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FAU-USP
DEUSA MARIA RODRIGUES BOAVENTURA
URBANIZAÇÃO
EM GOIÁS NO
SÉCULO XVIII
PROF. DR. MÁRIO HENRIQUE SIMÃO D’AGOSTINO
Orientador
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URBANIZAÇÃO EM GOIÁS NO SÉCULO XVIII
DEUSA MARIA RODRIGUES BOAVENTURA
URBANIZAÇÃO EM GOIÁS NO SÉCULO XVIII
TESE APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ARQUITETURA
E URBANISMO DA FAU-USP PARA A OBTENÇÃO DO
GRAU
DE DOUTORA EM HISTÓRIA E FUNDAMENTOS DA ARQUITETURA
E
URBANISMO.
Orientador:
Prof. Dr. MÁRIO HENRIQUE SIMÃO D’AGOSTINO.
FAU-USP
2007
DEDICATÓRIA
ão poderia deixar de dedicar os quatro anos de árduo trabalho àquele que sempre foi o meu
maior incentivador e incansável companheiro. Ao grande amigo e professor Mário Henrique,
TRÊS DEDICATÓRIAS ESPECIAIS
N
a quem carinhosamente chamamos de Maique.
Aos meus pais, pela minha vida.
Ao Alberto, meu marido, e às minhas filhas Lorena e Carolina, sem os quais não teria forças
para alcançar o fim de mais uma jornada.
AGRADECIMENTOS
tese que agora apresento não foi apenas fruto de meus esforços pessoais, pois todo o seu
desenvolvimento contou com a participação e o auxílio de diversas pessoas e instituições, às
A
quais agora, com muita satisfação, agradeço. Em primeiro lugar, ao meu orientador, e por que não
dizer o meu grande mestre o Professor Dr Mário Henrique Simão D’Agostino, ao qual quero expri-
mir publicamente o meu mais profundo reconhecimento e agradecimento por suas orientações
teórico-metodológicas, seus diálogos, companheirismo, entusiasmo e profundo respeito ao sugerir
as modificações nos textos que lhe foram apresentados, o que, seguramente os enriqueceram.
Aos membros da banca de qualificação, professores Dr. Benedito Lima Toledo e Dra. Ana
Paula Torres Megiane, não só por suas disponibilidades como também pelas pertinentes observa-
ções que apontaram no trabalho.
Ao pesquisador português Mário Clemente Ferreira, pelo apoio e gentileza ao presentear-me
com o seu importante livro O tratado de Madrid e o Brasil Meridional e com o livro e a tese de Renata
Araújo Malcher, além de documentos importantes de seu acervo pessoal, sem os quais este trabalho
não obteria o mesmo resultado.
À professora Dra. Maria Helena Flexor, por encaminhar-me suas publicações mais atualizadas,
ajudando-me a refletir sobre algumas das minhas indagações.
À historiadora e paleográfa Maria Lenke Loiola, pelo substancial auxílio relativo às transcri-
ções e interpretações dos inúmeros manuscritos setecentistas existentes no Instituto de Pesquisa
Histórica do Brasil Central.
Ao artista gráfico e arquiteto Laerte Araújo Pereira, ex-professor e extraordinário compa-
nheiro, por presentear-me com o projeto gráfico desta tese.
Ao grande amigo e ex-aluno Rodrigo de Almeida Bastos, por gentilmente acompanhar-me
aos arquivos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e do Exército, onde horas a fio se dispôs a
fotografar alguns documentos iconográficos.
Ao Gustavo Amaral, amigo e companheiro, a quem também tive o prazer de ser professora,
por ajudar-me incessantemente na construção de vários mapas.
Às amigas Juliana de Almeida e Viviane Cruz, por me acolherem gentilmente em suas residên-
cias em São Paulo ao longo de todo o tempo em que estive cursando as disciplinas do doutorado.
Às minhas filhas Lorena e Carolina Boaventura, por inúmeras vezes me acompanharem nas
visitas às cidades estudadas, ajudando-me a fotografá-las.
Também não gostaria de deixar de lembrar de todos os funcionários das instituições nas quais
fiz inúmeras consultas por longos dias, aqui representados pelo atencioso paleógrafo Antônio Cal-
das Pinheiro, do IPEHBC da Sociedade Goiana de Cultura/ UCG. Palavras de atenção também
dirijo àqueles que trabalham no arquivo da Biblioteca Nacional e do Exército, do Rio de Janeiro; no
Arquivo do Estado e na Biblioteca Mário de Andrade, de São Paulo; no Arquivo do Estado e
do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás; na biblioteca da Universidade Federal de Goiás e no
arquivo da SANEAGO (Saneamento de Goiás), em Goiânia onde obtive cópias atualizadas de
vários mapas de cidades goianas e, por último, no Arquivo Frei Simão Dorvi, da cidade de Goiás.
E, por fim, os meus mais profundos e ternos agradecimentos ao meu companheiro Alberto
Boaventura e, mais uma vez, às minhas duas filhas, por nunca reclamaram das minhas eternas au-
sências do convívio familiar e por sempre apostarem em mim, não me deixando desanimar perante
as dificuldades e os percalços encontrados no curso desses quatro longos anos.
RESUMO
urbanização da Capitania de Goiás esteve na dependência direta da política centralizadora de
ocupação colonial portuguesa do século XVIII, particularmente no que se refere à expansãoA
e legitimação do território além do meridiano de Tordesilhas e ao descobrimento de importantes
pontos mineratórios localizados na região central do Brasil. A consolidação dessa política e, conse-
qüentemente, da ocupação de Goiás, coube ao colonizador que, colocando-se a serviço da averigua-
ção de míticos imaginários, utilizou os recursos de uma cartografia em crescente desenvolvimento
desde o século XVI e que lhe permitiram comutar imprecisas informações e relatos em cálculos
exatos e ter uma real visualização do novo espaço. Com essas ações, formaram-se na Capitania mais
de cinqüenta núcleos urbanos, segundo uma tradicional concepção do urbanismo português, que
previa a realização de levantamentos topográficos e o uso de mapas feitos por sertanistas, engenhei-
ros militares e governadores que, juntos, se responsabilizaram pela organização e desenho do terri-
tório. Outras formas estratégicas de ocupação territorial também foram adotadas por Portugal, tais
como a criação da prelazia e de paróquias, a abertura de caminhos, a adoção do sistema sesmarial, a
fundação da capital e o incentivo às atividades mineratórias e agropastoris. Para a efetiva posse do
território goiano, a Coroa lusa implantou também normas indigenistas e incentivou a construção de
aldeamentos desde a primeira metade do século XVIII, os quais, embora sem a perfeição de traçado
alcançada no período pombalino, foram concebidos a partir de praças centrais, retangulares ou
quadradas, inscritas em malhas previstas, cujas características garantiram a continuidade de uma
tradição portuguesa de desenho urbano erudito e regular, que se baseava em princípios matemáti-
cos e geométricos.
ABSTRACT
T
he urbanization of the Captainship of Goiás founds its explanations in a group of factors
that are related to the Portuguese centralizing politics of colonial occupation in the 18
th
century,
particularly those that are referred to the expansion and legitimating of the territory beyond the
Tordesilhas meridian, and to the discovering of important mining spots localized in the central
region of Brazil. The consolidation of the politics and, consequently, of the occupation of Goiás,
was carried by the colonizer, which, with the access to a cartography that had been developed since
the 16
th
century, set to the purpose of the checking imaginary myths, transforming inaccurate
information and reports into exact calculation and a real visualization of the new space. With these
actions it was created on the Captainship more than fifty urban clusters, following a traditional
conception of the Portuguese urbanism, with topographic studies and maps made by peasants,
military engineers and governors which together were responsible to the organization and the mapping
of the territory. Another strategic ways of territorial occupation were also implemented by Portu-
gal, such as: the creation of the prelature, of the parishes, the opening of colonial ways, the adoption
of the sesmarial system, the foundation of the capital and the stimulation of the mining and
agricultural activities. Due to the possession effectiveness of the territory, the Portuguese crown
also implemented Indian regulations and stimulated the construction of villages since the first half
of the 18
th
century, which, even though, without the perfect drawing reached on the Pombalin
period, were conceived with rectangular or squared central squares, inscribed into predicted streets,
which it characteristics guaranteed the continuity of a Portuguese tradition of erudite and regular
urban drawing that was based on mathematical and geometrical principles.
LISTA DE FIGURAS
Fig. 1 – Mapa da Capitania de Goiás. Fonte: TEIXEIRA NETO, Antônio. In: Palacin, Luís;
GARCIA, Leônidas Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em Documentos: Colônia. Goiânia.
Goiânia: UFG, 1995, p. 44.
Fig. 2 – Mapa do Arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, seção cartografia: CÓDICE –
CART 1079075 f 01.
Fig. 3 – A bandeira pioneira de Domingos Grou e Antônio Macedo (1590-1593), segundo Manoel
Rodrigues Pereira. Fonte: apud: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central: Eco-
história do Distrito Federal; do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p.41.
Fig. 4 – Expedição de João de Souza Botafogo, continuada por Domingos Rodrigues (1596-1600),
conforme M. R. Ferreira. Fonte: apud: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central:
Eco-história do Distrito Federal; do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p.42.
Fig. 5 – Bandeira de Nicolau Barreto e dos mineradores paulistas (1602-1604), por M. R. Ferreira.
Fonte: apud: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central: Eco-história do Distrito
Federal; do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p.44.
Fig. 6 – Itinerário de Martim Rodrigues Tenório de Aguiar (1608-1613), segundo M. R. Ferreira.
Fonte: apud: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central: Eco-história do Distrito
Federal; do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p.45.
Fig. 7 – Etnias do século XVIII. Fonte: Desenho de Gustavo Amaral elaborado a partir do Atlas
Histórico de ROCHA, Leandro (coord.). Atlas Histórico: Goiás pré-colonial e colonial. Goiânia:
Editora CECAB, 2001.
Fig. 8 – Vila Boa em relação ao meridiano de Tordesilhas – Desenho: Gustavo Amaral
Fig. 9 – Vilas e arraiais da Capitania de Goiás, séc. XVIII. Fonte: TEIXEIRA NETO, Antônio. In:
Palacin, Luís; GARCIA, Leônidas Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em Documentos: Colô-
nia. Goiânia. Goiânia: UFG, 1995, p. 44.
Fig. 10 – Detalhe do primeiro mapa de JoãoTeixeira Albernaz II, de 1665, mostrando o Rio Araguaia
e a Ilha de Paraupaba. In: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central: Eco-história
do Distrito Federal; do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p. 51.
Fig. 11 – Detalhe do segundo mapa de JoãoTeixeira Albernaz II, de 1670. In: BERTRAN, Paulo.
História da terra e do homem no Brasil Central: Eco-história do Distrito Federal; do indígena ao coloni-
zador. Brasília: Verano, 2000, p. 52.
Fig 12 – Detalhe do terceiro mapa de JoãoTeixeira Albernaz II, de 1675, com identificação da lagoa
onde há muito salitre. In: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central: Eco-história
do Distrito Federal; do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p. 53.
Fig. 13 – Carta Topográfica da região do Rio Claro e Pilões, 1805. SALLES, Gilka V. F. Economia e
escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1992, p. 100.
Fig. 14 – Mapa da Capitania de Goiás, atribuído a Francisco Tosi Colombina, cópia do original do
AMU, Lisboa.Fonte: FONTANA, Riccardo. Francesco Tosi Colombina. Brasília: Charbel, 2004, p. 50-51.
Fig. 15 – Mapa de Tosi Colombina. Fonte: FONTANA, Riccardo. Francesco Tosi Colombina. Brasília:
Charbel, 2004, p. 50-51.
Fig. 16 – Mapa da Capitania de Goiás, elaborado pelo engenheiro militar Tomás de Souza. Fonte:
Original Arquivo da Casa da Ínsua – Portugal.
Fig. 17 – Mapa dos Julgados da Capitania de Goiás, feito por Tomás de Souza a mando do Gov.
Barão de Mossâmedes. Fonte: AHE-RJ.
Fig. 18 – Detalhe do mapa do Rio Tocantins da época de José de Almeida. Fonte: AHE-RJ.
Fig. 19 – Mapa da Capitania de Goyazes e todo o sertão por onde passa o Rio Maranhão ou Tucãtins.
Fonte: BNRJ, códice 1033413, dimensões: 4673x 3287.
Fig. 20 – Demarcação do termo da Vila de Paracatu do Príncipe, com a indicação de caminhos que
chegavam a Capitania de Goiás, 1800. Fonte: COSTA, Antônio Gilberto. (coord.). Os caminhos do
ouro e a Estrada Real. Belo Horizonte: UFMG; Lisboa: Kapa Editorial, 2005, p. 104.
Fig. 21 – Caminho do Anhanguera. Fonte: Desenho de Gustavo Amaral elaborado a partir do Atlas
Histórico de ROCHA, Leandro (coord.). Atlas Histórico: Goiás pré-colonial e colonial. Goiânia:
Editora CECAB, 2001.
Fig. 22 – As primeiras vias de penetração na Capitania de Goiás. Fonte: VALE, Marília Maria Brasi-
leiro Teixeira. Arquitetura religiosa do século XIX no antigo Sertão da Farinha Podre. Tese de doutoramento.
São Paulo: FAU-USP, 1995, p. 8.
Fig.23 – Caminho Velho que passava na região do Triângulo Mineiro, antiga Farinha Podre. Fonte:
“Mappa da Capitania de São Paulo, e seu sertão em que servem os descobertos, que lhe forão
tomados para Minas Geraes, como também o caminho para os Goiazes, com todos os seus pouzos,
e passagem, delineado por Francisco Tosi Colombina”. BNRJ, códice 1033415.
Fig. 24 – Representação dos Caminhos e do Registro de São Marcos nos documentos: “Mostrace
nesse Mapa o Julgado das Cabeceiras do Rio das Velhas [Rio Araguari] e parte da Capitania de
Minas Geraes com a devida de ambas as capitanias”, por Joze Joaquim da Rocha, 1780. Fonte:
COSTA, Antônio Gilberto. (coord.). Os caminhos do ouro e a Estrada Real. Belo Horizonte: UFMG;
Lisboa: Kapa Editorial, 2005, p. 105.
Fig. 25 – Nova Fortaleza de Nossa Senhora de Nazareth Fonte: REIS FILHO, Goulart. Imagens de
Vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000.
Fig. 26 – Mapa dos Registros. Fonte: ROCHA, Leandro Mendes (org.). Atlas histórico: Goiás pré-
Colonial. Goiânia: CECAB, 2001, p. 52.
Fig. 27 – “Vila Boa de Goiás e tudo que pertence ao seu termo”. Fonte: Catálogo de verbetes dos
documentos de manuscritos avulsos da Capitania de Goiás existentes no AHU. Coor. TELES, José Mendonça.
Brasília: Ministério da Cultura; Goiânia IPEHBC, 2001, p 23.
Fig. 28 – Vista deVila Boa de Goiás no séc. XIX. Fonte: Biblioteca Mário de Andrade. S. Paulo.
Fig. 29 – Arcebispados e bispados da colônia no século XVIII. Fonte: ROCHA, Leandro Mendes.
Atlas histórico de Goiás pré-colonial e colonial. Goiânia: CECAB Editora, 2001, p. 64.
Fig. 30 Mapa do Bispado do Gram-Pará. Fonte: MATOSO, Caetano da Costa. Códice Costa Matoso.
“Coleção das notícias dos descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa
Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & e vários
papéis”. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999.
Fig. 31 – Imagem da Igreja de Jaraguá Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig. 32 – Imagem da Igreja de Jaraguá Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig. 33 – Imagem da Igreja de Jaraguá. Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig. 34 – Imagem da Igreja de Corumbá Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig. 35 – Imagem da Igreja de Corumbá Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig.36 – Imagem do casario de Corumbá. Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig.37 – Vista do Largo da Matriz (à direita) de Vila Boa de Goiás. Fonte: FERREZ, Gilberto.
O Brasil do primeiro reinado visto pelo botânico William John Burchel, 1825, 1829. Rio de Janeiro: Fundação
João Moreira Salles; Fundação Pró-Memória, 1981.
Fig. 38 – Nossa Senhora da Abadia. Foto: Deusa Boaventura, arquivo da autora.
Fig. 39 – Capela de Santa Ifigênia de São José do Tocantins. Fonte: BORGES, Ana Maria; PALACIN,
Luís. Patrimônio histórico de Goiás. Brasília: SPHAN/Pró-Memória, 1987.
Fig. 40 – Antiga Igreja dos Pretos de Meia Ponte. Fonte: VAZ, Adriana Mara. Um estudo da Casa
Meia-pontense: Uma ponte para o mundo goiano do século XIX. Goiânia: Agência Goiana de Cultura
Pedro Ludovico Teixeira, 2001, p. 148.
Fig. 41 – Igreja de Nossa Senhora da Natividade. BORGES, Ana Maria; PALACIN, Luis. Patrimônio
histórico de Goiás. Brasília: SPAHAN / Pró- Memória, 1987.
Fig. 42 – Ruínas da Igreja de N. S. do Rosário de Traíras. Fonte: BORGES, Ana Maria; PALACIN,
Luis. Patrimônio histórico de Goiás. Brasília: SPHAN / Pró-Memória, 1987.
Fig. 43 – Desenhos da antiga Matriz de Traíras (Original Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa)
Fig. 44 – Imagem do mapa de Goiás com as capelas e de igrejas de Vila Boa. Fonte: Deusa Boaventura,
arquivo da autora.
Fig. 45 – Imagem da igreja inacabada de Nossa Senhora do Rosário de Natividade. Fonte: PALACIN,
Luís. BORGES, Ana Maria; PALACIN, Luis. Patrimônio histórico de Goiás. Brasília. SPHAN/Pró-
Memória, 1987.
Fig. 46 – Vista do Arraial de Natividade. Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do primeiro reinado visto
pelo botânico Willham John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro: Fundação João Moreira Salles. Funda-
ção Pró-Memória, 1981.
Fig. 47 – Figura 8 – Antigo Arraial de Bomfim, atual Silvânia. Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil
do primeiro reinado visto pelo botânico Willham John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro: Fundação João
Moreira SallesFundação Pró-Memória, 1981.
Fig. 48 – Figura 9 – Antigo Arraial de Meia Ponte, atual Pirenópolis. Fonte: FERREZ, Gilberto.
O Brasil do primeiro reinado visto pelo botânico Willham John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro: Fundação
João Moreira SallesFundação Pró-Memória, 1981.
Fig. 49 – Vista do Largo da Matriz (à direita) de Vila Boa de Goiás. Fonte: FERREZ, Gilberto.
O Brasil do primeiro reinado visto pelo botânico Willham John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro: Fundação
João Moreira Salles. Fundação Pró-Memória, 1981
Fig. 50 – 51 – Antiga Matriz do Rosário de Meia Ponte. Fonte: BUENO, Alexei; TELLES, Augusto
da Silva, CAVALCANTI, Lauro(coord.). O Patrimônio Construído: As 100 mais belas edificações do
Brasil. São Paulo: Editora Capivara LTDA, 2002. p. 262, 263.
Fig. 52, 53, 54 – Igreja Nosso Senhor do Bomfim, do Arraial de Bomfim (atual Silvania ). Fotos:
Carolina Boaventura
Fig. 55, 56 – Igreja do Rosário do Arraial de Santa Luzia (atual Luziânia). Fotos: Carolina Boaventura
Fig. 57 – Mapa da Missão de São Francisco Xavier. Fonte: ADONIAS, Isa. Cartografia da região
Amazônica. Catálogo descritivo (1500-1961). Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônica, 1963, p. 640.
Fig. 58 – Mapa da Capitania de Goiás. In: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos
indígenas nas fronteiras do sertão. Goiânia: Kelps, 2000, p. 227.
Fig. 59 – Mapa da Capitania de Goiás (detalhe). In: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e
outros povos indígenas nas fronteiras do sertão. Goiânia: Kelps, 2000, p. 228.
Fig. 60 – Mapa dos Aldeamentos da antiga Capitania de Goiás. Fonte: ROCHA, Leandro Mendes
(org). Atlas Histórico de Goiás Pré-colonial e Colonial. Goiânia. CECAB editora, 2001. p. 33.
Fig. 61 – Esquema do traçado do Arraial de Santana. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 62 – Esquema do traçado do Arraial de Meia Ponte. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 63 – Mapa da cidade de Pirenópolis, anterior arraial de Meia Ponte. Fonte: JAIME, Jarbas e
JAYME, José Sisenando. Pirenópolis: Casas de Deus, Casas de Mortos. Goiânia: IPEHBC/UCG, 2001.
Fig. 64 – Vista aérea da atual cidade de Pirenópolis, antigo Arraial de Meia Ponte, mostrando a
matriz Nossa Senhora do Rosário e o eixo que a ligava a igreja dos pretos. Fonte: Google Earth.
Fig. 65 – Esquema do Arraial de Jaraguá. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 66 – Esquema do traçado do Arraial de Santa Cruz. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 67 – Esquema do traçado do Arraial de Pilar. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 68 – Esquema do traçado do Arraial de Conceição. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 69 – Esquema do traçado do Arraial de Santa Luzia. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 70 – Esquema do traçado do Arraial de Bomfim. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 71 – Esquema do traçado do Arraial de São José do Tocantins (atual Niquelândia). Desenho:
Gustavo Amaral.
Fig. 72 – Esquema do traçado do arraial de Cavalcante. Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 73 – “Prospecto de Villa Boa tomada da parte do Esnoroeste para Les Sueste no anno de 1751”.
REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 239.
Fig. 74 – “Prospecto de Villa Boa tomada da parte de Norte para o Sul no anno de 1751”– REIS,
Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 239.
Fig. 75 – “Prospecto de Villa Boa tomada da parte do Sul para o Norte no anno de 1751” – REIS,
Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 235.
Fig. 76 – Imagem do quartel de Vila Boa de Goiás. Fonte: BORGES, Ana Maria: Palacin, Luís.
Patrimônio histórico de Goiás. Brasília: SPHAN/Pró-Memória, 1987, p. 22.
Fig. 77 – Casa de Câmara e Cadeia. Foto: Deusa Boaventura.
Fig. 78 – Projeto original da Casa de Câmara e Cadeia de Vila Boa de Goiás. Fonte: Arquivo do
SPHAN.
Fig. 79 – Imagem do Palácio conde dos Arcos em Vila Boa de Goiáz. Fonte: COELHO, Gustavo
Neiva. Guia dos Bens Imóveis Tombados em Goiás. Vol. 1. Goiânia. IAB, 1999, p. 48.
Fig. 80 – Imagem do largo do chafariz de Villa Boa de Goiás. Foto: Deusa Boaventura.
Fig. 81 – O Plano de Vila Boa. REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São
Paulo: EDUSP, 2000, p. 240.
Fig. 82 – Proposta de realinhamento do tecido urbano de Vila Boa, 1782. Fonte: REIS, Nestor
Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 240.
Fig. 83 – Prespectiva de Villa Boa de Goyaz. Fonte: Arquivo da Biblioteca Mário de Andrade.
Fig. 84 – Planta da Aldeia de Santa Ana. Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do
Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 243.
Fig. 85 – Planta da Aldeya de S. Joze de Mossamedes 1801. REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas
e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 241.
Fig. 86 – Prespectiva da Aldeya de São Joze de Mossamedes. Fonte: Arquivo da Biblioteca Mário de
Andrade.
Fig. 87 – Prespectiva da Aldeya de São Joze de Mossamedes. Fonte: Arquivo da Biblioteca Mário de
Andrade.
Fig. 88 – Vista aérea da atual cidade de Mossâmedes. Fonte: Google Earth.
Fig. 89, 90, 91 – Fotos da Igreja de São José de Mossâmedes. Fotos: Carolina Boaventura.
Fig. 92 – Plano Projectivo de um novo estabelecimento de Índios. REIS, Nestor Goulart. Imagens
de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 242.
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino.
AHSP – Arquivo Histórico de São Paulo.
AHE – Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.
AHEGO – Arquivo Histórico de Goiás.
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
IHGG – Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
IPEHBC – Instituto de Pesquisas Históricas do Brasil Central.
AFSD – Arquivo Frei Simão Dorvi, Cidade de Goiás.
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Para uma revisão historiográfica 23
Capítulo I
AD INSULAM BRASILIS: IMAGINÁRIO E CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO 31
1.1 A Identificação do território 33
1.2 O mito de Paraupava e o território goiano 35
1.3 Desbravando o território em busca do mito 42
1.4 Entre as promessas míticas e os avanços territoriais 47
Capítulo II
A POLÍTICA DE OCUPAÇÃO DE GOIÁS NO SÉCULO XVIII: URBANIZAÇÃO
E CONTROLE TERRITORIAL 59
2.1 Os engenheiros militares e a formação dos territórios 66
2.2 Os funcionários da Coroa, a cartografia e a construção de Goiás 75
Capítulo III
A APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO 101
3.1 Os caminhos e o rios 103
3.2 A partilha das terras: as sesmarias e as datas minerais 118
3.3 A vila e o território 126
3.4 As atividades agropastoris 130
24
Capítulo IV
TERRITÓRIO ECLESIÁSTICO: FORMAÇÃO DE FRONTEIRAS
E URBANIZAÇÃO DA CAPITANIA DE GOIÁS 133
4.1 A prelazia e o território 135
4.2 A organização das paróquias e a urbanização 145
4.3 As irmandades e a arquitetura religiosa 152
Capítulo V
ENTRE A BUSCA DOS ÍNDIOS E A IMPLANTAÇÃO DOS PRIMEIROS
ALDEAMENTOS GOIANOS 169
5.1 O desbravamento do território goiano e a formação dos seus primeiros aldeamentos 175
5.2 A política de urbanização de Goiás no período pombalino 184
Capítulo VI
OS MODELOS DE CIDADES PORTUGUESAS E A URBANIZAÇÃO
NA CAPITANIA GOIANA 201
6.1 Uma vila no interior do sertão 215
6.2 As reformas urbanas em Vila Boa de Goiás 225
6.3 Urbanismo pombalino: Simbolismo e método 229
6.4 O urbanismo regulador na formação dos aldeamentos da Capitania de Goiás 237
CONSIDERAÇÕES FINAIS 247
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 253
ANEXOS 263
25
INTRODUÇÃO
s povoações setecentistas que surgiram em Goiás fizeram parte de uma nova e centralizadora
política de ocupação e urbanização da metrópole portuguesa, iniciada aproximadamente em
A
PARA UMA REVISÃO HISTORIOGRÁFICA
meados do século XVII, em decorrência de problemas econômicos relacionados ao preço do açú-
car no mercado internacional e da perda de uma grande parte de colônias lusitanas no Oriente.
Diante desse quadro, a metrópole se viu obrigada a rever toda a sua estratégia anterior de ocupação
em relação ao Brasil. Para tanto, incentivou ações de exploração de áreas não conhecidas, que envol-
veram expansões territoriais além do meridiano de Tordesilhas; criou o Conselho Ultramarino, res-
ponsável pela elaboração e execução dessas novas orientações; contratou técnicos especializados
para mapear regiões ignotas; centralizou a economia e a administração das terras americanas e
diminuiu os poderes dos donatários, que foram sendo extinguidos gradativamente até alcançar o
período pombalino, quando houve a supressão de todas as capitanias particulares remanescentes e
a criação de outras, governadas por funcionários do Rei.
Nas regiões centrais do atual território brasileiro, expressões dessa política se evidenciam
mais claramente no final do século XVII e início do XVIII, com a efetiva descoberta do ouro em
Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, e do firme propósito da Coroa de expandir seus domínios a
oeste de Tordesilhas. Regulamentos para as terras minerais, jurisdições que incidiram sobre os ex-
ploradores aventureiros, levantamentos cartográficos para o conhecimento da região, demarcação
de novos territórios, combinação de um sistema de partilha de terras, ou de direitos sobre elas, e o
estabelecimento de algumas povoações e aldeamentos articulados entre si foram alguns dos funda-
mentos dessa nova política de exploração econômica, ocupação e legitimação territorial, confirma-
da pelo Tratado de Madri e consolidada na segunda metade do Setecentos.
Em Goiás, especificamente, essas reorientações do governo português fizeram surgir mais de
cinqüenta arraiais em um território que desde os primeiros momentos do século XVIII foi contro-
lado por regimentos, levantamentos cartográficos, criação de caminhos, instituição da Prelazia, da
Capitania, fundação da capital (Vila Boa), definição de procedimentos jurídico-administrativos, instala-
ção de intendências, formação de aldeamentos, casas de fundição e postos alfandegários. A ocupa-
26
ção dessa região insere-se, desta maneira, no contexto expansionista e de consolidação de posses de
terras, garantidas pelas formações de núcleos urbanos, cujas concepções ou modos de organização
podem remontar às diversas e complexas formas de fazer cidades possibilitadas pelas ricas experiên-
cias da Expansão Ultramarina, não só no Brasil como também na África e na Ásia. Esse é o momen-
to em que se pode encontrar as raízes do urbanismo colonial brasileiro, quando Portugal formou
um programa de fundação de cidades com novas práticas urbanísticas que se desenvolveram, se
diversificaram e se estenderam até, pelo menos, o período pombalino, como diz Rafael Moreira
1
. É,
portanto, sob essa perspectiva que se pode entender as formações urbanas de Goiás, pois elas são
resultados de sínteses de diferentes modelos de cidades, reproduzidos ora por ações dos bandeiran-
tes, ora por governadores como Luiz de Mascarenhas, José de Almeida e Cunha Menezes.
Os bandeirantes foram os primeiros responsáveis pela maioria dos assentamentos goianos e
com eles veio a tradicional forma de fazer cidades. Organizadas a partir do edifício religioso, carac-
terizavam-se por estruturas lineares, que se desenvolviam geralmente ao longo das estradas. Um
outro modelo urbano inaugura-se com Luiz de Mascarenhas, com tendências à regularidade, em que
a ordenação do espaço era pré-estabelecida segundo normas gerais que se apresentavam em várias
cartas de fundação de cidades brasileiras, iguais à de Vila Boa. Diferentemente da concepção ante-
rior, escolhia-se um sítio próximo a boas águas, onde se marcava a praça, agora o elemento gerador
e de expansão do novo núcleo urbano, auxiliada pela antiga prática do arruamento, como fizeram
Mascarenhas e seu auxiliar Domingos Pires ao escolher e arruar um lugar para fundar o Arraial de
Arraias. Mas o primeiro plano regular plenamente implementado e concebido por meio de dese-
nhos só surgiu na segunda metade do século XVIII, com o dinâmico governador José de Almeida
Vasconcelos Soveral e Carvalho, quando propôs o aldeamento São José de Mossâmedes, em 15 de
novembro de 1774. Suas ações visavam também reorganizar o território, mediante levantamentos
topográficos, criação de novas estradas, mudanças de localização de registros, formação de mais
julgados, estabelecimento de limites territoriais dos maiores arraiais e incentivo à navegabilidade
dos rios Araguaia e Tocantins. Na capital, fez calçamento nas ruas, construiu o grande Chafariz e
recuperou pontes que haviam sido destruídas na inundação de 1776.
Atribui-se também a ele a primeira ponte que se ergueu sobre o Rio das Almas, em Meia
Ponte. Mas o maior reformador urbano da Vila foi o governador Cunha Menezes, que propôs o
realinhamento e a expansão do traçado da Vila e a elaboração de um Código de Posturas que definiu
a uniformidade das fachadas e áreas para construções de novos edifícios. Como seu antecessor,
planejou também o aldeamento e deu continuidade aos esforços para o desenvolvimento do comér-
cio da região, com mercadorias circulando pelos rios Araguaia e Tocantins.
A despeito de todas essas iniciativas e propostas setecentistas que ajudaram a construção de
Goiás, no século XIX a antiga Capitania se colocou como um apêndice em relação ao Brasil, pois,
com o fim da mineração, não surgiu nenhum nexo econômico que a reabilitasse. Esse fato, alimen-
tado desde a época dos viajantes oitocentistas europeus, e cuja natureza era mais econômica que
política, levou a historiografia tradicional a associar a região às idéias de marginalidade, isolamento,
lugar distante do litoral, decadência e espontaneidade na formação dos arraiais, que compromete-
1
MOREIRA, Rafael. A arte da ruação e a cidade luso-brasileira, séc. XVI- XVIII. V Seminário da cidade e do urbanismo. São Paulo: PUCCAMP, out.,
1998, p. 4
27
ram o entendimento da ocupação do território goiano do século XVIII, por desconsiderar, princi-
palmente, a política de controle português que foi adotada em todo período colonial.
Nars Fayad Chaul
2
é um dos estudiosos que alerta para questões dessa ordem. Para ele, equí-
vocos de interpretação histórica, formados ao longo do século XIX e meados do XX, marcaram o
território de Goiás com traços da pobreza. Sob o paradigma da decadência, confundiu-se cresci-
mento econômico com desenvolvimento social. O declínio do ciclo do ouro ficou estigmatizado,
portanto, por uma visão que possui suas raízes na idéia de atraso e que não leva em conta o processo
português de ocupação e urbanização que alcançou a região.
Buscar outras possibilidades interpretativas, com opções paradigmáticas que entendam as cida-
des a partir de relações entre organização do espaço e agentes sociais, território e políticas de ocupação
e urbanização, diferentes modalidades de vínculos entre colônia e metrópole é nosso intento. Mas para
definir melhor essa possibilidade, convém desconsiderar os tradicionais conceitos atrelados à idéia de
decadência ou a franca aceitação de formações urbanas como sendo puramente espontâneas, valores com
os quais as investigações de alguns historiadores goianos se estabeleceram no passado.
No quadro da literatura histórica regional, entre outros, encontram-se os autores Silva e Sou-
za, José Martins Pereira de Alencastre, Cunha Matos, Luís Palacin, Paulo Bertran e Gustavo Coelho.
São, entretanto, esses três últimos os que mais fornecem publicações sobre o urbanismo colonial de
Goiás, embora com atenções, muitas vezes, voltadas para questões mais gerais ou para estudos de
casos ainda não contextualizados no âmbito da política de ocupação portuguesa.
Silva e Souza
3
se destaca por ser o primeiro historiador de Goiás, com a obra oitocentista Memória
sobre o descobrimento, Governo, população e coisas mais notáveis da Capitania de Goiás e Memória Estatística. Torna-se,
portanto, uma fonte documental imprescindível e de grande referência para os estudos sobre a colônia e
a Província de Goiás. No que diz respeito às cidades, sua leitura é descritiva, informando-nos sobre os
fundadores dos núcleos urbanos setecentistas, as populações, as matrizes e capelas filiais, os governado-
res e algumas de suas atuações, os aspectos geográficos e administrativos da Capitania etc.
José Martins de Alencastre, escritor, geógrafo e governador de Goiás de abril de 1861 a junho de
1862, publica Os anais da província de Goiás em 1864. Esse livro, também informativo, ou seja, que
estabelece a verdade dos fatos contidos na fonte documental, consiste em uma significativa profusão
de dados, advindos de raros manuscritos setecentistas transcritos, bastante importantes para o estudo
de Goiás colonial. Seguindo a mesma linha historiográfica de Alencastre, encontra-se também
Choroghaphia da Província de Goyaz, de Cunha Matos, o Governador das Armas e ex-deputado da Província.
Demais estudiosos viajantes que percorreram o território goiano, como Aires de Casal, Auguste
de Saint-Hilaire, D’Alincourt, Spix e Martius
4
, também deixaram testemunhos sob a forma de diá-
rios, memórias, guias de viagens ou relatórios, nos quais avaliaram as cidades goianas, mas sempre
2
Em torno da imagem da decadência, vai girar todo o universo interpretativo acerca da sociedade goiana que transitou da mineração para a
agropecuária. A partir da idéia de um pretenso desenvolvimento da sociedade mineradora, criou-se o posterior espectro de decadência que
passa a rondar a sociedade após a mineração CHAUL, Nars Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade.
Goiânia: Editora da UFG, 1997, p. 46.
3
Silva e Souza chegou a Goiás no final de 1790, com 26 anos de idade, Capitania na qual morreu, aos 50 anos. Sua obra foi impressa pela primeira
vez no jornal O Patriota, de 1813 a 1814, e depois transcrita em um dos números da Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
4
Aires de Casal é considerado o primeiro viajante a fazer um relato sobre Goiás, em 1817. Leite Moraes e Oscar Leal também foram cronistas
que passaram por Goiás, embora não estrangeiros.
