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CRISTIANE ROQUE DE ALMEIDA
HISTÓRIA E SOCIEDADE EM BERNARDO ÉLIS: UMA
ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DE O TRONCO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Sociologia,
da Faculdade de Ciências Humanas e
Filosofia, da Universidade Federal de Goiás,
como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Sociologia.
Goiânia,
2003
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE E REGIÃO
HISTÓRIA E SOCIEDADE EM BERNARDO ÉLIS: UMA
ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DE O TRONCO
(Dissertação de Mestrado)
Autora: Cristiane Roque de Almeida
Orientadora: Profª. Drª. Maria Cristina Teixeira Machado
Goiânia,
2003
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3
CRISTIANE ROQUE DE ALMEIDA
HISTÓRIA E SOCIEDADE EM BERNARDO ÉLIS: UMA
ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DE O TRONCO
Dissertação defendida e aprovada em ______de ________ de 2003, pela
Banca Examinadora constituída pelos professores:
______________________________________________
Profª. Drª. Maria Cristina Teixeira Machado
Presidente da Banca
__________________________________________
Profª. Drª. Maria Luíza Ferreira Laboissière de Carvalho
FL/UFG
__________________________________________
Prof. Dr. Francisco Itami Campos
FCHF/ UFG
4
DIANÓPOLIS
1
Adélia R. Leal
Antes do cangaço, do barulho
Eras calma e bastante hospitaleira
À noite só dos pombos o arrulho
Se confundia com o vento nas mangueiras.
Te chamavam teus visitantes
De S. José d’Ouro e o eras
Mas num maldito instante
Apoderou-se de ti uma fera.
Cearenses, pernambucanos, vejam por que,
Por um par de caçamba, umas cabeças de gado
Tiraram-te a graça de sorrir, de viver,
Deixaram-te como a seca deixa o prado.
Arrancaram-te a riqueza,
A tua ingenuidade e inocência,
Deixaram-te na miséria, na pobreza,
Estragaram tua existência.
Devias odiá-los e por que não odeias?
Mas como, se tornaste também feroz?
Como a onda que a praia anseia,
Tu querias sangue e te tornaste algoz
Mas, o que foi feito de tua bondade,
Tua inocência, pudor, gratidão?
Onde foi tua fidelidade?
De que foi feito teu coração?
1
In: Póvoa, Osvaldo Rodrigues. Quinta-feira sangrenta, 1979.
5
Pais, filhos, irmãos e outros parentes
No tronco, um madeiro forte,
Ataram os pés de criaturas inocentes
E quem foi que lhes levou a morte?
Eu quizera te odiar, eu juro,
Maldizer-te, blasfemar-te em todo o mundo
Ó velha cidade, ó ingrato Duro!
Não posso, eu te dedico um amor profundo.
Onde nasci, onde meus pais nasceram?
Onde cresci, onde cresceram?
E onde foi que meus avós morreram?
Foste tu quem ganhou tudo de seus,
Tu, a quem tanto amavam, o sangue os sugaste
Mas um dia ao ódio, à violência deste adeus
E para uma nova vida despertaste.
Foi ao encontro da morte
A vida dos meus tios, primos, avós
Mas não lhes maldigo a sorte
Eles se sacrificaram, mas salvaram a todos nós.
Não correu sangue inutilmente
Apesar da morte que lhes deste
Eu quero lembrá-los quero ter sempre em mente
Que tu Dianópolis, de um sangue heróico te veste.
6
Dedico este trabalho ao meu mais verdadeiro e
incondicional amor: Natanael Paulo, meu filho, que
esteve durante seu início de vida completamente
ligado a essa aventura.
7
AGRADECIMENTOS
Esta talvez seja a parte mais difícil num processo como esse. Muitos devem
indignar-se: que loucura alguém registrar tamanha tolice! Todavia, como agradecer a
tantas pessoas envolvidas num período turbulento, solitário e depressivo como é o
final de um mestrado? Escrever a tal da Dissertação...
Agradecer à CAPES (Coordenação do Pessoal de Nível Superior) pelo apoio
financeiro disponibilizado; à Universidade Pública, pela intermediação do sonho; aos
professores e funcionários do Departamento... tudo isso é muito fácil. Agora quero
ver conseguir agradecer ao orientador (por quantos e conhecidos de todos são os
motivos) e aos amigos que por vezes ouviram pacientemente nossas narrativas
intermináveis, nossas lamúrias. Como agradecê-los, se o que fizeram dificilmente
pode ser pago com um simples “obrigado”?
Como não poderia deixar de ser, desejo registrar aqui um agradecimento
especial à Coordenadoria do Programa de Pós-graduação em Sociologia, na
humana pessoa do Professor Dr. Jordão Horta Nunes e, meu apreço mais que
especial à minha orientadora, Professora Drª. Maria Cristina Teixeira Machado, por
seu infinito coração e pelo respeito às minhas limitações e dificuldades.
À amiga Rosana manifesto um “muito obrigada”, por me faltarem palavras
outras capazes de evidenciar minha gratidão.
A meus pais, que nem sempre compreenderam a dimensão do processo
acadêmico, obrigada pela torcida. A meu marido Jeziel e meu filho Natanael Paulo, a
quem é dedicado este trabalho, minhas sinceras desculpas, pelas horas furtadas ao
convívio fraterno. Mas, que não se iludam: este está “pronto”... outros, na certa,
virão. É este o ofício.
Resta salientar que as possíveis falhas e limitações existentes devem ser
atribuídas única e exclusivamente à autora.
Goiânia, agosto de 2003.
8
SUMÁRIO
RESUMO ----------------------------------------------------------------------------------------- 09
ABSTRACT -------------------------------------------------------------------------------------- 10
INTRODUÇÃO ----------------------------------------------------------------------------------11
CAPÍTULO 01
A CONDUÇÃO DA INVESTIGAÇÃO ---------------------------------------------------------- 17
A socialidade da arte ------------------------------------------------------------------------ 18
Referências para abordagem ------------------------------------------------------------- 20
CAPÍTULO 02
BERNARDO ÉLIS: O AUTOR E A OBRA ----------------------------------------------------- 31
A vida e a obra --------------------------------------------------------------------------------- 32
Equilíbrio entre a história e a ficção em O tronco: a transfiguração do real - 58
CAPÍTULO 03
LITERATURA, HISTÓRIA E SOCIEDADE: A TRAMA EM QUESTÃO---------------- 64
O coletor ----------------------------------------------------------------------------------------- 65
O coronel ---------------------------------------------------------------------------------------- 70
O camarada ------------------------------------------------------------------------------------ 87
O juiz---------------------------------------------------------------------------------------------- 91
A mulher --------------------------------------------------------------------------------------- 101
O cangaceiro---------------------------------------------------------------------------------- 107
CONSIDERAÇÕES FINAIS -------------------------------------------------------------------- 118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS --------------------------------------------------------- 129
ANEXOS --------------------------------------------------------------------------------------------- 138
9
RESUMO
Uma leitura sociológica da literatura encontra, em Bernardo Élis, um
significativo documento de análise. Ao propor uma análise das interconexões entre
literatura, história e sociedade, utilizamos a literatura como um importante caminho
para a construção do conhecimento dos fenômenos sócio-culturais.
Bastante realista, O tronco revela mazelas e tragédias de uma sociedade
marcada pela desigualdade e pela manipulação do poder. De maneira
reivindicatória, essa obra agita ante nossos olhos a realidade “analfabeta” do Goiás
sertanejo e esmiúça as condições de “subvivência” humana, como num apelo do
homem do sertão ermo, esquecido dos governos e à mercê do poder e da
dominação legitimada de seus senhores.
Imbuídos dessas questões, decidimos abordar O tronco tendo como principal
objetivo demonstrar a importância da literatura como forma de reconstrução do
mundo social e, sobretudo, aplicar esse conhecimento à realidade regional, de forma
a contribuir para o entendimento de alguns aspectos da sociedade goiana e da
região em que está inserida.
Numa proposta que se volta para a compreensão da sociedade goiana, a
partir do foco dado à antiga vila do Duro e adjacências, hoje município de
Dianópolis-TO, destacando a dinâmica das relações de poder, dominação,
opressão, além de outros embates vividos pelas personagens da narrativa que
vida às interconexões entre a obra e o contexto histórico-social que lhe deu origem,
resgatamos os significados inerentes ao texto ou pretendidos pelo autor, no intuito
de perceber, através da relação texto-contexto, a que aspectos culturais e históricos
de Goiás remetem a obra.
10
ABSTRACT
A sociological literary reading finds, in Bernardo Élis, a significant document
for analysis. Upon proposing an analysis of the interconnections among literature,
history and society, we use literature as an important means for the reconstruction of
social-cultural phenomena.
Very realistic in nature, O tronco reveals injustices and tragedies of a society
marked by inequality and the manipulation of power. In a tone of protest, this work
brings the reality of illiteracy in rural Goiás and explores the conditions of human
“sub-life,” in the form of an appeal of the plains dweller, forgotten by governments
and at the mercy of the power and legitimate dominance of their lords.
In light of these matters, we decided to approach O tronco with the main
objective of demonstrating the importance of literature as a way of reconstructing the
social world and, above all, to apply this knowledge to our regional reality, so as to
contribute to the understanding of some aspects of the society of Goiás and of the
region in which it is placed.
In a proposal directed toward the understanding of the society of Goiás, from
the focus given to the old village Duro and its outlying areas, now called Dianópolis,
in the state of Tocantins, highlighting the dynamics of the relationship of power,
domination and oppression, along with other injustices which were lived by the
characters in the narrative which gives life to the interconnections between the work
and the historical-social context which bred it, we restore the meanings inherent in
the text or those intended by the author, so as to show, through the text-context
relationship, which cultural and historical aspects of Goiás inspired the work.
11
Introdução
A obra de arte deve conter mais questões que respostas.
Álvaro Lins
12
Considerações iniciais
A proposta de uma leitura sociológica da literatura encontra, na obra de
Bernardo Élis, um significativo documento de análise. A partir dela, é possível
apreender relevantes aspectos da vida social em Goiás, por se tratar de uma
perspectiva literária muito envolvida com a realidade regional. Composta de
indivíduos, ações e situações peculiares, possibilita-nos a compreensão de um
tempo e um lugar sob uma perspectiva de análise em que podemos considerar as
enunciações e/ou imagens construídas pelo autor, acerca de um contexto
específico, como objeto de estudo. A linguagem é, segundo Castoriadis (1991),
manifestação por excelência do imaginário. Veículo e substância do simbólico, é
impossível compreender a história humana fora da categoria do imaginário.
Para Castoriadis (op. cit.), as significações imaginárias têm a função de
responder às indagações da sociedade, à medida que esta inventa e define novas
formas de responder às suas necessidades e à medida que também cria novas
necessidades. Assim é que, ao reconhecer as necessidades como elaborações
culturais e a cultura como portadora do universo simbólico, a tomamos como o
vértice a partir do qual se faz possível e adequada a compreensão da vida social. A
literatura é um objeto ideal para essa tarefa.
A seleção do tema, a delimitação do objeto e a definição do contexto de
estudo foram sugeridas pela experiência proporcionada pelo Programa de Iniciação
Científica/CNPq, quando a análise da representação da ordem burocrática em Lima
Barreto despertou-nos para a riqueza da literatura como manifestação da vida social
e reveladora de elementos sócio-culturais da maior importância para a análise
sociológica.
Voltamo-nos, neste trabalho, para Bernardo Élis, devido ao profundo
envolvimento do autor com a realidade regional, chamando-nos à atenção a clareza
com que, em sua narrativa, aborda temas de interesse social. Suas criações
compõem quadros nos quais reconstrói uma realidade social em que os fracos e
oprimidos figuram sob o domínio do poder dos dominantes, temidos e respeitados
até mesmo pelos governantes.
13
Considerar a literatura de Bernardo Élis importante instrumento para a
compreensão da sociedade goiana fez com que nos propuséssemos analisar as
interconexões entre literatura, história e sociedade no romance O tronco (1956), obra
que prima pela denúncia da miséria de nosso meio rural e volta-se, com
sensibilidade, para o ser humano e para sua dura realidade sertaneja, igualmente
retratada em seus contos. Segundo seus analistas, são ilustradas as concepções de
vida, de humanidade, de honra e amor, bem como a generosidade e as reações do
sertanejo diante das adversidades da vida. Estão presentes ainda o misticismo e a
interação com as forças da natureza, compondo o quadro de luta cotidiana, também
contra as intempéries do mundo natural.
Ao abordar a literatura de Bernardo Élis, destacando as interconexões entre
literatura, história e sociedade, um questionamento norteia nosso trabalho: que
impulso direciona a escrita deste autor para o foco da dor, da tragédia, da miséria?
Que tipo de experiências estaria ele retratando? Seriam reflexos de algum
engajamento político e/ou experiências pessoais?
Imbuídos dessas questões, decidimos abordar sua obra tendo como principal
objetivo demonstrar a importância da literatura como forma de reconstrução do
mundo social e, sobretudo, aplicar esse conhecimento à realidade regional, de forma
a contribuir para o entendimento de alguns aspectos da sociedade goiana e da
região em que está inserida.
Nossa proposta se volta para a compreensão da sociedade goiana, a partir do
foco dado à antiga vila do Duro e adjacências, hoje município de Dianópolis-TO,
destacando a dinâmica das relações de poder, dominação, opressão, além de
outros embates vividos pelas personagens da narrativa que vida às
interconexões entre a obra e o contexto histórico-social que lhe deu origem. A partir
disso, consideramos que nosso estudo, além de nos possibilitar compreender a
dinâmica de formas específicas de relações sociais, configuradas em Goiás e
analisar a inserção da região no contexto nacional, possibilita-nos ainda a percepção
da sociedade e de aspectos da história de Goiás a partir da narrativa de Bernardo
Élis.
14
Para tanto, acreditamos que o trabalho científico deve ser pensado em sua
viabilidade e possibilidade. Uma proposta é feita sempre em grandes vôos, nos
quais temos a vontade de discutir uma infinidade de questões e abordar um sem-
número de detalhes. Não é fácil aceitar a realidade da análise que coloca-nos
sempre a difícil necessidade de pontuar e precisar com muito cuidado o que vamos
discutir. A realização do trabalho requer que seu objeto seja claro e que as hipóteses
sejam bem definidas; todavia, é fato que o conhecimento de determinada realidade
não é algo simples de acontecer. Travamos um embate, antes de tudo com o tempo,
que tem de ser dividido entre tantas outras atividades; depois com o peso de nossa
subjetividade, pois evocamos sempre o ximo de objetividade enquanto marca do
conhecimento científico.
Além de tudo isso, o exercício de imaginação sociológica aqui proposto nos
aparece como algo inteiramente novo. Carecemos de abordagens que pudessem
nos servir de suporte e, assim, inovamos pelo desconhecido. Nisso reside nossa
responsabilidade e uma parcela de criatividade em propor instrumentais conceituais
e metodológicos capazes de subsidiá-la.
Diante de tais questões, entendemos a importância de evidenciar aqui os
caminhos que propomos trilhar para a realização de nossa investigação. Pareceu-
nos importante realizar um estudo que articulasse Literatura Regional área de
nosso profundo interesse com a história de nosso Estado para, assim,
resgatarmos um pouco de nossa própria história, buscando captar elementos
relevantes para a compreensão de toda uma formação social num dado contexto e
daí extrair os instrumentos analíticos básicos para informar a investigação.
15
O desenvolvimento da pesquisa
Consideramos que o processo de pesquisa não é algo fácil, justamente por
envolver ritos especiais e por se desenvolver de maneira lenta e minuciosa,
requerendo, todavia, um certo grau de amadurecimento sobre o objeto devidamente
delimitado. Assim, seguindo a um raciocínio que nos pareceu mais adequado,
preocupamo-nos, primeiramente, em determinar o instrumental teórico-metodológico
que nos proporcionaria atingir os objetivos propostos. Esse passo compõe o primeiro
capítulo.
Compondo o segundo capítulo, apresentamos um momento no qual
detivemo-nos na investigação e na coleta de dados sobre a vida e a obra do autor.
Nesse ponto, trabalhamos com as fontes escritas encontradas e consideradas
adequadas ao intuito do trabalho. Além disso, recorremos a algumas fontes orais,
em forma de entrevistas realizadas com pessoas que conheceram o autor. As
entrevistas apresentadas, na íntegra, em anexo ao final desse trabalho, foram
realizadas com pessoas simples, do “povo”, que, sem nenhum destaque social
expressivo, a não ser suas próprias trajetórias de vida, são a expressão de uma
pequena parte do “povo” tão bem retratado pelo autor.
Essas entrevistas foram decisivas para nosso trabalho, principalmente por
preencher lacunas deixadas pelas fontes escritas. Sobre o processo das entrevistas,
queremos evidenciar que não houve nenhuma resistência à nossa solicitação; pelo
contrário, houve muito entusiasmo na evocação das lembranças daquele que é, em
Goiás, considerado um dos seus maiores escritores. Fizemos ao todo quatro
entrevistas com pessoas que conviveram direta ou indiretamente com o escritor no
período em que ele escreveu O tronco, editado pela primeira vez em 1956.
Durante a leitura deste trabalho, o leitor saberá porque delegamos tanta
importância a essas entrevistas, mas adiantamos que as informações oferecidas nos
orientaram quando julgamo-nos encurralados diante da ausência de determinados
registros escritos que nos possibilitassem fazer algumas afirmações que se
tornavam evidentes, mas sem nenhum respaldo histórico registrado.
16
Feito isso, e seguindo nossa proposta metodológica, passamos a um terceiro
passo: iniciamos detalhada leitura do romance O tronco, em sua edição, datada
de 1979. Seguindo a proposta teórico-metodológica elaborada para a análise,
procedemos ao resgate dos significados inerentes ao texto ou pretendidos pelo
autor, no intuito de perceber, através da relação texto-contexto, a que aspectos
culturais e históricos de Goiás remetem a obra. Assim, constituímos o terceiro
capítulo, seguido de algumas considerações finais.
Trata-se, sim, de pesquisa teórica, confundida às vezes com “teoricismo”, que
faz teoria pela teoria e vive de mera especulação, como diria Pedro Demo (2001). A
teoria é parte inevitável de qualquer projeto de captação da realidade, a começar
pelo intuito de definir o que venha a ser o “real”: “(...) todo dado empírico não fala por
si, mas pela ‘boca’ de uma teoria” (id. ibid.: 21). Assim, do mesmo modo que um
dado mal coletado prejudica a investigação empírica, uma teoria mal aplicada
prejudica a análise dos dados coletados. Eis a importância e a peculiaridade das
teorias!
Reconhecemos, a partir desses pressupostos, que a pesquisa tem sua face
inserida na realidade histórica. E esta nunca é evidente, sendo preciso interpretá-la
e não somente traduzi-la. É o processo de pesquisa que, questionando o saber
vigente, produz descobertas e estabelece conhecimento novo.
Não recorremos aqui ao exagero terminológico e nem tivemos a pretensão de
abarcar todo o conhecimento produzido acerca da vida e da obra de Bernardo Élis;
queremos, sim, dar nossa pequena contribuição à análise. Esperamos que seja bem
recebida.
17
1
A condução da investigação
O sinal mais evidente da criatividade é o fato de a
iniciativa do artista culminar na autonomia da obra.
Luigi Pareyson
18
A socialidade da arte
A análise das interconexões entre literatura, história e sociedade aparecem
como temática suscitada pela obra do autor para o exercício de reflexão sociológica,
uma vez que Bernardo Élis revela grande sensibilidade para a realidade social, para
a perspectiva de vida dos indivíduos no “coração do Brasil”. Seus romances e
contos, sejam rurais ou urbanos, são, segundo seus analistas, obras profundamente
marcadas pelas mazelas, dores, estupidez e tragédias de uma sociedade em que a
desigualdade, a hierarquização e as relações de poder adquirem contornos fortes e
contundentes. Em O tronco (1956) nossa proposta encontra a possibilidade de
observar como o autor organizou todos os elementos para dar a todos nós, leitores,
a impressão de uma verdadeira recriação, numa viagem de volta ao passado.
Essa possibilidade nos faz pensar nos motivos que levaram Bernardo Élis a
uma literatura de “protesto”, como nos diz Barbosa
2
, com tamanha sensibilidade
para as questões de cunho social e, sobretudo, com tamanho realismo em suas
expressões. Imbuídos dessa inquietude, nos detivemos por um instante, numa
rápida reflexão orientada por Luigi Pareyson, em Os problemas da estética (1989).
Chamou-nos a atenção, inicialmente, a forma como o autor apresenta dois tipos de
problemas muito comuns ligados ao conteúdo da arte: o problema do sentimento na
arte e o problema das relações entre biografia e poesia.
Pareyson (id. ibid.), a partir de suas análises, observa que não se pode
enfrentar o problema do sentimento na arte sem distinguir, em primeiro lugar, as
várias espécies de sentimentos:
aqueles vividos pelo artista antes da obra, aqueles expressos
na obra, aqueles vividos pelo artista ao fazer a obra e aqueles
despertados pela obra no leitor: em suma, os sentimentos
precedentes, contidos, concomitantes e subseqüentes à obra
de arte. (id. ibid.: 71)
2
BARBOSA, Francisco de Assis (1967), em nota de apresentação à segunda edição de O tronco.
19
Temos que observar na análise em questão, que o conteúdo de uma obra de
arte é algo mais que um sentimento, é a inteira espiritualidade do autor, em conjunto
com a de seu povo e a de sua idade, e esta está presente no próprio estilo da obra,
ou melhor, é este mesmo estilo (id. ibid.: 72).
Certamente, os mais diversos sentimentos podem tornar-se
artísticos, mas, de igual maneira, as idéias, as crenças e as
aspirações do artista podem tornar-se temas artísticos, e este
pode nutrir a sua obra com a intensidade dos seus afetos, mas
também com a profundidade dos seus pensamentos, a
robustez das suas convicções e a grandeza dos seus ideais,
sem necessidade de que tais elementos teóricos e práticos
venham liricamente condensados na arte através do
sentimento (id. ibid.: 73-74).
Assim, não se pode afirmar que os sentimentos penetram na arte de uma
forma constante e sempre igual, já que tem relevância estética
3
, segundo o autor, a
diferença declarada pela própria obra, entre um sentimento derivado da
transfiguração artística de paixões intensamente vividas e um sentimento que é pura
invenção da fantasia. Todavia, pode o conhecimento da vida de um artista aumentar
a compreensão da sua arte? Pode a obra de um artista contribuir para o
conhecimento de sua vida? Segundo Pareyson, quem aponte a correspondência
entre uma e outra, afirmando que a obra informa sobre a vida e vice-versa; mas
quem, pelo contrário, coloque uma considerável separação entre arte e vida. Isso
nos remete ao que Pareyson chama de socialidade da arte.
Em nossa viagem pela literatura de Bernardo Élis, algumas questões sobre a
socialidade da arte são suscitadas e, ao contrário daqueles que querem perceber a
obra de arte através de uma impessoalidade que lhe seria inerente, a percebemos
como a expressão de um tempo e de um povo, revelada pela criatividade do artista,
num exercício em que sua personalidade artística e a sua pessoa se fundem,
formando o gênio criador”
4
. Consideramos, igualmente, que a arte não apenas é
transfiguração artística fantasiosa, produto do ambiente, mas, todavia, traz em si
3
A qualidade formal vista a partir de um caráter filosófico e especulativo. De acordo com Pareyson,
“toda teoria que, de qualquer modo, se refira à beleza ou à arte” (op. cit.: 16).
4
Sobre este aspecto consultar Booth (1980), Pareyson (1989) e Schiller (1991).
20
elementos emotivos de seu criador, na forma de sentimentos (vividos pelo artista)
precedentes, contidos e concomitantes à obra de arte.
Pareyson (op. cit.), considera que toda atividade humana, portanto também a
arte, tem sempre um caráter inventivo e condicionado a um só tempo, que a
pessoa é uma realidade social alimentada em si mesma, mas pelo contato com os
outros. Dessa forma, mesmo sendo feita sempre por um artista, que é uma pessoa,
a arte não é um começo absoluto, uma criação primeira e realidade sem passado e,
ao contrário do que alguns pensam, ela não irrompe no tempo como se viesse da
eternidade, isolada do contexto histórico-social que a circunda.
A arte é sempre feita por um artista, que nela derrama a própria
espiritualidade, muito singular e irrepetível, ainda que nutrida
pelo ambiente e pela sociedade em que vive; e a arte
transfigura sempre as próprias condições, superando-as ou
sublinhando-as, e delas se encontra separada por uma
distância que somente o gênio criador do artista sabe
preencher (id. ibid.: 89-90).
Assim, concebemos a obra como portadora de um universo social que pode
ser abordado e analisado de várias maneiras. Diante disso queremos salientar que
constitui nossa preocupação central delinear os caminhos que se abrem ao
cumprimento de nossa proposta, a partir de perspectivas da Sociologia da Cultura.
Referências para abordagem
Os estudos de Antônio Cândido (1967), no que se refere às análises que se
ocupam da relação entre a obra e seu condicionamento social, serão nosso ponto de
partida. Em Literatura e Sociedade (1967) Antônio Cândido afirma que, em algumas
vertentes, procurou-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam
dela exprimir ou não aspectos da realidade; depois se chegou ao oposto,
procurando-se demonstrar que a matéria de uma obra é secundária e que sua
importância deriva das operações formais postas em jogo. Nesse caso, é a
peculiaridade que a torna, de fato, independente de quaisquer condicionamentos,
sobretudo social, considerado inoperante como elemento de ação. Antônio Cândido
ressalta que o se pode dissociar tais visões. A obra só pode ser entendida
21
fundindo texto e contexto, onde os dois pontos de vista se combinam como
momentos necessários ao processo interpretativo. O externo (social) não importa
nem como causa nem como significado, mas como elemento que desempenha um
papel na constituição da estrutura da obra, internalizando-se, portanto.
Todavia, apontar as dimensões sociais evidentes em qualquer estudo
histórico ou crítico é tarefa de rotina, segundo o autor, e não basta para definir o
caráter sociológico de um estudo. Isso só é possível nas camadas mais profundas
da análise, quando o traço social constatado é visto funcionando para formar a
estrutura da obra. Temos, então, que uma análise deste tipo leva em conta o
elemento social e, ao estudá-lo, como fator da própria construção artística e no nível
explicativo, chega-se a uma interpretação estética que assimila a dimensão social
como fator de arte.
Quando isso se dá, ou seja, quando o elemento social interfere na
constituição da obra ao lado de outros elementos, o externo se torna interno e a
estrutura assim constituída, torna-se ponto de referência. Não se importando com as
divisões, para o crítico tudo se transforma no fermento orgânico de que resultou a
diversidade do todo. Agora, a importância de cada fator vai depender do ponto de
vista da análise, de forma que o ângulo sociológico não pode ser imposto como o
único critério. Cabe ao crítico a escolha do elemento de sua preferência, desde que
o utilize como componente da estruturação da obra. Assim, a crítica moderna supera
o que Cândido chama de sociologismo crítico (a tendência devoradora de tudo
explicar por meio dos fatores sociais), tornando a orientação sociológica, sem
dúvida, sempre possível e legítima. Porém, esse é o papel da crítica literária.
O autor nos lembra que o tratamento externo dos fatores externos pode ser
legítimo, quando se trata de Sociologia da Literatura, porque esta o se propõe a
abordar a questão do valor da obra e interessa-se por tudo o que é
condicionamento. Mas observamos que essa é uma referência feita de forma
generalizada, pois não se pode aferir a obra com a realidade exterior para entendê-
la sem correr o risco de uma perigosa simplificação causal. O fato é que, uma coisa
é dizer que a literatura depende de fatores sociais e outra é afirmar que tais fatores
interferem diretamente nas características essenciais de uma obra específica.
22
Antônio Cândido (op. cit.) demonstra a necessidade se de ter o cuidado de
considerar os fatores sociais como formadores da estrutura da obra e que, assim,
juntamente com outros fatores, são decisivos para a análise literária. O que ele
pretende é focalizar aspectos sociais que envolvem a vida artística e literária em
seus diferentes momentos e, com isso, contribuir para um gênero de estudos que
teria permanecido com desenvolvimento insatisfatório. Segundo ele, a Sociologia
não pretende explicar o fenômeno literário ou artístico, mas sim esclarecer alguns
dos seus aspectos, de forma que algumas tendências mais modernas se
preocupam, dentre outros aspectos, com as influências do meio sobre a obra.
Cândido apresenta algumas modalidades mais comuns de estudos
sociológicos baseados em literatura. O entendimento de quatro delas é fundamental
para o tipo de estudo que realizamos:
a formada por trabalhos que procuram relacionar o conjunto de uma
literatura com as condições sociais de que é fruto;
a que seria formada por estudos que procuram demonstrar em que
medida as obras são o espelho do social ou a representação da
sociedade em seus vários aspectos;
a que tem como objetivo estudar a posição e a função social do
escritor, procurando relacioná-las com a natureza de sua produção e
ambas com a organização social da época, sendo um estudo, portanto,
quase que exclusivamente dentro da Sociologia; e
a voltada para a investigação hipotética das origens da literatura em
geral ou mesmo de determinados neros. Esse tipo de estudo está
preocupado com as raízes sociais das obras, ou melhor, dos assuntos
que tais obras abordam.
Segundo o autor, todas essas modalidades bem como suas variantes, o
legítimas na medida em que são tomadas não como crítica – que possui uma
orientação estética -, mas como teoria e história sociológica da literatura ou como
23
Sociologia da Literatura, pelo fato de que nelas pode ser percebido o interesse para
os elementos sociais que influíram na elaboração das obras ou mesmo que
determinaram sua importância e função na sociedade.
Nossa proposta de um levantamento no romance O tronco (1956), de
Bernardo Élis, pretende resgatar, no texto literário, as imagens e/ou enunciações
que revelam as interconexões entre literatura, história e sociedade. O objetivo inicial
da proposta é estabelecer um diálogo com os dados históricos referentes a Goiás,
de maneira a perceber a influência do contexto em seu discurso e, assim, atendendo
à segunda das quatro modalidades apresentadas a partir da teoria de Cândido (op.
cit.), proceder à análise sociológica propriamente dita, pelo interesse que temos nos
aspectos da vida social da época retratados pelo autor.
Para atender a essa modalidade de abordagem da literatura proposta por
Cândido, nos apoiaremos na perspectiva clássica de Karl Mannheim (1974). De
acordo com Mannheim, os processos mentais têm uma dimensão social e é à
Sociologia do Espírito que cabe a tentativa sistemática de articular o caráter social
desses processos, de forma que o “eu” deve ser pensado inserido numa teia de
relações e sua personalidade como um processo contínuo de integração pois,
segundo o autor, “reconhecer que o indivíduo é o foco da realidade não é o mesmo
que pensar o ‘eu’ como entidade isolada: para compreender seu comportamento é
preciso conhecer as constelações nas quais age” (id. ibid.: 35). Dessa forma,
segundo o autor, pode-se compreender a controvérsia entre os nominalistas e os
universalistas, concedendo aos primeiros a responsabilidade em afirmar que o
indivíduo é o centro da realidade e que a realidade grupal é derivativa e, ao mesmo
tempo, insistir que abordar o indivíduo através do grupo é mais eficaz que a
abordagem direta.
A Sociologia do Espírito de Mannheim (op. cit.) visa abarcar não somente o
pensamento discursivo, mas também toda a gama de expressões simbólicas que
são geradas e transmitidas, inclusive a arte e a religião. Nessa perspectiva, tudo é
conhecimento. O complexo cultural, porém, pode ser compreendido através dos
atos inter-relacionados do par pensamento/ação, que os processos mentais e as
ações deles derivadas constituem, para ele, um processo único.
24
O que o autor pretende é compreender a dinâmica social através da cultura;
compreender o mecanismo social de motivação das idéias, as aspirações sociais
contidas em dadas expressões de pensamento. Sua pretensão é estudar os
mecanismos que governam as ações sociais e que fazem com que estas e os
processos mentais permeiem-se mutuamente. Para ele, “as idéias são reações
motivadas a situações dadas” e justamente por isso é que um conjunto de imagens
traz em si elementos da situação em que foi concebido.
Em suma, sua proposta é visualizar a dimensão social da mente a partir de
um método para descobrir as situações da ação, as estruturas de grupo e as
escolhas que, de um modo ou outro, estão envolvidas nas expressões de sentido.
