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MAYRA REGINA SARAIVA DE ABREU
CIDADANIA, MOVIMENTO FEMINISTA E FEMINISMO
PRAGMÁTICO EM GOIÁS
GOIÂNIA
2001
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
COORDENAÇÃO DE MESTRADO EM SOCIOLOGIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIOLOGIA POLÍTICA
CIDADANIA, MOVIMENTO FEMINISTA E FEMINISMO PRAGMÁTICO EM
GOIÁS
MAYRA REGINA SARAIVA DE ABREU
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Sociologia, da
Universidade Federal de Goiás, como
exigência parcial para a obtenção do título de
mestre, sob a orientação do Prof. dr. Pedro
Célio Alves Borges.
Goiânia, 2002.
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“Eu sou aquela mulher
A quem o tempo ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar da derrota.
Renunciar às palavras e
Pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.”
(
Cora Coralina
)
4
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que contribuíram para a realização deste
projeto: esposo, filhos, professores, mãe, colegas de
trabalho, enfim, amigos que souberam ouvir, compartilhar,
compreender ausências e ansiedades.
O acolhimento, o apoio e a orientação preciosa do
professor Pedro Célio Alves Borges.
Ao pessoal do Cevam, especialmente Dolly e Fernanda,
que me abriu as portas e os arquivos da entidade.
5
RESUMO
A presente dissertação trata da formação de noções de direito e justiça a
partir da construção de identidades feministas. Especificamente, da identidade
feminista pragmática. A análise toma como referencial teórico-metodológico as
condutas coletivas culturalmente orientadas, ou seja, os movimentos sociais e
seus princípios: a identidade, a oposição e o projeto. A partir dessa
perspectiva, toma de empréstimo os conceitos e as contribuições de Alain
Touraine e Manuel Castells para a análise da construção de identidade e do
movimento feminista.
Ao mesmo tempo, busca identificar e classificar as organizações e os
discursos do movimento feminista em Goiás na década de 1980, enfatizando a
ações do Centro de Valorização da Mulher (Cevam), entidade prioritariamente
vinculada à luta em defesa do direito da mulher vítima da violência masculina
em Goiás e que presta atendimento à população alvo desse estudo, as
feministas pragmáticas. Com base em Manuel Castells, traça uma tipologia das
ações feministas em Goiás até chegar à ação das feministas pragmáticas,
mulheres vítimas da violência de seus ex-cônjuges ou pares amorosos que,
embora não se reconhecendo feministas, se revelam capazes de desgastar e
desmistificar as instituições e o discurso patriarcal.
6
ABSTRACT
This present dissertation discusses the formation of notions of law and
justice starting from the feminist identities construction. In a especific way, the
pragmatic feminist identity. The analysis takes as a theoretical-methodological
reference the collective behaviours directed culturally, in other words, the social
movements and their principles: the identity, the opposition and the project.
Form this perspective, the analysis borrow from Alain Touraine and Manuel
Castells`s concepts and contributions to make an analysis about the
construction of the identity and feminist movement.
At the same time, the analysis tries to identify and classify the
organizations and the feminist movement´s speeches in Goias during the
eighties, emphasizing he actions of the Centro de Valorização da Mulher
(Cevam), an entity which in linked to the struggle in defense of the women´s
rights prioritly, who are victims of the men´s violence in Goias. This entity also
deals with the pragmatic feminists who are the objective of the study. Based on
Manuel Castells, it traces out a typology from the feminist actions in Goias up to
the pragmátics feminists´ actions, women who were victims of their ex-
husbands or loves affairs´s violence. Those women, although they don´t
recognize themselves as feminists, are able to erode and dismystify the
institutions and the patriarchal speech.
7
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..........................................................................8
INTRODUÇÃO................................................................................9
CAPÍTULO 1 – A CONSTRUÇÃO DO REFERENCIAL TEÓRICO E A AÇÃO
FEMINISTA.....................................................................................19
1.1- Os apelos identitáros e as condutas coletivas...................20
1.2- Os movimentos sociais......................................................28
As matrizes teóricas dos movimentos sociais................. 31
1.3- Discurso feminista – suas formas e identidades
peculiares..........................................................................36
CAPÍTULO 2 – SERVILISMO, OPRESSÃO E SUBMISSÃO: A CONDIÇÃO
FEMININA EM GOIÁS..................................................................46
2.1- A opressão como traço cultural..........................................46
2.2- As organizações feministas em Goiás...............................52
2.3- As identidades feministas em Goiás..................................56
CAPÍTULO 3 – O CEVAM E A AÇÃO DE MUDANÇA......................................70
3.1- O Centro de Valorização da MulheR – Cevam .................70
CAPÍTULO 4 – AS FEMINISTAS BUSCAM PROTEÇÃO.................................81
4.1- A pesquisa.........................................................................82
4.2- Quem são as albergadas?................................................83
4.3- As feministas pragmáticas na Casa Abrigo.......................84
4.4- Denunciar é ação capaz de promover mudanças?...........87
4.5- Os atributos da cidadania na ação feminista pragmática100
CONCLUSÃO.............................................................................107
REFERÊNCIAS..........................................................................112
ANEXOS.....................................................................................115
8
APRESENTAÇÃO
A cidadania está na ordem do dia. Nunca utilizou-se tanto esse conceito
como atualmente. Também nunca se falou tanto de gênero e violência como
agora.
Neste trabalho, abordaremos esses temas tentando mostrar como
noções de direito e justiça perpassam campos de ações aparentemente
desvinculados da lógica democratizante que opera na esfera pública e vincula-
se a esfera da vida privada, propondo, cotidianamente, laços de solidariedade
mais igualitários e justos para homens e mulheres, crianças, jovens e idosos.
A partir da denúncia da violência praticada contra as mulheres em Goiás
por ex-cônjuges e pares amorosos e da aproximação dessas mulheres ao
Centro de Valorização da Mulher (Cevam), procuraremos demonstrar em que
medida essas mulheres são feministas e como noções de direitos e justiça,
formuladas ou balizadas entre elas, podem orientar suas ações e desconstruir
identidades, discursos e instituições da sociedade patriarcal.
Esperamos que este estudo, ao tomar por objeto a ação das feministas
pragmáticas, possa trazer alguma contribuição aos processos de
democratização por que passam as relações interpessoais, bem como aos
trabalhos que tratam da questão de gênero, da cidadania e da violência.
9
INTRODUÇÃO
Trabalhar a construção da identidade, especialmente a identidade
feminista, a partir dos movimentos sociais, deveu-se ao postulado de que os
movimentos sociais constituem, primeiro, uma espécie de conduta coletiva
originária de um apelo à identidade. Segundo, porque esse apelo à identidade
se organiza em torno de uma noção de direito – direito à igualdade ou à
diferença, direito à vida, entre outros.
E, por último, porque a definição da identidade pressupõe a autonomia
dos indivíduos na ação coletiva diante das práticas sociais dominantes. Em
face de um atributo culturalmente significativo ou de uma pertença comunitária,
os atores desses movimentos forjam a si mesmos, ou seja, definem-se no
processo de luta.
A questão básica e definidora da escolha do tema não esteve em saber
se os movimentos sociais são, ou não, forças capazes de provocar mudança
nas estruturas sociais, mesmo porque não garantias de que eles possam
transformar práticas sociais antigas e fortemente alicerçadas.
A questão básica esteve na possibilidade de, diante da explicitação de
uma situação de crise ou de conflito social, o sujeito elevar-se às noções gerais
que inicialmente o definem noções essas dadas a partir das instituições e
papéis, pelas idéias de nação, trabalho ou classe social que prevalecem sobre
qualquer outra definição do sujeito social e determinam sua ação –¹ e construir-
se a partir de atributos culturais outros como etnia, pertença comunitária ou
sexo.
Fazer esta abordagem a partir do movimento feminista, especialmente
da ação de uma organização feminista em Goiás, qual seja o Centro de
Valorização da Mulher (Cevam) e das mulheres que a ele se vinculam (vítimas
da violência masculina à procura de apoio e proteção), deveu-se sobretudo à
10
busca de redefinição dessas mulheres e à visibilidade que a entidade tem na
luta do movimento feminista anos 80, quando prioriza o tema da violência do
homem contra a mulher na sociedade goiana.
A ação do Cevam, orientada pelo desejo de mudança nas relações
sociais que se estabelecem entre homens e mulheres em Goiás, define-se
preferencialmente em termos do direito. Direito formalizado do qual as
mulheres são excluídas, mas também direito de que carecem. Como essa ação
assenta-se em princípios identitários, as mulheres puderam, por meio dela,
negar² as primeiras definições sociais que as situaram na teia das relações
sociais e definiram-se pelo atributo comum ao movimento social feminino em
qualquer parte do mundo: direito a ter direito.
Essa ação, por se assentar em atributos culturais, é, segundo Touraine
(1984), fortemente marcada pela rejeição dos elementos responsáveis por
socializações primárias (família, esposa, mãe, comunidade), ou seja, as
definições sociais gerais dadas por funções e papéis sociais, e assenta-se no
indivíduo, em seu corpo, seu desejo, e naquilo que entende ser justo e ser seu
direito.
Dentro do movimento feminista, os atributos culturalmente significativos,
que definem o indivíduo e orientam sua ação, são responsáveis não pela
difusão da noção básica de direito, direito a ter direitomas, para além dela,
completando a crítica sobre as práticas sociais dominantes, formular novas
noções de direitos e de cidadania que não se limitam propriamente àquelas já
legalmente definidas.
Se tais noções de direito e de justiça são construídas a partir dos
movimentos sociais, na explicitação do conflito e no processo de lutas, elas se
encontram fortemente marcadas por um processo de conquista, de afirmação e
de negação de formas de relações sociais e dos poderes que a elas se
associam. São noções que partem de um princípio simples, localizado na rede
de relações sociais que compõem a sociedade para, então, se tornar geral e
válido para toda a coletividade.
A noção de cidadania, assim entendida, capaz de definir o sujeito e
orientar sua ação, não pode ser concedida.
4
Ela é marcada por processos de
luta e conquista de quem busca o reconhecimento de direitos não-
formalizados.
11
A busca de uma identidade cidadã, assim considerada, passa pela
criação de um espaço para o debate sobre o que seus integrantes entendem
como direito; do reconhecimento das várias formas como se apresenta sua
negação na estrutura social; da identificação do adversário naquele contexto, e
pela construção de um projeto em que o direito se estabelece como geral e
universal.
Esse espaço é coletivo, deve ser o espaço privilegiado da sociedade
civil,
5
e nele o debate permite a circulação de informações, valores e a
formação de opiniões, mesmo considerando a heterogeneidade, as
expectativas e a experiência de cada um dos atores.
A noção de cidadania capaz de orientar ões coletivas com base no
apelo à identidade, como a do movimento feminista, por exemplo, não é a
mesma do Estado do bem-estar social que busca incluir um número cada vez
maior de indivíduos que se encontram excluídos de suas políticas públicas.
6
A
noção de cidadania que orienta os atores dos movimentos sociais é a que,
mesmo estando excluídos daquilo que entendem, naquele contexto histórico
específico, ser seus direitos direito sobre o próprio corpo, direito à proteção
ambiental, direitos aos serviços públicos, direito à terra, à moradia etc pode-
se forjar um novo status de cidadão acrescentando novos elementos aos
direitos já formulados e à noção de cidadania já existente.
Cidadania, vale dizer mais um vez, de que carecem naquele contexto
específico, que cada tempo e lugar definem noções de direito próprios. Uma
noção que tanto se assenta no direito à igualdade, como pode se assentar na
noção do direito à diferença.
7
O movimento organizado das mulheres foi capaz de forjar tais noções
quer nos EUA a partir de 1966, quer na Itália e na França, a partir da década
de 1970, ou no Brasil, a partir da década de 1980. Elaborou direitos que foram
incorporados às políticas públicas de segurança e saúde da mulher, produziu
alterações nos Códigos Civis e Penais, introduziu alterações nas relações
interpessoais, alterou as estruturas de instituições como a família, modificou
ainda as formas de homens e mulheres se relacionar e tratar questões como a
sexualidade e o poder. O controle do próprio corpo, por meio de métodos
anticoncepcionais artificiais, outra conquista da luta das mulheres, permitiu-lhes
12
reformular a participação feminina no mercado de trabalho, na política, no
núcleo familiar, redefinindo o sentido de ser mulher.
E quando se pensava que o discurso pela igualdade fosse a retórica
feminista, na década de 1980, o movimento feminista italiano, a partir da noção
da diferença, elabora novos projetos que se constituíram motivação para a luta
das mulheres.
Em Goiás a ação das mulheres albergadas na Casa Abrigo e a do
próprio Cevam são orientadas pela noção de direitos, gerais e específicos.
Direitos gerais, gestados na luta pelo estabelecimento dos direitos humanos,
como a integridade física, moral ou psíquica do indivíduo e o de ir e vir, que,
mesmo constituindo matérias regulamentadas pelo Estado brasileiro, não se
configuram, na prática, em realidade para as mulheres e tampouco o
universais pois não se firmam como válidos para todos.
É corrente no discurso feminista em Goiás a referência à não-inclusão
das mulheres nos direitos formalizados. O direito que trata da igualdade
entre os cidadãos é um exemplo disso. Essa exclusão fez com que as
mulheres goianas reivindicassem, por meio da luta organizada, delegacias
especiais, órgãos públicos, políticas públicas de educação e saúde que
atendessem às suas demandas.
E por que a construção dessa nova categoria de cidadania pelo viés dos
movimentos sociais?
Primeiro, reiterando o parágrafo inicial, porque os movimentos sociais
são condutas coletivas marcadas pelo apelo à identidade. São processos que
têm por base a auto-construção a partir de atributos culturais ou pertenças
comunitárias que se transformam em força política capaz de explicitar o
conflito, colocando assim os atores do movimento social em confronto com as
orientações vigentes na vida social. São, ainda, processos capazes de levá-los
a identificar o adversário contra o qual lutam e a definir os objetivos da luta.
Poderíamos, então, afirmar que os movimentos vão formando a consciência
dos atores envolvidos no conflito; que, na construção de uma identidade
feminista, por exemplo, o movimento organizado das mulheres se torna capaz
de politizar aquelas que tomam parte dessa luta.
Segundo, porque o referencial dos movimentos sociais nos remete à
noção de autonomia do sujeito. Diante de uma recusa do lugar e do papel
13
socialmente preconcebido, o indivíduo poderia ser construído na relação com
os outros, no diálogo com as instituições e na interiorização de seus
significados. Por isto, os movimentos sociais permitem que ressuscite nos
homens aquilo que Castoriadis (1988) chamou de “capacidade inalienável”,
qual seja, a criatividade e a autonomia que dão novos significados às regras,
ritos, valores e símbolos, permitindo a sua recriação e a superação da
alienação em que eles se encontram diante das instituições.
Assim, a definição daquilo que os indivíduos são é dada inicialmente por
categorias mais amplas como nacionalidade e territorialidade e por instituições
como família, religião e trabalho, que organizam funções garantindo
funcionalidade à ordem social. Ela não inclui uma definição individual e
significativa de cidadania; desse modo, uma definição a partir do atributo “ser
mãe” pode excluir o atributo cultural “ser cidadã” porque tem negado o direito
econômico, de ir e vir ou de anticoncepção, por exemplo.
Cidadania, do ponto de vista sociológico, não pode ser vista como uma
categoria social dada, muito menos como uma pertença que se inclui,
inicialmente, na construção da identidade. Não pode ser dada, ainda, como
uma condição jurídica predeterminada ou, como a expressa o modelo clássico
do Estado do bem-estar social, que busca a inclusão progressiva dos excluídos
aos direitos civis, políticos e sociais.
As categorias gerais que definem indivíduos a partir das instituições e
por meio da socialização não oferecem ao sujeito espaços para que, no
processo de interiorização de valores e atributos, estes constituam fontes de
significados para os próprios atores.
Ser boa mãe, bom(a) cidadão(ã), morador(a) da cidade, membro de um
Estado e de uma nação ou bom(a) trabalhador(a) o garante qualidade de
vida, nem justiça social. Talvez por isso mesmo, ao se definirem no apelo à
uma pertença comunitária, com base em um atributo culturalmente significativo,
como o da igualdade entre os gêneros feminino e masculino, os atores
recusem as atribuições e o lugar previamente determinados para eles na teia
das relações sociais.
Nesses termos, a cidadania não é algo que se de forma pronta e
acabada, mas um estado de consciência que se constrói com a adição de
novas noções de direito àquelas existentes. É um movimento, gestado pelo
14
próprio ator, que parte de uma noção particular de direito para outras noções
mais gerais e mais complexas.
Ao afirmar que cidadania deve ser gestada pelo próprio ator queremos
dizer que ela, a cidadania, não pode ser concedida, e que, se assim o for,
corre-se o risco do direito não se tornar significativo e, consequentemente, não
contribuir para a construção da identidade.
No processo de reconstrução de identidades, por meio de condutas
coletivas, os atores caminham de um valor culturalmente significativo mais
específico para noções mais gerais. Podem inicialmente se organizar na defesa
da integridade física, como o fazem as feministas albergadas na Casa Abrigo,
reivindicando um tipo específico de proteção para passar, então, ao
estabelecimento de outras formas de sociabilidade, questionar as relações
interpessoais que se estabelecem na sociedade patriarcal e que são protegidas
(organizadas) pelo Estado patriarcalizado.
No movimento das mulheres
Não se questiona somente a luta das mulheres pela
igualdade e pela liberdade ou, inversamente, a busca das
especificidade da experiência feminina em relação à
masculina. É a afirmação de que o universal humano não
se encerra numa figura, a do homem, que era de fato um
homem adulto, educado e economicamente independente,
mas na dualidade do homem e da mulher, que o forma,
às vezes de maneira diferente, às vezes de maneira
idêntica, ao processo de combinação de um ser particular e
de uma racionalidade geral, substancial ou instrumental.
Não se trata de uma reivindicação particular, da ação de
uma minoria, e as feministas como Gisèle Halimi têm razão
de rejeitar, com raiva, a definição das mulheres como
minoria. Porque a crítica feita pelas mulheres tem um valor
geral: é preciso destruir a identificação da cultura ou da
modernidade com um ator social particular nação,
civilização, classe, gênero, grupo de idade, profissão, nível
de educação –, identificação que encerra os outros atores
num status de inferioridade e de dependência. (Touraine,
1998, p. 45)
15
Considerando a ação das mulheres vítimas da violência masculina
albergadas na Casa Abrigo, mantida pelo Cevam, resta-nos saber se a busca
por um albergue que livre tais mulheres das agressões às quais se acham
expostas, por parte de seus parceiros, esposos, namorados, pais, poderia ser
classificada como de construção de identidades.
A busca das mulheres pela Casa Abrigo, muito embora não determine
filiação ao movimento feminista, marca o início da passagem de um princípio
simples de ação para outros princípios complementares sobre a qual o Cevam
pouco contribui quando opta por prestar serviços às possíveis militantes,
deixando de investir no debate e na formação política das mulheres. Ao agir
dessa forma, a entidade do movimento feminista perde parte de sua
capacidade de produzir mudanças.
Analisaremos neste trabalho os processos que determinam a mudança
na forma de mobilização do Cevam e o distanciamento que essa nova forma de
ação provoca entre a entidade e as feministas às quais presta serviço. E ainda,
a formação de uma identidade política, a identidade feminista pragmática, que
se configura em suas dependências, à sua revelia. Para tanto, iniciamos a
exposição tratando do referencial teórico que ofereceu objetividade aos
processos de análise e observação empírica. Recorreremos à contribuição de
Touraine e Castells para tratar dos movimentos sociais, da (re)construção de
identidades, do movimento feminista e das noções de sociabilidade que
emergem das ações dos atores sociais em processo de luta contra o lugar e a
posição que inicialmente lhes são dados na teia de relações sociais.
No segundo capítulo, buscamos caracterizar a violência masculina
contra a mulher em Goiás como sendo um traço estrutural da sociedade
goiana, que ressalta a braveza e a masculinidade, característica cultural em
torno da qual vão organizar-se as mulheres. Fazemos então um breve histórico
das ações das mulheres na história goiana e das organizações feministas no
estado, destacando as ações prioritárias de cada uma delas, a partir da década
de 1980, para classificá-las quanto ao tipo de ação que organizam.
No terceiro e quarto capítulos, tratamos da pesquisa empírica
propriamente dita. No terceiro capítulo, reconstruímos a história do Centro de
Valorização da Mulher (Cevam), dos anos 80 até os dias atuais, analisando as
mudanças por que passam as formas de mobilização da entidade. Já no quarto
16
capítulo, tratamos das feministas pragmáticas, mulheres vítimas do abuso da
força e da posição dos homens na relação conjugal e amorosa que buscam
proteção no Casa Abrigo, ONG mantida pelo Cevam por meio de convênios, de
doações e do serviço voluntário. Nestes dois capítulos, nos manteremos
preocupadas em identificar os processos definidores de uma identidade à qual
pudéssemos chamar de cidadã.
Foram realizados dois tipos de entrevistas, uma dirigida e outra aberta,
com as albergadas. Nas entrevistas, buscamos estabelecer o grau de
participação política antes e após o ingresso das mulheres na Casa Abrigo,
bem como a relação das mulheres albergadas com a entidade feminista e o
debate interno que contribuiu para os processos formadores da consciência de
direitos e medidas de justiça. Finalmente, se e em que medida o Cevam,
enquanto entidade do movimento social, colaborou para a formação dessas
noções junto às feministas que não se reconhecem como tal. Realizamos
também um levantamento histórico nos arquivos do Cevam e outro bibliográfico
para reconstruir a história e a ação dessa entidade na defesa do direito da
mulher e no combate à violência masculina. As conclusões estão nos capítulos
terceiro e quarto ou são corroboradas na última seção deste trabalho.
Esperamos que o enfoque dado à ação das mulheres neste estudo
possa contribuir para a compreensão dos processos democratizantes da vida
privada.
17
NOTAS
1. Alguns autores rompem com os modelos clássicos de análise sociológica que buscam
definir o sujeito a partir da esfera do trabalho e priorizam a interiorização de conhecimentos
e funções específicas no processo de produção para determinar a consciência e a busca
de motivação para a ação social. Para eles, o indivíduo não pode ver-se reduzido à esfera
ocupacional ou à estrutura de classe pois estabelece um complexo de relações sociais no
seu cotidiano que pode constituí-lo das formas mais variadas possíveis. Claus Offe chama
a atenção para as mudanças por que passou o mundo do trabalho capitalista no final do
século XX e que acabaram por subvalorizar as experiências dos trabalhadores em seus
locais de trabalho. Cornélius Castoriadis, por sua vez, ao rejeitar a idéia de determinação
do sujeito a partir da racionalidade de classe social determinando a priori, a sua ação,
apresenta um novo referencial teórico para a construção do sujeito, qual seja, a noção de
sujeito interligado à de autonomia. Destaca, dessa forma, a capacidade de autonomização
dos indivíduos diante das instituições como espaço privilegiado para o novo”. Ver Offe
(1989; p. 167 a 197). Ver, também, Castoriadis (1988).
2. Embora aqui façamos referência à recusa de uma identidade anterior, o podemos deixar
de mencionar a possibilidade da construção de identidades dar-se também a partir da
adição de novas orientações culturais e não tão somente pelo processo de ruptura.
3. A expressão direito a ter direito, apresentada por Hannah Arendt, fala-nos dos espaços
públicos como espaços políticos, por excelência, nos quais as opiniões e as ações
individuais se expressam livremente e em condições de igualdade. Os sujeitos são
julgados por suas opiniões e ações e não pelo que “são” e a capacidade de julgar o outro
como seu semelhante, não parte de uma visão cristã, mas de uma noção de igualdade que
reconhece todos os cidadãos como portadores de um direito comum de participação na
vida pública. Afirma, ainda, que ante a inexistência de um lugar onde as opiniões e as
ações se expressem, os homens correm o risco de se verem privados de seus direitos.
Para maiores informações ver Telles (1999, p. 27 a 75).
4. vários estudos que descrevem as conseqüências sociais de uma cidadania concedida
ou tutelada. Ver principalmente Santos (1998), Salles (1994) e Telles (1999).
5. Para Alain Touraine, apesar de ter-se associado por cadas à luta dos atores sociais e
políticos no combate à dominação capitalista e do Estado, a noção de sociedade civil é
indispensável quando se fala de movimentos sociais. Sociedade civil para esse autor
“designa o lugar das ações coletivas realizadas para a libertação dos atores sociais e
contra o funcionamento da economia dominada pelo lucro e pela vontade política de
dominação. Contra esses dois sistemas de poder, todas as imagens do sujeito buscam
18
criar um espaço autônomo”. Assim, defende na sociedade civil a idéia de que seus atores
têm na sua autonomia o objetivo central. E continua mais adiante: “Ante as monarquias
absolutas, foram os atores econômicos, os burgueses, que defenderam a sociedade civil.
Numa sociedade dominada pela economia de mercado, são os movimentos de defesa dos
direitos culturais que melhor a representam. Na sociedades totalitárias, é o movimento
social total [...] Se hoje se deve falar de sociedade civil, é para afirmar que o sujeito fala
doravante por si mesmo; e não pode mais fazer de outro modo porque está cercado ao
mesmo tempo pelo universo econômico do mercado e das técnicas e pelas ideologias
comunitaristas que os estados e os partidos políticos encarnaram. Por fazer reivindicações
mais morais e culturais que econômicas, só pode agir em ligação com forças políticas; mas
estas, por sua vez, não podem confundir-se com partidos e coalizões que administram a
política nacional”. (Touraine, 1998, p.121 e 122).
6. A noção de cidadania tem origem, segundo Marshall, na Inglaterra, a partir do século
XVIII, com a constituição dos direitos civis – direitos às liberdades individuais. É um
prerrogativa inicialmente conferida aos moradores de determinadas localidades, mas que,
paulatinamente, vai se tornando universal para então, por meio do Estado e seus tribunais,
assegurar a todos aqueles que vivem na nação inglesa o status de cidadania.
Posteriormente, nos séculos XIX e XX, novas noções de direitos – direitos políticos e
direitos sociais vão sendo agregados. Nessa elaboração teórica, cidadania é um status
assegurado àqueles que usufruem de determinadas prerrogativas expressas pelo direito,
pelas leis e pela constituição. Na medida em que o status se torna universal, válido para
todos, é papel de um poder central, o Estado, incluir nesse status todos aqueles indivíduos
que, vivendo sob aquela jurisdição, se em excluídos de sua prerrogativas. Esta é,
segundo Evelina Dagnino (1994, p. 103 a 115), uma visão liberal de cidadania, definida em
um momento histórico especifico, que ainda se encontra vigente em nossos dias. Apesar
de todo as criticas que, segundo Elisa Reis (1994, p. 27 a 42), sofre Marshall e sua
elaboração teórica acerca da cidadania, um aspecto é essencial: em sua matriz e em todas
que se seguem, a noção de direito perpassa a de cidadania. Para maiores informações ver
Marshall (1967, p. 9 a 55) e Dagnino (1994, p. 103 a 115). Ver também Reis (1994, p. 27 a
42).
7. Não queremos aqui entrar na discussão ambígua do caráter positivo e negativo da
diferença e nas formas como a direita e esquerda devem tratá-la numa luta política, mas
afirmar que a nova noção de cidadania inclui não uma concepção de igualdade como
princípio, mas também, uma noção da diferença. Esta é uma noção que se agrega ao
direito de ser de um novo conceito de cidadania. Para maiores informações sobre essa
discussão ver Pierucci (1994, p. 137 a 149 e 1993, vol. 2, p. 10.)
