” [...] “Era para ser escolhido mais de trinta, mas quase
ninguém topou...para trabalhar junto. Não queriam, queriam que descem prontas as casas.
Foi isso que aconteceu aqui no Varjão: muito pouco e quando foi no final mesmo tinha
sete famílias construindo treze casas. Difícil, né?, Eu me estressei, achei que eu e Anita (a
gente é super amiga)... Daí, a gente criou coragem. Eu acho que a gente aprendeu muito e
hoje a gente sabe lidar mais com a Associação devido a esse tempo que a gente passou
essa experiência. Valeu muito e vale até hoje para essa Associação. Porque eu acho assim:
se eu não tivesse passado por essa experiência que eu passei pelo mutirão, eu acho que não
teria coragem para enfrentar agora hoje, não. Nossa, teve uma época que eu achei que
fosse enfartar. É difícil... Ainda mais que a maioria era mulher, tinham marido que não
iam. Colocaram muita velhinha que tinham muitos filhos, mas que os filhos não iam. Aí
a gente ficava chateada, falava: não vou fazer a casa dela, ela tem filho, ninguém vem e
nós temos que fazer para ela. Mas não adiantava, você é obrigado ir ou você vai sair fora.
É muito rígido mesmo, e eu aprendi muito, pois é custoso. E aí depois veio o artesanato e o
artesanato veio para acabar de completar. Daí eu fiquei muito tranqüila.”(Maria da Guia
Barros de Oliveira, Varjão)
Permiti-me reproduzir a fala de Maria da Guia, apesar de longa, porque acredito que
sintetiza toda uma história de vida e permite-nos apreender um pouco sobre os diferentes
caminhos que podem levar uma pessoa a trabalhar com artesanato. Maria da Guia conta o
quanto tiveram que trabalhar arduamente na construção das casas, ajudando também outras
54
mulheres da vila que precisavam dela. Mostra-se um tanto ressentida por trabalhar
ajudando mulheres que muitas vezes eram casadas ou tinham filhos crescidos que, no seu
entender, deveriam contribuir na construção, mas não o faziam. Mesmo assim, ela não se
teria deixado abater e continuou no mutirão, pois esse foi o caminho encontrado por ela
para obter a casa de alvenaria que ela desejava.
Hoje, unidas, Maria da Guia, Anita e as mulheres do Varjão são costureiras que
fazem trabalhos por encomenda. Reunidas em torno dessa atividade, a costura, elas
conseguem promover melhorias nas suas condições de vida. Elas comentam sobre o
sucesso do projeto:
“No fato da gente desenvolver um trabalho que parece com a cara de Brasília, né,
e isso foi muito aceitado no mercado, pois realmente elas são a cara da brasiliense mesmo.
E é um trabalho gostoso, pois você acaba visando um trabalho que se tornou, no passado,
um brinquedo, que agora, no futuro, esse brinquedo está gerando renda para essas
mulheres e é muito interessante. E a gente vê assim: como pode umas bonequinhas que vem
lá da roça e agora elas estão aí no mercado, fazendo o maior sucesso, todo mundo
gostando? Eu sei que estão adorando o trabalho. É muito bom. Você se sente bem, também,
de ver essas mulheres trabalhando, melhorando um pouco a renda familiar. Não muito,
mas já ajuda muito na renda familiar. E isso é muito bom para todos nós. Então, precisava
esse tipo de trabalho aqui dentro e precisa mais incentivo das pessoas que podem ajudar
mais, incentivar mais essas mulheres a desenvolver não só aqui no Varjão, mas também em
outras cidades satélites de comunidades carentes que precisam de um empurrão, de uma
ajuda e que começasse assim, seria muito bom.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
“Além da renda que melhorou, melhorou o emprego, minha casa melhorou
também e o artesanato ajuda demais. E o mais importante é o reconhecimento, porque em
todo lugar que você vai fica todo mundo louco com o trabalho. Assim que você chega as
pessoas começam a pegar e acham bonito. E você fica deste tamanho [abriu os braços]. E é
isso que faz você chegar em casa e [fez gesto de costurar] de novo” (Maria da Guia
Barros de Oliveira, Varjão)
55
Para as costureiras, o seu trabalho tem “a cara do Varjão”, e as bonecas tem “cara de
brasiliense.” O reconhecimento do trabalho residiria justamente nesse fato. Ao fazerem
algo que sempre fizeram, desde a infância, quando costuravam suas próprias bonecas de
pano, as mulheres se divertiriam fazendo algo que conhecem muito bem, algo cuja técnica
dominam, e por isso o resultado seria tão bom. Começaram a trabalhar com costuras
porque era algo que, de uma forma ou de outra, estava presente no seu universo. Não se
trata simplesmente de “ser algo que já sabiam fazer”, mas algo que gostam de estar
fazendo, pois elas sempre sublinham a satisfação em fazer aquilo que se gosta.
Também é estimulante para elas o fato de conseguirem obter um retorno financeiro
do desempenho de uma atividade lúdica e prazerosa. Conseguir obter renda através do
artesanato modificou as suas vidas tanto do ponto de vista social ou relacional (o que se
pode observar quando Maria da Guia fala que as pessoas acham bonito seu trabalho e isso
lhe estimula a continuar), quanto do ponto de vista financeiro, também destacado por elas:
“esse brinquedo está gerando renda para essas mulheres”, na fala de Anita .
Partindo daquilo que conheciam, e da experiência de trabalho coletivo do mutirão,
as mulheres do Varjão ressaltam a importância de poderem realizar o trabalho artesanal
sem precisar sair de casa, necessitando de muito poucos recursos para dar início a ele:
“Eu mexia com barbante. Outras fizeram bonecas antes, né? Então a gente
achou mais fácil mexer com isso e também foi o que a gente teve mesmo de
profissionalização e foi o que veio pra gente. E a gente achou que todo mundo podia
fazer: não tinha que pagar passagem para sair, para trabalhar em casa. Que o
principal mesmo é isso: todo mundo pode fazer em casa, pegar um pedacinho de pano... aí
vai embora. Em outra coisa você não pode [trabalhar em casa], tem que ficar no lugar,
tem que ter muito mais burocracia do que trabalhar com um pedacinho de pano. E sem
56
contar que é muito bonito! Quando você faz algo caprichado, pra sair mesmo (risos), cria
vida própria. As bolsas, mesmo, que eu faço, quando eu faço eu acho linda. Eu vou e faço
outra. Cada uma que você faz, você fica mais apaixonada e vai andando até que você não
consegue mais parar. Eu mesma não consigo mais, não. Às vezes eu quero ficar um dia sem
mexer com pano,- hoje eu não quero nem ver pano na minha frente-, mas não consigo. Eu
venho aqui daí invento de passar, ai invento de tirar do lugar, daí alguém liga e eu
digo: gente, me achou de novo! Mas é bom, porque é gratificante” (Maria da Guia
Barros de Oliveira, Varjão).
O ponto principal destacado nessa fala de Maria da Guia é o estímulo de continuar
produzindo, que resulta do próprio trabalho bem executado. O resultado visível e palpável
de um dia de trabalho impulsiona a costureira a seguir em frente. Trata-se de um trabalho
cujo resultado é tangível. Na medida em que terminam de costurar uma bolsa ou uma
boneca, podem avaliar o que estão fazendo, e perceber onde podem melhorar. Na aceitação
do grupo como um todo e na avaliação coletiva do trabalho, elas conseguem obter
aperfeiçoamento do trabalho individual.
Após o projeto inicial de construção de moradias, outros se seguiram, tanto
buscando soluções na área de moradia, quanto na de cidadania. Seguiu-se outro projeto
mais abrangente, com a construção de mais unidades de moradia, ao mesmo tempo em que
os moradores se articulavam também em torno de questões como oportunidades de trabalho
e emprego, qualificação profissional e formas de capacitação.
Durante o ano de 2006 foram construídos diversos imóveis no local para abrigar as
famílias que viviam em situação de risco. De acordo com o Governo do Distrito Federal, a
previsão é de que 125 famílias sejam beneficiadas em 2006. A meta do Projeto Integrado
Vila Varjão é a construção de 506 moradias, entre casas e apartamentos, com
financiamento do Programa Habitar Brasil, do Banco Interamericano de Desenvolvimento
57
(BID). No total, serão investidos R$ 11,1 milhões, dos quais R$ 1,6 milhão do governo do
Distrito Federal, como contrapartida.
Maria Anita da Silva é uma líder comunitária na vila Varjão. Segundo Anita, como
prefere ser chamada, sua atuação no local começou com o primeiro projeto de moradia
popular, em que organizaram um mutirão para a construção de casas. Reunindo as
mulheres, formaram a ONG “Mulheres em Açãocom o propósito de garantir moradia e
cidadania e para ajudar a solucionar as dificuldades enfrentadas pelos moradores do local.
À frente da ONG “Mulheres em Ação”, Anita responde às demandas locais,
funcionando como uma intermediadora entre os moradores e outras instâncias da sociedade.
Essa organização funciona na sala mesmo da casa de Anita. Um conjunto de estofados e
algumas cadeiras garantem assento para as participantes. Anita arruma contatos para
empregos, advogados, remédios, carona e busca soluções para toda sorte de circunstâncias
que surgem no dia-a-dia da comunidade. Foi nesse contexto que surgiu o Projeto “Sonho(s)
de Pano”:
“Mulheres em Ação” é uma associação que tem aqui no Varjão em que eu sou
presidente. E dentro dessa associação tem o grupo de mulheres produtivas, que é um
projeto, que é a “sonhos de pano”. Mas dentro da associação nós somos 200 mulheres
associadas e sendo 13 que trabalham no projeto Sonho de Pano.” (Maria Anita da
Silva, Varjão)
Anita descreve seu trabalho frente à organização “Mulheres em Ação” no Varjão.
Ela domina bem a linguagem empregada no universo de organizações não-governamentais
e nos movimentos sociais de modo geral, em que “projetos”, “associadas”, “incentivos” e
“parcerias” fazem parte do vocabulário corrente.
58
“Um incentivo, de começar, de reunir, de começar um trabalho, desenvolver um
trabalho com as mulheres. Não também nas bonecas, como aqui no Varjão, a gente
acaba abrangendo também outras coisas, sem ser só o trabalhar com bonecas. A gente traz
cursos de qualificação para elas, a gente traz psicólogos, às vezes advogado, pessoas que
podem estar orientando para que elas possam conhecer melhor a vida em torno delas, que
às vezes não têm esse conhecimento. Então está sendo muito bom, e que isso se abrangesse
nas outras cidades satélite.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
O Projeto “Sonho de Pano” foi criado por Anita com as mulheres da organização,
visando, entre outras propósitos, à geração de renda para as mulheres da comunidade, uma
das principais demandas do grupo:
“No projeto “Sonhos de Pano” são treze mulheres. Treze mulheres que
desenvolvem trabalho aqui conosco, que vivem um pouco dessa renda. [...] Tem quatro
anos que o projeto começou, o “Sonho de pano”, e esse trabalho está sendo desenvolvido a
passinho de tartaruga, pois como o Varjão ainda está nesse trânsito de assentamento,
então ainda está tendo de ir devagar. Até mesmo por que tem que ter, assim, um espaço
maior para trabalhar com elas... Como você vê, está aqui na minha sala, mas estamos
brigando por um galpão que tem aqui no próprio meu terreno, que possa trazer mais
mulheres para trabalhar conosco.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
Esse Projeto, iniciado em 2001, reúne hoje 13 mulheres que trabalham no barracão,
na sala da casa de Anita e produzem bonecas de pano. Ela conta que costumava fazer
bonecas de pano quando criança. Quando começou a pensar no que ela poderia fazer, não
teve dúvida: as bonecas ou “bruxinhas” de pano, como são comumente chamadas. As suas
bonecas vêm fazendo sucesso. As bonecas do Varjão, como ficaram conhecidas na mídia,
fizeram parte dos cenários do seriado “Malhação” e da novela “Belíssima”, ambos da
Rede Globo, no horário nobre da televisão brasileira, em 2005.
59
Após a aproximação através do mutirão de construção das casas, as mulheres
perceberam que unidas conseguiam se articular para criar trabalho e obter renda, se
ajudando a enfrentar as dificuldades de criar seus filhos sozinhas. Perceberam que seria
possível obter ajuda fora da Vila, na sociedade, e foram em busca de recursos para
viabilizar seus projetos. As artesãs falam sobre os órgãos que apóiam as iniciativas da
associação de mulheres do Varjão:
“A ONG “Moradia e Cidadania” e o SEBRAE, esses dois órgãos, eles ajudavam
muito e ainda ajudam. Eles têm mais contatos aí fora com as pessoas, e eles descobrem [as
feiras], têm muitos amigos, avisam a gente e a gente prepara o material todo e leva. E
quando a gente não pode ir, porque é uma feira longe e a gente não tem condições de ir,
eles levam nosso material. Essa semana mesmo, agora, a gente expôs lá na Caixa” (Maria
da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Anita salienta uma das características responsáveis pelo sucesso do trabalho em
grupo na associação, a união. Durante o período de formação do grupo de trabalho, ocorre a
entrada e saída de muitas pessoas, que se aproximam para conhecer e depois se
desinteressam ou simplesmente não se adequam ao trabalho, por fim, afastando-se do
grupo. Anita tem uma técnica para evitar as pessoas inconvenientes. Ela “afasta um
pouquinho a pessoa para refletir no que estava fazendo”, conforme ela explica:
“A união é o mais importante. Muito importante. Inclusive no começo do grupo
nós tivemos umas meninas que acabaram trazendo um pouco de problema para o grupo,
uma briguinha daqui, uma inveja dali. Então, tentamos ver se essas pessoas se
consertavam em relação ao grupo. Não quiseram se consertar. Então, o ficamos
chateadas, não brigamos, mas afastamos um pouco essas pessoas, até mesmo por que
precisava refletir. E todo mundo pra a pessoa ver que o grupo está indo bem, está
60
firmando, não caiu. Então essa pessoa vai querer voltar novamente, está vendo que está
dando certo, a história então é a gente afastar um pouquinho para a pessoa refletir um
pouco no que estava fazendo. Dar uma esfriada na cabeça e pensar bem. E estamos aqui
trabalhando.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
Sobre a existência de duas organizações, o “Art Varjão” e as “Mulheres em Ação”,
Maria da Guia explica se tratarem de um mesmo grupo, pois todas são costureiras do
Varjão e se ajudam mutuamente, embora tenham dois locais de reunião e de trabalho, e por
isso duas denominações:
“É nós, é que a gente trabalha praticamente juntas nisso, onde eu vou eu gosto de
levar ela [Maria Anita da Silva]. Agora ela já é difícil me levar. Não sei por quê, mas acho
que depende com quem ela está trabalhando. Eu trabalho como administradora, então eu
não posso trabalhar só para mim, eu trabalho pra comunidade mesmo. Então eu sou
obrigada a chamar ela em todas as coisas que tenha. Eu sou obrigada a chamar não
ela, mas todos os outros que estão começando também. Eu sou obrigada a dar
oportunidade porque eu trabalho na administração.” (Maria da Guia Barros de
Oliveira, Varjão)
Pelas falas transcritas se observa que a formação de grupos de trabalho não ocorre
sem alguns desgastes e desentendimentos entre as participantes. Maria da Guia demonstra
preocupação com a manutenção das relações dentro do grupo, apesar dos desentendimentos
que sempre acabam ocorrendo. Ela também comenta as suas estratégias para manter o
grupo de costureiras trabalhando em harmonia. Anita havia mencionado sua “técnica”,
que consistia em “afastar a pessoa para ela pensar no que fez”. Maria da Guia, de forma
semelhante, explica que às vezes é preciso “dar uma esfriada” com as pessoas, para resolver
as desavenças entre elas.
61
“Se disser para mim que trabalha com artesanato num grupo de pessoas e que não
tem briga no grupo, eu não acredito, não. o existe. Tem delas que vão embora,
quando você dá aquela gelada e vai atrás delas, elas voltam e voltam boazinhas e é
tranqüilo. Eu sou muito de falar. Eu falo e elas vão embora com raiva e depois eu encontro
elas na rua e falo assim: ô, fulana, tem um serviço pra você, vai e pega. E elas vêm.
Eu não carrego mágoa não. Briguei hoje, amanhã falo. Falo: eu não carrego mágoa, não.
Se a gente carrega mágoa da pessoa, a gente não vai a lugar nenhum e você fica sozinha.”
(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Logo após mencionarem desentendimentos ou desavenças, ambas se apressam em
tecer elogios uma à outra, cuidando da manutenção de boas relações entre as duas. A troca
de elogios demonstra o reconhecimento mútuo e a intenção de continuarem desenvolvendo
trabalhos juntas, apesar dos desentendimentos que frequentemente surgem dentro de
grupos.
“A Anita é maravilhosa, boa gente demais, gente fina e ela faz muita coisa. Ela até
viajou agora para Fortaleza. O pessoal do SEBRAE levou ela. Lá ela tem mais do que aqui
em casa, lá ela fez várias coisas...” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
“A Guia é ótima também, ela desenvolve trabalho muito bonito lá. A bolsa dela é
um espetáculo.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
Em 2001, o projeto da ONG “Moradia e Cidadania” chegou ao Varjão. Nessa
oportunidade, a funcionária da Secretaria de Habitação do Distrito Federal e também
psicóloga da ONG, Soraya Melo, promoveu um brainstormingcom as mulheres da vila
com o objetivo de buscar nas suas aptidões existentes algum meio de promover geração
de renda naquele local.
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“Junto com esse projeto veio a Soraya Melo, que era uma psicóloga que
trabalhava com a parte social, com a mulher. E nós tivemos a sorte e o privilégio de
sermos amigas, nós duas, na associação, e em uma roda de conversa a gente disse:
gente, o que a gente vai fazer para desenvolver um trabalho, Soraya, para desenvolver
essas mulheres aqui no Varjão? ela disse: sabe que é mesmo? O que você sugere? Que
vocês gostam de fazer, que vocês acham mais fácil da gente fazer? Aí, não pensamos duas
vezes: vamos fazer boneca! elas: mas, bonecas, por que bonecas? Porque bonecas,
todas nós brincamos com bonecas, ou foi uma boneca de pano, ou foi uma boneca de
madeira, ou de milho, mas brincamos com boneca e vai ser mais fácil fazer. fomos
buscar nas rodas das mulheres lá quem é que tinha brincado com boneca, quem já tinha
facilidade de fazer boneca, que conhecia boneca. Todas elas conheciam e faziam.” (Maria
Anita da Silva, Varjão)
“Aí, que ótimo, começamos a fabricar bonecas! Mas logo no começo era assim
uma catástrofe, as bonecas. Cada uma mais feia do que a outra. É, nós temos algumas
aqui. Mas aí, cada dia que passava nós íamos nos aperfeiçoando mais no trabalho, que ia
ficando cada vez melhor, mais bonito, até chegar na perfeição e que está hoje. As bonecas
estão lindas e estamos querendo melhorar cada vez mais. Mas estão lindas as bonecas.
Então começou tudo assim, não foi planejado nada. Foi coisa do momento, uma conversa,
uma roda de conversa em que começamos a desenvolver o trabalho. E, por sinal, está
dando muito bem, que é um trabalho que não é cansativo, o contrário, para nós que
fazemos a boneca, é como se estivesse em uma sala de terapia, entendeu. “Sonho de pano”,
que você sonha mesmo ali, ó, misturando, vai vendo ali como é que vai ficar aquela
roupinha, está fazendo a boneca está vendo como é que ela vai ser. Pode estar fazendo
de olhos fechados, que sabe bem o que vai fazer, que tudo nos seus mínimos lugares.
Muito bom.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
Anita destaca o aperfeiçoamento que foram perseguindo na medida em que iam
trabalhando com bonecas, aprendendo mais e melhorando com o passar do tempo, com as
experiências. Surgida de uma conversa, a idéia das bonecas foi levada a sério, transformada
em “projeto” e, pelo aperfeiçoamento do trabalho, conseguiu-se obter sucesso, que é
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apontado em diversos aspectos. Além da satisfação de fazer o que gostam, o sucesso é
percebido pela venda dos produtos, aceitação no mercado, e pelo reconhecimento de fora
do Varjão, quando as pessoas vêem as bonecas e ficam admiradas. Maria da Guia comenta
sobre o dia em que surgiu a idéia de fazerem um projeto para costurar bonecas, em que ela
estava presente:
“No dia do negócio das bonecas eu estava junto, era eu e a outra, depois Anita
chegou, a gente estava falando sobre bonecas, bonequinha da vovó. Aí, vamos fazer?
Vamos. Vamos fazer um projeto de bonecas? Vamos fazer, que daí eu não pude mais,
porque eu fiquei doente. Tem tanta mulher que tem capacidade aqui. Falei: gente, tem
que ser do Varjão, olha quanta mulher que a gente tem, se não der certo não deu, mas
vamos tentar. Umas falavam: eu não quero, eu não dou conta. Então vou eu, mas tem
uma coisa: não vão me chamar de ladrona, não, que daí eu brigo, se não der certo também
não vou responder pelos outros não, porque não deu certo, mas que eu vou tentar eu vou,
eu estou tentando. Daí deu esse projeto aí e deu uma melhorada, levantou os ânimos e aí tá
aí desse jeito que está.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Sobre a dificuldade das mulheres em assumir a responsabilidade pela iniciativa (“se
não der certo não deu, mas vamos tentar”), Maria da Guia afirma ter aceitado a
responsabilidade pela associação, trabalhando na administração, para que tivessem
oportunidade de iniciar um trabalho que fosse das mulheres do Varjão.
Houve incentivo por parte da ONG “Moradia e Cidadania” para começarem a fazer
um trabalho que tivesse foco fora do Varjão, algo que fosse possível de comercializar,
partindo dos poucos recursos de que dispunham. A criação dos modelos das bonequinhas
parte das próprias moradoras da comunidade, não havendo nenhum tipo de aprendizagem
ou interferência exterior, somente dentro do grupo é que são incentivadas a ensinarem umas
às outras. De acordo com Anita:
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“Não teve assim, pessoas “vocês não sabem fazer, eu vou ensinar vocês a fazer”,
não, foi da gente mesmo começar a fazer boneca. As roupinhas nunca tivemos design de
nada, o design somos nós mesmas da comunidade, cada uma faz assim, eu já deixo elas até
à vontade, cada uma faz a sua criação, entendeu, e aí elas acabam criando umas roupinhas
como se fosse uma costureira, uma designer, sabe? Então foi muito bom. São muito
criativas também, o grupo, são muito criativas, muito amigas, muito unidas, quando uma
está com dificuldade, não entendeu o trabalho, a outra tem toda a paciência para ensinar e
isso é muito bom num grupo. É o que faz crescer, é o que faz desenvolver um trabalho
honesto, digno, é a unidade, pois só assim a gente pode ir para a frente.” (Maria Anita da
Silva, Varjão)
Anita relata que foi ao SEBRAE para buscar ajuda e orientação para o seu projeto e
encontrou cursos de capacitação e mesmo a consultoria de designers para a criação e
renovação do seu produto. Mas Anita não gostou dos modelos de bonecas sugeridos pelos
designers e continuou fazendo o tipo de boneca que sempre fez. “Eu gosto mais das
minhas”, diz ela.
“Não, foi mais assim na perfeição. o SEBRAE pagou uma bonequeira que veio
de São Paulo nos ensinar a fazer uma boneca. Mas que não tinha nada a ver com as nossas
bonecas, a boneca era totalmente diferente da nossa, não tivemos muito interesse de atuar
lá e fazer as bonecas que ela trouxe.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
Anita, apoiada pelo seu grupo, não demonstrou interesse em seguir as orientações
dos designers enviados pelo SEBRAE para orientar o trabalho, preferindo seguir do seu
jeito. Ainda assim, o grupo continua contando com o apoio desse órgão para a obtenção do
material de trabalho e para a comercialização de boa parte da produção, pois a participação
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nas grandes feiras do SEBRAE e da Secretaria de Trabalho do GDF é o que garante os
constantes pedidos de encomendas.
“O SEBRAE, ele é um grande parceiro conosco, que além de ele levar a gente,
manda a gente fazer um curso, que eu mesma fui, fiz uma temporada no Imbetim,
aprendendo um outro tipo de boneca que não tem nada a ver com a nossa também. Mas foi
muito bom o curso, e a gente precisa de material, e o SEBRAE também ajuda em
material, são muito bons. É o SEBRAE, Secretaria de Trabalho também. Tem uma
exposição, chamam a gente para a exposição, para expor o trabalho. Olha, isso é.” (Maria
Anita da Silva, Varjão)
De acordo com o SEBRAE, as parcerias garantem uma renda regular para o grupo
que participa do projeto. Novamente destaca-se o emprego de uma linguagem marcada por
termos que remetem ao campo da sociedade civil organizada. Atuando através de
“parcerias”, Anita conhece bem o jargão das organizações não-governamentais, e planeja o
que vai fazer sempre na forma de “projetos”. O domínio dessa linguagem é fundamental
para conseguir transitar entre os “parceiros” e obter de fato os “recursos” de que necessita.
“A gente quer aumentar o nosso trabalho. Então a gente está pedindo parceria. Se
você tiver alguém que queria ajudar, o nosso galpão está aí pra ser construído, nós
estamos precisando, queremos tirar esses adolescentes da rua, pois o trabalho da
associação não é trabalhar com bonecas, por isso somos “Sonho de Pano”. O que for
necessário fazer de pano a gente faz. A gente faz carrinho, a gente faz bichinho, a gente faz
bolsa, a gente faz colcha, do menor ao maior que você imagina. Então é um trabalho muito
bom.”(Maria Anita da Silva, Varjão)
Maria da Guia relata como foi o contato inicial com o SEBRAE. iniciadas nos
termos da “sociedade civil organizada”, elas foram em busca de mais essa “parceria”:
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“A Estela e a Josiane, elas correram atrás para arrumar o SEBRAE. Foram no
SEBRAE e falaram da gente. Vieram as consultoras do SEBRAE aqui. que elas queriam
assim, nós queríamos que a gente trabalhasse com fuxico e patchwork e elas queriam que a
gente trabalhasse com o tear. Mas a comunidade daqui não tem condições de a gente
trabalhar com o tear. Como é uma coisa muito difícil, a gente não tem pra investir, pra
ficar esperando dos teares e tal e a gente viu que para nós era impossível, aqui no Varjão
era impossível, não tinha como, não tinha estrutura nenhuma.” (Maria da Guia Barros de
Oliveira, Varjão)
Ao buscarem ajuda no SEBRAE, as costureiras se depararam com um projeto já em
andamento, no qual elas seriam inseridas como tecelãs. Entretanto, as costureiras do Varjão
não viram como iniciar algum trabalho com tecelagem naquela comunidade carente de
recursos financeiros:
“Eles queriam que a gente trabalhasse com tear porque Brasília não tem, tem
pouca coisa, eles querem que a gente trabalhe com uma coisa própria daquele lugar para
quando chegar, por exemplo, você está aqui no Varjão e um material, se você em
Taguatinga, você vai saber que o material é daqui do Varjão, porque tem a cara do Varjão
e é isso que o SEBRAE queria com a gente, mas não tinha como. Com tear, não, de jeito
nenhum. Daí mandou a gente de ônibus pra gente ir ao curso e toda estrutura pra a gente
conhecer e ver. Daí a gente viu e disse que não tínhamos condições nenhuma. Primeiro a
gente não tem estrutura nenhuma porque, para ter uma tecelagem, menina, você precisa
ver o que precisa, o que é preciso para ter uma tecelagem é muita coisa. chegamos a
perguntar: vão dar suporte? Segundo, eu perguntei o que eles iam dar de apoio, qual é o
apoio, é matéria prima, o que é? De jeito nenhum, só os consultores, só os monitores. Só os
monitores e, no caso, designer, só, é monitor do mesmo jeito. para nós não valia nada,
não temos condições, não, vamos ficar com nosso patchwork aqui e fuxico. E se sai tudo
bem, e se não sai, fazer o quê... Daí a presidente da época era outra, menina, não era eu,
eu nem estava no grupo, porque eu estava na construção da casa. eu não fiquei no
grupo. Aprendi. Eu trabalhava o dia inteiro na casa e a noite eu ia fazer o curso, daí eu
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falei: não pra ficar assim que eu não agüento e saí. Elas continuaram com fuxico e
patchwork, tudo que fazia aqui, elas pegavam e levavam para lá, vendiam e devolviam o
dinheiro pra as meninas” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
O SEBRAE tinha um projeto de trabalho com artesanato visando o
desenvolvimento local que estava sendo desenvolvido no Brasil inteiro. Assim que
procurou inserir as mulheres do Varjão naquilo que estava em andamento e representava
uma lacuna na região do cerrado, Maria da Guia conta que o SEBRAE deu muito apoio ao
grupo, enviou os monitores dos cursos, juntamente com todo o material necessário.
“Muito, monitor e o material. Toda vez que ele manda um monitor para cá, ele
manda o material. que tudo que é feito aqui não é mais como antes, porque antes o que
era feito aqui ficava com a gente, vendia e tirava recurso pra gente comprar mais. que
agora não é mais assim. O SEBRAE mudou, ele o material todo e o monitor, mas tudo
que é feito aqui devolve pra lá... Eles que vendem e a gente não sabe mais de
nada.”(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão).
Presentes em grandes feiras organizadas pelo SEBRAE ou pelo setor de artesanato
da Secretaria do Trabalho do GDF, as bonequinhas são vendidas em geral sob encomenda.
Anita recebe encomendas do Ministério da Saúde, a quem atendeu por duas vezes. Na
primeira vez, tratava-se da confecção de bonecas para compor um troféu entregue pelo
Ministério da Saúde a algumas entidades e na segunda tratava-se de bonecas a serem dadas
como presentes numa data comemorativa.
“Agora, o que você está vendo aqui é uma demanda da Secretaria do Trabalho e
Secretaria da Saúde. é a segunda demanda de trabalho que eles pedem pra a gente
fazer. O primeiro foi 150 bonecas...” está conhecido. Não é uma encomenda assim, mas
é uma encomenda grande, 150 bonecas, 200 bonecas, agora são 250 bonecas e olha o
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tamanhico, tudo pequenininha. É que é muito trabalho, todo mundo ali juntos, trabalhando,
e ainda não fomos na exposição” (Maria Anita da Silva, Varjão)
Após o sucesso das colchas e bonecas nas novelas de TV, o grupo tornou-se um
pouco mais disperso, porque algumas mulheres decidiram trabalhar por conta própria,
especialmente as costureiras envolvidas na confecção das colchas encomendadas pela rede
Globo. Elas decidiram trabalhar independentemente da associação, aceitando encomendas
diretamente.
“Se um dia melhorar mesmo e tiver bastante material, tiver muita saída, daí sim,
daí a gente volta. Por enquanto esta muito trabalho para fazer à mão, demora, ainda
vai tirar esse 20%, vai ficar com o quê? Dá má vontade de trabalhar, você perde tudo, você
perde a associação, você perde...” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão).
As costureiras explicam detalhadamente todo o processo de trabalho dentro da
associação de mulheres: como fazem o artesanato, colocam preço nos produtos, entregam
para que sejam vendidos, pois, em geral, não são elas que se encarregam das vendas, e por
fim elas dividem o dinheiro. O trabalho artesanal leva tempo para ser feito e exige bastante
dedicação. A bolsa em que Maria da Guia estava trabalhando era de patchwork com
aplicações. O patchwork é uma técnica artesanal que consiste em retalhos coloridos de
tecido costurados, formando um arranjo de cores, que pode ou não seguir algum padrão.
“Olha essa bolsa que a gente tem hoje...Trabalhando muito leva três dia pra
fazer umazinha e a almofada você leva dois dias pra fazer também. Se for uma menina boa
de patchwork, mesmo, ela leva um dia e meio para deixar a almofada pronta, demora, uma
bolsa de fuxiquinho que a gente tem, mas não está aqui, menina, demora muito...” (Maria
da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
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Maria da Guia explica que o trabalho em fuxico é ainda mais demorado que o
patchwork. Tudo é feito à mão. Precisa ser feito um por um, com o tecido, primeiro cortado
em pequenos círculos e depois costurado pelo meio. Depois de feitos os fuxicos é que são
colocados todos juntos para formar a bolsa, colcha ou almofada. A costureira demonstra
como costumam fazer, com os círculos de aproximadamente cinco centímetros.
“Bom, a gente faz assim: produz o produto, tem a feira, vai na feira, vende,
entendeu? Tira a porcentagem da associação, porque a gente tem que repor de novo o
material, pra comprar matéria prima, os 20% da associação, e o que resta a gente
divide por igual para todas. Igual para as treze mulheres. Por isso que fica essa união
gostosa, entendeu? Por que a gente trabalha em cima disso, de união, compreensão de
cada uma. Nada é resolvido se as trezes não estão ali, e, se não está, sabe que está
acontecendo porque a gente passa. Que tal, vai ser tal coisa assim, você não vai? Não, faz
a passagem, pode conversar, pode ficar tranqüila. Hoje não pra mim ir, mas nessa
semana, na outra, a gente está lá. Então assim, tudo combinado. E é bem melhor, é muito
bom, Tudo combinadinho. Esse aqui a gente faz, já vende o trabalho, manda todo
mundo junto, tira a parte da associação e divide por igual.” (Maria Anita da Silva,
Varjão)
Anita explica que tudo é combinado entre todas as mulheres da Associação.
Qualquer problema que exista é discutido ali mesmo e encontra-se uma solução. Quando
uma não pode trabalhar, por algum motivo, precisa ir ao médico ou resolver algum assunto
naquele horário do dia, é necessário dividir o serviço, ou então compensar o horário
trabalhando até mais tarde.
“Tem outros que podem também dividir o serviço. Digamos que eu tenho uma
consulta. Olha, gente, não vou ficar, vou ter que sair. Tá, não, hoje não vou fazer. É tudo
assim. Faltou naquele dia, fica mais tarde fazendo. Compensa. depois fica sábado,
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domingo, trabalhando. Então assim, a gente combina assim. A primeira demanda de
trabalho que tivemos era noite e dia. Sempre tinha gente, às três horas da madrugada a
gente estava aqui.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
No caso de receberem muitas encomendas, o que é fundamental para a continuidade
e o sucesso do trabalho que estão desempenhando, as costureiras precisam se dedicar um
pouco mais para vencer os prazos, muitas vezes entrando noite adentro para dar conta do
serviço. É necessário uma grande dose de organização para conseguirem compartilhar o
serviço encomendado e todas as mulheres cumprirem com a sua parcela de contribuição no
trabalho.
O Varjão oferece poucas oportunidades, pois os negócios na vila mesmo são muito
escassos. Quando se trata de projetos de trabalho comunitário, envolvendo várias famílias,
as dificuldades são ainda maiores. Maria da Guia relata que houve uma tentativa de
criarem uma cooperativa para a produção de pães, a padaria comunitária do Varjão.
Segundo a moradora, em todos os negócios comunitários que tentaram, costumavam surgir
algumas pessoas se declarando “os donos”, e justamente por esse motivo que as coisas
terminavam não prosperando.
A idéia de trabalhar com costuras também foi objeto de muitas divergências de
opiniões no seu começo, resultando até mesmo em algumas brigas. Entretanto, houve
pessoas capazes e muito interessadas que conseguiram manter o rumo dos trabalhos, não
permitindo que as mulheres desanimassem nas primeiras dificuldades. Maria da Guia
comenta sobre a oportunidade do trabalho com costura:
“Foi só a oportunidade que a gente teve, foi a primeira oportunidade que a gente
teve. Foi assim, a gente nunca tinha tido oportunidade aqui no Varjão, tinha tido a da
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padaria, uma vez, comunitária ,mas nada crescia, nada ia pra frente, começava aquela
briga que um era dono e o outro não era , existe de uns acharem que são dono do que é da
comunidade.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
As mulheres ressaltam que o importante no trabalho comunitário é não desanimar,
pois somente seguindo em frente com garra e afinco seria possível vencer as adversidades
que se impõem, e assim promover a cidadania no local em que vivem. Na fala de Anita ela
demonstra preocupação com o desenvolvimento do Varjão, enquanto comunidade.
“Mas vocês ainda vão ouvir falar muito do nosso trabalho, pois o que pretendemos
mesmo é trabalhar, mostrar que Varjão tem capacidade de um mãos de fadas aqui dentro,
né, Madale, podia até botar num projeto “Mão de Fada”, pois o que tem de mamãe aqui
que é mão de fada, que faz um trabalho lindo, maravilhoso, com bordado... Uma moça, que
eu até descobri ela pouco tempo, faz um bordado lindo, faz um tapete lindo. Então eu
quero pegar todas essas mulheres e essa que sabe passando para aquela que não sabe,
para que tenha um crescimento melhor, um desenvolvimento melhor na comunidade,
entendeu? Umas ensinando as outras que não sabem e vai aumentando, e vai ser muito
bom, vocês vão ver, gente, nossa... Nós não vamos abrir mão disso. De jeito nenhum.
Passando o pouco que nós sabemos pra as nossas amigas que não sabem pra que elas
possam também ter a renda, melhorar um pouco a renda de casa.” (Maria Anita da Silva,
Varjão)
As artesãs da comunidade, que se reúnem na casa de Anita , são mulheres de idades
entre 14 e 45 anos, a maioria com filhos pequenos, em média três crianças cada uma. Elas
encontram no projeto liderado por Anita um meio de vida: “A auto-estima da mulher fica
em cima. A gente fica mais independente”, ressalta Anita. A líder comunitária aponta
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uma relação entre independência financeira e a melhora da auto-estima das mulheres que
participam do projeto.
Além disso, a preocupação com a integridade das moças que estão crescendo ali na
vila Varjão também motiva a iniciação das mais jovens na costura e sua participação no
trabalho com as bonecas. Anita tem filhas e várias sobrinhas adolescentes e jovens adultas.
Ela se preocupa com o destino que terão essas jovens, que muitas delas acabam largando
a escola e, sem um trabalho, ficariam com muito tempo ocioso.
“É, essas meninas, o motivo das mais novas estarem aqui, o que a gente quer com
as mais novas, adolescentes? A gente quer desenvolver um trabalho com elas não
abrangendo mãe, mas sim as filhas também , por que, a gente muita adolescente na
rua à toa, sem fazer nada, e o índice de jovens e adolescentes com gravidez indesejável é
enorme, e de prostituição, de tudo, então a gente quer tirar as jovens de lá, botar elas pra
desenvolver. É pouco o que elas vão ganhar, mas se elas estão aqui no horário que não vão
estudar, pois nós ainda exigimos que aquelas que não estiverem estudando não participam,
participa quem tiver na escola estudando, é mais um incentivo que a jovem vai querer
vir, ganhar um dinheirinho. Qual é a adolescente que não quer? Estar comprando o que
ela bem quer? Entendeu? E a gente incentiva para que elas voltem à escola, se não
estiver. Então é mais um incentivo para que elas vão pra escola. E saiam do meio da rua.”
(Maria Anita da Silva, Varjão)
Para ela, o fato de não precisar deixar os filhos em casa para sair para trabalhar é
uma das mais gratificantes conquistas. “A gente trabalha e os filhos brincam ao lado,”
conta. O trabalho não é o único ponto de união entre elas. Ao mesmo tempo que produzem
as bonecas, Anita e suas vizinhas travam uma luta por uma vida melhor para toda a
comunidade. Madalena, uma das artesãs, conta que trabalhava de babá, mas lamentava ter
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que ficar longe do seu filho durante todo o tempo em que estava no trabalho. Isso para ela
gerava muita preocupação, problema que não existiria mais.
“Eu gosto também porque eu posso trazer a minha filhinha pra trabalhar, se eu
fosse trabalhar, eu trabalhava em casa de família e não podia levar, nossa, eu ficava dois
dias preocupada. Quando adoecia, não podia levar no hospital. Nossa, muitas coisas. Eu
sempre trabalhei também de babá, cuidando de criança, quando eu ficava cuidando aqui
eu pensava, nossa, e o meu como é que está, será que estão judiando dele, será que estão
cuidado bem? Eu cuidava muito bem da criança que eu estava cuidando, e sempre
pensando no meu. Mas quando chegava em casa já chegava abraçando e apertando. Agora
é bom, pois o Billy já está grande e a pequeninha eu posso trazer. Já pensou se eu estivesse
trabalhando? Assim eu posso ficar junto. Ia ter que deixar em uma creche, com outras
pessoas cuidando e aqui não, eu posso eu mesma cuidar.” (Maria Madalena Barbosa da
Silva, Varjão).
Maria Madalena Barbosa da Silva sentia muita falta dos filhos e agora ela relata
que se sente aliviada por poder ficar perto de sua filha menor, que fica junto dela enquanto
ela costura. Segundo ela, as mudanças foram muitas depois que ela começou a participar da
associação “Mulheres em Ação”. Não apenas ela conseguiu ficar mais próxima dos seus
filhos, criando-os de perto, mas também em contato com as outras mulheres,
compartilhando suas experiências, elas criam um ambiente positivo, que auxilia a enfrentar
os problemas no dia-a-dia, tornando-as mais tranqüilas. Madalena e Paula (Paula Maria da
Cruz Souza) comentam as mudanças por que passaram com o novo trabalho:
“MADALENA: Aí mudou muita coisa, muita coisa mudou, pois a gente muda muita
coisa na vida da gente. O estresse acaba, pois a gente viver dentro de casa, nesse caso, sem
falar com ninguém, e eu falo demais, né, Paula? Eu falo demais e aí, se eu não falar eu
adoeço, né, Paula?
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PAULA: É comunicativa.
MADALENA: Ela diz que eu falo demais. Mas eu sem falar, gente, se eu não falar
eu adoeço, eu tenho que falar, sem falar eu adoeço, sem falar eu adoeço mesmo. Mas
mudou muita coisa, pois aqui a gente é quase uma família, se chega com problema a gente
conversa de tudo, a gente divide os problemas, como divide o trabalho divide os problemas
e cada uma leva um pouquinho dos problemas da gente pra casa, cada uma leva consigo,
né? nenhuma enfrenta os problemas sozinha, cada uma carrega um pouquinho, é bom
demais, viu? A gente tem que se dar bem, somos muito comunicativas umas com as outras,
então muda muito a vida da gente. Em casa tem horas que um estresse de estar ali
sozinha, não ter com que falar. E diz que mente vazia é a piscina do diabo, né? Ficar em
casa sozinha, então, fica só bobagem. Aí vai enchendo a cabeça. Vai enchendo, vai
enchendo.” (Maria Madalena Barbosa da Silva, Varjão)
A costureira relata que saiu de sua cidade natal, Santa Luz, em busca de uma vida
melhor em Brasília, e encontrou. Segundo ela, a cidade de onde ela veio continua a mesma,
e a vida depende do trabalho na roça, da agricultura familiar. Madalena conta que muitas
pessoas não encontraram uma vida melhor em Brasília, mas para ela a mudança foi para
melhor. Não apenas ela não trabalha mais na roça, como consegue trabalhar na produção de
bonecas de pano, participando do grupo de Anita, das “Mulheres em ão”, que lhe
muito incentivo.
“Eu acho que não tem, mesmo, que a gente sai da terra da gente e procura uma
vida melhor e às vezes não tem. Eu achei. Uma mudança muito boa na minha vida. Na
minha terra é aquele lugarzinho parado, não tem trabalho, não tem nada, é aquela
cidadezinha pequena que não é boa pra nada. Tem 17 anos que eu saí de e hoje se eu
chegar lá, mudou pra pior. Não evoluiu nada. E é assim, cidadezinha pequena. Santa
Luz. Mas assim uma cidadezinha que ficou naquele lugar, parou no tempo lá, não evolui.
Pois assim, as pessoas mais velhas, os pioneiros, vão saindo, em procura de uma vida
melhor, pois a gente vive de trabalhar na roça,” (Maria Madalena Barbosa da Silva,
Varjão)
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A importância das redes de ajuda mútua que vão se criando é lembrada por todas as
mulheres entrevistadas. Assim como Madalena conta com as vizinhas para lidar com sua
necessidade de expressar os sentimentos e compartilhar seus pensamentos, além da renda
mensal que consegue obter trabalhando com o grupo, Maria da Guia também relata que
conseguiu um emprego na administração do Varjão através da indicação de sua vizinha.
“Essa menina aqui que mora desse lado, ela conseguiu aqui pra mim na
administração. eu comecei a trabalhar em agosto do ano passado. as coisas
melhoraram, porque meu salário lá não é grande, mas eu ganho seiscentos e poucos reais
e eu ganhava trezentos e trinta no outro. Já dobrou, então já melhorou, né, melhorou, aí eu
fiz a casa melhor e minha vida melhorou cem por cento e o artesanato veio pra acabar de
completar e além da renda que melhora um pouco...” (Maria da Guia Barros de
Oliveira, Varjão)
Maria da Guia também salientou a importância do trabalho para as mulheres,
destacando mais ou menos os mesmo aspectos já mencionados pelas outras mulheres
entrevistadas: uma melhora na auto-estima das mulheres, resultado da geração de renda e
do convívio com o grupo, além de um sentido de realização por tornar-se produtiva ao
invés de ficar ociosa.
“O importante, pelo menos, é que eu mantenho essas mulheres trabalhando, seja
porque a associação não tem fundo, não tem mesmo, não tem fundo, mas, pelo menos, eu
estou feliz porque estou conseguindo um grupo de mulheres que estão produzindo para seu
próprio bem. A auto-estima delas que melhora, o convívio dentro de casa, com a família,
com os filhos, mantêm aquelas mulheres de mente ocupada. Em vez de elas estarem na rua,
fazendo fofoca, brigando com o marido, algumas podem ir para o bar, mas graças a Deus
não tem isso na Associação. Mas poderia até ter, né, mas não tem, graças a Deus. A gente
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está trabalhando pra elas próprias e daquilo ali elas vão saber que tem uma renda , um
dinheiro para elas.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Segundo Maria da Guia, a mulher que ficasse ociosa na vila acabaria indo para um
bar, para ingerir bebidas alcoólicas, ou ficaria pelas ruas fazendo “fofocas”, ou seja, se
ocupando de controlar a vida das vizinhas. Entretanto, Maria da Guia acredita que muito
mais mulheres poderiam ingressar na Associação e passar a trabalhar com elas, tornando-se
produtivas, mas não haveria interesse por parte de muitas delas. Os fatores apontados como
causa do desinteresse dessas mulheres seriam inicialmente a “preguiça” que elas teriam.
Além disso, haveria também o auxílio financeiro que os governos federal e distrital
oferecem para as mulheres que têm filhos, na forma do programa “bolsa escola” e do
programa “renda minha” respectivamente.
“Mas aqui ninguém quer. São poucas, Aline, por quê? Primeiro porque são muito
preguiçosos e, segundo, o programa desse negócio... É boa ajuda, ajuda muito o negócio
do Lula, Bolsa Família, e o Renda Minha é do governo daqui, é repasse porque Distrito
Federal é diferente, o dinheiro é do governo federal. Pois é, o governo federal para o
Roriz, pois aqui tem o Bolsa Família e outra coisa que não sei o que é, lá, duas coisas,
então o Renda Minha é o que a gente considera que é do governo do Distrito Federal,
então a maioria das mulheres aqui se beneficiam disso e não saem de casa pra nada,
acham que está bom assim , acham que aquilo ali está bom demais e aí vão pro boteco, vão
trabalhar em casa de família, não conhecem a arte, não gostam de arte, não tem vontade
própria, acho que o principal é vontade própria, ela não tem e pronto. Assim, as mulheres
na casa de família, os maridos no boteco, os meninos na droga e as meninas na
prostituição, é o lema do Varjão” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Maria da Guia, na sua crítica à postura dos moradores do Varjão, chama a atenção
para alguns aspectos da realidade social da vila, quando ela se refere ao lema do Varjão: “as
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mulheres na casa de família”, ou seja, trabalhando de empregada doméstica ou babá, “os
maridos no boteco”, referindo-se aos homens desempregados que costumam ficar bebendo
no bar, “os meninos na droga e as meninas na prostituição”, referindo-se aos jovens que
crescem sem muitas perspectivas e podem acabar se envolvendo em atividades ilícitas. Ela
descreve papéis sociais comuns em localidades de periferia.
Percebendo a importância das conversas em grupo para o bem-estar das mulheres,
Maria Anita da Silva está propondo na associação “Mulheres em Ação” um novo projeto
que pretende reunir as mulheres numa roda de conversa com o propósito de falarem sobre
as suas vidas, compartilhando seus problemas umas com as outras. A diferença desse
trabalho da roda de mulheres para o que elas já costumam fazer está na orientação
profissional de uma psicóloga, que pode trazer também outros profissionais da área da
saúde.
“Exatamente, e o que eu queria era uma coisa harmônica, era uma coisa parceira,
você vê, é alegria. A gente não trabalha, a gente trabalha, a gente brinca, a gente
troca idéia, sofrimento, angústia, tudo isso, em volta da mulher. Então, agora mesmo, nós
estamos querendo trazer um grupo de mulheres que estão desenvolvendo um trabalho que
chama “Roda de Mulheres”, e essa roda de mulheres, elas sentam conosco e nós vamos
simplesmente conversar sobre nós mesmas, de filho, de marido, de tudo, e fica conversando
sobre a mulher, é muito gostoso, é muito bom, muito interessante, e com esse grupo de
jovens que está vindo pra estar conosco. Estamos esperando organizar o espaço para
que elas possam atuar. No começo do ano elas vieram, não deu muito certo porque não
tinha espaço para trabalhar. Como você está vendo, não tem ainda o espaço. Tentamos
fazer por aqui mesmo, não conseguimos. Então, vamos suspender, no ano que vem nós
entramos de vento em popa. Estou ansiosa para que chegue o ano que vem pra que a gente
possa fazer aquela rodona de mulher e conversar sobre nós mesmas, que é muito
interessante, muito importante para nós, também, entendeu?” (Maria Anita da Silva,
Varjão)
78
A preocupação de Anita se estende, para além do bem-estar das mulheres da
comunidade, até o fator psicossocial do grupo, especialmente importante para a integração
das mais jovens, pois essas estariam em situação de maior vulnerabilidade dentro da
comunidade, por não estarem ainda definidas. O trabalho psicossocial com o grupo inteiro
necessitaria ainda de uma sala maior para ser realizado adequadamente, e por esse motivo o
seu começo teria sido adiado, na espera da construção de um galpão maior que estaria
sendo feito no terreno da casa de Anita. Quando realizei a pesquisa (2006), a previsão de
finalização da obra e entrega do galpão era 2007.
Tanto Anita quanto Maria da Guia são pessoas dotadas de uma capacidade de
atuação social muito forte, de liderança perante as outras mulheres da comunidade. Essa
liderança se manifesta tanto na forma de novas idéias para projetos que respondem a
necessidades identificadas dentro do grupo, como também de forma mais dispersa, na
solução de problemas individuais surgidos no dia-a-dia da comunidade.
“De saber que de noite eu durmo e sei que ajudei outras pessoas, eu digo assim:
ontem eu ajudei fulano, hoje eu fui em tal lugar, assim, e consegui resolver isso com fulano,
é bom. Mas, agora, quando você vê que você não conseguiu ajeitar nada é terrível... Isso é
bom, é isso que faz com que a gente crie forças pra continuar” (Maria da Guia Barros de
Oliveira, Varjão)
Elas procuram auxiliar as pessoas da comunidade a enfrentar os problemas, e
percebem que a união do grupo produz um efeito tranqüilizador para as mulheres, que as
auxilia nas outras tarefas. Em casa, com os filhos e o marido, elas relatam que as relações
são fortalecidas e funcionam melhor.
79
“É uma outra mulher que surge. Não é mais aquela mulher nervosa que chega em
casa brigando com o marido. Não, já tem um outro tipo de paciência de coordenar dentro
de casa, apesar de que todas aqui tem filho, e as que tem, as crianças às vezes vêm para cá,
ficam aqui junto com elas, mesmo tempo que ela está tomando conta deles, dos filhos, da
casa, do marido, e está trabalhando, ganhando sua renda, e por que não? A coisa ficou
mais gostosa, muitas delas o marido vem buscar aqui:”vamos embora?” Vamos embora,
fulana, e saem aqui subindo, às vezes chega uma hora da manhã, o trabalho é tão grande
que a gente está de madrugada aqui trabalhando e a gente sai e chega em baixo todo
mundo feliz, é muito gostoso. Principalmente Varjão, um lugar cheio de problemas, coisas
que fora a gente tem até medo de pensar aqui no Varjão. Então aqui pra mostrar
outra característica do Varjão. São mulheres guerreiras, que estão aqui trabalhando em
um projeto, que esse estabelecimento vai crescer e ainda vai ter muita gente trabalhando
aqui dentro conosco aqui, melhorando a sua renda aqui dentro mesmo do Varjão. Isso é
muito bom.” (Maria Anita da Silva, Varjão)
Anita sabe que a sua atuação tem foco diretamente nas pessoas e nas dificuldades
que os próprios moradores do Varjão apontam e trazem para ela, solicitando a sua ajuda.
Entretanto, ela percebe que o resultado vai além da simples solução de problemas
individuais ou mesmo comunitários, para além da elaboração de projetos. A atuação de
Anita no Varjão acaba por transbordar também na imagem social construída a respeito da
vila Varjão, em contato com a sociedade. Em última análise, Anita salienta estar
trabalhando também com o propósito de mudar a imagem do Varjão: “O nosso objetivo é
esse, mudar essa característica do Varjão, tirar essa marca que o Varjão tem, cheio de
bandidos, prostituição. E vamos mudar isso aí, gente?” incentiva Anita.
Anita explica que a sua estratégia para modificar a realidade social do Varjão é ir
paulatinamente substituindo as “coisas ruins”, negativas, por “coisas boas”, tanto no que se
refere às práticas que tem lugar na vila, quanto à memória das mulheres.
80
“Uma terapia com elas, que cada uma delas tem problemas, a vida do passado, até
hoje. Mas com esse trabalho já estou ajudando elas. A Madalena teve um sofrimento muito
grande com ela, que ela perdeu o filho dela, um filhinho que ela tinha foi assassinado aqui
dentro do Varjão. A Paula [Paula Maria da Cruz Souza] também, o problema é o mesmo.