Dessa forma, o modelo elaborado por Mannheim nos permite alinhavar não as
expressões de sentido que remetam às interconexões entre literatura, história e
sociedade, mas todas as constelações de sentidos inerentes ao texto ou pretendidos
pelo autor que remetam às situações de ação, às estruturas de grupo e às escolhas
envolvidas nessas expressões de sentido, possibilitando-nos demonstrar que as
situações sociais são componentes de todos os atos mentais.
O primeiro passo do método seria o exame das expressões documentadas
de pensamento, sentimento ou gosto, para que se revele seu sentido inerente ou
pretendido, sem indagar sobre sua validade ou veracidade. Nesse caso,
buscaremos, através da análise das imagens que Bernardo Élis transpõe para sua
obra e/ou as enunciações que ele constrói, o sentido dessas expressões.
Num segundo momento, far-se-á o delineamento do contexto das relações
sociais nas quais essas expressões são concebidas e realizadas, com especial
atenção às escolhas e à ordem de preferências implicitamente manifestadas pelas
ações dos participantes de uma dada situação. A proposta aqui é a de resgatar o
contexto vivencial do autor e o contexto histórico-social a que remete a obra - O
tronco (1956) foco de nossa análise. Desse modo, através de um amplo
levantamento bibliográrico, estabelecemos um diálogo com historiadores e outras
fontes, procurando compreender aquelas expressões de sentido assinaladas na
obra. O tempo do autor e o tempo da obra compuseram um quadro para a
compreensão da dimensão histórico-social de O tronco.
25
No terceiro e último passo a análise do conteúdo das manifestações é
retomada no contexto restaurado da interação original – de modo a tecer indagações
sobre sua validade ou veracidade intrínsecas reconstituindo-se por completo seu
significado situacional. Observando os passos anteriores, tecemos a análise
sociológica do conteúdo das manifestações produzidas pelo autor, principalmente
as referentes à dinâmica das relações entre literatura, história e sociedade presentes
no romance de Bernardo Élis. Aqui se dá, nas palavras de Antônio Cândido (op. cit.),
o resultado do diálogo entre texto e contexto.
Esse tipo de abordagem parte do pressuposto de que os agentes sociais têm
apreensão ativa do mundo, podendo construir visões de mundo de forma a contribuir
para a conservação ou transformação da sociedade em que vivem. Assim, considera
que as estruturas mentais dos agentes são ativamente motivadas pelas estruturas
sociais e são orientadas por elas, de forma que a cisão indivíduo/sociedade é
considerada um reducionismo. Idéias e ações fazem parte de um mesmo processo.
Desse modo, através dos processos mentais, podemos nos aproximar, segundo
Mannheim, do contexto de ação que as motivaram.
Fiel às inclinações para a pintura, em O tronco (1956), Bernardo Élis por
diversas vezes demonstra seu cuidado, sua minúcia para com a descrição dos
detalhes, de forma a dar às várias passagens a impressão de um quadro ou um
retrato em que o leitor perceba cada movimento que compreende as ações das
personagens. Tudo é minuciosamente encadeado, de forma que o estabelecimento
das relações entre traços e detalhes propicia o poder de convicção da obra de ficção
que tem por característica o fundamento histórico, de modo que, cada traço assume
um sentido em função de outros, fazendo com que a estrutura apresente-se
verossímil, infundindo vida às personagens.
O diálogo texto e contexto, orientado pelas perspectivas de Antônio Cândido e
Mannheim, far-se-á a partir das personagens do romance. As personagens foram
o fio condutor para a apreensão das significações que nos remeteram para o diálogo
com as teorias que nos possibilitaram compreender a dimensão sócio-histórica da
obra. Queremos, amparados nas teorias acerca da personagem do romance e pela
idéia de que a narrativa do romance é amplamente influenciada pelas intenções de
26
seu criador, demonstrar de que forma a análise das principais personagens da obra
retoma os acontecimentos de um lugar e de uma época.
Os analistas da obra de Bernardo Élis apontam uma narrativa em que os fatos
nem sempre são evidentes e se apresentam por meio de um conflito passível de
análise. Nelas, são freqüentes os anti-heróis, sempre vitimas das adversidades ou
de seus próprios defeitos de caráter. Em O tronco (1956) não é diferente. É muito
comum a caracterização de tipos que, para Gancho (2001), “(...) é um personagem
reconhecido por características típicas, invariáveis, quer sejam elas morais, sociais,
econômicas ou de qualquer outra ordem” (id. ibid.: 16). Essa autora oferece como
exemplo a descrição de um tipo que se tornou famoso na literatura brasileira: o
sertanejo, na visão de Euclides da Cunha em Os sertões (1902).
Em O tronco (1956), o tempo é psicológico, transcorrendo numa ordem
determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou das personagens, ou
seja, altera a ordem natural dos acontecimentos. Para isso, Bernardo Élis, utiliza
uma das técnicas mais conhecidas de retorno ao passado: o flashback. Em O tronco
(1956), o presente para o narrador é marcado pelo caso do inventário de Clemente
Chapadense, a partir do qual a narrativa volta ao passado, não determinado se
próximo ou remoto, para descrever acontecimentos comuns na região.
O trabalho a que nos propomos, impõe-nos a preocupação com tais
peculiaridades da obra, além de nos colocar a necessidade de transitar
permanentemente entre os aspectos intrínsecos e extrínsecos da obra literária.
Estamos interessados no caráter social da ficção de Bernardo Élis e por isso
fundamentamo-nos no trabalho do crítico Fábio Lucas (1970), para quem
(...) A perspectiva social será apanhada toda vez que a
personagem ou o grupo de personagens tiver seu destino
ligado ao da sociedade global de que faz parte, sob o impulso
das forças fundamentais que conferem historicidade às
tensões entre indivíduos ou grupos (id. ibid.: 50).
27
Interessamos-nos pelas personagens retratadas na ficção, numa ordem épica
ou trágica que se torna representativa de uma situação histórica que a determina.
Como diria Olival (1998), trata-se da representação de aspectos universais da
personagem ou do elemento dado. Todavia, acreditamos que a personagem é capaz
de exprimir um conflito essencial da sociedade, podendo ser representativa das
contradições da sociedade inteira, representando assim, a unidade do homem. Com
ela o ficcionista social pode, segundo Lucas (op. cit.), “fixar aquele ser a quem
roubaram horizontes, mas que aspira a ser íntegro numa sociedade que o mutila” (id.
ibid.: 52).
Ainda para este autor, “os melhores romances de caráter social são
justamente aqueles que primam pela negação do sistema que nega o homem, que o
tritura na sua máquina de produção, que o mutila, que reduz os seus horizontes, que
o transforma em coisa” (id. ibid.: 55). Dessa forma, por suas características,
consideramos O tronco, de Bernardo Élis, dentre os melhores.
Dado o perfil ou caracterização das personagens no romance, com elas se
faz possível a percepção de elementos significativos para a análise. Os conflitos,
decepções e aspirações no universo ficcional do romance, possibilitam uma análise
da totalidade social que é posta em cena e não apenas da sociedade “contida” na
obra. Se considerarmos que a ficção tem com seu contexto uma relação semelhante
a que o indivíduo tem com o mundo em que vive, compreenderemos como, no
romance, as duas realidades se entrelaçam, criando uma realidade sui generis.
Como estamos enfatizando nosso interesse pelo papel da personagem,
selecionamos um trecho da obra de Booth (1980) que diz o seguinte:
(...) O romancista que escolhe contar esta história não pode,
ao mesmo tempo, contar a outra história; ao centrar nosso
interesse, simpatia ou afeição num personagem exclui,
necessariamente, do nosso interesse, simpatia ou afeição um
outro personagem. A arte imita a vida neste aspecto, como em
tantos outros; tal como, na vida real, não posso deixar de ser
injusto para com todos menos para comigo ou, na melhor das
28
hipóteses, para com os que me são mais próximos, também
em literatura a imparcialidade total é impossível (id. ibid..: 96).
Em A personagem de ficção (2002), Anatol Rosenfeld, trata de questões de
literatura e personagem afirmando que:
A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o
homem pode viver e contemplar, através de personagens
variadas, a plenitude da sua condição, e em que se torna
transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se
imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-
se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição
fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-
se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria
situação (id. ibid.: 48).
Rosenfeld (2002) destaca que os textos ficcionais se esforçam para
particularizar, concretizar e individualizar os contextos objetais de forma a dar uma
aparência real à situação imaginária, revelando assim a intenção ficcional, pois, para
ele, “graças ao vigor dos detalhes, à ‘veracidade’ de dados insignificantes, à
coerência interna, à lógica das motivações, à causalidade dos eventos, etc., tende a
constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário” (id. ibid.: 20-21). Em Bernardo
Élis é geralmente assim: suas construções nos dão impressão de uma tela que se
movimenta ante nossos olhos, dando-nos a idéia de uma realidade imediata,
próxima a nós.
O autor cria a realidade ficcional de acordo com suas percepções, sua visão
de mundo, sua intencionalidade, sua capacidade crítica e, com sentimentos e
imaginação, a torna concreta e perceptível. O autor implícito de Booth (op. cit.), na
figura do narrador fictício, bem como o historiador, desdobra-se imaginariamente,
manipulando a função narrativa. Todavia, o primeiro, diferentemente do segundo,
não narra sobre/acerca/de pessoas, eventos e estados; narra - de maneira
intencional - personagens, eventos e estados, característica marcante nos romances
de representação/transfiguração histórica, tal qual O tronco (1956), foco de nossa
análise.
29
Aristóteles, em Poética (1979), foi o primeiro a estabelecer diferenças entre
Poesia e História. Ele afirma que:
(...) não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de
representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é
possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com
efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso
ou prosa (...), sim, em que diz um as coisas que sucederam, e
outro as que poderiam suceder. Por isso, a poesia é algo de
mais filosófico e mais sério do que a História (id. ibid.: 145).
Romances, como O tronco (1956), são, todavia, diferentes dos escritos de um
historiador. Este pode, em seus escritos e em seus juízos, referir-se somente a
objetos que ele apreende de “fora”, pela sua percepção baseada em dados e
documentos. O autor, ou seja, o romancista que narra suas personagens, as
conhece de dentro, em suas intimidades, limitações e desejos mais profundos; as
imagens que ele descreve são detalhadas em pormenores que quem as criou
pode narrar.
Como salienta Hayden White (1994):
Os historiadores se ocupam de eventos que podem ser
atribuídos a situações específicas de tempo e espaço, eventos
que são (ou foram) em princípio observáveis ou perceptíveis,
ao passo que os escritores imaginativos poetas,
romancistas, dramaturgos se ocupam tanto desses tipos de
eventos quanto dos imaginados, hipotéticos ou inventados (id.
ibid.: 137).
A personagem abarca fragmentos da história que ela representa. Porém,
ressaltamos que ela nunca poderá abarcá-la em sua totalidade sem correr o risco de
se perder o caráter ficcional, fundado na intenção imaginativa e criadora do autor. A
visão que temos da realidade é fragmentária, limitada e faz com que os aspectos
reais, retratados pela ficção, sejam sempre configurados da mesma forma.
30
É, pois, a partir da caracterização dos tipos presentes no romance que
ensejamos analisar como Bernardo Élis recria o contexto político e social que
envolve o coronel Abílio Wolney e suas práticas de mandonismo, passando pela
questão da terra, do voto, da corrupção, da opressão, da política dos governadores,
da violência, etc. Bernardo Élis, em um mencionado equilíbrio entre realidade e
ficção, revela sua visão do coronelismo. Em nossa perspectiva, isso ele faz através
da mediação de suas personagens-tipo, representativas da história que ele
transfigura. É o discurso literário que, fugindo ao oficialismo da historiografia, pode
dar vazão aos ideais daqueles que foram postos à margem da história e não
participaram das decisões.
As personagens, elaboradas pelo autor, mesclam dados fictícios com traços
reais, como podemos comprovar através da historiografia aqui citada. Na trama que
se desenvolve em torno do inventário de Clemente Chapadense destacamos, para
efeito de nossa análise, os que consideramos representativos dos tipos mais
comuns na região: o Coletor Estadual Vicente Lemes, o coronel Pedro Melo e seu
filho Artur Melo, o Juiz Municipal Valério Ferreira, os Juizes Hermínio e Carvalho, os
dois últimos enviados a São José do Duro presidindo suas respectivas comissões.
Destacamos ainda os soldados Baianinho e Severo, além dos vaqueiros Belisário e
Casemiro e dos jagunços Abílio Batata e Roberto Dorado, partícipes de dois grupos
originados num mesmo contexto social, mas que se orientam a partir de diferentes
ideologias.
Às mulheres, sem muito destaque tanto na ficção quanto na vida, é reservado
um espaço à parte. Detivemo-nos na análise da condição de submissão social ao
poder masculino e às ordens do cangaço, a partir de Lina e Anastácia. Como disse
Bernardo Élis em Chegou o governador: “O mundo, como a História, é só dos
homens”.
31
2
Bernardo Élis: o autor e a obra
O Realismo é (...) a atitude de aceitação da
existência tal qual ela se dá aos sentidos.
Alfredo Bosi
32
A vida e a obra
As discussões de Pareyson (op. cit.) fazem-nos recordar com quanta
freqüência questionamos se o conhecimento da vida de um artista pode aumentar a
compreensão de sua arte e se esta, por sua vez, é capaz de contribuir para o
conhecimento de sua vida. As opiniões geralmente são diversas e dependem do
modo de conceber as relações entre a vida e arte: os que acreditam que a arte
imita a vida e vice-versa; mas, por outro lado, quem pense que o artista deve ser
visto separado do homem, de sua personalidade, em suas dimensões humana e
social. Nesse caso, o artista representaria uma realidade verdadeiramente
representativa frente ao valor e significado da arte, sendo sua personalidade
realidade puramente biográfica, por não possuir o mundo fantástico e imagético do
autor
5
.
Nessa perspectiva, a obra existe em detrimento da vida que a gestou e o
artista interessa apenas por suas obras, não nos cabendo esclarecer-lhe a vida.
Todavia, numa perspectiva mais otimista, parece não haver dúvida de que as obras
remetem para a vida. Pareyson (id. ibid.) argumenta que fatos que revelam um
mútuo reenvio de uma para a outra, de maneira que
há, sem dúvida, uma continuidade entre as obras de um
mesmo artista, reencontrável até onde se encontram bruscas
mudanças de direção e de estilo, e esta continuidade é dada
pela própria pessoa do artista, isto é, pelo seu
desenvolvimento no tempo: pode-se pensar, portanto, que o
desenvolvimento da vida de um artista traz consigo mais de
um elemento para explicar o desenvolvimento da sua arte (id.
ibid.: 76).
Quem assim pensa, acredita que o conhecimento de certas circunstâncias da
vida de um autor pode esclarecer características e significados de sua arte, como o
5
Os argumentos que sustentam tais opiniões são, como salienta Pareyson (op. cit.), geralmente
fundamentados no fato de existirem casos em que determinados artistas manifestam uma
personalidade muito diversa na vida e na arte, além do que exemplos de autores de cuja vida
nada se sabe, mas cuja obra se aprecia e reconhece, se compreende e valoriza.
33
uso de certos meios expressivos, heranças de certas correntes e estilos, afinidades
com outros artistas. Fato a ser considerado é que a arte está ligada, por seu
conteúdo e significado, ao tempo do qual ela emerge e ao ambiente de onde ela
surge, filtrados através de uma personalidade. Trata-se do condicionamento social
da arte de que nos fala Pareyson :
Em primeiro lugar, é possível uma ‘sociologia do artista’:
podem ser condições internas da arte a procedência social do
artista, as suas convicções políticas, o seu lugar na sociedade
(...) é possível que naturalmente através da personalidade do
artista penetre na arte ‘a alma do povo’ e da sociedade em que
ele vive, a ponto de que o canto popular de um poeta se torne
a saga coletiva de um povo, a ponto de que toda a história
artística de um povo revele seu espírito coletivo e as grandes
conquistas nacionais (id. ibid.: 94).
A abordagem sociológica da cultura e, em especial, da literatura, nos revela a
importância da inserção do autor na configuração da obra. Autores como Mannheim,
Antônio Cândido e outros, sustentam a importância de se conhecer a trajetória da
vida de um autor para a compreensão de sua obra. Indivíduo, sociedade e cultura
são elementos indissociáveis de um mesmo processo.
O
s aspectos social e pessoal,
contidos na obra, “são inseparáveis e representam o inteiro e indivisível ‘mundo’ da
obra” (Pareyson, op. cit.: 94).
A partir do acima exposto, passamos a algumas referências acerca da vida de
Bernardo Élis, considerando a natureza reivindicatória de sua narrativa, fruto de suas
experiências pessoais e sociais. Ele, lembrado, entre os contistas goianos, como o
mais vigoroso escritor e ilustre representante do modernismo em Goiás, chamou-se
Bernardo Élis Fleury de Campos Curado. Filho do poeta Erico Curado
6
e Marieta
Fleury de Campos Curado, goianos e descendentes de famílias tradicionais,
Bernardo Élis nasceu a 15 de novembro de 1915, em Corumbá Go. Atuou como
professor, poeta, contista, romancista e advogado, mas foi com as “letras”, que
6
De acordo com a ficha autobiográfica de Bernardo Élis presente no romance O tronco, o nome de
seu pai - como ele próprio freqüentemente frisava - era paroxítono e não proparoxítono, como
geralmente pronunciam no Brasil.
34
consagrou-se tanto regional quanto nacionalmente, recebendo vários prêmios
literários
7
, compondo um vasto currículo que inclui a eleição para a Academia
Brasileira de Letras, sucedendo a Ivan Lins na Cadeira n. 1, em 23 de outubro de
1975.
Estudou no Lyceu de Goiás e bacharelou-se em Direito, único curso superior
então existente em Goiânia
8
. Mas o estudo das primeiras letras foi iniciado em casa,
com o pai, de quem viria o maior estímulo à leitura. Porém, como consta em sua
nota autobiográfica, em Veranico de janeiro (1966), as leituras a ele proporcionadas
pelo pai não lhe causaram maior estímulo: “Muito cedo, meteu-me nas mãos Os
Lusíadas, Memórias Póstumas de Brás Cubas, A Cidade e as Serras, Iracema, O
Guarani, Inocência, Os Mártires do Cristianismo, Nova Floresta e outras ‘desgraças
semelhantes. O entusiasmo que faltava para a leitura dos clássicos, Bernardo Élis o
tinha de sobra quando o assunto era as obras dos modernistas brasileiros, com as
quais entrava em contato graças a revistas e jornais [mandados pelo tio André,
infatigável escritor, nas palavras de Bernardo Élis] vindos do Rio de Janeiro, cidade
que povoava seus sonhos de escritor. Consta em sua autobiografia que foi a partir
de leituras das “coisas” ditas pelos modernistas que ele percebeu determinada
ligação entre literatura e vida cotidiana, o que, com toda certeza, constituiu-se no
germe de sua obra, baseada na realidade captada através dos sentidos e transposta
às páginas da ficção.
A paixão pelo modernismo alimentava seus anseios e definiu seu estilo
criador, dando-lhe o reconhecido sucesso. De acordo com os estudos da professora
Nelly Alves de Almeida (1970), estavam presentes em suas leituras os modernistas
Hugo de Carvalho Ramos, Vitor Hugo, Zola e José Américo de Almeida. De acordo
7
Entre eles:
Prêmio José Lins do Rego (1965) e Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (1966),
pelo livro de contos Veranico de janeiro; Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras,
pelo seu Caminhos e descaminhos; Prêmio Sesquicentenário da Independência, pelo estudo
Marechal Xavier Curado, criador do Exército Nacional (1972). Em 1987, recebeu o Prêmio da
Fundação Cultural de Brasília, pelo conjunto de obras, e a medalha do Instituto de Artes e Cultura de
Brasília.
8
Segundo o Plano Estratégico de Gestão Participativa da UCG, 2003-2010, da Série Gestão
Universitária-n. 6, a Faculdade de Direito de Goiás, antiga Academia de Direito de Goiás, foi fundada
em Vila Boa em 1898 e transferida para Goiânia em 1937, sendo federalizada em 1959, compondo o
núcleo de criação da Universidade Federal de Goiás. Por pelo menos cinco anos o curso de Direito
ficou sendo o único oferecido em Goiânia, que em 1942 foi reconhecida, ou autorizada a funcionar
pelo Governo Federal, a Escola de Enfermagem São Vicente de Paulo, que compôs no final da
década de 50, o núcleo de criação da Universidade de Goiás, hoje Universidade Católica de Goiás.
35
com outra estudiosa de vida e da obra do notável escritor, a professora Moema de
Castro e Silva Olival (1976), a partir do momento em que ele passou a colaborar e
participar ativamente com a vida literária da hoje chamada Goiás Velho, inteirava-se
dos movimentos literários da Capital, chegando a pertencer ao grupo que liderou o
Movimento Modernista em Goiás. Nesse período, lia constantemente Rubem Braga,
Tristão de Ataíde, Mário e Osvald de Andrade, Augusto Frederico Schmidt e,
também, Balzac e Tolstoi que, juntamente com Zola e Vitor Hugo citados, viriam,
segundo Olival (id. ibid.), a prepará-lo em sua formação humanística, inclinando-o ao
curso de Direito. Assim, foi definindo suas afinidades literárias ao lado das atividades
voltadas para a sobrevivência, necessárias a todo ser humano.
Em 1936 iniciou-se na função blica, como escrivão da Delegacia de Polícia
em Anápolis, sendo depois nomeado escrivão do cartório do crime de Corumbá.
Participou, desde 1934, dos acontecimentos literários do Brasil Central, escrevendo
poesias e enviando colaborações de cunho modernista para os jornais de Goiânia.
Seu primeiro conto, sobre assombração, foi escrito aos doze anos inspirado em
Assombramento, de Afonso Arinos. Transferiu-se para Goiânia em 1939, onde foi
nomeado secretário da Prefeitura Municipal, exercendo também a função de prefeito
interino por duas vezes.
Em 1942, mudou-se para o Rio de Janeiro com a intenção de se fixar.
Levava um livro de poesias e outro de contos, que pretendia publicar. o
realizando seu intento, veio novamente para Goiânia e, segundo suas palavras,
“com o firme propósito de nunca mais pensar em cidade grande”.
Atuou na fundação da Revista Oeste
9
e nela publicou o conto Nhola dos Anjos
e a Cheia de Corumbá. Mas, sua estréia no meio literário aconteceu em 1944, com a
9
De acordo com Pereira (1995), a Revista Oeste circulou em Goiás de 1942 a 1944. Porta-voz do
pensamento do Estado Novo, ajudou a consolidar a recém-fundada capital do Estado, procurando
viabilizar a proposta de construir, na nova capital do Estado, um pólo cultural do porte dos melhores
do país. Divulgava a idéia de uma nova capital associada ao progresso e ao desenvolvimento, em
contraste com a estagnação e a idéia de atraso representada pela antiga capital que, pejorativamente
começou a ser chamada de Goiás Velho. Em virtude do projeto de construção de uma mentalidade
progressista para o Estado de Goiás, em contraposição à mentalidade da época, intelectuais se
uniram ao governador do Estado, Pedro Ludovico Teixeira; união essa corporificada em torno da
Revista Oeste. Consultar também Machado (1990).
36
publicação, pela Bolsa de Publicações de Goiânia, do livro de contos Ermos e
gerais, seguindo-se uma respeitosa produção ficcionista bem acolhida pela crítica.
Nesse mesmo ano casou-se com a poetisa Violeta Metran. No ano seguinte
participou do Congresso de Escritores de São Paulo, quando conheceu vários
escritores nacionais, entre os quais Aurélio Buarque de Holanda, rio de Andrade
e Monteiro Lobato. Ao voltar para Goiânia, fundou a Associação Brasileira de
Escritores, da qual foi eleito presidente. Trabalhou como professor do ensino público
estadual e municipal, dedicando-se também à vida literária. Atuou na fundação, foi
vice-diretor e professor do Centro de Estudos Brasileiros, da Universidade Federal
de Goiás, professor de Literatura na Universidade Católica de Goiás e em vários
cursos pré-vestibular, mantendo ativa participação em congressos de escritores
realizados em várias partes do país. Em 1953, promoveu o I Congresso de Literatura
em Goiás e realizou inúmeras palestras, conferências e cursos literários.
A 30 de novembro de 1997, aos 82 anos, vítima de câncer, faleceu em
Goiânia, deixando significativa produção literária, expressão de suas preocupações
de cunho social, com ampla e criteriosa visão da luta dos menos favorecidos pela
sobrevivência, oprimidos sob os interesses dos poderosos.
Como pudemos constatar no decorrer de nossa análise, a realidade social
que permeia suas obras não é fruto do acaso e, sim, o resultado intelectual de uma
experiência ‘fincada’ na vida real, no movimento das idéias e na idéia da
possibilidade de mudança. A luta é característica marcante em suas obras: a luta do
pobre, do camponês, do seringueiro e de todos aqueles que carecem das benesses
da vida.
Diante da ausência de registros históricos que nos fundamentassem algumas
inquietações, optamos pelo recurso oferecido pela história oral. Recorremos às
histórias orais, na forma de entrevistas, no intuito de fundamentar alguns
questionamentos inerentes ao trabalho. Ao trabalhar com a memória percebemos
que, como salienta (2002), o depoente seleciona para a entrevista dados que
considera mais relevantes em detrimento de outros. Nas entrevistas realizadas
percebemos que preocupações de cunho social do autor germinaram em seu
37
engajamento político, alinhado junto às tendências de esquerda, identificando-se
com os interesses dos dominados, em uma terminologia em voga, dos excluídos.
A militância no Partido Comunista em Goiás, nos idos dos anos 50, para nós,
evidencia a origem do caráter de protesto presente em suas obras. Mostra quão
engajada na realidade de seu tempo era a vida do escritor que, com espírito de
historiador, aventureiro e militante, transfigurou uma realidade que lhe palpitava aos
olhos e talvez passasse despercebida para muitos. O depoimento que se seguir, por
exemplo, demonstra o engajamento de Bernardo Élis na política goiana, num
período turbulento no cenário nacional:
Eu conheci ele em 1955... 57 mais ou menos, na época que o
Partido Comunista era muito perseguido, então, eles reuniam
assim pra... nas fazendas, assim, escondidos pra poder traçar
os planos de trabalho deles, né?, então o papai também
pertencia ao Partido Comunista, então eles reunia na casa do
papai aqui no Morro Feio
10
e a gente ficou conhecendo, ficou
muito amigo, então, toda obra que ele escrevia, ele dava um
livro para o papai. Deu o Caminhão de Arroz
11
, nós todos
lemos, e muitos outros que eu nem lembro mais como... o
nome. E a gente, todo mundo ficou amigo, então aí, uma
menina... minha prima foi trabalhar na casa dele... a gente
passeava na casa dele. Em 1960 a gente dormiu [de
passagem para Pires do Rio] na casa dele pra... de
madrugada ele levou a gente na estação de trem, que a gente
ia embarcar. E a gente ficou todo mundo amigo. quando foi
em 64, que que entrou a Revolução, então o Partido foi mais
esfacelado, mais acabou, a gente perdeu mais o contato,
evitava assim de encontrar, né, então foi aonde agente perdeu
mais o contato. E foi logo ele foi chamado né, pra Brasília,
10
Região do município de Hidrolândia, caracterizada pela presença de uma serra assim denominada.
Local em que se estabelece a Chácara hoje intitulada Sítio Arlindo Alves, em homenagem ao seu
falecido proprietário.
11
De Acordo com Almeida (1970), com este livro Bernardo Élis concorreu a concurso instituído pela
Universidade Federal de Goiás, não logrando classificação e, apesar da determinação do então
Reitor Colemar Natal e Silva para a publicação da obra, ela não chegou a ser publicada. Veio a
público sim, em 1965, o livro Caminhos e Descaminhos, que trazia contos do desclassificado
Caminhão de Arroz (1962), selecionados pelo escritor A. G. Ramos Jubé.
38
para a Academia... de Letras, não sei bem a época que ele foi e
perdeu o contato direto, né. (...) o que eu sei é que eles
reunia assim nas chácaras, nas fazenda, lugar que ninguém
sabia e eles ficavam semana reunidos, pra... traçar os planos
deles, marcavam os congresso, né, assim tudo escondido,
porque não podia sair, né. Tinha o jornal, eles liam o jornal
escondido. O jornal era a Voz Operária. Esse jornal era assim
tido bem subversivo mesmo. Aqui em Hidrolândia tinha gente
que abria a correspondência de gente pra queimar o jornal,
principalmente do papai, eles abriam as correspondências para
queimar e não entregar as correspondências, para ele perder o
vínculo com eles. Mas, foi muito tempo isso (Neuza Alves da
Silva, em março de 2003 - Anexo I).
Com outros companheiros ele estava na luta, como nos mostrou nossa
entrevistada:
reunia vários escritores, né, porque inclusive o Jorge
Amado, o José Godoy, que era um advogado em Goiânia e
era escritor também, e tinha outros, tinha um... parece que é...
Erli Brasiliense [Eli Brasiliense] juntava lá... O Jorge Amado,
ele escreveu aquele livro Gabriela Cravo e Canela [1958]
nos fundos do quintal do papai, deitado nas moitas de banana
(risos), na chácara. (...) Era como se fosse um retiro.
ninguém sabia, inclusive quando eles iam, os mais assim,
mais recrutas eles nem sabiam para onde que iam. O
Bernardo Elis, ele sempre sabia, porque ele era um dos líder,
mas os outros nem sabiam onde que tava (Neuza Alves da
Silva, em março de 2003 - Anexo I).
Uma vez delineado os elementos fundamentais da vida de Bernardo Élis,
passamos às discussões que caracterizam sua obra, do ponto de vista do gênero e
do estilo. Iniciaremos com algumas considerações sobre Regionalismo, gênero
comumente associado à sua imagem e produção literária.
39
Os conceitos de Região
12
e Regionalismo são abordados, do ponto de vista
político, por Iná Elias de Castro (1989), no intuito de conferir significado ao espaço
enquanto produto e mediador de relações sociais, “tornando-o um elemento de
análise significativo para a compreensão de escolhas e decisões de atores políticos”
(op. cit.: 390). Em um balizamento conceitual, a autora salienta que a compreensão
do espaço regional requer a percepção do espaço, como um nível maior de
generalização, como um produto das relações sociais que ocorrem sobre uma base
territorial concreta.
De acordo com a autora, o território é o suporte natural sobre o qual uma
sociedade se organiza e cria seu espaço. É o sistema de símbolos produzidos em
um território que conta da interface natureza-cultura, de maneira que além de
uma unidade geográfica, o território se constitua também em uma unidade social e
política. Dessa forma, Castro evidencia que o espaço como sendo a morada do
homem, não se constitui em algo homogêneo. Surge a noção de subespaços: a
idéia do fracionamento do espaço dentro do espaço total.
Assim, “como o espaço é produzido pela sociedade, a região é o espaço da
sociedade local, em interação com a sociedade global, porém configurando-se de
forma diferenciada” (id. ibid.: 390). A região como espaço concreto, observável e
delimitável, possui uma identidade que permite diferenciá-la de seu entorno e “suas
características internas são determinadas e determinantes da sua interação com o
todo” (id. ibid.: 391).
Sendo assim, além de ter uma forma concreta a região é representação e
ideologia. Como realidade empírica ela faz parte da consciência social e é
representação; mas, também como espaço de disputas e de poder, essa
representação é apropriada e reelaborada pela classe dominante que constrói, a
partir dela, um conjunto de idéias e conceitos que são reassimilados coletivamente
como ideologia. “Esta ideologia (...) constitui uma dimensão do regionalismo que se
manifesta como consciência regional” (id. ibid.: 394).
12
Sobre a construção de nação e região em Goiás (1830-1945), consultar também Pereira (1995).
40
O regionalismo, segundo a autora, deve então “ser entendido como a
mobilização política de grupos dominantes numa região em defesa de interesses
específicos frente a outros grupos dominantes de outras regiões ou ao próprio
Estado“ (id. ibid.: 392). Trata-se de um conceito político vinculado aos interesses
territoriais.
