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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
RIVANIL RUBENS NOGUEIRA
A MAIÊUTICA COMO TÉCNICA EDUCATIVA NO SERVIÇO SOCIAL
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
RIVANIL RUBENS NOGUEIRA
A MAIÊUTICA COMO TÉCNICA EDUCATIVA NO SERVIÇO SOCIAL
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de
MESTRE em Serviço Social, sob a orientação da
Professora Doutora Myriam Veras Baptista.
SÃO PAULO
2008
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________
_______________________________
_______________________________
Dedico este trabalho
Aos homens e mulheres que, ao longo da História,
estiveram envolvidos na caminhada pela superação
da sociedade das mercadorias, em busca da
emancipação humana.
A minha mãe Leontina..
A meu filho:
A Gustavo, que nasceu com esse trabalho, elo das
novas gerações.
AGRADECIMENTOS
Um dia um menino me disse que amava muito uma pessoa e por isso pensou
em desistir de tudo ao se ver sozinho, mas juntos chegamos à conclusão de
que passaremos a vida toda com a certeza inabalável de que nosso amor e a
pessoa que amamos serão eternos! E em um dia próximo teremos nossa
liberdade outra vez.
Ao primeiro passageiro que veio a sentar ao meu lado – minha mãe. Nada
explica tamanho sentimento que esse ser dedica a seus filhos; é por natureza a
excelência das criaturas; enquanto vive mantém aceso o princípio da vida e a ela
recorremos quando nenhuma coisa ou teoria nos conforta. Minha mãe, sem dúvidas,
tem sido a grande responsável por um homem em comunhão.
Meu pai desembarcou na estação principal. Não foi um exemplo a seguir, mas
no fundo eu gostava dele e ninguém poderá acusá-lo sem antes reconhecer as trevas
que a humanidade tem vivenciado desde seus primórdios.
Um legado ele me inspirou: não existe a paternidade ideal e essa deve ser
construída com aquilo que se tem para dar. Quando se ama um filho não é preciso
privar-se da vida por ele, como demonstração de amor; contudo, ele deve entender que
seus pais fizeram o melhor que puderam para seu crescimento. Nesse sentido, meu
filho (Gustavo), seu embarque nessa viagem me ensinou outras coisas, principalmente
a olhar os pequenos detalhes que suas perguntas revelam durante a viagem,
transmitindo-me que ensinar é um ato de amor. Amor esse que sinto às vezes com
tristeza, por não poder compartilhar mais tempo com você.
Outros passageiros que me são raros e nada me pedem nesta viagem a não ser
o simples e sublime ato de estarmos juntos em alguns momentos: meus irmãos
Carlinhos, Lauro, Cidinha, Nita, bem como, meus sobrinhos Jose, Leandro, Leonardo,
Lucas e Guilherme. Desejo profundamente a todos que não percam tempo com
bobagens e curtam cada instante dessa viagem.
Houve um período em que na minha viagem estavam presentes algumas
pessoas significativas e valiosas. Por motivos ínfimos hoje estão distante do vagão que
ocupo. o eles: Vicente, Vicentina, Lucimara, Luan, Lucas, Mariana, Rafael, Cibele,
Mateus, Eza, João, Maria, Beto e, em especial, a Lucimeire, pela qual tenho profunda
admiração.
Muitas são as pessoas que embarcaram e desembarcaram e que merecem
atenção em minha trajetória; mas aqui as incluo no conjunto dos trabalhadores que são
o cerne de minha continuidade nessa luta. Devo muito a esses grandiosos, verdadeiros
edificadores de tudo o que existe e que possibilita a vida humana: da produção material
da vida aos pilares que sustentam toda nossa história. Agradeço, em especial, às
pessoas que colaboraram com a pesquisa; sua participação e respostas serviram de
matéria-prima para as reflexões teóricas aqui desenvolvidas.
Agradeço, também, aos amigos que acompanharam e têm acompanhado de
perto os mesmos cenários e paisagens que se vão delineando pelos caminhos da vida.
Num mundo compelido pela ótica do mercado e de relações mercenárias, ter um amigo
é ter um grande tesouro. Eis o que me disse o velho camarada Analto, que hoje
percorre terras distantes, mas, tenho certeza, percorre com a mesma máxima que nos
faz continuarmos próximos:
“A maior ambição de um revolucionário é ver o homem libertado de sua
alienação”
Che Guevara
Desse mesmo sentimento raro, posso descrever algumas amigas que partilham
a idéia e a prática da necessidade de alavancar 2/3 da humanidade da pré-história. São
elas: Michele, Ana Carla e a Milka. Gostaria de agradecer também à camarada
Lindamar, minha grande amiga, pela força que me tem dado, pelo seu desprendimento
que faz com que a gente continue acreditando no ser humano e na possibilidade de
uma sociedade nova. Lindamar, temos uma irmã em comum que se chama “liberdade”.
Quero agradecer aos professores que muito me ajudaram na formação
teórica deste trabalho. Suas aulas e orientações foram fundamentais. Refiro-me ao
Professor Evaldo Vieira, a Carmelita Yazbek e à Professora Myriam que me orientou,
sendo seus comentários, reflexões e leituras acuradas do trabalho o ponto necessário
para sentir-me no caminho certo.
Agradeço também à CAPES por proporcionar as condições materiais que
impulsionaram a construção desta pesquisa.
Por fim, agradeço aos companheiros do 13 de Maio pelo conhecimento que
me foi socializado. Não teria chegado até aqui se não fizesse parte de minha formação
a experiência revolucionária dos ensinamentos do 13 de Maio.
RESUMO
A dissertação em questão tem sua origem no trabalho realizado junto aos adolescentes
inseridos na medida de Liberdade Assistida. A necessidade do desenvolvimento de
uma técnica que realmente contribuísse para a formação destes foi o arcabouço de
todo o processo que culminou na utilização da maiêutica no cotidiano da prática
profissional. Por outro lado, foi como militante do NEP (Núcleo de Estudos Popular 13
de maio) que conseguimos apropriar e, identificar-se com o jeito trezista de socialização
do conhecimento, ou seja, a superação do senso comum através da maiêutica que por
si também superada na sua gênese. Mas não se trata apenas de esclarecer e analisar
uma técnica. Trata-se de demonstrar, sendo este nosso objetivo, a aplicabilidade da
maiêutica como técnica educativa no serviço social. Todavia, entendemos aqui como
educativo, o processo de libertação do homem de sua alienação, por isso evidenciamos
a todo o tempo que nosso trabalho consiste na formação do homem no seu sentido
político. Em nossos estudos, buscamos compreender que para superar uma prática
imediatista e mecânica, o profissional que pretende intervir no processo de formação
humana, principalmente com relação à libertação do homem de sua opressão e
alienação, precisa operacionalizar mecanismos e instrumentais que possam desvelar
aos oprimidos suas correntes e indicar meios para estes forjarem suas próprias armas
na luta contra o capital. Neste sentido, não podemos nos eximir de compreendermos o
processo de consciência. Desde sua forma embrionária até a possibilidade do salto
para a universalidade, ou seja, da plena consciência de nosso papel na história.
Partindo desta perspectiva, o destino da classe e da humanidade depende da totalidade
do coletivo e, podemos e devemos intervir neste processo com a clareza de uma ação
desmistificadora da realidade social ideologicamente deformada. Diante de uma teoria
social revolucionaria, do processo dialético de sua interpretação, temos na maiêutica
uma forma de socializarmos este conhecimento fundamental não para a superação
da sociedade do capital, bem como, o nascimento do homem critico e liberto da
desoladora uniformidade que vivemos nos dias atuais.
Palavras-chave: Serviço Social; Método; Maiêutica.
ABSTRACT
This dissertation thesis has its beginning in the work realized with teenagers inserted in
the measure of Assisted Freedom. The need of development of a tecnic that really
contributed for their formation was the foundation of a whole process that culminated in
the use of maiêutica in the daily of professional practice. By the other hand, were as
militant of NEP (Núcleo de Estudos Popular 13 de maio) that we could appropriate and
identify ourselves with their manner of knowledge socialization, that is, with the
overcoming of common sense through maiêutica that for itself is too overcame in its
genesis. But it’s not only to clarify and analyze a tecnic. It’s to demonstrate, being this
our goal, the applicability of maiêutica as an educative tecnic in Social Work. However,
we understand here as educative the process of human’s release of its alienation,
therefore we evidence all the time that our work consists in human’s formation in its
politics way. In our studies we search for to comprehend that to surpass an immediate
and mechanic practice, the professional that intends to intervene in the process of
human’s formation, mainly in relation to the human’s release of oppression and
alienation, needs to operate mechanisms and instruments that can disclose oppressed
to its chains and indicate ways for them to forge its proper weapons in the fight against
the capital. In this way, we can not exempt ourselves of understanding the process of
conscience. Since its embryonic form until the possibility of the jump for the universality,
that is, of the full conscience of our role in history. From this perspective the destiny of
the class and the humanity depends on the totality of collective and we must intervene in
this process with the clarity of an action to demystify the ideologically deformed social
reality. Ahead of a revolutionary social theory of dialectical process of its interpretation,
we have in maiêutica a way to socialize this basic knowledge just not for the overcoming
of capital’s society, as well as the birth of the critical and free human of desolating
uniformity that we live in the current days.
Key-words: Social Work; Method; Maiêutica.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................12
PRIMEIRO CAPÍTULO: A FORMAÇÃO DO HOMEM .............................................19
1.1 – UM BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO HOMEM ..............................19
1.2 – A FORMAÇÃO DO HOMEM NO CAPITALISMO .........................................25
1.3 SUBSUNÇÃO FORMAL E SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL
...............................................................................................................................30
1.4 – VALOR E PREÇO DA FORÇA DE TRABALHO ..........................................32
1.5 O CONTROLE DO PROCESSO DE TRABALHO E DA VIDA DO
TRABALHADOR ...................................................................................................35
1.6 O ATUAL PADRÃO DE ACUMULAÇÃO E A SUBSUNÇÃO REAL DA VIDA
SOCIAL AO CAPITAL............................................................................................36
1.7 – O HOMEM ONILATERAL ............................................................................43
1.8 – O NASCIMENTO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA .......................................47
SEGUNDO CAPÍTULO: O PROCESSO DE CONSCIÊNCIA ..................................52
2.1 – A CONSCIÊNCIA COMO PROCESSO.........................................................52
2.2 – O INÍCIO DA CONSCIÊNCIA .......................................................................54
2.3 – ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA .........................................................................59
2.4 – A CONSCIÊNCIA EM SI E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE .........................63
TERCEIRO CAPÍTULO: O MÉTODO.......................................................................72
3.1 O MÉTODO REVOLUCIONÁRIO DE SOCIALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO
...............................................................................................................................72
3.2 MAIÊUTICA: DE SÓCRATES (A ARTE DE FAZER PARIR A VERDADE) AOS
DIAS ATUAIS. SOBRE A SUPERAÇÃO DO SENSO COMUM ...........................78
QUARTO CAPÍTULO: MAIÊUTICA E SERVIÇO SOCIAL: DA PRÁTICA INDIVIDUAL
À POSSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO COLETIVA ..................................................86
4.1 O PONTO DE PARTIDA: TRABALHO E FORÇA DE TRABALHO DO
ASSISTENTE SOCIAL ..........................................................................................86
QUINTO CAPÍTULO: O DESENVOLVIMENTO DA TÉCNICA: APARÊNCIA E
ESSÊNCIA – HAJA MAIS VALIA... .........................................................................92
5.1 – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A PESQUISA ..............................92
5.2 A PESQUISA DE CAMPO: A APROPRIAÇÃO DA MAIÊUTICA NA PRAXIS DO
SERVIÇO SOCIAL ................................................................................................94
5.3 – A INTERPRETAÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA: UM EXEMPLO DA
UTILIZAÇÃO DA MAIÊUTICA NA ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL .....................98
5.4 – O GRUPO GAIA .........................................................................................101
5.5 – OFICINA COM AS FAMÍLIAS DOS ADOLESCENTES ..............................105
SÍNTESE CONCLUSIVA .......................................................................................117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................118
ANEXOS ................................................................................................................123
12
INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar, quero esclarecer que o tema original de meu projeto de
pesquisa foi alterado. No projeto anterior, propus-me a analisar a pedagogia no serviço
social. Mas, com o auxílio imprescindível de minha orientadora, somado às reflexões
realizadas durante as disciplinas e estudos, percebi que a primeira proposta me levaria
à direção da pedagogia no âmbito escolar. Não era esse o meu propósito.
Diante disso, conclui que meus estudos deveriam focar a análise de um método
que possibilitasse a socialização do conhecimento crítico e a superação do senso
comum, na práxis do Serviço Social, em sua proposta de formação do homem no
sentido político.
No seminário de lançamento de seu livro sobre economia política, realizado no
ano de 2006, em São Paulo, José Paulo Netto abriu o debate com a seguinte questão:
“todos aqui estão convencidos de que necessitamos transformar a realidade
econômica, política e social?"
Os dados apresentados pelo professor revelaram a brutal concentração de
riqueza no mundo e o estado de barbárie de alguns povos, considerando o contexto
mundial. O professor mencionou também que existe um processo mistificador da
realidade embutida na ideologia das classes dominantes.
Neste sentido, é fundamental transformar o mundo, mas transformá-lo para
melhor, não para pior. É necessário antes de tudo compreendê-lo. É preciso estudar,
relacionar os problemas do presente aos do passado, definir os conceitos fundamentais
para evitar as superficialidades e as confusões. Dar-se conta da história, com seus
problemas não resolvidos, para que não recomecem a cada geração. Em suma, fazer
da política um objeto de análise racional e não apenas uma ocasião de desabafos
pessoais, de projetos fantasiosos, de controvérsias desprovidas de finalidades
infecundas.
Decorrente de uma concepção de homem e de mundo, bem como da
compreensão crítica de nossa sociedade, concebemos que o trabalho do assistente
social deve transcender a uma prática meramente reprodutora da ordem pré-
13
estabelecida e de conceitos que justificam a cidadania burguesa. Por isso, creio que
nossa ação é, antes de tudo, educativa e política.
Para cumprir o estabelecido no digo de Ética Profissional, principalmente com
os novos valores (a saber: a liberdade, a democracia, a cidadania, a justiça e a
igualdade social), não podemos negar que a nossa história está profundamente
relacionada à história das lutas de classes. E uma vez que a História ensina, não
podemos nos eximir de saber elucidá-la, de apreender como ela é, contrapondo-a à
ideologia dominante. É justamente neste ponto que percebo que sem uma perspectiva
pedagógica em nossas ões não apreenderemos a dimensão socioeducativa da
profissão.
Conforme assinala Yazbek,
as ações profissionais dos assistentes sociais apresentam duas dimensões: a
prestação de serviços assistenciais e o trabalho socioeducativo, sendo que
uma tendência histórica a hierarquizar a ação educativa em face do serviço
concreto. Na realidade, é pela mediação da prestação de serviços sociais que o
assistente social interfere nas relações sociais que fazem parte do cotidiano de
sua "clientela". Esta interferência se particularmente pelo exercício da
dimensão socioeducativa (política e ideológica) da profissão, que tanto pode
assumir um caráter de enquadramento disciplinador destinado a moldar o
"cliente" em termos de sua forma de inserção institucional e na vida social,
como pode direcionar-se ao fortalecimento dos projetos de lutas de classe.
(YAZBEK, 1993, p. 57).
oito anos tenho realizado o trabalho de atendimento ao adolescente inserido
em medida socioeducativa de Liberdade Assistida, sendo tal medida prevista no artigo
112 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
No Estado de São Paulo, a antiga FEBEM, (Fundação Estadual do Bem Estar do
Menor), hoje CASA, (Cento de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) é a
instituição governamental responsável pelo acompanhamento dos adolescentes em
conflito com a lei, seja na internação, seja no meio aberto. Sua ação tem sido parte de
uma política de contenção dos efeitos da questão social, que hoje se expressam nas
mais variadas formas. Contudo, sempre estão relacionados ao processo de
concentração de renda e de pauperização das massas, como afirma Netto (1995).
A questão do adolescente infrator, vista como categoria jurídica, faz com que ele
pelo fato de haver infringido algum dispositivo legal que lhe foi atribuído ou imputado
14
previamente definido como crime, falta ou contravenção segundo as leis do país seja
declarado responsável e que receba una medida socioeducativa.
Convictamente, é valido ressaltar que, mesmo antes da infração, é atribuído o
estigma de "adolescente infrator" àqueles jovens que vivem em condições de
marginalidade, pois pertencem à classe social considerada "perigosa", ou seja, à
população que, desprovida de bens e tendo a sua força de trabalho subutilizada pelo
capital, é brutalmente reprimida nas franjas do sistema.
Essa é a condição, é a demanda dos adolescentes que chegam para o
atendimento na Liberdade Assistida. Esses adolescentes fazem parte dos que têm, no
processo de exclusão social, a marca de algoz e de vítima, visto que o nefasto projeto
político da modernidade anuncia o extermínio direto, que ocorre por vários caminhos:
pelos agentes do Estado, por agentes contratados pela sociedade, por questões
estabelecidas até mesmo entre eles próprios, pela extinção ou ausências de políticas
básicas que garantam condições de sobrevivência aos excluídos.
Trabalhar, nesse contexto, atender jovens e famílias que vivenciam a
transformação de seus filhos em seres brutais, compelidos e expostos numa ordem em
que a continuidade da vida é ceifada por situações irracionais, não é tarefa fácil e
requer uma intervenção competente, ética, política, com apoio teórico e através de um
método pedagógico coerente.
Contudo, o Assistente Social faz parte do conjunto dos trabalhadores que, nas
relações capitalistas de produção, não têm o controle sobre o seu processo de trabalho,
dificultando uma real compreensão da dinâmica social imposta.
Vale aqui ressaltar como se dá a reflexão sobre o processo de trabalho em Marx.
O trabalho é a categoria fundante da história humana, pois antes de fazer a História, os
seres humanos devem estar em condições para isso, ou seja, devem produzir as
condições materiais necessárias para a sua sobrevivência, sendo este, o primeiro
pressuposto da história humana. O segundo pressuposto é que, ao prover sua
existência material, os homens estabelecem relações sociais de produção,
independentes de sua vontade e conforme o grau de desenvolvimento das forças
produtivas. Nesse processo, os homens criam os meios, os instrumentos, tanto para a
transformação da natureza, como de si mesmos.
15
Abstraindo as formas primitivas do processo de trabalho, nas quais o trabalhador
ainda detém a posse sobre o conhecimento técnico e as habilidades específicas
inerentes à sua atividade, nas sociedades capitalistas o modo de produção passa a
organizar o processo de trabalho, o qual tem por produto a divisão social do trabalho,
de forma a otimizar os recursos, revolucionando as suas condições objetivas. Não mais
o trabalhador realiza todo o processo de produção, ele está agora coletivizado e com
finalidades determinadas sob a égide da produção capitalista. Dessa forma, o trabalho
útil submete-se ao trabalho abstrato.
Aqui não se trata mais do trabalho, ou do processo simples de trabalho que
produz valores de uso para seu produtor, no qual o produtor também é
proprietário dos meios de produção, dos instrumentos, habilidades e
conhecimentos que lhes endossam esta posse. Trata-se de um tipo especial de
trabalho que, ao ser vendido no mercado como força de trabalho, acaba por
constituir-se em mercadoria e, portanto, deve conter um valor. (GUERRA, 1995,
p. 104).
A força de trabalho na sociedade capitalista tem um valor que se expressa em
dinheiro e é definido, como qualquer outra mercadoria, pelo tempo de trabalho
socialmente necessário, materializado na produção de suas condições de reprodução.
Para que a força de trabalho se converta em mercadoria é preciso que haja a
separação do trabalhador de qualquer meio que lhe garanta a sua existência material,
condicionando-a a uma única forma, ou seja, a venda de sua força de trabalho. Esta
separação histórica é pontuada por Marx no processo de acumulação primitiva, que
evidencia as formas violentas e brutais pelas quais se deu esse processo, a partir do
qual o trabalhador passou ao regime de assalariamento, ou seja, a receber uma quantia
em dinheiro pela venda de sua força de trabalho.
Sendo o Assistente Social um trabalhador assalariado, embora seu trabalho não
seja considerado produtivo, ele também está inserido no processo de produção
capitalista e na divisão sócio-técnica do trabalho.
A inserção do Serviço Social na divisão do trabalho e as novas perspectivas daí
decorrentes são um produto histórico. Dependem, fundamentalmente, do grau
de maturação e das formas assumidas pelos embates das classes sociais
subalternas com o bloco do poder no enfrentamento da "questão social" no
capitalismo monopolista; dependem, ainda, do caráter das políticas do Estado,
que, articuladas ao contexto internacional, vão atribuindo especificidades à
16
configuração do serviço social na divisão do trabalho. (IAMAMOTO, 1995, p.
87).
Temos claro que o Assistente Social não produz mercadorias, no entanto, seu
trabalho e os resultados obtidos pertencem a um contexto do capital que se define
numa relação social. Portanto, o processo de trabalho do Assistente Social,
corresponde, a meu ver (baseado nas referências teóricas utilizadas), a procedimentos
que também ocultam as essências dos fenômenos quando as tarefas são executadas
sem o entendimento pedagógico, ou seja, sem o controle do seu processo de trabalho.
Agora, uma vez compreendidas as mediações do sistema capitalista, temos o
compromisso de desvelar o funcionamento desse sistema, não apenas no âmbito dos
profissionais, mas também junto à população que faz uso de seus serviços.
Se somos também educadores, agentes que formam opiniões, se nossas ações
com a população não são neutras, como transmitimos o nosso conhecimento?
Certamente o trabalho do Assistente Social não é intrinsecamente o de
educação, mas relaciona-se com ele, não no atendimento direto, como também na
realização de tarefas coletivas educacionais. Quantas vezes ele é convocado para
ministrar palestras, cursos, seminários, grupos, entre outros? Qual é a sua preparação
profissional para essas atividades? Acredito que não basta uma pragmática forma de
aplicar técnicas e instrumentais; é imprescindível assumir uma linha pedagógica para
que o trabalho seja coerente, não apenas com a realidade política e social, mas
também com a proposta ético-política da profissão. Portanto, não basta o conhecimento
de qualquer pedagogia; é necessário assumir uma pedagogia libertária de formação
humana, como por exemplo, a de Makarenko.
Assim, nada obsta à afirmação de que se faz necessário apreender o processo
socioeducativo fundamental no trabalho do Assistente Social. Para tanto, a utilização de
uma diretriz pedagógica é indispensável. Pensar que somente o vínculo entre o
profissional e o "cliente" será o bastante numa intervenção sociopedagógica certamente
levará ao fracasso. Posso descrever que no trabalho com os adolescentes em conflito
com a lei e seus familiares um dos princípios, o de estabelecermos a igualdade humana
presente num método pedagógico libertário, é condição básica, sem a qual qualquer
tentativa será um fracasso. Por outro lado, temos clara também a necessidade de um
17
método revolucionário de socialização do conhecimento, o que nos leva ao ponto
central de nossos estudos: a proposta de análise da maiêutica socrática como
método educativo válido para a práxis do Serviço Social.
Nesse contexto, esse trabalho foi estruturado da seguinte forma:
No primeiro capítulo procurei situar o contexto-histórico-político-econômico sobre
a educação do homem, visto numa perspectiva da formação humana. Baseado na obra
de Aníbal Ponce, busquei, desde o princípio, revelar que a história da formação do
homem se deu sob a divisão das classes sociais, conseqüentemente na égide da
dominação de uma classe sobre a outra. Nesse sentido, um trabalho que propõe a
formação do homem tem que apresentar propostas de desalienação do processo de
mistificação da realidade, assumindo claramente o tipo de homem que queremos
formar. Assim, podemos visualizar na obra de Marx e Makarenko um tipo ideal de
homem contrapondo o ideário do homem burguês.
No segundo capítulo, focalizei uma reflexão sobre o processo de consciência,
fundamental para a intervenção educativa. A esse respeito, busquei analisar os
elementos que compõem a formação da consciência, demonstrando que as fases
desse processo não são estáticas e lineares. Por outro lado, é nesse processo que se
dá a implantação da ideologia dominante, através de uma base já consistente da
alienação. Porém os estudos nos revelam que, por ser um processo dialético, a
consciência sofre interferências da realidade e das relações sociais que o indivíduo i
estabelecer em sua vida, podendo desenvolver nesse processo uma consciência de si
e para si e o educador (assistente social) pode e deve interferir para acelerar os
acontecimentos nesse sentido.
Quanto ao terceiro capitulo, abordei os elementos básicos sobre o método de
formação na direção da educação popular, esclarecendo que existe um conhecimento
teórico que precisa ser socializado; no caso desta pesquisa, a teoria social de Marx.
Para tanto, não poderíamos realizá-lo sem o método dialético para sua interpretação.
Todavia, é na superação da maiêutica socrática que encontramos o caminho para a
18
socialização do conhecimento sistematizado; trata-se do processo de construção e
reconstrução de conceitos através da superação do senso comum.
No quarto capítulo, buscamos apresentar, a maneira como o serviço social pode
apropriar-se dessa forma revolucionária de abordagem, que possibilita ao profissional
assistente social criar espaços menos alienados nas esferas das instituições capitalistas
em que opera. Refletimos sobre o trabalho do assistente social no processo de
emancipação humana em detrimento do enquadramento realizado por muitos
intelectuais da classe dominante.
No quinto capítulo, organizei a exposição da trajetória de meu trabalho junto aos
adolescentes e seus familiares, mencionando algumas peculiaridades do trabalho
direto, da produção de recursos didático-pedagógicos e do desenvolvimento da
formação política. Dessa frente de trabalho, destaquei como se desenvolveu o trabalho
de formação política dos adolescentes, desde o início até a sistematização dos grupos
e palestras que conseguimos elaborar. Efetivamente, trata-se da aplicação da Técnica
a uma realidade concreta e a conjuntura apropriada para que as bases teóricas que
fundamentam nossa prática se pudessem expressar num coletivo crítico e consciente
de seu papel. Realizamos uma pesquisa em lócus com as famílias dos adolescentes;
na ocasião, aplicamos a maiêutica através de uma dinâmica que denominamos “a
fábrica”. Apresentam-se, pois, no capítulo, as passagens necessárias para a aplicação
da maiêutica, bem como os resultados imediatos de uma ação que não tem a pretensão
de valer-se como verdade transformadora, mas sim, como um instrumento capaz de
viabilizar um processo questionador e desalienador do mundo capitalista que tem, no
âmbito da formação, muitos defensores e propagadores de sua ideologia.
Ao final, teceram-se algumas considerações esclarecendo que o tema não se
esgota aqui e, que, certamente, ainda existem diversas lacunas e veios de pesquisa
para uma compreensão mais ampla sobre a questão.
19
PRIMEIRO CAPÍTULO
A FORMAÇÃO DO HOMEM
1.1 – UM BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO DO HOMEM
Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas no mar,
para os peixes pequenos, com todos os tipos de alimentos dentro, tanto
vegetais, quanto animais. Naturalmente, também haveria escolas nas grandes
caixas; nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos
tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo, a usar a geografia, a fim de encontrar
os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria
naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o
ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos
eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que
velam pelo futuro dos peixinhos. Se encucaria nesses peixinhos que o futuro
estaria garantido se aprendessem a obediência.
Bertold Brecht
A formação humana não pode ser concebida apenas como uma questão de
educação, como se bastasse um processo de treinamento e o aprendizado de técnicas
formais. Ela está intrinsecamente relacionada às formas históricas sob as quais se têm
estabelecido as relações sociais de determinadas sociedades, o que, até o momento,
corresponde à História da humanidade, ou seja, à história das lutas de classes.
A produção social da vida é o fator fundante das relações sociais. Conforme o
homem foi evoluindo, as forças produtivas e as relações sociais tornaram-se mais
complexas e foram alcançando patamares superiores. Contudo, desde a superação do
comunismo primitivo, quando a propriedade comum da terra estabelecia relações de
igualdade de direitos e resoluções democráticas entre todos da tribo, a formação
natural do homem no processo de coletividade se foi metamorfoseando para um
processo privado de interesses de classes.
Nesse sentido, destacam-se, a priori, alguns pontos da formação do homem,
tendo como base teórica a obra de Aníbal Ponce sobre Educação e Luta de Classes
(1991). Destaca-se também a trajetória das mudanças no processo de aprendizado
20
humano; podemos observar que, na comunidade primitiva, o ensino era para a vida e
por meio da vida: para aprender a manejar o arco, a criança caçava; para aprender a
guiar o barco, navegava. As crianças se educavam tomando parte das funções da
coletividade. O trabalho, nesse período histórico de garantia dos meios necessários
para a sobrevivência e para o aprimoramento humano, era a fonte de toda a educação
do homem. Uma sociedade sem classes, de divisão das tarefas sociais, de igualdade
quanto à posse dos meios de produção e dos produtos suscita uma relação social
baseada não apenas na solidariedade, na coletividade, mas também nas formas de
tomar decisões. Nesse tipo de sociedade a consciência social é baseada na realidade
vivenciada por todos.