Da mãe dela. Então, essas mulheres, acabei juntando elas aqui no trabalho, mas é até
mesmo porque, no momento em que nós estamos aqui conversando e fazendo boneca, não é
trabalhar, é distrair elas, tipo, um outro tipo de atividade para que não fique pensando
só naquilo, entendeu? É como se fosse uma terapia mesmo. Então hoje elas lembram, ainda
choram, mas um tempo atrás era pior, entendeu, e tentar ajudar elas a ficar pra cima, e
isso é muito interessante, pois se houvesse pessoas na comunidade para fazer isso, para
ajudar nos dias mais difíceis na vida da gente, seria muito bom, pois é nessa hora que a
gente precisa de amigos, de pessoas que estejam perto pra estar ajudando, entendeu, e isso
é muito bom, e não é o trabalho, mas também trabalhar com elas, também, a mente
delas, mostrando pra elas o valor que cada uma delas tem, cada uma conquistar a sua
auto-estima, como você vê que ainda tem aquela carência, mas é isso aí, é com o tempo que
a gente vai esquecendo as coisas, pois as coisas boas vão acontecendo e vai-se esquecendo
as coisas ruins, estar buscando sempre coisas boas pra elas.” (Maria Anita da Silva,
Varjão)
O trabalho desenvolvido pela associação “Mulheres em Ação” do Varjão
demonstra estar ligado a uma percepção integral do ser humano, segundo a qual nenhum
aspecto da vida pode ser descuidado, tanto o financeiro quanto o social, ou o psicológico.
Muito mais do que trabalho, muito mais do que boneca, é a vida das pessoas que está em
questão. Trata-se de encontrar uma forma de garantir apoio para as mulheres: “muito mais
do que trabalho, é melhorar a auto-estima delas”, diz Anita.
Maria das Graças de Oliveira, membro da associação e participante do projeto,
também compartilha da opinião de que a Associação, através do trabalho, opera
81
transformações na forma de as mulheres enxergarem a si mesmas, valorizando cada uma
delas.
“Não é fácil não. A auto-estima da mulher desse grupo te posso dizer que está
totalmente diferente. Dar um pouco do conhecimento e mostrar pra mulher o direito e o
dever que nós temos na comunidade, isso é uma luta que a gente não abre mão. Mostrar
pra mulher o seu direito e dever e a capacidade que ela tem de conquistar o seu espaço na
comunidade, no desenvolvimento, até mesmo de trabalho, mostrar isso. E cada dia mais,
nós estamos conquistando nosso espaço realmente. A mulher de alguns anos atrás nem se
compara com a de hoje. Mulher lavando e passando pra marido, essa coisa acabou. Vamos
dividir o nosso trabalho individual, pois hoje em dia ninguém é melhor do que ninguém.
Todos somos iguais, mostrando que a mulher não tem diferença do homem. Hoje nós temos
mulheres no Senado, mulheres que votam (nem votavam). Hoje nós temos mulheres
guerreiras, que vemos aí, deputadas, advogadas, isso é muito importante: a mulher mostrar
a capacidade que ela tem. Isso se vai mostrando aos poucos. E na comunidade também não
é diferente, cada uma com o talento que tem, pode mudar o seu espaço com talento. Então
hoje em dia mulher burra não existe, ela pode ser uma “boca aberta”, mas você vai ver ela
desenvolver um trabalho que uma pessoa de grande estudo não tem, não consegue. Hoje
em dia a gente faz uma divisão, mais um comprimento, vêm pessoas lá fora que tem estudo,
vem aprender um pouco conosco aqui e nós um pouco com eles. Então é mais uma troca
conosco aqui. É gostoso, é bom demais. É isso que é interessante.” (Maria das Graças de
Oliveira, Varjão)
As mulheres entrevistadas afirmam que o trabalho com o artesanato trouxe grandes
mudanças nas suas vidas, para melhor, e por isso não estão dispostas a deixar de trabalhar
com artesanato.
“Hoje em dia eu não tenho mais prazer pra trabalhar de nada, assim, de casa de
família, eu posso ir, não digo que não vou porque quem manda é a necessidade, mas acho
que eu não consigo me separar do artesanato nunca mais.” (Maria da Guia Barros de
Oliveira, Varjão)
82
Nem pensar. De jeito nenhum, além de ter um trabalho que a gente brinca,
conversa, trova, e estamos fazendo brinquedo, e fazemos com muito amor, eu moro aqui
embaixo, estou fazendo lá, elas fazem aqui, mas eu estou lá, estou fazendo também, a
Anita foi ali e me chamou. Que eu tenho um pequenino e às vezes ele vem aqui e fica
atrapalhando. Então eu prefiro ficar um pouco, mas sempre trabalha todo mundo
juntinho. E então, filha, é isso que eu tenho pra dizer para as pessoas que tiveram algum
sonho na vida, que tente realizar esse sonho com muita garra por que consegue se tiver
amor e esperança.” (Maria das Graças de Oliveira, Varjão)
Por fim, uma palavra de Maria da Guia que sintetiza a motivação que estaria por
trás de toda iniciativa de trabalho com o artesanato na vila Varjão: “Tudo funciona, acho
assim, se você tiver amor por aquilo que você faz, não tem dificuldade, não.” garante Maria
da Guia.
83
Capítulo 3 – As Bordadeiras de Taguatinga Flor do I
84
Capítulo 3 - As Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê
O nome da cidade surgiu do tupi-guarani “tuia-tungá”, que significa Barro
Branco”, ocorrência geológica verificada na região. Entretanto, muitos moradores se
referem ao significado do nome da cidade como "Ave-Branca". Taguatinga é uma das
cidades que mais cresceram na última década. Considerada o centro econômico do Distrito
Federal, tem uma indústria moderna, comércio forte e variado e várias opções de lazer e
entretenimento.
O povoamento de Taguatinga começou em meados de 1958, com o assentamento de
mais de 4.000 pessoas num período de dez dias, decorrente do superpovoamento do Núcleo
Bandeirante. A cidade foi fundada em 05 de junho de 1958 em terras que anteriormente
pertenciam à Fazenda Taguatinga. Inicialmente se chamava Vila Sarah Kubitscheck, mas
depois seu nome foi alterado para Santa Cruz de Taguatinga, permanecendo apenas
Taguatinga
6
.
Criou-se Taguatinga, afastada cerca de 20 km a Oeste do Plano Piloto, nome dado à
Região Administrativa de Brasília em contraposição às suas “cidades-satélites”. A cidade,
apesar de algum planejamento que lhe foi dado, era inicialmente nada mais que uma favela,
um pouquinho afastada da capital administrativa.
Com área de 121,34 quilômetros quadrados, Taguatinga divide-se em três setores:
Central, composto pela Avenida Central, praças, comércio, hotéis, bancos e escritórios;
Norte e Sul, formados por quadras residenciais, comerciais e industriais. Tombada pelo
Patrimônio Histórico, a Praça do Relógio, no Setor Central, é um dos pontos mais
6
(Dados encontrados no sítio http://www.taguatinga.df.gov.br/)
85
movimentados de Taguatinga. A cidade tem, entre outras atrações, seis clubes sociais, dois
cinemas, uma feira permanente localizada na QNL 7, e um grande número de restaurantes e
bares.
Taguatinga desenvolveu-se especialmente em função do comércio e dos empregos
que sua população obtinha em Brasília. Tornou-se um importante centro comercial dentro
do Distrito Federal e pólo de atração para a população das cidades próximas, abrigando
shopping centers de grande porte.
Com 50 anos, Taguatinga continua em crescimento, com novos arranha-céus
surgindo a cada dia, trânsito intenso nas avenidas, e grande movimento de pedestres e
ciclistas pelas ruas, o que contribui para dar à cidade um certo ar de metrópole.
Taguatinga, hoje, não lembra mais a cidade que nasceu como acampamento de
operários da construção de Brasília, mais tarde destinada a abrigar as invasões formadas ao
redor do Plano Piloto. Atualmente, os investimentos em Taguatinga são cada vez mais
numerosos, sobretudo no setor imobiliário.
7
Distante pouco mais de 20 quilômetros do Plano Piloto de Brasília, de acordo com
os dados da Secretaria de Turismo do Distrito Federal, a Região Administrativa de
Taguatinga conta com 99,73% da população abastecida de água potável; 98,80% atendida
com esgoto sanitário; 100% beneficiada com energia elétrica, com um consumo total
mensal aproximado de 22.436,75 de MWh, numa rede de 397,14 km de extensão,
atendendo a mais de 55.000 ligações domiciliares, comerciais, industriais e públicas; 70%
da população servida com a rede de águas pluviais implantada; 84,52% atendida com a rede
de iluminação pública; 76,16% das vias asfaltadas; e 73,87% com meios-fios.
7
Dados da Secretaria de Turismo do Governo do Distrito Federal disponíveis no sítio www.setur.df.org.br.
Consultado em novembro de 2007.
86
As indústrias de transformação e construção civil são destaques na região. As
principais são as de produtos alimentícios, mobiliário, metalurgia, produtos gráficos e
editoriais, vestuário e artefatos de tecelagem, bebidas, mecânicas, material elétrico e
madeireiras. A indústria está estabelecida em 430 unidades, empregando 4.985 pessoas.
O setor agrícola da região é bastante produtivo, com grandes culturas, onde se
destacam o feijão e o milho. Na produção de hortaliças, sobressaem: alface, tomate,
cenoura, repolho, pimentão e beterraba; e entre as frutíferas: limão taití, manga, maracujá e
laranja. Na pecuária a região dispõe de rebanhos bovinos, suínos e caprinos, produzindo
carne e leite; e granjas de aves, para abate e produção de ovos.
Taguatinga é uma grande região prestadora de serviços. Os principais são na área de
transporte, manutenção, reparos e instalação, auxiliares da construção, assistência técnica
de informática e processamento de dados. A prestação de serviços é feita em 447
estabelecimentos, empregando cerca de 1.920 pessoas.
O comércio tomou conta da principal avenida da cidade, originando a Comercial
Norte e a Comercial Sul. São aproximadamente sete mil empresas, de micro a grande porte,
e quase duas mil pessoas físicas exercendo atividade comercial. As principais atividades
comerciais são supermercados, bares, restaurantes, lojas de móveis, eletrodomésticos e
utilidades para o lar, postos de gasolina, e uma grande quantidade de ambulantes.
Caminhando pela avenida principal de Taguatinga é possível comprar lanches na
calçada, assim como bebidas, revistas, CDs e DVDs, óculos de sol, bolsas, enfeites de
cabelo, bijuterias, cremes e perfumes, entre outras coisas. O movimento é intenso e se ouve,
além do barulho dos carros e dos ônibus que transitam, também um burburinho de pessoas
caminhando, passando, conversando, até mesmo rindo.
87
Não é difícil obter informações sobre a localização de prédios e endereços
específicos. Ao contrário de outras cidades-satélites em que os moradores não sabem
explicar o caminho e não conhecem pontos de referência, talvez por serem mais recentes,
em Taguatinga se conseguem na rua explicações muito precisas sobre o acesso a prédios e
locais de grande circulação de pessoas. Andando pelo centro de Taguatinga, eu buscava
encontrar a Galeria do Edifício Concorde, na rua do Alameda Shopping. Não houve
dificuldade alguma.
A Galeria do Edifício Concorde reúne lojas como farmácia, floricultura e comércio
de lingerie, bem como serviços de cabeleireiros e costureiras. O prédio abriga escritórios e
consultórios de profissionais liberais dos mais variados, tais como advogados, dentistas,
terapeutas. Pergunto pelas “Bordadeiras de Taguatinga”, alguém conheceria? Todo mundo
sabe exatamente onde fica: “é ali, no final do corredor.”
A Associação das Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê é composta por 20
associadas de idades variadas entre os 22 e os 70 anos. Reúnem-se semanalmente numa
sala alugada especialmente para servir a essa finalidade, no centro de Taguatinga. A sala
funciona como escritório da Associação, contando com uma secretária sempre à disposição
para atender o telefone ou os visitantes, durante o horário comercial.
Francilene Ferreira Reis, a Secretária, explica que está permanentemente na
Associação, de segunda a sexta-feira, no horário das oito ao meio-dia e à tarde, das
quatorze às dezoito horas. Além dessa tarefa administrativa, ela continua sendo bordadeira:
“A Presidente foi vendo o meu bordado, foi vendo que eu tava bordando bem, ela
me convidou pra fazer parte da Associação, no caso, ser uma associada. Faz uns três
anos que eu faço parte da associação como associada. De lá pra cá não parei mais, direto.
Depois tive um convite assim surpreendente que foi, eu sei que foi Deus na minha vida, e a
88
Presidente me convidou pra trabalhar aqui definitivo, no caso, além da função de
bordadeira, que ela não me tirou, ela me deixou sendo bordadeira e também me contratou
como secretária. Ela me chamou pra ser secretária, dai então eu ocupo essas duas funções,
secretária e bordado.” (Francilene Ferreira Reis, Bordadeiras de Taguatinga)
Na fala de Francilene transparece o respeito e a admiração que as bordadeiras
nutrem pela Presidente da Associação. Todas se referem a ela com muito carinho, e contam
que ela foi escolhida como presidente logo que constituíram a associação e ela permaneceu
no cargo por aclamação. Ninguém quer que isso mude, pois funciona muito bem a sua
liderança no grupo. As entrevistadas se dizem todas satisfeitas.
“Eu, por exemplo, não tenho nada que dizer de ninguém. Eu gosto de todas elas,
nós somos em 20, é uma família, uma segunda família. Quando, em vez de tu estar em casa
tu está aqui, é uma família só. A responsável por isso é a nossa Presidente, ela é muito
justa, ela trata sempre todas iguais, ela não faz distinção de nenhuma. Então pra mim ela é
exemplo de pessoa que, de uma líder, é um exemplo muito bonito. Eu acho que não é só pra
mim. Eu acho que todas as bordadeiras devem falar por uma linguagem só, que a
líder...todos gostam bastante da Gal, que é recíproco, uma pra outra.” (Francilene
Ferreira Reis, Bordadeiras de Taguatinga)
A presidente da Associação, Glaucemária da Silva Rodrigues, conhecida como
Gal, dedica-se em tempo integral às tarefas ligadas à administração do trabalho. Ela explica
que sempre tem muito trabalho a ser feito na Associação, para atender as encomendas, além
das providências a serem tomadas para que estejam sempre presentes nas feiras mais
importantes do artesanato.
“Nós temos o referencial dela como trabalho, o trabalho dela tem passado pra
nós assim uma segurança, a honestidade, ela é uma pessoa que nós temos orgulho sempre
89
de ter diante de nós, como líder, como presidente, como amiga, sabe, então ela pra nós é
como se fosse uma mãezona da associação. Ela resolve, ela ouve a cada um, sem distinção
de pessoas, ela sempre... O jeito dela é sempre um, você nunca vê ela com a cara
diferente...é uma pessoa muito boa, muito humana.” (Francilene Ferreira Reis,
Bordadeiras de Taguatinga)
Gal cuida das vendas, de responder em nome de todas as bordadeiras, sempre que
é necessário. Ela recebe pedidos por fax, distribui o serviço, cuida para que seja feito em
dia, e envia tudo dentro dos prazos. Para emitir as notas fiscais é feito um rodízio, cada nota
saindo em nome de uma das bordadeiras, pela associação. Todas elas possuem a
“carteirinha de artesão” e podem tirar nota fiscal isentas de impostos, dentro de um certo
limite de vendas, por isso o rodízio é necessário. O dinheiro proveniente das vendas é
dividido entre as bordadeiras, ficando uma parte para as despesas de manutenção da própria
associação. A Presidente garante que sempre rende um bom dinheiro para cada uma das
associadas, todos os meses. Francilene explica como funciona o rodízio das notas fiscais:
“A associação, nós, as 20 associadas, como nós temos a nossa carteirinha, todo
nosso produto ele é vendido... Um pedido, ele abrange quase que todas as bordadeiras.
Dependendo do pedido, todas as bordadeiras elas entram nesse pedido. Então uma delas é
sorteada, assim, convocada a tirar uma nota fiscal, essa nota fiscal pode ser em nome de
qualquer uma, qualquer uma que estiver apta no dia, que estiver disponível pra tirar, ela
vai e tira a nota, no nome da bordadeira com a carteirinha de artesã dela.Cada vez sai no
nome de uma e as 20 são cadastradas na Secretaria do Trabalho, né, então todas elas estão
aptas a tirar a nota fiscal. A nota sai como se fosse aquela bordadeira que fez, mas é do
grupo. Vai o produto de todas na nota. Quando é um pedido da associação, geralmente vai
distribuído de todas.” (Francilene Ferreira Reis, Bordadeiras de Taguatinga)
90
Antes da existência dessa associação, a maioria das artesãs costumava freqüentar
a feira que acontece na praça central de Taguatinga. Ali se conheceram. Selma Ferreira
Lopes é a Vice-Presidente da Associação. Ela conta que ela e Gal tiveram a iniciativa de
procurar o SEBRAE, e nessa ocasião foram orientadas a reunir o grupo de todas as
bordadeiras da feira que faziam o mesmo tipo de trabalho que elas estavam propondo. Em
2001 constituíram a associação, que em poucos meses reuniu as 20 participantes que
permanecem até hoje. Selma relata como foi o começo:
“Começou em 2000 o grupo. Nós nos reuníamos numa sala emprestada pelo meu
marido. A princípio nós fizemos o curso na Administração de Taguatinga, eles ensinaram
pra nós bordados, riscados, meu marido emprestou a sala pra gente, e nós ficamos
por mais ou menos dois anos. Depois ele vendeu a sala e nós alugamos outra sala pequena,
e depois alugamos essa daqui. Nessa aqui estamos dois anos” (Selma Ferreira
Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
Gal explica que o bordado era uma coisa que todas elas costumavam fazer, cada
uma do seu jeito. Antes de iniciarem com a associação, todas elas bordavam alguma
coisa, mas não havia unidade na produção, cada uma fazia do seu jeito, o que tornava muito
difícil vender as peças soltas.
“Uma coisa do tempo da Vovó. Foi isso que resolvemos fazer, aqueles bordados
do tempo da Vovó. Fomos ensinando os pontos umas pras outras, ah, lembra desse, lembra
daquele? Nós nos reuníamos sempre e íamos fazendo, e assim fizemos a coleção dos pontos
de bordado”. (Glaucemária da Silva Ferreira, Bordadeiras de Taguatinga)
Depois que se reuniram, fizeram o trabalho sobre os pontos tradicionais do
bordado com a consultoria de uma designer o trabalho da associação ganhou forma. Com o
91
apoio do SEBRAE, as bordadeiras tiveram aulas inicialmente com a artesã Antônia
Drummond, de Pirapora, Minas Gerais, que ensinou pontos como rococó, matiz e ponto
cheio, entre outros. Quando fizeram contato com o SEBRAE, estavam bordando, mas
ainda não havia unidade em torno de nenhum tema. Elas buscavam uma orientação.
“Essa pessoa que trabalhava no artesanato do SEBRAE deu a sugestão da gente
bordar os vários pontos que eram da época das nossas avós: matiz, rococó, ponto cheio,
caseado... Daí veio um designer de São Paulo, Renato Imbroisi, através do SEBRAE, e
sugeriu que a gente bordasse as flores do cerrado. Assim nós começamos a bordar e o
SEBRAE foi abrindo espaço pra gente em feiras e exposições e nós estamos crescendo.”
(Selma Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
De São Paulo, veio o designer Renato Imbroisi. Ele ensinou técnicas para
valorizar e melhorar a qualidade dos produtos. Com os ensinamentos recebidos, as
bordadeiras passaram a produzir peças com desenhos e cenários cada vez mais criativos.
“O SEBRAE é uma mãe pra gente. Ele que tem dado sempre, instruído a gente a
fazer técnicas de venda, cooperativismo, relacionamento humano, todos os cursos que a
gente precisa de design eles dão pra gente, sempre o SEBRAE. O SEBRAE ajuda muito a
gente. Nos oferecem cursos de capacitação, gerenciamento... Todo tipo de curso que a
gente precisa, é pedir que eles mandam. Nós oferecemos cursos também, através do
SEBRAE, de bordado. Estamos bem experientes mesmo... pra passar muita coisa.”
(Selma Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
O papel do SEBRAE dentro da Associação foi mudando com o passar do tempo. No
começo era fundamental, o SEBRAE era tudo. Hoje ainda dependem do apoio do SEBRAE
para a consultoria do designer, mas já começam a caminhar com as próprias pernas.
92
“Hoje, praticamente a gente esta andando sozinha, já, né? A gente pouco precisa
do SEBRAE em termos de arranjar espaço pra gente. Então a gente vai pra São Paulo, por
exemplo, nós alugamos nosso estande sozinhas. Quando o SEBRAE oferece espaço pra
gente, às vezes o SEBRAE tem uma parte de vendas que é...como é que se fala, gente?
Aquela mulher que vende??? Comercialização. Aí a gente manda os produtos e eles
vendem. não há necessidade de ir uma associada. eles mesmos fazem”. (Selma
Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
Além do talento das bordadeiras, elas consideram fundamental o papel do designer
de criação dos produtos. Gal afirma que sem a participação de Renato Imbroisi elas não
teriam chegado onde chegaram. O SEBRAE vem ajudando, garantindo sempre a presença
de Imbroisi, de tempos em tempos, trazendo novas idéias e inventando novas coleções. A
Presidente afirma que mesmo que o SEBRAE parasse de patrocinar a vinda de Renato
Inbroisi a Brasília, as próprias bordadeiras pagariam pela sua consultoria, pois ele é parte da
garantia do seu sucesso, presença fundamental.
Entre todas as bordadeiras, a experiência com as tramas coloridas vem de longe,
muito antes de se cogitar a criação da Associação. ‘‘A gente trabalhava sem união, cada
uma fazia suas peças e depois vendia em uma feira de artesanato aqui mesmo em
Taguatinga”, lembra Selma.
Nos primeiros tempos teria havido uma certa circulação de pessoas. Muitas
entravam, mas não botavam no futuro sucesso do trabalho da Associação, e acabavam
saindo. Vinham outras em seu lugar, pois sempre estão aparecendo mais mulheres
interessadas em trabalhar com bordados na Associação. Aos poucos o grupo foi tomando
93
forma até ganhar sua composição definitiva. Hoje a Associação está fechada para novas
associadas. Entretanto, isso não significa que não receba novas bordadeiras.
Quem se apresenta no local em busca de trabalho como bordadeira é logo
incorporada ao grupo como “terceirizada”. Cada uma das associadas conta com o apoio de
outras três bordadeiras, em média. “Somos 20. Vinte associadas e cada associada tem uma,
duas, três bordadeiras, pelo menos. Poucas que não tem uma outra bordadeira. Elas fazem
um trabalho terceirizado. ”, explica Selma
“Eu tenho duas e mais outra também que já borda pra mim, é encomenda demais
como ela falou. A gente não conta, é manual, demora, a gente não conta, então tem
que ter mais gente pra fazer. Depois que lava e passa fica a coisa mais linda! Quando você
termina de fazer que você olha você diz: meu deus, vale a pena! Isso aqui vale a pena!”
(Jovita Maria Machado dos Santos, Bordadeiras de Taguatinga)
“Pois é. Eu mesma tenho várias bordadeiras, que bordam pra mim. que a
gente paga pra elas, né, a gente paga na hora e daí a gente pega o produto com elas e a
gente vai ter que procurar mercado pra vender. Então aqui realmente abre portas para
muitas pessoas. Uma oportunidade de trabalho.” (Selma Ferreira Lopes, Bordadeiras
de Taguatinga)
A associação das Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê, criada em 2001,
participa de três a quatro exposições por mês, o que lhe rende entre R$ 4 mil e R$ 5 mil
mensais, segundo a presidente da associação, Gal. Durante as exposições elas vendem todo
o material pronto, tudo aquilo que conseguiram produzir quando não estavam atendendo a
encomendas. Somado à venda dos produtos expostos, de cada feira elas trazem grandes
encomendas, que precisam ser atendidas durante os meses seguintes. Com as encomendas,
94
o grupo fatura mais uns R$ 2,5 mil por mês, aproximadamente. No total, cerca de R$ 7 mil
mensais.
“Os ganhos depende muito, assim, nós temos os meses que ganhamos mais, agosto,
novembro e março, que tem as feiras melhores, né, então aí quando vem da feira tem gente
que tira mil reais, 800, tira bem, agora durante os outros meses varia muito. O forte nosso
mesmo que é nas nossas vendas em São Paulo, são no atacado, então a gente vende, assim,
numa feira a gente vende 40 mil, 30 mil, depois vem os pedidos, a gente vende esse
valor, em mercadoria entregue, ta em exposição, vende. eles fazem os pedidos que a
gente fica trabalhando. Quer ver? Nós fizemos a feira em março, até hoje [junho] a gente
atendendo pedidos das encomendas feitas lá. Então o nosso forte mesmo é nesses dois
meses. Abril não é tanto, que é uma feira que a gente faz em Belo Horizonte, e não esse
retorno tão grande quanto São Paulo... Essa de março foi em São Paulo... E em agosto
também. São Paulo é a que movimenta mais. E aqui em Brasília a gente faz Casa Park, faz
Conjunto Nacional. Faz umas feiras que tem no Lago Sul, no Lago Norte...” (Selma
Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
O valor cobrado, segundo Gal, é proporcional ao tempo e à complexidade do
trabalho das bordadeiras. Uma almofada de 40 x 40 centímetros, por exemplo, pode
consumir dois dias de trabalho manual. Custa R$ 40. Já a colcha de casal, com várias
espécies de flores bordadas, leva até dez dias para ficar pronta. É vendida por R$ 650. A de
solteiro consome um pouco menos de tempo, por isso custa R$ 450.
As bordadeiras consideram as exposições, realizadas em shoppings, as feiras e os
eventos muito importantes para divulgar o trabalho e ampliar a clientela. Em feiras como a
Gift FairFeira Internacional de Presentes, em São Paulo as peças vendem muito
bem: ‘‘Nosso trabalho tem muita aceitação. Mesmo porque estamos também fazendo um
resgate. As pessoas não vêem mais bordados com esse tipo de ponto à venda’’, diz
Lindomar dos Santos, 70 anos. Dona Lindomar costuma representar a associação também
95
na Feira do Casa Park, que acontece no terceiro final de semana de cada mês. “Essa feira é
menor, não tem tanta visibilidade, mas sempre vende alguma coisa”, ela afirma.
As bordadeiras relataram que se sentem muito bem confeccionando as peças, pois
realizam um tipo de trabalho manual que relaxa e tranqüiliza. Além disso, afirmam que por
meio desse trabalho as artesãs puderam melhorar a qualidade de vida das suas famílias.
Elas recebem entre R$ 300 e R$ 500 por mês e ainda mantêm a associação. ‘‘Fazemos
cerca de 200 almofadas por mês. É o que mais sai’’, conta Gal. Por encomenda, segundo
garante a Presidente, elas bordam qualquer tipo de peça e no tipo de ponto pedido pela
cliente. Jovita Maria Machado dos Santos descreve como funciona a divisão das tarefas
dentro da Associação:
“A gente pega o tecido aqui, com o desenho, e as linhas eu compro. A gente
corta e faz o desenho na Associação e a gente borda. Então tem que comprar a linha e
bordar. Aqui na Associação cada uma faz uma coisa, tem uma só pra riscar, que o risco
está pronto quando a gente pega pra bordar, escolhe a flor com o risco pronto já. Tem
um que depois vai lavar e vai passar, daí tem que apagar todo o risco de lápis e lavar bem,
pra ficar bem branquinho o tecido, porque fazendo o bordado às vezes fica sujo...tem que
lavar e passar, pra depois poder costurar. A gente se divide as tarefas, pra tudo
funcionar.” (Jovita Maria Machado dos Santos, Bordadeiras de Taguatinga)
A situação das bordadeiras é bem melhor hoje do que antes de ser formada a
Associação. ‘‘A gente bordava apenas pra nós mesmas ou pra pessoas amigas. Hoje
estamos mais organizadas’’, conta Selma, que além de artesã, é mãe e professora de
bordado. Todo o seu tempo livre é utilizado para preencher com linha colorida os riscos de
grafite no pano branco. Pacientemente, ela reproduz folhas, caules, pétalas coloridas e
96
também pontos turísticos de Brasília sobre o tecido. ‘‘É um trabalho muito relaxante’’,
afirma.
“Eu, por exemplo, dou curso de bordado direto, duas vezes por semana. Então
as pessoas me falam: eu venho sempre aqui porque eu me distraio muito, muito me alegra,
eu tenho prazer no dia que eu venho aqui pra fazer o curso. Gosta bastante, sente prazer
quando o trabalho pronto... que alguém gosta e compra. Isso mexe com a gente, na
auto-estima, né” (Selma Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
As bordadeiras de Taguatinga são um grupo muito coeso. Nos encontros
semanais, realizados sempre às terças-feiras, pude acompanhar o andamento dos trabalhos.
Todas chegam para o encontro por volta das quatorze horas. Fazem um rculo no meio da
sala e iniciam com uma oração para abençoar os trabalhos do dia, a cada uma das
participantes e às suas famílias. Todas as bordadeiras são evangélicas e freqüentam a Igreja
em Taguatinga, onde muitas delas se conheceram.
Em seguida, a Presidente e a Secretária começam a tratar da pauta do dia,
trazendo as questões importantes a serem discutidas em grupo. Há intensos debates e
tomadas de posição. Quando necessário elas realizam votações. Na época de campanhas
eleitorais, nesse dia de reunião também recebiam a visita de candidatos a deputado distrital,
que se comprometiam sempre em garantir benefícios futuros para o grupo, caso eleitos.
Algumas vezes surgiam desentendimentos entre as mulheres. Presenciei alguns
debates mais intensos e cheguei a ver um “bate-boca” entre duas mulheres. Entretanto, a
Presidente da associação demonstra possuir grande habilidade para esclarecer mal-
entendidos e contemporizar as desavenças, fazendo com que cada uma das envolvidas
tenha oportunidade de expor seu ponto de vista, para então entrarem em acordo. Gal exerce
97
um tipo de liderança tranqüila, quase silenciosa, que só se impõe quando alguma coisa foge
da rotina, exigindo sua presença, caso em que atua com firmeza. Francilene comenta a
atuação de Gal frente ao grupo das bordadeiras e a ética que ela impõe ao grupo:
“Problema de relacionamento não existe, não tem, porque mesmo nós somos um
grupo de 20, ainda que tenha alguma coisinha, assim, que o ser humano tem de uma hora
não gostar de uma palavra de outro, mas é esclarecido em grupo, deixamos pra falar
somente da pessoa quando ela está presente. Nós nunca falamos pelas costas, quando isso
acontece nós somos exortadas pela Gal pra não falar. Pra deixar que a pessoa chegue e
pronto. Ver o assunto com todas, caso contrário tem que calar e esperar a bordadeira
chegar pra poder ver pra esclarecer.” (Francilene Ferreira Reis, Bordadeiras de
Taguatinga)
As bordadeiras vivenciaram muitas mudanças desde que começaram a se reunir e
foram se organizando. Começaram despretensiosamente, fazendo curso de bordado,
ensinando umas às outras, e buscando apoio nas instituições ligadas a esse universo. Com o
tempo se organizaram como associação e foram aprendendo na prática a administrar essas
experiências. O quanto cresceram é visível na qualidade do seu trabalho, executado com
grande esmero, e no relacionamento que elas mantêm dentro da Associação.
“O nosso trabalho reproduziram muito, tem gente que se emociona quando vê,
até chora, acha bonito o trabalho... Todo mundo elogiando nosso trabalho, em casa,
também... Tinha mulher que tinha até depressão e começaram a bordar, melhorou muito.”
(Selma Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
A fala de Selma salienta a importância dos elogios vindos de fora do grupo.
Segundo ela, isso produz um impacto na auto-estima das mulheres. Ela comenta, de modo
98
geral, a melhora que a participação no grupo e o sucesso do trabalho com bordados trouxe
para a vida de cada uma delas. Francilene concorda com Selma, e procura explicar como
isso ocorre:
“Mudou Tudo. A parte mental, você viaja com o bordado. Quando você pára é
que você que tem algo ao redor pra você fazer, pra você pensar. Mas quando está
bordando é uma terapia pra qualquer pessoa. Eu bordo assim pra descansar mentalmente
mesmo, faz muito bem bordar, eu gosto. Hoje pra mim é, além de eu ter esse emprego, que
é de onde eu tiro o sustento da minha casa, dos meus filhos, é daqui, com a ajuda do meu
salário de Secretária, é o bordado que complementa.” (Francilene Ferreira Reis,
Bordadeiras de Taguatinga)
Além do prazer proporcionado pela ocupação, a satisfação de conseguir ganhar
seu próprio dinheiro é citada por Selma como um dos fatores que faz a diferença para as
mulheres. Ela observa que ficando em casa é como se a mulher não estivesse fazendo nada,
“nada entre aspas”, como ela diz, pois embora tenha muito serviço a ser feito para manter a
casa em ordem, esse trabalho não “aparece”, não é percebido pela sociedade.
“Quando você pega o seu dinheiro, que você sabe que aquilo é seu, você pode
fazer o que você quiser, é bom também, levanta a auto-estima da gente, quando alguém
elogia também, é bom, em tudo, em todos os aspectos. Tanto na área financeira quanto
fisicamente, você se envolve com o trabalho, como emocionalmente, faz bem. Você viaja,
você fica se divertindo, você cria, você tenta aperfeiçoar cada dia mais, se envolve com o
trabalho, é aquela coisa assim, quem entra aqui não sai nunca, quando você está aqui você
não quer sair de jeito nenhum. Ninguém quer sair, faz muito bem, é muito bom” (Selma
Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
99
Selma salienta que o trabalho com as flores do cerrado despertou nela e nas outras
bordadeiras uma maior atenção com relação à vegetação característica do local, da região
do cerrado, e a partir dos desenhos do bordado, elas começaram a observar mais as cores e
os formatos das plantas, no seu dia-a-dia.
“Eu sou uma pessoa que não gosta de ficar parada. Eu gosto sempre de estar
fazendo alguma coisa. Então, enquanto eu estou bordando, é uma terapia. Porque quando
você está bordando você viaja, você repara mais na natureza. Antes a gente andava assim
e nem dava bola, hoje a gente procura, a gente anda assim e vai olhando, pra ver as cores,
que cor que é, porque em Brasília tem muitas cores do cerrado...” (Selma Ferreira
Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
Para Selma, a renda obtida no trabalho com a associação não é a renda principal
de sua família, é um dinheiro a mais de que ela dispõe para os seus gastos. Entretanto, o
caso de Selma é exceção dentro dos grupos. Para a maioria delas, o dinheiro ganho com
bordado garante as despesas básicas da família.
“E também a renda, que acaba dando um dinheiro que ajuda, que é bom pra
gente. Tem pessoas aqui que dependem disso. Tem pessoas aqui, associadas, que o marido
ficou alguns anos, ficou desempregado e ela ficou e a família dependendo disso aqui.Tem
gente que usa isso aqui pra ajudar mesmo na renda familiar. Faz diferença, se não tem
outro trabalho, outro ganho...” (Selma Ferreira Lopes, Bordadeiras de Taguatinga)
O argumento final de Selma, que segundo ela comprovaria que o trabalho artesanal
vale a pena, é bom e faz bem, é o fato de que muitas mulheres aparecem ali na galeria e
pedem pra entrar no bordado, querem trabalhar com elas, embora estejam fechadas para
100
novas associadas. Entretanto, do grupo das bordadeiras associadas ninguém desiste,
ninguém pede pra sair, porque todo mundo gosta.
“Nunca ninguém desiste, né... que nós éramos vinte e uma e a gora somos 20,
porque teve uma senhora, ela se afastou porque ela escom 80 e tantos anos, mais ou
menos, então ela não está acompanhando o pique que nós estamos crescendo e ela
resolveu sair, assim, entre aspas, ela não tem mais compromisso, mas ela sempre está
vindo... porque não consegue passar sem. Sente falta.” (Selma Ferreira Lopes,
Bordadeiras de Taguatinga)
As Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê seguem se reunindo todas as terças-feiras
no centro de Taguatinga. Entre as perspectivas de futuro, elas nutrem o sonho de exportar
seus bordados. “Pra 2007, o nosso objetivo mesmo é exportar, é o que nós estamos
querendo desde a fundação. Mas eu creio que as portas estão se abrindo porque nós
temos pedidos bem importantes” comenta Francilene.
De acordo com Gal, conseguir exportar é a próxima meta a ser atingida, para
ficarem conhecidas também no exterior, mas elas têm ainda um desejo. “O maior desejo
nosso é ter uma sede própria, nós ainda pagamos aluguel. Então o objetivo que nós temos
para o ano é de ter essa sede, que vai ser maravilhoso” completa Gal.
101
Capítulo 4 – Grupo de Produção Flor do Cerrado de Samambaia
102
Capítulo 4 - Grupo de Produção Flor do Cerrado, de Samambaia
Roze Mendes, figura central do grupo de produção Flor do Cerrado, tem como um
de seus objetivos o desenvolvimento local da região de Samambaia, onde reside. Este
grupo, que teve início no espaço da creche comunitária, cedido pelo padre, conta
atualmente com a participação de quatorze mulheres, e acabou transformando-se numa
Micro-Empresa, forma encontrada para garantir sua participação, sempre crescente, no
mercado. A trajetória de luta das mulheres, narrada do ponto de vista de Roze, merece ser
conhecida.
Uma breve informação sobre a região de Samambaia contribui para situar o
contexto em que surgiu o grupo Flor do Cerrado, sua localização e as características do
local e dos seus moradores. O nome da cidade deve-se ao Córrego Samambaia, em cujas
margens ainda se verifica a existência dessa vegetação nativa.
Samambaia, Região Administrativa XII do Distrito Federal, foi criada oficialmente
em 25 de outubro de 1989, pela Lei 49 do Senado Federal e Decreto 11.921/DF, para
assentar o excedente populacional formado por “famílias carentes oriundas de invasões,
cortiços e inquilinos de fundo de quintal”, decorrente do elevado índice de imigração para o
Distrito Federal
8
.
Em 1978 o Governo do Distrito Federal, GDF, instituiu o Plano Estrutural de
Organização Territorial PEOT, pelo qual, em 1981 elaborou-se o projeto ‘Samambaia
estudo preliminar’, implementado em 1982. Em 1984 foram vendidos lotes na Quadra 406
8
Informações fornecidas pelo Governo do Distrito Federal, podem ser verificadas em
www.samambaia.df.gov.br, consultado em novembro de 2006.
103
e Setor de Mansões Leste (hoje Taguatinga), para os primeiros moradores que, em 1985,
começaram a ocupar a nova cidade.
Em 1988, pelo Sistema Habitacional de Interesse Social SHIS e com
financiamento do Banco Nacional de Habitação BNH, foram construídas 3.381 casas
destinadas a funcionários públicos de baixo escalão, que então puderam adquirir a ‘casa
própria’.
Criada para responder ao crescimento populacional do Distrito Federal, Samambaia
recebeu os primeiros moradores em 1985 e as casas foram construídas, em parte, com o
apoio do Programa de Olarias Comunitárias, organizado pela artesã e ex-secretária do
Desenvolvimento Social, Maria do Barro.
O projeto urbano, distante 28 quilômetros do Plano Piloto, foi traçado ao longo de
eixos que facilitam o transporte público e a distribuição das áreas de comércio e serviços.
Prevê uma capacidade para 330 mil pessoas em 106 quilômetros quadrados, distribuídas em
setores que vão desde o de Mansões Leste até a Vila Roriz, onde estão as construções mais
populares.
O principal centro de atividades é a Chácara Três Meninas, localizada na
Entrequadras 609/611, do Centro Urbano, onde se encontram a Casa da Cultura, a Olaria
Comunitária, a Biblioteca Pública, o posto de saúde, e mais de uma escola.
Nesse contexto de urbanização recente, de projetos para a cidade e em meio a
construção de casas, Roze chega a Samambaia com sua família, buscando mudar sua
história. Roze é uma mulher forte e determinada. Isso pode ser observado não apenas nos
resultados do trabalho do grupo que lidera, mas também pela sua trajetória pessoal. Nascida
na Ceilândia, e criada naquela região, ela hoje vive em Samambaia, e ali ela lidera um
grupo de produção de flores artesanais chamado Flor do Cerrado.
104
“Então eu acho que eu herdei um pouco dela, um coisa de gente que faz. Ela saiu
da Paraíba e veio pra Brasília onde eu nasci. E eu vim de Taguatinga onde eu nasci pra
Samambaia, pra começar uma cidade também com esse intuito, de crescimento. Mas o
Dom já estava em mim.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
No ano de 2006 Roze recebeu o prêmio “Mulheres Empreendedoras” do SEBRAE e
seu trabalho está entre os Top 100 do Artesanato” do Brasil. Uma lista elaborada por
aquela instituição com a finalidade de reunir os melhores profissionais do país e certificar a
qualidade dos seus produtos, funcionando como um selo de qualidade.
Sua trajetória mostra a força de uma mulher que luta pelos seus sonhos. Ela relata
como começou a produzir flores, atividade que aprendeu cedo na vida, por meio de seu
esforço e dedicação. Conta que trabalhava diariamente na produção de flores, e que nas
suas idas e vindas costumava refletir sobre a condição das mulheres de Samambaia:
“Eu ia de manhã, tinha mulher na rua, parada nas portas. Eu voltava de tarde,
tinha mulher parada nas portas. Aquilo me incomodava, sabe? Eu falava: gente! Esse povo
não trabalha, não? Eu não sei o que fazer! Será que se eu ensinar alguma coisa, essa
mulher sai da porta? Eu queria tanto que essa cidade melhorasse, sabe? “ (Roze Mendes,
Flor do Cerrado)
Foi então que Roze conseguiu um espaço na creche comunitária para reunir as
mulheres e começou a ensinar as moradoras de Samambaia a fazer flores. Ela relata as
dificuldades encontradas no começo devido à falta de auto-estima das mulheres, que
resultava em pouca fé nas suas próprias capacidades de aprender uma nova profissão:
105
“Eu arriscava trazer pra cá, pra elas aprender a empreender. Pra ver se elas
faziam alguma coisa, porque eu não agüentava mais ver elas parada. E eu ia toda tarde
pra lá, insistia, e elas não queria nada. Sabe o que é nada? Nooossa Senhora! Aí eu falava:
Gente, olha, vocês precisam aprender alguma coisa. Isso é profissão. Não é ser dona de
casa que é profissão. Saber bordar... Se você bordar cada vez mais, você vai ganhar
dinheiro, e aí eu trazia o Secretário do Trabalho, elas vinham pra cá, tiravam as
carteirinhas delas. eu falava: olha, quando perguntar sua profissão, você fala que é
artesã.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
A moradora havia buscado ajuda no SEBRAE para “aprender a empreender”.
Esse é um dos cursos oferecidos pela instituição para ajudar as artesãs a se organizarem e
começarem no trabalho, dando início ao que denominam de “empreendimento”. Roze
planejava trazer esse curso para as outras mulheres dali, para juntas desenvolverem um
“projeto de artesanato”.
Roze tinha presente uma percepção de que a auto-estima das mulheres poderia ser
reforçada na medida em que elas aprendessem uma nova profissão e tivessem uma
participação no mercado de trabalho. Reconhecendo que ser “dona de casa” é notadamente
uma profissão, mas que deixava certo tempo livre e rendia pouco reconhecimento, Roze
buscava oferecer alternativas de maior prestígio para as suas vizinhas.
Assim ela começou a ensinar o que sabia, a manufatura de flores artesanais e outros
trabalhos manuais. As mulheres foram aparecendo e juntando-se ao pequeno grupo inicial,
e chamando sempre outras a participarem, convidando parentes e amigas para fazerem
parte daqueles encontros de aprendizagem. Após as instruções iniciais, Roze começava a
elaborar o seu “projeto”, pois já havia sido iniciada na linguagem e nos modelos de
funcionamento daquele campo.
106
“Aí eu fiz um projeto, “Flor do Cerrado semeando Arte na Comunidade”,
porque eu dava muito curso, e eu sozinha não dava conta...Chegou num ponto, chegava
uma e eu falava assim: o que você sabe fazer? Bordar. Então você vai ensinar ela a
bordar, ela vai te ensinar a fazer flores, todo mundo virou instrutor, que era muita
gente, não dava.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Durante esse período muitas mulheres participaram do grupo: entravam,
participavam dos encontros, aprendiam um ofício que poderia transformar-se numa
profissão. Exigindo um investimento mínimo de tempo, para não mencionar outros recursos
que seriam necessários para a continuidade do trabalho, muitas mulheres acabavam
desistindo por não se disporem a investir na nova atividade. Algumas continuavam, talvez
aquelas que julgassem poder arcar com esse investimento, mesmo sem acreditar muito nas
possibilidades do seu trabalho.
“Então a mulherada se reunia na creche aqui, na creche do Padre Alberto [Padre
Alberto Trombini]. o Padre Alberto viajou... E a Igreja precisava ter um projeto social
pra poder bem servir... em algumas coisas do governo, e ela não tinha, mas tinha um
espaço muito grande e eu comecei... Então o Padre Alberto deixou, junto com a irmã
Maria José, que eu fosse dar uns cursos lá, na Igreja, na creche, e eu fui. Assim, eu
trabalhava de manhã, e à tarde eu ia pra lá e ficava. Todo o dinheiro que eu pegava era só
pra comprar pano pra dar pra mulherada bordar, né, e chegava mulheres que tinha
depressão... Tinha uma que mora até aqui na frente, o filho dela, quando ela foi trabalhar
comigo, ela não conversava com ninguém, porque tinham matado o filho dela, ela não
conversava com ninguém. Aí, com dificuldade, ela conseguiu esquecer um pouco e
conseguiu se integrar um pouco com o grupo. Tinha uma que chegava todo dia e ela era
muito magra. Ela vinha e eu dava um pedaço de pano pra ela, e nunca dava certo os
bordados que ela fazia. Ela chegava sempre e tava tudo errado. ela chegava e: olha o
que que eu fiz hoje... Nossa! Mas está lindo! lindo, lindo, lindo! Ela perguntava:
bonito? Eu falava: Tá lindo! Toma mais um pano! E assim foi um monte de vezes. Só que o
que a gente tava ensinando era vagonite, e vagonite é uma coisa que rapidinho você pega,
107
aí eu falei: mais cedo ou mais tarde ela vai descobrir o erro dela. Aí passou um dia e falou:
Roze! Você me enganou esse tempo todo! Eu falei assim: Como? Eu te enganei? Ela falou
assim: eu não estava bordando...eu estava fazendo garranchos e você dizia que estava
lindo. Olha, eu aprendi, é isso aqui. Então assim, com esses bordados, muitas mulheres
aprenderam aqui com a gente, umas foram pra frente, adquiriram posse da carteira de
artesão dela e foi fazer suas coisas, foram dar cursos, foram ensinar outras pessoas,
chegou um momento que a Flor do Cerrado, que se chamava “Flor do Cerrado Semeando
Arte na Comunidade”, chegou um momento que eu não dava conta de ensinar todo
mundo... Então chegava uma pessoa que queria aprender e então a gente perguntava o que
ela sabia fazer, então eu dizia tu ensina ela isso e ela te ensina aquilo, ela virava instrutor
também, era uma troca. E eu um encontro bacana também, na creche,a gente se reunia,
levava um lanche de tarde, todo mundo...conversava...(Roze Mendes, Flor do Cerrado)
O grande desafio para Roze era mostrar para aquelas mulheres que elas poderiam
fazer algo de verdade, desenvolver um trabalho sério baseado em atividade artesanal, que
essa possibilidade estava em suas mãos. Ela percebeu que a maioria delas entrava e saía do
grupo de trabalho sem ser tocada pela visão das possibilidades que estava diante dos seus
olhos. Percebeu também que somente algumas das mulheres participantes encaravam
seriamente o artesanato como atividade economicamente viável e tratavam o assunto com a
seriedade que ele merecia. Para ela, apenas as “mulheres que tinham sonho” de aprender
coisas novas e crescer, sonho de mudar a sua vida, somente essas poderiam se engajar
seriamente no projeto e levar adiante o desafio. Roze acredita na força dos sonhos, que
impulsionam a mulher para a luta, e foi buscando reunir “as mulheres que tinham sonho”
que ela formou o grupo Flor do Cerrado:
“E naquele meio eu fui observando as mulheres que tinham sonho. As que eu fui
ensinando, tinha mulheres de todos os jeitos: mulheres que o marido não deixava, não era
o meu caso, por que meu marido era muito companheiro, mas aquelas mulheres eram
108
muito sofridas, mas tinham sonho. eu fui separando as que tinham sonho, eu chegava e
falava pra elas: o que você pensa da sua vida?” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
O grupo conta hoje com a participação de 14 mulheres. Entre elas se destaca Maria
Domingas da Conceição, com idade avançada e participação ativa desde o começo do
projeto. Contaram com a participação de mais de um designer, eram consultores enviados
pelo SEBRAE. Isso contribuiu muito para elaboração de um produto mais acabado e
voltado para o mercado consumidor.
“Aí aquelas mulheres que tava acostumada a fazer arranjos desse tamanho (muito
grandes), e tava acostumada a vender e não tinha uma visão de crescimento para o futuro,
elas falavam bem assim pro designer: “ele não sabe nada não, ele quer é copiar as coisas e
levar pro país deles, eu não vou ficar aqui não...” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Muitas mulheres abandonaram o projeto, pois não acreditavam no futuro daquela
iniciativa, que fosse funcionar. Expressavam sua desconfiança com relação às intenções do
designer. Talvez por ser uma pessoa que vinha de fora daquele meio, ele era visto com
suspeição pelas mulheres. Desistiam antes mesmo de tentar, deixando o grupo em número
um tanto reduzido. Aquilo resultava em frustração para as que ficavam, pois haviam
investido recursos, tempo e trabalho para ensinar as outras, que acabavam saindo. “Não era
eu, era eu, junto com elas, mas eu fiquei muito frustrada com aquilo, pois foi um
investimento que ficou no meio do caminho.” lamenta Roze.
“Quando eu era só artesã,que eu ia pra feira, sabe, eu falava: gente, eu preciso
fazer algo pra essas mulheres que estão lá em Samambaia. Eu achava que se o SEBRAE
chegasse aqui, a cidade ia melhorar, sabe, porque eu tenho essa visão, a minha casa não
termina ali no portão, a minha casa é tudo que está em volta. Porque quando eu falo pra
vocês virem aqui, vocês vão olhando tudo que está em volta. Entendeu? Vocês não chegam
109
aqui por acaso, vocês vão olhando, olha, ali tem alguma coisa, e se tudo estiver feio, vocês
vão com aquela imagem, né, então a gente tem que ter essa visão de melhorar é tudo. Não
é São Paulo onde você mora. Não adianta eu fazer aqui um castelo e ficar dentro dele
sabendo que ali fora a coisa está feia. Então a gente tem que pensar em tudo, né, numa
visão mais ampla.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
O SEBRAE seguia apoiando as iniciativas de Roze . Dessa vez contratou o designer
Renato Imbroisi, que possui escritório fixo em São Paulo. Ele organizou novos grupos,
trouxe propostas novas para o trabalho que estavam fazendo, em meio à resistência de
muitas mulheres. Muitas haviam desistido porque não botavam no projeto. Isso ocorreu
no ano de 1999:
“Renato falou: Roze, faça suas peças, eu não vou deixar você desistir de fazer
suas flores. Mas você vai fazer painéis com essas flores, ao invés de você fazer arranjos.
Você faz muito bem isso aí, e nós vamos colocá-las em evidência. Você vai colocar nas
telas...e as telas eram imensas, a gente começava assim...” (Roze Mendes, Flor do
Cerrado)
A participação do designer dava nova forma ao produto, que era muito bom.
Entretanto, o começo do trabalho num local como Samambaia representava para a artesã
um desafio em si mesmo.
“Nessa época eu tinha o quê? Empreender numa cidade que está começando é
muito difícil, as pessoas não acreditam, querem o retorno muito rápido. E as mulheres não
tinham paciência de esperar, entendeu, elas queriam o dinheiro muito rápido. As amostras
tinha que fazer, elas queriam ganhar, pelas amostras, e eu falava: gente, não pode ser
desse jeito! Eu estou aqui ensinando pra vocês.... Vamos esperar, vamos ver o resultado, e
elas não tinham paciência... Mas olha, com aquilo tudo ainda consegui ficar com umas
duas... De quinze mulheres eu fiquei com duas...” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
110
O Trabalho o foi fácil, nem aconteceu muito rápido. Exigiu dedicação e muito
investimento. Roze salienta a dificuldade de lidar com a expectativa das mulheres, que se
apresentavam para trabalhar com artesanato porque estavam precisando do dinheiro, e
esperavam receber desde o começo, ainda na etapa de aprendizagem do ofício. Ela explica
detalhadamente que esse tipo de trabalho exige uma aprendizagem e um investimento
inicial para produzir as amostras, que em seguida precisam ser expostas. Caso agradem ao
público, serão então recebidas as encomendas. Conforme o SEBRAE ensina às artesãs, é
preciso ter um projeto.
“Nessa época até saiu um trabalho pra mim no governo, eu peguei e falei pra ele
que eu não queria. Eu queria tocar o meu projeto. Eu queria ir pra São Paulo, eu queria
ver o que o pessoal ia falar do meu trabalho. eu comecei a trabalhar dia e noite, dia e
noite, dia e noite. Fiz um mostruário que, se vendesse, dava 1500 Reais. Só que eu só tinha
o dinheiro pra ir.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Era uma aposta. Roze tinha elaborado o projeto e dado início ao trabalho.
Ensinou muitas mulheres, produziu muitas amostras, reuniu todas as suas economias, fez
todo o trabalho que pôde e levou tudo para São Paulo, para participar da Gift Fairem
1999
9
. Essa feira é conhecida internacionalmente e atrai visitantes do mundo todo. Segue o
modelo das grandes feiras internacionais, como as que ocorrem em Milão, Paris e
Frankfurt.
De acordo com os organizadores, a Gift Fair é “a maior feira de bens de consumo
doméstico e a grande geradora de negócios do setor na América Latina. Abrangendo os
9
Website da Feira disponível na internet, em http://www.laco.com.br/site2007/gift_fair/index_home.html
consultado em fevereiro de 2008.
111
setores de utensílios para o lar, mesa posta e utensílios de copa e de cozinha”. Essa feira,
ocupando um espaço de 50 mil metros quadrados, reúne mais de 700 expositores e atrai em
torno de 70 mil compradores do Brasil e do exterior.
“Quando eu cheguei lá, o Renato falou assim pra mim: Roze, eu tenho uma
parede pra te dar, lá na exposição. Serve? Perto de um banheiro e subindo uma escada. Eu
falei: serve!!! Mas a exposição acontece dentro das casas, tem o circuito que leva o
pessoal, e eu falava: gente! Aqui não vai vir ninguém não... A gente acostumada em
pavilhão, lugar mais aberto... tinha mesmo.... Eu fiquei preocupada com aquilo, mas,
menina, se existe o corredor da fama eu passei nele!” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
O produto chamava a atenção dos participantes da feira. Justamente por ficar
próximo da entrada dos banheiros, resultou que muitas pessoas passavam por ali e notavam
o trabalho da Flor do Cerrado. Ali Roze percebeu que todo o esforço e investimento valia a
pena, pois havia conseguido obter uma qualidade tal no aperfeiçoamento do artesanato que
estava atraindo muitos compradores. Conforme ela relata, o mostruário foi vendido no
primeiro dia mesmo, e os outros dias ela passou anotando as encomendas.