Em suma, a região que é modelada por imposições objetivas da natureza e
da sociedade e redefinida pelas imposições subjetivas das relações de poder, se
define para seus habitantes no confronto com outras regiões e a identidade regional
pode ser analisada por referências às outras. Assim, quanto maiores as diferenças,
maiores os conflitos esperados e maior a explicitação da identidade regional entre
diferentes segmentos do espaço de um mesmo território, com reflexos no sistema
político. Regionalismo, portanto, supõe identificação e coesão internas e competição
externa para a defesa de padrões e preservação ou obtenção de condições mais
vantajosas.
Iná Elias de Castro fornece-nos, enfim, a perspectiva do regionalismo do
ponto de vista político. A narrativa regionalista, como não poderia deixar de ser,
nasce atrelada a questões políticas que marcaram o Brasil ao início ao século XX.
Emerge em um período de intensas transformações políticas, inserindo-se num
movimento de busca por elementos que servissem de base à formação de uma
identidade brasileira. Nesse momento conturbado da história do Brasil – transição da
Monarquia à República faltava ao país uma identidade de povo e buscava-se uma
interpretação que fosse capaz de fornecê-la.
Almeida (1985) ressalta a maneira clara de expor as idéias e a linguagem fácil
de se expressar dos escritores regionalistas, argumentando que o homem fala a
língua de seu meio, de sua profissão. Assim, os regionalistas desempenham
importante tarefa ao recriarem a língua: estilizam-na de maneira singular e bem
pessoal, fazendo com que ela se torne amoldável, original e interessante.
Os regionalistas e, somente eles, concretizaram o ideal de Mário de Andrade:
uma prosa livre de regras, estruturando a língua para que ela se tornasse comum a
todo o país. Esta é, ainda segundo Almeida, a principal característica dos escritores
41
modernistas: revelam-se pelo modo de expressar. Em suas narrativas, a seqüência
dos fatos é clara e o autor, muitas vezes, oculta-se através de suas personagens,
fazendo por elas a narrativa. É assim que o linguajar brasileiro atualmente se acha
consagrado, em grande parte, na língua literária, pois
Nenhuma literatura reflete melhor a alma, a consciência, a
filologia do povo que a regionalista. Espontânea, natural,
revela toda a beleza, toda a pureza, da alma simples e atesta
que o escritor moderno é arcaizante. A filologia,
modernamente ‘situa a língua falada acima da língua escrita’
(id. ibid.: 27).
Olival (1998), ao analisar a ficção regionalista, procura caracterizar a vertente
temática e estilística da produção de Bernardo Élis a partir de seu livro de contos
Ermos e gerais (1944) que, além de agitar o campo da crítica, mudou o status quo
vigente no campo literário em Goiás. É ela também que nos diz que esta obra
constitui o paradigma, a matriz, a vertente temática e estilística
que vai presidir à produção literária de Bernardo Élis,
amoldando-se, essa produção, no correr dos anos e da
produção literária, às exigências das técnicas narrativas e
motivações mais atualizadas, mas, sempre, focalizando o
homem em lances diversos, na proposta maior de desvendá-lo
em seus dois mundos: o interior, o da alma humana, e o social,
o do direito do ser humano (id. ibid.: 152).
Bernardo Élis é comumente lembrado ao lado da figura de Hugo de Carvalho
Ramos (1895-1921), consagrada como pioneira no regionalismo goiano, por serem
ambos,
cada um à sua maneira, porta-vozes do realismo da vida sertaneja. A
diferença principal é a de que Bernardo Élis é mencionado como expressão de um
novo posicionamento regional, no âmbito da literatura: aquele à procura de um novo
tipo humano, caracterizado em Olival (id. ibid.) como “homem telúrico”: emaranhado
nas teias de uma ação que se abastece nos costumes, tradições, mitos, lendas e
estruturas da oralidade, próprios da região; nesse caso, a Centro-Oeste.
42
De acordo com a estudiosa, até o momento de seu aparecimento com Ermos
e gerais (1944), predominava a preocupação com as relações que o homem
mantinha com o meio geográfico e para as condições sócio-econômicas que o
plasmavam, e o suas reações íntimas diante de tais questões. Na primeira linha
atuaram nomes como o de Afonso Arinos, com Pelos sertões (1898), e o de
Euclides da Cunha, com Os Sertões (1902). Ambos exerceram sobre o pioneiro
decisiva influência em termos de regionalismo, possibilitando aferir a diferença do
posicionamento presente em Bernardo Élis que, marcando nova fase na história do
regionalismo goiano, possibilita a visualização do mundo íntimo de suas
personagens, centrado na força de suas reações diante do mundo.
Hugo de Carvalho Ramos, com Tropas e boiadas (1950), assim como outros
ansiosos pela renovação da realidade literária brasileira, em um tempo em que ela
gritava por reconhecimento, dedicou-se à beleza da terra e ao seu povo sofrido e,
como afere Almeida, em seus estudos sobre os regionalistas goianos, demonstra em
sua linguagem muito da incomparável beleza vocabular de Os Sertões, de Euclides
da Cunha (1902). A partir das luzes no estudo das obras de Euclides, Ramos
denuncia as dificuldades do homem do sertão, revelando o aspecto telúrico a partir
do lingüístico, do psicológico e do social, através de paisagens, costumes, belezas e
tristezas da terra. Para Alfredo Bosi (1994), o que é moderno em Euclides da Cunha
e, para nós fonte de inspiração para Hugo de Carvalho Ramos, é o desejo de ir além
e desvendar o mistério da terra e do homem brasileiro com as armas da ciência e da
sensibilidade, havendo o comprometimento com o homem e com a sociedade.
Também segundo este autor, o moderno em Euclides está na seriedade e na boa-fé
para com a palavra (id. ibid.: 308-309).
Albertina Vicentini (1997) afirma que, a partir de suas características
estilísticas, a narrativa de Hugo de Carvalho Ramos pode ser denominada
heterogênea: de um lado, encaixa-se no relato regionalista finissecular de aliar as
reações do homem ao seu meio ambiente – de outro, realizando inovações de
acordo com as transformações iniciadas no século XX (id. ibid.: 8-13). Percebemos,
na exposição da autora, que o regionalismo finissecular sofria influências do
naturalismo, principalmente quanto à fatalidade de forças superiores impostas ao
homem, ou de um nivelamento de forças individuais e coletivas em que a fatalidade
43
de alguns era a fatalidade de todos, ilustradas a partir do macabro, do grotesco e
das superstições.
Diferentemente do sertanismo de Euclides da Cunha, que serviu de
inspiração a Hugo de Carvalho Ramos, a literatura de protesto de Bernardo Élis
representa um novo ciclo, em que o homem aparecerá apanhado em sua estrutura
mental e sócio-cultural, possibilitando o delineamento do homem regional e através
de aspectos de caráter e de sentimentos, nos será permitido vislumbrar, nesse ser
ilhado e sofrido, dimensões, também, da alma universal” (Olival, 1998: 149). Assim,
a ação se volta reflexiva sobre o homem inserido no meio, de maneira tal que o
homem regional aparece numa visão imediata e, através dele, o homem universal.
Isso muda também a visualização do espaço transposto para a ficção de Bernardo
Élis como regional, que assume características que o distinguem de “outros”
regionalismos, como o do Nordeste por exemplo. O espaço do qual emerge o
homem telúrico “na complexidade e perplexidade de seus impulsos, de suas
paixões, de sua, até então, irremovível desassistência social, política e cultural, se
constituirá em dado auxiliar para delimitar (nominar) a região que indica” (id.
ibid.:143).
Ainda segundo a autora, além de tratar do homem telúrico, Bernardo Élis faz
referências precisas ao espaço, à região e, assim, o homem é identificado com o seu
meio nas dimensões culturais e sócio-econômicas de sua vida. Em toda a obra de
Bernardo Élis, o homem ou é senhor pela força, ou é submetido a uma força maior e
tudo o que ela pode ocasioná-lo. Portanto, haverá sempre a dicotomia senhor-
escravo, na qual notamos os fatores de opressão social, reveladas através da
linguagem em que o autor denuncia as cenas mais duras e reais vividas pelo povo
goiano, marca da “criatividade e ousadia que acompanham toda a sua produção
literária, do primeiro livro de contos ao último” diz Olival (id. ibid.: 156). Essas
características, segundo ela, marcam até mesmo os seus dois romances, O tronco
(1956) e Chegou o governador (1987), em que ele permanece fiel à tendência de
sua escritura e à sua temática, delineadas no primeiro livro: o ser humano
delimitado “nos gerais”, “nos goiases”, “no rincão natal” (id. ibid.: 158).
44
Como ilustração, mais uma vez evocamos parte da história oral que nos relata
memórias da vida de Bernardo Élis, contada por alguém do povo: povo que ele tão
bem retratou, porque tão bem e tão de perto conheceu:
(...) tinha aqui um juiz de Direito aqui de Hidrolândia, Sebastião
Naves, então o Sebastião Naves foi o que pegou primeiro o
contato com o papai, né, arrumava com o papai pra levar o
povo pra e foi onde o Jorge Amado veio, o Bernardo Elis
veio... tinha muita gente, muitas outras gente. Tinha um...
sujeito de São Paulo, um tal de Geraldo Tibúrcio, e esse
sujeito tocava violão e cantava bom demais e o papai adorava,
eles faziam as reuniões de trabalho deles durante o dia e
quando era à noite eles tocava bem baixinho e cantava. (...)
Eles avisava que ia e o papai era pobre, não tinha cama para
todo mundo, então cortava aquele monte de folha de banana...
de bananeira, né. Nem a gente sabia, mas quando a gente via
cortá as palha de banana, a gente ficava curioso, né, pra
saber... tinha visita. Aí, fazia aquele montão de palha, eles
chegava meia noite, madrugada e arrumava as cama, a gente
não sabia de nada, dormia a noite toda, quando a gente
levantava a varanda tava esteiradinha de gente (Neuza Alves
da Silva, em março de 2003 - Anexo I).
Quando perguntada se poderíamos caracterizar Bernardo Élis como uma
pessoa que conseguia viver na simplicidade do campo, que se adequava bem à vida
do campo, nossa entrevistada assim respondeu:
Ah... vivia tranqüilo, vivia tranqüilo. E, além disso, ele ficava lá
também, assim, semana ele ficava lá, assim sem esses
movimento ele ficava. Ficava assim lá no fundo do quintal
sentado (Neuza Alves da Silva, em março de 2003 - Anexo I).
Constatamos que, como pioneiro do modernismo em Goiás no campo da
prosa, Bernardo Élis percebeu que a melhor maneira de aproximar-se de seu povo
seria através da sua fala, enfatizando a linguagem coloquial, dando preferência às
frases curtas, o que gerou um impasse diante da norma padrão da língua, exigência
45
da sociedade “letradaà época. Isso aparece em suas obras, sobretudo através das
estruturas de oralidade e das “formas simples”, transpostas à sua ficção e objeto de
estudo de Cunha (1991) em dissertação de Mestrado. Nesse trabalho, a autora
disserta sobre a oralidade nos contos de Bernardo Élis, enfocando que seu interesse
se deveu a razões intelectuais - entre elas, ilustrar o importante papel que a
oralidade assume na obra desse autor e também por suas razões afetivas de
identificação e de envolvimento com a sabedoria popular.
O objetivo principal de seu trabalho foi mostrar como Bernardo Élis utiliza a
cultura popular e o material folclórico em seus contos. O corpus da pesquisa
constitui-se de contos escolhidos dos livros Veranico de janeiro (1966), Ermos e
gerais (1944), Caminhos e descaminhos (1965), Seleta (1974) e Apenas um violão
(1984), embora tenha dedicado maior atenção à análise do conto João Boi, presente
no último dos livros citados.
Trata-se de um trabalho que visa evidenciar a importância do artista na
preservação e na transformação da cultura popular em arte. Para tanto, entre as
“formas simples” - expressão de oralidade que realça o que o povo diz, o que e
como conta, como aconselha e vive, fazendo com que a sabedoria permaneça por
muito tempo registrada – Cunha (op. cit.), destaca as cantigas, os mitos, os causos e
os provérbios, em função da importância que adquirem nas narrativas escolhidas, no
sentido de retratar a sabedoria do povo. Para ela, essa literatura expressa
oralmente, sem determinados requintes e exigências teóricas e estéticas, revela
anseios, angústias e alegrias de um povo, constituindo-se em tradução de suas
concepções de vida.
Percebemos que, de modo geral, o que chama a atenção dos estudiosos da
obra de Bernardo Élis é a clareza com que o autor aborda temas de interesse social,
como poder, dominação, opressão, violência, entre muitas outras temáticas
relevantes à análise sociológica. Observamos que na maioria de suas obras,
Bernardo Élis não se cala frente à miséria de nosso meio rural e com sensibilidade
volta-se para o ser humano, para a realidade da vida sertaneja que ele tão bem
retrata em seus contos e no romance O tronco (1956), objeto de nosso estudo.
Segundo Olival (1975), trata-se de uma narrativa reivindicatória, cheia de perfis
46
psicológicos e caricatos do homem goiano e seus sentimentos, sua alma, suas
reações diante das mais diversas dificuldades da vida. De acordo com a autora, sua
obra predominantemente regionalista
13
, agita ante nossos olhos a realidade
“analfabeta”, a realidade sertaneja e, no campo da reivindicação social, não se limita
a demonstrar as condições de “subvivência” humana, mas a esmiúça como num
apelo do homem do sertão ermo, esquecido dos governos e à mercê do poder e da
dominação legitimada dos poderosos.
Essas modalidades de ‘opressão’, de forças compulsivas que
levam à reação instintiva, ao crime, à morte, apresentam
modalidades variáveis, no correr de sua obra, podendo ir da
violência da natureza à dos coronéis, à das instituições, à dos
instintos, à da ignorância e, por vezes, surpreendentemente, à
do amor e da generosidade (Olival, 1998: 149-150).
Atenta a estas características, Paula (1991) se debruça sobre a análise da
violência praticada e evidenciada contra os protagonistas nos contos do nosso autor,
com o objetivo de retratar as suas várias faces. Para ela, os confrontos pessoais
nascem, principalmente, das desigualdades entre as pessoas e pela certeza da
impunidade, de forma que
Estas duas vertentes da violência permeiam o discurso
bernardiano e são vertentes exploradas pelo ficcionista em
suas múltiplas manifestações (...) Inconformado com os
desequilíbrios sociais (...) reflete e denuncia a opressão
humana, (...) aponta a brutalidade do homem e do meio em que
se acha alojado (id. ibid.: 12).
Baseada nas preocupações de cunho social do escritor, Paula selecionou em
seus contos as agressões físicas e psicológicas cometidas contra os órfãos da
13
A obra de Bernardo Élis é considerada por seus intérpretes predominantemente regionalista pelo
fato de que o romance Chegou o Governador (1987), apesar de manter-se fiel ao regional (a história
se passa na antiga Vila Boa), deixa de lado as características fundamentais do regionalismo que o
consagrou. Há controvérsias nas análises sobre esse romance que, segundo Bernardo Élis, não é um
romance histórico. Há analistas que assim o consideram, avaliando-o como um romance histórico que
atende às características do moderninsmo; mas há os que ousam ir mais longe: o caracterizam como
pós-moderno a partir do comportamento da personagem Ângela, que seria o foco “ex-cêntrico” da
narrativa.
47
complacência social” (id. ibid.: 8). A autora nos remete ao fato de que a violência
abordada por Bernardo Élis emerge de fatores essencialmente culturais e sociais,
revelando a objetividade do ter, enquanto o ser nada representa. Trata-se da
expressão de que “o coronelismo descomedido permeia, de ponta a ponta, a ficção
em estudo” – diz-nos Paula (id. ibid.: 09).
Diante da impressionante expressão realista do autor e, de maneira a
sistematizar melhor o trabalho de pesquisa no que tange à compreensão da
temática, Paula optou pela caracterização da violência de acordo com o tipo de
brutalidade a que são submetidos os pacientes das arbitrariedades denunciadas no
decorrer da narrativa. Todavia, entre os mais variados tipos, faz parte de seu
trabalho a violência causada por questões culturais e advinda do choque de culturas;
a violência causada pela maldade pessoal, baseada na mesquinhez, no egoísmo, na
possessividade e na crueldade; a violência involuntária, causada pelas dificuldades
cotidianas, pelo estado de miserabilidade; a causada por condições de poderio
econômico e político; e, ainda, a advinda do uso direto da força sica, para ela, a
concretização da violência moral.
Um exemplo de seu trabalho, no que tange à violência involuntária, é
destacado no conto Nhola dos Anjos e a Cheia do Corumbá”, no sentido de ilustrar
de que forma personagens, destituídos de qualquer perspectiva de vida, estão
fadados ao fracasso inevitável, sobretudo, pela incapacidade de vencer os
obstáculos que se apresentam em suas trajetórias. Assim acontece no conto em que
o drama universal das enchentes para usarmos a expressão de Olival (1998) é
observado: poucas são as chances de sobrevivência, e o desespero é motivado pela
rebeldia das águas, pela imposição da noite e pela incerteza da direção tomada pela
embarcação.
Quelemente notou que aquele esforço da velha estava fazendo
a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo
das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que
chegava, abraçando Quelemente com o manto líquido das
águas sem fim (...).
48
Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice
valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para
tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos
fuzilando numa expressão de incompreensão e terror
espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d’água
espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto,
desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente,
desamparando-o no meio do rio (Bernardo Élis, apud. Paula,
1991: 164-165).
De acordo com Paula, o ficcionista se preocupa em denunciar aqui a violência
involuntária, gerada pelas dificuldades cotidianas e pelo estado de miserabilidade
em que vivem os protagonistas, fazendo com que a necessidade de sobrevivência
norteie atitudes desesperadas, como com Quelemente, que tem em jogo sua vida, a
do filho indefeso e de Nhola, sua mãe. O amor de filho é imensurável mas, até que
ponto o de pai o é comparável?
É, portanto, esse envolvimento do autor com questões regionais que faz com
que se revele representativo da vida social goiana em várias dimensões, retratando
um universo em que aparecem as concepções de vida, de humanidade, de honra e
amor, bem como a generosidade e as reações de um povo diante das mais variadas
adversidades. o presentes também o misticismo e a interação com as forças da
natureza, compondo o quadro de luta pela vida, contra as intempéries do mundo
natural. A partir de suas abordagens, Bernardo Élis compõe quadros em que
reconstrói a realidade social do nosso Goiás rural, em que a figura dos fracos e
oprimidos aparece sob o domínio dos poderosos, temidos e respeitados em toda a
região.
A constante presença de fatos históricos torna sua obra muito peculiar,
fazendo com que a proposta de uma leitura sociológica nela encontre um
significativo documento de análise, que nos permite a apreensão de aspectos
relevantes da vida social goiana.
Há um curioso estudo que afirma ser grande a “Dimensão Simbólica em
Bernardo Élis”. Trata-se da análise de Mellazo (1990), assim intitulada e baseada no
49
pressuposto de que Bernardo Élis é mais do que o regionalista, como é comumente
caracterizado; é um revolucionário da literatura, muito pouco preocupado em se
prender aos cânones ou às formas estabelecidas. Para a autora, os detalhes, as
minudências sobre as personagens “urdidas com as tintas da simbologia”, é algo
muito acima do que um mero regionalista poderia produzir. A partir de uma seleção
de contos do autor, Melazzo pretende mostrar, em primeiro plano, a análise da obra
tomando como ponto de partida e eixo de apoio as “ciências esotéricas”, que
aparecem nas figuras e símbolos. Para tanto, contou com o auxílio da teoria
mandálica e cabalística, no sentido de desvendar os mais recônditos segredos
presentes nas entrelinhas do texto. Apesar das orientações não científicas ou
acadêmicas da autora, registro suas reflexões, apenas como curiosidades.
Com base na importância da dimensão simbólica da literatura de Bernardo
Élis, Mellazo analisa os mantras, os símbolos fálicos, os símbolos eróticos e, o mais
curioso, a análise do estigma do nome. Para ela, a magia dos nomes e sua
significação dentro do contexto da narrativa, além de intrigar, constituem ponto forte
em Bernardo Élis, que soube vincular nome e pessoa, de modo que,
(...) os nomes com significado de poder estão sempre em
personagens poderosas; nomes mutilados mostram
personagens mutiladas; nomes incompletos em pessoas
quebradas; nomes pejorativos em pessoas insignificantes;
personagens sem nomes relacionadas com pessoas sem
essência (id. ibid.: 87).
A pretensão de Melazzo é provar que a obra do escritor é, toda ela, “fruto de
uma relação oculta e misteriosa existente entre o escritor, o seu nome, a data de
nascimento, os números relacionados com a sua vida e vários outros fatores que
entrelaçam sua obra à sua existência e vice-versa” (id. ibid.: 87-88) são suas
palavras. À luz das ciências esotéricas”, ela o caracteriza como um ficcionista-
sociólogo, que transporta para sua obra o homem universal, sofrido, humilhado,
vilipendiado em suas angústias existenciais, suas dores e seus pesares; mas que,
ao mesmo tempo, interroga:
50
Seria intencional e premeditado seu comportamento literário
[quando] casa com exímia sintonia os símbolos com a narrativa
e as personagens? Ou teria sido ele inspirado pelos deuses ao
criar “Piano”, Rosa”, “Olaia”, e tantas outras personagens que
chegam até nós, leitores, como verdadeiros questionamentos
existenciais vividos pelo ser humano? (id. ibid.: 124).
Curiosidades à parte, recorremos a seus analistas com o objetivo de
compreender sua habilidade em recriar, a partir da percepção artística das
cidadezinhas do interior, cenas admiráveis, utilizando-se dos tons expressivos da
linguagem de Goiás. No intuito de evidenciar algumas questões desse tipo, tomamos
a liberdade de nos apropriarmos de um depoimento de Bernardo Élis, concedido ao
Professor Emílio Vieira por ocasião de seu estudo comparativo realizado em 1984 e
apresentado em Dissertação de Mestrado. Este mesmo trabalho foi editado em
2000, pela Editora da UFG, sob o título “O expressionismo em Bernardo Élis e Siron
Franco”.
O objetivo principal do estudo de Vieira foi levantar os traços convergentes da
obra literária bernardiana e da obra pictória sironiana, principalmente no tocante à
convergência concernente à visão de mundo e à concepção de personagens. Assim,
Vieira (2000) mostra a maneira curiosa como esses dois autores, cada um a seu
modo, aproximam-se da poética
14
expressionista em Goiás. Numa visão
comparativa, o autor limitou-se, neste trabalho, a uma investigação da ideologia
fundante da obra dos dois artistas, buscando, a partir dos temas centrais, analisar os
meios de expressão correspondentes e o tratamento da linguagem específica, com
vistas aos modelos analisados, não se voltando, pois, a uma explicação da evolução
estética da obra dos mesmos.
A aproximação pretendida limitou-se a trabalhos dos dois autores vindos a
público até 1984, momento da realização da pesquisa voltada para os elementos
gerais da arte expressionista, no que se refere à concepção imagética de um,
coincidente com a concepção literária do outro. O confronto dos modelos pretendeu,
14
De acordo com Pareyson, poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou
mesmo implícito no próprio exercício da atividade artística; ela traduz em termos normativos e
operativos um determinado gosto, que, por sua vez, é toda a espiritualidade de uma pessoa ou de
uma época projetada no campo da arte“ (op. cit.: 21).
51
segundo Vieira, demonstrar que ambos situam-se numa “mesma posição mental
ante a realidade social e humana de um determinado momento histórico de Goiás e
do Brasil, que é transportada do contexto regional para o palco universal do homem
e da vida” (id. ibid.: 13).
Baseando-se na premissa de uma mesma poética presente em ambos, pelo
menos até a elaboração de seu estudo e, a partir de uma leitura paralela da relação
texto-imagem, Vieira afirma com segurança: apesar das diferenças de linguagem, o
pintor “escreveu” com linhas e cores o que o autor “pintou” com palavras (id. ibid.:
14). Essa relação bastante interessante apontada por Vieira é reforçada por
Bernardo Élis, que fala por si mesmo:
Na minha infância em Goiás, a pintura ou desenho não eram
abundantes como hoje são, restringiam-se às bandeiras para
mastros ou a ex-votos. Embora me visse sempre rodeado de
papéis impressos, não eram freqüentes as gravuras (...). Mas a
pintura sempre me seduziu e eu sempre a tentei por alguns
modos (...).
Depois de 1928 conheci Otto Marques e comecei a tentar
pintura, juntamente com Colombino Augusto de Bastos, que era
ensinada por um professor holandês. Nessa ocasião mandei
buscar algumas bisnagas de óleo para pintura, as quais
chegaram apodrecidas e com isso foi por água abaixo uma
vocação. Na minha pintura usei muito o lápis de cor e posso
dizer que cheguei ao maior rendimento possível com esse
material. Aos poucos fui-me afastando dessa pintura e
voltando-me para a literatura, até que a partir de certo momento
a pintura passou a desagradar-me. Entendia que uma tela era
coisa estática, parada, logo decifrada em todos os aspectos e
daí por diante monótona. A literatura me parecia mais completa,
embora também me atormentasse uma dúvida (...).
Minhas primeiras produções literárias, e a partir delas muitas
outras posteriores, tinham na visualidade o seu principal
suporte. E reforçado pelo cinema, uma arte puramente visual
52
ao tempo, esse traço de minhas produções se acentuou. Minha
ambição era recriar uma história dinâmica, mas que fixasse
com nitidez pessoas, coisas e paisagens sertanejas, inclusive
retratasse o linguajar comum. Meu ideal tinha dois suportes: um
era reproduzir fielmente narrativas que ouvia, com a graça, o
calor, a emoção do contador vivo; dois, recriar (pintar
emocionalmente) as paisagens e pessoas como eu as via ou
interpretava. Assim, eu procurava visualizar sob minha
sensibilidade perfeitamente cada cena, como se as cenas
fossem unidades isoladas completas e, como no cinema, ia
encadeando-as depois. Esse encadeamento era um processo
de montagem cinematográfica, embora eu não soubesse que
cinema fosse feito assim. Chegava a ponto de usar a tesoura e
descolar certos blocos narrativos para o começo, o meio ou o
fim, em busca de um melhor resultado de surpresa ou fluxo de
consciência.
Além de minha tendência à visualização das cenas, no
momento, a primeira fase do modernismo foi essencialmente
pictória, como se pode constatar em poemas de Cassiano
Ricardo, Murilo Araújo e Murilo Mendes, Manuel Bandeira e
tantos outros, inclusive os prosadores de ficção. Com isso
quero chamar a atenção para o aspecto pictório de minha
literatura, pictório aliado a um ritmo veloz da narrativa. Hoje
entendo que as duas coisas resolviam minha dúvida: pintava
com palavras cenas dinâmicas, transfigurando-as de uma certa
forma.
Esse aspecto de transfiguração artística que sempre existiu em
minha literatura, dando-lhe um cunho surrealista ou
expressionista, eu atribuo à influência do simbolismo, escola
literária amada de meu pai, cujos cultores foram bastante lidos
por mim em meus verdes anos. Por força disso, minha mimese
é carregada de visões individuais que modificam o real
perseguido na pintura. Mais tarde, quando havia realizado
alguns poemas e pequenos contos, uma idéia me obsidiava.
53
Era pintar uma procissão do Senhor morto, em Goiás, à noite,
coisa que tentei em poema no Primeira chuva (...).
Grande parte de minha literatura é a descrição, a meu jeito, de
paisagens e coisas de Goiás e do Brasil. Vou tentar encarrear
alguns exemplos. Na elaboração de O tronco, como eu não
conhecia a região e a cidade de São José do Duro, verdadeiro
local dos acontecimentos, recriei mais ou menos a minha
cidade natal - Corumbá – cujos habitantes eram parecidos,
mesmo porque era numerosa a população baiana naquele
município. Apenas o sotaque e alguns vocábulos diferiam.
Na minha literatura as casas que aparecem refletem
geralmente a arquitetura de Goiás do Ouro (Corumbá,
Pirenópolis, Jaraguá, Bonfim, Niquelândia e Vila-Boa), que é
tipicamente regional e obedece sempre às plantas inclusas – tal
como em “O padre e um sujeitinho metido a rabequista”, em
“Dona Donana”, “Uma certa porta. Já nos contos “Talvez
uma vida, talvez uma lenda” e “Noite de São Lourenço”, a casa
que imagino seria apenas de um andar, mas casarão enorme,
que fui encontrar em Mambaí, onde funcionava a pensão local,
casa pertencente à família do finado José Francisco Mariano.
Cada porta de três metros de altura por metro e meio de
largura. Esse edifício me impressionou tanto que o cito no
depoimento que dei de minha viagem à região, em companhia
de Emílio Vieira.
Bernardo Élis
15
Notamos que a pintura sempre o seduziu. Embora tenha começado a “pintar”
com lápis de cor em papéis, sua atenção e esforço foram mesmo tomados pela
15
In: Vieira, op. cit.: 135-138.
54
literatura. Foi através dela que pintou” as mazelas da vida social, lhe parecendo
uma forma mais completa de expressão da vida e sofrimento dos povos do sertão
16
.
Não é nosso interesse aqui rever a literatura sobre o que vem a ser o gênero
artístico expressionista, nem tampouco o seu desenvolvimento histórico. Cabe-nos
sim, retratar que, como temática veiculada através da literatura, teatro, música,
cinema, artes visuais e figurativas, abrange a filosofia da angústia, da dor, da
solidão, do inconformismo humano diante da realidade nua e crua.
A história da arte apresenta como movimentos de características opostas o
expressionismo e o impressionismo, como constatamos em Graça Proença (2001).
Analisando a dicotomia “expressão versus impressão”, Vieira (op. cit.) ressalta que
embora essa pareça apenas uma colocação didática, a visão artística está, de fato,
ora voltada para o mundo do sujeito; ora para o mundo do objeto, ou mesmo para
ambos os mundos.
Diz-nos Vieira,
Pode-se compreender a arte em geral, bem como a sociedade
ou mesmo o indivíduo, segundo essas duas tendências opostas
que se complementam: a tendência da objetividade (a visão
para fora) e a tendência da subjetividade (a visão para dentro),
ora prevalecendo o lado racional, ora prevalecendo o lado
16
A categoria sertão é controversa. De acordo com Vicentini (2002), as reflexões sobre este tema
vêm se dando, historicamente, sob algumas coordenadas, a primeira delas sendo a espacial
demarcação cartográfica, dada a partir da carta do descobrimento, de Pero Vaz de Caminha, que
opôs litoral a sertão, este como espaço extenso, visto a partir do litoral. De acordo com Vicentini, é
com Euclides da Cunha e os regionalistas do século XX que “o sertão se insere nas questões
políticas como atraso, problema, conflito, lugar autônomo e auto-determinado, patrimonialista, a um
passo da questão econômica que o veria, a partir dos anos 1930, como fronteira de expansão e
fronteira econômica na Marcha Getulista para o Oeste” (id. ibid.: 219). Para Brito (2002), a
historiografia demonstra que na década de 1920 havia a demarcação de dois “sertões” brasileiros: um
que se modernizava, por causa da expansão cafeeira, das estradas de ferro e da imigração; e outro,
que, por distar da estrada de ferro, “permanece desligado do litoral e da modernidade” (id. ibid.: 233).
Assim, podemos de acordo com Cavalcante (2002), demonstrar que na perspectiva que orienta este
trabalho “o norte goiano, região identificada como sertão, define-se historicamente a partir da
oposição ao centro-sul de Goiás, que se construiu, inicialmente, pela oposição econômica: exploração
fiscal, carência de infra-estrutura viária para o escoamento da produção e dificuldades de
comunicação em relação à produção agropastoril predominante no sudeste goiano” (op. cit.: 265-
266). De acordo com Modesto Gomes (1998), “o sertão de Bernardo (...) não significa apenas miséria
e atraso, constituindo-se, acima disso concretamente – no palco em que transcorrem histórias onde
se acham presentes os dramas humanos, trabalhados com capricho artesanal e densidade poética”
(op. cit.: 25). Consultar também Pereira (1995); Szturm (1995).
55
emocional, embora um não anule o outro por completo (id. ibid.:
16).
O expressionismo está situado entre as poéticas da subjetividade e, assim,
implica uma oposição à proposta impressionista.
Expressão é o contrário de impressão. Impressão é um
movimento que parte de fora para dentro: é a realidade (objeto)
que se imprime na consciência (sujeito). Expressão é um
movimento inverso, que parte de dentro para fora: é o sujeito
que se exprime através do objeto (Argan, apud. Vieira, 2000:
17).