O dever ser, no qual está a raiz do fato educativo, lhes era sugerido pelo meio
social desde o momento do nascimento. Com o idioma que aprendia a falar,
recebia certa maneira de associar ou de idear: com as coisas que viam e com
as vozes que escutavam, as crianças se impregnavam das idéias e dos
sentimentos elaborados pelas gerações anteriores, submergiam de maneira
irresistível numa ordem social que as influenciava e as moldava. Nada viam e
nada sentiam, a não ser através da maneira consagrada pelo seu grupo. A
consciência era um fragmento da consciência social, e se desenvolvia dentro
dela. Assim, antes de a criança deixar as costas da mãe, ela havia recebido,
de um modo confuso certamente, mas com relevos ponderáveis, o ideal
pedagógico que seu grupo considerava fundamental para a sua própria
existência. Em que consistia este ideal? Em adquirir, a ponto de tornar
imperativo como uma tendência orgânica, o sentimento profundo de que não
havia nada, mas absolutamente nada, superior aos interesses do grupo e às
necessidades da tribo. (PONCE, 1991, p. 21).
Esse tipo de sociedade perdurou na maior parte da História, ao contrário do que
diz a ideologia dominante – que as diferenças de classes sempre existiram.
O estudo dos elementos que proporcionaram as transformações para uma
sociedade de classe é importante para entendermos a História; entretanto, nesse
trabalho, apontamos dois fatores primordiais para que isso ocorresse: a produção do
excedente e a substituição da propriedade comum pela propriedade privada.
Quando os homens alcançaram esse estágio, em que a sociabilidade também já
se fazia complexa, apareceram relações sociais em que o supertrabalho de uns
constituía condição para a existência de outros. Quanto mais a produção do excedente
crescia e com o aparecimento de novas técnicas aumentou-se o poder do trabalho
humano mais o produtor necessitava do aumento da força de trabalho. Incorporar
21
indivíduos estranhos à tribo, para explorar seu trabalho, era, ao mesmo tempo,
necessário e possível.
Essa transformação tem grande importância para nós. Na sociedade primitiva, a
colaboração entre os homens se fundamentava na propriedade coletiva e nos
laços de sangue; na sociedade que começou a se dividir em classes, a
propriedade passou a ser privada e os nculos de sangue retrocederam diante
do novo nculo que a escravidão inaugurou: o que impunha o poder do homem
sobre o homem. Desde esse momento, os fins da educação deixaram de estar
implícitos na estrutura total da comunidade. Em outras palavras: com o
desaparecimento dos interesses comuns a todos os membros iguais de um
grupo e a sua substituição por interesses distintos, pouco antagônicos, o
processo educativo, que até então era único, sofreu uma partição: a
desigualdade econômica entre os "organizadores" - cada vez mais exploradores
- e os "executores" - cada vez mais explorados - trouxe, necessariamente, a
desigualdades das educações respectivas. As famílias dirigentes que
organizavam a produção e retinham em suas mãos a distribuição e a defesa,
organizaram e distribuíram também, de acordo com seus interesses, não
apenas os produtos, mas também os rituais, as crenças e as técnicas que os
membros da tribo deviam receber libertados do trabalho material, o seu ócio
não foi nem estéril, nem injusto, a princípio. Com os rudimentares instrumentos
da época, não seria concebível que alguém se entregasse às funções
necessárias, mas não produtivas, a menos que muitos outros trabalhassem
para esse alguém. Mas, se a aparição das classes sociais foi uma
conseqüência inevitável da escassa produtividade de trabalho humano, também
não é menos certo que os que se libertaram do trabalho manual aproveitaram a
vantagem conseguida para defender a sua situação, não divulgando os seus
conhecimentos, para prolongar a incompetência das massas e, ao mesmo
tempo, assegurar a estabilidade dos grupos dirigentes. (PONCE, 1991, p. 25-
26).
A partir desse contexto, as diferenças e as contradições permeariam o processo
de formação do homem. Aquilo que era compartilhado por todos crenças, hábitos
costumes, ou seja, as tradições históricas tomaram outras características. Frente às
relações de dominância e submissão, surge a necessidade de uma educação
sistemática, organizada e violenta. A hierarquia, a disciplina e a obediência fazem parte
dessa educação que deve justificar e manter a ordem das classes dirigentes. Para
estas, a riqueza e o saber; às demais, o trabalho e a ignorância.
Quanto mais aumenta o poder do homem sobre as forças produtivas, a estrutura
social se vai transformando; no entanto, tal acontecimento tem ocorrido com a
adequação dessas transformações aos interesses da classe dominante. A classe que
detém o poder econômico também precisa deter as formas de tomar decisão, as leis, as
forças armadas e se completa com a dominação ideológica.
22
Nesse sentido, toda a educação imposta pelas classes proprietárias deve
cumprir três finalidades essenciais, como aponta Ponce (1991): destruir os vestígios de
qualquer tradição inimiga; consolidar e ampliar a sua própria situação de classe
dominante e prevenir uma possível rebelião das classes dominadas. Assim, o ideal
pedagógico já não pode ser o mesmo para todos; não só esses ideais são distintos,
como se faz mister para as classes dominantes fazer com que as massas laboriosas
aceitem essa desigualdade de educação como uma desigualdade imposta pela
natureza das coisas, contra a qual seria loucura se rebelar.
Diante do exposto, é significativo para nossas reflexões salientarmos que a
formação do homem se dá através das relações sociais, que por vez estão
fundamentadas sob a base do modo de produção material da vida. Concluiu-se então
que, com exceção do comunismo primitivo, nas sociedades que se passaram, bem
como na contemporaneidade, o ideal de formação humana distingue-se entre as
classes, mas tanto em uma, como em outra, sofre alterações conforme as relações de
produção.
Vamos ver numa breve análise, mas crucial, o tipo de homem e de qual
educação as classes dominantes buscaram nas sociedades escravista, feudal e no
capitalismo.
A antiga sociedade grega desenvolveu um período de pouca expansão comercial
e a base material da vida consistia na exploração do trabalho escravo. O escasso
desenvolvimento dos meios de produção não permitia lançar no mercado um grande
excedente de produtos. As técnicas de produção eram ínfimas, o que exigia uma
intensa exploração da força dos braços dos escravos. Possuir terras e ser proprietário
de escravos e guerreiro era o que caracterizava o homem das classes dominantes.
Assegurar a superioridade militar sobre as classes submetidas era o fim supremo da
educação. Nesse sentido, os exercícios militares se sobrepunham à exígua instrução
intelectual dos nobres. Assim, a formação guerreira era proibida aos escravos, uma vez
que a dominação consistia no exercício das armas.
A posição de classe dominante era reforçada na consciência dos jovens. Estes
eram submetidos pelo Estado a exames sobre o seu grau de educação, tanto no
manejo das armas, quanto nos deveres de cidadão.
23
Nessa sociedade, os direitos cívicos eram reservados àqueles que não
necessitavam trabalhar para viver; estes eram considerados cidadãos. Na concepção
de senhor e de escravo de Aristóteles, uns nasciam para mandar e outros para
obedecer. A política aristotélica revelava, na realidade, que a essência do homem
residia na sua capacidade de ser cidadão e, como a cidadania era privilégio das classes
dominantes, então, só era considerado homem aquele que pertencia às classes
dirigentes.
Até esse momento, temos que a formação do homem nobre em sua virtude
fundamentava-se não na moral e, sim, na capacidade do mesmo de governar, o que se
dava, como vimos, através das armas. Só mais tarde, desvinculado totalmente do
trabalho produtivo, outros ideais de virtude apareceram. Com o ócio que o trabalho
escravo permitiu, as classes dirigentes passaram a realizar atividades totalmente
alheias à vida prática.
O diagogo (ócio elegante), trouxe a superioridade da teoria sobre a prática, o que
levou a classe nobre à descoberta da filosofia, da arte e da literatura. À medida que
essas atividades foram aumentando de importância, surgiu a necessidade da criação
de uma instituição que ensinasse a ler e a escrever: a escola. A partir de então, o
Estado foi, aos poucos, interferindo em todo o processo da educação.
No entanto, somente os nobres tinham condições de enviar seus filhos para
estudar; as outras classes trabalhavam. Todavia, as alterações nas estruturas de
produção e a expansão comercial trouxeram para cena outras classes que iriam mudar
o ideal de homem e a estrutura social entre as classes. O homem cavalheiresco,
guerreiro e as doutrinas baseadas na religiosidade vão cedendo lugar aos ideais
comerciais e industriais. A filosofia mística e divina é substituída pela filosofia do
homem. Este passa a ser a medida de todas as coisas.
Essas transformações ocorreram em função dos conflitos que o processo de
contradições carrega no seu bojo. A luta entre as classes revela os antagonismos e
resulta em perseguições e no uso indiscriminado da violência; várias pessoas foram
executadas por contestarem a ordem dominante. Toda a classe dominante faz uso do
que for preciso para se manter no poder. A dominação ideológica se revela na História
uma preocupação contra idéias subversivas. Platão, por exemplo, via a multidão como
24
um monstro feroz, que é necessário manter afastado e em absoluta dependência, bem
como excluído da vida intelectual.
Nada obsta pontuarmos os avanços filosóficos e científicos do período grego.
Temos a considerar, por exemplo, a questão da Paideia, que significa a formação do
homem grego. O humanismo implícito na descoberta do homem como o detentor de si
mesmo: uma educação com intensidade e consciência pode até mudar a natureza
física do homem. A educação grega inaugurou um conceito de formação humana do
mais alto nível da intelectualidade e do homem genérico. Esculpir o homem vivo, eis o
ideal. Na Grécia, segundo JAEGER (1979), a educação e a formação do homem se
distinguem por meio da criação do tipo ideal intimamente coerente e claramente
definido. A formação/cultura tem raízes profundas na forma integral do homem, na sua
conduta e comportamento exterior, na sua atitude interior. Homem sábio, culto, de
conhecimentos diversos, honrado e cidadão, o filósofo grego, tem sido uma imagem
que inspira os estudantes. No entanto, toda a estrutura da sociedade grega se
sustentava pela praticidade do trabalho escravo.
Com a queda da Antigüidade, o mundo feudal trouxe alterações nas relações
sociais de produção e, conseqüentemente, a superestrutura da sociedade também
mudou. Com o fim da força motriz escrava, surge o trabalho servil que irá sustentar as
classes dos nobres, dos senhores feudais e o clero.
Nesse tempo, as forças produtivas continuavam precárias e a terra ainda era a
principal base da riqueza. Por outro lado, as guerras, os assaltos e a usurpação da
propriedade alheia também eram práticas comuns; práticas essas que completavam a
economia dos senhores feudais. Sendo assim, não precisamos alongar os
esclarecimentos de que tipo de homem eles desejavam. Tratavam da formação do
homem guerreiro que não necessitava de outra instrução que não fosse a das armas.
Toda a responsabilidade pela instrução da época ficou sob a égide da igreja. As
transformações que a sociedade sofreu durante o feudalismo impuseram o domínio
religioso. A classe sacerdotal se tornara poderosa não economicamente, mas
sobretudo ideologicamente.
Com o monopólio da educação, os monastérios eram o único caminho para
aqueles que não eram servos e que queriam alguma instrução intelectual. Esses teriam
25
que se submeter ao enclausuramento e aos ensinamentos religiosos. Numa outra
posição, os ensinamentos da igreja à plebe (massas campesinas) eram destinados a
familiarizá-las com as doutrinas cristãs e, ao mesmo tempo, mantê-las dóceis e
conformadas.
Até aqui, vimos que a história da formação humana, com exceção do comunismo
primitivo, ocultou a realidade das classes inferiores, que quando recebiam alguma
instrução, a recebiam com um caráter místico, de pura dominação e alienação. Será
que, com a queda do mundo feudal e a ascensão do homem burguês, a realidade da
nova sociedade, "o capitalismo", trouxe alterações à classe explorada?
1.2 - A FORMAÇÃO DO HOMEM NO CAPITALISMO.
O capitalismo inaugurou uma outra era da humanidade. As transformações
ocorreram aceleradamente e os avanços do domínio do homem sobre a natureza
certificaram a superioridade desse período histórico em comparação às sociedades
passadas.
Tão logo o capitalismo se fortaleceu, as exigências de uma nova educação e de
um novo tipo de homem se estabeleceram. O homem burguês pautava-se na
racionalidade e seus ideais de classe pareciam contemplar toda a humanidade.
Depois de tantos séculos de sujeição feudal, a burguesia afirmava os direitos
dos indivíduos como premissa necessária para a satisfação dos seus
interesses. Liberdade absoluta para contratar, comerciar, crer, viajar e pensar.
Nunca, como então, se falou tanto em humanidade, cultura, razão e luzes.
(PONCE, 1991, p. 130).
Mas logo que a burguesia triunfou, a classe revolucionária tornou-se
conservadora; a humanidade e a razão passaram a ser humanidade e razão
"burguesas".
Como tudo o que existe, porém, tem uma gestação, uma evolução e uma
decadência, o capitalismo também vivenciou esse processo.
A primeira fase é a da acumulação primitiva. Este é o período de gestação do
modo de produção capitalista que ocorreu, mais ou menos, desde o século XIV ao
26
XVIII. Foi neste período de gestação que se formam os elementos que irão constituir o
organismo que nascerá. Assim, foi neste período que se formaram os componentes
principais do capitalismo: de um lado, os proprietários dos meios de produção e, de
outro, a imensa massa de despossuídos que só tinham sua força de trabalho para
vender. Nessa fase, nenhuma educação, nem a mais elementar, era pensada para os
trabalhadores que viviam na mais absoluta penúria.
A acumulação primitiva foi construída através de séculos de expropriação de
camponeses e servos no final do feudalismo. O principal instrumento, por exemplo, na
Inglaterra, foram os cercamentos das terras para que servissem de pasto para ovelhas,
o que expulsou milhares de servos que marcharam para as cidades. Aqueles que
vagavam palas estradas eram taxados de vagabundos e severamente perseguidos,
presos, marcados a ferro e, se fossem reincidentes, eram enforcados.
Ao lado da formação dessa massa de despossuídos se foi formando uma classe
de arrendatários capitalistas que acumularam riquezas graças à renda da terra. Pouco
a pouco se foram formando também as manufaturas, onde os proletários iam vender a
única coisa que lhes restava: a sua força de trabalho.
Assim, os meios de trabalho se tornaram os elementos do capital constante e os
meios de sobrevivência se transformaram em meios do capital variável. Os proprietários
dos meios de produção formariam a classe dos capitalistas e os vendedores de força
de trabalho seriam os proletários.
Neste período, sem dúvida, a trajetória do Estado serviu para que os elementos
necessários da acumulação primitiva ocorresse. Foram séculos de transformação das
forças produtivas que impulsionaram as transformações no âmbito da superestrutura. A
usurpação, a exploração e a legislação – que, através do Estado, deram respaldo a um
verdadeiro massacre da classe trabalhadora foram âncoras da expansão do
capitalismo.
A concorrência, como segunda fase do capitalismo, nasceu com a revolução
industrial do século XVIII. Com a passagem das manufaturas para as fábricas
modernas, o modo de produção capitalista pôde se expandir rapidamente, tornando-se
determinante, primeiro na Europa e depois em todo o planeta.
27
A primeira forma que essa fase assumiu foi da livre concorrência entre os
capitalistas que se iam formando. O pensamento que corresponde a essa fase é o
liberal, pelo qual a busca do lucro de cada um produziria a felicidade geral da
sociedade; o Estado não deveria interferir para regular a economia, que se organizaria
em função da "mão invisível" da concorrência, graças à lei da oferta e da procura.
As idéias principais dessa fase vêm de Adam Smith, de Ricardo e de outros
economistas clássicos e são também muito influenciadas pelo pensamento de Charles
Darwin, por sua idéia de seleção natural, pela qual, na luta pela adaptação, os mais
fortes vencem e os mais fracos perecem. Formar indivíduos aptos para a competição do
mercado era o ideal da burguesia. Contudo, para a competição capitalista, se faziam
necessários trabalhadores aptos aos novos meios de produção, o que exigia um
mínimo de instrução ao povo.
Cada vez mais a produção capitalista engendrou novas tecnologias exigindo que
a educação fosse se adaptando às linhas de produção. Toda a ciência foi posta a
serviço do capital. Com a divisão social do trabalho, a distância entre o trabalho manual
e o intelectual vai diferenciando os trabalhadores em especializados e não-
especializados. A classe dirigente, como nunca na História, necessita não ser
instruída, como contar com servidores com um certo nível de cultura.
Mas no que consiste tal formação? Na emancipação do homem, como pregava a
burguesia revolucionária, no racionalismo e no conhecimento que levaria ao ideal
humano do homem pleno e realizado? Não! Na mais miserável face humana, do
homem egoísta, que direciona sua vida pela razão técnica, em que os fins justificam os
meios, não importando que para isso se destrua o humanismo, do qual tanto a própria
burguesia era precursora, como a História e a razão dialética.
Na época em que a burguesia era o porta-voz do progresso social, seus
representantes ideológicos podiam considerar a realidade como um todo
racional, cujo conhecimento e o conseqüente domínio eram uma possibilidade
aberta à razão humana. Desde a teoria de Galileu de que ä "natureza é um
livro escrito em linguagem matemática" até o princípio hegeliano da " razão na
história”, estende-se uma linha que - apesar de sua sinuosidade - afirma
claramente a subordinação da realidade a um sistema de leis racionais,
capazes de serem integralmente apreendidas pelo nosso pensamento. Ao
tornar-se uma classe conservadora, interessada na perpetuação e na
justificação teórica do existente, a burguesia estreita cada vez mais a margem
para uma apreensão objetiva e global da realidade; a razão é encarada com um
ceticismo cada vez maior, renegada como instrumento do conhecimento ou
28
limitada a esferas progressivamente menores ou menos significativas da
realidade. (PONCE, 1991, p.146).
A terceira, e a que parece ser a última fase do capitalismo, foi gerada no seio da
livre concorrência que levou ao capitalismo monopolista.
Lênin (1979) relata na obra “Imperialismo, fase superior do capitalismo" que,
quando Marx escrevia o Capital, a livre concorrência aparecia à imensa maioria dos
economistas como uma lei da natureza. A ciência oficial tentou aniquilar, pela
conspiração do silêncio, a obra de Marx, a qual demonstrava, através de uma análise
teórica e histórica do capitalismo, que a livre concorrência gera a concentração da
produção, a qual, atingindo certo grau de desenvolvimento, conduz ao monopólio.
As metamorfoses sofridas pelo capitalismo impuseram ainda mais: não bastava
o controle dos meios de produção por parte dos capitalistas, nem a posse integral da
mercadoria e da força de trabalho, tornou-se necessário que o capital abrangesse toda
a esfera da vida social do trabalhador. Portanto, a formação do ser (homem) no capital
corresponde ao atual modo de acumulação capitalista, da fundamental relação capital x
trabalho. Nesse sentido, é crucial entendermos essa atual relação.
A relação entre o capitalista e o trabalhador é estabelecida pela venda e
compra da força de trabalho, mediada pelo valor desta mercadoria. O valor da
força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é determinado pelo tempo
de trabalho necessário à produção, portanto, também à reprodução, deste
artigo específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas
determinado um quantum de trabalho social médio nela objetivado. A força de
trabalho só existe como disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe,
portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força
de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção. Para sua
manutenção, o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistência.
O tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o
valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à
manutenção do seu possuidor (...) A soma dos meios de subsistência deve,
pois, ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como indivíduo
trabalhador em seu estado de vida normal (...) Em antítese às outras
mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém, por
conseguinte, um elemento histórico e moral. (MARX, 1988, p. 137).
Mas, como a força de trabalho precisa ser continuamente substituída, tendo em
vista que quem a detém é mortal, a produção e reprodução da força de trabalho
pressupõem a produção e reprodução da vida de seus filhos, vale dizer, de sua família.
29
O valor da força de trabalho corresponde, pois, a um determinado quantum de trabalho
abstrato, socialmente necessário para produzir a massa de meios de subsistência
necessária para a produção e reprodução normais da vida do trabalhador e de sua
família em sua totalidade alimentação, moradia, transporte, vestuário, saúde,
educação, lazer, etc. Note-se que o valor da força de trabalho não corresponde
somente aos meios de subsistência necessários para que o trabalhador realize uma
determinada tarefa durante o tempo que vendeu ao capitalista sua jornada de
trabalho; mas, àqueles necessários ao trabalhador e a sua família para a produção
normal e digna da vida em sua integralidade durante as vinte e quatro horas do dia, 365
dias no ano, etc. Isto inclui, portanto, uma soma de meios de subsistência para além
daqueles necessários ao tempo de trabalho vendido. Por exemplo, a alimentação e o
vestuário devem suprir as necessidades não do “tempo e espaço de trabalho”, mas
também do “tempo e espaço do não-trabalho”, quer dizer, da vida da família do
trabalhador; assim como a educação não pode restringir-se à formação ou qualificação
para o trabalho, mesmo que tal formação tenha um sentido geral e abrangente, mas
abarcar o acesso ao conhecimento e à cultura necessários à vida humana em
determinado tipo de sociedade.
Em suma, do ponto de vista do capital, a produção e reprodução da força de
trabalho pressupõem a produção, na sua totalidade e em todas as dimensões, da vida
da família do trabalhador, “dentro e fora do trabalho” ou, em outras palavras, a
constituição do trabalhador implica a constituição do cidadão. É como ser que vive
integralmente na sociedade do capital, satisfazendo as necessidades de todas as
dimensões humanas do estômago à fantasia —, ou seja, é como cidadão e, por
conseguinte, consumidor de todos os meios de subsistência necessários à sua vida,
que o sujeito produz a força de trabalho, para “depois”, na condição de proletário,
vendê-la ao seu comprador. Assim, livre e proprietário de uma única mercadoria sua
força de trabalho que, como cidadão, produziu o trabalhador comparece à esfera da
circulação para vendê-la ao proprietário do dinheiro e dos meios de produção.
A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos
limites se movimentam compra e venda de trabalho era, de fato um verdadeiro
éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente
Igualdade, Propriedade e Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma
30
mercadoria, por exemplo, da força de trabalho - são determinados apenas por
sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O
contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão
jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas
como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente.
Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um
dos dois cuida de si e nenhum do outro, realizam todos, em decorrência de
uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma
previdência toda esperta, tão somente a obra de sua vantagem tua, do bem
comum, do interesse geral. Ao sair dessa esfera da circulação simples ou da
troca de mercadorias, da qual o livre-cambista vulgaris extrai concepções,
conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho
assalariado, se transforma, assim parece, em algo a fisionomia de nossa
dramática personalidade. O antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como
capitalista, segue-o o possuidor de sua força de trabalho como seu trabalhador;
um cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido,
contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora
não tem mais nada a esperar, exceto o — curtume. (MARX, 1988, p. 141).
A exploração capitalista o trabalhador que leva sua pele para o curtume
pressupõe, portanto, a produção da vida integral do trabalhador na sociedade do
capital. Isto quer dizer que, pressupõe a formação do cidadão. Dilui-se, assim, a linha
divisória entre “espaço e tempo de trabalho” e “espaço e tempo fora do trabalho”, já que
eles se determinam mutuamente e podem ser espaço e tempo constituídos
historicamente na lógica do capital. Esses dois “espaços” se encerram, ou melhor, são
expressão fenomênica de um único “espaço”, o lócus do capital. Não obstante, tudo
isso foi resultado de um processo de construção histórica, o processo de consolidação
do capital expresso pela subsunção real do trabalho ao capital.
1.3 - SUBSUNÇÃO FORMAL E SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL
A transição histórica da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao
capital, quer dizer, da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa, exigia que o capital
tivesse o real controle sobre todo o processo de trabalho. Ao longo do desenvolvimento
capitalista, tal controle foi se operando, entre outros fatores, por um gradual e efetivo
processo de alienação do trabalhador, que perde a propriedade dos meios de produção
e, por desdobramento, do produto de seu trabalho, sobretudo dos meios de sua
subsistência. Por essa razão, sem condições de sobrevivência, lhe resta a
31
propriedade de sua força de trabalho, que, não sendo para ele valor de uso, acaba por
aliená-la vendendo-a para o capitalista. É a consolidação do trabalhador como
proletário, quer dizer, como vendedor de sua única propriedade, a força de trabalho.
Uma vez alcançado esse estágio de controle histórico, o capital se empenha na
tarefa de diminuir o valor das mercadorias, inclusive o da força de trabalho; o que se
por um conjunto amplo e articulado de elementos desencadeados por mudanças
operadas nos processos de trabalho, principalmente a introdução da maquinaria e da
organização industrial, que propiciaram, de um lado, a diminuição ou eliminação dos
“poros” da produção e, de outro, a utilização do trabalho feminino e infantil, na medida
em que facilitavam os procedimentos de trabalho. De fato, o uso do trabalho feminino e
infantil resultou, primeiramente, numa redução do valor da força de trabalho, uma vez
que o valor dessa mercadoria corresponde, como foi visto, ao quantum de trabalho
socialmente necessário para produzir a vida da família do trabalhador. Se apenas um
membro da família, o homem, por exemplo, vende sua força de trabalho, o valor da
massa de meios de subsistência recai sobre apenas uma unidade de mercadoria a ser
vendida. Se a mulher e os filhos passam também a ser vendedores da força de
trabalho, o seu valor se divide por várias unidades, reduzindo assim o valor unitário. É
preciso considerar que, quando vários membros da família se tornam vendedores da
força de trabalho, o seu valor absoluto tende a aumentar, pois agora esta família
precisará consumir uma quantidade maior de meios de subsistência, por exemplo, o
transporte para ir ao local de trabalho, que antes era desnecessário para a mulher e os
filhos; mas essa massa maior de valor agora é dividida pelos membros trabalhadores
da família, cujo efeito é a diminuição do valor relativo, ou melhor, do valor (individual) da
força de trabalho.
Ao mesmo tempo, em razão da permanente concorrência no mercado capitalista,
as mudanças operadas nos processos de trabalho, por intermédio da utilização de
meios de trabalho com incorporação de tecnologia mais avançada articulada com
formas inovadoras de racionalização da produção, propiciaram uma redução no valor
das mercadorias, de tal maneira que, quando atinge as cadeias produtivas dos meios
de subsistência, resulta também numa diminuição do valor da força de trabalho.
32
De modo muito resumido, a conexão orgânica dos fenômenos acima relatados
criou as condições para a redução do valor da força de trabalho e, por isso, para a
produção e exploração da mais-valia relativa. Se a mais-valia absoluta demandava
apenas uma subsunção formal do trabalho, já que se tratava apenas de um aumento
quantitativo da jornada de trabalho para além do valor da força de trabalho, a mais-valia
relativa, diferentemente, exige uma subsunção real do trabalho ao capital, cujas
condições básicas o o constante revolucionamento das forças produtivas no conjunto
de uma sociedade e o controle real do processo de trabalho pelo capital. De fato, Marx
(1984, p. 106)
afirma que:
A produção da mais-valia absoluta gira apenas em torno da duração da jornada
de trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os
processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais. Ela supõe portanto
um modo de produção especificamente capitalista, que com seus métodos,
meios e condições nasce e é formado naturalmente apenas sobre a base da
subordinação formal do trabalho ao capital. No lugar da formal surge a
subordinação real do trabalho ao capital.
Todavia, como o movimento do capital é contraditório, a produção da mais-valia
relativa pressupõe a crescente utilização proporcionalmente maior do capital constante
(trabalho morto) em relação ao capital variável (trabalho vivo), ou seja, um aumento da
composição orgânica do capital, o que implica, de um lado, a tendencial redução da
taxa de lucro e de acumulação de capital e, de outro, uma redução do número relativo
de trabalhadores explorados. Isto significa que parte da mercadoria força de trabalho
torna-se invendável, acarretando uma população proletária excedente e,
consequentemente, uma diminuição do preço da força de trabalho abaixo de seu valor.
A redução do valor da força de trabalho acaba causando, simultânea e
contraditoriamente, uma diminuição de seu preço, abaixo do valor.