“Mas o pessoal ficou encantado! Quando eles paravam no corredor, falavam: o
que é isso? E olha, menina, e eu fui pra esse banheiro, na bancada do banheiro, e
tirando pedido. O pessoal fazendo encomenda. Eu falava assim: Gente! Mas eu não tenho
condição de entregar tudo isso! Olha, não tem problema, pode demorar um mês, dois, três,
quatro meses, eu preciso dessa peça. Não, eles queriam a peça. Quando eu falei, Saluda
do Céu, eu pensei que eu ia vender o mostruário, eu vendi no primeiro dia, a pessoa veio e
falou assim: eu quero todas essas peças! (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Roze se orgulha de contar o quanto batalharam para conseguir um espaço, obter
uma certa visibilidade e conseguir exportar o seu produto. Esse resultado deixa as artesãs
112
muito satisfeitas, segundo ela. Entretanto, mesmo tendo a exportação como uma das metas
do seu trabalho, ela expressa uma certa preocupação de que o total de sua produção não
seja inteiramente exportado. Ela exporta via correio mesmo, os compradores depositam o
dinheiro no banco, ela simplesmente embrulha o material encomendado e envia por Sedex
para o endereço combinado. Mas Roze deseja que o seu produto seja bem conhecido dentro
do Brasil, e não deixa de atender nenhuma encomenda nacional, nem prioriza os
estrangeiros. Para isso, ela estabeleceu cotas, tanto para o trabalho quanto para as vendas,
conforme explica.
“Desde esse dia nunca mais nós paramos... E cada vez a gente tem melhorado
cada vez mais, a participação em tudo, sabe? Assim, a gente tem... Eu me cobro muito,
sabe, cobro muito das meninas, divulgamos bastante o nosso trabalho, dentro dessas feiras,
e assim, é os clientes hoje tem o maior carinho pelo nosso trabalho, mas 80 % da nossa
produção é destinado pro Brasil, 30% é que vai pra fora [sic]. Eu mando a quantidade
que eu acho que a gente pode mandar... Não deixo nenhum aqui sem.. Sabe? Nós
trabalhamos por cotas. Se você me perguntar: Roze, quantos metros de painéis vocês
fizeram até hoje? Eu sei quantos metros nós fizemos... Quantos metros cada um comprou?
Sabe? Porque a gente divide certinho... Cada um pega um pedacinho e a gente consegue
fazer o trabalho...” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Mesmo com as dificuldades que encontrou no caminho, a vontade de fazer um
sonho se realizar moveu as artesãs da Flor do Cerrado a seguirem em frente, cozinhando
folhas e fazendo flores. Isso as levou a conquistar o prêmio “Mulheres Empreendedoras” de
2006, concedido pelo SEBRAE DF para aquelas mulheres que se destacaram como líderes
empreendedoras. Foi uma conquista importante para Roze e o grupo Flor do Cerrado, pois
consiste no reconhecimento de sua luta por uma vida melhor.
113
“A Flor do Cerrado, ela nasceu assim, com muita garra, com muita fibra, é tanto
que as mulheres que vieram trabalhar comigo, eu não queria que chamassem elas de
mulheres carentes. Porque carente eu tinha um monte lá, mas aquelas eram diferentes.
Aquelas lá não eram mulheres carentes, elas eram mulheres que precisavam de uma
oportunidade. Elas eram mulheres de fibra, tinham sonho. E quando a gente tem sonho a
gente corre atrás, não espera não. Mas as carentes sempre iam esperar alguém dar alguma
coisa pra elas. É assim que é feito o trabalho que faz a diferença.” (Roze Mendes, Flor
do Cerrado)
A artesã narra com detalhes a sua luta, juntamente com outras que foram chegando
e se unindo a ela. Para ela, serem taxadas de mulheres carentes desmerece o que elas
realmente são, pois todas as pessoas são carentes de alguma coisa. Seja de dinheiro, seja de
afeto, carinho, todos tem carências. Mas mulheres carentes são aquelas que ficam paradas
esperando que alguém venha ver a sua situação e lhe dar coisas, fazer caridade. Não era
essa a perspectiva das mulheres do grupo da Flor do Cerrado. Essas mulheres foram
reunidas em torno de um objetivo porque eram “mulheres que tinha sonho”, e isso as
distinguia das demais mulheres. Segundo Roze era esse sonho que as movia a seguir em
frente e ir em busca daquele sonho.
No pátio de sua casa em Samambaia, a artesã mostra como ela faz os arranjos de
flores. A matéria prima principal é uma folha conhecida como “folha moeda”, de um
arbusto típico do cerrado. Segundo ela, tais arbustos poderiam chegar a crescer como
árvores, mas geralmente não chegam a isso, pois o seu crescimento é limitado pelo clima
seco da região e muitas vezes interrompido por intervenção humana. Inicialmente é preciso
ir ao cerrado e colher as folhas. O grupo de mulheres passa uma semana no campo aberto,
colhendo as folhas e guardando em sacos grandes que serão trazidos para casa. Somente
numa etapa seguinte é que as folhas serão separadas de acordo com o seu tamanho. Mesmo
114
as folhas quebradas da planta são aproveitadas. Roze tem a preocupação com a escassez
dessa matéria prima, e nada é desperdiçado. Todo o trabalho a ser feito é dividido entra as
artesãs do grupo, e tudo é administrado por ela. Roze faz um registro de tudo o que é
produzido e de tudo o que é vendido. Cada etapa é feita sob sua supervisão direta e olhar
atento, com cuidado em cada detalhe.
“O trabalho, ele leva horas, semanas... Se você vai contar a semana que é de
colher... vem debulhar tudinho... debulhar as folhas, separa... põe... oh, eu coloquei
hoje, amanhã eu vou ter que acender o fogo de novo... Vai cozinhar hoje, vai cozinhar
amanhã... de tarde eu vou poder lavar... eu vou lavar, ela vai ficar escura daquele
jeito” (Roze Mendes, Flor do Cerrado).
Depois de debulhar as folhas dos galhos e separar todo o material, as artesãs
colocam as folhas numa panela de ferro grande para ferver na água. Esse cozimento, que
leva em média de dois a três dias, deve retirar toda a clorofila da planta, restando apenas o
esqueleto das folhas. Em seguida as folhas esqueletizadas” são espalhadas no chão sobre
folhas de jornal, para secar, à sombra. O jornal ajuda a retirar a umidade das folhas. Se
forem colocadas sob o sol elas ressecam e ficam quebradiças, não sendo possível trabalhar
com elas depois, tornando-se impróprias para os arranjos:
“Vai cozinhar dois dias. depois, não seca no sol, elas têm que secar na
sombra... Aquela dali tá ali porque eu ainda não lavei... tem que lavar... elas tem que secar
na sombra, oh, daí você vai virando em cima dos jornais, pra ir secando... E você passa
a montar as flores” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
115
Depois de lavadas e secas, vem a etapa de tingimento das folhas. Roze buscou
eliminar a presença de corantes artificiais, por causa dos resíduos químicos que prejudicam
a natureza. Atualmente ela emprega somente corantes naturais na sua produção.
“Aí eu vou pro tingimento, da,í se tem as cores eu vou, eu tinjo. As flores a gente
eliminou todo o processo, fomos fazer pesquisa, foi ver de que forma a gente podia
eliminar a questão dos resíduos químicos, e a gente conseguiu estar trabalhando com
produtos naturais... O tempo é muito mais, sabe, o caminho se torna muito mais longo...
Mas vale a pena, sabe... É... A gente agrega valor ao produto”. (Roze Mendes, Flor do
Cerrado)
Há uma preocupação com a eliminação dos resíduos químicos em todas as etapas da
produção das flores, assim com a preocupação de evitar o desperdício da matéria prima.
Roze explica que isso agrega valor ao produto, e assim ela pode privilegiar a qualidade em
detrimento da quantidade. Essa decisão insere seu artesanato numa outra lógica de
consumo
10
, segundo a qual cada etapa da produção é valorizada. O tingimento é feito com
apenas poucas cores, obtidas de materiais simples e naturais. Uma delas, acobreada, é
obtida a partir da ferrugem, com a utilização de pregos numa fervura secundária. Outra cor
é feita apenas lavando as folhas, que depois ficam escurecidas, quase pretas. Depois de
tingidas são secas novamente no jornal, à sombra, e estão prontas para serem amarradas,
iniciando a montagem das flores, dos arranjos e dos painéis.
“Enquanto eu uso serragem, enquanto eu pego prego dali e coloco pra ferver, pra
dar cor, ele dá o ferrugem, a cinza que tira dali depois a gente põe numa lata, fura, daí vai
pegando... Se eu tingir isso aqui com beterraba, se eu jogar o mordente aqui, vai dar outra
10
Na terceira parte da tese discuto a lógica do consumo do produto artesanal.
116
cor, é o fixador, coisa que a nossa avó fazia atrás. Mas isso aqui é muito mais valoroso
que uma coisa que você compra artificial, eu falo assim, do mesmo jeito é uma cenoura,
uma batata orgânica, ela não tem o preço de uma batatinha, do mercado, que é com tudo
de agrotóxico que tem.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Expresso no cuidado com a natureza em cada etapa do seu trabalho, Roze propõe a
discussão de um novo paradigma ético que reoriente a relação humana com a natureza. As
propostas para a construção desses novos valores que visam a maneira com que o homem
vê, intervém, usufrui e degrada a natureza, defendem a necessidade de mudança do modelo
atual de desenvolvimento, calcado no consumo e no lucro, por um modelo de
desenvolvimento sustentável. Nas suas palavras:
“Eu levo essa consciência que não é somente pra preservar a minha matéria prima
não, é pra preserva a qualidade de vida de Brasília. Eu nasci aqui, eu sei que a gente
não respira o mesmo ar que a gente respirava, e se a gente não fizer políticas públicas
para que realmente as coisas não sejam vistas dessa forma... Não é de moradia que a
gente precisa, a gente precisa de um monte de coisa pra ter qualidade de vida” (Roze
Mendes, Flor do Cerrado)
Pode ser observado o grau de politização do discurso de Roze, imbuído de
preocupações ecológicas e sensível à necessidade de elaboração de políticas públicas para
promover melhorias na qualidade de vida da sua região. Roze vai além do manejo
apropriado de um vocabulário do campo semântico da sociedade civil organizada. Além de
redigir “projetos” para realizar intervenções na sua cidade, ela também está voltada para
uma atuação política de maior alcance, que abrange Brasília, o governo e com os olhos para
a região do cerrado como um todo.
117
“Quando eu falo assim: eu me sinto responsável, Aline, é porque eu vou ao
cerrado, eu vejo, eu vou colher flor e colho lixo. Os sacos, a gente usa esses sacos porque
são resistentes, são de ração, é o único que, pra carregar, eles não rasgam... E a gente traz
sacos de folhas e sacos de lixo, porque as pessoas não têm consciência. Até hoje eu não
entendo por que eles queimam o cerrado, entendeu, eles queimam, mas os bichos que estão
ali morrem, e daí aonde que vem? As doenças também... são coisas que a gente tem que
falar pras pessoas, sabe?” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Foi a partir da preocupação com o meio-ambiente que Roze chegou à conclusão de
que uma associação cujos ganhos se baseiam na máxima produção possível não seria
desejável, ou mesmo viável, a médio ou longo prazo. A sustentabilidade desse tipo de
trabalho artesanal, cuja matéria prima é de origem vegetal, tornou-se uma preocupação
central para ela:
“Essa matéria prima um dia acaba. E eu preciso ter responsabilidade de fazer a
minha parte, porque o meu maior fornecedor é o cerrado. É diferente das meninas. As
meninas vão e compram um monte de linha, compram um monte de panos. Quanto mais
pano, mais mulherada elas colocarem, melhor. Agora, no nosso caso, nós não vimos dessa
forma. Eu não poderia ser uma associação pra produzir isso aí, você entendendo?
Porque elas iriam ganhar em cima da produção e não é o que a gente quer. A gente
inverteu. Porque se eu criar a empresa, a empresa não vai trabalhar nessa escala, porque
eu sou a responsável por ela, e não é meu intuito de trabalhar o produto em escala.”
(Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Quando Roze menciona “as meninas”, está se referindo às Bordadeiras de
Taguatinga, com quem está bastante familiarizada e cujo trabalho conhece. Ela explica a
lógica que orienta o trabalho das bordadeiras e compara com a lógica do seu próprio
trabalho, que na sua opinião é a inversão da primeira. A artesã explica que decidiu
transformar a Flor do Cerrado numa micro-empresa familiar, por causa dessa lógica de
118
trabalho com uma consciência ecológica, no intuito de ter uma produção reduzida, mas com
um maior valor agregado e também em função das próprias encomendas mesmo.
O montante das encomendas de Roze não se enquadrava no limite de vendas que
está previsto na isenção fiscal da carteirinha de artesão da Secretaria do Trabalho do estado.
Além disso, Roze vende principalmente para outros estados, tais como São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais, onde não vigora a mesma isenção. Segundo me explicou, cada
estado tem uma taxação diferenciada para os produtos artesanais, então para enviar
encomendas para cada estado era um procedimento diferente, o que estava complicando
muito seu trabalho. Assim, no formato de empresa, ela vende com nota fiscal, paga
impostos sobre a venda e tem a nota fiscal para o transporte e a circulação do produto pelo
Brasil inteiro, sem problemas.
“O artesão, ele pode tirar a nota fiscal avulsa, da Secretaria do Trabalho, através
daquela carteira. A gente tira nota fiscal. Mas pra passar o teto a gente paga. Tem um teto.
Tem um teto pra poder tirar, depois eles cobra ICMS, cobra... tem estados que cobra, nem
todo mundo paga... porque a lei é DF, então como é que a gente vai vender? porque
limita...” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Sobre as outras artesãs que estavam no grupo de produção com ela, Roze garante
que permanece tudo como era antes. Elas são contratadas pela empresa, continuam
produzindo em conjunto, recebem pelo que fazem e estão melhorando de vida. Roze
salienta que as mulheres que trabalham com ela têm a garantia de ter um emprego formal,
com carteira assinada, para trabalhar na produção de artesanato, algo que elas gostam muito
de fazer. A Flor do Cerrado desenvolve seu trabalho buscando manter um diferencial que
119
consiste na consciência da preservação do meio-ambiente, consciência da escassez dos
recursos e das mudanças climáticas que ocorrem em todo o planeta.
“É mais serviço pra mim, por quê? As pessoas aqui que trabalham com as flores
do Cerrado, eles não vão no Cerrado pra colher, eles pagam pra colher, coisa que nós
não fazemos. Nós vamos, até pra saber como está o Cerrado, e isso de cada colheita pra
outra, a gente observa que esmudando, que está diminuindo, mudando! A gente tem
aproveitado todas as folhas, fica ali, não vai pro chão. Trabalha, junta tudo, põe no
saquinho. Quando precisa, vai no saquinho, pega, sabe, porque não é só ir no
Cerrado, colher, chegar aqui e usar que nem doido, removendo as coisas. Então por isso
que eu acho muito importante esse projeto de remanejo do Cerrado, pra mostrar pras
pessoas .” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Além da Flor do Cerrado, existem outras artesãs no mercado que também fazem
trabalho com a folha moeda do Cerrado. Desde que seus painéis começaram a fazer
sucesso, muitas pessoas têm ido ao Cerrado colher a folha moeda para se lançar nesse
mesmo negócio de fazer flores artesanais. Mas nem todas as pessoas demonstram a mesma
preocupação de Roze com a manutenção do cerrado, com a sustentabilidade dessa matéria
prima. A artesã reclama da falta de cuidados das outras pessoas, que danificam as plantas e
além disso deixam restos de lixo nos campos do Cerrado, poluindo a natureza.
“Eles vêem eu como um grande concorrente. Aliás, eu não sou concorrente deles,
primeiro, porque eu tenho um trabalho diferenciado. Concorrente é entre eles mesmos.
Porque eu não estou ali, eu não tenho a visão que eles têm. A minha visão é bem maior.
A minha visão é de que tem que proteger. Qual é o concorrente que se preocupa com o
futuro da matéria prima daquele ramo? Ele depende dela, então eu estou preocupada com
o sustento, estou vendo bem mais na frente. Mas eles estão preocupados em comer tudo
hoje. Ah, por que eu vou plantar, se vai nascer daqui a 5 anos? Eles não notam que daqui a
120
5 anos, se a cultura, se o artesanato dessa matéria prima permanecer, alguém vai ter
como fazer, entendeu? E dar seguimento.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Para ela, o ideal seria a criação de uma organização não-governamental, uma
associação para a proteção do Cerrado, pois ele está sendo danificado pelas pessoas que
estão visando o lucro e a vantagem individual, a despeito dos estragos causados no meio-
ambiente. “Hoje a gente é uma micro-empresa. Mas é uma micro-empresa que tenha
responsabilidade social. Mas o projeto maior dessa micro-empresa é criar a sociedade de
proteção ambiental Flor do Cerrado, é a extensão disso”, explica Roze .
“Por que eu vejo que as pessoas falam muito na questão ambiental, na questão
ambiental, mas ninguém faz nada. Eu seria uma pessoa, a primeira pessoa a estar
trabalhando com uma matéria prima que vai buscar solução pra essa matéria prima. Por
que os outros sempre esperam que a solução chegue a eles. E eu não, eu estou envolvida
dentro da situação, que eu acho que ela não pode continuar assim. Eu tenho que ir buscar.
Eu me sinto assim responsável de estar fazendo isso. Eu que estou escutando e vendo eu
falo sempre que o Cerrado não fala, mas ele chora. Você chega e você aquilo ali
pedindo socorro. Então eu acho que isso eu herdei, e quero passar pros meus filhos.”
(Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Roze está preocupada com a valorização e com a preservação da região do Cerrado,
do ponto de vista da preservação ambiental, bem como com o desenvolvimento do local
onde mora, a Região Administrativa de Samambaia. Sua visão de desenvolvimento implica
em crescimento não apenas da micro-empresa que ela registrou, resultado de empenho
pessoal e sucesso visível e reconhecido pelo público, mas também na melhoria da qualidade
de vida da sua comunidade como um todo. Ela entende que para sua casa estar bem, não
121
bastaria transformá-la numa fortaleza, com muros altos, mas sim englobando a sua
vizinhança num projeto de desenvolvimento integral da comunidade de Samambaia:
“A minha casa, ela não é só até ali naquela grade... A minha casa tem a parada de
ônibus, até o mercado, é tudo que tem em volta, tem a paróquia, é tudo, então isso faz parte
da minha casa. Isso tudo é parte do meu dia-a-dia, então eu acho que isso é importante,
quando você ressalta dentro de uma comunidade a valorização das pessoas, a valorização
do lugar, então hoje quando eu vejo a Samambaia e aqui que a gente vai estar nessa
grande empresa, eu vejo Samambaia, eu vejo essa cidade maravilhosa e a gente que tem
que cuidar, é uma cidade que eu tenho orgulho de chegar e falar olha, eu moro em
Samambaia. Eu nasci em Taguatinga, mas eu tenho mais carinho por Samambaia do que
por Taguatinga, onde eu nasci.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Como incentivadora e promotora da atividade artesanal, Roze salienta sua
contribuição para que as mudanças ocorram em Samambaia, destacando dois aspectos do
artesanato que ela considera fundamentais. Em primeiro lugar, o caráter terapêutico dessa
atividade, que, enquanto ocupa as mãos, deixa a cabeça livre para pensar, propiciando
muita tranqüilidade para as mulheres que trabalham com ela, pois se sentem mais leves:
“Eu acho assim, que o artesanato é uma terapia, ele te espaço pra você pensar, antes
de você tomar qualquer iniciativa você pensa muito, porque você trabalha muito com
aquilo ali, então isso te facilita, é um facilitador dentro do trabalho, isso é muito bom.”
comenta a artesã.
Um segundo aspecto apontado por Roze tem a ver com a valorização da atividade
artesanal enquanto profissão formal, possibilitado por meio do registro na carteira de
trabalho das mulheres que trabalham com ela. Esse registro na carteira de trabalho garante
o salário de mulheres artesãs que são chefes de família, e através do exercício de uma
122
atividade artesanal conseguem sustentar os filhos e trabalhar em casa. Cada uma das
contratadas da Flor do Cerrado desempenha um tipo de tarefa diferenciada, apostando na
especialização da mão de obra para o aprimoramento do trabalho.
“Hoje a gente envolve 20 pessoas. Envolve aqui. Tem aquelas que só fazem
costura, tem aquelas que fazem outra coisa, que não fica direto, que não é uma mão de
obra que precisa ficar direto, totalmente direto, né. Uma das coisas que me levou também a
montar uma empresa, porque eu acho que todo mundo um dia sonha de ter uma carteira
registrada, eu tive essa oportunidade, depois eu fui tomar conta do meu negócio e não quis
mais trabalhar de carteira registrada, mas eu tenho muito prazer em poder assinar uma
carteira, de mostrar pras pessoas que artesã é uma profissão, de artesão, entendeu, que
aquele oficio, daquela mulher, mesmo trabalhando em casa, sabe, fazendo ali uma
florzinha ou fazendo um crochê ou um bordado, aquilo também é uma profissão que ela faz
parte de fazer sempre bem feito, sempre o melhor, e assim um dia a gente envelhece, e a
maioria dessas mulheres, ela é homem e mulher da casa, então isso também.” (Roze
Mendes, Flor do Cerrado)
Para as mulheres que seguem trabalhando no grupo Flor do Cerrado, juntamente
com Roze , a empresa representa um grande avanço que lhes brindou com sucesso
profissional, garantindo uma melhoria na qualidade de vida da família e, através do registro
formal, uma certa estabilidade.
“Se você tem uma meta de crescimento, chega uma hora em que você não
consegue. entendendo? Chega um hora que você não consegue, você tem que estar
dentro da lei. Eu sou muito a favor que a coisa seja legal, não pode ser ilegal, porque o
crescimento, ele acontece através disso, é parcerias que você tem que fazer, é negócios,
é exportação, aí é o que eu estou te falando, eu não posso pensar em exportar numa escala
grande, pensar no volume de dinheiro, eu tenho que pensar no volume de recursos que
eu estou administrando, então eu prefiro estar trabalhando dentro da lei...” (Roze
Mendes, Flor do Cerrado)
123
Além do empenho na regularização do negócio, Roze também se ocupou de obter as
“parcerias” necessárias para o bom andamento do negócio, que segue um ritmo de
crescimento programado pela empreendedora. A visão administrativa de Roze, falando em
escala de vendas e de exportações e no volume de recursos que administra, impressiona.
Causa antes admiração pelo seu talento e envolvimento do que estranhamento face à sua
imagem de mulher de origem humilde, mãe de família, e moradora da periferia.
Exemplo de sucesso, premiada pelo SEBRAE, elogiada pela mídia, a Flor do
Cerrado exporta o seu produto atendendo a encomendas, em pequena escala. A artesã
explica que para a empresa ser lucrativa e a atividade artesanal funcionar, é preciso haver
uma mudança de pensamento. Roze tem a percepção de que existe uma representação
social do artesão e do artesanato, o resultado de seu trabalho. Essa representação social
11
muitas vezes não corresponde mais à realidade das pessoas que estão envolvidas nesse
universo, que está sendo reinventado, recriado. Ela salienta que é preciso mudar o conceito
do que é o artesanato no mercado, conforme ela explica: “Hoje a gente consegue exportar,
mas o que a gente acha que deve ir lá pra fora, não o que eles querem, é ilusão falar: olha,
exporta quem produz mil, duas mil, três mil peças. Nós estamos exportando obras de
arte. É esse o conceito que a gente passa pras pessoas, entendeu?”
11
O conceito de representação social será discutido na terceira parte da tese, retomando-se o presente debate
sobre o conceito do artesanato no mercado consumidor.
124
Parte 2
“Parcerias Institucionais”
“Examinemos portanto essa alma, estudêmo-la em suas ações e paixões,
busquêmo-la em seus prazeres: é aí que ela mais se revela.
A poesia, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música, a dança,
os diferentes tipos de jogos, as obras da natureza e da arte, enfim
podem dar-lhe prazer: vejamos por que, como e quando isso acontece;
entendamos nossos sentimentos: isso poderá contribuir para a formação do nosso
gosto, que nada mais é senão a vantagem de descobrir com sutileza e presteza
a medida do prazer que cada coisa deve dar as pessoas.”
Montesquieu (1689-1755), O Gosto. São Paulo: Iluminuras, 2005.
125
Capítulo 1 - Sobre o SEBRAE
126
Capítulo 1 - Sobre o SEBRAE
Conforme foi visto na primeira parte da tese, as artesãs dos grupos de trabalho
relatam que são muito incentivadas e apoiadas pelo SEBRAE. Todas as entrevistadas
salientam a importância desse órgão para o trabalho que estão desenvolvendo. O próximo
passo no desvelamento do universo do artesanato feito por grupos de mulheres em Brasília
passa pelo entendimento do papel do SEBRAE no Distrito Federal, e ainda mais
especificamente, pelo ponto de vista das pessoas dessa instituição que estão lidando
diretamente com as mulheres.
“O SEBRAE ajuda. Aí eu ligo para Antonieta Contini, ou eu ligo para a Mônica, falo
“nós estamos precisando de”. Dessa vez até essas miçangas que nós estamos fazendo, o
SEBRAE ele doa para s, eles ajudam. Retalhos de pano, de tecidos, enchimento das
bonecas também, espumante para encher as bonecas, quer dizer, linha, essas coisas, matéria
prima, o SEBRAE está sempre no tempo presente ajudando a gente. Sempre jogando para
cima, isso é muito bom. Se tivesse várias empresas que fossem como o SEBRAE, que dessem
um pouco do que tem para ajudar um projeto social, uma comunidade carente como aqui no
Varjão, talvez o Brasil não estava com tanta miséria como está hoje. E não é falta. De os
empresários não terem, que não possam ajudar, é falta de conscientização, de poder ajudar e
direito de ajudar aquela comunidade. Então isso é muito interessante e muito importante
também. Maria Anita da Silva, Mulheres em Ação/Arte Varjão
“É um pedacinho de nada. Como o SEBRAE, o que o SEBRAE nos cede? Um pedaço
de tecido, um carretel de linha, um novelo, então isso cria um trabalho na comunidade
que para quem está fora não é nada, mas para elas que estão precisando desse dinheiro
para aumentar um pouco a renda, que tem muitas que muitas vezes nem tem mesmo o que dar
pros filhos é muito importante.” Maria Anita da Silva, Mulheres em Ação/ Arte Varjão
127
Nessa parte da tese eu apresento o SEBRAE como instituição diretamente ligada à
organização do trabalho artesanal desenvolvido em Brasília, conforme apontado pelas
próprias artesãs. Falar sobre o ponto de vista de uma instituição é algo complexo, uma vez
que a Instituição possui uma existência social, embora seja formada por muitas pessoas
reunidas alegadamente em torno de um objetivo ou propósito comum. Falar da instituição é
falar das pessoas que a compõem, ao mesmo tempo em que cada pessoa não é a Instituição
em si, embora fale em seu nome. O propósito das pessoas, quando elas falam pela
instituição, muitas vezes se confunde com os propósitos da Instituição, que por sua vez não
existiria sem as pessoas que a representam. Procuro aprofundar essa reflexão mais adiante,
nessa segunda parte.
Analiso inicialmente um discurso institucional, conforme ele é apresentado no
projeto de desenvolvimento local do SEBRAE, através das entrevistas realizadas com a
Gerente de Desenvolvimento Local, Antonieta Contini. Ela é a pessoa responsável pelo
encaminhamento das mulheres para a formação de grupos de trabalho e pelo projeto como
um todo. Antonieta Contini trabalha pela promoção do empreendedorismo dentro do
SEBRAE, visando encaminhar para um esquema formal, seja na forma de uma associação,
organização não-governamental ou micro-empresa, aquele segmento de trabalho artesanal
que costuma manter-se na informalidade.
Em seguida, analiso o conteúdo do website institucional do SEBRAE, porque em
determinados momentos da entrevista os entrevistados se remetiam a ele para falar de
determinados assuntos, e por perceber a força que pode ter um discurso institucional
tornado público e disponível na web, para a reificação das falas dos informantes. Soava
algo como: “não sou eu que estou dizendo isso, você pode ver no site do SEBRAE, é o
SEBRAE quem diz assim” (seja ele quem for).
128
O contato com Antonieta Contini foi um dos mais difíceis durante o trabalho de
campo, porque ela tem uma agenda cheia de compromissos, viaja bastante, para feiras e
localidades em que organiza cursos, e também porque ela própria não atende diretamente
ao telefone, sendo necessário marcar um horário para entrevistá-la. Assim, eu telefonava
nos horários mais variados, conforme era informada de que conseguiria encontrá-la e
repetidamente não a encontrava e não conseguia estabelecer contato ou marcar entrevista.
Finalmente consegui conhecê-la, indo pessoalmente ao SEBRAE num dia em que
soube que ela teria retornado de viagem. Fui mesmo sem ter hora marcada. Permaneci
sentada, na portaria, de plantão por algumas horas, até conseguir ser atendida. Uma vez
atendida, ela mostrou-se muito simpática, conversou bastante, gravamos uma entrevista e
gentilmente fui convidada a retornar sempre que necessário para novas entrevistas.
Consegui seu telefone e diversas vezes voltei ao SEBRAE para conversar com ela, tanto
sobre o trabalho do SEBRAE quanto para obter indicações de contatos com outras pessoas,
como os designers que são contratados pelo SEBRAE para atuar junto aos grupos.
Os designers do SEBRAE fazem parte de um projeto chamado Via Design, que é
apresentado também nessa segunda parte. Este projeto faz parte do programa de fomento ao
artesanato e estímulo ao empreendedorismo que leva a denominação mais geral de
Desenvolvimento Local. O conteúdo do website é mencionado na conversa precisamente
naqueles momentos em que o entrevistado procura empregar a autoridade da Instituição
para a qual trabalha para dar força ao seu próprio argumento, como um recurso de
autoridade. Ele é acionado e funciona como se fosse um contrato firmado, com a força de
uma lei. É o universo virtual operando como se fosse real. A análise discursiva do material
apresentado no sítio institucional capturado na web, ao qual os entrevistados se reportaram
reiteradamente durante as entrevistas, finaliza o primeiro capítulo.
129
A atuação dos designers desse projeto é discutida de modo mais detalhado nos
capítulos seguintes. O contato com eles e a realização das entrevistas exigiu uma certa
determinação, pois os designers em geral se mostram solícitos e dispostos a contribuir, mas
ao mesmo tempo são pessoas atarefadas e envolvidas com muitos projetos ao mesmo
tempo, o que faz com que estejam freqüentemente viajando.
Procuro descrever e mostrar o trabalho artesanal do ponto de vista daqueles
designers que permaneceram atuando junto aos grupos apresentados na primeira parte da
tese. Busco mostrar quais são os discursos com os quais operam nas suas propostas, a partir
da análise do material discursivo obtido por meio das entrevistas, com Antonieta Contini e
os próprios designers do SEBRAE.
Dentre os consultores de design do SEBRAE, destaco o trabalho de Kátia Ferreira,
consultora que decidiu assumir a liderança de vários grupos de trabalho, espalhados por
Brasília inteira, montando suas próprias coleções de moda e inaugurando uma grife própria,
chamada Apoena. As artesãs do grupo Mulheres em Ação e Arte Varjão, que têm no
SEBRAE seu grande parceiro e incentivador, também fazem trabalhos de patchwork e
fuxico sob encomenda para a grife Apoena.
O principal designer do SEBRAE de Brasília, na época da pesquisa, era Renato
Imbroisi, responsável pelo desenvolvimento do produto das Bordadeiras de Taguatinga Flor
do Ipê e da Flor do Cerrado, entre outros. Os dois casos são apresentados a partir das
entrevistas realizadas com esses consultores. Analiso o papel do consultor de design na sua
intersecção entre o universo das artesãs e o mundo do consumo e da moda, que ele
representa.
Ao final da análise do papel dos designers no campo do artesanato e na interface
com a moda, discuto a idéia de “coisas do tempo da vovó”, surgida na fala de alguns
130
informantes, e procuro demonstrar em cada caso como se aliam práticas “herdadas” ou
“tradicionais” com as atualizações que visam “modernizar” ou “dar uma cara nova” para a
produção artesanal. Ou seja, começo por analisar esse aspecto simbólico, assim como
procuro apontar também outros existentes, do resultado da interação entre o trabalho das
artesãs e sua vontade de trabalhar, face aos projetos do SEBRAE para incentivar e
promover tais atividades, por meio do design.
No capítulo intitulado “A carteirinha de Artesão”, procuro descrever a dinâmica da
empreitada burocrática de registro de um artesão em Brasília, na Secretaria do Trabalho do
GDF, órgão competente para essa finalidade. Acompanhei a trajetória de várias artesãs em
busca do registro oficial, numa jornada que tem início logo pela manhã e consiste
basicamente na exposição das capacidades artesanais associada ao emprego de
determinados materiais. A obtenção do documento pode levar muitas horas, ou mesmo um
dia inteiro. Isso tudo para o encaminhamento do pedido, porque o documento em si,
chamado “Carteira do Artesão”, só fica pronto aproximadamente um mês depois do pedido.
O documento final é entregue numa ocasião solene, pelas mãos do próprio Secretário do
Trabalho do Distrito Federal, em Brasília.
Discuto ainda as diversas formas de parcerias que conectam os atores sociais
presentes e relevantes no universo do artesanato de Brasília, com foco principal na proposta
de trabalho do SEBRAE/DF e nos seus consultores.
131
Capítulo 2 – Desenvolvimento Local e Identidade
132
Capítulo 2. Desenvolvimento Local e Identidade
“O objetivo é promover o desenvolvimento econômico e social em diferentes
regiões brasileiras, eliminando as desigualdades sociais e contribuindo para o
desenvolvimento de áreas com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).”
12
Logo no primeiro contato com o SEBRAE percebe-se que a noção central em torno
da qual se articulam os projetos e discursos institucionais é a de “desenvolvimento”,
conforme empregada pela Organização das Nações Unidas. Categoria esvaziada de sentido
em face de sua ampla e generalizada utilização, o “desenvolvimento”
13
figura aqui como
propósito orientador das práticas institucionais, e em seu nome foi criada uma Gerência de
Desenvolvimento Local, que vem realizando políticas públicas de incentivo à atividade
artesanal como geradora de renda em comunidades carentes.
Cabe notar que o termo “desenvolvimento” constitui-se em categoria discursiva
dotada de carga semântica altamente positiva e politicamente correta”. Em razão disso, é
muito difícil que alguém se oponha ao “desenvolvimento”, ou a projetos com essa
finalidade. O próprio emprego de termos utilizados no âmbito das Nações Unidas procura
indicar a filiação do SEBRAE à defesa de valores ligados a categorias discursivas
internacionalmente consolidadas e difundidas.
14
Diante do contexto de falta de oportunidade de emprego para milhares de migrantes
que vieram para Brasília em busca de oportunidades, o SEBRAE, em parceria com o
Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério de Ciência e Tecnologia, iniciou o
12
Capturado do sítio do SEBRAE (www.sebrae.com.br) em novembro de 2006.
13
Sobre a noção de “desenvolvimento” conforme figura no discurso contemporâneo, ver RIBEIRO, Gustavo
Lins. 2000. Cultura e Política no Mundo Contemporâneo. Brasília, UnB.
14
O “Índice de Desenvolvimento Humano” a que se faz referência no sítio do SEBRAE foi criado no âmbito
do PNUD, ONU.
133
Projeto de Desenvolvimento Local. Antonieta Contini é a Gerente de Desenvolvimento
Local no SEBRAE/DF desde 2003. Ela conta que antes de sua entrada no SEBRAE essa
gerência não existia.
“Posso dizer com muita modéstia: esse trabalho é pioneiro no Brasil foi em DF e
hoje ele está sendo multiplicado para vários estados, vários SEBRAEs, levamos o
programa para África que eu tenho um trabalho na África também, então quando eu tenho
eu levo curso de capacitação para mulheres empresárias e aproveito e levo um monte de
informações sobre o trabalho que estou fazendo ...” (Antonieta Contini, SEBRAE)
Antonieta Contini explica que deu início ao projeto de incentivo ao artesanato como
uma experiência de trabalho com o setor informal da economia, em Brasília. Devido ao seu
sucesso, o projeto teria sido desenvolvido também em outros estados, que o SEBRAE
está presente no Brasil inteiro.
“Começou com o nome “Pró Mulher”, quando o SEBRAE ainda não dava apoio a
projetos informais, mas a gente foi buscando parceria e ele teve um crescimento acentuado
a partir de 1998, com o programa que eu gerenciava. Hoje é o “programa de
desenvolvimento local integrado e sustentável”, então esse projeto nós identificamos e
certificamos a necessidade de renda para mulher que tinha dificuldade de sair de casa
para trabalhar como diarista, como doméstica, passadeira enfim, então o projeto veio
com espírito associativo de trabalhar na própria localidade, identificando a potencialidade
sempre com o foco de identidade local” (Antonieta Contini, SEBRAE)
O Projeto de Desenvolvimento Local visaria identificar potencialidades
empresariais através do resgate do conhecimento tradicional e do incentivo à utilização de
habilidades existentes. O papel do SEBRAE seria promover a valorização dessas
habilidades, oportunizando o aperfeiçoamento e a capacitação necessária para o ingresso no
mercado. Isso seria feito através de cursos oferecidos pela instituição e especialmente por
134
meio de consultores contratados para dar suporte aos pequenos projetos diretamente nas
localidades.
“Vou falar um pouquinho da metodologia: começa trabalhando o grupo, a auto-
estima, identificando as potencialidades daquele grupo e muitas vezes m grupos que não
sabem fazer nada, mas querem fazer alguma coisa então a gente começa identificando o
que elas querem fazer ou o que elas fazem e fortalece aquela técnica seja crochê,
bordado,seja qual for a técnica a gente fortalece para fazer bem e depois disso entra o
quê? O designer. O designer que sempre a gente trabalha com o Renato Imbroisi, que está
comigo há nove anos e desenvolvendo produto com identidade local ou, isto é, quando o
produto chega em São Paulo ou no Rio de Janeiro tem a cara de Brasília. Todo mundo
sabe que isso aqui é de Brasília, que tem a cara de Brasília, uma coisa moderna, uma
aplicação muito diferenciada mas usando todas essas técnicas.”(Antonieta Contini,
SEBRAE)
Contini salienta que o trabalho é desenvolvido com o intuito de desenvolver um
produto “com identidade local”, ou seja, “com a cara de Brasília”, que ela define como:
“uma coisa moderna, uma aplicação muito diferenciada, mas usando todas essas técnicas”.
Parte do projeto consiste numa política de construção de uma identidade local, reforçando
alguns elementos tais como o “moderno” e o “diferenciado”, que de acordo com a sua
proposta seriam características próprias de Brasília.
O “desenvolvimento local” é entendido nesse contexto, portanto, não apenas como
referência ao “desenvolvimento humano” proposto no âmbito das Nações Unidas, mas
também como uma política de construção e reforço de identidades, visando, de um lado,
resgatar uma certa identificação com os locais de origem dos migrantes por meio de
práticas tradicionais de bordado, costuras, etc., e de outro lado, reinserir essas pessoas numa
rede na qual o tradicional é revestido de valores de modernidade, tornando-o mais
adequado ao novo ambiente em que reside. Note-se que o lugar do herdado e do construído
135
estão previamente estabelecidos pelo projeto institucional, uma vez que são oferecidos
cursos de capacitação em práticas artesanais específicas e são oferecidos consultores de
design para o “desenvolvimento” dos produtos.
O Programa Via Design é um dos Programas de Desenvolvimento Local do
SEBRAE Nacional, que, graças à sua rede de atendimento a micro e pequenas empresas e
artesãos, da qual fazem parte 15 Centros de Design e 85 Núcleos de Inovação e Design, é
executado em 100 unidades distribuídas em todo o país
15
. Os Centros de Design promovem
e articulam as atividades de design em âmbito estadual e regional. Promovem exposições,
cursos e seminários. Mantêm cadastros de prestadores de serviços (designers) e organizam
as solicitações de projetos em design.
“Bom, o objetivo é além de gerar renda, levar o empreendedorismo para essas
comunidades, sempre identificando quem são e quem tem perfil empreendedor para levar
adiante aquela atividade produtiva que gere renda. Então a gente também trabalha na
capacitação da gestão, do empreendedorismo, leva para elas cursos de empreendedorismo
que envolve o que é empreender, o que é ser empresário de sucesso, como comprar, como
vender , a questão dos custos. Então quando elas dominam a técnica, desenvolvem o
produto e elas tem paralela toda a capacitação de gestão e também terminou o produto,
produziu, vem uma consultora na área de gestão que vai desenvolver uma ficha técnica
para aquele produto, vai levantar os custos, a capacidade de produção daquele produto.”
(Antonieta Contini, SEBRAE)
O apoio à atividade artesanal está presente em todos os Estados do Brasil e é
particularmente forte no Distrito Federal. As Oficinas de Design, dos Núcleos de Inovação
e Design em Artesanato, destinam-se a atuar na melhoria de processos e produtos do
artesanato, capacitando o artesão e beneficiando as comunidades locais. Esse apoio também
inclui projetos de intercâmbio e de cooperação internacional entre entidades atuantes em
15
Dados obtidos no site www.sebrae.com.br em 20 de novembro de 2006.
136
design. Antonieta Contini explica como funciona o programa Via Design, destacando o
percurso esperado que vai desde a formação de grupos até o ultimo grau de formalização,
que seria a criação de uma empresa.
“Então o objetivo é começam como grupo e depois transformam em associação,
mesmo que ela não seja formalizada, tem estatuto, tem tudo, mesmo que não seja
registrado, ai depois quando abre mercado, daí é negócio né? Ou ela se transforma em
uma cooperativa ou numa empresa e algumas já estão se transformando, já estão se
registrando enquanto empresa que é o caso da “Flor do Cerrado”.(Antonieta Contini,
SEBRAE)
A Gerência de Desenvolvimento Local trabalha conjuntamente com o Setor de
Artesanato no SEBRAE para promover trabalho e a geração de renda através de atividades
artesanais e comercialização dos produtos em grande feiras. Entre as Feiras que ocorrem
em Brasília nas quais o SEBRAE/DF costuma apoiar Empresários/Artesãos estão:
EXPOMINAS, em maio, no Pavilhão do Parque da Cidade.
FESTA DOS ESTADOS, em maio, no “Camping Show.
EXPOTCHÊ, em junho, no Pavilhão do Parque da Cidade.
FEIRA DO LIVRO, em agosto/setembro, no Pátio Brasil Shopping.
EXPOXÊNTI, em outubro/novembro, no Pavilhão do Parque da Cidade.
Essas feiras ocorrem todos os anos em Brasília, e o SEBRAE costuma se fazer
presente nelas. O trabalho das artesãs também tem sido levado para as feiras de negócios do
Rio de Janeiro e de São Paulo, que ocorrem paralelamente aos grandes eventos de moda.
137
As feiras dão visibilidade a produtos e serviços e permitem aos artesãos estabelecer
contato com outros empreendedores que fabricam ou disponibilizam produtos ou serviços
complementares. A feira possibilita ainda testar um produto em um mercado tradicional,
lançar novos produtos no mercado, buscar novos clientes, encontrar representantes,
distribuidores, fornecedores, desenvolver ou fixar as imagens do produto ou da empresa,
obter informações sobre tendências das tecnologias do produto, dos preços por setor, ou do
desenvolvimento setorial, avaliar a concorrência, realizar pesquisas diretamente com os
consumidores e até mesmo analisar experiências empresariais de sucesso.
“Nós fazemos todas as regiões, nós temos grupos e hoje são mais de setenta grupos
que a gente apoio. Não quer dizer que todos estejam no mesmo estágio, alguns estão
ainda chegando e outros já chegaram, alguns vão sozinhos para a feira e fazem seu
estande, mas fazem questão de ficar junto com o SEBRAE no mesmo espaço, a gente faz
uma ilha com aquelas que estão indo pagas pelo SEBRAE, com o apoio do SEBRAE, e
aquelas que estão indo sozinhas porque precisa de um espaço maior, identificou o
produto, mas quer estar junto com o SEBRAE, quer ter o carinho do SEBRAE ainda. E o
SEBRAE também continua apoiando a questão do designer, porque você não pode ir com o
mesmo produto na feira mais de uma vez, você pode levar uma coisa, mas tem que ser
coisa nova, porque o cliente sempre quer coisa nova e elas acabam criando também muita
coisa, elas acabam, de tanto trabalhar com o designer elas acabam abrindo, estimulando a
criatividade e tendo uma visão muito mais ampliada do que o mercado quer, do que o
cliente quer, ouvindo sugestão então é um aprendizado constante e estão sempre com a
gente.” (Antonieta Contini, SEBRAE)
O acesso a feiras e exposições é oferecido aos artesãos do Distrito Federal que
apresentem registro junto à Gerência de Fomento ao Artesanato, da Secretaria de Trabalho,
Emprego e Renda do Governo do Distrito Federal e estejam inscritos na Secretaria da
Fazenda para a comercialização de seus produtos, ou seja, que estejam minimamente
138
inseridos no mercado formal. Antonieta Contini explica que o SEBRAE incentiva a
formação de grupos de trabalho, e que, como sempre novos interessados em iniciar
trabalho com produção artesanal, sempre há grupos iniciantes e grupos mais experientes.
Cabe notar que, na medida em que são incentivadas a participar de todas as etapas
da produção e comercialização dos seus produtos, as artesãs vão aprendendo a falar sobre o
seu trabalho de acordo com os modelos propostos pelo SEBRAE. Com isso, ocorre um
processo de naturalização do discurso institucional, uma vez que aprenderem a falar de si e
de seu trabalho, ou simplesmente se acostumam com essa tarefa, ao mesmo tempo em que
recebem treinamentos e cursos cujo foco é o empreendedorismo e o atendimento ao
mercado consumidor. uma sobreposição da fala individual com o discurso institucional,
de onde é retirada a autoridade ilocucional.
John Austin (1962[1955]) afirma que se faz diferentes coisas com a linguagem,
uma vez que essa pode se relacionar de diferentes maneiras com a realidade. Alguns
discursos são meramente descritivos da realidade, enquanto outros são capazes de instituí-
la. Esse autor critica as teorias sobre a linguagem até a sua época, que segundo ele serviam
a finalidades descritivas e cujo valor de verdade ou conexão com a realidade eram
avaliados em termos de verdadeiro ou falso apenas. Para ele, a linguagem implica muito
mais do que discursos verdadeiros ou falsos, pois muitas outras coisas poderiam ser feitas
através da linguagem, levando em conta as dimensões do contexto de fala e a dinâmica
social envolvida.
A linguagem para Austin (2004[1962]) pode ser entendida como correspondendo a
três tipos de atos lingüísticos: i) locucionário, que consistiria em dizer alguma coisa,
simplesmente dizer algo; ii) ilocucionário, que se realizaria quando se diz algo como uma
promessa ou uma ordem e iii) perlocucionário, que se perfaria ao se dizer algo que institui a
139
realidade, como no caso do “eu te batizo”, proferido pelo padre, que é condição necessária
para que o batismo aconteça. São os “atos de fala” que aparecem posteriormente na sua
teoria, empregados para criar realidades através do discurso, realidades estas que não são
realidades apenas discursivas, mas sociais.
Para que o discurso seja capaz de instituir a realidade ele deve atender a alguns
requisitos fundamentais. Para a validade dos “atos de fala performativos” (atos
perlocucionários), a autoridade do agente da fala é necessária e essa autoridade provém do
mundo social, de forma que se situa num campo extra-lingüístico.
No caso do discurso das artesãs, pode-se dizer que sua força reside justamente no
fato de ter por trás uma instituição que lhe sustentação. O discurso institucional é de
alguma forma assimilado e reproduzido ao mesmo tempo, numa via de mão dupla. Pode-se
dizer, conforme Mary Douglas (1986), que o indivíduo cria a instituição, através do
discurso, mas não apenas pelo discurso, que é preciso haver certa materialidade, e que o
discurso também cria o indivíduo, na medida em que lhe oferece papéis a serem
desempenhados, atuando em seu nome. Douglas afirma ainda que ao lidar com instituições
estamos tratando com formas de classificação e com processos de reificação, em que o
discurso institui a realidade dentro da instituição e se reproduz fora dela, num processo que
se realimenta a cada vez que é repetido.
Para Michael Herzfeld (1992:68), Douglas não teria dado muita atenção ao modo
como o sistema é continuamente manipulado pelos atores carregados de intenções e na
forma como eles manipulam o sistema de classificação, atuando de modo que favoreça a si
mesmos. Para este autor haveria uma lacuna nos estudos antropológicos no que diz respeito
à capacidade ou poder de agência individual de dentro da instituição.
140
A partir da análise dos discursos das artesãs sobre si mesmas e seu trabalho e dos
discursos dos representantes das instituições atuantes nesse campo e diretamente envolvidas
com os grupos estudados, podemos observar o discurso em ação, o modo como ele institui
a realidade, tanto do ponto de vista institucional, quanto no que diz respeito ao cotidiano
das próprias mulheres.
O indivíduo recorre à instituição como forma de fortalecer seu discurso, e ao fazê-lo
reifica esse discurso, tornando-o mais forte. De modo circular, o indivíduo vivifica o
discurso institucional assim como a instituição fortalece o discurso individual.
Observou-se nas entrevistas com as artesãs que a auto-estima da mulher é reforçada
pela forma como ela fala de si mesma, pois, como artesã, ela se inserida numa rede de
produtividade e constrói uma imagem pública de si mesma. O seu lastro é a instituição que
a instrumentaliza.
“A gente procura estar cada vez mais introduzindo técnicas novas, resgatando
aquelas coisas da vovó que estão muito na moda porque hoje a moda, está inserido na
moda muito o hippie chique que veio e ficou né, então toda moda precisa do bordado em
pedraria, precisa do bordado tradicional, elas vão conseguindo uma renda.” (Antonieta
Contini, SEBRAE)
Parte desse discurso institucional, observado também nos outros entrevistados que
trabalham para o SEBRAE, fala do resgate das técnicas artesanais do tempo da vovó, dos
fazeres tradicionais, das “coisas da vovó”, enfim, e busca valorizar os trabalhos manuais,
associando-os a um estilo de moda conhecido como “hippie-chique”. Trata-se de uma
atualização do estilo “hippie” dos anos 70, que, mesclado com acessórios modernos,
apresentaria um efeito de sofisticação, conforme elas explicam. A moda é apontada como
justificativa para a necessidade de trabalhos com bordados e aplicações, remetendo para
141
algo além da necessidade de emprego e renda das próprias mulheres, apontada inicialmente.
A existência de um mercado de moda cuja tendência se caracteriza pelo “hippie-chique”
complexifica a análise do projeto de desenvolvimento que visa o encaminhamento ao
trabalho formal e a geração de renda, remetendo a um universo de significação do campo
sócio-cultural, uma vez que insere esse trabalho numa rede de relações pré-existente e com
certas demandas específicas, alimentadas subjetivamente por criações artísticas de trânsito
internacional do mundo da moda.
“Nós temos feito parcerias também com empresas e o objetivo é dar trabalho para
elas o ano todo, então tem empresas que nos procuram e tem grupo trabalhando para
determinada empresa, porque a demanda está grande, então elas trabalham na própria
comunidade. A gente tem um local de encontro, mas o trabalho é feito nas próprias casas
que com acompanhamento para obedecer a qualidade e o prazo de entrega, essa coisa toda,
a gente acompanha também, depois da feira a gente tem esse apoio para acompanhar a
produção do que foi pedido, a qualidade e a entrega no prazo até que elas possam elas
mesmas, como algumas já estão fazendo sozinhas, mas no princípio a gente tem que dar toda
essa orientação porque a gente está formando empresários.” (Antonieta Contini,
SEBRAE)
Antonieta Contini sugere a existência dessa rede de relações quando fala das
“parcerias” com empresas, que buscam a intermediação do SEBRAE para a confecção das
encomendas. Destaca-se aqui a função de “acompanhamento para obedecer a qualidade e o
prazo de entrega” como uma “orientação” dada pelo SEBRAE, pois “a gente está formando
empresários”. O recurso a categoria de “parceiros” permite mencionar a rede de relações e
ao mesmo tempo manter na obscuridade a identidade dos parceiros e da própria forma de
cooperação, nos termos em que ela ocorre. Mais à frente discuto e analiso detidamente a
noção de “parceria”.
142
Sobre a continuidade dos grupos de trabalho, Antonieta Contini explica que o fator
fundamental para o sucesso do projeto de desenvolvimento nos grupos é a existência de
lideranças locais:
“A gente percebe assim, onde tem uma liderança a coisa vai adiante e onde não
tem uma liderança, e a gente ainda capacita essas lideranças, mas onde não tem uma
liderança a gente tem que juntar com outro grupo. É o caso do Varjão, não tem liderança,
não tem liderança, é uma coisa feita de vez em quando, uma dificuldade.” (Antonieta
Contini, SEBRAE)
A Gerente cita as mulheres do Varjão como exemplo de grupo em que a liderança é
muito fraca ou praticamente inexistente. O que observamos lá, até pela existência de mais
de uma denominação do grupo, é a existência de duas supostas líderes que não conseguem
coordenar-se muito bem no dia a dia das atividades. Os relatos de envolvimento numa série
de outras tarefas das duas líderes poderia explicar a inexistência de um direcionamento que
corresponda às expectativas do SEBRAE.
“A dificuldade é essa: nas oficinas a gente entra com tudo e, quando a gente
também vende, a gente leva uma consultora na área de comercialização, e a gente
sempre explicando o projeto pede uma entrada já, elas são mulheres de baixa renda e
precisam de comprar o material, e nunca foi negado, e isso eu acho que foi uma coisa que
sensibilizou o cliente, que nós temos cliente até de fora.” (Antonieta Contini, SEBRAE)
O aspecto de obra social teria duplo caráter, pois além do valor em si, serviria
também a uma função prática de “sensibilizar o cliente”, contribuindo para a imagem do
produto artesanal como socialmente correto. O trabalho social serviria a uma finalidade
prática de promoção das vendas, gerando forte apelo, tanto nacional quanto
internacionalmente.
143
Ela chama a atenção para a importância da participação nas feiras internacionais,
apesar dos altos custos implicados, pois resultariam num contato que produz efeitos para a
construção de um produto que teria a cara do Brasil. Esse é justamente um dos propósitos
do projeto de desenvolvimento local, o resgate de identidades locais e a construção de uma
identidade brasiliense e brasileira.