Segundo Vieira, a arte expressionista fixa-se, do ponto de vista estético, nos
detalhes das imagens, apresentando-os com uma deformação intencional, fugindo
ao ideal clássico de cópia do modelo natural ou de elaboração que sigam um padrão
de beleza perfeito, não encontrada no real, um conceito ideal não existente na
natureza, como o predominante na estética neoclássica dos fins do século XVIII e
nas três primeiras décadas do século XIX.
A estética da formação expressionista reflete o inconformismo,
a negação dos valores preestabelecidos e dos esquemas fixos:
procura, acima de tudo, despertar uma consciência crítica e
combater a passividade do fruidor da obra de arte. A poética
expressionista nasce de uma atitude perante a vida, que é de
revolta total. No plano artístico, é a revolta contra as regras
tradicionais da “arte burguesa”, no dizer de Leo Gilson Ribeiro,
contra um esteticismo impressionista, divorciado da condição
angustiosa do homem moderno (id. ibid.: 19).
É o extrato visual da obra bernardiana o aspecto investigado por Emílio Vieira
em comparação com as telas sironianas, porque Bernardo Élis, apesar de produzir
através da poesia, reflete dada potencialidade plástica que o identifica com a
estética expressionista. O autor afirma conviver em Bernardo Élis duas tendências
estéticas opostas, porém não contraditórias:
56
Uma impressionista, quando o autor se ocupa da descrição da
natureza, outra expressionista, quando o autor volta-se para a
caracterização dos personagens (...) a tendência impressionista
está para a descrição da natureza (percepção poética do
mundo), assim como a tendência expressionista está para a
consciência crítica dos fatos sociais (visão do antipoético) (id.
ibid.: 23).
Em sua obra, o homem se confronta constantemente com a natureza,
constituindo um plano natural que coexiste com o plano social ou individual, nos
quais se confronta com outros (grupos ou seres individuais), exposto, assim, a todas
as adversidades possíveis para a imaginação humana. Siron Franco reflete uma
ótica incidente em figuras que representam as classes dominantes em suas posturas
e marcas de exterioridade representativas do ridículo, da animalidade e da
agressividade que se manifesta em indivíduos deformados pela idéia fixa do poder e
para os valores do ter em detrimento do ser. Ele capta as marcas da violência, da
intolerância, do preconceito e da prepotência comuns aos seres humanos na luta
pelo poder e pelo status que o mesmo é capaz de proporcionar.
Não obstante a ironia do artista dirigida à sociedade burguesa,
é essa mesma sociedade consumista, ridicularizada, por
narcisista que é que consome o produto da arte que a reflete
e critica, sem sequer tomar consciência de si mesma. E essa
arte, também por estranha ironia, em vez de atingir seu objetivo
crítico, torna-se apenas mais um objeto decorativo que vai para
a parede dos burgueses, conseqüentemente assumindo mais
um valor de investimento que de expressão estética ou de
significação humana (id. ibid.: 27).
Consideramos muito apropriada a busca de uma aproximação entre autores
que se expressam em gêneros diferentes, porém recorrendo a uma linguagem de
semelhantes efeitos estéticos, como o trabalho de comparação elaborado por Emílio
Vieira entre Bernardo Élis e Siron Franco, que, em linhas gerais, desenvolvem os
mesmos temas, ainda que partam de distintos contextos. Nas palavras do autor, o
primeiro apresenta o homem numa dependência direta da natureza (campo) tima
57
de uma estrutura social injusta que o oprime. O segundo o focaliza numa relação de
dependência direta da indústria (pensa-se em cidade) e de uma superestrutura que,
conseqüentemente o deprime e o aliena. Não é à toa que se valem da estética
expressionista, que corresponde
à ideologia da denúncia e insurge contra o sentido da
decadência ou da degradação social: tanto Bernardo quanto
Siron acusam os sintomas da desumanização do homem e
fazem de sua arte um instrumento de protesto a serviço da
conscientização dos males que deformam as criaturas dentro
de uma estrutura social desequilibrada. (Desequilibrada, pela
inversão de valores, pela crise ética, pela crise do ser, que leva
á expoliação do homem pelo homem mal que se diz típico da
sociedade capitalista.) O que à primeira vista chama a atenção
para aproximação Bernardo-Siron (conseqüência de uma leitura
paralela das obras do escritor e do pintor), é o caráter pictórico
do discurso literário de um, e a intenção dialética do discurso
visual do outro. Quer dizer: tanto Siron produz palavras (e
dialética) numa potencial verbalização de suas imagens
pictórias, quanto Bernardo produz quadros (verdadeiras
pinturas) numa concretização visual de suas descrições, ambos
com a mesma força de ideologia e de signo em função do efeito
expressivo pelo impacto visual e emocional (id. ibid.: 109-110).
Ressalta ainda o autor:
O expressionismo naturalista da pintura de Siron corresponde
ao naturalismo expressionista da literatura de Bernardo, sendo
que ambos representam as mesmas imagens do ser humano
através de uma deformação intencional, mas implícita, que
reflete um juízo crítico. (...) Dentro de uma estrutura social
injusta, a denúncia dos males que recaem sobre os indivíduos
– a fome, a doença, o analfabetismo, o retardamento mental, a
sífilis, as deformações psíquicas, a degradação humana pela
degração social, enfim é o enfoque de Bernardo Élis. Siron,
por sua vez, interpreta a sociedade urbana, com defeitos
58
decorrentes de sua própria estrutura existencial, esfacelada
pelo esvaziamento ético, que afastou o homem de sua
humanidade; desequilibrada pelo afastamento do homem da
natureza, com o advento das máquinas, desviando-se do
curso de uma convivência harmoniosa em função da vida
competitiva; a ambição de poder, a destruição, a poluição
moral marcam os personagens sironianos: executivos,
diplomatas, religiosos que se escondem atrás de uma máscara
de hipocrisia e de um sorriso felino (id. ibid.: 111-113).
Não é nosso interesse esgotar a proposta de Emílio Vieira com essa
comparação. Longe de nós essa intenção, diante da riqueza apresentada por este
autor que, com tamanha criatividade apresenta a proposta de uma literatura em que
não se separem os atos do fazer artístico, no caso o ler do ver (o texto), como o ver
do ler (o quadro). Assim ele demonstra que o que o escritor pintou, o pintor
escreveu,
numa lógica em que um pinta com palavras e o outro escreve com linhas,
formas e cores, amparados por um mesmo contexto mental, comprometido com a
mesma realidade e condição humana.
O equilíbrio entre história e ficção em O tronco: a transfiguração do real
Em artigos publicados em 1956, hoje reunidos com outros na Coletânea
“Estudos Goianos” (1995), Gilberto Mendonça Teles faz referência à impressionante
maneira com que Bernardo Élis retrata o drama dos sertões goianos. Para ele, trata-
se de uma obra que, ao lado de Tropas e Boiadas (1950), assinala o valor da
literatura regional à época, pois esta “estava para a do Rio de Janeiro, assim como a
do Rio de Janeiro estava para a literatura européia” (id. ibid.: 192).
Teles (1995) observa que, desde Ermos e gerais (1944), um sopro de
entusiasmo invadiu a literatura goiana que, aos poucos, vai buscando espaços e,
entre seus representantes está Bernardo Élis que, apesar de ter começado na vida
literária com a poesia, se consagrou como romancista por encontrar na prosa o
elemento com que melhor se identificou para a recriação artística da realidade
59
goiana. O reconhecimento chegou com O tronco
17
(1956) mas, como ressalta
Francisco de Assis Barbosa (op. cit.), não foi em sua primeira edição, na qual o
romance passou despercebido.
A narrativa nos conta a história verídica de uma luta travada na antiga Vila do
Duro, hoje município de Dianópolis - TO, entre a família Melo, moradora da região, e
a força pública do Estado que, na época, era governado pelo desembargador João
Alves de Castro. Segundo Teles (1995), suas cenas realistas - nem sempre
agradáveis-, são reforçadas através da pronúncia típica da região limítrofe da Bahia
(id. ibid.: 194).
De acordo com Bernardo Élis
18
,
O livro é ficção, fundamentalmente ficção. Tanto que no
começo logo eu digo que é um romance, que ele tem tudo que
possa ter os personagens da região, mas eu não retrato
ninguém nem que tenha existido ou que existirão futuramente
ou que existam no momento. Então, é tipicamente ficção.
Agora, é baseado numa história que aconteceu de verdade,
mas essa história eu não dou maiores importâncias ao aspecto
histórico do fato, agora eu, para fazer a história, eu conversei
com mais de cem pessoas que na ocasião viviam. Eu
conversei com vários soldados e oficiais da polícia de Goiás
que tinham lutado na região e ainda estavam vivos e eu
manuseei os processos policiais, processos judiciais, os
processos que se abriram sobre o fato, no começo do
acontecimento e posteriormente ao acontecimento.
A idéia central é o seguinte: a minha idéia era que a classe
dominante brigue entre si, pode até entrar em luta armada, em
morticínio. Mas as pessoas que estão sendo castigadas são o
pessoal (...) é o povo, o povo é sacrificado, por exemplo, no
17
O tronco é, na verdade, um objeto. Um tronco de árvore cortado ao meio, com uma série de
buracos, onde na época da escravidão prendiam-se os escravos como castigo. É elemento
importante da história o tronco velho que tem sua função exacerbada no clímax da narrativa que se
passa no período pós-escravidão.
18
Depoimento retirado do making of do romance, disponível ao público acadêmico na Biblioteca
Central da Universidade Católica de Goiás. (Edição conjunta: Vice-reitoria de Assuntos Estudantis,
Vice-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa e Biblioteca Central /UCG, s/d.)
60
caso do Tronco, de um lado existem os jagunços que são (...) o
povo pobre. Estes jagunços eram em grande parte é..., o
diz, mas aqui podemos dizer, em grande parte desses jagunços
eram pessoas que trabalhavam no serviço de extração de
borracha da (...), da mangabeira..., mas com a crise decorrente
da produção de borracha do oriente, então a borracha no Brasil
perdeu preço inclusive (...) e esse pessoal foi então aproveitado
como jagunços e, do outro lado os soldados, que também
eram trabalhadores rurais, eram gentes pobres que tavam
lutando, então os dois lutaram entre si.
19
Contrariando Bernardo Élis, alguns relatos, colhidos em nossa pesquisa,
sugerem que não apenas o romance O tronco (1956) é muito colado no contexto do
qual é fruto. Depoimentos nos revelam que o autor, em muitas de suas criações
retrata pessoas que um dia existiram.
Foi “Apenas um violão” [contos, 1984], foi o único livro que eu
li a respeito dele. (...) Nesse livro, “Apenas um violão”, uma
das histórias, a gente lendo, porque eu vivia na casa do vovô
em Goiás, então a gente via a descrição, direitinho, do quintal,
da casa, do hábito da família, porque ele morou em Goiás
muito tempo, porque ele veio para estudar no Lyceu e ficou,
morou na casa do avô (Eliete Xavier Fleury Curado, em maio
de 2003 - Anexo I).
A entrevistada relata, ainda, que havia algumas pessoas, parentes ou
conhecidas da família, que, ao lerem as obras de Bernardo Élis, por vezes ficavam
furiosas por se perceberem e perceberem as contendas em que se encontravam
inseridas. Era, para muitas, um retrato camuflado de suas vidas. O debate entre
história e ficção é uma constante.
A característica de pesquisador (de pequenas e grandes histórias), tão
peculiar a Bernardo Élis, como sua própria fala demonstra, foi alvo de duras críticas
daqueles que querem perceber o texto literário como um documento histórico, já que
19
Os espaços designados por (...) são períodos em que, por questões de sonoridade, não
entendemos o que de fato diz o autor.
61
com muita freqüência a inspiração para suas obras veio da História e suas narrativas
demonstram sua habilidade de pesquisador ávido da História de Goiás. Em
comentário sobre o romance, por ocasião a uma homenagem a Bernardo Élis, em
1966, Teles (op. cit.) apontava a questão da imprecisão entre os limites entre o
fato e a ficção
20
:
Essa obra (...) foi um sucesso literário em nosso Estado, foi
por que suscitou polêmicas, principalmente por andarem (os
críticos da época) confundindo história e ficção, como se o
romancista, em vez de romancista, fosse historiador. (...) É
portador (o romance) de uma mensagem em que o material de
fundo político-social se reacende e se transforma numa
catarse literária, resultado de uma força dramática admirável e
terrivelmente humana (id. ibid.: 196).
Para Barbosa (op. cit.), O tronco (1956) marca Bernardo Élis como o
vanguardeiro do sertanismo goiano-mineiro. Com ele, segundo o autor, Bernardo
Élis foi capaz de transmitir com o realismo característico de sua narrativa, fatos
acontecidos em Goiás, nos idos de 1917 e 1918, quando o autor era ainda uma
criança.
A possibilidade de adaptação ao cinema veio logo cedo, na previsão de
Barbosa, na já referida apresentação à segunda edição do romance:
O Tronco daria um grande filme. E o roteirista não teria muito
trabalho na adaptação para a linguagem cinematográfica da
história rude e máscula, especialmente nas cenas do assalto à
Vila do Duro, a luta encarniçada que então se travou entre
contingentes da polícia e a horda de jagunços a serviço do
“coronel” destituído de repente das graças do governo estadual.
Tudo parece escrito para o cinema, com impressionante
precisão na marcação das cenas, sublinhando o autor os
momentos de suspense, como nos bons filmes de John Ford,
20
Esta homenagem a Bernardo Élis foi proferida em 1966, no Hotel Bandeirantes; publicada no
mesmo ano como artigo, em O Popular, encontra-se editada na Coleção “Estudos Goianos” (1995).
62
até o ponto culminante com o sacrifício das vítimas no tronco
(id. ibid.).
Ainda de acordo com Barbosa, o tronco, como instrumento de tortura utilizado
nos tempos da escravidão, continuava a servir no interior goiano retratado no
romance em questão, como demonstração da ausência de justiça social, pois esta
era encarnada na figura do “coronel”. O tronco (1956) aparece como representação
dos vários massacres não registrados em nenhum livro da história oficial. É na
literatura de ficção que, segundo o comentarista, o drama do sertão ganha espaço e
é revelado, “com seus humildes vaqueiros, jagunços, soldados, homens, mulheres e
meninos sertanejos mortos nas lutas dos coronéis e que o tiveram sequer uma
sepultura” , todos aos quais Bernardo Élis oferece o seu livro.
Pelo menos, os escritores do tipo de Bernardo Élis mostram
que são menos alienados a palavra da moda do que
os historiadores, a grande maioria dos historiadores omissos.
Refletindo a vida brasileira, a nossa literatura tem que ser
também, forçosamente, uma literatura de protesto (Barbosa, op.
cit.).
É, pois, a partir da evidência do substrato histórico que percorre a narrativa do
romance, que nos voltamos para O tronco (1956), com os olhos de quem quer ir
além. Nossa intenção está em resgatar as interconexões entre literatura, história e
sociedade configuradas no imaginário de Bernardo Élis e refletidas em seu discurso
literário. Como sabiamente observou Teles (op. cit.), não é preciso nos deter na
louvação gratuita da obra de Bernardo Élis. Ela existe por si mesma, é
Toda uma mobilização de recursos estilísticos modernos,
plasmados pelo escritor numa estilística individual, altamente
significativa, se apresenta como material real (...), é uma
realidade indestrutível, possui a sua coerência interna e as suas
potencialidades de beleza (id. ibid.: 197).
Sobre sua obra nos debruçamos no sentido de resgatar o material necessário
à análise proposta, tendo como objetivo mais amplo demonstrar a importância da
literatura como forma de construção da realidade, bem como demonstrar a
63
possibilidade de utilização desse caminho para o conhecimento dos fenômenos
sócio-culturais e, sobretudo, para o conhecimento da realidade regional, de forma a
contribuir para o entendimento de alguns aspectos da sociedade goiana e da região
em que está inserida. Além disso, nos possibilita a compreensão da dinâmica de
formas específicas de relações sociais configuradas na República Velha em Goiás,
de forma a avançar para o quadro nacional a partir da análise da inserção da região
nesse contexto, enfatizando suas singularidades.
Passemos à análise.
64
3
Literatura, história e sociedade: a trama em questão
A única coisa que devemos à História é a tarefa de reescrevê-la.
Oscar Wilde
65
Como definido na proposta, delineada no primeiro capítulo, a identificação
dos significados sócio-históricos da obra se fará a partir das personagens, que
atuarão como fios condutores de nosso diálogo com o contexto a que remete a obra.
Embora haja consciência de nossa parte de que a figura do coronel foi
durante o período histórico que fundamenta nossa análise a matriz de todas as
relações sociais, tudo estando “ao seu redor”, nos limites de seu poderio e influência,
optamos por utilizar a linearidade da obra para apresentar as personagens.
O coletor:
Logo ao início do romance, “uma indignação, uma raiva cheia de desprezo
crescia dentro do peito de Vicente Lemes à proporção que ia lendo os autos” (OT.,
1979: 03). A indignação da personagem que abre o romance revela, logo de início, a
trama central da obra: as manipulações em torno da abertura de um inventário,
decorrente da morte de Clemente Chapadense. Clemente havia assediado a mulher
do cunhado, o que provocou um conflito entre ambos. O conflito envolveu as
autoridades do lugar e culminou com a morte de Clemente, produzindo a abertura do
inventário que causara a indignação de Vicente:
Um homem rico como Clemente Chapadense e sua viúva
apresentando a inventário tão-somente a casinha do povoado!
Veja se tinha cabimento! E as duzentas e tantas cabeças de
gado, gente? E os dois sítios no município onde ficaram, onde
ficaram? Ora bolas! Todo mundo sabia da existência desses
trens que estavam sendo ocultados (...) A vila inteira, embora
ninguém nada dissesse claramente, estava de olhos abertos
assuntando se tais bens entrariam ou não no inventário (OT.,
1979: 03)
21
.
A constituição da personagem Vicente Lemes é minuciosa e, como Coletor
Estadual, ele demonstra firmeza no exercício de sua função. Vicente Lemes é
caracterizado como uma pessoa idônea, indo contra ao modo como os bens
estavam sendo fraudulentamente arrolados no inventário. Para ele, “o caminho a
21
Como já salientamos, utilizamos a edição do romance, datada de 1979. Cada vez que
aparecerem os recortes da obra, serão designados por OT., seguindo-se as respectivas páginas.
66
ser seguido era como preceituava a legislação”. A personagem assume uma posição
frente ao inventário e lavra seu despacho: exige o arrolamento dos bens do
inventariado pelo inventariante, “sob pena de a Coletoria Estadual o fazer”. Nesse
primeiro momento, o pensamento do coletor estava nas conseqüências que
poderiam advir de sua exigência no inventário. Como coletor, ele acreditava que sua
obrigação era apontar os bens não apresentados por Artur Melo, o inventariante. Era
preciso averiguar se Artur não estava querendo lesar os órfãos e a viúva (esposa de
um dos capangas de Artur Melo que, com seu pai, Pedro Melo, representava o poder
na região).
Em outro momento da narrativa, o pensamento de Vicente volta a tempos
passados e traz à tona os motivos da rixa entre ele e seu primo Artur. Vicente Lemes
e Valério Ferreira, o juiz de Direito, eram dois “homens de valor” do governo,
representando a oposição ao poder dos coronéis Melo na vila do Duro. O coletor é
primo de Artur e a rixa que eles mantêm nasceu quando Artur era Juiz Municipal e,
no exercício de seu cargo, nomeou Vicente escrivão do Judicial e Notas. Artur
solicitara a Vicente que desse sumiço ao processo de inventário do gado de Norato.
Sentindo a resistência de Vicente, uma vez que o gado de Norato seria
fraudulentamente considerado de Tozão, Artur ressalta: “Mas ninguém fica sabendo,
homem de Deus. Aqui tem lá alguém que entende dessas coisas!” (OT., 1979: 08). A
Vicente parecia um absurdo o hábito dos Melo roubar o povo, valendo-se dos cargos
públicos, de maneira que o inventário era o meio legal de apropriação dos bens
alheios, prática comum na região.
Para Vicente, a legislação deveria ser seguida, pois acreditava que a lei
deveria ser cumprida, fazendo-se a justiça. O gado de Norato some misteriosamente
e Vicente ameaça processar Tozão, sendo aconselhado do contrário pelo primo
Artur, de quem Tozão é cunhado. Vicente, desmoralizado e arrependido de ter
aceitado o cargo, parte para Conceição do Norte, uma vez que ele não conseguira
acabar com as roubalheiras do lugar. É de lá que Eugênio Jardim o traz de volta
para o Duro, para fazer frente aos Melo. O confronto entre Vicente e os Melo, remete
à promiscuidade entre o público e o privado que marca a história do Brasil desde
suas origens.
67
Em “Raízes do Brasil” (1997), Holanda procura demonstrar aspectos
peculiares da constituição da sociedade brasileira, voltando ao legado da
colonização portuguesa em nossa formação econômico-social. O autor evidencia a
importância que o círculo familiar assume em determinados períodos da história
política brasileira, demonstrando que, quando a idéia de família se assenta em
bases muito sólidas, principalmente quando a família é do tipo patriarcal, emergem
restrições à formação de uma sociedade segundo padrões atualizados. O Estado é,
então, conduzido pelos interesses particulares de alguns em detrimento dos
interesses objetivos, característicos do Estado Burocrático, tal qual é caracterizado
por Max Weber (1991). Em O tronco, o narrador revela o Cartório e o Correio
funcionando na mesma casa onde “para que o povo não bulisse com os papéis, o
escrivão Cláudio botou um gradil de madeira: para dentro do gradil somente ele, o
juiz e os amigos passavam” (OT., 1979: 04). Assim, a trama revela os interesses
privados se sobrepondo à lei e se apropriando do espaço público.
De acordo com Holanda (id. ibid.), podemos acompanhar, no
desenvolvimento da história brasileira, o predomínio de vontades particulares,
contrapondo-se a uma organização social que deveria pautar-se pela
impessoalidade. A ordem familiar, que deveria ser abolida em sua forma pura, a
contribuição de nosso país à civilização: a cordialidade.
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes
tão gabadas por estrangeiros que no visitam, representam,
com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida,
ao menos, em que permite ativa e fecunda a influência
ancestral dos padrões de convívio humano, informados no
meio rural e patriarcal (id. ibid.: 146-147).
Nessa perspectiva, é a constituição de um fundo emotivo que caracteriza o
“homem cordial” e não suas boas maneiras ou civilidade. Para Holanda (id. ibid.), o
povo brasileiro foge ao ritualismo da vida social, expressando assim a falta de
disciplina para envolver sua personalidade e integrá-la ao conjunto social.
Essa reflexão nos remete à análise que o gaúcho Raymundo Faoro faz do
período da história brasileira que estamos analisando. “Os donos do poder” (1987)
68
constitui-se em uma obra considerada fundamental para a compreensão da
formação sócio-política brasileira. Pela importância e alcance de suas concepções,
constitui-se leitura obrigatória para os que se dedicam ao estudo crítico e
aprofundado da realidade histórica brasileira. Nesta obra, Faoro se refere a uma
persistência secular da estrutura patrimonial. Trata-se do predomínio tradicional, que
se configura no patrimonialismo pessoal e, quando tem origem o “estado-maior”
22
,
se converte em patrimonialismo estatal.
O árbitro de toda a situação seria o que Faoro denomina “estamento
burocrático”, conceito por ele criado e norteador de toda sua análise. De acordo com
ele,
Há a burocracia, expressão formal do domínio racional, própria
ao Estado e à empresa modernos, e o estamento burocrático,
que nasce do patrimonialismo e se perpetua noutro tipo social
capaz de absorver e adotar as técnicas deste como meras
técnicas (id. ibid.: 738).
Segundo essa concepção, o domínio patrimonial constituído pelo estamento
burocrático apropria as oportunidades econômicas de desfrute de bens, de
concessões e cargos. Nessa interessante acepção do termo, o estamento
burocrático não é impenetrável às mudanças. O patrimonialismo, possuidor de
caráter flexível e estabilizador, se amolda perfeitamente às transições e mudanças,
concentrando no corpo estatal os mecanismos de
intermediação, com suas manipulações financeiras,
monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle
do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama
que vai da gestão direta à regulamentação material da
economia. (...) Como realidade, e, em muitos momentos, mais
como símbolo do que como realidade, o chefe provê tutela aos
interesses particulares, concede benefícios e incentivos,
22
O conceito de estado - maior” é utilizado por Faoro para designar o comando chefe, que se
estende sobre o território, subordinando muitas unidades políticas; em contraposição a um governo
sem um quadro administrativo, onde a chefia dispersa assume caráter patriarcal, identificável no
mando do fazendeiro, do senhor de engenho e dos coronéis.
69
distribui mercês e cargos, dele se espera que faça justiça sem
atenção às normas objetivas e impessoais (id. ibid.: 737-740).
A narrativa de O tronco demonstra a existência de algo comum no Brasil,
imortalizado nas discussões de Da Matta (1990), que é a distinção entre pessoa e
indivíduo. O sistema de pessoas, de que trata Da Matta, é um universo onde
encontramos medalhões, figurões, ideólogos... as “pessoas-instituições: aqueles que
não nasceram, foram fundados”; ou mesmo, como nos diz Faoro: “os donos do
poder”. A constituição de um sistema de pessoas reforça a noção de hierarquia, pois
o mundo pertence às superpessoas, que formam um grupo superior englobando os
inferiores denominados de “povo”, cuja vontade é a vontade abrangente das
pessoas que falam por ele. Dessa forma, as “pessoas” se acham na
responsabilidade de conduzir o sistema social, de dirigir o mundo e nele introduzir as
ideologias que deverão modificá-lo.
Assim, Da Matta considera que o sistema de relações pessoais, tal qual as
familiares, em Holanda (op. cit.), institui-se como um dado estrutural da nossa
sociedade, embora ele reconheça que a vertente individualista também exista em
nosso aparato legal, pois as leis foram feitas para os indivíduos e em função da
igualdade básica de todos os indivíduos perante a lei. O que Da Matta resume
parodiando um célebre ditado muito conhecido: “aos indivíduos, a lei; às pessoas,
tudo!”
É através dessa distorção das regras universalizantes que, segundo Da
Matta, passa-se de “cidadão brasileiro” ou de “indivíduo” a alguém com certo
reconhecimento. Essa é uma situação complexa, constituída por uma separação real
e concreta onde, por um lado, tem-se leis gerais e impessoais, aplicadas aos
indivíduos e, por outro, um tratamento pessoalizante, destinado àqueles definidos
como “especiais” e merecedores de consideração.
Percebemos que as noções de indivíduo e de pessoa são construtos sociais,
mas cada qual exprime um aspecto singular da dinâmica do universo social
brasileiro. Trata-se de duas formas diferentes de conceber a realidade e de nela agir,
70
sendo possível, através da contradição entre igualdade e hierarquia, passar de um
estado a outro, ou seja, estabelecer a pessoa onde antes só havia um indivíduo.
Eis o dilema brasileiro que pode ser observado não apenas no período da
Velha República dos coronéis, mas em toda a história do país: por um lado temos
leis universalizantes, impessoais e igualitárias que representam um sistema voltado
para o indivíduo; por outro, temos, em situações concretas, a permeabilização desse
sistema “legiferante” pelas relações de poder e pessoalidade que, segundo Da
Matta, tomam a vertente do “jeitinho”, da “malandragem” e da “solidariedade” como
eixo de ação. Vicente Lemes, o coletor, sofre as tensões que esse dilema envolve.
Vicente Lemes olha para fora de sua casa e se depara com sua dura
realidade: se aceitasse o rol de bens tal qual apresentado por Artur ele o denunciaria
como no caso da boiada; se exigisse o cumprimento da lei ele o denunciaria como
perseguidor. O interesse maior era desmoralizá-lo, obrigá-lo a deixar a vila e, em seu
lugar, colocar gente de sua confiança. O drama da personagem revela a dificuldade
em executar os códigos legais numa terra onde o poder dos coronéis se revela mais
forte do que o poder do Estado, tirando do caminho, a qualquer custo, os empecilhos
que interferissem na realização de seus desígnios.
O coronel:
As reflexões de Vicente acerca de sua realidade o levam até a janela, de onde
olhar para o Largo, onde funcionava o Cartório, situando a trama em um lugar:
Calma, a vila constituída pelo conjunto de casas do Largo. A
manhã de maio, fria e neblinosa, estendia-se por sobre o
povoado de casinhas caiadas de branco, por trás das quais
erguiam-se tufos verdes de laranjeiras, abacateiros,
jenipapeiros, bananeiras e outras plantações. Miúdo, o
povoado minguava mais naquela quadra do ano, com os
habitantes pelas fazendas e as casas fechadas exalando
tristeza e abandono (OT., 1979: 03-04).
71
Em O tronco, embora a narrativa não localize um tempo na história, a vila é
descrita em detalhe sob a neblina de uma manhã de maio, localizando um lugar no
mundo rural. O lugar representa uma vila pica, lugarejo pequeno, com as casas
organizadas a partir do Largo que é, em si mesmo, o palco para os acontecimentos
do lugar: todos olham para a praça, centro dos acontecimentos que movem a vida
da vila. O olhar de Vicente também localiza as origens da prática de fraudes nos
inventários:
Do conjunto, destacava-se na esquina a casa do Coronel Pedro
Melo, com a calçada alta, o aspecto imponente (...) A modo que
solto no meio do Largo, o sobrado do Coronel Pedro Melo,
misto de prisão e depósito de farinha. Sim. A casa do coronel, o
sobrado do coronel, - pensou Vicente, que se lembrou que
também no inventário havia a vontade do coronel (OT., 1979:
04).
Podemos avaliar a importância e o poder do coronel Pedro Melo na vila do
Duro a partir do caso Vigilato, narrado em flashback. O coronel implicara com o
sobrinho Vigilato e, para obrigá-lo a ir embora da vila, “ordenava aos cabras que
fossem fazer suas precisões no terreiro dele, desrespeitando, assim, sua mulher,
‘uma senhora direita’” (OT., 1979: 09). O sobrinho, que não gostou do acontecido, foi
tirar satisfações com o tio:
- Ô velho cachorro! Agora eu estou lá, manda de novo. Vamos
ver se você tem topete para isso, trem à-toa. O velho não
gostou da má-criação do sobrinho e avançou para ele que,
mais esperto, passou-lhe uma rasteira, botou no chão, montou
a mão na vasta barbaça branca do coronel: deu-lhe muitos
safanões (OT., 1979: 10
)
Ao olhar para o largo, Vicente relembra que próximo da calçada alta da casa
do coronel Pedro Melo até havia pouco existia uma alavanca e então ele se recorda
do caso de Vigilato. O coronel Pedro Melo, que não admitia desaforos, adoeceu com
o acontecido “uma úlcera lhe roía a pacuera” - e prometeu vingança ao sobrinho
como condição de sua cura. Vigilato era agente do Correio e, vez por outra, bebia
72
sua cachaça e se enchia de lirismo. Certo dia, aproveitando-se de uma bebedeira de
Vigilato, o tio arma com seus capangas Tito, Resto-de-Onça e Aleixo, uma
emboscada. Muito de sutil os três homens esperaram o bêbado; e quando ele
encostou na calçadona alta do tio para soltar a sua cantiga, foi um vup e ram;
meteram-lhe o porrete no piolho” (OT., 1979: 10). Não satisfeito, o coronel e os três
companheiros foram até a casa do sobrinho e atiraram o defunto aos pés da viúva.
Ninguém houve que se manifestasse diante do barulho no meio da noite. Mesmo a
viúva teve “terror de chorar e esse choro despertar a ira do poderoso senhor” (OT.,
1979: 11).
A notícia do acontecido chegou ao sítio do juiz Valério, não se sabe pela boca
de quem, que ninguém queria se envolver “em caso de coronel”. Outra dificuldade foi
enterrar o defunto: ninguém se arriscava até que o juiz, sozinho, conseguiu dois
homens pobres para conduzir o defunto até a cova, com a condição que lhes
dessem intimação de autoridade e os acompanhasse até o local. Nem mesmo o
“fazedor de caixão” quis trabalhar para o inimigo do coronel e o defunto foi, então,
enterrado envolto numa colcha.