19
1- A CONSTRUÇÃO DO REFERENCIAL TEÓRICO E A AÇÃO FEMINISTA
Quando pensamos a construção de identidades (e neste caso
específico, na construção de identidades feministas) vem-nos de imediato à
idéia a existência de conflitos sociais e a noção de autonomia, questões
presentes nas ações coletivas do tipo ofensivas.
Ainda que possa haver certa confusão entre papéis ser mãe, pai,
militar ou militante, operário etc. – e identidade,¹ as identidades tornam-se para
os atores fontes de significados mais importantes que os papéis porque os
indivíduos delas se valem como atributo cultural para a construção do que
desejam ser.
Elas são construções que o próprio indivíduo faz, por meio da
individualização, e que, ao contrário dos papéis, não são marcadas pela
imposição de um padrão de comportamento sobre a conduta individual,² mas
por um processo de autoconstrução, que pressupõe a autonomia do indivíduo
em face de vários atributos culturais significativos. Tais atributos podem até
envolver ser mãe, negro, mulher, por exemplo.
Nesse sentido, os indivíduos podem ter várias fontes de significado que
se confundam com os papéis por ele desempenhados, porém a identidade só é
construída a partir de uma fonte de significados que prevaleça sobre as
demais, ou seja, com base em atributos culturais mais importantes
A construção de identidades pelo próprio sujeito abre a possibilidade de
ele se definir além do universo das classes sociais, a partir das experiências
que tem na convivência diária com o grupo, permitindo percebê-lo em sua
totalidade e estabelecendo relações outras que não apenas as centralizadas na
ordem econômica.
Se a identidade é um processo de interiorização de significados com
base em algum atributo cultural, ela surge, segundo Touraine, primeiramente
como uma recusa à definição social dos papéis que os atores devem
desempenhar: mãe, mulher, operário, pai, homem, negro. Pode se caracterizar,
também, como um apelo individual ou de grupos contra a identidade requerida
20
pela coletividade, pelo Estado, pela noção de pátria e Estado-nação. Ser
mulher no contexto das lutas feministas, então, é negar o lugar e o papel dado
a ela pela sociedade patriarcal.
É por isso que nas sociedades modernas a identidade se refere ao que
de menos social no homem, que é a sua natureza, seu desejo, seu corpo,
as relações interpessoais, o indivíduo, enfim. Este é um apelo de
autodeterminação do sujeito contra a dominação que não pode deixar de ser
política, já que recorre à idéia de autonomia, autogestão.
Nesses termos, é portanto clara a idéia de que a construção da
identidade se em um contexto marcado por relações sociais de poder e
pode se converter em uma força social. Porém, identidade é força social
ambígua, pode tanto ser força de mudança como se converter em mecanismos
de destruição dessa capacidade de ação dos indivíduos.
Se a ação que reclama identidade o se converter em reivindicação ou
contestação, ela é metade de uma ação de mudança. A identidade que
reclama autonomia e apela ao que de menos social há no sujeito é uma força
de luta social, mas constitui metade da ação de mudança se se converte em
movimento puramente defensivo. Para se transformar em uma força social de
mudança, a ação que reclama identidade deve transformar-se em uma ação
contra-ofensiva.
Deve ser capaz de se opor ao poder contra o qual luta e a toda forma de
dominação a ele identificada. O feminismo deve, para se converter em força
social de mudança, opor-se ao patriarcalismo e a toda manifestação de poder a
ele associada e que lhe dá sustentação.
1.1- Os apelos identitários e as condutas coletivas
Cabe neste momento fazer distinção entre os apelos à identidade e as
condutas coletivas às quais dão origem.
Castells,
com base em Touraine, descreve três tipos de construção de
identidades, fontes de condutas coletivas que se convertem em força de luta
21
social e podem, ou não, ter capacidade de ação social, caracterizam-se, ou
não, como força social capaz de produzir mudanças. São elas identidade
legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto.
No primeiro tipo de construção de identidade, que origem à
identidade legitimadora, os atores tendem a reafirmar a estrutura de dominação
à qual se encontram vinculados.
São identidades impostas por um Estado, em nome do nacionalismo, da
cidadania ou do patriotismo, e tendem a reforçar o seu autoritarismo. Permitem
a emergência ou o fortalecimento de organizações e instituições que estão na
lógica da dominação, como a Igreja, os sindicatos, os partidos políticos e outras
entidades com as quais os indivíduos têm vínculo.
Esse tipo de apelo à identidade origem a condutas reparadoras ou de
reconstrução da sociedade, reestruturando os seus princípios de
funcionamento. Assim, são as ões coletivas de crise organizacional e de
tensão institucional descritas por Touraine.
Nas condutas de crise organizacional, a identidade é definida em torno
da organização de seus atributos normativos, de suas necessidades e
costumes. Nesses tipos de condutas, a identidade é fracamente definida
porque se dá por meio da dualidade da posição (interior/exterior) dos atores em
relação à organização: do interior, quando se colocam dentro da organização, e
do exterior, quando estão fora ou diante da organização.
A identidade é fracamente definida numa crise organizacional em virtude
da dubiedade de sua posição, porque a organização é um meio social
particular, entre tantos outros em que o ator participa e desempenha papéis. O
seu interesse e a sua participação ao formular reivindicações de mudança ou
reestruturação depende do grau de atuação dos atores na organização, bem
como de sua participação em outros grupos de interesse.
Os membros de uma organização que formulam
reivindicações se definem a si próprios de duas maneiras,
do interior e do exterior da organização. De um lado, de
fato, eles ocupam uma certa posição e consideram que
dando uma certa contribuição devem receber um
retribuição justa, isto é, concedida ao nível relativo de sua
contribuição. Por outro lado, a organização é apenas um
22
meio particular no qual o ator parcialmente empenha.
Ele age, portanto, em função de seus outros papéis e do
conjunto de seus interesses pessoais. (Touraine, 1978, p.
336)
São sempre condutas que revelam uma crise no sentido de
reconstituição, restauração de uma ordem social como se buscando uma
situação de “normalidade” e não de transformação dessa ordem.
As condutas coletivas que expressam tensões institucionais são, por sua
vez, sempre orientadas por uma decisão e se limitam ao campo institucional.
Também definem fracamente o ator porque são ões momentâneas,
dependem dos atos da instituição e se reportam a uma autoridade. Ainda que
possam se apresentar como condutas transformadoras, são ações orientadas
para e contra a instituição, exigem participar das decisões institucionais e se
definem na capacidade de influência sobre o sistema institucional.
São ações mais políticas que sociais porque
A pressão institucional tem, muitas vezes, como ator os
estratos inferiores ou os elementos ameaçados da classe
superior. Querem igualdade, opõem-se ao
açambarcamento das riquezas e do poder político pelos
grandes proprietários. Sua ão é muito mais política do
que social, pois não constituem a classe popular da
sociedade considerada. (TOURAINE, 1978, p. 340)
a identidade de resistência, o segundo tipo de construção de
identidade citado por Castells, é formulada a partir da oposição dos indivíduos
às instituições ou aos valores dominantes na sociedade e não na busca de
reestruturá-las por meio de um comportamento de crise ou de tensão. Os
indivíduos se constroem com base no sentimento de exclusão e desvalorização
que os coloca em oposição à lógica dominante.
23
Ao reverterem os valores, os atores fortalecem os limites da resistência,
criando um movimento “de exclusão com base na própria exclusão dos que
excluem”, dão origem a
[...] trincheiras de resistência e sobrevivência com base em
princípios diferentes dos que permeiam as instituições da
sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos [...].
(Castells, 1999, p. 24)
Castells avalia que este é o tipo mais importante de construção de
identidade nas sociedades modernas. Ela não se utiliza do material da história,
geografia ou biologia, mas sim de um sentimento de exclusão e
desvalorização.
A identidade de resistência origem à sociedades ou comunas, como
os movimentos étnicos que fazem surgir comunidades dos que se diferenciam
porque assim são tratados pela sociedade dominante.
Nessa lógica se inserem os protestos modernizadores e o populismo
descritos por Touraine.
Os protestos modernizadores, se não são ações coletivas que orientam
para o controle do sistema de ão histórica, são condutas que se definem na
luta em nome do presente contra o passado. Não se opõem à classe social ou
a nenhum poder econômico específico, mas às formas de dominação que
podem ser exercidas por qualquer classe em qualquer sistema produtivo.
São ações que se definem mais no campo da cultura do que da política
ou do social e reclamam um novo tipo societário. Um exemplo claro são os
discursos elaborados pelo movimento feminista. Eles falam da submissão e da
desigualdade, estendendo para a esfera da vida pública elementos que, até
então, se limitavam à esfera do doméstico, da vida privada.
No populismo, um tipo especial de ação defensiva com traços de forte
participação popular, o apelo à identidade não se assenta na oposição a um
antigo regime, mas a um processo de modernização que subverte os antigos
valores. O apelo identitário se assenta na defesa de um Estado e de uma
24
cultura nacionais, e, combate, por sua vez, um Estado e uma cultura externa
que impõem a modernização e subverte a organização social e a cultura
anterior. Quanto maior for a dominação estrangeira, maior o apelo à identidade.
O terceiro tipo de construção de identidade apresentado por Castells é a
identidade de projeto. Nela o ator se utiliza de todo material cultural de que
dispõe (histórico, geográfico, étnico e cultural, entre outros) para a construção
de uma outra identidade.
Essa construção supera a resistência às instituições ou às estruturas de
sociedade para se apresentar não só como expressão de um desejo de
transformação da própria identidade, redefinindo a posição dos indivíduos na
sociedade, mas também como projeto de transformação das estruturas
sociais, enfim, da sociedade.
Movidos por um desejo de criar sua história pessoal, de tomar para si o
controle do sistema de ão histórico, os indivíduos, ao se definirem por meio
de identidades de projetos, projeto de uma vida diferente, são transformados
em atores sociais. As transformações pelas quais reclamam são extensões de
seus projetos. Esse tipo de identidade nos remete aos movimentos contra-
ofensivos, descritos por Touraine, que apelam a uma identidade ofensiva.
Para Touraine, o apelo à identidade ofensiva, embora se origine de uma
ação coletiva do tipo defensiva, tem outra natureza. É uma ação que se
subverte ao transformar o protesto em contestação
contra o poder que destrói não a identidade, mas a
capacidade de intervenção autônoma de coletividades ou
de indivíduos. (Touraine, 1984, p. 120)
Se as ações coletivas que se movem pelo apelo à identidade não se
completam, ou seja, não deixam de ser defensivas para se tornarem
reivindicações, elas tenderão a ter vida curta.
O apelo defensivo à identidade tem origem nos atributos culturais que se
encontram na comunidade, na ameaça à vida ou na diferença, mas é na crítica
ao poder que nasce do dinheiro, na oposição ao poder masculino identificado
25
com o poder do dinheiro que a ação coletiva pode sobreviver e se constituir em
apelo à mudança.
Um apelo defensivo sobrevive transformando-se em ação contra um
tipo de poder social, em uma ação de toda a coletividade, e não do grupo
que delibera as ações ofensivas, contra o poder identificado com o elemento a
que se opõe (patriarcalismo, capitalismo industrial ou financeiro).
Assim, a identidade torna-se, aos olhos do sociólogo, não o
apelo a um ser, mas a reivindicação de uma capacidade de
ação e de mudança. Define-se em termos de escolha e não
de substância, de essência ou de tradição. [...] a passagem
de uma identidade defensiva à identidade ofensiva é
igualmente a passagem de um princípio simples de ação à
interdependência de vários princípios complementares.
(Touraine, 1984, p. 120)
Se o apelo à identidade pode tornar-se uma força social de mudança,
pode, também, encarcerar uma ação coletiva. Transformando-se em uma força
social de mudança, deixando de ser um apelo defensivo para virar uma
capacidade de ação, apresentar-se-á como um esforço dos atores sociais de
tomarem para si o controle da historicidade.
4
É somente nessa fase que
podemos, então, tomar as identidades como um dos princípios dos movimentos
sociais.
Os movimentos sociais são condutas coletivas identitárias que
expressam a luta dos indivíduos pela historicidade, pelo controle do sistema da
ação histórica.
Castells considera que, ainda que identidades legitimadoras e de
resistência possam vir a se transformar, as identidades de projetos, ao
contrário das construções de identidades anteriores, o buscam a
reestruturação do sistema de dominação da sociedade, nem tampouco criam
comunidades que se excluem baseadas em sentimentos de depreciação e
diferenciação impostos pelo grupo dominante, mas procuram modificar as
26
condições de vida às quais seus atores se acham submetidos e,
conseqüentemente, o quadro histórico em que estabelecem relações.
Assim, os indivíduos são atores sociais que atingem a totalidade em sua
experiência quando
[...] a construção da identidade consiste em um projeto de
vida diferente, talvez com base em uma identidade
oprimida, porém expandindo-se no sentido da
transformação da sociedade como prolongamento desse
projeto de identidade como no exemplo da sociedade pós-
patriarcal, resultando na liberação das mulheres, dos
homens e das crianças por meio da realização da
identidade das mulheres. Ou, ainda, de uma perspectiva
bastante distinta, a reconciliação de todos os seres
humanos como fiéis, irmãos e irmãs, de acordo com a lei
de Deus, seja Alá ou Jesus, como conseqüência da
conversão das sociedades infiéis, materialistas e contrárias
aos valores da família, antes incapaz de satisfazer as
necessidades humanas e os desígnios de Deus. (Castells,
1999, p. 26)
O desejo de uma vida diferente é o que está na base da ação das
mulheres que buscam proteção contra a violência praticada por esposos,
companheiros, namorados ou pais na Casa Abrigo mantida pelo Centro de
Valorização da Mulher (Cevam). A identidade a que apelam tais mulheres e
que orienta suas ações é do tipo defensiva, nasce do sentimento de
desvalorização, submissão, desigualdade e exclusão. É identidade que
reclama a democratização/modernização dos padrões de comportamento
socialmente estabelecidos.
As mulheres que se vinculam à entidade por meio da ONG, ou que dela
tomam parte de forma consciente por meio da militância e filiação ao
movimento feminista, reivindicando transformações nas relações interpessoais
–, embora possam ter redefinido suas identidades no apelo defensivo, lançam
mão de outro tipo de identidade: a identidade de projeto que reclama
mudanças nas relações societais. Tais mudanças constituirão o projeto que
orientará a ação dos atores sociais (organização do movimento feminista).
27
A noção primeira que mobiliza tanto as albergadas como as militantes da
ação organizada das mulheres contra a forma mais evidente da opressão
masculina, a violência, é a de que as mulheres são seres humanos e como tais
deverão ser tratadas. Quando se aproximam, por meio da Casa Abrigo,
identidade defensiva e identidade ofensiva, não buscam reestruturar as
instituições da sociedade patriarcal nas quais os homens têm poder sobre o
corpo e os desejos femininos, mas se opor, por meio da ação organizada das
mulheres, a essas instituições e aos valores nelas dominantes.
Na busca por proteção, as mulheres reclamam por mudanças societais,
com afirmamos. Denunciam a desigualdade, tornando público o que até então
se limitava à esfera privada. Opõem-se aos valores dominantes que legitimam
a submissão da mulher ao poder masculino.
Esse princípio identitário, o da oposição, origem a identidades de
mulheres donas de casas, agredidas, exploradas, que lutam para estabelecer
dignidade nas relações interpessoais. Essa mesma ação que resiste ao uso da
violência contra a mulher pode converter-se em contestação se subverte o
princípio da oposição. Se identifica o elemento ao qual se opõe a uma forma
especial de poder, passa, então, a combater esse elemento, a violência
masculina contra as mulheres e as formas de dominação a ele identificadas.
Assim caracterizadas, as transformações societais pelas quais reclama o
Cevam são os projetos que orientam a ação da entidade e que se vêem
reforçados pelo desejo de uma vida diferente das mulheres albergadas na
Casa Abrigo. A associação desses dois níveis de ação coletiva, uma de
oposição e outra de contestação, permite que a primeira não morra
encarcerada em si mesma, mas que se transforme e objetividade à luta
organizada pela segunda. Enquanto uma é movida pelo desejo de transformar
as relações sociais que estabelece, a outra busca transformar o quadro
histórico em que essas relações se inserem.
Partindo de um princípio simples de ação (identidade), as mulheres
goianas que se vinculam, conscientemente ou inconscientemente, ao Cevam
poderão atingir a totalidade de sua ão se passarem para vários princípios
complementares e interdependentes (projeto, adversário). Também, da
oposição à violência do homem contra a mulher, poderão reivindicar direitos,
28
formas de sociabilidade, de representação e participação, forjando as noções
de direito de que carecem as mulheres em Goiás.
1.2 – Os movimentos sociais
Ao falarmos das ações coletivas que apelam à uma identidade de
projeto, cabe-nos então discorrer sobre a literatura acerca dos movimentos
sociais, especialmente as formas de mobilização popular que emergem à cena
política a partir dos anos 60 em alguns lugares do mundo. Elas alcançam tanto
os países socialistas quanto os capitalistas, tanto os economicamente
desenvolvidos quanto os países emergentes e pobres do planeta. São
manifestações motivadas ora por crises da democracia, ora pela afirmação de
direitos sociais, raciais, sexuais e étnicos, entre outros.
Na literatura acerca dos movimentos sociais, percebe-se uma certa
dificuldade em definir esse tipo de conduta coletiva em razão mesmo da
diversidade de fenômenos que a noção abarca.
Movimentos sociais tanto são formas de organização das camadas
populares que lutam pela construção de um viaduto, como a organização de
mulheres que reivindicam por mais creches. Também abarcam movimentos
como os de proprietários e de trabalhadores rurais, de comunidades religiosas
(como a da Igreja católica durante os anos 70 e 80), de organizações étnicas,
de homossexuais ou, ainda, de categorias profissionais.
Podem, ainda, incluir reivindicações pelo reconhecimento de uma
identidade feminina específica (como é o caso das mulheres lésbicas negras),
manifestação contra o domínio de certas tecnologias no mundo do trabalho ou
a defesa do direito dos povos da floresta.
Para Calderón e Jelin,
não existem movimentos sociais puros, ou claramente
definidos, dada a multiplicidade não das relações
29
sociais, mas também dos próprios sentidos da ação
coletiva; por exemplo, um movimento de orientação
classista provavelmente estará acompanhado de aspectos
técnicos e de gênero que o diferenciam e o assimilam de
outros movimentos de orientação culturalista com
conteúdos classistas. Desta forma, os movimentos sociais
se em mantidos por múltiplas energias que incluem, em
sua constituição, desde formas antagônicas de ação social
pelo controle do sistema político e cultural, até modos de
transformação de participação cotidiana. (Calderón e Jelin,
1987, p. 76)
E, na tentativa de uma definição ideal de movimentos sociais, os
diferentes autores sempre se pautaram por articulá-lo a uma crise política,
visivelmente expressa na ão reivindicativa, que visa à “ampliação do espaço
político e o reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito na esfera pública”
(Miranda, 1997, p. 11).
Os movimentos sociais tentam impedir que o poder político defina os
temas que envolvem os interesses de seus integrantes sem a participação
daqueles que se encontram diretamente envolvidos na questão ou, no máximo,
contra eles.
Eles tendem
a criar seus próprios espaços e a politizar uma área
específicas das relações sociais, possibilitando pensar a
sociedade e a política não mais como estruturas ou ação
do Estado, mas como cenário criado e recriado pela
práticas de sujeitos em conflito. (Miranda, 1997. p. 11)
Independentemente do fator de aglutinação, os movimentos sociais
possibilitam a seus atores sua reconstituição como sujeitos históricos, quer
através da oposição às formas de dominação, quer por sua capacidade de criar
novas noções de direito, justiça e liberdade.
30
Calderón e Jelin (1987) indicam os campos de desenvolvimento da
dinâmica dos movimentos sociais. São eles :
a) os movimentos sociais são dotados de uma estrutura participativa em
conseqüência de seu próprio objeto e experiência de organização e
luta;
b) os movimentos sociais têm sua própria temporalidade, em grande
medida definida por sua ação diante do sistema de relações
históricas;
c) os movimentos sociais desenvolvem-se de forma multilateral
heterogênea no espaço, em decorrência do desenvolvimento
desigual da consciência, da organização e da economia de uma
localidade. Essa particularidade faz com que os movimentos tenham
características e significados distintos em cada região determinada;
d) os movimentos sociais exercem efeitos sociais específicos sobre as
relações sociais e sobre a sociedade, não somente como produto da
ação do sujeito, porém como produto de um campo de conflito em
que os atores envolvidos na ação modificam-se a si mesmos através
da interação recíproca e compartilhada para atingir uma meta.
O movimento feminista é, nesses termos, um tipo especial de conduta
coletiva que podemos chamar de movimento social, pois tem uma estrutura
que passa a organizar diferentes formas de mobilização e participação feminina
na defesa do direito das mulheres. Essa luta, a defesa do direito, assume
especificidades que variaram no tempo e no espaço dependendo das questões
culturais, do desenvolvimento das relações capitalistas de produção ou das
conquistas do próprio movimento feminista que determinam a elaboração de
novos projetos.
Uma outra característica dessa ação coletiva das mulheres que nos
permite tratá-las por movimento social, ou condutas coletivas do tipo ofensivas,
é a capacidade que tais ações tiveram de alterar as relações sociais nos
últimos trinta anos, desde que emergiram nos EUA ao final dos anos 60. São
inegáveis as transformações na estrutura familiar e na forma de homens e
mulheres explorarem a sexualidade, na sociedade moderna, provocadas pela
movimento feminista.
31
O Cevam, na defesa do direito da mulher em Goiás, dedica-se ao
combate da opressão e da violência masculina. Em torno desse tema
preferencial, organizou uma estrutura de participação e pôde mobilizar as
mulheres goianas para iniciativas de repúdio, protesto, apoio e reivindicação, e,
ao mesmo tempo, produziu alterações instituicionais.
5
O combate e a contestação aos padrões de sociabilidade culturalmente
definidos pela sociedade goiana como “brabeza e masculinidade” (Borges,
1998), formas societais opressivas em que predominam o uso da violência nas
relações interpessoais, ofereceu especificidade à ação do Cevam em relação
às demais organizações do movimento feminista. A rejeição de tais padrões de
sociabilidade associada a noção de direito a ter direito, bem como a de
igualdade, comuns no seio do movimento feminista, vão tornar-se significativos
na luta pelas mudanças culturais. Igualdade de direitos, homens e mulheres
como seres humanos constituirão o projeto que orientará a ação do Cevam.
1.2.1 – As matrizes teóricas acerca dos movimentos sociais
A literatura que aborda os movimentos sociais é marcada por diferentes
correntes teóricas e metodológicas que determinam enfoques diferentes do
tema, conforme procuraremos traçar a seguir.
Inicialmente, sobressaiu a matriz teórica estrutural-marxista em que
predominam as concepções de estrutura e das determinações das classes
sociais e de seu papel no processo das transformações históricas.
Na matriz estrutural-marxista, as condutas coletivas só podem se
converter em movimentos sociais ao se transformarem em componentes de um
processo político, quando se articulam com um contexto mais amplo da luta
política (luta de classe).
Trata-se de um referencial que, mesmo quando se dispõe à
interpretação dos chamados novos” movimentos sociais, não abandona a
abordagem holística centrada na análise estrutural nem a noção de
determinação econômica sobre as esferas e significados da ação coletiva.
32
No Brasil, para Miranda (1997), esse modelo foi utilizado, especialmente,
para a análise dos temas que tratam do processo de urbanização (movimentos
reivindicativos urbanos, de mobilização e protesto), de periferização das
classes populares e das relações entre Estado e classes populares no
encaminhamento de suas reivindicações.
Entendendo que as dimensões dos conflitos sociais transbordam os
paradigmas clássicos marxistas, alguns autores, entre eles Touraine e
Castoriadis, contrapõem-se àquela linha de abordagem especificamente, ao
que Canesin (1993) considerou o “âmago” dessa teoria: a noção de
determinação econômica e a concepção de classe social e redefinem
categorias de interpretação na tentativa de ampliar a compreensão do modelo
estrutural marxista.
Assim, a partir dos anos 80, a produção teórica acerca dos movimentos
sociais busca novas linhas de abordagem capazes, segundo seus principais
autores, de formular interpretações que qualificassem esse tipo de ação
coletiva e seus atores.
Esses novos paradigmas levarão a literatura a dividir os movimentos
sociais em “clássicos” e “novos”. Novos movimentos sociais não se configuram
em virtude do tempo ou do espaço em que se desenvolvem os conflitos, mas
em conseqüência do referencial teórico que o pesquisador vier a utilizar.
Diante de interpretações outras que não só as globalizantes, vários
autores passam a adotar uma abordagem compreensiva que permite revelar o
significado dos movimentos sociais para aqueles que dele tomam parte. Para
tanto, questões como cultura política, experiência, autonomia e identidade são
apresentadas como elementos capazes de ampliar a explicação sobre as
condutas coletivas.
E. P. Thompson (1987), ao argumentar que as experiências de vida
comum levam os homens a perceberem carências e necessidades como
interesses, afirma que, em torno dessas experiências, os homens identificam-
se entre si e opõem-se aos grupos com interesses divergentes. Tal argumento
será apropriado pelo referencial teórico dos movimentos no sentido de
corroborar a premissa da constituição do sujeito para além da noção de classe
social, bem como permitirá falar de outros interesses orientando a ação social.
33
O tema da experiência como elemento capaz de constituir atores e
orientar ações sociais contribui sobremaneira para essa nova abordagem.
Castoriadis também oferece argumentos para esse novo enfoque dos
movimentos sociais ao abordar o tema da autonomia dos indivíduos diante das
instituições e da capacidade que os homens têm de criar o novo, ao se
autonomizar. Sua contribuição para a análise dos movimentos sociais consiste
em mostrar como a sociedade produz a si mesma e o papel dos indivíduos
nessa produção.
Assim, esse autor introduz como referencial teórico a noção de sujeito
interligada à de autonomia. A atividade humana, a história e o projeto
revolucionários não podem ser jamais frutos de um saber imanente, de uma
racionalidade exclusiva à qualquer classe social, mas são “um fazer no qual o
outro e os outros são visados como seres autônomos e considerados como
agente essencial de sua própria autonomia” (Castoriadis, 1988. p. 94).
Dessa forma, não sujeito preconcebido, mas sujeito que se constrói,
ou se institui, num processo de reciprocidade com outros sujeitos.
Porém, Touraine, autor central da abordagem referida na cultura política,
é quem de fato coloca os movimentos sociais no centro da análise sociológica,
retirando-os da situação “marginal” que o enfoque estrutural marxista os
destinara.
Para esse autor, os movimentos sociais devem ser pensados como
condutas culturalmente orientadas e não como resultado de contradições do
sistema de dominação. Eles indicam o lugar de manifestação dos conflitos,
marcando os espaços onde os homens são capazes de construir sua história.
Como Castoriadis, Touraine enfatiza o sujeito coletivo e o seu papel na
produção da história para conceber os movimentos sociais como sujeitos.
O esquema que opera como pano de fundo é sempre o do
sujeito (individual ou coletivo) que se propõe finalidades
claras e distintas, e que põe suas ações como meios,
permitindo atingi-los. Mas a luta cotidiana implícita do
proletariado é absolutamente inapreensível dessa ótica
assim como é, por exemplo, a pressão cotidiana pela qual
as mulheres um século, e os jovens, vinte e cinco
anos, conseguiram modificar substancialmente sua
34
situação na família e na sociedade. (Castoriadis, 1988. p.