1.4 - VALOR E PREÇO DA FORÇA DE TRABALHO
Para que se possa compreender melhor o processo acima descrito, é necessário
discorrer um pouco sobre o valor e o preço da força de trabalho. No arcabouço teórico
33
marxiano, valor é uma categoria analítica relacional; diz respeito à relação de troca
entre quantidades de mercadorias distintas, ou melhor, à relação entre proprietários de
mercadorias que as levam ao mercado para serem trocadas. No que diz respeito à
força de trabalho, os agentes sociais são, por um lado, o produtor, proprietário e
vendedor dessa mercadoria e, por outro, o seu comprador, proprietário dos meios de
produção de capital. Se, nessa relação, o valor da força de trabalho é determinado pelo
quantum de trabalho abstrato socialmente necessário para produzi-la, o que
corresponde, no caso específico da força de trabalho, ao quantum de trabalho para
produzir os meios de subsistência necessários para produzir e reproduzir a vida da
família do trabalhador (e este valor têm uma medida objetiva, dependendo do grau de
desenvolvimento das forças produtivas de uma dada sociedade), o preço da força de
trabalho, embora seja, originalmente, expressão monetária do valor, é determinado pelo
poder que cada uma das classes detém no “palco” da luta de classes ou, se preferível,
pela correlação de forças entre as classes sociais que realizam o processo de
produção, troca e consumo dessa mercadoria capitalistas e proletários. Nessa luta,
os contendores se apresentam munidos de seus respectivos instrumentos de poder e
lançam mão das armas mais adequadas e poderosas. Como detém a propriedade dos
meios de produção, fontes originárias para a produção da vida humana e, portanto,
fundamento maior de poder, a classe capitalista se utiliza dos meios de trabalho como
uma de suas principais armas contra os trabalhadores.
Como máquina, o meio de trabalho logo se torna um concorrente do
trabalhador. A autovalorização do capital por meio da máquina está na razão
direta do número de trabalhadores cujas condições de existência ela destrói.
Todo o sistema de produção capitalista repousa no fato de que o trabalhador
vende sua força de trabalho como mercadoria. A divisão do trabalho
unilateraliza essa força de trabalho em uma habilidade inteiramente
particularizada de manejar uma ferramenta parcial. Assim que o manejo da
ferramenta passa à máquina, extingue-se, com o valor de uso, o valor de troca
da força de trabalho. O trabalhador torna-se invendável, como papel-moeda
posto fora de circulação. A parte da classe trabalhadora que a maquinaria
transforma em população supérflua, isto é, não mais imediatamente necessária
para a autovalorização do capital, sucumbe, por um lado, na luta desigual da
velha empresa artesanal e manufatureira contra a mecanizada; inunda, por
outro lado, todos os ramos acessíveis da indústria, abarrota o mercado de
trabalho e reduz, por isso, o preço da força de trabalho abaixo de seu valor.
(MARX, 1984, p. 48).
34
Dialogando com o original, ao invés de se considerar que ‘uma parte supérflua
da classe trabalhadora sucumbe na luta desigual da velha empresa artesanal e
manufatureira contra a mecanizada’, consideremos que tal parte da classe trabalhadora
sucumbe na luta mais do que desigual da velha empresa artesanal (urbana e rural), do
“setor informal” ou do chamado “terceiro setor” (empresas de perfil mais ou menos
comunitário, que abarcam um amplo leque de atividades) contra os grandes
conglomerados empresariais oligopolistas e transnacionais; o fenômeno relatado por
Marx seria, outrossim, atual como nunca e, mais do que isto, viria se recrudescendo,
tendo em vista que a “maquinaria” utilizada, de base informacional e micro-eletrônica, é
uma arma muitíssimo mais poderosa porque muito mais “dispensadora” da força de
trabalho do que naquele período, o que implica o aumento do contingente supérfluo de
trabalhadores e, por conseguinte, a redução mais acentuada do preço da força de
trabalho, muito abaixo de seu valor.
Não obstante, além de ser um instrumento eficaz na redução do preço da força
de trabalho, a maquinaria também serve como arma na luta da classe capitalista contra
as formas de resistência e organização dos trabalhadores. Apresentando um conjunto
de exemplos, Marx (1984, p. 51)
afirma que:
A maquinaria não atua (...) apenas como concorrente mais poderoso, sempre
pronto para tornar trabalhador assalariado ‘supérfluo. Aberta e
tendencialmente, o capital a proclama e maneja como uma potência hostil ao
trabalhador. Ela se torna a arma mais poderosa para reprimir as periódicas
revoltas operárias, greves etc.
Em suma, as mudanças operadas nos processos de trabalho e o controle que o
capital exerce sobre eles produziram uma diminuição do valor e também do preço,
abaixo do valor, da força de trabalho e, ao mesmo tempo, serviram como instrumento
de neutralização e destruição das formas de resistência e organização dos
trabalhadores. A redução do preço da força de trabalho abaixo de seu valor,
ocasionada, sobretudo, pelo aumento do contingente de trabalhadores supérfluos,
obrigou, por sua vez, que os trabalhadores que ainda conseguiam vender sua força de
trabalho aumentassem sua jornada, para tentar compensar a corrosão do preço de sua
força de trabalho, o que propiciou a produção e extração da mais-valia absoluta.
35
A transição histórica da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao
capital proporcionou a transição da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa. Uma
vez consolidada, a subsunção real do trabalho ao capital criou as condições para uma
combinação entre a mais-valia relativa e a mais-valia absoluta. De fato, na seção IV de
O Capital, citada anteriormente, Marx não tinha o objetivo de examinar os processos de
trabalho “em si”, mas analisar a mais-valia relativa, tanto que o título da seção é “A
produção da mais-valia relativa”; analisa como foi possível, por intermédio das
mudanças operadas nos processos de trabalho e do controle exercido pelo capital
sobre eles, conseguir a diminuição do valor da força de trabalho e, por conseguinte, a
implementação da mais-valia relativa, o que implicou, contraditoriamente, uma redução
de seu preço, abaixo do valor, e, por desdobramento, a implantação da mais-valia
absoluta. A produção da mais-valia relativa e sua imbricação com a mais-valia absoluta
são, pois, o tema investigado por Marx nessa seção de sua obra.
1.5 - O CONTROLE DO PROCESSO DE TRABALHO E DA VIDA DO
TRABALHADOR
O controle sobre o processo de trabalho, elemento determinante de
materialização da subsunção real do trabalho ao capital, presente no período da grande
indústria, chega a seu auge durante a vigência do taylorismo/fordismo. Não obstante,
nessa fase da acumulação capitalista, o controle e a racionalização do processo de
trabalho passam a demandar o controle da vida do trabalhador, pois, como já foi visto, a
produção da força de trabalho implica a produção da vida humana em sua
integralidade. Tal fenômeno foi apropriadamente examinado por Gramsci (1984) no seu
clássico “Americanismo e Fordismo”. Para o autor, a implantação do fordismo (espírito
americano) exigia, além de um novo tipo de Estado, o Estado liberal, um novo tipo de
homem, tanto das classes dominantes que deveriam transitar de ociosos/parasitas
para industriais/produtivas, como da classe trabalhadora. Daí a necessidade de se criar
uma nova ética, o que explica:
36
O relevo com que os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas
relações sexuais dos seus dependentes e pela acomodação de suas famílias; a
aparência de “puritanismo” assumida por este interesse (como no caso do
proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não é
possível desenvolver o novo tipo de homem solicitado pela racionalização da
produção e do trabalho, enquanto o instinto sexual não for absolutamente
regulamentado, não for também ele racionalizado. (MARX, 1984, p. 392).
Tal máxima também era válida para o trabalhador, cuja vida deveria ser
controlada em todas as suas dimensões, até aquelas mais recônditas e mais íntimas,
como é o caso de sua afetividade e sexualidade, pois o novo industrialismo:
exige que o homem-trabalhador não desperdice as suas energias nervosas na
procura desordenada e excitante da satisfação sexual ocasional: o operário que
vai ao trabalho depois de uma noite de “desvarios” não é um bom trabalhador, a
exaltação passional não está de acordo com os movimentos cronometrados dos
gestos produtivos ligados aos mais perfeitos processos de automação. Esse
conjunto de compressões e coerções diretas e indiretas exercidas sobre a
massa produzirá, indubitavelmente, resultados e proporcionará o surgimento de
uma nova forma de união sexual, da qual a monogamia e a estabilidade relativa
parecem ser o traço característico e fundamental. (MARX, 1984, p. 399).
Se o período taylorista-fordista trazia como “novidade” o controle, não do
processo de trabalho, mas também da vida do trabalhador, é possível inferir que o
domínio sobre esta última era uma espécie de “extensão” do domínio sobre o primeiro;
em outras palavras, que o controle do processo de trabalho ainda era determinante em
relação ao controle da vida e que, por isso, o controle da vida se dava por causa e por
intermédio do controle do processo de trabalho. Tratava-se, assim, não de uma
subsunção real do trabalho, mas de uma subsunção formal da vida dos trabalhadores
ao capital.
1.6 - O ATUAL PADRÃO DE ACUMULAÇÃO E A SUBSUNÇÃO REAL DA VIDA
SOCIAL AO CAPITAL
O atual padrão de acumulação de capital, que começa a se configurar no início
dos anos 70 do século 20, herda do padrão taylorista-fordista essa mesma
característica, qual seja, a necessidade do duplo controle: do processo de trabalho e da
vida do trabalhador. Não obstante, minha hipótese é a de que os pólos da relação se
37
invertem de tal forma que o controle da vida do trabalhador tenha se tornado
determinante em relação ao controle do processo de trabalho e de que tal fenômeno se
deveu à própria dinâmica, ao movimento mesmo do capital.
A subsunção formal do trabalho ao capital, expressa pela extração da mais-valia
absoluta, por razões históricas, produziu a necessidade e, contraditoriamente, criou as
condições para a emergência da mais-valia relativa; esta exigia a subsunção real do
trabalho ao capital, materializada pelo controle do processo de trabalho, que se logrou
no período da grande indústria e que resultou, por razões apontadas anteriormente, na
combinação das duas formas de extração de mais-valia.
O controle do processo de trabalho, por sua vez, demandou um controle também
da vida do trabalhador, de tal maneira que o capital atingiu o ápice, a consolidação da
subsunção real do trabalho ao capital na fase taylorista-fordista, situação que propiciou,
pelo menos no centro do sistema capitalista, a preponderância da mais-valia relativa em
relação à mais-valia absoluta. Isso significa que nos países centrais do capitalismo foi
possível, por um certo tempo, que o preço da força de trabalho dos trabalhadores
originários desses mesmos países se mantivesse num patamar de relativo equilíbrio
com o valor da força de trabalho, permitindo assim uma produção normal da vida
daqueles trabalhadores, o que criou o terreno propício para o surgimento da alternativa
socialdemocrata concretizada na concertação” social entre Estado, trabalhadores e
capitalistas e que resultou no Estado do Bem-Estar Social. Embora tenha obedecido a
razões fundamentalmente políticas, dado o quadro histórico da época, a emergência e
consolidação do Welfare State, por um interregno, foram possíveis devido, por um
lado, a esse elemento determinante da base material e, por outro, à “exportação” para a
periferia do sistema das características de agudização das contradições da acumulação
de capital; sobretudo, à redução do preço da força de trabalho acentuadamente abaixo
de seu valor, o que dificultou ou inviabilizou a implantação do Estado do Bem-Estar
Social nesta parte do sistema.
O controle da vida do trabalhador, que no modelo keynesiano-fordista era um
desdobramento do controle do processo de trabalho, chega ao seu patamar de
consolidação e se torna determinante em relação ao controle do processo de trabalho
no atual padrão de acumulação de capital. Por causa, sobretudo, da concorrência
38
intercapitalista, um dos componentes decisivos do movimento do capital, o fantástico
desenvolvimento das forças produtivas das últimas décadas, em velocidade e grau
jamais assistidos, possibilitou a produção de quantidades imensuráveis de mercadorias
com um reduzido quantum de valor (trabalho abstrato); isso proporcionou uma
substancial diminuição do valor das mercadorias em geral, inclusive o da força de
trabalho, mas causou, contraditoriamente, dois efeitos. O primeiro, um incremento
brutal, sem precedentes na História, de força de trabalho supérflua, formada tanto pelo
contingente de trabalhadores que foi desempregado como por aquele que jamais será
empregado, fenômeno que muitos autores chamam de “desemprego estrutural”; e, o
segundo, uma acentuada diminuição da taxa de lucro e, consequentemente, da taxa de
acumulação, tendo em vista o considerável e necessário aumento da composição
orgânica do capital, ou seja, o investimento proporcionalmente maior em capital
constante em relação ao capital variável. Creio que seja possível inferir que,
contemporaneamente, este último problema deva estar se multiplicando
exponencialmente, que os meios e instrumentos de trabalho utilizados pelas
empresas capitalistas, de base microeletrônica, prescindem cada vez mais da força de
trabalho, única e exclusiva mercadoria que, na condição de valor de uso do capitalista,
é capaz de produzir valor, portanto, mais-valia e, portanto, capital.
A combinação desses dois fatores vem causando uma substancial diminuição do
preço da força de trabalho, o que é, por sua vez, uma necessidade inelutável do capital.
Contudo, tal é o grau de agudização das contradições da acumulação que a redução do
preço da força de trabalho abaixo do seu valor, diferentemente do que ocorreu no
passado recente, vem se generalizando e atingindo gradativamente também os
trabalhadores originários dos países centrais do sistema capitalista; tal processo tem
provocado a necessidade de aumento na jornada de trabalho por parte dos
trabalhadores que ainda têm o “privilégio” de vender sua força de trabalho e, portanto, a
produção e extração da mais-valia absoluta. Além do empenho de alguns países no
sentido de ampliar, oficial e formalmente, a jornada de trabalho, é preciso ressaltar,
contudo, que a produção da mais-valia absoluta pode se realizar, seja pelo aumento do
tempo efetivo de trabalho vendido ao capital, que pode se representar por um ou
diversos capitalistas, e o trabalhador, que é obrigado a trabalhar em várias empresas,
39
mesmo que tal fator não apareça nos dados e estatísticas oficiais, seja por uma forma
mais sutil e, ao mesmo tempo, muito mais eficaz, que é o aumento da intensidade, do
ritmo e da velocidade do trabalho acima de condições normais; o que é muito distinto
do aumento da produtividade, que pressupõe um incremento da produção de
mercadorias com um quantum de igual ou menor valor em condições humanas e
sociais normais.
O processo que propiciou a diminuição do valor da força de trabalho e, portanto,
a produção e extração da mais-valia relativa, criou, ao mesmo tempo e
contraditoriamente, a necessidade e as condições de redução do preço da força de
trabalho abaixo de seu valor e, por conseguinte, da produção e extração da mais-valia
absoluta. A utilização em larga escala, na atualidade, do trabalho feminino e também do
trabalho infantil, do imigrante, etc., além de outras táticas como a terceirização, tudo
isso faz parte dessa mesma lógica. Entretanto, no atual padrão de acumulação, pelos
motivos apontados anteriormente, uma necessidade e, por essa razão, uma
tendência de diminuição mais acentuada do preço da força de trabalho em relação à
redução de seu valor; isso significa uma tendência de preponderância da mais-valia
absoluta em relação à mais-valia relativa, cujo resultado é o recrudescimento e a
generalização da degradação do trabalho. Marca distintiva do atual padrão de
acumulação é, pois, uma tendência de generalização da preponderância da mais-valia
absoluta em relação à mais-valia relativa, elemento determinante da base material que
explica as dificuldades de “concertação” social e a crise do Estado do Bem-Estar.
Além disso, a agudização das contradições do movimento do capital elencadas
ao longo do texto vem exigindo que o Estado capitalista intervenha cada vez mais no
processo de produção e acumulação de capital, destinando-lhe vultosos recursos, na
tentativa de salvaguardar a reprodução capitalista, o que se pode evidenciar por alguns
exemplos: primeiramente, o financiamento subsidiado e, em alguns casos, a doação
parcial ou total por intermédio da construção de infra-estrutura ou da redução e até
isenção de impostos, entre outros mecanismos oferecidos pelo Estado aos capitais
privados, que acaba por responder, dessa forma, pelo investimento em parte do capital
constante. O resultado disso é uma atenuação, mesmo que temporária, da tendência
de aumento da composição orgânica do capital e, por conseguinte, de diminuição da
40
taxa de lucro, o que se constitui numa medida preventiva, ainda que precária, em
relação à eclosão das crises capitalistas. Em segundo lugar, a necessidade de injeção
de volumosos recursos estatais por ocasião das crises e de seus desdobramentos que
ocorrem, inevitavelmente, como conseqüência do conjunto de contradições da
acumulação com o escopo não de prestar socorro, mas, sobretudo, de buscar a
manutenção da reprodução do capital.
A necessidade de uma maciça e crescente intervenção do Estado na economia,
bem como a utilização também ascendente de recursos para realização de suas outras
funções precípuas, inclusive as de coerção e repressão, vem obrigando o Estado a se
desvencilhar de tarefas que a ele foram atribuídas por razões histórico-políticas, a
saber, as chamadas políticas sociais de educação, saúde, previdência e seguridade
social, etc. Trata-se da constituição daquilo que vem sendo denominado de “Estado
mínimo”. Contudo, é preciso salientar que este é apenas um dos “lados da moeda”,
que o “outro lado” expressa o “Estado máximo”, ou seja, ele é “mínimo e máximo” ao
mesmo tempo. Para ser “máximo” na sua função determinante de salvaguardar a
reprodução do capital no seu movimento contraditório, o Estado se obrigado a ser
“mínimo” no atendimento às políticas sociais.
Tendo em vista, sobretudo, os dois fatores apontados anteriormente quais
sejam, o solapamento das condições de produção e reprodução normais da força de
trabalho, o que tem gerado uma crescente e generalizada degradação do trabalho, e a
necessidade de um gradual desembaraçamento do Estado em relação às políticas
sociais – o atual padrão de acumulação e o Welfare State são, no limite, inconciliáveis.
Por outro lado, desde o período da grande indústria, o capital, pela própria lógica
de seu movimento, vem se ampliando, estendendo seus tentáculos não só por todos os
quadrantes do mundo, cuja expressão mais significativa é o advento do imperialismo,
mas também por todas as atividades econômicas e ramos da produção. Da atividade
fabril, que era, no século XIX, praticamente o único espaço econômico onde se
estabelecia a relação especificamente capitalista e, por conseguinte, a produção da
mais-valia, o capital penetrou e dominou quase todos os outros setores e atividades:
agricultura, transportes, pesquisa e tecnologia, comunicações, saúde, educação,
serviços, cultura, entretenimento e esporte, etc., sem contar com um dos ramos mais
41
cobiçados e lucrativos, a saber, a indústria bélica. Na medida de sua penetração, em
tais atividades econômicas passa a prevalecer a relação capitalista e, portanto, a
produção de mais-valia e, consequentemente, de capital.
Mesmo na condição de determinante, o mercado especificamente capitalista,
cuja característica essencial é a relação de produção capitalista intermediada pela troca
da força de trabalho, era quase que circunscrito à atividade fabril na época de Marx;
assim, ele convivia, tanto com um amplo mercado não-capitalista responsável pela
produção e troca de diversas mercadorias que estabelecia as mais variadas relações
sociais de produção, como com um conjunto de setores econômicos, relativamente
autônomos, produtores de valores de uso. No atual padrão de acumulação,
diferentemente, o mercado capitalista se ampliou sobremaneira em relação ao mercado
geral e açambarcou quase todas as outras atividades econômicas originalmente não-
capitalistas, o que pode ser evidenciado pela presença dos onipotentes e onipresentes
oligopólios transnacionais. Embora o mercado não-capitalista sobreviva hoje e
sempre no capitalismo, seu espaço e possibilidade de ação são cíclicos e tendem a
se contrair, restringindo-se a atividades para as quais o capital tem pouco ou nenhum
interesse.
Contudo, a ampliação do mercado capitalista foi e tem sido acompanhada,
simultânea e contraditoriamente, por uma contração relativa do mercado de trabalho
capitalista; isso ocorre na medida em que, conforme visto anteriormente, o
desenvolvimento das forças produtivas sob a forma capitalista causa a diminuição
relativa da utilização da força de trabalho, ou seja, reduz relativamente o número de
trabalhadores requeridos e explorados pelo capital. O mercado capitalista, pois, amplia-
se reduzindo relativamente a utilização da força de trabalho. O resultado da articulação
contraditória desses dois fenômenos é, de um lado, o incremento sistemático e
“estrutural” do desemprego, sobretudo no período recente, dada a velocidade do
desenvolvimento das forças produtivas e, de outro, a redução e, em muitos casos, a
eliminação de alternativas de produção da vida, quer dizer, de sobrevivência, além da
venda da mercadoria força de trabalho, seja pela produção e venda de outras
mercadorias, ou pela produção de valores de uso, tal o grau de abrangência, controle,
concentração e centralização do capital.
42
Domínio sobre praticamente todas as atividades humanas, sobre a produção
social da vida e redução generalizada do preço da força de trabalho combinada com um
imenso (e insolúvel) contingente supérfluo de trabalhadores, eis os ingredientes
fundamentais para o controle do capital sobre a vida dos trabalhadores. A subsunção
real do trabalho e a subsunção formal da vida dos trabalhadores ao capital
transformam-se, na contemporaneidade, em subsunção real da vida dos trabalhadores
ao capital; mais do que isso: tendo em vista o controle do capital sobre toda a vida
social, transformam-se em subsunção real da vida social ao capital. Dessa forma, o
controle do processo de trabalho se realiza por intermédio do controle da vida social; o
primeiro se subordina ao segundo, de tal maneira que o capital tende a prescindir de
um controle mais sistemático e hostil sobre os trabalhadores no âmbito dos processos
de trabalho, dispensando, inclusive, os empregados que desempenham esse tipo de
função, tendo em vista o auto-controle exercido pelos próprios trabalhadores. Tudo isso
significa, portanto, o coroamento da articulação orgânica do “espaço do trabalho” e do
“espaço fora do trabalho” num único e mesmo “espaço”, o lócus do capital.
Se, como foi visto, a transição da subsunção formal para a subsunção real do
trabalho requereu o controle do capital sobre os processos de trabalho, que se logrou a
partir de um processo histórico de alienação do trabalhador, a passagem da subsunção
real do trabalho à subsunção real da vida social ao capital vem se realizando por
intermédio do controle que o capital tem exercido sobre praticamente todas as
atividades de produção e reprodução da vida humana em sociedade, o que vem
reduzindo ou eliminando formas alternativas de sobrevivência e cuja implicação tem
sido a agudização das contradições da acumulação capitalista e o agravamento da
degradação do trabalho. Como desdobramento, assim como o modelo keynesiano-
fordista demandou um novo tipo de Estado e um novo tipo de homem, o atual padrão
de acumulação exige, por sua vez, um novo tipo de Estado, nos moldes do chamado
“neoliberalismo” e um novo tipo de homem, integrado na lógica societal do capital.
Trata-se de um sujeito que não apenas “veste a camisa da empresa”, mas, acima de
tudo, um ser humano que, premido pelas condições materiais, “veste a camisa do
capital”.
43
1.7 - O HOMEM ONILATERAL
Sabemos que toda a relação social corresponde ao atual estágio do modo de
produção capitalista e que o pensamento dominante está intrinsecamente presente na
consciência das massas, ou seja, a consciência predominante é a consciência
burguesa. o é o trabalho que está dividido e subdividido em pequenas peças
parcelares entre os indivíduos, é o próprio indivíduo que está dividido e transformado
em engrenagem automática de uma operação exclusiva. No capital, o grau de
alienação atinge patamares complexos e de difícil compreensão; as pessoas
defenderão o sistema enquanto as relações sociais atuais forem compatíveis com a
produção capitalista.
Vimos que no capital o homem está fragmentado, alienado e subsumido à ordem
irracional das mercadorias; toda a sua vida tende a formar o homem unilateral, ou seja,
um ser limitado, acanhado nas suas potencialidades, podendo desenvolver uma
especialidade, mas não a sua liberdade. Por outro lado, milhões de seres humanos
estão condenados ao embrutecimento quase total; condições degradantes de vida
retiram-lhes a possibilidade de realizar aquilo que Marx considerou como sendo
condição sine qua non para poder fazer História, ou seja: comer, morar e vestir.
Se o trabalho é responsável pela humanização e se foi através dele que o
homem se tornou Homem, então, como garantir esse processo para aqueles que,
talvez, nunca trabalharão? Todavia, o trabalho no processo de produção capitalista é
fonte de desumanização do homem. Essa contradição nos leva a refletir sobre o tipo de
homem que queremos formar, que seja possível e necessário para a emancipação
humana.
Frente à realidade da alienação humana, na qual todo o homem, alienado por
outro, está alienado da própria natureza e o desenvolvimento positivo está
alienado a uma esfera restrita, está a exigência da onilateralidade, de um
desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das
faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacitação de sua
realização. (MANACORDA, 1991, p. 78).
Pode haver divergências no que diz respeito aos meios pedagógicos e o ideal de
homem, contudo, é inconcebível outra formação humana que não contemple a
onilateralidade do homem. O ser onilateral traz consigo a história das gerações
44
passadas, pois é fruto desse processo, mas é no presente que realiza sua própria
história, portanto, é um ser criativo, vivo, repleto de possibilidades que também prepara
a base para um devir; assim, faz a conexão passado, presente e futuro; não se trata de
um homem dividido, vazio e sem história.
Enquanto na sociedade escravista e servil o homem estava limitado pelas forças
produtivas, o que lhe impedia alcançar um grau de desenvolvimento de sua plenitude, o
capitalismo, com o domínio do homem sobre as forças da natureza, poderia estabelecer
a exteriorização absoluta das faculdades criativas de todos.
Para Marx e Engels (1979), o homem onilateral corresponde ao contrário da
unilateralidade, ou seja, embora possa realizar uma atividade específica, como pintar,
escrever, barbear, isso não significa que precise ser pintor, barbeiro ou escritor; a trata-
se de um homem que rompe os limites que o fecham numa experiência limitada e cria
formas de domínio da natureza e que sempre se alça a atividades mais elevadas. Com
o máximo de suas capacidades desenvolvidas, esse homem pode ultrapassar sua
singularidade e alcançar seu ser genérico, colocar em movimento todo o seu ser,
abrangendo aspectos relevantes de sua personalidade. Assim, a igualdade humana
terá alcançado sua verdadeira essência. Ninguém seria colocado num patamar a mais
que o outro, pelo contrário, a capacidade do outro seria minha também, considerando
que somos todos produtos da História e todos estariam a serviço da humanidade.
A onilateralidade é, portanto, a chegada histórica do homem a uma totalidade
de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de
capacidades e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles
bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado
excluído em conseqüência da divisão do trabalho. (MANACORDA, 1991, p.
81).
Na sociedade capitalista, todos os seres humanos estão incluídos no processo
irracional e de desumanização, contudo, a classe trabalhadora é a mais suscetível à
alienação, vivenciando no seu cotidiano as barbáries do sistema capitalista, estando
presentes na maioria das vezes apenas na infra-estrutura, ou seja, na base da
produção. Isto significa a ausência das atividades que estão incluídas na superestrutura
da sociedade.
45
À medida que a divisão do trabalho se desenvolve, o saber, a arte e a cultura
separam-se dos produtores, passam para a esfera para a superestrutura e o
monopolizadas pelas classes dominantes: Enquanto o conjunto do trabalho da
sociedade produzir um rendimento que só o custo excede o que é preciso para
assegurar parcimoniosamente a existência de todos, enquanto o trabalho exigir
todo ou quase todo o tempo da grande maioria dos membros da sociedade,
esta divide-se necessariamente em classes. A par do maior mero
exclusivamente votado à submissão ao trabalho, forma-se uma classe liberta do
trabalho directamente produtivo que se encarrega dos assuntos comuns da
sociedade: direção do processo de trabalho, administração do Estado e dos
assuntos políticos, justiça, belas-artes, etc. É a lei da divisão do trabalho que
está pois na base da divisão em classes. (MARX; ENGELS, 1979, p. 10).
Com a dominação econômica garantida, o conjunto dos elementos necessários
para a perpetuação dessa dominação encontra-se na superestrutura da sociedade,
como podemos observar acima. Nesse sentido, todo o sistema de ensino da sociedade
capitalista assenta no racionalismo burguês, ou seja, um idealismo descarado que
oculta a realidade antagônica. Toda a sociedade dividida em classe é,
necessariamente, idealista: a elite esclarecida dita as normas e a massa bruta deve
segui-la sem discussão. Nem sequer espaço para a famosa ‘liberdade de
pensamento’ que a revolução burguesa pretendeu instaurar no mundo; isso porque se
trata de iluminar os espíritos a partir do monopólio científico de uma minoria, cujas
idéias refletem os seus próprios interesses econômicos imediatos, em oposição aos das
amplas massas que não podem escolher a sua verdade em função das suas condições
e interesses materiais.