A postura das personagens em não se envolver, direta ou indiretamente, com
o fato reflete o silêncio da vila diante da autoridade suprema do coronel, autoridade
que desafiava a lei, sem medo, sentido-se a própria lei. O coronel Pedro Melo além
de publicar o feito mandou fincar uma alavanca de ferro de mais de um metro de
comprimento no lugar onde caíra o morto. “É pra exemplar cabra maludo. (...) É pra
ninguém desrespeitar barba de velho!” – dizia ele.
O coronel Pedro Melo é uma personagem rústica do sertão do norte de Goiás
lutando contra o poder instituído legalmente já que, ali, ele é o poder. Na narrativa, a
fraude no inventário decorre de suas determinações. A caracterização da
personagem situa a trama do romance em um período da história do Brasil
identificado pela historiografia como Velha República.
Nesse período, a nação estava completamente dividida, reflexo da disputa
política que levara os partidários de Deodoro, como Benjamin Constant, Quintino
73
Bocaiúva e Floriano Peixoto a digladiarem-se em uma disputa apaixonada, que
girava em torno de pontos aparentemente irrelevantes. Não era somente uma
simples disputa de poder; era a luta pelo estabelecimento de uma versão oficial para
o 15 de novembro, uma acirrada luta pela versão dos fatos.
O final do Império e o início da República foram peodos marcados por
inúmeras contradições. A base principal do governo monárquico era a aristocracia
rural, na qual se destacava o setor dos senhores do açúcar que dominavam os
“postos - chaves” da administração e das forças armadas. O governo imperial se
apoiava nessas forças políticas e econômicas enquanto que o governo provisório
não contava com nenhum ponto de apoio. As próprias forças armadas estavam
divididas e o povo não fora nem consultado.
Uma vez consolidado, o novo regime ficou conhecido pela “Política dos
Governadores” promovida por Campos Sales, que supunha um comando dos
governadores de São Paulo e Minas Gerais nas grandes decisões nacionais, a
começar pela indicação dos candidatos à presidência. De acordo com Schwartzman
(1975), é clássica a interpretação do sistema político da Primeira República em
termos do “eixo café com leite”, das oligarquias de Minas e São Paulo. Para o autor,
parece certo que setores paulistas controlavam, efetivamente, a maioria dos
mecanismos econômico-administrativos relacionados com os interesses do café.
O acordo de Taubaté inicia uma política econômica nacional a respeito do
produto – foi uma iniciativa paulista. A primeira instituição governamental criada para
controlar este setor da economia foi o Instituto Paulista de Defesa Permanente do
Café, que controlava o fluxo do produto para o Porto de Santos e financiava o
armazenamento do excedente. Dessa política resultam o predomínio do poder
executivo nas esferas do governo nos âmbitos municipal, estadual e federal e a
consolidação do poder das oligarquias. Assim, as oligarquias possuíam autonomia
política para disputar o poder em seus respectivos estados, garantindo a eleição dos
candidatos da situação.
Embora não se possa afirmar que a tão conhecida figura do coronel tenha
desaparecido com as novas articulações políticas do período pós-30, o coronelismo
74
teve o apogeu de seu desenvolvimento, como instituição política, nos anos da
chamada República Velha. Em Goiás, de acordo com Palacín & Moraes (1994), as
manifestações republicanas foram tardias e praticamente inexpressivas, devido
mesmo à estrutura sócio-econômica e cultural do Estado de Goiás à época, de
forma que a transformação do regime monárquico em republicano ocorreu sem
muitas dificuldades. Com uma situação geográfica desfavorável, devido à falta de
meios de comunicação, a notícia da Proclamação da República chegou aqui a 28 de
novembro, por carta. O povo, que não participava da vida política, acolheu a notícia
com indiferença, que a idéia nada representava para ele. Nada mudou em sua
vida, mas os políticos continuaram a baixar decretos em seu nome.
Os políticos se surpreenderam e, após a confirmação da notícia, iniciou-se a
corrida das diferentes facções para assegurarem sua parcela de poder na nova
ordem. O estado de Goiás se tornou palco de uma acirrada luta de oligarquias rurais
que disputavam a permanência e/ou a ascensão ao poder. Inicialmente, destaca-se
na cena goiana os Bulhões, que dominaram o Estado desde a proclamação da
República até 1912, quando os Caiado assumem o poder, nele permanecendo até
1930.
À época, os governantes eram considerados os “donos do poder”, e as lutas
pelo poder político refletiam, em parte, a conjuntura nacional. “Não se deve pensar
que estas crises políticas eram próprias apenas de Goiás. A turbulência política
esteve presente em quase todos os Estados da Federação...” (Palacín & Moraes,
1994: 84). Em Goiás formaram-se importantes, fortes e antagônicos blocos,
marcados por muitas crises políticas.
Para Palacín & Moraes (id. ibid.), a Proclamação da República e as três
primeiras décadas do século XX não modificaram a situação de atraso em que Goiás
se encontrava desde a decadência da mineração. O Estado continuava isolado, com
pouca povoação, quase integralmente rural e produzindo para a subsistência. Como
os centros urbanos eram de muito pouca significação, a população era quase que
integralmente rural, disseminada nas grandes fazendas e sítios, produzindo para a
subsistência, que a produção era local e para o consumo. Era parco o comércio
75
interno e pequena a circulação monetária. Em suma, o Estado continuava fora da
corrente do progresso, ou seja, da economia de mercado.
Nas três primeiras décadas do século XX, continuou predominando, em todo
o Estado, a grande propriedade rural ou como é conhecido: o latifúndio. O tipo de
economia existente favorecia a grande fazenda que podia obter algum excedente
em dinheiro, de modo a comprar coisas necessárias à vida no campo e não
produzidas na própria fazenda. Aqui residia o poder do coronel, que mandava nas
cidades, mas tendo o sustentáculo de seu poder no mundo rural.
Victor Nunes Leal (1975) é, entre os clássicos da historiografia, considerado
um pioneiro nos estudos do coronelismo. Esse autor demonstra que, embora as
conseqüências do fenômeno se projetem sobre toda a vida política do país, sua
atuação se dá no reduzido cenário local.
Seu habitat são os municípios do interior, o que equivale a
dizer os municípios rurais, ou predominantemente rurais; sua
vitalidade é inversamente proporcional ao desenvolvimento
das atividades urbanas, como sejam o comércio e a indústria.
Conseqüentemente, o isolamento é fator importante na
formação e manutenção do fenômeno (id. ibid.: 251).
O coronelismo, segundo Leal, alcança sua expressão mais aguda na Primeira
República, demonstrando de certa forma a incursão do poder privado no domínio
público. Trata-se de um poder privado decadente, que não pode ser identificado ao
patriarcalismo do período colonial, mas que encontra no coronelismo uma maneira
de conservar seu conteúdo residual.
Para o autor, o coronelismo é um “(...) sistema político [que] é dominado por
uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público
fortalecido” (id. ibid.: 252). A existência de tal compromisso presume, todavia, certo
grau de fraqueza de ambos os lados. Esse compromisso assume, para o autor, a
característica principal do coronelismo: “(...) uma troca de proveitos entre o poder
público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes
76
locais, notadamente dos senhores de terras” (id. ibid.: 20). Como características
secundárias ao sistema, Leal apresenta aquilo que poderíamos chamar de suas
conseqüências mais diretas: (...) entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o
falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais” (id. ibid.: 20).
As relações de compadrio também são muito comuns nesse sistema de
mando e subordinação que possui vida própria. São muitos os compadres do
coronel e esse nculo à medida que ameniza a hierarquia e suaviza as distâncias
sociais e econômicas entre o chefe e os chefiados, cria também uma espécie de
fidelidade, explicada apenas pelos ideais de que “sempre fora assim”. São atitudes
de dever sagrado, amoldadas pela tradição e pelos inúmeros favores devidos àquele
que “sempre paga as contas”.
Percebemos que é o sistema eleitoral manipulado pelo coronel que permite
compreender o movimento de todo o sistema: uma intrínseca ligação entre os
governos federal, estadual e municipal, baseada em sólidas manobras eleitorais
comandadas pelo mandonismo local dos coronéis a eles aliados. O ‘voto de
cabresto’ é o elemento primário desse tipo de liderança e torna-se uma característica
fundamental do regime republicano em sua primeira fase no Brasil.
(...) Dentro da sua esfera própria de influência, o “coronel”
como que resume em sua pessoa, sem substituí-las,
importantes instituições sociais. Exerce, por exemplo, uma
ampla jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e
desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos,
que os interessados respeitam (id. ibid.: 23).
Como demonstra o historiador, os chefes políticos municipais sempre
gozaram de uma ampla autonomia “extralegal” na falta da autonomia legal. A partir
disso e em cumprimento ao compromisso do coronelismo, os correligionários locais
obtinham a chamada “carta-branca” do governo que fazia vistas grossas aos chefes
locais, inclusive no que tange às violências, dentre as mais variadas arbitrariedades.
Estava em jogo o incondicional apoio aos candidatos do governo nas eleições
estaduais e federais.
77
Faoro (op. cit.) salienta que o coronel antes de ser um líder político, é um líder
econômico, não necessariamente fazendeiro, como se acredita sempre. Mas que
sempre se lhe reconhece um poder através de um pacto não escrito e também não
firmado por todos os que são por ele atingidos. Não se trata, segundo o autor, de um
fato novo; nova é sua roupagem.
O coronel recebe seu nome da Guarda Nacional, cujo chefe,
do regimento municipal, investia-se daquele posto, devendo a
nomeação recair sobre pessoa socialmente qualificada, em
regra detentora de riqueza, à medida que se acentua o teor de
classe da sociedade. Ao lado do coronel legalmente sagrado
prosperou o “coronel tradicional”, também chefe político e
também senhor dos meios capazes de sustentar o estilo de
vida de sua posição (id. ibid.: 621-622).
Percebemos que o compromisso baseado na troca de proveitos de que fala
Leal (op. cit.), é retomado por Faoro, que demonstra como o apoio do governo
estadual pode fazer coronéis também em outras categorias que o as territoriais.
Assim, tem-se na história, tal posição ocupada por advogados, médicos,
comerciantes e até padres. Mas também é possível encontrar essas características
reunidas em um coronel, o que importa é o tipo e a intensidade da solidariedade
para com o governo.
Na narrativa de O tronco, os coronéis, conhecidos por transgressões diversas,
manobravam os fatos, deturpavam os acontecimentos em proveito próprio,
exercendo o poder sem limites legais. Como o poder e o prestígio são passados de
geração a geração, Pedro Melo, velho, confiava na representação de seu filho
Artur e a ele tudo participava. Inconformado com as represálias de Vicente e Valério
ele, que se considerava, juntamente com seu filho, o dono de tudo, sentia-se
humilhado por ser governado. Eles eram quem detinham capacidade de governo,
eles construíram tudo, lutaram pela melhoria da região. Artur ali era tudo. Estudou
muito e aprendeu várias funções: “era o médico, o farmacêutico, o advogado, até o
padre. Padre, muito bem: padre, porque Artur descobriu aquele tal de espiritismo,
78
que era religião. E Artur era médio, como chamava o padre dos espíritas” (OT.,
1979: 41).
Como o poder do coronel é derivado do prestígio pessoal e de sua honra
social, tradicionalmente reconhecidos, não é comum ser questionado. Ele utiliza com
freqüência seus poderes na esfera pública para fins particulares e mistura, por
muitas vezes, a organização estatal com sua vida privada e bens próprios.
O trabalho de Campos (1987), pioneiro no âmbito da história regional, é
importante sustentação teórica para a interpretação do fenômeno em Goiás. Em sua
perspectiva, a manutenção do atraso, no caso de Goiás, é vista como um projeto de
dominação política. Ele demonstra que é a manutenção do atraso pelos grupos
dominantes no cenário político goiano que lhes permitia a manutenção do poder. E
como ele mesmo conclui, sua pretensão foi a de demonstrar como, em decorrência
de uma situação de pobreza, de atraso e de isolamento em que se encontrava, o
Estado de Goiás foi politicamente inexpressivo na configuração do poder nacional”
(id. ibid.: 83).
De acordo com Campos (1987), o coronelismo, como fenômeno político que
expressa a dominação econômico-político-social de uma região por um chefe
político, não faz parte de um processo exclusivamente goiano. Em quase todos os
Estados do Brasil, temos referências dessa forma de exercício da dominação. Como
para Palacín (1990), o arranjo coronelístico, segundo Campos, era formado
nacionalmente pelo tripé: chefia política municipal, situacionismo estadual e governo
federal. Essa forma de governo passou a ser um dos traços característicos da
Primeira República, conhecida também como a “República dos Coronéis”.
Não foi objetivo de Campos caracterizar as oligarquias presentes no período e
sim tomar como dada a existência delas e demonstrar que a política era, nesse
período, restrita a uma pequena parcela da população que controlava todo o
processo eleitoral, bem como os cargos políticos.
No caso de Goiás, o coronelismo teve uma face específica devido ao atraso
e à pobreza em que o Estado estava mergulhado. O coronel goiano o se
79
assemelha, segundo Campos, a um tipo de coronel burocrata e nem ao típico
coronel de regiões frágeis econômica e politicamente, pelo fato de, apesar do atraso,
haver aqui um partido político bem estruturado. O compromisso coronelista, em
Goiás satisfazia a política estadual e as partes envolvidas, já que sem a intervenção
do Governo Federal, devido ao seu atraso e isolamento e devido à sua
inexpressividade na configuração republicana nacional, o Estado estava em
condições de auto-gestão.
O trabalho de Machado, fundamentado em Campos, nos mostra que ao se
falar no atraso de Goiás “está implícito um conceito fundamentado no
estabelecimento de paralelos com outras regiões do país (as não atrasadas ou
desenvolvidas)” (1990: 36). Em O tronco, os meios de transporte, a distância entre
vilas, entre a vila do Duro e a capital do Estado, sustentam essa idéia. O Juiz
Municipal, por exemplo, morava num sítio a duas léguas da Vila e quando vinha ao
povoado para dar audiência: “Chegava, apeava, largava a mula roendo milho no
cocho do quintal e vinha para o despacho” (OT., 1979: 04). A trama revela meios de
transporte próprios de regiões tradicionais, não modernas ou, como diria Campos,
atrasadas.
Os laços de sangue, comuns na narrativa, também são reveladores das
condições de isolamento do local. Vicente, consciente da necessidade de levantar-
se contra o tio e o primo, era tolhido pelos laços de parentesco.
Ele era casado com uma sobrinha do velho; era, por seu turno,
sobrinho da velha Aninha, mulher de Pedro Melo; por cima de
tudo, Vicente e Artur eram casados com duas irmãs. Aqueles
laços de sangue detinham a mão dos Melos e deles sabiam
utilizar velhacamente os políticos da longínqua Capital (OT.,
1979: 17).
Percebe-se que a distância da Capital, ou de outro centro populacional,
favorecia o casamento entre parentes, que era sobretudo utilizado para manobras
políticas na região do Duro. Em flashback, a recordação de Vicente acerca do caso
da boiada ilustra bem o posicionamento do literato diante de tais questões. Vicente,
80
por influência de Artur deixara de cobrar impostos sobre uma quantia de cabeças de
gado que passara para a Bahia.
Dois meses depois Vicente recebia um oficio brabo da
Secretaria da Fazenda de Goiás. O secretário exigia maior
severidade na repressão ao contrabando de gado, pois
recebera denúncia de que Vicente deixara de cobrar imposto
sobre metade da boiada exportada para Barreiras por fulano
de tal, no dia tal. Junto do ofício, um bilhete confidencial: o
autor da denúncia tinha sido o Deputado Artur Melo (OT.,
1979: 19).
O parentesco, nesse caso, é lembrado pelos poderosos, sobretudo quando
eles têm alguma necessidade, quando visam algum favorecimento. Nesses casos,
para Vicente, em algumas situações o “primo”, expressado com eloqüência nas
conversas, era mau sinal.
Ao ser procurado novamente por Artur, para um feito igual ao da boiada
anterior, Vicente se nega relembrando o primo do acontecido. O isolamento e a falta
de recursos da região são mostrados no ato em que o coletor reflete sobre o auto de
contrabando a ser lavrado pelo não pagamento do imposto sobre as reses.
(...) Levaria dois meses para chegar lá [em Goiás], dois para ser
informado, mais dois para retornar ao Duro. Vicente ia
requerer força para garantir a execução. Os soldados viriam de
Goiás a pé, gastando cerca de três meses ma marcha. ‘Uma
besteira o diabo daquele auto’ pensava Vicente (OT., 1979:
20).
Isso ilustra a caracterização de centro e periferia estabelecida nacionalmente,
expressa por Campos a partir da diferenciação entre autonomia positiva e negativa.
Os estados com força e prestígio que constituíam basicamente o centro hegemônico
do poder na federação brasileira, possuíam autonomia-positiva; os mais pobres,
“com pequena arrecadação de impostos de exportação e com força pública
insignificante e sem equipamento” possuíam-na do segundo tipo: negativa. Essa
81
autonomia de Goiás decorria de sua condição periférica e era obtida pela
possibilidade de lideranças políticas estaduais estruturarem e dirigirem a
administração interna sem a intervenção expressa do poder central, que de fato não
aconteceu devido à pouca importância do Estado no cenário nacional.
Diante dessas condições de periferismo e de autonomia-negativa, a
organização do poder no Estado devia-se sobretudo a fatores internos tais como
econômicos, demográficos, geográficos, de comunicação e mesmo pela
engrenagem política.
Segundo sua análise, o nível de arrecadação em Goiás não permitia
equipará-lo a outros estados do país. Goiás era economicamente inexpressivo, com
uma base agropecuária que não o colocava no mercado nacional, como acontecia
com os produtores de café, por exemplo. Ressalta o autor, que desde a decadência
da mineração Goiás se dedicou à pecuária como atividade principal. Diante da
situação geográfica do Estado, sua distância de mercados consumidores e carência
de estradas, talvez a única alternativa fosse mesmo o gado. O comércio também era
pouco expressivo, devido mesmo ao escasso povoamento do local.
Campos acredita que não foi somente pela falta natural de recursos para
financiar o desenvolvimento que Goiás se manteve pobre, mas, sobretudo, pelas
barreiras “conscientes” formadas pelos chefes políticos estaduais, que mantivera o
Estado isolado e atrasado durante todo o período em questão.
Vale aqui ressaltar que os mais expressivos chefes políticos
goianos foram responsabilizados pelo atraso do Estado e
mesmo de obstar o prolongamento ferroviário, especialmente,
até Goiás, daí poder ser considerada esta diretriz uma
estratégia política (id. ibid.: 42).
De acordo com Borges (1995), a implantação da Estrada de Ferro em Goiás
não foi o resultado do esforço político e econômico das oligarquias dominantes no
Estado. Elas pouco ou quase nada fizeram de concreto para viabilizar a construção
a ferrovia; tinham medo de qualquer mudança de caráter progressista e, por isso,
82
não tinham interesse no empreendimento. “A Estrada, como via de comunicação
moderna, poderia acelerar as mudanças estruturais e despertar forças de
transformação, ameaçando o status quo político-oligárquico no Estado” (id. ibid.: 29).
Politicamente, o Estado de Goiás era também periférico. Era pequena sua
bancada de representantes federais, fato que aumentava ainda mais a
despreocupação do Governo Federal para com o Estado. A engrenagem política,
baseada na idéia de uma conveniente coordenação dos elementos constituintes do
poder estadual é expressa pelo autor da seguinte forma: “Ao conjunto formado pela
Comissão Executiva do Partido (situacionista), pelo Poder Executivo, pela
Representação Federal e pela Estadual chamo de engrenagem política” (Campos,
op. cit.: 55).
Campos demonstra, ainda, que a Comissão Executiva do Partido (Democrata)
detinha um poder paralelo, não previsto em lei nem na Constituição Estadual. Era
eleita por uma convenção periódica, constituída de delegados das secções
municipais do partido e tinha como competência a indicação de nomes para os
cargos eletivos a nível Executivo e Legislativo, tanto Estadual como Federal. Essa
comissão tinha como membros principais os coordenadores da política estadual e foi
controlada e dominada por três líderes ao longo da República Velha. São eles: José
Leopoldo de Bulhões Jardim, José Xavier de Almeida e Antônio Ramos Caiado.
Esses nomes aparecem, de uma forma ou de outra, ligados à política e ao
mandonismo no Estado de Goiás durante toda a Primeira República, em que o
Partido Democrata, solidamente estruturado e tendo base na grande maioria dos
municípios goianos, tinha amparado nele os políticos que comandavam política e
economicamente o Estado em que o Congresso funcionava apenas dois meses por
ano. Ao Poder Executivo, composto em sua maioria por pessoas não treinadas para
a prática de legislar imparcialmente, competia a promulgação de leis por decretos
nos outros dez meses do ano. Vejamos desde quando a realidade contradiz a lei
em nosso Estado.
Salientamos, todavia, que não é nosso interesse aqui retomar toda a trajetória
política de Goiás, tão bem demarcada pelos historiadores e, entre eles, Campos.
83
Nosso intuito é apenas dialogar com alguns aspectos da história de Goiás que nos
facultem a compreensão da realidade que Bernardo Élis transfigura em sua obra.
Em O tronco, o coronel Pedro Melo é caracterizado como um homem
ambicioso. Viera do Piauí com seu pai, estabelecendo-se em Santa Maria de
Taguatinga, mas comerciava em Duro, aldeia dos índios Acroá e Chacriabá. O
prestígio social veio do casamento com Ana Divina da Rocha, da mais rica, mais
numerosa e mais importante família do Norte de Goiás. Com alguma letra, passou a
exercer funções de Juiz, Coletor de Rendas, Delegado. Por meios não legais, o
coronel se elevou ao posto natural de Chefe Político, tornando-se possuidor de
poder incontestável, demonstrando a existência de um poder tradicional, construído
através dos tempos, “desde sempre”, e passado de pai para filho, sem que houvesse
a intervenção da justiça.
Era comum que as propriedades rurais estivessem em mãos de poucas
famílias aparentadas entre si. A vida nessa grande propriedade rural era baseada
em um sistema patriarcal herdado do período colonial, trabalhando e vivendo os
sitiantes, vaqueiros, meeiros, camaradas, jagunços, etc. Numa terra sem justiça nem
segurança, a justiça era a dos coronéis, baseada nas armas e na subjugação da
população às vontades dos ricos fazendeiros que controlavam tudo.
As reflexões de D. Benedita nos fazem pensar assim: ela era favorável ao
posicionamento de Vicente quanto ao inventário e considerava os Melo,
principalmente na figura de seu cunhado, uns ladrões. Em um flashback, ela
relembra a história do refrigério, demonstrando a esperteza dos Melo para roubar até
mesmo os parentes mais próximos: tratava-se de um terreno, no caminho de
Barreiras, no alto da Serra, excelente para pastagens no período da seca. Pertencia
à família de D. Benedita e para era levado o gado durante toda a estação. Após a
morte de seu marido, o irmão dele, Pedro Melo, passou uma cerca de arame
farpado, cercando para si o terreno. A viúva gritou, mas Pedro Melo solicitou os
documentos.
A narrativa demonstra a realidade de uma região em que não se possuía
título de propriedade ou domínio de terras. Como revela a historiografia, o gado, por
84
questões de locomoção, era a principal atividade produtiva na região, que se
autotransportava. Sendo assim, era comum ser considerado proprietário aquele que
possuísse gado no espaço territorial em questão, demonstra a personagem
Benedita:
Até onde andasse o gado com uma marca, até ia a
propriedade do dono desta marca. Era uma lei que vinha num é
d’hoje, se transmitindo de pais a filhos, sem contestação. O
próprio Pedro, que era dono de mais de vinte fazendas,
perguntassem a ele se possuía documento, para ver! (OT.,
1979 : 32).
O autor demonstra que de nada adiantaram os protestos de Dona Benedita.
“O refrigério herdado de seu pai, herdado do pai dele” , como era comum na lei do
local, foi tomado pelo cunhado por falta dos documentos. A cerca de arame farpado
ganhou fama na região e muitos vinham ver a novidade. A lei da tradição legitimada
no local, do “desde sempre foi assim”, é manobrada em proveito próprio. Para os
outros vale a constituição, os códigos estabelecidos legalmente.
Alguns estudos tanto na história como na sociologia buscam inserir o tipo de
dominação exercida pelos coronéis na perspectiva weberiana do carisma. Todavia, a
partir da nue linha divisória deixada por Weber aos tipos “puros” de dominação no
sentido de que sempre se encontram em combinação, consideramos que são mais
fortes os elementos do coronelismo que possibilitam sua compreensão a partir da
caracterização da dominação em seu tipo tradicional.
De acordo com Bendix (1986), Weber, entendendo o poder como a
possibilidade de impor a vontade sobre o comportamento de outros, assinalou que
em um sentido geral o poder é um aspecto da maioria, se não de todas, as relações
sociais. A dominação, segundo Bendix, “envolve uma relação recíproca entre
governantes e governados na qual a freqüência real da obediência é apenas um
aspecto do fato de que o poder de comando existe” (id. ibid.: 233). Assim, seguindo
o pensamento weberiano, temos por dominação a probabilidade de encontrar
obediência/submissão a uma ordem, a um determinado mandato.
85
O que caracteriza os três “tipos puros” delineados por Max Weber é a
fundamentação dos diversos motivos de submissão. A dominação tradicional, nos
demonstra Weber (1986), se em virtude da crença em poderes de muito
existentes. É essa conotação do “desde sempre” que fornece ao ‘senhor’ a
possibilidade de encontrar obediência em seus ‘súditos’. Tal obediência é santificada
na tradição e pelo predomínio da fidelidade. Seu tipo mais puro é o da dominação
patriarcal. As regras são passadas tradicionalmente, demarcando o domínio do
‘senhor’
numa área estritamente firmada pela tradição e, em outra, da
graça e do arbítrio livres, onde age conforme seu prazer, sua
simpatia ou sua antipatia e de acordo com pontos de vista
puramente pessoais, sobretudo suscetíveis de se deixarem
influenciar por preferências também pessoais (id. ibid.: 131).
Segundo Weber, o quadro administrativo deste tipo de dominação é composto
de dependentes pessoais do ‘senhor’ e, ao invés da competência e da observação
ao dever e à objetividade do cargo, espera-se a fidelidade pessoal do servidor. Na
falta do direito formal e sua substituição pelo predomínio de princípios materiais, a
administração e a conciliação dos litígios é feita pelo patriarca, ou pelo senhor
patrimonial, segundo princípios presos estritamente à tradição e “(...) conforme
pontos de vista juridicamente informais e irracionais de eqüidade e justiça em cada
caso particular, e ‘com consideração da pessoa’” (id. ibid.: 133).
Embora não dispusesse de poder monetário, todo grande proprietário era
sempre, de acordo com Palacín & Moraes (op. cit.), politicamente poderoso,
contando com homens, votos e...principalmente com armas! Para os autores, as
principais causas do enfraquecimento do poder central do Estado e a autonomia
local prepotente dos coronéis no interior, eram as distâncias, a pobreza, a carência
de um corpo adequado de funcionários. Assim, os coronéis, o vigário e o juiz eram
os mantenedores da ordem social, uma ordem legitimada no poder de mando dos
coronéis e favorecido pela submissão dos seus homens”, agregados e camaradas,
subordinados ao latifúndio, econômica e socialmente. Esta prepotência dos donos
de terras, na fraqueza de um poder central, e as relações de produção existentes
86
nada mais representaram, de acordo com Silva (2001), que um novo tipo de
escravidão.
Em O tronco, o poder e o prestígio dos coronéis Melo podia ser observado
“desde Pirenópolis até Boa Vista”, extensão territorial usada para designar quão
grande era seu poder. Artur Melo era correligionário de Eugênio Jardim e Totó
Caiado, mas desde sua indicação para Presidente do Estado de Goiás, depois da
Revolução Estadual de 1909, que aqueles se indispuseram com ele. Artur conseguiu
se eleger deputado Federal mas não tomou posse, por causa de manobra política
dos Caiado na Capital Federal: foi depurado, como então se dizia.
Artur Melo instalou-se na Capital do Estado com um jornal de oposição, no
qual atacava o caiadismo e, em represália, o apoio político dos Caiado senhores
do governo à época - era dado aos opositores dos Melo no norte do Estado. Era
criada a base para uma firme e poderosa oposição ao poderio dos Melo (OT., 1979:
07). Como podemos averiguar em Póvoa (1979) e Silva (2001), o fato ficcional
possui caracteres reais e Artur Melo, representaria Abílio Wolney
23
, possuindo o
poder que lhe é passado, tradicionalmente, pela autoridade do pai, Pedro Melo.
Sendo assim, poderíamos analisar a figura do coronel como um líder carismático,
para o que a teoria de Weber também nos fornece elementos; apenas salientamos
que, nesse ‘tipo’ característico do sertão brasileiro, no sentido que o estamos
abordando, consideramos predominar os caracteres da dominação tradicional.
Essa questão da impotência do poder jurisdicional para o exercício de suas
atribuições, deixando brechas para que atuem outras formas transfiguradas de
poder, nos faz lembrar da discussão de Plauto Faraco de Azevedo acerca da relação
do Direito com a justiça social e em contraposição ao Direito em sua vertente
estritamente positivista, em que a lei é dada e deve ser cumprida. “É preciso, ao
contrário, conectar a idéia de justiça com a realidade social brasileira e internacional,
de modo a tocar neste mundo real, tendo em vista a sua transformação, na busca de
23
Coronel Abílio Wolney, filho do patriarca Joaquim Ayres Cavalcante Wolney, temidos na região do
norte de Goiás no início do século XX.
87
um convívio menos egoístico e inumano
24
“. Não se trata, podemos perceber, de um
apelo movido por situações jurídicas novas; pelo contrário, nosso trabalho evidencia
que a história de nosso país revela lutas por um ideal de justiça que se fundamente
na eqüidade.
O camarada:
De acordo com Silva (op. cit.), durante a República Velha o domínio das
oligarquias regionais foi estendido a todos os níveis da sociedade, apropriando-se
do aparelho de Estado como forma de manutenção e reprodução de seus privilégios.
Dominando as populações rurais, sem a presença de outros grupos que pudessem
contestar seu poder político, as oligarquias mantinham um regime de trabalho
em que as relações de produção atavam os produtores
diretamente aos proprietários dos meios de produção, não lhes
permitindo sair das condições de trabalho que lhe eram
impostas (...). Tendo a dominação uma estrutura de tipo
patrimonialista, o controle do aparelho do Estado permitia, de
forma mais eficaz, manter a hegemonia diante de toda a
sociedade, tendo em vista que, a partir dele, se passava a
contar com os cargos, com o erário, com a força policial, com
as leis e com o sistema educacional, como massa de manobra
política para a perpetuação no poder (id. ibid.: 50)
.
A historiografia demonstra que o panorama social do campo não sofreu
transformações com a república. Segundo Basbaum (op. cit.), não houve
transformação sensível no sistema de posse da terra e nos modos de produção.
Desapareceram os escravos, mas continuaram existindo as mesmas subclasses
rurais que eram conhecidas no Império, “apenas mais estratificadas, mais
delineadas e sobretudo mais variadas, pelo menos nos nomes” (id. ibid.: 149).
Para o autor, essa grande variedade, do pequeno proprietário ao simples
trabalhador rural, tem como fundamento relações próprias do feudalismo. São
diversos os homens do campo: o arrendatário, o meeiro, o parceiro, o sitiante, o
24
Em conferência pronunciada pelo autor a convite do Departamento de História, Geografia e
Ciências Sociais da Universidade Católica de Goiás, a 27 de agosto de 1991.
88
colono, o trabalhador rural,, o peão, o vaqueiro, o cabra, o seringueiro, o camarada,
etc. Basbaum discute um pouco sobre alguns deles, enfatizando que, de um modo
ou de outro, se acham todos sob certa sujeição feudal, em relação ao dono da terra
ou do gado.
Com relação ao camarada, salienta que são os trabalhadores flutuantes,
andarilhos dos sertões, que durante a época do plantio vivem quase indolentes em
suas palhoças, alimentando-se da pesca e de plantação da mandioca ou do milho
em terras cuja propriedade ignora, mas durante o período das colheitas ele parte em
busca de trabalho nas fazendas, onde ganha algum dinheiro. Geralmente anda
sozinho, pelos sertões e matos bravios, deixando para trás mulher e filhos.