“Agora mesmo recebi aquele telefonema. Era da (organização) na França em
setembro, loucos que a gente compre um estande e faça um estande de tudo que é jeito
para a gente estar em setembro, então traz a proposta que eu vou levar para a diretoria
porque não é só o estande (risos) é a passagem, a diária, é um custo muito alto. Mas que
esse trabalho tem chamado atenção, tem, porque, quando o estrangeiro chega ou no
nosso estande, fala assim: isso aqui é a cara do Brasil! E a gente procura dar uma cara
brasileira, não é cópia, não está copiando a Europa, nem está copiando os Estados Unidos,
então tem a cara brasileira e isso a gente tem ouvido(Antonieta Contini, SEBRAE)
A Gerente explica que o resgate da identidade local faz parte do projeto de incentivo
dos grupos de artesanato, especialmente porque ajuda a identificar os produtos nas feiras,
favorecendo as vendas. A funcionalidade prática mais uma vez é apontada como
motivadora das ações institucionais. O “resgate das identidades locais” é um dos propósitos
do projeto de desenvolvimento local, no qual a dimensão do local é trabalhada face ao
internacional, deixando de lado o que seria o “nacional”. Ocorre que, por ser um trabalho
feito em Brasília, ele é entendido como “representando” o Brasil inteiro, já que se associa à
capital uma função de representação, e por isso o local aqui se sobreporia ao nacional, por
representação, permitindo partir diretamente para uma oposição com o internacional.
144
“Ah, com certeza faz a diferença, é muito importante o resgate de uma identidade
local né e onde você chega o seu produto é identificado em qualquer lugar que você chega.
Ela é do grupo “Apoena” você está vendo, ela estava junto com a gente e separou, veio
a grife e está caminhando sozinha, mas a gente continua apoiando quando precisa.”
(Antonieta Contini, SEBRAE)
Na visão de muitas artesãs, as parceria com organizações não-governamentais
aconteceriam como resultado de uma “evolução” de grupos de trabalho que decidem se
transformar em organizações dessa natureza, sendo essa uma das possibilidades de
formalização do grupo. Começam com grupos artesanais que aos poucos transformam-se,
buscando a melhoria do trabalho, tornando-o mais organizado, mais especializado e mais
capaz de gerar renda para as participantes. A criação da grife Apoena é um exemplo de
“evolução” de grupo de trabalho, partindo da própria consultora do SEBRAE junto a
diversos grupos, conforme será detalhado no capítulo seguinte.
“Nos procuraram porque muitas associações e muita ONG quer dar o apoio mas
não tem essa...não tem uma metodologia, o produto tem pouco no mercado, o produto não
tem qualidade daí a pessoa faz e não vende, faz e vai perdendo o estímulo e vai
desanimando” (Antonieta Contini, SEBRAE)
Antonieta Contini mostra nos catálogos os produtos de maior destaque nas feiras,
aqueles que estão sendo produzidos mais tempo e que tem tido bastante procura, na
forma de grandes encomendas, como as flores feitas de folha moeda da Flor do Cerrado.
“Esses aqui é com flor do cerrado, a folha moeda, esse aqui também é folha do
cerrado e aqui crochê e aqui colar de crochê, que a gente saiu na frente com esses colares
de crochê, né, que estourou no mercado, e agora os chinês entrou é uma tragédia está
145
vendendo assim de bolinhas as feiras, sempre que a gente vai eles estão fotografando
e a gente tem que mandar embora, mas eles não têm jeito, eles pegam um catálogo,
mandam buscar, compram de quem pega e isso é uma tristeza para gente, eles não criam
nada e só copiam.” (Antonieta Contini, SEBRAE)
A Gerente lamenta a presença dos “chineses” nas grandes feiras internacionais que,
segundo ela, fotografam tudo e copiam seus produtos, oferecendo similares, pouco tempo
depois, de menor qualidade e com preços muito atrativos. Além da Flor do Cerrado,
Antonieta Contini destaca os colares de crochê produzidos principalmente pelas artesãs da
grife Apoena.
“Foi um grupo que a gente estava com acompanhamento de uma consultora, que a
gente contratou e essa consultora depois que esse grupo cresceu, ela é muito habilidosa,
ela resolveu assumir um grupo e criou uma grife chamada “Apoena” e fez muito sucesso,
então quando a gente vai para feira sempre chega o pessoal da TV de novela pedindo o
produto para a gente colocar na ambientação no uso das atrizes né, então aconteceu
bastante nessa novela das oito aqueles vestidinho que aquela menina usa , a Vitória,
alguns, nem todos né, e também na novela BANG-BANG ,aquelas bonequinhas que
apareciam no início era do Varjão.” (Antonieta Contini, SEBRAE)
Ela conta que o SEBRAE costuma contratar “consultores de design” para darem um
atendimento aos grupos e aprimorar o desenho e o acabamento do artesanato, dando um
enfoque mais voltado para o mercado consumidor. O consultor de design, ou simplesmente
o “designer”, como é conhecido, será tratado no próximo capítulo.
Quando questionada sobre as “parcerias” e os demais envolvidos no projeto, e sobre
a origem dos recursos empregados, a resposta de Antonieta Contini remetia sempre ao
website institucional, como fonte de toda a informação de que eu necessitava. Assim as
informações do website passaram a fazer parte do material de campo, e não resta dúvida de
146
sua relevância e pertinência para a tese. Emergia dos discursos o termo “parcerias”
reiteradamente, assim como as referências aos websites.
Ao introduzir o discurso institucional do SEBRAE, conforme ele se apresenta no
sítio, visando aprofundar a visão dessa instituição e trazer à luz da análise seus próprios
termos, me deparei com dois websites complementares e necessários para a tarefa de
análise.
O conteúdo dos sítios foi recortado de acordo com a pertinência dos temas. O
website acrescenta detalhes sobre o projeto de desenvolvimento local explicado por
Antonieta Contini, reiterando a sua fala. Intitulado “parceiro do seu crescimento”, apresenta
a proposta de trabalho do SEBRAE do Distrito Federal, que é complementada pelas
informações do website do SEBRAE Nacional, de caráter mais geral.
No capítulo seguinte discuto o aparente paradoxo do website, que existe como
realidade virtual, mas sustenta informações institucionais que funcionam como garantia da
autoridade do falante, como lastro do valor de verdade das informações. Discuto ainda a
noção de “parcerias”, mencionada pela Gerente e termo recorrente entre as entrevistadas.
147
Capítulo 3 – “O Parceiro do Seu Crescimento!”
148
Capítulo 3. O “Parceiro do seu crescimento!”
16
Segundo o sítio da organização, “O SEBRAE, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro
e Pequenas Empresas, é um órgão de parceria público-privada que tem como principal
objetivo incentivar e apoiar a criação de micro e pequenas empresas”. Cumpre esclarecer
como se constitui essa parceria entre o Estado e o Setor Privado, para que se consiga
entender os motivos que levam um órgão especialmente voltado para o Mercado a se
ocupar de temas como a promoção do desenvolvimento e a investir na geração de empregos
e renda. Em última análise, o que tem o SEBRAE que se faz presente na cena das políticas
públicas para o artesanato não apenas em Brasília, mas em todo o Brasil?
A noção de “parceria” surge desde o primeiro contato com essa instituição. Na
própria definição do SEBRAE, o termo se faz presente quando se descreve como esse
órgão se constitui. A importância das “parcerias” é repetida inúmeras vezes, tanto dentro do
SEBRAE como pelas artesãs, no ambiente dos grupos de trabalho, conforme procuro
mostrar aqui. Tomando como ponto de partida o website, o SEBRAE se define como
“parceiro do crescimento”.
“Esse é o trabalho que a gente vem desenvolvendo no SEBRAE e para isso a gente
busca parceria, que senão o SEBRAE não daria conta, a demanda cada vez maior e é
sempre espontânea. Nunca o SEBRAE vai numa comunidade estimular nada. O que o
SEBRAE faz, o que eu estimulei foi o primeiro, chamado Pró- mulher, o resto foi demanda
espontânea e a demanda é constante e agente não tem dado conta de atender. Nós temos o
apoio do comitê SOS cidadania que desde o início foi meu grande parceiro, que o
funcionários do Banco do Brasil que nos ajudam a comprar uma máquina ou reformar a
16
O SEBRAE se define como “parceiro do crescimento” das micro e pequenas empresas. Todas as citações
desse capítulo foram recolhidas no sítio www.df.sebrae.com.br, em 20 de novembro de 2006.
149
cozinha. Eles tem também a alimentação alternativa, a gente entra com eles, para comprar
a matéria prima. Depois nós fizemos parceria com o governo local, a secretaria de
solidariedade, aquelas famílias que recebem benefícios do governo e também atualmente
nós estamos trabalhando com a secretária de inclusão social do ministério da ciência e
tecnologia que é um grande parceiro nosso atualmente.” (Antonieta Contini, SEBRAE)
A Gerente do SEBRAE menciona alguns dos “parceiros” que têm contribuído para
o projeto de desenvolvimento local, como o comitê SOS cidadania, formado por
funcionários do Banco do Brasil, entidade esta que também integra o Conselho
Deliberativo do SEBRAE.
Ainda segundo o website:
“Entidade Civil sem fins lucrativos, o SEBRAE passou a ser, após a reformulação
introduzida em 1990, um sistema de apoio ao desenvolvimento das micro e pequenas empresas,
cujo modelo difere daquele de entidades assemelhadas existentes em outros países. Isso se deve, em
especial, ao fato de ter, como seu órgão máximo de orientação, um Conselho Deliberativo
Nacional composto por representantes dos mais diversos tipos de instituições que, direta ou
indiretamente, podem contribuir de forma decisiva para o fortalecimento desse importante universo
do setor produtivo. Em outros países, entidades com objetivos semelhantes são conduzidas por
estruturas marcadamente estatais.” (SEBRAE)
Com propósitos que unem interesses público e privado, o SEBRAE se propõe a
promover o “desenvolvimento” de micro e pequenas empresas. O “desenvolvimento”,
nesse contexto, se refere à criação das empresas e ao aprimoramento das capacidades
necessárias para a sua gestão. O Conselho Deliberativo Nacional reúne representantes de
instituições que contribuem financeiramente para os projetos do SEBRAE.
O fato de o SEBRAE ser constituído por representantes do setor privado, além de
representantes do setor público, contribui para que a estrutura da instituição tenha um
150
formato empresarial, voltado para o mercado e o consumo, e como filosofia institucional os
princípios próprios da iniciativa privada. Caso fosse puramente estatal poderia ter
propósitos puramente sociais, ligados à geração de emprego e renda, por exemplo, o que
não é o caso. Por outro lado, o SEBRAE não é uma empresa, no sentido tradicional. Da sua
composição participam também representantes do poder público.
De acordo com o sítio do SEBRAE na Internet, “O Conselho Deliberativo Nacional
é constituído por representantes dos setores industrial, comercial, agrícola e de serviços, das
áreas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, e de instituições financeiras e de fomento
que operam linhas de crédito adequadas ao atendimento das necessidades do segmento. A
ligação do seu colegiado com o Governo Federal dá-se através de um conselheiro indicado
pela Secretaria Nacional de Economia, do Ministério da Economia, Fazenda e
Planejamento.”
Por ser uma instituição plural na sua composição, o SEBRAE responde a interesses
variados e apresenta uma pluralidade de visões que, por vezes, dificulta sua categorização
como instituição. Ao constituir-se em parceria público-privado, o SEBRAE é público e é
privado, mas, ao mesmo tempo, não é nem uma coisa nem outra. O sítio esclarece ainda
como a organização consegue atuar no Brasil inteiro:
“A partir de uma unidade central coordenadora, com sede em Brasília, o SEBRAE tem
atuação de caráter nacional, por intermédio de unidades vinculadas em todos os Estados e no
Distrito Federal, além de estruturas de atendimento existentes em várias cidades do interior.
(SEBRAE)
No website podem ser encontradas todas as informações sobre a constituição, a
distribuição de competências e a forma de organização e administração dessa instituição.
151
Dadas as peculiaridades do SEBRAE, o recurso ao website garante uma certa margem de
segurança aos próprios funcionários dessa instituição, que não se comprometem nem se
arriscam a explicar erroneamente algo que eles próprios não compreendem inteiramente,
dada a complexidade institucional dessa instituição. As unidades estaduais do SEBRAE
reproduzem a estrutura do SEBRAE nacional:
“Os SEBRAEs Estaduais também são orientados por um Conselho Deliberativo, cuja
composição guarda total identidade com aquela do organismo nacional, no sentido de ser
integrado por representantes dos mais diversos segmentos do setor produtivo privado e de
instituições creditícias, além do elemento de ligação com os governos locais. De cada um deles faz
parte, ainda, um representante do próprio SEBRAE Nacional. As unidades existentes nos Estados e
no Distrito Federal possuem personalidade jurídica própria, mas desenvolvem o mesmo tipo de
atendimento indicado a partir da orientação do Conselho Deliberativo Nacional.” (SEBRAE)
Esclarece-se, contudo, que “trata-se, entretanto, de uma uniformização apenas
filosófica, sendo respeitadas as particularidades de cada região.”
O SEBRAE do Distrito Federal, em particular, tem um Conselho Deliberativo
composto pelos seguintes órgãos:
Banco de Brasília S.A - BRB;
Banco do Brasil S.A.- BB;
Caixa Econômica Federal - CAIXA;
Companhia do Desenvolvimento do Planalto Central - CODEPLAN;
Federação das Associações Comerciais e Industriais do Distrito Federal - FACI/DF;
Federação das Indústrias do Distrito Federal - FIBRA;
Federação do Comércio do Distrito Federal - FECOMÉRCIO;
Federação da Agricultura e Pecuária do Distrito Federal - FAPE/DF;
152
Agência de Desenvolvimento Econômico e Comércio Exterior - ADECEX;
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE;
Universidade de Brasília – UnB.
A lista dos componentes do Conselho Deliberativo do SEBRAE do Distrito Federal
permite que se obtenha uma idéia um pouco mais precisa acerca da variedade de atores
sociais representados na Instituição. Entretanto, a quantidade de parcerias que essa
Instituição pode estabelecer permanece aberta.
O SEBRAE Nacional se define no website como uma “sociedade civil sem fins
lucrativos” e, não sendo uma empresa propriamente dita, seguiria as diretrizes ou
orientações de parceria das “Organizões da Sociedade Civil de Interesse Público”, também
conhecidas por sua sigla (OSCIPs). No próprio website o SEBRAE explica o que é uma
OSCIP e como se processa a “parceria”, fazendo referência à legislação que regulamenta o
tema.
17
Considero importante destacar o parágrafo que contém a definição formal e faz
referência à legislação que institui a “parceria”:
“O Termo de Parceria é uma das principais inovações da Lei das OSCIPs. Trata-se de um
novo instrumento jurídico criado pela Lei 9.790/99 (art. 9º) para a realização de parcerias
unicamente entre o Poder Público e a OSCIP para o fomento e execução de projetos. Em outras
palavras, o Termo de Parceria consolida um acordo de cooperação entre as partes e constitui uma
alternativa ao convênio para a realização de projetos entre OSCIPs e órgãos das três esferas de
governo, dispondo de procedimentos mais simples do que aqueles utilizados para a celebração de
um convênio.” (SEBRAE)
17
Conforme pode ser verificado em http://www.sebraemg.com.br/culturadacooperacao/oscip/02.htm
153
A partir das definições do website, podemos concluir que a “parceria”, nesse
contexto, seria o termo empregado para descrever a celebração de um convênio entre o
poder público e uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Entretanto,
durante o trabalho de campo foi possível constatar que o termo “parceria” é empregado
também com outros sentido, no uso cotidiano.
Entre as artesãs entrevistadas, a importância das parcerias” é apontada por todas as
líderes dos grupos como a solução através da qual elas conseguem realizar tudo o que
desejam, mesmo dispondo de poucos recursos financeiros. Percebe-se que nem sempre se
referem à transferência de recursos públicos, menos ainda à assinatura de convênios, mas
antes a um modo de proceder que substitui o recurso em si pelo alcance de objetivos
almejados.
“Esse negócio de você ter muito dinheiro, acumular e ficar guardando, não
precisa, você tem que ter pra fazer as coisas, e na vida o que você tem que ter:
PARCERIAS. Você pega ali, olha, quando tem a mão de todo mundo, esse patrimônio ele é
muito mais valioso, quando um com a mão ali, ele não tem energia, você perde muita.
Agora quando você pega um pouquinho de um e um pouquinho de outro, e você realiza
coisas, você não acredita que eu fiz isso tudo, né. Mas sozinho ninguém vai a lugar
nenhum. Não vai a lugar nenhum sozinho. Hoje eu falo que falta a PARCERIA, hoje você
vê, nós conquistamos tanto espaço que hoje nós temos um estilista trabalhando com a
gente, eu falo no geral, não estou falando nós, os designers, hoje, não existe uma
decoração que não existe um artesanato junto.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Conforme se pode observar, a noção de “parceria” é a primeira lição ensinada e
aprendida nos grupos de trabalho com artesanato. Transitar nesse universo de instituições
de promoção de políticas públicas e organizações não-governamentais, ou “organizações da
sociedade civil de interesse público”, pressupõe o domínio de um vocabulário específico,
154
cujo sentido pode ir se alargando de acordo com os diferentes contextos em que ele transita.
Conforme se pode concluir a partir do que se observou na primeira parte da tese, o primeiro
passo para ingressar nesse universo do artesanato brasiliense consiste basicamente em
aprender o jargão institucional, para poder em seguida fazer uso dele:
“Tem que ter um espaço maior para trabalhar com elas, como você vê está aqui na
minha sala, mas estamos brigando por um galpão que tem aqui no próprio meu terreno que
possa trazer mais mulheres para trabalhar conosco, mas para isso tem que construir o
galpão. Nós estamos buscando parcerias para que possa construir para que a gente possa
ajudar muito mais pessoas que precisam aqui dentro do Varjão.” (Maria Anita da Silva,
Varjão)
Nesse idioma, o termo “parceria” é recorrente, tanto quando se fala em necessidades
a serem atendidas, quanto quando se quer fazer referência aos recursos públicos ou
privados que deverão ser empregados. O termo parceria remete a um tipo de cooperação em
que a identidade do “parceiro” pode permanecer desconhecida, quando mencionada a
terceiros, como um recurso discursivo eficiente para garantir a obscuridade dos envolvidos
numa negociação que favorece os dois lados.
A “parceria” remete antes à eficácia na obtenção dos propósitos almejados do que
ao instrumento por meio do qual eles são alcançados. Visa ao resultado obtido em termos
de eficácia, independentemente do fato de que os convênios entre órgãos do governo e
setores da sociedade civil organizada sejam firmados com base numa regulamentação que
assim o denomina.
Não é meu propósito aqui examinar toda a literatura sobre o assunto ou fazer
revisão teórica sobre a prática ou o formato possível das parcerias, mas considero
155
fundamental examinar o emprego do termo nos diferentes usos e acepções que foram
encontrados em campo, ou seja, no sentido êmico.
A antropóloga Carla Teixeira (2005) havia chamado a atenção para a luta pela
definição do significado do termo “parceria”, que pode variar grandemente de acordo com
o contexto em que ele é empregado, apontando a necessidade de se lançar um novo olhar
para o tema. Ela chama a atenção para o caráter de efemeridade que está ligado aos usos
mais recentes do termo, condicionando sua interpretação a uma noção de evento, sem a
necessidade do compartilhamento de valores ou objetivos de médio ou longo prazo.
A autora ressalta a ligação do termo “parceria” a um campo semântico que incluiria
também os termos “solidariedade”, “ajuda” e “doação”. De um ponto de vista pragmático,
esse seria justamente o efeito material visível e claramente perceptível de um arranjo de
“parceria”, o fato de que ele resulta em algo que beneficia a comunidade. Os beneficiários
das políticas públicas não estão levando em conta e nem lhes interessa saber por meio de
que instrumentos jurídicos podem estar sendo negociados acordos que teriam finalidade de
supostamente atender às demandas da “comunidade”.
O que importa para as pessoas e se destaca nesse processo de interação social entre
“comunidade” e “agentes políticos” é antes a eficácia dos resultados obtidos pela dita
“parceria”, no sentido da obtenção de melhorias tais como a construção de um novo galpão
de trabalho ou aquisição de uma sala nova, um curso de formação ou o aprimoramento de
técnicas de trabalho, do que o processo por meio do qual isso poderá se realizar.
No discurso das entrevistadas, de forma semelhante, a “parceria” funciona como
símbolo de um conjunto de operações que podem ser executadas nas relações entre a
comunidade e a instituição apoiadora, o SEBRAE, que resultaria na obtenção de resultados
materiais que solucionariam os problemas da comunidade, ou seja, que representariam um
156
tipo de “cura”. O apelo à “parceria” pode ser então melhor compreendido se for tomado
como símbolo de um conjunto de procedimentos, mais ou menos conhecidos e familiares,
que geram resultados práticos tangíveis.
Tomando a noção de parceria como recurso simbólico, é útil resgatar a teoria de
Mary Douglas sobre a relação entre o simbólico e a vida social. Douglas (1970) elabora
uma teoria derivada de investigações sociolingüísticas, na qual concebe a existência de
duas formas discursivas que seriam contingências mesmo da estrutura social. Douglas
aplica essa teoria à análise de rituais, tratando-os como formas discursivas, e analisando o
ritual como uma forma de comunicação, que transmite cultura e é gerada nas relações
sociais. Ela admite o uso de um código restrito na linguagem, que não favorece a discussão
do significado dos termos empregados, por oposição a um código mais amplo, que
permitiria a elucidação dos termos. O primeiro seria empregado para tratar com aqueles
sujeitos que pertencem ao mesmo grupo social e dispensaria a elucidação dos termos.
“Speech tends to be treated as a datum, something taken for granted.” (Douglas, 1970: 21).
Trata-se de uma obra inserida no chamado “giro lingüístico” das ciências sociais
que chama a atenção pela ênfase conferida à busca do significado das formas simbólicas
nas suas correspondências com as formas sociais. Trazendo a teoria de Douglas para pensar
o emprego do termo “parceria”, conforme ele é encontrado em campo, podemos afirmar
que ele está sendo empregado como portador de um significado fixo, que não está para ser
esclarecido nem negociado, pertencendo portanto à categoria de discurso que ela
classificaria como código restrito. Tratado como um código restrito, o termo “parceria”
figuraria como uma forma simbólica cujos significados são implícitos, locais e particulares.
Serviria à afirmação da ordem social e contribuiria para a função de manutenção da
solidariedade do grupo, comparavelmente à religião.
157
Dentro do universo do artesanato de Brasília, o termo “parceria” figuraria como um
dos símbolos dessa cosmologia, nos termos de Douglas, sendo empregado não para
descrever o ato de cooperação entre dois agentes, mas como categoria do entendimento da
própria forma social local no seu relacionamento com instituições como o SEBRAE.
Segundo Mary Douglas e Baron Isherwood:
“Um membro de uma tribo, com tantos rebanhos quantos quiser não se sente
pobre. Pode carecer de eletricidade e de transporte aéreo, e daí? No universo que conhece,
se tiver acesso a toda informação necessária e puder difundir suas opiniões, não é pobre. A
medida correta da pobreza, nesse caso, não são as posses, mas o envolvimento social.”
(DOUGLAS E ISHERWOOD, 2004: 34, 35)
A “parceria” figura aqui antes como medida da capacidade de integração social dos
indivíduos do que como indicação de pobreza. A pobreza poderia ser interpretada então
como uma incapacidade de estabelecer relações sociais e incapacidade de interagir
significativamente na sociedade.
Retomando a análise do conteúdo do website, sobre o montante dos recursos
administrados pelo SEBRAE Nacional e distribuído para as suas unidades estaduais temos
que:
“O SEBRAE é uma sociedade civil sem fins lucrativos, que tem o objetivo de promover a
competitividade e o desenvolvimento sustentável dos empreendimentos de micro e pequeno portes.
Sua receita principal advém da contribuição das empresas, em média 0,6% sobre a folha de
pagamento, recolhida pelo INSS. Do total dessa contribuição, que gira em torno de R$ 840
milhões [anuais], 65% são aplicados diretamente às programações orçamentárias das Unidades
Estaduais. São os chamados recursos ordinários.”(SEBRAE)
158
Os dados foram considerados relevantes porque informam sobre a origem dos
recursos dessa instituição, bem como sobre sua distribuição entre as unidades estaduais
pelo país. Ainda de acordo com o sítio, “o SEBRAE atua no Brasil inteiro, com unidades
nos 26 estados e no Distrito Federal, que formam um sistema de ampla capilaridade, com
aproximadamente 600 pontos de atendimento, do extremo Norte ao extremo Sul do País.”
Para atingir um público amplo e especialmente aquela parcela da população que
atua no setor informal da economia, a instituição foi organizada na forma de postos de
atendimento, de forma a descentralizar o acesso aos seus serviços. O website esclarece que
o grande número de postos de atendimento e sua distribuição pelo país respondem à
necessidade de atender a uma clientela numerosa e economicamente representativa:
“Tamanha capilaridade pode dar a impressão de tratar-se de uma instituição de grande
porte. Mas, diante do universo brasileiro das micro e pequenas empresas, essa impressão é falsa.
Veja os dados:
- dados do IBGE mostram que, em 2002, o número de micro e pequenas empresas no setor
formal urbano (excluindo setor governo) 4,88 milhões, representando 99,2% do total de 4,918
milhões de empresas
- ainda no setor formal as MPES empregam 56,1% da força de trabalho que atua no setor
formal urbano (excluindo os empregados governamentais)
- na economia informal, as MPEs representam 9,5 milhões de empreendimentos,
envolvendo trabalhadores por conta própria e pequenos empregadores com 1 a 5 empregados
(segundo a pesquisa ECINF, de 1997, do IBGE)
- no meio rural, as MPEs representam 4,1 milhões de proprietários familiares, com até 4
módulos rurais (de acordo com o INCRA).”
“Esse é o mundo legalizado. Juntem-se a ele 9,5 milhões de empresas informais, segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E não estão incluídas as quatro milhões
de pequenas propriedades rurais de agricultura familiar.” (SEBRAE)
159
Ainda segundo o SEBRAE:
As MPEs [micro e pequenas empresas] são, atualmente, o grande fator gerador de
ocupação, porque a grande empresa, pela necessidade de aumentar a produtividade, exigência da
globalização, automatiza-se cada vez mais e, assim, emprega menos. O papel do SEBRAE,
portanto, é estratégico para o desenvolvimento do país, promover o desenvolvimento das empresas
de micro e pequeno portes.” (SEBRAE)
O SEBRAE no universo do trabalho informal uma grande área de atuação para
seus projetos de desenvolvimento e o “apoio” oferecido surge como uma forma de inserir
esse público aparentemente disperso numa rede estruturada de relações, enquadrando de
alguma forma esse setor informal numa das categorias previamente estabelecidas pela
instituição. Ao “apoiar”, ajudar e proteger, ao mesmo tempo o SEBRAE exerce seu poder
sobre o universo informal, estabelecendo o idioma em que ocorrem as conversas e
definindo ele próprio os termos da ajuda.
Segundo Erving Goffman (1986), a sociedade estabelece as categorias a partir das
quais classifica os indivíduos e também define o conjunto de atributos que os indivíduos
têm de preencher para fazer parte delas. As interações sociais seriam baseadas em tais
categorias e no conjunto das expectativas dos atores sociais sobre os atributos dos
indivíduos que se encaixam nelas. As categorias empregadas pelo SEBRAE para definição
dos beneficiários de suas políticas são bem claras, conforme se pode observar no website da
instituição. O propósito é apoiar o empreendedorismo e a criação de micro e pequenas
empresas. Então ficamos nos perguntando como é que uma instituição com essa finalidade
está promovendo políticas públicas de incentivo ao artesanato e atuando visivelmente no
160
setor informal? E ainda, como esses procedimentos se encaixam no quadro geral das suas
atividades?
Aplicando a visão de Goffman às estruturas que fundamentam a prática burocrática,
restaria ainda a ser observado o outro lado da moeda, que diz respeito aos usos maleáveis
dessas categorias executados pelos indivíduos que estão lidando com elas no dia a dia, ou
seja, o ponto de vista da pragmática, interessada nos significados simbólicos das categorias
construídas tal como são atualizadas pelos atores no uso cotidiano.
Essa dimensão se revela na fala dos próprios atores sobre como são empregadas as
categorias definidas pela instituição. Quando Antonieta Contini explica sua metodologia de
trabalho e seus objetivos, ela emprega os termos dados pelo SEBRAE, ao mesmo tempo em
que explica como eles são entendidos, revelando os significados simbólicos dentro daquele
contexto específico em que são aplicadas categorias mais amplas.
Ela explica que a metodologia parte da “identificação das potencialidades” do
grupo, mas “muitas vezes elas não sabem fazer nada”, ou seja, não trazem para o SEBRAE
aquelas práticas artesanais tradicionais, que são descritas como o ponto de partida de todo o
trabalho de “resgate” que seria feito em seguida. Nesse caso, a “identificação das
potencialidades” é entendida como uma negociação com o grupo de mulheres sobre o tipo
de trabalho que elas estariam dispostas a “aprender” a fazer, o que se verifica ao serem em
seguida encaminhadas para a etapa de “capacitação”.
Cada um dos termos da metodologia descrita por Antonieta Contini se presta a um
leque de interpretações possíveis, na análise dos significados simbólicos dos termos desse
discurso, empregado no intuito de adequar o programa às circunstâncias encontradas em
campo, servindo a diversas aplicações práticas possíveis dessas interpretações.
161
Michael Herzfeld (1992) propõe análise dos significados simbólicos dos usos de
categorias de classificação na prática burocrática da administração de uma cidade na
Grécia. Esse autor salienta a importância de se observar os usos da retórica para além das
categorias de classificação, como condição mesma da possibilidade de negociação entre as
formas fixadas em palavras e o seu uso aplicado aos casos concretos: Rhetoric is not simply
the pure art of classification. It is the practice of symbolic action – a process in which fixed form is
often not only the mask, but even the enabling condition, for labile meaning(HERZFELD,1992:
69)
Ele define essa manipulação por meio da retórica das categorias de classificação que
se apresentam fixadas em palavras como a prática da ação simbólica mesma, que garante a
possibilidade das manobras no campo simbólico.
Podemos extrapolar o pensamento de Herzfeld e afirmar que a prática dos atores na
manipulação das categorias e formas de classificação da burocracia por meio da
manipulação dos significados e da prática da retórica promove a reatualização das
categorias em si, uma vez que elas são reificadas pela referência que se faz a elas, sendo
continuamente vivificadas e atualizadas, permitindo novas interpretações que venham se
juntar a essas no futuro.
Segundo informação colhida no sítio institucional do SEBRAE,
O SEBRAE trabalha desde 1972 pelo desenvolvimento sustentável das empresas de
pequeno porte. Para isso, a entidade promove cursos de capacitação, facilita o acesso a serviços
financeiros, estimula a cooperação entre as empresas, organiza feiras e rodadas de negócios e
incentiva o desenvolvimento de atividades que contribuem para a geração de emprego e renda. São
centenas de projetos gerenciados pelas Unidades de Negócios e de Gestão do SEBRAE.
(SEBRAE)
162
A relação entre conhecimento, reconhecimento e poder, apontada por Pierre
Bourdieu, nos oferece uma chave para a análise da relação do SEBRAE com os
beneficiários dos seus programas de treinamento:
As relações de comunicação são relações de poder que dependem, na forma e no
conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições)
envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir acumular
poder simbólico.” (BOURDIEU, 2000:11)
De acordo com Bourdieu, as diferentes classes estão envolvidas numa luta
simbólica pela imposição de uma definição específica do mundo social que esteja mais de
acordo com os seus interesses. Tal luta poderia ser travada diretamente ou por meio dos
especialistas da produção simbólica, que teriam o poder de impor instrumentos de
conhecimento e de expressão arbitrários. Nesse caso específico, os cursos e treinamentos do
SEBRAE concorrem para adequar o trabalho das mulheres ao modelo próprio dessa
instituição, adequando as artesãs ao formato de grupos de trabalho, e os grupos de trabalho
ao formato de associações, incentivando o empreendedorismo para que essas, talvez,
transformem-se em micro-empresas e assim por diante. Na atuação dos consultores,
especialistas no manejo de recursos simbólicos, pode ser percebida uma ão no sentido de
transformação do objeto artesanal que acompanharia a própria transformação da visão de
mundo que ocorre com a inserção das artesãs no universo do mercado consumidor.
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver
e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo, e deste modo, a acção
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente
163
daquilo que é obtido pela força, graças ao efeito específico da mobilização, só se exerce se
for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.” (BOURDIEU, 2000:14)
O “poder de constituir o dado pela enunciação”, o poder simbólico, pode ser
entendido como resultante da educação e da capacitação, que promove uma forma de
expressão do indivíduo no mundo, criando ao mesmo tempo forma e conteúdo, ou seja,
capacitando-o para atuar dentro de um modelo previsto de atuação. E conforme ele explica,
esse efeito ocorre graças ao caráter mobilizador dos cursos e treinamentos, e do
reconhecimento daquele poder por parte dos beneficiários.
Bourdieu se concentra nos instrumentos de imposição do poder simbólico, e
especialmente no processo de construção das crenças, na educação, reprodução e
inculcação das capacidade de se colocar no mundo, por meio da adoção de visões de mundo
marcadas por posições privilegiadas dentro do campo de poder. Entretanto, escapa ao
modelo proposto por ele aqueles casos em que o indivíduo seleciona alguns aspectos da sua
adesão à visão de mundo dominante, de acordo com o seu interesse pessoal, e a própria
manipulação individual do conhecimento quando ele procura empregar esse capital em
proveito próprio. Essa dimensão da negociação do sentido no campo das disputas se mostra
sempre presente e reveladora sobre a ação individual visando o beneficio próprio. Ao longo
deste trabalho, procuro mostrar como se dá essa negociação.
Recorrendo novamente ao conteúdo do website, temos que
O Sistema SEBRAE busca criar, por vários mecanismos (capacitação,
mobilização, disseminação do empreendedorismo e do associativismo, entre outros), um
ambiente radicalmente favorável à sustentabilidade e ampliação dos pequenos negócios.
Esse ambiente passa por menor carga tributária, menos burocracia, acesso ao crédito, à
164
tecnologia e ao conhecimento. A instituição opera justamente para atenuar esses cinco
grandes gargalos.” (SEBRAE)
Nesse sentido, o SEBRAE instituiu áreas prioritárias de ão que visam atender aos
fatores por eles identificados como obstáculos à criação de micro e pequenas empresas e
voltou-se a apoiar o setor informal, numa tentativa de promover a inserção. Uma olhada na
“missão” dessa instituição mostra-se reveladora dos valores e crenças que fazem parte
desse universo.
A “competitividade” destaca-se como uma das grandes metas e remete aos valores
da economia de mercado liberal.
“Missão: Promover a competitividade e o desenvolvimento sustentável das micro
e pequenas empresas e fomentar o empreendedorismo.”
Por outro lado, em seguida aparece outra grande meta - o “desenvolvimento
sustentável” – que remete a um outro universo, marcado pelos princípios do comércio justo
e sustentável, defendido no âmbito da Organização Mundial do Comércio, e do direito ao
desenvolvimento, no contexto da Organização das Nações Unidas. Esse conceito, aliás, de
desenvolvimento sustentável, foi incorporado pelo discurso dos países em
desenvolvimento, e do Brasil em especial, com o objetivo de atender às preocupações
ambientais dos países desenvolvidos com a preservação do meio-ambiente (leia-se “com
ecossistemas encontrados sobretudo nos países em desenvolvimento”), sem descuidar do
interesse principal dos países pobres em promover o desenvolvimento econômico e social.
Trata-se, portanto, de conceito síntese, hoje de aceitação universal, que, assim como o de
165
democracia, pode ser operacionalizado nos mais diferentes contextos, sempre, porém,
remetendo a valores associados ao que é politicamente correto e socialmente justo.
Tomando como foco ainda a missão do SEBRAE, percebemos que o apoio às
atividades artesanais que essa instituição promove se enquadra no seu propósito de
“fomentar o empreendedorismo”, e como conseqüência natural conduziria à criação de
micro empresas, tal como ocorreu com o grupo de produção Flor do Cerrado.
166
Capítulo 4 – Artesanato, Moda e Design
167
Capítulo 4. Artesanato, Moda e Design
Neste quarto capítulo, procuro analisar e discutir o papel do consultor de design
na sua relação com as diversas instâncias envolvidas com o trabalho das artesãs: (1) o
SEBRAE, como proponente da iniciativa e organizador de atividades, seja para formação
de grupos de trabalho, seja para capacitação ou treinamento, (2) as mulheres, as produtoras
em si do objeto final de consumo, vinculadas ou não ao SEBRAE, e (3) o mercado
consumidor de moda e design, entidade abstrata, no qual o designer seria um especialista e
consequentemente torna-se um representante, já que mostra-se capaz de atuar e falar em seu
nome.
O consultor figura como intermediário entre as práticas tradicionais de produção
local e o mercado consumidor, cujas exigências estabelecem parâmetros globais de
qualidade, e como promotor da identidade local, já que muitas vezes representa os objetivos
do órgão propositor junto aos grupos, na comunidade. O seu papel é de grande importância,
uma vez que o designer dialoga com todos os atores envolvidos, e ele próprio transita em
cada uma das instâncias do processo, como se transitasse entre diferentes mundos.
As costureiras do Varjão se mostraram divididas com relação ao designer. Ao
mesmo tempo em que afirmam sua preferência por continuarem fazendo o artesanato da
forma como sempre fizeram, seguindo os modelos tradicionais de bonecas de pano, fuxico
e patchwork, elas reclamam que o SEBRAE deixou de mandar um consultor para criar
novos produtos para elas, uma de suas principais necessidades para conseguirem melhores
vendas e a continuidade do sucesso do grupo.
168
“Daí depois o SEBRAE conformou de dar os cursos para gente, o que nunca
trouxe foi designer para gente, desde o começo a gente continua copiando as mesmas
idéias, quando a gente vai em algum lugar e alguma coisa diferente a gente faz mais ou
menos parecido. No nosso caso aqui do Art Varjão, eu me reuni com as meninas e falei
para elas, olha vocês têm que por na cabeça que vocês não são umas pessoas
principiantes, já passou, o que a gente está precisando aqui hoje é de um curso de
patchwork avançado e não essas coisinhas de mão, coisinhas de mão acabou. Isso é de
uma época muito longe e gente acorda! A gente está longe, não podemos ficar parado
esperando pelo SEBRAE, acordem para isso! Tanto que agora em janeiro eu não vou pedir
curso, não, o curso terminou sexta-feira aqui e passou três meses. Começou embaixo,
daí o espaço não serviu mais, daí eu trouxe ele para e montei aqui. Eu morava aqui,
depois me mudei para lá e montei aqui e agora aqui é nosso espaço. A gente trabalha aqui,
as meninas trabalham aqui, o curso também era aqui, três vezes por semana e eu falei para
elas que agora eu não vou mais pedir curso não, ou o SEBRAE um designer para gente
ou nós não queremos saber mais do SEBRAE, para quê? Não resolve nada. Até atrapalha,
porque em vez de eu chegar aqui de manhã e produzir, fazer para vender, nós estamos
fazendo para o SEBRAE, que não tem retorno, retorno nenhum para nós”. (Maria da
Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Maria da Guia observa que o trabalho que costumam fazer poderia ser melhorado
com a intervenção de um designer, e sabe que o SEBRAE costuma enviar consultores para
os grupos que apóia. Ela se mostra inteirada sobre os procedimentos da “metodologia” de
trabalho daquela instituição. Embora muitas participantes do seu grupo afirmem preferir
executar um trabalho mais “tradicional”, sem intervenção nenhuma de fora, ela e algumas
outras do grupo acreditam que pode haver vantagens em termos de aperfeiçoamento do
produto final, com conseqüente aumento das vendas. Ela se mostrou insatisfeita com o
retorno financeiro da comercialização dos produtos pelo SEBRAE, então eu perguntei se
isso tinha sido conversado com a responsável pelo artesanato no SEBRAE, Antonieta
Contini.
169
“Não, toda vez que a mulher vem aqui eu não estou , vem de surpresa e eu estou no
trabalho e não consigo pegar a mulher porque eu queria falar isso para ela, mas eu estou
no trabalho. Já botei as cartas na mesa: ou vocês dão um professor, se vocês quiserem que
a gente e tal, se quer fazer bonito nós vamos fazer, mas tem uma coisa, a gente quer
oficina de patchwork, a gente quer uma costureira profissional que vem de fora, que essas
costureiras assim como eu e outras que tem por ai não vale a pena mais para a gente, não
é isso que a gente quer, passamos dessa fase. A gente quer uma coisa que a gente possa
chegar em qualquer vitrine e falar esse aqui é do Varjão, as meninas do Varjão que
fizeram, porque não pode ser um negócio remendado assim, não é isso que a gente quer.”
(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Maria da Guia mostra uma certa tensão entre as expectativas do grupo de mulheres
da Vila Varjão e a proposta de apoio do SEBRAE para elas, na forma de material de
trabalho, cursos de qualificação profissional e especialmente em relação ao
desenvolvimento da identificação do produto artesanal com o local, conforme é proposto
pelo SEBRAE. A artesã salienta que gostaria de chegar numa vitrine e ver um produto feito
por elas que “tenha a cara do Varjão”. Para isso, ela observa que precisam da atuação de
um designer enviado pelo SEBRAE, porque, de outra forma, as costureiras seguiriam
atendendo apenas a encomendas, fazendo de acordo com a solicitação dos clientes, sem
haver uma maior identificação entre o produto artesanal realizado e as pessoas que o
fizeram. Este seria então, no seu entender, o papel do designer: auxiliar na construção de
uma identificação entre o local de produção, o Varjão, e o produto em si, as bonecas e
colchas.
“Daí eu pedi um espaço lá para terminar o curso, cedeu o espaço e
terminaram o curso, mas está tudo lá o trabalho assim que foi feito. O material que sobrou,
170
agulha, linha, tesoura, está tudo esperando o próximo curso, mas eu vou ver o que eu
posso fazer, porque eu gostaria que fosse uma designer e não mais curso de mão, a não ser
que seja, pode até ter curso de mão sim, mas para outras mulheres. Para quem está
começando, mas para nós aqui que já fazemos, não é isso que a gente quer. Não adianta,
isso para nós não serve, é para atrapalhar!” (Maria da Guia Barros de Oliveira,
Varjão)
A artesã do Varjão desabafa sobre o desânimo que surge de tempos em tempos face
às dificuldades, que muitas vezes até lhe tiram o sono à noite, tentando descobrir o que vão
fazer com o material de que dispõem, como vão criar novos produtos. Ela acredita que o
maior obstáculo ao sucesso do grupo é a falta de criatividade das mulheres do Varjão e a
necessidade de um “consultor de designque desenvolva um produto diferenciado para
elas.
“A gente tem um monte de retalho dentro e está ai sem ninguém usar, eu fui na
casa de todo mundo e disse - vão em casa pegar porque eu não vou ficar com esses
retalhos em casa e agora vamos todo mundo dividir, todo mundo agora que quer fazer
alguma coisa, inventem o que quiserem fazer que a gente não está tendo designer mesmo.”
(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
As costureiras do Varjão, quando estão produzindo um trabalho, quando se
propõem a fazer uma colcha ou começar um projeto novo, demonstram certa preocupação
de fazer alguma coisa que contenha uma identificação local, uma referência, que tenha
alguma marca, mas isso ainda está sendo debatido dentro do grupo e as opiniões das
costureiras divergem bastante sobre isso.
171
“A gente pensou muito sobre isso, mas a gente não conseguiu ainda fazer essa
marca do Varjão, que a gente estava pensando. Quem ia conseguir fazer essa marca do
Varjão para gente seria o SEBRAE, que a gente não conseguiu de jeito nenhum.
Tanto que hoje em dia a gente continua com praticamente as mesmas coisas que
começamos, essas margaridas aplicadas, quem veio dar o curso ela trouxe desenho
diferente, mas a técnica é a mesma, as bolsas são a mesma coisa. Agora que eu aprendi um
bordadinho, eu fiquei pensando, ao invés de ficar tentando, ficar fazendo um negócio desse
muito mais difícil, vamos bordar isso aqui. A gente borda tudo na bolsa, a gente borda e
coloca o mesmo fuxicão e aí dá uma cara diferente assim para as bolsas e sai todas. Agora
as bolsas você faz, pode fazer dez, quinze ou quantas for, em um mês não tem mais não,
vende tudo e eu só não fico só com bolsas” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
As artesãs experimentam na prática, a partir da sua participação em feiras e junto ao
SEBRAE, que o artesanato encontra mercado e tem vendido muito bem, tem grande
aceitação. Percebem que existe nesse campo uma oportunidade de profissionalização para
as mulheres, que não depende de muitos recursos para ser iniciada, e pode gerar renda e
promover mudanças. Entretanto, encontram dificuldade de articulação em torno de um
projeto único, dispersando as atenções, e recorrem ao SEBRAE em busca de um consultor
que possa promover uma maior integração, com foco na diferenciação do produto.
“A gente faz e como a gente tem etiqueta, até coloco, é assim “Art Varjão”, tem
telefone e tem tudo e aí vai com etiqueta e tudo e mando para evitar esse negócio de chegar
e alguém dizer que não é nosso. E pode ter alguém que vai dizer simplesmente não é de
vocês. É nosso e está aqui etiquetado, tem como a gente provar que é nosso. Mas existe
esse tipo de coisa e até às vezes eu penso que sou egoísta assim de não querer fazer para
alguém revender, mas eu não sei se eu estou sendo egoísta, já consultei outras pessoas,
psicóloga e tudo e eles falam que não, que eu estou certa pois é meu carro-chefe e se eu
fizer isso e entregar aos outros e aí ?” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
172
No Varjão, muitas mulheres produzem em grupo e algumas ainda atendem a
encomendas de forma particular, vendendo seu trabalho para que sejam colocadas etiquetas
com outras marcas. Ha divergências dentro do grupo com relação a essa prática também, e
por esse motivo a artesã relata ter ido consultar a psicóloga que costuma orientar o grupo,
questionando-se sobre a lógica de preservação da autoria do trabalho, diante da
possibilidade de simplesmente entregá-lo “aos outros”. Subjaz ao discurso uma certa noção
de autenticidade do trabalho artesanal, revelada pela preocupação com a etiqueta de
identificação.
Segundo Michael Herzfeld (1992:62), Authenticity is a ritualistic system of
securing one’s place in the cosmos”. A autenticidade estaria não apenas na fixação de uma
etiqueta, mas especialmente nas características de confecção da obra, na crença de que um
modo específico de execução do trabalho resultaria numa ligação entre autor e obra, entre
sujeito e objeto. Diversos autores já trataram da questão da autenticidade no campo
cultural, tais como Richard Handler (1986), Orvar Lofgren (1989) e Eric Hobsbawn (1983).
A noção central que subjaz ao conceito de autenticidade é o caráter datado e contextual da
criação de objetos autênticos que supostamente teriam surgido de forma natural no seio do
povo.
A preocupação com a autenticidade poderia ser entendida, nesse sentido, mais com
o interesse na criação de um objeto autêntico do Varjão, do que com o reconhecimento da
autenticidade mesma daquilo que é produzido ali. Para tanto, as artesãs precisariam de
um consultor de design capaz de legitimar essa autenticidade, talvez capaz de reconhecer e
traduzir em elementos concretos algo que supostamente esteja ali. Essa seria mais uma
das habilidades mágicas de um designer, o poder de atestar a autenticidade do produto
artesanal local.
173
“o patchwork nosso, nosso patchwork porque a gente está com ele fora, todo
mundo quer é nosso patchwork, eu vejo patchwork agora um dia que eu estava na
exposição e muita gente tinha patchwork, mas não tinha nada a ver com o nosso e todo
mundo chegava e dizia assim - o de vocês é perfeito. E agora, o que eu posso fazer? Nada,
e todo mundo fica - ah como vocês fazem? E eu ensino, mas não adianta, por que que
fica assim? Ah, umas dizem - não isso aqui não é a mão, isso aqui é na máquina - eu falo é
na mão, se tu quiser que eu tire eu tiro para te mostrar , isso aqui é na mão mesmo, tudo na
mão isso aqui, molde e tudo um trabalho tremendo”. (Maria da Guia Barros de
Oliveira, Varjão)
As artesãs salientam a necessidade de um designer de criação para contribuir com o
aperfeiçoamento do trabalho, para emprestar dele a criatividade necessária para fazer um
produto diferenciado que venha a chamar atenção nas feiras e atrair os compradores. Ela
identifica qualidade próprias do seu trabalho de patchwork, como o bom acabamento e o
aspecto final das costuras, que faria lembrar costura feita à máquina de tão parelha, embora
tenha o valor fundamental de ser feita à mão.
“Vamos lá, façam e inventem e vamos levar para vender porque vender, vende,
porque a gente sabe que vende, artesanato é criação, é criatividade, não adianta vocês
acharem que não vende. Aí eu faço uma coisa da minha cabeça, aí ela tá achando feio ,mas
quando eu chego na frente tem alguém que acha aquilo maravilhoso e que leva pelo
preço que você pedir, o que importa é a qualidade do trabalho, se tiver qualidade sai,
agora não adianta também ser tudo tecidos maravilhosos, uma coisa maravilhosa e o
acabamento péssimo, que não sai.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Maria da Guia relata seus esforços em tentar incentivar a criatividade das mulheres
do seu grupo, mas confessa que o seu gosto pessoal não tem servido de parâmetro para as
174
criações. Percebe-se que a artesã não correspondência entre o julgamento do que seria
bonito ou feio, conforme o gosto do grupo de artesãs, e a expectativa do consumidor, que
pode “chegar lá na frente e achar maravilhoso”. Ao mesmo tempo, revela-se uma percepção
de que o tipo de pessoa que produz o artesanato talvez não seja o mesmo tipo de pessoa que
o consome. Conseqüentemente, ela salienta a importância do acabamento no trabalho,
como um dos diferenciais que garantiriam as vendas: “Acabamento é essencial, o acabamento
tem que ser perfeito, tu pode correr atrás de tudo, mas se no final da peça não tiver o acabamento
perfeito você não fez nada.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Nas entrevistas realizadas no Varjão encontraram-se mais menções à necessidade de
um consultor de design para o aperfeiçoamento do produto, precisamente porque estão
trabalhando sem esse acompanhamento. As mulheres que não estão trabalhando com o
designer conseguem precisar melhor a diferença que elas acreditam que a consultoria desse
profissional exerceria no seu trabalho. Aquelas que estão se beneficiando da consultoria do
designer limitam-se a expressar sua aprovação ao seu trabalho por meio de reiterados
elogios tanto à pessoa quanto ao trabalho desenvolvido pelo designer.
Nos outros dois grupos, tanto entre as Bordadeiras de Taguatinga quanto entre as
artesãs da Flor do Cerrado, a presença do designer foi mencionada como “fundamental”
para o desenvolvimento do produto tal como ele é hoje, o que teria modificado totalmente a
relação com o consumidor e o acesso do produto artesanal ao mercado.
Glaucemária da Silva Ferreira, a Gal, líder das Bordadeiras de Taguatinga, afirma
que, se o SEBRAE deixasse de enviar o consultor de design para ajudá-las a desenvolver
novos produtos, elas mesmas pagariam do próprio bolso pela consultoria. Conforme
mostrei no capítulo 2 da primeira parte, Gal comenta a relação do designer com o grupo e a
importância dessa consultoria para a continuidade da participação das bordadeiras nas
175
grandes feiras de São Paulo e Rio de Janeiro, que lhes garantem encomendas para o ano
inteiro.
No relato de Roze sobre como foi o começo da Flor do Cerrado e de como
desenvolveram o tipo de produto que vendem, ela afirma que a intervenção de Renato teria
dado um novo visual para o seu trabalho com as folhas do cerrado. Ela conta que seguiu
confiante seu conselho, conforme relatado no capítulo 4, o que teria feito toda a diferença.
Uma vez discutida a percepção do papel do designer do ponto de vista das mulheres
dos grupos de trabalho, que, de um modo geral, afirmam necessitar de seu apoio ou mesmo
desejar a sua interferência na criação de um produto que obtenha maior aceitação junto ao
público consumidor, analiso em seguida o ponto de vista do SEBRAE sobre o design e os
pontos de vista dos próprios designers sobre seu trabalho.
176
Capítulo 5 – O Projeto Via Design
177
Capítulo 5. O Projeto Via Design
De acordo com o website do SEBRAE:
“O design não associa produtos e serviços com a qualidade, mas representa, em si, a
própria qualidade, aspecto fundamental na conquista da preferência do consumidor ou cliente, em
disputa num mercado cada vez mais exigente e globalizado. Em maior ou menor grau, dependendo
do caso, o design está presente em todos os processos gerados dentro da empresa. O design flui
desde a concepção de um novo produto, no planejamento, passando pela produção, pelo marketing
e muito intensamente na fase de comercialização. O design está nos produtos, nas embalagens, no
material promocional, nos padrões estéticos e ambientais, na identidade visual do produto e da
empresa. Pode determinar a escolha de materiais e modos de produção e, dessa forma, contribuir
para a redução de custos e maior adequação a exigências ambientais. [...] O design agrega valor a
produtos e serviços. Em outras palavras, significa mais lucro.” (SEBRAE)
A instituição oferece uma clara definição do design de acordo com os seus projetos
e propósitos. Dizer que “representa a própria qualidade” pode ser entendido como uma
certa forma de controle daquilo que é produzido e oferecido ao consumidor. De acordo com
o SEBRAE, o design não estaria presente apenas nos produtos finais, mas em todas as
etapas da produção, desde a concepção até a comercialização. Além disso, o que talvez seja
o mais impressionante, o design também ajudaria a adequar-se a “exigências ambientais”, o
que quer que isso signifique. As “exigências ambientais” mencionadas não são esclarecidas
em nenhuma parte do material consultado.
A Gerente de Desenvolvimento Local, Antonieta Contini, segue explicando sobre o
trabalho do designer, e recorre a exemplos com a exibição dos catálogos elaborados, o que
torna mais concreta a exposição. Sentadas nas cadeiras do seu escritório seguimos a
conversa observando as fotos contidas nos catálogos de moda.
178
“No momento nós estamos desenvolvendo um novo catálogo para o Fashion
Business”. Estamos com vinte e cinco grupos que algum entra com acessórios porque
faz parte da coleção, desenvolve-se uma coleção e aí tem um estilista, tem a produção, tem
um fotógrafo, tem a designer gráfica, é uma equipe que nós temos hoje para chegar num
trabalho. Outra coisa que eu queria colocar é que a gente atua em dois segmentos no
mercado: em São Paulo a gente atua com acessório de ambientação de interiores e no Rio
de Janeiro é acessórios de moda e alguma coisa de moda, mas é muito pouco, é acessório
né , então” (Antonieta Contini, SEBRAE)
Parte da tarefa do SEBRAE consiste na elaboração de catálogos para o lançamento
das novas coleções. Ao explicar sobre o processo de confecção dos catálogos, Antonieta
Contini revela o processo de articulação do artesanato com o projeto criativo do designer,
que resulta na criação de todo um conjunto de produtos, realizados por diversos grupos de
trabalho e centrados num conceito-chave, também chamado nesse meio de “inspiração”.