Portanto, não é de estranhar o cidadão egoísta formado no seio da escola da
cidadania tão orgulhada pelos tecnocratas a serviço da elite. Esses reproduzem e criam
pragmáticas metodologias e discursos para inculcarem nas massas as idéias de uma
sociedade do consenso, da ordem e da justiça. Por outro lado, o individualismo
exacerbado revela o homem típico e necessário para o atual momento do capitalismo.
A indiferença pelo outro está no cerne do modo de se viver na sociedade capitalista; o
consumismo tornou-se uma fonte ilusória de se obter a felicidade, como se essa fosse
materializável. Somos uma sociedade de pessoas notoriamente infelizes: solitários,
ansiosos, deprimidos, destrutivos, dependentes. Pessoas que ficam alegres quando
matam o tempo que tão duramente tentam poupar. Numa passagem de sua obra TER
ou SER, Érich Fromm (1980) assinala que consumir é uma forma de Ter, e talvez a
mais importante da sociedade industrial. Consumir apresenta qualidades ambíguas:
46
alivia ansiedade, porque o que se tem não pode ser tirado, mas exige que se consuma
cada vez mais, porque o consumo anterior logo perde a sua característica de satisfazer.
Os consumidores modernos podem identificar-se pela fórmula; eu sou = o que tenho e
o que consumo.
Dessa forma, abstraindo-se que a produção capitalista não produz
mercadorias, como também os consumidores para as mercadorias, pode-se concluir
que se tem no processo de formação do homem, o resultado, do HOMEM CAPITAL.
Aquele, como vimos, que veste a camisa do capital. Mas, o homem capital, como o
capitalismo, é repleto de contradições, principalmente a classe trabalhadora que
convive no seu dia-a-dia com outras características e com possibilidades de
transformar-se num outro tipo de homem. É no cotidiano que os valores capitalistas
podem ser derrubados um a um; é nos momentos de crise e contradição que os
mecanismos de dominação entram em dissonância com a realidade e o cidadão pode
vir a questionar seu modo de vida, estando aberto para uma instrução crítica sobre o
seu ser e seu papel na História.
Enquanto o indivíduo não tiver conquistado esta liberdade mediante um esforço
viril do pensamento filosófico, não é ainda plenamente dono de si próprio e,
com seus próprios sofrimentos morais, paga um vergonhoso tributo a
necessidade exterior, com que se defronta. Mas, em troca, mal este mesmo
indivíduo se liberta do julgo dos entraves opressivos e vergonhosos, nasce para
uma vida nova, plena, desconhecida até então, e sua atividade se transforma
em expressão consciente e livre da necessidade. O indivíduo se converte em
grande força social e nenhum obstáculo pode nem poderá impedi-lo daí em
diante de lançar-se com as fúrias dos deuses sobre a pérfida iniqüidade.
(PLEKHANOV, 2000, p. 114).
Isso nos leva a considerar que o homem pleno, consciente de seu papel na
História, ainda está por vir. Para o homem onilateral nascer é preciso romper com a
história fundada na luta de classes, de forma que poderá haver o pleno
desenvolvimento humano se toda a humanidade desenvolver-se onilateralmente, o que
significa que a totalidade das forças produtivas seja subsumida por todos os indivíduos
livremente associados. Então, enfatizamos que o homem possível hoje ainda é aquele
que está formado numa perspectiva de classe, preparado para a luta, para o embate
que se trava no decorrer do acirramento dos conflitos; em poucas palavras, é o homem
corajoso e desejoso pela emancipação humana que na atualidade se faz crucial; é o
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sentimento anticapitalista e consciente da necessidade de acelerar uma autodestruição
do sistema.
Mas, será que já existiu um exemplo na História de um processo de formação
humana, baseada na totalidade do ser do homem corajoso, honrado, trabalhador,
guerreiro e intelectual? No nascimento da pedagogia socialista podemos nos aproximar
do que seria uma coletividade de pessoas em plena formação. É o que veremos
adiante com a obra de Makarenko.
1.8 - O NASCIMENTO DA PEDAGOGIA SOCIALISTA
Por isso permiti que vos diga: se quereis ter bons filhos, sede felizes.
Empenhai-vos com todas as vossas forças, usai todos os vossos talentos, todas
as vossas capacidades, utilizai os vossos amigos e conhecidos, sede felizes de
uma verdadeira felicidade humana. Mas acontece que um homem que quer a
felicidade trata de reunir as pedras para depois edificar a felicidade.
Makarenko
Sem dúvidas, a vida e obra de Makarenko foi uma epopéia; no decorrer de sua
criação, a transformação mais significativa para nós trata do nascimento do novo
homem, o qual teve por base a mais elementar pedagogia. Perguntaram a um dos
colonos da Colônia Gorki o que Makarenko lhes ensinara; simplesmente respondeu:
Makarenko sempre nos ensinou a sermos felizes.
Certamente, o aprofundamento da pedagogia makarenkiana nos traria elementos
valorosíssimos, todavia, não é esse nosso objetivo, porém, elencamos aqui passagens
fundamentais para a reflexão sobre a formação humana. A experiência da filosofia
Makarenkiana, em nossa perspectiva, foi a que mais se aproximou do que seria uma
sociedade com princípios socialistas. É importante notarmos também que a todo
momento Makarenko evidenciava que no processo de formação do homem estava
presente o ser político, com objetivos claros e coerentes de onde se quer chegar e de
que tipo de homem queremos. Uma pedagogia dinâmica e construtiva, baseada nas
inesgotáveis potencialidades do ser humano em geral e do jovem em particular.
Conseguiu associar disciplina com camaradagem, noções de honra e dignidade, senso
48
social e respeito pelo indivíduo, responsabilidade pessoal e coletiva, trabalho e estudos,
direito e deveres, arte e lazer, com uma boa dose de autogestão.
Makarenko (1985) nos revela que educar o ser humano é proporcionar-lhe
perspectivas, conduzindo-o para a felicidade do amanhã dentro de uma disciplina
voltada para a construção do caráter, "exigindo o máximo da pessoa e respeitando-a ao
máximo". Trabalhou com diferentes recursos pedagógicos: expressão corporal,
exercícios físicos, trabalhos manuais associando o trabalho produtivo à teoria. Assim,
na colônia Gorki priorizava-se a prática, mas não se sacrificava a teoria.
Sobre uma base material socialista, Makarenko foi gradativamente
desenvolvendo uma superestrutura socialista com uma concepção de mundo da classe
trabalhadora, iluminada pelo marxismo. Para Makarenko, não poderia haver educação
senão na coletividade, através da vida e do trabalho coletivo. Por isso, Makarenko era
um educador, mas um educador que compreendia o caráter político da educação. Em
outras palavras, um educador para quem educar era também, e essencialmente,
politizar.
Assim, a visão de homem não é de um ser puramente determinado pelas
condições de seu meio, como uma visão fatalista; ele é visto como produto das relações
sociais vigentes, como também produtor dessas relações, cabendo-lhe, através de uma
prática crítica e transformadora, instaurar o mundo em um mundo propriamente
humano. E quando falamos numa sociedade humana, estamos essencialmente falando
da personalidade humana, que se vai formando no processo da construção de sua
consciência. Makarenko recrimina que todo o fracasso pela educação de um homem
está na "educação da cupidez", tal educação, presente na sociedade de classe,
degrada o homem na sua essência.
Na sociedade burguesa, a cupidez é regulada pela concorrência. A amplitude
dos desejos de um encontra seu limite na amplitude dos desejos do outro, tal
oscilação de milhões de balancés, dispostos ao acaso num estreito espaço.
Batendo em direções e planos diferentes, agarram-se, chocam-se, esfolam-se
uns aos outros, rangendo. Neste mundo é vantajoso, depois de ter acumulado
em si a energia de uma massa metálica, bater com toda força, para partir e
aniquilar o movimento dos vizinhos. Mas neste mundo importa também
conhecer as forças da resistência vizinhas, para não se quebrar a si próprio
num movimento inconsiderado. A moral do mundo burguês é amoral a cupidez,
adaptada a cupidez. (MAKARENKO,1976, p. 356).
49
Contra tudo que degenerava o homem e o transformava em um ser covarde e
egoísta, podemos observar a trajetória do trabalho na colônia Gorki, que tinha como
pedra angular o coletivo. O senso de responsabilidade social alcançara patamares de
um coletivo em comunhão que foi possível com o estabelecimento de relações de
solidariedade, pela qual foi implantado um moral fruto dos próprios educandos. Exigia-
se do indivíduo a liquidação da cupidez, o respeito pelos interesses e pela vida dos
camaradas. Os educandos foram habituados a superar as dificuldades que um
processo extremamente difícil de crescimento coletivo comporta. Nesse sentido, a
consciência para si tem seu processo acelerado, pois a vivência de situações
libertadoras, esclarecedoras e protagonistas impõe um processo favorável ao progresso
do homem, enquanto pessoa singular e genérica. Ao passo que as instituições
burguesas estão para dividir o homem, enganá-lo, mantê-lo sob o julgo da classe
dominante. A idéia de homem não é a do homem real, problemático, prisioneiro das
estruturas do sistema, mas a do homem abstrato, personificador de uma natureza
humana ideal e a-histórica, mesmo quando relativizada em modelos ideológicos do tipo
"bom cidadão", "profissional competente", "homem livre e responsável", ou "operário
padrão". Modelos estes que visam ocultar as distorções das relações reais dos homens
entre si, relações de dominação. Por outro lado, a idéia de sociedade não é a da
sociedade real, composta por homens cujas relações são mediatizadas por estruturas e
instituições que determinam a natureza dessas relações, mas de uma sociedade
abstrata resultante de um pacto social utópico, que ignora as regras da dialética do
poder. Sem falar dos ideais e valores veiculados pela cultura dominante que são
metamorfoseados em ideais e valores universais pelo discurso pedagógico.
Em Makarenko, encontramos a filosofia do homem novo, visto a partir do que
ocorria na prática. Contudo, toda concepção de mundo e homem era discutido em
conjunto, partindo-se do pressuposto materialista da História; toda a existência e as
condições em que se encontravam eram bem conhecidas por todos e de total
responsabilidade de homens reais.
Dessa forma, acreditamos que é possível a intervenção de homens formando
homens, pois se a cultura dominante é de responsabilidades de homens, também é de
responsabilidade de outros homens a desmistificação dessa cultura. Makarenko foi um
50
dos maiores exemplos no processo de construção de um novo sujeito histórico e deixou
claro que isto requer algumas condições básicas. Em primeiro lugar, é necessário
elaborar uma consciência coletiva sustentada em uma análise apropriada da realidade
e uma ética. Quanto à análise, trata-se de utilizar instrumentos capazes de estudar os
mecanismos de funcionamento da sociedade e de entender suas lógicas, com critérios
que permitam distinguir causas e efeitos, discursos e práticas. o se trata de qualquer
tipo de análise, mas sim daquela produzida com o aparelho teórico crítico mais
adequado para responder ao grito dos trabalhadores. Exige um alto rigor metodológico
e uma abertura a todas as hipóteses úteis para esse fim. A opção em favor dos
oprimidos é um passo pré-científico e ideológico, que guiará a eleição do tipo de
análise. Entretanto, esta análise pertence à ordem científica sem concessão possível. É
um saber novo que ajudará a criar a consciência coletiva.
O segundo elemento que contribui para a construção de uma consciência
coletiva é a ética. Não se trata de uma rie de normas elaboradas em abstrato, mas
sim de uma construção constante pelo conjunto dos atores sociais em referência à
dignidade humana e ao bem de todos. As definições concretas podem trocar segundo
os lugares e as épocas e quando se trata de realidade globalizada, a perspectiva ética
terá que ser elaborada pelo conjunto das tradições culturais, isto é, o conceito real dos
direitos humanos. A ética, nesse sentido, não é uma imposição dogmática, mas sim
uma obra coletiva que tem suas referências na defesa da humanidade.
Diante do exposto até aqui neste primeiro capítulo, temos a considerar que o
homem na totalidade formado pela perspectiva Makarenkiana, ou o homem onilateral
pretendido por Marx, não é possível enquanto perdurar o sistema capitalista. Esse
homem está por nascer, mas antes deve lutar para nascer. Matar o homem capital e
negá-lo não é tarefa fácil, depende das transformações radicais do modo de produção
da vida material, como, também de transformações no sentido de uma consciência
coletiva. Isso mostra que alguém que pretende intervir na formação do homem nos dias
atuais tem, em primeiro lugar, que considerar a necessidade de romper com esse
sistema de opressão e alienação; trata-se de operacionalizar mecanismos e
instrumentais que possam revelar aos oprimidos suas correntes e que possam indicar
meios para que estes forjem suas próprias armas na luta contra o capital. Para tanto,
51
não podemos eximir de compreendermos como se dá o processo de consciência das
pessoas no qual está a base de todo o trabalho educativo.
52
SEGUNDO CAPÍTULO
O PROCESSO DE CONSCIÊNCIA
2.1 - A CONSCIÊNCIA COMO PROCESSO
Existem vários caminhos para o estudo da consciência humana; o nosso
encontra-se imbricado na história de vida das pessoas, considerando as condições
objetivas materiais que determinam o seu processo de consciência em movimento.
Como disseram Marx e Engels (1979, p. 36):
A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeiro
lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material
dos homens: é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o
comércio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta do seu
comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual
quando esta se apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião,
metafísica, etc.; de um povo. São os homens que produzem as suas
representações, as suas idéias, etc. Mas os homens reais, atuantes e tais como
foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças
produtivas e do modo de relações que lhes corresponde, incluindo até as
formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser
mais do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu processo da vida
real.
Nessa direção, podemos esclarecer que não pretendemos aprofundar nas áreas
que estudam a consciência na perspectiva individual do ser humano. Isso porque
estamos fazendo uma reflexão sobre o processo de consciência, fundamental para o
entendimento da formação do homem, cuja compreensão é importante e principalmente
para aqueles que vivenciam um trabalho educativo. Nesse trabalho, o foco é entender
como as pessoas vão vivendo os impasses do cotidiano, suas formas de compreender
o mundo e a luta dos trabalhadores. Nesse esforço esperamos contribuir para o estudo
das formas como os seres humanos tomam consciência desse conflito e como essa
consciência pode levá-los às ultimas conseqüências. Conseqüências essas que
direcionam nossos esforços em apreender o processo de consciência de classe.
53
Buscamos a superação do conteúdo positivista que aborda esse assunto dentro
de uma perspectiva psicologizante. Celso Frederico, em seus estudos sobre a
consciência operária no Brasil, vai colocar a questão em análise sobre a ótica da
totalidade. Comentando Lukács expõe:
Para Lukács o se deve separar sujeito e objeto, pensamento e ser,
consciência e realidade. Essas atinomias são picas do pensamento dualista
que assume forma definida nas teorias de fundo positivista, em que o sujeito e o
objeto são mantidos como se fossem elementos separados, abstraídos das
situações históricas e sociais. O objeto (no caso, a realidade social) seria assim
algo autônomo e exterior ao conhecimento (a consciência); este, por sua vez, é
reduzido a um reflexo passivo e fotográfico de uma realidade pronta e acabada.
Lukács contrapõe a esse enfoque dualista uma visão monista da realidade. O
sujeito não é um simples espelho da história: ele e os fenômenos sociais fazem
parte de um processo mais abrangente. O momento objetivo destes são os
fenômenos sociais, econômicos e políticos; e o momento subjetivo é a
formação da consciência. (FREDERICO, 1978, p. 23).
Uma ordem não se mantém por nenhum atributo inato, mas por sua capacidade
de se produzir e reproduzir continuamente nas relações que a constituem. Os seres
humanos concretos e as relações que estabelecem são as forças que mantém uma
determinada sociedade e que, igualmente, podem mudá-la. No entanto, como os
indivíduos moldados para a conformidade e o consentimento podem se rebelar contra a
ordem que os moldou?
Apoiar-se num processo educativo para emancipação humana requer falar em
consciência de classe, o que pressupõe compartilhar da compreensão de que a
dinâmica da sociedade é uma dinâmica de luta de classes. Portanto, como comenta Iasi
(2002), estudar o processo de consciência é refletir sobre a ação dos indivíduos e das
classes em sua pretensão de mudar o mundo.
A partir de uma compreensão marxista, o processo dinâmico e contraditório de
consciência é visto como um desenvolvimento do processo dialético, em que cada
momento traz em si os elementos de sua superação e as formas da consciência
incluem contradições que, ao amadurecerem, remetem-na a novas formas e a novas
contradições. Esse movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos.
Falamos em processo de consciência e não apenas de consciência, porque não
a concebemos como algo que possa ser adquirido e que, portanto, antes de sua posse,
poder-se-ia supor um estado de "não consciência". Assim como para Marx não nos
54
interessa o fenômeno e suas leis enquanto forma definida; o mais importante é a lei de
sua transformação, de seu desenvolvimento, as transições por que passa de uma forma
para outra
1
.
Nesse sentido, procuraremos entender o fenômeno da consciência como um
movimento e não como algo dado. Sabemos que é possível conhecer algo se o
inserirmos na história de sua formação, ou seja, no processo pelo qual ele se tornou o
que é. Assim é também com a consciência: ela não é, torna-se. Amadurece por fases
distintas que se superam, através de formas que se rompem gerando novas que já
indicam elementos de seus futuros impasses e superações. Longe de qualquer
linearidade, a consciência se movimenta trazendo consigo elementos de fases
superadas, retomando, aparentemente, as formas que abandonou.
Vejamos, então, como se forma a consciência e o processo de seu
desenvolvimento.
2.2 - O INÍCIO DA CONSCIÊNCIA
Partindo da forma elementar na qual se apresenta à consciência, podemos dizer
que toda pessoa tem alguma representação mental de sua vida e de seus atos. Como
disse Gramsci (1984, p. 11):
Todos são filósofos, ainda que ao seu modo, inconscientemente, porque,
inclusive na mais simples manifestação de uma atividade intelectual, na
'linguagem', está contida uma determinada concepção de mundo.
Essa representação que todos possuem é constituída a partir do meio mais
próximo, no espaço de inserção imediata da pessoa. Como nos diz Marx:
1 Para Marx o que importa: descobrir as leis que regem o fenômeno que ele pesquisa, importa-lhe não apenas a lei
que o rege, enquanto tem forma definida e os liga a relações observadas em dado período histórico. O mais
importante, de tudo, para ele, é a lei de sua transformação, de seu desenvolvimento, isto é a transição de uma forma
para outra, de uma ordem de relações para outra. Método empregado por Marx contido no posfácio da 3
a
Edição de O
Capital, 1988, p. 25.
55
A consciência é, naturalmente, antes de mais nada, mera consciência da
conexão limitada com as outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo
que se torna consciente. (MARX; ENGELS, 1979, p. 43).
A percepção da consciência através da exterioridade também é confirmada por
Freud que, mesmo buscando compreender o fenômeno pela aproximação psicológica,
afirma que o processo de algo tornar-se consciente está ligado às percepções que
nossos órgãos sensoriais recebem do mundo externo.
Sendo assim, a consciência seria o processo de interiorização de uma realidade
externa ao indivíduo.
A questão se torna complexa na medida em que esta interiorização apresenta-se
como uma representação, não sendo um simples reflexo da materialidade externa que
busca representar na mente, mas, antes, é captada de um real aparente, limitado, uma
parte do todo e de seu movimento. Dessa forma, a consciência gerada a partir das
relações concretas entre seres humanos não apresenta conexão entre sua aparência e
sua essência, ou seja, o indivíduo, ao ser inserido no conjunto das relações sociais que
o antecedem e vão além dele, capta um momento abstraído do movimento.
As informações que chegam ao indivíduo estão sistematizadas; são
pensamentos, idéias e conhecimentos que buscam compreender ou justificar a
natureza das relações determinantes de cada época.
Como isso ocorre? Se a consciência é a interiorização das relações vividas pelos
indivíduos, a família é a primeira instituição que coloca o indivíduo diante de relações
sociais.
No ventre materno, o novo ser (criança) não estabelece relações externas, ela é
uma coisa só, não se separa da mãe. Quando ela nasce, dizem os psicólogos que entra
numa fase pré objetal. O que quer dizer? No momento do parto, a criança vai ver
manchas e vai continuar assim por um período. Relevante também é o fato da mesma
não precisar realizar ações para a sua sobrevivência, assim não tem a compreensão de
si, nem dos outros. Trata-se de uma fase onde as coisas externas ainda são um
complemento de si mesma.
Até esse momento não podemos afirmar que a criança tenha consciência,
embora tenha percepções básicas, uma vez que, por não conceber algo que seja o
56
outro, não estabelece propriamente uma relação. Suas ações são ainda determinadas
mais pelo universo pulsional, orgânico, que social.
Freud afirma que chegamos ao mundo munidos apenas de nosso corpo orgânico
e de seus instintos, os impulsos básicos, o ID.
O ID corresponde ao conjunto das necessidades físicas, orgânicas, que a pessoa
traz no seu código genético; são impulsos, desejos, como: fome, proteção, sexo e
afetividade. Esse conjunto vai se dividir em dois grandes blocos:
- sexualidade: conjunto de impulsos que tenha relação com a afetividade, com
certa sensação corporal de prazer;
- auto-sobrevivência: tem sua relação com a vida e a morte; se não for
resolvido o corpo sofre e morre.
Num determinado momento do amadurecimento, a criança percebe que não
pode controlar tudo que antes para ela fazia parte de seu corpo; então percebe que
existe uma realidade externa, somente aí, com essa percepção, é que faz sentido a sua
noção do eu.
Dessa forma, agora tem impulsos e uma realidade externa que nem sempre
estará disponível para a realização das suas necessidades. O mediador entre o ID e a
realidade externa chama-se EGO. Com isso, teremos dois critérios diante das
necessidades:
- O do prazer - o que é bom eu quero manter e do que causa desconforto
procuro me livrar;
- Os impulsos são de duas naturezas diferentes - alguns não são negociáveis
(exemplo, a fome) e outros podem ser maleáveis (por exemplo, o sexo).
Existe uma série de sensações que o ego utiliza para conter os impulsos
maleáveis, por exemplo, no caso do sexo eu posso deslocá-lo, sublimá-lo, adiá-lo,
enfim, substituí-lo por outra coisa, como pela religião, pela qual se busca reprimi-lo.
Diante disso, o ser humano tem duas saídas frente à necessidade e à realidade
externa: adaptar-se à realidade ou transformá-la. Na maioria dos casos, a fuga, a
adaptação, o esquivo ocorrem para não haver o confronto.
57
Assim, o conjunto de normas, valores, regras que o externas ao ser humano
acaba sendo interiorizado, passando então a ser interno. O superego age agora
incorporando as normas externas como se fossem suas. Não são mais os impulsos que
vão determinar o que necessita ser satisfeito ou realizado, mas sim as leis morais da
sociedade (o externo) que o ego vai buscar para intermediar as exigências do id.
Toda criança elege um objeto de seu desejo e fantasia sua perfeita integração
afetiva com ele. Na estrutura triangular da família monogâmica, esta ação é
interrompida por uma terceira pessoa. A criança com a mesma intensidade que fantasia
seu desejo, fantasia a eliminação do concorrente. No entanto, a plena realização do
desejo colocaria em risco a sobrevivência da relação que garante a existência física da
criança.
Por uma série de mecanismos, a criança desenvolve sentimentos de impotência
e de culpa, que o ego sente como desprazer e busca eliminar. A forma encontrada é
dada pela própria natureza dos impulsos: reprime-se o desejo para garantir a
sobrevivência imediata.
A cada passo, o novo ser vai criando a base sobre a qual se estruturará seu
psiquismo e sua personalidade, ao mesmo tempo em que se amolda à sociedade da
qual está interiorizando as relações e formando, a partir delas, a consciência de si e do
mundo.
É evidente que o que fica interiorizado não são as relações em si, mas seus
valores, normas, padrões de conduta e concepções. Nessa fase, ainda embrionária,
cola-se na constituição do aparato psíquico uma concepção de mundo em que estão
presentes os principais elementos que constituirão as características da primeira forma
da consciência, ou seja:
1) A vivência de relações que já estavam pré-estabelecidas como realidade
dada.
2) A percepção da parte pelo todo, em que o que é vivido particularmente como
uma realidade pontual, torna-se a realidade (ultra-generalização).
58
3) Em consonância com o segundo elemento, as relações vividas perdem seu
caráter histórico e cultural para se tornarem naturais, levando à percepção de
que "sempre foi assim e sempre será”.
4) A satisfação das necessidades, seja da sobrevivência ou do desejo, deve
respeitar a forma e a ocasião que não são definidos por quem sente, mas
pelo outro que tem o poder de determinar o quando e o como.
5) A luta entre a satisfação do desejo e a sobrevivência imediata, na qual o
indivíduo é levado a optar pela sobrevivência e reprimir ou deslocar seu
desejo.
Assim, o indivíduo se submete às relações dadas e interioriza os valores como
seus, zelando por sua aplicação, desenvolvimento e reprodução.
Gramsci tem razão ao afirmar que o senso comum é formado de maneira bizarra,
ou seja, amalgamam-se sem necessidade de uma consciência interna elementos dos
mais diversos herdados pelas mais diferentes influências que se materializam no campo
imediato de ação dos seres humanos em formação. No senso comum o ser humano
forma sua visão de mundo. Segundo Gramsci (1984, p. 12):
de maneira desagregada e ocasional, isto é, "participa" de uma concepção de
mundo "imposta" mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos
vários grupos sociais. Nos quais todos estão automaticamente envolvidos
desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou
província, pode se originar na paróquia e na "atividade intelectual" do vigário ou
velho patriarca, cuja "sabedoria" dita leis, na mulher que herdou a sabedoria
das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela
impotência para ação).
Nesse processo, as pessoas tomam como se fosse delas um conjunto de idéias
do outro e formam sua concepção de mundo com algo alheio/ do outro. Então, em
nosso entendimento, a primeira forma de consciência é uma alienação.
Ao nível do senso comum a alienação é tratada como sendo um estágio de não
consciência. Após a análise, percebemos que ela é a forma de manifestação inicial da
consciência. Essa forma será a base, o terreno fértil onde será plantada a ideologia
como forma de dominação.
59
2.3 - ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA
A alienação não é a mesma coisa que a ideologia e dela se diferencia
substancialmente. A alienação que se expressa na primeira forma de consciência é
subjetiva, profundamente enraizada com a carga afetiva, baseada em modelos e
identificações de fundo psicológico. A ideologia agisobre esta base e se servirá de
suas características fundamentais para exercer uma dominação que, agindo de fora
para dentro, encontra nos indivíduos um suporte para que se estabeleça
subjetivamente.
A ideologia não pode ser compreendida apenas como um conjunto de idéias que
pelos mais diferentes meios (meios de comunicação de massas, escolas, igrejas, etc)
são incutidas na cabeça dos indivíduos. Isso levaria ao equívoco de conceber uma
ação anti-ideológica como simples troca de velhas por novas idéias.
Quando, em uma nova sociedade de classes, uma classe detém os meios de
produção, tende a deter também os meios para universalizar sua visão de mundo e
suas justificativas ideológicas a respeito das relações sociais que garantem sua
dominação. "As idéias da classe dominante são em cada época as idéias dominantes".
(MARX; ENGELS, 1979, p. 72).
Essa universalização da visão de mundo da classe dominante explica-se não
apenas pela posse dos meios ideológicos e de difusão, mas, também e
fundamentalmente, pela correspondência que encontra nas relações concretas
assumidas pelos indivíduos e classes. Não são "simples idéias", como afirma Marx:
As idéias dominantes nada mais o que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como
idéias: portanto, a expressão das relações que tornam uma classe dominante,
as idéias de sua dominação. (MARX; ENGELS, 1979, p. 72).
As relações sociais determinantes, baseadas na propriedade privada capitalista e
no assalariamento da força de trabalho, geram as condições para que a atividade
humana se aliene ao invés de se humanizar. A vivência dessas relações produz uma
60
alienação que se expressa em três níveis. O ser humano está alienado da natureza, de
si mesmo e de sua espécie.
Ao viver o trabalho alienado, o ser humano se aliena da sua própria relação com
a natureza, pois essa relação ocorre através do trabalho, humanizando-o, assim,
podendo compreendê-lo. Quando ele vive relações em que ele próprio se coisifica, em
que o produto de seu trabalho lhe é algo estranho e não lhe pertence, a natureza se
distancia e se feitichiza.