28
guardando distância para informar sobre uma realidade da qual nunca se sentiram fazendo parte,
pois tomavam como modelo comparativo as suas cidades de origem. Com eles, apareceram as
enfáticas descrições sobre a precariedade das estradas e acessos a Goiás, que contribuíram para
colocá-lo, a partir do século XIX, numa situação de penúria, atraso e total isolamento em relação às
demais regiões desenvolvidas do Brasil.
Mas é no século XX, com Luís Palacin
5
, que, pode-se dizer, se inaugura uma nova fase dos
estudos históricos em Goiás. Sua maior contribuição está exatamente em estimular a pesquisa docu-
mental, obtendo como resultado a publicação de vários documentos, reunidos na coleção História de
Goiás em Documentos. Apesar do inestimável valor dos trabalhos desse autor, sua interpretação se
alinha àquelas pesquisas que apostam no paradigma da decadência, influenciando o importante
historiador Mendonça Teles e Paulo Bertran. O primeiro, mais voltado à divulgação documental,
quando à frente do Instituto de Pesquisas Históricas do Brasil Central promoveu a divulgação das
Memórias Goianas, na quais se encontra, na íntegra, a reprodução de inúmeros manuscritos dos sécu-
los XVIII e XIX.
Paulo Bertran se destaca pelos seus trabalhos, que abordam diferentes temas sobre a
Capitania de Goiás: História da terra e do homem do Planalto Central, de 1994; Uma introdução à
história econômica do Centro-Oeste, de 1998, e Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783, de 1997,
dentre outros. O primeiro texto interessou a presente investigação por registrar e apontar uma
série de documentos sobre o sistema de distribuição de terras goianas existentes em arquivos
paulistas
6
. Já Notícia Geral da Capitania de Goiás em 1783 pode ser compreendida como uma das
grandes contribuições que Bertran deixou à pesquisa histórica, por dar maior publicidade ao
manuscrito mais antigo e completo sobre a Capitania, cujo original encontra-se na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.
Pode-se afirmar que seus esforços se concentraram mais na divulgação e transcrição de fon-
tes primárias do que em problematizar questões historiográficas, particularmente as que se referem
às antigas cidades goianas. É o que se observa em alguns de seus textos, nos quais considera as
fontes isoladamente, sem estabelecer as possíveis relações existentes entre elas e as políticas de
ocupação previstas pela Coroa. O estudo de maior relevância é o que se refere ao desenvolvimento
da antiga Vila Boa, fundamentado nos conceitos de incidentalidade e intencionalidade. Para ele, a
incidentalidade está vinculada aos primeiros momentos de existência dos arraiais portugueses im-
plantados no território americano, em especial aqueles surgidos nas regiões mineradoras, onde o
que se observa é uma conjuntura adversa a investimentos urbanos. Como complemento desse de-
senvolvimento, surge a intencionalidade, como força de alteração da organização espacial: aos ele-
mentos iniciais de organização espontânea contrapõem-se aqueles representativos do poder e das
classes sociais, e que definem o crescimento do núcleo
7
.
5
O professor Doutor Luís Palacin Gomes era natural de Valladolid, Espanha. Foi bacharel em Filosofia e Teologia pela Universidade de
Comillas, Espanha, licenciado em História pela Universidade de Santiago de Compostela, doutor em História pela Universidade de Madrid,
apresentou tese para o concurso de Livre Docência na UFG. Faleceu em 1998.
6
O Capítulo XIV desse livro refere-se às sesmarias povoadoras do Planalto das cidades que hoje se encontram próximas a Brasília, como
Luziânia. No capítulo XVIII, Bertran reflete sobre a passagem dos viajantes por essa mesma região.
7
BERTRAN, Paulo. Evolução urbana da cidade de Goiás no período colonial. Trabalho apresentado no ARQUIMEMÓRIA II. Belo Horizonte, ago.,
1987, p. 1-2.
29
Por fim, com a mesma compreensão de Bertran, encontra-se Gustavo Neiva Coelho, com o
livro O espaço urbano em Vila Boa: entre o erudito e o vernacular. Nesse trabalho, o autor aceita as hipóte-
ses de Bertran de incidentalidade e intencionalidade, e sugere a influência direta dos antecedentes
medievais (a cidade medieval árabe e a cidade medieval cristã), embora sinalize como elementos
inovadores as práticas urbanísticas desenvolvidas por Cunha Menezes. É, portanto, o trabalho que,
na linha de Bertran, mais avança sobre a reflexão do espaço de Vila Boa.
Essa idéia de formações urbanas puramente espontâneas, irregulares, relacionadas às cidades
medievais, remete-nos a Sérgio Buarque de Holanda e a Robert Smith. Este último afirma serem tais
assentamentos resultados formais urbanos de uma tradição nacional de cidade alta e baixa, pela sua
topografia de extrema irregularidade, ausência de grandes superfícies abertas e espaços interligados
por ladeiras íngremes, em cujas cotas mais altas estariam assentadas capelas e fortes, configurando a
tipologia das cidades litorâneas e núcleos mineratórios do século XVIII
8
.
Interpretações semelhantes a essas e às que estabeleceram analogias entre as cidades orgânicas
portuguesas e as brasileiras conduziram vários pesquisadores a avaliar pejorativamente inúmeras delas,
desconsiderando radicalmente outras possíveis ordenações e até legislações que pressupunham um “tipo
de planejamento” que regulamentava não só a vida metropolitana como a colonial. Com as Ordenações
do Reino, as Cartas Forais, os Termos de Assentamentos, as legislações eclesiásticas e as práticas dos
arruadores, os colonizadores conseguiram impor uma certa uniformidade às cidades do século XVIII,
com freqüente respeito à topografia e singular valorização dos edifícios religiosos e públicos.
Em contraponto a essas leituras que apostam nos denominados crescimentos espontâneos, uma historiografia
mais recente, na qual se destacam Rafael Moreira, Renata de Araújo Malcher, Manuel Teixeira e Margarida
Valla, Rui Carita, Walter Rossa e Horta Correia, descortina um novo eixo interpretativo. Por exemplo,
para os dois primeiros autores, principais marcos referenciais desta tese, o modo de se fazer cidades no
Brasil setecentista é o resultado de um complexo conjunto de sínteses de procedimentos, vindos pelo menos
desde o Quinhentos, com os avanços da Expansão Ultramarina, e que, gradativamente, foram se firmando
e se preocupando mais com as questões atinentes à regularidade. É o que se denomina Ciência da Ruação,
uma “teoria empírica e, sobretudo, pragmática, de terreno mais que de gabinete, [...] ligada à ideologia do iluminismo [...]. Além
dos engenheiros militares, habituados a abrir caminhos e a traçar novas povoações já perfeitamente regulares (como mostram as
cartas de Vila Boa de Goiás e Vila de Iço, 1736, São José do Rio Negro, 1755, e Oeiras no Piauí, 1761, tão idênticas que
parecem seguir um formulário pré-estabelecido), os agentes do urbanismo regular sistemático serão [foram] os anônimos ocupantes
do cargo igual ao medidor, os ruadores
9
. Com os ruadores, fundaram-se cidades mais regulares, com categorias de
apreciação que consideravam ruas planas como construções formosas à maneira do reino.
Concorrendo com esforços semelhantes e leituras aproximadas a essas encontram-se os pes-
quisadores Walter Rossa, Horta Correia, Margarida Valla e Manuel Teixeira. Os dois últimos tam-
bém chamam a atenção para a possibilidade de grandes equívocos nas investigações que
desconsideram a interdependência entre a história urbana portuguesa e a brasileira, pois “[...] elas são
antes duas componentes da mesma história sendo necessário o seu estudo conjunto para sua compreensão”
10
.
8
SMITH, Robert C. Arquitetura civil do período colonial. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico. Rio de Janeiro: SPHAN, n.17, 1969.
9
MOREIRA, Rafael. A arte da ruação e a cidade luso-brasileira, séc. XVI- XVIII. V Seminário da cidade e do urbanismo. São Paulo: PUCCAMP, out.,
1998, p. 13.
10
TEIXEIRA, C. Manuel; VALLA, Margarida. O urbanismo português. Século XIII –XVIII. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 13.
30
Com essa nova possibilidade interpretativa, pode-se compreender muitas das intervenções ur-
banas no território goiano, ainda que não tivessem sido tão explícitas e rigorosas como em outras
regiões do Brasil. Vila Boa, alguns arraiais goianos e os aldeamentos, ao inserirem-se no contexto
expansionista, estabeleceram vínculos com as várias experiências portuguesas, tanto em suas forma-
ções como em seus desenvolvimentos. Verificar tais influências implica considerar o permanente in-
tercâmbio de Goiás com Portugal e com as demais regiões da colônia, quando se observa particularmente
a sua posição estratégica de confluência de caminhos – que o conectavam, inclusive, com o litoral – e
as várias motivações de alguns governadores em promover interlocuções comerciais, pelos rios Araguaia
e Tocantins, com o Pará e o Mato Grosso. Essas e outras iniciativas contrariam as tradicionais afirma-
ções historiográficas locais que consideram o atraso e isolamento de Goiás. Desde as primeiras ocupa-
ções, a Capitania fez parte da colônia lusitana e, como tal, submeteu-se aos desígnios metropolitanos,
mesmo se levarmos em conta seu ritmo próprio de desenvolvimento econômico.
Considerando tais condicionantes, a tese A URBANIZAÇÃO DE GOIÁS NO SÉCULO
XVIII estrutura-se em seis centros principais de interesse:
Em primeiro lugar, com o capítulo Ad Insulam Brasilis: imaginário e contrução do território procura-
se entender como e quando se formou o mito das riquezas auríferas do interior do Brasil, por se
considerar essa idéia uma das importantes motivações para as primeiras incursões às terras da antiga
Capitania de Goiás. Foi ela que permitiu o gradual e contínuo conhecimento dessa região e de toda
aquela que se situava a oeste do meridiano de Tordesilhas. Mas para a sua posse e a consolidação das
políticas portuguesas de controle do território central, caberia ao colonizador transformar as impre-
cisas e vagas informações dos primeiros viajantes em conhecimento exato do lugar e, para tanto, foi
a cartografia que se colocou a serviço da averiguação do imaginário, em direção à real visualização
desse espaço.
Num segundo momento, em A política de ocupação de Goiás no século XVIII: urbanização e controle
territorial, analisa-se a ocupação e a formação urbana de Goiás a partir de uma antiga estratégia de
posse e controle das terras coloniais, ligadas diretamente à Coroa portuguesa. Para as terras do interior
do Brasil, essas ações podem ser vistas a partir do período filipino, ao longo da gestão do governa-
dor D. Francisco de Souza, mas só nos fins do Seiscentos, após a descoberta do ouro, o governo
metropolitano garantiu uma maior supervisão desse sertão, com medidas que redefiniram um pro-
grama de ocupação e soberania do território central. Em Goiás, essas novas orientações chegaram
logo no início do século XVIII, após as notícias das minas de rico metal encontradas por Bartolomeu
Bueno da Silva. Contribuíram, portanto, para a definição dos limites territoriais da Capitania, com o
incentivo à busca de novas minas e, conseqüentemente, com a formação de novos núcleos urbanos,
aldeamentos, instalação da capital Vila Boa, da Prelazia, da Capitania, dos caminhos reais, dos pos-
tos alfandegários, dos vários levantamentos topográficos e mapas feitos por sertanistas e engenhei-
ros militares. Estes últimos foram também responsáveis, com os governadores, pela organização e
consolidação do território da Capitania goiana.
Em Apropriação do território, o propósito primordial é o entendimento das outras formas e
estratégias de ocupação territorial adotadas pela Coroa portuguesa, além dos registros cartográficos
e das inúmeras expedições que se organizaram para a exploração de Goiás. Trata-se da abertura de
caminhos terrestres e fluviais que buscaram a articulação da Capitania com as regiões Norte, Oeste
e as zonas litorâneas; da partilha das terras sob os sistemas sesmarial e de datas minerais; da funda-
ção de uma vila, instalada a oeste do antigo meridiano de Tordesilhas, representando efetivamente o
31
controle estatal sobre os diversos arraiais existentes e, por fim, do incentivo às atividades agropastoris
que se desenvolveram paralelamente à busca do ouro. Com a política de demarcação dos limites
territoriais de diversas capitanias do Brasil Colônia, essas foram também importantes ações que
auxiliaram a fixação do colono e o povoamento de Goiás.
O capítulo Território eclesiástico: formação de fronteiras e urbanização da capitania de Goiás mostra que
a formação territorial e a urbanização dessa Capitania também estiveram fortemente vinculadas à
atuação da Igreja, que à época se caracterizava por complexas relações com o Estado. No século
XVIII, unidos intimamente pelo regime do Padroado, participaram lado a lado na conquista do
interior do Brasil, quando decidiram pela criação de novas circunscrições eclesiásticas, designadas
prelazias ou dioceses, que não só contribuíram para as questões geopolíticas, mais precisamente
para a ocupação lusa das terras a oeste de Tordesilhas, como ajudaram também na estruturação de
povoados, vilas e aldeamentos, nos quais o edifício religioso sempre assumiu um papel decisivo em
suas fundações, expansões urbanas, paisagens e organizações sociais.
Em seguida, Entre a busca dos índios e a implantação dos aldeamentos goianos esquadrinha a política
indigenista do século XVIII. Para o alcance de tal objetivo, o capítulo perquire dois momentos
distintos: o primeiro cuidou das formas da captura indígena do século XVII – fossem elas para
mão-de-obra, cristianização dos naturais ou até mesmo para a formação de aldeamentos – e de
como essas práticas, que contaram com missionários originários do Pará, avançaram pela primeira
vez em direção ao futuro território de Goiás, particularmente na região margeada pelo Rio Tocantins,
marcando-a com uma importante trilha que serviu aos expedicionários do século seguinte. O se-
gundo momento abrange a implantação da política indigenista setecentista nas terras goianas, assi-
nalando os conflitos e massacres entre nativos e colonos ocorridos ao longo de todo o processo de
ocupação de um território que prometia grandes riquezas auríferas. A garantia da posse desse alme-
jado metal, bem como a do próprio território, levou a Coroa portuguesa, na primeira metade do
século XVIII, a incentivar a construção dos primeiros e malsucedidos aldeamentos e a missão de
São Francisco de Xavier, localizando-os ao norte, onde havia um enorme contingente de bravos
silvícolas, e outros ao sul, na região do caminho que alcançava as minas. Mas somente no período
de D. José e de D. Maria I foram erguidos os mais importantes aldeamentos de Goiás (São José de
Mossâmedes e Aldeia Maria I), a partir de um conjunto de novas ações de intervenção na colônia,
orientadas pela gestão pombalina e que envolveram desde questões relativas ao povoamento de áreas
incultas e ao desenvolvimento comercial do Brasil até a expulsão de jesuítas e a implantação de
diretórios e vigárias subjugadas pelo Estado.
O sexto e último foco de interesse da tese centra-se na análise sobre Os modelos de cidades
portuguesas e a urbanização na capitania goiana, quando se aponta os diferentes modos portugueses de
fazer cidades, caracterizados por um amplo e complexo processo de acúmulo e sínteses de conheci-
mentos que se desenvolveram no curso de vários séculos até e alcançar o Setecentos, período de
formação e urbanização do território goiano. Entre esse rico universo de “modos de fazer cidades”
encontram-se aqueles cujas características se aproximam das organizações urbanas que se desenvol-
veram em Goiás. O primeiro deles, conhecido como o mais antigo e tradicional, norteou a organi-
zação dos vários arraiais da Capitania. Identificado por atribuir ao edifício religioso a formação
inicial e a posterior orientação dos espaços, suas respostas rigorosamente pragmáticas ligavam-se
diretamente às soluções locais, contrapondo-se diferentemente àquelas que apresentavam esque-
mas ou desenhos preconcebidos. Com a fundação da capital Vila Boa, novos conceitos urbanísticos
32
foram inaugurados, nos quais a praça, contendo a marcação de um edifício religioso, e a Casa de
Câmara e Cadeia seriam o elemento inovador e orientador de uma outra organização espacial. Mas
significativas distorções do plano dessa vila a marcaram, levando, na segunda metade do século
XVIII, o governador e reformador ilustrado Luís da Cunha Menezes a buscar alternativas para
o realinhamento de seu traçado, segundo cuidadosos levantamentos e desenhos que previram não
apenas retificações como também futuras expansões. No âmbito do território da Capitania, simul-
taneamente a essas ações corretivas, planos para aldeamentos foram concebidos a partir de praças
centrais, retangulares ou quadradas, inscritas em malhas previstas. Executados de acordo com seus
métodos específicos, garantiram em Goiás a continuidade de uma tradição portuguesa de desenho
urbano erudito e regular, que se baseava em princípios matemáticos e geométricos.
Nas páginas que se seguem, procura-se contribuir para todas estas questões e, quando possível,
com interpretações inovadoras que possam auxiliar os poucos estudos isolados sobre os padrões de
urbanização do século XVIII em Goiás, bem como o avanço das análises críticas desse período. Além
disso, são fornecidos também dados inéditos a respeito do urbanismo colonial, que seguramente irão
suprir uma deficiência documental na historiografia regional e brasileira e auxiliar as intervenções e
manutenção de nossos acervos culturais, pois, atualmente, as antigas cidades goianas encontram-
se fortemente ameaçadas pelas transformações econômicas, demográficas e, sobretudo, culturais, que
se têm traduzido em intervenções “modernizadoras”, descaracterizando-as completamente.
CAPÍTULO I
AD INSULAM BRASILIS: IMAGINÁRIO
E CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO
35
o século XVIII, as extensões territoriais dos atuais Estados de Goiás e Tocantins foram co-
nhecidas inicialmente por Minas dos Goyazes e, logo depois, Capitania de Goiás, nome origi-
1.1 A identificação do território
N
nado dos índios Goyazes que habitavam o sul dessa região. Situado entre o litoral e um grande vazio
demográfico, esse território constitui ponto de encontro de diferentes lugares, como a Amazônia, o
Nordeste e o Sul do Brasil. Com relevo de planalto, revestido de cerrado, ele é recortado pelos rios
das três grandes bacias brasileiras – Tocantins– Amazônica, Paranaica e Sanfranciscana destacando-
se os rios Araguaia e Tocantins, para a primeira bacia, e os rios Paranaíba e Araguaia ou Grande,
como era denominado no século XVIII, para a segunda. Este último rio possui a particularidade de
conter a maior ilha fluvial do mundo, a do Bananal, conhecida nos anos coloniais por Ilha de Santana.
Seus afluentes mais significativos da margem direita são: o Rio Vermelho, que corta a cidade de
Goiás, a antiga capital; os rios Claro e Pilões, abundantes em diamantes nos anos setecentistas; e o
Rio Crixás, em cujas proximidades viviam tribos indígenas, posteriormente dizimadas pelos coloni-
zadores. À sua esquerda, destacam-se os rios Barreiros, Cristalino e das Mortes. Com o Paranaíba, o
Araguaia constituía, no século XVIII, um dos caminhos fluviais mais transitados pelos bandeirantes
que buscavam as riquezas da região.
No meio da Capitania, no sentido centro-norte corre o Rio Tocantins ou Maranhão, como era
conhecido. Possui sua nascente, ou olho d’água, na confluência dos atuais rios Maranhão e Paraná,
próximos à antiga capital, desembocando na baía de Marapatá, no rio Pará. Seus principais tributá-
rios são os rios das Almas, em cujas proximidades ergueu-se o importante Arraial de Meia Ponte,
atual Pirenópolis; Uru; Palma; Santa Teresa; Canabrava; Itacaiúnas; Sono e Manuel Alves de Nativi-
dade. Ao lado deste, foram construídos os aldeamentos de São Francisco Xavier do Duro ou Duro
e o São José do Duro ou Formiga, com o objetivo de abrigar nações indígenas hostis.
Completando a paisagem, o território é recortado por cordilheiras e serras como a do Estrondo,
na estrada do Amaro Leite, e a Dourada, que nasce no litoral do Brasil com o nome de Serra Geral,
entra em Goiás pelos sertões do Rio das Velhas, chega às proximidades do Rio Vermelho e da região
do antigo Arraial de Meia Ponte, onde é chamada Pirineus. Daí desentranham rios que vão ao Paraguai,
Grão Pará e sertões do São Francisco e Mato Grosso, desenvolvendo um longo percurso com diferen-
36
tes denominações e inúmeros morros e serras
1
, inclinando-se para o Pacífico
2
. Outras serras que dese-
nham o território são a de Caldas, próxima ao Rio Corumbá, cercada por pastagens e ribeiros e lagos
que nela se originam; a dos Cristais, a leste de Santa Luzia, local onde se instalaram os registros de São
Marcos e São Bartolomeu; a enorme serra do Fanha, localizada nas adjacências de Crixás e Amaro Leite;
e as do Duro, Taguatinga e São Domingos, que cercam as terras do norte da Capitania.
Com toda essa riqueza topográfica, a grande dimensão territorial de Goiás/Tocantins pode
ser dividida em sete regiões, que se apresentam distintamente. Duas delas correspondem ao atual
Estado do Tocantins e as demais, ao de Goiás. Na primeira, elas são identificadas por Tocantins
ocidental e oriental e na segunda, por nordeste, norte, centro, leste e sul
3
. Mas, apesar de se conside-
rar a especificidade de cada uma dessas regiões, historicamente, as características geográficas da
Capitania que mais marcaram os contrastes de sua paisagem foram: as da região do Mato Grosso
Goiano, localizado na confluência das bacias Amazônica e Paranaica, com a presença de grande
floresta tropical; as do grande planalto central – região de Brasília – onde se instalaram vários
núcleos urbanos setecentistas, e a região da Ilha de Camonaré
4
, ou Ilha do Bananal, que se encontra
entre os braços do Rio Araguaia. Às margens dessa ilha, mais próximo do Tocantins, a vegetação vai
do rasteiro do cerrado às matas tipicamente amazônicas, para onde se dirigiram as primeiras expedi-
ções exploratórias feitas pelos missionários jesuítas.
O velho território goiano não correspondia exatamente às atuais extensões dos Estados de
Goiás e Tocantins, pois a ele somavam-se outras regiões, como a do Desemboque, antigo Sertão da
Farinha Podre. Localizada a sudeste, constituía-se, no século XVIII, apenas como uma passagem
cortada pela estrada do Anhangüera, ligando São Paulo às áreas mineradoras de Goiás e Mato Gros-
so
5
. Com o Desemboque, outras regiões também fizeram parte da Capitania: aquelas que se localiza-
vam próximas aos rios Aporé, Pardo, Araguaia e das Mortes, atualmente pertencentes aos territórios
de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e as terras que se situavam a noroeste e nordeste da Capitania,
região conhecida como Bico do Papagaio. As do noroeste foram cedidas para o Pará, com litígios que
duraram de 1804 a 1920, e as do nordeste, para o Maranhão, entre 1810 e 1838
6
. Dessa forma,
estendendo-se de norte a sul por quase dois mil quilômetros quadrados de extensão e avizinhando-se
de quase todas as outras regiões da colônia luso-brasileira, formou-se a antiga Capitania de Goiás. (Fig. 1)
1
Silva e Souza destaca as seguintes designações para diferentes serras dessa Cordilheira: Miguel Ribeiro e Cocalzinho, que se dirigem para o
norte; Mangabas, que termina junto ao pequeno Arraial do Rio do Peixe; a das Mamoeiras, que começa no Rio Corumbá; do Popoia e
doTapanhoacanga, que terminam no Ribeirão dos Pinheiros; da Matutina, que nasce em frente a Meia Ponte; a do Jaraguá, que se inicia perto
do Rio das Almas; o Morro do Frota, ao norte de Meia Ponte; Santa Bárbara, ao sul desse mesmo arraial. Já os morros receberam as designa-
ções: dos Pirineus, cheio de vales cobertos de bosques e pastagens em que correm ribeirões; os do Descanso, do Retiro e o do Santo Antônio,
que termina no Rio das Almas. SOUZA, Silva e. O descobrimento, governo, população, e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz. In:
TELES, José Mendonça. Vida e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998. p. 72.
2
SOUZA, Silva e. O descobrimento, governo, população, e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz. In: TELES, José Mendonça. Op. Cit., p. 72.
3
BARBOSA, Altair; TEIXEIRA NETO, Antônio; GOMES, Horieste. Geografia: Goiás – Tocantins. Goiânia: UFG, 2004, p. 115-129.
4
Nome dado à Ilha do Bananal pelos índios Karajá.
5
Atualmente, essa região pertence ao Estado de Minas Gerais e corresponde ao que chamamos de Triângulo Mineiro.
6
De acordo com Neto, no século XIX, duas regiões foram incorporadas ao atual território goiano–tocantinense: uma que pertencia à Bahia e que
hoje faz parte do estado do Tocantins; e outra que era de Minas Gerais e, atualmente, está incorporada ao território de Goiás. BARBOSA,
Altair; TEIXEIRA NETO, Antônio; GOMES, Horieste. Op. Cit., p. 55
37
1.2 O mito de Paraupava e o território goiano
A formação do território da Capitania de Goiás, assim como o
de toda a colônia, resultou de um processo de permutas culturais a
serviço de um projeto colonial imposto pelos portugueses. Mas além
das questões mais racionais também faziam parte desse processo as
visões idílicas do sertão da América Portuguesa, traduzidas no imagi-
nário da terra brasilis desenvolvido nos séculos XVI e XVII, e cujos
desdobramentos persistiriam até o XVIII. É nesse universo que se
encontra a força motriz que impulsionou os exploradores a adentrar
Fig. 1 – Mapa da Capitania de Goiás.
Fonte: TEIXEIRA NETO, Antônio.
In: Palacin, Luís; GARCIA, Leônidas
Franco; AMADO, Janaína. História de
Goiás em Documentos: Colônia. Goiânia.
Goiânia: UFG, 1995, p. 44.
38
o interior da colônia, permitindo a expansão dos domínios portugueses, a busca de metais valiosos
e de mão-de-obra indígena, o que resultou no extermínio e destribalização dos nativos
7
.
O projeto de ocupação das terras da colônia portuguesa e as explicações fantásticas sobre a
existência de lugares distantes do litoral, paradisíacos, cheios de tesouros, foram os parâmetros
gerais que orientaram as primeiras incursões ao sertão inóspito, de realidade mal conhecida e imagi-
nária. Entretanto, foram também esses entendimentos míticos, que encerravam em si uma “fé prag-
mática”, alguns dos importantes princípios do reconhecimento da região de Goiás, onde se pensava
encontrar “[...] tesouros de ouro, prata, diamantes e pedras preciosas”
8
.
Para Kok, à luz do mito, o processo de reconhecimento do sertão iniciou-se em 1º de maio de
1500, quando Pero Vaz de Caminha, fez a primeira descrição a olho nu dessas terras. Segundo seu
relato, naquele momento não se podia saber da existência de ouro, prata ou de qualquer outro metal,
mas “[...] a terra em si é de muitos bons ares, assim frios e temperados, como os de entre Doiro e Minho, porque neste
tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas”
9
.
Coligada a essa imagem inaugural, encontra-se também a idéia do Paraíso terreal que, desde a
época de Cristóvão Colombo, em 1492, fazia parte do imaginário da região da embocadura do
Orenoco, onde se supunha ter sido descoberto um dos rios que vinham do Paraíso. Foi nessa época
que houve a veiculação no novo continente de uma diversidade de mitos e lendas, provenientes,
provavelmente, da Índia e da África, resultando naquele que ficou conhecido por Eupana e cujo
topônimo da Espanha é Dourado. Georg Friederici
10
, ao estudar a abrangência do Eldorado, iden-
tifica-o nas regiões de Mojos e Chiquitos, com o nome de Dourado de Paititi; na Patagônia, alcan-
çando o Estreito de Magalhães até o norte, na área do Chaco, onde é chamado por Dourado dos
Césares; no território do Novo México atual, com a denominação de Dourado das Sete Cidades; e,
por fim, no oriente das grandes planuras da América do Norte, onde é conhecido por Quivira.
Mas Sérgio Buarque de Holanda
11
alerta que a origem do Eldorado se deu com a conquista de
Quito por Sebastián de Benalcazar, em 1533, a partir do ritual de um chefe indígena, que mergulhava
todas as manhãs numa lagoa com todo o corpo coberto com ouro em pó. No século posterior, segun-
do a crônica História de la Nueva Granada (1636), de Juan Rodríguez Freyle, ritual semelhante era
visto em regiões colombianas, com índios de corpos untados com terra argilosa e empoados com ouro
moído. Dessa lenda originou-se o mito de El-Dourado, caracterizado por constantes deslocamentos em
decorrência dos avanços dos conquistadores. De acordo com Langer, pelas metamorfoses que sofreu,
o mito pode ser identificado, inicialmente, em regiões onde existiam minas auríferas e, posteriormente,
em “toda a cidade e país inexplorado, no qual corria qualquer rumor de riqueza”
12
.
7
KOK, Glória. O sertão itinerante: Expedições da Capitania de São Paulo no século XVIII. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 2004, p. 18.
8
“Relação do primeiro descobrimento das minas de Goiás, por Bartolomeu Bueno da Silva, escrita por José Ribeiro da Fonseca.” In: BERTRAN,
Paulo. Notícia geral da Capitania de Goiás. V 1. Brasília/ Goiânia: Solo Editores/ UFG, 1997, p. 45.
9
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. apud: KOK, Glória. Op. Cit., p. 19.
10
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 35.
11
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit., p. 33.
12
LANGER, Johnni. apud: KOK, Glória. Op. Cit., p. 23.
39
A flexibilidade de um mito que fazia parte tanto do imaginário português quanto do espanhol,
e a sua ampla divulgação feita pelos indígenas permitiram que ele alcançasse as terras do Brasil, asso-
ciando-se àquele que se refere à existência de um grande lago fechado, sem acessos, chamado Ilha
Brasil, que surgiu no interior da colônia, assumindo diferentes denominações: Dourado de Vupabuçu,
de Paraupava ou de Xaraiés. Esse mito inicia-se a partir da clara aceitação lusa da existência do extenso
território americano compreendido entre as bacias fluviais Platina e Amazônica, e representado, em
alguns mapas dos tempos iniciais da história colonial, como uma grande unidade contínua destinada à
expansão dos domínios portugueses, conforme afirma Jaime Cortesão
13
. Só a partir de 1559, com o
desenho de André Homem, essa imaginária extensão foi por vezes subdividida em várias ilhas, sempre
envolvidas pelas bacias e nascendo de um imenso lago. É nesse registro cartográfico que aparecem as
nascentes de importantes rios, como o Tocantins, o Paraguai e o Paraná, este último comunicando-se
ainda com o Parnaíba e o São Francisco, configurando a ampla rede fluvial de acessos à região mítica.
Ainda no Quinhentos, foi a crença na existência do lago cheio de ricos e fantásticos tesouros
que seduziu Martim Afonso de Souza a defender os possíveis trajetos que o alcançavam, como
sugere uma carta de 20 de agosto de 1530, encaminhada pelo embaixador da Espanha em Portugal,
Lope Hurtado de Mendonça, a Carlos V, da Espanha. Nela, lê-se: “Um capitão Martim Afonso de
Souza, marido de Dona Ana Pimentel, dizem que irá descobrir uns rios que há no Brasil e fazer uma fortaleza [a
de São Vicente] em certa parte e retirar os franceses que andam naquela costa”
14
.
O jovem navegador Martim e seu irmão Pero Lopes de Souza desejavam chegar ao Rio da Prata,
seguir por ele até alcançar o Rio Paraguai e encontrar a esplêndida lagoa. Mas o trajeto foi o seguinte: ao
parar na costa norte do Brasil, a expedição expulsa os franceses, desce para o sul e ao chegar ao Rio de
Janeiro recebe dos índios a informação da existência de ricas jazidas de ouro e prata no Rio Paraguai.
Seguindo jornada, chega à Cananéia no dia 12 de agosto de 1531, quando o português Francisco Chaves
convence Martim e seu irmão da importância de uma expedição por terra. Foram tomadas, então, duas
decisões: a de formar uma expedição com oitenta homens, chefiada por Pero Lobo – que penetrou o
sertão e desapareceu –, e a de dirigir-se, com o restante da armada, por uma rota que levaria ao sul, pelas
bandas do Rio da Prata. Após contratempos de viagem, Martim Afonso regressa à região Norte, pisando
o solo da Ilha de São Vicente no dia 22 de janeiro de 1532. Com João Ramalho, toma conhecimento da
existência de dois caminhos para penetrar o interior do Brasil e chegar à célebre lagoa: o Peabiru, que, por
terra, alcançaria o Rio Paraguai, e o Rio Anhembi, hoje Tietê, que se estendia a noroeste. Essa teria sido
uma das motivações para que ele, em 1532, fundasse a República da Vila de São Vicente.
Mas as motivações exploratórias do território dadas pelo Eldorado ainda foram muitas. Notícias
posteriores desse paraíso, ao que se sabe, surgem em 1550, quando Filipe Guillén comunicou ao Rei D.
João III a presença de índios em Porto Seguro, que diziam habitar “junto de hum gram rio” e de uma serra
que “ resplandece muito,” chamada “sol da terra”
15
. Por essa razão, o novo governador Tomé de Souza,
motivado, determina a busca dessa montanha, na esperança de “ver o que vai por esta terra”.
13
Mas, segundo Glória Kok, uma historiografia mais recente contrapõe-se a essa idéia de Jaime Cortesão. No entanto, para o caso específico do
estudo da formação da Capitania de Goiás, optou-se pela aproximação com esse historiador, pois a vasta documentação levantada nos leva a
aceitar a existência de um plano de ocupação elaborado pelos portugueses. Nessa mesma linha interpretativa encontram-se as pesquisadoras
Renata Malcher e Beatriz Bueno. KOK, Glória. Idem, p. 21.
14
Carta ao Imperador Carlos V da Espanha. In: FERREIRA, Rodrigues Manoel. O 2º descobrimento do Brasil: o interior. São Paulo: Editores, 2000, p. 23.
15
HOLANDA, Sergio Buarque de. Idem, p. 37.
40
O mítico lago foi, ainda, o grande incentivo para a maior parte das expedições exploratórias
que o perseguiram, visando descobrir minas no sertão, notadamente a partir das águas do “gran rio”
São Francisco. No período da união das coroas (1580/1640), segundo Gandavo, por esse rio,”cuja
boca está a dez graus e um terço [...] e que “corre da boca do sul para o Norte”
16
, passaram as primeiras
bandeiras que alcançaram os confins goianos
17
.
Em Goiás, o mito do Eldorado está vinculado ao nome de Paraupava, advindo de Sabarabuçu.
Sérgio Buarque de Holanda sugere que a informação de Guillén pode ter sido o momento da
primeira aparição do nome Sabarabuçu, pois serra resplandecente corresponde, em tupi, a Itaberaba e
no aumentativo, a Itaberabaoçu, que, sem dificuldade, corresponderia a Taberaboçu e, finalmente, a
Sabarabuçu. Afirma ainda a possível relação de continuidade existente entre o mito de Porto Seguro,
descrito pelo expedicionário Fernão Dias Pais e os que se espalharam por diversas épocas nas capi-
tanias do sul e do centro, como é o caso da de Goiás e a sua Paraupava ou Paraupaba. Entretanto, as
rotas de entrada para esses lugares, não foram feitas por Porto Seguro, e sim por outras, como as do
Espírito Santo e São Paulo, alternando, dessa forma, a porta de entrada para o sertão das esmeraldas
e do ouro
18
, por causa da ameaça de ataque e o domínio indígena que se assenhoreou da antiga via.
Muito provavelmente relacionada ainda às primeiras informações de Filipe de Guillén e aos
apontamentos de Gandavo, está a expedição, de 1597, do inglês Knivet, que partiu de Parati rumo
ao interior da colônia, onde encontrou, segundo suas descrições, inúmeras maravilhas. Dentre estas
se destacam as visões que teve de uma enorme serra aurífera, dos ofuscantes cristais e das formosas
gemas verdes, vermelhas, azuis e brancas. Mas esse tesouro, para ele, encontrava-se a pouca distân-
cia da rica Potosi, no Peru. Reza essa estória que a partir dessa data [...] iria repousar, aparentemente, a
fama de certa montanha de prata no íntimo do continente, identificada aos poucos com Sabaraboçu e distinguida de
uma serra das esmeraldas. Assim se vai duplicando ou multiplicando aquela misteriosa serra resplandecente dos
primeiros tempos, segundo o parecer que mais atenda à cobiça dos colonizadores”
19
.