64)
A terceira linha de análise dos movimentos sociais centra-se na ação
coletiva e se esboça, segundo Cardoso (1994), nos primeiros anos da
década de 1980, enfatizando as interações Estado–sociedade.
Os autores que adotam essa abordagem não se preocupam em
compreender a dinâmica interna dos movimentos sociais, como a construção
de identidades, de espaços públicos, por exemplo, mas sim a forma como as
organizações atuam no sistema institucional para o encaminhamento das
reivindicações.
Tendo em vista a dificuldade que o Estado enfrenta de dialogar com “a
diversidade de movimentos que competiam entre si” (Cardoso, 1994, p. 88), os
movimentos sociais passaram por uma redefinição na sua forma de relacionar
com o setor blico. Fazem-se representar por meio de conselhos, partidos
políticos, Igreja, ONGs. Imaginava-se, segundo Cardoso (1994), que por essa
via seria possível estabelecer o consenso entre os interesses diversos para a
satisfação deles.
É por conta dessas mudanças na forma de atuação dos movimentos
sociais que a matriz teórica centrada no estudo da ação coletiva, detém-se na
relação dos movimentos sociais com os partidos políticos, a Igreja, ONGs e
instituições em geral.
Nesse enfoque importam
os modos de agir dos grupos e as camadas envolvidas nos
movimentos sociais. [...] A questão básica se refere a
encontrar os determinantes da ação coletiva, sendo estes
fatores vistos como resultados em termos de graus de
eficiência e benefícios para a população. (Miranda, 1997. p.
24/25)
35
Sem considerar referenciais estruturais como o de classe social,
tampouco os determinismos econômicos, a abordagem da ação coletiva se
aproxima dos referenciais teóricos do enfoque centrado na cultura política
porque enfatiza a pluralidade dos campos onde os conflitos podem manifestar-
se, além de considerar os princípios da identidade e da oposição para a
compreensão das condutas coletivas.
Nessa linha de análise, embora alguns autores tendam a desacreditar na
autonomia dos movimentos sociais em face da tendência à institucionalização
e da substituição da sua capacidade transformadora por uma restauradora,
ainda aqueles (teoria da ação social) que os considerem agentes de sua
própria história, mas não mais contestadores de uma ordem socialmente
estabelecida. São vistos como
repositores dessa ordem. o são agentes de
transformação para um outro modo de produção, mas para
uma ordem social, dentro do próprio capitalismo, mais
igualitária. (Miranda, 1997. p. 25)
Observa-se que os movimentos sociais e o Estado m um
comportamento que Miranda (1997) chamou de “relacional”, isto é, a posição
dos movimentos sociais em face do poder público é de diálogo e associação
para a promoção de políticas públicas ou programas que contemplem, da
forma mais eficiente, a diversidade de interesses envolvidos.
Tendo como pressuposto que a organização das mulheres desde o final
dos anos 60 se define na ação não contra o Estado ou um poder politicamente
constituído, mas contra formas societais, a abordagem dos movimentos sociais
feministas tem sido feita, preferencialmente, pelo enfoque da cultura política ou
da ação coletiva, dado o campo em que os conflitos se manifestam entre as
mulheres e as instituições da sociedade patriarcal, qual seja, o da cultura e da
sociabilidade.
Dessa forma, é a partir dos conceitos utilizados pelas abordagens dos
chamados novos movimentos sociais que trataremos a identidade feminista e o
36
Centro de Valorização da Mulher (Cevam), visto que consideramos a ação das
mulheres como sendo culturalmente orientada, além do que será necessário
recorrer a conceitos como os de autodeterminação e historicidade para explicar
as noções de direito produzidas pelo movimento feminista, capazes de criar
novas formas de sociabilidade a orientar a ação das mulheres em Goiás.
A combinação desses referenciais poderá, também, oferecer elementos
para a análise das motivações para a ação das vítimas da opressão masculina.
Motivações que nestes últimos trinta anos suscitaram a organização, para não
falar a subversão, das mulheres, inclusive em Goiás, contra os valores da
sociedade patriarcal.
Para tratar das mudanças na forma de mobilização e organização de
entidades como o Cevam, a partir dos anos 80 e para buscar compreender a
relação entre essa organização do movimento feminista e as mulheres
albergadas na Casa Abrigo, teremos de recorrer ao enfoque da ação coletiva,
que tem abordado o processo de institucionalização por que passaram os
movimentos sociais.
Deveremos recorrer a esse enfoque ainda para compreender até que
ponto o Cevam compreende uma ação coletiva culturalmente orientada, que
as suas formas de mobilização e a relação com as mulheres vítimas da
opressão masculina se alteraram nas diferentes etapas de existência da
entidade.
1.3 O discurso feminista suas formas e identidades
peculiares
A conquista de novos postos no mercado de trabalho permitiu que as
mulheres reivindicassem, cada vez mais, o direito de serem tratadas com
igualdade em relação aos homens, de serem donas de seu corpo e seus
destinos.
Este é um tipo especial de luta que sensibiliza mesmo as mulheres que
não se encontram formalmente engajadas nos movimentos reivindicativos.
37
Mostra-se também capaz de despertar nelas, em geral, iniciativas críticas
acerca da autoridade masculina sobre a mulher, os filhos e o ambiente familiar.
Dessa forma é que Nancy Whittier vai definir, segundo Castells (1999), o
movimento feminista não em termos de organizações formais, mas em razão
da identidade coletiva que se constituiu em convicções, práticas e formas de
identificação que não se associam a nenhuma posição ideológica, mas a toda e
qualquer causa que se ponha contrária à opressão.
São discursos e formas de identificação coletiva que aglutinam mulheres
e homens, de diferentes origens e com diferentes objetivos, em uma variedade
de práticas de autodefinição que compartilham da mesma fonte de opressão.
Por exemplo, uma das primeiras declarações da Organização Nacional das
Mulheres (NOW) proclama, em 1969:
Nós, HOMENS E MULHERES [em maiúsculas no original],
que por meio desse ato constituímos a Organização
Nacional em Defesa da Mulher, acreditamos que chegou a
hora de criar um novo movimento buscando parcerias
absolutamente iguais entre os sexos como parte da
revolução mundial em defesa dos direitos humanos, em
marcha nesse momento dentro e fora de nossa fronteira.
(Manifesto Redstockings, 1969, apud Castells, 1999)
Se a construção de identidades se dá em contextos marcados por
relações de poder e pressupõe a rejeição dos atributos, tarefas e funções
socialmente determinados, a conduta coletiva que organiza as mulheres contra
a dominação exercida pelo patriarcalismo
6
tem se caracterizado desde os anos
30 do século XX, e mais precisamente nos últimos 25 anos, em um movimento
social capaz de redefinir não somente a identidade das mulheres, mas de
alterar as estruturas da sociedade patriarcal, proporcionando o surgimento de
novas formas societais.
E, ainda, se o movimento feminista se define, inicialmente, de forma
defensiva contra o poder institucional e no apelo à identidade de resistência
com base no sentimento de exclusão diante da incapacidade de as mulheres
38
influírem no sistema institucional e nas decisões institucionais, como foi o
movimento sufragista que atingiu grande parte das nações industrializadas ou
em desenvolvimento nos anos 20 e 30 do século XX, ele desenvolve-se e
consegue se converter em um movimento contra-ofensivo, que apela a uma
identidade ofensiva.
Ao aprofundar e completar assim a crítica à sociedade patriarcal, o
movimento feminista constituiu-se num tipo de poder e de ação que envolve
toda a sociedade, e não as mulheres, contra o sistema de poder identificado
com o elemento a que se opõe: o patriarcalismo.
Desenvolvendo-se sob orientações culturais, ele apresentou-se como
fonte de significado para aqueles que dele tomam parte, oferecendo resistência
ao papel socialmente definido para as mulheres na família e na sociedade
patriarcal. Ao mesmo tempo, converte-se em reivindicação e contestação a
uma forma de dominação dos homens sobre o ambiente familiar, a estrutura
social e as relações interpessoais e também ao exercido por eles sobre os
filhos e as mulheres. O movimento feminista tem sido, portanto, historicamente
capaz de causar impacto considerável sobre as estruturas sociais, as relações
interpessoais e as instituições.
Embora tenha assumido uma pluralidade de reivindicações e dado
origem a diferentes tipos de identidade no tempo e no espaço,
7
o feminismo
não desapareceu com o tempo, como outros movimentos sociais. Pelo
contrário, o feminismo apresentou capacidade de se aliar a outros atributos
culturais significativos (operário, negro, favelado, ecologista e estudante, entre
outros), que lhe deram fôlego e o tornaram aptos a sobreviver sob as formas
mais variadas e por meio de legiões
8
de militantes que se sucederam no
movimento.
Mesmo considerando as formas e discursos variados que se
apresentavam de acordo com o tempo e a cultura, um aspecto permaneceu
subjacente a toda essa multiplicidade: a defesa do direito da mulher.
O registro de uma grande variedade de grupos, organizações que
apresentam discurso feminista combatendo um tipo de opressão específica e
construindo identidades específicas, pode causar a impressão de que o
movimento é fragmentário. Porém, longe de denunciar uma fragmentação ou
39
uma possível decadência da luta das mulheres contra as formas de dominação
e de opressão dos homens, a multiplicidade revela a sua flexibilidade.
A rigor, por não trazerem em si mesmos uma definição ideológica, os
temas de que trata o movimento feminista permitiram que as mulheres
militassem em organizações puramente feministas, mas também que essas
mesmas militantes levassem o discurso feminista para os sindicatos, os
partidos políticos e para outros movimentos sociais, inclusive como bandeira a
ser defendida pelos homens que fizessem parte dessas organizações, sem que
houvesse incompatibilidade entre as ações.
Em todos os países da Europa, sem exceção, o feminismo
está infiltrado nas instituições sociais e em uma infinidade
de grupos, organizações e iniciativas que se alimentam
reciprocamente, confrontam-se (às vezes com rispidez) e
provocam um fluxo inesgotável de exigências, pressões e
idéias sobre as condições, questões e cultura da mulher.
De modo geral, assim como nos Estados Unidos e na Grã-
Bretanha, o feminismo se fragmentou e não uma única
organização ou instituição que possa ter a pretensão de
falar em nome da mulher. (Castells, 1999, p. 221)
Dessa forma é que o feminismo vai se associar ao combate a práticas
autoritárias e à centralização de poder, aos movimentos democratizantes que
assolam, nas décadas de 1970 e 1980, a América Latina, a Espanha e a Itália,
entre outras sociedades.
A proximidade do movimento com outras formas de luta foi capaz de
dotar o feminismo e a luta das mulheres de formas e tipos de organizações
especificas. Mas é bom lembrar também que as nuanças culturais deram
matizes e contornos específicos ao discurso e às formas de mobilização das
mulheres.
Assim, se o movimento feminista contemporâneo, “movimentos em
massa e explicitamente feministas”,
9
inicia-se nos EUA nos anos 60 e na
Europa na década de 1970, é somente nas décadas seguintes que se difunde
e se desenvolve nos demais países industrializados e em desenvolvimento.
40
Enquanto as ações coletivas das mulheres norte-americanas são
organizadas, inicialmente e nos trinta anos que se seguem à fundação da
NOW, na defesa da igualdade entre homens e mulheres em todas as esferas
da vida social, com características de um discurso liberal, o os movimentos
feministas radicais norte-americanos que vão começar a definir outro tipo de
identidade feminina através das reações diferenciadas à discriminação sexual e
à dominação masculina. Estes se atêm mais diretamente à criação de núcleos
de estudo e conscientização para a crítica ao patriarcalismo, do direito à
reprodução e à proteção da mulher contra a violência masculina.
Se o discurso feminista que aliou o movimento das mulheres nos EUA a
uma crítica anticapitalista, influenciado pelas teorias marxistas e vinculado à
prática política das esquerdas, manteve-se restrito às universidades, na Itália
essa corrente produziu o maior movimento feminista de massas da Europa, “o
mais importante e inovador movimento feminista em massa de toda a Europa”
(Castells, 1999, p. 226).
Nesse país a luta feminista se associa às ações políticas de esquerda,
ao sindicalismo e ao Partido Comunista Italiano. E é por meio dessa
associação que o discurso feminista se populariza na Itália,
10
onde os temas
feministas, formulados nos movimentos sociais do final dos anos 60 e início
dos 70 (liberação da mulher, crítica ao patriarcalismo), passaram a andar lado
a lado com os temas políticos, as exigências de ordem econômica, diferenças
culturais, luta de classe, sexualidade.
É também na Itália dos anos 90 que vai emergir um novo apelo
identitário do movimento social das mulheres: o do direito à diferença. Sem
deixar para trás o direito à igualdade, essa nova onda do movimento feminista
se assentou no apelo à reorganização da jornada de trabalho das mulheres, ou
melhor, à flexibilização da jornada de trabalho das mulheres, tendo em vista os
papéis que a mulher havia assumido nas últimas três décadas na sociedade
italiana.
Na Inglaterra, como nos EUA, o movimento feminista apelou a uma
identidade igualitária com fortes expressões liberais, porém, foi marcadamente
um movimento mais político que o norte-americano, voltado para o Estado de
bem-estar social. em sua trajetória inicial uma forte aliança com o
sindicalismo, o trabalhismo e as questões cotidianas das operárias. Sua maior
41
característica foi o apelo à autonomia das mulheres por meio da capacitação
no “trabalho, serviço social, legislação e política” (Castells, 1999, p. 220).
O movimento feminista espanhol que se desenvolveu por volta dos anos
70 é o mais marcado pelos contextos políticos. Ele esteve fortemente
associado às lutas da esquerda, recebendo ainda influência do feminismo
italiano e francês de matiz esquerdista. Mesmo as organizações autônomas do
movimento social das mulheres espanholas estiveram mobilizadas na oposição
ao franquismo.
Na Rússia, embora houvesse organizações feministas ou organizações
que integrassem a luta feminista, estas se mantiveram sob controle do Partido
Comunista. É somente nos anos 90, com a desintegração do regime político
soviético, que as mulheres vão ocupando espaços antes restritos aos
dirigentes da velha guarda do Partido Comunista russo.
Na Ásia, o patriarcalismo reina absoluto, mesmo nos países
industrializados em que as mulheres vêm ocupando cada vez mais lugares no
mercado de trabalho. Em diversos países asiáticos, o feminismo permanece
restrito ao meio intelectual e, quando as mulheres despontam no cenário
político, elas estão associadas a movimentos com apelos democratizantes e
modernizadores, como é o caso das Filipinas.
No Brasil e na América Latina em geral o movimento feminista emerge,
como fenômeno moderno e de massas, a partir dos movimentos sociais
urbanos e desenvolve-se associado às crises econômicas e políticas, ao
crescente ingresso das mulheres no mercado de trabalho e aos cenários
urbano-industriais nos quais se deu o processo de desenvolvimento do
capitalismo.
O crescimento dos principais centros metropolitanos do Brasil, por
exemplo, foi marcado
pelo surgimento de uma série de contradições sociais e
políticas específicas que apareceram na forma de
‘distorções urbanas’ [...] o aprofundamento da divisão do
trabalho no país provocou a emergência de necessidades
sociais e urbanas novas para a sobrevivência da
população. Aumentou a demanda por serviços de infra-
estrutura, ... por um sistema de transporte coletivo mais
42
rápido e eficiente [...] Criou necessidades (reais e ilusórias)
infinitamente maiores para o sistema educacional, em
todos os níveis [...]; Criou demanda novas por
equipamentos sociais e culturais [...] (Moisés, 1982, p.17)
E é nesse cenário, fermentado nos anos 80 e 90 pela redemocratização
política e restituição dos direitos civis, que as mulheres o criar e dirigir as
diferentes formas de organizações das camadas populares, mobilizadas em
associações de amigos, de moradores, dando identidade específica à luta
feminina, e associando os temas feminino e feminista às questões urbanas e à
participação política.
Se, por um lado, essas organizações populares dirigidas por mulheres
foram capazes de causar impacto sobre a política e a sociedade em alguns
países latino-americanos como o Brasil, elas contribuíram também para a
construção de uma nova identidade coletiva.
Em Goiás, o discurso feminista começa a ser articulado, por volta dos
anos 80, também no movimento social urbano, em torno das demandas da
classe trabalhadora, para então centrar na questão da identidade feminina, do
gênero, masculino e feminino, e nas questões específicas de opressão.
Por essa data, no estado
O feminismo cria coletivos voltados para ações
relacionadas ao corpo, à saúde, à sexualidade feminina e
para questões da violência. Surgem também articulações
de mulheres negras e homossexuais. (Rocha e Bicalho,
1999, p. 21)
Apesar das especificidades dos temas abordados pelas diferentes
organizações, um em especial era peculiar a todas elas: a necessidade
premente de assegurar espaços públicos que servissem à denúncia da
opressão da mulher. Somente mais tarde é que as feministas “saem do ovo”
11
para integrar a crítica à dominação do gênero masculina de dentro dos núcleos
43
dos partidos políticos que acabavam de entrar em cena com o processo de
democratização da sociedade brasileira.
É dessa forma que os contextos culturais e políticos em que se
expressam os discursos das mulheres em torno ora da igualdade, ora da
diferença, ora aliando igualdade à diferença, contra a opressão e a violência
masculina, dotam o movimento feminista de formas e orientações específicas,
mas que nos permitem falar de identidades coletivas capazes de ultrapassar
todas as relações sociais, redefinindo os papéis, as relações interpessoais e as
relações de poder.
Em Goiás, vamos nos deparar com variadas formas de mobilização do
movimento feminista. Elas foram marcadas por nuanças culturais e pelo
contexto político que caracteriza os anos 80 e 90 no Brasil e no estado,
conforme veremos a seguir.
44
NOTAS
1- Vale dizer que os papéis definem atores a partir e em torno de uma organização ou instituição
para o cumprimento de funções e que, mesmo que tais papéis venham se converter em
identidades, constituir-se-ão fontes de significados para os próprios atores. Sobre a construção
de identidades ver Berger e Berger (1978, p. 200), bem como Castells (1999) e Touraine (1984).
2- ver Berger e Berger (1978) Castells (1999) e Touraine (1984).
3- Pensando em identidades ltiplas escapamos de noções reducionistas que limitam a
construção de identidades à esfera da luta de classes e a papéis, por exemplo.
4- O conceito de historicidade aqui utilizado é o mesmo a que Alain Touraine se refere. Para ele, a
historicidade representa um conjunto de instrumentos, de orientações culturais, através dos
quais as práticas sociais são construídas”. Em outro momento, ao definir historicidade como “a
natureza histórica dos fenômenos sociais”, Touraine, achando necessário esclarecer melhor
essa noção, acrescenta que historicidade designa o “conjunto de modelos culturais, cognitivos,
éticos, pelos quais uma coletividade constrói a sua relação com o meio ambiente [...] produz a
sua cultura” . A importância dada a esta noção significa que a unidade da nossa sociedade
não pode ser encontrada nem nas suas regras internas de funcionamento, nem na sua
essência, nem no seu lugar no seio de uma longa evolução, mas na sua capacidade de
produzir-se a si mesma (grifos nossos). Touraine (1984, p. 63 a 71).
5- O Cevam participou ativamente da luta pela criação da Secretaria Estadual da Condição
Feminina em 1987, bem como da criação da Delegacia Especial de Polícia de Defesa da Mulher
(1985) e do Conselho Estadual da Mulher (1998).
6- Segundo Castells, o patriarcalismo caracteriza-se pela autoridade masculina sobre o ambiente
familiar, a mulher e os filhos e é um tipo especial de poder sobre o qual se estrutura toda a
sociedade contemporânea. Porém, para que a dominação e a violência características desse
tipo de poder sejam exercidas, é necessário que permeiem todas as esferas da vida social,
inclusive a personalidade e as relações interpessoais. Para maiores informações, ver Castells
(1999).
7- Castells identifica no movimento de defesa do direito da mulher algumas formas de discurso que
se sucederam no tempo e no espaço e que foram capazes de definir identidades, adversários e
projetos específicos. Ver Castells (1999, p. 231) e o Quadro 2 deste trabalho.
8- O conceito de legiões é introduzido na literatura acerca do movimento feminista e sua evolução
por Nancy Whittier, em 1995, em sua análise sobre os movimentos feministas radicais nos EUA.
Legiões são, nesse contexto, as gerações que ingressam no movimento e que lhe dão vida. São
importantes na medida em que introduzem mudanças graduais no próprio movimento e
permitem uma nova onda de mobilização em torno do discurso feminista. São capazes, ainda,
de definir identidades coletivas específicas a seu próprio tempo e contexto e diferem uma da
outra em virtude da geração. Para maiores informações ver Nancy Whittier, Feminist
45
Generations: the persistence of the Radical Women’s Moviment. Filadélfia: Temple University
Press, 1995, e Manuel Castells,1999.
9- Para traçar uma distinção entre as formas de organização e reivindicações iniciais do
movimento feminino campanhas sufragistas ou em defesa dos direitos civis e o movimento
feminista moderno, Castells utiliza dos componentes presentes nessas novas formas de
reivindicação que se esboçam a partir dos anos 60. O movimento social organizado pelas
mulheres a partir desse período apresenta-se como fenômeno: 1) capaz de mobilizar grandes
massas; 2) que associa o direito à igualdade aos direito humanos; e 3) que se expressa como
movimento contracultural, como forma específica de fazer oposição ao patriarcalismo. Ver
Castells ( 1999, p. 212 a 220)
10- O Partido Comunista Italiano foi o maior partido comunista fora da extinta União Soviética,
atingindo número de filiados superior a qualquer outro partido político da Itália.
11- Expressão usada por militantes do movimento feminista em Goiás para designar a saída das
feministas militantes dos grupos de estudos e das organizações feministas em que militavam
para integrar partidos políticos, agências públicas. Para maiores informações sobre as
diferentes formas de organização do movimento feminista em Goiás, ver Rocha e Bicalho
(1999).
46
2 SERVILISMO, OPRESSÃO E SUBMISSÃO: A CONDIÇÃO FEMININA EM
GOIÁS
2.1 – A opressão como traço cultural
A sociedade goiana foi, desde o seu início, marcada por relações de
mando e subordinação. Embora esse traço não encontre-se restrito ao estado,
a historiografia sobre Goiás associa o uso da violência, “a depender das
regiões, grupos, gerações e meios sociais os mais heterogêneos”, à vida
política, às relações de produção e às relações interpessoais (Borges, 1998. p.
62).
A vida rústica, o sofrimento, a aspereza e os imprevistos da vida de
garimpeiro e de boiadeiro se manifestam nos padrões de sociabilidade ora
mais explícitas no campo da política, ora nos mecanismos de controle do
Estado, ora no crime organizado por meio de práticas violentas, que nem
mesmo os processos de modernização por que passa a sociedade goiana a
partir dos anos 30 foram capazes de romper (Souza, 1999).
Cunha Mattos (1979), descrevendo a província de Goiás do século XIX,
afirma que as mulheres goianas raramente eram vistas em público ou se
dirigindo a estranhos. A timidez e o acanhamento, conseqüências naturais de
sua submissão e obediência, eram tidos como ideais de virtude e feminilidade.
De origem rural, a família goiana manterá sobre as mulheres um rígido
controle, e a autoridade patriarcal será inquestionável no ambiente doméstico.
As mulheres viam-se limitadas à esfera doméstica, marcadamente divididas
entre mulheres “virtuosas” e mulheres “perdidas”¹ como assinala Giddens
(1993).
Além do lar, o único lugar de refúgio e prazer para elas era a igreja. Esse
lugar no entanto, apesar de reforçar os mecanismos ideológicos de dominação
e submissão da mulher ao ambiente doméstico e à autoridade patriarcal, abre-
lhe também as portas para a participação em um universo maior da sociedade
47
através da organização de festas, romarias, sintetizações de orações, ações de
caridade (Capel e Ataídes, 1991, p. 38 a 42).
A população terá educação secundária em meados do século XIX,
com a criação do Lyceu de Goiás. Mesmo assim, em razão da dispersão
demográfica, aquela residente no interior da província mal conhece as
primeiras letras.
Se, por volta de 1824, existiam vinte escolas para mulheres no Brasil,
cujos currículos incluíam, além de leitura, escrita e as quatro operações
básicas, habilidades manuais necessárias ao trabalho doméstico, em Goiás
surgirá uma escola feminina em 1889, 65 anos depois, com o Colégio Santana,
na cidade de Goiás (Capel e Ataídes, op. cit.).
Portanto, a mulher goiana do século XIX estava em
situação bastante inferior a das províncias do sul e sudeste,
mantendo em plena época imperial a situação de servilismo
e recato adotado desde a colônia. (Capel e Ataídes, 1991,
p. 39)
Com o advento da República, esses traços de opressão na sociedade
goiana que subordinam as mulheres aos esposos, pais e irmãos, limitando sua
ação à esfera doméstica, tendem a se reforçar em decorrência das práticas de
mando e violência que caracterizam a política oligárquica durante a República
Velha e se estendem a todas as relações sociais.
É sob o império da vontade de um comandante político local que a
violência é disseminada nas relações interpessoais. A autoridade masculina no
ambiente doméstico não sofre mudanças com os ideais republicanos. O
domínio dos coronéis mantém o poder masculino nas relações interpessoais e,
é de se supor, também sobre a família, legitimando ainda mais o uso da
violência em defesa da honra, dos princípios de fidelidade, moral e costume.
Chaul descreve assim o uso da violência pelas oligarquias na busca da
hegemonias políticas no estado goiano:
48
Outro meio fartamente usado pelos Caiado foi a violência
a violência física que afugenta o fraco, despreza o forte e
acorrenta as consciências como forma de eliminar e/ou
afastar concorrentes ou grupos opositores que
ameaçassem o domínio coronelístico, fundamentado por
sua vez no controle sobre a terra, estendendo-se aos que
nela trabalham. (Chaul, 1999, p. 29)
Campos ressalta que a política oligárquica reforçava o poder do
proprietário de terras local, o qual recebia, por sua vez, do governo federal
“carta branca” para agir em seus domínios. O coronelismo, traço marcante
desse período, mais acentuado nas regiões desimportantes em relação aos
centros culturais e econômicos do país, se caracterizou pela “dominação total
e não somente política – de populações rurais pelo coronéis
(Campos, 1983, p.
37).
As bases de mando e obediência em que se assenta o pacto de
compromisso entre as oligarquias vai além dos limites políticos ou
institucionais. Elas perpassam todas as relações sociais, reforçando ainda mais
a autoridade masculina sobre os destinos da mulher.
Soma-se a isso o relativo isolamento em que vivia a população goiana.
Até 1920 ainda não se podia falar de meio urbano em Goiás. O território é
marcado por baixa densidade demográfica (0,7 habitante por quilômetro
quadrado), formando vazios demográficos. A população do estado
correspondia, segundo dados da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (FIBGE), a 1,67% do total da população do brasileira. Por esse
período, não também uma única cidade goiana com mais de dez mil
habitantes, e a atividade econômica predominante se concentra no setor
primário (pecuária, agropecuária e extrativismo), que corresponde a 81,8% das
atividades econômicas do estado.