“Então esse é um dos catálogos que eu ia te mostrar, esse é o último que a gente
foi para São Paulo então nós estamos lançando um projeto junto com o Renato Imbroisi
chamado de “mão dupla”. O que é esse projeto? É um projeto caro, porque a gente quer
levar em cima de um caminhão, um caminhão fechado, todo equipado com design gráfico,
fotógrafo, designer de produto, com artesã, para esse Brasil afora essa oficina, já com foco
para venda. É pra ser itinerante e levar essa experiência para todo Brasil. A gente
precisava lançar a idéia e então o Renato fez uma coleção toda em cima do caminhoneiro,
então saiu e como o caminhoneiro, borracheiro gosta de folhinha de mulher pelada, né,
(risos) nós fizemos uma folhinha com elas, elas como as artistas, elas com seu produto,
você que é toda inspiração no caminhoneiro, corrente, as almofadas com sinais. Está
vendo alguns produtos todos inspirados no caminhão? Isso ai é uma coleção bem bonita,
cada um é de um grupo, da área rural, então até o crochê nos caminhões, coisa mais
bonita. E aqui o pessoal do Varjão, as bonequinhas, está vendo? Os caminhõezinhos, tudo
179
é do Varjão. Esse aqui, colares, vendeu bastante. Aqui um jogo de cozinha, colchas,
chaveiros, caminhões de criança...” (Antonieta Contini, SEBRAE)
Quando ela diz que o catálogo foi feito “em cima” do caminhoneiro, refere-se
justamente a essa “inspiração”, que deu unidade de estilo ao projeto.
“Esse já foi para feira e já vendemos bem. Aqui é o crochê, as cobras (risos) e aqui
o tapete que ela fez de roupa para a foto. Aqui as almofadas com detalhes do pneu. Então a
gente chamou atenção com esse projeto para buscar parcerias, porque precisamos do
caminhão, precisamos equipar o caminhão, precisamos de parcerias. Aqui é uma freirinha,
ela quis sair também. (risos) Ia sair com mais duas do grupo, então precisamos buscar
parceiros. Então você tem que fazer um certo barulho porque senão você não chama
atenção. Essa é a caminhoneira, a idéia é que ela mesma dirija o caminhão, ela e a mãe,
que a mãe dela também foi caminhoneira” (Antonieta Contini, SEBRAE)
Seguindo a exposição do próximo catálogo.
“Esse foi feito para o Fashion business” né, pra mostrar a moda Brasília e ainda
tinha Apoena, né, junto com a gente. Aí são todos estilistas. Esse que nós participamos foi a
primeira participação nossa lá, então trazendo tudo que elas fazem pra roupa, pra moda,
os bordados, a bolsinha, os retalhos, as flores feitas em tecidos, a aplicação feita em
tecidos que até hoje vende muito em toda feira, os bordados todos... (Antonieta Contini,
SEBRAE)
Antonieta Contini explica que são diversos grupos, mas não estão todos no mesmo
estágio de organização e nem apresentam a mesma capacidade de oferecer um produto bem
acabado e numa certa escala que permita atender às encomendas.
“São vários grupos, cada um faz um trabalho, um é bom no bordado, outro é bom
no crochê, outro é bom só faz folha, trabalha só com folhas do cerrado e a gente junta tudo
e lança moda...O estilista desenvolve uma coleção inspirada em tudo isso que elas já fazem
180
né. Olha, esse aqui também é de folha... O trabalho está sendo exportado bastante.”
(Antonieta Contini, SEBRAE)
O designer desempenha um papel importante na relação da produção artesanal com
o cenário do mundo da moda. Além de definir o formato final do produto artesanal e o tipo
de acabamento do produto, enfim, de transformá-lo de acordo com as expectativas dessa
entidade abstrata chamada “mercado”, ele também responde pela inserção desse produto no
universo da moda, onde poderá receber grande destaque.
O papel do designer se mostra central dentro do universo do artesanato de Brasília,
em que muitos grupos são apoiados pelo SEBRAE. Ele é o “especialista” em criação, em
critérios de gosto, estilo de vida, adequação aos desejos do consumidor, cuja vontade
interpreta e representa.
Antes de discutir o papel do designer, procuro elaborar uma breve revisão do
tratamento de algumas dessas questões na antropologia por autores clássicos, de forma a
relacionar alguns conceitos com as práticas observadas em campo, estabelecendo relações
entre observação e teorização.
Georg Simmel (1971 [1904]) aborda a moda e a relação entre indivíduo e sociedade
como formas de o indivíduo se colocar no mundo. A noção de estilo de vida, desenvolvida
posteriormente, está ligada justamente a esse aspecto teórico da ação do indivíduo diante
dos modelos sociais possíveis do ser. Simmel descreve tipos sociais que correspondem a
essas possibilidades do ser no mundo, representados como escolhas por um modo de vida,
que por sua vez excluem automaticamente outros modos de vida (SIMMEL, 1971[1908]).
O sujeito tenderia a atuar levando em conta as representações ou conteúdos
culturais, compartilhados socialmente, sobre o que pertence e o que não pertence ao tipo
181
característico por ele desempenhado, como um papel social. O que não significa que cada
indivíduo desempenhe em sua vida um único papel social, antes o contrário.
Em Thought Styles(1996), obra posterior aos clássicos “Natural Symbols(1970)
e How Institutions Think (1986), Mary Douglas analisa conflitos culturais acerca de
questões de gosto e estilo de vida. Sua abordagem aponta o consumo como governado pelo
protesto, de modo comunicacional. Sustenta que as seleções que o indivíduo faz são
escolhas por um tipo de sociedade na qual ele quer viver. Dessa forma, Douglas articula o
individual ao social. Para ela, a escolha dos objetos assinala uma adesão cultural: “to
understand shopping practices we need to trace standardized hates, which are much more
constant and more revealing than desire” (DOUGLAS, 1996:83)
Juntamente com Baron Isherwood, Douglas propõe uma análise do consumo que
busca abordá-lo como um sistema de comunicação. “Os bens fazem parte de um sistema
vivo de informações” [...] “Os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados
como cercas ou como pontes. (DOUGLAS E ISHERWOOD, 2004:34,36)
Também concebendo a cultura material como um sistema, Pierre Bourdieu (1979)
propõe analisá-lo como um conjunto de posições sociais a partir das quais os indivíduos se
manifestam. Tudo o que é comunicado diria respeito ao lugar de fala de cada um, numa
marca política da posição do falante/consumidor/indivíduo/ator social. Bourdieu aborda a
questão da moda e da criação de grifes, assim, como uma política de construção de crenças
sociais baseadas na utilização de imagens. Em “O Costureiro e sua Grife”(2002), Bourdieu
mostra como operam as grifes na sociedade capitalista e o campo de disputas por ele
engendrado, revelando a forma como é concebida a questão de consumo, como disputa por
poder, na teoria desse autor.
182
Procuro aprofundar essa análise buscando estabelecer relações específicas entre as
elaborações teóricas e o exame dos casos concretos observados em campo, para que a teoria
possa servir para iluminar o entendimento das práticas e quiçá com isso possam surgir
novas visões sobre o tema.
Entre os designers entrevistados durante o trabalho de campo, optou-se por
focalizar especificamente aqueles que estão diretamente ligados ao trabalho das artesãs dos
grupos apresentados. Além de Kátia Ferreira, da Apoena, também incluo o trabalho de
Renato Imbroisi, por considerar que o seu trabalho demonstra significativamente as
nuances e complexidades do papel do designer, na medida em que ele atuou com dois dos
grupos pesquisados.
Concentro o foco da análise na atuação de Kátia Ferreira e Renato Imbroisi
apenas, como forma de promover um aprofundamento maior na observação do papel do
designer no processo como um todo. Essa opção permite que tenhamos uma visão da
dimensão das possibilidades do designer na sociedade, para si mesmo e para os grupos com
quem trabalham, e o que representa as escolhas que fazem e o grau de comprometimento do
seu trabalho com outros atores envolvidos. Pela análise de mais de um caso, podemos
compreender melhor a dinâmica presente e como se relacionam esses diferentes atores.
Discuto em detalhes somente esses dois por considerar que a inclusão de outros
designers na análise poderia desviar o foco do trabalho com poucos benefícios para a
apreciação da relevância e significação do papel do designer. Assim, procuro apresentar
diferentes pontos de vista sobre o designer, reunindo a visão das artesãs, do SEBRAE e do
próprio designer falando sobre o seu trabalho. Acredito que diferentes olhares, provenientes
de locais de fala variados, podem revelar diferentes apreensões da realidade, que reunidas
contemplam melhor as complexidades do tema como ele se apresenta no mundo real.
183
Capítulo 6 – Apoena Fashion
184
Capítulo 6. Apoena Fashion
De acordo com Kátia Ferreira, a dona da grife, Apoena significa “aquela que
enxerga longe”, na língua tupi
18
. Ela conta que, assim como Dom Bosco sonhou que seria
construída uma cidade no local onde hoje se encontra Brasília, ela também teve um sonho
profético.
Kátia Ferreira conta que um dia sonhou com um grupo de índios adorando a
imagem de Nossa Senhora, às margens do rio Araguaia. Quando acordou, a estilista foi
pesquisar sobre esse sonho e tentar descobrir quem era aquela Santa. Descobriu que era
Nossa Senhora do Araguaia. Foi desse sonho que veio a idéia de procurar um nome no
dicionário de tupi-guarani. Ao abrir o dicionário ela deu de cara com o nome Apoena, como
que por milagre, e estava decidido qual seria o nome de sua grife.
A consultora de design Kátia Ferreira relata que, desde criança, sonhava em ser
estilista e criar moda feminina, porque sempre gostou muito de moda. Segundo me contou,
veio de Tocantins para Brasília ainda criança. Sua história é também a história das
inúmeras mulheres que vieram dos diversos estados do Brasil para buscar melhores
oportunidades de vida e trabalho na capital em construção. Após começar sua carreira
trabalhando para o SEBRAE, como líder de um grupo de produção de artesanato, assumiu a
presidência do Instituto Proeza, entidade não-governamental responsável pelo projeto
Apoena, e passou a desempenhar papel semelhante ao do SEBRAE junto a alguns grupos
de artesãs, embora no momento não esteja atuando em parceria com essa Instituição.
18
É estranho que Kátia Ferreira tenha classificado a palavra Apoena como sendo tupi guarani. Segundo o
Prof. Dr. Roque Laraia, Apoena é uma palavra xavante.
185
“O SEBRAE começou com a gente, no início ele dava um apoio pra gente, mas
hoje já não dá mais. Parceria tem, mas prefiro deixar pra Kátia falar disso. Eu tô
envolvida no projeto da Kátia há 2 anos, eu trabalhava no crochê, daí a Kátia precisava de
uma pessoa pra fazer esse controle e ela me convidou. Eu trabalhava como voluntária
numa associação lá no Riacho Fundo, daí ela me chamou pra trabalhar com ela.” (Ângela
Terenzi, Apoena.)
A Apoena conta atualmente com a participação de uma média de 600 mulheres,
distribuídas em 10 grupos de produção, sendo cinco destes em São Sebastião, dois no
Recanto das Emas, um em Santa Maria, um na Vila Estrutural e um no Plano Piloto, onde
funciona a sede da organização.
“As pessoas me perguntam qual o segredo da Apoena? O que eu faço diferente
que a Apoena consegue o que as outras não conseguem? E eu te digo que não tem nada de
especial ou de diferente, mas eu fico firme em cima delas... porque senão fica assim...vão
fazendo naquele ritmo, qualquer coisa tira a atenção delas. Então o que eu faço é ser
firme, pra que as coisas saiam como tem que ser.” (Kátia Ferreira, Apoena)
Na fala de Kátia Ferreira, transcrita acima, se observa a preocupação com a
imposição de um ritmo de trabalho ao grupo de mulheres. Além disso, revela-se a crença de
que as mulheres, deixadas para trabalhar por conta própria, não “dariam certo” porque não
conseguiriam trabalhar com velocidade e ritmo suficiente para dar conta do trabalho,
necessitando dela para impor o ritmo necessário ao trabalho.
A designer explica que sempre que inicia um novo grupo ou que entram novas
participantes em algum grupo existente, é um esforço “lento e gradualpara acostumar
essas pessoas ao ritmo de trabalho desejado pela organização. Ressalta que as mulheres não
186
estão habituadas ao ritmo do trabalho e em geral são “muito moles”, mas aos poucos elas
vão “entrando no ritmo” e se moldando às expectativas da Apoena.
Segundo Kátia Ferreira, isso produziria um “efeito psicológico” nas participantes,
que aos poucos seriam moldadas ao padrão desejado. Ela explica: “a primeira etapa da
formação de um grupo de trabalho consiste na qualificação das mulheres e na imposição da
ética do trabalho”.
“Mas ela [Apoena] se mostra muito eficiente, somos muito disciplinadas, com o produto,
com o prazo, a ser entregue, cobramos muito do nosso artesão, porque a gente fala: isso
aqui não é brincadeira, isso aqui é uma coisa séria, isso aqui é trabalho. Esse trabalho,
elas tem uma oportunidade de trabalhar pra nós porque a Apoena cumpre prazo com seu
cliente, que é uma coisa que falta pro artesão, muito. Eu vou na feira e as pessoas
reclamam muito, o pessoal de artesão a gente compra e eles não entregam, né? Então pra
gente conseguir fazer com que o produto seja entregue nos temos que fazer isso.” (Kátia
Ferreira, Apoena)
Para a designer, “Elas precisam trabalhar como um grupo, juntas, e se adaptar ao
ritmo e ao sistema da Apoena.” A segunda etapa, segundo Kátia Ferreira, consiste na
formação de uma Associação, juridicamente constituída, com papéis definidos e funções
formais. Daí então seguir-se-ia para a identificação das marcas individualizadas dos grupos,
descobrindo que tipo de trabalho as artesãs sabem fazer e selecionando o que fazem
melhor. “Se num grupo elas sabem melhor o bordado, não adianta querer que façam o
crochê. É preciso aproveitar os melhores talentos”, destaca.
“O interessante disso é o seguinte: a gente joga a idéia e elas desenvolvem do jeito
delas. Esse grupo que eu vim hoje, eles sabem bordar, mas é um bordado mais bruto, e a
gente precisava desenvolver um produto pra esse grupo, daí a gente levou e vamos ver o
187
que vai dar... foi uma coisa grosseira e o resultado foi lindo! Daí a gente fez essa coleção.
A gente tem grupos em São Sebastião que o bordado é fino, delicado, e a gente leva pra
elas com os desenhos e as cores definidas e vai vendo com elas- ah, eu acho que aqui ponto
correntinha fica melhor, eu acho que aqui fica melhor outro ponto, vai definindo com
elas.” (Ângela Terenzi, Apoena).
O projeto Apoena teve início no ano de 2002, contando com 12 pessoas, em São
Sebastião, onde tia Ferreira atuava como consultora do SEBRAE. Depois de alguns
meses já contava com 28 pessoas, em dois grupos, dobrando sua capacidade de produção.
Em 2003 contava com a participação de 165 associadas, distribuídas em cinco
grupos, incluindo o Recanto das Emas e a Vila Estrutural, além dos grupos de São
Sebastião. Em 2004, a associação somava 200 pessoas e em 2005, época em que
iniciaram a participação no Fashion Rio”, contavam-se 300 pessoas, todas mulheres. Após
a participação no Fashion Rio”, a procura aumentou muitíssimo, tanto no que tange às
encomendas quanto no número de mulheres interessadas em trabalhar com a organização,
possivelmente devido à repercussão que obtiveram com a mídia local. Na época da
produção da segunda coleção de 2005 já contavam com cerca de 600 mulheres interessadas
em trabalhar, embora nem todas estivessem devidamente capacitadas naquele momento.
“Outro ponto que eu acho que faz a diferença realmente é a maneira como a gente
dirige a Apoena. Nós não exigimos que a pessoa seja juridicamente constituída e não
incentivamos que as pessoas façam isso de imediato, nós deixamos que elas primeiro
comecem, conheçam a Apoena e o trabalho como um todo, porque pra se associar você
pode ser sócio de quem você conhece, e esse processo precisa ser amadurecido, então o
grupo primeiro elas se conhecem, primeiro emergem outros conflitos, resolvem esses
conflitos, essas diferenças, e o grupo que permaneceu, que ficou é que passa a ser
associação, né?” (Kátia Ferreira, Apoena).
188
A organização participava dos eventos de moda do Rio de Janeiro e também de
São Paulo, Fashion Rio” e “São Paulo Fashion Week””. Em seguida, foram convidadas
a participar também de eventos internacionais, tomando parte em feiras de moda em
Portugal e na França, para onde começariam a exportar. O quadro abaixo mostra a evolução
da entidade:
Ano/Semestre Número de mulheres participantes
2002/1 12
2002/2 28
2003 165
2004 200
2005/1 300
2005/2 600
(Fonte: Instituto Proeza (Apoena), organização não-governamental)
Durante o ano de 2006, quando iniciei a realização da pesquisa de campo, a
organização contava com cerca de 600 mulheres dispostas a trabalhar, distribuídas em dez
grupos nessas mesmas localidades: São Sebastião, Santa Maria, Recanto das Emas e Vila
Estrutural. Entretanto, um fato novo começava a ocorrer: as mulheres manifestavam o
desejo de trabalhar de forma independente da organização, transformando os grupo em
associações autogeridas. Das 600 mulheres, metade delas estaria disposta a trabalhar por
conta própria no formato de pequenas associações, sem o patrocínio e a supervisão da
organização. As 300 mulheres restantes, somadas com as novas interessadas, que estão
entrando a cada semestre resultariam nas 600 participantes que constam como o número
atual de artesãs da ONG. Durante o período em que realizei a pesquisa, pude verificar que
houve movimentos entre grupos, entradas e saídas; entretanto, o numero de artesãs que a
organização contabiliza como operacional permanece o mesmo, de forma que as entradas
devem compensar as saídas de forma mais ou menos regular.
189
“Nós temos 43 (quarenta e três) pontos de venda no Brasil, nós vendemos pra lojas,
então quem é que consegue produzir pra atender todo mundo? São mais de 600 mulheres!
Tem pessoas incríveis, você vai adorar!!!” (Kátia Ferreira, Apoena).
Sobre o número de mulheres trabalhando, ela explica que o grande ganho é a
elasticidade que a Apoena pode oferecer:
“Tem uma outra coisa, com essa quantidade de grupos de trabalho nós
conseguimos uma boa produção, então quem compra Apoena tem a impressão de estar
comprando de um mesmo grupo, quando na verdade está comprando de um leque de
grupos, muito grande, então várias pessoas em vários lugares estão produzindo, então ela
tem elasticidade, né?” (Kátia Ferreira, Apoena)
Tal elasticidade permitiria atender os clientes da mesma forma que o fazem as
fábricas, que não dependem de mão de obra artesanal. A elasticidade aqui se refere aos
prazos, conforme se confirma na explicação de Ângela Terenzi.
“Trabalho com o produto à vista, eu pago as mulheres, mas o meu cliente, ele paga
com 30, 40 e 60 de prazo, então é uma máquina que tem que estar muito sincronizada, mas
dá um retorno muito grande.” (Ângela Terenzi, Apoena)
Ao lidar diretamente com tantos grupos de mulheres, as organizadoras das
atividades estão encarando diariamente toda sorte de problemas cotidianos, acompanhando
de perto as dificuldades que elas enfrentam, e precisa haver um certo apoio aos grupos, uma
iniciativa social para que as mulheres continuem participando. Assim ela fornece um
atendimento direcionado para as mulheres dos grupos. A proposta da organização é
produzir moda vinculada a ação social.
190
“Outro passo que a gente deu agora foi a educação, sempre continuada, que a
gente faz desses grupos, os grupos que fazem parte da Apoena. Eles não passam uma
semana sem receber uma visita, e a gente acompanhando de perto a produção, não passa
sem estar o pessoal que trabalha aqui com a gente, eu, a Ângela, o Renato, a gente faz
uma visita pra saber como eso andamento do produto, como as coisas estão fluindo,
Consultorias? Nós o fazemos consultorias econômicas pra eles, nós fazemos uma
consultoria diferente, eu estou precisando de uma pessoa pra fazer uma consultoria agora
com eles, pra falar de ética e de solidariedade, porque eu acho que onde existe correção
as pessoas não tiram o que não é delas, e você não teria muitos problemas que podem vir
quando falta...” (Kátia Ferreira, Apoena)
O objetivo do projeto Apoena seria a inclusão de mulheres que em sua maioria
trabalham em casa, perto dos seus filhos, o que lhes garantiria renda, mas também uma
melhor qualidade de vida. Tal projeto é criação de Kátia Ferreira, idealizadora do Instituto
Proeza, e tem como foco famílias de baixa renda ou em situação de desemprego. Kátia
Ferreira pensou um projeto que pudesse gerar renda e ao mesmo tempo mantivesse as mães
perto de seus filhos.
“Sempre amei artesanato, e quando eu comecei a mexer com essas coisas aqui em
Brasília as pessoas tinham só aquelas coisas assim de paninho de prato, toalhinha de mão,
tudo coisinhas assim, e o artesanato não era visto como um produto, ele era visto assim
como um sub-produto, como uma coisa assim ou era um hobbie, ou era uma coisa que a
pessoa usava, que não era realmente uma fonte de renda, né, e era visto como artigo ou de
souvenir ou de lembrancinha. Quando comecei a mexer com essa coisa do artesanato, e eu
fui a primeira aqui em Brasília a focar o artesanato pra moda, o projeto eu fiz, fiz uma
parceria com o SEBRAE DF, e o projeto ficou realmente caro e eles tocaram, a gente criou
a Apoena.” (Kátia Ferreira, Apoena)
191
Kátia Ferreira mostra o catálogo de moda que produziu, enquanto explica o
funcionamento do seu trabalho: “Esse aqui é o nosso catálogo, da coleção que foi para o
São Paulo Fashion Week” agora, acabei de apresentar, foi um sucesso!”
“Todo trabalho nosso tem toda uma pesquisa pra fazer a coleção, tem todo um
trabalho na coleção, a moda agora é a volta às origens, África, contos de fadas, água,
porque a vida surge na água, tem todo um planejamento de coleção para o Rio de Janeiro,
na Fashion Rio, “São Paulo Fashion Week” e para o “Capital Fashion Week” (Kátia
Ferreira, Apoena)
Kátia Ferreira conta que um novo catálogo é desenvolvido a cada semestre, com
novas criações, porque a indústria da moda exige sempre coisas novas, e ela se orgulha de
seguir as tendências da moda internacional. Depois dos desfiles, a organização efetua
encomendas para os lojistas e todos os grupos de trabalho administrados por Kátia Ferreira
são colocados a serviço do atendimento às encomendas.
“E outra, uma coisa que eu acho um milagre, vai vir até uma faculdade de São
Paulo e vai fazer um estudo da Apoena em Brasília, porque nós não somos Rio de Janeiro,
São Paulo ou Minas, Belo Horizonte, nunca saiu nada de moda que não fosse nesse eixo,
nunca saiu, a Apoena foi a primeira!!! Nunca saiu nada de Goiânia, nunca ninguém
conseguiu entrar nesse eixo da moda!!!” (Kátia Ferreira, Apoena)
O entendimento dessa dinâmica do campo do artesanato de Brasília em diálogo com
o mundo da moda pode se beneficiar de uma breve análise das construções teóricas que
procuraram explicar a moda como fenômeno social.
192
Georg Simmel, numa série de ensaios publicados postumamente como On
Individuality and Social Forms”
19
, lançou no começo do século passado os fundamentos
teóricos de uma discussão sobre a moda, o desejo pelo objeto, e a construção social do
valor, que ainda ecoa e provoca grande reflexão. Numa teoria que ficou conhecida como
“imitação em cascata” (Trickle Down), o autor chama a atenção para a dialética entre
diferenciação e imitação que ocorre entre grupos na sociedade no que se refere à moda
como constitutiva da própria natureza do caráter transitório da moda. A moda seria sempre
uma criação da elite, daqueles que estariam ocupando a posição mais elevada da pirâmide
social, e seguiria um movimento descendente na escala social, que se daria pela imitação
dos que se encontram acima por aqueles que estão abaixo. Conforme Simmel esclarece:
“The very character of fashion demands that it should be exercised at one time only by a
portion of the given group, the great majority being merely on the road to adopting it.” Ou,
em outras palavras, As fashion spreads, it gradually goes to its doom”. (Simmel,
1971[1904]:302)
Para além do aspecto de apropriação de elementos ou traços culturais entre camadas
distintas da sociedade, independentemente do fato de estarem subindo ou descendo, o
aspecto que considero importante destacar na teoria de Simmel, que justifica a pertinência e
atualidade da sua teoria, repousa no caráter efêmero do fenômeno, caracterizado como de
rápida transição e constante busca por algo novo.
Ao afirmar que “quando uma moda se espalha ela gradualmente caminha para seu
fim”, Simmel estabelece uma relação entre desejo, imitação e morte que denota a
transitoriedade das tendências da moda. Na observação do trabalho de campo se revelam as
19
A obra “On Individuality and Social Forms”, editada e publicada em 1971 por Donald Levine, reúne
ensaios e conferências que Simmel proferiu nas primeiras décadas do século passado.
193
estratégias que os atores utilizam para lidar com o caráter de transitoriedade da moda,
visando a continuidade das suas práticas em meio ao imperativo da mudança e renovação.
Kátia Ferreira menciona que, no seu trabalho, é necessário fornecer sempre menos
do que as lojistas estão pedindo, “não entregando tudo” o que elas solicitam, para deixar
sempre um “gostinho de quero mais”, ou seja, conservar sempre uma demanda pelo
produto.
“Eu não posso entregar tudo que elas pedem, porque se vender logo tudo, elas se
saciam, e depois não vão querer fazer novas encomendas, então eu tenho que vender
sempre menos do que elas estão querendo, daí elas continuam sempre querendo, sempre
pedindo mais”. (Kátia Ferreira, Apoena).
Assim, mantendo as clientes sempre na espera por mais produtos, a designer
continuaria recebendo novas encomendas e conseguiria dar uma vida mais longa para o
processo de aplicação do artesanato na moda. Na medida em que ela lança novas coleções a
cada semestre, empregando as mesmas técnicas em novas ou renovadas criações, ela
administraria e alimentaria a indústria da moda artesanal, num compasso que constrói um
ritmo entre espera, demanda, novidade e desejo. Segundo Simmel,
“By reason of this peculiar play between the tendency towards universal
acceptation and the destruction of its very purpose to which this general adoption leads,
fashion includes a peculiar attraction of limitation, the attraction of a simultaneous
beginning and end, the charm of novelty coupled to that of transitoriness.” (Simmel,
1970:302) [...] “This transitory character of fashion, however, does not on the whole
degrade it, but adds a new element of attraction.” (SIMMEL, 1971[1904]:303)
Simmel enfatiza o caráter de transitoriedade do mundo da moda, que se aplica a
forma como a experimentamos hoje. O autor pode ser criticado por tratar da moda a partir
194
de uma visão de sociedade que pressupõe a existência de classes sociais claramente
demarcadas, o que dificultaria a aplicação da teoria ao mundo de hoje, ou poderia reduzir o
interesse por sua teoria. Entretanto, podemos argumentar em seu favor que, cada vez que
uma nova moda é lançada, são criados produtos para atender a cada segmento do mercado,
como se fosse uma grande celebração da novidade que estaria acessível a todos os bolsos.
A moda mais sofisticada de hoje nasce acompanhada de suas variantes mais
economicamente acessíveis, ao menos no caso da moda artesanato.
“As pessoas me perguntam por que a Apoena deu tão certo, por que a gente faz
sucesso? Eu acho que é por causa da abordagem simples que a gente dá, o foco muito
claro que a gente teve desde o início de qual era o mercado que a gente queria atingir,
então qual o nosso público alvo? É o mercado de luxo, né? É dar uma cara sofisticada pro
artesanato.” (Kátia Ferreira, Apoena)
Entretanto, ao salientar que o produto da Apoena é pensado para um mercado de
luxo, que percebe no bordado feito a mão um efeito de sofisticação e consequentemente de
distinção, devido à raridade e dificuldade de tal elaboração, notamos que no caso específico
dos bordados feitos em Brasília, a teoria da “imitação em cascata” (Trickle Down), de
Simmel, encontra poder explicativo, capaz de iluminar e produzir novos insights, por
mostrar-se renovada, válida e atual.
“As pessoas quando pensam no artesanato, elas pensam em algo sempre muito
folclórico, ainda pensam muito no artesanato nordestino, numa visão muito folclórica, e o
artesanato não precisa ser, ele pode ser sofisticado, trabalhado, mas não precisa ser
rebuscado, uma coisa tanto que a primeira coleção que eu fiz ela teve somente preto e
branco, e hoje as pessoas já fazem muito, né, mas fazem um artesanato muito alegórico, né,
muito ainda...então a gente resolveu dar uma cara pra ele sofisticada, né? Essa que é a
palavra: sofisticação!” (Kátia Ferreira, Apoena)
195
A estilista deixa muito claro o projeto da organização que ela administra, inclusive
no que se refere ao planejamento das coleções e na forma como ela encara o artesanato e
procura transformar a imagem dessa atividade, inserindo-a no campo da moda. Adotando a
“sofisticação” como palavra-chave do seu trabalho, ela não deixa dúvidas sobre como
encaminha o processo de mudança da imagem do artesanato, ao adaptá-lo ao gosto do
mercado de luxo. O recurso a cores sóbrias como o preto e o branco seria um traço
marcante dessa adaptação do artesanato, associando-o ao luxo. Por outro lado, ela identifica
o artesanato “alegórico” ou “folclórico” com a visão ultrapassada do artesanato, de que sua
grife tentar se diferenciar. A imagem da cliente que é o alvo do seu produto é descrita nos
seguintes termos:
“Fazer peças mais arrojadas pra uma mulher moderna, uma mulher que usa uma
roupa de luxo e que gostaria de ter uma saia bordada, mas também não quer sair por
parecendo que está fantasiada. Então a gente achou esse limite, sabe, esse limite nós
encontramos dentro do artesanato um caminho pra essa roupa. Isso eu acho que foi uma
coisa que deu certo na Apoena, que faz esse sucesso todo. Ele é artesanato, mas ele é
clássico, a pessoa pode usar ele tranquilamente, tanto é que nós conseguimos colocar ele
em lojas, né, que realmente atendem esse público.” (Kátia Ferreira, Apoena)
Quando ela afirma “ele é artesanato, mas ele é clássico está revelando duas
categorias que se encontram em oposição, sendo o artesanato ligado ao mencionado
“alegórico” ou “folclórico”, enquanto o clássico seria o correspondente ao gosto do
consumidor do mercado de luxo.
Marshall Sahlins (1976) e Mary Douglas (1996) consideram as escolhas de
vestuário como reveladoras das categorias de pensamento de uma sociedade ou grupo
196
social. Ambas as teorias, assim como a de Bourdieu (1979, 2002), analisam a moda como
um sistema fechado, buscando o que esse sistema tem a dizer sobre a sociedade.
Tanto Douglas quanto Bourdieu, explicitamente ou não, resgatam parte da teoria da
“imitação em cascata” de Simmel e descrevem esquemas de participação dos atores sociais
no consumo dos objetos. Uma vez que não estou me propondo a analisar o sistema da moda
como um todo, mas apenas os pontos de contato da moda com produção artesanal, não
aprofundarei a análise de tais teorias, que não apresentam aplicação imediata ao trabalho de
campo. Considero, porém, que tais teorias abrem todo um campo de pesquisas, ainda pouco
explorado, para o estudo da moda na sua relação com o consumo e as estratégias dos atores
em sua inserção social.
O que considero fundamental destacar são as representações que consultores como
Kátia Ferreira possuem do mundo da moda. Imagens da atividade artesanal, do produto
resultante, do consumidor de luxo e do seu respectivo mercado, ao qual procuram
responder. Essas representações entram em jogo na sua tarefa de fazer com que o produto
artesanal encontre seu mercado. Como nos lembra Paul Rabinow (2002), as representações
são fatos sociais. Por isso, considero-as centrais para esse trabalho.
São conjuntos de imagens, cosmologias ou representações do mundo da moda que
orientam as práticas dos consultores de design e acabam colocando as artesãs de Brasília
em contato indireto, mediado pelo objeto, com esse universo. Tais representações
constituem um repertório do qual o designer lança mão e com o qual vai conformar o
objeto artesanal de forma a assegurar o trânsito desse objeto nas feiras nacionais e
internacionais.
O significado do objeto é o significado que lhe é atribuído pelos atores sociais num
contexto cultural específico, uma vez que o objeto não possui significado prévio ou
197
arbitrário a não ser aquele, bastante genérico, dado pela língua. O significado social do
objeto é forjado nas diferentes instâncias do percurso que vai da produção à recepção,
variando de acordo com o contexto cultural e a posição dos atores em questão, que são os
responsáveis pela construção ou atribuição do significado.
Entretanto, a criação do objeto, uma vez que visa a uma certa inserção bastante
específica, não é livre criação. Ela é conformada por regras depreendidas dessas imagens
ou representações. De forma análoga, a escrita de um texto, que se conforma a regras
próprias, do campo da gramática da língua e da produção textual, pauta-se também pelas
representações do autor sobre quem ele é, sobre quem é o seu leitor e sobre o tipo de
imagem ou mensagem que pretende construir e veicular com seu texto.
Às representações e construções de significados atribuídas ao objeto artesanal em si,
dedico um capítulo, na terceira parte da tese, em que examino diferentes atribuições de
sentido ao fazer artesanal e ao objeto por diferentes atores do campo do artesanato. Por ora,
desejo apenas destacar a importância das representações, imagens ou cosmologias desses
mediadores que são os designers para a configuração desse artesanato tal qual ele se faz
conhecer.
198
Capítulo 7 – Renato Imbroisi
199
Capítulo 7. Renato Imbroisi
Renato Imbroisi é o designer responsável pelo desenvolvimento dos produtos que,
na época da pesquisa, eram comercializados pelos grupos Flor do Ipê Bordadeiras de
Taguatinga” e “Flor do Cerrado”, que foram tratados na parte inicial da tese.
Imbroisi é uma figura central nesse trabalho em razão do seu envolvimento com o
SEBRAE, com o qual ainda se vincula, e pela sua dinâmica atuação junto aos grupos de
produção, garantindo o trânsito das mulheres, juntamente com os objetos produzidos, para
fora da comunidade, no âmbito da sociedade de consumo.
O consultor, que nasceu no Rio de Janeiro em 1961, relata como foi que começou
a trabalhar como designer na área de artesanato:
“Sou autodidata, fiz até o segundo ano de comunicação visual na FAAP em
São Paulo. Iniciei eu como artesão, e logo em seguida fui pesquisar a tecelagem no
interior de Minas Gerais. que começou minha atuação nas comunidades
artesanais, em 1985. Foi bem antes do SEBRAE. [...] A primeira comunidade chama
Muquém e fica no município de Carvalhos. Em seguida foi a comunidade de Mato
Dentro, no município de Soledade de Minas. Nessa época eu trabalhava por conta
própria. O trabalho nessa comunidade, antes do SEBRAE, era completamente
independente, como ainda é hoje no Muquém. Lá não tive nculos com nenhuma
instituição.” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
Conforme nos relata Imbroisi, antes de trabalhar para o SEBRAE, o designer
trabalhava com artesanato em algumas comunidades. Ele está atuando junto ao SEBRAE
desde 1996, quando iniciou o programa Via Design. O designer salienta que quando o
SEBRAE teve a iniciativa de desenvolver esse programa de fomento ao artesanato e
200
incentivo ao empreendedorismo, ele estava bem posicionado no mercado, no segmento
de artesanato com características regionais.
“Eu já tinha um nome, eu me destacava nessa área, fui um pioneiro. O SEBRAE
me chamou porque sabia desse meu trabalho. Iniciei o trabalho com o SEBRAE em
1996, foi 12 anos depois do começo em Muquém. Foi quando começou o programa de
artesanato SEBRAE” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
Produtos com o design desenvolvido por ele são comercializados em grandes lojas
brasileiras, tais como a rede TokStok, de produtos para casa. O SEBRAE lhe abriu novas
oportunidades, naturalmente, graças à atuação dessa instituição em 17 estados do Brasil.
Mas ele conta que não trabalha apenas para o SEBRAE, trabalha também para organizações
não governamentais e diretamente para o Ministério da Cultura: “O SEBRAE é um bom
cliente e tenho uma boa relação com a Gerente de Desenvolvimento Local através do
artesanato, a Antonieta Contini.”
Na época em que o SEBRAE estava começando a incentivar a produção artesanal,
havia parcerias também com outras instituições que estavam atuando nessa área. Renato
Imbroisi conta que foi o primeiro designer a se dedicar ao desenvolvimento de produtos
artesanais no Brasil, tornando-se um pioneiro no segmento artesanal, e uma referência para
todos os outros que resolveram entrar nessa área depois dele.
Teria participado inclusive de um projeto piloto desenvolvido pelo SEBRAE DF, atuando
na organização de um grupo em Santa Maria:
“Foi um projeto piloto do SEBRAE, em Santa Maria, e nós montamos um grupo
e começamos a atuar no desenvolvimento do produto com uma identidade local. Quando o
SEBRAE iniciou o trabalho com artesanato, eu fui chamado porque tinha uma atuação
201
de destaque nesse meio, era um nome conhecido. Então eu ajudei o SEBRAE a
desenvolver esse projeto de artesanato, desde o começo.” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
Renato Imbroisi relata que 25 anos trabalha com design voltado para o
artesanato. “Sempre trabalhei assim”, diz ele, “empregando matéria-prima local e
ressaltando as culturas locais”. Em Brasília, não teria sido diferente. Ele teria passado a
trabalhar em busca de uma identidade brasiliense para os produtos que estava
desenvolvendo. O seu estilo de criação envolveria sempre a busca pelos recursos locais e
pelas histórias locais, que são resgatadas e empregados no produto, diferenciando-o dos
demais.
“A Roze, da Flor do Cerrado, por exemplo, já empregava matéria prima do
cerrado, mas quando comecei a trabalhar com ela, eu percebi que havia erro no manuseio
daquela matéria prima. Ela cobria a folha, tingia e isso desvalorizava aquela matéria
prima. Então eu limpei o excesso que desvalorizava e criei a idéia dos painéis de flores.
Elas foram trabalhando conforme a orientação, em 2002 ela deu certo. São hoje um
exemplo de sucesso.” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
As Bordadeiras de Taguatinga foram um dos primeiros grupos com os quais o
designer trabalhou. Inicialmente as mulheres tiveram um curso de capacitação para
“lembrar do bordado”, com a Sra. Drummond, trazida de Minas Gerais para ministrar
cursos de bordado em Brasília. Em seguida teve início a atuação do designer, no
desenvolvimento do produto. Em 1999, o grupo era formado por 36 mulheres.
“O primeiro produto que foi desenvolvido com as Bordadeiras de Taguatinga foi
uma colcha de retalhos coloridos, com as flores do cerrado bordadas. A colcha era
composta por 150 flores bordadas e levou bastante tempo para ficar pronta.Depois
também foram criados produtos menores, que são mais fáceis de serem comercializados,
tais como as almofadas e sachês. Outras linhas também foram desenvolvidas com as
202
Bordadeiras, tais como a coleção de mapas do Distrito Federal e também a mais recente
linha de pássaros do cerrado.” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
No processo de criação de um novo produto, o designer procura estabelecer
relações entre elementos característicos do local e o melhor proveito das técnicas
empregadas, buscando “valorizar” o produto delas. A lógica do trabalho do designer
repousa sempre na criação de “valor” para os produtos, associando-o às últimas tendências
da moda.
“A cada seis meses é necessário desenvolver um novo produto, atualizar o
artesanato, senão elas vão para a feira sempre com as mesmas coisas e o cliente se cansa,
deixa de comprar. Foram as primeiras a utilizar as flores do cerrado como linha de
produto. Houve muitas mudanças nesse grupo, algumas saíram, outra entraram. É muito
difícil, porque, além de bordadeiras, é preciso que elas sejam também empresárias, e por
isso ocorre uma circulação de pessoas, entrando e saindo.” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
Atualmente elas participam de dez feiras nacionais. Renato Imbroisi salienta que
ensinou para as mulheres a receita: “se tiverem bom preço, boa organização e uma boa
produção vocês vão ter sucesso”.
O designer permanece atuando junto ao SEBRAE, e como tem sempre novas
artesãs ingressando no projeto, vão-se formando novos grupos, seguindo a mesma lógica de
desenvolvimento de produtos levando em conta as características locais da região do
cerrado.
“Em Brasília hoje tem 23 grupos novos, que estão começando e vão expor o seu
produto na feira em SP, dia 29 de fevereiro de 2008. A diferença esse ano é que vamos
reunir o trabalho manual com a gastronomia, fazendo na hora para servir para as pessoas
as receitas de grandes chefs brasileiros. Esse é o trabalho que estamos desenvolvendo
junto ao SEBRAE nesse momento.” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
203
Sobre o trabalho desenvolvido na comunidade do Varjão, ele considera que o
resultado seria um pouco fraco: “Não gosto do resultado, não acho de boa qualidade, e o
produto final não é bom. Muito dessas características dependem do instrutor que
acompanha o grupo.” O desencontro entre instrutores e a comunidade do Varjão pode ter
sido resultado da forma como o instrutor que trabalhou com as mulheres conduziu a
relação. Ao atribuir a responsabilidade pelos resultados obtidos quase inteiramente ao
consultor, ele retira das mulheres o ônus pelas eventuais dificuldades de organização, de
planejamento ou de desenvolvimento do produto.
Considerando o campo do artesanato em Brasília como um todo, com a quantidade
sempre crescente de pessoas formando novos grupos de trabalho, e novas lideranças
surgindo em cada lugar, surge a questão da competição entre elas pelas mesmas
oportunidades de exposição e pelo apoio institucional que é oferecido pelo SEBRAE.
Questionado sobre isso, Renato Imbroisi aponta como positiva a competição, pois faria com
que todos buscassem melhorar o seu trabalho. Para ele, seria preciso construir uma relação
de confiança entre o instrutor, o designer e o grupo:
“Depende de como o designer encaminha a negociação, pois é preciso gerar
confiança nos resultados, ou então as mulheres não poderão desenvolver um bom trabalho,
se elas não acreditam naquilo que estão fazendo. É preciso antes de tudo acreditar no
produto, acreditar que vai dar certo, e isso acontece se houver confiança.” (Renato
Imbroisi, SEBRAE)
Assim Renato Imbroisi define a sua relação com os grupos e acaba por revelar no
que consiste o seu trabalho: na construção de uma relação de confiança com as artesãs,
204
confiança que se estabeleceria no relacionamento entre eles e também confiança na sua
capacidade criativa, de desenvolver um produto que seja capaz de conquistar o mercado:
“No começo de todo trabalho, sempre uma etapa de mobilização de toda a
comunidade em função de uma idéia. É preciso que acreditem no novo. Isso só é possível se
houver uma boa interação entre as participantes do grupo e também entre o designer e o
grupo. A confiança é fundamental. As artesãs de Brasília acreditam no que eu faço porque
elas viram experiências de muitos lugares e viram que deu certo, então elas confiam”.
(Renato Imbroisi, SEBRAE)
Em última análise, a confiança seria resultado de um trabalho bem-sucedido
anteriormente realizado, e promoveria as vendas, o que realimentaria o relacionamento. As
vendas seriam então a medida do sucesso no trabalho de orientação do designer, que se
coloca como um especialista na identificação daquilo que o mercado consumidor deseja e
do que o seu público gosta.
Caberia, então, a pergunta: por que as artesãs não sabem identificar o que é que o
mercado consumidor deseja? Porque, embora elas estejam muitas vezes em contato com o
seu público consumidor, elas mesmas não fazem parte desse grupo e não sabem exatamente
o que é esperado do seu produto para que seja capaz de “vender bem”. O consultor de
design se coloca então como um especialista no ‘gosto” do público consumidor de
artesanato. Afinal ele conhece aquilo que agrada e faz sucesso nas grandes feiras, sabe
reconhecer o que deseja o mercado.
Com isso colocamo-nos diante de uma dimensão de conhecimento extremamente
subjetivo, o gosto, mas ao mesmo tempo passível de ser observada na sua atuação junto aos
grupos de trabalho. Isso nos obriga a olhar para o consumo não apenas como transmissor de
mensagens sociais, como quer Douglas, mas também como recebedor. Somos levados a
205
introduzir a dimensão da recepção nessa análise, na medida em que essa possibilita a
percepção do desejo do público por um tipo específico de produto. Tal abordagem pode
centrar-se na figura do designer, visto aqui como um intérprete dessa mensagem.
Apesar de ser difícil conhecer com exatidão o que o público consumidor deseja de
fato
20
, nessa busca pela recepção da mensagem podemos conhecer as representações
empregadas pelos designers, que são reveladas através do seu discurso, e acabam se
tornando tão ou mais concretas quanto qualquer pesquisa de opinião, uma vez que o
profissional se vale dessas representações na execução da sua tarefa criativa.
O designer seria, então, um especialista em questões de “gosto”. Entretanto, a
imposição de um gosto que é considerado como o “gosto do outro” é uma tarefa que exige
grande negociação, que nas escolhas decorrentes do gosto estão presentes uma série de
implicações de ordem social e cultural.
Talvez seja nesse ponto que a interação produtiva e harmoniosa entre o consultor e
o grupo se torna tão importante para o sucesso do trabalho conjunto, conforme foi apontado
por Renato, porque dessa “boa relação” entre designer e grupo é que vai surgir uma
negociação mais tranqüila e satisfatória das questões de gosto, e especialmente a aceitação
do “gosto do outro”. Ao emergir o “gosto do outro” antes de mais nada existe um “outro”
que se faz presente, ainda que mediado pelas representações do consultor de design.
“Acho bem complicado esta questão de gosto, o que fico mais satisfeito é quando
os dois se encontram e completam e conseguem admirar e gostar do mesmo. Isso é o
melhor, mas nem sempre acontece e às vezes temos que prevalecer o de um, ou de outro,
conforme o mercado que vamos focar.” (Renato Imbroisi, SEBRAE)
20
Profissionais da área de marketing poderiam chegar a um modelo desse “gosto” a partir de pesquisas de
opinião, mas esse seria sempre, de qualquer forma, uma aproximação.
206
Capítulo 8 – Questão de Gosto
207
Capítulo 8. Questão de Gosto
De acordo com Mary Douglas (1996), a escolha de determinados objetos não é
apenas a escolha dos objetos por eles mesmos, mas sim a escolha de um tipo de vida, de um
estilo de viver, de uma forma de se relacionar no mundo e de dar significado a ele:
We have to make a radical shift away from thinking about consumption as a
manifestation of individual choices. Culture itself is the result of myriads of individual
choices, not primarily between commodities but between kinds of relationships. The basic
choice that a rational individual has to make is the choice about what kind of society to live
in. According to that choice, the rest follows. Artefacts are selected to demonstrate the
choice. Food is eaten, clothes are worn, cinema, books, music, holidays, all the rest are
choices that conform with the initial choice for a form of society.
(DOUGLAS, 1996:81)
A partir disso, vemos que a questão da escolha individual é colocada como uma
escolha dentre as possibilidades dadas pela sociedade, ou seja, a escolha por um estilo de
vida como forma de se colocar no mundo, no interior de uma sociedade complexa, e de se
adequar ou se localizar dentro de uma hierarquia social que precede o sujeito porque é da
esfera sócio-cultural. Há uma escolha individual, mas esta escolha é antes de tudo a decisão
por um estilo de vida, e todas as outras são decisões que virão reforçar a escolha inicial.
Douglas salienta que as questões de gosto não ocorrem apenas entre as pessoas mais
privilegiadas em uma sociedade. Todas as pessoas estabelecem classificações entre o que
lhes agrada e o que querem ver longe de si. As seleções operadas pelo princípio do gosto
seriam opções por um modo de vida, antes de mais nada.
208
Georg Simmel (1971 [1908]) fala sobre tipos sociais, algo semelhante ao tipo ideal
weberiano, que seriam formas de representações de papéis sociais, compartilhados pelos
membros de uma sociedade, como categorias de pensamento ou estereótipos, os quais os
indivíduos, ao se verem naquela posição, tendem a reproduzir. Dessa forma, Simmel
argumenta, o indivíduo tende a reunir e ter em mente todo um conjunto de informações
apreendidas culturalmente sobre o que é ser um artista, ou um burocrata, por exemplo, e
tenderia a agir de acordo com tais informações ou representações.
De acordo com tais representações os indivíduos tenderiam a agir não somente em
termos comportamentais, mas também empregando esses princípios no que tange às suas
escolhas sobre como devem viver, vestir-se e até mesmo comer.
Naturalmente, as pessoas envolvidas no campo do artesanato em Brasília também
compartilham de representações acerca do mundo social e recorrem a elas para falar de sua
própria posição dentro desse universo. A uma dada posição social corresponderia um
conjunto de eleições que se costumam chamar de “gosto”.
A fala da artesã revelaria, assim, a percepção de representações associadas à
identidade do artesão – ou ao tipo social correspondente ao artesão que de alguma forma
são questionadas no encontro com os demais participantes da feira:
“Nossa, você vai assim na feira da associação, no Gilberto Salomão, você pensa -
o que eu estou fazendo aqui, meu Deus do céu??? - você olha ao redor, a maioria é um
tanto de gente rica que tem e que está mexendo com artesanato, é porque dá dinheiro e é
fácil, não precisa se sujar, você trabalha dentro de casa, é gostoso para fazer, você faz
tranqüilo, é maravilhoso, ás vezes você chega num lugar assim, o resto não é pobre não.”
(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
209
Na fala de Maria da Guia sobre sua participação na feira do Gilberto Salomão se
revela uma representação do artesão como sendo comumente “gente pobre”. Tal
informação é desafiada ou contrariada pela experiência na feira, onde ela observa que a
maioria das pessoas que estão expondo é “gente rica”. Em seguida, Maria da Guia enumera
as vantagens de trabalhar com artesanato, que dizem respeito a ela mesma mas também
valem para “gente rica”: (a) “dá dinheiro”, (b) “é fácil”, (c) “não precisa se sujar”, (d)
“trabalha dentro de casa”, (e) “é gostoso”, (f) “tranqüilo”, (g) “maravilhoso” e por fim (h)
“o resto não é pobre”. O argumento final de Maria Da Guia, porém, indica sua percepção
de que o desempenho dessa atividade em seu meio representa uma possibilidade de
ascensão social, sendo possivelmente considerado como um fator de distinção para ela.
O artesanato, entre suas muitas vantagens, apresentaria assim também a
possibilidade de distinção social, conforme diria Bourdieu. Segundo Bourdieu (1979, 1999,
2000), a distinção social do indivíduo passa pelo reconhecimento por parte do grupo social
da existência de um valor a ser desejado por todos, ou seja, pela comunhão social de
valores e pelo compartilhamento de referenciais daquilo que é desejável, e que nem todos
podem alcançar. No caso do artesanato, tanto a realização da tarefa representaria uma
distinção para as artesãs, em contraste com as demais possibilidades de colocação
profissional, quanto o resultado do trabalho, o objeto artesanal, incluído nos catálogos de
moda, ofereceria um fator de distinção para aquele indivíduo que o investe de significados,
adquire-o e ostenta-o, comunicando ele próprio seus significados e significando através
dele.
Esse segundo fator de distinção também foi observado por Maria da Guia, ao
discutir o valor de uma colcha de patchwork e a possibilidade de colocar um preço que seja
justo e vá ao encontro das expectativas do consumidor.
210
“Daí vão dividir para dez os seiscentos reais, vai dar sessenta para cada uma. Mas
não vende, a gente cobra, mas não sai. É difícil vender. Lógico, para uma pessoa pagar
seiscentos reais numa colcha, ela tem que gostar demais de artesanato. Precisa gostar
muito, artesanato na verdade é supérfluo. Não precisa tanto igual uma geladeira, uma
máquina de lavar.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
A adoção de um estilo de vida está marcada pelo “precisa gostar muito”. Aquilo que
é desejado, do ponto de vista de Simmel, ao lado daquilo que é recusado, do ponto de vista
de Mary Douglas. Os dois andam lado a lado na seleção daquilo que serve ou não serve ao
“gosto”, unidade de construção de coerência do estilo.
Uma breve definição teórica do conceito de gosto pode contribuir para o
entendimento da prática de estabelecer diferenças e marcas de distinção. Para tanto, é
preciso passar pelo entendimento do seu correlato, o estilo de vida. O conceito de “estilo de
vida”, conforme exposto por Bourdieu (1983), pode ser entendido como a forma pela qual
uma pessoa ou um grupo de pessoas vivencia o mundo e, em conseqüência, se comporta e
faz escolhas levando em conta critérios estéticos, artísticos, religiosos, morais ou quaisquer
outros que sejam significativos para o grupo em questão, estando de forma unitária de
acordo com o seu gosto. O estilo de vida poderia ser entendido como expressão das
representações sociais de um grupo sobre formas de se colocar no mundo, estando elas em
concorrência entre si.
Para Pierre Bourdieu, "às diferentes posições que os grupos ocupam no espaço
social correspondem estilos de vida, sistemas de diferenciação que são a retradução
simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência" (BOURDIEU,
1983: 82). O estilo de vida, para Bourdieu, é um conjunto unitário de preferências
distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos
211
(mobília, vestimentas, linguagem, héxis corporal, etc.) a mesma intenção expressiva,
princípio da unidade de estilo que se entrega diretamente à intuição e que a análise destrói
ao recortá-lo em universos separados” (BOURDIEU, 1983)
Para Bourdieu, este princípio da unidade de estilo é que chamamos de “gosto”. Ele
precede e motiva as escolhas e faz parte daquilo que Bourdieu denominou como habitus
(princípio gerador e unificador de todas as práticas). Uma vez que o habitus se manifesta
simbolicamente em todas e em cada uma das esferas da vida privada, ele pode ser
percebido na observação do estilo de vida de um determinado grupo social, no âmbito da
esfera privada e nas suas relações de vizinhança.
Por outro lado, sendo os signos num sistema de signos uma função da relação com
outros signos, ou seja, sendo seu valor dado pela posição que ocupam no sistema, o estilo
de vida significa também relações de associação ou dissociação no sistema de
estratificação. Logo, as formas ou estilos de consumo - por exemplo, das artes ou bens
materiais - contribuem fundamentalmente para o conhecimento do significado atribuído
pelos grupos às suas ações e da própria imagem social do grupo (BOURDIEU, 1979).