A condição de procedência de rios levou Jaime Cortesão
20
a advertir que, anteriormente à
história de Sabarabuçu, Paraupava e demais lagos míticos, já se encontrava a idéia de uma “ilha-
Brasil”, ou a de um território contínuo e coeso, compreendido entre o delta amazônico e o estuário
platino, ultrapassando largamente os limites impostos pelo meridiano de Tordesilhas, o que
correspondia à desejada e pretensa união entre essas duas importantes bacias brasileiras. Infere
ainda a existência do antigo sonho dos portugueses de fomentar a ocupação de todo território
brasileiro até se atingirem os rios das bacias do Prata e do Amazonas, constituindo a grande unidade
que seria a “idéia-força” para a solução da soberania portuguesa na América do Sul, com a implanta-
ção de uma política de controle e ocupação do território. Mas, para tanto, caberia a transformação
do mito em realidade e da vaga intuição em conhecimento exato do lugar.
16
GANDAVO, Pero de Magalhães. Das riquezas que se esperam da terra do sertam. In: ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História colonial
(1500-1800) & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília: Editora da UnB, 1963, p. 336.
17
Segundo Bertran e Manoel Rodrigues Ferreira, as expedições pioneiras que chegaram a Goiás datam de 1590/ 93, chefiadas por Domingos
Luís Grou e Antônio Macedo.
18
Holanda destaca que o fator motivador para tal mudança foi, certamente, a familiaridade dos paulistas em tratar com os silvícolas, bem como
sua vasta experiência com o sertão. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit., p. 53.
19
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Idem, p. 40.
20
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Ed. Fac-similar. Vol. II Brasília: Senado Federal, 2001, p. 135.
41
A gradativa transformação se efetuou a partir das diversas incursões ao interior do território e
dos consecutivos avanços da ciência cartográfica. Impulsionados pelo mito e ajudando a configurar
um quadro aparentemente desconexo, os mapas se colocaram a serviço da averiguação do imaginário,
em direção à real visualização do espaço. Mesmo na fase inicial, quando o mito prevalecia e o conhe-
cimento da terra se fazia sem grandes certezas, os cientistas geógrafos deram importantes contribui-
ções: Lopo Homem e Diogo Ribeiro
21
, ambos em 1519, foram alguns deles. Posteriormente, o crescente
interesse pelo desenho do território do Magnus Brasil, pelo seu domínio, também incitaria holandeses,
espanhóis, franceses e outros portugueses a representá-lo, resultando numa considerável produção de
mapas, textos e tratados que descreviam a fantástica região mitológica do Brasil, ou seja, a região da
esplêndida Lagoa Eupana, Upaua, Upavuçu, Vupabuçu, Hepabuçu e Paraupava, “[...] dentro da qual
dizem haver muitas ilhas e nellas edificadas muitas povoações, e outras ao redor dela mui grandes, onde há muito ouro,
e mais quantidade, segundo se affirma, que em nenhuma parte desta Província”
22
. São alguns exemplos dessa
literatura geográfica a Cosmographie, de João Afonso (1527-1543), as Voyages Aventureux (1527)
23
e os
demais trabalhos de Antônio Rodrigues (1617); Gabriel Soares de Sousa (1584), com seu Tratado
Descritivo sobre o Brasil; Ambrósio Fernandes Brandão (1617); Simão Estácio da Silveira (1624); Padre
Antônio de Araújo (c. 1625); Padre Simão de Vasconcelos (c. 1654) e Pero de Magalhães Gandavo,
com o Tratado da Terra do Brasil (s/d) e História da Província de Santa Cruz (1576).
É nesse universo cartográfico e literário, entre outros, e movido de início mais enfaticamente pelas
explicações míticas, que se encontram os primeiros e imprecisos registros das terras sertanejas que fariam
parte do território goiano. Neles, ora sim, ora não, estão representados o Araguaia e o Tocantins, colocan-
do em relevo as suas condições de grandes eixos de acesso à Região Central do Brasil. Esse fato se revela
com a carta de Bartolomeu Velho, de 1562, em que se vê a grande Lagoa Eupana, localizada nas imedi-
ações do Tocantins e ligando-se ao Prata, ao Pará e ao São Francisco. Por volta de 1600, serão os mapas
do cosmógrafo João Baptista Lavanha e Luís Teixeira
1
que indicariam, mais uma vez, a Lagoa Eupana.
Seguem-se a esses desenhos os de Pero Domingues, porém com a Lagoa se apresentando com a denomi-
nação Paraupaba, igualmente à que aparece nos relatos do Padre Antônio de Araújo
25
.
Para as representações que envolvem mais diretamente o território de Goiás, os mapas de maior
valor são os dos cartógrafos portugueses Antônio Sanches, de 1641, e João Teixeira Albernaz II, de 1655,
1670 e 1675
26
. De acordo com esses trabalhos, “o lago Dourado vai sendo suprimido e substituído pelo esboço do Rio
Araguaia, ilha do Bananal e a junção Araguaia-Tocantins”
27
. Com essas alterações, pode-se deduzir que,
gradativamente, as primeiras cartas em que o território goiano apresentava-se subjetivamente, como um
21
RODRIGUES, Manoel Ferreira. O 2° descobrimento do Brasil: o interior. São Paulo: Editores, 2000, p. 22
22
GANDAVO, Pero de Magalhães. apud: CORTESÃO, Jaime Zuzarte. História do Brasil nos velhos mapas. Tomo 1. Rio de Janeiro: Ministério das
Relações Exteriores e Instituto Rio Branco, s/d, p. 344.
23
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. História do Brasil nos velhos mapas. Tomo 1. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores e Instituto Rio
Branco, s/d, p. 344.
24
Esse mapa encontra-se na obra Portugaliae Monumenta Cartographica. Itália, Torino: Biblioteca Reale.
25
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Ed. Fac-similar. Vol. II Brasília: Senado Federal, 2001, p. 136.
26
KONINKLIJKE BIBLIOTHLEEK, BIBLIOTECA DE HAIA. Holanda. Portugaliae Monumenta Cartographica. N. E. 530.
27
BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central: Eco-história do Distrito Federal; do indígena ao colonizador. Brasília: Verano,
2000, p. 50-51.
42
todo amalgamado, identificado apenas pelas imagens lendárias, foram se
transformando em outras que revelavam mais concretamente a realida-
de do lugar. No mapa de Antônio Sanches, por exemplo, não existe a
fantástica Lagoa Paraupava, apenas a indicação dos rios Paraguai (Prata),
São Francisco e Paraupava (Araguaia), com suas nascentes independen-
tes. No de João Teixeira, de 1642, também aparecem claramente os rios
Araguaia e Tocantins e a Ilha do Bananal (Ilha Peraupaba). Vinte anos
depois, no mapa de João Albernaz II, são representados, igualmente ao
anterior, a Ilha do Bananal, duas nascentes para o Tocantins – Maranhão e
Paraná e duas para a bacia Platina – o Rio Corumbá e, ao que parece, o
São Marcos. Entre as cabeceiras do Tocantins e do Prata, a presença de
uma nova lagoa sem nenhuma denominação. No mapa de 1675, ela
vem acompanhada da descrição: “Lagoa onde há muito salitre
28
”. (Fig. 2)
Fig. 2 – Fonte: Mapa do Arquivo da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
seção cartografia: CÓDICE – CART
1079075 f 01.
43
Segundo o relato do padre jesuíta Antônio de Araújo, a descoberta do salitre, um importante
minério para a fabricação de pólvora, foi feita pela expedição de André Fernandes: “[...] depois de
gastos alguns meses no discurso de vários sertões foram dar com as cabeceiras de um rio chamado Iabebéri, nome que
lhe deram muitas raias que nele há. Aqui descobriu [...] um mineral de salitre que conheceu mui bem pela experiência
que dele tomara entre os castelhanos [...]”
29
. Se se consideram, com os textos literários, os mapas como
roteiros e registros do tempo vivido, as freqüentes revisões cartográficas feitas pela família Albernaz,
decorrentes de novos devassamentos e descobertas como essa, podem ser entendidas como formas
legítimas de transformação dos mitos em realidade geográfica, ou melhor, do mito em conhecimen-
to e controle de uma “região apartada do mar, & por todas as partes metidas entre terras”
30
.
A cartografia e os registros escritos corresponderam, nesse sentido, aos diferentes níveis de
informação do império português sobre as novas terras americanas, como se vê neste relato do
Padre Simão de Vasconcelos:
Contam os índios versados no sertão que bem no meio dele são vistos darem-se as mãos estes dois rios
(Amazonas e Prata) em uma lagoa famosa ou lago profundo, de que águas que se ajuntam das vertentes das
grandes serras do Chile e do Peru, e demora sobre as cabeceiras do rio que chamam São Francisco, que vem
desembocar ao mar em altura de 10
o
e um quarto; e que desta grande lagoa se formam os braços daqueles
grossos corpos: o direito ao das Amazonas, para a banda do norte, o esquerdo ao da Prata, para a banda
do sul, e que com estes abarcam e torneiam todo o sertão do Brasil; e que com o mais grosso do peito, pescoço
e boca presidem ao mar
31
.
Nas palavras desse sacerdote, realidade e mito parecem se fundir indistintamente, formando
uma única verdade indivisível, da mesma maneira que ocorre nos mapas da família Albernaz em que
aparece a região goiana. Mas essa aparente condição não apaga as evidências iniciais e mais concre-
tas da gradual construção de uma realidade territorial guiada pela razão. As diversas expedições à
região e as posteriores descobertas, como as do salitre, foram as condições que permitiram as retifi-
cações e transformações da cartografia. A continuidade do processo que, sobretudo, visava à verifi-
cação de um mito e as inovações geográficas marcarão as bases das futuras representações da região,
quando se fixará definitivamente a apropriação do território auxiliada por mapas. O Setecentos será,
portanto, o exemplo desse período. Nele ocorrerá a “matematização” do espaço, revelada por cartas
topográficas orientadas por latitudes e longitudes, feitas por experientes geógrafos e engenheiros
militares da época. Com elas, sim, se reconhece o apogeu de uma cultura que se dirigia a caminho do
conhecimento científico do interior do Brasil, embora ainda e igualmente motivada, em diferentes
graus e momentos, pelo imaginário das ricas regiões de ouro.
28
Mineral de grande importância para os portugueses pelo seu elevado valor na composição da pólvora. BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 51-53. De
acordo com Bertran, esses mapas se encontram na Library of the University of Yale e na Spanic Society of América, NY.
29
Notícia que o escrivão Pero Domingues passou ao Padre Araújo. In: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no planalto central: Eco-
história do Distrito Federal, do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000. p. 50.
30
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino [...] Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1721. Vol. VII, p. 613.
31
VASCONCELOS, Pe. Simão de. Livro primeiro das notícias antecedentes curiosas e necessárias das coisas do Brasil: Introdução à Crônica da
Companhia de Jesus do Estado do Brasil, § 27. apud: CORTESÃO, Jaime Zuzarte Op. Cit., p. 137.
44
1.3 Desbravando o território em busca do mito
Não só com a cartografia é possível verificar as origens e a formação do território goiano.
As várias expedições bandeiristas e missionárias, à medida que iam avançando em direção aos
novos espaços internos do continente americano, contribuíam para a sua conquista, efetivando
o controle desse território e transformando-se, assim, nas verdadeiras protagonistas dessas
ações. A história colonial do Brasil está repleta de exemplos dessas incursões desbravadoras,
em especial a partir do Seiscentos, quando muitas delas, paralelamente às que se dirigiram à
região de Goiás, avançaram e permitiram a posse das terras do sul, norte e região mais a oeste,
como a do Mato Grosso. Para o Sul, homens foram em busca do São Francisco, para manter a
integridade do território português. Em direção ao Norte, dando seqüência à conquista do
litoral do Rio Grande, do Ceará e do Maranhão, ordens de Portugal determinaram a constru-
ção de uma casa fortificada, denominada Presépio, na embocadura do Amazonas. Havia uma
antiga preocupação luso-brasileira para alcançar essa região, fronteira natural a marcar os pon-
tos extremos das terras de Portugal e Espanha, mesmo na condição de unificadas. Francisco
Caldeiras Castelo Branco foi destacado como chefe da expedição e, chegando à baía de Guarajá,
nomeou a terra vizinha de “Feliz Lusitânia”. Nos anos seguintes, foram atacadas posições
estratégicas de holandeses e britânicos no Macapá, na Ilha do Tocuju e no Amazonas, dando
início aos trabalhos dos missionários franciscanos.
Em 1637, armou-se a maior façanha sertanista do Norte: uma entrada com mais de duas
mil pessoas para identificar a existência de uma ligação fluvial entre o Atlântico e o Peru. Coube
a chefia ao capitão Pedro Teixeira que, anteriormente, logo depois da fundação de Belém (1616),
já havia percorrido grandes extensões pelo Rio Tapajós, colhendo importantes informações geo-
gráficas, econômicas e etnográficas. A nova jornada, por tamanha ousadia em cobrir uma grande
extensão territorial, mostrou ao vice-rei da Espanha a vulnerabilidade de sua Coroa, induzindo-o
a ordenar o retorno de Pedro Teixeira ao Pará. Em Belém, no ano seguinte, os trabalhos
do expedicionário têm continuidade com a fundação de Franciscana, na confluência do Napo
com o Aguarico, impondo novos limites para os territórios das coroas ibéricas. Aquela primeira
linha fixada pelo meridiano de Tordesilhas já não era mais considerada. A expedição não havia
feito apenas um reconhecimento preliminar; ela procurou igualmente assegurar à soberania lusa
as terras além Tapajós. “E um sonho e plano expansionista nasceu: ao mito da Ilha Brasil e do Lago Dourado
veio agregar-se o do Rio do Ouro”
32
. Com esse plano expansionista e as possíveis movimentações pelo
novo território estabeleceram-se as ligações entre o Amazonas e o Brasil Central através dos rios
Tocantins e Araguaia
33
, permitindo, pela primeira vez, uma maior compreensão da hidrografia do
território e a indicação de importantes vias fluviais de acesso à região da Ilha do Bananal, onde
chegaram os primeiros religiosos jesuítas em busca de índios para catequizar e de locais para o
soerguimento de futuros aldeamentos.
32
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., 145.
33
HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira: a época colonial, do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1989, p. 264.
45
Logo após a separação dos reinos ibéricos, em 1640, o movimento dos bandeirantes, como
um todo, sofreu sensíveis alterações. “Com a maior entrada de escravos negros, o apresamento dos índios foi
progressivamente deixando de ser um negócio rentável desviando, em partes, o interesse dos bandeirantes das
expedições de resgate para outro tipo de projeto que envolvia a própria Coroa”
34
. A ordem, agora, era a
reordenação da penetração do interior, já iniciada anteriormente com significativos avanços tanto
para as terras do Sul como para as do Norte e Oeste. Para o atendimento das novas orientações,
a metrópole determinou a formação de expedições bandeiristas, que partiram ora de São Paulo,
ora de Belém, remuneradas com concessões de cargos e títulos, visando, principalmente, a
prospecção de minas e, em maior escala, a garantia dos avanços territoriais que alcançaram a região
dos rios Araguaia e Tocantins.
As incursões originárias do Pará eram formadas, normalmente, por religiosos jesuítas
como Padre Antônio Vieira, que embora tenha chegado ao Tocantins, não conseguiu pisar nas
terras goianas; Padre Tomé Ribeiro (1658), que andou pelas margens do Rio Araguaia; Padre
Manuel Nunes (1659) e os padres Gonçalo de Veras e Sebastião Teixeira (1671), que, segundo
consta, procuraram, numa ação quase ciclópica, estender seus programas de evangelização à
região. As ações jesuíticas nas terras de Goiás, embora modestas se comparadas às grandes
missões do Sul e do Norte da colônia, sinalizam as tentativas de implantação da política de
ocupação portuguesa, fundamentada na incorporação de novos territórios, que seriam garanti-
dos pela participação dos diferentes agentes
35
a serviço da estrutura maior que os reivindicava.
A participação de padres e bandeirantes, apesar de seus propósitos distintos dentro do panora-
ma da colonização, era o apoio da sustentabilidade da posse efetiva, anunciada desde o século
XVII na região goiana.
Mas, para além dessas considerações, no conjunto das incursões seiscentistas, foram as
bandeiristas originárias de São Paulo que mais contribuíram para a ocupação do território das minas do
centro da colônia. A historiografia colonial destaca como a maior e mais expressiva dessas jornadas
a do caçador de esmeralda Sebastião Pais de Barros (1673), que, acompanhado de 800 homens,
atingiu o sertão bruto de Paraupava, galgando
[...] os sertões do São Francisco e do Piauí, indo parar à beira do curso do Tocantins. Logo o procurou uma
patrulha do Grão-Pará, tentando dissuadi-lo a abandonar o local, que já se dizia achar-se ligado a São Paulo
por uma estrada (1673). Nesse episódio, o que, contudo, merece relevo é o apoio oficial que o sertanista houve
da Corte: o próprio regente mandou escrever-lhe uma carta a perguntar-lhe dados precisos sobre o local a que
chegara e a incitá-lo a prosseguir na busca de ouro, pedras e prata e na extração das drogas da terra
36
.
34
ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e método. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, 2000, p. 78.
35
“Não era possível, para qualquer dos agentes atuantes no processo, sustentar a posse da região com o simples argumento da prioridade dos
avanços sobre o território. Pelo contrário a base da sustentabilidade da posse residia, sobretudo, na capacidade de manutenção de vínculos
desses territórios à estrutura que o reivindicava para si [...].” ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso
e método. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2000, p. 80.
36
REIS MIRANDA, Tiago C. P. dos. Op. Cit., p. 37.
46
Um pouco antes da expedição de Pais, por determinação régia, o padre português Antônio
Raposo Tavares (1648/1751) chefiou uma ambiciosa viagem, com duzentos brancos e mamelucos
e mais de mil índios, que saiu de São Paulo e estabeleceu, pelo curso dos rios Tocantins, Tapajós e
Madeira, o contato entre a região central do Brasil, as minas do Mato Grosso e a Amazônia. Seguin-
do esse roteiro, eles percorreram pela primeira vez os limites máximos do território do Brasil, dando
a conhecer a possibilidade de ligação entre as bacias do Prata e do Amazonas, “fundindo os dois mitos
da ilha Brasil e do Rio do Ouro numa única realidade”
37
, e de consolidação de um período decisivo para a
compreensão da estrutura geral da hidrografia continental.
Ao final do Seiscentos, entre 1673/78, outros dois pontos localizados na fronteira sulina
também chamavam a atenção dos portugueses: o Rio Paranaguá e a foz do Rio Prata. Para tanto,
eles fundaram à margem esquerda deste último o povoado de Sacramento, que lhes garantiria o
direito de posse dessa faixa de terras, bem como o de concorrer com Buenos Aires pelas transações
comerciais que ali se desenvolviam (1680). A reação da Espanha foi imediata. Pouco tempo depois,
já havia formado um exército para tomar Sacramento, obtendo sucesso. Dois anos após a ocupação,
o povoado retornou ao poder de Portugal, mas até o final do reinado de D. José foram registrados
inúmeros conflitos e sucessivas ocupações espanholas. A insistência em permanecer e proteger a
região garantiu aos portugueses sucesso efetivo na conquista e colonização do Rio Grande do Sul
(1737) e, no século seguinte, a ampliação do território da futura Capitania de Santa Catarina (1738).
Mas não foram os grandes empreendimentos expansionistas que mais contribuíram para
o alargamento do território goiano. Os maiores responsáveis pelo desnudamento dessas terras
foram as modestas expedições de caráter oficial e semi-oficial que, antes mesmo da abertura
do acesso norte, ainda no Quinhentos, percorreram essa região, dando início à sua descoberta.
A primeira delas foi uma bandeira paulista formada por apenas 50 homens, chefiados por Do-
mingos Grou (1590 - 1593), que partiu de São Paulo, passou pelas cabeceiras do Rio São Francis-
co e alcançou o sertão da Grande Lagoa Paraupava. Abriam-se, assim, as portas para a continuidade
do mito que perdurou até o século XVIII. As ações de desbravamento territorial, entretanto, não
pararam por aí. Seguindo essa primeira expedição, outras também percorreram o pretendido
território, dinamizadas por importantes prioridades do governador D. Francisco de Souza: a bus-
ca do tão propalado ouro.
Não se pode esquecer, contudo, que esse período, da Corte de El Rei Filipe II, foi marcado pelas
incertezas em relação a quem pertencia o território. Portanto, foram condições subjetivas, ou do ima-
ginário português, que motivaram as diversas bandeiras além do Tietê, alternando sucessos e insucessos.
Mas as incertezas das buscas não obstaram o nobre e visionário fidalgo D. Francisco de dar continui-
dade às suas procuras. Na segunda metade do século XVI, ele determinou a criação simultânea de três
expedições, que saíram à procura do precioso metal e de índios a serem escravizados. Uma delas,
coordenada pelo capitão-mor da Capitania de São Vicente e São Paulo, João Pereira de Souza, o
Botafogo, em 1596 avançou no descobrimento da região pelo sul do Rio São Francisco e alcançou o
sertão do Rio Paranaíba, na atual divisa de Goiás com o Triângulo Mineiro
38
. As outras duas foram a
de Diogo Martins Cão (1596), o matador da Paraíba, e a de Martim Correia de Sá e Anthony Knivet
37
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., 147.
38
BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p.42.
47
(1596), que partiram do Rio de Janeiro e Espírito Santo, respectivamente. Com essas viagens, alcan-
çou-se o local onde se estabeleceria a importante entrada pelo sul: as terras de Goiás, suporte do
famoso Caminho Real, que no século XVIII seria o acesso às minas de ouro permitido pela Coroa.
Apesar dos esforços e freqüentes fracassos, a força do mito do Eldorado contribuiu para que
o governador D. Francisco contratasse o mineralogista Domingos Rodrigues para continuar a busca
pelo ouro. Saindo de Piratininga em 1596, a expedição alcançou o Araguaia e seguiu para a Bahia,
pelo Vale do São Francisco, de onde Domingos Rodrigues trouxe amostras de minério para o gover-
nador, mesmo sem ter ainda os resultados dessa expedição. Em 1598, uma outra expedição parte de
São Paulo em direção semelhante, sob a chefia de Afonso Sardinha, o Moço. Em 1599, retorna à
Vila de Piratininga o inglês Anthony Knivet, que, nesse mesmo ano, organiza uma outra partida
para o Rio São Francisco, onde já estivera antes. De lá, volta com algumas pepitas de ouro, prenún-
cio das promessas do antigo mito.
No início do século XVII, a crença nos fantásticos tesouros era um pouco mais tímida,
em face dos resultados negativos até então obtidos. No entanto, as buscas pelo metal na dire-
ção de Paraupava permaneceram ativas e se intensificaram. A primeira expedição dessa centúria
foi a de André de Leão
39
, que de São Paulo (1601) segue em direção ao São Francisco, retornando
nove meses depois. No ano seguinte, forma-se a bandeira do rico mineiro de ouro e ferro
Afonso Sardinha e de Sebastião Marinho, que, ao que parece, percorreu o território de Minas
Gerais e Goiás, achando o precioso metal ao norte de Vila Boa, futuro centro administrativo da
Capitania de Goiás. Nesse momento, a probabilidade da existência de ouro nas bandas do
sertão era forte e, certamente, esse foi o motivo que levou o então governador a proibir as
entradas de alcançá-lo, ficando o privilégio de visitá-lo, apenas para a jornada de Sardinha. No
ano de 1602, Sardinha, o filho, parte novamente com uma grande expedição comandada por
Nicolau Barreto e formada por 300 homens, com o seguinte itinerário: Rio Anhambi (Tietê),
Rio Goiabi (Rio das Velhas) e Rio Paracatu, em Minas Gerais. Bertran vê a “probabilidade destes
homens terem adentrado Goiás pelo vale do Paranatinga, pertencente a um segmento da bacia do Rio Paraná”
40
. A expedição retorna a São Paulo, levando índios para serem escravizados. Em que pese a
importância dessa mão-de-obra indígena, o que cabe aqui sinalizar são as primeiras tentativas
de controle de um território que, embora desse apenas modestos sinais de suas riquezas, moti-
vou significativamente as incursões subseqüentes.
Entre 1605 e 1609, período do término do mandato de D. Francisco, o administrador das minas
paulistas Diogo de Quadros organiza uma nova bandeira para o sertão, sob o comando de Belchior
Carneiro, que parece ter alcançado a região dos índios Bilbeiro, ou Kaiapó, como quer Bertran
41
.
Apesar da recente proibição real de penetrar o sertão, em 1608 forma-se a bandeira de Martim
Rodrigues Tenório de Aguilar, que esteve na Ilha do Bananal e com os Bilbeiro na confluência do
Araguaia-Tocantins. Em 1609, D. Francisco de Souza reassume o governo-geral e decide enviar
o lendário Marcos de Azevedo à região das Esmeraldas de Sabarabuçu, partindo do Espírito Santo.
A viagem não obteve sucesso e com ela foi encerrado o ciclo das expedições incentivadas por esse
39
BERTRAN, Paulo. Idem, p. 57-59.
40
BERTRAN, Paulo. Idem, p. 44.
41
BERTRAN, Paulo. Idem, p. 45.
48
governador, que, diga-se de passagem, só obteve vagas notícias e poucas amostras das míticas serras
de ouro e pedras preciosas.
Mas, apesar dessas poucas amostras de ouro, esse ciclo inicial de expedições não pode ser
considerado como um período de insucessos, e sim como o de preparo e consolidação de
rumos que animaram outros paulistas a investir nos sertões, a descobrir mais rios e limites
naturais, como a modesta bandeira de André Fernandes (1613-1615). Com esse bandeirante,
trinta homens saíram do Tietê em direção ao Rio Grande, até quase o centro de Minas Gerais,
passaram pela bacia do São Francisco, à direita do Rio das Velhas (Goiabi), e depois pelo Rio
Paracatu, e alcançaram o Rio das Águas Brancas, braço do Iabebéri ou Tocantins
42
, a pouca
distância do Pará. Em seguida, apenas o chefe e catorze desbravadores foram à Ilha do Bana-
nal: “[...] ultrapassaram Barra do Garças, meteram-se pelo rio Diamantino e, supomos, por um curto viradouro
de terra na altura de Portelândia-Go, reembarcam no rio Aporé indo dar no Paranaíba (Boigi), descendo-o
antes da junção do Rio Grande (Iguassu). Por este, tomando à esquerda, sobem o Tietê”
43
, concluindo um
trajeto que quase correspondeu à extensão do futuro território de Goiás. Em 1622, um bandei-
rante paulista amplia o referido trajeto ao desembocar na foz do Tocantins
44
e chegar efetiva-
mente às terras do Pará, marco de partida de outras expedições para a imaginária região do
ouro e dos Martírios, assim chamada porque “tinha por obra da natureza uma semelhança de coroa,
lança e cravos da paixão de Jesus Cristo”
45
. Com as expedições de André Fernandes encontravam-
se, pela primeira vez e bem no interior do Brasil, os possíveis limites geográficos a oeste do
indefinido território de Goiás: os rios Araguaia e Tocantins. Este “corre do sul para o norte, e he
totalmente diverso do Rio Grande Geral, que corre do norte para o sul, o qual depois toma o nome de Maranhão
até que finalmente vai com o nome de Tocantins, dezaguar no Grão Pará”
46
. A partir de então, estava por
vir os novos interesses de Portugal, com iniciativas que consagrariam a efetiva posse das terras
auríferas que formariam a Capitania goiana. (Figs. 3; 4; 5; 6)
42
BERTRAN, Paulo. Idem, p. 50
43
BERTRAN, Paulo. Idem, p. 53
44
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., p. 144.
45
BASÍLIO DE MAGALHÃES. apud: KOK, Glória. O sertão itinerante: expedições da Capitania de São Paulo no século XVIII. São Paulo:
HUCITEC/ FAPESP, 2004, p. 25.
46
AHU. Goiás, Doc. 429, 1745. Carta do governador e capitão de Goiás, D. Marcos de Noronha, Conde dos Arcos, ao Rei D. João V em resposta
à provisão sobre como se deve proceder quanto aos limites geográficos da Capitania de Goiás.
49
Fig. 3 – A bandeira pioneira de
Domingos Grou e Antônio Macedo
(1590-1593), segundo Manuel
Rodrigues Pereira.
Fonte: apud: BERTRAN, Paulo.
História da terra e do homem no planalto
central: Eco-história do Distrito Federal,
do indígena ao colonizador. Brasília:
Verano, 2000, p. 41.
1.4 Entre as promessas míticas e os avanços territoriais
Mais ao final do século XVII, após o momento das grandes expe-
dições que visavam as demarcações dos novos limites da colônia e da-
quelas que alcançaram, particularmente, a região de Paraupava, jornadas
de caráter oficial e semi-oficial de pequeno porte deram continuidade à
busca do mito do Eldorado, do ouro fácil, ao alcance das mãos, que
poderia ser catado quando se quisesse. A mais importante para a região
central do Brasil foi a de Fernão Dias Pais, por marcar a história de
Minas Gerais com o descobrimento dos seus mananciais auríferos e abrir
possibilidades para explorações futuras. Seu intento era alcançar a famo-
sa Sabarabuçu. Saindo de São Paulo a 21 de julho de 1674, andou por
sete anos sem êxito, na região Centro-Sul do Brasil, à cata de ouro e
pedras preciosas que só seriam encontrados posteriormente, pelas su-
cessivas descobertas do final do século XVII e início do XVIII.
50
Fig. 4 – Expedição de João de Souza
Botafogo, continuada por Domingos
Rodrigues (1596-1600), conforme M. R.
Ferreira.
Fonte: apud: BERTRAN, Paulo.
História da terra e do homem no planalto
central: Eco-história do Distrito Federal,
do indígena ao colonizador. Brasília:
Verano, 2000, p. 42.
Mas esses “achados” não se limitaram apenas à região de Mi-
nas Gerais. Logo depois foram encontrados filões do precioso metal
em Coxopó Mirim (1719), futura Capitania do Mato Grosso; no no-
roeste de Rondônia (1734); em Jacobina (1701), na Bahia; e em Goiás.
Nesta Capitania as pesquisas minerais, assim como em Minas Gerais,
começaram no final do século XVII, com homens que marcharam
em território de índios bravios e animais selvagens. “Iam sem pressa,
arranchando-se, procurando o melhor lugar da caça e da pescaria, entrando no
mato atrás de mel-de-pau ou de outro mantimento”
47
. Andando continua-
mente, eles ajudaram a abrir o caminho por terra até o sertão dos
Goyazes, “onde se iam formando sítios e lavouras que além de pouso, forneciam
aos viandantes a sobra do que plantavam”
48
. Lourenço Castanho – que
“pode ter formado rancharia na fronteira setentrional entre Minas e Goiás”
49
,
Luís Castanho de Almeida e seus filhos (1671) e Antônio Soares
(1671) foram alguns deles. Para Silva e Souza, um quarto bandeiran-
te que também pode ter realizado esse mesmo itinerário, em 1682,
foi provavelmente Bartolomeu Bueno da Silva, apelidado pelo gen-
tio de Anhangüera,
51
Fig. 5 – Bandeira de Nicolau Barreto e
dos mineradores paulistas (1602-1604),
por M. R. Ferreira.
Fonte: apud: BERTRAN, Paulo.
História da terra e do homem no planalto
central: Eco-história do Distrito Federal,
do indígena ao colonizador. Brasília:
Verano, 2000, p. 44.
[...] que na linguagem do paiz quer dizer Diabo Velho pelo estratagema de
accender aguardente em uma vasilha, com ameaça de abrazar todos os rios e
todos os índios que se não lhe rendessem, seguido de um filho do mesmo nome,
de idade de doze anos ( que veio a ser o descobridor d’esta capitania), e outros
aggregados , chegou pouco mais ou menos em 1682 ao domicilio do pacifico
gentio Goyá, que agora habitamos: e demorando-se algum tempo no meio das
suas correrias, que comprehenderam grande parte d’estes sertões a plantar roça
que melhorasse a sua sustentação, reconheceu a riqueza do logar vendo folhetas
de ouro bruto pendentes ao collo das índias: e com esta certeza, confirmada de
algumas indagações, regressou ao seu paiz natal, seguindo da numerosa presa
que tinha feito, a utilizar-se do fructo dos seus trabalhos [...]
50
.
47
SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Novo Eldorado. In: Virando séculos:
1680-1720, o império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 29.
48
SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas
fronteiras e nas fortificações. In: História da vida privada no Brasil. NOVAIS, Fernando A.; SOUZA,
Laura de Mello. São Paulo: Companhia das Letras. 1998, p. 63.
49
BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 57.
50
SOUZA, Silva e. O descobrimento, governo, população, e cousas mais notáveis da Capitania de
Goyaz, 1848. In: TELES, José Mendonça. Vida e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998, p. 74.
52
Essas bandeiras, formadas por homens que iam acompanha-
dos de seus parentes, foram as grandes responsáveis pela fixação no
imaginário do Setecentos da existência de terras nas quais “[...] havia
por certo [...] minas de ouro e prata, e pedras preciosas, cujo descobrimento se não
havia intentado pela distância em que ficavam as terras, asperezas dos caminhos,
e povoações de índios bárbaros que nelas se achavam aldeados; os quais primeiro
se haviam conquistar para se descobrirem os haveres; e porque deste descobrimen-
to de minas podiam resultar grandes interesses à coroa [...]”
51
. A crença que
se espalhava sobre a existência de lugares cobertos de “folhetas de ouro
bruto pendentes ao collo das índias”
52
foi o estímulo que fez Bartolomeu
Bueno da Silva, o filho, se embrenhar novamente por esse sertão e
lançar, de fato, as bases das futuras minas de Goiás.
Assim, a consagração da existência de ricas jazidas de metais
no sertão goiano só se firmará no início do Setecentos, quando o
filho do velho Anhangüera e seus companheiros paulistas João Leite
da Silva Ortiz e Domingos Rodrigues do Prado escrevem ao Rei D.
Fig. 6 – Itinerário de Martim Rodrigues
Tenório de Aguiar (1608-1613),
segundo M. R. Ferreira.
Fonte: apud: BERTRAN, Paulo.
História da terra e do homem no planalto
central: Eco-história do Distrito Federal,
do indígena ao colonizador. Brasília:
Verano, 2000, p. 45.
53
João V pedindo permissão para explorar o interior da colônia em busca de pedras preciosas. Em
14 de fevereiro de 1721, recebem resposta favorável às suas solicitações, com o encaminhamento
das devidas instruções ao governador de São Paulo
53
, Rodrigo César de Menezes, para que este
providenciasse o acordo entre a metrópole e os referidos solicitantes. Com a concessão, Bartolomeu
recebeu também um requerimento para que pudesse governar e dar início ao processo de ocupa-
ção da região dos Goiazes. Em 3 de julho de 1722, bandeira pronta, marcha em direção ao terri-
tório goiano à cata de ouro e riquezas guardadas pelas promessas do antigo mito de Paraupava,
ou ainda pela proclamada lenda dos tesouros da região dos Martírios.
Numa difícil e imprecisa jornada, a expedição de Bartolomeu
54
segue viagem com “39
cavalos, dois religiosos bentos, Francisco Antônio da Conceição e Frei Luis de Sant’Ana, um franciscano, Fr.
Cosme de Santo André, e cento e cinqüenta e duas armas, entre as quais iam também vinte índios, que o Sr.
Rodrigo César, general que então era de S. Paulo, deu [...] para a condução das cargas e do necessário”
55
. Ao
sair de São Paulo, a expedição segue em direção à região do Triângulo Mineiro, em Minas
Gerais, atravessa o Rio Grande e penetra em Goiás. A partir daí, segundo o relato de Silva
Braga
56
, Bartolomeu e seus homens passam pelo Rio Maranhão e pelo cerrado planaltino onde
encontram “[...] umas grandes chapadas, com falta de todo o necessário, sem matos sem mantimentos, só sim
com bastante córregos, em que havia algum peixe: dourados e traíras, e piabas, que foram todo o nosso remédio;
achamos também alguns palmitos que chamam jaguaroba, que comíamos assado e ainda que é amargoso,
sustenta mais que o mais
57
. Depois, a expedição segue em direção ao norte, quando se divide em
dois grandes grupos, por causa de inúmeras desavenças entre seus integrantes. Um dos grupos
deu continuidade à marcha em direção ao norte, chegando até o Pará, e o outro, coordenado
por Bartolomeu, se dirigiu mais para o sul, rumo às margens do Rio Vermelho, onde deixou
[...] cinco ribeiros descobertos, todos com ouro, que prometem haver muito mais [...]”
58
, e seguiu viagem
de retorno a São Paulo, em 1725.