O isolamento, a falta de contato com os centros culturais não só tornam
a sociedade goiana conservadora em relação aos valores e sentimentos que
orientam a ação dos indivíduos no cotidiano, dificultando que eles sejam
atualizados, mas também, para Borges (1998), conformariam a subserviência,
a crueldade, as perseguições, as mortes e as intimidações que marcaram os
49
acontecimentos relacionados à política do Império aos dias atuais. Conforme
Campos, o isolamento também facilita o controle e a subordinação, uma vez
que
o Estado de Goiás tem uma inexpressiva população,
dispersa em um vasto território (660.193 km²); (b) com uma
grande maioria dela habitando no campo e com uma
pequena parcela residindo em pequenas cidades ou em
vilas não se podendo, então, falar em meio urbano em
Goiás. [...] pode-se inferir que esta situação descrita vai
facilitar o controle e a subordinação política da população
goiana. (Campos,1983, p. 37)
A violência nas relações interpessoais, especialmente aquela cometida
contra a mulher, será então o elemento definidor da temática em torno da qual
o feminismo vai se organizar em Goiás. É dessa opressão masculina peculiar à
sociedade goiana que falam algumas vozes femininas e anônimas registradas
em anuários e revistas do século XIX. Peculiar no sentido dado por Souza
(1999), quando afirma que os comportamentos violentos podem ser
dissuadidos ou estimulados pelos padrões culturais. Também é dessa
opressão que trata a poetisa goiana Cora Coralina².
Apesar dos casos de agressão interpessoal contra mulheres que
assumem posições contrárias ao socialmente esperado entre as décadas de
1920 e de 1960, e que se tornaram conhecidos, é a violência praticada na
esfera doméstica, que muitas vezes, por questões culturais, não chega ao
domínio público, que chama a atenção.
Sobre essa forma de violência em Goiás, Souza conclui, com base em
evidências empíricas coletadas nos processos julgados pelo Judiciário nas
décadas de 1930 a 1980, que há predomínio de atos violentos do tipo impulsivo
e expressivo
3
(Souza, 1999). Nessa categoria, o par amoroso e o ex-cônjuge
aparecem como os segundos maiores agentes agressores contra as mulheres.
Em somente um caso a mulher aparece como e o homem, vítima. A autora
chama a atenção para a “permanência, na sociedade moderna, de crimes
50
vinculados a um incipiente controle de impulsos e a códigos de
comportamentos referidos à associação honra-corpo, à brabeza caracterizando
o habitus [grifos da autora] dos goianos” (Souza, 1999, p. 165)
TABELA 1 – RELAÇÃO AGENTE/VÍTIMA,
SEGUNDO OS MOTIVOS DA AÇÃO CRIMOSA EM GOIÁS
NAS DÉCADAS DE 1930 A 1980
MOTIVAÇÃO DA AÇÃO
RELAÇÃO
AGENTE/VÍTIMA
IMPULSIVA
PLANEJADA
EXPRESSIVA
INSTRUMENTAL
TOTAL
CONHECIDOS *
41
54
31
16
142
PAR AMOROSO
22
4
27
-
53
EX-CONJUGE
2
1
4
-
7
PARENTES
13
7
7
1
28
AMIGOS
16
3
9
5
33
RIVAIS
2
1
12
1
16
ESTRANHOS
18
7
30
16
71
TOTAL
114
77
117
39
350
Fonte: Souza (1999, p. 175 e 178)
*conhecidos, vizinhos, patrão e empregado
Ainda que algumas mulheres se colocassem ao lado dos oprimidos em
Goiás, as organizações feministas emergirão à cena política goiana nos
anos 80, quando, entre os diferenciados temas, um será comum a todos elas: o
combate à violência contra a mulher.
Em conseqüência dessa reivindicação do sexo feminino em Goiás,
Goiânia será a segunda cidade brasileira a criar uma delegacia especializada
para o atendimento às mulheres vítimas da violência.
51
TABELA 2 – OCORRÊNCIAS POLICIAIS REGISTRADAS
NA DELEGACIA DE DEFESA DA MULHER DE GOIÂNIA ENTRE
SETEMBRO DE 1985 A DEZEMBRO DE 2000
ANO
OCORRÊNCIAS
%
1985
234
-
1986
1.331
485,9
1989
2.125
59,6
1996
2.846
33,9
1997
2.098
-28,0
1998
4.500
114,5
1999
5.711
26,9
2000
6.901
20,8
Fonte: Delegacia de Defesa da Mulher – Goiânia 2001
A Delegacia de Defesa da Mulher foi criada em 1985 para atender
mulheres timas de violência e, desde a sua instalação, o número de
ocorrências vem crescendo acentuadamente. Do ano de sua fundação a 2000,
os registros cresceram de 234 a 6.901, o que corresponde a 2.849%.
OCORRÊNCIAS POLICIAIS REGISTRADAS NA DELEGACIA DE
DEFESA DA M ULHER DE GOIÂNIA ENTRE 1985 A 2000
0
1000
2000
3000
4000
5000
6000
7000
8000
1985
1986 1989 1996 1997 1998 1999 2000
52
Embora a violência contra a mulher não se restrinja aos países pobres, é
comum, segundo o Unicef, que, em muitos países menos desenvolvidos,
inclusive no Brasil, crimes contra a mulher tenham sua punição abrandada ou
sejam perdoados, tendo em vista a tolerância que se funda na crença do direito
do sexo masculino de se sobrepor ao feminino
Segundo o relatório do Unicef sobre violência doméstica contra mulheres
e meninas, divulgado em setembro de 2000, cerca de cinco mil mulheres o
assassinadas anualmente em todo o mundo em nome da honra, e uma, em
cada três, já foi espancada, coagida a manter relações sexuais ou sofreu algum
tipo de abuso.
No Brasil, segundo a FIBGE, em 1999, das ocorrências policiais que
relatam crimes cometidos em ambiente doméstico, 70% deles tem a mulher
como vítima direta. Os filhos são as vítimas indiretas.
As estatísticas dessa violência contra a mulher fazem-nos lembrar da
afirmação de Castells sobre as conseqüências da luta feminina. Para ele, a luta
que as mulheres travam contra a opressão masculina trata-se na verdade de
uma guerra e não de uma “revolução de veludo” (Castells, 1999, p. 171).
2.2 – As organizações feministas em Goiás
Apesar das vozes isoladas que desde antes denunciam a submissão da
mulher por meio de poemas, revistas e outros periódicos, é somente na década
de 30 do século XX que vamos assistir à emergência de um movimento
organizado pelas mulheres em Goiás: a luta sufragista. A campanha pelo voto
feminino foi encabeçada por mulheres como Ida Artiaga, Maria Peclat e
Angélica dos Reis Gonçalves.
Manifestações femininas isoladas marcam desde muito a luta da mulher
goiana contra os valores da sociedade patriarcal. Movidas pelo desejo de
mudança, o mesmo que motiva as mulheres albergadas vítimas da violência
53
masculina em Goiás nos nossos dias, essas vozes femininas foram
precursoras no estado do que hoje conhecemos como movimento feminista.
Entre as pioneiras da luta feminina, destaca-se Ana Xavier de Tocantins
(1857-1949), sócia-fundadora do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás;
Eurydice Natal e Silva (1883-1970), fundadora da primeira Academia Goiana
de Letras; Maria Angélica da Costa Brandão, a Nhanhá do Couto (1880-1945),
fundadora da associação feminina Caravana Smart, através da qual promoveu
eventos culturais.
Merece menção, ainda, Benedita Cipriano Gomes, a Santa Dica (1905-
1970). Mulher de grande liderança política e religiosa (a ela são atribuídos
milagres e curas), era capaz de atrair multidões. Fez-se respeitar pelo mais
simples sertanejo aos políticos influentes e homens do governo. Consciente
das injustiças sociais de que o povo de seu tempo era vítima, alia-se à Coluna
Caiado, quando da passagem da Coluna Prestes em Aloândia e Pirenópolis. A
partir daí, e em virtude de suas idéias sobre a posse coletiva da terra e os
impostos, passa a ser temida pelos poderosos da época, que planejam sua
prisão e morte. Apesar de escapar ilesa de uma emboscada, sua prisão a
afasta de Aloândia, dispersando seus seguidores.
4
Na vida parlamentar, embora não possamos falar de candidatas eleitas
com plataformas feministas, podemos registrar mandatos exercidos por
mulheres desde 1951. Destacam-se Almerinda Magalhães Arantes, que ocupa
uma vaga na Assembléia Legislativa do Estado de Goiás pelo então PTB, por
três mandatos consecutivos (de 1955 a 1959, de 1959 a 1963 e de 1963 a
1967). O feito se repete na década de 90, quando Denise Carvalho, do PC do
B, elege-se para os mandatos de 1991 a 1995, de 1995 a 1999 e de 1999 a
2002.
Após o movimento sufragista nos anos 30, as mobilizações com motivos
feministas retornam à cena política em Goiás a partir dos anos 70. Período em
que as mulheres de todo Brasil estarão também se organizando através de
conduta coletivas culturalmente orientadas.
Porém, nessa década, elas não estarão mobilizadas em torno das
questões de gênero, mas em organizações do movimento popular urbano, por
vezes rural, nas comunidades eclesiais de base, reivindicando serviços e
54
benefícios urbanos necessários à classe trabalhadora ou exigindo maior
participação política.
Nos anos 70 existiam, segundo Rocha e Bicalho (1999, p.38), três
associações de bairro em Goiânia e com a democratização, em cinco anos,
esse número cresceu para cinqüenta. Nelas, a participação feminina se faz
presente, mas as mulheres ingressam no movimento sindical e nas
organizações feministas, para essas mesmas autoras, somente a partir dos
anos 80.
A partir dessa década, diversas entidades feministas em Goiás, para
além das especificidades dos temas preferenciais, não deixam de articular suas
bandeiras com os temas gerais da sociedade local e nacional, voltadas à
demandas de cidadania, democracia e distribuição de renda.
O depoimento de uma feminista do grupo Eva de Novo a Rocha e
Bicalho (1999) revela tal fato:
Um dos momentos mais bonitos do Eva de Novo foi na luta
pelas Diretas Já, em 84. Fomos como feministas para o
comício belíssimo na Praça Cívica, uma das coisas mais
lindas que aconteceu em Goiás em termos políticos. Nós
não fomos com bandeira do PT, fomos com bandeira lilás,
com dizeres do movimento feminista e com camisetas do
Grupo Eva de Novo. Não nhamos militância no PT, mas
ele nos consultava sobre as bandeiras da mulher. (Rocha e
Bicalho, 1999. p. 23)
Em 1981, são criadas três organizações que tratam exclusivamente de
temas feministas: o Grupo Feminista de Estudo, o Eva de Novo e o Centro de
Valorização da Mulher. O Núcleo Feminino da Metago (Nufem), criado em
1982, o Centro Popular da Mulher, em 1985, bem como os grupos Grupo
Identidade Mulher, em 1986, e Transas do Corpo, em 1987, prosseguem a
trajetória da organização feminista,
55
com prioridades de atuação nem sempre iguais, mas com o
mesmo propósito de se elaborar espaços sociais para
denúncias da situação de opressão da mulher no lar, na
educação, enfim, na sociedade como um todo. (Rocha e
Bicalho,1999, p.21)
Embora todas as organizações defendam o direito da mulher, as ações
do Grupo Feminista de Estudo e do Centro de Valorização da Mulher (Cevam)
associam-se às ações institucionais das quais originaram o Conselho Municipal
da Condição Feminina, a Delegacia Especial de Polícia de Defesa da Mulher
em Goiás e a Secretaria Estadual da Condição Feminina.
O Cevam centra suas ações na denúncia da violência sofrida pelas
mulheres no estado e funda o SOS Mulher, hoje Casa Albergue, um lugar que
oferece abrigo às vítimas do sexo feminino, e a seus filhos, de agressões
masculinas.
o Centro Popular da Mulher abordará mais especificamente as
questões feministas à luz da crítica marxista à sociedade e ao Estado
capitalista, priorizando suas ações junto às trabalhadoras e sindicalizadas. Sua
estratégia define-se por elevar o nível de consciência das mulheres sobre a
opressão de gênero e a necessidade de sua atuação, enquanto sujeito, nas
diversas instâncias sociais” (Rocha e Bicalho, 1999, p. 26).
O Grupo Transas do Corpo distingue-se das demais a partir da
preocupação essencial: a saúde da mulher e a educação sexual. Nessa
década, ainda, registra-se a organização das trabalhadoras da Empresa de
Mineração dos Estado de Goiás (Metago), através do Núcleo Feminino da
Metago, discutindo a discriminação de que são vítimas as mulheres no
trabalho.
Enquanto isto, o Eva de Novo dá ênfase à pesquisa e ao estudo sobre a
condição da mulher, realizando eventos culturais que servem também de
espaço para a denúncia e divulgação de seus artigos.
Em 1991 surge outra organização, a Oficina da Mulher. Seus temas
predominantes serão a participação política feminina, a saúde da mulher e a
violência sexual e doméstica.
56
Assim, a luta das mulheres em Goiás organiza-se a partir da década de
1980, inicialmente, em torno das questões políticas e sociais que marcaram o
movimento social em todo o país, como a luta por creches, redemocratização,
anistia, protestos contra a carestia, transporte, entre outros. Essas
manifestações oferecem elementos para que as organizações tipicamente
feministas se expressem em Goiás, por vezes com temas comuns, mas cada
qual com enfoque e ênfase específicos conforme o momento em que entram
em cena.
Se a defesa do direito da mulher é o discurso comum entre as várias
organizações feministas que se expressam no mundo, o tema da opressão e
da violência masculina sobre a mulher no ambiente doméstico é elemento
comum a todas essa entidades feministas em Goiás. Ao lado das questões que
se fazem gerais ao feminismo, esse tema confere a especificidade cultural ao
discurso feminista produzido também em Goiás.
Com base nos diferentes temas abordados pelas organizações
feministas em Goiás, traçaremos o perfil dessas organizações a partir da
descrição de suas ações e bandeiras mais expressivas, com o propósito de
sugerir uma tipologia da identidade a que cada uma delas dá origem.
5
2.3 – Identidades feministas em Goiás
A princípio, podemos dividir as entidades do movimento feminista em
Goiás segundo suas inspirações,
6
aproveitando parcialmente a classificação de
Castells (1999) em liberais, socialistas ou culturais.
Um discurso com inspiração liberal, por exemplo, é o discurso feminista
de massas norte-americano dos anos 60. Sua bandeira prioritária era a defesa
da igualdade de direitos entre homens e mulheres e o de escolher ter filhos,
não associando a defesa do direito da mulher a transformações estruturais da
ordem econômica. Ele é dirigido a todas as mulheres, sem a preocupação com
o foco classista, étnico, condição de mercado etc.
57
O discurso feminista de defesa da mulher com inspirações socialistas
associa a condição de opressão das mulheres à sociedade de classe e ao
modo de produção capitalista. O discurso feminista cultural relaciona a
opressão da mulher às bases sobre as quais se funda a sociedade patriarcal.
Mobiliza-se contra o patriarcalismo na forma em que ele se manifesta. Assim ,o
feminismo alia atributos outros à luta contra o patriarcalismo, tornando possível
falar de feminismo étnico, racial, sexual, cultural. Passamos a ter o feminismo
lesbiano, o feminismo das mulheres negras, entre outros.
Diante da resistência da sociedade patriarcal em reconhecer direitos da
mulher (quer sejam à igualdade ou à diferença) esses contornos de inspirações
ideológicas do movimento feminista perdem clareza e todas as organizações
se associam para confrontar a reação patriarcal.
Pensando nesse contorno do discurso feminista, dividimos as
organizações feministas em Goiás (Quadro 1) segundo as ênfases de suas
plataformas na década de1980. Como tomamos por referencial o principal
objetivo de cada entidade, procuramos, ao máximo, definir seus discursos a
partir dessa inspiração. A tipologia que nos interessa na análise do movimento
feminista em Goiás tem por base a classificação dos discursos do movimento
feminista elaborada por Castells (Quadro 2). Ela toma por referência toda forma
de mobilização que o movimento feminista assumiu desde que emerge, no final
da década de 1960, como fenômeno de massa.
6
Embora o tema da defesa do direito da mulher se faça presente em
todas as organizações feministas em Goiás, especificidades podem ser
encontradas. Podemos destacar aquelas que tratam da defesa do direito da
mulher, da mulher goiana, a partir de uma visão liberal igualdade de direitos,
inclusive o de ter ou não filhos, sem associá-los a outros objetivos de
transformação socioeconômica. É o caso do Cevam e do Nufem. discursos
e organizações feministas que abordam esses temas a partir de uma visão
socialista, associando os direitos da mulher ao fim do capitalismo patriarcal,
como é o caso do Centro Popular da Mulher.
58
QUADRO I – ORIENTAÇÕES DO DISCURSO
FEMINISTA EM GOIÁS NA DÉCADA DE OITENTA, SEGUNDO A
TIPOLOGIA DE CASTELLS (1999)
MOTIVAÇÃO
ENTIDADE/
ORGANIZAÇÃO
PRINCIPAIS BANDEIRAS
LIBERAL
Cevam
Nufem
. direitos iguais
todos os campos da vida social;
. proteção à mulher contra a
violência masculina;
. combate à discriminação sexual e à
dominação masculina.
SOCIALISTA
COM
Grupo Oficina Mulher
. associa as questões defendidas
pelas feministas liberais a um
discurso anticapitalista com base
na teoria marxista.
CULTURAL
Eva de Novo
Grupo Feminista de Estudo
Grupo Identidade Mulher
Grupo Transas do Corpo
Grupo Oficina Mulher
. defesa da diferença e difusão dos
valores femininos;
. autonomia cultural (identidade);
. novas formas societais.
59
QUADRO 2 – TIPOLOGIA ANALÍTICA DOS MOVIMENTOS
FEMINISTAS SEGUNDO MANUEL CASTELLS
(1999)
TIPO
IDENTIDADE
ADVERSÁRIO
META
Direitos da mulher
(liberal, socialista)
Mulheres como seres
humanos
Estado patriarcal e/ou
capitalismo patriarcal
Direitos iguais (inclusive o
direito de ter filhos ou não)
Feminismo cultural
Comunidade feminina
Instituições e valores
patriarcais
Autonomia cultural
Feminismo essencialista
(espiritualismo,
ecofeminismo)
Modo feminino de ser
Modo masculino de ser
Liberdade matriarcal
Feminismo lesbiano
Irmandade sexual/cultural
Heterossexualidade
patriarcal
Abolição do gênero pelo
separatismo
Identidades femininas
específicas (étnicas,
nacionais, autodefinidas: p
ex.: feministas lésbicas,
negras)
Identidade autoconstruída
Dominação cultural
Multiculturalismo
destituído de gênero
Feminismo pragmático
(operárias, autodefesa da
comunidade,
maternidade)
Donas de casa/mulheres
exploradas/agredidas
Capitalismo patriarcal
Sobrevivência, dignidade
Embora assumindo inspirações diferentes, as organizações desse tipo
de feminismo são típicos do feminismo de direito. Podem divergir quanto às
formas de mobilização e linguagem, mas adotam as mesmas bandeiras: a
igualdade de direitos entre homens e mulheres, a possibilidade de ter ou não
filhos e a defesa das mulheres como seres humanos.
Também organizações feministas em Goiás para as quais a criação
de espaços alternativos em meio à sociedade patriarcal como forma de
construir sua própria identidade, torna-se mais significativa. É o que Castells
identificou como feminismo cultural. Nesse caso, a construção desses
60
espaços, que podem se associar à idéia de comunidade feminina, faz-se sob o
argumento da diferença e com o propósito de conquistar autonomia cultural
como forma de resistência às instituições e aos valores patriarcais.
É o que fazem o Grupo Oficina da Mulher, o Grupo Transas do Corpo, o
Grupo Identidade Mulher e o Grupo Feminista de Estudo ao discutir as
questões de gênero dentro das oficinas específicas de mulheres ou dos grupos
de estudos. Castells declara que esses espaços são criados pelas mulheres,
para servir com meio gerador e difundidor de uma cultura que se fundamenta
na especificidade dos valores femininos.
Para o Grupo Eva de Novo, embora se organize também em torno de
um discurso que poderíamos chamar de feminismo cultural, a temática mais
significativa para esta organização é a do feminismo essencialista. Na visão de
suas integrantes, a identidade feminina pode ser construída se as mulheres
rejeitarem as definições e interpretações que os homens dão às suas
experiências e a seus corpos. Ela deve ter por base a feminilidade pura, que
embora reprimida, não corrompida pela ordem patriarcal.
Uma de suas fundadoras, respondendo por que o nome “Eva de Novo”
foi escolhido, afirma:
Eva dentro da mitologia católica, é uma mulher que foi
criada da costela de Adão, uma mulher que saiu do
homem. O nome é uma provocação. Uma Eva que se
constitui por ela mesma, que se define por ela mesma.
(Rocha e Bicalho, 1999, p. 23)
Seus argumentos remetem-nos à idéia de que a mulher é capaz de
definir-se por meio de suas experiências e natureza, rejeitando a definição que
lhe é dada pela sociedade patriarcal.
Embora temas como feminismo lesbiano ou de identidades femininas
específicas se façam presentes nos discursos feministas, não grupos dessa
natureza em Goiás que tenham se organizado, ou que se organizem,
prioritariamente em torno dessas bandeiras, mesmo porque elas são mais
61
recentes. No cenário mundial, o primeiro, apesar de ter surgido na década de
1970, vai ganhar força e se desenvolver na última década; o segundo serve
como exemplo de como as identidades feministas se multiplicaram nos últimos
anos.
7
Há de se falar ainda do feminismo pragmático, a mais polêmica de todas
as formas que assume a luta das mulheres, porém o mais corrente, sobretudo
nos países pobres ou em desenvolvimento.
Embora todas as ações desencadeadas pelas organizações feministas
sejam pragmáticas pois “solapam a cada dia, e de muitas formas, as fundações
do patriarcalismo, seja lutando pelo direito da mulher, seja desmistificando o
discurso patriarcal” (Castells, 1999, p. 239), o feminismo pragmático não é uma
conduta coletiva, portanto não se opõe de forma explícita e definitiva a um
poder específico, o poder masculino.
Pode ser que parte das mulheres que solapam, cotidianamente, as
estruturas do patriarcalismo, nem tenha consciência que, ao se opor ao poder
masculino, esteja se posicionando contra o patriarcalismo. Pode ser que nem
se identifique como feminista, e tampouco saiba que suas ações sejam
orientadas por noções de igualdade, liberdade e direito, direito a ter direito,
gestadas dentro de um movimento organizado pelas mulheres.
Castells considera que a maioria esmagadora das ações feministas dos
países em desenvolvimento não oferece uma “oposição explícita ao
patriarcalismo e à dominação masculina, seja em seus discursos, seja nas
metas estabelecidas por seus movimentos” (1999, p.236). Embora também
ocorra nos países industrializados, sua freqüência é maior nos países em
desenvolvimento, em que as mulheres se vêem mais envolvidas com as
questões gerais do cotidiano (cuidar da casa, dos filhos, ajudar no orçamento
doméstico) . Nos países em desenvolvimento as ações tipicamente feministas
que se opõem explicitamente ao patriarcalismo e à dominação masculina são
movimentos elitistas e não das camadas populares. Limitam-se mais aos
círculos acadêmicos e às mulheres profissionais e intelectuais do que às
donas de casa.
As mulheres que denunciam a violência masculina da qual são vítimas
constituem caso típico desse feminismo. Não são militantes do movimento
feminista, nunca participaram de mobilizações em defesa do direito da mulher,
62
mas agem motivadas pelas noções de direito e justiça elaboradas pelo
movimento feminista.
São movidas pelo desejo de mudar o que são para o que desejam ser,
pela recusa do lugar e do papel que lhes são atribuídos na teia das relações
sociais.
É na associação de feminismo de direitos, cujo representante é o
Cevam, e do feminismo pragmático, que envolve mulheres que não se sabem
feministas e cujas condutas são orientadas pelas noções de justiça e de direito
produzidas e divulgadas pelas organizações feministas, que este trabalho se
propõe a analisar a construção de uma nova identidade.
Com base na tipologia de Castells citada acima, classificaremos as
organizações feministas em Goiás, relatando as prioridades de ação de cada
uma e apoiando-nos nas observações de Rocha e Bicalho (1999).
Não se pode dizer que esta ou aquela organização do movimento
feminista em Goiás permitiu a redefinição de identidades única e
exclusivamente em termos deste ou daquele tema, pois, como dissemos
anteriormente, os temas se submetem a determinados mecanismos e estão
sujeitos a atualizações e redefinições em razão do momento histórico, do
contexto em que se desenvolvem as ações e das gerações, ou legiões, que
dão continuidade ao movimento feminista.
Como toda classificação, esta é genérica e não significa que, por estar
aqui apresentada dentro de uma certa tipologia, a organização das feministas
não tenha assumido outros tipos de discurso. O que se tomou como base para
tal classificação, aqui, foram as ações e os discursos mais significativos em
cada organização.
Tendo em vista a tipologia básica, algumas considerações fazem-se
necessárias. A primeira diz respeito à omissão de dois tipos de feminismo, o
feminismo lesbiano e o feminismo de identidades específicas. Este último não é
contemplado na tipologia que fazemos do movimento feminista em Goiás
porque não encontramos grupos feministas que se organizem exclusivamente
em torno da questão étnica. E ainda que o feminismo lesbiano não seja uma
forma nova na organização das mulheres,
8
em Goiás esse discurso não foi
capaz de organizá-las em ão coletivas contra os valores e instituições da
sociedade patriarcal.
63
O feminismo de identidades específicas é a forma mais recente que
assume o discurso feminista, não sendo comum na década de 1980 e 1990,
período de maior visibilidade das organizações feministas em Goiás. Baseia-se
em ações das organizações feministas negras, ou indígenas ou de
nacionalidades específicas.
Outra questão que merece consideração é a de que, mesmo o
identificando entidades com tais características na década de 1980 e1990, isso
não significa dizer que as mulheres negras, por exemplo, não militavam nas
organizações feministas então formalizadas ou que elas o eram feministas.
Pelo contrário, registro de mulheres negras no movimento feminista, mas as
questões levantadas pelo feminismo se sobrepõem à questão étnica.
As mulheres se organizam, inicialmente, em torno da defesa dos seus
direitos, na afirmação de que elas (as mulheres) o seres humanos e, como
tais, têm direitos. Os demais temas foram se incorporando à retórica do
movimento feminista, de acordo com o contexto histórico, dando enfoques a
determinados aspectos da afirmação do direito das mulheres à medida que
ressignificavam sua prática.
O feminismo de direito, o primeiro tipo de feminismo (Quadro 3), é um
exemplo do tema que apela a uma identidade de mulheres como seres
humanos. Embora nele se vejam englobadas duas versões divergentes, liberal
e socialista, em suas práticas e na linguagem, ambas incluem a defesa do
direito econômico (acesso ao mercado de trabalho e à igualdade), a escolha de
ter ou não filhos, o fim da opressão e da discriminação. Consideram a
conquista desses direitos como meta da luta das mulheres e apesar de a visão
liberal não relacionar esse projeto à substituição do capitalismo, o mesmo não
ocorre com a versão socialista do feminismo de direito que atribui a opressão e
a discriminação ao capitalismo patriarcal.
64
QUADRO 3 – MOVIMENTOS FEMINISTAS EM GOIÁS
NA DÉCADA DE 1980 E1990 , CLASSIFICADOS SEGUNDO A TIPOLOGIA
DE CASTELLS
TIPO
ADVERSÁRIO
ENTIDADE
PRIORIDADES DE ATUAÇÃO*
Cevam
. luta contra a violência
. participação em juris de assassinos de
mulheres, com manifestações.