Basbaum, ao se referir a um feudalismo brasileiro, salienta que não se trata
de afirmar que no Brasil existiu o sistema feudal puro da Idade Média européia ou da
Ásia, mas que em muitas regiões, as condições de trabalho se assemelharam às de
um regime feudal, que ele assim define: um conjunto de relações econômico-sociais
que se instituem em torno do monopólio da posse da terra (id. ibid.: 158).
No Brasil, segundo Basbaum, as relações de produção no campo podem ser
percebidas numa dicotomia em que, por um lado temos o dono-da-terra e por outro,
o homem-sem-terra, que trabalha por um salário: o proletariado rural. Entre essas
duas classes sociais opostas, existe, segundo o autor, uma grande variedade de
formas de relações sociais de produção entre o homem que trabalha a terra e o
dono da mesma. são relações em que, segundo Basbaum, não entra dinheiro como
forma de pagamento.
O autor faz referência a uma prática que tem mais de quatro séculos: o
vaqueiro recebe uma cria de três ou quatro que nascem. Essa é uma entre muitas
formas de pagamento ao trabalhador rural, que não tinha liberdade para vender o
produto de seu trabalho. Todas elas esmagam-no sob o poder material, econômico e
político do dono da terra, assemelhando-o mais a um escravo.
Raramente recebem pagamento em dinheiro; vigora em quase
todas as regiões o sistema do vale ou das moedas particulares
89
para comprar no barracão da fazenda; se o trabalhador foge, é
caça do como fera, pois está sempre devendo ao patrão (id.
ibid.: 158).
O livro de Bernardo Élis, fundamento de nossa análise tem, no caso do
inventário de Clemente Chapadense, um foco narrativo que traz à tona a força do
cangaço no norte de Goiás e as, por vezes contraditórias, relações entre o governo,
os coronéis e seus camaradas, jagunços, posseiros, vaqueiros, ou seja, “seus
homens”.
Aos seus camaradas, o coronel dispensa inúmeros favores (alimento,
remédios, livra-os da prisão, doa-lhes terras, empresta-lhes dinheiro, paga-lhes as
contas...); mas nada é de graça: o que exige em troca não tem as mesmas
características materiais, portanto, a dívida contraída não tem fim; vale fidelidade
eterna, serviços e apoio armado infinito. É uma relação baseada na simplicidade e
na ignorância do agregado e na desonestidade e avareza do coronel.
A realidade dos “homens do coronel” que se tornavam parte de suas
propriedades, devendo-lhe, além de inúmeros favores, dinheiro, é evidenciada pela
indignação da personagem Belisário, ilustrando essa questão tão bem abordada
pelo escritor.
Na sua fala arrastada de Maranhense, Belisário dizia: - Eu
num vou. Num vou nessas tropelias do coronel. Estou aqui
para cuidar de gado e não para fazer arrelias. Se eu gostasse
de cangaço, estava mais os jagunços de Pernambuco. Oxém,
apois num vê, home de Deus! Belisário conversava no
rancho de palha no oco do mundo. Seu interlocutor era
também vaqueiro de Pedro Melo, o Cesemiro, encarregado
daquele sítio (OT., 1979: 41).
A revolta de Belisário tem como fundamento os roubos do coronel. O caso era
que havia morrido muito gado na seca e o coronel dizia que os mortos eram todos os
pertencentes ao vaqueiro: “O que era dele a seca respeitou! Ora, essa é muito boa!
É por essa e por outras que vaqueiro num apruma, seu Casemiro” (OT., 1979: 42).
90
Casemiro, mais acomodado, conhecia o procedimento, mas fazia vista grossa
“achando natural”. A narrativa, bem como a historiografia, mostra que era comum
nas fazendas a cada quatro bezerros nascidos, um pertencer ao vaqueiro, mas se
um morria, se sumia, se era roubado por índios, era o vaqueiro quem pagava. Dessa
forma, os vaqueiros, empregados dos coronéis viviam sempre endividados, o que
demonstra que por um meio ou outro nunca conseguiam quitar suas dívidas com os
patrões, tornado-se cativos. Os coronéis não aceitavam dinheiro como pagamento
das dívidas, não adiantando o empregado juntá-lo para quitar o débito. “Dinheiro de
camarada é serviço” – dizia o coronel Pedro Melo (OT., 1979: 43).
Situação semelhante na narrativa é revelada pelo caso do Soldado Baianinho,
que não era baiano, era do Norte de Goiás, mas se dizia baiano mode se dar ao
respeito”. Ele estava na comissão como cativo:
Era camarada do Coronel Batista, a quem ficara devendo um
despropósito. Dívida fantástica, dívida inventada pelo coronel.
Baianinho comprava uma rapadura, o coronel assentava duas
em sua conta; no mercado a rapadura custava quinhentos réis,
nos assentamentos do coronel cada rapadura custava o dobro
(OT., 1979: 57-58).
Basbaum revela ser comum na história a venda de trabalhadores, o que nada
mais é do que a transferência das dívidas do camarada de um coronel a outro. O
comprador paga ao fazendeiro que vende as dívidas dos mesmos trabalhadores,
para poder revendê-los a outros proprietários de terras. Foi o que aconteceu a
Baianinho: com alta dívida, o coronel, a partir de manobras políticas, o colocou na
polícia e recebia seu ordenado. Ao soldado, restara-lhe o sonho de trabalhar duro,
pagar toda a dívida e ser um homem livre.
O que Bernardo Élis ressalta aqui não é uma realidade isolada, mas comum à
época, como demonstra Silva (op. cit.). O estudo da autora revela que, em Goiás, a
abolição da escravatura não significou a introdução do trabalho assalariado,
instituindo-se sim, um regime de camaradagem que para ela não passou de um
novo tipo de escravidão. Para ela,
91
Camarada era qualquer trabalhador que fizesse um ajuste de
trabalho com outrem para prestação de serviços na lavoura,
pecuária, empreitadas de viagens e serviços domésticos.
Mesmo que as relações de trabalho estabelecidas em lei
fossem assalariadas, o salário não se tornava uma relação
social, mas apenas uma relação contábil, porque nunca
chegava às mãos do trabalhador, que estava constantemente
endividado (id.ibid.: 40-41).
Baianinho, Casemiro e Belisário viviam atrelados a essas relações que os
aproximavam do servo e do escravo, distanciando-os do trabalhador livre que marca
o cenário da modernidade.
O juiz:
Outro elemento relevante à análise é enfatizado por Chiavenato no sentido de
favorecer a compreensão do relacionamento entre políticos, coronéis e cangaço: a
dubiedade das ordens para perseguição e punição aos cangaceiros. Como havia de
se cumprir o pacto que ligava o coronelismo à corrupção, a dubiedade das ordens
tinha o objetivo de encobrir a submissão dos políticos aos coronéis. O poder
instituído dizia uma coisa e fazia outra, frente ao fato de que “o cangaço não tinha
poder. O poder era, evidentemente, de quem o manipulava. Os políticos atribuíam-
lhe uma força inexistente, para fugirem à responsabilidade da subversão da ordem
(id. ibid.: 48).
Bernardo Élis evidencia esse aspecto em diferentes momentos da narrativa
em que reconstrói os acontecimentos históricos ocorridos na Vila do Duro. Podemos
observar que a estratégia dos governantes demonstrada a partir do envio das duas
comissões à Vila, no sentido de dar fim aos desmandos dos coronéis, revela o
descaso para a realidade dos fatos acontecidos no local e a dubiedade de que fala
Chiavenato.
Desde o início, certo de que “havia caroço naquele angu” o Juiz Municipal
Valério Ferreira compartilha dos ideais de Vicente Lemes acerca do inventário de
92
Clemente Chapadense. Ao receber o processo das mãos de Vicente com as devidas
explicações, o juiz considera o fato um absurdo.
- Absurdo e perigoso. Nós sabemos quem é Artur Melo, que
está por detrás dessa viúva. Ele pode estar querendo negar
estes bens, mas também pode estar armando uma cilada. A
gente aceita a descrição como está e ele denuncia para
Goiás que o coletor Vicente Lemes não zela os interesses da
Fazenda, que está recebendo propinas para sonegar bens de
menores... (OT., 1979: 05).
Ao se posicionar favorável à exigência do coletor, as reflexões do juiz
revelam, novamente, dificuldades do poder estabelecido para enfrentar os
poderosos coronéis, que estão por trás da viúva e revela, ainda, as pressões entre o
cumprimento do dever e as represálias dos interessados, fundamentando o domínio
do coronel Pedro Melo.
Quando da invasão do Cartório, o juiz Valério Ferreira, mais realista que
Vicente, pensava a situação: não eram mais que prisioneiros do coronel, que ali
estava em maioria: “melhor seria concordar com as exigências”. O Juiz luta contra os
protestos de Vicente, que alega ter o direito do seu lado. Este, aos prantos, atende à
proposta daquele: primeiro concordam, depois fazem uma representação ao
Governo, exigindo punição para os bandidos. “Foi com ódio, com vergonha, foi cheio
de humilhação que Vicente (...) atendendo as imposições de Artur, rasgou as folhas
que continham os despachos e informações anteriores” (OT., 1979: 51). Artur ditou o
novo texto e o juiz deu a sentença de final julgamento. Na certeza da denúncia, Artur
aproveitou e levou junto consigo alguns processos que o juiz tinha anteriormente
indeferido. Apoiado na força das armas e de seus jagunços e, confiante em seu
prestígio, o coronel não teme a denúncia e age como se não houvesse nenhuma lei
capaz de o deter.
Foi denunciado em carta dirigida ao coronel Eugênio Jardim, em que os fatos
foram relatados minuciosamente pelo juiz e pelo coletor, que pediam garantias para
o exercício das funções públicas e para a vida das autoridades estaduais. Os
93
funcionários públicos da vila foram fugindo um após outro, exigindo segurança para
voltar às suas funções. Parecia não fazer sentido o exercício da função pública num
lugar onde os coronéis dominavam à margem da lei.
Com medo, os moradores foram esvaziando o povoado, que ficava ainda
mais triste. Notícias vindas da Bahia, alertavam para a vinda de um contingente
policial em direção ao Duro. Dizia-se que o chefe da comissão “vinha com ordem
severa dos Caiado para acabar de vez com Pedro Melo e sua gente”. Gente que
também abandonou sua casa.
O Juiz Valério, também solicitou do Governo Estadual meios para punir o
criminoso, no caso de Vigilato, apresentado em flashback. A ele, os Melo pareciam
invencíveis e, se derrotados, ele acreditava que seriam substituídos por outros da
mesma estirpe. Foi caracterizado como tuberculoso e talvez daí decorresse seu
pessimismo, mas não era de seu feitio pactuar com a violência. Tinha escrúpulo no
fiel cumprimento das leis e, por isso, tal qual o coletor, vinha sempre perdendo para
os adversários.
Em atendimento à sua solicitação de providências para o caso, uma comissão
foi enviada para apurar o crime. Isso significou para os Melo, séria afronta. Na vila
afastada, governo era algo de sobre-humano e inatacável, chegando as notícias
da Comissão: ela era como o vento que precede chuva braba” (OT., 1979: 14). Era
a promessa de solução para as contendas da região.
O juiz Hermínio Lobato, chefe da comissão, era considerado homem de
preparo, de estudo. Caracterizado na narrativa como um homem de grande
bondade, que não gostava de luta e cuja existência era dedicada às coisas pacíficas
e sossegadas da vida, ele se incomoda com os cem homens armados e municiados,
mantidos por Artur Melo para sustentar os atos emanados da comissão de inquérito.
Isso representava uma ameaça à justiça. O comando da força policial estava nas
mãos do Tenente Napoleão, constantemente embriagado, demonstrando o descaso
do funcionário no legal exercício de sua função.
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(...) alheio a tudo e a todos (...) à falta de serviços forenses
[em sua Comarca], fundou um Colégio para meninos pobres,
onde era professor, cozinheiro, médico e diretor...
Conhecedores de sua virtudes, em Porto Nacional todos
confiavam nele, que não fazia inventário, nem organizava
processos escritos para solucionar litígios. Tudo ele resolvia
amigavelmente, como um novo Salomão. Júri resolveu aboli-
los todos: não havia dinheiro para sustentar os presos e os
jurados confiavam em que Doutor Hermínio julgava melhor do
que eles mesmos (OT., 1979: 14).
No Duro, o inquérito era dirigido por Dr. Leite Ribeiro, advogado dos Melo e
que, aos poucos, foi se tornando dono do processo. Dr. Hermínio tinha até vergonha
de confessar ter esquecido a maioria das praxes forenses. Ele não necessitava
delas, uma vez que estava acostumado a tudo resolver amigavelmente.
Os depoimentos das testemunhas, revelam a manipulação das pessoas do
lugar: “Escolhidas a dedo e industriadas com esmero, as testemunhas falavam
para dizer que o coronel Pedro Melo era um pobre velho doente, a quem o sobrinho
havia espancado cruelmente alguns meses antes e a quem tentara assassinar na
noite que morreu” (OT., 1979: 15).
Percebendo a manipulação, Dr. Hermínio tomou o código e leu o artigo que
punia o falso testemunho, explicando à testemunha seguinte a significação daquelas
palavras. A dificuldade em conseguir depoimentos verdadeiros faz com que o juiz
use de procedimentos legais no exercício de sua função. Mostra que sua pretensão
é averiguar os fatos e mostrar a todos a verdade neles contida. Porém, seu
procedimento soou a Artur como um desaforo, uma indireta a ele e a seu pai. A
testemunha seguinte, Resto-de-Onça, capanga de Pedro Melo e participante direto
do assassinato de Vigilato, apresentou-se armado de imensa garrucha, que tombou
no chão aos olhos do juiz: a demonstração de força e poder inibe o pacato juiz.
Dr. Hermínio percebendo a impossibilidade de apurar os fatos naquele lugar,
onde “os Melo eram donos de tudo”, pensou em alegar isso e renunciar à comissão,
95
mas poderia ver prejudicado seu objetivo de aposentar-se. Seu interesse pessoal
falou mais alto: seu posicionamento foi o de nunca mais fazer a menor pergunta... e
foram impronunciados os criminosos.
A comissão designada para apurar o caso de Clemente Chapadense vinha
trazendo esperança à população cansada das atribulações causadas por aquelas
contendas. Mais uma vez é revelada a falta de recursos que tornava ainda maior a
distância da Capital. Era julho, período do ano marcado pela seca e pelo frio
abrandado pelas fogueiras, em torno das quais se reuniam os homens para o pouso.
Há mais de um mês marchavam pelo sertão.
As notícias da jagunçada dos Melo chegavam à comissão. Dizia-se que havia
muita gente bem armada e municiada, “cangaceiros arrebanhados nas fronteiras da
Bahia, Pernambuco, Maranhão e Piauí”. O poderio e o prestígio dos Melo numa
região onde não lei que os afronte; a distância da vila em relação à Capital e as
histórias das atrocidades praticadas na região pelos coronéis foram alguns dos
muitos entraves para o Presidente de Goiás, Doutor João Alves de Castro, conseguir
um juiz que se propusesse chefiar a comissão. O medo era um sentimento comum
na política, não somente ao homem do povo, mas também nos cargos de alto
escalão. Desse modo, muitos juizes se recusaram a chefiar a comissão do governo
para apurar as questões da vila do Duro.
Depois de muita procura, Dr. Carvalho aceitou a incumbência. Era ligado ao
situacionismo e viu, na comissão, a oportunidade de chamar para si a atenção dos
dirigentes do Estado. Era do Espírito Santo, onde se indispôs com o Governo pelo
fato de que as melhores funções públicas e oportunidades eram dadas para os de
fora do Estado, geralmente para os mineiros. Derrotado, veio para Goiás, “enfrentar
o sertão, o desconforto, o atraso, a miséria” – revela Bernardo Élis.
Não tendo logrado oportunidade no seu Estado de origem, o juiz Carvalho,
que era homem ambicioso e não pretendia ficar no comodismo e no atraso do meio,
via na comissão uma oportunidade para exercitar sua grande inteligência e cultura,
diminuindo, assim, seu inconformismo: sentia-se superior aos moradores do lugar.
Podemos perceber que a realidade política de outras regiões, quanto à manobra de
96
cargos blicos, à época, não diferia muito da realidade encontrada no Duro,
marcada pela vontade de se ter, nas funções burocráticas, pessoas favoráveis à
vontade dos políticos.
Em Goiás, Dr. Carvalho agiria diferente: seria fiel e leal no cumprimento de
sua tarefa, desempenharia aquilo que os da terra não aceitavam desempenhar. O
inquérito contra os Melo era a oportunidade de ser notado, a possibilidade de obter
vantagens, melhorar sua situação e sair do sertão.
A comitiva ia crescendo no decorrer da viagem. A ela juntaram-se homens de
várias regiões. Eram muitas as dificuldades da viagem que durava quase três
meses. À comissão se juntaram Vicente Lemes e Dr. Valério Ferreira, com suas
famílias, mais Cláudio Ribeiro e Júlio de Aquino. A reflexão de Vicente revela seus
ideais e sua ingenuidade: “Os Melos veriam o que era governo; o povo ficaria
sabendo que na terra havia justiça e lei capazes de submeter o vice-rei do Norte, o
poderoso Coronel Pedro Melo!” (OT., 1979: 64). O coletor acreditava na força e na
capacidade dos governantes promoverem justiça.
Entrariam na vila sem manifestações de qualquer tipo. Foi a orientação do juiz
Carvalho, que reempossou as autoridades, agindo conforme a lei. Aos poucos, os
habitantes retornavam ao Duro. Os Melo, porém, permaneciam ausentes, na Grota.
A notícia era de que estavam prontos para atacar a qualquer instante.
O processo corria em segredo. Para o Dr. Carvalho o caso não era um
simples desentendimento familiar, ou um mero problema doméstico e sim, caso de
coação de autoridades. Era comum no lugar considerarem tais fatos como um
pequeno desentendimento em família. Num outro ponto da narrativa, nos deparamos
com a postura do juiz Carvalho que, teoricamente enviado para resolver as
contendas, é astuto o suficiente para armar uma situação que interessasse
imediatamente o poder do Estado e deixar que tudo se resolvesse sem sua
presença.
Inicialmente, o juiz pensa na possibilidade de atacar a Grota, afinal os autos
do processo de inquérito comprovavam a culpa dos Melo. Todavia, “se tentasse
atacar a Grota, a polícia seria derrotada, sua missão fracassaria, seria a perda da
97
confiança de Totó Caiado, seria a perda do lugar de desembargador, de deputado
federal” (OT., 1979 :76). Seriam prejudicados seus interesses pessoais, colocados
em primeiro plano. Em sua missão, o que estava em jogo eram os seus interesses
pessoais e os códigos legais não serviriam ao seu propósito. “Necessitava de tretas,
de muita treta...” Precisava enfraquecer a Grota, mas para isso precisava conhecê-
la, ver como de fato estava, se tinha muitos homens. Lembrou-se do inventário: teve
a idéia de alegar uma diligência em busca do inventário e, assim, examinaria a Grota
e se certificaria da força dos Melo. Nesse ponto, a personagem usou como artifício
um procedimento legal, que poderia ser realizado pelo oficial de justiça.
A diligência tinha por trás um plano de traição: uma vez que os Melo
dispersassem os jagunços, enfraquecessem a fortaleza, a polícia prenderia Artur
Melo e o pai, levando-os incontinenti para Goiás” (OT., 1979: 78). A “Grota era uma
fortaleza, cheia de homens valentes, violentos e acostumados a dobrar as
autoridades que até ali tinham ido com incumbência de apurar fatos” (OT., 1979: 79).
É um lugar com regimento próprio e com um poder paralelo ao poder do Estado: o
poder dos coronéis.
Na diligência Dr. Carvalho apresenta o procedimento legal do processo e
Artur manda buscar o inventário na casa da viúva, manobrando os fatos no intuito de
mostrar sua inocência. Ao ouvir a conversa dos dois, embalado por seus
pensamentos, Pedro Melo ria. Seu riso, de acordo com a narrativa, revela sua
condição e posicionamento sobre o caso:
Confiar em autoridades, ele que sempre as manipulou a seu
gosto! Ele que sempre usou do poder da autoridade para
oprimir, para extorquir dinheiro e bens, para esmagar
consciências, para empedernir no jaguncismo homens simples
como Resto-de-Onça ou Mulato! Pedro Melo ria, pensando
como confiar em juiz, se todos eles eram Hermínio Lobato (OT.,
1979: 86).
98
Em alguns momentos da narrativa, como nesse, Dr. Hermínio é usado como
que para relembrar a fraqueza da lei, que se curva, com freqüência, por um motivo
ou outro, às vontades e caprichos do coronelismo.
Diante da realidade da Grota, Dr. Carvalho agora não tinha dúvidas de que os
Melo tinham uma força armada mais numerosa e melhor aparelhada do que a tropa
de policiais. A realidade da tropa era muito diversa:
Além de menos numerosos, os soldados eram homens fracos,
de moral abatida, armados de Comblains estragadas, com
munição velha e imprestável na sua maior parte. E os oficiais?
Eram os piores. Viviam brigando entre si, cada qual disposto a
trair e infelicitar o companheiro, na disputa das promoções e
das vantagens, homens medrosos por lhes faltar
conhecimento do papel de policial; covardes por confiarem
na superioridade que lhes dava a arma na cintura; venais por
saberem que os donos das funções públicas, os políticos, não
se interessavam por ordem ou por justiça, se não por meios
capazes de resguardar maior ou menor número de votos (OT.,
1979 : 86-87).
Por fim, um acordo é fechado nas bases propostas pelo Dr. Leite Ribeiro.
Cada um a seu modo, pensava em tirar o melhor proveito da situação. Cada qual
não sabia que o outro havia feito uma promessa de traição. O plano de Artur era
aceitar dispersar seus homens e comparecer a juízo para defender-se. Nisto,
alegaria que o assalto ao Cartório era obra dos Chapadenses. “A condição era que o
juiz impronunciasse a ele, ao pai e ao compadre João Rocha”. “(...) Aí, é que estava
o busílis”: ele não dispersaria seus homens; os mandaria para o Açude, fazenda
situada mais para a fronteira da Bahia. Assim ganharia mais tempo para se prevenir
contra um possível ataque da polícia. Dr. Carvalho, por sua vez, aguardaria a
dispersão dos jagunços e, com a Grota enfraquecida, atacaria traiçoeiramente.
A visita de Dr. Carvalho à Grota foi objeto de muitos disse-que-disse,
aguçando, sobretudo, o orgulho de Vicente e de Dr. Valério. Este último, como que
prevendo os resultados de tamanha astúcia, considerou desonrosa a postura de
99
Carvalho. Os dois funcionários representam dois homens idealistas, que lutam pela
justiça, e a postura do juiz Carvalho ao aceitar um acordo, demonstrava, para eles, a
fragilidade do poder público no cumprimento das leis.
Com o processo do inventário em mãos, Dr. Carvalho encerra o inquérito,
oferecendo denúncia contra os implicados no assalto do Cartório, pondo, assim, em
prática sua traição. A denúncia alegra Vicente, mas Dr. Valério continua com um
atrás com o juiz, pressentindo algo errado na rapidez com que conduzia o caso.
“- Tu tá ficando dôidio!” – bradava o velho coronel, que não aceitava a
situação de submissão a que parecia estar se submetendo. Ele sempre manobrou
como quis as situações mais diversas. Nem mesmo seu filho iria contra ele e, já que
o pai não concordava em comparecer em juízo, Artur manobrou a situação, ficando
em acordo com seu pai: burlaria o acordo com Carvalho e não compareceria a juízo,
mas por enquanto dava prosseguimento ao plano. Fugiram, mas, para Pedro Melo, a
fuga tinha sabor de derrota.
Dr. Carvalho gostou da notícia trazida pelo Soldado Carajá, espião da Grota a
serviço do juiz: “- Seu Doutor, pissuale tudo fugino. Sai aquela ternada levano
caiguero pesado de trem... carabina munta, bala munto...” era o que ele informava
(OT., 1979: 100). Cuidadoso em captar os aspectos da oralidade da fala goiana, por
várias vezes, Bernardo Élis nos o prazer de visualizar a fala simples do povo, do
sertanejo, em trechos como este.
A ordem de prisão foi programada para a manhã seguinte, pois embora não
soubesse quem era, o juiz tinha a certeza da espionagem e não queria que a notícia
vazasse. Por um momento Dr. Carvalho entristeceu-se por estar traindo os Melo,
mas logo apaziguou sua consciência com a idéia de que aquilo era uma exigência
do cargo, era uma imposição da qual ele não podia fugir. Ademais, quem poderia
argumentar que ele fugiu ao exercício da lei? Por trás do uso de recursos legais,
estão os interesses pessoais, a vontade de ascensão social, de melhoria de vida.
O Tenente Mendes de Assis, juntamente com o oficial de justiça, partiu
portando a ordem de prisão preventiva decretada pelo juiz. Seus pensamentos
100
revelam o descaso para com milhares de anônimos que a história não viu nem
ouviu: o Tenente desejava não ter que prender os Melo, pois eles “eram poderosos”;
“se os prendesse, seria perseguido, perderia o posto, que Jaime e Bulhões não
perdoavam. Era um inferno” (OT., 1979: 105). O Tenente, que nada possuía, se
lembrou de muitos oficiais que perderam os patentes porque cumpriram a
determinação legal. Assim, se o houvesse quem prender, não se indisporia com
os Melo e nem descumpriria a ordem judicial – era o que pensava.
O medo que sentia o Tenente era comum entre os oficiais do Governo,
enfraquecendo a força da lei e impedindo o acesso à justiça em regiões distantes,
sem recursos como a vila do Duro. Essa contradição revela as perseguições
políticas, comuns aos desafetos dos coronéis, que não poupavam esforços quando
se tratava de defender seus interesses. No fundo, seu medo era a previsão de luta e
morte.
Reportamo-nos novamente aqui às reflexões de Azevedo (op. cit.), no tocante
às vinculações do direito com a justiça social. Para esse autor, é preciso um
compromisso com a realidade no sentido de uma eficiente passagem da teoria à
práxis, ou seja, a formulação de construções mentais [códigos, leis, posturas, etc.]
diretamente associadas com a realidade social que as produz. Para Azevedo, o que
temos no Brasil, é um divórcio com as exigências nimas da justiça. Um quadro de
desigualdade social latente, não porque a Constituição discrimine os indivíduos ou
lhes negue direitos, mas, sim, porque tem, por vezes, até um certo exagero retórico,
expresso na formulação de regras difíceis de serem aplicadas. Por isso, na opinião
do autor, em crítica contundente à visão estritamente positivista do direito, temos o
isolamento jurídico da realidade social.
A análise de Azevedo refere-se ao Brasil de nossos dias. Porém, em O
tronco, podemos perceber esse isolamento em suas origens. As posturas dos juizes
na vila do Duro refletem as dificuldades de se obter grandes resultados desse
compromisso com o real, aludido por Azevedo. O juiz municipal Valério Ferreira é
um idealista, que acredita na possibilidade de se fazer justiça numa região
comandada por coronéis, que, superpondo-se à legislação, se tornaram expressão
viva da lei. Dr. Hermínio Lobato nos remonta à figura do juiz dominado e, vinculado
101
ao Dr. Leite Ribeiro, demonstra a conivência do poder legal com uma situação
política em que se tem a dissociação com as exigências mínimas de justiça. Por fim,
temos a postura de Dr. Carvalho, juiz corrupto e preocupado com a realização de
seus interesses pessoais. Seu arrivismo exprime aquilo de que nos fala Azevedo:
uma verdadeira dissociação da lei e do direito com as exigências de justiça social.
Os juízes revelam os dilemas de nossa República que, desde suas origens, vive
uma ordem jurídica que se confronta com práticas negadoras das modernas
sociedades democráticas.
A mulher:
A história é cruel com as mulheres. A historiografia demonstra que as
mulheres passaram praticamente despercebidas ao longo desses muitos anos de
Brasil. Os viajantes, com a visão das imagens da capital da província, Vila Boa, não
se aperceberam da labuta cotidiana dessas mulheres atuantes, de acordo com
Parente (2002), na vida doméstica, na atividade agrícola, na criação de animais, no
comércio e, até mesmo nas manufaturas, com a tecelagem doméstica para o
consumo. Quando apareceram, nas imagens reconstruídas nos relatos dos viajantes
europeus que passaram pela Província de Goiás no culo XIX, eram
caracterizadas por uma pobreza geral que lhes atingia até o espírito. Viviam como
fantasmas, escondidas em seus farrapos de pano velho, mal calçadas ou
praticamente descalças, escondidas por véus para não serem objeto de olhos
curiosos. Essa foi, por muito tempo a imagem largamente difundida dessas
anônimas que ainda continuam por merecer devido estudo.
Assim, excluída da participação política, não tendo sequer direito a voto, a
mulher, ao longo da Primeira República, é vista vinculada aos trabalhos domésticos
e à subserviência ao pai ou ao marido. Era fiel colaboradora e, atuando como
sombra, não desenvolveu “luz própria”, sendo considerada apagada até na hora do
amor”. Lina, mulher de Vicente Lemes na narrativa de O tronco, é o protótipo da
mulher do lar. Representa a mulher na virada do século, tendo como objetivo
primeiro, ou talvez único, o casamento e a dedicação à sua família. Lina surge na
narrativa através dos monólogos de Vicente, em contraposição a sua prima
Anastácia, objeto de seu desejo, com quem alimentara os sonhos sexuais de
adolescente.
102
(...) Lina era tão diferente de Anastácia! Anastácia era uma
fogueira, uma cobra na cama, no testemunho de Norato.
Pressentia-se isso pelo calor de sua boca, pelo ímpeto que
punha nas suas resoluções. Vicente desejou a prima, desejo
besta de que se envergonhou. Lina, tão diferente, tão boa, tão
digna de confiança! Mas seria fria? Como era uma mulher
ardente, feito uma cobra na cama? (...) Lina amava como
quem se desincumbe de uma tarefa amolante, não tinha ardor,
não tinha entusiasmo. Vicente até desconfiava que ela o
estimasse como a um irmão, como a um arrimo. Lina não
sabia o que era amar (OT., 1979:163-164).
Lina, personagem que abordamos, nem mesmo era acostumada a
demonstrações de carinho, se esquivando delas com timidez quando aconteciam. As
tarefas eram servir a casa e à família e, assim, se tocava a vida. Seria Lina a mulher
que seu marido concebia ou seu comportamento seria decorrente das condições a
que era submetida? Saberia ela de seu romance juvenil com Anastácia?
(...) Por que a esposa não tinha o calor de Anastácia? Lina não
participava do amor: sofria o amor, deixava que a usassem
como objeto. Será que não gostava de Vicente? (...) era como
se roubasse, como se menino mexesse numa coisa proibida,
era como um jagunço que achasse uma mulher no meio da
guerra e também com ela se empenhasse na grande luta do
amor. E a dominasse fatigada e exausta e chorasse com a
boca cheia de cuspe, a prima Anastácia, as rezas, os homens
morrendo no tronco (OT., 1979: 181-182).
De acordo com Olival (1990), Bernardo Élis, como narrador, adota inúmeras
máscaras e posturas a partir das quais se revela, “por vezes, na visão ‘por trás’ ou,
por vezes, na visão ’com’, aderindo à personagem, mas, sobretudo, numa técnica
em que o mostrar’ é muito forte: a técnica da linguagem cinematográfica: o estilo
bernardiano” (id. ibid.: 139). Os monólogos interiores, os discursos indiretos livres, as
interferências do narrador na narrativa são recursos da visão “com”, do “mostrar”,
103
aludidas pela autora, como um mecanismo que se pretende revelar autêntico
processo de elaboração do autor. A partir dessa técnica, podemos perceber a
caracterização e diferenciação das personagens Lina e Anastácia através das
reflexões e indagações de Vicente Lemes. Nesse trecho em que ele se refere à
prima, o autor nos possibilita evidenciar o objeto de seu desejo a partir dos
pensamentos de sua personagem:
- Defenda Tozão, meu primo! A voz vinha quente, os beiços
ardendo, como se tivesse comido pimenta. Ela devia ser uma
brasa na cama. Bem que diziam. Tentava afastar seu
pensamento libidinoso, ele voltava insistentemente. Norato
falava. Uma brasa, uma cobra na cama. E quando queria,
queria sempre mais (OT., 1979: 161, Grifos nossos.).