51
Resposta do Rei D. João V ao pedido de licença dos bandeirantes, 14/02/ 1721. In: FERREIRA, Manuel Rodrigues. O mistério do ouro dos
martírios. São Paulo: Gráfica Biblos, 1960, pp. 50-51.
52
SOUZA, Silva e. Op. Cit., p. 74.
53
Sobre o offerecimento de Bartholomeu Bueno e outros para descobrir as minas de ouro de Goyaz.
54
A viagem de Anhangüera no atual território paulista é precariamente identificável no relatório de Silva Braga: de São Paulo Capital a Jundiaí,
à passagem do Atibaia – o qual confunde com o Mogi –, ao Jaguari, ao Mogi-Guaçu na passagem de Itapira a ao Jaguari-Mirm, abaixo de Santa
Cruz das Palmeiras. A partir daqui torna-se lacônico o relato, levando de sete a oito dias para atingir-se o Rio Grande, sempre dormindo a
expedição junto a córregos e rios não nomeados . Devem ter atravessado o Rio Grande na direção de Uberaba e estiveram acampados junto ao
Rio Uberaba. Dali a próxima referência é de um rio das Velhas [...] ‘que entra no rio Grande’. Ora, o atual Rio das Velhas, ou Araguari, verte suas
águas no Paranaíba – que Silva Braga denomina de Meia Ponte – e passa muito a Leste para interessar a viajantes que se dirigem a Noroeste.
Como já se equivocara anteriormente em relação ao Atibaia e ao Mogi, Silva Braga deve ter-se confundido com o Rio das Velhas [...]” BERTRAN,
Paulo. Op. Cit. p.66.
55
Relato de Silva Braga. A bandeira do Anhanguera II. In: BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 72.
56
A historiografia de Goiás apresenta outras versões desse itinerário, baseadas em outros relatos. Mas, ao que se observa, o documento de maior
importância é o de Silva Braga.
57
Relato de Silva Braga. A bandeira do Anhanguera II. In: BERTRAN Paulo. Op. Cit., p. 66.
58
Carta do governador D. Rodrigo César de Menezes ao Rei de Portugal, 07/05/1726. In: FERREIRA, Manuel Rodrigues. O mistério do ouro dos
martírios. São Paulo: Gráfica Biblos, 1960, pp. 59-60.
54
No ano seguinte, o bandeirante, acompanhado dos engenheiros sargento-mor Manoel de
Barros
59
e Manoel Pinto Guedes
60
, se prepara para uma outra expedição, visando dar início à explo-
ração das minas e à formação dos inúmeros arraiais que ajudaram no processo de ocupação do
território. Para essa segunda empreitada, a Coroa mandou
[...] tropas reforçadas, fazendo que a elas se sigam outras para melhor penetrar naquele sertão e resistirem ao
gentio, que é bastante, e eu espero com a minha assistência no Cuiabá não extinguindo a multidão deles, mas abrir
de umas para outras minas, de que se seguirá muita utilidade à Real Fazenda de Vossa Magestade [...]
61
.
A notícia sobre os achados goianos espalhou-se rapidamente, ressoando a longas distâncias e
estimulando várias pessoas a deixarem suas terras para percorrer os caminhos em busca do Eldorado,
tal como diz Antonil:
[...] Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos, pretos e muitos índios, de que os
paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas; homens e mulheres; moços e velhos; pobres e
ricos; nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil
convento nem casa [...]
62
.
Com toda essa multidão adentrando a região, a Corte portuguesa pôde assegurar a sua expan-
são e a posse sobre as terras mais centrais do Novo Mundo, auxiliada pelos conhecimentos míticos
e cartográficos, pois fantasia e realidade caminhavam lado a lado. Esse era o sertão merecido e
destinado aos conquistadores; dele, Bartolomeu Bueno da Silva e tantos outros esperavam obter os
prêmios pela conquista, receber as benesses do poder de alcançar o sonho da riqueza. Aqui seria
mais um novo Eldorado, mais um Paraíso...
Ao longo do século XVII e início do XVIII, a idéia paradisíaca foi uma importante orien-
tação para as inúmeras expedições que buscaram em Goiás “tesouros na abundância de ouro, e diaman-
tes e outras pedras preciosas que tem inundado a Europa”. As riquezas desse território, bem como a da
mítica Lagoa Paraupava, prometiam “a fertilidade do Paiz”, mesmo que para isso o colonizador
tivesse de enfrentar
[...] a grande quantidade de caudalosos rios que vadearam, as incomodidades de viajar por sertões a pé, sem
abrigos, mal vestidos, expostos ao sol, chuvas, sereno, frios e fomes, os perigos das serpentes venenosas, onças e
outros animais, de que alguns acabaram a vida, são trabalhos que bem superados parecem superam as forças
da natureza e causam horror aos mais intrépidos
63
.
59
Segundo Salles, esse engenheiro era tido como conhecedor de prospecções de minas. SALLES, Gilka V. F. Op. Cit., p. 62.
60
SOUZA, Silva e. O descobrimento, governo, população, e cousas mais notáveis da Capitania de Goiás, 1849. In: TELES, José Mendonça. Vida
e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998. p. 77.
61
Carta do governador D. Rodrigo César de Menezes ao Rei de Portugal, 07.05.1726. In: FERREIRA, Manuel Rodrigues. O mistério do ouro dos
martírios. São Paulo: Gráfica Biblos, 1960, p. 59-60.
62
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas. Rio de Janeiro: IBGE, Conselho Nacional de Geografia, 1963, p. 72.
63
BERTRAN, Paulo. (org.). Notícia geral da capitania de Goiás. v 1. Goiânia/ Brasília: Solo Editores, 1997. p. 47.
55
Com o início do processo de ocupação, passa-se do deslumbramento às dúvidas sobre as
potencialidades e a natureza do lugar. Depois, à medida que o tempo avançava com mais expedições
e descobertas, a realidade do território goiano enfraqueceu o imaginário paradisíaco. Mostrou suas
características reais: era rico em outros minérios que se espalhavam por toda a Capitania, mas não
possuía tanto ouro como o mito sugeria. O território era de “iguais grandezas aos de Cuiabá com a mesma
permanência e com alguma vantagem, por não serem os ares tão contagiosos”
64
.
Além dessas riquezas iguais às de Cuiabá, o Goiás setecentista também revelou um outro
tesouro: a natureza que motivou interpretações pródigas e cheias de admiração, como esta: “[...]
grande mata que lhe chamam Mato Grosso, que é de admirar neste paiz, onde é tudo campo ou mato carrasquenho
que chamam caatinga”
65
. Essa atitude diante do natural até então desconhecido perdurou até o início
do Oitocentos, conforme o relato de Silva e Souza, de 1849
66
. Embora o território já estivesse
bastante devassado, a expectativa do tesouro ainda permanecia para os lugares “intactos”, mesmo
sendo ela menos intensa e vigorosa, como se lê:
[...] o seu terreno em partes montanhoso, em partes plano, abunda de matas e campinas [...] Tem montes ricos
de ouro, ainda intactos, minas preciosas só lavradas na superfície da terra, rios piscosos e que se podem navegar,
salmas que mal se aproveitam: é finalmente toda a capitania cortada da mesma cordilheira de serras, que
erguendo-se na costa do mar brazilico, depois de atravessar com differentes nomes outras províncias, entra por
esta, e dominando sobre todas as terras do contorno no logar dos Pyreneos, junto ao Arraial de Meia Ponte,
desentranha os rios que vão ao Paragauy, Grão Pará e sertões de S. Francisco: corre a Mato Grosso, entra pelos
domínios dos espanhóis, e se inclina para o mar Pacífico [...]
67
.
Mas, em substituição às promessas edênicas, havia “umas pedras pretas que se acham à flor da terra
com aparências de escorralhas de ferro, a que os naturais chamam Tapanhuacanga”
68
, os pequenos e brilhantes
diamantes vermelhos, verde-esmeralda, branco-acinzentado, amarelos e esverdeados que brotavam
de modo irregular e ocasional em toda a região dos rios Claro e Pilões
69
. Havia também os “lagos
salgados do norte, onde ultimamente também se acharam madrepérolas”
70
, localizados na margem oriental do
Rio Crixás, afluente do Araguaia. O sal foi um dos tesouros da terra, embora suas qualidades não se
relacionassem mais àquela do mito. Em Goiás, ele se “reedenizou”, como em toda a colônia, e para
obtê-lo havia que se contar com as mãos dos homens, segundo a “atividade colonizadora”
71
.
64
Correspondência de Rodrigo César de Menezes de 1725 In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da província de Goiás. Goiânia:
Convênio SUDECO/ Governo de Goiás, 1979. p. 39.
65
BERTRAN, Paulo (org.). Op. Cit., p. 81.
66
SOUZA, Silva e. O descobrimento, governo, população, e cousas mais notáveis da Capitania de Goiás, 1849. In: TELES, José Mendonça. Vida
e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998. p. 72.
67
SOUZA, Silva e.O descobrimento, governo, população, e cousas mais notáveis da Capitania de Goyaz. In: TELES, José Mendonça. Op. Cit., p. 72.
68
“Descrição das Serras do Rio Vermelho e dos braços da Caxoeira abaixo desta Villa, até a Barra do Rio Fort. onde principia a Freguesia da
Anta: Das couzas mais notáveis”. In: BERTRAN, Paulo. (org.) Notícia geral da Capitania de Goiás em 1783. V 1. Goiânia/ Brasília: UCG, UFG,
Solo Editores, 1997, p. 120
69
SALLES, Gilka V. F. de. Economia e escravidão na capitania de Goiás. Coleção Documentos Goianos. Goiânia: CEGRAF/ UFG, 1992, p. 96.
70
POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1951, p. 317-318.
71
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 41.
56
E não era só esse produto que demandava tanto esforço. As agruras do clima e as dificuldades
de toda ordem, em especial na agricultura, apresentavam-se como uma realidade que se opunha ao
sonho do paraíso, ao sonho de Paraupava. Agora, seriam necessários o trabalho e o suor dos colonos.
Na descrição geográfica do território, do arraial e da freguesia da Anta, de 1783
72
, região próxima a
Vila Boa, pode-se observar com clareza como eles se sentiram diante dessa outra realidade:
[...] esta terra é quente. Os matos largam a maior parte das folhas e sucede a maior parte dos anos, não haver uma
só trovoada em toda a seca, o que não sucede nas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e outras terras, que sempre há
chuvas. E quando não haja da páscoa para diante, há librina [neblina], que quando vem aparecer o sol, são oito
horas e às vexes nove, e por esta causa não desfolham tanto os matos. Também por serem [lá] as árvores mais altas,
conservam-se as terras mais frescas, de sorte que quando se queimam as roças, não se queimam os matos, o que não
sucede cá pelas razões ponderadas, em que entram os fogos e abrasam os matos, como sucedeu em 63, que houve um
fogo tão geral que durou quatro meses, e no ano em que veio o Sr. José de Almeida (1772) sucedeu o mesmo, e não
só os matos, como nas capoeiras, por cuja causa consomem-se as sustância (sic) da terra.
As más condições climáticas e as grandes queimadas narradas nesse texto não foram, entre-
tanto, motivos suficientes para que o espectador dessas dificuldades deixasse de buscar a supera-
ção do quadro. A terra ainda ofereceu uma alternativa: o plantio em condições especiais, com
“[...] roças feitas em matos virgens,” sendo necessário, porém, “duas limpas, antes de plantar e ao depois.
Isto sucede pelos fogos entrarem nestes [nas terras de Goiás] e não entrarem naqueles [nas de São Paulo], e para
provas destes não terem as sustâncias daqueles”. Dessa forma, plantando-se “[...] uma roça, queimando [- a]
bem e correndo o tempo [...]
73
”, os colonizadores garantiram sua sobrevivência, lidando com a situa-
ção e enviando esforços que, até então, pareciam ser insuficientes diante das dificuldades enfren-
tadas para o cultivo dessas terras.
Para além dos aspectos edênicos da natureza de Goiás e das revelações de suas potencialidades
concretas, como a abundância do peixe, da cera, do mel
74
e dos “olhos d’água” – o “verdadeiro
tesouro oculto [que] existiu durante muito tempo no campo dos Parecis, que atravessava a estrada para Vila Boa
de Goiás, e que matava a sede dos sequiosos viajantes”
75
, nessa mesma terra onde outrora erguiam-se
“as grandes montanhas de ouro e caudalosas lagoas e rios navegáveis”
76
, uma outra percepção da paisagem
goiana se fortaleceu. Em O diabo e a terra de Santa Cruz, Souza
77
afirma que a cultura do período era
formada por visões diametralmente opostas: uma delas revelava o aspecto edênico da natureza e a
outra, as dimensões detratoras das suas qualidades, sempre enfatizando suas características negativas.
72
Descrição geográfica do território do arraial e freguesia da Anta em 1783. In: BERTRAN, Paulo (org.). Notícia geral da capitania de Goiás. V 1.
Goiânia/ Brasília: Solo Editores, 1997. p. 138
73
BERTRAN, Paulo (org.). Op. cit., p. 138.
74
Sobre esse assunto ler o capítulo “A cera e o mel”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras,
1994, p. 50.
75
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 37.
76
BERTRAN, Paulo. Notícia geral da capitania de Goiás. v 1. Goiânia/ Brasília: Solo Editores, 1997. p. 47
77
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 42.
57
Assim, afirmava-se que em Goiás “os perigos das serpentes venenosas, onças e outros animais, de que alguns
acabaram a vida [...]”
78
, e infundia-se os temores de lugares fantásticos, como aquele onde “residem
muitos monstros aquáticos, como sucuriz, jacaré e minhocões prodigiosos, de extraordinária grandeza, que tragam um
cavalo ou um boi [...]”
79
; ou um outro próximo à estrada de São Felix, que abriga “uma Tromba de
pedreira negra e uma concavidade por ela abaixo, que o pavor não se faz averiguar a sua profundidade”
80
.
Os aspectos negativos dos ventos, dos rios e do sol também acabaram por influir na saúde das
pessoas, transformando o lugar num legítimo espaço caótico.
As doenças no País são tantas, que ainda uns dias atrás, saí a visitar casa por casa de todo este arraial [...].
A quase nenhuma casa que cheguei onde não se achasse e ouvisse dizer que estavam um, dois, três e mais
enfermos; uns quase expirando,outros com curso já de sangue [...], uns com maleitas, com sezões outros. Uns
com icterícia, outros com obstruções, uns opilados, inchados outros, e finalmente a maior parte de todos estão
amarelados e depauperados, que mais parecem cadáveres do que viventes
81
.
As causas da multiplicidade desses males eram as próprias condições da natureza e do clima
da região de Goiás. Até o sol intenso, apesar de menos rigoroso do que em Lisboa nos meses de
junho e agosto, seria mais nocivo à saúde. Os peixes dos seus rios teriam de ser evitados, pois,
embora abundantes, eram, de acordo com o “juízo universal que fazem os práticos experientes”, bastante
prejudiciais ao bem-estar das pessoas. Além do sol e dos peixes, contava-se também sobre a fome,
decorrente da carestia de alimentos. Estes, quando os produzidos nessa terra inculta e “infestada por
imundícies” eram fracos, o que a tornava um verdadeiro inferno.
Com efeito, todos esses atributos, positivos ou negativos, não diziam respeito apenas à natureza e
à paisagem. Por razões semelhantes, eles também se dirigiam à população indígena de Goiás, formada
por tribos de diferentes etnias e distintas origens lingüísticas, mais comumente representadas pelas gran-
des nações Tupi e Gê. Esta última possuía um maior número de integrantes, conhecidos como “os filhos
da terra ou, como diziam os jesuítas, o “gentio da língua travada”. Fernão Cardim, ao se referir aos Ge, além
de apontar suas diferenças lingüísticas em relação aos Tupi e a outras tribos, dizia serem eles os
[...] senhores dos matos selvagens, muito encorpados, e pela continuação e costume de andarem pelos matos
bravos, têm os couros muito rijos e para este efeito açoutão os meninos em pequenos com uns cardos para se
acostumarem a andar pelos matos bravos; não têm roças, vivem de rapina e pela ponta da flecha, comem
mandioca crua sem lhes fazer mal, e correm muito aos brancos não dão senão de salto, usão de uns arcos muito
grandes, trazem uns paus de feitiços muito grossos, para que em chegando logo, quebrem as cabeças
82
.
78
“Descrição da capitania de Goiás e tudo que nela é notável ao ano de 1783”. In: BERTRAN, Paulo (org.). Noticia geral da capitania de Goiás.
V.1. p. 78.
79
“Descrição da capitania de Goiás e tudo que nela é notável até o ano de 1783”. In BERTRAN, Paulo. Op. Cit. p. 78.
80
“Descrição da capitania de Goiás e tudo que nela é notável até o ano de 1783”. In: BERTRAN, Paulo. Idem. p. 78.
81
CARTA de Manoel Caetano ao Dr. Agostinho Barbosa, 1735. In: PALACIN, Luis; GARCIA, Leônidas Franco; AMADO, Janaína. História de
Goiás em documentos: Colônia. Coleção documentos goianos n. 29. Goiânia: UFG, 1995, p. 208-210.
82
CARDIM, Fernão. Tratado da Terra e Gente do Brasil. In: CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás 1749 -1811. São Paulo:
Nobel; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1983, p. 46.
58
Ora, no senso comum da época, o mato era o lar dos animais, e não dos homens. Por isso,
todos os que moravam lá eram rudes ou bárbaros. John Locke contrastava os habitantes “civis e
racionais” das cidades com os moradores “irracionais e ignorantes” dos bosques e florestas
83
. So-
mente reeducando-os e, no caso do Novo Mundo, transformando-os em cristãos, seriam levados à
civilidade. Em Goiás, esse foi um grande desafio. Parte preponderante dos combates reais foi contra
as forças indígenas locais, pois os naturais dessa terra, os Gê
84
, formados pelas tribos dos Akroá,
Xacriabá, Xavante, Javaé e Kayapó eram bastante hostis e, particularmente os últimos, “não cessam de
infestar com as mais cruéis hostilidades o caminho de São Paulo para Goiás, a até as povoações daquelas minas [...]”
85
.
Constituíam, sob o ponto de vista do colonizador, um forte impedimento à expansão territorial e
aos trabalhos da “campanha civilizatória” empreendida com a doutrinação evangélica e a redução
em aldeamentos.
E não eram poucos os “selvagens” a serem convertidos e impedidos de ameaçar a segurança
dos colonos. Chaim
86
os agrupou em três grandes regiões, espalhadas por todo o território: as tribos
meridionais, as setentrionais e as próximas à Ilha do Bananal. No primeiro grupo, encontram-se
os Araé, que moravam junto ao Rio das Mortes, os Arachá sobre a passagem do Rio Grande; os
ferozes Crixá, na região do Araguaia e Tocantins; os numerosos Kayapó, também conhecidos como
Ubirajara, Bu, Bilreiro e Caceteiro. Estes, localizados um pouco mais ao sul dessa região, além de
terem sido “o mais bárbaro e indômito de quantos produziu a América”
87
, realizaram vários ataques contra
os colonizadores, evidenciando a “cotidiana violência” da terra e as suas naturezas “anti-humanas”
88
(Fig 7). Sobre essa característica belicosa dos silvícolas, o cronista Barléu Gaspar já comentava:
“O gentio do sertão e todo aquele que conserva os costumes pátrios aproximam-se, na crueldade, mais das feras que
dos homens”
89
. Eram, portanto, semelhantes a animais que precisavam ser domados.
Por essas e outras razões, D. Luís de Mascarenhas (1738/1742) criou as Companhias de Sol-
dados do Mato, formadas por homens experientes, para a caça de índios. Posteriormente, contratou
os sertanistas Antônio Pires de Campos e Manoel de Campos Bicudo para garantir proteção aos
brancos contra os Kaiapó. Os dois fizeram uma guerra impiedosa contra os gentios e fundaram as
aldeias de Santana, Rio das Pedras e Lanhoso no Desemboque
90
. Diante de tamanha atrocidade,
83
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 33.
84
Os povos que constituem a nação Gê inclui, em uma grande parte, maior índice dos Tapuias, cujo nome era genericamente aplicado aos indios
não pertencentes à nação Tupi, em especial àqueles seus inimigos do interior, cujo habitat preferido era a metade oriental do planalto brasileiro,
do Xingu ao Tocantins. No século XIX, o grupo Gê ou Jê era conhecidos como os Ubirajara e os Timbira.
85
Carta da rainha D. Maria a D. Marcos de Noronha, 1749. Revista Província de Goiás.
Goiânia: v 2, n.1, 1968, p. 47-48.
86
A maior população indígena de Goiás estava na Ilha do Bananal e na região setentrional do território. Na ilha ficavam os Tapirapé, Mangariruba,
Cururu, Craya, Javaé e Karajá. Mais ao norte da região setentrional, os Canoeiro e os “indolentes e preguiçosos” Capepuxie, que foram tratados de
modo igual ao daqueles aos quais o cronista Gandavo se referira séculos atrás. À semelhança dos bravos Kaiapó encontravam-se ainda, mais ou
menos ao centro da região, os Apinagé, Canoeiros, Xacriabá, Xavante e Akroá”. CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás 1749 -
1811. São Paulo: Nobel; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1983, p. 43-52.
87
Citação de João Manuel de Melo, governador da Capitania de Goiás no século XVIII. In: BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 32.
88
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 59.
89
BARLÉU, Gaspar. apud. SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 59.
90
PALACIN, Luís. O século do ouro em Goiás. Goiânia: Editora da UCG, 1994, p. 82.
59
Fig. 7 – Etnias do século XVIII.
Fonte: Desenho de Gustavo Amaral
elaborado a partir de ROCHA, Leandro
(org.). Atlas Histórico: Goiás pré-colonial e
colonial. Goiânia: Editora CECAB, 2001.
D. Maria I, em 1749, solicitou ao então governador de Goiás, D. Mar-
cos de Noronha, maneira mais pacífica, se possível, de levá-los “ao
conhecimento da religião, para mudar os seus bárbaros costumes em outros mais
humanos, e mais úteis para a sua própria conservação”
91
. No entanto, esse
conflito só foi relativamente resolvido com o encaminhamento dos
gentios para os aldeamentos de D. Maria I e São José de Mossâmedes.
Ainda sobre os comportamentos belicosos dos índios encon-
tra-se referência num documento de D. Marcos de Noronha, de 1749,
dizendo que a tribo Akroá era:
60
[...] a mais cruel de todas as que circulam neste sertão, sumamente numerosa e em grande extremo infiel, porque
com a mesma facilidade com que se mete de paz, igualmente falta à palavra e torna para o mato a fazer as suas
hostilidades; pouco ou nenhuma firmeza se pode fazer nas suas promessas porque costumam ser de mui pequena
subsistência e só o benefício do tempo e repetidas diligências se poderá conseguir deles algum melhoramento
92
.
Dizia ainda D. Marcos, que os Akroá eram mentirosos e enganadores, como somente os seres
bárbaros e pecadores poderiam ser. Contrariamente à difícil natureza dos Kaiapó, Akroá e de algu-
mas nações do norte, bem mais ao sul do território goiano encontravam-se os pacíficos Goyá,
possivelmente, mais propensos à conversão e, portanto, com maiores oportunidades de uma apro-
ximação com Deus. Talvez estes pudessem estar mais sujeitos às graças divinas, mas aqueles certa-
mente eram filhos do diabo
93
.
Com a aspereza dos hábitos da vida cotidiana e a natureza demoníaca dos índios, seria lógica
a expansão desses valores à população negra e demais colonos. Os negros, afeitos a estranhos
costumes, e os colonos, formados por homens violentos e de passados duvidosos, infectavam as
minas. Eram os escravos fugitivos e os extraviadores de ouro que se refugiavam nos matos e no
inculto dos sertões. Inquietos e rebeldes, punham em revolta a própria natureza. Para o governador
D. Marcos de Noronha (1749-1755), os negros “faziam tantos estragos quanto o gentio caiapó na campa-
nha”, contribuindo para que todo o território ficasse às avessas. Compreende-se, portanto, a ajuda
generosa que se estabeleceu entre índios e escravos fujões que buscavam a sobrevivência nos diver-
sos quilombos
94
esparramados pelo território. Ao longo dos caminhos de fuga, era muito comum
eles serem acolhidos em aldeias “ora no sul, no Sertão da Farinha Podre, ora no Triângulo Mineiro; ora no
nordeste e no norte, no Vale do Paraná; em Crixás e Natividade, mais ao norte e no atual Tocantins”
95
. Mas esse
fato de forma alguma amenizava os conflitos e as desordens internas de Goiás; ao contrário, nesse
momento, o mito paradisíaco estava mais enfraquecido e se distanciava gradualmente de um territó-
rio que passava a viver mais intensamente a sua outra verdade: o medo, o pavor e a insegurança de
índios, negros e colonos.
91
Carta da rainha D. Maria I a D. Marcos de Noronha, 1749. Revista Província de Goiás. Goiânia: v 2, n.1, 1968. p. 47-48.
92
NORONHA, D. Marcos de. Carta para a Corte. In: CHAIM, Marivone Matos. Op. Cit., p. 59.
93
“Cristianizando, os portugueses procuravam diminuir as hordas de seguidores do diabo: afinal, o Inferno era aqui. Conforme se iniciou a ação
dos solados de Cristo, passaram a existir índios-índios e índios conversos, sujeitando-se estes a Deus e aqueles ao Diabo”. SOUZA, Laura de
Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 68.
94
Entre outros, Silva destaca como importantes quilombos: do Ambrósio, também chamado de Grande ou Tengo-Tengo, no sertão da Farinha
Podre; do Arraial de Três Barras, em Vila Boa; o do Morro do São Gonçalo, próximo a Vila Boa, onde atacavam fazendas, roubavam animais
e roças; o do Bom Sucesso, localizados no pé da Serra Dourada; os quilombos do Arraial de Tesouras; o do Vale do Paraná, que abrigava mais
de 200 negros; o dos arraiais de Jaraguá, Corumbá e Pilar e, por fim, o Quilombo do Muquém, localizado ao norte da Comarca do Sul. SILVA,
Martiniano José. Quilombos do Brasil Central: violência e resistência escrava. Goiânia: Kelps, 2003, p. 344.
95
SILVA, Martiniano José. Op. Cit., p. 344.
CAPÍTULO II
A POLÍTICA DE OCUPAÇÃO DE GOIÁS NO SÉCULO XVIII:
URBANIZAÇÃO E CONTROLE TERRITORIAL
63
A
ação colonizadora da Capitania de Goiás relaciona-se a uma antiga estratégia de posse e controle
do território baseada numa política urbana ligada a uma acepção central da Coroa sobre o direito
de propriedade
1
. Essa política partia do pressuposto de que o estabelecimento de núcleos urbanos
garantiria a efetiva ocupação de espaços de “soberania ainda não definida”. No Brasil, essa forma política
de gestão do território encontra suas balizas iniciais, mais precisamente, com a instituição do governo-
geral (1594), momento marcado pela substituição de várias feitorias ou centros de abastecimentos
destinados ao comércio por fortes, implantados em lugares estratégicos da orla brasileira, para a prote-
ção das vilas de São Vicente, Olinda, Vitória e daquelas que ainda seriam fundadas.
Nessa época, a presença do controle metropolitano na formação desses primeiros núcleos urba-
nos foi marcada pela participação dos donatários
2
, que obtinham prerrogativas para tal, mas, ainda
assim, normas jurídicas e administrativas deveriam ser obedecidas, particularmente aquelas referentes
à distribuição de terras e ao povoamento da costa, como atesta o documento a seguir.
Outrosy me praz que o dito capitam e governador e todos os seus subcessores possam per sy fazer villas todas e
quaisquer povoações que nesta dita terra fizerem e lhe a elles parecer que o devem ser, as quais se chamaram
villas e teram termo e jurisdiçam, liberdades e insynias segundo foro e costume de meus reynos e isto porem se
entendera que poderá fazer todas as que quizere das povoações que estyvere ao longo da costa da dita terra e dos
rios que se navegare, porque por dentro da terra fyrme pelo sertam as nam podem fazer menos espaço de seis
legoas de uma a outra pêra que se possam ficar ao menos três léguas de termo de cada hua das ditas villas, e ao
mesmo tempo que se fizerem as tais villas, ou cada uma dellas, lhe lymytarem e assynaram logo termo pera ellas,
e depois nam poderam da terra que assy tiverem dado per termo fazer mais outra villa sem a minha lycença
3
.
1
Sobre essa questão, ler o texto de Renata Malcher: A coroa e as cidades – a criação urbana colonial. In: ARAUJO, Renata Malcher. As cidades da
Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto/ Portugal: FAUP Publicações, 1998, p. 25-28.
2
“Reservava-se el-rei o direito de conservar íntegras ou modificar as capitanias segundo os interesses do Estado e possivelmente da colônia caso
surgisse ocasião. Mais uma vez se evidenciava neste ponto o motivo das doações. Deviam, como era natural, os donatários prover à sua
prosperidade, porém, de modo a simultaneamente beneficiar a Coroa onipotente o onipresente”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral
da civilização brasileira: a época colonial. Rio de Janeiro: editora Bertran Brasil, 1989, p. 100.
3
Documento transcrito em REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil. São Paulo: Edusp, 1968, p. 67.
64
Uma participação mais próxima do Estado só aconteceu após as três primeiras décadas dessa
centúria, com a fundação de novas vilas e cidades, como Salvador (1549), Rio de Janeiro (1565) e
Filipéia de Nossa Senhora das Neves (João Pessoa, 1585), exemplos paradigmáticos desse processo
de urbanização que se estendeu até os séculos seguintes. Foi esse o momento em que, além da
legislação sesmarial, Portugal passou a contar com outros instrumentos de controle do território,
como as últimas inovações científicas da cartografia e os eficazes sistemas de fortificações para
proteger as posses portuguesas. Uma vez implantados esses sistemas, não só as cidades estariam
mais bem resguardadas, mas também as costas litorâneas, as baías, os portos comerciais e as entra-
das para o interior do território.
Também no período filipino (1580-1640), esse controle territorial a partir da formação
urbana pode ser observado com a criação de várias fortalezas levantadas nas costas marítimas,
particularmente nas regiões entre a Bahia e São Luís do Maranhão e entre Santos e Rio de Janeiro.
Para tanto, contou-se com a ação dos engenheiros militares Batista de Antonelli, Luís Frias de
Mesquita e do italiano Baccio de Filiccaia (1597-1602). Em relação às terras mais ao centro da
colônia, essa política se deu com o governador-geral e superintendente das minas do Brasil D.
Francisco Souza, grande entusiasta da procura de ouro aluvional. Para colocá-la em prática, con-
tou com a colaboração dos engenheiros Geraldo Beting
4
e do citado Baccio de Filiccaia
5
. Com
esses engenheiros e outros técnicos alemães, todos especialistas em mineração, o governador
organizou expedições de exploração não apenas do rico metal, como também do salitre e do
enxofre. Partindo de São Paulo “em direção a serra dourada ou do lago Vupabuçu, onde se cria estar a
nascente do S. Francisco”
6
, as viagens eram orientadas por roteiros precisos e formadas por “divisões
militares com ouvidores de campo, escrivães partidores e capelães”
7
.
Decorridos esses anos de reinado dos Filipes e após as guerras da Restauração, o Brasil
passou a ser a principal colônia de Portugal, tanto em termos territoriais quanto econômicos.
Os conflitos decorrentes dessa recuperação lusa dinamizaram o início do intrincado processo
de definição das fronteiras americanas entre as duas nações ibéricas. Por motivos tão expressi-
vos como esses, a Coroa portuguesa delineou uma estratégia que objetivava o controle direto
do território colonial, por meio de reformas em suas estruturas administrativas, como a insta-
lação, em 1643, do Conselho Ultramarino, órgão centralizador das relações entre Portugal e o
Brasil, e a gradativa transferência do controle das capitanias hereditárias para a metrópole
8
.
4
Nome citado em HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit., p. 291.
5
Carta do engenheiro Filic caia atestando seus trabalhos ao governador D. Francisco: “[...] mi ocupó com el carico di imgegnero maggiore di
quello stato e andando in conpaggnia á visitare tutto lo stato e sue forteza mi ocupe in reformarem lote di esse et altri far fortificare di nuovo,
e juntamente mi dete il carico di capitano d’artiglieria di dette Piaze forte” FILICCAIA, Baccio. Carta autobiográfica de 30 de agosto de 1608
do ex-primeiro engenheiro-mor do Brasil. apud: SIQUEIRA BUENO, Beatriz P. In: Oceanos. Lisboa: Comissão Nacional para as comemora-
ções dos descobrimentos portugueses. N. 41, jan./mar 2000.
6
REIS MIRANDA, Tiago C. P. dos. Entradas e fronteiras. In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (org.). Brasil, brasis: cousas notáveis e espantosas,
a construção do Brasil, 1500/ 1825. Lisboa: 2000, p. 31-39
7
REIS MIRANDA, Tiago C. P. dos. Entradas e fronteiras. In: Op. Cit. , p. 31-39.
8
Sobre uma posição contrária à centralização do poder, ler HESPANHA, Antônio Manuel. A constituição do império português: revisão de
alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O antigo regime nos
trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XV-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 165-168.
65
Além dessas alterações, foram enviados da metrópole corporações de funcionários do reino, for-
madas por oficiais da justiça, da fazenda, servidores do clero secular e, mais notadamente, por
vários engenheiros militares, tidos como os maiores responsáveis pela construção de sistemas
de fortificação e urbanização colonial. Esse era o momento em que vilas e cidades, elementos
essenciais para a soberania territorial, passavam a ser prerrogativa exclusiva do Estado, assegu-
rada pelas Cartas Régias aos governadores
9
.
Até então, como dito anteriormente, a urbanização do território brasileiro desenvolvia-se prati-
camente na região litorânea, exceto alguns pequenos povoados indígenas distantes da costa, que logo
se transformaram em pontos estratégicos para algumas incursões ao interior da colônia, em busca de
índios e das fantásticas riquezas celebradas pelo antigo mito do Eldorado. Mas apesar de tais esforços,
só no fim do Seiscentos os tesouros auríferos foram descobertos, demonstrando o grande potencial da
região e a necessidade imediata de ações governamentais para garantir o controle supervisionado do
precioso sertão. Esse foi, portanto, o tempo de mudanças na História da urbanização do Brasil, pois,
logo em seguida a essas descobertas, medidas metropolitanas redefiniram um programa de ocupação
e soberania, sob o controle do território central. E “o mecanismo pelo qual o sertão seria subordinado à
autoridade real baseava-se na fundação de comunidades supervisionadas pela Coroa, as quais, com o tempo, formariam
redes urbanas integradas, localizadas em pontos estratégicos do interior. Assim, o planejamento e o desenvolvimento desses
novos núcleos interioranos orientariam o processo de urbanização durante todo o século”
10
.
Foi, portanto, mais precisamente a partir de 1717 que quase todos os núcleos urbanos criados no
sertão passaram a obedecer a um “tipo de planejamento”
11
. Regulamentos para as regiões das minas, elabo-
ração de uma jurisdição que incidisse sobre os exploradores aventureiros, contenção das ampliações das
primeiras terras justificadas pelas posses, expansão do território colonial a oeste de Tordesilhas
12
, levanta-
mentos cartográficos e a combinação de um sistema de partilha de terras, ou de direitos sobre ela, com o
estabelecimento de povoações articuladas entre si, foram os fundamentos dessa nova política de ocupa-
ção, organizada particularmente por engenheiros militares que utilizavam mapas, descrições e relatos
corográficos para o conhecimento, a demarcação e a legitimação de territórios mais avançados.
Para a região de Goiás, não obstante a elaboração de alguns mapas do final do século XVII,
esse foi o contexto que marcou o início de um melhor conhecimento e controle de seu território.
Com a notícia do ouro, a Coroa buscou assegurar seu domínio econômico e territorial sobre essas
terras, mediante uma série de procedimentos jurídico-administrativos, iniciados pela instalação
de intendências e, posteriormente, pela criação da Capitania e de sua capital, além de casas de
fundição, caminhos reais e registros, dentre várias outras ações. A idéia de que a região teria sido
conquistada apenas por aventureiros exploradores que fundaram arraiais livres de qualquer olhar
de Portugal deve ser tomada com bastante cautela, tendo em vista que mesmo para as condições
adversas da primeira entrada de 1722 já havia sido providenciado um “Regimento q’ levou o Cappitan
Bartolomeu Bueno da Sylva, cabo da tropa que veio ao sertão descobrir minas de ouro e pedras preciosas”
13
,
9
ROSSA, Walter. A cidade portuguesa. In: PEREIRA, Paulo (org.). História da arte portuguesa. V.3. Barcelona: Círculo de Leitores, 1995, 287.