Nufem
. discussões de questões específicas da
mulher no local de trabalho.
Direitos da mulher
(liberal, socialista)
Estado patriarcal
e/ou capitalismo
patriarcal
COM
. popularização da idéia do feminismo
como luta pela emancipação da mulher;
. organização de mulheres trabalhadoras
na luta feminista;
. assessoria junto a entidades jurídicas e
populares.
Grupo Feminista de
Estudo
. estudo e produção de conhecimentos
sobre a condição da mulher;
. atuação na formação de opinião sobre a
situação da mulher.
Grupo Transas do
Corpo
. trabalho de educação sexual;
. realização de seminários;
. projetos de atuação na área de educação
sexual, com financiamentos e convênios.
Grupo Identidade da
Mulher
. grupo de estudo.
Feminismo cultural
Instituições e
valores patriarcais
Grupo Oficina Mulher
. promoção de assessorias com oficina;
. representação da rede feminista de saúde
na região centro-oeste;
. estudo de gêneros.
Feminismo
essencialista
(espiritualismo,
ecofeminismo)
Modo masculino de
ser
Grupo Eva de Novo
. estudos e pesquisas sobre a condição
feminina no mundo, dando ênfase à
realidade brasileira e particularmente à
goiana;
. produção e divulgação de textos e
resultados de pesquisas;
. atuação junto aos meios de comunicação.
promoção e realização de atividades
culturais. criação da biblioteca do grupo.
* Quadro montado a partir de Rocha e Bicalho (1999).
O Cevam, como o CPM e Nufem, compartilha em seu discurso da idéia
de que as mulheres são seres humanos, com desejos e sentimentos, que,
65
assim como os homens, merecem gozar de todos os direitos e prerrogativas a
eles conferidos tanto na esfera do privado (ambiente doméstico), como do
público (mercado de trabalho, política).
As ações dessas entidades nas décadas de 1980 e 1990, quando é o
caso, consistiram em discussões sobre as desigualdades nas relações de
trabalho, direito de creche, direito ao aborto e à assistência, congressos,
seminários e encontros de mulheres trabalhadoras, luta pela igualdade de
direitos. Além disso, especialmente o Cevam e o CPM, mobilizaram-se em
torno de denúncias de violência. Realizaram júris simulados condenando a
violência contra a mulher no Estado, manifestaram-se contra o assassinato de
mulheres, denunciaram agressões por meio de artigos e entrevistas em rádio e
televisão.
O Cevam e o CPM também contribuíram para a criação da Secretaria
Estadual da Condição Feminina (1987), da Delegacia Especial de Polícia de
Defesa da Mulher (1985) e do Conselho Municipal da Mulher (1985).
Estiveram, com o Grupo Transas do Corpo, diretamente vinculados à luta pelo
direito às licenças-maternidade e paternidade, a creches na empresas, direito
de posse de terra ao homem e à mulher, aos direitos previdenciários à
empregada doméstica, entre outros.
Como se vê, a luta do Cevam, do CPM e do Nufem centra-se
prioritariamente na conquista de direitos e na noção de que homens e mulheres
são iguais e que, portanto, devem exercer as mesmas prerrogativas.
Os Grupos Transas do Corpo e Oficina Mulher organizaram, e
organizam, suas ações voltadas para a saúde da mulher através de programas
e espaços exclusivos às mulheres na rede pública de saúde ou órgãos
públicos. Ao mesmo tempo, dedicam-se à discussão da especificidade
feminina, à formação da consciência de gênero e à divulgação dos valores
femininos. Garantem espaços nos jornais locais para a publicação de artigos
feministas, a exemplo do Grupo Identidade Mulher e do Grupo Feminista de
Estudo. Estes dois últimos fundam, ainda, grupos de estudos para a formação
da autoconsciência e de opinião quanto à violência contra a mulher.
Essas ações nos levaram a classificar tais entidades feministas de Goiás
como sendo do tipo cultural porque inspiram suas ações na idéia de que as
mulheres são diferentes e que, por assim serem, poderão reconstruir-se
66
com base em uma identidade feminista se conquistam espaços exclusivos para
a expressão dessas características especiais. Construindo comunidades
femininas, espaços de liberdade em meio às instituições patriarcais, as
mulheres fazem prevalecer as ações, as noções e os valores baseados no jeito
feminino de ser.
Podemos observar exemplos de ações fundadas no feminismo cultural
através de programas de saúde, como o Programa de Assistência Integral à
Mulher (Paism), a Rede Feminista de Saúde do Centro-Oeste, o Programa da
Mulher da Fundação de Desenvolvimento Comunitário (Fumdec), o trabalho
com as mulheres no Parque das Amendoeiras desenvolvidas pelo Grupo
Transas do Corpo e nas assessorias. As entidades fundam grupos de estudos
e oficinas, espaços exclusivos à mulher em suas especifidades de ser e que
também servem à difusão dos valores feministas.
As ações do feminismo essencialista poderiam ser confundidas com o
feminismo cultural em virtude da defesa da especifidade feminina que
proclamam. Porém, o além do feminismo cultural porque convidam a mulher
a reconstruir-se por si mesma através da sua especificidade biológica e
cultural, rejeitando as definições que os homens deram para o “ser mulher”.
Lutam contra as atribuições que a categoria social mulher, construção
social como o é homem, impõe-lhes e da qual se libertarão se a destruírem.
Dessa forma, valorizam a essência feminina, a “feminilidade pura [...] não
corrompida (embora, talvez, reprimida) pela ordem patriarcal” (Castells, 1999,
p. 232).
O Eva de Novo é um caso típico desse tipo de feminismo. As integrantes
do grupo faziam um chamado para que as mulheres se construíssem de novo e
por elas mesmas (Rocha e Bicalho, 1999, p. 23). Esse convite foi feito por meio
de artigos, documentos, palestras e participações em debates e mesas-
redondas em que buscavam formar opiniões contra o poder masculino (pátrio
poder), discutindo a opressão vivida pela mulher e os papéis sociais. O grupo
também buscou sensibilizar candidatos ao governo do Estado para incluir em
seus programas de governo ações voltadas para a mulher.
O feminismo pragmático, terceiro tipo de feminismo que identificamos
em Goiás, é o mais controverso, que considera feministas mulheres que não
se proclamam como tal, mas que é a mais expressiva corrente do feminismo.
67
Nele, são incluídas donas de casa, mulheres com cargos no governo, mulheres
que ocupam espaços em sindicatos, associações pastorais e movimentos
populares. Elas não são feministas conscientes do tipo que se vinculam à luta
organizada do movimento feminista contra a sociedade e os valores patriarcais,
mas corroem cotidianamente as bases do patriarcalismo ao construírem para si
o projeto de uma vida diferente.
São mulheres exploradas, agredidas, donas de casa que recusam a
permanecer no lugar determinado para elas. Esse é o caso das vítimas da
violência masculina em Goiás, que buscam o albergue da Casa Abrigo. Elas
desmistificam o discurso patriarcal e passam a lutar pelo direito de ser o que
desejam ser.
Vale lembrar mais uma vez que essa classificação é um recurso
analítico, e que a possibilidade de a flexibilidade das ações classificar as
entidades em mais de um tipo de feminismo. Mas, como toda classificação,
esta também peca pelo reducionismo que, neste caso em especial, é feito
tendo por base a ação prioritária das entidades do movimento feminista em
Goiás.
68
NOTAS
1- Anthony Giddens afirma que as mulheres desde muito têm sido divididas, em virtude de sua
capacidade de recusar os prazeres sexuais, entre virtuosas” e “perdidas”. A sociedade tem
amparado essa recusa ou virtude através de determinadas instituições como a autoridade
paterna, o namoro com acompanhantes, casamento forçado, entre outras. Para maiores
informações ver As transformações da intimidade. São Paulo: Edusp, 1993.
2- Cora Coralina, na verdade Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, poetisa goiana, nasceu em
1889 e, quando indagada sobre a idade que tinha, respondia que viera do século passado,
tendo consigo todas as idades. Publicou o seu primeiro de conto ainda na adolescência, aos 14
anos. É autora de O cântico da volta, Poemas dos becos de Goiás, Estórias mais e Vintém de
cobre meias confições de Aninha. O reconhecimento veio na década de 1980, quando foi
eleita uma das dez mais importantes escritoras brasileiras, passando a receber prêmios como
Idoso do Ano/Sesc (1982), da Associação Paulista de Crítica de Arte, da União Brasileira de
Escritores (Troféu Juca Pato) e Comenda Honra ao Mérito. Recebeu ainda homenagens da
ONU e da Rede Globo. Apesar de ter começado a escrever ainda na adolescência, Cora
Coralina se dedicará ao ofício, de fato, na terceira idade, quando, viúva, volta a morar na
cidade de Goiás, antiga Vila Boa, local onde nascera. Junto com Alice Augusta de Sant’Anna,
Leodegária de Jesus e Rosa Godinho editou em 1907 o semanário A Rosa, periódico divulgador
do Movimento Literário da Cidade de Goiás. Nos registros do Centro de Valorização da Mulher
(Cevam), Cora Coralina se fez presente em reuniões, discutindo o papel da mulher na
sociedade. Ver Britto (1982) ou os arquivos do Cevam.
3- Souza define quatro tipos de violência que constitui o habitus goiano. Para a do nosso trabalho,
interessa-nos a violência do tipo impulsiva e a do tipo expressiva. Primeiro porque relacionam-
se a crimes comumente praticados na esfera doméstica e, segundo, pela natureza deles. A
violência impulsiva refere-se a atos que evidenciam a imediaticidade da reação do agressor a
uma contrariedade momentânea, o caráter espontâneo da ação e a ausência de premeditação.
Nessa categoria, Souza inclui, entre outras, as reações violentas de maridos contra as esposas
em discussões domésticas, fortuitas por motivos diversos. Guarda estreita relação com o
padrão de sociabilidade cotidiana dos agentes, sociabilidade partida, incompleta, frustrada.
Pode, ainda, ser classificada, nos termos weberianos, como uma ação irracional afetiva. “Pode
ser referida ao monopólio imperfeito da violência por parte do Estado, incapaz de criar, ao longo
prazo, os constrangimentos externos aos quais correspondem a racionalização da conduta e o
autocontrole”. Elias citado em Souza (1999, p. 125) . A violência expressiva no Brasil associa-
se aos princípios da honra que exaltam masculinidade e a braveza física. Ela “visa desvalorizar
o outro para atribuir-lhe um valor maior numa escala hierárquica. Depende do valor que o
indivíduo atribui a si próprio e de sua expectativa de que esse valor presumido lhe seja atribuído
pelo outro. Nas situações de conflito, a expectativa não é correspondida, fazendo com que o
indivíduo se sinta diminuído, desprezado. Ele expressa então essa incongruência de valores por
meio da violência [...] trata-se de colocar-se numa posição superior ao considerado desigual
porque é inferior. Cabem nesse tipo de violência”, entre outras, “tanto a violência que eclode das
relações de gênero quando a vítima é a mulher e que o resulta de impulsos apenas
momentâneos, mas da reafirmação do papel do homem, da sua virilidade, da sua condição de
provedor, da consagração das relações de poder dentro da família”. Esses conceitos foram
retirados de Souza (1999, p. 121 a 192)
4- Benedita Cypriano Gomes, mais conhecida na região de Pirenópolis pela alcunha de Dica, teve
sua história marcada pelo misticismo, pela defesa do povo sofrido, do trabalhador sem terra e
pela proximidade com os poderosos de seu tempo. Para melhor compreender seu poder de
liderança, na década de 1920, em torno da qual sua história é construída, ver Vasconcellos,
1991.
5- Resta-nos esclarecer que este é um recurso analítico e por isso mesmo corre o risco de ser
reducionista no que se refere às práticas feministas de ação social, pois sabemos que as
mulheres que tomaram parte do movimento se associaram a um ou mais tipos de ação coletiva
(sindicatos, partidos políticos, instituições, movimentos sociais) com o mesmo fim ou, ainda, que
há, em decorrência das gerações e das mudanças que o próprio feminismo produz, das
matrizes teóricas que orientam seu discurso e, ainda, das mudanças socio-econômicas por que
passam a sociedade, a atualização das ações e dos discursos feministas. Essa classificação
obedece a uma tipologia construída por Castells a partir da diversidade que assume o
69
movimento das mulheres em todo o mundo e toma de empréstimo de Touraine a caracterização
de movimentos sociais.
Castells, ao tratar da multiplicidade de formas que assume o discurso feminista, procura
identificar o tipo de identidade a que cada um deles dará origem. Não há, portanto, somente o
feminismo da diferença, fundado no princípio da diferença biológica, histórica ou na
superioridade moral e cultural da feminilidade enquanto modo de vida, mas pelo menos seis
formas que suscitam identidades distintas, adversários e projetos, também, distintos. Tivemos
ainda a preocupação de determinar com essa tipologia o núcleo de oposição de cada ação e a
meta traçada por elas como forma de estabelecer o direito da mulher. Para maiores detalhes ver
Castells (1999), p. 169 a 277.
6- Não tratamos de filiação ideológica porque o feminismo o vincula seus temas a correntes
ideológicas Seus membros podem vislumbrar o adversário que combatem e estabelecer metas
que orientarão suas ações a partir de diferentes visões. O que é fundamental ao movimento
feminista não são a conquista e o exercício do poder, mas o estabelecimento de novas formas
societais baseadas em noções de justiça, direitos e liberdade.
7- Essa tipologia foi construída com base nas formas de discurso que assume o movimento
feminista descritas por Castells (1999) e nas prioridades de atuação descritas por Rocha e
Bicalho (1999).
8- Alguns exemplos podem ilustrar essa forma que assumiu o discurso feminista e que permite a
muitos falar de fragmentação, entre eles o do feminismo negro e suas entidades, como As Irmãs
Negras de Southall, na Inglaterra, das organizações de mulheres negras brasileiras, da Casa de
Cultura da Mulher Negra de Santos, do feminismo peruano, do feminismo japonês, do
feminismo lesbiano negro. Ressignificando o discurso feminista, segundo o contexto em que se
acham inseridas, as novas gerações de feministas se permitiram, então, autodefinições étnicas,
nacionais e sexuais.
9- O feminismo lesbiano já se fazia presente nos movimentos feministas de massa nos EUA desde
os anos 70.
70
3 - O CEVAM E A AÇÃO DE MUDANÇA
A primeira impressão que tínhamos até o início do trabalho empírico era
a de que, ao ingressar no Cevam, as mulheres vítimas da opressão de seus
ex-cônjuges e pares amorosos, durante o período em que permaneciam
albergadas na Casa Abrigo, participavam de discussões envolvendo temas da
luta das mulheres. Ou seja, que o Cevam garantia a participação das
albergadas em momentos de interlocução, ao qual chamamos de espaço
público, necessário à discussão, à formação de opinião e de noções de direito.
Afinal não seria este um dos objetivos das entidades envolvidas numa luta
política?
Grande foi a nossa surpresa quando, durante as entrevistas, as
albergadas informaram (Tabela 21) que, enquanto permaneceram na Casa
Abrigo, não participaram de reuniões que abordassem temas feministas, nem
sequer dos temas do direito da mulher. Perguntávamo-nos então: como pode
essa entidade do movimento feminista oportunizar a redefinição de identidade
que pudéssemos classificar como feminista e do tipo feminismo de direitos? E
mais, diante das mudanças na forma de mobilização, como podemos
considerar o Cevam dentro de uma conduta coletiva do tipo ofensivo?
Para responder a tais questões, é necessário primeiro resgatar um
pouco da história da própria entidade e da forma de mobilização dos
movimentos sociais desde os anos 80.
3.1 – O Centro de Valorização da Mulher – Cevam
Como dissemos na introdução, quando tratávamos das lutas feministas
em Goiás, o Centro de Valorização da Mulher - Cevam, surge no início da
71
década de 1980 e tem como tema preferencial o combate à violência masculina
contra a mulher. Ainda que aborde outros temas relacionados ao direito da
mulher, a entidade nasceu, segundo uma de suas fundadoras e integrantes,
“basicamente com uma finalidade específica, de ser trincheira de luta no
processo crescente da violência contra as mulheres em Goiás” (Rocha e
Bicalho,1999, p.25).
Como conseqüência da luta feminista que travou nas últimas duas
décadas, o Cevam acabou tendo seu nome associado ao combate da violência
masculina contra a mulher e à defesa do direito feminino, e não é raro
assistirmos a seus integrantes testemunhando sempre que o assunto é
abordado. O telefone e endereço da entidade constam em boletins das
Delegacias Especiais de Polícia da Mulher e em periódicos de entidades
ligadas ao combate à violência contra a mulher.
Fundada em 1981 por advogadas, sociólogas, psicólogas, jornalistas e
donas de casa, a entidade posicionou-se desde então como “trincheira de luta
contra a violência, a discriminação e o preconceito que atingem sem punição a
maioria das mulheres goianas” (Histórico do Cevam).Valorizava a capacidade
feminina de atuar em todos os campos da sociedade, tendo como princípio
fundamental de sua ação a “defesa do direito da mulher e a sua participação
ativa no poder e no mercado de trabalho” (Cevam, 1994).
As feministas, através das ações desencadeadas pelo Cevam, engajam-
se na luta pela redemocratização da sociedade brasileira, participando de
comícios e passeatas que exigiam eleições diretas. Buscando a realização de
seu projeto homens e mulheres unidos pelos direitos humanos, organizando
passeatas, promovendo júris simulados e mobilizando as mulheres para o
julgamento de homens que tivessem assassinado suas esposas, namoradas e
companheiras –, puderam debater com a sociedade a democratização das
relações interpessoais.
Apesar das crises enfrentadas, que o obrigou a ficar sem sede própria
de 1991 a 1994 e a fechar as portas da Casa Abrigo em 1992, o Cevam não
perdeu a visibilidade. Por meio da imprensa, principalmente dos jornais, e dos
debates públicos em Goiás, a entidade continuou a combater a violência
masculina contra a mulher no Estado “mais autoritário, machista e patriarcal do
país” (Cevam, 19994). Em 1994 a entidade se reorganiza para a defesa da
72
Delegacia da Mulher, então sob ameaça de fechamento pelo governador do
Estado, Iris Rezende.
QUADRO 5 – LUTAS, PRIORIDADES DE ATUAÇÃO E CONQUISTAS DO
Cevam NAS DÉCADAS DE 1980/1990
LUTAS
PRIORIDADES DE
ATUAÇÃO
CONQUISTAS
manifestação (passeatas, atos
públicos, plantão na frente do
fórum) em júris de assassinato
de mulheres;
elaboração de projetos de
ações públicas para o
atendimento à mulher;
proposta para alterações nos
Códigos Civil e Penal;
inclusão de matérias sobre a
mulher na constituição de 1988;
criação do SOS Mulher;
criação da Delegacia Especial
de Polícia da Defesa da Mulher;
criação da secretaria estadual
da condição feminina;
combate à violência contra a
mulher;
manifestação em júris para
julgamento de assassinato de
mulheres.
criação da Delegacia Especial
de Polícia da Defesa da Mulher
de Goiânia;
criação da Secretaria Estadual
da Condição Feminina;
criação do SOS Mulher e
posteriormente, da Casa
Abrigo;
punição de assassinos de
mulheres;
reconhecimento da entidade
como sinônimo de combate à
violência contra a mulher.
FONTE: Cevam. Goiânia 2000
Rocha e Bicalho, 1999.
Da luta priorizada pelo Cevam e partilhada com outras entidades do
movimento feminista em Goiás, surgem as delegacias de polícia para defesa
da mulher (em 2001 são quatro em todo o Estado), algumas condenações de
homens que assassinaram suas esposas, namoradas ou companheiras (o caso
de maior repercussão foi o da condenação de Lindomar Castilho, cantor de
grande reconhecimento nacional, que matou sua mulher na década de 1980) e
a criação da Secretaria Estadual da Condição Feminina.
Em suas campanhas contra a opressão, nas quais adotou os temas
“Sem punição mais mulheres morrerão”, Marido é companheiro, não é
carrasco”, “A violência é progressiva, começa com um tapa e termina em
73
assassinato”, “Em briga de marido e mulher não se mete a colher, chama-se a
polícia”, o Cevam buscava trazer para a esfera pública, especialmente para a
responsabilidade policial, fatos que até então se limitavam ao ambiente
feminino doméstico.
Em face do aumento da violência praticada contra o sexo feminino e da
falta de abrigo que oferecesse passagem e albergue para as mulheres mais
expostas à ira masculina, em 1994, mesmo em condições precárias, a diretoria
do Cevam decide reabrir a Casa Abrigo, projeto mantido pela entidade até
1992. Hoje, segundo dados do próprio Cevam, entre orientações e abrigo, a
Casa atende cerca de oitenta mulheres e crianças mensalmente. Além do
albergue, as mulheres que procuram a organização desejam informações
sobre pensão alimentícia, partilha de bens, direitos e deveres dos pais.
A Casa Abrigo é dirigida pela entidade e mantida com trabalho
voluntário, contribuições espontâneas e convênios com órgãos públicos. É uma
organização não-governamental (ONG) que abriga as mulheres e seus filhos
vítimas da violência masculina por um período de no máximo três meses.
Na Casa, as albergadas, como passam a ser chamadas assim que o
entrada, revezam-se na limpeza, responsabilizam-se pelos objetos existentes
na ONG, além de prepararem a alimentação dos que ali estão temporariamente
ou a trabalho. Recebem orientação jurídica e são encaminhadas e/ou
acompanhadas para o Fórum, IML, delegacias e juizados especiais, conforme
o caso.
Uma vez albergada, a mulher conta com um quarto com banheiro onde
pode abrigar seus pertences (móveis, roupas, alimentos, utensílios) e com
ambientes coletivos, como refeitório, salão de TV, cozinha, pátio, parque
infantil. A ONG dispõe de transporte, enfermaria e linhas telefônicas para o
atendimento de plantão.
Em função da falta de recursos financeiros e humanos, a direção da
Casa alega que temporariamente não faz trabalhos de formação política.
Tampouco realiza oficinas para discussão de temas como sexualidade,
doenças sexualmente transmissíveis e qualificação profissional, como prevê o
projeto de criação da ONG. Mas realiza esse tipo de atividade quando busca
parceria com órgãos públicos e outras organizações não-governamentais.
74
Duas formas de mobilização marcam a história do Cevam.
1
A primeira
vai de 1981 a 1991, quando a entidade promove debates, assegura a
participação das mulheres na formação de noções de direito e realiza
mobilizações populares que visam ao respeito do direito das mulheres. Além do
combate à violência que vitima a mulher em Goiás, envolve-se também na
defesa de bandeiras gerais da luta feminista e de outros temas da vida política
nacional.
A segunda forma de mobilização tem início quando a entidade decide, a
partir de 1994, retomar suas ações em defesa do direito da mulher. Nesse
momento, a ação do Cevam volta-se exclusivamente ao combate da violência
masculina, e sua forma de mobilização difere-se da anterior. Não promove
mobilizações populares, suprime o espaço de participação popular e se atém à
relação com as agências públicas na busca de benefícios, que se traduzem em
serviços e atenção aos direitos das mulheres. Assegura a representação dos
interesses femininos por meio da capacitação das lideranças e da experiência
na luta das mulheres adquirida na primeira fase da entidade. Visando a
proteção das mulheres vítimas da violência masculina, busca parcerias com
organizações o-governamentais e com o Estado, colocando-se como
interlocutor entre essas mulheres e o poder público.
Quando as organizações feministas na década de 1980 entram em
cena, os movimentos sociais tinham grande visibilidade em virtude da
capacidade de mobilização popular. O movimento feminista organizou e
participou das campanhas específicas das mulheres e, também, das lutas
relacionadas às questões econômicas e políticas como a reivindicação por
melhores salários e as demandas por serviços que assegurassem as
condições de sobrevivência da classe trabalhadora ou por participação política
–, que culminaram no processo de redemocratização da sociedade brasileira.
As mulheres mobilizavam-se não só via os movimentos sociais
tipicamente femininos, mas também por intermédio de outras organizações
populares, como associações de moradores e sindicatos. Os temas do
movimento feminista eram ajustados às demandas dessas organizações, por
meio dos núcleos ou grupos de estudos femininos, em razão da múltipla
militância a que se dispunham. Em Goiás, tanto os jornais como O Popular,
Diário da Manhã e Jornal Opção, quanto os informativos dos partidos políticos
75
e das organizações feministas freqüentemente relatavam as mobilizações
populares promovidas pelas mulheres. Eram passeatas, atos públicos,
participações em comício, debates nos quais as feministas podiam protestar,
emitir opiniões em nome das mulheres em favor de uma sociedade
democrática e de relações sociais mais igualitárias e justas entre os gêneros. O
Cevam, por exemplo, promoveu campanhas, participou de atos públicos, agiu
como força de pressão política em assuntos ligados à causa feminista e
também, às demandas da política nacional propriamente dita.
Ao adentrar os anos 90, a capacidade de mobilização popular dos
movimentos sociais decresceu, dando a impressão, aos mais desatentos, que
as organizações teriam perdido a razão de ser. O protesto e a reivindicação
que mobilizavam grande número de populares passam a ser considerados
coisas do passado, de amadores motivados pelos afetos e pouco habilitados
para o diálogo com o poder.
Com o Cevam não foi diferente. Ao final dos anos 80 e nos anos 90, ele
já não mobiliza as mulheres para as lutas prioritárias. Porém, essa conduta não
é exclusiva do Cevam, mas da grande maioria das entidades do movimento
feminista e do movimento popular. E é esse fato que nos passa a impressão do
fim dos movimentos sociais e das mobilizações populares de que falávamos
acima. Porém, antes de abordarmos a falência da capacidade de mobilização
das entidades do movimento social, devemos tratar de outras formas de
diálogo com o poder instauradas, também, como resultado das lutas populares.
Primeiro, a cultura da participação popular dos movimentos sociais nos
anos 80 gerou, para Gohn (1992), frutos à medida que instaurou, entre os
atores sociais, a noção de que o povo tem o direito de participar das questões
que lhe dizem respeito. Essa noção persistirá nos anos que se seguem e
orientará a ação dos indivíduos em diferentes esferas, desde a reunião de
condôminos de um prédio até os encontros para tratar de questões de alcance
geral na comunidade, como a mudança de sentido de uma rua ou a venda de
uma empresa pública, entre outras. Um bom exemplo do que estamos falando
foi a reação da população às mudanças propostas pela Prefeitura de Goiânia
para a Avenida 85
2
em 1999.
Se os movimentos sociais instauraram práticas e idéias, elas não
morreram, mas persistiram agregando novos elementos e negando outros,
76
segundo o momento histórico. Dessa forma é que os veremos nos anos 90,
produzindo outras formas de mobilização. Diferentes encaminhamentos foram
dados às demandas coletivas e, com eles, formas diversas de representação e
reivindicação. Diante de uma nova realidade política, mais aberta às demandas
populares e que “representa um novo contexto político dentro do qual os
movimentos sociais vão atuar” (Cardoso, 1994, p. 83), as condutas coletivas
vão perdendo visibilidade, deixando a impressão de que os protestos e as
reivindicações que organizavam a participação popular são coisas do passado.