O estilo de vida não é apenas uma possibilidade que se coloca para pessoas com
condições socioeconômicas privilegiadas, mas se refere também a atitudes e escolhas que
são decorrentes de uma decisão anterior, na adoção de um modo de pensar a sua vida. Ou
seja, a partir de uma reflexão sobre a forma como percebe o universo, o sujeito pode ser
levado a optar por um determinado estilo de vida, que vai influenciar todas as escolhas
posteriores, inclusive aquelas que visam rejeitar determinados padrões.
Assim, orientado pelo princípio do gosto, o indivíduo encontra meios para se
colocar no mundo e buscar construir uma identidade social. Assim poderíamos voltar aos
212
tipos sociais propostos por Simmel (1971[1908]), que funcionariam como as balizas dessa
operação.
Mary Douglas (1996) mostra como a expressão do gosto através da rejeição de
determinados elementos pode ser reveladora da posição social ocupada pelo sujeito: “taste
is best understood by negative judgements” (DOUGLAS, 1996: 50)
Assim, o gosto pode ser entendido como definidor da identidade de um grupo social
e fundamento da constituição de sua subjetividade, por ser a afirmação de uma diferença
que se estabelece por contato e oposição. O gosto é uma forma de classificação dos objetos
do mundo que estabelece uma relação entre o sujeito e o objeto, e interfere na relação entre
dois sujeitos, sendo esta reação de identificação ou de rejeição do “gosto dos outros”.
A relação entre sujeito e objeto é uma relação de representação, uma vez que os
objetos não possuem significado em si mesmos. O significado é atribuído pelo sujeito aos
objetos, dentro de um contexto sócio-cultural específico. A mesma relação de representação
ocorre na adoção de um estilo de vida. Motivado pelo gosto, princípio de unidade de
significado simbólico, o estilo de vida vai permitir ao sujeito construir uma identidade
social e se colocar em relação aos outros na sociedade em que vive. Entretanto, não é o
gosto das artesãs que é expresso nos objetos, uma vez que afirmam que a função do
designer seria adaptar o produto ao gosto dessa entidade abstrata chamada mercado. Se o
próprio designer afirma que o seu trabalho é direcionado para um público caracterizado
como “consumidor sofisticado”, “muito exigente”, ou simplesmente como “o mercado de
luxo”, isso se reflete na relação entre designer e artesãs através da imposição de parâmetros
de exigência e qualidade, conforme discutido nesse trabalho. Podemos concluir que é o
gosto desse consumidor que, em última análise, orienta a produção artesanal, ainda que de
forma difusa e mediada.
213
Se ocorre um processo de identificação entre sujeito e objeto, no sentido
comunicacional, conforme proposto por Douglas (1996) e Douglas e Isherwood (2004),
esse processo se dá antes na recepção do produto artesanal do que na sua produção.
O gosto, portanto, responsável pela unidade de estilo que vai conformar um estilo de
vida, nos termos de Bourdieu, seria o gosto da consumidora, e não o das produtoras, uma
vez que a definição do formato final, desenho e acabamento do produto artesanal é de
responsabilidade do designer. O gosto que as orienta seria o gosto do outro.
Ao mesmo tempo, o gosto dessa consumidora é possivelmente afetado pela
indústria da moda, da qual o designer faz parte também como criador, determinando e
propondo, por meio dos catálogos, aquilo que deverá ser usado na próxima estação,
criando desejos.
“Eu fiquei chateada, e eu coloquei uma menina para fazer e ela não soube fazer o
acabamento e agora nos próximos eu vou falar com ela , vou sentar com ela e vou mostrar
para ela, vou mandar desfiar o tecido que eu estudei muito e é o único jeito de sair mais
ou menos perfeito, vou mandar ela desfiar o tecido e costurar com a mesma linha do tecido
que daí não tem erro” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
A preocupação com a perfeição do acabamento decorre da identificação de
parâmetros de qualidade ligados às expectativas do consumidor. A identificação desses
parâmetros é fundamental, pois, se não atender às exigências do consumidor, o produto não
será vendido. A fala transcrita demonstra a introjeção de um padrão estético “do outro” no
grupo de artesãs. Maria da Guia, que foi “aculturada” a esse padrão procura transmitir
seus conhecimentos à artesã que é introduzida ao grupo:
“Eu gosto de fazer artesanato de mão com capricho, eu gosto de fazer as bolsas
porque daí se tem um defeitinho eu vou e também eu sou muito chata, sou chatérrima,
214
mas não adianta zangar não, pois quando chega fora, quem leva sou eu, então não
adianta ficar nervosa comigo porque está mal acabado, porque o cliente é o que vende, é
artesanato e não querem nem saber, eles chegam e puxam aquilo e se rasgar minha
filha, não leva! Porque artesão é um bicho danado, quando ele um cliente na sua banca
todos ficam com olho enorme ,vendo qual defeito ele está pondo para queimar vocês e
queima, por isso que a gente capricha, porque a gente capricha mesmo, não sai perfeito
porque não tem como, mas se tivesse, olha sai o melhor possível.” (Maria da Guia Barros
de Oliveira, Varjão)
Enfim, as artesãs revelam buscar ao máximo uma adequação as expectativas do
cliente, tentando ir ao encontro de um gosto que não é o seu, mas que começam a conhecer
na medida em que estão em contato com ele, nas feiras, e recebem as críticas, procurando
assim adequar suas práticas a esse gosto.
O processo de adequação do produto ao gosto do consumidor resulta num paradoxo
ou numa relação dialógica. De um lado, temos um projeto de resgate da identidade das
artesãs com base na proposta de construção de uma identidade local para o trabalho
artesanal. Esse projeto está voltado para a inserção social da artesã e parte das mulheres no
seu contexto sócio-cultural atual, ainda que em construção. De outro, temos a atuação dos
designers buscando uma adaptação do trabalho artesanal, por meio da sua consultoria
especializada, às exigências e preferências do mercado consumidor. Ao buscar a adequação
do produto a um mercado de matriz internacional, colocando a artesã em diálogo com o
global, entendido como o “outro”, o designer faz com que as artesãs tenham de sair do seu
contexto sócio-cultural local.
Procuro aprofundar a reflexão sobre tais paradoxos e diálogos no próximo item.
215
Capítulo 9 – Artesanato de Design:
uma “cara nova” para as “coisas da vovó”
216
Capítulo 9. Artesanato de design: uma “cara nova” para as “coisas da vovó”
“Hoje nós, o interior, os brasileiros, estão valorizando o artesanato brasileiro, por
quê? Porque antes eles só ficavam pensando no que eles iam trazer de fora, então hoje teve
sim uma mudança na cultura das pessoas muito grande, não tem mais aquele raciocínio do
artesão “paz e amor” que andava debaixo da torre...um hippie que fazia de manhã pra
comer de tarde.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Partindo da percepção de uma mudança na concepção do que representa ser uma
artesã no mundo de hoje, Roze demonstra que se sente confortável diante da perspectiva de
formação de um mundo globalizado, em que o artesanato ganha novos significados e
transforma-se numa profissão.
Ao buscar ajuda do SEBRAE para encontrar os caminhos do trabalho produtivo, a
mulher é orientada a investir naquilo que ela sabe. Nesse momento, entram em jogo as
habilidades “naturais” de cada uma.
O SEBRAE orienta a mulher a focar-se naquilo que ela faz de melhor. O termo
“natural” aparece aqui como se, na natureza da mulher, houvesse uma predisposição para
trabalhos manuais com agulhas, como bordados ou costura, e para a produção de objetos
com fins decorativos. Sabemos que tais características, bem como sua quase total
exclusividade no cuidado dos filhos, são parte da construção cultural do papel social
feminino.
Depois de identificadas as habilidades “naturais” de cada uma das mulheres, passa-
se a um segundo momento, quando elas são encaminhadas para cursos de capacitação
naquelas habilidades específicas, apenas para “reforçar” o que seria “natural” para elas.
217
Antonieta Contini explica o motivo de se encaminharem as artesãs para os cursos de
capacitação, já que elas se apresentam no SEBRAE possuindo suas habilidades “naturais”:
“Não, no caso elas são artesãs, mas com trabalhos manuais, o artesão é aquele
que vai na natureza, traz a madeira e transforma em uma arte, vai na natureza pega o
barro e transforma em uma arte. Ele se inspira na natureza, então artesão é aquele sozinho
que `as vezes trabalha com a família, mas ele tem muito a cultura, muito agregada a
cultura dele. Se ele é nordestino, ele não muda aquilo e continua fazendo aquilo e tem que
ser assim, tem que abranger a cultura né, e ele não quer muita interferência, ele não quer
interferência, a maioria né, alguns são mais abertos ao designer...”não, eu sempre fiz
assim , eu prefiro assim”. Agora nós temos artesãos aqui muito atualizados, que buscam o
diferencial no designer e que vendem muito mais, porque hoje o mercado é muito exigente.
Não para ti fazer o tradicional, o tradicional tem que fazer, mas também tem que se
adequar ao que está se usando na ambientação e tal né, então eu não trabalho com artesã,
eu trabalho muito mais com grupo de mulheres e a diferença é que é trabalhos manuais,
resgatando técnicas artesanais brasileiras.” (Antonieta Contini, SEBRAE)
A Gerente do SEBRAE procura explicar como é visto e entendido o trabalho do
artesão naquela instituição, ponderando sobre uma maior ou menor abertura do artesão para
a interferência do designer no seu trabalho. Na sua avaliação, os artesãos que são “muito
atualizados”, “buscam o diferencial no designer” e “vendem muito mais”. Seguindo a
mudança na concepção do papel do artesão de hoje, conforme apontada por Roze , o
artesão “atualizado” estaria interessado na possibilidade de “vender mais”. Para tanto,
Antonieta Contini explica que “não dá pra ti fazer o tradicional, o tradicional tem que fazer,
mas também tem que se adequar ao que está se usando”, ou seja, seria preciso unir o
artesanato tradicional às tendências da moda.
Antonieta Contini menciona também o “resgate” de técnicas artesanais brasileiras,
retomando o que teria sido o ponto de partida do trabalho artesanal: aqueles conhecimentos
218
tradicionais que as mulheres possuíam naturalmente e que seriam “aperfeiçoados” por
meio dos cursos de capacitação do SEBRAE.
Nessa etapa entra em jogo a idéia de “coisas que a vovó fazia”, que consistiria em
conhecimentos que não foram aprendidos formalmente, mas transferidos de mulher para
mulher no jogo de reprodução de papéis sociais. São conhecimentos herdados e
compartilhados por alguns membros da sociedade que, em geral, dependem de alguma
habilidade manual específica. Antes de receberem o designer, que vai “desenvolver” um
produto para as artesãs, elas precisam fazer um curso para “lembrar dos pontos de bordado
que aprenderam com as avós”. Conforme foi mencionado tanto pelas artesãs, como por
Antonieta Contini, tia Ferreira e Renato Imbroisi, antes de começarem a produzir o
artigo “de design”, seria preciso fazer o “resgate” daquilo que as mulheres já sabem fazer, o
que seria feito por meio de um curso de capacitação em bordado ou costura.
O fato de que tal “resgate” seja feito por meio dos cursos de capacitação não parece
suscitar nenhum estranhamento entre os nativos desse universo do artesanato de Brasília,
que se referem aos cursos como uma forma de aprimoramento dos saberes “naturais” das
mulheres. A única ponderação que tem sido feita se refere ao fato de que algumas mulheres
não “levam jeito” para fazer trabalhos manuais.
Gerente, designers e artesãs empreendedoras explicam que “é preciso saber se uma
pessoa tem jeito pra isso” antes de lhe transmitir o conhecimento. Muitas mulheres tentar
aprender o bordado ou a costura, mas não “levam jeito pra isso”. Aquelas que não “levam
jeito” acabam sendo orientadas a continuar na busca pela sua principal habilidade,
entendida como um “dom”.
A justificativa para esse processo de “resgate” encontra-se na crença de que cada
membro da sociedade possui “dom” para alguma coisa, uma habilidade e predisposição
219
natural, recebida gratuitamente como presente, para a realização de algum tipo específico
de tarefa. Descoberto o dom, ele precisa ser aceito e utilizado para o bem de todos, como
forma de retribuição.
A existência dos “dons” ligados aos “fazeres tradicionais” nesse contexto de
globalização e modernidade tardia acaba por transformar o próprio significado do “dom”,
que se transforma em algo além de uma habilidade nata, para ser também a forma como
uma pessoa vai se inserir no sistema econômico, seja no mercado de trabalho, como
produtor, seja diretamente no mercado consumidor.
No “Ensaio sobre a Dádiva”, Marcel Mauss (2001[1950]) trata do dom como
recurso empenhado num sistema de trocas, que representa tanto um investimento
econômico para ser resgatado no futuro, quanto investimento na construção da honra e do
prestígio no momento presente para aquele que se desfaz do bem. Traçando um paralelo
com as artesãs, o “resgate” dos “dons” tanto representaria uma possibilidade de ganho de
prestígio por meio da descoberta de uma nova oportunidade de trabalho e possível geração
de renda, no presente, bem como um possível investimento também no futuro, através
dos desdobramentos dessa atividade, caso a sua inserção no mercado frutifique.
Com isso, somos forçados a nos apartar daquela idéia romântica do artesão que vive
meio isolado do mundo, produzindo um artefato apenas pela “arte”, ou simplesmente para
ser vendido a preços baixíssimos no meio da calçada de uma rua qualquer. O artesão de que
estamos tratando está inserido numa rede de relações, vive num mundo globalizado, em que
exportação e feiras internacionais não são realidades tão distantes. O mesmo tipo de
observação sobre a mudança no significado do artesanato e do papel do artesão na
sociedade de hoje foi mencionado tanto por Roze Mendes, da Flor do Cerrado, no começo
desse capítulo, como por Kátia Ferreira, da Apoena Fashion, quase nos mesmos termos. A
220
busca por conquistar o mercado consumidor torna-se uma etapa necessária para garantir a
sustentabilidade do projeto de artesanato com finalidade de geração de renda, e não um fim
em si mesmo. Observar esse dado permite a apreensão de novos significados para as
antigas práticas.
Além da importância do domínio do manejo das técnicas artesanais, “resgatadas”
pelo SEBRAE na sua atuação junto aos grupos de trabalho, entra em jogo também o tipo de
material empregado nas confecções. O tipo de material aparece como parte da
caracterização da atividade artesanal, como constitutivo da própria definição de artesanato.
Isso se expressa no processo de “atualização ou modernização” da atividade
artesanal, quando se a busca pelos materiais mais naturais, mais ecologicamente
corretos. Esses são preferidos não apenas por serem bons em si mesmos, porque ser
ecologicamente viável representaria um valor em si, mas também porque o produto
ecologicamente correto atenderia também a um segmento de mercado definido, e tal
característica agregaria valor ao produto.
Não somente a sustentabilidade ambiental atrairia o consumidor e agregaria valor ao
produto. Segundo Renato Imbroisi, “Para saber se o produto vai agradar o consumidor,
pesquisa de mercado, e o que conta a história do produto faz essa diferença. Além do produto em
si, a história que tem por trás.” A pesquisa de mercado ajuda a revelar os desejos do
consumidor, em compasso com as tendências da moda. Mas o designer revela ainda que
parte da estratégia de promoção do produto artesanal repousa nas histórias ou narrativas
que acompanham esse produto, revelando detalhes tanto sobre as pessoas que o produzem,
o tipo de comunidade em que é feito, quanto no que tange ao impacto social dessa
comercialização, bem como as etapas do processo de produção, que de um modo geral
empregam materiais reciclados e recursos naturais.
221
As costureiras do Varjão empregam materiais reciclados tais como retalhos de
tecidos e tampinhas de garrafas e latas. Toda espuma, tecido ou linha que restar será usada
como enchimento das bonequinhas. Já as Bordadeiras de Taguatinga utilizam somente
tecidos de algodão natural, que deve ser pré-lavado antes de se iniciar o bordado, para que
não encolha quando for lavado pela segunda vez, necessária após o término da aplicação
dos fios de linha do bordado. A Flor do Cerrado, por sua vez, utiliza as folhas secas dos
arbustos do cerrado, que são colhidos no campo, mas atua com “consciência ecológica”
para não danificar o ecossistema do cerrado, retirando um pouco por vez, de forma a
garantir a sustentabilidade dos recursos naturais. Conforme o relato de Roze Mendes, ao
final da primeira parte da tese, cada vez que ela vai ao cerrado em busca de matéria-prima,
ela aproveita para juntar e trazer para casa uma enorme quantidade de lixo que as pessoas
deixam jogado nos campos, e que prejudica o meio-ambiente. Parte da sua tarefa consiste
na luta pela preservação desse ecossistema. Analisando três modos distintos de trabalhar
com o artesanato, podemos perceber que todos eles compartilham dessa característica de
vinculação da atividade artesanal com a preservação do meio-ambiente.
O cuidado com a natureza e a consciência da necessidade de preservação, bem
como da importância da reciclagem para o meio-ambiente, constituem uma tendência da
moda que está conectada com o discurso ecológico internacionalmente difundido. Ao
mesmo tempo, estar sintonizado com tal discurso representa em si um capital simbólico,
nos termos de Bourdieu, e resulta numa “estória” sobre o valor desse produto, que é
vendida conjuntamente com ele. O produto artesanal não é apenas um objeto, mas um “kit”
que inclui objeto e discurso, recorrendo ao contexto da produção para retirar dali as
referências culturais deslocadas que concorrem para forjar o significado conforme ele
parece ser mais apreciado. Se aqui a razão prática se faz presente, nos termos de Marshall
222
Sahlins, visando o comércio de “bits de cultura” por meio desses discursos, inegavelmente
ela se faz acompanhar de representações, que o fatos sociais relevantes, compartilhadas
por esse público consumidor, permitindo a revelação dessa camada de sentido.
Se existe a possibilidade do designer responder aos apelos do mercado fornecendo
um produto com um discurso, um “kit”, isso ocorre antes porque existem essas
representações entre as consumidoras, que esperam manifestar sua consciência ecológica e
social através da aquisição dos produtos, do que pela simples razão prática de que os “kits”
vendem bem.
Dessa forma, a aquisição de produtos artesanais é vista como um ato de cidadania e
expressão de consciência social, como forma de mostrar um consumo crítico ou de se
posicionar contra o “consumo conspícuo” de que fala Veblen. O fato de que tais “kits”
artesanais, objeto e discurso, são produzidos de acordo com a orientação de um designer,
revela mais do que o fato de que eles são construídos numa interação que tem foco no
mercado, revela representações próprias de um outro grupo social que é constituído pelos
consumidores desse tipo de produto, de que o designer seria, ao mesmo tempo,
representante e intérprete.
Interessa aqui não tanto revelar a existência de uma razão prática que reduz o
processo de produção artesanal ao comércio, mas a existência de diferentes representações
ou cosmologias concorrendo em torno de um objeto material, numa espécie de disputa pelo
significado.
Um outro aspecto importante no que diz respeito à disputa pelo significado é a
batalha de classificação que ocorre quando a artesã busca o reconhecimento de sua situação
profissional pelo Estado, ao inscrever-se oficialmente como artesã. O ingresso no campo
formal do artesanato demanda a obtenção de um registro de artesão, que se com a
223
obtenção da “carteirinha de artesão”, elaborada pela Gerência de Artesanato da Secretaria
do Trabalho do Governo do Distrito Federal. Os meandros desse processo de registro do
artesão na Secretaria do Trabalho serão conhecidos no capítulo seguinte. Por ora, gostaria
apenas de salientar que um dos primeiros passos no ingresso do artesão nesse campo passa
pela etapa burocrática de registro. Como toda burocracia, trata-se de formas de
classificação e ordenamento da atividade, e também da definição da atividade artesanal do
ponto de vista do Estado.
O tipo de material como constitutivo da atividade artesanal se expressa, portanto, de
duas formas. A primeira, tratada até aqui, leva em conta o ponto de vista do designer, que
busca adequar o produto ao que é desejado pelo consumidor do artesanato, indo ao
encontro de sua consciência ecológica. A segunda, que trataremos em seguida, leva em
conta o ponto de vista da autoridade que representa o Estado na definição de quem é e
quem não é artesão, e que passa também pela definição do tipo de material considerado
apropriado para a atividade artesanal. Conforme me explicou Ana Maria França,
funcionária da Secretaria do Trabalho do GDF:
“A cnica que você utiliza é importantíssima, pois na medida que você utiliza,
sabe pegar uma técnica e utilizar com a matéria prima adequada para poder ter um
produto aceitável no mercado de trabalho, isso para mim é artesanato. Que quando você
pega uma matéria prima que não é tão aceitada naquela técnica e você consegue fazer,
obter um produto totalmente diferente, você está inovando. A criatividade ali, a
originalidade está ali, então, quer dizer, para mim teria que definir, eles começam
discutindo a matéria prima, se você faz.” [...]
A Secretaria do Trabalho cadastra bijuteria natural. Mas o que a gente com
o mercado de trabalho é que são aqueles negócios coloridos, bem rosinha, miçanga,
aquelas resinas, aqueles negócios, essa não é uma matéria prima aceitável? A Ana Maria
acha que é. Mas quando eu vou fazer um cadastramento eu coloco, se você for chamado
para uma exposição da secretaria o seu produto tem que ser o mais natural possível, para
224
não fugir do artesanato, por que é uma luta que se tem é que não se fuja. Então, eu acho
importantíssimo, quando for definir o artesanato, que veja essa parte da matéria prima.
Então, se você tem uma matéria prima “x”, aplica uma técnica nela e faz um produto, com
acabamento, com criatividade, outros conceitos, eu posso considerar isso como
artesanato atualmente. o o indígena, o indígena é bem natural, você não vai ter que
fazer a vida inteira trabalho com cabaça. Não é não? Não é?” (Ana Maria França, GDF)
Procurei aqui mostrar as disputas ou negociações de significados presentes nos
fazeres cotidianos, vendo o consumo, por exemplo, como ativo e não como passivo, num
universo de representações. Da mesma forma, entendo que a classificação burocrática vai
se revelando negociada a cada momento, por meio dos procedimentos e estratégias que os
atores empregam no cotidiano para a manutenção daqueles significados que lhes são mais
interessantes. Procuro chamar a atenção para esses processos em que comumente não se
percebe o poder de agência do sujeito, como se o consumidor ou o burocrata, por exemplo,
não tivessem nenhum papel ativo a desempenhar, e seus atos fossem destituídos de
significado motivado.
Ao mesmo tempo, nessa pequena manipulação do significado corrente, em uso,
podemos constatar que a imposição de um conhecimento é um exercício de poder, do poder
de quem possui o conhecimento sujeitando aquele que não o possui. A apropriação desse
conhecimento e os diferentes usos que dele se faz, em proveito e beneficio próprio, por
aqueles menos favorecidos nessa relação, nos termos de Bourdieu, “os dominados”, seriam
parte das diferentes expressões do poder de agência individual.
Procurei mostrar a apropriação que é feita dos conteúdos culturais transmitidos pelo
treinamento e formação, ao observar como isso é utilizado pelos indivíduos em proveito
próprio, ou seja, nas manobras de sentido efetuadas a partir daquilo que é apreendido, no
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uso cotidiano, por meio de uma negociação que visa a imposição de um significado.
Procuro analisar a forma como esses recursos são empregados do ponto de vista da ação
individual do sujeito, no campo dinâmico e vivo do significado corrente, também chamado
de cosmologias ou representações, que subjazem às práticas cotidianas.
226
Capítulo 10 – A Carteirinha do Artesão
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Capítulo 10. A Carteirinha de Artesão
A Secretaria do Trabalho do GDF é o órgão responsável pela confecção da “carteira
de artesão” que confere aos artesãos do Distrito Federal a isenção de imposto para a
comercialização do seu trabalho. Todo artesão precisa obter esse documento se tiver
intenção de comercializar seu produto no setor formal da economia, ou seja, como
fornecedor para lojas ou para exportação, casos em que se exige uma nota fiscal. Esse
capítulo trata de uma parceria entre o SEBRAE e o GDF.
A carteirinha não é necessária para a venda no varejo, diretamente do produtor ao
consumidor final, situação em que a nota fiscal pode ser dispensada, como costuma ocorrer
nas feiras de artesanato cujo alvo é o consumidor, e não o lojista. Para aceitarem pedidos e
encomendas de lojistas, os grupos de artesãs precisam, porém, fornecer uma nota fiscal da
mercadoria, e para isso precisam da carteirinha de artesão, a menos que registrem uma
empresa.
Ana Maria França, responsável técnica pelo fomento ao artesanato, me recebeu para
uma entrevista e explicou o funcionamento daquela gerência e as parcerias da Secretaria do
Trabalho do GDF.
“O programa brasileiro de artesanato, ele fica vinculado ao Ministério de
Indústria e Comércio, MDIC. Então, dentro do Distrito Federal, o órgão responsável pelo
programa de artesanato brasileiro é a Secretaria de Trabalho. Então dentro desse
trabalho, o que se faz? Essa gerência de fomento ao artesanato é responsável também. Tem
as suas parcerias com SEBRAE, com o próprio MDIC, que cedeu caminhão, que tem toda
assim uma parceria para as exposições. E aqui, basicamente, a gente registra, faz o
228
cadastro do artesão. O artesão, para ter a sua carteirinha, ele tem que estar registrado
aqui. Cadastrado aqui. E esse cadastramento é feito de que forma? Ele é feito todo
primeiro dia útil do mês, ele tem de nove a dezesseis horas para poder se cadastrar aqui.
Que assim, está aqui escrito, né, e o que ele precisa é exatamente isso, de duas fotografias,
carteira de identidade, CPF, comprovante de residência no Distrito Federal, como
exigência do programa, que o artesão seja domiciliado e residente no Distrito Federal.”
(Ana Maria França, GDF)
Sobre as vantagens que podem ser obtidas pelo artesão que tiver o registro na
Secretaria do Trabalho do GDF, Ana Maria França explica que além de oportunidades de
participação de feiras e na “vitrine do artesão” de Brasília, existe ainda a autorização para
emissão de nota fiscal e a isenção de impostos.
“Se ele for fazer uma exposição, vamos falar na feira da lua, ela já é uma feira que
é particular, né, então a gente paga o espaço e tudo, então ele não precisa de nada. A
única coisa que ele vai precisar é da carteira de artesão dele, porque ele precisa tirar a
nota fiscal, emitir a nota fiscal. E ele é isento. A vantagem do artesão aqui no Distrito
Federal é ser isento no ICMS, o imposto de circulação de mercadoria.” (Ana Maria
França, GDF)
Na sua avaliação, os artesãos teriam oportunidades futuras, podendo ser convidados
para feiras, exposições e para a “vitrine do artesão”, que se localiza no CONIC, local de
grande circulação de pessoas em Brasília.
“Antigamente ficava pronta no mesmo dia. Mas o que a gente percebeu, foi
percebido pela direção, é que havia necessidade que houvesse uma palestra, para abordar
e oferecer os próprios serviços que tem na Secretaria, um próprio entendimento, então
ultimamente ele está sendo entregue pelo Secretário, tem o que, eu acho que um ano. E
onde eles dão as informações sobre a Secretaria. Sobre o Centro de Comercialização, que
229
a secretaria dispõe no CONIC, nós temos agora um Centro de Comercialização no
CONIC que, de quinze em quinze dias, são trocados os artesãos e lá sempre tem artesanato
de segunda a sexta.” (Ana Maria França, GDF)
Para obter a “carteirinha de artesão” é preciso fazer uma inscrição, comparecendo
ao setor de Artesanato da Secretaria do Trabalho no primeiro dia útil de cada mês, munido
de documentos de identificação e do seu material de trabalho artesanal, para mostrar ao
vivo como é feito o trabalho.
Logo na saída do elevador, no andar da Secretaria do Trabalho, é colocada uma
pequena mesa de escritório, onde as pessoas que buscam a carteira de artesão preenchem
uma ficha prévia de atendimento, mostram seus documentos e falam de suas técnicas. Ali é
feita uma triagem dos artesãos, e são definidos aqueles que atendem aos requisitos
estabelecidos pelo GDF. Na parede estão afixados cartazes, um definindo o conceito de
artesanato, um outro descrevendo o que é arte popular e um terceiro definindo o que são
trabalhos manuais. Ali encontro uma definição de artesanato que leva em conta
simplesmente o tipo de matéria prima empregada, mantendo uma relação estreita com o uso
de produtos naturais, além de outras três características básicas, cada uma mais difícil de
ser exemplificada na prática do que a outra. O cartaz afirmava também que o artesanato
possui valor cultural agregado, criatividade, e outras coisas mais, que chamaram muito a
minha atenção pela clareza e simplicidade com que foram dispostos ali, na melhor das
intenções para informar o visitante. O mais curioso foi a definição de cultura popular: “é o
artesanato de cunho familiar, de pai para filho”. Enfim, o cartaz cuja reprodução se
encontra na página seguinte rendeu muitas reflexões.
230
*************************************************************************
GERÊNCIA DE FOMENTO AO ARTESANATO – GFA/GDF
O ARTESANATO
Usa matéria prima natural (Ex: barro, couro, fibras, sementes, osso, cordão
natural)
Tem valor cultural agregado;
Apresenta maior criatividade;
Não é produzido em série;
Usa pouco maquinário (30%)
A ARTE POPULAR
É o artesanato de cunho familiar ( de pai para filho).
Tem característica cultural regional;
Usa matéria-prima local;
Não tem caráter comercial;
Tem pouca diversidade (trabalha sempre com o mesmo tipo de matéria-
prima e de produto)
O TRABALHO MANUAL
Usa matéria-prima industrializada;
Tem maior uso de maquinário (70%)
(Re)produzido em série;
Tem pouco valor cultural;
Implica o domínio de uma técnica
que demonstre claramente: HABILIDADE
CRIATIVIDADE
QUALIDADE E
ACABAMENTO DO PRODUTO
********************************************************************
231
Com clareza e simplicidade, o pessoal da Gerência de Fomento ao Artesanato do
GDF preparou cartazes com definições conceituais de Artesanato, Arte Popular e Trabalho
Manual. A leitura dos cartazes faz parecer que se trata de temas simples, de fácil definição.
Nas entrevistas que se seguiram, entretanto, o aprofundamento do assunto levou à
exposição da complexidade dessas definições. As conversas, reflexões e tentativas de
elucidação, com nuances de significado difíceis de serem definidas, permitiram observar a
difícil tarefa burocrática de definição de parâmetros classificatórios, construídos ao mesmo
tempo que improvisados, e a discreta possibilidade de manejo das categorias
classificatórias, de acordo com o entendimento motivado dos atores sociais, conforme
demonstro em seguida.
Na sala de espera são colocadas cerca de trinta cadeiras, para as pessoas esperarem
a sua vez de demonstrar suas técnicas. A sala de espera fica na entrada, saindo do elevador,
no meio do corredor de acesso às demais salas. Dali os artesãos são chamadas pelo seu
primeiro nome para entrarem numa segunda sala, da Gerência de Fomento ao Artesanato.
Atrás da mesa de triagem encontro Maria Geoni de Oliveira, responsável pelo setor. Ela
mesma conversa com as pessoas e indica quem atende aos requisitos, mandando alguns
artesãos de volta para casa. Naturalmente, os que são mandados embora não encaram isso
com muita tranqüilidade, o que resulta em brigas e intensos bate-bocas no local.
Maria Geoni de Oliveira faz algumas perguntas aos artesãos que se apresentam ali
em busca da carteirinha. Uma resposta errada é suficiente para barrar ali mesmo a
oficialização da nova profissão. A funcionária tem uma ficha na mão, com as exigências
estabelecidas pela gerência de fomento ao artesanato da Secretaria do Trabalho do DGF
para a concessão da carteira. Primeiro, apresentar documentos de identificação e
232
comprovante de endereço. Segundo, apresentar um objeto pronto para mostrar o resultado
final do seu trabalho. Terceiro, empregar alguma das técnicas de artesanato previstas e
ainda utilizar matéria-prima natural ou reciclada. Para conseguir encaminhar a carteirinha, é
preciso que o artesão se enquadre nas categorias de tipos de artesanato, incluindo técnicas e
materiais, que foram estabelecidos no setor. Também é preciso demonstrar sua competência
artesanal na frente dos técnicos do governo, fazendo artesanato ali mesmo, durante algum
tempo, para que possam ser avaliados. Caso não atendam às exigências, não serão
considerados artesãos e não poderão beneficiar-se das leis de isenção fiscal.
Presenciei uma curiosa discussão na mesa de triagem, sobre o emprego correto da
técnica de craquelê sobre caixas de madeira. Trata-se de uma técnica que consiste na
aplicação de desenhos com algum tipo de resina como cobertura, que resulta num efeito de
envelhecimento, ficando a ilustração com aparência quebradiça. Na opinião da técnica da
gerência de fomento ao artesanato, o objeto em questão era apenas uma “colagem”, e
colagem não se enquadraria em nenhuma das categorias. Entretanto, a artesã garantia que
se tratava de um tipo de craquelê, pois o craquelê poderia resultar um pouco mais ou um
pouco menos quebradiço, e aquele estava um pouco menos, o que não significava que não
fosse craquelê.
A artesã ficou irritada com o questionamento de sua prática e não se dispôs a fazer
um outro craquelê mais quebradiço, como queria a responsável técnica. Essa, por sua vez,
afirmava apenas que aquilo não era craquelê, era colagem, e colagem não podia. Não houve
diálogo entre as duas, e minha presença não interferiu na troca de ofensas e xingamentos
mútuos. Resultou que a artesã foi embora com seu material e sem carteirinha, gritando que
“não prestava pra nada mesmo a inútil carteira”. Conversei com ela antes que entrasse no
elevador, e a artesão me contou que seus parentes vendiam artesanato todos sem carteirinha
233
nenhuma, e que portanto ela continuaria fazendo o seu craquelê como sempre fizera. Ela
dizia não precisar mesmo daquela burocracia inútil.
Logo em seguida, Maria Geoni me explicou tranqüilamente que era necessário
estabelecer critérios técnicos para o bom funcionamento daquela gerência, e as pessoas não
compreendiam que ela estava apenas fazendo cumprir as normas. Os artesãos tinham que
cumprir as regras e fazer o trabalho dentro dos requisitos do artesanato, senão poderia virar
uma bagunça, onde cada um faria o que desejasse.
Conforme os candidatos se mostrassem mais dispostos a se encaixar nas normas,
percebi que contavam com o auxílio da funcionária. Uma moça apresentou-se com
“bijuterias”, fazia pulseiras e colares de contas coloridas, de plástico:
Não”, explicou Maria Geoni, não pode ser com esse material. Tem que usar
coisas naturais, sementes”.
“Mas como eu faço então?” quis saber a moça.
Vai ali embaixo, logo em frente tem uma loja de produtos para artesanato, eles
vendem miçangas de madeira e sementes. Compra ali um pacotinho pra você poder fazer
as suas pulseiras. Depois você volta aqui de novo.”
A grande sala da Gerência de Fomento ao Artesanato estava transformada no dia de
visita dos artesãos. As mesas dos burocratas estavam vazias, muitas cadeiras fora do lugar e
tudo tomado por artesãos demonstrando suas técnicas. Gente por todo lado, e os
funcionários do setor com pranchetas na mão, preenchendo fichas de avaliação dos
trabalhos que observavam. As fichas continham basicamente os campos para dados
pessoais e de contatos, e as categorias previstas na Secretaria para enquadrar os artesãos nas
técnicas e materiais e ainda um campo para avaliação do grau de competência do artesão.
234
Os funcionários observavam durante algum tempo e anotavam ali se a técnica era bem
empregada e se o resultado final era ótimo, bom, regular ou satisfatório.
Ana Maria França, a responsável pela elaboração dos parâmetros de cadastramento,
me recebeu para uma entrevista e explicou o funcionamento daquela gerência. Segundo ela,
é muito importante a avaliação do trabalho feita pelos funcionários da Secretaria, pois
somente aqueles artesãos que se destacassem mais, que tivessem produtos com acabamento
superior, seriam depois convidados a participarem de eventos promovidos pela Secretaria
do Trabalho. Alguns dos critérios de destaque do trabalho artesanal seriam a criatividade e
a originalidade do trabalho. Interessada sobre a subjetividade dessa avaliação, que viria
interferir posteriormente nas oportunidades de comercialização do artesanato, indaguei:
“Como é que se diferencia a criatividade da originalidade?”. A funcionária, então,
respondeu-me:
“Eu coloco como originalidade aquilo que agente custa ver, que é mais difícil, que
não é corriqueiro, eu coloco assim. Porque você sabe que bordar todo mundo borda,
crochê todo mundo faz, né? Mas tem umas peças aqui que você diria que são originais,
elas já tem assim, sabe, fazem esses boleros, que estão usando agora, cada um diferente do
outro. Então ela é original e uma técnica que é comum, que é o crochê, que é o tricot, que é
o tear.” (Ana Maria França, GDF)
Ela relaciona as técnicas tradicionais, que seriam algo bem comum, com a moda,
sendo a moda aquilo que todo mundo estaria usando e querendo usar. A originalidade
estaria na combinação inesperada dos elementos. E a criatividade?
“A criatividade, é difícil para você poder colocar. Você pode ser criativo e pode
ser original. Você pode ser criativo e não ser original. Você pode, você pode ter uma
criatividade, e não ter uma originalidade tão grande, ta dentro do comum. Tem a menina lá
que bordou, eu vou dar um exemplo, os bordados. Quais são os bordados que são mais
235
bonitos agora? Customização, o conceito que eu tinha de customização, é um tipo de
bordado que é feito do avesso para o direito. Isso é customizar, do direito para o avesso.
Mas eu assisti uma palestra do SEBRAE que foi dada como espécie de oficina, numa feira
aí, e eu fui justamente para ver isso, pois estava chegando muita customização e para
mim não era customização. Customizar, de acordo com a língua, que é francesa e tudo, era
mudar, era mudar o costume de acordo com a característica do indivíduo. Então era
operar, se você tem um cinto preto e você passa uma tinta dourada, você customizou ele. E,
para mim, individualizou, colocou de acordo com ela. Então ela mudou todo o conceito que
eu tinha de customizar, e é o conceito que está sendo colocado à população, então, mudou.
O que está sendo de bordado, o que tenho visto, que tenho gostado, que as pessoas tem
gostado mais, é quando eles colocam, uma rendinha, uma fitinha, além aí borda um
pouquinho, fica um negócio assim, diferente. Mas isso aqui, é a pessoa criativa, dentro do
bordado dela, tem cada bordado, tem uma peça que eu comprei muito criativa, mas não é
mais original. Aquele tipo de trabalho, tem muita gente fazendo. Não vou dizer que não
todos, mas tem muita gente fazendo. o que que acontece? Vendo pela mesma linha de
trabalho, tem gente fazendo, mas com rococó, fica mais criativo. Nessa linha, mas ele
está criando dentro. Então eu ponho a criatividade nesses termos.” (Ana Maria França,
GDF)
Na tentativa de me esclarecer os procedimentos, a funcionária recorre a exemplos,
que acabam contribuindo para aumentar a confusão sobre a aplicação dos parâmetros.
Naturalmente, uma avaliação subjetiva da criatividade e da originalidade dos trabalhos
artesanais se torna difícil de ser explicada. Foi isso o que ficou subentendido, após as
longas explicações, nas quais ela jamais afirmaria que se trata de uma avaliação subjetiva,
efetuada por um funcionário, de acordo com sua opinião pessoal, experiência e gosto
estético, numa ficha de avaliação estruturada em termos de sim ou não.
Michael Herzfeld (1992), analisando o funcionamento das práticas burocráticas,
esclarece que “Formal regulations and day-to-day burocratic practices alike are fully embedded
236
in everyday values; the idea of organizational reason is itself a symbolic construct with powerful
ideological appeal.” (HERZFELD, 1992:18)
Em outras palavras, as regulações formais e as práticas burocráticas cotidianas estão
fundadas nos valores atuais, que podem ser depreendidos a partir dos discursos acerca
dessas práticas. A idéia de uma organização racional é um “construto simbólico”, com um
apelo ideológico poderoso. Pode-se dizer que tal construto simbólico existe como uma
representação à qual os atores sociais reagem e respondem, e assim ela passa a ter
existência concreta no mundo real.
Se as práticas burocráticas não são tão neutras ou livre de crenças como se costuma
acreditar, se estão imbuídas dos modelos de pensamento e dos valores compartilhados no
dia-a-dia pelas pessoas que atuam, que lidam com elas, membros da sociedade, então a
observação de Herzfeld pode nos ajudar a pensar como se poderiam interpretar tais práticas
burocráticas.
Uma vez que Brasília é uma cidade nova, com muita coisa ainda em construção,
uma cidade em processo de vir a ser uma cidade moderna na sua plenitude, que se estende
desde a construção para a concretização efetiva e acabada do sonho de JK, pode-se supor
uma certa liberdade expressiva na exposição dos modelos burocráticos, que seriam eles
também algo ainda em processo de construção, algo inacabado. Essa faceta sempre
existente, mas nem sempre assumida ou demonstrada, da burocracia, estaria presente nessa
cidade, onde as pessoas já possuem uma certa familiaridade com a imagem do canteiro de
obras, com novos começos, com os processos de construção.
Pode-se afirmar que o canteiro de obras é parte do imaginário simbólico da cidade
de Brasília, como mito de origem, disponível no repertório simbólico dos habitantes, pronto
para ser acessado e reatualizado conforme a prática ou o ritual torne necessário. Tal
237
imagem continua figurando no imaginário e pode operar como justificativa para idéias de
construção e para trabalho inacabados ou em processo.
Retomando as fichas de avaliação do trabalho artesanal, que se encontram em
processo de elaboração e aprimoramento, temos que as avaliações seguem seu curso e os
artesãos seguem sendo registrados na Secretaria do Trabalho, com critérios ainda um tanto
subjetivos, num processo em que todo o conteúdo significativo se mostra passível de ser
negociado. Observa-se, assim, how mutable was the meaning of their shared symbols
(HERZFELD, 1992:28)
Em meio a categorias um tanto subjetivas, os artesãos são classificados no sistema
da Secretaria do Trabalho, e, conforme as avaliações que recebem dos técnicos que
realizam a observação, eles teriam oportunidades futuras, podendo ser convidados para
feiras, exposições e para a “vitrine do artesão”, que se localiza no CONIC, local de grande
circulação de pessoas em Brasília.
As entrevistas com as funcionárias da Gerencia de Fomento ao Artesanato
resultaram em longas reflexões sobre o significado das categorias que estão sendo
construídas para classificar todo tipo de trabalho artesanal que surge como proposta.
Minhas perguntas levavam a explicações cada vez mais longas e detalhadas sobre o
trabalho que estão desenvolvendo.
Esse diálogo permitiu observar, no momento da interação, o processo de negociação
de significados, quando a funcionária tranquilamente me explicava quais eram as
orientações que recebiam de acordo com a legislação distrital do artesanato, e a forma
como eles estavam interpretando e encaminhando as questões na prática. Os significados
que ela me informava eram a tradução de um ponto de equilíbrio encontrado entre a letra da
lei, imposta pelo Estado, e a forma como ela é entendida e executada no cotidiano, levando
238
em conta as nuances de sentido e adaptações necessárias ao bom funcionamento do
trabalho, sendo esse “bom funcionamento” uma categoria êmica e não um modelo ideal.
239
Capítulo 11 – Negociando Significados
240
Capítulo 11. Negociando significados
Ana Maria França segue descrevendo os procedimentos burocráticos efetuados
durante o registro dos artesãos, e procura explicar como são entendidos pelos funcionários
os termos encontrados nos cartazes e nos formulários. A funcionária procura me fornecer a
versão corrente do significado dos termos empregados e informar qual a interpretação que
costumam adotar:
“A gente coloca aqui, prioriza bem a matéria prima mais natural possível, sendo
que o natural hoje em dia não se pega da natureza, não é? Compra-se muito, se compra
semente, tem acesso a semente, e tudo. Mas o que a gente considera, por que também nós
estamos dentro de uma Subsecretaria de Ocupação e Renda, a gente considera o
artesanato uma boa ocupação, ela é uma ocupação que vem crescendo o tempo inteiro.
Está sendo crescente. Então, o que o artesão vem aqui? Ele vem com a matéria prima dele,
ele traz a matéria prima, ele traz o produto pronto, para a gente poder ter noção do todo
que ele fez, do acabamento.” (Ana Maria França, GDF)
A funcionária esclarece os motivos pelos quais seria necessário submeter os
artesãos a observação dos técnicos: para que possam “ter noção do todo que ele fez”, ou
seja, para que possam avaliar se o resultado final se qualifica como produto artesanal,
respeitando inicialmente a regra da apropriação da matéria prima “natural”. Se a orientação
oficial recomenda o uso de matéria prima natural, ela pondera que “o natural hoje em dia
não se pega da natureza, não é? Compra-se...”. Portanto, concluo, não existirá defeito se o
artesão comprar as sementes na loja da esquina, desde que se trate de matéria prima
“natural”, e ele demonstre saber empregar as técnicas “apropriadaspara o trabalho com as
sementes, conforme o exemplo. Observa-se que, em última análise, como a gerência
241
vincula-se a uma “Sub-secretaria de Ocupação e Renda”, subordinada à Secretaria do
Trabalho, o desempenho da atividade artesanal importaria como uma ocupação, limitada
por regras e diretrizes, mas ainda assim uma “boa ocupação”:
“Ele traz a matéria prima para demonstrar a técnica aqui. Então é o que a gente
prioriza, é que ele não faça conosco uma revenda, pois ele pode simplesmente trazer um
produto e ser outro que faça, então a gente vê ele demonstrando a técnica aqui e conclui
com o acabamento que ele trouxe a peça pronta. Assim que é feito o cadastramento. Ele
vem, traz a sua matéria prima, traz o seu produto, mais a documentação. Mas a
documentação ele demonstra aqui.” (Ana Maria França, GDF)
Uma prática a ser evitada com a demonstração seria o comércio de artesanato
produzido por terceiros, ou seja, a revenda. Daí decorre a importância da demonstração
presencial da prática artesanal. Em seguida, Ana Maria França procura me explicar quais
são os segmentos de artesanato que eles têm registrado na Secretaria, revelando quais foram
as categorias criadas para organizar a atividade artesanal como um todo. Dentro de cada
categoria existe uma interpretação do que se enquadra ali, num jogo semiótico que mais
parece um quebra-cabeças. A partir das categorias que foram levantadas inicialmente, os
funcionários procuram enquadrar todas as propostas de novas práticas artesanais que
surgem, sempre no primeiro dia útil de cada mês.
“A mesma coisa com todas as áreas. Em todos os segmentos do artesanato. Seja
cerâmica, deixa eu ver se aqui tem atualizado. É, fora as principais categorias, mas não
chega a ser categoria, a bijuteria, é um produto. Seria mais cerâmica, mas se coloca
aqui mais para entendimento das pessoas. Mas as categorias que nós temos são doze.
Deixa eu colocar para você quais são: cerâmica, composto químico e natural...” (Ana
Maria França, GDF)
242
As “categorias” de classificação com as quais a funcionária está operando a
organização do trabalho artesanal se referem ao tipo de material empregado. Exceto no caso
da “Bijuteria”, que descreveria um produto, conforme ela explica, e não de um tipo de
material empregado, e portanto não seria uma categoria. Então a “bijuteria” está listada no
computador de registro do artesanato, mas não seria uma categoria, porque não
corresponderia a um tipo específico de material, mas a um produto. Os demais estão
divididos em categorias de materiais, que no total são doze, a começar pela cerâmica. O
segundo seria o composto químico natural.
“O composto químico natural é aquele artesão que utiliza como matéria prima a
borracha, o durepox, o gel, a parafina, então nós não arrumamos ainda um nome que fosse
bom para colocar, químico, é mais essa parte química mesmo, é o natural, maisena, que faz
o biscuit, você está entendendo? Essas massas de biscuit, resina, que é química. Então esse
tipo de matéria-prima nós colocamos nessa categoria que a gente ainda está aprimorando
e verificando, está sendo feita, pois é uma coisa que muda muito.” (Ana Maria França,
GDF)
A funcionária procura então me passar a lógica da interpretação dessa forma de
classificação, que distribui os artesãos em categorias que variam de acordo com o tipo de
material empregado, embora os nomes escolhidos para designá-las não facilite muito a
apreensão imediata, deixando um grande espaço para a interpretação e o manejo dos
significados por parte dos responsáveis. Eu me perguntava como um composto químico
seria ao mesmo tempo natural, mas os exemplos apresentados permitiam formar uma
idéia do tipo de artesanato que estava sendo classificado ali: tinham em comum a técnica de
modelagem.
243
“Outro segmento que tem, é outra categoria. Olha, tem cerâmica, composto
natural e químico, couro, fibras vegetais e sementes, folhas do cerrado...” (Ana Maria
França, GDF)
Retomando:
(1) Cerâmica
(2) Composto químico e natural
(3) Couro
(4) Fibras vegetais e sementes
(5) Folhas do cerrado
Para cada segmento de artesanato que é proposto pelos artesãos ao se inscreverem,
deveria corresponder uma categoria de classificação para o registro. Alguns materiais são
agrupados, como no caso das “fibras vegetais e sementes”, mas separado das “folhas do
cerrado”, por alguma razão que para mim não era óbvia.
“A gente coloca como folhas do cerrado mesmo por que é uma característica mais,
Brasília é bem cerrado, então a gente colocou essa categoria mais natural, mais separado.
Flores do cerrado. As flores do cerrado que a gente verifica que se utiliza em rios tipos
de folhas. A moeda, folha carne de vaca, canela de ema, cervejinha, folha de manga, folha
de caju, folha de abacate, sabe, mas ainda não tem um estudo detalhado sobre segmentos
dessa categoria, a gente está tentando fazer agora para poder ver, inclusive esse projeto
daqui mesmo é para poder aprimorar o próprio arquivo que a gente tem. Então está sendo
feito isso. Então, flores do cerrado, madeira, metal, pedras, gemas e corais, reciclados.”
(Ana Maria França, GDF)
Mas as categorias continuam:
(6) Madeira
(7) Metal
(8) Pedras, gemas e corais
244
(9) Reciclados
Observo que criaram uma categoria para “materiais reciclados” independentemente
do tipo de material empregado. Pergunto: Aí entra o quê? - “Acrílico, metal, papel,
plástico, vidro.” responde prontamente Ana Maria França. Interessante, então retalhos de
tecido também são aproveitamento e reciclagem de material, devem entrar aqui.
“Não, retalho de tecido nem tanto, por que você pode comprar o tecido e não
aproveitar as sobras, não a sucata mesmo, aquilo que é, até a própria madeira de
demolição pode ser reciclada”. (Ana Maria França, GDF)
Procuro entender: “madeira de demolição pode ser reciclada”, mas nesse caso ela
entraria na categoria de reciclados ou na categoria de madeira mesmo, que havia sido
mencionada? Continuo me sentindo um tanto confusa com a proposta de classificação do
artesanato. A funcionária procura me ajudar ilustrando com exemplos, enquanto segue
enumerando as categorias.
“Mas entra em madeira. Tem essas diferenças com umas nuances muito sutis que a
gente procura lidar, por que o conceito é muito difícil de se encontrar, não é uma coisa
fácil. O que se coloca aqui, por exemplo, o jornal, o jornal é o mais utilizado em termos de
reciclado quando a gente faz aqueles trançados, e rendas, bordados, tecelagem e tecido.
Tecido pode ser utilizado alguns retalhos. Não, tecelagem é uma, tecido é outra. Rendas e
bordados é uma só. Reciclados, outra. Pedras, gemas e corais, uma. Metal, madeira, flores
do cerrado, fibras vegetais e semente, couro, composto químico e cerâmica. Um, dois, três,
quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze.”(Ana Maria França, GDF)
245
Continuando:
(10) Tecelagem
(11) Tecido
(12) Rendas e bordados
Essas três últimas categorias encerram a lista de categorias de classificação do
trabalho dos artesãos de acordo com os critérios da Secretaria de Trabalho do GDF. Elas
informam sobre uma tentativa de organização burocrática que se encontra em uso nessa
instituição, independentemente das dificuldades inerentes a toda tentativa de organização
das coisas do mundo em categorias distintas. A primeira vista pode parecer um tanto
estranha a lista elaborada, mas isso se deve, acredito, ao ponto de vista que adotamos para
observar essa prática. Vistas bem de perto, podem causar algum estranhamento, mas na
medida em que essas categorias vão se cristalizando através do seu uso, o estranhamento
tende a desaparecer, cedendo lugar ao argumento de que isso tem sido feito assim há muito
tempo.
Talvez alguns ajustes ainda sejam necessários na lista de Ana Maria França, até que
ela alcance uma certa organicidade e supere as contradições e sobreposições que
verificamos. Entretanto, podemos observar um aparente paradoxo: quanto mais confusa a
lista se apresenta, mais próxima do real ela se encontra. Isso porque a funcionária não
considerou necessário disfarçar o fato de que a definição das categorias de classificação
ainda está em processo de análise, ainda não está totalmente estabelecida, analogamente à
cidade de Brasília que ainda está sendo um pouco construída. Ana Maria França, como
burocrata recente, está colocando pensamento no trabalho e buscando encontrar soluções
para as novas situações que se apresentam no dia-a-dia. Alguns artesãos já tem sido
246
barrados, mesmo com essa lista ainda em processo. Uma definição mais consistente das
categorias de classificação do artesanato, e consequentemente mais fechada, tenderia a
excluir mais pessoas dessa atividade, por não se encaixarem com seus trabalhos criativos
dentro de conceitos pré-estabelecidos.
Sobre o cartaz na entrada daquele andar, contendo definições e conceitos de
artesanato, de arte popular, e de trabalhos manuais, conforme foi reproduzido no capítulo
anterior, a funcionária esclarece:
“Esses são conceitos que a Secretaria coloca para poder definir, sabe, e que é uma
definição mais interna, mais para o trabalho interno e também para poder ficar mais claro
para a pessoa, por que a própria legislação de ICMS, ela fala de um artesanato como um
todo, então isso aí é mais um trabalho interno. Não se faz. Agora existe literatura, inclusive
muito interessante, se você quiser uma olhada, por que quando eu cheguei aqui, eu
tenho pouco tempo aqui, então, para mim, o que eu tinha como artesanato era o seguinte,
que era tudo que era feito a mão. O que nós temos aqui é para poder esclarecer mais os
artesãos, para eles poderem ficar assim, mais pro trabalho da gente, não pode ser nem
oficializado isso como conceito por que ele bate até com a própria legislação. Você
entendeu? Por que a legislação não fala em trabalho manual, ela não fala em artesanato,
ela faz uma definição de artesanato ampla, bem ampla.” (Ana Maria França, GDF)
A funcionária se mostra preocupada com a literatura sobre artesanato, pesquisando
autores de onde se poderia obter conceituações do artesanato, que pela explicação parece
ser algo distinto de trabalhos manuais. Ao mesmo tempo em que as informações servem
apenas para esclarecer e informar mais e melhor os artesãos, conforme ela afirma, também
orientam as pessoas sobre o que esperar e como proceder na sua tentativa de inscrição e
registro naquela secretaria, o que na prática significa dizer que a informação opera como
uma regra de avaliação da adequação ou inadequação das práticas artesanais dos
247
candidatos. Na medida que informa os artesãos, a definição serve como um parâmetro para
os procedimentos de burocratas e de interessados, resultando numa regra não oficial de
procedimentos e operações. A justificativa desse modo de trabalho é dada com base na
experiência anterior, apoiada no uso dos computadores com seus bancos de dados. Dessa
vez, a autoridade do falante não remete ao website institucional, mas permanece ligada às
novas tecnologias, recorrendo ao “banco de dados”, conforme ela explica.