10
DELSON, Roberta Marx. Novas Vilas para o Brasil- colônia: planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília: Ed. Alva-Cord, 1997, p. 10.
11
DELSON, Roberta Marx. Op. Cit., p. 4.
12
DELSON, Roberta Marx. Idem. p. 9.
13
AHSP. Regimento dado a Bartolomeu Bueno da Silva. In: Documentos Interessantes. Capitania de Goiás, V. 32, p. 53-66.
66
datado de 30 de junho desse mesmo ano. Nesse documento, registrou-se
que “em todos os descobrimentos que se fizera deve o Guarda-Mor, ou qualquer pessoa
que repartir as terras, escolher a data de El Rey Meu Senhor na melhor parte, que
houver, e por lhe hua Cruz por diviza, e dar-me parte para mandar lavrar, ou por em
praça para se arrematar a quem ella der, na forma que o d.° Sr. tem ordenado”
14
.
Após essa providência, em 1726, sob orientação real, Bartolomeu
Bueno da Silva retorna ao sertão dos Goyazes como seu superinten-
dente. Acompanhado de dois engenheiros de minas, chega para man-
ter a ordem e o arcabouço tributário dos recém-descobertos veios
auríferos. Mas paralelamente ao início de sua gestão, a Coroa, com o
intuito de marcar deliberadamente sua presença, criou imediatamente
a primeira paróquia no Arraial de Santana, em 1726, principiando as-
sim a implantação das estruturas administrativas eclesiásticas. Mas apro-
ximadamente dez anos depois, Bueno foi afastado de seu cargo. Nessa
mesma época (1736), no governo do Conde de Sarzedas, a Corte de-
terminou, por questões de manutenção de poder e maior controle da
região, que as minas dos Goyazes fossem desmembradas do território
de São Paulo e, na seqüência, fundada a sua capital, Vila Boa de Goiás.
Essa determinação, no entanto, só seria cumprida após o falecimento
de Sarzedas, em 1739, quando assume o governo D. Luís de
Mascarenhas. Este demarcou as terras da capital próximas ao Arraial
de Santana, localizado a oeste de Tordesilhas, em região de soberania
não definida, justificada, posteriormente, pelo antigo direito romano
expresso na expressão latina uti possidetis ita possideatis, que pode ser
entendida por “se já possuis, continuai possuindo”
15
.
Figura 8 – Vila Boa em relação ao
meridiano de Tordesilhas.
Desenho de Gustavo Amaral
67
A escolha desse Arraial marcou a posição dos luso-brasileiros mais a oeste de Tordesilhas,
o que pode explicar também a sua preferência em relação ao de Meia Ponte, que, embora “muito
bem plantado e hua serie vistoza que o constitue de bella e agradável prespectiva, alem de o dominarem
salutiferas Auras que se concilia na conduta da melhor sociedade humana; como também por ser a indispensá-
vel barra para o tranzito de todos que cursitão para qualquer dos Julgados, e Arrayaes daquelle continente de
Minas, e no regresso para os portos da América os tornão a freqüentar [...]
16
, possuía a desvantagem de
localizar-se a leste do meridiano. Fatos dessa ordem não foram meras coincidências, e sim
componentes da política de ocupação que também incorporava a proposta do traçado do pri-
meiro plano de limites entre Portugal e Espanha (1736), antecipando em 14 anos o acordo
firmado pelo Tratado de Madri.
Paralelamente a esse conjunto de ações e para além das dificuldades inerentes à consoli-
dação de uma estrutura organizacional em terras tão extensas e inóspitas, os sistemas adminis-
trativos foram-se fixando, representados pelos governadores goianos, os funcionários de El-Rey.
Daí em diante, boa parte das novas expedições mineratórias deveriam ser promovidas por
esses agentes políticos, que passaram a se responsabilizar pelo processo de construção do ter-
ritório. Goiás, ao final da primeira metade do século XVIII, possuía uma vila, mais de cinqüen-
ta arraiais
17
e quatro aldeamentos erguidos às margens da estrada de São Paulo (Fig. 9), além de
significativos levantamentos topográficos e cartográficos, feitos por determinação dos gover-
nadores e executados por auxiliares, como o engenheiro militar Francesco Tosi Colombina.
14
AHSP. Idem.
15
GUERREIRO, Inácio. Fronteiras do Brasil colonial. A cartografia dos limites na segunda metade do século XVIII. Oceanos, 40, 1999, p. 28.
16
AHU. Goiás. Doc. 1961, anterior a 1799. Petição do Arraial de Meia Ponte para sua ereção à Vila. Projeto Resgate Barão do Rio Branco Goiânia:
Instituto de Pesquisas Históricas do Brasil Central.
17
Aproximadamente entre 1726 e 1750, os “achados” de jazidas de ouro se sucederam rapidamente na região de Goiás, estabelecendo um mapa
básico de mais ou menos cinqüenta arraiais de mineração, que, segundo Palacin, constitui-se três grandes áreas: a região de Vila Boa (Barra,
Ferreiro, Ouro Fino, etc.), com Meia Ponte e Santa Cruz ao sul; a região do Rio Maranhão (Traíras, São José, Cachoeira, etc.), contendo Crixás
a oeste; e a região do norte (Natividade, Pontal, Conceição, etc.).
68
2.1 Os engenheiros militares e a formação dos territórios
Entre os importantes servidores da Coroa portuguesa, os enge-
nheiros militares, ou “funcionários do urbanismo”
18
sempre que solicita-
dos, foram os que mais se destacaram pelas suas capacidades de exercer
importantes tarefas, tal como a de urbanização de terras incultas. Na colô-
nia luso-brasileira, tanto no litoral quanto no interior, o trabalho desses
profissionais foi imprescindível. Em terras goianas, por exemplo, na pri-
meira metade do século XVIII, eles se destacaram pelos vários levanta-
mentos topográficos que buscavam responder à nova política de
urbanização e organização territorial. Mas não só com essas tarefas os
Fig. 9 – Os arraiais da Capitania de Goiás.
Fonte: TEIXEIRA NETO, Antônio.
In: PALACIN, Luís; GARCIA,
Leônidas Franco; AMADO, Janaína.
História, de Goiás em Documentos:
Colônia. Goiânia: UFG, 1995, p. 44.
69
engenheiros estavam diretamente relacionados: ligavam-se também às atividades da administração do go-
verno e a outras mais técnicas, como a elaboração de desenhos de mapas, fortificações e malhas urbanas.
Essa múltipla capacidade de atuação, no entanto, não é uma característica que nasce no Setecentos; deriva-
se da anterior necessidade de ocupação e defesa dos domínios portugueses do século XVI, que obrigou
Portugal, inclusive, a superar seu atraso científico em relação às demais nações européias.
Procurando resolver essa condição de retardamento, a Coroa tomou duas atitudes: receber ita-
lianos para atualizar os profissionais portugueses e encaminhar técnicos locais, como João de Castilho,
Antônio Rodrigues e Francisco de Holanda, para se especializarem na Itália. O resultado dessa inicia-
tiva permitiu a Portugal o conhecimento de técnicas e sistemas defensivos de fortificações ligados a
novos conceitos teóricos do urbanismo, que pregavam a representação de um mundo recente, com
cidades que expressavam relações socioculturais diferentes, nas quais o homem era racionalmente o
centro do cosmos. Foi por intermédio do esforço de superação desse atraso científico que, a partir do
reinado de D. João III, essas novas concepções urbanísticas chegaram ao território luso e, depois,
alcançaram suas terras conquistadas, onde havia uma grande exigência por controle e ocupação.
No entanto, esses novos conceitos de cidade só se consolidaram por volta da segunda metade
do século XVI, quando se articulam com a forma de ensino português, que visava associar a
Tratadística Clássica com as acumuladas e diversificadas práticas urbanísticas. Em 1562, o resultado
desse empenho permitiu a institucionalização da “Aula do Paço”, com contribuições que ajudaram
“[...] o aperfeiçoamento dos mapas cartográficos possibilitado pela ciência da perspectiva e o cálculo preciso das
coordenadas polares – método empregado por Alberti em sua «Descriptio Urbis Romae», e teorizado por Cosimo
Bartoli no «Del modo di misurare le distancie, le superfície, i corpi, le piante, secondo le regole di Euclide»
”19
.
Igualmente denominada “Escola Particular de Moços Fidalgos” ou “Lição dos Moços Fidal-
gos”, esta instituição de ensino técnico foi uma das tentativas de resposta aos problemas científicos
de Portugal. Organizada em 1562, por D. Catarina, era voltada à educação de D. Sebastião e dos
jovens nobres destinados à carreira das armas e das empresas marítimas. Um dos maiores orientadores
da “Aula do Paço” foi Pedro Nunes (? / 1578)
20
, cosmógrafo-mor, cartógrafo e matemático que,
entre 1536 e 1541, ministrava lições particulares a um grupo bastante restrito, com conteúdos que
“conjugavam o estudo das obras clássicas (a «Esfera» de Sacrobosco, a «Geografia» de Ptolomeu, a «Física» de
Aristóteles) com uma componente prática exercitada, por exemplo, em observações astronômicas”
21
. Entre os seus
diversos trabalhos, encontram-se as suas reflexões sobre a cartografia ptolomaica e os erros e equí-
vocos da representação do globo terrestre na carta plana quadrada
22
, a tradução de Vitrúvio, de 1542,
e a publicação do livro Das instruções militares, bastante divulgado em seu país.
18
Expressão criada por Renata Malcher de Araújo.
19
D’AGOSTINO, Mário Henrique Simão. João Baptista Lavanha, Vitrúvio e o Renascimento. In: MARQUES, Luiz (org.). A constituição da
Tradição Clássica. São Paulo: Hedra, 2004, p.290.
20
Pedro Nunes escreveu os seguintes Tratados: Tratado da Esfera (1537), De Crepusculis (1542) e Livro de Álgebra em Aritmética e Geometria, de 1535
e publicado em 1567.
21
MOREIRA, Rafael. apud: CONCEIÇÃO, Margarida Tavares da. A praça da guerra: aprendizagens entre a Aula do Paço e a Aula de Fortifica-
ção. In: Oceanos, N. 41– jan/março de 2000. p. 29.
22
A carta plana quadrada foi uma das primeiras convenções para mapa ou tipo de projeção para a representação do globo em um plano, da época do Infante
D. Henrique. Pedro Nunes foi o primeiro a se preocupar com esse sistema de representação, apontando seus erros e posteriores soluções. CORTESÃO,
Jaime Zuzarte. História do Brasil nos velhos mapas. V. 1. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores – Instituto Rio Branco, s/d, p. 97.
70
Outro grande personagem dessa escola foi Antônio Rodrigues, engenheiro militar e arqui-
teto, responsável pela cátedra de arquitetura entre 1572 e 1577. Ele ensinava geometria básica
para o desenho arquitetônico e a perspectiva, introdução à teoria da Engenharia e Fortificação e
os métodos para se edificar bem e com menor custo. Merecedor de grande apreço, esse mestre
escreveu o primeiro tratado português de arquitetura em 1576
23
, dirigido, particularmente, ao
“[...] corpo de altos funcionários régios por cujas mãos passava a maior parte da construção civil e militar do país”
24
.
Obra síntese da associação da Tratadística Italiana e da matemática portuguesa, traz significativas
especulações teóricas e ideológicas acerca do urbanismo quinhentista
25
ao mostrar que “[...] ho
ydefiscyo hou povoasão se avia de fazer por nesesidade e não ha cazo, cõ tal comdisão que lhe não faltase hás partes
comvenyentes hao seu viver”
26
.
Além desses dois mestres, cabe destacar que, no período filipino, outro cosmógrafo-mor,
João Baptista Lavanha, substituiu Pedro Nunes, dando continuidade aos trabalhos científicos da Aula
do Paço”. Mas após três anos de dedicação, em 1582 ele segue para a recém-criada Académia de
Matemática y Arquitectura de Madri, com Juan de Herrera, para assumir a cátedra de matemática da
primeira instituição de ensino superior espanhola, que “começou a funcionar no ano seguinte [ao da funda-
ção] no próprio paço madrilenho, até as primeiras décadas do outro século, criando em seu torno uma escola de
arquitectos formados no estudo cientifico e nas virtudes do novo desenho”
27
.
Em Portugal, ao final do Seiscentos, a carência de um maior número de técnicos em fortifica-
ção foi decisiva para a criação da “Aula da Esfera”, orientada para o ensino da matemática, cosmografia
(Esfera), geografia, hidrografia, astronomia, astrologia, náutica e, mais tarde, por expressa ordem
régia, para a arquitetura militar. Iniciada por volta de 1580, alongou-se até o início do século XVIII,
tendo como sede o colégio de Santo Antão, em Lisboa. Receptiva às inovações no campo da ciência
pura, acolhe docentes italianos, alemães, irlandeses e flamengos que, com os jesuítas portugueses,
introduziram novos tratados e manuais atualizados sobre as técnicas de fortificação e de desenhos
cartográficos
28
. A escola, formada por professores de diferentes origens, a partir da década de 30 do
século XVII, de acordo com Ignácio Stafforde, sofre mudanças de referências teóricas “em matéria
defensiva”, passando da Tratadística Clássica de matriz italiana para as escolas flamengas e francesas
29
.
23
Nesse tratado encontram-se as influências da tradução comentada de Vitrúvio, por Daniel Bárbaro (I Dieci Libridell’Architettura di M. Vitruvio,
1556), de Sebastião Serlio (Archittetura, 1475-1554), de Pietro Cataneo (I Quattro Primi di Archittetura, 1554), da produção de Giacomo Lanteri
(1555-1559) e de Cosimo Bartoli (1564).
24
MOREIRA, Rafael. Um tratado português de arquitectura do século XVI. Dissertação de mestrado em História da Arte, apresentada à Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1982, p.75.
25
São, portanto, essas e outras razões que levaram Rafael Moreira a concluir que saber fazer povoações nessa época era o resultado de um conheci-
mento urbano acumulado, e que, por isso, o urbanismo português fez parte de um processo civilizatório apresentado aos povos conquistados.
ARAÚJO, Renata Malcher de. Op. Cit., p. 38-39.
26
RODRIGUES, Antônio. Prólogo do Tratado. In: MOREIRA, Rafael. Um tratado português de arquitectura do século XVI. Dissertação de mestrado
em História da Arte apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1982, II parte, fol.3 V.
27
MOREIRA, Rafael. Op. Cit., p.56.
28
PARR, Edwin. apud: SIQUEIRA BUENO, Beatriz P. Técnicas de representação gráfica da escola portuguesa de urbanismo. In: Caderno de
resumos do Colóquio Internacional: Universo urbanístico português. Coimbra: Auditório da Universidade de Coimbra, 2-6 março, 1999, p. 64-67.
29
CONCEIÇÃO, Margarida Tavares da. Op. Cit., p.30.
71
Entre seus ex-alunos de excelência, merecem menção aqueles que trabalharam ativamente no Reino e
em suas conquistas, como: os engenheiros Baccio di Filiccaia e Bartolomeu Zanit, o cosmógrafo João
Teixeira Albernaz, o arquiteto João Nunes Tinoco e o importante tratadista Luís Serrão Pimentel.
Por volta de 1594, foi instituída por Filipe II a “Aula de Riscar”, na mesma ocasião em que à
experiência prática dos construtores militares e urbanizadores da Corte portuguesa somavam-se as
ricas experiências de cosmógrafos e navegadores e dos trabalhos de Luís Dias no Brasil. Sediada no
Paço da Ribeira, recuperava as lições de matemática de Pedro Nunes e os estudos da Tratadística
Italiana. Aberta apenas para “três lugares de aprender a arquitetura”
30
, seus aprendizes assistiam ao curso
do mestre-de-obras real, Filipe Terzio, nomeado em 1590, e o complementavam com as aulas teóri-
cas de “Geometria que lê João Batista Lavanha”.
Grosso modo, em quase todas essas escolas a base do ensino, o viés comum, foram a geome-
tria, a matemática, a cosmografia e a cartografia. Juntas, essas ciências apresentaram um conheci-
mento à base de rigorosos cálculos, fundamentais tanto para a náutica como para os levantamentos
territoriais, e que “em terra ou mar, eram instrumentos de dominação. O Regimento do Cosmógrafo-Mor (1592),
publicado um ano após a nomeação de João Baptista Lavanha para o cargo em Portugal, estabelece como competência
do cosmógrafo as cartas de marear e as demarcações territoriais (ou, para retomar palavras de D. João de Castro, a
«repartição do mundo» entre as potências)”
31
. Como a interpenetração de conteúdos era uma das caracte-
rísticas básicas dessas aulas, os alunos estavam habilitados para o exercício de múltiplas funções, não
se distinguindo por áreas de atuação cosmógrafos, engenheiros e arquitetos, pois “encontramo-nos aqui
diante de um «terreno comum» de conhecimentos que dilui fronteiras profissionais hoje bem limitadas”
32
.
No contexto da Restauração e com a pressão dos novos acontecimentos, a premente necessidade
de se defender as cidades portuguesas e o inexorável início do processo de demarcações das fronteiras da
colônia, dezenas de técnicos estrangeiros foram convidados a trabalhar em Portugal. Ao introduzirem
novos paradigmas, esses técnicos contribuíram para a fundação da primeira escola portuguesa especi-
alizada em fortificação. Denominada “Aula de Fortificação e Arquitetura Militar” (1647), contou com a
contribuição do engenheiro e cosmógrafo-mor Luís Serrão Pimentel (1613-1679) e tornou-se o espaço
de confluência das antigas tradições da ciência náutica e dos novos domínios da matemática.
Dessas aulas, resultaram os seguintes textos de autoria de Luís Serrão: Tratado de Castramentação ou
Alojamento dos Exércitos (1658?), Das Fortificações de Campanha e Quartel de um Exército (1658?), Tratado de
Opugnação e Defesa das Praças (1663?). Dentre eles, o de maior referência e expressão para trabalhos
posteriores foi o Methodo Lusitanico de Desenhar as Fortificações das Praças Regulares, e Irregulares, de 1680
33
.
Como nos tratados de Pedro Nunes, a questão do pragmatismo e da experiência reaparece nesses
trabalhos como eixo central, sinalizando a importância da transferência do conhecimento prático
34
para uma execução fácil e adequada aos rígidos princípios gerais e a flexibilidade das regras particula-
res, tanto na fundação de novas cidades como na intervenção de malhas urbanas consolidadas.
30
CONCEIÇÃO, Margarida Tavares da. Idem, 2000, p. 30.
31
D’AGOSTINO, Mário Henrique Simão. João Baptista Lavanha, Vitrúvio e o Renascimento. In: MARQUES, Luiz (org.). A constituição da
Tradição Clássica. São Paulo: Hedra, 2004, p. 291.
32
D’AGOSTINO, Mário Henrique Simão. Op. Cit., p. 291.
33
CONCEIÇÃO, Margarida Tavares da. Op. Cit., p.30
34
“O conhecimento prático advinha de uma experiência nacional concreta, que até 1680 já tinha construído, só no Ultramar, mais de 200 fortalezas
e fundado cerca de 150 povoações. O pragmatismo resulta da mesma forma, da quantidade e da urgência dos trabalhos, e de uma concepção,
sempre confirmada no tempo, de aliar os resultados a um sistema persuasivo e de dominação”. ARAÚJO, Renata Malcher de. Op. Cit., p. 40-41.
72
Esse foi o princípio de legitimação do pragmatismo dos arruadores no Brasil, aquilo que cons-
tituiu, em síntese, “[...] a validação acadêmica de uma linha de trabalho já experimentada e o assentamento
das bases para uma continuidade da escola portuguesa”
35
. Mas o pragmatismo sustentado por Serrão,
adverte Araújo
36
, não correspondeu ao empirismo, nem mesmo a um descaso com os postula-
dos geométricos da criação urbana clássica, pois, para o cosmógrafo: “Nas povoações que de novo
se fundarem terei por grande erro não serem as ruas e praças na correspondência [regularidade] que havemos
dito, ou outras semelhantes”
37
.
A eficácia dos trabalhos dos urbanizadores se resumia, então, às suas boas formações, guiadas
pela idéia de flexibilidade e adaptabilidade às circunstâncias locais, conforme as influências dos
tratados franceses de Antoine De Ville, de 1628, e do Conde de Pagan, de 1640, mais voltados para
as práticas defensivas das cidades existentes. Na segunda metade do século XVII, esse sistema, em
face da política de expansão e delimitação do território francês, cobrou corpo teórico e notabilizou
o engenheiro Le Preste Vauban pelas cidades que havia fortificado
38
.
Nas terras conquistadas do século XVIII, esse modo de “fazer cidade” não foi propriamen-
te uma simples continuidade dos procedimentos do Seiscentos. Constituiu, em vez disso, a base
para a consolidação de um método teórico-prático que ganha plena luz nas reformulações de
Manuel de Azevedo Fortes, que visavam o ensino dos engenheiros militares “pello que nem sò a
sciencia, nem sò a experiência bastão, hua, & outra são necessárias.” Seu tratado O Engenheiro Português:
Dividido em dous Tratados, sob forte influência da doutrina racionalista de Descartes, caracteriza-se
pela lógica de sua estrutura e transparência de seus conceitos. A obra, desenvolvida em dois
volumes, visa ensinar, no primeiro deles, a geometria prática, com conteúdos que vão desde a
geodésica, trigonometria e a arte de desenhar plantas militares até a cartografia, dirigindo-se “aos
mecânicos ligados à construção – empreiteiros, medidores, mestres-de-obras, etc.”. Já o segundo tomo é volta-
do para os engenheiros militares, mostrando-lhes os segredos da fortificação. Rafael Moreira
entende que o objetivo do autor foi o de atender:
[...] a necessidade de uma crescente autonomia e a distinção dos ofícios diversos, com regras científicas e hierar-
quia fixadas por lei. O seu propósito torna-se mais claro no volume II, que trata da Fortificação em si. Em vez
de seguir o Barão de Coehorn, “que he o ultimo que escreveo sobre fortificações”, ou Marquês de Vauban,
Sebastien le Preste (1633-1707), Marechal da França e braço forte do Rei-Sol Luis XIV, a quem não poupa
elogios como “ oráculo dos nossos tempos”, prefere seguir a par e passo a sua síntese crítica editada por um
anônimo – que julgamos poder identificar com o seu mestre Jean Bernard”
39
.
35
CONCEIÇÃO, Margarida Tavares da. Op. Cit., p.37.
36
ARAÚJO, Renata Malcher de. Engenharia militar e urbanismo. In: MOREIRA, Rafael (org.) História das fortificações portuguesas no mundo. Lisboa:
Alfa, 1989, p. 264.
37
PIMENTEL Luis Serrão. apud: ARAÚJO, Renata Malcher de. Engenharia militar e urbanismo. In: MOREIRA, Rafael (org.) História das
fortificações portuguesas no mundo. Lisboa: Alfa, 1989, p. 264.
38
TEIXEIRA, Manoel; VALLA, Margarida. Op. Cit. , p. 124.
39
MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Malcher de. A engenharia militar do século XVIII e a ocupação da Amazônia. In: MAGALHÃES,
Joaquim Romero. Amazônia Felsínea. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos portugueses, 2000, p. 175,176.
73
Mesmo sob essa direta influência francesa, o texto de Azevedo apresenta seções claramente
originais, que exprimem a ruptura da arquitetura civil com a engenharia militar, opondo-se à velha
tradição do discurso português que unia as duas áreas de conhecimento. A engenharia deveria ser
uma ciência independente e com regras pré-estabelecidas, contando ainda com a criação de um
corpo técnico altamente qualificado, acompanhado por medidores auxiliares. Sob essas novas condi-
ções, os engenheiros, profissionais agora elitizados, passariam, com o decorrer do tempo a exercer
funções de caráter mais civilizatório, executando obras destinadas a servir e melhorar as condições
de vida da população, tais como cais, diques, faróis, pontes, calçadas, aquedutos, etc.
Em síntese, essas ações representavam o próprio “[...]
ordenamento do território
pelo reconheci-
mento de suas formas e potencialidades”. Era “[...]um trabalho duro de levantamento, marcação de divisas e cotas, medições
e registros, instrumentos fundamentais nas mãos da Coroa [...]”
40
, que lhe permitiam construir e conhecer os
territórios portugueses e brasileiros. Para tantas competências e demandas de trabalho, o engenheiro-mor
Azevedo Fortes havia escrito em 1722, entre outros textos
41
, o “Tratado do modo o mais fácil e o mais exacto de
fazer as cartas geográficas, assim da terra, como do mar, e tirar as plantas das Praças, Cidades, e edifícios com instrumentos,
e sem instrumentos, para servir de instrucçam a fabrica das Cartas Geograficas da História Ecclesiastica, e Secular de
Portugal [...]”. Na colônia setecentista, esse foi o tratado que, com as contribuições das antigas Aulas
Régias –”Escola de Artilharia e Arquitetura Militar”, de Salvador; “Aula das Fortificações e Arquitetura”,
1698, no Rio de Janeiro; “Aula do Maranhão”, de 1699, e Recife, de 1701 e as inúmeras experiências de
levantamentos e demarcações territoriais, subsidiaram o modo de fazer as cidades dessa época, marcando
o processo de construção e urbanização de Goiás por meio de controles cartográficos.
Na região da Capitania de Goiás, os primeiros indícios de um controle territorial por meio de
levantamentos cartográficos retrocede ao remoto período dos Felipes (1580-1640), com o nobre fidal-
go e governador-geral Dom Francisco Souza e seu auxiliar, o engenheiro-mor do Brasil, Baccio di
Filiccaia (1597-1602)
42
, que incitavam a formação de expedições à região do Eldorado, paraíso mítico
das ricas montanhas de ouro e pedras preciosas. Essas foram algumas das incursões movidas pelo mito
e pela razão, as quais adquiriram as primeiras e significativas informações, que, ainda que escassas, se
refletem nos mapas do Brasil de 1665, 1670 e 1675, indicando, à época, o conhecimento possível do
território, necessário ao preparo de expedições para a exploração de minas e sua futura posse.
O autor de um dos principais mapas cartográficos, o versado cosmógrafo João Teixeira Albernaz
II, contemporâneo de Luís Serrão Pimentel (1613-1679) e de Baccio di Filiccaia, havia sido aluno da
Aula da Esfera” de Santo Antão. Quiçá convenha comparar a ampla formação que lá alcançou àque-
la que recebeu de João Baptista Lavanha, quando de sua nomeação como lente da Academia de
Matemáticas de Madri: “[lecionou] cosas de cosmografía, geografía y en leer matemáticas en la forma y lugar que se le
mandare, y en todas las demás cosas anejas y concernientes a lo sobredicho y en que pueda servir en su profesión y ciencia”
43
,
40
MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Malcher de. Op. Cit., p. 180, 181. [grifos nossos]
41
Além do seu Tratado, Fortes traduziu o tratado de fortificação: “Governador das Praças”, de Antoine De Ville e escreveu a Lógica Racional, Geométrica e Analítica.
42
“[...] mi ocupó com el carico di imgegnero maggiore di quello stato e andando in conpaggnia á visitare tutto lo stato e sue forteza mi ocupe in
reformarem lote di esse et altri far fortificare di nuovo, e juntamente mi dete il carico di capitano d’artiglieria di dette Piaze forte”. FILICCAIA,
Baccio. Carta autobiográfica de 30 de agosto de 1608 do ex-primeiro engenheiro-mor do Brasil. apud: SIQUEIRA BUENO, Beatriz P. Revista
Oceanos. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses. N. 41, jan./mar 2000.
43
Cédula de nomeação de Lavanha, redigida em Portugal no dia 2 de dezembro de 1582, com declaração de Filipe II. In: D’AGOSTINO, Mário
Henrique Simão. Op. Cit., p. 289-311.
74
particularmente numa cartografia frequentemente secreta, caracteri-
zada por estreitos vínculos com os interesses do Estado, destinando-
se a fins políticos e práticos
44
. Foi o último da tradicional família do
quinhentista Luís Teixeira e, portanto, o herdeiro de antigos conhe-
cimentos náuticos e das inovações cartográficas introduzidas em
Portugal pela França, Países Baixos e Alemanha. Por essa razão, cer-
tamente João Teixeira conheceu o velho Roteiro-Atlas (1574) do avô
Luís Teixeira, no qual “[...] aparecem reunidos e ilustrados mutuamente as
instruções náuticas e o traçado cartográfico dum país, trecho a trecho e carta a
carta”
45
, utilizando-o para o enriquecimento da cartografia corrente,
notadamente aquelas de 1642
46
, 1665, 1670 e 1675 ( Figs. 10, 11 e
12), nas quais se encontram os cursos dos rios Tocantins e Paraguai
e, pela primeira vez, a figuração da Ilha do Bananal (Paraupava) no
Rio Araguaia. Estavam, assim, identificados importantes acessos flu-
viais a uma área interna do território colonial que faria parte do Im-
pério Ultramarino.
44
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. História do Brasil nos velhos mapas. V. 1. Rio de Janeiro: Ministério das Relações
Exteriores – Instituto Rio Branco, s/d, p. 100.
45
CORTESÃO, Jaime Zuazarte. Op. Cit., p. 386.
46
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Idem, p. 415.
Fig. 10 – Detalhe do primeiro mapa de
JoãoTeixeira Albernaz II, de 1665,
mostrando o Rio Araguaia e a Ilha de
Paraupaba.
Fonte: In: BERTRAN, Paulo. História
da terra e do homem no planalto central:
Eco-História do Distrito Federal, do
indígena ao colonizador. Brasília:
Verano 2000, p. 51.
75
Fig. 11 – Detalhe do segundo mapa de
JoãoTeixeira Albernaz II, de 1670.
Fonte: In: BERTRAN, Paulo. História
da terra e do homem no planalto central:
Eco-História do Distrito Federal, do
indígena ao colonizador. Brasília:
Verano 2000, p. 52.
Lagoa de Paraupava
76
Não obstante essas preciosas cartas elaboradas por João
Teixeira, a região do território goiano só foi plenamente conhecida
no curso da primeira metade do século seguinte, no governo de D.
João V – época da revalorização e importância da geometria para a
arte militar, da astronomia, do avanço nos cálculos das longitudes e
da História Natural –, a partir da certeza da existência de ouro em
seu interior. Foi exatamente esse metal um dos importantes fatores
Fig. 12 – Detalhe do terceiro mapa de
JoãoTeixeira Albernaz II, de 1675, com
identificação da lagoa onde há muito
salitre.
Fonte: In: BERTRAN, Paulo. História
da terra e do homem no planalto
central: Eco-História do Distrito
Federal, do indígena ao colonizador.
Brasília: Verano 2000, p. 53.
Lagoa onde há muito salitre
77
que impulsionaram a Coroa portuguesa a incentivar a formação de inúmeras incursões de explora-
ção em direção a essa região e a aplicar uma política de ocupação que visava, com a fundação de
povoados a oeste de Tordesilhas, antecipar o seu domínio territorial.
2.2 Os funcionários da Coroa, a cartografia e a construção de Goiás
A expansão e posse de Portugal nas terras além Tordesilhas há muito tempo vinham provo-
cando profundos desentendimentos com a sua oponente, a Coroa espanhola, gerando inúmeros
conflitos entre ambas, porém intercalados por alguns momentos de trégua. Nos últimos anos do
reinado de D. João V (1706-1750), houve um desses relativos tempos de paz entre as cortes, o que
permitiu a Alexandre de Gusmão, importante e sagaz secretário do monarca, sugerir as bases para a
efetiva demarcação dos limites do Brasil. Segundo uma política expansionista que remonta a pelo
menos 1736, esse auxiliar da Coroa portuguesa elaborou um plano secreto de exploração dos terri-
tórios que ultrapassavam os limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas, incluindo o oeste da
futura Capitania de Goiás. “O plano nasceu por proposta do Conselho Ultramarino e visava a realização do
Novo Atlas do Brasil”
47
, peça chave para justificar a posse efetiva e a unidade do território, concreti-
zando, posteriormente, os termos do importante Tratado de Madri, de 1750. A primeira metade do
século XVIII colocou a região de Goiás sob esse desígnio, efetivado mediante levantamentos topo-
gráficos e a continuidade de várias outras expedições de reconhecimento, que permitiram a identi-
ficação de suas balizas naturais e a execução de mapas mais precisos, que ajudaram na construção e
ocupação do território.
No interior da colônia, os movimentos iniciais desse plano, coordenado pelos interesses
geopolíticos e diplomáticos, podem ser observados a partir das descobertas auríferas (1718)
48
,
de Pascoal Moreira Cabral, nas adjacências dos rios Coxipó e Cuiabá; nas ordens do Conselho
Ultramarino de 1719, para que o engenheiro da Capitania de São Paulo averiguasse os possíveis
avanços dos espanhóis e fizesse um mapa indicando “os rios e cordilheiras que houver em todo aquelle
districto, e apontando o rio ou serrania que lhe parecer poderá servir de divisa e separação por aquela parte
entre os domínios de uma e outra Coroa”
49
; e da expedição de Bartolomeu Bueno, o filho, a Goiás,
no ano de 1722.
Entretanto, apesar da sua validade, essas primeiras experiências de penetração pelo interior
do Brasil foram realizadas por homens de reduzidos conhecimentos científicos, acabando por mos-
trar à metrópole as reais dificuldades de um trabalho cartográfico dessas proporções. Para o cumpri-
mento dessa tarefa, seria imperativo a transferência dos últimos conhecimentos científicos para
a metrópole e. posteriormente, para a colônia, tendo em vista a sua ocupação e urbanização. Tais
motivos levaram Portugal à aquisição de relógios marcadores de longitude
50
, novas cartas de longi-
47
GUERREIRO, Inácio. Op. Cit., p. 25.
48
FERREIRA, Mário Clemente. Uma idéia de Brasil num mapa inédito de 1746. In: Oceanos, n.43, C.N.C.D.P. Lisboa, 2000, p. 184-195.
49
Lisboa, Consulta do Conselho Ultramarino, 29-04-1719. apud: FERREIRA, Mário Clemente. Uma idéia de Brasil num mapa inédito de 1746.
Op. Cit., p. 184-195.
50
Marcavam as distâncias a partir de um ponto fixo.
78
tudes já observadas e a contratação de expressivos matemáticos europeus, dentre os quais, Jean
Baptiste Bourguignon d’Anville (1697-1782)
51
, para a elaboração de novos mapas. No ano de 1722
52
,
em decorrência dessa necessidade, chegaram a Lisboa os jesuítas italianos João Baptista Carbone e
Domingos Capacci, peritos nas Matemáticas e na arte da arquitetura militar, que, com o engenheiro
Manuel Azevedo Fortes, autor do Tratado do modo mais fácil e exato de fazer as cartas geográficas assim na terra
como no mar [...], se destacavam pelas grandes inovações e contribuições ao processo de elaboração de
mapas e pelo prenúncio, na obra deste último, da crítica iluminista
53
. Com eles, surgem trabalhos
de índole mais científica, como a moderna cartografia lusa, que passou a contar com os cálculos das
longitudes, e o urbanismo português, que se organizaria com maior regularidade. Esse conhecimento,
posteriormente, é aplicado às várias experiências brasileiras, alcançando, evidentemente, Goiás.
Para a concretização desse propósito, em 1729 Domingos Capacci segue viagem ao Brasil, acompa-
nhado por outro jesuíta, o lisboeta Padre Diogo Soares, para ajudar no trabalho de levantamento e reconhe-
cimento do território colonial. Em um alvará de 18 de novembro desse mesmo ano, D. João V comunica ao
Vice-rei, aos governadores de todas as capitanias do Estado do Brasil e até às últimas freguesias dos sertões,
a nomeação desses dois padres matemáticos e geógrafos da Companhia de Jesus
54
para a importante missão
de ordenar as cartas geográficas “do dito Estado, não só pela marinha, mas pelos sertões”
55
, todas “necessárias para uma
melhor exploração dos recursos do território e para uma administração mais eficaz, mas também desejadas por razões geopolíticas,
pois os limites na América do Sul teriam que ser, mais cedo ou mais tarde, negociados entre as duas coroas ibéricas”
56
.