Diante das dificuldades do Estado de negociar com as diferentes
organizações populares que representam interesses diversos para uma mesma
questão, e que por vezes concorriam entre si, Cardoso (1994, p. 83) chama a
atenção para a criação de instâncias capazes de fazer a mediação entre as
organizações populares e o poder público. Surgem então conselhos,
gerências, órgãos públicos e organizações não-governamentais responsáveis
pela interlocução das demandas, de forma a “estabelecer um consenso a
respeito de como implementar os programas” (Cardoso, 1994, p. 89).
Na busca da compreensão das mudanças que operam na forma de
mobilização dos movimentos sociais a partir dos anos 80, Gohn (1992) se
debruça na especialização das lideranças do movimento que passam a se
apoiar na assessoria de uma rede de organizações não-governamentais para
maior eficiência de suas ações. Dessa forma, as lideranças desenvolvem
jargões e procedimentos que inibem a participação popular e, iniciado o
processo de democratização político do país, lançam-se como candidatos a
cargos eletivos, sem que novos quadros tenham sido preparados para
mobilizar e organizar a luta popular. Mas é no apoio técnico das assessorias
que os movimentos sociais limitam, nos anos 90, as antigas formas de
mobilização popular.
Ao elaborarem programas e projetos de interesse popular a serem
negociados com as agências públicas e diante da dificuldade de essas
agências tratarem com toda a diversidade de interesses para uma mesma
questão, as organizações não-governamentais, às quais Gohn denomina
terceiro setor, acabam por ocupar o lugar dos movimentos sociais como
instância da representação popular. Progressivamente, as lideranças passam a
ser pagas para gerir os programas e projetos de interesse popular que
77
representam e, assim, grupos historicamente organizados do movimento social
deixam de ser reivindicativos para se ver envolvidos em frentes de trabalho.
Nos anos 80, as entidades do movimento feminista em Goiás, como em
todo o Brasil, reivindicavam suas demandas diretamente às agências públicas.
Com a criação de órgãos públicos, conselhos e assessorias específicos para o
atendimento das organizações feministas, criados pelo próprio Estado ou por
organismos internacionais ou assistênciais, estabelecem-se mecanismos e
prioridades para o atendimento das reivindicações. Nesse novo contexto que
marca a relação entre o Estado e as camadas populares, as mulheres dispõem
de espaços institucionais.
A criação da Secretaria Estadual da Condição Feminina (1987), da
Assessoria Especial da Mulher pela Prefeitura (1994) e do Programa da Mulher
na Fundação Municipal de Desenvolvimento Comunitário (Fumdec) (1993),
resultados da luta feminista em Goiás, inaugura essa nova forma de
encaminhar as reivindicações das mulheres. O Estado, ao atender as
reivindicações das mulheres de se fazerem representadas junto ao poder
público e de adotar políticas voltadas especificamente a elas, cria instâncias de
participação feminina responsáveis pelo diálogo com as organizações do setor.
Parte das lideranças passam a coordenar esses espaços, afastando-se das
entidades a que se vinculavam.
As lideranças que permanecem no movimento capacitam-se para,
através das instâncias de participação, mediar com o poder público, de modo a
alcançar o maior número de benefícios por ação empreendida. Ou, ainda,
diante da dificuldade de alocar recursos para os serviços que passam a prestar
à população que a entidade representa, apóiam-se em serviços de
assessorias, capazes de propor projetos e ações de atendimento à mulher.
Paralelamente às entidades do movimento social, passa a existir uma rede de
serviços financiada pelos recursos captados das agências públicas ou de
organismos internacionais.
É nesse novo contexto da mobilização popular e do novo diálogo com o
poder público que o Cevam reestrutura-se, a partir de 1994, e reabre a Casa
Abrigo. Em Goiás, as grandes mobilizações de mulheres, a rotina de passeatas
e atos públicos dão lugar à qualificação dos quadros dirigentes do movimento
para a prestação dos serviços de defesa e proteção da mulher vítima da
78
violência de seus companheiros. Instrumentalizar e capacitar a Casa Abrigo
passam a ser as prioridades de atuação da entidade.
Em virtude dessa preocupação, os espaços públicos necessários à
formação à ação e a formação de opinião são suprimidos, abre-se um fosso
entre representados e representantes. Na relação Cevam–mulher agredida
esse distanciamento pode ser constatado nas conversas com as albergadas,
quando demonstram certos receios em dirigirem-se a determinadas pessoas
ligadas à direção da Casa, como na burocracia criada para o acesso a elas.
As lutas para a mudança do Código Penal, por exemplo, da Lei 9.099/95
e do Código Civil circunscrevem-se na busca do apoio parlamentar e na
articulação entre as agências governamentais (delegacias especiais,
assessorias, gerências), conselhos e organizações de defesa do direito da
mulher. Renovar os quadros e buscar ampliar a base de representação e
formação política dos militantes potenciais, como as albergadas da Casa
Abrigo, não são mais preocupação do Cevam, como também não o é de outras
entidades do movimento feminista que fazem interlocução com o poder blico
nesses novos tempos.
Por isto, a albergada, militante potencial da luta feminista, o participa
de reuniões que abordem as questões de gênero enquanto permanece na
Casa Abrigo. A prestação de serviço é, para o Cevam, a forma quase única de
encaminhar a luta contra o poder masculino. O acolhimento torna o Cevam
autorizado a falar em nome das mulheres vitimadas pela violência
desencadeada pelos homens goianos e em nome delas convoca, denuncia a
opressão, reivindicam relações sociais mais justas e igualitárias ou, no caso da
Lei 9.099/95,³ reivindica o direito a diferença.
As albergadas também oferecem-lhe um dos princípios, o da identidade
(desejo de ser diferente), para que o Cevam continue operando na dinâmica
dos movimentos sociais e articule a identidade ao princípio do projeto e às
estratégias políticas de ação contra o poder ao qual as mulheres albergadas se
opõem de forma inconsciente.
A preocupação com a eficiência da ão política no encaminhamento
das reivindicações pode ter levado as entidades do movimento social, inclusive
o Cevam, a excluir o “amadorismo” no encaminhamento das reivindicações,
bem como, a supor que elas (as entidades), ao se capacitarem, quer pela
79
qualificação de suas lideranças, quer no apoio das assessorias, expressem
tecnicamente as demandas dos grupos que representam. Dessa forma, vimos
que
a cena social e política contemporânea é ocupada, do lado
dos que não detêm o poder, tanto por um apelo a uma
identidade cada vez mais natural e cada vez menos social,
como por reivindicações cada vez mais diretamente
políticas e, por conseguinte, expressas não em termos de
identidade, mas de relações sociais e de poder. O que
significa que o apelo à identidade deve ser definido como
um comportamento defensivo separado de toda a conduta
contra-ofensiva. (Touraine, 1978, p. 117 a 118).
Em nome da defesa do direito, o Cevam torna-se interlocutor com o
Estado, apropria-se da força de luta subjacente na ação das vítimas da
violência masculina e perde parte da sua capacidade de mudança,
característica dos movimentos sociais.
O Cevam não chega a perder a visibilidade depois de 1994, mas, com
certeza, não apóia sua ação na participação massiva das mulheres e tampouco
garante a existência de espaços públicos necessários ao debate e à formação
de opiniões, de novas noções de sociabilidade e de cidadania além daquelas já
formuladas na luta feminista.
80
NOTAS
1. Entre 1991 e 1994, o Cevam manteve-se fechado. Sem sede, sem diretoria nem recursos para
financiar suas atividades, a entidade não promoveu debates ou outras formas de mobilização no
período.
2. Ao buscar alternativas para o tráfego no sentido centro–sul de Goiânia, a Prefeitura Municipal,
em 1999, implanta uma via secundária e alternativa, a Avenida Cora Coralina, e altera o sentido
da Avenida 85, que liga o centro aos setores da região sul da cidade. Porém, a medida gera
protestos porque contraria os interesses dos comerciantes da Avenida 85 – que reclamam
diante da possibilidade de redução no volume dos negócios e de não terem sido chamados a
opinar sobre as mudanças –, bem como dos moradores à margem da via secundária, que se
vêem ameaçados de perder sua privacidade e parte das áreas verdes do bairro.
3. A maior luta do Cevam, desde 1995, para coibir a violência masculina sobre a mulher e a
criança tem sido a mudança da Lei 9.099/95, que dispõe sobre os juizados especiais e que visa
agilizar o cumprimento de penas alternativas. A Lei 9.099 prevê que os crimes com penas de
até um ano de reclusão (ameaça, danos morais, maus-tratos e lesão corporal), após registradas
ocorrências e encaminhados os casos para os Juizados Especiais, devem ter as penas
convertidas em prestação de serviço à comunidade ou doação de cestas básicas. Para o
Cevam essa lei contribui para o aumento da violência doméstica ao levar o agressor a sentir-se
protegido, pois ela impede a sua punição e prisão desde que, após assinar o boletim de
ocorrência, ele compareça à audiência nos Juizados Especiais. o facilidades que não geram
cerceamento e permitem que o agressor retorne ao convívio doméstico logo após o registro da
denúncia.
81
4 – AS FEMINISTAS BUSCAM PROTEÇÃO
A primeira questão de que trataremos neste capítulo é a da
caracterização das albergadas. Depois, a da possibilidade de classificarmos as
mulheres albergadas na Casa Abrigo, mantida pelo Cevam, como feministas.
Durante as entrevistas realizadas com mulheres que se encontravam
albergadas e com aquelas que procuraram refúgio na Casa Abrigo por um mês
ou mais, parecia-nos que não haveria como associar a busca da proteção
contra a violência masculina a uma ação transformadora das práticas sociais.
Essa impressão ficava mais forte quando as mulheres albergadas, indagadas
sobre se tinham ou militância no movimento feminista ou se engajavam em
outras formas de organização popular, declaravam não exercer esse tipo de
atividade suposta para as feministas.
Poderíamos denominar a aproximação das mulheres agredidas por seus
maridos/companheiros com o Cevam de subversão a um tipo de poder, o
patriarcalismo? Ademais, poderíamos associar essa identidade feminista à
noção de cidadania?
Pareceu-nos mais adequado identificar as motivações que estavam na
base da ação dessas mulheres vítimas da violência masculina em Goiás que
procuram proteção na Casa Abrigo.
Diante das declarações que elas mesmas nos fizeram de que nunca
tinham participado de qualquer discussão que abordasse temas do movimento
feminista e jamais tinham ouvido falar do Cevam antes de se encaminharem
para lá, como considerá-las feministas?
Como considerá-las feministas se elas próprias o se reconhecem
dessa forma? Elas poderiam ser feministas sem ter consciência do poder ao
qual se encontram submetidas, ao qual se opõem? E ao qual a luta feminista,
também, se opõe? Como perceber que essas mulheres são feministas?
É o que nos propomos a discutir neste capítulo.
82
4.1 – A Pesquisa
Antes de tratarmos da identidade das albergadas, discorreremos sobre a
pesquisa empírica que buscou as evidências da redefinição da identidade das
mulheres vítimas da violência masculina em Goiás, bem como da aproximação
dessa identidade feminista com um tipo que pudéssemos caracterizar como
cidadania. A pesquisa foi realizada entre fevereiro e junho de 2001.
Não se tratou de levantamento amostral, primeiro pela dificuldade de
encontrar as mulheres com passagem pela Casa Abrigo. Quando saem da
Casa, elas logo perdem contato, mudam-se e cortam os nculos com o
pessoal do Cevam. Segundo, como o tempo pode alterar a impressão e a
precisão dos atores acerca dos elementos que contribuem, ou não, para a
redefinição da identidade política que buscávamos detectar optamos por tratar
as evidências empíricas entre as mulheres albergadas e entre aquelas recém-
desligadas com quem conseguíssemos estabelecer contato.
Foram realizadas 12 entrevistas com mulheres que se encontravam na
Casa Abrigo ou que tenham tido passagem por lá. Embora todas as entrevistas
trouxessem as mesmas preocupações, nove entrevistas apresentaram
questões fechadas que se propunham traçar o perfil socio-econômico das
albergadas (roteiro de entrevista anexo). O roteiro abordava ainda, por meio de
questões fechadas e abertas, a participação política e no movimento social, o
envolvimento com o movimento feminista, a rotina na Casa Abrigo o
envolvimento com Cevam. Duas entrevistas não seguiram roteiros, mas
mantiveram a mesma preocupação: compreender os motivos que estavam na
base de suas ações, compará-los com as noções de direito e justiça
elaboradas pelo movimento feminista, perceber se havia um apelo identitário
que pudéssemos relacionar com a cidadania e, por último, compreender o
vínculo do Cevam com essas mulheres e a contribuição da entidade para a
formação de uma consciência política que pudéssemos chamar de cidadania,
mesmo que pelo viés do feminismo.
Realizamos uma terceira entrevista com uma militante do Cevam. Nela,
buscamos estabelecer se havia diferença entre as motivações que tinham
83
feministas pragmáticas e feministas de direito para sua ação. Levantamos,
nesta entrevista, questões similares às realizadas com as albergadas.
4.2 – Quem são as albergadas?
Os dados aqui apresentados se referem às informações coletadas em
nove entrevistas que obedeceram ao roteiro, não incluindo portanto, duas
entrevistas que não o seguiram e tampouco buscaram levantar dados
socioeconômicos.
Das nove mulheres vítimas das agressões de seus companheiros ou
namorados acolhidas na Casa Abrigo, oito são solteiras e têm de dois a três
filhos. Seis estão na faixa etária dos 25 aos 35 anos. São donas de casa,
prestadoras de serviço (cabeleireiras, manicures, pedicures, camareiras) e
trabalhadoras da indústria de confecção. Três têm o segundo grau completo e
seis delas estudaram até o primeiro grau.
Embora todas as albergadas tenham declarado ter religião, somente
quatro disseram-se praticantes. Sete são evangélicas e duas, católicas.
Somente uma albergada admitiu a participação em reunião, palestras,
ou qualquer outro tipo de discussão, que abordassem temas do movimento
feminista e, quando o fez, o tema era direito da mulher e mulher e trabalho.
As albergadas não costumam participar de mobilizações populares ou
de qualquer tipo de organização popular, nem de partidos políticos. Somente
duas declararam participar de movimentos populares, sendo eles movimento
estudantil, associação de moradores e grupo de estudos.
84
4.3 – As feministas pragmáticas na Casa Abrigo
Ao reagir à opressão de que o vítimas, as mulheres têm consciência
de que a relação que estabelecem com seus namorados, companheiros ou
cônjuges não é a desejada. Suas reações são motivadas por noções de justiça
e direito, e podem, individualmente, não visar ao fim do patriarcalismo, mas
desejam alterar a forma como são tratadas pelos homens e a posição que
ocupam dentro da relação conjugal.
Transformar as bases do patriarcalismo o é o objetivo racionalmente
visado por essas mulheres, como o é para as feministas militantes que,
também, tornam evidente a opressão de que são vítimas as mulheres na
sociedade patriarcal. Mas as ações das albergadas contribuem, da mesma
forma, para desgastar as bases da sociedade patriarcal.
Não se trata de uma ação puramente racional, que se funda na busca
da solução de um conflito imediatamente dado (a violência de que são vítimas),
não considerando, portanto, as conseqüências possíveis do desenrolar de suas
denúncias. As vítimas da violência masculina que se encontram sob proteção
no Cevam não associam a violência masculina ao patriarcalismo, nem a sua
ação de denúncia ao fim desse poder. Mas considerados os meios para coibir a
violência contra si e contra as mulheres, a ação das albergadas também não
pode ser classificada exclusivamente como atividade afetiva (resultante de
estados emocionais e psíquicos), pois leva em conta os meios mais eficientes
para alcançar os objetivos inicialmente visados: transformar as estruturas da
relação conjugal no que se refere ao lugar e ao papel da mulher nessa relação.
Essa ação toma como referência os valores da luta feminista, o discurso
das feministas. Em virtude da elaboração de um discurso capaz de sensibilizar
mulheres das mais diferentes culturas, o feminismo tornou-se fenômeno
mundial, criando especificidades que nos permitem falar de múltiplas formas e
matizes do movimento feminista. O discurso feminista foi capaz de articular-se
e adaptar-se aos diferentes tipos de experiências das mulheres em todo o
mundo, assumindo, assim, nuanças que nos levam a afirmar que a ação das
albergadas é uma das matizes desse movimento que subverte as estruturas
85
patriarcais.
Em todas as partes do mundo, as mulheres, em graus variados, se
tornaram sensíveis aos temas feministas. Esse discurso gera identificação por
parte das mulheres nas mais variadas culturas. Elas se apropriam do discurso,
ressignificando-o e, assim, conseguem articular os temas gerais da luta em
defesa do direito da mulher às formas específicas de opressão de que são
vítimas no cotidiano.
É característico dessa articulação que os que se encontram nela
envolvidos atualizem ou confirmem noções de direito. Noções como a de direito
a ter direito, direito à integridade sica e moral, direito ao trabalho, de acesso
aos métodos anticonceptivos e direitos outros dos quais carecem nos contextos
em que se encontram inseridas.
E, assim, o movimento feminista serviu de referência para as albergadas
que passam (nesse caso em especial) a rejeitar a forma de opressão da qual
são vítimas. Não querendo mais ser tratadas com violência, percebem-se como
donas de casa, possuidoras de direitos que merecem viver com dignidade.
Reagir a uma dada situação de opressão masculina o implica a
filiação a entidades do movimento feminista, tampouco determina ativismo
contra o poder e as instituições patriarcais, mas é sem dúvida uma ação que se
organiza a partir das noções de direito (direito humano que se estende às
companheiras, esposas e a sua prole) esboçadas no bojo do movimento
feminista.
Trata-se, como dissemos acima, de uma conduta orientada por
atributo culturalmente significativo, qual seja, a medida de justiça, característica
do discurso feminista, que reconhece o outro como possuidor de direitos
válidos e que, por conseguinte, reivindica novo padrão de sociabilidade na
relação de gêneros.
Podemos dizer, então, que a ação das albergadas expressa uma das
formas que assumiu a luta das mulheres, porque é orientada pelos valores
feministas e supõe a rejeição do lugar (ou do papel) determinado às mulheres
nas relações sociais patriarcalizadas. Mas sua natureza é outra que não a do
feminismo de direitos em razão das características de seus atores.
Elas são feministas pragmáticas. o que as outras formas de
feminismo não sejam pragmáticas no sentido de produzir mudanças nas
86
instituições patriarcais ou de apresentar novas formas de sociabilidades. Elas
são pragmáticas, são “feministas na prática embora não reconheçam o rótulo e
nem tenham consciência de que se opõem ao patriarcalismo” (Castells, 1999,
p. 236). Essas feministas vinculam a sua luta¹ ao seu cotidiano e a diferença
entre estas e as demais feministas se faz em termos de experiência, ou “em
torno de tradução cultural” (Castells, 1999, p.237).
É o tipo mais comum de feminismo nos países em desenvolvimento. E
embora seus atores não sejam militantes dos movimentos das mulheres, não
se vejam como feministas e tampouco tenham consciência do adversário, do
projeto ou das metas que orientam a ação do movimento feminista, suas ações
isoladas são capazes de produzir alterações substanciais nas estruturas e
valores patriarcais. São as donas de casa, líderes comunitárias e pastorais,
trabalhadoras que ocupam funções nos sindicatos ou desenvolvem atividades
públicas, produtivas, culturais e outros papéis rotineiros.
O movimento de mulheres conscientemente feministas² é, para Castells
(1999), elitista e organizado por intelectuais, estudantes ou profissionais
liberais. Pode não incluir a grande maioria das donas de casa, operárias,
líderes comunitárias e pastorais, mulheres que ocupam cargos públicos ou
funções sindicais que lutam em defesa da família, do emprego, da habitação,
do saneamento, da saúde. O feminismo pragmático (Quadro 2) é capaz de
abrigar diferentes tipos de ações referenciadas nos valores feministas que
produzem alterações nas práticas sociais patriarcalizadas. Apesar de o se
mobilizar por meio de condutas coletivas, sua ação espontânea na vivência
cotidiana vai paulatinamente destituindo as instituições da marca de gênero.
Quer feministas de direito ou feministas pragmáticas, ambos os atores
lutam pelo direito da mulher, opõem-se às práticas sociais desmistificando as
atitudes e o discurso patriarcais e reconstruindo-se de forma autônoma,
independentemente da vontade do homem e do papel que lhes cabe (mãe,
esposa, filha, namorada) na sociedade patriarcal.
A ação de denunciar a violência e solicitar a proteção contra uma das
formas de opressão da sociedade patriarcal é um dos tipos de conduta
referenciada nos valores feministas que compõe, em Goiás, o feminismo
pragmático.
Certa da identidade feminista das mulheres que aceitam ficar,
87
temporariamente, na Casa Abrigo, cabe-nos dizer que a ação das albergadas
difere das demais ações feministas em virtude de suas experiências. Na sua
quase totalidade, são mulheres ocupadas com a rotina da casa e dos filhos, a
sobrevivência dos dependentes, ou com suas atividades na comunidade e não
se envolvem com a organização do movimento feminista, mas mostram-se
capazes de alterar sua posição no ambiente doméstico, no trabalho, na
comunidade. Em conseqüência, com seu exemplo, mostram-se capazes,
também, de influenciar as novas gerações de mulheres levando-as a reagir
diante da discriminação e da opressão.
4.4 – Denunciar é ação social capaz de promover mudança?
Resta-nos saber, afinal, se a ação das mulheres albergadas na Casa
Abrigo, mantida pelo Cevam, é força social de mudança ou se constitui um
esforço de luta que morre encarcerado em si mesmo. Se somente expressa o
protesto a uma forma de manifestação do poder masculino, ou se está apta a
se converter em contestação contra o poder que destrói a capacidade de
intervenção autônoma dos atores.
Pode parecer aos mais desatentos que a ão das albergadas é
motivada por estados afetivos e psicológicos que nada têm de social.
Considerando ainda o tipo ideal para a feminista longe estaríamos de
identificar a denúncia da violência masculina contra mulheres e crianças e a
solicitação de proteção como apelo identitário.
Essa ação, no entanto, é coletiva e apela a uma identidade defensiva.
Constituiria, portanto, a primeira etapa da ação de mudança.
A maioria dos movimentos sociais que se formam nas
nossas sociedades pode ser analisada como tentativas de
passagem de uma identidade defensiva a uma identidade
ofensiva, como força de trabalho sobre a identidade
defensiva. (Touraine, 1984, p. 120)
88
Ela caracteriza a primeira etapa da luta das mulheres contra o poder
patriarcal porque mobiliza-se movida pelo sentimento de desvalorização, de
exclusão, capaz, no entanto, de transformar-se em ação política ao se
aproximar de um movimento socialmente ofensivo. O apelo à identidade de
donas de casa com direitos a uma vida digna passa a ser um dos elementos
integrantes da ação ofensiva, ou seja, dos movimentos sociais feministas que,
no caso específico deste trabalho, são representados pela capacidade de
mobilização do Cevam.
Observando os motivos que estão na base dessa ão (desejo de uma
vida diferente), logo percebemos tratar-se de uma ação referenciada na
conduta das feministas e no discurso elaborado pelo movimento feminista
(dignidade, igualdade, mulheres como seres humanos), desde que este surge
como movimento organizado de massas, no fim dos anos 60.
Nas entrevistas com algumas das feministas pragmáticas albergadas na
Casa Abrigo, foram freqüentes declarações como as que se seguem:
[...] o mundo mudou, não estamos no tempo em que a
mulher aceitava tudo do marido e ficava tudo bem.
(Informante 1)
A gente não pode aceitar isso, ainda mais sem saber o
porquê. E mesmo se tivesse um motivo pra gente “tá”
levando “porrada” [...] nós somos gente! (Informante 2)
Outras desabafam:
– Não podia aceitar ser tratada como era tratada. Tem
mulher aqui dentro que agüentou até demais! Eu não aceito
isso não. Meu companheiro era drogado e mesmo assim
eu não aceitei. (Informante 3)
89
E, ainda,
– A mulher foi educada para perdoar, ceder. Ai ela agüenta
os maus-tratos do marido até não sei quando, mas não é
justo! Eu não sou cachorro. (Informante 4)
[...] A mulher não pode aceitar tudo calada, tem que se
mostrar, que merece respeito. (Informante 5)
Eu tinha que fazer alguma coisa, do jeito que estava não
podia continuar. Eu era muito boba no começo. [...]
(Informante 6)
Existe uma distância entre a base de ação e o seu encaminhamento
político. Olhando assim, tenderíamos a crer que a ação das mulheres timas
da violência praticada por homens em Goiás não se completa e caminha para
encerrar-se em si mesma, sem converter a revolta em contestação contra o
poder masculino. A indignação das vítimas da violência dos homens goianos
nasce do apelo a uma identidade, mulheres donas de casa, mas não se
completaria, tornando-se contestação ao poder masculino e às formas de
dominação a ele identificados. Porém, ao associar-se à entidade do movimento
feminista, por meio da Casa Abrigo, sua ão oferece instrumentalidade para o
Cevam reivindicar mudanças.
A ação de defesa em nossos dias, em razão da dominação diversificada
e menos brutal que em sociedades anteriores, segundo Touraine (1989), não
pode apelar a uma comunidade ou a um ofício. Invoca, ao nível do indivíduo, o
corpo, as relações interpessoais, o desejo. E, assim,
[...] esta defensiva pode tornar-se um movimento social,
ou mais simplesmente produzir uma capacidade de ação
90
coletiva, se estiver associada a um movimento contra-
ofensivo. Do mesmo modo, a defesa da vida, da cultura e
das aptidões operárias, alimentava um movimento
operário na medida em que se associava a um movimento
de contra-ofensiva que reclamava a fábrica para os
operários e a criação de uma sociedade de produtores.
(Touraine, 1984. p. 117).
Pela natureza da entidade, que é do tipo feminismo de direitos (Quadro
1), o Cevam não chega a propor transformações estruturais na sociedade
patriarcal. Opõe-se ao Estado patriarcalizado, reivindicando mudanças nas
relações entre homens e mulheres e na forma como o Estado regula e intervém
nessa relação. Em defesa das mulheres vitimadas pela violência masculina, o
movimento feminista, nomeadamente o Cevam como entidade desse
movimento, reclama para as mulheres a capacidade de produzir essas
mudanças. Faz pressão junto aos órgãos blicos dos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, visando produzir as modificações que entende
necessárias naquele contexto para garantir a liberdade, a dignidade, a
igualdade e até mesmo, a diferença como direitos das mulheres. Reivindica
para si o conhecimento e a capacidade de provocar as mudanças que as
mulheres desejam e carecem.
Se a ação das mulheres que denunciam a violência masculina não se
associa ao elemento político, neste caso, ão que requer para as mulheres o
controle da historicidade, ela terá vida curta e se limitará ao protesto às bases
sobre quais se assenta a relação conjugal. Não identificará a opressão
masculina a outras formas de poder, como a do Estado ou a do dinheiro.
Mesmo o apelo à identidade não se confundindo com o movimento
social, ele é o primeiro momento da ação de mudança, pois é uma força social
de luta. As denúncias das mulheres vitimadas pela violência são um gesto
defensivo que nasce por meio do apelo à defesa da identidade da mulher, da
igualdade, da dignidade e não contém, em si, capacidade de ação social. Pode
não vir a -lo, pois a identidade defensiva das mulheres vítimas da violência
masculina em Goiás, baseada no sentimento de desvalorização ou de
exclusão, pode não se tornar força social capaz de reivindicar poder político
91
para os atores envolvidos no conflito. Assim entendida, a identidade defendida
das albergadas será tão somente o apelo a uma identidade (igualdade,
dignidade) e não uma capacidade de ação transformadora.