Num segundo aspecto, o ser humano aliena-se de sua própria atividade. O
trabalho se transforma, deixa de ser a ação própria da vida para converter-se num
"meio de vida". Ele trabalha para o outro, contrafeito. O trabalho não gera prazer, é
atividade imposta que gera sofrimento e aflição. Alienando-se da atividade que o
humaniza, o ser humano aliena-se de si próprio (auto-alienação).
Isso nos leva ao terceiro aspecto: alienando-se de si próprio como ser humano,
tornando-se coisa (o trabalho não o torna um ser humano, mas é algo que ele vende
para viver), o indivíduo afasta-se do vínculo que o une à espécie. Ao invés do trabalho
se tornar o elo do indivíduo com a humanidade, com a produção social da vida,
metamorfoseia-se num meio individual de garantir a própria sobrevivência.
A materialidade dessas relações que produzem a alienação é expressa no
universo das idéias como ideologia. São, portanto, nas palavras de Marx, as relações
materiais concebidas como idéias.
A ideologia encontra na primeira forma da consciência uma base favorável para
sua aceitação. As relações de trabalho têm na ação prévia das relações familiares e
afetivas os elementos de sua aceitabilidade. Antes mesmo que a criança venha a
receber qualquer informação sistematizada, possui um conjunto de valores
interiorizados que para ela são verdadeiros e naturais, pois estabelece com ele
profundos nculos afetivos e ela percebe que tem correspondência com as relações
concretas em que está inserida.
Assim, os valores, normas, regras, padrões de condutas não se o pelo contato
perceptivo com as relações sociais determinantes na sociedade em que ela vive. Os
valores e o regime social são mediatizados por pessoas. As pessoas que servem de
veículo na formação humana são modelos. Não se trata de identificação com "a
61
sociedade", com "as relações capitalistas" ou com suas idéias, são as relações de
identidade com os outros seres humanos, seus modelos, que a pessoa em formação
assume, contraindo os valores dos outros como sendo os seus.
O ser humano é modelo do ser humano. Nossa concepção de mundo e de nós
mesmos, nós as formamos a partir do outro. Numa passagem no Capital, Marx (1978a,
p. 60) afirma:
O homem se e se reconhece primeiro em seu semelhante, a não ser que
venha ao mundo com um espelho na mão ou como um filósofo fichtiano para
quem basta o 'eu sou eu'. Através da relação com o homem Paulo, na condição
de seu semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo como
homem. Passa a considerar Paulo, com pele, cabelos, em sua materialidade
paulatina, a forma em que se manifesta o gênero homem.
Assim o indivíduo vai construindo uma concepção de mundo que julga como
sendo própria. Apesar de sua utilidade prática, de sua aparente coerência, essa
concepção caracteriza-se, como vimos em Gramsci, por ser ocasional e desagregada.
Isso significa que não chega a formar um todo unitário e coerente, mas uma soma de
relações sociais de produção, dando a base necessária para que a ideologia frutifique e
garanta sua reprodução.
Aqueles que se servem de uma visão mecânica do mundo e do processo
histórico, fecham aqui o círculo da dominação. A ideologia corresponde às relações
concretas que a comprovam e a reforçam, ao mesmo tempo em que esta lhes justifica e
reforça. Não saída. Isto constitui um dos mitos de nossos tempos: a dominação
ideológica quase perfeita.
Entretanto, o fato é que a ideologia e as relações sociais de produção formam
um todo dialético, ou seja, não estabelecem simples relações de complementariedade,
mas uma união de contrários. Por mais elaborada, sofisticada e eficiente que seja uma
ideologia, ela é ainda a representação mental de certo estágio das forças produtivas
historicamente determinadas.
Uma vez interiorizada uma visão de mundo não se transforma numa
inevitabilidade, pois ocorre em suas entranhas a contínua transformação das estruturas
produtivas e das relações que lhe deram origem e que lhes servem de base. Essa
62
transformação, ao contrário da ideologia que tente a se eternizar, é necessária e,
mesmo, vital para os próprios interesses dominantes.
Eis aqui uma contradição insolúvel da sociedade capitalista: enquanto as forças
produtivas devem constantemente desenvolver-se, as relações sociais de produção e
sua manifestação e justificativa devem permanecer estáticas em sua essência. Com o
desenvolvimento das forças produtivas, acaba por ocorrer uma dissonância entre as
relações interiorizadas como ideologia e a forma concreta como se efetivam na
realidade em mudança. É o germe de uma crise ideológica. Os autores da Ideologia
Alemã descrevem desta maneira esse processo:
Quanto mais a forma normal das relações sociais e, com ela, as condições de
existência da classe dominante acusam a sua contradição com as forças
produtivas avançadas, quanto mais nítido se torna o fosso cavado no seio da
própria classe dominante, fosso que separa esta classe da classe dominada,
mais natural se torna, nestas circunstâncias, que a consciência que
correspondia originalmente a esta forma de relações sociais se torne
inautêntica: dito por outras palavras, essa consciência deixa de ser uma
consciência correspondente, e as representações anteriores, que são
tradicionais deste sistema de relações, aquelas em que os interesses pessoais
reais eram apresentados como interesse geral, degradam-se progressivamente
em meras fórmulas idealizantes, em ilusão consciente, em hipocrisia deliberada.
(MARX; ENGELS, 1979, p. 78).
Como o indivíduo viveria essa contradição entre as idéias e a realidade em
mudança? Sabemos que sua consciência inicial é formada pela interiorização de
valores, normas, juízos e comportamentos a partir das relações imediatas que
estabelece. De posse dessa concepção de mundo, o indivíduo segue sua vida e
estabelece outras relações que se encontram em constante e dinâmico movimento. As
novas relações vividas têm o mesmo potencial de interiorização que as anteriores, da
mesma forma que geram novos valores, juízos e o a base para condutas e
comportamentos.
O indivíduo vive suas novas relações julgando-as e buscando compreendê-las,
com o mesmo arcabouço de valores e juízos de que dispunha anteriormente. Os novos
valores que são interiorizados nas novas relações coexistem com os velhos,
provocando uma contradição que é vivida pelo indivíduo como um conflito interno e
subjetivo.
63
A primeira forma de manifestação dessa contradição ainda não é a superação da
alienação, mas a expressão de um sentimento de revolta.
Alguém, por exemplo, que acredite que trabalhando consegue tudo o que quer,
pode passar a viver uma situação em que, apesar de trabalhar muito, não consegue o
mínimo necessário para viver, e se revolta. As relações atuais passam
a não corresponder ao valor interiorizado, mas antes de fazer saltar toda a sua antiga
concepção de mundo, tal percepção é vivida como um conflito subjetivo, individual, que
é compreendido tendo por base a própria estrutura da primeira forma de consciência.
Nesse sentido, as relações agora podem não ser mais idealizadas: são vividas
como injustas e o indivíduo pode esboçar a não submissão. Porém, na maioria das
vezes, são tidas como inevitáveis, ou seja, "sempre foi assim", mudando apenas o
julgamento valorativo: "sempre foram injustas" e "sempre serão injustas". Dessa forma,
certas ocasiões de revolta podem se tornar passagem para uma nova etapa do
processo de consciência.
2.4 - A CONSCIÊNCIA EM SI E A CONSCIÊNCIA DE CLASSE
Em determinadas condições, a vivência de uma contradição entre antigos
valores assumidos e a realidade das novas relações vividas pode gerar uma inicial
superação da alienação. A pré-condição para essa passagem é o grupo. Quando uma
pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstâncias
pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse também é um mecanismo
da primeira forma de consciência, mas aqui a identidade com o outro pode produzir um
salto de qualidade.
A injustiça vivida como revolta é compartilhada numa identidade grupal, o que
possibilita a ação coletiva. A ão coletiva coloca as relações vividas num novo
patamar. Vislumbra-se a possibilidade de não apenas se revoltar contra as relações
pré-determinadas, mas de alterá-las. Questiona-se o caráter natural dessas relações,
portanto, de sua inevitabilidade. A ação dirige-se, então, à mobilização dos esforços do
grupo no sentido da reivindicação, da exigência de que se mude a realidade de
injustiça. É a chamada consciência em si ou a consciência reivindicatória.
64
Todavia, dizemos que isto é uma possibilidade; o grupo pode caminhar para
esse processo e as pessoas poderão ir gradativamente evoluindo sua consciência.
Sartre (1979), na sua obra Crítica da Razão Dialética, consegue sintetizar o
funcionamento de um grupo, abarcando todo seu processo, ou seja, de sua gênese até
a sua morte. Em sua análise, afirma que o coletivo antecede o grupo, porém se trata de
um coletivo da serialidade inerte, em que todos vivem na alteridade e a princípio sem
unidade. Contudo, considera que a reunião de um grupo não quer dizer que haver
ação. Para o autor, a reunião inerte com a estrutura da serialidade é o tipo fundamental
da sociedade. A força que age desde fora sobre o coletivo e pode transformá-lo em
grupo assume a forma de uma "impossibilidade". Sartre (1979, p. 14) descreve assim
esse processo:
Antes de tudo temos que conceber que a origem de uma reestruturação do
coletivo em grupo é um fato complexo que tem lugar ao mesmo tempo em todos
os pisos da materialidade, mas que essuperado em práxis organizadora no
nível da unidade serial. Entretanto, por universal que seja, o acontecimento não
pode ser vivido como sua própria superação até a unidade de todos, salvo
quando sua universidade é objetiva para cada um, ou, se preferirem, salvo
quando se cria em cada um uma estrutura objetiva unificadora. Até aqui, de fato
- na dimensão do coletivo -, o real se definia por sua impossibilidade. Aquilo que
se chama de sentido da realidade significa exatamente: sentido daquilo que, por
princípio, está proibido. A transformação tem, pois, lugar quando a
impossibilidade é ela mesma impossível, ou se preferirem, quando um
acontecimento sintético revela a impossibilidade de mudar como
impossibilidade de viver. O que tem como efeito direto que a impossibilidade de
mudar se volta como objeto que se tem que superar para continuar a vida.
O coletivo é colocado diante da impossibilidade de manter uma restrição ou
interdição (uma ameaça externa) que produz em cada um e, por conseqüência, no todo
a necessidade de romper com o campo prático inerte, o que obriga a ação. Ao agir, o
coletivo verifica com surpresa como, em um momento de sua atividade passiva, foi um
grupo.
Certamente, o processo de grupo é uma base para a evolução da consciência,
contudo, em que momento isso ocorre e quando um salto de qualidade na
consciência dos indivíduos?
Seguindo ainda os passos de Sartre, a totalização do grupo, ou seja, todo o
processo dialético de sua formação, amadurecimento e degeneração inicia-se, como
vimos, com a serialidade, passando para a dissolução da série em direção ao grupo
65
em fusão quando a "necessidade individual é sentida como necessidade comum".
Todavia, os dois aspectos ocorrerão somente na ação, do fluir da práxis aberta à
totalização.
O grupo vive permanentemente uma tensão entre o caminho aberto pelo grupo
em fusão no sentido da totalização e a ameaça de se dissolver novamente na
serialidade. Isso será resolvido num ato de reciprocidade mediada entre seus
componentes; emerge o novo estatuto do grupo que Sartre chamará de
"juramento". O estado que se segue é conseqüência direta desse movimento. O
grupo em fusão que se transforma em grupo jurado assume o ser no grupo como limite
insuperável, reforçando os laços e solidificando os mecanismos de identidade. Por
outro lado, o não juramento de um terceiro, ou seja, a traição de um membro
desencadeia um violento processo de "terror", uma vez que o grupo pode agir por
direito para eliminar tal ameaça. Num aparente paradoxo, esse é o momento da mais
elevada liga solidária do grupo, a "fraternidade terror", em que os membros do grupo
se vêem como irmãos.
Mas, para a aplicação do terror, o grupo necessitará de certa disciplina, o que o
levará a um novo momento, a organização. A divisão de tarefas, a criação de órgãos,
direções, coordenações, mediações e distribuições, ajustes, disciplina, administração,
são funções do grupo em que cada membro é um indivíduo comum. Ainda assim, trata-
se de uma organização de controle do grupo que inventa suas próprias instituições,
muitas vezes em conflito com o campo prático inerte do qual partiu. Trata-se agora de
uma práxis organizada que se diferencia da anterior por ser uma ação do grupo sobre si
mesmo.
No entanto, ao proceder desse modo, o grupo se objetiva em produto - o grupo
organizado - de forma que essa objetivação comum não é a realização do objetivo.
Esse movimento na sua forma ampliada vai conduzir a substituição da livre práxis em
"processo". Enquanto a práxis se desdobra a si mesma diante de um campo de
possíveis em direção de um fim, o processo, por seu turno, é práxis constituída,
mediada por instrumentais que se tornam seus próprios fins, enquanto o fim antes
definido pelo grupo, converte-se em algo virtual.
66
Esse é o momento em que o grupo se converte em instituição. Quando o grupo
passa a cristalizar-se enquanto práxis constituída, ele se institucionaliza a si mesmo,
endurece, envelhece; o que era movimento torna-se rotina; o que era ação converte-se
em procedimentos; o que eram laços de solidariedade torna-se disciplina; o que era
projeto torna-se programa. Sinteticamente, o grupo caminha para sua burocratização,
aquilo que foi constituído pela livre ação se distancia de seus criadores e objetiva-se em
algo que se torna estranhado. Até o momento da organização do grupo sobre si mesmo
ainda é uma ação, embora limitada na direção do projeto coletivo. No entanto, agora, a
organização instituída obedece às suas próprias leis, de um complicado funcionamento,
e os seres humanos olham-na desde fora e sentem-se incompetentes para modificá-las.
Isto significa a volta para a serialidade inerte.
Nesse processo, ou seja, a serialidade como fator inicial, o grupo como práxis
livre (negação da serialidade) e a instituição, burocracia e o retorno à serialidade
(negação da negação), coloca em seus participantes uma camisa de força,
demonstrando que esse não é apenas o mais provável desfecho, como também o mais
verificável. Se assim concluirmos, a consciência termina aqui seu destino com a
dialética circular de Sartre. No entanto, podemos apreender esse processo dando uma
nova dimensão à análise, de modo que essa não fique presa ao grupo e este à
inteligibilidade individual. Isso porque essa limitação nos impede de supor que esse
movimento do grupo encontre condições para uma fusão que vai muito além dele e que
a natureza da impossibilidade enfrentada se produza a partir de uma contradição mais
abrangente que a ameaça à continuidade da produção social da vida em níveis
societários. Essa particular circunstância, a nosso ver, produz uma identidade e uma
ação correspondente ao momento do movimento da consciência que não pode,
simplesmente, ser reduzido aos mecanismos do grupo, muito menos derivado dos
mecanismos individuais. Esse é o salto do grupo em direção à classe e à consciência
de classe.
A tradição marxista distinguiu esses momentos analisando as classes sociais (e
a consciência de classe) em si e para si. A classe em si seria aquela que em sua
finitude define-se com o ser determinado por suas relações com as outras coisas, nesse
caso na relação com o capital. Nesse momento, o ser da classe é determinado como
67
ser para o outro, de modo que o ser que trabalha é definido pelo papel que ocupa na
relação com o capital, como vendedor da força de trabalho, como capital constante,
como produtor de valor, como mercadoria consumida no processo de trabalho ou como
consumidor na circulação da produção. A consciência que corresponde a esse
momento não é mais aquela que correspondia ao ser, isolado como indivíduo, ainda
que essa fosse também uma consciência em si, no sentido de que era definida na
relação mantida com o outro. A diferença é que, agora, é uma consciência do que ele é,
enquanto conjunto, e o que o distingue dos outros seres: ele é aquele que vende a
força de trabalho ou aquele que só tem a força de trabalho para vender e, nesse
sentido, distingue-se daqueles que podem vender o produto de seu trabalho ou de
outros que podem comprar essa força de trabalho. Ora, mas à medida que se abre a
possibilidade de ver a si mesmo como ser distinto dos outros é possível se ver como tal,
para si.
A classe que vive do trabalho, para utilizar a expressão de Ricardo Antunes
(1999), não desenvolve essa "identidade" necessariamente de forma valorativa e
positiva. O fato de ter que viver da venda da força de trabalho é uma sina, mas é uma
sina que os proletários compartilham com muitos outros. Da imagem de que são
uma classe, ainda que não o sejam para si mesmos. Vamos encontrar na obra de Celso
Frederico (1978) a mesma perspectiva de que é a partir da situação de classe dos
agentes no processo de produção que conforma um conjunto limitado de situações
vitais, que se determinam os diversos tipos de consciência de classe.
As classes ganham materialidade na medida em que os seres humanos, ao
produzirem socialmente sua existência, encontram diante de si relações que os dividem
e lhes atribuem papéis distintos, como compradores ou vendedores da força de
trabalho, ou como objetos a serem consumidos na produção do valor, ou como aquele
que acumulará privadamente o valor excedente daí produzido. As Classes e seus
comportamentos se materializam em determinadas relações de famílias, hierarquia de
sexo e idade e em formas particulares de estruturar a personalidade dos indivíduos
sociais. As classes ganham existência material quando os indivíduos encontram um
emprego, pois se empregar em busca por um salário é a única maneira de garantir sua
existência.
68
Mas, para que um sujeito veja no assalariamento a possibilidade de ganhar sua
vida, é necessário que o outro tenha encontrado na compra e no consumo da força de
trabalho a sua forma de existência. O fato de os indivíduos, esta abstração com a qual
o pensamento liberal envolve o ser social humano, estarem submetidos a
determinações de classe é que os leva, em certos momentos, a possibilidade de agir
como classe. Assim como, inversamente, é a individualização do processo social, as
relações e todo o estilo de sua coexistência social a base real para que os seres
humanos se vejam na estranha forma de cápsulas individuais e não a natureza ou a
diversidade de organismos humanos.
A essa possibilidade objetiva de conhecimento da totalidade e de
autoconhecimento (identidade do sujeito e do objeto) corresponde à
consciência de classe como categoria adjudicada. Entende-se por “adjudicada”
a consciência que é atribuída ao movimento operário em função dos projetos
deste, efetivamente tentados e cuja direção seja a extinção das classes sociais
(e não apenas a melhoria das condições operárias de vida). (FREDERICO,
1978, p. 26).
Com isso, podemos entender que o caráter reformista ou revolucionário dessa
classe em ação pode ser determinado por essa ação. Ajuda muito pouco a reflexão
de trocar uma metafísica por outra. O pensamento não pode resolver em si mesmo a
gênese do real. Se esse é um problema para quem acredita em uma essência
revolucionária, quase sempre adormecida, não é menos um problema para quem
sustenta um reformismo freqüentemente negado pela persistência da resistência e a
eventual emergência da luta revolucionária.
A classe para si e a consciência correspondente é aquela que, além de ser uma
classe, pode se reconhecer como tal. Uma coisa é ser uma classe que vende a força de
trabalho e que produz valor. Outra é reconhecer-se como tal; porém, não é apenas
essa autoconsciência que verificaremos em Marx, mas a possibilidade, ou
potencialidade da ação, o que faz as outras classes também serem reconhecidas como
tais e superarem sua visão enquanto classe para si. No caso do proletariado, que sabe
que vende sua força de trabalho e produz valor, o ser para si pode interromper o
processo de valorização. Não é por acaso que a greve está na base dessa passagem
do ser em si em direção ao ser para si, em uma posição de centralidade que
69
corresponde à centralidade mesma da produção de valor na sociabilidade do capital.
Mas outras formas representam o mesmo mecanismo. No caso de um soldado em si
ser apenas uma força repressiva do Estado, mas como ser para si, ele pode negar-se a
cumprir esse papel e somar suas armas aos trabalhadores em rebelião. Ou um jovem
que, por ser em si mesmo o futuro, resolve construir um futuro para si, e não aquele que
os outros planejaram para ele.
Nesse caminho, existe espaço para um processo educativo numa perspectiva de
classe, ou seja, a formação do homem crítico, uma vez que percebemos que o
processo de consciência no sentido da consciência de classe é fruto do fazer humano e
não algo natural. A consciência é movimento que ora se apresenta como consciência
do indivíduo isolado, ora como expressão da fusão do grupo, depois da classe,
podendo chegar a diferentes formas no processo de constituição da classe até a uma
consciência que ambiciona a universalidade.
Sendo assim e, tendo no cotidiano as possibilidades dessas transformações -
embasados na formulação de Lukács (1978) sobre a relação entre a imediaticidade
cotidiana e a dimensão genérica da ação humana, ou seja, a afirmação de que a vida
cotidiana é a mediação objetiva e ontológica entre a simples reprodução espontânea da
existência física e as formas mais altas de genericidade até agora conscientes a vida
cotidiana seria o espaço heterogêneo no qual se inter-relacionam dinamicamente os
dois pólos humanos da realidade social: a particularidade e a genericidade.
É neste cotidiano que as informações são transmitidas e podem aderir ou não à
consciência das pessoas, como também à consciência de classe. É imprescindível a
leitura correta do movimento da consciência, principalmente da consciência de classe.
Portanto, as estratégias, as ões educativas empregadas no cotidiano,
principalmente às palavras chaves para o desvelamento de determinada ordem
ideológica, tem seus limites a depender do grau de amadurecimento da consciência.
Como diz Goldmam (1972, p. 10):
Ë, realmente, importante para quem quer que deseje intervir na vida social,
saber quais são, num estado dado, numa dada situação, as informações que
podem transmitir, quais as que passam sofrendo deformações mais ou menos
importantes e quais as que não podem passar.
70
Na sociedade capitalista não podemos alcançar uma nova consciência, a não ser
de forma embrionária. Somos, no máximo, indivíduos da sociedade burguesa dispostos
a destruí-la. É certo que já se apresentam, em germe, elementos dessa nova
consciência, no entanto, ela pressupõe uma nova ordem de relações para que tenha a
base que a torne possível.
Isso não deve levar à compreensão de que a transformação revolucionária se
materialmente e só depois é que o universo das idéias vai se transformando
automaticamente. Essas esferas se combinam, ainda que preservada a determinação
material, de forma que a luta das idéias e a capacidade de uma classe revolucionária
apresentar suas concepções e valores como os valores do conjunto da sociedade, se
antecipam e preparam o terreno para transformações revolucionárias.
Foi o que de fato ocorreu com a própria revolução burguesa. O pensamento
burguês antecipou a 1
a
revolução burguesa. No entanto, isso não implica no fim da
determinação material. As idéias revolucionárias burguesas, entre elas o liberalismo,
puderam se constituir tendo por base a própria gestação material das bases objetivas
do modo de produção capitalista e, com elas, o desenvolvimento de novas classes
sociais que buscavam expressar, no nível das idéias, seus interesses materiais.
Gramsci (1999, p. 66), ao tratar da questão, afirma que:
A supremacia de um grupo social manifesta-se de duas maneiras, como
dominação e como direção intelectual e moral. Um grupo social domina os
grupos adversários que tende a liquidar ou a submeter valendo-se também da
força armada e é dirigente dos grupos fins e aliados. Um grupo social pode e
alias deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governativo (e esta é
uma das principais condições para a própria conquista do poder); em seguida,
quando está exercitando o poder e ainda que o mantenha firmemente em
suas mãos, o gripo social torna-se dominante, mas deve continuar sendo
dirigente.
A lógica indicada pelo revolucionário italiano, e que deve ser resgatada, é que
toda classe é uma manifestação particular da sociedade. Nos momentos
revolucionários, uma classe reúne condições para expressar, através de sua
particularidade, os anseios universais que sintetizam os interesses particulares de
outros setores sociais em luta. Tornar-se dirigente desses setores implica numa luta de
idéias, juízos e valores, e mais, numa luta teórica. Significa dar unidade e coerência à
sua concepção de mundo, em luta contra a do adversário de classe que tem sua
71
própria unidade e coerência, as quais, pelas suas contradições objetivas com a
realidade, tornam-se cada vez mais imorais e hipócritas.
A questão de fundo aqui não pode ser discutida sem encarar o fato de o
processo de consciência se inserir em um movimento maior, que é a transição de um
modo de produção para outro. Na medida em que se operam transformações
revolucionárias, em que se passe a estabelecer novas relações, podemos estar
iniciando a construção de um novo patamar da consciência humana.
A consciência não espara além da evolução histórica real. Não é o filósofo
que a lança no mundo; o filósofo não tem o direito, portanto, de lançar um olhar
arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de as desprezar. (LUKÁCS,
1978, p. 92).
Portanto, a transformação das consciências não está além da luta política e da
materialidade onde esta se insere. É, ao mesmo tempo, um produto da transformação
material da sociedade e um meio político para alcançar tal transformação. Por isso,
transgredimos a ordem natural das coisas e as idéias preestabelecidas sobre elas ao
agir criticamente. Visto que a consciência o é algo adquirido e que nossa perspectiva
é o seu amadurecimento até a consciência de classe para si, não podemos esquecer
que são os homens no seu cotidiano responsáveis pela reprodução das idéias
dominantes. Assim, a sociedade capitalista ao produzir seus escravos também produz
seus revolucionários, como afirma Marx e Engels no manifesto comunista. Dentre eles
estão os intelectuais da classe trabalhadora que têm um papel importante na formação
da classe.
Alguns dos desafios fundamentais dos intelectuais, a nosso ver, é a atuação na
transmissão de conhecimentos e na formação do trabalhador, numa perspectiva de
emancipação do ser humano, através da ação educativa, da desalienação, do
desvelamento das tramas e dos ardis do capitalismo. Para tanto, a socialização da
teoria social de Marx é condição imprescindível na luta de classes. Para a transmissão
de uma teoria revolucionária, se faz necessário um método revolucionário.
72
TERCEIRO CAPITULO
O MÉTODO
3.1 - O MÉTODO REVOLUCIONÁRIO DE SOCIALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO
No capítulo anterior tivemos a fundamentação teórica dos principais elementos
que compõem o processo de consciência. Essa reflexão nos revela que é fundamental
para todos os profissionais que trabalham com formação saberem o momento do
processo de desenvolvimento da consciência.
O bom profissional é aquele que usa o instrumento certo na hora certa. Imagine-
se um marceneiro que, ao consertar um móvel, arranca seu sapato para bater num
prego, seria algo no mínimo muito estranho. Assim, o formador deve atentar para o
momento das pessoas e a conjuntura em que se encontra. A qualidade da formação vai
depender da escolha da teoria, do método e do instrumental correto. Existem
momentos em que a mobilização terá o papel central; em outros será a organização e,
em outros ainda, a agitação. O importante é compreendermos que as pessoas estão
em processo de formação de suas consciências e que, em algum momento desse
processo, a formação torna-se fundamental.
Por outro lado, todos os momentos exigem uma formação especifica, todas as
situações têm um caráter educativo e pedagógico, mas nem tudo é formação. Por
exemplo: uma assembléia não é formação, é uma assembléia; uma greve não é
formação, não exige um educador, mas sim um agitador, um organizador. A formação é
aquele momento no qual é imprescindível a presença de um educador.
Estamos falando de formação no seu caráter político e social, não de um
processo pedagógico escolar. Toda nossa reflexão está dirigida à questão da formação
humana, do processo educativo de formação do sujeito político.
Nesse sentido, face a esse nosso maior desafio, Oscar Jara (1985, p. 02) expõe
a seguinte questão:
73
O desafio principal que temos a enfrentar é o de saber implementar uma
estratégia educativa. Isto é, planejar e pôr em prática processos educativos,
lógicos, coerentes, que tenham uma seqüência e uma perspectiva tal, que nos
permitam chegar a apropriar-nos criticamente da realidade para transformá-la.
O autor demonstra com isso que a concepção metodológica deve sublinhar o
sentido mais profundo na busca de como orientar e organizar estrategicamente as
práticas de educação popular. Dessa maneira, a concepção metodológica dialética e
suas formas de aplicação à educação popular abrangem com mais profundidade e
riqueza os elementos fundamentais para o desvelamento da atual sociedade capitalista.
Reforçamos que se tratamos aqui da dialética materialista é porque a consideramos a
principal desmistificadora de uma leitura da realidade febril que insiste em considerar o
pensamento como caminho de saída para nossas mazelas sociais. Marx e Engels
(1987, p. 54) traduzem por excelência essa questão:
Segundo a Crítica, todo o mal vem unicamente do "pensamento" dos operários.