As duas personagens contrapostas, demonstram que o literato, atento mais
uma vez à história, caracteriza dois tipos de mulher tidos como opostos: a esposa e
aquela que se constituiu em objeto do desejo masculino. Essa dicotomia revela duas
posições sociais possíveis à época. A mulher, segundo Eliane Vasconcellos (1999),
Desde a infância era socializada para tornar-se dependente.
Para integrar a sociedade, precisava ostentar o título de
Senhora Fulana de tal. Só assim adquiria status de ser. O
casamento lhe era proposto como o único assunto sobre o
qual deveria pensar, a via pela qual desempenhava suas
funções mais importantes: a de esposa e a de mãe,
realizando-se, assim, social e biologicamente (id. ibid.: 27).
Com o casamento a mulher ganhava uma área de atuação própria, mas
continuava sob submissão. A dependência que, num primeiro momento é ao pai,
depois passa a ser ao marido. Sua esfera de atuação está estritamente vinculada ao
lar, não podendo se envolver com lutas ou movimentos sociais, movimentações
políticas, discussões culturais e/ou científicas. Nem mesmo a economia e as
finanças podiam fazer parte de seus interesses. Essas eram atividades da vida
pública, a serem realizadas fora do ambiente doméstico, portanto eram de atuação
exclusiva do homem.
104
Como demonstra Michelle Perrot (1998),
Para os homens, o público e o político, seu santuário. Para as
mulheres, o privado e seu coração, o lar. (...) Os homens são,
na verdade, os senhores do privado e, em especial, da família,
instância fundamental, cristal da sociedade civil, que eles
goverrnam e representam, dispostos a delegar às mulheres a
gestão do cotidiano (id. ibid.: 1998).
Cansadas do tedioso cotidiano da vida doméstica e da educação que
recebiam, voltada sobretudo para atividades desenvolvidas pelo “belo sexo”,
algumas mulheres casadas escapavam à rotina, fazendo reuniões em salões
literários ou mesmo participando de grupos com fundo político. Foram muitas as que
se destacaram. Vasconcellos mostra que a mulher da classe social mais alta deveria
aprender algumas das chamadas prendas da sociedade, como tocar piano, falar
francês, bordar e costurar. Em suas palavras: “a agulha se sobrepunha à caneta”.
Porém, vivendo em uma vila, sem as sofisticações do meio urbano, Lina não tinha
essas opções. Seu mundo era confinado aos limites da vila.
No geral, a literatura sobre as condições da educação feminina no final do
século XIX e na virada para o século XX, critica as condições de sujeição ao marido
e à vida doméstica
25
. Tendo o casamento como o único ideal possível, as mullheres
não podiam exercer atividades fora do lar, por correrem o risco de serem
consideradas “públicas”. “Depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher também
se diz a ‘raparigapública é uma ‘criatura’, mulher comum que pertence a todos”
(Perrot, 1998: 07).
Um aspecto da realidade da mulher do século passado, que evidenciamos
ainda carecer de estudos, é o fato de terem sido vítimas do cangaço. Chiavenato
(1990) demonstra que no período do cangaço a mulher em geral e não as
escravas - era rebaixada à escravidão, não chegando nem mesmo a ser objeto
sexual. Não se cultuava o prazer erótico, que não era considerado “coisa de macho”.
25
Consultar também D’Ávila Neto (1994) , Ismério (1995) e Machado (2002).
105
A mulher vista como alvo de descargas de energia sexual estava freqüentemente
exposta à rudeza de seus maridos e à brutalidade dos estupros.
No cangaço, a presença das mulheres é registraga a partir da união de
Lampião a Maria Bonita, mas Chiavenato ressalta que elas estavam na luta desde
muito antes. Muitas delas, vítimas da violência, aderiam à polícia ou ao cangaço
como meio de libertação das humilhações sofridas.
Desenvolveu-se, aos poucos uma moral sexual no interior dos grupos de
cangaço, privilegiando a fidelidade no intuito de amenizar as contendas que
enfraqueciam o movimento. Todavia, “(...) apesar do perigo e das leis rigorosas do
cangaço, as mulheres cangaceiras realizaram uma verdadeira revolução feminista”
(id. ibid.: 106).
Em contraposição, o estupro também obedecia a certas regras. O carinho
dedicado pelos cangaceiros às suas companheiras em nada se assemelhava ao
terror relegado àquelas de fora do bando. Elas eram brutalmente estupradas,
torturadas e mortas, como bem ilustra Chiavenato em seu trabalho sobre o
cangaceiro Lampião:
Baiano era o ferrador de Lampião. Usava ferro de marcar
gado com suas iniciais, gravando a fogo nas faces sertanejas
o JB. Esse costume chamava-se ferra. Baiano vingou-se
dos policiais que haviam torturado sua mãe ferrando as
mulheres deles. Não foram as únicas. Lampião mandou ferrar
três moças por usarem cabelos curtos: não gostou, achou
imoral. Elas foram ferradas diante dos moradores de Canindé;
uma estava no final da gravidez (id. ibid.: 106-107).
A ferra, apesar de dolorosa, não ostentava para suas vítimas a discriminação
moral, mas aquela acometida de estupro “não prestava mais para nada”. A
discriminação do sertanejo era tanta que elas não podiam nem ser “putas”. Nas
regras do sertão o cangaceiro “arrombador” não é culpado; como mostra
106
Chiavenato, “foi macho”, e sua vítima segue o destino de testemunho vivo de uma
sujeira.
O autor relata que o estupro, nas suas mais hediondas modalidades, era
comum a todos os bandos. As vítimas geralmente enlouqueciam. Além de satisfazer
as taras dos cangaceiros, ao violentar a vítima, o ato tinha como espécie de objetivo
humilhar sua família, daí a freqüência de tais atos serem realizados diante dos
familiares e parentes.
Essa prática também era muito difundida no grupo de soldados que, produtos
de uma mesma cultura, “(...) tratavam suas mulheres como escravas, de acordo com
o costume do sertão. Talvez porque, ao contrário das cangaceiras, a mulher de
soldado não pudesse fazer uma revolução feminista” (id. ibid.: 109).
Era comum o estupro das cangaceiras capturadas, mas seus destinos eram
bem piores do que os das vítimas do cangaço.
Algo mais exótico se é que se pode chamar de exotismo
aconteceu no interior de Alagoas, am Água Branca. A polícia
trocou tiros com o bando de Manoel Moreno, que fugiu. Uma
cangaceira morreu. O soldado Adbom despiu o cadáver e,
com a faca, “praticando profundas incisões em torno da virilha,
e descolando os tecidos, cortando ‘o lugar de fazer filhos’,
como diria depois zombeteiramente” levou o troféu consigo.
Salgou-o, secou-o, curtiu o couro. Carregava a vagina curtida
como um talismã. A história macabra não é parte do folclore:
Correa de Araújo recolheu-a de pessoa responsável, que
chegou a ver o sexo curtido da cangaceira (id. ibid.: 110).
A discussão de Chiavenato ajudou-nos a evidenciar aquilo que, no cangaço,
seria a maior motivação do medo das personagens femininas da narrativa por nós
abordada: elas amedrontavam-se diante das notícias das malvadezas de todos os
tipos que eram comentadas no sertão. Em O tronco, o pavor das mulheres diante de
uma possível invasão era aumentado pelas histórias de bravura dos cangaceiros em
todos os lugares.
107
O cangaceiro:
Na narrativa de O tronco, os coronéis Melo eram companheiros dos jagunços
Abílio Batata, Roberto Dorado e Maroto, chefes de bandos famosos pelos
massacres de Pedro Afonso, São Marcelo e Santa Filomena, no Piauí. A valentia de
Dorado era tanta que se dizia que ele “costumava dar de beber pinga com pólvora a
seus homens, para torná-los mais valentes” (OT., 1979: 174).
Boatos eram tecidos em torno da figura do cangaceiro Abílio Batata,
conhecido por suas proezas pelos sertões afora. Sua a amizade com Artur Melo era
conhecida de todos e era sabido que eles deviam favores entre si. Além disso,
falava-se de um pacto de sangue que teria com os Melo. Muitas eram as histórias
contadas acerca da vida do cangaceiro, que
(...) conhecia a região palmo a palmo. Fora comprador de
gado, fazendeiro em Pedro Afonso, tirador de borracha no
Xingu e maniçoba no Maranhão e Ceará. Uma vez sitiou
Pedro Afonso e após cinqüenta horas de fogo invadiu a
cidade, incendiou, matou muita gente. Foi dessa vez que
botou o pessoal de Enéias para correr de lá, tomando suas
fazendas, gado e haveres (OT., 1979: 135).
Ao se referir ao banditismo, Basbaum (op. cit.) o caracteriza como um
ambiente social cujo principal fundo norteador era a fome pura e simples. O bandiido
é uma criação das poucas oportunidades do sertão, são frutos naturais do meio,
buscando um modo de sobreviver. De acordo com Basbaum, “jagunço” (ou “cabra”)
é um tipo particular de homem: “o sertanejo sem terra e sem meios de obtê-la que se
transforma em guarda-costas, capanga, instrumento do dono da terra, do coronel”
(id. ibid.: 163).
O coronel, de acordo com a lei do sertão, nunca mata seu inimigo, nunca
ameaça quem o incomoda: manda o jagunço para faze-lo. É também o jagunço que
“tocaia”, num ato de traição e covardia, com objetivo de eliminar os incovenientes.
Os jagunços também foram usados nas lutas familiares que se perderam no tempo e
na terra, como se essa também guardasse ódios e rancores. Enfim, foram também
108
muito usados como instrumentos nas lutas de facções políticas, embora não tivesse
outra importância que atirar para matar e, na maioria das vezes, sem participar dos
motivos das contendas. Sobreviveram na impunidade porque, como salienta
Basbaum, o curto braço da justiça não alcançava o sertão, alimentando esse
sistema, essa ordem social (id. ibid.: 163).
O tronco é um repositório disso. O conflito iniciado com o inventário,
fraudulento na opinião da personagem Vicente Lemes, leva a uma acirrada luta
armada após a morte do Coronel Pedro Melo e do jagunço Mulato que o
acompanhava. A narrativa de Bernardo Élis mostra que o velho coronel, rendido à
voz de prisão que lhe foi dada, foi morto desarmado. Prevendo os acontecimentos
que se desenrolariam após o abuso de poder dos soldados, o Dr. Carvalho, tendo
armado uma situação favorável à comissão naquele momento, deixa sorrateiramente
a vila de madrugada. Para Vicente Lemes, o juiz saíra como um fugitivo, deixando a
vila em completo desamparo. E o povo que nele confiou? Seus pensamentos nos
são trazidos pelo autor implícito na figura do narrador fictício, possibilitando-nos ver
que com a morte do coronel é que Vicente passa a considerar mal a polícia. Até
então acreditava na possibilidade de se fazer valer os códigos e preceitos legais,
num idealismo ingênuo à realidade da época.
Ao matarem o velho coronel, os soldados revistaram-no, levando-lhe os
pertences e dinheiro. Assim, a polícia repetia uma prática muito comum entre os
bandos de jagunços, que não apoiavam os desmandos apenas a serviço dos
coronéis, visando também benefícios próprios: servir ao coronel era necessário à
sobrevivência, mas o “negócio” dos cangaceiros era o roubo, a pilhagem. A partir
dessas práticas, muitos cangaceiros enriqueceram, tornado-se independentes dos
coronéis, montando bandos próprios que podiam trocar serviços por alimento e
proteção.
No terno de linho branco, chapéu-de-panamá na cabeça,
punhos duros e lenço de seda no pescoço, Abílio Batata dava
ordens, fazendo faiscar os diamantes dos anéis (OT., 1979:
247).
109
A morte do coronel e de seu jagunço foi fruto da imprudência da polícia. Os
soldados, sob o comando do Tenente Mendes de Assis, todavia, argumentaram uma
falsa resistência à prisão por parte dos dois homens, em quem deram cruéis
coronhadas. O comportamento do Tenente Mendes de Assis nos leva à percepção
das contradições entre os oficiais: havia os que ali estavam para vingar suas honras,
para saldar com Abílio Batata e Roberto Dorado dívidas antigas. Esse era o caso de
Enéias, que não estava ali para cumprir um mero dever militar, nem para roubar,
como o soldado Tonhá, que roubou o coronel Pedro Melo depois de morto:
Enéias ali estava para derrotar os Melos, para destruí-los, para
acabar com eles e com seu parceiro Abílio Batata. Enéias ali
estava para vingar a derrota que Abílio infligira a seu pessoal
em Pedro Afonso, para vingar as mortes e os prejuízos que
Batata, com o apoio dos Melos, causara a seus parentes (OT.,
1979: 114).
Os corpos do coronel e do camarada Mulato vinham em uma só rede, ressalta
Bernardo Élis, unindo na morte aquilo que não se unia em vida: o sangue. A morte
do velho patriarca levanta rumores de um ataque dos homens de Artur à vila, pois
não seria perdoado o abuso de poder dos soldados e a traição do Juiz Carvalho.
Em “A força do coronel” (1990), Chiavenato discute, tendo como base seus
estudos sobre o bando de Lampião, a origem dos conflitos que marcaram o sertão
brasileiro. A origem de tudo isso é a terra, diz ele. “Chão sem dono, rico em
minérios, alimento e água (id. ibid.: 07). Em sua instigante análise, o caráter
oficialista da história do Brasil esconde o banditismo mascarado pelos atos dos
“heróis nacionais”, desde os remotos alargadores de fronteiras, exterminadores de
indígenas.
A grande diferença, historiograficamente, é que os bandidos
oficiais ganharam uma linhagem que os absolve, e, mais que
isso, os premia como heróis. Os bandidos comuns, pelo
contrário, são até mais estigmatizados, para realçar as falsas
virtudes dos primeiros (id. ibid.: 10).
110
Dessa forma, o autor distingue os bandidos em alta e baixa origem social”,
afirmando que o germe de tal diferenciação foi o modo inicial de “construir” o Brasil
das classes dominantes.
Bandeirantes, barões e coronéis transformaram-se em heróis
exemplares. Com a sedimentação do poder, seus herdeiros,
para impor sua força, apelaram para o banditismo feito pelos
deserdados sociais. O genocídio, os massacres, a escravidão,
são crimes que enobrecem. os bandidos comuns” sofrem o
duro julgamento da historiografia (id. ibid.: 14).
O autor tenta reforçar a idéia de que o cangaço é um fenômeno derivado dos
interesses do poder, de forma que o banditismo de controle social aprimora-se
deixando de ser uma prática do poder totalmente encoberta. Quanto às suas raízes,
ele as remonta a nculos com causas econômicas e suas derivantes psicossociais,
sobretudo a partir da grande seca que flagelou o Nordeste em 1877. As marcas de
tamanho flagelo acabaram por afetar profundamente o homem, produzindo cruéis
criminosos disseminados pelo sertão afora.
Quando Chiavenato afirma que os cangaceiros não impunham risco ao
sistema, usa uma lógica que convence: eles, que constituíam uma classe
potencialmente revolucionária, não eram revolucionários, uma vez que o
contestavam o sistema e lutavam porque viam na seca a origem de sua desgraça.
Mas lutavam contra a seca e a fome avassaladoras do sertão. Sem tradição de luta,
envolvidos numa situação de completa miséria, caíam no crime em busca da
sobrevivência impossível pelo trabalho honesto. Para Chiavenato, “não importava a
trágica ironia: (...) O importante para o latifundiário era formalizar a fraude,
transformar-se em vítima e exibir as vítimas reais como bandidos” (id. ibid.: 24).
Fica claro que cangaceiro não nasceu predestinado a esse “lugar ao Sol”.
Eles são crias das más condições de vida a que eram submetidos, das eternas
dívidas, das humilhações pessoais, das perseguições e impunidades diversas
cometidas pelos latifundiários. Trata-se de homens corrompidos pela dura realidade
do sertão, que se revoltaram em uma vingança cega contra fatos como o abuso
111
sexual de suas mulheres, irmãs e filhas pelos coronéis e seus protegidos. “Assim
nasceram os primeiros cangaceiros”, frutos de um conjunto de opressão social que
os levaram ao crime. Muitos o os desmandos conhecidos: espancamentos de
lavradores, estupros, saques, atropelos, desrespeito à ordem, às leis e,
principalmente às autoridades.
Chiavenato demonstra que um negócio de grande valia era a corrupção que
permeava as relações entre o cangaço e a polícia. Havia ligação de traficantes de
armas com o governo ou a polícia, de forma que os cangaceiros tinham armas iguais
às do exército e da polícia, muitas vezes de uso exclusivo das Forças Armadas.
Bernardo Élis, atento à história, mostra como isso acontecia a partir das lembranças
do vaqueiro Belisário, quando narra a astúcia do velho coronel ao roubar bens do
Governo Estadual, aproveitando de suas funções de Delegado: tratava-se de
algumas Comblains que o velho trazia dependuradas na
parede do quarto grande. (...) eram armas usada pela polícia
estadual. Quando o governo resolveu substituir esse
armamento por fuzis Mauser, determinou aos delegados de
polícia que recolhessem as armas dos destacamentos locais e
as enviassem para a Capital. Pedro Melo era delegado do
Duro e recolheu as Comblains do destacamento ali existente,
mas não as remeteu para Goiás. Limpou-as, poliu, consertou
com aquela habilidade que sabia ter, e as dependurou na
parede de sua casa. Ficaram ótimas as armas” (OT., 1979:
44).
A trágica narrativa de Bernardo Élis, em O tronco, chega a um ponto em que
pode-se perceber que Artur Melo perde o controle da situação para Abílio Batata e
Roberto Dorado. É o que informa um soldado da ronda que chega trazendo notícias:
(...) Ele num manda mais não. Quem manda agora é Abílio
Batata e Roberto Dorado. Artur é preso deles.
- É tal e qual, - confirmou Baianinho. Um chefe costuma
prender o outro que esta pegando a amolecer. No cerco de
Pedro Afonso foi desse jeitinho, sem tirar nem pôr. Lá, na hora
112
do pega pra capar, Abílio Batata pegou a bestar com a sela,
pegou a cair nas carnes, aí Roberto Dorado prendeu ele e
mandou a mecha. Isso é a lei deles. (...) Agora, ele um
manda mais não. Agora adeus padrinho, adeus madrinha,
adeus filho. Num tem irmão num tem irmã aqui para doer no
coração dele. Agora quem está comandando é Batata e Batata
num tem nenhum parente, nenhum amigo dentro do Duro. O
que Batata está querendo é a sebaça, minha gente! (OT.,
1979: 175-177).
Por um instante parece-nos que o autor daria um outro desfecho à história
que não o mesmo rumo violento e sangrento tomado como modelo da historiografia.
Todavia, nos é mostrado que os jagunços, apoiados nas decisões e na postura de
seus comandantes, não consentem recuar de um confronto armado com a polícia. O
ataque tornara-se uma questão de honra, que os cangaceiros Abílio Batata e
Roberto Dorado eram conhecidos por suas façanhas e proezas pelo sertão afora. A
situação é tensa para ambos os lados, pois os soldados também eram movidos em
parte por paixões, orgulho e mágoas passadas.
Segundo Chiavenato, historicamente a perseguição ao cangaço foi feita
basicamente pela polícia: as volantes (forças policiais, “macacos” e sertanejos
mercenários, os “cachimbos”). Geralmente a perseguição aos cangaceiros era
motivada por interesses pessoais, mas a guerra entre o cangaço era mediada pelos
interesses do latifúndio e da política. Não se lutava por princípios ou dever, é o que
demonstra O tronco. “Além do suborno, do tráfico de armas e dos coronéis que
impediam as volantes de lutar honestamente contra o cangaço, havia sua própria
fragilidade. Era uma polícia subnutrida, mal paga e destreinada, cuja única força real
era a violência” (id. ibid.: 115).
Em O tronco, a realidade da tropa era tal qual salienta Chiavenato: além das
contradições existentes entre os soldados, o pânico tomava conta da milícia. Num
primeiro momento, a polícia rendeu o pessoal de Artur” como reféns, na casa do
finado Pedro Melo: estavam a velha Aninha, mãe de Artur, Doutor Herculano Lima
113
com mulher e filhos, Tozão e família, Damião de Bastos e Joaquim Alves Leandro
com família. O objetivo não era outro senão impedir um ataque à vila.
Como Artur não se “solidarizou” com a situação de seus familiares e amigos,
porque não possuía mais o controle da situação, em meio ao desespero e às
ameaças de invasão, a polícia vai à casa da velha Aninha e prende todos os
homens ao tronco:
Damião de Bastos e os dois filhos; Joaquim Alves Leandro e
um filho; Melo Filho, irmão de Artur, Tozão, Abadia Ribeiro,
irmão de Cláudio, e Damasceno, camarada de Damião (...) Os
nove homens estavam, os pés metidos no tronco, que era
constituído de dois compridos esteios de madeira forte. De
espaço em espaço, possuíam esses esteios um corte em
meia-lua, justapostos, os cortes formavam buracos, nos quais
se metia a canela do cristão, que ali ficava jungido. De um
lado, unindo os dois esteios, havia uma dobradiça de ferro,
grosseira, feira ali mesmo, e de outro, uma espécie de aldrava
com cadeado (OT., 1979: 157).
A prisão dos homens ao tronco leva todos ao desespero, inclusive Vicente e
Valério que, sempre compactuados, agora entram em discordância. Vicente retruca:
- (...) Estou lutando contra Artur Melo é por causa dos seus
desmandos e não vou aceitar que a polícia faça a mesma
coisa. Eu quero que imperem as leis e não a vontade de Artur,
ou Vicente Lemes ou Severo. Não concordo com isso, de jeito
nenmhum! (OT., 1979: 149).
A resposta de Valério veio pronta:
- Olha, menino, nem governo não quer saber de justiça. Ele
apóia nós para fazer aquilo a que a lei não direto. Porque é
que Artur é respeitado? É porque segue a lei? Você vai ver.
você fica aí cheio de dedos com a prisão dos parentes e
amigos dele, não é? Pois Artur evém de com seus “rapazes”
114
e não respeita mãe, não respeita filha, nem cunhados, nem
amigos presos. Vai meter bala em riba de tudo. Fica
defendendo direito de Artuzinho para tu ver uma coisa! (OT.,
1979: 149).
Os soldados pareciam nutrir um ódio de morte aos prisioneiros do tronco,
olhando-os como se fossem inimigos pessoais há muitos anos. Enquanto isso,
Vicente Lemes sempre portador da carta de Eugênio Jardim, autorizando-o a dirigir a
política do Norte, imbuía-se de seu ideal de justiça, acreditando na possibilidade de
se imporem as leis e, por fim, choca-se com a realidade da tropa de policiais. Seu
questionamento o leva a descobrir os motivos do desespero da tropa:
- O quê? A munição não presta, as armas são más?
Xavier levantou uns olhos de incontida raiva: - Pois é esse o
segredo militar, meu velho! A munição não vale nada (...) em
cada dez, uma detona! A munição é velha, imprestável (OT.,
1979: 169).
O que para os soldados inicialmente era uma ameaça, como tempo
começou a parecer uma solução normal: o plano de matar os reféns presos ao
tronco foi se tornando uma deliberação inabalável”, pois a farda não poderia ser
desmoralizada. A morte do menino Hugo Melo, preso separado no quartel de
Severo, era também certa, como a das mulheres, no quartel de Mendes de Assis.
Ao ser avisado das deliberações da polícia, Vicente naquilo uma
verdadeira bandidagem: “Se vocês matam os presos, vocês são uns assassinos ,
uns bandidos piores do que os jagunços”. – diz ele (OT., 1979: 187).
Vicente sentiu o peso da culpa pela morte dos reféns cair sobre seus ombros.
O ataque, cheio de terror [que segundo Póvoa (1979) tomou a vila a 16 de janeiro de
1919, uma “quinta-feira sangrenta”], marca a irresponsabilidade do governo que, no
caso do Duro, reflete-se no momento de clímax da narrativa, com a morte
irresponsável dos prisioneiros no tronco. O comando do ataque ficou por conta de
Dorado, jagunço conhecido por outros ataques e atrocidades.
115
Era a lei da guerra. De nada valia a carta de Eugênio Jardim. Os reféns foram
mortos impunemente, em um momento de desespero dos soldados. Porém, o
momento mais marcante é, sobretudo, o momento da morte do menino Hugo Melo
ordenada pelo Tenente Severo. Hugo Melo estava preso desde que Dr. Carvalho
deu por terminado o processo de inventário: o menino andou bradando que havia
um trato entre seu pai e o juiz, garantindo-lhes a impronúncia. Severo, que era
considerado acima de qualquer suspeita, tido até mesmo por Vicente Lemes como
um homem sério e militar exemplar - talvez o único que defendia a vila com
dignidade – é o “digno e valente” comandante que ordena a morte do menino.
A ordem de Severo é dada ao soldado José Rodrigues que, ao ver o garoto
escondido atrás da porta, não teve coragem para o feito e saiu dizendo que lá não
havia ninguém. Severo chinga o soldado de covarde e medroso e vai, ele mesmo,
executar a morte. Severo estava ferido e, por isso tem dificuldade em pegar a arma,
assim, ele abarca o pescoço de Hugo com as mãos tentando asfixiá-lo. Em meio
àquilo tudo, o soldado Freitas Machado, que está por perto, viu naquele momento
uma oportunidade para limpar sua honra.
Na Grota ele não quis matar o velho desarmado e entregue e
por isso o viviam humilhando, chamando-o de covarde e de
medroso. O momento de limpar sua honra era chegado. (...)
Hugo Melo estava completamente desarmado, enfraquecido
pela fome e pela agonia da morte; Hugo não agüentaria
Severo que, embora ferido, era muito mais forte e muito mais
habituado com lutas. Era uma covardia matar Hugo naquelas
condições, pois Severo o liquidaria num piscar de olhos.
Todavia, Freitas carecia de limpar seu nome, precisava
demonstrar coragem, precisava fazer jus ao nome de soldado
valente. Freitas se aproximou e, num gesto rápido, meteu um
tiro de Comblain no peito de Hugo, que amoleceu nas mãos de
Severo e se amontoou ali no chão batido da salinha baixa, de
paredes esburacadas, feito um boneco de trapo (OT., 1979:
231-232).
116
Misto de desespero, covardia, imprudência e orgulho ferido da polícia, foi a
morte de Hugo Melo, que chamou no vazio, por ninguém: Gente, um copo d’água!
(...) Está doendo muito, acaba de me matar! (OT., 1979: 232).
Os soldados fugiram e, em seus lamentos, podemos visualizar uma realidade
cheia de contradições: em tempo de paz arrancam-lhes o couro no serviço; em
tempo de guerra expõem suas vidas na defesa de um ideal que eles nem sempre
partilham. Quanto aos os jagunços, tinham suas leis próprias. Os chefes nada lhes
pagavam, mas eles tinham o direito“ de saquear os inimigos. Esse “código” foi
cumprido, com rigor, nos municípios de São José do Duro e Conceição do Norte, e
os próprios amigos foram muito prejudicados.
Morreram os presos ao tronco, morreu Hugo Melo, morreu Baianinho, com
seu desejo de liberdade; fugiram os paisanos, os soldados... o cangaço
continuou.
Ficaram para trás o odor dos mijos e das fezes, a fedentina dos defuntos, sem
direito a sequer uma cova. As rezas e as crendices do povo não foram capazes de
deter a tragédia trazida pelo cangaço. Foi, de acordo com Gomes (1998), Póvoa
(1979), Campos (1987), entre outros, o exagerado emprego da violência em razão
do desinteresse estatal na consideração do problema; desinteresse que ao passar
dos anos criou uma realidade crônica. Assim, O tronco é considerado o maior
repositório da carga de violência que assolou o Estado de Goiás no começo do
período republicano.
Através do mundo íntimo de suas personagens, Bernardo Élis expõe a força
de suas reações diante da dura realidade a que estão expostas, renegadas pelas
leis que deveriam assegurar-lhes os direitos de cidadania. Suas personagens são
mediadoras da realidade a ser expressa e, por isso, suas palavras, seus gestos,
seus pensamentos, são carregados de tão alto poder de significação ao nos revelar
essa realidade.
Como diria Olival (1998), Bernardo Élis pertencia à categoria de escritores
que se empenhou, através de um comprometimento ideológico, na reforma social,
117
como agente participativo na luta pela renovação das instituições responsáveis pela
segurança do cidadão. Segundo a autora, sua literatura, engajada em ideais sociais,
perseguia as causas humanitária e estética. O tronco é um registro ímpar de seus
ideais.
118
Considerações finais
119
A proposta de resgatar as interconexões entre literatura, história e sociedade
a partir de uma abordagem sociológica das personagens do romance, levou-nos à
percepção de que o literato reconstruiu “tipos sociais” comuns à época e ao lugar em
que se desenrola a trama. A partir das personagens-tipo apresentadas pelo autor,
escolhemos algumas que nos serviram de fio condutor quando visamos delinear a
existência de “tipos sociais” correspondentes. São eles: o coletor, o coronel, o
camarada, o juiz, a mulher e o cangaceiro.
A análise da figura do coletor nos remeteu para a ineficácia da lei numa
região comandada pelo poder paralelo dos coronéis. O coletor era o representante
legal na região e, indo contra os poderosos coronéis, representava a oposição do
governo às lideranças locais da vila do Duro. Sua posição remete à promiscuidade
entre os espaços público e privado que marca a história do Brasil desde suas
origens. O drama vivenciado pela personagem durante toda a história, revela a
dificuldade de se executar os códigos legais numa terra onde o poder dos coronéis
se sobrepõe ao Estado e à justiça.
O coronel é o chefe político que se elevou ao posto natural de Chefe,
tornando-se possuidor de um poder incontestável. É o comandante que tira do
caminho, a qualquer custo, os empecilhos que interfiram na realização de seus
desígnios. Sua atuação no decorrer da narrativa demonstra a existência de um
poder tradicional, construído através dos tempos, desde sempre, e passado de pai
para filho, configurando o que a sociologia clássica consagrou como dominação
tradicional.
Ao camarada, o trabalho. Vivendo num regime de relações de trabalho que se
assemelha mais ao regime escravocrata do Brasil Império, as relações semi-feudais
que os ligam ao senhor, proprietário de terras ou de gado, os tornam também
propriedade dos coronéis. A eles, os camaradas devem inúmeros favores, além de
dívidas “fantásticas” originadas geralmente no armazém do coronel, de modo a se
manterem permanentemente em uma relação de dependência e subjugação.
Nesse contexto, os coronéis manipulavam seus “homens”, é o que deixa claro
a historiografia. Na ausência do poder do Estado eles, de uma maneira ou de outra
120
impunham sua vontade que se transformava em lei, a lei do sertão. A configuração
da crença no poder do “senhor” demonstra o quanto o poder do senhor paira sobre
“seus homens”, de maneira tão opressora que eles, dominados e subjugados, se
sentem na obrigação de obedecê-lo. Com isso, temos o panorama sócio-político-
econômico de uma época em que o trabalhador está preso à terra do senhor - o
grande latifundiário - por necessidades específicas, já que em termos de relações de
trabalho é o senhor quem detém os meios e os instrumentos de produção
necessários à atividade e à vida do sertanejo. É uma realidade captada pela
historiografia e que a literatura revela em extensão e profundidade.
Com relação à figura do juiz, pudemos, a partir da visão que Bernardo Élis
nos apresenta do regime coronelista na Primeira República brasileira, perceber a
questão da dubiedade das ordens para perseguição e punição aos cangaceiros, no
sentido de solucionar os impasses do contraditório relacionamento governo-coronel-
cangaço. Essa dubiedade nos remete a uma realidade em que a racionalidade legal
não se impôs como princípio e prática. As posturas dos juízes evidenciam o
isolamento do Estado frente às exigências mínimas de justiça social, remetendo-nos
à ineficácia do aparato legal na região do Duro, microcosmo do que se passava no
Estado e na maior parte do país. São três os tipos de juízes que pudemos visualizar:
o idealista, que acredita o tempo todo na possibilidade de se fazer justiça numa
região comandada por coronéis; o dominado, que demonstra a conivência do poder
legal com uma situação política em que se tem a transgressão como rotina e, por
fim, o corrupto, juiz preocupado unicamente com a realização de seus interesses
pessoais. Esses tipos revelam dilemas e tensões da justiça no Brasil.