Porém, ao se aproximar do Cevam, entidade que pressupomos ter a
consciência do conflito social (da luta e do adversário) e que disputa a
hegemonia das mudanças culturais e sociais, a ação das albergadas
transforma-se em um dos elementos que compõem os movimentos sociais,
qual seja, o apelo à identidade.
Apelo que, nessa nova roupagem, ressignificado, não deve se confundir
com as mulheres que solicitam proteção contra a violência e a opressão
masculinas na sociedade goiana, mas que deve ser visto como um esforço que
passa de um simples princípio de ação (apelo identitário) a vários princípios
complementares e interdependentes.
Ele deixa de ser, com o Cevam, apenas o protesto contra uma das
formas de opressão da sociedade patriarcal para se unir à critica ao Estado
patriarcalizado e às relações que oprimem a mulher na sociedade patriarcal.
Assim, além de ser essência de identidade, amplia-se e agudiza-se como
percepção crítica para se tornar ação contra-ofensiva, isto é, torna-se defesa
contra as condições de ação social das mulheres na relação conjugal.
Transforma-se, enfim, sendo possível de ser definida como ação política.
O apelo à identidade
[...] pode ser concebido como um trabalho da democracia,
como consciência do esforço pelo qual os atores de um
sistema social, que exerce um grande poder sobre si
mesmo e que está empenhado em mudanças incessantes,
se esforçam para que sejam eles próprios a determinar as
condições nas quais se produz a vida coletiva e pessoal
(Touraine, 1984, p. 122).
Na busca de uma solução para conflitos que se instauram na esfera
doméstica, no limite do privado, a ação das albergadas orienta-se pelas novas
noções de justiça e direito, como dissemos anteriormente, gestadas nos
92
espaços do movimento feminista. Ela é motivada pelo desejo de mudança, de
deixarem de ser o que são para o que, entendem, deveriam ser, ou para como
as mulheres devem ser tratadas nas relações interpessoais.
Não bastassem os argumentos acima que justificam a sobrevida da
ação defensiva das albergadas, feministas pragmáticas, recorremos ainda à
tipologia dos movimentos sociais traçada por Castells (1999) para demonstrar
como essa ação pode converter-se em força social de mudança. Porém, antes,
retomaremos algumas considerações sobre a construção de identidades.
O que é a construção de identidades? Ela é, segundo Touraine (1989),
não um apelo a um ser, mas a reivindicação de uma capacidade: a capacidade
de ação e de mudança.
Para tanto, a construção de identidades pressupõe a autonomia dos
sujeitos. Isso porque ela apela à autodeterminação e à autonomia do sujeito
em face do que é dominante e do que lhe é socialmente desfavorável.
Autonomia para negar o lugar e as funções socialmente impostas na teia das
relações sociais. Há nessa negação a oposição ao que é socialmente válido.
A ação das mulheres albergadas na Casa Abrigo apela à identidade,
como afirmamos anteriormente ela se opõe ao lugar e ao papel
socialmente definido à mulher, mãe, namorada ou companheira na sociedade
goiana.
Eu acho que mulher não pode ficar calada só, dentro de
casa. Ela tem que sair, trabalhar. Esse negócio de ficar
dentro de casa cuidando de casa, de filhos não tem nada a
ver. (Informante 1)
[...] mesmo que ela (mulher) o trabalhe fora de casa,
ela tem que ser tratada de igual. Ela pode não ajudar o
marido com dinheiro, mas quem lava? Quem cuida dos
filhos? [...] e se ele (o marido) tivesse que pagar para
alguém fazer isso? Não ia ter que desembolsar? [...]sou
dona de casa, lavo, passo, cozinho [...] quero ser tratada
como gente! (Informante 7)
93
Essa oposição é orientada por atributos culturais que se sobrepõem aos
demais e que apelam às relações interpessoais, ao corpo, ao desejo. Embora
seja, como dissemos acima, uma ação defensiva, ela não visa a reestruturação
dos princípios que regulam o funcionamento da sociedade goiana
patriarcalizada, tampouco, busca, por meio da oposição às relações sociais e
aos valores sociais dominantes nessa sociedade, criar comunidades de
resistência.
Ela é motivada pelo projeto de uma vida diferente, pelo desejo de tomar
para si o controle da ação histórica e de criar sua própria história pessoal. Esse
desejo pode ser percebido nos trechos dos depoimento das albergadas
transcritos logo abaixo. Embora ainda não possamos falar claramente do
projeto político, na ação das feministas pragmáticas o desejo de redefinir a
posição das mulheres por meio da oposição às práticas dominantes nas
relações interpessoais.
– A gente não pode aceitar isso [...]. (Informante 2)
Não podia aceitar ser tratada como era tratada.
(Informante 3)
[...] A mulher não pode aceitar tudo calada, tem que se
mostrar, que merece respeito. (Informante 9)
– Eu tinha que fazer alguma coisa [...] (Informante 6)
Esse tipo de identidade tende a superar o desejo de redefinir a si próprio
para se apresentar como um projeto coletivo capaz de modificar a posição das
demais mulheres na sociedade.
94
Como pode ser esse processo então, se as feministas pragmáticas não
têm a consciência da luta feminista, necessária à ação que se quer de
mudança? Como pode ser uma ação que revela o esforço desses atores de
tomarem para si o controle da ão histórica, se os atores que dela tomam
parte não reconhecem o adversário e, menos ainda, não compartilham um
projeto de futuro?
Tendo por base os argumentos apresentados até aqui, a resposta
estaria em tomar tais elementos de empréstimo da entidade que as abriga,
interagindo com o tema da luta feminista desencadeada pelo Cevam.
Apesar das denúncias de agressão física, moral e psicológica
registradas na Delegacia de Defesa da Mulher em Goiânia, somente algumas
delas resultam no encaminhamento à Casa Abrigo mantida pelo Cevam. Além
disso, não obstante as estimativas de agressões contra a mulher que deixam
de ser registradas, poucas resolvem sair de casa e buscar proteção e apoio
nos serviços da Casa Abrigo.
Observa-se, aqui, dois níveis de ação relacionadas ao apelo identitário.
O primeiro consiste no protesto e pode ver-se limitado à explicitação pública da
opressão masculina. No segundo, percebe-se maior determinação em alterar a
relação de gênero. Enquanto o primeiro pode, para Souza (1999), ser um
recurso utilizado para negociar os espaços da mulher na relação conjugal
determinada, na segundo, encontramos uma preocupação com a posição das
mulheres em geral. Porém, ambos são motivados pelos valores e pelas noções
de justiça e de sociabilidade tecidas na luta das mulheres e não se aliam ao
elemento político da luta feminista. Os dois níveis de ação também contribuem
para desgastar as bases sobre as quais se assentam a família, o casamento,
bem como a posição que a mulher ocupa nessas instituições e na comunidade.
Até a denúncia, a ação das mulheres significa uma força de luta social
capaz de provocar mudanças cotidianas. Embora esta seja uma batalha
política, revele o lugar onde os conflitos instauram-se na sociedade, oponha-se
aos valores dominantes na sociedade patriarcal, organize-se a partir da
rejeição dos atributos dados à mulher pelas instituições patriarcalizadas e seja
capaz de fazer um número considerável de vítimas diariamente, não explicita-
se como luta política para os atores que dela tomam parte.
Essa ação pode, ou não, converter-se em uma força política, capaz de
95
conceber estratégias de ação para alcançar o objetivo visado na luta das
mulheres. É o que ocorre quando elas resolvem buscar proteção na Casa
Abrigo mantida por uma entidade do movimento feminista. É na solicitação da
proteção no albergue do Cevam que a ação, a que chamamos pragmática,
incorpora-se a outro vel de ação e pode ser, então, caracterizada como força
política.
Dispor-se a ir para um albergue, deixando o ambiente doméstico e
preterindo a casa de familiares, é o reconhecimento de que a mudança (ser o
que desejam ser) necessita da articulação de elementos externos ao cotidiano
em que vivem as feministas pragmáticas. Na proteção, o Cevam transforma a
violência na motivação para a luta feminista deliberada pela entidade. Em
defesa do direito das mulheres vitimadas por ações violentas de seus ex-
cônjuges ou pares amorosos, a entidade do movimento feminista reclama os
direitos humanos, a igualdade e a justiça a todas as mulheres oprimidas. O
Cevam faz isso quando reivindica mudanças nos Códigos Civil e Penal, exige a
punição que considera justa aos homens agressores, combate a impunidade
aos crimes que ocorrem na esfera doméstica e que têm a mulher e seus filhos
como principais vítimas, solicita a instalação de delegacias especializadas no
atendimento às mulheres e busca formar opinião contrária ao predomínio das
violências expressivas e impulsivas nas relações interpessoais.
As albergadas justificam as ações da organização quando esta identifica
seu adversário, define seus projetos, reivindica novas formas de sociabilidade
entre os gêneros feminino e masculino. A mulher vitimada pelo abuso da força
do homem, ao passar pelo albergue, legitimidade às lutas organizadas pela
entidade, que a abriga, em favor do direito das mulheres. Supõe o
envolvimento da comunidade, das instituições responsáveis pela defesa do
cidadão, da infância e de outros segmentos da coletividade nas ações de
oposição ao poder identificado com o patriarcalismo.
Não é, no entanto, uma luta que reivindique mudanças estruturais como
o fim do Estado patriarcal ou que associe o fim da opressão que submete a
mulher à vontade masculina à substituição do capitalismo. Poderes estes,
Estado e capitalismo, identificados com a dominação masculina.
O Cevam, como força social de mudança, reivindica da sociedade
relações mais igualitárias e justas entre mulheres e homens, a partir da
96
perspectiva de que ambos são seres humanos, sujeitos de direitos. Do Estado
e das instituições que o compõem, reivindica alterações na forma como tratam
homens e mulheres e na maneira de regular essa relação, de modo a garantir
universalidade dos direitos.
O uso da força física masculina contra mulheres e seus filhos oferece
argumentos para a luta engendrada pela entidade. Ao mesmo tempo, serve-lhe
como um dos princípios a partir dos quais organiza-se o movimento social. O
abrigo autoriza a argumentação blica e política sobre as desigualdades
existentes nas relações interpessoais entre homens e mulheres na sociedade
goiana. Coibir a violência e proteger a mulher na sociedade patriarcal, por meio
de mecanismos como a criação de delegacias de polícia especializadas em
atendê-las, secretarias e conselhos femininos, mudanças no corpo da lei e
aplicação de penalidades aos crimes contra a mulher, têm sido as metas
comuns entre todas as organizações do movimento feminista em Goiás, mas
preferencialmente são os objetivos do Cevam. É o combate à violência
masculina, em especial, que mobiliza as militantes dessa entidade.
A aproximação de feministas pragmáticas a feministas de direito será
capaz de resultar numa ação que se oporá à opressão de nero,
reivindicando para as mulheres o controle da historicidade a capacidade de
decidirem sobre seus destinos, de construírem, por si mesmas, suas histórias.
Embora a ação de mudança desencadeada pelas feministas
pragmáticas nas práticas cotidianas prescinda da consciência feminista, a
aproximação das albergadas com a entidade feminista oferece àquelas tal
elemento comum às lutas políticas. A entidade, por sua vez, encontrará na
opressão evidenciada nos corpos das albergadas a base social para orientar
sua luta.
No encaminhamento da reivindicação de igualdade e justiça não
como separar as principais vítimas do poder masculino das feministas
militantes do Cevam. Albergadas e militantes se confundem não em virtude
do desejo de construir novas bases, mais justas e reciprocamente válidas, para
as relações homem – mulher, como também porque tomam parte de uma
mesma luta, são sensíveis ao mesmo discurso que tornou-se unívoco contra a
sociedade patriarcal e suas instituições nas últimas trinta décadas.
Fazem parte de uma mesma ação coletiva, compartilham os mesmos
97
projetos de justiça e igualdade entre os sexos. A diferença entre ambas é de
experiências, faz-se por meio de estágios, pois integram o mesmo discurso só
que em fases diferentes desse tema.
Eis porque a ação das albergadas é uma ão capaz de produzir
mudanças. Não bastasse isso, vemos nessas mulheres albergadas a
capacidade transformadora das feministas pragmáticas. Em seu
comportamento, negam a autoridade masculina no ambiente doméstico,
opondo-se ao papel e ao lugar (subordinação e recato), inicialmente, reservado
às mulheres na relação conjugal. Tornam público o conflito entre homem e
mulher, transformam uma questão doméstica em caso de polícia. Dão às
questões de incompatibilidade de gênios, para usar uma linguagem da relação
conjugal, um tratamento criminal. Mesmo que se arrependam e voltem à
convivência com seus parceiros agressores por questões afetivas (paixão,
ódio, amor) ou racionais (como as econômicas e o bem-estar dos filhos), a
denúncia pública e a reivindicação do tratamento de polícia para o conflito tem
seus desdobramentos. Podem coibir novas agressões, podem servir como
referência para outras mulheres, além de, ainda, oferecer para os agressores o
limite de sua autoridade.
Tratando da democratização da intimidade, Giddens faz referência à
coerção da violência nos relacionamentos e afirma que o direito da mulher,
4
de
denunciar a opressão de que é vítima oferece “um importante efeito de
equilíbrio” (Giddens, 1993, p. 208).
Suas conseqüências compensatórias vão além de autorizar
a saída de um relacionamento opressivo, por mais
importante que ele seja. Elas limitam a capacidade do
marido impor o seu domínio e por isso contribuem para a
transformação do poder coercitivo em comunicação
igualitária (Giddens, 1999, p. 208).
Outro desdobramento possível da ão das vítimas da violência
masculina em Goiás que optam por denunciar a opressão sofrida é a influência
de suas iniciativas sobre as novas gerações que convivem com a mulher
98
agredida: filhas, filhos, sobrinhos, enteados. A decisão da mulher vítima da
opressão de gênero de tratar a agressão no ambiente doméstico como questão
afetiva (incompatibilidade de gênios, perda temporária das faculdades mentais,
ciúme etc.) servirá como referência às novas gerações, à medida que estas
vierem a conviver com os novos valores ali projetados para permear a relação
homem–mulher .
Esta foi uma das preocupações levantadas por uma das feministas
pragmáticas, dona de casa, quando perguntada sobre o que achava de a
mulher trabalhar fora de casa.
Hoje é a coisa mais certa, mas mesmo assim tem
homem que não considera a mulher não. Eu quero, e
Jesus vai abençoar, que as minhas filhas casem e tenham
filhos, mas também quero que elas estudem. (Informante
10).
Outra entrevistada enfatizou a necessidade de reagir à violência.
[...] do jeito que estava não podia ficar [...] tenho filha e o
quero que ela cresça achando que apanhar do marido é
normal. (Informante 6)
Castells, a princípio, vê-se tentado a negar a possibilidade da existência
de feministas sem a consciência política da luta feminista, ou seja, sem a
conscientização feminista. nesta classificação a mais contravertida posição
que ele pôde assumir com relação às condutas coletivas que se orientam por
projetos, mas entendeu também que não como negar a capacidade dessas
mulheres de produzir mudanças no meio em que vivem.
É claro que todas as feministas são pragmáticas, no
sentido que solapam a cada dia, e de muitas formas, as
99
fundações do patriarcalismo, seja lutando pelos direitos da
mulher, seja desmistificando o discurso patriarcal. É
possível, porém, que muitas mulheres sejam feministas na
prática embora não reconheçam o rótulo nem tenham
consciência de que se opõem ao patriarcalismo. [...] Não
serão, no mundo inteiro, as lutas e organizações de
mulheres em defesa de suas famílias (principalmente seus
filhos), suas vidas, seus empregos, seus abrigos, sua
saúde, sua dignidade [grifos do autor], uma forma
pragmática de feminismo?
[...] mulheres em todo o mundo estão vinculando sua luta,
e a opressão a que estão sujeitas, ao seu cotidiano. Elas
percebem a mudança de sua condição na família em
função de sua de intervenção na esfera pública. (Castells,
1999, p. 235/236)
Para Alvares, o feminismo tem ocupado outros espaços que foram
abertos às mulheres e pela ação delas.
Hoje em dia você tem mulheres que ocupam diversos
espaços no sindicato, movimento popular ou igrejas e
essas pessoas sempre estiveram presentes, mas elas não
se autoproclamam feministas, e são feministas
evidentemente diferentes daquele pequeno grupo de
pessoas que se organizaram nos anos 70 (Alvares, 2001)
As vítimas da violência masculina que recorrem ao albergue, mantido
pelo Cevam, rejeitam a autoridade do marido, companheiro ou namorado que
tenta subjugá-las e, a despeito do papel ou do lugar que ocupam na relação
conjugal, agem orientadas pela noção de justiça e direito. É uma subversão à
submissão em que se encontram certas mulheres goianas capaz de produzir
mudanças sociais, alterar comportamentos e valores da sociedade patriarcal, à
medida que sua ação de denúncia incorpora-se à prática coletiva.
Um bom exemplo de como a denúncia pública de conflitos instaurados
na esfera doméstica pôde influenciar outras mulheres a dar tratamento policial
à questão da violência masculina é o número de denúncias registradas
100
anualmente na Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher desde a sua criação
em 1985. Conforme a Tabela 1, o número de ocorrências cresceu 2.849% em
15 anos. Se não produziu mudanças na forma de mulheres e homens se
relacionarem, o dado mostra, no mínimo, a crescente efetividade na reação à
violência masculina, a partir da consciência do direito.
4.5 – Os atributos da cidadania na ação feminista pragmática
Sabendo que a ação das mulheres vítimas da violência masculina faz
parte de um tipo de feminismo, o feminismo pragmático, resta-nos ainda
associar a essa ação atributos característicos da noção de cidadania.
Os atributos presentes nessa noção podem variar de acordo com o
tempo e o espaço, não nos permitindo cristalizar percepções sobre os seus
elementos. Porém, o conceito de cidadania é sempre utilizado para designar
um status, uma condição social, baseada em direitos e obrigações. Em torno
desses atributos, ao longo da história desde a sociedade ateniense, os homens
foram capazes de ampliá-los, ora forjando novas noções de direito e deveres,
como é o direito à diferença, ora atualizando os existentes, como o direito
econômico da mulher.
Noções de direitos e deveres, que nascem a partir da experiência de
grupos, passam a ser reivindicadas como válidas para toda a sociedade, e é
exatamente neste nível, o da universalidade, baseada na tentativa de incluir
cada vez mais um número maior de indivíduos que, segundo Marshall,
poderemos então falar de cidadania. A generalidade é, pois, o pressuposto
básico de validade para esse status capaz de revelar uma condição social.
Da Antigüidade clássica aos nossos dias, os homens incorporam novos
contornos a essa noção, por vezes agregando novos atributos àqueles direitos
formalizados. Marshall (1967) e Bobbio (1992) descrevem a construção dos
direitos de cidadania, ou direitos humanos como quer o segundo, a partir do
surgimento de três direitos básicos, quais sejam: os direitos civis, os direitos
101
políticos e os direitos sociais. Na descrição apresentada por ambos, tais
direitos surgem a partir do século XVIII.
Em face do Estado absolutista e das amarras que as corporações de
ofício e as barreiras alfandegárias impõem ao comércio, os homens desse
tempo reivindicam a liberdade pessoal, a liberdade de pensamento, religiosa,
econômica, entre outras. Surgem então, a partir desse contexto, os direitos
civis.
Os direitos políticos, com suas aspirações igualitárias e de liberdade
datam do século XIX e expressam o desejo de participação, do voto, da
representação. Os direitos sociais, mais recentes, o os últimos a integrarem
a noção clássica de cidadania. Datam do século XX e surgem da reivindicação
pelo direito ao trabalho, à escola, à saúde, entre outros.
Cabe registrar que, nessa descrição, cada geração construiu a noção de
cidadania de que carecia. Apesar da historicidade dos atributos que se
agregam ao conceito, não se pode falar de uniformidade de direitos pois cada
grupo participa de forma variada de sua distribuição. Em decorrência disto,
grupos diferentes reivindicaram e associaram novas demandas aos direitos
formalizados ou, diante da persistência da exclusão do status de cidadania,
persistiram na luta para agregar os atributos que lhes garantissem igualdade,
liberdade e participação.
Dessa forma, vimos emergir à cena política negros, favelados, minorias
étnicas, povos tribais e mulheres, entre outros grupos que, com base no
sentimento de exclusão, apresentam suas carências, demandas na tentativa de
vê-las reconhecidas como de direitos. Exigem direitos não-formalizados, não-
sancionados de forma jurídica, mas que passam a incorporar a noção
existente de cidadania. Ampliado seus atributos, o conceito só poderá ser
entendido no contexto sociocultural em que emerge.
A construção dessa noção de cidadania está estreitamente ligada à de
direitos tanto de direito à igualdade como à diferença e foi capaz, segundo
Dagnino (1994), de articular o campo da política ao da cultura, democratizando
as relações sociais. Assim, pôde-se falar de novas formas de sociabilidade,
apresentadas sempre por atores sociais que se encontram fora da lógica
dominante, que buscam estabelecer como válido o que entendiam ser seu
direito.
102
Cidadania inclui, nesses termos, mais o reconhecimento, ou
estabelecimento, de relações sociais mais igualitárias e justas do que
propriamente a inclusão no sistema político.
No processo de construção da cidadania, os atores envolvidos orientam-
se pelo que desejam, aspiram e entendem ser seus direitos, pelo projeto de ver
sua aspirações generalizadas como direitos válidos para todos.
É um processo de ressignificação de atributos culturais, no qual o status
dos atores é negado e eles passam, então, por conseqüência da autonomia
diante das instituições, a buscar ser o que desejam ser. Essa ressignificação
pode até envolver o atributo ser mãe, mulher, dona de casa, esposa.
É o caso do movimento feminista. Ele foi capaz de elaborar noções de
direito que incorporam às aspirações de uma vida diferente de mulheres das
mais diferentes culturas. Quando emergiu, no final dos anos 60, como
fenômeno social de massa, suas reivindicações eram baseadas no direito.
Direito econômico (trabalho, salário) e direito de definir sobre os processos que
envolviam o corpo da mulher e, conseqüentemente, sua posição na sociedade
patriarcal.
Os temas abordados pelo movimento feminista, baseados nessa noção,
dão novos contornos à idéia de cidadania, ampliam a dimensão da política ao
tratar do direito, da justiça e da democracia, questões até então do universo da
política, para a dimensão da cultura. Enquanto processo de afirmação de
direitos, o movimento feminista tem, na sua gênese, a luta pelo reconhecimento
do status de cidadão de que as mulheres carecem.
E como isso pode ocorrer? Tratada aentão como minoria, cidadã de
segunda classe, dependente do cabeça do casal, a mulher não tem autonomia
sobre o próprio corpo, e seu lugar é definido na teia das relações sociais como
subordinado às vontades e à autoridade dos homens, seja a do pai, a do irmão
mais velho e, por fim, a do esposo. A noção de cidadania de que tratamos aqui
não pode ser cristalizada nos ideais liberais. Como dissemos, ela é sempre
ressignificada, atualizada por aqueles que se encontram fora da lógica de
dominação através das suas demandas que devem sobrepor-se aos
legalmente formalizados, de forma a agregar-se a eles, subvertê-los ou
atualizá-los.
A noção de direitos que emerge do movimento feminista sobrepõe-se
103
aos demais atributos culturais como o de mãe, dona-de-casa, esposa,
namorada e mobiliza as mulheres, em diferentes partes do mundo e em
tempos diversos, na luta para o reconhecimento de suas aspirações, daquilo
que entendem ser, naquele contexto específico, o seu direito. Dessa forma,
ampliam os atributos de cidadania ao garantir sua validade para um número
maior de indivíduos. O movimento tem, na sua trajetória, feito com que as
conquistas da luta feminista fossem resultado da luta não só das mulheres,
mas também de homens e crianças em situação de opressão.
Direitos válidos não para a mulher americana, inglesa, italiana, mas
direitos universais que devem regular todas as relações interpessoais. Ainda
que possa haver resistências à mudança, a luta dos atores sociais, por meio de
condutas coletivas culturalmente orientadas, amplia a dimensão do político, à
medida que ela incide sobre as práticas sociais, democratizando-as.
Ser o que desejam ser donas-de-casa, operárias, mães, seres
humanos, cidadãs portadoras de direitos válidos é o projeto que põe em
marcha a ação de mulheres com diferentes experiências. Permite, assim, o
surgimento de ideais variados de feminismo e cidadania referenciados na
noção de direito a partir da experiência das mulheres no movimento feminista.
Dentre as variadas noções de direitos que emergem da ação das
mulheres, é o ideal clássico de direito a ter direitos, que origem a mulheres
como seres humanos, com direitos iguais aos dos homens, elaborado no seio
do feminismo de direito, versão liberal (Quadros 1 e 3), que encontraremos na
base da ação das feministas pragmáticas.
Tais concepções oferecem a medida de justiça e motivam a ação das
mulheres vítimas da violência masculina, fazendo-as reivindicar relações mais
justas e igualitárias entre homens e mulheres. São reivindicações que, mesmo
estando legalmente formalizadas, não esgotam os direitos reivindicados pelo
próprio movimento feminista.
Quando as mulheres albergadas na Casa Abrigo decidem pela denúncia
e pela proteção das feministas, elas vêem na ação a possibilidade do
reconhecimento da relação desigual e do estabelecimento da reivindicação que
engendram. Nos depoimentos das albergadas, percebemos que o direito da
denúncia impõe limites para a ação do outro.
104
que ele é valente, será que ia bater também em homem
ou é em mulher que ele uma de dono do terreiro. E
também queria que ele visse que hoje em dia não é mais
como era antigamente, hoje a mulher também tem os seus
direitos. (Informante 11)
Precisava mostrar para ele que eu não sou um coitada,
que ele chega, bate na frente das crianças, dorme e sai
cedo parecendo que nada aconteceu. A lei também está
do nosso lado. Se bem que ele foi solto logo. (Informante
10)
Eu não agüentava mais. Todo dia a mesma pergunta e
começavam os chutes, murros. Eu não mereço isso!
(Informante 2)
Os projetos moldados na luta feminista propõem formas de sociabilidade
democráticas, direitos válidos para homens e mulheres que são atualizados
pelas feministas pragmáticas, dos quais podem emergir outros cidadãos além
daquelas que encerram a concepção liberal. Poderão gozar do status de
cidadão forjado na luta travada pelas feministas pragmáticas a dona de casa, a
mãe, a namorada, esposa, enfim, a mulher: ser humano, igual, digno. E não só
elas, mas o trabalhador, eleitor, consumidor, homem, idoso e criança.
Esse processo de conquista tem início, também, na recusa por parte das
mulheres vítimas da violência e da opressão masculina em permanecer no
lugar que lhes foi previamente definido cultural e socialmente.
À medida que as noções de justiça e direito sensibilizaram mulheres,
das mais diferentes culturas e experiências, oferecendo-lhes atributos que
acenavam para a possibilidade de relações sociais mais democráticas, dando-
lhes medida alternativa de justiça e dignidade, essas mulheres visualizam o
projeto de cidadania. Foram à luta, às delegacias especializadas, às entidades
de proteção, ora por meio de condutas coletivas organizadas, ora por meio de
ações cotidianas distantes da prática política, na concretização do projeto de
105
cidadania feminista. Reivindicaram participação, inclusão, mudanças,
reconhecimento.