Ora, os operários ingleses e franceses formaram associações onde eles não
contentam apenas de se instruir mutuamente sobre suas necessidades
imediatas enquanto operários, mas se instruem ainda sobre suas necessidades
enquanto homens, sem contar que eles manifestam nestas associações
também uma consciência muito profunda e muito extensa da força "enorme",
"imensa", que provém de sua cooperação. Mas, estes operários da massa,
estes operários comunistas, que trabalham nas fábricas de Manchester e de
Lyon, por exemplo, não cometem o erro de acreditar que o "pensamento puro"
os libertará de seus patrões e de sua inferiorização prática. Eles se ressentem
amargamente da diferença entre o ser e o pensamento, entre a consciência e a
vida. Eles sabem que a propriedade, o capital, o dinheiro, o trabalho
assalariado, etc., não são minimamente simples criações de sua imaginação,
mas resultados muitos práticos, muitos concretos da alienação de seu ser que
devem, portanto, ser abolidos de forma prática, concreta, para que o homem se
torne homem não somente no pensamento, na consciência, mas também no
ser de massa, na vida. A Crítica crítica lhes ensina, ao contrário, que eles
deixam de ser assalariados na realidade se, em pensamento, eles abolirem a
idéia do trabalho assalariado, se eles deixarem, em pensamento, de se manter
como assalariados e, em conformidade com esta excessiva pretensão, não
quiserem mais ser pagos pessoalmente. Idealistas absolutos, entidades
estéreas, depois disto, estes poderão, naturalmente, viver do etéreo, da idéia
pura. A Crítica crítica lhes ensinavam que eles conseguirão suprimir o capital
real ao ultrapassar a categoria do capital no pensamento, que eles conseguirão
se transformar realmente fazendo de si mesmos homens reais, quando
transformarem seu eu abstrato na consciência e quando desprezarem, como
uma operação contrária à Crítica, toda a transformação de sua existência real,
das condições reais de sua existência, ou seja de seu eu real. O espírito, que
na realidade vê apenas categorias, reduz também, naturalmente, toda atividade
e toda prática humana ao processo de pensamento dialético da Crítica crítica. É
74
exatamente isto que distingue o socialismo da Crítica crítica do socialismo e do
comunismo da massa.
Nesta crítica ao idealismo, podemos concluir que o método dialético supera as
formas especulativas encontradas na lógica formal que paralisa o movimento, nega as
contradições, as quais, em certo sentido, resultam de um processo profundo, que as
condicionam e as atravessa. Nesse sentido, o acento será colocado sobre a lei da
conexão, da interdependência universal. Ou, ainda, se uma metamorfose ou uma crise
são estudadas, a lei dos saltos passará ao primeiro plano. Pouco importa. Os aspectos
do devir são igualmente objetivos e indissoluvelmente ligados ao próprio devir.
Poderíamos resumir do seguinte modo as regras práticas do método dialético
sistematizadas por Henri Lefebvre (1979, p. 241):
1) Dirigir-se à própria coisa. Nada de exemplos exteriores, de digressões, de
analogias inúteis; por seguinte, análise objetiva;
2) Apreender o conjunto das conexões internas da coisa, de seus aspectos;
o desenvolvimento e o movimento próprio da coisa;
3) Apreender os aspectos e momentos contraditórios, a coisa como
totalidade e unidade de contrários;
4) Analisar a luta, o conflito interno das contradições, o movimento, a
tendência (o que tende a ser e o que tende a cair no nada);
5) Não esquecer, é preciso repeti-lo sempre - que tudo esligado a tudo; e
que uma interação insignificante, negligenciável por que o essencial em
determinado momento, pode tornar-se essencial, num outro momento ou sob
um outro aspecto;
6) Não esquecer de captar as transições: transições dos aspectos e
contradições, passagem de uns nos outros, transições no devir. Compreender
que um erro de avaliação (como, por exemplo, acreditar-se estar mais longe no
devir do que o ponto em que está efetivamente, acreditar que a transição se
realizou ou ainda não começou) pode ter graves conseqüências;
7) Não esquecer que o processo de aprofundamento do conhecimento que
vai do fenômeno à essência e da essência menos profunda à mais profunda é
infinito. Jamais estar satisfeito com o obtido. Naquilo que um espírito se
satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda;
8) Penetrar, portanto, mais fundo que a simples coexistência observada;
penetrar sempre mais profundamente na riqueza do conteúdo; apreender
conexões de grau cada vez mais profundo, até atingir e captar solidamente as
contradições e o movimento. Até chegar-se a isso, nada foi feito;
9) Em certas fases do próprio pensamento, este deverá se transformar, se
superar: modificar ou rejeitar sua forma, remanejar seu conteúdo - retomar seus
momentos superados, revê-los, repeti-los, mas apenas aparentemente, com o
objetivo de aprofundá-los mediante um passo atrás rumo às suas etapas
anteriores e, por vezes, até mesmo rumo a seu ponto de partida.
75
O método dialético, desse modo, revelar-se-á ao mesmo tempo rigoroso que
se liga a princípios universais - e o mais fecundo, que é capaz de detectar todos os
aspectos das coisas, incluindo os aspectos mediante os quais as coisas são
vulneráveis à ação.
Dito de outra maneira, temos que o processo de conhecimento nos leva a saber
que só podemos realizar aproximações à realidade: em qualquer método de pesquisa,
incluindo a dialética, jamais seremos capazes de captar todo o movimento, pois este é
contínuo e complexo. Os seres humanos são apenas uma parte desse movimento, que
começa antes dele e que vai além dele. Por isso, pontuamos que o conhecimento é
infinito.
O método revolucionário é o único capaz de abstrair as metamorfoses dos
processos de transformação da vida humana e de elevar o ser a um estágio de
compreensão do todo e das partes que
compõem os fenômenos.
Entendido que o pensamento dialético e a prática dialética consistem no mais
alto grau de aproximação da realidade, resta compreender na nossa reflexão o como
necessitamos também de um método revolucionário de socialização do conhecimento.
Vemos muitos educadores compilando pragmáticas formas de transmitir o
conhecimento, através da criação de novas dinâmicas e de outros artefatos, buscando
contrapor-se à ideologia dominante. Ora, esse é um grande e doce engano, pois a
tarefa de criar intelectuais orgânicos das classes dominadas é antiga. Porém, nossa
intervenção educativa o pode ser feita de forma a querer tornar o trabalhador um
grande conhecedor do movimento da sociedade desde as antigas formas de
organização até a contemporânea forma de exploração do capital, como se isso fosse
fácil. Os formadores que nos antecederam o teriam feito. Mas, podemos proporcionar
aos trabalhadores situações que explicitem às suas mentes a clareza de que é possível
mudar, e que é importante acreditar nessa possibilidade.
A vida leva as pessoas à necessidade de formação. Ninguém conscientiza
ninguém, contudo, quando se chega à consciência do conflito que se vive, a teoria pode
dar embasamento para as respostas que as contradições cotidianas colocam como
desafio a ser superado. Como disse Lenin "não há revolução sem teoria revolucionária".
76
A partir de então, a teoria pode tornar-se força material quando ela ganha a população,
quando se torna o pensamento das massas.
Portanto, não falamos da substituição das idéias burguesas pelas idéias dos
explorados, como se o processo de inculcação dessas idéias fosse resultar na
transformação social. Todavia, salientamos que a realidade material abre muitas vezes
janelas históricas para as transformações da história humana.
Porém, precisamos ter clareza de que o singular, o cotidiano é a base para as
ações revolucionárias, inclusive para a formação, que é uma ação específica, embora
não separada de outras ões; ela se realiza e se relaciona com as demais. Mas tem
um papel específico, que é o de formar teoricamente as pessoas. Dessa forma, ela
auxilia na luta dos oprimidos e dos movimentos sociais, contribuindo profundamente
para o salto da consciência.
Parte-se da percepção de que não se pode aplicar de qualquer maneira a
abordagem dialética da realidade. Para essa aplicação, é necessário que o movimento
esteja presente na consciência em todo o processo de socialização do conhecimento.
Na formação, da perspectiva do método dialético, o ponto de partida não é a realidade
imediata de cada indivíduo, mas sim a sua primeira forma da consciência, ou seja, o
senso comum.
Na abordagem dialética, o movimento parte do singular para o particular e daí,
para o geral. O conhecimento e a produção teórica da dialética se dão com base na
relação prática x teoria x prática. Todavia, nosso ponto inicial na atividade pedagógica é
o conhecimento. Lembrando de que a formação não é a produção do conhecimento; a
formação é a socialização do conhecimento.
A criação de novos conhecimentos pressupõe o conhecimento profundo do
conhecimento anterior - o que não temos condições de fazer na nossa atividade
educativa. É pretensioso de nossa parte acharmos que produzimos conhecimento, se
não conhecermos o que já é conhecido, em profundidade.
Nós partimos do pressuposto de que existe um conhecimento e uma teoria
acumulada. A questão que enfrentamos é como podemos traduzir essa teoria
acumulada para que ela possa ser compreendida pelas pessoas. Nós temos
necessariamente que concretizá-la, torná-la algo prático, concreto, compreensiva.
77
Nossa argumentação parte de uma concepção teórica - o que não significa uma
perspectiva idealista, uma vez que o conhecimento acumulado é proveniente de todo o
trabalho humano e vem sendo construído na História. Isso permite considerar que a
dialética do conhecimento não elimina o pressuposto materialista da História.
Dessa perspectiva, resultam três observações centrais de nossa metodologia:
a) Partir de uma certa teoria que precisa ser socializada. A forma de socializá-la
pressupõe que o indivíduo chegue ao educador com contradições e que seja
questionado;
b) Criar condições, situações, em que as pessoas falem o que pensam e entrem
em contradição com essas idéias;
c) Partir do singular, o que significa estabelecermos uma noção geral da coisa
em si. Por exemplo, a noção de fruta é um conhecimento singular, já a polpa,
a semente, sua consistência são conhecimentos particulares. A
particularidade leva à noção geral da fruta, no entanto, cada um pode ver de
um jeito próprio as suas particularidades.
Outro exemplo sobre a questão da singularidade pode ser o seguinte: estamos
num país capitalista, mas o capitalismo é uma abstração que deve ser analisada
profundamente. Do ponto de vista do particular vai ocorrer que um fenômeno que é
universal será tomado como uma realidade particular; no contexto da discussão sobre o
tema, haverá então uma ultra-generalização, a vivência de uma parte da realidade
como se fosse o todo.
Nesse sentido, no capitulo anterior pudemos esclarecer a concepção de que uma
pessoa assume idéias de outras através de vivências, de relações estabelecidas. Essas
pessoas, de forma geral, vivenciam uma parte da sociedade, nas suas mais variadas
formas e particularidades, e vão assim formando suas próprias consciências. Por isso, a
ideologia que encontra terreno fértil no cotidiano deve ser desvelada. Para isso, deve
78
ser explicitada: a ideologia precisa ser trabalhada para que os conceitos das coisas
possam ser reconstruídos.
Como fazemos isso? Desmascarando o que está oculto e as mentiras da
realidade burguesa. É o que veremos com a velha arte de fazer parir a verdade.
3.2 - MAIÊUTICA: DE SÓCRATES (A ARTE DE FAZER PARIR A VERDADE) AOS
DIAS ATUAIS. SOBRE A SUPERAÇÃO DO SENSO COMUM.
Antes de falarmos sobre a maiêutica, é importante sinalizarmos que o
conhecimento e a prática deste método educativo tem sido utilizado pelo NEP (Núcleo
de Estudos de Educação Popular 13 de Maio), desde sua criação. A utilização desse
método como integrante do cotidiano do profissional e como fonte de pesquisa é fruto
do convívio militante junto a esse Núcleo.
O 13 de Maio NEP, nasce juntamente com o movimento operário da Grande
São Paulo. Foi organizado em 1982 como uma entidade de apoio a grupos de
trabalhadores que, naquela época, buscava formas próprias de organização para atuar
na realidade brasileira, no sentido de uma democratização profunda de nossa
sociedade. Nossa atenção se voltou inicialmente para as oposições sindicais, que
emergiam em contraposição à estrutura sindical oficial, que não permitia uma
representação e uma ação que viesse ao encontro às necessidades dos trabalhadores.
Ao mesmo tempo, apoiávamos associações de trabalhadores em seus bairros e
elaborávamos subsídios e recursos para práticas educativas, como cartilhas e
audiovisuais.
A ação do NEP, neste primeiro momento, concentrava-se na região da Grande
São Paulo, local onde ressurgia um vigoroso movimento sindical que impulsionava
outros movimentos sociais. Pouco a pouco, associado a este trabalho de organização
de base, foi se estruturando nossa iniciativa no campo da formação. Com a criação da
CUT, em 1983, o NEP 13 de Maio priorizou sua construção, fundamentalmente na
Secretaria de Política Sindical (que acompanhava eleições sindicais e dava apoio às
oposições) e na Secretaria de Formação. Esta etapa inaugurou um novo ciclo para
79
nossa entidade e ampliou seu leque de ação. Formavam-se novas diretorias sindicais e
surgiam novas exigências, tanto ao nível da organização como da formação e produção
de subsídios. Neste momento, nossa pequena equipe já recebia pedidos de outras
partes do Estado de São Paulo e do restante do país, impondo alterações em seu
funcionamento e a necessidade de definições de prioridades, uma vez que se
estruturavam sindicatos com uma nova proposta de organização, consolidava-se a
CUT, fortaleciam-se os movimentos populares e emergia um forte movimento de base
cristã, através das CEBS (Comunidade Eclesiais de Base) e Pastorais.
A nossa entidade, respeitando o princípio da autonomia das organizações e
grupos, passou a representar, cada vez mais, um papel de apoio e de assessoria a
estes movimentos. O 13 de Maio se estrutura então como uma entidade com a
característica de orientação da classe trabalhadora na sua luta contra, não o
sindicato de Vargas e o regime militar, mas de apoio àquelas situações que mudariam
de fato com a mudança daquele modelo sindical, que era o modelo que sustentava
aquela realidade. Com esta tarefa em mãos, foram organizados inúmeros cursos (que
são momentos de reflexão sobre os aspectos da luta) e materiais de apoio como
audiovisuais e produção escrita. Devemos acrescentar que os cursos formulados não
tratavam os trabalhadores como pessoas limitadas e incapazes, embora o se
pretendesse formar PHDs, mas militantes, com a tarefa de mudar e, para isto,
necessitavam “ver” o mundo de forma mais sistematizada e contra a lógica do capital,
para tanto, o método adotado foi a dialética marxista, tendo como mediação a maiêutica
socrática.
Mas foi no estabelecer a orientação na sua forma de atuação que o 13 de Maio
teve a felicidade - não apenas na criação de cursos, nem na elaboração de seu
diversificado material - de ampliar sua analise das condições da classe, de suas
carências e dúvidas e, a partir daí, estabelecer assuntos, conceitos e formas que
deveriam ser debatidas. Isso lhe permitiu construir conceitos que caracterizavam a sua
forma de existir, respondendo, não apenas aos anseios dos formadores, mas também
às necessidades de classe que se faziam presentes naquela ocasião.
80
O cerne daquela que poderíamos chamar de principal característica da educação
popular praticada pelo 13 de Maio é uma técnica que nos foi apresentada por Humberto
Bodra (criador do programa de monitores), por ele apelidada de "saca-rolha".
No início tratávamos exatamente desta forma, como uma simples técnica que
consistia na prática de ir conduzindo o seminário através de perguntas que
envolvessem os participantes. Ficamos todos muitos surpresos quando fomos
informados pelo próprio Humberto de que aquele alegre procedimento tinha
aproximadamente dois mil e quatrocentos anos. Nós, que nos orgulhávamos de nossa
convicção marxista e de atuar a partir da dialética e dos conteúdos marxistas os
principais elementos de nosso programa de formação tivemos que assumir que, no
que diz respeito à forma, nossa principal referência era, ninguém menos, que Sócrates.
A discussão da maiêutica é algo escasso e não temos bibliografias que abordem
o assunto na profundidade necessária. Muito embora nosso grupo tenha utilizado o
método, um espaço ainda não percorrido entre nossas discussões metodológicas e
nossa prática educativa. Quem participa de alguma de nossas atividades, seja no
programa de cursos, seja no programa de formação de monitores, identifica uma
característica fundamental: o fato de o monitor ir construindo os conceitos em diálogo
com os participantes. Nesse sentido, não se trata mais da forma originária da Maiêutica
como concebia Sócrates; com o objetivo político de possibilitar a reflexão crítica e o
avanço na direção de uma consciência de classe, apenas parte da maiêutica
individualista de Sócrates para um processo de superação do senso comum numa
perspectiva coletiva. Tal procedimento tem como premissa o desvelamento da ideologia
dominante e a contribuição para o processo de formação do homem crítico e consciente
de seu papel na luta de classes.
Muito já foi falado sobre essa forma de desenvolvermos nossas atividades.
Alguns a identificam com o construtivismo, outros consideram que é a mais fiel
expressão da "concepção metodológica dialética". Conhecemos muito pouco da
concepção construtivista para aceitá-la ou negá-la, o que já é em si uma boa pista de
que não é nesse campo que baseamos nossa prática. Da mesma forma, já expusemos
que a concepção dialética da realidade permeia nossas discussões, contudo, a
aplicação do método, em nossa prática, é mediada por essa técnica.
81
O que supúnhamos ser apenas uma técnica de educação popular era na
verdade a velha "maiêutica socrática": cujo princípio consiste em perguntar a partir de
definições dadas. A palavra maiêutica vem do termo grego Maiêutiké, que significa
"parto". Sócrates teria dito, segundo Platão, que aprendera sua arte com sua mãe que
era uma parteira e que ele fazia o mesmo, que com a verdade. Vamos conhecer um
pouco de Sócrates antes de falar de seu método.
Numa sociedade que cultuava a beleza, Sócrates destoava com uma feiúra sem
limites. Assim o descreve Marilena Chauí (2002): "rosto chato, nariz grande e aberto,
olhos de boi saltados, baixo, lábios grossos, mal vestido, sempre enrolado num manto
pouco limpo e gasto... não tem bons modos de chegar na hora, não é pobre, mas vive
como um desvalido, anda descalço, mas freqüenta a alta sociedade. Isto não o impedia
de ser disputado pelos jovens que queriam seu amor, pois, como sabemos, entre os
gregos o verdadeiro amor era entre os homens. Dizem que gostava de meninos, mas
adorava filosofar entre as prostitutas". (CHAUÍ, 2002, p. 137-138).
Faz parte da descrição de Sócrates também que ele não tinha o dom da oratória,
mas que ao falar "paralisava o adversário e apaixonava o aliado". Sócrates nunca
escreveu nada. Dizia que a escrita é muda e que sua mudez cristaliza idéias como
verdades acerbadas e indiscutíveis. Xenofonte descreve Sócrates andando pela rua e
na Ágora, perguntando aos transeuntes o que é a virtude, a justiça e o bem, deixando-
os enfurecidos e desesperados à medida que refutava cada uma das respostas que lhe
ofereciam, provando que eram ignorantes e, pior, nem sabiam que o eram.
A sua maior máxima é o sabido "conhece-te a ti mesmo". Oráculo escrito na
porta do templo de Apolo Delfo. Quando foi consultar o oráculo de Delfos, teria ouvido
de seu Dalmon que ele, Sócrates, era o homem mais sábio entre todos. Contam os
relatos que Sócrates sai, então, em busca daqueles que julgava ser os mais sábios,
perguntando-lhes o que era a sabedoria e descobrindo que estes tinham uma sabedoria
nula. Descobriu dessa forma que ninguém sabe verdadeiramente, nem reconhece isso.
Daí deriva a sua segunda afirmação mais famosa... "só sei, que nada sei".
Partindo desses dois princípios, Sócrates irá subverter toda filosofia grega. Para
ele, a filosofia não seria mais a pergunta ou conjunto de respostas. Mas o espaço entre
82
a pergunta e a resposta, redefinindo o conhecimento, dessa forma, como uma
constante busca.
Por isso Sócrates vai se diferenciar dos sofistas. Para estes o conhecimento
deveria ser transmitido por aquele que julgava ter o saber na forma de monólogos ou de
aulas onde apenas o sofista falava. Os sofistas também eram céticos, pois acreditavam
que, assim como suas próprias práticas demonstravam, a verdade não passava de uma
opinião definida com tenacidade; para tanto usavam e ensinavam a retórica. Dessa
forma não haveria porque buscar a verdade, pois não existiria. Para transmitirem seus
ensinamentos, usavam e ensinavam a retórica.
Sócrates acreditava na possibilidade da verdade e a diferenciava da opinião.
Para ele a verdade está em cada um, mas a verdade fica obscurecida pelo saber que
cada um tem das coisas e que julga ser verdadeiro. Esse conhecimento superficial que
os indivíduos tomam pela verdade é a opinião, ou apenas uma imagem, ou ainda,
preconceitos sedimentados pelos costumes.
Daí a comparação de seu método com o trabalho das parteiras. Ele se
considerava um "parteiro de almas", sendo que seu papel era o de auxiliar o
nascimento da verdade através do diálogo (Dia, através – Logos, palavra ou razão).
Na verdade, a Maiêutica é apenas uma parte do método socrático. Em sua
primeira aproximação Sócrates convida à busca da verdade através de uma exortação.
Numa segunda parte do diálogo, Sócrates vai indagando ao interlocutor até chegar ao
que ele chama da "boa questão". Essa parte é subdividida em duas sessões: primeiro
Sócrates comenta as respostas demonstrando que são preconceitos, opiniões oriundas
da percepção aparente das coisas através dos sentidos e faz isso usando a técnica da
ironia, visando quebrar a solidez aparente do preconceito; depois o filósofo continua
com as perguntas, que agora sugerindo certas direções para que o interlocutor
possa construir a definição do conceito da coisa. É nessa última parte do método que
Sócrates realiza a maiêutica, ou seja, o parto do conceito verdadeiro.
Devido às característica do método socrático, Aristóteles o considerava um
método indutivo, pois busca a verdade através de casos particulares, ou, em outras
palavras, busca o conceito geral, ou a lei, a partir de casos particulares.
83
Os dois elementos principais do método socrático estão presentes em nossa
técnica de educação popular: o diálogo e a maiêutica. No entanto, no contexto da
educação popular, o método socrático sofre mediações significativas que o afastam de
sua forma original. Em primeiro lugar poderíamos dizer que, se concordarmos que, na
primeira aproximação ao conhecimento se encontra algo que ocupa seu lugar e que
este algo é o conhecimento baseado na percepção aparente das coisas, a opinião ou o
que nós definiríamos como "senso comum". Em sua reflexões Gramsci afirmava que
não poderemos retificar a afirmação de que a verdade está em cada um, como uma
essência a ser descoberta’. Nesse ponto, também Hegel quando afirma que a verdade
está no todo e que é exatamente essa percepção parcial de cada um, percepção não
apenas aparente, mas particular, que impede a compreensão da totalidade.
Essa análise remete-nos à conclusão de que na verdade usamos a maiêutica
como técnica para fazermos o parto da verdade, tendo como ponto de partida o senso
comum. Em nosso método de educação popular, realizamos uma fusão de maneira que
a maiêutica - que para Sócrates constitui a segunda parte do método e que leva ao
parto do conceito verdadeiro - se funde com a primeira parte: o parto do senso comum
é feito, assim, através de uma combinação da "ironia" com a maiêutica.
A esse primeiro momento do diálogo educativo poderíamos chamar de dialética
negativa, quando o monitor faz emergir o senso comum para colocá-lo em contradição
lógica. No segundo momento, de dialética positiva, o monitor trata da construção do
conceito, ou seja do conhecimento. Acontece que no nosso caso, partimos do
pressuposto de que o conceito existe e que a tarefa educativa é tarefa
eminentemente de socialização de conceitos. Ainda nesse caso, o diálogo é um meio
de construção do conceito. Mas, caso se torne sua proposta original, seria melhor falar
em reconstrução do conceito. Daí, a impressão de vários pedagogos que
participaram de nossas atividades de que nosso método seja de cariz construtivista.
Na verdade, aqui está posta uma questão um pouco mais complexa que liga
nossa concepção metodológica a uma certa compreensão do processo de construção
da consciência. Para nós, ninguém assume os valores do outro simplesmente através
do discurso ou da simples transmissão de valores novos para substituição dos antigos.
Acreditamos que os indivíduos assumem valores que constituirão sua concepção de
84
mundo através das relações que assume na sua vida no interior de um processo de
construção de identidade. Uma pessoa assume valores de outrem na medida em que
são estabelecidos nculos que permeiam o processo de identidade, ou dito de outra
forma, o vinculo é a ponte pela qual um valor de uma pessoa passa a ser partilhado por
outra.
Descrevemos esse fenômeno em nossas reflexões sobre o processo de
consciência, no qual afirmamos que uma pessoa forma sua consciência inicialmente a
partir das relações imediatas que estabelece com as outras pessoas e coisas situadas
fora dela. O senso comum seria exatamente a primeira forma de consciência, formada
por valores assumidos de maneira ocasional e arbitrária a partir da vivência imediata
das relações do indivíduo. Uma vez que o indivíduo se insere em relações sociais
determinantes, ele acaba por assumir uma consciência atribuída, construída pelo outro,
no caso, pela concepção de mundo da classe dominante. No entanto, toma essa
concepção como sua, até porque não são simples idéias, mas valores enraizados em
cargas afetivas.
O indivíduo orienta sua vida pelos valores que julga serem seus e que
correspondem à sua vivência imediata e particularizada de mundo. Dessa maneira, é
impossível atacar diretamente o senso comum, pois isso apenas o colocaria mais
ferrenhamente apegado aos seus juízos. Partimos do pressuposto de que "esforço vão
é querer trazer ao entendimento quem imagina que possuiu entendimento" o que, no
caso do senso comum, é exatamente o que ocorre.
A primeira tarefa, portanto, da educação popular é fazer brotar o senso comum
como afirmação e colocá-lo em contradição, questioná-lo - não diretamente, mas
através do diálogo e da maiêutica - para que o educando veja a sua afirmação como
algo externo que saiu dele e que entrou em contradição lógica. Isso fica bastante
evidenciado, por exemplo, na primeira parte do seminário "Como Funciona a
Sociedade", que estaremos apresentando no próximo capítulo.
Uma vez parido o senso comum, abriu-se o espaço que antes era ocupado por
ele para a reconstrução do conceito. Mas esse conceito não pode ser uma simples idéia
que ocupa o lugar da antiga - pois assim se correria o risco do conceito simplesmente
se somar ao senso comum, como mais um dos elementos que compõem sua unidade
85
incoerente. A reconstrução do conceito parte da simulação de uma relação vivida para
que se estabeleça o vínculo e, através dessa "vivência", possa ser apresentado o novo
conceito como um valor a ser assumido pelo indivíduo.
O vinculo educativo é algo que o educador busca desde o começo do método
através do diálogo e do envolvimento do grupo. O grupo é a peça chave da dinâmica
educativa, pois ele permite que o indivíduo reproduza na situação grupal o processo de
sua identidade e veja, no produto do grupo, a manifestação de si mesmo.
Recria-se dessa forma a base da relação que pode gerar a introjeção de novos
conceitos. O método se completa com o que se chama de ‘dinâmicas’, que nada mais
são que simulações ou, numa definição mais precisa, vivências de situações
psicodramáticas que tornam possível que o conceito seja primeiro vivenciado para
depois ser definido.
Dessa forma, em nosso seminário básico, por exemplo, vivenciamos a dinâmica
da "fábrica" para depois revelar o conceito de mais-valia ou, na segunda parte, primeiro
vivenciamos uma sociedade recriada na "ilha" para depois chegar às definições de
"relações sociais de produção", de "classes", de "Estado" e de "ideologia".
Cabe agora, demonstrar como o serviço social pode apropriar-se da técnica em
epígrafe e da sua aplicação na prática educativa do profissional Assistente Social.
86
QUARTO CAPÍTULO
MAIÊUTICA E SERVIÇO SOCIAL: DA PRÁTICA INDIVIDUAL À POSSIBILIDADE DA
UTILIZAÇÃO COLETIVA
4.1 - O PONTO DE PARTIDA: TRABALHO E FORÇA DE TRABALHO DO
ASSISTENTE SOCIAL
No capítulo anterior, esclarecemos não só sobre a maiêutica, mas também
apontamos as formas de sua superação no processo de uma ação educativa de
formação social. Cabe ressaltar que o trabalho demonstra o caráter político de nossa
proposta, contudo, tal modo de proceder, ou seja, a utilização dessa técnica
corresponde a outro tipo de prática educativa que não tem imediatamente por objetivo
contribuir para o processo de formação da consciência de classe.
Em nosso caso, temos claro que a intervenção do profissional na direção da
educação popular deve ter caráter ético e político, com objetivos consistentes e
definidos. Tal procedimento revela não o grau de entendimento da dimensão
socioeducativa, como, evidencia o cerne necessário da prática dos trabalhadores
sociais.
Frente ao pressuposto acima, buscamos apresentar neste capítulo, como
compreendemos a maneira como o serviço social pode apropriar-se dessa forma
revolucionária de abordagem, que possibilita ao profissional assistente social criar
espaços menos alienados nas esferas das instituições capitalistas em que opera. Para
tanto, a priori, apreendemos a necessidade de refletir sobre o trabalho do assistente
social no processo de emancipação humana.