“Esse trabalho todinho foi feito com base no próprio banco de dados que nós
temos dos artesãos aqui, aí nós fomos fazendo pesquisa, e eu com os estagiários, os
estagiários muitos deles foram embora, mas ficou um trabalho até que interessante. Por
que aqui a base do Distrito Federal são essas coisas que nós temos aqui. Eu dividi até em
matéria prima, os segmentos, as técnicas, dentro do que tinha aqui, por que como eu te
disse, eu cheguei aqui sem saber nada, então tive que estudar muito para poder ter uma
noção.” (Ana Maria França, GDF)
A funcionária percebe que os critérios para a organização da atividade artesanal em
Brasília estão sendo definidos naquela Secretaria, que acaba comungando do poder
institucional de governo local, que se espalha e chega a outros departamentos da
administração de Brasília. “O artesanato feito em Brasília não é somente o que se encontra
na Torre de Tevê”, diz ela, referindo-se a um dos pontos turísticos principais da cidade. Os
artesãos que se cadastram na Secretaria do Trabalho atuam em feiras e eventos do setor,
sem necessariamente estarem ligados à Feira da Torre, que tem uma quantidade de espaços
de comercialização limitada. Entretanto, Ana Maria França, mesmo destacando a diferença
entre o artesanato feito na Torre de Tevê e os artesãos em geral, que estão sendo
cadastrados ali na Secretaria, comenta que a tarefa de definição das categorias válidas como
trabalho artesanal cabe a elas, funcionárias, e resulta muitas vezes na necessidade de
248
fiscalização do cumprimento do que está registrado ali, espalhando seu poder de definição
dos significados correntes para outras esferas da administração local.
“Quando se fala em artesanato, a primeira coisa que se pensa aqui em Brasília é
Feira da Torre, não é? Mas a Feira da Torre, eu sempre gosto de colocar que a Feira da
Torre ela é estabelecida, aqueles espaços, pela administração de Brasília, e não pela
Secretaria de Trabalho. Não, o espaço, a divisão, todo aquele negócio é feito pela
administração de Brasília. Quando a administração tem alguma dúvida em relação ao
produto que está na carteira e o produto que ele está vendendo, ela solicita por meio de
uma correspondência oficial, que a Geoni faça uma fiscalização. vai ela, junto com o
fiscal, para poder verificar se o artesão está vendendo o que ele cadastrou aqui na
Secretaria, e que não uma revenda. Se ele realmente é artesão, ou ele está pegando de
outras pessoas e vendendo” (Ana Maria França, GDF)
Maria Geoni de Oliveira, como autoridade responsável pela Gerência de Fomento
ao Artesanato, acaba atuando também na fiscalização do cumprimento das regras que sua
gerência se na responsabilidade de instaurar, ou seja, acaba atuando também no
patrulhamento do artesanato em Brasília.
A partir da análise das interações entre técnicos e artesãos na Secretaria de Trabalho
do GDF e das entrevistas realizadas, procurei mostrar como os procedimentos foram sendo
inventados com base na necessidade, e se destaca como são recentes e negociados os
significados implicados nessa tarefa. Um fenômeno que chama a atenção e aqui pode ser
claramente percebido é que a expressão de uma visão de organização, ainda que provisória,
proferida pelas pessoas que estão na condição de exercer essa tarefa, investidas desse poder
de executar uma definição, acaba por tornar-se uma realidade concreta, que se transforma
em procedimento padrão dentro do escritório e rompe até mesmo com esses limites,
249
figurando como referência para todos as outras instâncias ligadas ao artesanato na cidade de
Brasília.
Isso reforça também a compreensão do vínculo de parceria entre o SEBRAE e a
Secretaria do Trabalho do GDF. Não é apenas porque os artesãos precisam de um registro
para comercializarem seus produtos em feiras que o SEBRAE os encaminha para o registro
na Gerência de Fomento ao Artesanato do Governo Distrital. Eles são encaminhados a este
órgão especialmente devido à autoridade e ao poder de definição, reconhecimento e
certificação de que desfruta essa instituição governamental.
250
Parte 3
“Circulação de Significados”
“To see something as art requires something the eye cannot descry –
An atmosphere of artistic theory,
a knowledge of the history of art: an artworld.”
(Arthur Danto, apud MARCUS & MYERS, The Traffic in Culture, 1995:55)
251
Capítulo 1. Brasília tem gente do Brasil todo, Brasília é assim...
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Capítulo 1. Brasília tem gente do Brasil todo, Brasília é assim...
“Brasília ela tem uma diversidade muito grande, pois são pessoas de todos os
cantos, então é uma matéria prima muito diversificada.”(Ana Maria França, GDF)
Baseado nessa imagem a respeito das migrações, os moradores da cidade observam
que a capital reúne pessoas de todo o país, de forma que se acredita que todos estariam aqui
representados de alguma forma. A primeira representação, imagem ou crença sobre Brasília
diz respeito à diversidade. Repousa na idéia de reunião de pessoas migrantes provenientes
de todos os estados do país, que teriam atendido ao apelo de Juscelino Kubitscheck e
vieram “fazer Brasília”. Essa primeira noção de diversidade de Brasília está ligada ao mito
de construção da cidade. Inicialmente mostro as formas como a cidade de Brasília aparece
no discurso dos entrevistados, para, em seguida, chegar no conjunto de imagens ou
representações que compõem o imaginário social dos habitantes.
Roque Laraia, em Candangos e Pioneiros, fala sobre a cidade de Brasília desde os
tempos de sua construção, e descreve, a partir de uma perspectiva histórico-antropológica,
no que consiste essa diversidade a que todos se referem:
“Não bastasse a diversidade gerada pela presença de migrantes de todas as
regiões, a partir de 1971, a cidade passou a ser habitada pelos representantes de dezenas
de nações que em Brasília tem as suas embaixadas. Assim, em alguns momentos especiais,
a diversidade torna-se mais rica com a mistura de casacas européias, coloridos cafetãs
africanos, impenetráveis chadôs islâmicos, vistosos saris indianos, ricos quimonos
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japoneses, etc, transformando Brasília em um “pout-pourri” da moda mundial”
(LARAIA, 1996:3)
Os designers fazem uso dessa imagem de diversidade, mistura e confraternização
internacional nas suas criações, o que acaba por reforçá-la ainda mais, re-atualizando e
difundindo o mito fundador. Como cada um dos migrantes traz consigo os seus hábitos e
suas práticas, a capital reuniria os fazeres de todo o país, operando como o local da síntese,
tanto dos fazeres tradicionais quanto da modernidade.
Nesse capítulo procuro mostrar quais são os mitos, na forma de narrativas
significativas, bem como as representações que possuem e expressam os atores sociais a
respeito da cidade de Brasília. Se tais representações estão fundadas na realidade histórica é
indiferente para os propósitos dessa análise. Conforme exposto por Eunice Durham (2004),
as representações apresentam-se como “noções essencialmente sintéticas”, e são
apreendidas por meio do discurso. Podem também ser denominadas de “mitos”, uma vez
que se trata de “narrativas sintéticas que possuem significado, valor e eficácia para os
atores sociais” que os compartilham.
Uma segunda observação que emerge das entrevistas relaciona o mito da
diversidade fundadora de Brasília com um jeito característico de ser que seria resultante
dessa diversidade. A idéia é de que os habitantes de Brasília, por estarem habituados à
diversidade nacional, acabariam por desenvolver um “jeito de ser” específico, que seria
resultante desse contato com a diversidade, um “jeito de Brasília”.
“Eu acho que vai ter uma identidade muito própria da região, porque talvez a
gente venda bem porque as pessoas, elas identificam, talvez a gente tenha aquele jeito
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que todo mundo já identifica, e que foi montado tudo com as pessoas que estavam aqui
(Kátia Ferreira, Apoena)
Essa idéia de síntese da diversidade nacional se reconstrói na própria experiência de
formação dos grupos de trabalho, sendo experimentada em ação, vivenciada. Um vez que
as mulheres começam a se reunir e a entrar em contato com outras mulheres, que por sua
vez também trazem suas práticas e fazeres artesanais, descobrem-se mutuamente as
semelhanças e diferenças. Observam então que mulheres provenientes de várias regiões do
Brasil possuem habilidades para fazer o bordado, por exemplo, mas os tipos de pontos e o
modo de fazer em si podem variar bastante de lugar para lugar.
Essa experiência de contato adquire um significado mais amplo na medida em que
ela é permeada pela crença de que nesse lugar se reúne a diversidade e isso resulta em algo
novo. Laraia ressalta, além da diversidade, algumas das características da população de
Brasília, partindo do mito fundador: “Os habitantes de Brasília são oriundos de todos os
lugares, compõem um complexo mosaico de fenótipos e utilizam-se de muitas maneiras de
falar. Pode-se dizer que o ecletismo é a primeira característica dessa gente.” (LARAIA,
1996:3)
Sobre a relação entre a interação promovida pelo convívio social e a construção de
crenças ou representações acerca do mundo social ou da realidade vivida, Georg Simmel
concebeu uma teoria que sustenta a existência autônoma das interpretações sobre o mundo
real ou realidade, paralelamente à realidade da qual elas se originam.
Simmel (2006[1917]) fala sobre um “impulso para a sociabilidade”, que levaria os
indivíduos a se associarem aos outros movidos por interesses individuais. Para esse autor, a
255
sociabilidade seria a forma lúdica de “sociação”, de interação entre os indivíduos, “algo
cuja concretude determinada se comporta da mesma maneira como a obra de arte se
relaciona com a realidade”, ou seja, retirando dela seu material, mas existindo de forma
independente:
“Com base nas condições e nas necessidades práticas, nossa inteligência, vontade,
criatividade e os movimentos afetivos, elaboramos o material que tomamos do mundo. De
acordo com nossos propósitos, damos a esses materiais determinadas formas, e apenas
com tais formas esse material é usado como elemento de nossas vidas. Mas essas forças e
interesses se liberam, de um modo peculiar, do serviço a vida que os havia gerado e aos
quais estavam originalmente presos. Tornam-se autônomos, no sentido de que não se
podem mais separar do objeto que formaram exclusivamente para seu próprio
funcionamento e realização.” (SIMMEL, 2006 [1917]:61))
Assim, Simmel exemplifica sua análise referindo-se ao conhecimento científico,
que teria finalidades práticas na luta pela existência, mas adquiriria um valor em si mesmo,
independente da sua aplicabilidade prática. O mesmo se daria com a arte, que decorreria da
vivência no mundo, mas passaria a habitar um universo separado da vida, com valor em si
mesma, retirando daquela somente aquilo que lhe interessa. Um outro exemplo trazido pelo
autor, e que se aplica diretamente ao tema discutido nesse capítulo, diz respeito à
interpretação da realidade.
“A interpretação das realidades, concretas ou abstratas, segundo unidades
espaciais, rítmicas ou sonoras, de acordo com seu significado ou organização, que
seguramente surgiu das exigências de nossa prática. Contudo, essas interpretações tornam-
se fins em si mesmas e exercem seu efeito por sua própria força e sua própria lei, seletivas
e criativas, independentemente de seu emaranhado com a vida prática, e não por causa
dela.” (SIMMEL, 2006 [1917]: 62)
256
Na sua teoria, conhecida como o interacionismo simbólico, Simmel consegue
descrever o processo pelo qual os indivíduos na sua interação com os demais retiram da
realidade seu “conteúdo”, e esse adquire uma existência que é independente de sua origem
no mundo social, uma existência com valor em si mesmo. Esse conteúdo resultante das
interações, que poderia ser chamado de representações, constituem o presente objeto de
análise, por configurarem uma existência independente e autônoma em relação à realidade
e ao próprio contexto de interação do qual resultam.
Revendo os discursos das artesãs sobre a formação dos grupos e como começaram a
trabalhar juntas, quando descrevem como se deu o processo, pode-se observar o recurso a
essa imagem de uma mistura harmônica de todas as pessoas na capital, sempre presente e
acreditado como motivador de um resultado positivo do trabalho.
Nas falas individuais sempre é mencionada a vinda para Brasília, seguida da nova
interação que se estabeleceu na capital. A reunião das artesãs com propósito de produzir
artesanato é reconstruída na memória e relatada como um processo harmônico em que as
diferenças seriam suprimidas e a diversidade serviria para criar algo novo, ainda que não
tão diverso das práticas anteriores, que todos os grupos relataram fazer algo que todas as
integrantes sabiam fazer antes de se reunirem, seja bonecas, bordados ou flores
artesanais. Esses processos de reconstrução da memória pela narrativa podem ser
observados na primeira parte da tese, em que a formação dos grupos é narrada a partir do
ponto de vista de várias participantes.
Os mitos podem ser entendidos como narrativas significativas para um grupo,
geralmente ligados à origem do mundo ou das coisas assim como são conhecidas hoje. São
significativos porque dizem respeito a uma forma de ver o mundo e tocam nas crenças
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compartilhadas pelo grupo social. Podem também ser entendidos como as “cosmologias” a
que Douglas (1970) se refere, como conjunto de crenças que operam no ordenamento do
mundo social.
Conforme formulação de Eunice Durham:
21
“Um reexame dos clássicos da antropologia culturalista, tanto em sua linhagem
americana, que elaborou a noção de padrão cultural, como na variante inglesa, com
Malinowski e seu conceito de instituição, revela claramente que a noção de cultura parte
do estabelecimento de uma unidade fundamental entre ação e representação, unidade esta
que está dada em todo comportamento social.” (DURHAM, 2004 [1977]:231)
As representações sobre Brasília são parte da cultura local, e se expressam
reiteradamente, costurando as narrativas de histórias individuais de migração e mudança em
busca de uma vida nova e melhor com a história da cidade que foi erguida no Planalto
Central.
“Brasília é uma cidade que tem muitos migrantes e também uma cidade muito
monumental, ela é muito chique e talvez o que a gente fez que deu tão certo e fez tanto
sucesso foi que a gente conseguiu passar isso, a gente conseguiu colocar essas
características de Brasília dentro das coleções, porque a gente faz coleções.”
(Kátia Ferreira, Apoena)
A designer comenta o caráter “monumental” da cidade de Brasília, que na sua
opinião a tornaria muito “chique”, e faz um paralelo entre as características da cidade e o
trabalho que desenvolve junto às artesãs, buscando incorporar nas coleções de moda tais
21
O artigo de Eunice Durham foi publicado inicialmente em 1977 e republicado, por sua relevância e atualidade, em
2004.
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características como a “monumentalidade”, reproduzindo-as e buscando gerar
identificações.
Reunidas em Brasília, numa região central do Brasil, as artesãs trocam experiências
e pontos de bordado, e acabam por concluir que no centro do Brasil se encontram
representadas as variações regionais provenientes das várias localidades, resultando numa
síntese de saberes e de fazeres brasileiros. Essa narrativa está sempre presente nos discursos
sobre a formação dos grupos e especialmente sobre o começo dos trabalhos, conforme foi
mostrado. Tanto artesãs quanto designers afirmam que as características da cidade de
Brasília se fazem presentes no seu trabalho.
“Esse resgate da identidade local de Brasília foi feito em diversos grupos.
Inicialmente focalizamos na arquitetura, que em Brasília ela é diferenciada das outras
cidades do Brasil. Então colocamos isso no design do produto, criando a linha Arquitetura
de Brasília. Todos os estados estavam representados nos grupos, com mulheres vindas de
todas as partes do Brasil, assim também como é a cidade de Brasília. Então foi feito um
trabalho em cima dessa característica. Fizemos uma linha de bordados e aplicações em
tecido com os monumentos da cidade, valorizando essa rica arquitetura de Brasília.”
(Renato Imbroisi, SEBRAE)
O designer Renato Imbroisi explica como foi realizado o resgate da “identidade
local” de Brasília com os grupos de trabalho, visando inicialmente empregar as
características da arquitetura, semelhantemente ao registro da “monumentalidade” apontado
por Kátia Ferreira. O trabalho desenvolvido coletivamente repousa grandemente na
interação entre as artesãs, onde o convívio parece resultar num “sincretismo” das tradições
trazidas para a capital. Conforme Laraia:
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“Porque oriundos de diferentes regiões, os habitantes não deixam de tentar
transplantar os costumes e rituais de sua origem. Esta preocupação transforma a cidade
em uma espécie de síntese do país. As tradições populares de todos os recantos são
revitalizadas em Brasília, sendo transformadas por um inevitável sincretismo. Tal síntese
não deixa de corresponder à utopia de Juscelino Kubistchek de construir uma capital capaz
de ser um forte fator de integração nacional.” (LARAIA, 1996:5)
Nas falas das entrevistadas é recorrente a idéia de Brasília como síntese do Brasil,
conforme apontado por Laraia, que está presente em muitos dos discursos sobre a vida na
capital. A idéia central é de que, vindas de todas as regiões do país, as mulheres de Brasília
sintetizam as características da mulher brasileira. Após ter apresentado, nos capítulos
anteriores, um pouco da história das artesãs de Brasília e o tipo de trabalho que estão
desempenhando, busco nesse momento fazer um apanhado das características gerais que
estão presentes nos três grupos de produção, apontando alguns paralelos relevantes.
A sugestão é de que “está nas mulheres”, devido à sua presença e participação, e à
diversidade que elas constituem, enquanto grupo, a inspiração para a criação de um
trabalho que fala sobre a cidade de Brasília.
“As pessoas esperam, sabem o que vão encontrar no estande da Apoena,
então assim, de repente, o que eu acho que todo mundo foi fazendo artesanato, mas na
hora, os únicos que fazem coleção inteira somos nós, a gente faz a coleção toda
coordenada, a gente faz a roupa, a bolsa, o acessório, não sei o que, uma coleção inteira
pra vender pro lojista, e de repente foi isso o que nós encontramos, uma identidade que é
típica do DF, e que nós encontramos por acaso porque fazemos a coleção inteira e eu acho
que se você for buscar nessas mulheres eu acho que você acaba encontrando as origens,
você vai poder ter muita riqueza de imagens.” (Kátia Ferreira, Apoena)
Buscando inspiração para as criações nas próprias características da cidade, e
empregando essas imagens nas criações de moda e decoração, o resultado acaba por conter
260
referências à cidade, sendo mesmo possível identificar alguns traços específicos. As
Bordadeiras de Taguatinga, por exemplo, fizeram uma coleção inteira, orientadas por
Renato Imbroisi, sobre as plantas e flores características da região do Cerrado. Os desenhos
das plantas nativas da região são preenchidos com linha colorida sobre tecido de algodão
branco. Logo abaixo do desenho aparece o nome popular da planta ou flor, também
bordado na almofada, sachê, colcha, fronha ou lençol. Nesse caso, não se trata de referência
indireta por meio de representações ou idéias abstratas, mas de uma representação
figurativa de elementos da paisagem do cerro, constituindo-se a coleção completa dos
bordados em um apanhado em registro gráfico da flora local.
No caso da Flor do Cerrado, a confecção de flores a partir do cozimento e preparo
da folha moeda resulta num arranjo que é muito típico da região. A mesma técnica se fosse
empregada utilizando outra matéria prima, por exemplo, folhas de araucária, resultaria em
algo muito diferente.
O caso mais interessante talvez seja o das costureiras do Varjão, que fazem uma
“boneca brasiliense”, buscando atribuir às bonequinhas as características da mulher
brasiliense. Inspirando-se nelas próprias, as artesãs atribuem às bonecas as características
subjetivas que usam para descrever a si mesmas, resgatando a idéia central da diversidade
da mulher brasiliense.
Retomando a fala de Maria Anita da Silva, costureira e líder comunitária do Varjão,
“acabou se criando um trabalho que é a cara do brasiliense mesmo. É umas bonequinhas
[...] elas estão sendo bem aceitas pelo fato de ser a cara da brasiliense.”
Essa boneca, feita com matéria-prima reciclada, do jeito que sempre souberam fazer
e sem a interferência de nenhum consultor de design, talvez seja o melhor exemplo da
261
atribuição de sentido representacional ao objeto, e de síntese de qualidades subjetivas e
referências subjetivadas.
As imagens da cidade como representações subjetivadas co-habitam esse imaginário
que mistura as características das pessoas, das construções e do projeto arquitetônico.
“Eu te falei que eu conheci o Oscar Niemayer? Passei uma manhã conversando
com ele, eu tenho uma carta dele, manuscrita pra mim, eu vou te xerocar pra você pôr no
seu trabalho, e eu falei pra ele que eu vejo Brasília como uma mulher, muito feminina e
muito chique, cheia de curvas e muito chique, muito elegante, cheia de branco, tanto que a
nossa coleção, mesmo a do inverno, sempre tem branco, sempre tem branco, e preto. Então
eu acho que a gente conseguiu fazer mesmo uma cara dessa Brasília, né? Brasília não é
uma efervescência de nordeste, não é isso, é grande, é clean, é chique, e talvez a gente
tenha achado isso com o artesanato. E uma coisa curiosa, a nossa roupa é muito bordada,
chega a ser exagerada, mas ela é clássica ao mesmo tempo, entendeu? Inteirinha bordada,
tão colorida e ao mesmo tempo tão chique. Então eu acho que a gente conseguiu, juntou
todo mundo e deu unidade e fez esse caldeirão que você está vendo”
(Kátia Ferreira, Apoena)
Poder-se-ia dizer que o SEBRAE, por meio dos seus consultores, utiliza-se desses
mitos numa política de construção de identidade social de caráter local com finalidades
práticas voltadas para o trabalho, a inserção no mercado formal e o comércio de produtos.
O SEBRAE pode, certamente, contribuir para a difusão de discursos de caráter mítico e
pode mesmo procurar empregá-los de acordo com os seus interesses, ou de acordo com os
interesses das pessoas diretamente envolvidas no projeto, podendo haver manipulação e uso
político desse material simbólico. Entretanto, a instituição não poderia fazer tal uso político
dos elementos do campo simbólico, mitos e representações, caso esses não estivessem
dados, como interpretações autônomas da realidade.
262
Independentemente dos ritos e das práticas implementadas pelo SEBRAE na sua
atuação junto aos grupos, eles o fazem sobre os alicerces de uma cosmologia que existe
no local, compartilhada socialmente. Se existe algo no local que pode ser utilizado para
inspirar criações de design, não são exatamente pontos de bordado. Esse “recurso local”
que é empregado para criar objetos artesanais é de natureza imaterial e repousa nas crenças
compartilhadas socialmente sobre a cidade de Brasília e sobre as pessoas que fizeram essa
cidade a sua história.
O fato de o SEBRAE fazer uso dos mitos de acordo com seus interesses não
significa que o SEBRAE esteja mal intencionado, mas aponta e revela as relações de poder
que estão por detrás do uso que é feito deles, com isso revelando-se também um padrão de
relações de poder dentro da sociedade brasileira. Antes de tudo, o trabalho desenvolvido
pelo SEBRAE sublinha o caráter autônomo dessas representações que se prestam, pela sua
própria natureza maleável, a manipulações por parte dos atores sociais.
Não se trata, portanto, de mais um caso de apropriação pela elite de uma expressão
da cultura popular, que verificamos que a prática artesanal é fomentada nas localidades
por instituições com interesses específicos, por meio de políticas públicas de incentivo, e
não expressão artística realizada com fim em si mesma, embora em alguns casos isso
também possa estar presente nessa atividade.
No caso em questão, trata-se do uso das representações de Brasília, enquanto
conteúdo com existência autônoma, de acordo com Simmel, que incluem todas as relações
de prestígio e poder que estão presentes na cidade, para a produção de objetos de moda e
decoração que, além disso, respondem a apelos de engajamento social.
Conforme apontado por Herzfeld, (1992: 27) os símbolos podem servir a diferentes
ideologias. No caso presente, o SEBRAE desenvolve um projeto de construção de
263
identidade brasiliense, que acaba emergindo tão claramente, visivelmente feito à mão,
precisamente por se localizar dentro dessa ideologia de construção da cidade e de
diversidade na composição. Assim, é transmitida uma idéia de que tudo o que é feito em
Brasília comunga da plasticidade e liberdade daquilo que ainda está um pouco em
construção. Liberdade de poder vir a ser algo que ainda não está cristalizado no tempo,
vivendo uma possibilidade assumida de se transformar e permitindo um maior espaço para
a agência individual, para o empreendedorismo e para o pioneirismo.
Fazendo um breve paralelo com a análise de Lévi-Strauss (1986[1962]) sobre o
totemismo, pode-se dizer que, para o artesanato, não é relevante se as representações sobre
Brasília são boas para vender, o importante é que as representações sobre Brasília nos
ajudam a conhecer melhor esse universo, e entender, nesse contexto, a lógica que explica
como pensam os nativos. Ou seja, o artesanato, assim como o totemismo, também é “bom
pra pensar”.
264
Capítulo 2 - A circulação do objeto
265
Capítulo 2 - A Circulação do Objeto
Das casas de Brasília para as grandes feiras e os pontos mais “chiques” do comércio
brasiliense, o objeto artesanal segue um percurso marcado por novas significações e
interpretações. Muito se fala em processos de re-significação e re-apropriação e na
literatura antropológica material disponível para longos debates. Nesse capítulo procuro
revisar esses conceitos. Entretanto, considerando que os exemplos dizem mais do que as
palavras, e que as teorias descasadas da realidade teriam aqui pouca serventia, busco
demonstrar de forma concreta como esses processos ocorrem no caso do objeto artesanal.
Proponho uma descrição passo a passo dos diferentes sentidos que o objeto
artesanal vai adquirindo nesse percurso, algumas vezes com a ênfase recaindo mais sobre o
fazer em si, outras sobre o objeto artesanal resultante. Procurei demonstrar como o seu
sentido vai se transformando, variando conforme o olhar de cada ator social que habita esse
universo. Os significados, conforme são atribuídos aos fazeres e aos objetos, constroem
camadas de sentido que não se opõem nem entram em conflito, apenas coexistem. Não
pretendo aqui fazer um inventário completo de todos os significados que pode adquirir um
objeto artesanal durante a sua vida social. Busco somente mostrar e analisar alguns
contextos em que se evidenciam a construção e sobreposição de diferentes significados,
como forma mesma de demonstrar esse argumento.
Arjun Appadurai (1986) propõe uma abordagem da vida social de determinados
objetos definidos como commodities”. Do ponto de vista da cultura material, enfoca a
relação entre sujeito e objeto, empregando termos econômicos para a análise da construção
do valor dos objetos, seja de troca, de compra, de venda ou mesmo de uso.
266
O valor analisado por Appadurai se aplica somente às commodities que ele
inicialmente define, ou seja, aplica-se somente a uma categoria específica de objetos, cuja
finalidade seria a comercialização, atuando na esfera econômica da vida social.
O autor trata da criação do valor como um processo politicamente mediado. Nesse
contexto, é possível utilizar sua análise para compreender melhor o papel do designer como
mediador no universo do artesanato de Brasília. Para o designer, que se coloca como um
especialista em questões de gosto e mercado consumidor, a dimensão de valor do ponto de
vista econômico é de grande interesse.
Appadurai busca explorar as condições sob as quais os objetos econômicos circulam
em diferentes “regimes de valor” no tempo e no espaço. Seu foco se restringe ao valor
essencialmente econômico dos objetos. Entretanto, um objeto continua tendo sentido ou
significado para o sujeito independentemente do seu valor econômico ou da possibilidade
de ser vendido. Alguns objetos possuem valor afetivo de tal forma que sua valorização
escapa completamente à esfera econômica.
Antes dele, Simmel (2004 [1900]) propunha uma análise do valor, em termos
mais amplos. Para Simmel, o valor não é uma propriedade inerente ao objeto, mas um
julgamento realizado pelo sujeito acerca de um objeto, seja ele qual for. A chave para a
compreensão do valor nos termos de Simmel reside no campo em que a subjetividade é
refletida e conseqüentemente o valor não pode ser da essência do objeto.
Nesse sentido, Douglas e Isherwood (2004) desenvolvem a idéia de que os objetos
são usados como símbolos, como uma forma ritual em que eles comunicam significados.
Interessa aqui especialmente a dimensão da recepção dos objetos, não apenas no
que tange à possibilidade de trocas econômicas, ou seja, não apenas quando eles podem ser
visto ou qualificados como commodities”, “bens” ou “mercadorias”. Entretanto, importa
267
também conhecer os motivos pelos quais um objeto é comprado, mantido, usado, trocado
ou mesmo transmitido a terceiros. Procuro analisar que diferentes aspectos simbólicos e
significativos são evidenciados por diferentes sujeitos dentro de um mesmo campo
específico, sobre um mesmo objeto ou práticas ligadas a ele. Trata-se da busca pelo
significado simbólico do objeto artesanal dentro da cosmologia desse campo específico,
igualmente não essencial e provisório, como coloca Simmel, de forma que seja possível
perceber o objeto como dotado de múltiplas camadas de sentido.
Essa abordagem, que privilegia a interpretação dos significados simbólicos, se
aproxima da proposta de Cliford Geertz (1989) para a análise da cultura:
“O conceito de cultura que eu defendo [...] é essencialmente semiótico.
Acreditando como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados
que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise.”
(GEERTZ, 1989: 15)
Assim, o que Geertz propõe é uma “descrição densa” do trabalho de campo, uma
etnografia realizada com intenso trabalho de análise e interpretação da cultura observada.
Nesse caso, a cultura seria interpretada semelhantemente a um texto, em que o leitor, no
caso o antropólogo, teria a tarefa de completar as lacunas de sentido deixadas pelo autor
durante o processo de escrita. Assim como uma obra literária, a cultura observada pode
receber diversas interpretações, variando conforme são diferentes os seus leitores/analistas.
Precisamente devido ao fato de que um autor ao escrever não tem como dar conta de todos
os sentidos possíveis da leitura de sua obra, a construção do sentido se no âmbito social,
importando, nesse caso, o contexto da recepção.
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De forma semelhante, um objeto é capaz de receber múltiplas interpretações que
variam em função do contexto social do universo simbólico do receptor que vai buscar em
sua cosmologia, universo ou contexto cultural os elementos necessários para preencher de
sentido as lacunas deixadas pelo autor.
A demonstração de alguns significados ou interpretações não esgota todos os
sentidos possíveis de serem verificados em campo. Quando Nilce Correia, uma das
bordadeiras de Taguatinga, pega agulha e linha para bordar, ela não pensa em mais nada.
Ela se envolve na atividade de modo completo, e seu pensamento desliga-se quase
automaticamente das tarefas e atividades do cotidiano. Como ela me relatou, a prática faz-
lhe esquecer os problemas e os compromissos:
“É bom. A sensação de que a gente se esquece mais do que a gente passou, não
fica pensando, não tem tempo, porque eu não tenho tempo de pensar. A hora mais vaga que
eu tenho é quando eu estou dormindo. Não pensa. Que eu mesma não tenho tempo de
pensar.” (Nilce Parente de Alencar Correia, Bordadeiras de Taguatinga)
Nilce relata que perdeu seu filho e que isso lhe trouxe grande tristeza. Ficar sem
fazer nada lhe deixa espaço para “pensar no que aconteceu e ficar remoendo a tristeza”. O
bordado para ela tem um efeito terapêutico. A bordadeira encontra um sentido no fazer em
si que está desvinculado dos demais sentidos que possam ser atribuídos ao objeto que dele
resulta. O primeiro significado é o do próprio ato de fazer o bordado em si mesmo. Não
somente entre as Bordadeiras de Taguatinga, mas também no Varjão o mesmo tipo de
significado atribuído ao fazer do artesanato em si mesmo foi relatado. O foco recai sobre a
prática artesanal e não sobre o objeto, importando o processo de estar envolvida num grupo
de produção que promove a interação social entre as participantes.
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“A cabeça da gente não pára não. E quando a gente esaqui, a cabeça da gente
descansa também, pois de vez em quando estamos concentradas aqui fazendo alguma
coisa, a cabeça da gente está aqui, não está pensando nas outras coisas fora. E a
gente sozinha pensa em tudo, e na maioria das vezes, só bobagem, a gente não pensa assim
em uma coisa positiva, que bota a gente para cima. Em vez de se levantar, faz cair mais,
fica se torturando, por que aconteceu isso comigo? E aí então eu digo que mudou muito em
relação a isso. Pelo menos essa tortura a gente não tem mais. Ficar se torturando, se
perguntando, ficar com perguntas sem respostas. E acaba a gente não entendendo nada
das rasteiras que a vida passa na gente.” (Maria Madalena Barbosa da Silva, Varjão)
Os objetivos sociais somam-se ao valor terapêutico do ato artesanal em si. De uma
perspectiva um pouco mais ampla, o fato de se reunirem em grupos em nome da confecção
do artesanato permite que outros objetivos sejam estabelecidos, enquanto grupos, e que seja
realizado um trabalho visando o bem-estar das participantes, atuando em outros aspectos da
vida, além do contato humano e dos possíveis ganhos financeiros.
“Tem objetivos sociais, pra trabalhar com os grupos, não é só os bordados, a gente
faz um trabalho com elas, a gente agora concentrou mais na saúde delas, do que elas
estavam precisando, terminando esse tratamento dos olhos a gente vai continuar, ver o que
elas estão precisando, porque hospital público é uma tortura.A gente tem parceiros,
doadores, amigos, que todos ajudam.” (Ângela Terenzi, Apoena)
Ângela revela que foi realizada uma consulta a um oculista para cada uma das
participantes do projeto, e muitas receberam também tratamento e óculos. Um dos sentidos
da participação nos grupos está representado nos maiores cuidados com a saúde e mesmo
com a alimentação. Outros significados vão se revelando na medida em que analiso outros
relatos sobre a produção artesanal e a organização de grupos de trabalho. As narrativas
270
revelam diferentes dimensões do significado dos bordados, que vão se sobrepondo como
camadas de sentido.
“Chega pro cliente como artesanato, mas com uma versão remodelada, porque a
gente entrega pro cliente como artesanato, mas é tudo esquematizado, quando a gente
desenvolve uma peça, que é uma peça piloto, a gente coloca o preço, e depois quando
ela vai fazer ela sabe quanto vai receber por aquela peça. Por isso que a gente é rígido
com elas, né, eu sou uma pessoa muito rígida, então eu sou a que exige sempre, a que exige
qualidade, porque a gente faz muitas coisas pra elas, a gente faz das tripas coração pra
não faltar nada pra elas, a gente pede doações, agora, todas as nossas meninas estão
fazendo consultas na clínica particular de visão, no final do ano eu fiz três bazares com o
que acaba sobrando das coleções, e deu pra 600 mulheres. O que a gente pode fazer por
elas, a gente faz. É uma máquina, quem está por fora não entende” (Ângela Terenzi,
Apoena)
A trajetória narrada pela designer Kátia Ferreira e por sua assistente Ângela Terenzi
revela alguns desses diversos significados que estão presentes na engrenagem do artesanato
de Brasília. Os artigos produzidos, depois de lavados, passados e devidamente etiquetados,
são distribuídos a partir da sede, para lojas de Brasília e de fora, no Brasil todo e inclusive
no exterior. Em Brasília, alguns modelos o vendidos em lojas como a “Ortiga” e
“Magrela”, com filiais no Plano Piloto e também no Lago Norte e Lago Sul. Alguns artigos
têm sido exportados para França, Espanha e mesmo Kuwait. “A organização foi pensada
para produzir para um público de classe A”, relata Kátia Ferreira, que além de presidente
da organização é dona da grife.
Buscando a inspiração no folclore brasileiro, Kátia Ferreira desenvolveu os
produtos do projeto Apoena visando a sofisticação do artesanato. De olho em um público
“mais refinado”, e com maior poder aquisitivo, Kátia Ferreira aposta na produção artesanal
271
como um diferencial para agregar valor ao produto: “São peças feitas à mão, pelas artesãs,
isso não pode custar barato, eu preciso valorizar o trabalho delas”.
Aqui se pode observar claramente a atribuição de um sentido de valorização do
trabalho artesanal pelo fato de ser um trabalho manual. “Ser feito à o” é, portanto, um
outro sentido do objeto artesanal, empregado para agregar valor com o intuito de obter
melhores vendas no mercado consumidor.
“Se for uma colcha de fuxico, não tem como fazer, não. É muito trabalho e não
compensa o valor, a gente não faz, se for uma encomenda mesmo e a gente fala o
preço, calcula o preço e se a pessoa também der o tecido porque caso tenha que sair para
comprar tecido e fazer fuxico a gente não vai porque o fuxico é a metade. Por exemplo, um
metro de tecido para fazer fuxico fazem uns trinta. Porque desperdiça muito, é redondo e
daí você desperdiça os cantos.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
O trabalho feito à mão é descrito detalhadamente por Maria da Guia. Observa-se um
hiato entre o tempo e esforço necessários para fazer uma colcha de patchwork, feita à mão
ou mesmo à maquina, e a valorização social do trabalho artesanal, expressa em termos de
preço a ser cobrado no mercado das feiras.
“Pra fazer uma colcha de patchwork, se for à máquina é mais rápida, mas se for de
mão é um mês, com umas dez mulheres. Sai quatrocentos reais a mais simples e a outra
seiscentos reais. De casal, mas o preço mesmo nosso é quatrocentos reais, agora cobramos
seiscentos mas não vendeu, se não vendeu é porque está caro, está fora do preço, a gente
demorou um mês para montar uma colcha e a gente deve gastar um seis metros de tecido
ao todo. Não, ao todo gasta mais. Porque são três lados, porque primeiro são as flores, né,
o quadrado das flores aplicadas, daí você vai emendar todos os quadradinhos e depois
embaixo ainda vai outro forro, e recheio, então são três, no caso da margarida. Depois
esses dois e um embaixo, não tem como, e o que trabalho é que o pano tem que recortar
272
torto, esse tecido aqui tem que lavar, se não depois ele encolhe. (Maria da Guia Barros
de Oliveira, Varjão)
As artesãs expressam uma valorização do trabalho proveniente do reconhecimento
de que este tem, produzindo um valor simbólico com efeito concreto sobre a auto-estima e
auto-imagem da mulher.
“Muda a vida delas porque elas têm mais confiança, mais disposição pra o
trabalho. Quando elas terminam o trabalho e que uma roupa que ela fez, que um
bordado está na novela, isso pra elas é a glória. Elas vêm, olham pra Kátia assim e tem na
Kátia a esperança, elas sabem que se fizer vai dar certo. Pra pessoa que faz um produto e
ele na tevê, é uma coisa assim, eu não sei como te explicar, elas acha que é o auge, que
elas conseguiram atingir o inatingível, então, nossa, muda a mulher. Hoje elas são outras,
antes elas não tinham auto-estima, hoje é totalmente diferente, porque assim, a gente
sempre chegou pra elas e conversou de igual pra igual e elas sempre, é recíproco. Vendo o
trabalho delas sendo divulgado e indo pra fora de Brasília o trabalho delas, nossa, isso
significa muito pra elas. Aqui em Brasília é na Ortiga e na Magrella, são duas lojas só, que
atende ao público A, fica no lago, fica na 309 e no Gilberto Salomão. É um público A que
consome. As pessoas que compram são pessoas que não vão fazer esse tipo de coisa. A
gente faz questão de valorizar elas, porque elas que são as artistas, elas que fazem”.
(Ângela Terenzi, Apoena)
A visibilidade de seu trabalho tem impacto na auto-estima das mulheres. Os
significados produzidos na interação delas com o mundo também trazem novos sentidos
para suas vidas, uma vez que dessa interação resulta uma nova valorização para elas, uma
outra forma de ser no mundo, que é percebida como dotada de importância e valor.
“O primeiro curso que as meninas estavam fazendo, era uma coisa que não estava
perfeita como hoje, hoje está perfeito. Daquele jeito ali é quatrocentos reais aquela colcha,
273
fica maravilhoso, às vezes quando a gente pronta nem acredita que foi a gente que fez
(risos). Agora desse estilo aqui só retalho. Essa aqui não tem margarida, tem
quadradinhos. Essa aqui estava na novela , uma dessas aqui foi feita para novela, são duas
iguais, mas em dois dias monta uma colcha dessa aqui na máquina, depois tem que forrar
também, que não forra com a espuma, forra normal, outro forro, são dois forros daí.”
(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Os custos do produto não correspondem à valorização social decorrente da produção
do patchwork. Ainda que estejam vendendo bem os seus produtos, o ganho maior se na
auto-imagem da artesã, que passa a se enxergar não mais como uma pessoa carente,
excluída, mas como inserida numa rede de relações na qual ela consegue fazer a diferença.
“A cultura brasileira, nós ainda não estamos preparados pra ser vencedores, né? A
Apoena trabalha assim, eu trabalho de 14, 15 horas, realmente uma rotina muito puxada,
que foi construída assim com muita seriedade e com muito trabalho, e o engraçado, pra eu
te falar assim da cultura dos vencedores, que as pessoas sempre esperam encontrar um
artesão como coitado, que está passando necessidade, e a idéia que a gente vende não é
isso, a gente vende pessoas que querem trabalhar e encontraram um jeito de trabalhar e
está batalhando e indo pra frente” (Kátia Ferreira, Apoena)
Kátia Ferreira fala sobre uma “cultura dos vencedores” que seria baseada em muito
esforço e longas jornadas de trabalho. O que mais se destaca nessa fala da designer de
moda é o sentido de transformação cultural que ela propõe e que encontra eco nos relatos
das artesãs, de escaparem de uma condição de pobreza, em que figurariam como “coitados”
ou timas das desigualdades da sociedade, para assumir um papel ativo, tomando parte
num projeto que as transforma em sujeitos e agentes:
274
“É, como eu disse para você, quando a gente faz uma bolsa dessas aí, eu vou lá
e compro o material daquela bolsa e pronto, ou então eu pego meu cartão de crédito e vou
com recurso próprio e no dia do pagamento descontam e eu vou ali, pego meu salário,
desconto. Aqui, eu pego meu cartão e pronto, acabou, vou lá pago o trabalho das meninas,
a gente divide para cada uma e o que sobrar eu compro mais.” (Maria da Guia Barros de
Oliveira, Varjão)
Retomando o sentido de “ser feito à mão”, observamos que ele remete a uma
interpretação do objeto artesanal que resgata a “aura” da obra de arte, dada pela sua
dimensão de autoria e identificação do local de origem, e especialmente pelo fato de cada
objeto ser confeccionado um a um, individualmente. Walter Benjamin (1996), em seu
conhecido artigo, publicado originalmente em 1936, sobre “a obra de arte na época da sua
reprodutibilidade técnica”, analisa a obra de arte como sendo uma espécie de sucedâneo da
experiência religiosa, na qual três fatores estariam em jogo para a experiência da fruição
artística: a aura, o valor cultural e a autenticidade. Como seria de se supor pela época e o
contexto em que escreve esse autor, ele opõe a “autêntica” obra de arte às reproduções e
cópias que a indústria cultural permitia fabricar.
Na época da reprodutibilidade técnica, o que é atingido na obra de arte é a sua
aura. Este processo tem valor de sintoma; sua significação ultrapassa o domínio da arte.
Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução destacam o objeto
reproduzido do domínio da tradição”. (Benjamin, 1996[1936]: 168)
O aspecto de feito à mão dos objetos artesanais, sua ligação com o contexto local de
produção, ainda que um pouco mais ou um pouco menos fomentado, somado à própria
impossibilidade de sua reprodução por meios cnicos, nos conduz a ver o artesanato como
uma proposta de resgate da “aura” dos objetos, que, segundo Benjamin, teria sido perdida
275
no mundo moderno. O fato de os objetos serem “feitos à mão” possibilita que seja atribuído
a eles um sentido de autenticidade e valor cultural que inverte o processo descrito de
Benjamin. Se as técnicas artesanais podem, em muitos contextos, serem desqualificadas
como produção de arte, sua localização no domínio dos fazeres tradicionais conecta o ato
de produzir ao sujeito que o faz e ainda ao local em que isso ocorre, de forma análoga ao
objeto artístico.
A designer Kátia Ferreira é responsável pela elaboração de uma nova coleção a cada
semestre: primavera/verão e outono/inverno. Ela mesma desenvolve os produtos, através de
pesquisas, cursos e contato com as novas tendências no exterior, para em seguida reunir as
mulheres e passar a elas as encomendas e o modo de confecção das peças, juntamente com
o material necessário.
A intervenção da designer sobre o trabalho manual figura como uma terceira
camada de sentido atribuído ao objeto artesanal, pois ela o situa numa “coleção”, que faz
parte de um todo “criado”, ou seja, fruto de planejamento de um sujeito dotado de
competência criativa. O objeto artesanal passa a ser, além de “feito à mão”, também um
“objeto de design assinado”, sob a chancela de uma “designer”.
“Essa coleção nova agora é sobre obras de arte, é temático, a gente trabalhou
muito, estudou muito e achou melhor seguir nessa área, de obras de arte, a gente
identificou,cada coleção tem sempre coisa nova, o que vendeu na coleção passada não
vende nessa coleção, foi ótimo, tem uma cliente nossa em Portugal e a Kátia está
mandando na França” (Ângela Terenzi, Apoena)
Ter uma “preocupação com o social” é mais uma camada de sentido associada ao
objeto artesanal produzido pelas mulheres, agora visto pelo lado de fora. Quem compra
276
esse objeto também está contribuindo para melhorar a vida de pessoas carentes, ou seja,
“sendo solidário”. O produto é oferecido no mercado consumidor como sendo “socialmente
engajado”, “ecologicamente produzido” e muitas vezes desfruta também do prestígio
decorrente de ser considerado como um “objeto étnico”.
Entre as artesãs do grupo Flor do Cerrado, existe uma grande preocupação
ecológica. A preocupação com os resíduos químicos na produção e com uma forma
ecologicamente correta de produzir artesanato resulta num produto diferenciado que
encontra maior procura no mercado de produtos “feitos à mão”. Atendendo ao apelo
ecologista, Roze Mendes sabe que há algo mais a ser vendido juntamente com os painéis de
flores do cerrado, ela vende também a idéia de uma consciência ecológica que está presente
durante todas as etapas da confecção dos arranjos. Esses valores expressos na preocupação
ecológica durante a produção são compartilhados por uma comunidade de consumidores,
que buscam essa qualidade nos produtos que compram, e para isso estão dispostos a pagar o
preço que for cobrado por isso.
“Hoje a gente não coloca em qualquer lugar o nosso produto...porque a gente quer
que a pessoa que compre tenha essa mesma consciência que a gente tem ao fabricar o
produto. Então, não é a quantidade em exagero que a gente quer, a gente quer produzir
pouco, mas produzir de uma forma que a gente venda com valor agregado. Não é o produto
em quantidade, mas com essa idéia, entendeu?” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
A imagem de um outro exótico, que eu não conheço e de quem mantenho uma certa
distância, se não geográfica, social, mobiliza consumidoras engajadas com formas
específicas de compor e representar sua identidade por meio do consumo. Bourdieu (2002),
sobre a relação entre valor simbólico e valor econômico dos objetos afirma que
277
“Os circuitos de produção e circulação material são inseparavelmente ciclos de
consagração que, além disso, produzem legitimidade, isto é, objetos sagrados e ao mesmo
tempo, consumidores convertidos, dispostos a abordá-los como tais e pagar o preço,
material ou simbólico, necessário para deles se apropriarem.(Bourdieu, 2002: 169)
Esse sentido de comercialização de um produto social e ecologicamente engajado
pode representar uma forma de oportunizar uma espécie de participação política às
consumidoras. De um lado existem as artesãs produzindo objetos feitos à mão dentro de um
padrão de exigências que se enquadra num modelo internacional atual, com atitude política,
respeitando um conjunto de regras que devem ser atendidas para manter a consciência
ecológica. De outro lado as consumidoras, “convertidas” por esse modelo de pensamento e
convencidas da importância ou relevância de tais regras, desejosas por adquirir e portar tais
objetos, que comunicam uma atitude política sobre o mundo. São dois lados de uma mesma
composição, da qual a distancia entre elas é parte fundamental que garante o bom
funcionamento desse mecanismo. A distância entre elas é o que permite a construção das
“narrativas” sobre o Outro e sobre o “local de origem” dos produtos, processo esse que
desempenha um papel relevante na consagração do objeto e na manutenção do interesse
pelos produtos.
De um modo geral, podemos afirmar que é precisamente essa distância entre os
atores sociais do campo do artesanato que permite uma grande variação de significados
atribuídos ao objeto artesanal, que se observa que a atribuição de sentido e reconstrução
de significados está ligada ao contexto cultural do local de interpretação, e dada a distância
entre os atores sociais desse campo, se observa grande variação do contexto cultural no
qual esses objetos estão transitando, permitindo variadas interpretações.
278
Os designers, como intermediários, são as pessoas responsáveis por levar para fora
do país os objetos artesanais, lançando-os em outros contextos culturais onde ganharão
novos significados, revelando facetas não previstas pelas produtoras.
“A primeira coleção da Apoena foi lançada oficialmente para o público no dia 24
de novembro de 2004. O catálogo da coleção de moda abriu novas portas para as mulheres
do projeto. O grupo participou das seis últimas edições do Fashion Business, evento de
negócios da Semana de Moda do Rio de Janeiro. Apoena acaba de participar, pela
segunda vez, da Semana Internacional de Moda de Madri (SIMM) de a 4 de setembro,
ao lado de estilistas internacionais e brasileiros, como a Glória Coelho. Estivemos em
Paris, na feira de moda francesa Prêt-à-Porter, onde expusemos as criações também na
passarela do evento. A Apoena tem seus produtos comercializados em lojas no Brasil e em
diversos países como Europa, Estados Unidos, Kwait e Emirados Árabes.” (Kátia
Ferreira, Apoena)
O trabalho das artesãs esteve presente nas últimas oito edições do Fashion
Business” e recentemente, em 2008, a grife Apoena transformou-se em Apoena Fashion,
desfilando sua marca junto a estilistas famosos. A diversidade das coleções e dos materiais
empregados no trabalho agrega valor ao produto, mantendo o status de novidade necessário
para que seja mantido o interesse no produto por parte do consumidor de moda, que está
sempre buscando o novo, conforme tratei no capítulo específico sobre Moda e Design, na
segunda parte da tese.
A participação em eventos internacionais contribui para criar a distinção da marca
da ONG Apoena Fashion, dando outra dimensão para sua participação no mercado da
moda, dialogando internacionalmente, e somando mais uma camada de sentido ou “valor”
ao produto. O caráter da novidade se impõe sobre os demais aspectos, quando se trata de
moda.
279
“Eu não fico com bolsa porque eu não vou ter oportunidade para todas, porque
não tem como todas fazerem a bolsa e não tem como eu comprar ou conseguir o material
também porque são caros. E outra coisa, por exemplo, se a gente não trabalhasse com
patchwork, a gente não teria conseguido participar da novela, porque a gente tem, porque
a gente trabalha com matéria diferente com patchwork e agora eu estou com vontade de
mexer com bijuteria, pois bijuteria está saindo, está saindo bastante, uma
loucura...”(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
Além das novidades, sempre necessárias para garantir a continuidade do trabalho e
o investimento em materiais, destaca-se também a necessidade de produzir algo que chame
a atenção e possa trazer uma maior visibilidade ao produto, expresso no comentário “a
gente foi parar na Globo”. Destaca-se, na fala da artesã, igualmente a necessidade de estar
conectada às novas tendências, indicadas pelo interesse pelas “bijuterias”. Ao elencar
diversas necessidades e procedimentos envolvidos no trabalho, a artesã vai descrevendo os
recursos pessoais que ela emprega, e isso a torna agente, por oposição a paciente, ou
sujeito, por oposição ao objeto, dentro do projeto de artesanato, dando uma indicação do
nível de sua integração social dentro daquele contexto.
“Nossa, eu cheguei com esse aqui agora, esse eu não tinha visto ainda, a moça
trouxe agora para eu fazer. Ela trouxe e eu vou copiar. Esse aqui vai fazer cinto...sim vai
fazer cinto, eu só vou pregar, eu vou passar para ela e ela vai embora com ele hoje, aí esse
aqui é assim. Não tem jeito, não tem como, você vende uma bolsa, uma colcha, a colcha
não, a gente nunca chegou a vender uma colcha toda assim, para uma pessoa ficar com a
colcha não, divide no meio, a gente vende poucas colchas, a gente fez mais pelo curso do
Sebrae mesmo, a gente faz o Sebrae levar lá e vender, depois traz novos cursos” (Maria da
Guia Barros de Oliveira, Varjão)
280
Revela-se aqui o aspecto social de dividirem o trabalho e as matérias-primas, o que
pode ser entendido como o reforço da sociabilidade e da solidariedade pelo trabalho, ligado
à construção de uma nova identidade social resultante do engajamento num novo campo de
trabalho.
Berger e Luckmann (2005), que aprofundam e desenvolvem as noções de Simmel
sobre a sociabilidade, destacam a importância da conversa para o estabelecimento de um
grupo de iguais, especialmente quando a conversão a uma outra religião ou no caso, a
um novo trabalho, uma nova profissão, que transforma o significado da vida e confere outra
dimensão à identidade dos atores: “O veículo mais importante da conservação da realidade é a
conversa. Pode-se considerar a vida cotidiana do indivíduo em termos de funcionamento de um
aparelho de conversa, que continuamente mantém, modifica e reconstrói sua realidade
subjetiva.”(BERGER E LUCKMANN, 2005:202)
A conversa é considerada pelos autores como um veículo ou recurso empregado
para garantir a manutenção das realidades comuns entre atores sociais.
“Esta força geradora da realidade possuída pela conversa é dada no fato da
objetivação lingüística. [...] No estabelecimento desta ordem a linguagem realiza um
mundo, no duplo sentido de apreendê-lo e produzi-lo. A conversação é a atualização desta
eficácia realizadora da linguagem nas situações face a face da existência individual.