Os religiosos a serviço do plano secreto da política expansionista portuguesa representaram na
colônia a passagem de uma “cultura de latitude e superfície”, baseada na ciência e na prática marítima, para
uma de “cultura de longitude e profundidade”
57
de fixação e topografia de expansão terrestre
58
. A plena e
eficaz realização do referido plano de exploração e ocupação das regiões de “soberania portuguesa não
definida”, assim como o próprio sucesso do Tratado de Limites, dependeu, em certa medida, desses
cientistas matemáticos e dos diversos engenheiros militares. Os problemas de controle e exploração
econômica dessas áreas só poderiam ser resolvidos com observações astronômicas ou uso de cronô-
metros que atingissem “a perfeição indispensável e uma segurança de observação, universalmente conhecida”
59
,
51
D’Anville foi “aquele que, durante o século XVIII, verdadeiramente caracteriza, completa e simbolicamente a escola francesa de cartografia.
Geográfico, historiador e cartógrafo, nomeado, após a morte de Delisle, Primeiro – Geógrafo do Rei, membro da Academia das Ciências e da
Academia das Inscrições”. CORTESÃO, Jaime Zuzarte. História do Brasil nos velhos mapas. V. 1. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteri-
ores – Instituto Rio Branco, s/d, p. 106.
52
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Ed. Fac-similar, v. II.
Brasília: Senado Federal, 2001, p. 7.
53
FERREIRA, Mário Clemente. O Tratado de Madrid e o Brasil Meridional. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos
portugueses, 2001, 99.
54
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Idem, v. II, p. 7-8.
55
Alvará de 18 de novembro de 1729, Lisboa. In: CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., V. II, p. 7-8.
56
FERREIRA, Mário Clemente. Op. Cit., p. 184-195.
57
“Memorial de Aranjuez, 2 de maio de 1584. Entre otros servicios – ajuíza Juan de Herrera – há sido principal el de la invención de los nuevos instrumentos
que he dado para la navegación, en especial el de las longitudes, cosa tan deseada y buscada en tantos siglos [...]”. In: D’AGOSTINO, Mário Henrique
Simão. João Baptista Lavanha, Vitrúvio e o Renascimento. In: MARQUES, Luiz (org.). A constituição da Tradição Clássica. ão Paulo: Hedra, 2004, p.292.
58
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., V.1, p. 318.
59
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., V I, p. 286.
79
materializada no Novo Atlas para o Brasil. Este, mesmo tendo ficado aquém do que se pretendia,
foi, segundo Guerreiro, o “primeiro e importante passo para se proceder à cobertura cartográfica sistemática do
território brasileiro, segundo os métodos científicos”
60
.
Diante de tais evidências, pode-se afirmar que trabalhos iguais ao Novo Atlas, somados à
contribuição de técnicos capazes de exercer múltiplas funções, foram alguns dos fatores que
ajudaram na construção do território do Reino e Estados de Ultramar,
e das novas áreas conquis-
tadas, sejam elas resultantes dos interesses expansionistas e ou das pesquisas auríferas. Tanto na
região da colônia do Sacramento como na área dos “novos descobrimentos que se têm feito nos sertões
daquele Estado de poucos annos a esta parte, fazerem-se os mappas das terras do dito Estado, não só pela minha
Marinha, mas pelos sertões [de Goiás e Mato Grosso], com toda a distinção, para que melhor se assignalem e
conheçam os distritos de cada bispado, governo, capitania, comarca e doação”
61
. A execução de mapas geo-
gráficos e cadastrais, com o objetivo do reconhecimento de espaços incultos e de suas
potencialidades, atestava as providências para o ordenamento do território. A tarefa, apesar de ser
“um trabalho duro de levantamento, marcação de divisas e cotas, medições e registros, [era um] instrumento
fundamental nas mãos da Coroa [...], medir e conhecer significava controle e poder”
62
. A presença dos sacer-
dotes matemáticos em Goiás e a introdução dessas inovações representaram, assim, a confirma-
ção de uma posse territorial ligada a uma acepção central da Coroa, que previa, além do seu
controle, o estabelecimento e a organização de seus núcleos urbanos.
A plena realização desse propósito exigiu dos matemáticos cartógrafos a elaboração de vinte mapas
de diferentes pontos do Brasil: costa litorânea – desde a Capitania do Rio de Janeiro até o Rio da Prata e à
Colônia de Sacramento –; interior do território de Goiás, desde 11° de lat. N; as Capitanias de Minas Gerais
e São Paulo, e uma grande região que também se estendia para o sul até o Rio da Prata. Tal empreendimento
enquadrava-se numa política de ocupação que já se desenvolvia desde o princípio do Setecentos com a
elaboração de projetos para novas bases de controle de regiões em expansão. Como diz Philip Gunn:
A partir de 1720 formularam-se projetos de fundar uma povoação junto à fortaleza de Montevidéu e de povoar e
fortalecer um novo porto em Rio Grande de São Pedro. A partir de 1735, verificou-se a participação dos padres
matemáticos nas preparações do projeto do Presídio do Rio Grande. Em 1736, surgiu o projeto particular do
Governador do Rio de Janeiro, Brigadeiro José da Silva Pais, de uma empresa de povoamento. Ainda em 1736,
registra-se o projeto de Francisco dos Santos para uma colônia no Rio Grande de São Pedro, incluindo uma
proposta de doação de terras aos povoadores em regime de sesmaria
63
.
Um material cartográfico de relevância para Goiás e, obviamente, para toda aquela região em
expansão foi a Nova e primeira carta da terra firme, e costa do Brazil, ao Meridiano do Rio de Janeiro, desde o Ryo
da Prata athé Cabo Frio, com o novo caminho do certão do Rio Grande athé a cidade de São Paulo. Executada pelo
Padre Diogo Soares, por volta de 1738/40, foi dedicada e oferecida ao monarca D. João V.
60
Melhor do que esse trabalho, para o autor: “[...] só as cartas que na segunda metade do século XVIII foram produzidas por técnicos nacionais,
ou estrangeiros ao serviço de Portugal, na seqüência do que ficou estabelecido nos Tratados de Madri (1750) e de Santo Idelfonso (1777)”.
GUERREIRO, Inácio. Op. Cit., p. 26.
61
Proposta do Conselho Ultramarino. apud: GUERREIRO, Inácio. Op. Cit., p. 25.
62
MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Malcher. Op. Cit., p. 180.
63
GUNN, Philip. As tecnologias de guerra e a forma urbana no Brasil colonial. São Paulo: mimeo, s/d.
80
Paralelamente a essas cartas, Capacci e Diogo Soares prepararam uma lista de latitudes (altura
dos graus), calculadas somente a partir da longitude de Vila Boa de Goiás. Esse trabalho, assim como
outros que também se destinavam às demarcações, se restringiu apenas ao circuito real. De padrão
oficial e científico, fez parte de uma política secreta de omissão de dados concretos sobre as longitudes
e as reais posições dos territórios, não só para os espanhóis como também para os portugueses e
colonos. Essa política corroborou o desenvolvimento de uma cartografia de expressiva circulação
local, empírica e espontânea, ao sabor dos sertanistas, mas que apresentava significativos equívocos.
Só no rico conjunto de mapas dos irmãos da Companhia de Jesus encontravam-se informações
mais corretas sobre a situação real dos confins além-mar, como o mapa jesuítico editado em alemão
por Mateus Seutter
64
; a Carte du Cour du Maragnon ou de la Grande Riviere des Amazones, de Charles Marie
de La Condamine (1745); a Descripçam do Continente da America Meridional que nos pertence com os Rios, e
Montes, que os Certanejos mais experimentados, dizem ter encontrado, de Gomes Freire de Andrade (1746); o
Mapa de la Província y Missiones de la Compañia de IHS del Nuevo Reyno de Granada, do Padre José Gumilla
(1741). Esse mapas e os “riscos” de Gonçalves Pereira, as informações missioneiras, e por fim, as
memórias e as viagens de sertanistas permitiram a execução do Mapa das Cortes. Este foi um instrumen-
to essencial e engenhosamente construído com desvios estratégicos de informações favoráveis a Por-
tugal, feito para que a Espanha aceitasse quase toda a proposta lusa de delimitação e legitimação do
território invadido a oeste de Tordesilhas, como previa o Plano de Gusmão, iniciado em 1736.
Por conta dessa manipulação, Siqueira Bueno afirma que “os portugueses saíram na frente e durante cerca
de 30 anos desenharam mentalmente e materialmente o território”
65
, cuja posse queriam oficializar com as negoci-
ações do Tratado de Madri, assinado em 14 de janeiro de 1750. Nessa época, Goiás já contava com a
capital Vila Boa, os aldeamentos do Rio das Pedras, Rio das Velhas, Santana e Lanhoso, no Desembo-
que
66
, e mais de cinqüenta arraiais, que se concentravam nas regiões de Vila Boa (Barra, Ferreiro, Ouro
Fino, etc.), com Meia Ponte e Santa Cruz ao sul; na região do Rio Maranhão (Traíras, São José, Cachoeira,
etc.), contendo Crixás a oeste; e na região do norte (Natividade, Pontal, Conceição, etc.)
67
. Foram esses
núcleos urbanos que, de suporte para a busca pelo ouro, contribuíram para a conquista dessas terras.
64
Em recente texto para a Revista da Biblioteca Mário de Andrade, de São Paulo, o pesquisador português Mário Clemente Ferreira, baseado em
novos documentos, refuta a utilização da carta Le Paraguay ou les RR. PP. de la Compagnie de Jesus ont répandu leurs Missions de Jean-
Baptiste Bourguignon D’Anville como uma das fontes de referência para a elaboração do Mapa das Cortes. Segundo ele, diferentemente do
que é bastante divulgado, a importante fonte para o dito mapa foi a edição alemã de Mateus Seutter. In: FERREIRA, Mário Clemente.
Cartografia e Diplomacia: o Mapa das Cortes e o Tratado de Madri. mimeo. Porto, outubro de 2005.
65
SIQUEIRA BUENO, Beatriz P. Tese de doutoramento. Op. Cit., p. 688.
66
PALACIN, Luís. O século do ouro em Goiás. Goiânia: Editora da UFG, 1994, p. 82.
67
Barra (atual Buenolândia, 1727), Ferreiro (1727), Anta (1727), Ouro Fino (Itaiu, 1727), Santa Rita e Santana, (1727, futura capital Vila Boa),
Guarinos (1729), Jeroaquaré (1729), Meia Ponte (Pirenópolis, 1731), Jaraguá (1737), Corumbá (174?), Santa Cruz, (1729), Santa Luzia (Luziânia,
1746), Bonfim (Silvânia, 1774), Pilar (antes, Papuam 1741), Maranhão (1730), Água Quente (1732), Traíras (1735, atual Tupiraçaba), São José
do Tocantins (Niquelândia, 1735), Cachoeira (1736), Arraial de Crixás, 1734, Ouro Podre ou Arraias (1740), São Luís (mais tarde Natividade,
1734), São Félix (antes, Carlos Marinho, 1736), Muquém (1736), Cachoeira (1736), Jeroaquara (Santa Rita, 1736), Pontal (1738), Porto Real
(atual Porto Nacional, 1738), Barra de Palma (Paranã, 1740), Cavalcante (1740), Amaro Leite ou Lavrinhas (1742), Tesouras ou São Miguel das
Tesouras (1757), São Miguel (Almas, 174?), Carmo (Monte do Carmo, 1741-1746), Cocal (1749), Couros (1749-1750), Desemboque (?); Flores
(1740), Couros ou Formosa da Imperatriz (1736/50), Chapada da Natividade (1740/49), Chapada da Areia (Príncipe, 1750), Conceição do
Norte (Conceição do Tocantins, 1741), Corriola (1740), Santa Rosa (1740), Veadeiros, (Alto Paraíso, 1750), Forte (174?), Lavrinhas (1741),
Mato Grosso (1750), Chagas (São Francisco de Goiás, 1740), Montes Claros (Santo Antônio do Descoberto, 1757), Piloens (Comércio Velho,
1733/46), Manchão do Vaz (Rio Claro, 1733/36), Descoberto ou Piedade (Porangatú, 1740?).
81
Mas para a posse real da região não bastavam apenas as informações sobre as longitudes de
Vila Boa. O mapa intitulado Descripçam do Continente da América Meridional que nos pertence com os Rios, e
Montes, que os Certanejos mais experimentados, dizem ter encontrado cuja divisão se faz, apesar de possuir
menor precisão, apresenta algumas indicações que ajudam no entendimento da formação do terri-
tório de Goiás. De autoria desconhecida, mas atribuída a um militar do Rio de Janeiro, ele é datado
de 5 de dezembro de 1746 e possui relativo rigor científico. Com proporções generosas, de 91.5 x
79. 5 cm, é graduado em latitudes (1°- 36º sul) e longitudes (313° -350°) a partir do meridiano da
Ilha do Ferro, que era a prática mais comum na época
68
.
No texto Uma idéia de Brasil num Mapa inédito de 1746, Ferreira
69
afirma que esse mapa
anônimo de 1746 é, indiscutivelmente, fruto das orientações de Gomes Freire de Andrade, e que
as informações foram levantadas para Alexandre de Gusmão. O historiador fundamenta sua po-
sição com uma carta do engenheiro Francesco Tosi Colombina, de maio de 1747, em que este
afirma ter Gomes Freire de Andrade mandado “fazer Mappas geográficos para inviar informações à
Corte no Hyate, que no mez de Dezembro passado estava a partir; mas athe agora não me chegou a noticia se
dignou ao menos de lelo”. É verossímil, portanto, a consonância dessa carta com os propósitos do
secretário do Rei, cujo maior objetivo, naquele momento, era documentar, da melhor maneira
possível, todo o território da colônia.
Fazer o melhor mapa possível deve ter sido a intenção desse autor desconhecido, que
parece ter iniciado seu trabalho com os dados previamente existentes, espalhados por diferen-
tes lugares e oriundos de diversas fontes, como relatórios de exploradores, mapas de sertanistas
e bandeirantes e relatos de ouvidores, em especial o de Mato Grosso, e a Carte de la Terre Ferme
du Perou, du Bresil et du Pays des Amazones de Guillaume Delisle. Por essa razão, é razoável supor
que o mapa denota o conhecimento do cartógrafo sobre a viagem de Antônio Pinheiro de
Faria às missões espanholas dos Chiquitos, em 1740; a abertura da estrada de São Paulo
até Goiás, por Bartolomeu Bueno da Silva, o filho; e sobre o caminho terrestre de Cuiabá para
Goiás, executado em 1736 por Antônio Pinho de Azevedo, já que todas essas indicações en-
contram-se registradas na tal Descripçam
70
.
Ferreira
71
destaca também que, mesmo ciente das imprecisões das fontes, esse cartógrafo
se preocupou com a representação das terras do interior do Brasil e com a interessante articu-
lação das regiões de mineração às litorâneas, ilustrada pelas representações dos caminhos ante-
riormente citados. De acordo ainda com esse historiador, no mapa estão também refletidas as
iniciativas de exploração das terras de soberania não definida, como os contatos estabelecidos pelos
portugueses, nas décadas de 1730 e 1740, com as Missões espanholas de Moxos e Chiquitos e
a viagem do expedicionário Amaro Leite Moreira, que saiu de Goiás em 1739 em busca de
ouro no sertão dos Araés.
68
FERREIRA, Mário Clemente. Uma idéia de Brasil num mapa inédito de 1746. Op. Cit., p. 184-195.
69
FERREIRA, Mário Clemente. Uma idéia de Brasil num mapa inédito de 1746. Op. Cit., p. 184-195.
70
FERREIRA, Mário Clemente. Uma idéia de Brasil num Mapa inédito de 1746, Idem, p. 184-195.
71
FERREIRA, Mário Clemente. Cartografia e Diplomacia: o Mapa das Cortes e o Tratado de Madri. mimeo. Porto, outubro de 2005.
82
Com base nessas indicações, pode-se suspeitar que outras expedições contemporâneas à de
Amaro Leite Moreira estivessem associadas às mesmas iniciativas de reconhecimento geográfico e
econômico do território goiano, o qual não se sabia ainda exatamente a quem pertencia. A primeira
delas foi a Derrota que fiz pello rio dos Tocantins abayxo athé Bellem do Gram Pará de 2 de novembro de 1734
72
,
seguida das viagens feitas pelo então governador D. Luís de Mascarenhas ao norte da Capitania de
Goiás, em 1740, para “[...] melhor conservação e augmento desta Capitania e dado reposta as ordens que se
expedirão para este Governo [...]
73
. À época, Mascarenhas regularizou os últimos”achados auríferos”, fun-
dando os arraiais de Natividade, Conceição, Cavalcante e Arraias. No último, auxiliado por Domin-
gos Pires, “assistiu pessoalmente a Repartição de suas terras, e se arruou o Arraial pela sua idéia”
74
. Tomadas
essas providências, informou a Coroa portuguesa as condições da Capitania:
Estas minas de prezente se achão com algum augmento no descuberto que se fez para a parte das Terras Novas e
certão chamado Arrayas, que fica ao Nascente do Arrayal de Natividade, em distancia de quarenta e sinco legoas,
pouco mais ou menos, e ao norte e nascente de Tocantins, em distancia de sessenta. O dito descuberto das Arrayas
principiou por huns córregos de pouca duração, e hum ribeyrão que poderia ser para pouco mais de hum anno e hoje se
acha alargado, e tendo se naquella parte descuberto mais córregos, Ribeirão e chapadas, tudo com ouro de conta
regularmente, [ilegível] de meya oitava de ouro por dia, e para muitos annos, conforme attestão os mineiros [...]
75
.
Mascarenhas também organizou outras expedições com destino às regiões das Terras Novas,
Ribeira da Palma, Pernatinga, Ribeira do Paranã, todas chefiadas pelo coronel José Veloso Barreto
do Rego, e, por fim, a de maio de 1741, quando seus homens percorreram todo o espaço compre-
endido entre os rios Manoel Alves Grande e Pequeno, as cabeceiras do Paranaíba e Urussuí, e o Rio
das Balsas até as raias do Gilbuez. Com base nesses dados, pode-se inferir a concomitância de
inúmeras ações de Portugal, como os mapeamentos do território e as viagens por diversas direções,
que visavam atender, além das questões econômicas, o alcance de um território fundamental para a
articulação do litoral com o interior da colônia e sua posterior ocupação.
Anteriormente ao início das jornadas de D. Luís de Mascarenhas e dois anos após a chegada dos
padres matemáticos (1736), a criação da Capitania e a fundação de Vila Boa já faziam parte dessas
iniciativas para a legitimação dos territórios avançados. As decisões de ordem administrativa e jurídica,
somadas à representação de caminhos que articulavam os territórios apresentados no mapa de 1746 e às
freqüentes movimentações exploratórias nos territórios centrais do Brasil, revelam a importância de
Goiás e Mato Grosso no âmbito das discussões que antecederam as negociações entre Portugal e Espanha
sobre os limites de terras. As duas capitanias, para além das vantagens econômicas, foram essenciais para
a interligação dos diferentes espaços da colônia. Particularmente em relação à Capitania de Goiás, Gusmão
a considerou como espaço referencial de confluência de caminhos, como a hinterland econômica do Pará e escala
demográfica, comercial e estratégica de Mato Grosso
76
, que garantiria a unidade territorial brasileira.
72
AHU. Goiás. Doc. 12, 2-11-1734. Derrota que fiz pello rio dos Tocantins abayxo athé Bellem do Gram Pará. Projeto Resgate Barão do Rio
Branco. Goiânia: IPEHBC.
73
AHU. Goiás. Doc.139, 28-02-1741. Carta de D. Luis de Mascarenhas ao Rei sobre os descobertos. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
74
BERTRAN, Paulo (org.). Notícia geral da Capitania de Goiás. Goiânia/ Brasília: UFG/UCG/Solo Editores. V.1, 1997, p. 79.
75
AHU. Goiás. Doc.139, 28-02-1741. Carta de D. Luis de Mascarenhas ao Rei sobre os descobertos. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
76
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., V.II, p. 439.
83
Outras fontes cartográficas e ações administrativas inserem Goiás mais enfaticamente nesse
contexto de discussão e posse do território, anteriormente à assinatura do Tratado de Madri. Supõe-
se que, mesmo não tendo sido utilizadas na execução do referido mapa de 1746, certamente eram
do conhecimento do governador Gomes Freire de Andrade, que sobejamente estava interessado no
mapeamento das terras conquistadas. É o caso, por exemplo, da carta (1744) sobre a jurisdição
eclesiástica das Terras Novas – norte de Goiás –, pertencentes ao bispado do Grão-Pará, que trazia
os seguintes dizeres: Descrição cosmográfica por espaços geométricos do continente mediterrâneo das Terras Novas
do Bispado do Grão Pará, confinantes pela parte austral com o do Maranhão, pela meridional com o de Pernambuco
e pela setentrional com o Rio de Janeiro, repartidas em seis paróquias, a beneplácito de seu Excelentíssimo e
Reverendíssimo senhor bispo dom Frei Guilherme de São José, do Conselho de Sua Majestade
77
. Outras fontes
são: o estudo realizado sob o incentivo de Alexandre de Gusmão (abril de 1745) para a criação dos
bispados de São Paulo, Mariana (Minas Gerais) e das prelazias de Cuiabá e Goiás, e uma Resolução
da Corte, de 7 de Maio de 1748, decidindo que os “confins desse Governo de Goiás hão de ser da parte do Sul
pelo Ryo Grande da parte do Leste por onde hoje partem os Governos de São Paulo, e das Minas Gerais, e para
Norte, por onde parte o mesmo Governo de São Paulo com os de Pernambuco e Maranhão”
78
.
Mas segundo consta nesse documento encaminhado pelos conselheiros do Ultramarino Manoel
Caetano de Lavre e Doutor Antônio Freire de Andrade, as divisas com Mato Grosso ficariam
suspensas. Para essa demarcação foram realizadas novas mudanças, como se vê numa outra provi-
são da mesma data que transferia a administração das minas de Goiás, pertencentes a São Paulo,
para o governador Gomes Freire de Andrade. Essa transferência foi providencial, visto ser Freire de
Andrade um dos braços fortes de Gusmão, a quem ajudou a colher informações sobre os territórios
devassados, e que em 18 de outubro de 1752 esteve à frente das partidas demarcatórias do Sul.
79
Além dos interesses relacionados à obtenção de informações sobre as regiões mais centrais da
colônia, Freire de Andrade, ao chegar a Goiás em 1749, tomou conhecimento também da zona
diamantífera, declarando a “demarcação destas terras [...] e a prohibição de se minerar em Rios Claro e Piloens
e Corregos, que nestes dous rios entrão [...]”
80
. Mas a necessidade de se conhecer melhor essa região,
somada às dificuldades de governar uma grande extensão territorial que cobria desde o Rio de
Janeiro até o sul da comarca de São Paulo e daí até o Rio da Prata, fez com que “Sua Magestade servido
nomear Governador para Goyaz e Mato Grosso, separando estas duas Capitanias [Goiás e Mato Grosso] das com
que estavam unidas”.
81
A justificativa para tal decisão era a necessidade de haver uma administração
exclusiva para os Goyazes, “em razão das muitas povoaçõez que já existem contendidas por mais de trezentas legoas”
82
.
77
Segundo Rafael Bluteau, “descrição” é definição imperfeita. Melhor seria, segundo ele, representação, ou pintura de alguma coisa com palavras.
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português e latino [...]. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713. V III, p. 115.
78
AHU. Goiás. Doc. 2360, 1790. Sobre a Rezolução de 7 de maio de 1748. Lisboa. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
79
Dadas as circunstâncias e a brevidade desse governo, um dos seus principais propósitos, ao que parece, foi o de obter maiores informações sobre
os limites dessas terras e suas potencialidades, “como os dois ou três rios em que se achão diamantes, onde será preciso todo o cuidado de hum bom Governador.
AHU. Goiás. Doc. 2360, 1790. Sobre a Rezolução de 7 de Mayo de 1748. Lisboa. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
80
AHU. Goiás. Doc. 1715, 18-08-1749. Anexo. Ofício – Mapeamento e controle do Rio Claro e Piloens. Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
Goiânia: IPEHBC.
81
BERTRAN, Paulo (org.). Op. Cit., V1, p. 55-56.
82
AHU. Goiás. Doc. 2360. Sobre a Rezolução de 7 de Mayo de 1748. Lisboa. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
84
Para o governo do Mato Grosso foi nomeado D. Antônio Rolim de
Moura, “capaz de responder, e obrar com acerto em similhantes cazos para evictar
as desconfianças da Corte de Madrid
sem perder o direito dos nossos desco-
brimentos”
83
, e para Goiás, vindo de Pernambuco, D. Marcos de Noronha,
que trouxe uma instrução do Estado, de 19 de janeiro de 1749, para
estabelecer as linhas de fronteira do território sob governo que até então
não se havia “precisamente previsto por falta de conhecimento dos certões”
84
.
Para auxiliá-lo, o Secretário de Estado Marco Antônio de Aze-
vedo Coutinho determinou-lhe que se informasse com “Gomes Freire
de Andrade [a quem] ordeney remetesse as noticias que pudesse recolher, para se
determinarem os territórios daquella capitania, e das suas confinantes. E como vos
recomendo, como também que acompanheis quanto for possível com mappas e rela-
ções que enviareis, e procureis todos os que em Goyaz tiverem ficado do Padre Diogo
Soares, e mos remeteis cuydadosamente
85
. Como parte de suas obrigações,
deveria também “animar a comunicação das Minas de Goyaz com as do Cuyabá
pello caminho novo, e se o Governador do Mato Grosso vos pedir ajuda em alguma
ocazião deveis dar-lhe toda a que for possível attendendo a distancia em que aquelle
destrito fica para ser auxiliado de outra parte”
86
.
Fig. 13 – Carta Topográfica da região
do Rio Claro e Pilões, 1805.
Fonte: SALLES, Gilka V. F. de. Economia
e escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia:
CEGRAF/UFG, 1992, p. 100.
83
AHU. Goiás. Doc. 2360, 1790. Sobre a Rezolução de 7 de Mayo de 1748. Lisboa. Projeto Resgate
Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC. [Grifos nossos].
84
AHU. Goiás. Doc. 500, 1752. Cópia das Instruções do Secretário de Estado Maior Antônio de
Azevedo Coutinho ao governador D. Marcos de Noronha, 19-01-1749. Projeto Resgate Barão do
Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
85
AHU. Goiás. Doc. 500, 1752. Idem.
86
AHU. Goiás. Doc. 500, 1752. Idem.
85
O novo governador chegou a Vila Boa de Goiás em 8 de novembro de 1749 e deu início ao
seu trabalho com o inquérito geográfico e etnográfico do local, encomendando ao engenheiro
Tosi Colombina “passar pela maior parte dos Arrayaes desta Capitania pedese [pedindo-lhe para] examinar
em que graos fica cada hum deles e quantas Legoas de distância vai de hú a outro”. Além disso, solicitava um
cuidadoso e minudente levantamento das nações indígenas, situando-as em relação aos diversos
rios e ainda identificando os costumes dos gentios, “se uzão demais armas do que do arco, e flexa, se
pelejão de cilada, ou a peito descoberto, se acometem nos rios, ou em terra, se comem os seus inimigos, que matão na
guerra, e se matam huns aos outros para se comerem [...]”
87
. Feito isso, com bons informantes, poderia
fazer “húa coleção curioza do que é Goyaz, e seus subúrbios
88
. Todas essas providências, certamente,
fizeram parte de uma pesquisa maior, determinada anteriormente por Gusmão, quando se dirigiu
a um funcionário lisboeta para “traçar uma carta das regiões percorridas com as latitudes (altura em graus)
e longitudes (distâncias a um ponto fixo) respectivas; e o âmbito invulgar da pesquisa etnográfica, que abrange o
governo, trajes, costumes e religião dos povos indígenas e sua história”
89
. Em Goiás, esse trabalho pode estar
vinculado à execução de um mapa sobre sua situação territorial antes mesmo da chegada do
cartógrafo Tosi Colombina. Encaminhado por Ângelo dos Santos Cardozo a Alexandre de Gusmão
em 12 de maio de 1750,
[...] foy o primeyro e mais ajustado, que lá apareceo até aquele tempo, e o menos distante da verdade da
destribuição desta Comarca, e seos Arrayaes, mostrando o Caminho, que vem da Vila de Santos a esta
Capitania, e daqui ao Cuyabá, Mato Grosso, Rio da Madeira, té o das Amazonas, que á força de
deligencia alcancey de hum sugeito capacisimo, na matéria de fazer mapas, que pessoalmente viajou toda a
imensa extenção dos referidos caminhos, e de propozito lavrou a meos rogos o que remeti [...]
90
.
Mas as obrigações de D. Marcos não paravam por aí. Imediatamente após sua chegada, uma
Provisão lhe ordenava fazer um parecer, com o qual se pudesse determinar “[...] o mais commoda e
naturalmente a divizão [da Capitania de Goiás]”. Naquele momento, a idéia de um território desenhado
já estava formada, pois, dois meses após sua chegada, em 12 de janeiro de 1750, e dois dias antes da
assinatura do Tratado de Madri, sua proposta já se encontrava em tramitação com a indicação das
balizas naturais com seus respectivos nomes e localizações. Para dar início às atividades, D. Marcos
tomou como referência Vila Boa de Goiás e a Vila do Bom Jesus, capital de Cuiabá, calculando
entre elas uma diferença de “cinco graus de distancia, medidos pello rumo do Noroeste, e Sueste, ficando a ditta
Villa Boa a Sueste, e a Villa do Bom Jezus ao Noroeste”. Em seguida, verificou a posição central da
distância entre as duas vilas e destas para o Rio das Mortes, esclarecendo não ser este o mesmo que
existe em Minas Gerais, pois tem suas
87
AHU. Goiás. Doc. 457, Anexo de 16-08-1750. Cópia da Comição, e Carta do S. Conde dos Arcos Governador, e Capitam General de Goyaz.
Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
88
AHU. Goiás. Doc. 475, Anexo de 16 -08-1750. Cópia da Comição, e Carta do S. Conde dos Arcos Governador, e Capitam General de Goyaz.
Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
89
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., V.II, p.152.
90
AHU. Goiás. Doc. 740, 15-04-1755. Instruções de Ângelo dos Santos Cardozo ao Conde de São Miguel, sucessor de D. Marcos de Noronha.
Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
86
[...] cabeceyras em huma Serra a que ainda se não deo nome que dizem ser hum Chapadão que está cituado
Leste Oeste, e as águas vertentes para o Norte vão todas em vários Rios que depois se juntão huns com os
outros, dezaguar no Grão Pará, e os que correm para o Sul se vão sepultar no mar pello Rio Paraguay, que com
o nome de Rio da Prata vai dezaguar e confundir-se com o océanno, em trinta e quatro graos de Latitude ao Sul
da Equinocial
91
.
Ao longo do Rio das Mortes, portanto, ficaria a “Linha da Divizão” dessa “Capitania da do Mato
Grosso [...]”, que deveria seguir
[...] a sua corrente, e a daquelles em que se mete, que por mayores o fazem perder o nome como he primeiramen-
te hum Rio chamado Rio Grande, que a outo dias de viagem indo de Goiaz para o Cuyabá se passa, o qual
corre do Sul para Norte, e hé totalmente diverso do Rio Grande Geral, que corre do Norte para o sul, o
qual depois toma o nome de Maranhão até que finalmente vay com o nome de Tocantins, dezaguar no Grão
Pará, e continuando a linha da divizão correndo para o Sul, se atravessará aquelle Chapadão por uma Linha
tirada das Cabeceyras do Rio das Mortes até as do Rio Taquari, que he um dos que correm para o Sul, e se
descerá por elle abayxo até onde faz barra o Rio Cuchiim, e sobindo-se por este assima até onde faz barra com
o Rio chamado Camapoam, subindo-se também por este até o Citio que também se chama Camapoam e ali se
atravessará o Varadouro de terra, que tem uma Legoa, e três quartos, e se dará nas Cabeceyras do Rio Pardo,
que com cem legoas de corrente pouco mais ou menos, vay fazer barra no Rio Grande o geral que divide esta
Capitania da de São Paulo, de Norte e Sul, e deytada assim a linha da divizão fica clara e destintamente
dividida esta Capitania da do Matto Grosso pella parte do Oeste
92
.
Pelo leste, o território de Goiás faria divisa, como já havia sido decidido anteriormente, com
São Paulo e Minas Gerais, porém, para esta última Capitania, apontava os equívocos referentes à
descoberta de Paracatu, localizado próximo à Serra do Lourenço Castanho. Para D. Marcos de
Noronha, essa região, anteriormente pertencente a São Paulo, por direito deveria ser de Goiás. No
entanto, D. João V havia se decidido por Minas Gerais, ficando a Capitania goiana “devidida das geraes
pella devizão antecedente, pella parte de Leste, e da de São Paulo pella parte Sul, pello Rio Grande o geral, que corre
do Norte para o Sul, e vay dezaguar no Paraguay”
93
. Estabelecidas essas linhas, restavam apenas as indica-
ções de fronteiras com o Norte, com as capitanias de Maranhão e Pará. No entanto, o governador
não obteve informações precisas sobre a geografia do local, desconhecendo, portanto, a existência
de serras e rios que pudessem servir como divisas. Por isso, propôs ser “devidida esta Capitania da do
Maranhão, e da do Grão Pará pella devizão que antecedentemente tinha o Governo de S. Paulo, com o Governo do
Maranhão, e Grão Pará [...]”
94
.
91
AHU. Goiás. Doc. 429, 12-01-1750. Carta do governador e Capitão General de Goiás, D. Marcos de Noronha, Conde dos Arcos, ao Rei D. João
V em resposta à provisão sobre como se deve proceder quanto aos limites geográficos da Capitania de Goiás. Projeto Resgate Barão do Rio
Branco. Goiânia: IPEHBC.
92
AHU. Goiás. Doc. 429, 12-01-1750. Idem.
93
AHU. Goiás. Doc. 429, 12-01-1750. Idem.
94
AHU. Goiás. Doc. 429, 12-01-1750. Idem.
87
A generalidade do mapa descritivo de D. Marcos de Noronha, que trazia apenas a indicação
dos locais que poderiam ser as balizas naturais de Goiás, e a urgência do trabalho, para o rápido
encaminhamento de dados à Corte portuguesa, induziu o governador a solicitar ao italiano Tosi
Colombina
95
– engenheiro militar que havia dado aula de geografia em Lisboa, explorador; cartógrafo
e executor de uma das cartas geográficas do Brasil (1756)
96
–, a execução de um novo mapa. Para
tanto, ele se decidiu pelo aproveitamento de informações anteriores, como a cópia de um outro
mapa que já havia sido enviado por Ângelo dos Santos Cardozo a Gusmão
97
, mapas de sertanejos e,
possivelmente, as indicações feitas para os limites da prelazia. A correção desse novo mapa se fez
ainda pela observação de alguns lugares, tal qual a indicação dos métodos práticos apresentados
pelo Tratado do modo o mais fácil, e o mais exacto de fazer as cartas geográficas [...]”, de 1722, de Manuel de
Azevedo Fortes, que utilizava instrumentos mais comuns, como a bússola, indicada para as tomadas
de caminhos, montes, rios e ribeiras. Só com esses procedimentos se podia calcular com mais preci-
são as braças, os graus e as distâncias de um território. Na medida do possível, esse deve ter sido o
método utilizado por Tosi Colombina para a elaboração do referido mappa geral por onde se podesse
conhescer os limites desta Capitania”, de 1750/51, e de outro, cuja autoria é atribuída a ele, em que
aparecem representados os arraiais goianos. (Figs. 14 e 15)
Acompanhado do ouvidor na Correição da Comarca, Tosi Colombina iniciou a confecção do
mapa de Goiás em 1750, a partir da busca das informações que lhe pareceram mais confiáveis. Em 6 de
abril de 1751, com o trabalho já concluído, o engenheiro encaminha o mapa a D. Marcos de Noronha,
anexo a uma carta na qual diz ter alcançado uma visão mais exata desse sertão incógnito. Afirmava, ainda,
que quem melhor havia se aproximado da verdade fora o Padre Capacci, mas com a ressalva de que o
levantamento do jesuíta estava incompleto, pois ele não havia ultrapassado o distrito do Tocantins.
Esse mapa foi um dos resultados do avanço do conhecimento no século XVIII, com a evolução da
antiga ciência e arte náutica dos cosmógrafos da fase do descobrimento para a das escolas de engenharia,
dos importantes tratados teórico-práticos da cartografia, elaborados a partir de latitudes e longitudes, e
dos levantamentos topográficos que buscavam a legitimação das áreas de expansão. Passava-se da dinas-
tia dos Pimenteis para a dos engenheiros-mores, cujo exemplo máximo foi Azevedo Fortes. No Brasil, o
momento se caracterizou pela construção de cartas geográficas, aberturas de caminhos terrestres e fluvi-
ais e construção de fortalezas no interior do território
98
. Dentre estas, um bom exemplo é o Príncipe da
Beira, no Guaporé, e entre os trabalhos cartográficos, o do notável Tosi Colombina, que registra os
caminhos terrestres e fluviais entre São Paulo e Cuiabá e entre o Prata e o Amazonas.