Nesse sentido, consideramos que o trabalho do assistente social está inserido no
contexto da produção social capitalista e tal atividade corresponde ao conjunto da força
de trabalho coletivo de produção direta ou indireta do capital.
Para Marx, a palavra ‘trabalho’ designa uma gama bastante ampla de formas
possíveis de atividade humana. Na medida em que se refere ao trabalho como
87
atividade concreta, através da qual os homens, modificando a natureza, produzem seus
meios de subsistência e, através disso, sua própria vida material, acrescenta que essa
maneira de produzir não deve ser vista como simples reprodução da existência física
dos indivíduos. Trata-se, antes, de um modo de manifestar a vida, a sua maneira de
viver e maneira de ser. Sua maneira de ser conjuga-se à sua produção, tanto àquilo
que é produzido como ao modo pelo qual produzem.
O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua
produção. Aqui, o trabalho assume um sentido totalizante e é entendido sob uma dupla
dimensão: de um lado, a relação homem e natureza, onde o trabalho humano
transforma a natureza e marca com sentido humano as matérias naturais: de outro lado,
as relações homem-homem, que o as relações que se estabelecem entre eles para
organizar a atividade produtiva comum.
Podemos dizer que é nessa dimensão da relação homem-homem que se
estabelece o caráter do trabalho do assistente social, o qual está intrinsecamente no
cerne das relações sociais de produção capitalista. Portanto, é um trabalhador que tem
em sua práxis todo um processo ideológico determinado pela luta de classes. Assim,
em primeiro plano, esse trabalhador apresenta-se como parte integrante do movimento
do capital para manter inalteradas as estruturas econômicas e as relações de poder no
âmbito da superestrutura.
Para esse trabalhador, é fundamental a compreensão de tais relações,
principalmente as transformações no mundo do trabalho que vêm acarretando
profundas conseqüências para a sobrevivência da classe trabalhadora, inclusive dele
próprio. As demandas trazidas de forma caótica e desagregada pela população devem
ser sistematizadas, elaboradas teoricamente e devolvidas de maneira clara e objetiva
para a organização de estratégias de luta de classe.
Inserido na divisão sócio-técnica do trabalho, o assistente social vem cumprindo
o papel de intelectual nas relações de poder. Alguns, levando os indivíduos a aceitar
seu destino de subalternidade, preservando os mecanismos de dominação e
reprodução ideológica; outros conscientes de seu papel político no processo coletivo de
libertação do homem, desenvolve ações no sentido de sua desalienação, o que
88
demonstra o compromisso que os profissionais vão estabelecendo frente à luta de
classes.
A análise dessas funções e a indicação de sua importância para a relação de
poder é um dos fulcros dos trabalhos de Antônio Gramsci. Em virtude da vinculação dos
intelectuais à posições de classe, a discussão da noção de intelectual é
constantemente encaminhada em termos de intelectual orgânico e intelectual
tradicional. Sem entrar no detalhe da questão, é importante considerar a definição de
Gramsci, segundo o qual os intelectuais modernos o os que dominam, em função do
próprio desenvolvimento da indústria e das forças produtivas, ou seja, o tipo técnico de
fábrica e engenheiro: o velho tipo de intelectual era o elemento organizativo de uma
sociedade predominantemente camponesa e artesanal.
A indústria moderna introduziu um novo tipo de intelectual: o organizador técnico,
o especialista em ciência aplicada. Nas sociedades em que as forças econômicas se
desenvolveram em sentido capitalista até chegar a absorver a maior parte da atividade
nacional, é esse segundo tipo de intelectual o que prevaleceu, com todas as suas
características de ordem e disciplina intelectual. Portanto, a determinação do lugar dos
intelectuais não privilegiou apenas as superestruturas ou a ideologia: ela parte daquilo
que é específico ao modo de produção, às forças produtivas modernas: o aparelho de
produção.
Entretanto, se é a partir das transformações ao nível do aparelho de produção
que se pode perceber a emergência dos novos tipos de intelectuais, nem sempre a
expansão desses tipos é determinada pela produção: no mundo moderno, a categoria
dos intelectuais ampliou-se de modo inaudito. Foram elaboradas pelo sistema social
democrático burguês, importantes massas de intelectuais, nem todas justificadas pelas
necessidades sociais de produção, ainda que justificadas pelas necessidades políticas
do grupo fundamental dominante.
Desse modo, é possível pensar nos intelectuais como indivíduos que ocupam
funções-posições de supervisão e comando e que, de acordo com as necessidades da
produção ampliada do capital, podem vir a constituir uma massa social que exerce
funções de organização no sentido amplo: seja no domínio da produção, da cultura ou
da administração pública.
89
Assim entendida, fica claro que a ampliação de noção de intelectual operada por
Gramsci prende-se ao fato de o intelectual ser definido no conjunto do sistema de
relações no qual tais atividades (intelectuais) e, portanto, os grupos que as
personificam, encontram-se no conjunto geral das relações sociais. Como
conseqüência dessa ampliação, o conceito de intelectual passa a abranger desde
produtores de ideologia até os funcionários de Estado, passando pelos empregados
técnicos. O que une esses diferentes intelectuais e o que fundamenta essa ampliação é
o fato de que exercem concretamente uma função que os caracteriza especificamente:
“Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer; mas nem todos os homens
desempenham na sociedade a função de intelectuais”. (GRAMSCI, 1968, p. 07).
A discussão precedente evidencia a seguinte questão: qual a necessidade
emergente, na sociedade capitalista, dessas funções? A pergunta pode ser
respondida se pensada dentro da relação Estado-sociedade, ou seja, entre um poder
político constituído e a dinâmica das classes sociais, numa formação social capitalista.
É dentro dessa discussão que frisamos o trabalho intelectual do assistente social e a
ideologia que permeia as relações cotidianas, impondo condições muitas vezes
estruturantes nas intervenções profissionais. Intervenções estas que se dão no interior
de um determinado tipo de Estado.
O estado capitalista surge como a esfera das superestruturas jurídico-políticas
para a reprodução das relações de produção, a partir da subsunção real do trabalho ao
capital. Ou seja, embora o processo de produção imediato engendre no seu próprio
movimento as condições da auto-reprodução do capital, definindo no seu interior as
posições que caracterizam as relações de produção capitalista, a reprodução ampliada
de capital coloca a questão da reposição, sempre problemática, das condições sociais,
isto é, condições materiais e jurídico-politicas da própria acumulação. Assim, se o
primeiro processo define as classes sociais básicas no capitalismo, definindo a
contradição inerente a sua existência, a produção em seu conjunto propõe um
problema para a continuidade da acumulação ampliada do capital, que vai implicar na
emergência de novos segmentos das classes sociais, com níveis distintos de atuação e
participação, e que acompanham a complexificação do processo de produção geral. A
reprodução ampliada do capital, na sua dinâmica intensiva e extensiva, diversifica
90
ramos e setores da produção e redefine constantemente as relações sociais, o que
significa que amplia também o âmbito de sua contradição fundamental para outros
segmentos de classes e frações de classe. O que nos interessa é que essa ampliação
instaura dimensões também amplas e mais complexas na esfera política, ou seja, ao
nível da constituição do poder político. Essas mudanças para se concretizarem
precisam da ratificação do Estado. Pode-se dizer então, que com essa argumentação
tem-se a proposta, a questão de uma redefinição das funções do Estado no
capitalismo, funções estas que Gramsci procura abarcar através do conceito de
aparelhos de hegemonia.
O conceito de hegemonia, considerado nesse contexto, implica um duplo sentido
nas relações Estado-classes sociais: a direção e a dominação. Segundo Gramsci
(1984), a supremacia de um grupo social se manifesta de duas maneiras: como
dominação e como direção intelectual e moral. Um grupo social exerce sua dominação
sobre os grupos adversários, aos quais tende a liquidar e a submeter, mesmo se
necessário pela forças das armas. Desse modo, Gramsci tem razão ao conceber que o
Estado deixa de ser visto apenas como violência organizada e concentrada da
sociedade ou comiexecutivo da classe dominante, mas também como instaurador de
uma ordem jurídica e repressiva que salvaguarda certas normas fundamentais à
existência do capitalismo e passa a ser também o inspirador da disseminação do
“consenso”. Em outros termos: ele penetra no interior da formulação dos interesses de
cada grupo, tentando desarticular uma visão de mundo” autônoma e orgânica a cada
um dos grupos e classes sociais potencialmente adversários, e procura rearticulá-la sob
a égide de uma “visão de mundo” proposta como universal.
Para Gramsci, é através dos intelectuais que se realiza a íntima interpenetração
entre a estrutura produtiva e a superestrutura que, como foi dito, é assim
designada na medida em que ocupa uma função-posição no mundo da produção
capitalista. Em nossos termos, uma posição de saber e poder determinada, sendo,
simultaneamente, nessa qualidade, um comissário do poder político.
Quando agente dos aparelhos de hegemonia, o assistente social, como
intelectual, esintegrado à idéia de expansão de uma classe, a qual depende de um
consenso espontâneo aceito pelas massas da população, em relação à orientação
91
impressa à vida social pelo grupo fundamental dominante. As práticas desses
profissionais na ordem vigente devem expressar uma orientação centrada no que se
chama ideologia dominante. Contudo, o assistente social não está necessariamente
confinado a obedecer aos ditames sutis e velados dessa ideologia; ele pode, como
agente educador e formador das classes populares, intervir no processo de consciência
das massas através de uma prática educativa de emancipação.
Para nós, assumir esta última posição é a dimensão mais significativa do
trabalho do assistente social; não pode ocorrer de qualquer maneira, sem nexo com a
verdadeira realidade vivenciada pelas classes subalternas. Portanto, ele precisa de
uma metodologia que lhe permita colher das pessoas aquilo que elas trazem como
senso comum, de forma desagregada, confusa e alienada para devolver a questão de
maneira sistematizada e clara. Essa prática consiste em assumir não uma teoria
social, como também uma metodologia capaz de viabilizar com que o próprio sujeito
faça a trajetória que vai do senso comum para uma visão crítica da vida social.
A maiêutica em si como técnica educativa não leva o individuo a interiorizar
novos valores para o avanço na consciência. Entretanto, traz subsídios para a
construção de uma forma de realizar um trabalho de formação crítica das pessoas.
Temos claro que nem toda técnica educativa contém esse processo que leva à
criticidade, o que existe na maiêutica; sua metodologia sempre exige a presença do
educativo e do movimento do pensamento.
Em um atendimento onde o assistente social utiliza reflexões contundentes, de
certa forma se está aplicando parte do processo da maiêutica, principalmente quando
encaminha a reflexão no sentido de questionar certas atitudes e ações dos indivíduos
ou discute determinada realidade social. Mas, na utilização da maiêutica é importante
superar sua proposta original de apenas questionar as pessoas; é preciso introduzir um
sentido político nesse processo, o que leva à superação de sua gênese. Consideramos
que esse procedimento é possível na práxis do serviço social.
92
QUINTO CAPÍTULO
O DESENVOLVIMENTO DO MÉTODO: APARÊNCIA E ESSÊNCIA – HAJA MAIS
VALIA...
5.1 – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A PESQUISA.
Para a realização deste capítulo, a obra de Baptista (2006) configurou-se como
base teórica para o entendimento e explicação do processo de nossa investigação.
Portanto, dela extraímos os elementos necessários que nos permitem apresentar o
sentido da pesquisa.
Da referida obra “A investigação em Serviço Social”, compreendemos que o
objeto de pesquisa com o qual trabalhamos, sempre esteve presente em nossa prática.
Assim, não houve uma escolha do tema e os caminhos já estavam postos no decorrer
de nossa vivência histórica nessa profissão.
Ao relatarmos o trabalho com os adolescentes e seus familiares, bem como o
contexto que tem permeado a realidade da atuação profissional, notamos que tal
pesquisa vem sendo realizada por nós e os resultados têm sido evidenciados no
cotidiano, com a demonstração de novas ações de intervenção.
Contudo, não nos eximimos de pontuar o histórico de construção desta pesquisa
em ação que nasce justamente da práxis de intervenção com definições claramente
éticas, políticas, sociais e técnicas, com objetivos contundentes de transformação e
superação da realidade de exploração social.
Temos em Baptista (2006, p. 85) que:
O esforço da investigação se dirige ao privilegiamento do cotidiano dos sujeitos,
procurando construir caminhos que levem a gestar práticas em patamares
superiores de conhecimento e de socialidade e que sejam capazes de romper
com a estrutura técnico-burocratica institucional e com a cultura política que a
sustenta, ambas freqüentemente impregnadas de uma herança conservadora
com reflexos compensatórios e tutelares que legitimam a subalternidade,
naturalizando a opressão, a desigualdade e a violência em suas diferentes
93
formas de aparecer. A pesquisa-em-ação-da-intervenção profissional elabora
transições, desenvolvendo um conjunto de atividades pelas quais os
profissionais/ pesquisadores transformam as normas, as práticas preexistentes,
as estruturas organizacionais, tendo em vista mudanças na adequação entre as
necessidades a que m que dar respostas e as contrariedades do contexto.
Procura repor em outras bases a dimensão política da prática profissional, por
meio da interlocução usuários / instituições, considerando que é nessa dinâmica
que se dão as correlações de forças entre os segmentos, que irão construindo
as possibilidades de trabalho.
A pesquisa-em-ação-da-intervenção profissional vem de encontro à necessidade
de dar respostas consistentes às demandas trazidas no cotidiano do profissional. Assim
foi conosco, entendendo a ação prática como ponto de partida e chegada para um
processo de rompimento com imediatismo. Para tanto, a investigação teórica
apresenta-se como o instrumento capaz de viabilizar outras formas de intervenção, bem
como de aprofundamento do conhecimento das leis gerais do fenômeno estudado.
Por outro lado, a pesquisa em questão está intrinsecamente relacionada com a
posição política do pesquisador. Consideramos que uma prática profissional esvaziada
de conteúdo teórico, crítico e metodológico não passa de uma prática imediatista,
utilitarista e mecanicista. Sem um processo de pesquisa que contenha uma análise que
desvele as entranhas da realidade caótica e perversa que oprime o homem, sem que
haja uma proposta libertadora de intervenção crítica, não teremos um avanço no como
e no fazer profissional.
Este tipo de pesquisa, que se relaciona diretamente com a prática interventiva
do profissional que se quer crítico, deve em seus pressupostos definir-se ética e
politicamente. Sua definição ética informa a clarificação do papel do técnico que
a opera e de seu posicionamento diante das relações da sociedade. Sua
definição política se faz necessária porque este tipo de investigação está
relacionado às apostas e às ações profissionais sobre a realidade, no sentido
de sua mudança ou de sua transformação, o que o leva a incluir-se na arena de
disputas entre interesses diversos que movem as relações sociais, implicando
poder, pactuação e decisões. (BAPTISTA, 2006, p. 72).
Prova disso, temos a considerar que a pesquisa, ou melhor, todo o processo de
investigação significou, na realidade, um aprendizado e uma apropriação do saber por
todos, revelando-se que a teoria se concretiza quando se torna meio e instrumento para
a modificação ou transformação da vida real.
94
O caminho para a investigação científica traz no seu bojo um processo de difícil
compreensão, em que a relação com o objeto a ser investigado pode indicar várias
direções que possibilitam o movimento necessário para sua realização, bem como pode
significar a sua paralisação. No entanto, a pesquisa em ação tem a vantagem de logo
apresentar as reações práticas de uma intervenção. O conhecimento vai se
transformando paralelamente com a vida real.
O que distingue esse tipo de pesquisa de outras é, basicamente, o fato de
constituir a forma de investigação que mais imediatamente responde às
questões postas pela prática profissional, abrindo possibilidades concretas para
a renovação da ação. Contribui também para superar o senso comum, o
pragmatismo, o normativismo e o formalismo, apreendendo o movimento da
sociedade e as particularidades dos sujeitos que o alavancam, na direção de
finalidades determinadas. (BAPTISTA, 2006, p. 72).
A todo tempo nossa maior preocupação era garantir uma dinâmica de trabalho
com o desenvolvimento crítico das pessoas, de maneira a efetivar um fazer profissional
com bases teóricas capazes de superar o senso comum. Para tanto, a técnica
educativa que sobressaía e que sempre fez parte de nossa prática correspondia à
maiêutica. Assim foram construídos encontros (ou oficinas) que tinham em seu bojo o
questionamento da dominação capitalista.
5.2 - A PESQUISA DE CAMPO: A APROPRIAÇÃO DA MAIÊUTICA NA PRAXIS DO
SERVIÇO SOCIAL
Para Baptista (2006), no decorrer da história dos profissionais assistentes sociais
ocorre um acúmulo de conhecimentos teórico-científicos, acumulando um patrimônio
específico de técnicas e de instrumentais. Constitui-se então um saber, produzido no
âmago da profissão, que vai desde as ações individuais dos profissionais à construção
coletiva desse saber.
Não poderia ser diferente o que apresentamos nesse trabalho; trata-se de uma
experiência acumulada durante anos de prática no acompanhamento de adolescentes
95
em conflito com a lei. Nesse sentido, é através do relato dessa prática que buscaremos
demonstrar o processo em que vamos apropriando e transformando o método
socrático.
Em meados do ano de 1998, assumimos o trabalho com 80 adolescentes e seus
familiares na Cidade de Taubaté, onde atendíamos numa pequena sala na rodoviária
velha. Não havia qualquer tipo de recurso e tudo necessitava ser construído. Ali iniciava
o desafio de um técnico diante de uma realidade intensa, permeada pela cultura da
indiferença e da desresponsabilização do Estado frente à política de atendimento a
esses adolescentes.
Por outro lado, não podemos nos eximir de colocar que, além do contexto social,
tínhamos a “colaboração” de uma técnica, também assistente social, que tentou nos
moldar à sua velha forma de atendimento, pautada na mais clara expressão do que
Gramsci chamou de visão conservadora, bizarra e desagregada. Era uma verdadeira
prática do vigário, com direito a sermões e absolvições do ato cometido pelo
adolescente. Como a sorte pode piorar, essa técnica mais tarde veio a se tornar
coordenadora, dando origem a um período de dinastia no posto.
Tudo bem! Hegel falava que na história humana teríamos muitos momentos
em que seríamos governados por meliantes, que dirá na sociedade capitalista, onde a
prostituição é deliberada no cerne das relações de poder. Dessa forma, tivemos ainda
alguns personagens na direção que vieram completar o cenário da festa capitalista, ou
seja: um “palhaço”, um “caubói” e algumas “colombinas”.
Em contrapartida, tivemos companheiros valorosos. Cito, por exemplo, o técnico
Analto Galvão, fundador da Liberdade Assistida Comunitária no Vale do Paraíba. Foi
um grande aliado nas discussões, percorrendo durante um período os mesmos
caminhos e trajetórias, como também, e sobretudo, as mesmas perseguições políticas.
É importante registrar essas passagens, pois têm forte influência no nosso
processo de formação política e, conseqüentemente, no fortalecimento cada vez maior
de nossa convicção frente à necessidade de contrapor o racionalismo tecnocrático ao
trabalho com os adolescentes. Por isso, raros foram os momentos em que fomos
reconhecidos na Fundação Casa. Dentre esses momentos podemos citar o período em
96
que trabalhamos na Cidade de Guarulhos, onde os técnicos e a coordenadora
compreenderam nossa intransigência em enfatizar o aspecto socioeducativo.
Toda essa vivência implica em concluirmos que a transformação da realidade, e
até mesmo da vida pessoal, está condicionada ao trabalho. É no processo de trabalho
que o homem transforma o meio em que vive, como também se transforma, sendo esse
movimento o fator que possibilita ao ser humano a superação de suas próprias
criações.
No tocante ao trabalho direto com os adolescentes, podemos citar que nossa
prática sempre teve como pilar a filosofia Makarenkiana, determinando em todos os
sentidos as intervenções técnicas e pedagógicas. Era o contraponto para resistirmos ao
controle social e repressivo do Estado capitalista.
Mas como transmitir e proporcionar um espaço nessa direção? Como efetivar o
protagonismo dos adolescentes frente à realidade atual, numa perspectiva
Makarenkiana? Isto foi um processo gradativo que vivenciamos a cada dia de trabalho
com esses notáveis seres com inesgotáveis potencialidades.
A cada entrevista identificávamos a necessidade de uma abordagem crítica e
política. O diálogo com os adolescentes e familiares apresentavam sempre cenários
comuns de violência e marginalização. Percebemos a importância do que
conversávamos com as pessoas e como conversávamos! Questionávamos o que os
profissionais realizavam efetivamente em seus atendimentos. Concebíamos que uma
intervenção sem a intermediação da situação vivenciada a um contexto maior e
complexo, não contribuía para o amadurecimento e a emancipação humana.
Ao trabalhar com adolescentes em conflito com a lei, cabe ao educador
desenvolver ões educativas numa perspectiva solidária não apenas
pessoal, mas também e, fundamentalmente, social com o educando. Essa
solidariedade es estritamente vinculada à sua dimensão política e, por
seguinte, à sua dimensão histórica. (COSTA, 2006, p. 76).
Participamos de inúmeros encontros, seminários e cursos, sem esquecer das
Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente. As discussões giravam em
torno do que era prioridade, por exemplo, o combate à violência, a educação, o
trabalho, etc. Contudo, nunca se tocou efetivamente nas questões relativas às
97
estruturas sociais e às relações de poder não é surpresa o esvaziamento político que
perdura no dia-a-dia do trabalho com os adolescentes.
Durante esse tempo, percebemos que nunca houve um projeto pedagógico na
Fundação. Nunca o atendimento aos adolescentes foi priorizado. Todos os encontros e
discussões correspondiam à racionalização burocrática e legalista, as coisas eram
postas na lógica formal. Pouco se mudou nos dias atuais; vemos muitos tecnocratas
discursarem meios para a organização, ou seja, a maneira mais eficaz de controle
social, uma tautologia fundamentada em leis que não garantem décadas os direitos
dessa população.
Sabemos que o trabalho com o ser humano deve ser extremamente pedagógico
e criativo. A formação do homem traz em si mesmo a impossibilidade de um trabalho
que não seja na direção da libertação de sua alienação.
Através de uma teoria social revolucionária, com a aplicação de um método que
viabilize um processo pedagógico libertário, é possível criar estratégias e instrumentais
que possibilitem ao indivíduo realizar um processo de avanços para uma consciência
crítica que, para nós, significa o processo de consciência de classe.
Por exemplo, a interpretação da medida socioeducativa é um procedimento
obrigatório para os educadores que trabalham com os adolescentes. É na sua essência
o primeiro contato com o adolescente e sua família, portanto, tem suma importância
para o todo do atendimento que se estenderá por seis meses ou mais.
Não é exagero apontarmos a padronização legalista e formal em que tem
acontecido essa etapa do atendimento. Infelizmente, muitas vezes tal prática se resume
apenas no esclarecimento da medida, na apresentação do projeto e no preenchimento
de dados.
Para nós, é imprescindível iniciar o acompanhamento do adolescente
diferenciando essa ação das outras situações pelas quais que ele passou, por exemplo,
o espancamento na polícia e os sermões que ocorrem no Fórum.
Nesse sentido, através de uma teoria social crítica e de um método também
crítico, demos uma forma dinâmica ao processo de realizar a interpretação da medida.
A utilização da maiêutica, buscando superar o senso comum, colocava desde início um
98
movimento emergente que fazia todos participarem de um diálogo em que as
contradições do contexto social vivenciado eram colocadas à tona.
5.3 - A INTERPRETAÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA: UM EXEMPLO DA
UTILIZAÇÃO DA MAIÊUTICA NA ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL
Para efetuar a interpretação da medida, o profissional deve levar em conta o
estado em que lhe chegam os adolescentes e seus familiares, ou seja, angustiados,
nervosos, com medo, etc. Por isso, não pode ser feita de qualquer jeito; requer alguns
passos básicos, sobre os quais iremos expor e, ao mesmo tempo, evidenciar todo o
processo metodológico.
O primeiro passo trata do acolhimento do adolescente. Dois itens são
fundamentais a preparação do ambiente físico e o acolhimento através de palavras e
gestos empáticos tranqüilizando o máximo possível as pessoas. A seguir temos um
roteiro, que pode ser aplicado tanto de forma individual, quanto em grupo, sendo que
em grupo ocorre numa outra dimensão, com aprofundamentos valiosos.
O roteiro assim se define:
A) O que vocês conhecem ou já ouviram falar sobre Liberdade Assistida?
Através de um apanhado das falas e impressões vamos
desmistificando o que é verdadeiro e falso com relação à medida.
Depois fazemos uma pergunta: todos os adolescentes para chegarem
aqui realizaram algo comum; o que é?
B) A partir das respostas, fazemos a pergunta seguinte: o que é um ato
infracional?
Levantamos as considerações sobre o ato infracional, que giram em
torno de citar exemplos, como o furto, roubo, etc. perguntamos se isso
explica totalmente a questão do ato infracional: O que é um roubo e se
99
existe outras formas de roubar em nossa sociedade que passam
despercebidas e a quem atinge diretamente a infração.
É possível vivermos em sociedade sem o mínimo de regras, normas e
valores? Quem nunca errou?
C) O que são regras, normas e valores?
Discute-se aqui, de forma geral, sobre o que é justo e o que é injusto
na nossa sociedade. De quem são as regras e normas que permeiam
a vida social e quem é realmente punido no mundo em que vivemos?
O que acontece com aqueles que são pegos cometendo atos
infracionais?
D) Quais são os órgãos e como eles agem no combate à criminalidade?
Nessa discussão, as situações da Polícia, da Delegacia, do Fórum e
das Prisões são reveladas.
Em particular, discutimos sobre as leis e sua eficácia em condenar os
pobres. Por outro lado, alguns avanços com relação aos direitos,
principalmente a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente.
E) O que é o ECA?
Fazemos uma breve exposição sobre o ECA, enfatizando suas
medidas socioeducativas.
Lembramos que, dentre as medidas, o Juiz pode aplicar a LA.
F) O que é a LA?
Retoma-se a discussão da medida de LA, contudo, de maneira
sistematizada, abordando os aspectos legais e socioeducativos.
G) Qual o significado da socioeducação?
Mais do que as prerrogativas impostas na medida e as discussões
sobre seu projeto de vida, buscamos compartilhar com o adolescente
100
e seus familiares a responsabilidade da transformação de si próprio e
do mundo em que vivemos. O verdadeiro caráter do processo
socioeducativo é a libertação do homem de suas prisões.
Em todas as interpretações realizadas, temos condições de apontar que não
alcançamos a todos no nível de dar continuidade à reflexão iniciada. No entanto,
vivenciamos que a cada passagem desse trabalho, os adolescentes ficam instigados a
expressar e a ouvir sobre as realidades que permeiam suas vidas.
O processo inicia-se com o parto das idéias e opiniões sobre aquilo que eles
conhecem no âmago de seu cotidiano; depois, colocamos em discussão as questões,
desvelando as contradições e as tramas existentes nesse contexto. O que é posto
acaba estabelecendo sentidos e nexos com as relações sociais de dominação,
propiciando um espaço de reflexão para que o adolescente e suas famílias possam
situar-se nesse panorama social. Assistimos, em muitas situações, adolescentes e
familiares verbalizarem o quanto foram enganados esse tempo todo e que em nenhum
momento refletiram dessa forma a sociedade em que vivem.
A discussão aprofunda-se na medida em que os participantes vão percebendo
que existe na realidade uma estrutura montada para reprimir o povo, principalmente
aqueles que transgredirem a ordem. ouvimos de adolescentes a colocação de que
eles justificam os salários de Juiz, Promotor, Policiais, carcereiros, etc. Outros
mencionaram de imediato que as coisas colocadas dessa maneira os fazem pensar.
Num dia de interpretação, um adolescente disse que “seus neurônios estavam parados
e que aquelas coisas todas colocadas fizeram seus neurônios se mexerem”.
Nesse processo dialético da negação, vamos desconstruindo e reconstruindo
significados. Porém, é fundamental observarmos que tudo se faz em um constante
movimento e que o grupo dá a direção e a dinâmica ao trabalho. Assim, os resultados
imediatos e em médio prazo não são previsíveis, uma vez que se trata de um processo
gradativo. Todavia, podemos relatar em nossa experiência alguns avanços
significativos. Por exemplo, na superação da negação, ou seja, no momento em que,
101
diante da pergunta, “que mundo vocês querem para seus filhos?” todos os
adolescentes são unânimes em dizer: “queremos um mundo justo”.