(BERGER E LUCKMANN, 2005:204)
Mas para que a manutenção da nova identidade seja possível, é preciso haver um
grupo para compartilhar esses valores. Caso contrário, a interação com as pessoas que
conheciam o indivíduo antes acabam por desafiar as suas crenças na nova identidade e o
seu sentimento de bem-estar resultante da conversão. Portanto, “só é possível o indivíduo
281
manter sua auto-identificação como pessoa de importância em um meio que confirma esta
identidade.” (BERGER E LUCKMANN, 2005: 205). Ainda segundo esses autores:
“A estrutura de plausibilidade deve tornar-se o mundo do indivíduo, deslocando
todos os outros mundos, especialmente o mundo que o indivíduo “habitava” antes de sua
alternação. [...] O indivíduo que executa a alternação desengaja-se de seu mundo anterior
e da estrutura de plausibilidade que o sustentava, se possível corporalmente, e quando não,
mentalmente.” (BERGER E LUCKMANN, 2005: 210)
Assim, a antiga realidade, assim como as relações anteriores e tudo aquilo que
costumava contribuir para a construção do sentido da realidade anteriormente à mudança,
deverá ser reinterpretado de acordo com o contexto da nova realidade como um todo.
Assim, a sociabilidade promovida pelos encontros dos grupos e as conversas entre as
artesãs, dentro da própria distribuição de tarefas em si, contribuem para a manutenção dessa
nova realidade que representa uma nova forma de inserção social das mulheres no mundo
social.
Assim como no Varjão, também as Bordadeiras de Taguatinga apontaram o
significado de grande união entre as mulheres resultantes do trabalho em grupo, reunidas
em torno da produção do objeto. Conforme foi mostrado na primeira parte da tese, elas
ressaltam a boa convivência do grupo e as boas relações entre as participantes como
característica fundamental do grupo. Pode parecer trivial o fato de mulheres se entenderem
bem em grupo, mas é mais complexo do que parece ser à primeira vista. O fato de terem
desenvolvido estratégias para administrar as divergências já representa em si um feito, mas,
além disso, ainda o sentido de compartilhamento da realidade social que é realimentado
282
por meio das conversas, e o fortalecimento dos vínculos sociais por meio das trocas de
favores e ajuda mútua.
O grupo de trabalho adquire um sentido de rede de integração social das mulheres.
A interação das mulheres de Brasília com outras instâncias do mundo social, com os
demais atores desse universo foi o que deu relevância a elas e ao trabalho que desenvolvem.
De acordo com Mary Douglas e Isherwood, (2004: 36) trata-se da “interação que produz
significação”. Precisamente por causa dessa interação foi que o artesanato das mulheres
ficou conhecido fora de Brasília e ganhou visibilidade e relevância social.
Não se trata somente do fato de que muitas mulheres em Brasília produzem
artesanato, seja nas suas casas, cuidando dos filhos, seja reunidas em grupos de produção,
mas é pela rede de relações que se criou em Brasília, e que as envolve num universo maior
que as suas casas, que essa prática de bordado e de costuras ganhou novos significados.
Esses desdobramentos dos fazeres cotidianos é que interessa conhecer.
“O sucesso também chegou às novelas da TV Globo, que incluíram peças da
Apoena nos figurinos de "Senhora do Destino", "Como uma Onda", "América",
"Belíssima" e "Cobras e Lagartos”. Na novela foi ótimo, a gente mandou os figurinos, tem
alguns contatos já pra continuar, é muito difícil chegar assim na televisão” (Ângela
Terenzi, Apoena)
Finalmente as novelas de televisão, que funcionam como grande consagradoras das
coisas dotadas de “valor” e sinônimo de sucesso na carreira. Muitas artesãs referem a sua
aparição no jornal ou de uma peça artesanal sua na televisão como um marco na carreira, e
como sinal da aprovação social do trabalho que elas vêm desempenhando no anonimato. A
aparição televisiva mencionada aqui acrescenta mais uma camada de sentido à produção
artesanal, que decorre do reconhecimento daí decorrente.
283
A consagração do trabalho da artesã se dá, portanto, através do reconhecimento da
televisão, que funciona como se fosse o próprio reconhecimento do público consumidor do
seu trabalho, porém amplificado e legitimado num nível que pode ser alcançado através
da exposição nesse veículo. Acerca dos ciclos de consagração, comenta Bourdieu (2002):
“Por toda parte em que são observados, tais ciclos de consagração têm por função
realizar a operação fundamental da alquimia social, transformar relações arbitrárias em
relações legítimas, assim como diferenças de fato em distinções oficialmente
reconhecidas.” (BOURDIEU, 2002: 211)
284
Capítulo 3 – “Sabe a novela? A gente tá na Globo!”
285
Capítulo 3 – Sabe a novela? A gente tá na Globo!
“Eu pergunto: você é de onde? Sou de tal lugar e você? Daí eu digo: sou do
Varjão. Elas dizem: onde fica o Varjão? Daí eu digo, assim e tal, olha, sabe a novela
“BANG-BANG”? A gente participou lá. Aí elas dizem: não acredito!!! E como vocês
chegaram lá??? Aí explico e elas dizem: ah! Não acredito!!! do Varjão??? Nem disfarçam.
Dizem: nossa, como chegaram lá? Eu digo: com nosso trabalho, é nosso trabalho que a
gente conseguiu chegar lá. A gente queria conseguir. Como vocês Conseguiram? Eu digo:
é simples, a casa gostou do nosso trabalho, é nosso trabalho, não é nada mais que isso.”
(Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
A aparição do artesanato produzido em Brasília no canal de televisão de maior
alcance e audiência da televisão brasileira provocou impacto e repercussões nas relações
das artesãs com os demais atores desse universo social.
“Então nós temos assim algumas felicidades, que o pessoal da Rede Globo viu o nosso
trabalho e gostou, levou, e de um momento pro outro invadiu o Brasil inteiro. Nós
fomos pra feiras de moda, revistas de moda, está saindo em praticamente todas, saiu coisa
da Apoena, saiu na Elle, saiu o vestido da Belíssima na Manequim. Eles colocaram o nome
da Apoena, eles colocaram assim, quando saiu a novela, eles colocaram assim: vestido de
uma deusa. E no site da Rede Globo mencionaram Apoena. E você sabe que é uma moda
que vai fixando e foi ficando como uma coisa séria, né, difícil de ser feita”. (Kátia
Ferreira, Apoena)
A designer considera como “uma felicidade” o fato do vestido concebido por ela e
elaborado pelas artesãs do projeto ter ido parar na novela Belíssima, da Rede Globo de
televisão. Isso repercutiu na mídia como um todo, da televisão para as revistas e jornais de
grande circulação no país, dando uma visibilidade muito grande ao trabalho artesanal. No
286
Varjão também o impacto da novela trouxe conseqüências para as artesãs, especialmente no
campo simbólico, na construção de sua auto-imagem e sobre a imagem da comunidade do
Varjão como um todo.
“Foi uma vitória grande nossa, mas do Varjão. Daqui fica isso (risos) a maioria
das pessoas falam isso da gente, da violência daqui, procuram a gente pra comprar e
vão direto na da gente, compra e sai. Elas dizem: nossa como vocês conseguem fazer isso
daqui? Eu digo: é do Varjão. A maioria quer que a gente ensine. Eu falo: esse é nosso
carro chefe, se eu ensinar pra você hoje, como é que fica? Eu falei: se quiser ir lá no curso
pode ir, mas eu vir aqui ensinar para vocês eu o venho, é simples e não tem o que
ensinar, é um retalho com fuxico em cima e o trabalho de acabamento, isso e essa é a
marca do Varjão, não adianta. Eles podem vender mas não é do Varjão. muitos querem
que a gente faça as mesmas bolsas pra elas, só que eu não faço, porque, se eu fizer, eu não
sei se estou sendo egoísta, mas pra revenda eu não faço. Chega aqui pedindo pra levar pra
feira, eu não vou fazer isso, eu também vou participar lá. Eu, ninguém, vai deixar de dizer
que aquele trabalho é dela para dizer que é meu, até por causa da discriminação que
existe, existe isso e não adianta dizer que não existe. Eu conheço gente aqui no Varjão que
tem uma situação financeira boa e estava mexendo em artesanato sozinho e pergunta se
ainda está, não está porque não sabe.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
A artesã Maria da Guia, do Varjão, revela que considera “uma grande vitória” para
o pessoal do Varjão como um todo o aparecimento do seu artesanato nas novelas de
televisão. Ela explica, assim como Maria Anita da Silva (mencionada na primeira parte da
tese), que isso é uma conquista porque modifica a forma como o Varjão é visto pela
sociedade.
“Gente, é tão bom mexer com essas coisas. E o valor que você ganha fora, que
você valor, a valorização que tem para sua comunidade. Porque Varjão todo mundo
fala, e fala no jornal, e nada além, nas páginas da violência, agora hoje não está em
287
muitos lugares falando da associação Art Varjão e a arte das mulheres.” (Maria da
Guia Barros de Oliveira, do Varjão).
As notícias sobre o Varjão costumam ser relacionadas à criminalidade no local,
considerado um dos mais violentos de Brasília. A emergência do artesanato através da
composição de cenários nas novelas modifica a imagem de violência e associa o local a
coisas mais positivas, ao trabalho, ao capricho e qualidade na elaboração e ao fazer artístico
ou cultural.
“Eu tenho várias encomendas de bolsa aí, de mulheres que vão aos Estados
Unidos, outras que queriam um monte de almofadas e colchas para levar para Grécia,
para um negócio para longe mesmo, pra África, pois ela vai mudar para lá. E eu não
tenho mão de obra para esse monte de coisas, porque eu estou costurando pra Kátia e
costurando pra novela, né? E eu estou correndo atrás de tudo e fazendo umas bolsas ali,
mas são poucas. Mão de obra, tem que ter mais mão de obra. E com esse negócio de
querer vender tudo no Natal, agora pra gente pegar logo um dinheirinho, e nem é isso,
nem é tanto dinheiro, pois o mais importante é a divulgação, porque agora é o tempo de
você divulgar tudo, é Natal. E todo lugar que você vai tem artesanato e todo mundo quer.
Perguntam: de onde que é? Eu digo: é do Varjão, é do Art Varjão. Então é isso. nunca
mais pára, então a gente prioridade agora pra essas feiras, mesmo quando não vende
tudo, mas faz feira de qualquer maneira. Muita gente fica sabendo que aqui no Varjão tem
uma associação que tem esse produto. Nossa, o que eu já vendi pra gente que nem às vezes
eu escuto os comentários: ah, uma amiga minha comprou lá! E ai vai passando a
informação e acho que isso mais força pra gente continuar. É bom demais! Aqui no
Varjão é pra ter muita mulher trabalhando no artesanato, mas aqui ninguém quer, são
poucas”. (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão).
A artesã demonstra conhecer e aplicar na prática o ditado popular segundo o qual “a
propaganda é a alma do negócio”. A importância de ter figurado nas novelas da Rede
288
Globo traz um novo valor para o seu trabalho, configurando uma inversão da imagem do
Varjão na sociedade, mas, para as artesãs, é preciso continuar participando das feiras e
trabalhando na divulgação dos produtos, para que tenham novas encomendas e trabalho o
ano todo. Entretanto, Maria da Guia revela que existem muitas mulheres no Varjão que
poderiam estar trabalhando com artesanato, porque a demanda é muito grande, mas não se
mostram interessadas. Para aquelas que participam do projeto, aparecer na televisão produz
uma mudança na sua interação social tanto com clientes quanto com as pessoas mais
próximas.
A idéia de ver a imagem do seu produto veiculado pela televisão atingindo todo o
país e mesmo sendo exportado, na medida em que as novelas dessa emissora são produto
cultural de exportação brasileiro, está associada à idéia de exportação direta dos produtos,
que passa pela comercialização local para clientes que levarão os produtos consigo para
outros países.
A análise de um relato pessoal pode revelar melhor o impacto da veiculação da
imagem dos produtos artesanais nas novelas de televisão sobre a rede de relações sociais
mais imediatas das artesãs, os amigos, vizinhos e a própria família. Dinalva Leal conta que
passava dificuldades financeiras para sustentar os seis filhos quando foi convidada para
trabalhar para a Apoena. Ela aceitou e começou a produzir crochê e bordados para a grife.
Seus parentes não colocavam muita na sua nova ocupação, e sugeriam que ela largasse
os trabalhos manuais e fosse buscar emprego como doméstica. Mas ela preferia continuar
com o crochê, pois se considerava “muito mole para fazer limpeza”. Até o dia em que a
apresentadora Ana Maria Braga mostrou em seu programa matinal, transmitido pela Rede
Globo, o artesanato produzido em Brasília. A repercussão foi um grande sucesso, de modo
geral, mas particularmente nas casas, entre os familiares das artesãs. Dinalva conta: “meu
289
marido falou ah! Então é isso que vocês fazem? Agora entendi porque você fica o tempo
todo fazendo essas coisas...Deve continuar”.
Foi a partir do aparecimento do trabalho artesanal num programa de televisão que
mudou a percepção do marido de Dinalva sobre o trabalho que ela fazia. Antes considerado
como passatempo, ao ganhar importância na televisão, sendo reconhecido por pessoas
famosas, por Ana Maria Braga, em particular, passou a ser considerado um trabalho
importante e merecedor da sua dedicação a ele.
“Muita gente sabe, muita gente liga e pergunta se é nosso mesmo, se é do Varjão.
Daí eu falo que é, daí fazem encomenda, a gente já tem encomenda, tem algumas
encomendas pra fazer. Com a televisão aumentou as encomendas. Não aumentou aqui
pra nós aqui, como pras meninas mesmo, que tocam o telefone direto, o telefone delas está
mais ligado na Associação. Depois que elas começaram a costurar elas cresceram,
entendeu? Ai falaram que não são mais da Associação. Saíram para trabalhar por conta,
porque elas acham que vai ficar eterno. Isso não fica eterno, gente. A associação sim, mais
do que você. Você consegue ir mais longe um pouco, agora sozinho é muito difícil você ir.
A moça da Globo falou isso pra ela, que era melhor ela ficar onde estava. Eu não cobro
nada delas, a gente não cobra, eu quero o dinheiro que eu gastei nos tecidos pra
comprar outro tecido, por exemplo, são 25 Reais a almofada e eu divido no meio: são
12,50 da Associação e 12,50 da menina que fez. Pego aqueles 12,50 e compro mais meio
metro de tecido, eu fiz assim pra elas porque todo mundo que fazia uma peça doava 20%
daquilo que foi feito pra Associação. Mas daí não deu certo, não quiseram.” (Maria da
Guia Barros de Oliveira, Varjão)
A exposição na mídia produz impactos variados nas artesãs. Para algumas, indica
que devem se unir e continuar com o trabalho que estavam fazendo, pois a televisão
contribuiria para se tornarem mais fortes enquanto grupo e obterem mais trabalho. Para
outras, diferentemente, seria uma oportunidade de se lançarem sozinhas num trabalho
290
maior, que as levaria potencialmente para fora da comunidade do Varjão. A percepção das
oportunidades que podem se abrir como decorrência da exposição midiática passa pela
percepção individual do papel do grupo, da força do vínculo que as une e do que representa
estar na televisão para cada uma delas.
Do ponto de vista da construção das subjetividades, chama a atenção a mudança na
forma como as artesãs passaram a enxergar a si mesmas depois de aparecerem em
reportagens de jornais e revistas e programas de televisão. A repercussão na mídia parece
produzir um efeito sobre a auto-estima das mulheres e uma maior confiança nas suas
capacidades. Essa questão foi analisada nos capítulos sobre o Varjão, sobre Taguatinga e
sobre Samambaia, na primeira parte da tese, onde procurei incluir informações sobre as
conseqüências do trabalho em grupo e os efeitos deste sobre as artesãs participantes.
Retomando a relação das artesãs com a mídia, Maria da Guia conta como as
bonecas do Varjão ficaram conhecidas. Ela afirma que foi a responsável pelo contato entre
Maria Anita da Silva da Silva e Kátia Ferreira, a presidente da ONG Apoena, que
intermediou a entrada do trabalho nos cenários de novela da televisão:
“Anita foi para mostrar o material dela porque eu indiquei para ela mostrar, eu
que indiquei a menina ali para ela. Foi o seguinte, a Kátia do Apoena, não sei se tu
ouviu falar, ela é do Grupo Proeza. Ela tem uma ONG chamada APOENA, a Kátia. A gente
estava numa exposição num final de semana, num domingo. A Kátia foi e viu nosso
trabalho de patchwork que era muito perfeitinho e convidou a gente pra no outro dia a
gente ir no APOENA, que é lá no espaço cultural Renato Russo. Ela pediu para dar uma
olhada...Porque aqui não dava para ver tudo, ela falou: leva tudo que tiver de patchwork,
todas peças que trabalharam e traz aqui amanhã às oito horas da manhã. E a gente não
sabia, quando a gente chegou ela disse: é isso, isso e isso e tinha uma moça que
trabalhava pra ela chamada Angélica que era do Rio de Janeiro e gostaram do trabalho
e mandaram para Globo e deram material. Essa Angélica veio aqui em casa e eu
291
apresentei as meninas: essa é Angélica, essa é Maria dos Reis, essa é Osmarina e essa é
Anita . as bonecas que foram para Globo são essas aqui, são cinco bonecas que foram
para rede Globo.” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão )
Anita e outras mulheres seguiram fazendo bonecas para a rede Globo, por
intermédio de Kátia Ferreira, enquanto outras associadas continuaram fazendo colchas de
encomenda para a Apoena. “Essas são para feiras internacionais, São Paulo, Rio de
Janeiro e vários lugares. Aqui em Brasília mesmo tem expostas na caixa econômica”
explica Maria da Guia.
Pierre Bourdieu (2002) procura mostrar a magia das estratégias de produção de
sentido das instâncias de consagração cultural, tendo analisado a escola e sobretudo a
mídia, buscando abrir e definir um espaço, por meio dessa reflexão, para a resistência aos
produtos midiáticos.
Essa perspectiva de encontrar modos de resistência é derivada de um olhar ainda
herdeiro de uma teoria marxista aplicada ao campo cultural. A análise da oposição
estrutural entre dominantes e dominados num campo de batalha pela imposição de valores
específicos definidos em termos de interesses de um grupo, também esta presente na crítica
à indústria cultural formulada por Robert Merton e Paul Lazarsfeld (2000[1948]).
Conhecidos teóricos da Cultura de Massa, influenciados pelo funcionalismo de
Malinowski e Radcliffe Brown, Robert Merton e Paul Lazarsfeld destacam o papel dos
meios de comunicação de massa em produzir a crença na qualidade dos produtos ou das
pessoas. Esses autores refletem sobre o poder dos mass media e sua capacidade de
dominação cultural pela imposição de valores e visão de mundo sobre os expectadores:
“Existe outra base, talvez mais realista, para esta ampla preocupação com o papel social
dos mass media. Referimo-nos aos diversos tipos de controle social que poderosos grupos de
292
interesse exercem na sociedade. Cada vez mais, os principais grupos de poder, entre os quais o
mundo do negócio organizado (organized business) ocupa a posição de maior destaque, vêm
adotando técnicas para manipular o público de massa (mass public) pela propaganda, ao invés de
empregar meios mais diretos de controle”. (MERTON E LAZARSFELD, 2000[1948]: 110)
Ao mesmo tempo em que expressam sua preocupação com a dominação social por
meio do controle das idéias veiculadas pelos meios de comunicação de massa, esses autores
elencam e discutem as funções sociais dos mass media, tais como a atribuição de status e a
reafirmação das normas sociais, expondo os desvios da norma ao público, que resultaria
numa forma de controle social e finalmente algo que denominam “disfunção narcotizante”,
que seria uma preocupação apenas superficial com os problemas socais, que eles são
repetida e insistentemente denunciados.
“O status mais valorizado é atribuído àqueles que apenas são citados pelos media,
independentemente de qualquer apoio editorial. Os mass media conferem prestígio e
acrescem a autoridade de indivíduos e grupos, legitimando seu status. O reconhecimento
pela imprensa, rádio, revistas ou jornais falados atesta que uma nova personalidade
despontou; um “alguém” de opinião e comportamento bastante significativos para atrair a
atenção do público. [...] tais testemunhos não somente destacam o prestígio do produto
mas também canalizam prestígio para a pessoa que testemunha.” (MERTON E
LAZARSFELD, 2000[1948]:115)
Finalmente os autores avaliam como relativa a influência da mídia sobre o
comportamento, pois “a resposta individual ao que os canais de comunicação apresentavam
mostrou que a propaganda o se torna eficaz pelo simples fato de sua exposição”.
(MERTON E LAZARSFELD, 2000[1948]: 129) O interessante desse texto para os
propósitos da tese é que os autores verificaram uma certa interação entre as questões locais
293
e os conteúdos da mídia. Afirmam terem verificado que os meios de comunicação de massa
provaram ser mais eficazes quando “trabalhando em conjunto com centros locais de
contatos organizados e diretos.” (MERTON E LAZARSFELD, 2000[1948]: 130) Como
conclusão, apontam que o papel de influência dos mass media se limitaria a assuntos
sociais periféricos, e que os meios de comunicação não demonstrariam possuir esse poder
que se costuma atribuir a eles:
“Assim, as mesmas condições que agem em favor da máxima eficácia dos mass
media operam em favor da manutenção da estrutura social e cultural vigente. Ou seja,
trabalham muito mais para a manutenção dessa estrutura sociocultural do que para sua
modificação.” (MERTON E LAZARSFELD, 2000[1948]: 131)
Conforme se verifica no trabalho de campo, a aparição midiática provocou impacto
sobre as artesãs, especialmente no contexto imediato de suas relações sociais, embora não
tenha provocado nenhuma revolução cultural ao inserir objetos artesanais nas novelas de
televisão. A distância entre as artesãs e suas consumidoras potenciais não foi modificada,
permanecendo como representativa daquilo que se define como o Outro, o distante, o
diferente. A não ser por uma pequena familiaridade com as “narrativas” que circulam em
cada um desses universos acerca de como é o outro.
Ainda na análise dos meios de comunicação de massa, outro teórico cuja obra
merece destaque é Marshall McLuhan (2000[1954]). O autor chama a atenção para a forma
empregada por qualquer meio de comunicação, considerada por ele tão relevante quanto o
conteúdo que é transmitido. Dentro dessa perspectiva, ele destaca a visão e o som como
recursos empregados na televisão e no cinema, conjuntamente com a palavra escrita, que
transformam a recepção do próprio conteúdo. Resumidamente, o meio escolhido é tão
294
importante quanto a mensagem, pois em muitos casos o meio constitui a própria
mensagem. Essa mudança de perspectiva sobre a comunicação se torna relevante porque,
de acordo com esse autor, “passamos hoje da produção de mercadorias empacotadas para o
empacotamento da informação.” (MCLUHAN 2000[1954]: 155). Segundo MacLuhan,
“Do mesmo modo, é apenas uma questão de bom senso reconhecer que a situação
geral criada por um canal de comunicação e o seu público constitui grande parte daquilo
no qual e pelo qual os indivíduos se comunicam. A mensagem encodificada não pode ser
considerada uma simples cápsula ou lula produzida de um lado e consumida do outro. A
comunicação é comunicação em toda a linha” (MCLUHAN 2000[1954]: 161)
Como conclusão, o autor afirma que os meios de comunicação que empregam
simultaneamente imagem e som, tais como a televisão e o cinema, “situam certas
personalidades num novo plano de existência. Elas existem não tanto em si mesmas, mas
como tipos da vida coletiva sentidos e percebidos por um meio de massa”. (MCLUHAN
2000[1954]:161)
Tal afirmação de McLuhan nos remete às formulações de Simmel acerca dos tipos
da vida coletiva. Os tipos em Simmel figuram como um universo de imagens de referência
social. Quando retratados no jornal ou em revistas, ou simplesmente por figurar em
programas de televisão, o trabalho das artesãs de Brasília parece ganhar outra dimensão,
mais autêntica e mais artística do que elas mesmas se definem:
“As pessoas te abraçam, beijam a gente e elogiam o trabalho da gente aqui da
comunidade. Falam: nossa, que bom que tem isso no Varjão! E a gente fica lisonjeada,
né. Geralmente o Varjão tem violência. O Varjão não tem nada. Daí quando chega
material no jornal lá, no Varjão tem isso e tem aquilo, nossa, é bom demais! Eu acho que
isso que é importante, e sem contar que ainda acho mais importante é de que, além de mim,
295
que sou muito feliz com isso, eu consigo manter um grupo de pessoas trabalhando para si,
que é aquilo que falamos no começo. Não eu, mas tem várias pessoas que mesmo não
estando aqui no Art Varjão, mas são profissionais, são profissionais e se um dia elas
quiserem trabalhar, voltar para cá, ou quiser trabalhar em qualquer lugar, elas são
profissionais, elas tem como ganhar um dinheiro, porque a gente treinou elas e é
gratificante, isso, eu gosto” (Maria da Guia Barros de Oliveira, Varjão)
296
Capítulo 4 - Elas são as artistas!
ou de quando o artesanato vira Arte, Cultura Popular
297
Capítulo 4 - Elas são as artistas!
ou de quando o artesanato vira Arte, Cultura Popular
Neste capítulo mostro as representações construídas e veiculadas pela mídia
impressa, jornais e revistas, sobre as artesãs e o artesanato produzido por elas em Brasília.
O interesse é observar a construção de diferentes representações sobre as artesãs e sobre o
trabalho que desenvolvem, por meio da análise da linguagem e da forma como são
expressos pela mídia. Nesta parte final do trabalho procuro analisar o material publicado na
mídia, jornais, revistas e publicações de internet, visando alcançar um ponto de vista
exterior à produção, o ponto de vista da recepção das obras.
Da capa do Caderno Cultura do Correio Brasiliense, de Brasília, 5 de outubro de
2005:
“Por intermédio da arquiteta e decoradora Maria Angélica Viana, que produziu
peças para os programas Criança Esperança e Xuxa no Mundo da Imaginação, nove
artesãs de três cidades do entorno confeccionaram o material. A decoradora recebeu o
convite da produtora de arte da novela, Ângela Melman, e optou por estendê-lo às artistas,
com quem desenvolve trabalho social de qualificação. [...]
“Angélica Viana viu, nessas mulheres, talentosas criadoras de uma arte que
retoma força em tempos de industrialização. Esse tipo de trabalho tem sido resgatado no
mundo inteiro, acho que é uma contrapartida a toda a tecnologia.”
“Como a novela é toda passada na região de Santa Fé, no México, e como a
produção da Globo soube dessa minha vivência mexicana, me convidaram para fazer os
298
produtos. Escolhi o trabalho das meninas de Brasília porque, quando me ligaram, eu
estava aqui. Até brinco que elas tiveram sorte. Mas o artesanato delas tem um diferencial:
elas fazem com carinho, pureza. Acho que isso é fruto do caldo cultural que é esta cidade”,
resume, admirada.” (Angélica Viana, Arquiteta, Consultora da Rede Globo)
O trabalho artesanal aparece na mídia como sendo a expressão de uma arte. Trata-se
de um olhar de fora, distante do produtor. Pode ser pensado em termos do olhar da
recepção, como entidade abstrata chamada “o público”. Esse olhar é moldado por
jornalistas e redatores que possuem uma maneira própria de tratar as reportagens, de forma
a adicionar um grau de apelo às noticias, visando atrair a atenção dos leitores.
Os jornalistas, redatores ou críticos de cultura dos jornais desempenham um papel
que, de modo geral, é atribuído aos meios de comunicação de massa, que é a formação de
opinião e conceitos entre os leitores. Contribuem para o processo de construção das
interpretações e leituras do mundo. Muitas vezes são os responsáveis por dizer às pessoas o
que pensarem sobre os assuntos e, independentemente da eficácia com que o fazem, esse
tem sido o seu papel na indústria da informação.
Podemos afirmar que se trata de um olhar proveniente do ponto de vista da cultura
letrada ou erudita, conforme se costuma encontrar nas críticas ao tratamento dado à Cultura
Popular, entendida como aquilo que diz respeito ao povo. Como quer que se qualifique os
jornalistas e redatores empenhados nessa tarefa, o fato é que a sua posição em relação ao
campo do artesanato é de uma relativa distância com relação às produtoras de artesanato.
Para quem produz artesanato, este é considerado um “produto artesanal” ou
simplesmente “artesanato” e está voltado para o mercado. Para quem faz o comentário ou a
propaganda, apelando a quem consome o produto, ele tem outros significados que visam
299
associá-lo à idéia de “valor cultural”, “tradição popular”, sendo mesmo chamado uma
forma de “arte”. Conforme analisa Bourdieu (2002):
“As páginas consagradas aos diferentes costureiros nas publicações semanais e
nas revistas especializadas, ou as obras, artigos, citações e referências consagradas aos
diferentes autores de um mesmo campo, não são somente um indício de sua posição na
distribuição do capital específico, mas representam concretamente a parcela do lucro
simbólico (e, correlativamente material) que eles estão em condições de obter da produção
do campo em seu conjunto.” (BOURDIEU, 2002: 171)
Bourdieu escreve sobre as páginas escritas por jornalistas especializados no
universo dos costureiros de grife, mas sua observação se encaixa também no que se refere
ao jornalismo sobre o campo do artesanato. O número de referências e citações diz respeito
à posição ocupada por um determinado sujeito no campo, e está ligado ao capital que ele
está em condições de obter. As associações do artesanato a noções como “arte” e “cultura”
podem ser entendidas como estratégias de manipulação do significado por parte dos agentes
específicos constituídos para essa finalidade, os jornalistas e críticos dos eventos culturais,
com o propósito de tomar de empréstimo o prestígio e o poder simbólico de uma campo
para utilizá-lo em outro.
Essa relação com o capital, material e simbólico, explica também porque, em alguns
contextos, o trabalho artesanal é quase que automaticamente alçado à categoria de arte.
Trata-se de uma estratégia para dar mais prestígio aos atores desse campo, conectando-os
ao campo artístico. Empregando os termos de Bourdieu para a análise do campo do
artesanato, haveria a produção de um maior capital simbólico para as artesãs, possibilitando
a futura conversão do capital simbólico em capital econômico ou material, num momento
seguinte.
300
A artesã, quando produz a sua obra, não costuma pensar: “estou fazendo arte, estou
expressando a cultura popular.” É o olhar de fora, do “outro”, seja ele mal-informado, seja
ele elitista, quem rotula o artesão como “artista” ou “criador de arte”. O fazedor apenas faz,
do jeito que aprendeu.
Do Correio Brasiliense de 22 de setembro de 2002:
“Costureiras de São Sebastião fazem trabalhos para venda e exposições. Para
participar do grupo, nenhuma delas precisa sair de casa. Podem trabalhar tranqüilas e
ainda ficar de olho nos filhos. E as garotinhas, curiosas, se interessam pela arte do
bordado. Os mais novos fazem como Vanessa, desenham e pedem que a mãe termine a
obra.”
Aqui se observam referências tanto a “arte” quanto a “obra”, duas palavra
geralmente associadas à criação artística, de autoria, que contém um estilo próprio. No
Comunidade Vip, jornal coletivo de Brasília, 18 de agosto de 2002, encontra-se:
“O trabalho manual das fuxiqueiras atinge um grande valor cultural e conquista o
exigente mercado europeu[...]
‘Mãos que criam obras de arte Com mãos de ouro, 27 mulheres usam e abusam
da criatividade, criando verdadeiras obras de arte. “Conseguimos mostrar que o
artesanato não é um hobby, mas uma tradição cultural que pode gerar muito lucro, diz
Kátia Ferreira, Presidente da Associação.”
301
Na passagem acima, podemos observar como o “trabalho manual” é ligado na
mesma frase à expressão “grande valor cultural”, logo no título da matéria jornalística, e
acaba resultando em outra coisa, no parágrafo recortado do meio do texto, onde se
encontram referências a “obras de arte” ao lado de “tradição cultural”.
Do Correio Brasiliense, 6 de março de 2005:
“Da periferia para a novela das oito A intenção é resgatar na moda os saberes
populares. Hoje o artesanato é um objeto de desejo e quando você lhe dá uma nova leitura,
um novo design, vira artigo de luxo.”
Recorrendo a um campo semântico um pouco mais diverso, aqui nesse recorte o
artesanato aparece como “saberes populares”, associado em seguida a “objeto de desejo” e
a artigo de luxo”. A recorrência e a proximidade dos termos acaba por criar uma
associação que soa como se fosse algo “natural”, porque nos acostumamos a ela.
Mas essa categorização como “popular” é exterior ao fazer em si. Ela ocorre no
meio social. É no espaço compartilhado do social que o papel da mídia ganha destaque, no
processo de construção da realidade social.
Do Correio Brasiliense, 28 de junho de 2001:
“Antes, havia fuxico em casa de pobre, no máximo, de remediado. Ele começou
na senzala, com as negras recolhendo sobras de pano das sinhás. Agora, o fuxico está nas
camas, mesas e banhos das casas mais chiques. [...] É no nordeste que o fuxico guarda
suas mais renitentes tradições.’
302
Novamente a associação da “tradição” com as “casas mais chiques”, buscando a
fixação de uma idéia de transformação dos significados do artesanato, que costumava ser
associado à pobreza, e que visa a inserção em outros círculos, de preferência nas tais “casas
mais chiques”. Da Agência SEBRAE de notícias, 03 de julho de 2006:
“Renovação de convênio entre SEBRAE e Ministério da Ciência e Tecnologia vai
beneficiar 25 grupos artesanais do Distrito Federal A partir do apoio proporcionado
pelo Projeto de Empreendedorismo Social do SEBRAE no DF, as artesãs da Estrutural
participaram de cursos de capacitação, gestão, comercialização, de incentivo ao
associativismo, receberam consultorias de design para desenvolvimento de produto com
identidade local e apoio para inserção no mercado por meio da participação em feiras.
Atualmente, o grupo é formado por 270 mulheres que vivem da sua arte. “Essa visita é o
reconhecimento do nosso trabalho”, disse a presidente do grupo, Sônia.”
Por fim, no próprio folder da Secretaria do trabalho do GDF, a chamada relaciona o
artesanato à arte:
“Artesanato: trabalho em forma de Arte”
Segundo Eunice Durhan (2004[1977]), a análise da dinâmica cultural da sociedade
moderna deve levar em conta os fenômenos conhecidos como “cultura de massa” para dar
conta da realidade tal como ela se apresenta a nos hoje. Ela afirma que “há que se eliminar
a concepção simplista que opõe os consumidores aos produtores de cultura em termos de
aceitação puramente passiva, por parte do público, de um material que lhe é impingido de
fora.” (DURHAN 2004[1977]): 234) Salienta a circularidade do processo de comunicação,
303
semelhantemente ao que afirma McLuhan com a tese de que comunicação ocorre “em toda
a linha”.
Devemos compreender que ocorre uma espécie de diálogo entre expectativas
culturais que podem ser observadas por meio das representações e a produção concreta e
eficaz dos produtos que serão seletivamente consumidos pelo público. Para Durhan (2004),
“Estes “produtos” não constituem uma criação cultural original e inovadora, mas
freqüentemente, simples reordenação de imagens, símbolos e conceitos presentes na
cultura popular ou erudita. Retirados do seu contexto original, perdem necessariamente
muito do seu significado e podem ser assim manipulados para compor novos conjuntos,
cuja amplitude de alcance parece estar diretamente condicionada ao empobrecimento
prévio de seu conteúdo. E finalmente porque esse “produtos” assim apresentados tem que
ser ativados pela sua incorporação ao comportamento dos indivíduos, e nesse processo
sofrem necessariamente uma seleção, reordenação e mesmo transformação de significado
que podem implicar, inclusive, um enriquecimento, pela atribuição de novos conteúdos ao
material simbólico. Ao lado, portanto, da produção cultural, um processo amplo de
reelaboração de significados em que volta a atuar a heterogeneidade produzida pelo
próprio funcionamento da estrutura social.” (DURHAN (2004[1977]): 234)
Entretanto, no que se refere à lógica de venda, as artesãs sabem lançar mão desse
discurso. Exterior ou não, elas o aplicam quando percebem que há espaço e utilidade
prática para ele. Conforme procurei mostrar na primeira parte da tese, cada uma delas lança
mão do discurso e joga com a repercussão midiática do seu trabalho, num processo de
reconstrução de significados a cada nova repercussão do feito anteriormente divulgado.
De forma sintética, esse processo de circulação dos significados poderia ser descrito
com a seguinte cadeia de eventos: i) a artesã produz um bordado, uma boneca, um arranjo
de flores, ii) a mídia impressa ou a televisão descobre o trabalho e aponta: “olha, veja o
304
artista!”, iii) com a divulgação, projeta-se o sujeito e se lhe visibilidade, iv) porque
percebe que tem muito a ganhar com o discurso da mídia, o próprio sujeito passa a utilizar-
se dele.
Mas a cadeia de re-significação não pára aí. Retirando-o do contexto original, a
mídia, tanto o jornal, as revistas, como a televisão, contribuem para a categorização do
artesanato como “arte” e como uma “expressão da cultura popular”. Relacionando o fazer
artesanal com elementos de outros campos semânticos, tais como a “arte”, a mídia promove
o intercâmbio de significados e novas leituras daquela prática inicial, que busca em outros
contextos culturais um novo sentido para si. De acordo com Eunice Durham, isso pode
representar tanto um processo de empobrecimento, que consiste na retirada do artesanato de
seu contexto inicial, como um enriquecimento, ao promover seu acesso a outros contextos
de leitura e interpretação que originam para ele relações de significados provenientes de
outros campos, e somam-se ao seu conteúdo semântico inicial.
A televisão pode produzir cultura de massa, mas não faz arte” nem tampouco “arte
popular”. No entanto, ela desempenha um papel central no reconhecimento e na
legitimação da construção da realidade social. No trânsito de significados, ela contribui
para a produção de novos arranjos, ou poderíamos dizer, de um novo conjunto de
representações, ou mesmo de novas cosmologias.
Nas teorias sociológicas, antropológicas e da comunicação, a cultura de massa e a
cultura popular são definidas como noções muito distintas. Ainda que em torno de cada
uma delas haja grandes controvérsias teóricas, elas não se confundem. No campo da arte,
observa-se que a denominação de uma categoria como “popular” é empregada para fazer
referência àquilo que não ocupa posição central no campo por se originar de manifestações
populares.
305
O “popular” não permite uma apreensão imediata. Não significa que seja de massa
ou relativo ao povo tomado como um todo. Ele comumente se restringe a um segmento do
povo apenas. Geralmente está ligado a fazeres tradicionais, conhecimentos nativos ou
indígenas, da terra, transmitidos com base numa cultura oral e em práticas cotidianas.
Apresenta, portanto, um fator de indigenização, no seu diálogo do tradicional com o
moderno. Está ligado a tradições, na sua origem, mas de um modo geral se apresenta
renovado, reinterpretado, em comunhão com o moderno. A indigenização consistiria na
adaptação do moderno ao tradicional, sendo portanto o oposto da modernização. Não pode
haver cultura popular sem o diálogo entre o tradicional e o moderno, e tornar-se moderno,
no caso do artesanato de Brasília, pode envolver a passagem pela mídia.
Na dinâmica entre conhecimento e reconhecimento vão se construindo fatos sociais.
Pierre Bourdieu (2000) menciona o poder simbólico que tem lugar na dinâmica entre
conhecimento e reconhecimento social. “Trata-se do poder de ser conhecido e de se fazer
reconhecer pelo outro.”(BOURDIEU, 2000:14) Conforme foi discutido nos capítulos
precedentes, esse autor tratou com detalhamento e profundidade o tema da produção da
crença e da reprodução social da diferença e da distinção.
O olhar do outro, de fora, produz o reconhecimento, e a crença numa realidade
social que, em outras palavras, poderíamos chamar de representação. A participação da
mídia introduz um nível a mais na relação da artesã e do seu produto artesanal com os
vários atores sociais que habitam esse campo em Brasília. Lançando a confecção artesanal
para que seja conhecida em outros contextos culturais, a mídia permite que os significados
se multipliquem, assim como se multiplicam as imagens que podem ser associadas a ela.
As possibilidades interpretativas são grandes, mas alguns resultados disso dizem
respeito a uma mudança bastante concreta nas crenças de um grupo de pessoas acerca de si
306
mesmas, por exemplo, em torno da imagem social do Varjão conforme ele aparece na
mídia. Conforme se lê no Jornal de Brasília, de 4 de dezembro de 2005 (Caderno Cidades,
p.4):
“Antes conhecido apenas pela violência e a falta de infra-estrutura, o lugar esta
chamando a atenção pelo trabalho artesanal que elas estão desenvolvendo e que pulou
até para as telas de televisão. No Varjão, as mulheres estão mudando a própria realidade,
buscando capacitação e dando exemplo de associativismo.”
O principal é que a circulação de significados insere-se numa dinâmica social de
negociação de sentido, em que os atores sociais empregam todas as estratégias de que
dispõem para interferir ou modificar a realidade social, atuando basicamente no campo
simbólico. Disso pode resultar a construção de algo novo, que esteja de acordo com
interesses específicos de uns ou de outros, mas, ainda assim, trata-se de impactos concretos
na realidade conforme vivida e experimentada na prática.
307
Considerações Finais
308
Considerações Finais
A presente tese buscou analisar o campo do artesanato em Brasília a partir da
observação de três grupos de trabalho distintos e das suas interações com os demais atores
sociais e instituições relevantes nesse universo. Partindo do trabalho de campo realizado em
2006 e 2007 em Brasília, da “observação participante” que consistia em participar dos
encontros dos grupos de trabalho e em realizar entrevistas em maior profundidade com
todas as pessoas que eram consideradas relevantes nesse campo, foi possível elaborar este
trabalho.
O processo de escrita consistiu em longas análises do material de campo que foi
reunido, buscando um diálogo com as teorias da antropologia que viessem auxiliar na
compreensão dos dados da pesquisa.
Meu propósito foi buscar uma interpretação coerente para as práticas cotidianas
observadas nos grupos de mulheres envolvidas na produção de objetos artesanais. De
início, procurei evitar o prejulgamento de que as artesãs são sujeitadas por projetos
políticos absorventes que distorcem a prática expressiva de um artesanato com pretensão de
arte popular. Diferentemente de De Certeau (1990), que buscava analisar o significado de
todas as práticas cotidianas buscando as mais significativas para indicar uma forma de
protesto e resistência contra a dominação, busquei um recorte no objeto que permitisse
relacionar as práticas de grupos de mulheres com o contexto maior em que estão inseridas,
o tecido mesmo de sua interação e as decorrentes produções simbólicas, para dessa ligação
extrair um sentido, ou vários possíveis sentidos e interpretações, que permitissem
compreender melhor o universo do artesanato produzido por grupos de mulheres em
Brasília. Meu objetivo foi trazer à tona as diferentes camadas de sentido que co-habitam
309
nessa realidade social, tentando demonstrar quantas facetas podem existir num mesmo dado
da realidade.
A partir dos muitos significados e interpretações encontrados, busquei chegar a uma
análise coerente das práticas em diferentes contextos: na interação entre as mulheres dos
grupos, das mulheres com o SEBRAE, das mulheres com o designer que as orientava, das
mulheres com a entidade governamental representada pelo Governo do Distrito Federal, na
sua Secretaria do Trabalho, enfim, a interação entre as personalidades, no sentido de
Simmel, que fazem parte desse universo social, cada uma com suas representações sobre
esse universo e sobre os demais atores que fazem parte dele. Da mesma forma, busquei
revelar algumas representações, significados e interpretações presentes na relação desses
atores com o objeto artesanal, que é revestido de diferentes sentidos, não apenas porque
cada um deles fala de uma posição social distinta, mas também porque mesmo para um
mesmo sujeito, um objeto pode ter diferentes significados.
Na primeira parte da tese, dividida em seis capítulos, procurei contextualizar o
universo pesquisado, apresentando a cidade de Brasília e seu modo de organização em
regiões administrativas, visando estabelecer inicialmente o contexto mais geral da pesquisa.
Como parte da construção do problema, busquei descrever a situação geral em que se
encontram muitas mulheres que vieram para a cidade de Brasília como migrantes em busca
de uma vida melhor e ali se encontravam sem perspectiva de trabalho e vivendo em
condições de pobreza. Em seguida, apresentei o contexto mais específico de cada um dos
grupos. Introduzindo ao leitor os personagens principais desse universo, a partir das
narrativas das entrevistadas, lancei quatro eixos temáticos nos capítulos referentes a cada
um dos grupos. Esses eixos não foram planejados e foram surgindo conforme eu organizava
as narrativas. Tratava-se de (1) a formação dos grupos, descrevendo como eram antes e
310
como foi que tudo começou em cada um dos três casos, (2) como foi que fizeram sucesso
ou aquilo que contabilizam como conseqüência primária do seu empenho, (3) o que esse
trabalho e esse considerado sucesso modificou nas vidas das mulheres, ou seja, os motivos
pelos quais elas valorizam esse trabalho e, por fim, (4) a forma como atuam e interagem
com o universo circundante, na forma de discursos com os quais elas lidam e as estratégias
de que lançam mão no exercício do seu ofício.
No intuito de introduzir meu leitor no universo da pesquisa e, além disso, criar uma
certa familiaridade com os grupos e o trabalho desenvolvido em cada um deles, procurei
deixar essa parte inicial o mais etnográfica possível, para que depois resultasse também
mais agradável de acompanhar meus vôos teóricos, que concentrei mais intensamente na
segunda parte da tese.
Os diálogos com a teoria antropológica foram surgindo conforme a análise do
material de campo ia sugerindo a necessidade de um aprofundamento dos temas suscitados
e de maiores reflexões.
Assim, na primeira parte, tratei de reconstruir textualmente o universo dos grupos
de trabalho em artesanato, conforme me foi dado conhecê-los. No intuito de tornar as
descrições mais concretas, procurei incluir o maior número de detalhes possíveis, para que
o leitor pudesse acompanhar as análises subseqüentes e julgar se encontravam base factual
na realidade observada.
Na segunda parte da tese, tratei dos contextos em que as artesãs interagem com
outras instâncias ligadas à produção artesanal, para além dos seus grupos, quais sejam: o
SEBRAE e seus designers, as ONGs, e a Secretaria do Trabalho do GDF.
Na terceira e última parte, busquei fazer um levantamento dos significados e
representações das práticas artesanais.
311
Para analisar os dados do trabalho de campo, procurei estabelecer um diálogo com a
teoria antropológica. As diferentes teorias empregadas não são, a meu ver, as únicas que
podem trazer aportes para a compreensão do universo de pesquisa, mas revelaram-se úteis
para situá-lo numa perspectiva teórica, ao mesmo tempo, ampla e coerente. A coerência das
diferentes teorias, situada num plano que se poderia chamar de meta-teórico, merece
algumas considerações.
A teoria de Simmel lançou as sementes de uma corrente teórica conhecida na
antropologia como interacionismo simbólico. A obra de Simmel inspirou outros
pesquisadores que desenvolveram diferentes aspectos teóricos. Entre eles podemos citar
Erving Goffman, sobre os rituais de interação, Berger e Luckmann, sobre a construção
social da realidade e Herzfeld, sobre a manipulação de categorias de classificação e a
interação social conforme influenciada pelos “tipos sociais” (SIMMEL, 1971[1908]),
especialmente no caso da burocracia.
Max Weber foi contemporâneo de Simmel e, segundo Levine (1971), assistiu a
diversas conferências de Simmel na Universidade de Berlim, no começo do século passado.
certas aproximações teóricas entre a noção de “tipo ideal”, proposta por Weber, e a
noção de “tipos sociais” presente em Simmel.
Ao norte-americano Clifford Geertz podemos atribuir o papel de herdeiro de Max
Weber. Geertz busca nesse autor uma noção de cultura como sendo composta pelas “teias
de significados que a própria sociedade teceu”, de acordo com a formulação de Weber.
A partir da idéia de “teias de significado” e da proposta de uma abordagem mais
interpretativa e semiótica da cultura, encaixam-se as teorias comunicacionais, e voltadas
para investigações do campo simbólico, tais como Mary Douglas e, em certo sentido, Pierre
Bourdieu, com seu conceito de campo.
312
Esse último adota uma visão ainda marcadamente marxista na sua análise. As
abordagens marxistas fazem bem ao desvelar as disputas por poder inerentes a todo campo
e a dimensão política presente em todos os fenômenos sócio-culturais. A idéia de luta de
classes e a oposição entre dominantes e dominados, porém, parece não dar conta da
complexidade dos fenômenos tal como se apresentam. A revolução como a única solução
possível para que os dominados possam romper sua condição e se libertarem soa algo
distante da realidade de hoje. Entretanto, é preciso reconhecer as contribuições dessa teoria,
dar-lhe o devido crédito e, reconhecendo também suas limitações, tentar conduzir a análise
para além dela, na busca por novos insights, sob pena de condenar a pesquisa e suas
possibilidades de avanço a uma camisa de forca conceitual, cujas conclusões estão dadas
de antemão.
É preciso tentar novas abordagens, não no sentido de virar as costas às possíveis
contribuições da teoria marxista, mas integrando-a e buscando olhar para além dela. Minha
proposta foi tentar identificar as construções de interpretações significativas acerca da
realidade social, que busquei em Simmel e seus herdeiros, empregando uma abordagem que
busca no interacionismo simbólico uma chave para a compreensão dos fenômenos sociais.
Ao mesmo tempo, essa não deixa de ser interpretativista, ao produzir uma leitura dos
contextos sócio-culturais e dos discursos dos atores sociais que contribuíram com a
pesquisa. Pode ser dito que se trata de uma abordagem semiótica, além de interpretativista,
por buscar desvendar as teias de significados que o sendo construídos através da
interação entre atores sociais e nas suas relações com os objetos dentro do campo do
artesanato de Brasília.
Acredito que os indivíduos, a partir de cada posição em que se encontram no campo
do artesanato de Brasília, adotam um ponto de vista característico de sua posição e de
313
acordo com seus interesses específicos e fazem uso dos discursos de que dispõem como
ferramentas para construção do significado da realidade em disputa no mundo social. De
acordo com os recursos materiais e simbólicos de que dispõem os atores sociais em cada
posição que ocupam, eles podem fazer uso de estratégias específicas para manipulação das
situações de interação como forma de tentar atrair para si a melhor vantagem, atuando no
seu melhor interesse, ainda que tal processo não seja totalmente consciente ou premeditado.
Seguindo o percurso de McLuhan, segundo o qual “a comunicação ocorre em todo o
canal”, e não apenas no sentido emissor-receptor, a emissão, decodificação e recepção de
mensagens ocorre em todo circuito social do objeto, em cada parte do campo, sendo cada
indivíduo ao mesmo tempo emissor e receptor de mensagens, decodificador, interpretante,
construtor de novos significados, a partir de sua própria experiência.
314
Índice das Imagens
Introdução, p.9
a) Dinalva Silva Alencar Leal, trabalhando para a ONG Apoena
Parte I – As Artesãs de Brasília
Cap. 1 “Brasília”, p.30
a) Brasília, monumento em homenagem a Juscelino Kubitschek, em frente ao
Memorial JK
b) Vista da ponte JK de Brasília
Cap. 2 “As Costureiras do Varjão”, p. 46
a) Bonecas do Varjão
Cap. 3 “As Bordadeiras de Taguatinga Flor do Ipê”, p. 83
a) Reunião do grupo de bordadeiras, à direita a presidente Glaucemária da Silva
Rodrigues, Francilene Ferreira Reis, Nilce Parente de Alencar Correia, e Selma Paz
Silva Ferreira Lopes.
b) Detalhe do bordado nas mãos de Jovita Maria Machado dos Santos.
Cap. 4 “Grupo Flor do Cerrado”, de Samambaia, p. 101
a) Dona Domingas da Flor do Cerrado, trabalhando.
b) Roze Mendes da Flor do Cerrado, preparando uma flor.
Parte II – Parcerias Institucionais
Cap. 1 “Sobre o SEBRAE”, p. 125
a)Antonieta Contini, gerente da unidade de desenvolvimento local do SEBRAE
Cap. 2 “Desenvolvimento Local e Identidade”, p.131
a) Produtos das Bordadeiras de Taguatinga expostos na feira.
315
b) Tela com flores da Flor do Cerrado, para encomenda.
Cap. 3 “O Parceiro do Seu Crescimento”, p. 147
a) Antonieta Contini mostrando os produtos artesanais no SEBRAE.
b) Artesã organizando o seu produto no SEBRAE.
Cap. 4 “Artesanato, Moda e Design”, p. 166
a) Proprietária de loja e consumidora dos produtos da ONG Apoena
Cap. 5 “O Projeto Via Design”, p. 176
a) Roze Mendes, da Flor do Cerrado
b) Maria Silvia Santos Martins de Melo e Maria Elza Ribeiro de Almeida, Bordadeiras
de Taguatinga.
Cap. 6 “Apoena Fashion”, p. 183
a) A costureira Maria das Graças de Andrade, trabalhando na sede da OnG Apoena.
Atrás dela, Vanderlena Morais e Eliane Saraiva, também costureiras.
Cap. 7 “Renato Imbroisi”, p. 198
a) Colcha confeccionada pelas Bordadeiras de Taguatinga, foi criação do designer
Renato Imbroisi.
Cap. 8 “Questão de Gosto”, p. 206
a) Vendedora da loja de artesanato do Aeroporto de Brasília, posando com enfeites
confeccionados pela Flor do Cerrado.
Cap. 9 “Artesanato de Design: uma “cara nova” para as “coisas da vovó”, p. 215
a) Selma Paz Silva Ferreira Lopes, bordadeira de Taguatinga, bordando acompanhada
de sua filha.
Cap. 10 “A Carteirinha do Artesão”, p. 226
a) A artesã Santina Gonçalves, da Apoena, posando com a sua carteirinha de
Artesã.
Cap. 11 “Negociando Significados”, p. 239
a) Maria Geoni de Oliveira, Gerente do Setor de Fomento ao Artesanato da Secretaria
do Trabalho do Governo do Distrito Federal, fazendo a triagem dos artesãos.
316
Parte III – Circulação de Significados
Cap. 1 “Brasília tem gente do Brasil todo. Brasília é assim...”, p. 251
a) Foto de Brasília
b) Foto das Bordadeiras de Taguatinga, Jovita Maria Machado dos Santos, Maria Elza
Ribeiro de Almeida e Francilene Ferreira Reis.
Cap. 2 “ A Circulação do Objeto”, p. 264
a) Ângela Terenzi da ONG Apoena, preparando as roupas.
b) Divina Bueno Fernandes, das Bordadeiras de Taguatinga, expondo os bordados na
Feira do Casa Park.
Cap. 3 “Sabe a novela? A gente tá na Globo!”, p. 284
a) Kátia Ferreira, presidente da ONG Apoena.
b) Recortes de jornais e revistas sobre as artesãs de Brasília.
Cap. 4 “Elas são as artistas!”, p. 296
a) Eva Ferreira da Silva, das Bordadeiras de Taguatinga.
Considerações Finais, p. 307
a) Ângela Terenzi e Renato da Silva, da Apoena.
317
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