À mulher, sem muita expressão na vida social, é delegado o espaço do lar e o
cuidado da família. Sua submissão ao marido representa uma quase anulação de
sua personalidade, tornando-a “quase” uma sombra dele. Socializada para o
casamento desde a mais tenra idade, sua preocupação é manter a unidade da
família, protegendo o lar de qualquer infortúnio. Assim se tocava a vida.
O cangaço, na narrativa de Bernardo Élis, exprime uma força incrível,
fazendo do romance um repositório singular das tensões políticas marcadas pelo
confronto da tropa policial do governo e da força armada dos coronéis. Representa
121
um poder paralelo organizado e movido em torno de paixões e mágoas que se
arrolam no tempo, fazendo do cangaceiro portador de uma terrível missão: vingar os
seus, que foram afligidos pelo poder dos coronéis e pelos infindos confrontos com a
policia. Assim, percebemos não ser o cangaceiro um predestinado à vida que leva e,
sim, fruto de tensões de um contexto social determinado.
Da forma como as abordamos, as personagens de O tronco revelaram-nos a
realidade a que remete o romance. A análise do texto literário, amparada pelo
diálogo entre texto e contexto, orientada pelas perspectivas de Antônio Cândido e
Karl Mannheim, considerou-as como um fio condutor para a apreensão das
significações que nos remeteram para o diálogo com as teorias, possibilitando-nos,
assim, compreender a dimensão sócio-histórica da obra.
Por fim, a análise nos remeteu a uma reflexão a respeito do “delicado”
equilíbrio entre história e ficção. As características de pesquisador em Bernardo Élis
foram muito questionadas, por andarem os críticos achando que ele “fazia
história”. Em 1967, Barbosa (op. cit.) já salientava: “Assim é de fato Bernardo Élis,
sobretudo neste romance O Tronco, por sinal extraído de uma história real, bem
entendido, de uma fato histórico ou simplesmente policial, acontecido em Goiás, nos
idos de 1917 e 1918, o qual de tão real que é parece te coisa inventada”. Por mais
que Bernardo Élis tenha frisado que
Tirantes os pormenores, os fatos centrais desta narrativa
aconteceram realmente em Goiás.
Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo
social que representam, são fictícios. O autor não quis retratar
ninguém, nem copiou de nenhum modelo vivo ou já falecido.
Qualquer semelhança com pessoa viva ou morta é mera
coincidência (Nota introdutória de O tronco.).
constatamos que a linha que separa os fatos históricos dos ficcionais, em O tronco,
é muito tênue. o muito imprecisos os limites, de forma que não podemos senão
mostrar que, ao dialogar com a historiografia, sobretudo com Quinta-feira sangrenta
122
(1979), de Osvaldo Póvoa, os documentos que reproduzimos nos remetem às
nossas personagens:
Figura 01: Coronel Joaquim Ayres Cavalcante Wolney.
Fonte: Póvoa, Osvaldo R. Quinta-feira sangrenta, 1979, p. 09.
123
Figura 02: Sebastião de Brito Guimarães, Coletor Estadual e líder do Partido
Democrata na Vila do Duro.
Fonte: Póvoa, Osvaldo R. Quinta-feira sangrenta, 1979, p. 16.
124
Figura 03: Manoel José de Almeida, o Juiz Municipal.
Fonte: Póvoa, Osvaldo R. Quinta-feira sangrenta, 1979, p. 21.
125
Figura 04: Coronel Abílio Wolney, aos 58 anos.
Fonte: Póvoa, Osvaldo R. Quinta-feira sangrenta, 1979, p. 14.
126
Figura 05: Casa do Coronel Joaquim Ayres Cavalcante Wolney. Em 1975, as únicas
alterações verificadas eram os fios da instalação elétrica, os meios-fios e o muro
caído, à esquerda.
Fonte: Póvoa, Osvaldo R. Quinta-feira sangrenta, 1979, p. 33.
127
Figura 06: Casa de D. Benedita Fernandes Cavalcante, Quartel de Sebastião de
Brito. Do outro lado da rua, na esquina, ficava o sobrado, onde os presos foram
assassinados.
Fonte: Póvoa, Osvaldo R. Quinta-feira sangrenta, 1979, p. 39.
128
Acreditamos que Bernardo Élis quis mais que reconstruir um contexto
específico da história de Goiás. Ele quis contar um pouco dessa história,
transfigurando-a à sua maneira, sem compromisso com a visão da historiografia
oficialmente sancionada. Dessa forma, a visão literária não divergiu da história
evidenciando, além das disputas de poder, a fragilidade de uma região distante da
capital e de outros centros populacionais e à mercê de um pacto: o pacto da
reciprocidade coronelista.
Fundamentados nas argumentações de autores clássicos sobre o
coronelismo, o que temos é a visão de um estado pobre, periférico e “atrasado”
trazida à tona. A carência de participação política nos centros de decisão e a
distância desses mesmos centros, relegou aquela região à sua própria sorte, sob um
domínio oligárquico, marcado pelas contradições da política local, estadual e
nacional.
129
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(...) já não se trata de copiar a realidade, mas reconstruí-la
conforme os nossos interesses e esperanças. É
preciso‘construir a necessidade de construir caminhos’...
Pedro Demo
130
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WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaio sobre a crítica da cultura. São Paulo:
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138
Anexos
139
ANEXO I:Entrevistas
Entrevista 01 Realizada com Neuza Alves da Silva. Hidrolândia-GO, março de
2003. A Sra. Neusa é filha de Arlindo Alves dos Santos (já falecido), companheiro de
Bernardo Élis no Movimento Comunista em Goiás.
Entrevista 02 Realizada com Eliete Xavier Fleury Curado. Goiânia-GO, maio de
2003. A Sra. Eliete é prima, em primeiro grau, de Bernardo Élis.
Entrevista 03 Realizada com Adolfina Alves dos Santos. Hidrolândia-GO, maio de
2003. A Sra. Adolfina trabalhou na casa de Bernardo Élis como doméstica, talvez no
ano de 1960.
Entrevista 04 Realizada com Diolina de Souza Santos e Vilma Alves Pereira.
Goiânia-GO, maio de 2003. Elas são, respectivamente, mulher e filha de Arlindo
Alves dos Santos (já falecido), companheiro de Bernardo Élis no Movimento
Comunista.
140
Entrevista 01: Neuza Alves da Silva
CRISTIANE: Dona Neusa, a senhora relata ter conhecido Bernardo Élis, eu queria
que a senhora colocasse para a gente qual foi o contexto e o que a senhora se
recorda dele com relação à sua obra. O que a senhora conhece da obra dele?
D. NEUZA: Eu conheci ele em 1955... 57 mais ou menos, na época que o Partido
Comunista era muito perseguido, então, eles reuniam assim pra... nas fazendas,
assim, escondidos pra poder traçar os planos de trabalho deles, né?, então o papai
também pertencia ao Partido Comunista, então eles reunia na casa do papai aqui no
Morro Feio
26
e a gente ficou conhecendo, ficou muito amigo, então, toda obra que
ele escrevia, ele dava um livro para o papai. Deu o Caminhão de Arroz [1962]
27
, nós
todos lemos, e muitos outros que eu nem lembro mais como... o nome. E a gente,
todo mundo ficou amigo, então aí, uma menina... minha prima foi trabalhar na casa
dele... a gente passeava na casa dele. Em 1960 a gente dormiu [de passagem
para Pires do Rio] na casa dele pra... de madrugada ele levou a gente na estação
de trem, que a gente ia embarcar. E a gente ficou todo mundo amigo. quando foi
em 64, que que entrou a Revolução, então o Partido foi mais esfacelado, mais
acabou, a gente perdeu mais o contato, evitava assim de encontrar, né, então foi
aonde agente perdeu mais o contato. E foi logo ele foi chamado né, pra Brasília,
para a Academia... de Letras, não sei bem a época que ele foi e perdeu o contato
direto, né. Mas ele era uma pessoa muito boa, ele sempre ia em casa assim aos
domingos, a gente ia para a casa dele... levava a mulher e os filho, né. Aí, depois
que ele foi para Brasília parece que ele se separou da mulher, os filhos eu não sei o
que aconteceu com eles, e a gente perdeu mais o contato com ele. Mas era uma
pessoa muito boa.
26
Região do município de Hidrolândia, caracterizada pela presença de uma serra assim denominada.
Local em que se estabelece a Chácara hoje intitulada Sítio Arlindo Alves, em homenagem ao seu
falecido proprietário.
27
De Acordo com Almeida (1970), com este livro Bernardo Élis concorreu a concurso instituído pela
Universidade Federal de Goiás, não logrando classificação e, apesar da determinação do então
Reitor Colemar Natal e Silva para a publicação da obra, ela não chegou a ser publicada. Veio a
público sim, em 1965, o livro Caminhos e Descaminhos, que trazia contos do desclassificado
Caminhão de Arroz, selecionados pelo escritor A. G. Ramos Jubé.
141
CRISTIANE: Com relação à ligação dele com o Movimento Comunista, a senhora
tem condições de relatar elementos mais fortes dessa ligação? O que a senhora
sabe dizer disso?
D. NEUZA: Não, o que eu sei é que eles reunia assim nas chácaras, nas fazenda,
lugar que ninguém sabia e eles ficavam semana reunidos, pra... traçar os planos
deles, marcavam os congresso, né, assim tudo escondido, porque não podia sair,
né. Tinha o jornal, eles liam o jornal lá escondido. O jornal era a Voz Operária. Esse
jornal era assim tido bem subversivo mesmo. Aqui em Hidrolândia tinha gente que
abria a correspondência de gente pra queimar o jornal, principalmente do papai, eles
abriam as correspondências para queimar e não entregar as correspondências, para
ele perder o vínculo com eles. Mas, foi muito tempo isso.
CRISTIANE: Então a senhora não manteve contato com ele na época em que ele
escreveu O Tronco?
28
D. NEUZA: Não, ele foi... acho que foi mais pra frente, né? Nessa época eu
lembro bem do Caminhão de Arroz [1962], que ele deu pro papai o livro. A gente era
pequena, não prestava muita atenção nisso nada, né? Mas eu lembro bem do
Caminhão de Arroz que o papai lia e falava “nossa, mas tem umas palavras feia
aqui, tinha aquelas palavra feia”... (risos), o papai ficava falando “nossa, mas
como é que escreve com umas palavra feias dessa?” (risos).
29
CRISTIANE: E a senhora se lembra de quem mais se reunia nessas reuniões
comunistas? A senhora poderia citar outros nomes?
D. NEUZA: reunia vários escritores, né, porque inclusive o Jorge Amado, o José
Godoy, que era um advogado em Goiânia e era escritor também, e tinha outros,
tinha um parece que é... Erli Brasiliense [Ely Brasiliense] juntava lá... O Jorge
28
A entrevista demonstra que os primeiros contatos mantidos com o escritor aconteceram justamente
no período em que fora publicada, pela primeira vez, a obra em questão; o que justifica a pergunta.
Fica clara, todavia, a imprecisão da entrevistada, com relação ao ano de publicação do romance O
tronco (1956), não se recordando, portanto, de tê-lo lido.
29
Aqui a entrevistada se refere às palavras “cagar” e “mijar” comuns em alguns textos do escritor.
142
Amado, ele escreveu aquele livro Gabriela Cravo e Canela [1958] nos fundos do
quintal do papai, deitado nas moitas de banana (risos), na chácara.
CRISTIANE: Lá era como se fosse um retiro das turbulências políticas da cidade?
D. NEUZA: Era como se fosse um retiro. ninguém sabia, inclusive quando eles
iam, os mais assim, mais recrutas eles nem sabiam para onde que iam. O Bernardo
Élis, ele sempre sabia, porque ele era um dos líder, mas os outros nem sabiam onde
que tava.
CRISTIANE: O pai da senhora era envolvido na vida artística goiana?
D. NEUZA: É, o papai era envolvido. Ele sempre gostou de ler demais e de música,
de cantar, né, então ele entrosava bem com esse povo.
CRISTIANE: E ele conheceu o Bernardo Élis onde? E como?
D. NEUZA: Nessas reuniões.
CRISTIANE: Então o pai da senhora era envolvido com o Movimento Comunista e
por morar numa localidade mais distante...
D. NEUZA: É... eles (...) tinha aqui um juiz de Direito aqui de Hidrolândia,
Sebastião Naves, então o Sebastião Naves foi o que pegou primeiro o contato com o
papai, né, arrumava com o papai pra levar o povo pra e foi onde o Jorge
Amado veio, o Bernardo Élis veio... tinha muita gente, muitas outras gente. Tinha
um... sujeito de São Paulo, um tal de Geraldo Tibúrcio, e esse sujeito tocava violão e
cantava bom demais e o papai adorava, aí eles faziam as reuniões de trabalho deles
durante o dia e quando era à noite eles tocava bem baixinho e cantava.
CRISTIANE : E dormiam aqui no Morro Feio a semana toda?
D. NEUZA: Dormia. Às vezes dormia no meio da palha de banana.
143
CRISTIANE: O Bernardo Élis inclusive?
D. NEUZA: O Bernardo Élis. Eles avisava que ia e o papai era pobre, não tinha cama
para todo mundo, então cortava aquele monte de folha de banana... de bananeira,
né. Nem a gente sabia, mas quando a gente via cortá as palha de banana, a gente
ficava curioso, né, pra saber... tinha visita. , fazia aquele montão de palha, eles
chegava meia noite, madrugada e arrumava as cama, a gente não sabia de nada,
dormia a noite toda, quando a gente levantava a varanda tava esteiradinha de gente.
CRISTIANE: Então a gente poderia caracterizar Bernardo Élis como uma pessoa
que conseguia viver na simplicidade do campo? Que se adequava bem à vida do
campo?
D. NEUZA: Ah... vivia tranqüilo, vivia tranqüilo. E além disso, ele ficava lá também,
assim, semana ele ficava lá, assim sem esses movimento ele ficava. Ficava assim
no fundo do quintal sentado.
CRISTIANE: A mulher dele vinha com os filhos?
D. NEUZA: A mulher vinha... a Violeta. Tinha os menino, os menino era o... José, o
Silas e o Ivo. O Ivo eu vi ele, assim depois que ele cresceu, mas o Silas tava
assim com uns 12, 13 anos foi embora para o Rio de Janeiro, disse que ia ser
bailarino. Eu não sei o que aconteceu. O José também eu não sei, o Ivo ficou muito
tempo com ele, porque sempre que a gente ia a gente via o Ivo, né, agora os
outros eu não sei o que aconteceu, não.
CRISTIANE: Quando vocês o visitavam, vocês iam onde? Na chácara dele? Na casa
dele?
D. NEUZA: A gente ia para a casa dele em Goiânia, no Setor Universitário. Ele
morava no Setor Universitário, ali na 10, pra passar pra Goiânia, passando... era a
primeira rua, pra baixo, era pra baixo, a primeira rua ele morava lá.
CRISTIANE: E a senhora se lembra como era a casa dele?
144
D. NEUZA: Era uma casa boa, era uma casa ótima, muito boa. Tinha carro...
e...esse dia que nos fomo pra Pires do Rio, ele levou a gente pra... pra estação de
madrugada pra embarcar. Era uma pessoa muito boa o Bernardo Élis.
Entrevista 02: Eliete Xavier Fleury Curado
CRISTIANE: D. Eliete, a Sra. Afirma ter conhecido Bernardo Élis. Qual era o vínculo
que a Sra. mantinha com ele e como eram os contatos?
D. ELIETE: Não tinha um vínculo assim muito chegado, pela diferença de idade, mas
ele era sobrinho de meu pai. E ele era assim... a gente ia na casa dele porque a
minha mãe era muito amiga da primeira esposa dele, que era a Violeta Metran
Curado, então a gente brincava com as crianças, mas nunca ficava perto porque ele
estava sempre recolhido a uma sala, sempre escrevendo, porque era a sala assim,
encantada: a gente chegava...não ele no escritório, então, para a gente aquilo ali
era uma sala encantada, mas a gente não entrava. É... que... nessa época, eu devia
ter meus 8, 10 anos, regulava, nós somos assim quase a mesma idade dos... com
os filhos dele, né? Então, era essa: a gente tinha muita amizade coma Violeta, tudo
mais, ele era sempre, sempre separado, sempre sisudo e ele não era muito de
freqüentar a nossa casa como o irmão dele, o Alberto, que é falecido também,
freqüentava. Mas a relação era essa, a gente sabia que ele mantinha os
pensamentos opostos aos da época, por causa do Comunismo, mas não era
comentado. Então a gente... sempre separado. Mas depois de casada eu fui várias
vezes na casa, quando ele era casado com a Maria Carmelita, e uma das vezes
nós fomos pra ver se ele arrumava alguns livros porque a minha menina ia prestar
vestibular e ele, nessa época ele pegou, deu uma coleção de livros pra ela, acho
que foi ade quando ele ganhou o prêmio Jabuti, então ele forneceu essa coleção
para nós.
CRISTIANE: Como a Sra. se lembra do comportamento dele em família?
D. ELIETE: Era uma pessoa assim... sisuda. Ele era de pouco falar. Assim, com o
meu pai ele se abria muito, conversava, mas a gente não entrava nos assuntos, né.
145
Então era... ele era muito sisudo, mesmo com a Violeta: ela sempre reclamava que
ele era aquele pai que não era um pai presente; era, a bem dizer, um pai ausente,
sempre dentro do escritório, escrevendo
30
.
CRISTIANE: E a Sra. se lembra de ter lido alguma obra dele?
D. ELIETE: Foi “Apenas um violão” [contos, 1984], foi o único livro que eu li a
respeito dele.
CRISTIANE: E a Sra. considera que essa obra retratava a realidade que ele viveu?
D. ELIETE: Nesse livro, “Apenas um violão”, uma das histórias, a gente lendo,
porque eu vivia na casa do vovô em Goiás, então a gente via a descrição, direitinho,
do quintal, da casa, do hábito da família, porque ele morou em Goiás muito tempo,
porque ele veio para estudar no Liceu e ficou, morou na casa do avô
31
.
CRISTIANE: E a Sra. comentou algo sobre o relacionamento dele com o
Comunismo. O que a Sra. se lembra disso para retratar pra gente?
D. ELIETE: Dessa parte, a gente sabia sempre porque esse irmão dele que era
militar do Estado, ele sempre... era a época que ele juntava com, tinha uns outros
parentes também comunista, eles sempre quando sabia que ia... vai...vão prender,
vão fazer isso ou aquilo ele avisava papai e eles sempre na madrugada eles
carregavam o Bernardo, o Clóvis e os demais que eram comunista naquela época,
porque não era bem quisto na época, né? E eles iam para uma fazenda ou em
Corumbá ou qualquer outro lugar que eu não sei, e ali eles ficavam até seis meses.
CRISTIANE: E esse tempo em que ele ficava desaparecido, ninguém dava notícia
dele?
30
Com relação aos três filhos do escritor, frutos de seu casamento com Violeta Metran (com a
segunda esposa, Maria Carmelita ele não teve filhos), a entrevistada relata não saber do paradeiro de
José Simeão; quanto aos outros dois, as últimas notícias que teve foi de que Silas é cineasta nos
Estados Unidos e Ivo é oftalmologista no Rio de Janeiro.
31
Sobre este aspecto, a entrevistada relata, em um momento informal da entrevista que não chegou
a ser gravado, a existência de algumas pessoas, parentes ou conhecidas da família, que, ao lerem
as obras de Bernardo Élis, por vezes ficavam furiosas por lá se perceberem e perceberem as
contendas em que se encontravam inseridas. Era, para muitas, um retrato de suas vidas reais.
146
D. ELIETE: Ninguém dava notícia, ninguém perguntava, ninguém comentava.
CRISTIANE: E a família dele, ia junto?
D. ELIETE: Não. Ele sozinho; a família ficava. Eu nunca soube, assim que, Violeta
tivesse acompanhado com as crianças, não. Sempre, só ele.
CRISTIANE: E... sobre o livro O tronco, especificamente, a Sra. sabe de algum
comentário dele, sobre o seu posicionamento ao escrever essa obra?
D. ELIETE: Não. Dessa obra eu o sei nada, porque eu mesma nunca li. O único
livro do Bernardo que eu gostei, que eu li, quer dizer, é “Apenas um violão”, que é
um livro fino, porque eu não sou muito dada à leitura não, sabe? (risos...) Então eu
não me apego ao estilo dele, porque eu não sou assim, falar assim, apaixonada
igual todo mundo fala: eu to apaix... eu o apaixonada pelo Bernardo, pelas leitura
dele, pelas obras dele, não.
Entrevista 03: Adolfina Alves dos Santos
CRISTIANE: Dona Adolfina, a Sra. conheceu Bernardo Élis quando?
D. ADOLFINA: Eu conheci ele acho que em 55, que ele vinha ai em casa. Em 55 ele
vinha ai na fazenda onde que nóis morava, através do meu pai, né, que ele vinha aí,
gravava assim por exemplo: a minha mãe fiava ele gravava ela fiando, a minha irmã
tecia, né, ele gravava ela tecendo.
CRISTIANE: Ele filmava?
D. ADOLFINA: Não. Ele tirava retrato delas fiando, da Bastiana fiando, cardando
algodão, da Bastiana tecendo, a minha mãe fiando, né. Gravava esses trem tudo
na roça.
CRISTIANE: E ele falava para quê esses retratos?
147
D. ADOLFINA: Uai... parece que era p... não, eu não lembro, que eu era pequena
naquele tempo, eu não lembro muito. Mas sempre ele tava na fazenda, sempre
quando era na época da jabuticaba eles vinha aí chupar jabuticaba.
CRISTIANE: E qual era o vínculo dele com a família da Sra., só de amizade?
D. ADOLFINA: É, só amizade.
CRISTIANE: E aí, depois, a Sra foi trabalhar na casa dele?
D. ADOLFINA: É... depois que meu pai faleceu, né, aí a minha irmã foi, depois eu fui.
Fiquei uns três mês lá, fazendo o serviço de doméstica: arrumava, passava,
cozinhava, fazia tudo o serviço doméstico, lá no Lar Brasileiro, que eles morava lá no
conjunto Lar Brasileiro, um conjunto pequeno, em Goiânia, no Setor Sul.
CRISTIANE: E a Sra. se lembra do Bernardo Élis como?
D. ADOLFINA: Assim, ele era uma pessoa excelente, . Assim, ele era escritor,
escrevendo livro, umas coisa pra lá, mais na vida particular dele eu... (risos), num...
via ele escrevendo lá nos quarto eu, na biblioteca, né, eu limpava e pronto. Com a
mulher eles vivia muito bem os dois. Com a Violeta.
CRISTIANE: E a Sra lembra de algum comentário que ele fazia com relação às
obras que ele estava escrevendo?
D. ADOLFINA: Não. Isso eu não lembro não. Também eu nunca me participei, eu
cuidava do meu serviço mesmo, né.
CRISTIANE: E a Sra soube, na época, de algum envolvimento do Bernardo Élis com
o Movimento Comunista?
D. ADOLFINA: Não... acho que já não convivia mais não, né, já... foi bem pra
frente... também, se convivesse tambémeu não prestava conta dos que eles fazia
pra lá. Não dava muita atenção (risos). Iisso é pouco.
148
Entrevista 04: Diolina de Souza Santos e Vilma Alves Pereira
CRISTIANE: O que a Sra. se lembra de Bernardo Élis?
D. DIOLINA: Quando era fim de semana, sábado, ele ia lá pra casa, dormia lá.
Quando era domingo, almoçava, depois saia, passeava pelo quintal tudo. Nesse
tampo ele era comunista, né. Ele ficou muito tempo lá em casa. Ele, uma turma dele:
tinha o Godoy, que era amigo dele. Um dia ele foi em casa e o Arlindo falou pra
ele assim: ‘Bernardo, eu com uma vontade de ir na casa dum amigo meu no
Natal’, ele falou ‘e porque que cê num vai?’, ele falou é porque é custoso eu sair aqui
com as meninas e pegá ônibus e depois pegá, porque eu quero levá elas é de
trem, porque elas não conhece trem de ferro, né. Aí nós fomo. Ele levô e nóis dormiu
e ele levô nóis na Estação Ferroviária, nóis pegô o trem e foi. Nóis saiu em
Pires do Rio e depois quando foi no ôtro dia o Arlindo falou assim: agora nóis vamo
de ônibus, né. Nóis foi de trem e vortô de ônibus, aí o Bernardo falô pra nóis quando
nóis saimo de lá, ele falô que se quisesse ele ia buscá, o Arlindo falô ‘não, agora
nóis pega o ônibus perto da Estação Ferroviária, não precisa do cê leva nóis não’.
O que eu sei é disso.
CRISTIANE: A Sra. falou que ele era comunista. O que ele ia fazer na chácara da
senhora?
D. DIOLINA: Ia conversar com o Arlindo, sobre o Movimento Comunista. Que ele era
chefe mesmo.
CRISTIANE: Ele era um dos comandantes?
D. DIOLINA: É. O Bernardo, o Godoy... naquele tempo não podia abri o bico que
eles pegava, prendia. As menina minha foi uma delas que eles chamou elas pra
depor, né. Nesse tempo Bernardo Élis tava em casa? [ela pergunta para sua filha
Vilma]
32
.
32
Como a Sra. Diolina se considera ‘bem de idade’, nos seus 78 anos, sentia que sua memória
estava falhando e, por isso, convidou a filha para que a ajudasse na entrevista.
149
D. VILMA: Não. Não tava, não. Ele ia mas ele não ficava lá, né. O Bernardo Élis
nunca ficou assim, porque teve uns que ficaram escondidos, né, em casa. Alguns
companheiros perseguidos na época da Ditadura Militar, ficavam em casa. Agora,
o Bernardo Élis, ele assim..., eles falavam simpatizante, né, do Partido Comunista
Brasileiro, então eles faziam reuniões, às vezes eles ficavam semanas fazendo
reuniões, discutindo as estratégias do Partido, discutindo os rumos do Partido aqui
em Goiás. Então eles faziam reuniões na chácara, na roça mesmo, sabe, sentava
lá no mato. De noite eles iam dormir, mas ficavam o dia inteiro embaixo das árvores,
discutindo as estratégias do Partido, os rumos que o Partido ia tomar e o Bernardo
participava dessas reuniões, mas o Bernardo mesmo não chegou, assim, a ficar
em casa escondido, não. Ele participou de reuniões, e em função disso ele ficou
amigo, né, então ele ia chupar jabuticaba, ele ia visitar a gente, né, ele chamava
para a gente vir na casa dele, então era assim, ele era uma referência para a
gente aqui em Goiânia, né. Assim como outros simpatizantes, o José Garcia Godoy,
que era um outro simpatizante da época também, que era escritor também (...).
CRISTIANE: Vocês precisaram depor, com relação ao Movimento?
D. VILMA: É... quando... foi assim, em fim de 71, início de 72, em 71 eles
fizeram uns encontros na chácara, só que eram encontros mais jovens, né, de
estudantes, porque tinha ala jovem, né, do Partido Comunista. Foram muitos jovens,
estudantes, e estudante, né, muito assim, sem aquela preocupação que os adultos
tinha, né, os mais idosos, os militantes antigos, eles tinham os cuidados com a
segurança, né, e os estudantes empolgavam, né, e aí foram alguns estudantes que
participavam do Partido Comunista e, nesses estudantes foram infiltrados agentes
do DOPS, porque eles falavam para todo mundo, né, e foi agente do DOPS
infiltrado. Aí, bom, passou uns dias, né, eles pegaram e esse agente do DOPS
dedou todo mundo que tava e, aí eles prenderam, foram prendendo várias pessoas
que eram estudantes na época e que tava lá. A gente tava lá. A gente não
participava das reuniões, que nessa época eu mais a Lola, a gente morava aqui em
Goiânia, a gente conhecia eles, fazia retiro fim de semana, quando eles tava lá, mas
a gente o participava das reuniões, a gente ficava na cozinha fazendo a comida,
que era muita gente, né. Às vezes tinha um homem, um ou dois, que ficava também
pra fazer a comida e a gente não participava das reuniões, mas a gente era
150
simpatizante. E eles prenderam, né, prenderam alguns do movimento estudantil,
né, e eles prenderam e falavam “não adianta negar, porque, né, a gente já sabe”.
E prendeu o estudante chamado Ismael, torturaram o Ismael, foram torturando e ele
foi contando os nomes das pessoas que estavam lá, ele falou os nossos nomes,
meu e da minha irmã. Nessa altura eu estava em o Paulo, na Piracicaba, tinha
casado e tava fazendo Mestrado lá mais meu marido. E aí o Ismael, ele não
agüentou porque ele foi torturado, tanto que nós viemos aqui passear, num feriado
de 07 de setembro, quando nós chegamos em São Paulo tinha o jornal que a
gente tinha assinado, o Folha de São Paulo, tava lá que... a notícia daqui de Goiânia
[era o auge da Ditadura], que o pobre Ismael, num gesto tresloucado, contando que
ele tinha se suicidado nos cordões da cortina da sela que ele tava, na Polícia
Federal, só que o Ismael era de família importante aqui de Goiânia e a família,
quando eles deram a notícia que ele tinha suicidado, a família deu em cima e foi
para Brasília e mexeu lá com os grandes e fizeram eles devolver o corpo. Aí,
devolveram ele para a família desse jeito. Mas na época da Ditadura, quer dizer,
nenhum jornal ousava contar a verdade, porque senão os jornalistas eram punidos.
Então o que saiu no jornal era que ele num gesto tresloucado havia se suicidado nos
cordões da cortina e a gente ficou sabendo como é que o corpo dele estava, né:
com os dois olhos furados e as unhas todas arrancadas. Então, foi nesse
momento que ele denunciou todos os estudantes. Aí, eles iam chamando e diziam:
não precisa negar que a gente já sabe. Chamou todo mundo para depor. A Lola
(Maria Antônia) teve que vir depor e eu tava em São Paulo e tive que vir aqui duas
vezes pra depor. A gente negava, a atitude nossa era de negar, na verdade a gente
não participava das reuniões, a gente sabia o que eles discutiam. A gente falava que
não sabia de nada. Eu mais a Lola não chegamos a ser presas. O papai foi intimado
várias vezes pra vir depor, mas o papai era muito vivo, muito inteligente, então ele
fazia de bobo, sabe? Ele sabia de tudo, ele lia o jornal Voz Operária, naquela época
o papai tinha malas e malas de Voz Operária, eles faziam os encontros, liam,
discutiam o jornal lá, que era o jornalzinho do Partido Comunista e deixava lá,
aqueles jornais que ninguém dava bola, né. O papai sabia de tudo, lia, era
superinformado, o papai tinha participado de um congresso em São Paulo um tempo
antes, uns anos atrás. Papai era bem informado, que quando eles chamaram
papai pra depor, o papai falou assim “eu tenho que dar uma de bobo”. E como ele
era da roça, coitado, né, ele vestiu a pior roupa dele, pegaram ele e trouxeram
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ele, né, pra depor. Era ali no 10º BC, aquele batalhão ali do Jardim Guanabara.
papai veio com aquela roupa, facão na cintura, roupa de algodão (risos), né,
tem um pasto verdinho, né, papai chegou: ‘Ôh, sô, mas que pastim bão de faze
uma roça! (risos) Deu uma assim de matuto, falou não, não sei não, e eles
disseram, ‘mas e o jornal?’, quando eles bateram em casa eles acharam Voz
Operária pra todo lado, o papai, falava ‘ói, acho que é negócio de religião, eles
reunia aí, é negócio de religião’, fez de conta que não sabia nada. Ele
desconversava, e no final não foi incriminado, porque era um crime grave o de
acolher, né, perante e Ditadura era um crime grave aquilo, né, mas o papai
desconversava e dava uma de camponês mesmo, matuto, falava errado. Os que
tinha maior culpa realmente foram presos, eu e a Lola não fomos, mas tivemos que
depor. O Bernardo Élis, quer dizer, ele não chegou a ser preso, mas de vez em
quando ele tinha que depor, porque a Ditadura ficava de cima, mas ele era discreto
e não era a liderança; as lideranças e alguns camponeses é que tiveram que correr
e alguns muito envolvidos que lideravam realmente o movimento é que foram
incriminados, presos, torturados, né.
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