A partir de então, abrem-se inúmeras possibilidades de trabalho com os
adolescentes, inclusive na perspectiva makarenkiana. Por isso, apresentamos, no
próximo item, mais um resultado do trabalho com a maiêutica, agora não só de um ato
isolado, mas em todo ato coletivo, com os adolescentes e outros profissionais.
5.4 - O GRUPO GAIA
O grupo GAIA (Grupo pela Autonomia e Integração do Adolescente) foi nossa
epopéia. Uma obra construída por pessoas valorosas e conscientes de sua atuação na
história humana.
Através do atendimento isolado, fomos paulatinamente sensibilizando os
adolescentes da necessidade do grupo. Nesse processo, toda a metodologia
mencionada foi a engrenagem da ação que levou do individual para o coletivo.
No início eram o técnico e aproximadamente 15 adolescentes. Nada possuíamos
de recursos e nos encontrávamos numa sala cedida pela administração da Rodoviária
Velha da Cidade de Taubaté.
Vivenciamos ali todo o processo de formação de um grupo, ou seja, desde a
identificação entres os participantes até o trabalho operacional de todos. Conseguimos
isso porque saímos da situação de indiferença para o estabelecimento de uma relação
de igualdade humana, conforme Makarenko.
Das discussões realizadas, ficava clara a todos não a realidade vivenciada,
como também a necessidade de enfrentar os percalços da vida. Mais ou menos ‘o que
vamos fazer com o que fizeram conosco’.
Resolvemos formar um grupo de monitores, agentes multiplicadores da formação
que estávamos realizando no grupo.
O trabalho árduo e coletivo fortaleceu o grupo e outras pessoas se vieram somar.
Vieram uma assistente social, uma psicóloga, uma pedagoga e uma agente da pastoral
102
do menor. Todas seguiram e começaram a aplicar a metodologia então existente no
grupo.
Em todos os encontros, seminários e reuniões, usávamos a maiêutica para o
esclarecimento do contexto e do trabalho que estávamos realizando com os
adolescentes. Com isso, fomos montando uma estrutura e desmistificando a questão do
adolescente em conflito com a lei no município.
Ressaltamos que os adolescentes organizaram internamente o grupo e tomaram
consciência de seus papéis em relação à mudança de si e à responsabilidade para com
o outro. Um deles chegou até a sugerir que montássemos uma guerrilha como forma de
luta. Isso para nós vislumbrava o trabalho que adquiria patamares superiores.
Com isso, íamos obtendo outros recursos e o reconhecimento da comunidade,
inclusive do Promotor Dr. Antonio Carlos, que se configurou um parceiro na luta pelos
direitos dos adolescentes.
Mais tarde, montamos um roteiro de palestra, nas quais os adolescentes
participavam como debatedores. expressavam suas idéias de forma clara e precisa.
Foram várias palestras realizadas em diversos órgãos do município, tais como escolas,
Guarda Mirim, SENAC, SESC, etc.
O roteiro foi fruto da dinâmica do trabalho em si e da compreensão dos
adolescentes ao discutir um assunto tão complexo a partir da realidade ocultada pela
ideologia dominante. Damos como exemplo o tema “Drogas e Violência, quais os seus
significados?”, que aborda as categorias necessárias para um processo revelador das
mediações existentes nas relações sociais que permeiam esse mundo. Portanto, assim
o construímos:
O que é droga?
Um apanhado geral do conhecimento dos jovens a respeito das drogas e
suas conseqüências. Nesse dulo os jovens são convidados a expressar
suas opiniões.
103
Propósito da palestra.
Aqui esclarecemos que vamos refletir se existe algo mais complexo a
respeito das drogas, alguma coisa que não é perceptível no primeiro
momento. Qual o pano de fundo que permeia a questão das drogas.
O que é a sociedade?
As drogas são um produto social, por isso temos que analisá-las inserido-as
no contexto da sociedade.
O que é necessário para sobrevivência?
Estabelecemos aqui uma relação das necessidades humanas.
O que é trabalho? Quem trabalha?
Buscamos nesse momento apreender a importância das atividades humanas
(o trabalho), que é o elemento criador de toda riqueza material. É a
valorização do ser humano trabalhador como o responsável pela
preservação da vida.
O que é divisão da riqueza?
Trata-se de uma reflexão sobre a concentração da riqueza e suas
conseqüências sociais.
O que é o controle social pelo sistema repressivo?
Quem são e como atuam os órgãos responsáveis pela “segurança da
população.”
Quais são os outros elementos do controle social (drogas)?
Para finalizar discorremos sobre quais são as funções das drogas na nossa
sociedade.
104
A síntese desse trabalho está diretamente relacionada aos esforços e ao
amadurecimento do coletivo, que, paulatinamente, ia se consolidando através dos
avanços no processo de consciência dos adolescentes. Todos passaram a ser
comandantes e comandados nessa experiência de exercer um papel de destaque
frente a nossa tarefa de socializar o conhecimento que apreendíamos nas atividades do
grupo. O uso coletivo da maiêutica culminou numa poesia que, para nós, foi a
expressão do método e de todo o trabalho educativo, além da certeza de que é possível
uma atividade profissional criativa e libertadora, mesmo nos ditames das relações
capitalistas, desde que estejamos abertos para atuarmos na lógica dialética.
Ser ou não ser
Eis a questão.
Drogas! Usar ou não usar
Eis a questão.
Antes, lhes pergunto:
O que são mesmo as drogas?
Ah! Uma substância. Não só uma substância,
Algo concreto que eu possa tocar, consumir, usar.
Uma mercadoria que posso comprar.
Mercadoria que necessita alguém para fazer
E para levá-la ao mercado para ser vendida.
Oh! Agora sim, eu sei o que é uma droga.
Droga é dinheiro.
Pois as mercadorias são vendidas
Para se transformarem em dinheiro.
Então se eu fumar o dinheiro, não vai ser a mesma coisa,
Pois as drogas não são feitas com o objetivo de se ganhar dinheiro?
Meu Deus! Diga-me a verdade.
Estou numa confusão,
Preciso saber mais sobre um assunto tão difícil e complexo.
Pensei que, ao usar a droga,
Eu estivesse realmente usando uma mercadoria
Que satisfaça todo minha fantasia
E que por alguns segundos me faça viajar
Mas ao olhar as drogas mais de perto,
Percebo que não a uso e sim ela é quem me usa
A cada tragada, a cada cheirada, a cada lambida,
Satisfaço em primeiro lugar
A necessidade das drogas de serem vendidas,
De serem comercializadas, de enriquecerem pessoas
Que também viajam e consomem.
105
Entretanto, estes usam aviões e jatinhos particulares
Para suas viagens e consomem: chester, peru, caviar....,
As melhores roupas, os melhores alimentos, os melhores vinhos, champanhe, etc.
Com a exposição da experiência e dos resultados obtidos, poderíamos concluir,
de certa forma, a validação de nossa pesquisa. Todavia, buscamos demonstrar em
seguida, dinamicamente, a aplicação da técnica a um grupo de famílias dos
adolescentes inseridos em Liberdade Assistida na Cidade de Santa Branca.
5.5 - OFICINA COM AS FAMÍLIAS DOS ADOLESCENTES
Em primeiro lugar, esclarecemos que esta parte da pesquisa foi realizada na
Cidade de Santa Branca com a participação das famílias dos adolescentes inseridos na
medida de Liberdade Assistida e as famílias do Programa Renda Cidadã da Secretaria
de Assistência Social do Município. Nessa oficina contamos com a presença de 25
pessoas. Desde o início foi solicitada autorização para que filmássemos o curso e para
que algumas pessoas pudessem colaborar respondendo por escrito a uma pergunta
que seria procedida no final. Salientamos, também, que contamos com o auxilio da
assistente social da Secretaria que foi anotando as falas e reações das pessoas
durante o curso.
A montagem dessa oficina teve por fundamento a reflexão de que todo
conhecimento deriva de uma prática em um contexto concreto, assim como tal prática é
parte de manifestações sociais. Assim, uma prática humana, uma ação social concreta,
histórica, possibilita uma reflexão, uma abstração teórica, nela baseada, que será
também base para futuras ações transformadoras e novas sínteses teóricas. Portanto,
trata-se de um processo ininterrupto de ações e sínteses sucessivas.
Para nós, a afirmação, na ação política geral, da anterioridade da prática, é a
confirmação do princípio materialista do método, ou seja, da antecedência do concreto
em relação à representação abstraída desse concreto na forma de teoria. Dessa
maneira, partimos de uma realidade aparente, daquilo que os indivíduos conhecem e
106
trazem de sua experiência cotidiana, porque a prática educativa é, para nós, um
momento da prática política geral. A particularidade desse momento está na sua tarefa
específica de refletir, superar a aparência das coisas, buscar compreender a realidade
(seja da sociedade ou do movimento ou da organização onde se atua) para transformá-
la, produzir saltos de qualidade na eficácia de nossa ação.
Nesta oficina em que foi tratada a dinâmica da fábrica, partimos de uma pergunta
que suscita, em um primeiro momento, que as pessoas expressem seu conhecimento
aparente da realidade social. Nosso objetivo é refletir com os participantes quais
indicativos a própria realidade apresenta, na sua forma concreta de explicitar. Por isso,
a questão Que país é este? – possibilita respostas e opiniões que devem ser dirigidas
por uma didática. Em nosso caso, utilizamos a figura de um extra terrestre que vem
visitar nosso país e perguntamos o que ele vai ver ao visitar os locais indicados por nós.
“No meu bairro ele vai ver casas, gente trabalhadora e pobreza”.
“Ele vai ver favelas, muitas pessoas desempregadas, esgoto a céu aberto...”
“Vai ver barracos, miséria, fome e moradores de rua”.
As respostas são trabalhadas no sentido de esclarecer com o máximo de
detalhes a forma aparente do que estamos discutindo, portanto, questionamos o que
significam as representações que vão surgindo, como: favelas, barracos e pobreza.
Bem como, seu contraste:
“Nesse bairro ele vai ver carros importados, mansões e gente bonita”
“Vai ver seguranças, limpeza, gente bem vestido, etc.”
“Fábricas, grandes lojas, terras”
107
Sendo assim, logo concluímos com os participantes que a realidade social que o
ET acaba de ver e discutir trata de um enorme contraste; ao separarmos na lousa as
respostas, as pessoas visualizam suas próprias conclusões:
Carros importados Carros velhos
Mansões Barracos
Gente bonita Moradores de rua
Fábricas Trabalhadores
Terras Favelas
Temos de imediato o que buscamos nessa trajetória, a revelação da questão da
concentração da riqueza, ou seja, um país de uma enorme desigualdade social. Um
fenômeno que as pessoas tentam justificar com seu arcabouço de respostas baseadas
no senso comum:
“O país é assim porque as pessoas não sabem trabalhar direito”.
Mesmo não sendo filósofos profissionais e não desempenhando na sociedade a
função de intelectuais, todos pensamos a realidade, nem que seja a partir apenas dos
limites e das características de uma filosofia espontânea. Essa filosofia reúne de forma
acrítica, desordenada e contraditória uma mistura de elementos que incorporam os
mais variados aspectos das concepções de mundo, presentes e passadas, de todos os
setores sociais.
Ainda no plano das aparências, estamos utilizando do processo de exortação do
senso comum e, para tanto, nosso próximo passo é a questão de como se dá o
processo de concentração de riqueza, ou seja, como se fica rico. Seguindo o método,
perguntamos para as pessoas sobre a história de alguém conhecido, por exemplo,
Sílvio Santos. Assim, logo aparecerão as categorias necessárias para a continuidade
do processo da maiêutica.
“As pessoas ficam ricas pelo trabalho”.
108
“Ah! Sem dúvida é pela sorte”.
“O que explica alguém ficar rico é porque ele foi inteligente e esforçado”.
O parto do senso comum aqui é algo fundamental para o questionamento dos
elementos que compõem a ideologia dominante que justificam e reforçam uma
realidade que oculta e naturaliza as verdadeiras causas dos fenômenos sociais. É
importante pontuarmos que cada categoria que aparece trabalho, sorte, inteligência,
esforço, herança, roubo – será discutida. É o momento em que, já realizada a exortação
do senso comum através do diálogo, vamos colocá-lo em contradição. Isso significa
levar as questões que façam as pessoas refletirem sobre suas respostas e verificarem
que as mesmas não explicam de fato as causas de uma realidade que, embora se faça
aparente, necessita ser analisada.
Diante das provocações, o senso comum tenta resistir e alguns sentimentos
aparecem na forma de revolta, orgulho e de posições inconformadas com as novas
questões. Como exemplo, ao expormos que milhares de pessoas trabalham, que são
tantos os que dedicaram uma vida inteira ao trabalho e hoje estão aposentados, não se
tornaram ricas. Outro questionamento que mexe com os participantes é a pergunta: não
somos inteligentes e esforçados por não termos ficado ricos?
Uma vez esvaziadas as indagações e as certezas, o grupo se diante de uma
realidade para a qual não tem resposta e se pergunta: se não é isso, o que é então?
Nessa hora abre-se o diálogo sobre a necessidade de estudarmos, de analisarmos a
realidade e o fenômeno da desigualdade social. Aplicamos então a dinâmica do
triângulo, em que perguntamos quantos triângulos possui a figura ilustrada abaixo:
109
Mediante várias respostas, desenhamos o triângulo na lousa e destacamos
aqueles que possivelmente não foram encontrados, concluindo que existem 47
triângulos explicando como chegar a eles. Concluímos com o grupo que a única
maneira de chegarmos aos 47 triângulos é refazendo toda a figura, ou seja,
decompondo e recompondo cada triângulo, de forma a entender todo o processo em
questão. Assim devemos fazer para buscar resposta sobre: como surge a riqueza nas
mãos de poucos e a maioria permanece sem nada ou com quase nada? Propomos,
então, a dinâmica da fábrica.
Propomos um personagem (o bom patrão) para tentar investigar como ele ficou
rico. Supõe-se, então, que ele vai montar uma fábrica. Exortamos as pessoas a
indicarem os elementos necessários para a construção de uma fábrica de sapatos.
Logo aparecem os três elementos necessários para a fábrica: o prédio, a matéria-
prima e as máquinas.
A partir do exposto, dividimos a turma em três grupos e pedimos que cada grupo
descreva a história de cada um dos elementos necessários para que a fábrica funcione.
Durante a exposição dos grupos vamos reforçando a idéia de que, em toda a passagem
(por exemplo, do barro para o tijolo, do tijolo para o prédio, etc) sempre
trabalhadores. Se algo foi feito, alguém fez. Destacamos afirmações do tipo – “o minério
saiu da terra”, “o produto foi levado” mostrando como na voz verbal passiva
desaparece aquele que trabalhou, oculta-se seu real ‘agente’. Passamos o vídeo
“Origem da riqueza” reforçando a percepção de que:
A riqueza é fruto do trabalho;
Tudo o que tem valor vem do trabalho;
A riqueza que o patrão diz que ele tem para começar a fábrica é o
trabalho de muitos que foi parar na mão dele.
Considerando que se trata de um público iniciante, passamos então a colocar
alguns pontos chaves para a definição do valor.
110
Valor é a quantidade de trabalho abstrato socialmente necessário para a
produção de mercadorias;
Quanto mais trabalho, mais valor;
O valor de uma coisa se mede pela quantidade de trabalho que ela
possui;
A quantidade de trabalho se mede por horas, o que, na nossa sociedade
é expresso por dinheiro.
Visto isso, assumimos a figura do patrão, questionando as explicações dadas
por alguns que vincularam a acumulação de riquezas ao roubo e à sacanagem. Por
isso propomos a história de um empresário extremamente honesto” e pessoalmente
muito bom, que:
não rouba ou infringe qualquer lei;
cumpre os compromissos assumidos;
realiza uma gestão transparente e participativa com seus funcionários.
Como parte da turma acreditava que tinha resolvido o problema com a
afirmação do roubo, afirmamos que, em verdade, existem aqueles que acabaram ricos
comprando mais barato e vendendo mais caro, sendo esta, aliás, uma forma que o
senso comum vivencia a cada dia no comércio, por exemplo. Mas isso seria desonesto,
pois implica em vender algo acima de seu valor, ou pagar menos do que uma coisa
vale. Fechamos com o grupo que em nossa história havia um princípio:
“Comprar pelo valor e vender pelo valor”
Estamos prontos para fazer funcionar nossa fábrica e nos propomos a
empregar os participantes; pedimos que eles realizem uma assembléia e que definam
em que condições desejariam trabalhar. Abre-se uma negociação a respeito de qual
deve ser o valor da força de trabalho, dos benefícios e da jornada de trabalho. É
interessante observar algumas posturas durante os exercícios. Enquanto alguns
reivindicam calorosamente um salário alto, outros se conformam com um salário base
111
para uma linha de produção. Começamos com a negociação dos benefícios e
acatamos tudo o que o grupo pediu: vale transporte, vale refeição, convênio médico
(com a intermédica) e bolsa de estudo. Discutimos o assunto e acrescentamos creche e
participação nos lucros. As respostas foram imediatas:
“Esse patrão é muito bonzinho”.
“Você está querendo alguma coisa, até lembrar a gente de coisas você
lembrou”.
Para finalizarmos, negociamos então o salário e a jornada de trabalho. O grupo
decidiu por um salário de R$1.500,00 e uma jornada de 08 horas diárias. No entanto,
houve controvérsias entre pessoas que acharam que o salário deveria ser de R$
800,00, pois se trata de uma linha de produção e é isso o que estão pagando no
mercado. O grupo reagiu espantado quando fechamos com um salário de R$3.000,00 e
uma jornada de 06 horas.
“Eu não disse que este patrão está com história?
“Não vai dar certo, a fábrica vai falir.
“Minha vida vai mudar completamente com este salário, mas eu não acredito que
o patrão vai conseguir”.
Feito isso, as pessoas da turma se converteram em trabalhadores em um dia de
trabalho. Distribuímos, então, uma folha em branco; para cada um esta folha
representava a matéria prima a ser trabalhada naquele dia. A folha foi dobrada e
cortada de tal maneira que saíram 20 retângulos. Cada um representando um par de
sapatos. Definimos com o grupo o valor do par de sapatos. Em nosso caso, avaliamos
com os participantes quanto vale um bom par de sapatos, lembrando que deve ser tão
112
bom, ou melhor, do que aqueles que têm no mercado, mas ser vendido a um preço
menor para ganharmos a concorrência. Assim, concluímos pelo valor de R$50,00.
Cada um ia dobrando e cortando os pedaços de papel. A produção ia sendo
recolhida em sacos não transparente (para que os participantes não tivessem a idéia do
total produzido, pelo menos visualmente) reafirmamos a condição de “bonzinho”; se
queriam música enquanto trabalhavam; que não deveriam correr, que deveriam fazer
um produto bem feito, pois não tínhamos pressa: que somos parceiros e não somos
capitalistas selvagens...etc. Buscamos ouvir novamente os comentários que surgiam...
“não vai dar certo”... “vai falir”. Patrão assim não pode existir.
Depois de recolher tudo, destacando e elogiando os que iam acabando primeiro,
aqueles que cortam e dobram com mais cuidado, recomendando que fossem solidários
e não competitivos, reafirmamos nosso compromisso de transparência abrindo a
contabilidade.
Começamos por mostrar o saco que continha 30% da produção, o que
correspondia ao capital constante, ou seja, à parte necessária para repor a matéria
prima, o desgaste do prédio e das máquinas, enfatizando que tal porcentagem eram
dados de pesquisas realizadas no mercado por grandes empresas, como a Embraer.
Passamos, então, ao pagamento dos salários, entregando a cada trabalhador’
dois pares de sapatos que correspondiam a R$100,00 que, no final do mês, seria o
equivalente a um salário de R$3.000,00.
Antes de abrirmos o terceiro saco, perguntamos ao grupo, o que eles fariam com
um salário desse?
“Eu compraria um carro.
“Eu compraria uma casa.
“Eu iria viajar, comer bem, vestir bem, dar uma boa educação para meus filhos”.
Pois bem! Como prometido, começamos a tirar os papéis do saco, um montante
de dinheiro que deixava claro o contraste do lucro do patrão com relação aos seus
113
salários. Fomos mencionando que o patrão com todo aquele dinheiro poderia comprar
todos os bens que eles disseram e ainda mais. Poderia também montar outra fábrica
para aumentar seu lucro. Cabe ressaltar, que as reações foram diversas, dentre elas,
notamos: revolta, desânimo, perplexidade, etc...
Como se trata de um seminário básico sobre o funcionamento da sociedade,
buscamos explicar a essência do que aconteceu. Dizemos que o trabalhador, ao utilizar
os instrumentos e meios de trabalho transformando a matéria prima, transferiu seus
valores ao produto final. Mas para fazer isso, despendeu uma nova quantidade de
trabalho gerando um valor novo. Esse valor novo é muito maior do que o valor da
própria força de trabalho. Assim:
A força de trabalho é capaz de gerar mais valor que o seu próprio valor”
Na jornada de trabalho o trabalhador produziu o valor de sua força de trabalho e
continuou trabalhando, pois sua jornada era de 6 horas. Essa diferença entre o valor da
força de trabalho e o valor que essa força é capaz de produzir gera um valor a mais que
recebe o nome de mais-valia.
Por último explicamos que o sapato foi vendido pelo valor, pois a força de
trabalho despendido nas seis horas da jornada, seja na parte paga na forma salário,
seja concretizada num valor a mais para o capitalista, é trabalho que está incorporado
no sapato e, portanto, faz parte do seu valor. Desta forma o valor de cada sapato revela
a seguinte composição:
Valor Antigo Valor Novo
Transferência do valor antigo Salário Mais-valia
Instalações,
instrumentos,
matérias primas
Parte do valor novo que
remunera o valor da força
de trabalho.
Parte do valor novo não
pago.
114
Retomamos com o grupo perguntando se as coisas eram assim mesmo. Se não
seria apenas o trabalho de manipulação... os papeizinhos cortados... será que aquela
simulação nos ajuda a entender por que uma sociedade como a nossa tem tamanhos
contrastes? Para tanto, solicitamos que alguns respondessem por escrito a seguinte
questão: O que mudou naquilo que você pensava antes?
“Mudou a forma de pensar sobre a desigualdade social, e que os trabalhadores
são explorados pelos patrões. O salário muito baixo, as despesas muito altas, daí esta
crise do país e o sofrimento do povo.” (J.B.S).
“Não imaginava o tamanho da exploração e da desigualdade social que existe
hoje. Poucos ricos e uma pobreza imensa, os trabalhadores são explorados e mesmo
sabendo disso ele não pode fazer nada, pois precisa desse dinheiro, enquanto o patrão
fica com rios de dinheiro através do suor destes trabalhadores.” (R.M.A.).
Durante o seminário, percebemos que a ansiedade do senso comum leva a
responder as questões de maneira rápida e simplista. Contudo, depois de terminado
todo o processo da maiêutica, temos nítida a elaboração do pensamento. Mesmos com
respostas curtas, aparecem aqui elementos teóricos e sistematizados, demonstrando,
de forma positiva ou negativa, o entendimento e a clareza sobre uma realidade social
em que as causas do ser não estão reveladas nas formas de sua aparência.
“Mudou que: as pessoas de nível social mais alto têm preferência aos menos
favorecidos. Tudo que foi conversado aqui serviu para abrir mais minha mente sobre a
desigualdade social: enriquecem e muitos ficam ainda mais pobres, usando dos
salários mínimos cada vez mais mínimos. Onde a exploração do trabalho fala mais alto
e nós não temos valor e muitas vezes não nos damos valor por falta de opção. O que
teríamos que fazer para mudar tudo isto?” (S.A.C.S.).
115
“mudou que antes eu pensava que as pessoas tinham que estudar, ter uma boa
profissão para ser alguém na vida, mas depois que assisti a palestra, me mostrou que
se as pessoas tivessem um bom salário, todos seus direitos reivindicados, a
desigualdade social seria praticamente igual, não totalmente igual, mas mudaria muito o
desemprego, a violência. As pessoas mudariam seu modo de viver e as pessoas não
sofreriam, não morreriam no serviço. Isso é a minha opinião.” (S.A.C.S.).
Seja qual for o aspecto que serve como motivo inspirador para levantar,
rearticular e fazer avançar o senso comum e o bom senso, o importante é fazer com
que as relações sociais expressas pelos fatos deixem de ser percebidas como algo
natural, como obra do acaso. Interpretar e criticar o cotidiano a partir dos interesses das
classes trabalhadoras significa, em primeiro lugar, percorrer o caminho inverso da
naturalização das relações históricas que alimentam a situação de subalternidade à
ordem burguesa. Percebem-se nas falas as mudanças ocorridas em suas concepções e
agora não havia mais a resistência nem a desconfiança que, de início, ainda eram
evidentes perante as considerações teóricas. Pois o senso comum, atacado
diretamente, tende a se fechar em suas opiniões, o que leva a uma estagnação no
processo educativo. Seja qual for o assunto, a forma com será abordado, a insistência
com a qual serão repetidos os conceitos em ocasiões e contexto diferentes, o
importante é que proporcionem a superação de uma visão mágica e fatalista da vida e a
percepção das relações sociais como fruto de um determinado desenvolvimento
histórico. Trata-se de realizar, como fala Gramsci nos seus escritos: a cada instante
devemos solapar o senso comum construindo a dúvida na cabeça do homem-massa.
“Bem, no meu entender, eu percebi que através deste curso que o quão é
importante as pessoas poderem obter esclarecimentos através de relatos que possam
nos mostrar o quanto nosso País é de uma desigualdade total. Que nos mostra que nós
vivemos numa sociedade que muitos tem muito e outros não tem nada. Que nosso país
muitas vezes não nos favorece, pois a pessoa que passam anos estudando, pode
conseguir um trabalho bom com um salário remunerado, mas chega numa certa idade a
própria pessoa se torna desqualificada. Pois a lei não nos permite que a pessoa possa
116
trabalhar depois dos 45 anos. Agradeço a você, pela orientação nos deixada, e que é
uma pena que nós brasileiros ainda vivemos esta dura realidade.” (E.C.).
Conhecendo suas resistências e a força de suas crenças é ilusório pensar que o
senso comum, veiculado e alimentado pelas classes dominantes, pode ser derrubado
após as primeiras atividades críticas. Contudo, um trabalho educativo numa perspectiva
revolucionária seu primeiro golpe de maneira radical e crítica. Trata-se, portanto, de
estabelecer com o homem-massa um canal de comunicação que, trabalhando sua
realidade, seu senso comum e bom senso, o leve a identificar as contradições que
estão presentes na vida em sociedade e na sua própria concepção de mundo. As
contradições assim evidenciadas servirão de alicerce sobre o qual deverão ser
construídas as dúvidas a as perguntas que questionarão as crenças, as práticas, os
valores e os rituais presentes no senso comum e no bom senso.
117
SÍNTESE CONCLUSIVA
De alguma forma, as práticas que buscamos construir de formação podem
possibilitar às pessoas o enfrentamento da obliteração de certas dimensões de suas
vidas. Esses aspectos comumente são desconsiderados em grande parte dos espaços
formativos e das intervenções profissionais, as quais são incapazes de elevar o senso
comum para uma racionalidade objetiva da realidade; comumente também
desconsideram o enfrentamento das dificuldades reais de compreensão e
conhecimento de causa e a paixão por um novo projeto de organização social, que
exige de imediato uma posição anticapitalista, contribuindo para a implantação de algo
efetivamente novo, para um outro tipo de humanidade e, portanto, de sujeito.
Entendo que nossa forma educativa pode articular o acesso à teoria social, às
esferas de subjetividade, aos instrumentos de descortinamento do mundo, assim como
de desconstrução de um presente no qual a ideológica construção do ordenamento
capitalista tenta eternizar. Esse é um desafio posto para nós assistentes sociais
(formadores). O que implica, a meu ver, transcende o fundamentar do nosso projeto
político societário, para um investimento em nossas esferas subjetivas, de forma que
queiramos e possamos ter um olhar sobre o outro, como um sujeito, que, para além do
militante construtor de uma nova sociedade, seja partícipe conosco da construção,
ainda hoje, sob o capitalismo, de outras relações sociais.
Acreditamos que está se abrindo um período importante para a reflexão e o
debate entre aqueles que persistem no caminho da transformação social. Na área da
educação popular se desarmam velhos preconceitos e se produzem patamares onde a
polêmica pode se estabelecer e levar às trocas e a contribuições mútuas que só
beneficiam nossos propósitos libertadores.
Esperamos ter iniciado uma contribuição para o debate, que não deve se
encerrar aqui, porque temos a convicção de que é no debate franco das idéias e na
avaliação crítica de nossas práticas que aperfeiçoaremos nossa caminhada.
118
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123
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