95
Segundo Jaime Cortesão, na primeira metade do século XVIII era bastante comum serem indicados engenheiros-mores e cartógrafos para
governarem as capitanias, e quando esses administradores não eram habilitados nessa ciência, alguns deles os acompanhavam. São exemplos:
o vice-rei Conde de Galveias, que teve ao seu lado o engenheiro e cartógrafo Frei Estevão de Loreto; Gomes Freire de Andrade, governador
do Rio e das províncias do Sul, teve como auxiliar direto o engenheiro e mestre cartógrafo José Fernandes Pinto Alpoim; o governador do
Maranhão-Pará, Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, teve por acompanhante o sargento-mor, geógrafo e cartógrafo José Gonçalves da
Fonseca; o governador de S. Catarina e fundador do Rio foi o brigadeiro José da Silva Pais; o Conde dos Arcos teve Tosi Colombina e D.
Antônio Rolim, do Mato Grosso foi engenheiro, astrônomo e cartógrafo. CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit., v.1, p. 320.
96
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit. , v. 1, p. 316,317.
97
AHU. Goiás. Doc. 740, 15-04-1755. Instruções de Ângelo dos Santos Cardozo ao Conde de São Miguel, sucessor de D. Marcos de Noronha.
Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
98
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. Op. Cit. v. 1, p. 317.
88
Fig. 14 – Mapa da Capitania de Goiás, atribuído a Francesco Tosi Colombina, cópia do original do AMU, Lisboa.
Fonte: FONTANA, Riccardo. Francesco Tosi Colombina. Brasília: Charbel, 2004,. p. 50-51.
89
Fig. 15– Mapa de Tosi Colombina
Fonte: FONTANA, Riccardo. Francesco Tosi Colombina. Brasília: Charbel, 2004,. p. 50-51.
90
De fato, ao lermos a descrição do cartógrafo vê-se claramente em seu mapa de 1750/51 a
maior ênfase às descrições e possibilidades dos diferentes fluxos existentes na região, obtidas com
as inúmeras derrotas que até então tinham sido feitas, a exemplo daquela anônima que se fez “[...]
pello Rio dos Tocantins abayxo athe Bellem do Gram Pará, aos dois dias de Novembro do anno de 1734 [...]
99
.
Semelhante a esta, Tosi Colombina vai expondo outros trajetos, a partir
[...] da Villa de Santos guardando os pontos de Longitud, e de Latitud dos Roteiros e dos Geógrafos mais modernos
com a diligencia, q pode usar hum viandante de passagem, fis a derota até esta Villa Boa, as águas continuei depois,
até a Natividade e recolhime outra ves a esta Villa: a derota das canoas de Araraytaguaba até o Cuyabá e depois a
do Matto Grosso tanto por Rios, como por terra, com ocazião da minha demora de onze mezes na quellas partes do
embarque. Segui a informação dos melhores Pillotos q por lá andão, por isso não me se deve culpar o erro, como não
me gloriaria do acerto se o tivesse alcansado, o q, se deve suppor naquella lógica de tantas virtudes moraes q ecedem a
sua mesma sabeduria, e a o ilustre da Sua Prosápia, q não sabe obrar se não acertos, a que se suppoem ter feito
felizmente tal viagem: a derrota q com canoas fes João de Souza de Azevedo do Cuyabá até o Grã Pará, voltando pelo
Rio Madeira ao Matto Grosso foy por informaçoens, q lá me mandou o Dr. José Martins Machado: a derota q vai
de Villa Boa até o Cuyabá foy feita pelo Capitam Mor Diogo José Perira, como também a informação da noça derota
p.a o Gram Pará com as canoas do Cuyabá subindo o mesmo Rio, e buscando outras vertentes no Rio Preto até dar
na primeira derota de João de Souza de Azevedo: o curso do Rio das Amazonas até o Gram Pará he copia da
navegação de Manoel de Sá Condemire, a o qual se deve todo o credito. A derota do Pontal da Natividade pelo Rio
Tucantins e canoas chamadas guarupés até o Gram Pará he informação do Capitam Francisco de Almeyda descubridor
das minas das Arayas q fes tal viagem; o mais he por outras informações, e o mais interior não se sabe ainda [...]
100
.
Após essa exposição, o autor passa para as explicações dos códigos e das convenções de repre-
sentação geográfica. Ambos consolidados no decorrer dos séculos XVII e XVIII, passaram por uma
progressiva alteração de suas representações: de um naturalismo mais decorativo, transformaram-se
em um tipo mais abstrato, informativo e de precisão científica
101
. Semelhante processo ocorre com as
cores, que gradativamente também vão assumindo aspectos mais funcionais. “Uma montanha ou falésia,
nos séculos XVI e XVII eram representadas quase pictoricamente, ao passo que em fins do século XVII convencionou-
se um tipo de grafismo para tanto, que no século XX converteu-se nas abstratas linhas de cotas”
102
. Por essas razões,
as legendas foram sendo cada vez mais utilizadas com motivos convencionados, enquanto pictogramas,
ideogramas e outros símbolos gráficos contribuíram para a representação da natureza, conferindo
uma maior uniformização dos desenhos em todos os lugares de culturas afins
103
.
99
AHU. Goiás. Doc. 12, 2-11-1734. Roteiro de derrota no Rio Tocantins. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
100
Explicação de Tosi Colombina sobre a derrota que fez para a execução do mapa de 1750/1751. Mapa de Tosi Colombina de 1751. In: FONTANA, Riccardo.
Francesco Tosi Colombina: explorador, geógrafo, cartógrafo e engenheiro militar italiano no Brasil do século XVIII. Brasília: CHARBEL, 2004, p. 41- 43.
101
SIQUEIRA BUENO, Beatriz Piccolotto. Tese de doutoramento. Op. Cit., p. 668.
102
SIQUEIRA BUENO, Beatriz Piccolotto. Tese de doutoramento. Idem. p. 666.
103
Sobre estas questões, vários tratados foram divulgados na Itália, Inglaterra, Holanda e França. Relativamente à aplicação de cores e questões próprias da
cartografia, Siqueira Bueno apresenta três importantes tratados: GAUTIER, H. L’Art de laver; ou, nouvelle manière de prendre sur le papier. Lyon, 1687 ;
SMITH, John. The Whole Art and Mistery of colouring maps and others Prints in Water Clours. In: The Art of Painting in Oyl. 3ª. ed., 1701; BUCHOTTE.
Les Règles du dessein et du lavis, pour les plans particuliers des Ouvrages & des Bâtimens, & pour leurs Coupes, Profils, Elevations & Façades, tant de
l’Architecture Militaire que Civile: Comme aussi pour le Plan em entier d’une Place; pour as Carte particulière ,& pour celles des Elections, des Provinces, & des
Royaumes. A Paris, Chez, Claude Jombert, 1722. SIQUEIRA BUENO, Beatriz Piccolotto. Tese de doutoramento. Idem, ibidem. p. 668.
91
Em Portugal, tais inovações, como dito anteriormente, se difundem, sobretudo, no reinado de
D. João V (1706-1750), com o tratado de Azevedo Fortes, acrescido de um outro igualmente impor-
tante, O Engenheiro Português, de 1729
104
. Até o surgimento dessas publicações não havia nesse reino
uma preocupação sistematizada com os procedimentos de representação cartográfica. Cada desenho
era executado ao sabor dos seus executores e vinha acompanhado de uma explicação de seus códigos.
Ao que se percebe, Tosi Colombina recorre à codificação cartográfica habitual de seu tempo,
sugerida no manual prático de Azevedo Fortes, considerado uma verdadeira síntese das experiênci-
as pessoais do autor e de importantes livros franceses. Especificamente no que diz respeito às
Cartas Geográficas, o engenheiro e cartógrafo chamava a atenção para a distinção,
[d] as povoaçoens com seus sinaes de Capital, Patriarcado, Arcebispado, Universidade, Ducado, Marquezado,
Condado, Campo de Batalha; &c. Estes SINAES se costumão pór nas grimpas dos campanários, que representaõ
huã povoação, sendo humas mais avultadas, que outras, conforme a grandeza dos lugares, e sempre deve avultar
mais que todas a que for Capital; e como esta occupaõ mais espaço no papel, para se tomar a sua distancia a
qualquer outra, deve ter no meyo huma cifra, e hum pontinho no meyo della para notar a sua justa posição
105
.
Nesse mapa, Tosi utilizou ainda uma legenda explicativa, adotando os símbolos convencio-
nais para cidade, vila, fortaleza, arraial com freguesia e sem freguesia e sítio. Os vários caminhos ou
derrotas levantados foram representados com pontilhados amarelos, vermelhos e pretos. Por fim, o
verde para o Rio Amazonas, enquanto “a sombra amarela demarca a capitania de Goyaz”
106
. Termina sua
104
SIQUEIRA BUENO, Beatriz Piccolotto. Tese de doutoramento. Idem, p. 219.
105
Ver, em tese de Beatriz P. Siqueira Bueno as figuras 259, 261, 262. SIQUEIRA BUENO, Beatriz Piccolotto. Idem, v. II, p. 669.
106
Instrução de Tosi Colombina para leitura de seu Mapa de 1751. “[...] Os pontinhos vermelhos denotão a derota de Santos, S. Paulo e Ytú até Villa Boa de
Goyaz e desta até a Natividade: os pontinhos amarelos demarcão a volta da Natividade até Villa Boa: os pontinhos pretos de Villa Boa até o Cuyabá demarcão
a comunicação destas duas villa, e esta continua a mostrarse até o Matto Grosso quando se vai por terra, porq quando se vai em canoa , se desce o Rio Cuyabá
Rio dos Porrudos, e se sobe o Rio Paraguay e Jaurú até onde atravessa o caminho de terra q se segue deixando as canoas: os pontinhos pretos desde
Araraytaguaba até o Cuyabá, pelos Rios Tiathê, Rio Grande, Rio Pardo, Camapoão, Cuchiim, Jaguary, Paraguay, Cheanê, Porrudos e Cuyabá demarcão os
caminhos em canoas, q se servem de comunicação com a costa de mar de Santos, e Rio de Janeiro, e Povoado de S. Paulo: os mais pontinhos pretos
denotão a communicação de hum lugar a outro: os pontinhos vermelhos da Villa do Cuyabá, q descem pala margem do mesmo rio , e dos Porrudos
sobem o Paraguay e Sapituba denotão o caminho q fes João de Souza de Azevedo, quando passou por terra até o Rio Sumidouro, pelo qual descendo, e
pelos Rios Tapajóz e Amazonas foy ao Gran Pará, deonde voltando subiu o dito Amazonas, e Rio Madeira até o Matto Grosso, os pontinhos amarelos da
Villa do Cuyabá q sobem o mesmo rio pela margem a travessão por terra até dar no Rio Preto, e no dos Arinos, denotão a viagem de canoas q novamente
se descobriu e q faz communicavel dita villa com o Gram Pará: os pontinhos pretos no Rio Tucantins , q principião onde são dois signais de Sítios, q
começão as Povoações os rossas do Gram Pará, denotão a viagem, q a gente da Natividade embarcandose em canoas, ou como chamão garupés em dois
dias, e por elles três dias, q tudo fazem de dezaseis dias até o Gram Pará, porem a subida se reputa impossível pa acima do salto da Itaboca, e a descida só
se faz em tempo de cheias: mais fácil se suppoem a communicação desta Villa Boa com a cidade do Gram Pará, embarcandose dois dias de viagem abaixo
perto do Arayal da Auba no Rio Vermelho, q entra no Rio Grande do caminho do Cuyabá, que com o nome de Araguaya entra no Rio Tucantins , porq
já o Coronel Antonio Bires de Caiapos com os seos índios Borrorós indo em busca do gentio bravo Corumaré, navegou facilmente até a ponta do Norte
da dita Ilha sendose embarcado no dito Rio Grande onde he a passagem deste Rio no caminho que vai de Villa Boa para o Cuyabá. Alguns dos primeiros
descubridores de Goyaz achandose perdidos se embarcarão no Rio Urui seis legoas a Leste de Villa Boa, e descendo por elle, e pellos Rios das Almas,
Maranhão e Tucantins forão ao Gram Para. A sombra amarela demarca a capitania de Goyaz. Nos Caminhos q vem de S. Paulo a esta villa e desta vão a
Natividade e voltão, não se encontrão mattos de onsideração mais q o do Mogy na Comarca de S. Paulo e o Matto Grosso de Meya Ponte nesta Capitania,
que vão demarcados com arvoredos; os mais a q chamão capoens por serem pequeno não se apontão: as serras , q se encontrão estão demarcadas: os sítios
do caminho de S. Paulo a esta Villa não estão demarcados, só se apontão os q se achão em grande distancia do habitado, mas o mappa particular desta
Capitania em ponto mayor, se fará também com mayor individuação”. Mapa de Tosi Colombia de 1751. In: FONTANA, Riccardo. Francesco Tosi
Colombina: explorador, geógrafo, cartógrafo e engenheiro militar italiano no Brasil do século XVIII. Brasília: CHARBEL, 2004, p. 41,46.
92
explicação informando sobre a impossibilidade de fornecer maiores dados, porque “[...] mais interior
não se sabe ainda que muito confusamente; mas ao que pertence a esta capitania, brevemente darei a V. E. hum
mappa com ponto mayor e com mayor induviduação [...]”
107
.
Em outra carta a D. Marcos de Noronha, sem data, mas anexa a um requerimento de Tosi
Colombina para o Conselho Ultramarino, de 16 de agosto de 1750, encontra-se a concretização de
sua promessa: ele mostra “em que graos fica cada hum deles e quantas Legoas de distancia vai de hú a outro
107
.
Tosi Colombina esclarece nesse documento que o trabalho foi desenvolvido a partir da Carta Geo-
gráfica da América Meridional de d’Anville do anno de 1748
108
, que, segundo Cortesão, “ [...] permitiu pela
primeira vez chegar a conclusão do muito que se ignorava sobre o interior dos grandes continentes, onde assinalavam
vastos espaços em branco
109
”. Mas apesar de tê-la utilizado, o engenheiro assinala ter encontrado erros
substanciais na carta, se comparadas aos seus conhecimentos e informações geográficas de grande
parte dessas terras além-mar. Com relação a um deles, diz: “[...] acho o Grão Pará só três grãos e trinta e
cinco minutos mais Ocidental que a Vila de Santos que tanto faz, a differença em Longitude entre estes dois lugares,
quando nos Roteiro, nas Cartas Geográficas, e nas Marítimas que até agora aparecerão se acha esta diferença de nove
graos mais, ou menos [...]”
110
. Ao constatar essas incorreções, Tosi Colombina decide examiná-las,
circulando os territórios e cotejando as informações que levantava com os dados anteriormente
obtidos. Sua referência foi “[...] a Vila de Santos [que] hirei examinando o interior do Brazil naquellas partes
que pessoalmente tenho andado, com aquellas observaçõens, e deligencias, que o tempo, e a ocazião me permitirão usar,
e apontarei o que me paresse mais digno de reparo [...]”
111
.
Tosi Colombina iniciou suas atividades pela Capitania de São Paulo, identificando o que já
havia sido levantado, por exemplo, as vilas de Mogi das Cruzes e Mogi-Mirim, localizadas na parte
meridional do Rio Tietê, a doze léguas da cidade de São Paulo. Cita igualmente o “Prayal”, denomi-
nado “Mogi do Campo, e Mogiguasú”, distante de São Paulo trinta e seis léguas, no “Caminho que vay a
Goyás na borda septentrional do Rio que também se chama Mogi [...]”
112
.Em suas averiguações, o engenhei-
ro e cartógrafo assinalou os desvios do mapa de D’Anville, que havia nomeado, ou mesmo omitido,
equivocadamente, algumas vilas e rios paulistas. Comprovou a uniformização das latitudes das capi-
tanias de São Paulo e Minas Gerais, informando serem iguais às calculadas pelo Padre Capacci.
Todavia, ressaltou que, em relação às longitudes, os erros eram crassos e conclui que o mapa de
Capacci havia sido feito com poucas informações geográficas. A etapa seguinte de seu trabalho foi
dedicada a Goiás, a partir de um rio que deságua no Corumbá.
107
Explicação de Tosi Colombina sobre a derrota que fez para a execução do mapa. Mapa de Tosi Colombina de 1750/1751. In: FONTANA,
Riccardo. Op. Cit., 2004, p.41-43.
108
AHU. Goiás. Doc. 457, 1750. Carta junto ao requerimento de Tosi Colombina para abrir caminho, 16 de agosto. Projeto Resgate Barão do Rio
Branco. Goiânia: IPEHBC.
109
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. História do Brasil nos velhos mapas. V. 1. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores – Instituto Rio Branco,
s/d, p. 106,107.
110
AHU. Goiás. Doc. 457, 1750. Carta s/d anexa ao Requerimento de Tosi Colombina para abrir caminho, 16 de agosto de 1750. Projeto Resgate
Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
111
AHU. Goiás. Doc. 457, 1750. Carta junto ao requerimento de Tosi Colombina para abrir caminho, 16 de agosto. Projeto Resgate Barão do Rio
Branco. Goiânia: IPEHBC.
112
AHU. Goiás. Doc. 457, 1750. Carta junto ao requerimento de Tosi Colombina para abrir caminho, 16 de agosto. Projeto Resgate Barão do Rio
Branco. Goiânia: IPEHBC.
93
Este [rio] Corumbá nasce ao Nord de três morros, que chamão Pireneus, que são quatro ou cinco Légoas ao
Sul no Rio Paranaíba, e com este no Rio Grande, e ao sul destes Pereneus, nasce o Rio das Almas que passa
pelo Arrayal de Meia Ponte, e unindose com o Rio Uruú vay dezaguar no Rio Maranhão duas Legoas abaixo
do Arraial de Maranhão reduzido a nada, e do prezente Arrayal de Agoa Quente; neste Mapa não se acha
tal Rio Maranhão, e suponho equivocarsse com o que chama do Arrayal das Almas.
Achasse o Arrayal de Meya Ponte em 18 graus, e 45 minutos de Latitud, sendo só em 15 graos e 50 minutos de sorte
que vão 2 graos, e 55 minutos de diferensa, nem há Córrego, Ribeirão, ou Ryo, a rezerva do dito Rio Corumbá, que
nascendo ao Nord deste Arrayal vay dezaguar para o Sul, antes nascendoestes ao Sul do dito Arrayal vay dezaguar
ao Nord como se esperimenta na viagem, que se faz deste Arrayal para Vila Boa: esta achasse posta no dito Mapa
em 17 graos de Latitud quando não é mais de 16 graos, e 20 minutos (quarenta minutos de deferensa) nem sei que
haja algum Arrayal de Santa Annano Rio Pilõens, em 18 graos, e 20 minutos mas sim sei que Vila Boa antes de
ser Vila se chamava Arrayal de Santa Anna, e agora Vila Boa de Santa Anna.
Ouro Fino he hum Arraial que junto a hum Córrego deste nome três Legoas de distantede Vila Boa com
caminho a Leste, e não ao Sul; e o Rio Cabra onde os descubridores de Goyas acharão o primeiro ouro,
atravessa o caminho de Vila Boa para Meya Ponte, porque nascendo ao Nord deste vai cahir a o Sul no Rio
Uruú e não Irou: este Rio Uruú nasce nas faldas ao Sul da Serra Dourada, e não em 19 graos de Latitud,
onde põem Matto Grosso, porque este Matto atravessa o Caminho que vay de Meya Ponte para Vila Boa.
Estão postas nestes Mapas as minas de Crixás em 15 graos, e 35 minutos, quando são 14 graos, e 50 minutos
pouco mais ou menos (45 de differença) e faltão as minas, e Arrayaes de Guarinos, e Pillar: este derradeiro que
também se chama Papoam he dos maiores, e milhores da Comarca e está em 14 graos, e 42 minutos.
Vê se neste Mapa o Arrayal de Trayras, em 16 graos e 25 minutos, porem está em 14 graos e 15 minutos (2 graos
e 10 minutos de differença) e os Arrayaes de São Joze e Santa Rita vem e ao Sul do de Trayras, quando ambos vão
a Leste dele, algum tanto cahindo para o Nord, nem há Arrayal algum que se chame Romé.
Está posto o Arrayal de S. Felis, em 15 graos e meio, sendo em 13 graos, e 21 minutos (2 graos e 10 minutos
de differença) e onde dis Arrayal de S. Felis as Terras Novas he o Arrayal, que é onde no Maopa dis S. Felis.
O Arrayal e minas das Arrayas, que no Mapa dis minas do Arrayal, e as põem em 15 graos, e meio estão em
12 graos e 50 minutos (2 graos, e 40 minutos de differença).
O Arrayal, e minas de Natividade que neste Mapa estão postos em 13 graos, e 42 minutos ( hum grão e 48 minutos de
differença) e o Pontal que se acha posto nos mesmos 13 graos e meio esta em 11 graos e 25 minutos( 2 graos e 5 minutos
de differença) e respeito ao curso do Rio Tocantins, até o Grão Pará, e do que se aponta nas suas bordas, haveria muito
que dizer, mas como são informações ainda que tomadas de muito mais perto haveria também muito que duvidar.
Não se aponta a falta dos Rios, e dos que são trocados de nome por serem muitos, só se repara que o Rio Paranã e o Rio
da Palma unindoseperdem ambos o nome, e formão hum Rio que se chama Paranatinga, até que com o curso de outras
legoas vay uniese com o Rio Maranhão, e estes unidos perdem também o nome, e feito hum só Rio chamase Rio Tocantins,
até o Grão Pará, mas neste Mapa não se acha tal declaração, nem tal Rio Maranhão. Tudo isto se pode milhor conhecer
confrontando-se com os Meus Mapas, que não terão erros tão notáveis no que pessoalmente tenho examinado [...].
Não reparo nos erros de Goyas para o Cuiabá porque não andei pessoalmente, mas as informações que tenho são algum
tanto differentes, particularmente de ser a Vila de Cuyabá em 15 graos e 41 [?] minutos de Latitud não já em 18, e 20
minutos, como se vê no dito Mapa ( differença de 2 graos e 35 minutos) e a differenssa da distancia do Rio Jaú ao Rio
Mamoré, he erro tão crasso que he escuzado aponta lo, nem se pode formar juízo de Mattto Grosso [...].
113
113
AHU. Goiás. Doc. 457, 1750. Carta anexa ao Requerimento de Tosi Colombina para abrir caminho. Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
Goiânia: IPEHBC.
94
Com o devido cuidado que o trabalho exigia e a certeza de que de sua tarefa dependiam
as posses das almejadas conquistas portuguesas, Tosi Colombina corrigiu os nomes de alguns
rios, nomeados equivocadamente, e indicou novamente as diferenças em graus da posição de
vários arraiais goianos, relacionando-os aos do mapa de D’Anville. Após esse olhar sobre a
região, o engenheiro relata não poder opinar muito sobre as representações cartográficas das
divisas entre as capitanias de Goiás e Cuiabá por que ainda não havia percorrido aquelas terras.
Mas sobre o sertão mais distante dessas divisas, afirma ter conhecimento de preciosas informa-
ções que lhe permitiam constatar erros gritantes, que o impediam, até mesmo, de fazer um
juízo real do que seria o Mato Grosso, a exemplo do cálculo da distância entre os rios Jauru e
Mamoré. Aconselhava, portanto, que se estudasse atentamente o caminho que se dirigia para
São Paulo e advertia que os “Rio Tabagi, Rio Grande de Curitiba ou Iguasú, e outros mais Rios [que]
nasciam na Costa do mar”
114
e atravessavam o referido caminho não possuíam suas origens no
interior das Missões dos Padres da Companhia, como se via no mapa. Esse grave erro e tantos
outros poderiam, segundo ele, provocar equívocos irreparáveis na partilha de terras entre as
duas coroas, prejudicando, obviamente, a metrópole portuguesa. Considerando esse aspecto
como essencial, afirmava categoricamente “que não se pode fazer fundamentalmente deste Mapa de D’
Anville para a referida devizão, e pelo que respeita ao interior da América, que pertense a esta Coroa he muito
errado, nem serve para acertar a devizão dos Governos, e Bispados dela [...]”
115
.
Com esses dados e as características constantes no mapa anônimo Capitania de Goiás e do Brasil
Central, pode-se conjecturar que foram tais informações que motivaram a elaboração da carta atri-
buída a Tosi Colombina, cujo original encontra-se no Arquivo da Marinha e Ultramar de Lisboa.
Contrariamente ao anterior, nesse mapa consta apenas o desenho do território, porém, com maio-
res detalhes de representação quanto de arraiais, paisagens e serras, e que, muito provavelmente,
foram feitos a partir dos dados da carta de 16 agosto enviada pelo engenheiro a D. Marcos de
Noronha. Entretanto, independentemente da real autoria desse mapa, cabe evidenciar o seu papel
no processo de construção e urbanização do território antes da assinatura do Tratado de Madri, e
cuja ocupação foi orientada pelo plano de Alexandre de Gusmão, pelos conhecimentos matemáti-
cos e pela cartografia. Foi “pelo trabalho sistemático de observação e fixação do espaço em forma de mapas e de
cartas geográficas que se obteve, verdadeiramente, o território enquanto unidade contínua”
116
, rigorosamente con-
trolado e preparado para uma possível conexão entre os seus diversos arraiais e aldeamentos, como
almejou o governador José de Almeida na segunda metade do Setecentos, em pleno período
pombalino.
114
AHU. Goiás. Doc. 457, 1750. Carta, s/d, anexa ao Requerimento de Tosi Colombina para abrir caminho, 16 de agosto de 1750. Projeto Resgate
Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
115
AHU. Goiás. Doc. 457, 1750. Carta, s/d, anexa ao Requerimento de Tosi Colombina para abrir caminho. Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
Goiânia: IPEHBC.
116
ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e método. Tese de doutoramento, Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, 2000, p. 186.
95
Mas cabe lembrar que, nessa época, a demarcação e urbanização de terras em Goiás ficaram
ao encargo dos governadores, diferentemente da região amazônica, que contou com a participação
de técnicos altamente especializados em ambos os trabalhos. A precária situação financeira de Por-
tugal e a privilegiada posição central desse território, característica que o tornava região relativamen-
te segura, não permitiram ao governador da época, José de Almeida Vasconcelos (1772), a contar
com expedições
117
formadas por geógrafos, astrônomos, matemáticos, desenhadores e engenheiros
portugueses ou oriundos de outros países para o ajudarem na consolidação da almejada rede urba-
na. Para o alcance desse seu propósito, que exigia grandes esforços, ele teve de exercer, simultane-
amente, múltiplas funções, com o auxílio apenas de um único engenheiro que esteve nessas terras
até o final do século: Thomaz de Souza. Este, vindo da Escola Militar do Rio de Janeiro em 1759,
deu importantes contribuições para a Capitania, tais como a elaboração de mapas, o auxílio para
fundar o presídio às margens do Araguaia, os estudos para a navegação desse rio e o encanamento
da água de um morro próximo ao Arraial de Santa Cruz.
Em razão do reduzido número de técnicos habilitados, o governador goiano teve de percor-
rer, com apenas uma pequena comissão, todo o território da Capitania no ano de 1773. Buscava
conhecer as reais potencialidades da terra, tais como a sua capacidade de produção, “não só necessário
para a vida, sustento e comodidade, mas ainda para lhes procurar por meio do giro e do troco um útil comércio [...]”,
e as vastas extensões cobertas por índios, porque “[...] estes deveriam ser principalmente os que povoassem os
lugares, as vilas e as cidades, que se fossem formando; na certeza de que sem eles nem poderia haver cultura, nem
comércio, nem opulência, nem segurança, que não fosse precária no Brasil
118
.
Mas não eram apenas a capacidade produtiva e os indígenas que preocupavam o governador.
Ele ficou atento também à fertilidade dos solos dos julgados de Vila Boa, Meia Ponte e Santa Luzia,
ricos em matos e mantimentos, e à pobreza das regiões do Tocantins, São Félix, Barra da Palma,
Arraias e Paraná, que levava os roceiros a plantar a uma “[...] distancia de oito a déz legoas dos Arrayaes,
e como a sua indústria os não ínsita a este esforzo, he tal a indigência dos gêneros do paiz, que alguas vezes comprei
a farinha de mandioca a 2400 o alqueire, e o milho a 1200, e nunca por menos de 900 reis, para o lado do Rio
Maranhão, cujo destrito comprehende todos os Julgados asima referidos, onde a carne seca he o cumum sustento, das
pessoas que os abitão”
119
.
Após considerar essas peculiaridades da Capitania e com atitude semelhante à dos demais técni-
cos de todo o território da colônia, competentes tanto para abrir trincheiras e estradas como para
traçar vilas
120
, o governador decidiu reorganizar os seis julgados do norte, mandando redesenhá-los.
117
Sobre o entendimento do que vinha a ser uma expedição Ferreira, esclarece que, diferentemente de uma missão, ela tinha “um chefe
com instruções específicas para atingir o objetivo político considerado de elevado interesse, o qual conta com a ajuda dos técnicos
que o acompanham para alcançar esses propósitos. Essa finalidade política justificava, assim, os numerosos meios colocados à dispo-
sição dos seus membros”. FERREIRA, Mário Clemente. O tratado de Madri e o Brasil Meridional: os trabalhos demarcadores das
partidas do Sul e a sua produção cartográfica (1749/1761). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 2001, p. 120.
118
Instruções ao governo de José de Almeida. Palácio Nossa Senhora da Ajuda – 01-10-1771. In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op.
Cit., p. 173-191.
119
AHU. Goiás. Doc. 1763, 1774. Carta de José de Almeida ao Ilmo Sr. Martinho de Melo e Castro. Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
IPEHBC.
120
MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Malcher de. Op. Cit., p. 184.
96
Os que já estavam formados até aquele momento não corresponderiam eficazmente à nova admi-
nistração, pois suas irregularidades, “[...] por falta de conhecimento próprio, foi [foram feitas] pelo arbítrio dos
interessados. Concebi [concebeu] remediar esta desordem na Vizita da Capitania depois de concordar com os meus
exames, e com as circunstancias apontadas no meu Diário [...]”
121
.
Concluído o trabalho de reconhecimento do território, José de Almeida criou no Arraial
de Cavalcante a cabeça do Conselho do Paranã, para instruir os juízes dessa repartição e evitar
as contendas sobre a jurisdição dos demais distritos. Com essa delimitação jurídica, seria possí-
vel determinar
[...] os mais principaes, e apontar condicionalmente os outros para que na conferencia que Vm deve ter
com os confinantes na Cavalcante, possa a vista das suas enformaçõens, assentar, interinamente, no
districto que a cada hum dos Julgados, deve pertencer, naquella circunferência, que por esta minha ordem
não for por pontos indicada, notando em todo o seu circuito, os Arrayáes, e o Sitios povoados, com a
distancia que delles há das cabeças dos Julgados, para que mais corrécta e exactamente
se posas fazer hua
carta geral, e particular de cada hum dos districtos que se com se comprehendem na jurisdiçam daquella
Intendência [...]
122
.
Com anotações feitas em seu diário, delimitou inicialmente os principais julgados, apontando
condicionalmente os demais e, só depois, os ajustando segundo novas informações, quando deveri-
am ser indicados seus distritos, arraiais e sítios povoados, com as respectivas distâncias em relação a
Cavalcante, por ter sido esse arraial definido como cabeça de julgado. Com essa importante referên-
cia, a demarcação seria iniciada a partir
[...] das cabeceiras do Rio Capitinga, que nasce junto a estrada que vem do Cocál do Andrade, para a
Chapada dos Veadeiros, seguindo o rumo do Poente pella Serra do mesmo Veadeiros, agua e fica servindo de
deviza, até chegar ao Sitio chamado a Volta da Serra, e desse seguindo o mesmo Rúmo em direitura ao Rio
Montes Claros, hé a sua barra, e seguindo estes té as suas cabeceiras, se em direitará pello rumo do Norte ao
Engenho de S.
m
Lourenço, que foi de Manoel Gomes Lima, decorrendo a deviza pella Sérra em direitura ao
Rio das Almas, donde faz barra no Paranã. Seguindo o mesmo Rio Paranã assima, té a barra que nelle fáz
o Ribeirám chamado Francisco Alz’ da Mota, seguirá por elle essa diviza, té as cabeceiras do dito Ribeirám,
ficando servindo de deviza entre este Julgado, e o das Arrayas da aparte do Sul, té o sitio da Tromba, e
tomando o rumo do Poente, se emdireitará ao Sitio chamado o Buraco, donde tem o Paranã as suas cabeceiras,
buscando pelo mesmo rumo as do Rio Capitinga, donde se finaliza essa demarcaçãm, pertencendo ao Julgado do
Cavalcante, tudo o que para dentro delle se ensérra”
123
.
121
AHU. Goiás. Doc.1815, 1775. Carta de José de Almeida e Vasconcellos ao Marquês de Pombal. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia:
IPEHBC.
122
AHU. Goiás. Doc.1815, 1775. Idem.
123
AHU. Goiás. Doc. 1815, 1775. Idem.
97
O documento indica também as fronteiras dos julgados de São
Félix, Arraias, Natividade, Traíras e Conceição, segundo as próprias
anotações do governador e de informações de alguns práticos, para
que, provisoriamente, se fizesse uma primeira proposta de disposi-
ção dessas áreas jurídicas. Esse primeiro esboço foi levado ao ouvidor
para uma avaliação inicial e, se necessários, seriam realizados ajustes
de determinados pontos, ampliando ou reduzindo os distritos de cada
um dos julgados, conforme a comodidade dos moradores, o que
correspondia à posição dos sítios e às suas distâncias em relação à
cabeça de julgado.
Posteriormente, e na presença das várias comissões de juízes e
ouvidores, o governador observou atentamente as delimitações pro-
postas, os rios que as cortavam e as fazendas habitadas, objetivando
obter dados corretos para a elaboração de uma carta ou Plano
Geographico da Capitania ou simplesmente Mapa dos Julgados (Fig. 17),
como o executado em 1778 pelo seu companheiro, o engenheiro
sargento-mor Thomaz de Souza.
Fig. 16 – Mapa da Capitania de Goiás,
elaborado pelo engenheiro militar
Tomás de Souza.
Fonte: Origenal – Arquivo da Casa da
Ínsua – Portugal.
98
Fig. 17 – Mapa dos Julgados da
Capitania de Goiás, feito por Tomás de
Souza a mando do Governador Barão
de Mossâmedes.
Fonte: AHE-RJ.
Após a elaboração dessa carta e por ato de 20 de abril de 1778,
José de Almeida e Tomás de Souza completaram o trabalho preven-
do a expansão dos limites de Vila Boa. “Este grandiosíssimo districto, que
povoado podia compreender um reino opulento. [...]”
124
; de Crixás, que “[...]
se demarca pelo Rio das Tesouras [...]”; de Pilar, “[...] que sendo muito peque-
no na sua extensão, supre esta falta o ser muito povoado”; de Traíras, que
seguem os “[...] mesmos pontos de divisão que se acham referidos para o Con-
selho de Pilar [...]”; de São Félix, que principia da parte do leste das cabecei-
ras do Capitinga, e, seguindo o Tocantins a baixo a buscar a sua barra no
Maranhão [...]”
125
; de Conceição, que “é o districto mais despovoado, atenta
a sua extensão [...]; de Natividade, “[...] onde todo o terreno desta Capitania
99
de Goiás que fica ao norte do julgado da Conceição [...]”
126
lhe pertence; de Santa Luzia, que se inicia “[...]
na estrada geral e na ponte dos Macacos [...]”
127
; de Meia Ponte, que é um dos “[...] quatros mais centrais da
Capitania [...]”
128
; de Santa Cruz, onde uma das linhas de divisa se fecha “[...] no ribeirão dos Bois, no
ponto onde se divide o julgado de Vila Boa e de Meia Ponte, cortando em linha a estrada de São Paulo, onde esta
passa o Piracanjuba
129
, e, por último, do povoado do Rio das Velhas, que, apesar de ser bastante
pequeno, o governador achou por bem ali marcar o seu julgado, por se encontrar localizado a
grande distância dos demais, facilitando, dessa forma, o controle do ouro que ali se explorava.