Nas conversas com as albergadas freqüentemente emergiu o desejo
não definido em projeto de uma vida diferente para si, mas para outras
mulheres. Quando falam, usam geralmente expressões como “a gente”, “a
mulher”, e “nós”, de modo a indicar o coletivo feminino. A medida de justiça e
de direito, às quais se tornaram sensíveis, e que reclamam, incorporara-se à
sua prática social e denuncia a necessidade de fazer tal direito válido para
todas as mulheres.
Embora o Cevam tenha minimizado em suas ações a formação política
das futuras militantes e suprimido o espaço para a interlocução na Casa
Abrigo, subsiste informalmente, à revelia da organização, um lócus no qual o
debate ocorre, as opiniões circulam e consciências são formadas a partir das
experiências de cada uma das mulheres agredidas. Nesse debate, o desejo de
uma vida diferente se torna projeto coletivo, reafirmação de direitos,
reconhecimento do indivíduo livre e igual.
Percebe-se também nos depoimentos, o desejo de mudança e a
tentativa de redefinição de identidades, que, nesses casos, envolve ainda a de
ser mãe, mulher, ser humano e cidadã. Não estamos aqui afirmando se ou
não o desejo de pôr fim à relação conjugal na qual se encontram, mas
percebemos a motivação para o deslocamento de antigas posições e a busca
por estabelecer outras bases para a sociedade conjugal que reconheçam o
outro como indivíduo portador de direitos válidos (universais).
Como avaliamos as ações coletivas pela sua capacidade de produzir
rupturas e pela consciência de direitos (política) que explicitam, a atividade das
mulheres vítimas da violência masculina albergadas na Casa Abrigo costuma
perder expressividade diante de tais parâmetros, deixa de ser vista em seu
caráter reivindicativo para ser associada, redutivamente, às questões de
sobrevivência e afetividade. Porém, mais que isso, traz consigo, mesmo que de
forma pouco visível, a medida de justiça e direito necessária à dona de casa, à
trabalhadora, à mãe cidadã.
106
NOTAS
1- O termo luta é usado por se tratar de um processo de resistência/conquista no meio das
práticas sociais cotidianas. nesse processo a explicitação de conflitos, com a manifestação
de interesses que se opõem. Os atores que engendram essa ação podem não ter a consciência
política para o encaminhamento do projeto, mas definem-se, de forma autônoma, pelo princípio
da oposição.
2- Usamos o conceito conscientemente feminista” para indicar as mulheres que participam de
forma ativa da luta feminista e que se auto-intitulam dessa forma. Tais mulheres devem
compartilhar do projeto do movimento feminista, manter clareza quanto ao adversário e se
definir no processo de oposição.
3- Normalmente, as feministas são definidas em termos de convicções, práticas e identidades
associadas aos sentimentos de exclusão, desvalorização e de opressão. As feministas têm
militância no movimento de mulheres, demonstram clareza quanto ao projeto da luta das
mulheres e reconhecem no patriarcalismo seu adversário.
4-
Giddens (1993) faz referência ao direito de as mulheres solicitarem o divórcio,
independentemente dos homens. Porém, nesse caso específico, da denúncia da condição de
opressão, tomamos as mesmas conseqüências para o direito de denunciar a agressão. Para
maiores informações ver Giddens (1993).
107
CONCLUSÃO
Este trabalho tomou por pressuposto a possibilidade de (re)construção
da identidade dos indivíduos que, por razões diversas, aproximam-se dos
movimentos sociais. Havia, na oportunidade da apresentação da proposta de
estudo, um interesse por compreender as mudanças aparentes que se
manifestavam na vestimenta, no modo de se comportar, de se expressar – e as
modificações na ordem do discursos e da cognição daqueles que tomam parte
das condutas coletivas culturalmente orientadas.
Diante do universo dos movimentos sociais a ser pesquisados, um em
especial mereceu atenção, o movimento feminista. O Centro de Valorização da
Mulher (Cevam) foi a organização eleita para as observações empíricas porque
manteve-se em atividade atendendo mulheres que, até o ingresso na Casa
Abrigo, não têm contato com o movimento feminista e tampouco consideravam-
se, até então, feministas. Esse fato, o ingresso de mulheres que não se
reconhecem feministas em uma entidade feminista, no nosso entender,
permitiria, identificar, caso houvesse, a (re)definição de identidade por parte
das mulheres agredidas e mais, permitiria com maior facilidade estabelecer
alguma relação entre essa identidade e os atributos da cidadania.
Ao nos atermos ao Cevam, organização do movimento feminista em
Goiás e espaço da observação empírica, algumas considerações fizeram-se
necessárias.
A primeira se refere aos processos democratizantes da vida social.
A redefinição de identidade – princípio sob o qual se organizam os
movimentos sociais – exige a manutenção de espaços públicos necessários ao
debate, à circulação de informações e à formação de opiniões. Ela serve ainda,
à educação política dos militantes, à medida que lhes permite superar a fase
afetiva da discussão ao reconhecer o adversário, as formas como ele se lhes
apresenta, seus aliados e o estabelecimento de estratégias que busca incluir
nos processos da vida social aqueles que se vêem fora deles.
Este é um processo de democratização da vida social que opera nas
relações interpessoais e que exige os mesmos processos para a
108
democratização da vida pública. Fazem-se necessários o debate, a formação
de opinião, o estabelecimento de estratégias de ão, a definição de um
projeto alternativo às relações sociais dominantes que se baseie no
reconhecimento do outro como indivíduo de interesses válidos, possuidor de
direitos e deveres, enfim, no reconhecimento do outro como igual.
Como processo democratizante da vida social, a luta pelo
reconhecimento de direitos realiza-se por meio da explicitação da crise e exige,
por isso mesmo, a interlocução entre aqueles que se encontram de fora da
lógica dominante para o balizamento das medidas de justiça e de direito de que
carecem. Este é o espaço que devem ocupar as condutas coletivas
culturalmente orientadas no processo de mudanças societais.
Porém, podemos afirmar que o Cevam, embora mantenha-se como
força de luta social, perde parte de sua capacidade de produzir mudanças à
medida que deixa de investir no debate e na formação política das possíveis
militantes do movimento, ao colocar-se como prestador de serviço e não mais
como ator na luta política contra a opressão na sociedade patriarcal. Quando,
após a sua reabertura em 1994, busca maior eficiência de suas ações,
servindo-se à intermediação entre os interesses das mulheres vítimas da
violência de seus ex-cônjuges e pares amorosos e as agências
governamentais, pouco contribui para que suscite nas mulheres a criatividade e
a autonomia necessárias ao surgimento do “novo” e à superação da alienação
em que elas se encontram diante das instituições patriarcais.
Sem, no entanto, negar o papel da ordem institucional no
estabelecimento de direitos e das prerrogativas de cidadania, interessa-nos
dizer que as noções de direito e dos atributos que balizam as medidas de
justiça e equidade para um determinado grupo são construídas no debate, na
referência ao que é certo e errado, ao que é justo e injusto, ao que é permitido
e interditado. Se os ideais de direito negociados entre as organizações do
movimento social feminista e as agências públicas não nascem do debate entre
as mulheres vítimas da violência masculina em Goiás, dos seus interesses,
perde-se a oportunidade de desconstruir práticas autoritárias e excludentes que
marcam a vida pública e privada brasileira. A representação de interesses por
meio das organizações não-governamentais, como se situa hoje o Cevam,
reproduz os arranjos tão comuns na vida política brasileira e impede que a
109
linguagem do direito circule entre as mulheres, democratizando práticas e
espaços marcados pela relação de mando e de subordinação.
Portanto, a nosso ver, o Cevam deixa de cumprir parte do seu papel,
enquanto organização do movimento social feminista, na democratização das
práticas sociais e na desconstrução de práticas que reproduzem e perpetuam o
mando e o autoritarismo na sociedade goiana. Reclama pela dignidade, pela
sobrevivência das mulheres, pela defesa dos direitos humanos, porém suprime
o espaço público necessário ao debate e à educação política das feministas
pragmáticas.
A segunda consideração diz respeito ao tipo de relação que o Cevam
mantém com as albergadas.
O Centro de Valorização da Mulher (Cevam), embora aja na defesa dos
interesses das mulheres vítimas da força física de seus ex-cônjuges ou pares
amorosos, mantém uma certa distância entre as decisões da entidade e as
albergadas. Essa distância é sentida não na disposição do espaço sico da
Casa, mas na hierarquia que se estabelece entre as albergadas e a diretoria da
organização. Ela também pode ser percebida na burocracia e no receio
daquelas dirigirem-se à direção da Casa.
A distância à qual nos referimos também expressa-se no apriorismo do
Cevam. Talvez por partir do princípio de que tanto as albergadas, como as
feministas militantes do movimento organizado das mulheres têm os mesmos
objetivos, a entidade se perceba plenamente capacitada, no que se refere ao
tema preferencial ao qual se dedica, e se veja tacitamente autorizada para
encaminhar as reivindicações das mulheres em situação de opressão em
Goiás quando presta abrigo e proteção.
Ou, ainda, porque, em decorrência do processo de institucionalização
por que passou não somente o Cevam, mas inúmeras outras organizações do
movimento social dos anos 80 para cá, que se viram como interlocutores dos
interesses femininos e as agências e conselhos governamentais, registra-se
uma tendência em considerar as ações e discussões que se desenvolvem no
meio popular como amadoras e impregnadas de estados puramente afetivos.
Porém, por mais afetivos que pareçam os interesses das albergadas, por
mais distantes que estejam do linguajar técnico das assessorias e lideranças,
as experiências, os desejos e as opiniões das vítimas da violência dos homens
110
em Goiás são diferentes e devem ser consideradas, pois revelam a capacidade
que tais feministas tiveram de, diante das instituições patriarcais, autonomizar-
se, buscando situações capazes de produzir mudanças nas relações
interpessoais. Podem, no embate dos interesses, recriar noções de direito e
justiça, propiciar o novo ao introduzir regras de reciprocidade nas relações de
gênero em Goiás. Não é porque as albergadas são vítimas da mesma
opressão, ou porque devem ter assegurada a igualdade no que se refere ao
acesso aos direitos, que terão negadas suas experiências.
Talvez por isso mesmo subsista, informalmente, na Casa Abrigo, um
lócus no qual o debate ocorre com base nas experiências de cada uma das
mulheres agredidas. Esse debate, que deveria ocupar o espaço para o
amadurecimento e a formação da consciência política, a ser cultivado e
orientado pela entidade, é realizado a revelia do Cevam, em razão da
proximidade que surge entre as internas e da abertura que estas encontram
junto a alguns voluntários.
Tal debate é suficiente para formar opiniões, noções de direito e justiça,
definir posições acerca da opressão das mulheres na sociedade dominada
pelos homens e das estratégias de ação para o projeto de uma vida diferente.
Ele é importante porque permite que as mulheres tomem consciência de que a
opressão que vivenciam não é fato isolado, mas faz parte de um fenômeno
maior e que, portanto, merece um tratamento que extrapola as ações
individuais.
Foi nesta tessitura que as feministas pragmáticas, como passamos a
denominar as albergadas, permitiram que falássemos então de identidade e
cidadania nos termos que buscávamos relacionar aos movimentos sociais.
O convívio na Casa Abrigo, por mais angustiante que pareça àquelas
que por ali passam, propicia experiência social diferente das adquiridas nas
formas de mobilização populares características das condutas coletivas nos
anos 80. O sentimento de depreciação e exclusão as levam à redefinição de
identidades orientadas pela noção de direito e da medida de justiça construídas
não somente dentro do movimento feminista, mas balizadas nos debates que
promovem entre si enquanto permanecem na Casa. As experiências dão
origem à identidade feminista, redefinem modos de ser ao desconstruir a
identidade feminina e o discurso que envolve as instituições patriarcais, como
111
família e casamento.
No contato com outras mulheres que vivenciam cotidianamente os
mesmos dilemas, o desejo de uma vida diferente vê-se ampliado, transforma-
se em projeto coletivo quando compartilham opiniões, experiências e
expectativas. Diferentemente das propostas de transformação das estruturas
societais elaboradas dentro do movimento feminista de direitos socialistas ou
liberais, que se opõem ao capitalismo e ao Estado patriarcal, o projeto de que
falam as albergadas é mais prático. Busca assegurar a sobrevivência e uma
vida com dignidade para elas, mulheres, e seus filhos e influir nas ações de
seus descendentes.
O desejo de uma vida diferente levam-nas a tratar a violência que
reveste a questão de gênero não como fenômeno endêmico dessa relação,
mas como crime, ato de impor-se à vontade e ao direito de outro por meio da
força e coação. Transformam, assim, fatos da vida privada em fatos públicos,
revelam o lugar em que os conflitos se instauram nas teia das relações sociais.
Se, de alguma forma, as mulheres que chegam ao abrigo não tenham
uma idéia clara de seus direitos, a entidade fornece os elementos necessários
para fundamentar suas ações. Fornece também orientação jurídica quanto aos
processos e as prerrogativas constitucionais dos quais as mulheres dispõem.
Por outro lado, ao permanecer na Casa, a interlocução com as outras
feministas pragmáticas permite a consciência das medidas de justiça e de
direito de que carecem. É nesse ponto que a identidade de que se valem as
feministas pragmáticas vê-se entrecortada pelas noções de direitos e pelos
processos constitutivos característicos da cidadania.
Nesses dois aspectos, as albergadas reconhecem o papel do Cevam na
formação das noções de direito que passam a orientar suas ações. A entidade
orientou e confirmou suas idéias iniciais de direito e permitiu formular, no
debate informal com outras albergadas, novas concepções que passam a
orientar suas ações no dia-a-dia, independentemente de voltarem ou não para
o convívio com seus ex-cônjuges e antigos pares amorosos. Noções capazes
de desestabilizar as estruturas das instituições e do discurso patriarcal.
112
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REIS, Elisa. Sobre Cidadania. In : Processos e escolhas. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 1994. p. 27 a 42.
ROCHA. Maria José Pereira e BICALHO. Elizabete. Luta e resistência de
mulheres em Goiás (1930 – 1993). Goiânia : Editora UCG, 1999.
SALLES, Teresa. “Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira”,
RBCS, nº 25, p. 26 a 37, Anpocs, 1994.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A práxis liberal e a cidadania regulada. In
Década de espanto e uma apologia democrática. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
p. 9 a 115.
114
SOUZA, Maria Dalva Borges de Lima Dias de. Violência, poder e autoridade
em Goiás. 1999. Tese (Doutorado) – Universidade de Brasília, Distrito Federal.
TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania: figurações da questão social no
Brasil moderno. In: Direitos sociais. Afinal do que se trata? Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999. p. 77 a 131.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987, v. I.
TOURAINE, Alain. Os Movimentos sociais, In: FORACCHI e MARTINS,
Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978. p.
335 a 365.
______________. O retorno do actor. Lisboa. Instituto Piaget, 1984.
______________. Os movimentos sociais. In: Podemos viver juntos? Iguais e
diferentes. Petropólis, RJ: Vozes, 1998. p. 112 a 152.
UNICEF. Violência doméstica contra Mulheres e Meninas. Nova York. 2000.
VASCONCELLOS, Lauro de. Santa Dica: encantamento do mundo ou coisa do
povo. Goiânia: editora da UFG, 1991.
Documentos do Cevam
- Carta a Goiás. Goiânia, 2000.
- O que querem as mulheres? Goiânia, 1994.
- Histórico do Cevam, [s. d.]
- Informativo Vida Mulher. Goiânia, 2001.
- O que é Cevam. O que ele faz por você, [s. d.]
- Mulheres Defendam seus Direitos!, [s. d.]
115
ANEXOS
TABELA 1 – FAIXA ETÁRIA DAS MULHERES ALBERGADAS NA CASA DE
ABRIGO SEGUNDO O GRAU DE ESCOLARIDADE – GOIÂNIA 2001
FAIXA ETÁRIA
GRAU DE
ESCOLARIDADE
15-19 20-24 25-29 30-35 MAIS DE 35
TOTAL
116
1
O
GRAU INCOMPL.
2 0 0 2 0
4
1
O
GRAU COMPL.
0 0 0 2 0
2
2
O
GRAU INCOMPL.
0 0 0 0 0
0
2
O
GRAU INCOMPL.
0 1 2 0 0
3
NÃO INFORMOU
0 0 0 0 0
0
TOTAL
2 1 2 4 0
9
TABELA 2 FAIXA ETÁRIA E ESTADO CIVIL DAS MULHERES ALBERGADAS
NA CASA DE ABRIGO – GOIÂNIA 2001
FAIXA ETÁRIA
ESTADO CIVIL
15-19 20-24 25-29 30-35 MAIS DE 35
TOTAL
SOLTEIRA
1 0 0 1 0
2
SOLT. (AMASIADA)
1 1 2 2 0
6
CASADA
0 0 0 1 0
1
DIVORCIADA/DESQ.
0 0 0 0 0
0
VIÚVA
0 0 0 0 0
0
NÃO INFORMOU
0 0 0 0 0
0
TOTAL
2 1 2 4 0
9
TABELA 3 NÚMERO DE FILHOS DAS MULHERES ALBERGADAS NA CASA
DE ABRIGO – GOIÂNIA 2001
NÚMERO DE FILHOS FREQÜÊNCIA
ATÉ 1 2
DE 2 A 3 5
4 OU MAIS 1
NÃO TEM FILHOS 1
NÃO RESPONDEU 0
TOTAL
9
TABELA 4 VÍNCULO PARTIDÁRIO DAS MULHERES ALBERGADAS NA CASA
DE ABRIGO – GOIÂNIA 2001
VINCULO PARTIDÁRIO FREQÜÊNCIA
MILITANTE/FILIADA 1
NÃO TEM VÍNCULO 8
NÃO INFORMOU 0
TOTAL
9
117
TABELA 5 CREDO E PRÁTICA RELIGIOSA DAS MULHERES ALBERGADAS
NA CASA ABRIGO – GOIÂNIA 2001
FAIXA ETÁRIA
CREDO
RELIGIOSO
PRATICANTE NÃO PRATICANTE
TOTAL
CATÓLICO
1 1
2
EVANGÉLICO
3 4
7
OUTROS
0 0
0
NÃO TEM
0 0
0
NÃO INFORMOU
0 0
0
TOTAL
4 5
9
TABELA 6 OCUPAÇÃO DAS MULHERES ALBERGADAS ANTES E APÓS O
INGRESSO NA CASA ABRIGO – GOIÂNIA 2001
PERÍODO
SITUAÇÃO
OCUPACIONAL
ANTES APÓS/DURANTE
DONA DE CASA 3 4
CABEL./MANIC./PEDIC. 2 1
COSTUREIRA 1 1
CAMAREIRA 1 1
OUTROS 2 0
DESEMPREGADA 0 2
NÃO INFORMOU 0 0
TOTAL
9 9
TABELA 7 PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES ALBERGADAS EM
ORGANIZAÇÕES POPULARES ANTES DO INGRESSO NA CASA ABRIGO
GOIÂNIA 2001
TIPO DE ORGANIZAÇÃO FREQÜÊNCIA
MOVIMENTO ESTUDANTIL 2
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES 1
GRUPO DE ESTUDO 1
NUNCA PARTICIPOU 7
NÃO RESPONDEU 0
TOTAL
9
118
TABELA 8 PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES ALBERGADAS EM
DISCUSSÕES DE TEMAS FEMININOS ANTES DO INGRESSO NA CASA
ABRIGO – GOIÂNIA 2001
TEMAS FREQÜÊNCIA
DIREITO DA MULHER 1
MULHER E TRABALHO 1
NUNCA PARTICIPOU 8
NÃO RESPONDEU 0
TOTAL
9
TABELA 9 – FORMAS COMO SÃO ABORDADOS OS TEMAS FEMINISTAS COM
AS ALBERGADAS NA CASA ABRIGO – GOIÂNIA 2001
FORMAS DE ABORDAGEM FREQÜÊNCIA
EM REUNIÕES 1
ENTRE AS INTERNAS (INFORMALMENTE) 1
COM OS VOLUNTÁRIOS (INFORMALM.) 1
DE FORMA GERAL 1
NÃO SÃO ABORDADOS 6
TOTAL
9
TABELA 10 TEMAS FEMINISTAS ABORDADOS COM E PELAS MULHERES
ALBERGADAS NA CASA ABRIGO – GOIÂNIA 2001
TEMAS FREQÜÊNCIA
DIREITOS DAS MULHERES E DOS HOMENS 3
NÃO SÃO ABORDADOS 6
TOTAL
9
TABELA 11 TEMAS DISCUTIDOS PELA DIREÇÃO DA CASA ABRIGO NAS
REUNIÕES COM AS ALBERGADAS – GOIÂNIA 2001
TEMAS FREQÜÊNCIA
ORGANIZAÇÃO DA CASA 7
PSICOLOGIA 1
FAMÍLIA 1
ASSUNTOS GERAIS DA CASA 1
TOTAL
9
119
TABELA 12 INFORMAÇÕES TRATADAS PELA DIREÇÃO DA CASA ABRIGO
COM AS MULHERES ALBERGADAS – GOIÂNIA 2001
TEMAS E INFORMAÇÕES FREQÜÊNCIA
JUSTIÇA E DIREITO 8
SERVIÇOS PÚBLICOS 2
NÃO SE LEMBRA/NÃO SABE INFORMAR 3
TOTAL
9
TABELA 13 – TIPO DE INFORMAÇÃO PRESTADA ÀS ALBERGADAS PELA
CASA ABRIGO – GOIÂNIA 2001
TIPO DE INFORMAÇÃO FREQÜÊNCIA
SOBRE O PRÓPRIO PROCESSO JUDICIAL 6
IMPORTÂNCIA DA DENÚNCIA DO CRIME 1
PENSÃO ALIMENTÍCIA 1
PROCESSO DE SEPARAÇÃO CONJUGAL 1
NÃO SABE INFORMAR/NÃO INFORMOU 3
TOTAL
9
TABELA 14 ESTADO CIVIL E ATITUDE DAS ALBERGADAS DIANTE DO
DESRESPEITO AO QUE CONSIDERAM SEUS DIREITOS – GOIÂNIA 2001
ESTADO CIVIL
ATITUDE
SOLTEIRA
SOLT.
(AMASIADA)
CASADA
DIVOR./
DESQ.
VIÚVA
TOTAL
REIVINDICA TRATAMENTO CORRETO 2 1 1 0 0
4
VAI EM BUSCA DE JUSTIÇA 1 1 0 0 0
2
ÀS VEZES REAGE 0 2 0 0 0
2
NÃO FAZ NADA 0 0 1 0 0
1
TOTAL
3 4 2 0 0
9
TABELA 15 GRAU DE ESCOLARIDADE E ATITUDE DAS ALBERGADAS
DIANTE DO DESRESPEITO AO QUE CONSIDERAM SEUS DIREITOS
GOIÂNIA 2001
GRAU DE ESCOLARIDADE
ATITUDE
1º GRAU
INCOMPL.
1º GRAU
COMPL.
2º GRAU
INCOMPL.
2] GRAU
COMPL.
TOTAL
REIVINDICA TRATAMENTO CORRETO 0 2 0 2
4
VAI EM BUSCA DE JUSTIÇA 2 0 0 1
3
ÀS VEZES REAGE 1 0 0 0
1
NÃO FAZ NADA 1 0 0 0
1
TOTAL
4 2 0 3
9
120
TABELA 16 VÍNCULO DAS ALBERGADAS COM ENTIDADES E
MOBILIZAÇÕES POPULARES APÓS A PASSAGEM PELA CASA ABRIGO
GOIÂNIA 2001
VÍNCULO FREQÜÊNCIA
NÃO TEM VÍNCULOS 3
ESTÁ ALBERGADA 6
NÃO RESPONDEU 0
TOTAL
9
121
ANEXO II – ROTEIRO DE ENTREVISTA
I – Dados sócio-econômicos
122
1- Idade:.........................................................................................................
2- Grau de escolaridade:................................................................................
3- Estado civil:................................................................................................
4- Número de filhos:......................................................................................
5- Trabalha fora de casa atualmente?..........................................................
6- Se trabalha, o que faz?............................................................................
7- Antes de ingressar na Casa, abrigo estava trabalhando fora de casa?
......................................................................................................................
8- Se trabalhava, o que fazia?.....................................................................
......................................................................................................................
II – Vida Social
9- Qual a sua religião?............................................................................
10- Considera-se praticante?....................................................................
11- Mantém algum vínculo com partidos políticos?..........................................
..........................................................................................................................
12- Se sim, qual e desde quando......................................................................
.........................................................................................................................
..........................................................................................................................
13- participou de algum tipo de movimento ou organização que fizesse
protestos, reivindicações de serviços, benéficos?......................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
14- Se sim, qual(is)...........................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
15- Antes de conhecer o Cevam tinha participado de reuniões ou debates
que abordasse(m) temas do direito da mulher?.........................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
16- Se sim, qual(is) eram os temas?.................................................................
123
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
17- Em que local e quando?.............................................................................
..........................................................................................................................
18- Esse tipo de discussão provocou algum tipo de mudança na sua forma
de agir?.......................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
19- Discorra sobre essas mudanças?...............................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
III- Grau de envolvimento com o Cevam
20- Como tomou conhecimento do Cevam?....................................................
.........................................................................................................................
21- Já esteve na Casa Abrigo antes?...............................................................
22- Se sim, quantas vezes procurou a Casa?..................................................
23- Quais os serviços da Casa utilizou?..........................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
24- Qual sua rotina na Casa?...........................................................................
25- Costuma conversar com o pessoal do Cevam (da diretoria da Casa)? .....
.........................................................................................................................
26- Sobre o que conversam?............................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
27- Você participa das reuniões realizadas na Casa?......................................
28- Se sim, qual a freqüência dessas reuniões?..............................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
124
29- Quais os temas abordados nessas reuniões?............................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
30- A direção da Casa discute questões específicas da mulher com as
albergadas?................................................................................................
31- Se sim, o que costumam abordar nestas discussões?...............................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
32- Na conversa com o pessoal da diretoria da Casa são repassadas
informações sobre os serviços disponíveis às mulheres na
comunidade?...............................................................................................
33- Que informações são essas?......................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
34- São repassadas informações sobre o Judiciário?......................................
35- De que tipo são essas informações?..........................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
36- Diga se você conhece e onde tomou conhecimento dos serviços
públicos que citarei.
a- Promotoria Pública
( )não conhece ( ) conhece onde:.................................................
b- Secretaria de Cidadania e Trabalho
( )não conhece ( ) conhece onde:..................................................
c- Ministério do Trabalho
( )não conhece ( ) conhece onde:.................................................
d-Cais/SUS
( )não conhece ( ) conhece onde:................................................
e-Tribunal de Justiça, Vara de Família
( )não conhece ( ) conhece onde:................................................
f-Ministério Público
125
( )não conhece ( ) conhece onde:................................................
g-Delegacia da Mulher
( )não conhece ( ) conhece onde:................................................
h-Procom
( )não conhece ( ) conhece onde:................................................
37- São discutidos assuntos de política na Casa Abrigo?................................
38- Se sim, como são essas discussões?.......................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
39- Como você reage quando alguém ou alguma situação revela falta de
respeito aos seus direitos?.........................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
40- Sempre reagiu dessa forma?......................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
41- A Casa Abrigo tem alguma relação com a forma como você reage (se
reage) à falte de respeito? Se sim de que forma?......................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
Considerações:.................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
..........................................................................................................................
126
ANEXO III – RECORTE DE JORNAIS E DOCUMENTOS
Livros Grátis
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