Paralelamente a esse trabalho de reorganização interna da Capitania Goiás, cujos instru-
mentos fundamentais foram os mapas, José de Almeida procurou dar continuidade às ações que
o ajudariam também a alcançar o controle do território. Incentivou, para tanto, a exploração
e ocupação das áreas desconhecidas do norte e sul do território, com expedições que partiram de
Vila Boa, Meia Ponte e da margem ocidental do Tocantins. Apesar da importância de todas elas,
uma dessas expedições se destacou por ter alcançado a Ilha do Bananal, e cujo objetivo era a
construção do aldeamento de Nova Beira e de uma futura base para a conexão entre os diversos
arraiais goianos e a importante região do Pará, com propósitos comerciais. Essa ação revela,
portanto, um passo em direção à moderna urbanização de Goiás, caracterizada nessa segunda
metade do século XVIII pela possibilidade da formação de uma rede de pequenos núcleos
populacionais que se organizavam administrativamente segundo os esforços de diversos gover-
nadores e técnicos. Percebe-se, portanto, que houve uma continuidade das ações iniciadas no
alvorecer do Setecentos, mais precisamente no momento em que o sagaz Alexandre de Gusmão
foi o secretário oficial do Rei D. João V.
Essa é a época em que se pode observar as efetivas movimentações que se responsabilizaram
pelo início da formação do território goiano, subsidiadas por engenheiros militares e geógrafos.
A eles coube a realização de importantes levantamentos topográficos e cartográficos, que, além das
questões relativas a marcações de fronteiras, destinavam-se também à busca de possibilidades de
comunicação dessa região com o litoral, à implementação da urbanização de Goiás e, por fim, à sua
inserção numa política de ocupação ligada diretamente ao controle metropolitano, cujo maior ins-
trumento de garantia foram os avanços científicos da cartografia, manifestados nas inúmeras ações
dos funcionários da Coroa que circularam pela colônia.
124
Demarcação dos limites territoriais dos julgados de Goiás. In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op. Cit., p. 216-219.
125
Demarcação dos limites territoriais dos julgados de Goiás. Op. Cit., p. 216-219.
126
Demarcação dos limites territoriais dos julgados de Goiás. Idem, p.216-219.
127
Demarcação dos limites territoriais dos julgados de Goiás. Idem, Ibidem.
128
Demarcação dos limites territoriais dos julgados de Goiás. Idem, Ibidem.
129
Demarcação dos limites territoriais dos julgados de Goiás.Idem, Ibidem.
100
Fig. 18 – Detalhe do mapa do Rio Tocantins da época de José de Almeida.
Fonte: AHE. R. Janeiro
101
Fig. 19 – Mapa da Capitania de Goyaz e de todo o sertão por onde passa o Rio Maranhão ou Tucãtins.
Fonte: BNRJ, códice 1033413, dimensões: 4673x 3287.
CAPÍTULO III
A APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO
105
s mecanismos de apropriação do território colonial de Goiás não se resumem apenas aos
registros cartográficos e às inúmeras expedições que se formaram para a sua exploração.O
Outras estratégias adotadas pela Coroa portuguesa também colaboraram com esse processo, tais
como a abertura de caminhos terrestres e fluviais, a partilha das terras sob os sistemas sesmarial e de
datas minerais, a fundação de uma vila e o incentivo à agropecuária, atividades que se desenvolve-
ram paralelamente à busca do ouro. Esse conjunto de ações foram essenciais para o povoamento e
a fixação do colono nessa região mineradora.
3.1 Os caminhos e os rios
À medida que a colonização portuguesa avançou rumo à região central do Brasil, tornou-se
necessário criar novas possibilidades de deslocamentos, como a abertura de caminhos reais, rotas
terrestres e fluviais, e trilhas. Por essa razão, pode-se afirmar que o processo de formação de Goiás,
igualmente ao ocorrido nas demais capitanias da colônia, vincula-se diretamente a esses importan-
tes acessos
1
, pois foram eles que permitiram descortinar cada novo ponto da região e anteceder a
sua efetiva posse, já que se constituíam nas grandes “conexões entre o conhecido e o desconhecido”. Elemen-
tos essenciais da estrutura básica do território, os caminhos viabilizavam o encontro de novos luga-
res; permitiam a criação de povoamentos, pousos e fazendas, onde se faziam “[...] cazas e plantarem
[vam] rossas para terem mantimentos, e os pastos necessários para os gados e cavaloz e tudo maes que elles julgarem
lhe conveniente [...]”
2
, e articulavam os diversos núcleos urbanos existentes, organizando-os em ter-
mos de espaços sociais, físicos e políticos.
No âmbito brasileiro, os caminhos foram os elos entre o litoral e o centro do continente, e entre
o sul e o nordeste, ultrapassando, neste último caso, os limites regionais e alcançando uma significância
territorial bastante ampla, como se observa na defesa da Colônia de Sacramento feita por Alexandre
de Gusmão. De acordo com o secretário do Rei, a posse do território goiano dependia das conexões
com outros pólos portugueses, ou de um caminho que o ligasse a outras vilas brasileiras. Para ele,
106
território conquistado correspondia a “[...] uma extensão de terras e de campos onde se exerce [exercia] jurisdi-
ção”
3
, uma ligação entre os vários núcleos criados, e não apenas as áreas nas quais se circunscreviam.
Não apenas os grandes interesses territoriais determinaram a abertura de caminhos: também
contribuíram os administrativos, econômicos e comerciais, como é o caso da ligação entre Vila Boa e
Crixás (1750), feita por Tosi Colombina pelo preço de 1.400 oitavas de ouro
4
. Um outro exemplo é a
proposta apresentada por esse mesmo engenheiro ao governador da Capitania de Goiás para abrir,
[...] huns novos caminhos mais breves, e carros de Villa Boa the a cidade de São Paulo, e Villa de Santos,
como também da dita Villa Boa the a Villa do Cuyabá com varias
condições conducentes ao
augmento da Real Fazenda de V. Magestade, e do comércio
pedindo somente humas sesmarias,
e hum privilígio por tempo de dez annos para que não pudesse pessoa alguma servise do dito caminho com
nenhuma [ilegível] de carruagens de rodas mais que esta Companhia [...]
5
.
Apesar de Tosi Colombina considerar que esse empreendimento pudesse ser uma marca para
a afirmação e consolidação do território, ele não foi executado. Além das dificuldades dos acertos
dos termos e das mercês entre a Coroa e a companhia de Colombina, muitos de seus companheiros,
ao longo das negociações, consideraram a empreitada de grandes proporções e riscos, o que gerou
discussões entre eles até pelo menos o ano de 1753.
Mas mesmo diante da impossibilidade de realizar tal sonho, Tosi Colombina dirá que “nunca
lhe poderão tirar a glória de ter proposto, ideado, e posto em boa ordem tal projecto, como Américo Vespucio ainda que
deo o nome a América, não pode tirar a gloria a Cristóvão Colombo de ter sido o descobridor dela”
6
. O fato de não
construir a grandiosa via não obscureceu, contudo, a importante função geográfica do território de
Goiás, estratégico, como pondera Jaime Cortesão, para “abrigar uma grande encruzilhada de caminhos,
como hinterland econômico do Pará e escala demográfica, comercial e estratégica de Mato Grosso”
7
.
1
No Brasil, uma melhor organização e formação de importantes caminhos inicia-se no século XVII, quando várias expedições exploratórias
saíram de São Paulo de Piratininga em busca do ambicionado metal, e se dirigiram ao sertão mineiro, goiano e mato-grossense. Entre elas, as
que foram chefiadas por Lourenço Castanho, em 1688, que abriu caminho na região dos Cataguases; Luís Castanho de Almeida, em 1671, e,
Manuel de Campos Bicudo, em 1675, no norte de Mato Grosso; e Bartolomeu Bueno da Silva, o pai, em 1676, em Goiás. Nesse mesmo século,
outras expedições avançaram ainda mais para o interior e formaram vias que foram do Paraguai ao Andes e da Amazônia ao Peru. Dentre esse
conjunto de vias, destacam-se aquelas cujas bandeiras partiram do Vale do Paraíba e da Serra da Mantiqueira em direção à região das minas,
formando os dois importantes caminhos do norte: um que se iniciava em Mogi-Mirim e alcançava as terras goianas, e o outro que partia da
região de Atibaia e Bragança e chegava ao sul de Minas. Complementando ainda esse conjunto de vias terrestres encontrava-se o caminho
fluvial do Tietê, que, ao levar os bandeirantes ao interior do Mato Grosso, ampliava cada vez mais a oeste as terras da América lusitana.
2
AHU. Goiás, Doc. 12, 1734. Copea da derrota que fiz pello Rio dosTocantins abayxo athe Bellem do Gram Pará. Goiânia: IPEHBC.
3
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. O tratado de Madrid. V. II. Brasília: Edição Fac-similar, Senado Federal, 2001, p. 439.
4
SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão na capitania de Goiás. Coleção Documentos Goianos. Goiânia: CEGRAF, UFG, 1992, p. 105.
5
AHU. Mato Grosso, Doc 64. Requerimento de Francisco Tosi Colombina pedindo autorização para construir uma estrada ligando Santos e São
Paulo até Goiás e Cuiabá. Goiânia: IPHBC. [grifos nossos]
6
AHU. Mato Grosso. Doc 64. Requerimento de Francisco Tosi Colombina pedindo autorização para construir uma estrada ligando Santos e São
Paulo até Goiás e Cuiabá. Goiânia: IPHBC
7
Para Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão entendia ser essa a condição de Goiás, que, por estar localizado no centro, deveria ser responsável
pelos pontos de convergências dos diversos caminhos criados. CORTESÃO, Jaime Zuzarte. O tratado de Madrid. V. II. Brasília: Edição Fac-
similar, Senado Federal, 2001, p. 439.
107
Fatos dessa ordem justificam o grande cuidado da metrópole com a abertura de caminhos e com o
estabelecimento de postos estratégicos de controle, fossem em forma de registros ou de presídios, destina-
dos à fiscalização de mercadorias e ao acesso ao interior dos territórios. O caminho, e aqui se consideram
também os fluviais, foi o meio de alcançar o espaço desejado, para apropriar-se dele e também defendê-lo.
Na história da conquista de Goiás, são recorrentes os eventos que comprovam essa intencionalidade, tais
como as freqüentes disputas para a aquisição de terras ao longo das estradas e os constantes esforços do
Estado para resguardá-las dos ataques dos gentios bravios que impediam a passagem daqueles que intenta-
vam percorrê-la e alcançar a região das minas. Portugal desenvolvia, dessa forma, estratégias de controle
para garantir a posse do território e, sobretudo, a segurança dos arraiais auríferos.
Ao longo do século XVIII, a ocupação da Capitania passou por duas diferentes formas de
entendimento e apreensão dos caminhos. Estes, à época em que a Capitania havia adquirido a sua
autonomia, não eram os mesmos dos desbravadores, quando as viagens eram realizadas em jorna-
das, marchando “à paulista”
8
. Em A urbanização do Mato Grosso no século XVIII, Araújo faz uma clara
distinção entre ambos os processos de apreensão dos espaços dessas rotas:
Num primeiro momento a idéia do caminho vinculava-se mais ao procedimento inaugural do desbravador.
Aquele rompia o espaço apreendendo a paisagem com o corpo e a memória e narrava as suas façanhas
descrevendo a natureza com adjetivos e interjeições. Na tradição das narrativas de viagens, herdadas desde os
primeiros tempos da Expansão, os caminhos eram descritos tomando os elementos da natureza para identificar
marcas na paisagem e indicar os percursos seguidos [...]. Mas, gradativamente, a descrição dos caminhos
deixará de ser simples narrativa das viagens ganhando cada vez mais aspectos físicos, estabelecendo balizas de
reconhecimento e dimensionamento de distâncias, chegando até à elaboração de mapas e desenhos que, embora
toscos, são os primeiros documentos de identificação territorial [...]
9
.
Em Goiás, no século XVIII, essa idéia inaugural do território pode ser observada com a
expedição de 1722 de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera
10
. Foi o percurso desenvolvido
por ele que, ao recuperar as antigas e imprecisas trilhas indígenas, consolidou a primeira e oficial
Estrada do Anhanguera (Estrada de Goiás ou Picada de Goiás), acesso efetivo da região. Com início em
São Paulo, a estrada passava pelo Triângulo Mineiro, em Minas Gerais, atravessava o Rio Grande e
penetrava o território goiano. De acordo com o relato de Silva Braga, a expedição de Bartolomeu,
depois de pisar em Goiás, foi rumo ao Rio Maranhão, seguiu um pouco mais em direção ao norte e
se dividiu em dois grupos. Um deles fez o percurso daquele que seria o trajeto de chegada às minas
e à futura capital Vila Boa, e o outro, dando continuidade à sua marcha em direção ao norte, chega-
ria ao Pará. Formavam-se, então, a partir daí, dois caminhos mais ou menos perpendiculares, que
permitiram a ulterior articulação da costa brasileira com o oeste e o norte da Capitania.
8
Marchar à paulista é, segundo Furtado, acordar bem cedo, caminhar até por volta do meio-dia, quando muito até uma ou duas horas da tarde,
para arranchar e descansar. FURTADO, Júnia Ferreira. Transitar na Estrada Real: o cotidiano dos caminhos. In: COSTA, Gilberto Antônio
(org.). Os caminhos do ouro e a estrada Real. Belo Horizonte: Editora UFMG/ Lisboa: Kapa Editorial Lisboa, 2005.
9
ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e método. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2000, p. 68.
10
A historiografia de Goiás apresenta outras versões desse itinerário, baseadas em outros relatos. Mas, ao que se observa, o documento de maior
importância é o de Silva Braga.
108
Fig. 20 – Demarcação do termo da
Vila de Paracatu do Príncipe, com a
indicação de caminhos que chegavam à
Capitania de Goiás, 1800.
Fonte: COSTA, Antônio Gilberto (org.).
Os caminhos do ouro e a Estrada Real. Belo
Horizonte: UFMG; Lisboa: Kapa
Editorial, 2005, p. 104.
Mas, nessa época inicial, os caminhos eram apenas simples rotas
que desnudavam um território inóspito, que suscitaram narrativas
que privilegiavam a natureza. Ele era coberto “[...] de campo, com alguns
capões de mato, bons pastos e bastante aguada”
11
, e de novidades exóticas
como os olhos d’água, os “verdadeiros tesouros ocultos [ que] existiram
durante muito tempo no campo dos Parecis, que atravessava a estrada para Vila
Boa de Goiás. Num pau de cinco palmos de espessura e no ponto exato onde
começava a ramar, havia um buraco sempre cheio d’água. Ali por meio de canu-
dos de taquara, costumava refrescar-se os sequiosos[...]”
12
.
Semelhantes a essas ricas fontes naturais, todos os demais lu-
gares se mostravam como espaços inéditos, abertos à conquista, e
onde se encontravam as “[...] grandes chapadas com falta de todo o necessá-
rio, sem matos nem mantimentos, só sim com bastantes córregos [...]”
13
. Por-
11
Roteiro do Anhangüera, segundo Silva Braga. In: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no
Planalto Central. Brasília: Verano, 2000, p. 72-76.
12
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 37.
13
Roteiro do Anhangüera, segundo Silva Braga. In: BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 72-76.
109
tanto, a natureza era avaliada de acordo com os aspectos práticos, ou seja, pelo que oferecia de
alimentos e possibilidades de obtê-los por intermédio do cultivo, constituindo-se, dessa maneira,
num esquema técnico de ação econômica, típico do primeiro contato com novos espaços
14
.
Posteriormente, expedições de caráter mais exploratório assumiram em seus roteiros caracte-
rísticas narrativas, mas acrescidas de pequenas alterações, como as descrições dos aspectos físicos
das regiões e a identificação de marcos de reconhecimento, como rios, cachoeiras e até mesmo
fazendas de gado iguais às do sertão das Terras Novas, lugares em que, desde o início do século
XVIII, já havia “caza de sobrado ainda por acabar, e hum rossado feito de pouco tempo, e nelle hú curral principi-
ado junto da caza
15
. O dimensionamento das distâncias, calculado a partir dos dias gastos pelos expe-
dicionários, fizeram parte dessas gradativas e contínuas alterações, apontando para um maior domínio
do território e, conseqüentemente, mais avanços contínuos do pensamento espacial. Araújo
16
adver-
te que esse é o período em que se passava das leituras mais “descritivas” para outras que objetivavam
uma identificação “locativa”,
[...] ou seja, elegem-se pontos na paisagem que funcionam já não apenas como referências para a identificação
dos percursos (no caminho de A para B passa-se pelo morro X que tem as seguintes características), mas são
também balizas genéricas do próprio espaço (entre o morro X e o morro Y corre o rio Z, que mais ao norte
atravessa a vila A )
17
.
Tais como as demais descrições de viagens feitas nas diferentes regiões da colônia, as de
Goiás evidenciam as mesmas características de assimilação do espaço pelas informações adquiridas
com as sucessivas incursões. Assim como em outras viagens, na derrota feita pelo Rio Tocantins a
o Pará
18
, no ano de 1734, aparecem as relações estabelecidas entre a cabeceira do Rio das Almas e o
povoado de Meia Ponte, entre os marcos geográficos e a posição dos arraiais existentes, caracteri-
zando um maior conhecimento do território. Passava-se das simples narrativas da paisagem
dos caminhos do sertão, que basicamente se preocupavam com a descrição dos cursos d’água, dos
morros e das vegetações, para uma apreensão mais conceitual e geométrica do espaço goiano, revelada
em desenho e na elaboração de roteiros e mapas que, progressivamente, ficavam mais sofisticados e
denotavam diferentes saberes em relação aos desbravadores. São os casos da Jornada de 1766 do
militar e ajudante de ordens do governo Thomaz de Souza, que saiu de “Villa Boa, para o Cuyabá,
marcha [marchando] perto de 150 legoas, caminha [caminhando] sempre ao Este, e ainda que as voltas do caminho
se faz [fez] marchar em vários rumos, não faz [fez] perder o geral do paralelo de 16 graus e 20 minutos”
19
, do
14
ARAIA CHAVES, Maria Adelaide Godinho. apud: ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e
método. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2000, p. 68.
15
AHU. Goiás, Doc. 12, 1734. Copea da derrota que fiz pello Rio do Tocantins abayxo athe Bellem do Gram Pará. Goiânia: IPEHBC.
16
ARAÚJO, Renata Malcher de. Tese de doutoramento. Op. Cit., p. 68
17
ARAÚJO, Renata Malcher de. Tese de doutoramento. Idem. p. 69.
18
AHU. Goiás. Doc. 12, 1734. Copea da derrota que fiz pello Rio do Tocantins abayxo athe Bellem do Gram Pará. Goiânia: IPEHBC.
19
Arquivo da Biblioteca Nacional. C.E.H.B, n. 972, códice: N.9. Jornada que fez o Ajudante de Ordens do Governo de Goyaz Thomaz de Souza
de Vila Boa thé a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição no anno de 1766.
110
Roteiro para os Martírios, quando indica a distância em léguas, graus e altura de Vila Boa às Campa-
nhas do Rio Turvo
20
, e dos mapas de Tosi Colombina e do próprio Thomaz de Souza. No entanto,
apesar de serem formas distintas de entender o espaço, em ambos os casos o caminho foi o meio de
apropriação do território da Capitania, e sobre o qual a Coroa exerceu seu poder e reclamou o
direito de posse, com o estabelecimento de trajetos reais, construção de registros e, a partir de uma
lei de 1750, com a criação de casas de fundição “em cada huma das cabeças das Comarcas das Minas do
Brazil [...]”
21
, erguidas por conta da Real Fazenda.
O caminho do Anhangüera (Fig.21) foi o primeiro a ser definido como um eixo de controle
da Coroa. Logo após a descoberta do ouro e da correspondência de Rodrigo César de Menezes, de
7 de maio de 1726, comunicando ao Rei a existência do rico metal, o governador da Capitania
de São Paulo, Conde de Sarzedas, o oficializou como a única opção para a circulação de pessoas e
mercadorias conforme a Carta Régia de 1730.
22
Para assegurar tal controle, entre 1732 a 1734, o
Conde de Sarzedas “expediu um bando, um alvará em forma de Lei, e um regulamento para a casa de Registro
do caminho dos Goyazes”
23
. Todas as vias de acesso ao interior da Capitania deveriam ter como ponto
de intersecção o Registro de Jaquary, localizado próximo à atual cidade de Campinas, em São Pau-
lo
24
. Apesar das providências da metrópole, a abertura efetiva do Caminho dos Goyazes só se reali-
zou em 1733, com uma rota que partia de São Paulo, alcançava Jundiaí, Mogi do Campo
25
, e dava
acesso às aldeias do Rio das Pedras, de Pissarão, do Rio das Velhas e do Lanhozo, passando ainda
por Santa Cruz, Meia Ponte e Vila Boa
26
.
A crescente demanda pelo ouro da região forçou, evidentemente, a criação de novos cami-
nhos, levando Portugal, em 1736, a se decidir pela legalização do Picadão
27
, atalho que se estendia
do antigo caminho do Anhangüera, ligando a Capitania de Goiás à de São Paulo, passando por
20
AHU. Goiás. Doc. 8, posterior a 1734. Roteiro de viagem de José da Costa Diogo e João Barbosa, sobre a Derrota do Rio São Francisco pelo
Rio Urucuya até às Minas de Goiás. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
21
AHU. Goiás. Doc. 499, 1752. Carta [do governador e capitão-general de Goiás, conde dos Arcos], sobre a lei determinando que cada sede de
comarca das minas do Brasil construa à custa da Real Fazenda uma casa de fundição, e remetendo a avaliação feita pelos pedreiros e carpintei-
ros para a criação de uma fabrica de fundição em Goiás. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
22
In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da província de Goiás. Goiânia: Governo de Goiás, 1979, p. 52-58. Termo da junta que se
celebrou nesta cidade de 25 de abril de 1745, sobre a forma que se devia observar, para conservação, aumento e estabilidade das minas.
23
In: SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão na capitania de Goiás. Coleção Documentos goianos. Goiânia: CEGRAF, UFG, 1992, p. 324.
Registro de um bando sobre não haver mais que hum caminho para as Minas dos Guayaz, e se conficar tudo o que for por outra parte.
24
Segundo Salles, Jaguary localizava-se logo depois de Campinas, provavelmente nas adjacências de Americana. SALLES, Gilka V. Ferreira. Op.
Cit., p. 104.
25
TAUNAY, Affonso de E. Os primeiros anos de Goiás. São Paulo, 1950, p. 287.
26
A despeito de todo esse esforço para controlar o acesso a Goiás, a crescente procura de ouro nessa região forçou a busca de outros caminhos
e picadas proibidos que pudessem dar entrada ao território.
27
De acordo com Marília Maria Brasileiro Teixeira do Vale, esse caminho vinha da comarca do Rio das Mortes, região sul da Capitania de
Minas Gerais. Em 1736, foi solicitado ao governo de Minas autorização para abertura de um atalho que se estenderia do Caminho Velho,
que ligava a Capitania de São Paulo a Ibirituna (próximo a São João del Rei) até Pitangui. No ano seguinte, esse atalho foi prolongado até
Vila Boa de Goiás. Partia de Pitangui em “linha mais ou menos reta” até próximo da atual Araxá, voltando-se então para o Norte, até
alcançar Paracatu e, de lá, seguia para Goiás. VALE, Marília Maria Brasileiro Teixeira. Arquitetura religiosa do século XIX no antigo sertão da
Farinha Podre. Tese de doutoramento. São Paulo: FAU-USP, 1995.
111
Fig. 22 – As primeiras vias de
penetração na Capitania de Goiás.
Fonte: VALE, Marília Maria Brasileiro
Teixeira. Arquitetura religiosa do século XIX
no antigo Sertão da Farinha Podre. Tese de
doutoramento. São Paulo: FAU-USP,
1995, p. 8.
Fig. 21 – Caminho do Anhangüera.
Fonte: ROCHA, Leandro (org.). Atlas
Histórico: Goiás pré-colonial e colonial.
Goiânia: Editora CECAB, 2001, p. 51.
112
Fig. 23 – Caminho Velho que passava na região do Triângulo Mineiro, antiga Farinha Podre.
Fonte: Mappa da Capitania de São Paulo, e seu sertão em que servem os descobertos, que lhe forão tomados para Minas Geraes, como também
o caminho para os Goiazes, com todos os seus pouzos, e passagem, delineado por Francisco Tosi Colombina. BNRJ, códice 1033415.
113
Paracatu, em Minas Gerais
28
. Em função da mesma demanda foram feitos a estrada de Goiás até as
minas de Cuiabá, “penetrando aquele sertão para mais se ficarem comunicando”
29
; o caminho de Vila Boa ao
arraial de Pontal, interligando os povoados de Barra, Anta, Santa Rita, Tezouras, Crixás, Goarinos,
Pilar, Lavrinhas, Água Quente, Cocal, Traíras, São José do Tocantins, Cachoeira, Santa Rita, Moquém,
São Félix, Carmo, Arraial da Chapada, Arraial de São Luiz, Chapada da Natividade, Carmo da
Natividade e Pontal; e a estrada que dava acesso à Bahia, saindo de Vila Boa e passando por Meia
Ponte, “[...] onde havia muito calor, boa água e muito mau caminho”
30
, cortando fazendas, chapadas e sítios
iguais ao de São João das Três Barras, onde é “[...] tão frio que no mês de junho, que é a maior forma de
inverno chega a cair neve. Tem muitas boas frutas principalmente de espinho e um nascimento de água excelente
[...]”
31
, e ao da Ribeira do Paranã, “[...] o qual é um pontal muito doentio por entre as Serras das Mamoeiras,
e a do Feijoal cortada de muitas lagoas e Corgos, que em muito tempo de águas inundam todo este País”
32
. Por fim,
atravessava o Sertão do Rio das Contas até a Vila de Carinhanha, na confluência com o São Francis-
co, chegando à Villa de Caxoeira e a Salvador
33
.
Com esse esquema de vias conectadas
34
, implementava-se a estrutura suporte da ação coloni-
zadora metropolitana e reforçava-se a importante e estratégica posição de Goiás como um território
responsável pela comunicação entre o litoral e as regiões Oeste e Norte da colônia, consideradas, à
época, lugares de soberania ainda não definida e de grande interesse da Corte portuguesa.
A multiplicação dos caminhos reais e das rotas irregulares, por onde circulava uma grande
quantidade de produtos contrabandeados, também influenciou o governo português, a partir de
1736, a instalar mais registros e contagens
35
, onde ocorria a troca de moedas e o controle de impos-
tos, número de escravos, gados, cargas de mantimentos e de pessoas que entravam e saíam dos
28
No Mapa da divisa entre as capitanias de Goiás e Minas Gerais encontram se representados os caminhos entre Vila Rica e Vila Boa de Goiás,
passando por Paracatu. COSTA, Gilberto Antônio (org.). Os caminhos do ouro e a Estrada Real. Belo Horizonte: UFMG; Lisboa: Kapa Editorial,
2005, p. 101.
29
In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op. Cit., p. 52-58. Termo da junta que se celebrou nesta cidade de 25 de abril de 1745, sobre a
forma que se devia observar, para conservação, aumento e estabilidade das minas.
30
Jornada a Goiás de Luís da Cunha Menezes em 1778. In: BERTRAN, Paulo (org.). Op. Cit., p. 69-75.
31
Idem, Ibidem.
32
Idem, Ibidem.
33
De acordo com Costa, a estrada que se iniciava na Bahia e alcançava Goiás encontra-se representada em um mapa do início da
segunda metade do século XVIII, intitulado Mapa do território da Capitania da Bahia, compreendido entre o Rio são Francisco, Rio Verde
Grande e o riacho chamado Gavião. COSTA, Antônio Gilberto. Os caminhos do ouro e a estrada real para as minas. In: COSTA, Gilberto
Antônio (org.). Op. Cit., p. 76.
34
Picadas e pontes também foram construídas para as ligações internas entre os principais arraiais de Goiás, tais como os de Vila Boa – Meia
Ponte; Vila Boa – Pilar; Vila Boa – Santa Cruz; Água Quente – São José do Tocantins e São Félix – Natividade; Natividade – Descoberta do
Carmo, Meia Ponte – Santa Luzia.
35
A rigorosa centralização inicial do controle da minas goianas fez com que em 15 de março de 1734 o Conde de Sarzedas escrevesse à Coroa
explicando a importância de se mudar o Registro das Entradas de São Paulo para as margens do Rio Corumbá, em Goiás. O governador
justificava seu pedido alegando as grandes dificuldades e a distância do Rio Jaguary a Goiás. No entanto, apesar de seu esforço, a Coroa não
atendeu ao pedido, informando ser importante que o controle do comércio se mantivesse na Capitania de São Paulo. Posteriormente, em face
dos contínuos obstáculos ao desenvolvimento do comércio, parte das reivindicações foi atendida “com o arrendamento do contrato das Entradas para
as Minas.” Seguia esse contrato, o assentamento de vários registros, a partir de 1736. In: SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão na
capitania de Goiás. Coleção Documentos Goianos. Goiânia: CEGRAF, UFG, 1992, p. 158.
114
povoados
36
. “Guardados por destacamentos militares, que tinham a função
de fazer o giro dos territórios próximos em busca de contrabandistas”
37
, fo-
ram instalados em posições estratégicas do território goiano
38
: três
deles ao longo da estrada do Anhangüera, na região conhecida por
Sertão da Farinha Podre, um outro no Caminho Novo dos Goyases
39
e os demais nas proximidades da Chapada das Mangabeiras e da
Serra Geral, na fronteira leste da Capitania de Goiás e as de Minas
Gerais, Bahia, Piauí e Maranhão, de onde vinham homens para a
cata do ouro e fazendeiros em busca de terras para a criação de
gado. Mais ao sul de Goiás, localizavam-se os registros do Desem-
boque, Rio das Velhas, São Marcos, Arrependidos, Lagoa Feia, Santa
Maria e Rio das Éguas
40
. Às margens do Rio Araguaia, no extremo
oeste da região, na fronteira com o Mato Grosso, o Registro das
Salinas, de 1797. Na região norte, entre outros, ficavam os registros
de São Domingos, Taguatinga, Duro, Boa Vista e São João das Duas
Barras do Araguaia
41
.
A construção adequada desses postos, além de “[...] registrar
tudo quanto sahir, e entrar para Minas [...]
42
, era também uma forma de
fixar o desenho do território, de modo que ele pudesse ficar todo
“[...] fechada [fechado] pella Serra e rondas que a seguem, cortando todas as
estradas thé Paracatu, cujo arraial se acha da parte de dentro [...]”
43
. Não
bastasse isso, asseguraria ainda o povoamento de áreas ermas, quan-
do os governadores, cientes dos planos de ocupação da Coroa, ori-
entavam as pessoas a
Fig. 24 – Representação dos Caminhos
e do Registro de São Marcos nos
documentos: “Mostrace nesse Mapa o
Julgado das Cabeceiras do Rio das
Velhas [Rio Araguari] e parte da
Capitania de Minas Geraes com a
devida de ambas as capitanias”, por
Joze Joaquim da Rocha, 1780.
Fonte: COSTA, Antônio Gilberto.
(org.). Os caminhos do ouro e a Estrada
Real. Belo Horizonte: UFMG; Lisboa:
Kapa Editorial, 2005, p. 105.
115
[...] fassam [fazerem] cazas, ou ranchos com sobredias providências, formando rua direyta, ou outros espassos
regulares q’ paresam próprios; para o q’ se uzara d’alinhamnetos, e com piquetes; e seria sem duvida muito
proveitso, q’ em lugar de paus a pique, quizesem antes usar o methodo dos adobos q’ duram imcomparavelmen.e
mays e fazem muy pouca difirença na despeza.
44
Essa foi a condição do Registro Novo da Insua
45
, construído entre os rios Araguaia e das Mor-
tes, “sobre a estrada que vay para Goyáz, (1774)”
46
, a mando de Luís Albuquerque de Mello Pereira e
Cáceres, governador de Mato Grosso. Para o seu soerguimento, indicou alguns pontos da estrada que
pudessem permitir a ocupação de “alguns dos Sítios, ou Rios que discorrem entre o Taquaral piqueno, e as Lages
[...] ou [...] um lugar que não seja ao mesmo tempo pantanozo, mas antes ao contrario povoado d’alguma altura, ou
piquenos montes, que tenha precisamente perto Ribeirões, e sendo possível com boa pesca; e da mesma maneira os
competentes matos para fazer Rossa, contendo além disto a necessária capacidade para huma fazenda de gado [...]
47
.
36
REGISTRO de hum Regimento que se fez para a Casa do Registro do Caminho das Minas dos Goyases que se mandou no caminho de
Tagoary. In: SALLES, Gilka V. Ferreira. Op. Cit., p. 158.
37
FURTADO, Júnia Ferreira. Transitar na Estrada Real: o cotidiano dos caminhos. In: COSTA, Gilberto Antônio (org.). Op. Cit., p. 202.
38
De acordo com a Carta Régia de 29 de fevereiro de 1733, havia uma determinação para a abertura de registros na região, visando as freqüentes
irregularidades. Mas, de acordo com Salles, até 1736 só havia um situado às margens do Rio Jaguary, na Capitania de São Paulo. Segundo ainda a mesma
autora, importa lembrar também que, “[...] em 1735, Gualter Ferreira, a mando das autoridades de Minas Gerais, tentou asentar um Registro próximo à minas de
Meia Ponte , com base naquela Carta Régia, tendo em vista ressentir-se a área de um controle fiscal sobre as jazidas[...]”. SALLES, Gilka V. Ferreira. Op. Cit., p. 158.
39
Na estrada do Anhangüera foram instalados os seguintes Registros: um à margem do Rio Grande, chamado Porto Espinha ou Anhangüera;
outro às margens do Rio das Velhas (atual Rio Araguari), chamado Porto do Registro, e outro às margens do Rio Paranaíba, Porto Mau de Pau,
chamado anteriormente Porto Velho. No caminho Novo dos Goyases, vindo do sul de Minas, foi criado, em 1776, o Registro de São Pedro de
Alcântara, onde mais tarde surgiria a atual cidade de Ibiá.
40
O mapa do Certão entre a Serra da Marcela e as nascentes do S. Francisco registra os caminhos da região delimitada pela Serra da Marcela, ao norte; a
Serra da Canastra e as divisas de Goiás a oeste. Mostra também o traçado da Estrada que se pode fazer mais breve em direção a Goiás, cortando a Serra
Canastra. COSTA, Gilberto Antônio (org.). Op. Cit., p. 104.
41
AHU. Goiás Doc. 1756, 1774. Ofício do [governador e capitão-general de Goiás, Barão de Mossâmedes], José de Almeida Vasconcelos, ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre a forma imprópria com que os registros foram estabelecidos
em Goiás, provocando extravios em prejuízo da Fazenda Real. Goiânia: IPEHBC.
42
AHU. Mato Grosso. Doc. 1056, 1774. Cópia das instruções com q’ o Gov.or e Capitão General da capitania [...] mandou passar as vezinhanças
do Rio Grande ao Fiel Antônio Lopes da Silva, afim de erigir e criar de novo hum Registro na paragem indicada. Goiânia: IPEHBC
43
AHU. Mato Grosso. Doc. 1056, 1774. Idem.
44
AHU. Mato Grosso. Doc. 1056, 1774. Idem.
45
Sobre este assunto ver: ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: Discurso e método. Dissertação de
Doutoramento em História da Arte. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2000.
46
AHU. Mato Grosso. Doc. 1056, 4 de janeiro de 1774. Cópia das instruções com q’ o Gov.or e Capitão General da capitania [...] mandou passar as
vezinhanças do Rio Grande ao Fiel Antônio Lopes da Silva, afim de erigir e criar de novo hum Registro na paragem indicada. Goiânia: IPEHBC
47
No que diz respeito aos edifícios, as ordens foram mais precisas, indicando que “o primeiro principio que deve ter o rancho mencionado, consistirá
logo em huma caza ou Atalaya de Sobrado, ou Giráu quadrada, e q’ não seja grande, e q ‘tenha esteyos fortes com sua escada interior, q’ comunique
com o Sobrado ou Giráu; deve ter algumas frestas, ou boracos para em caso de surpreza dos Gentios, [...]. Esta caza assim alta, e com figura de Atalaya,
deve ter em sima algum ornato de bandeirolas de pano velho, ou qualquer couza q’ seja própria para impor aos índios brutos algum receyo, ou temor,
considerado a couza maior do que he na realid.e”. Feita a casa conforme a determinação do governador, deveria se construir também dois ou três
lances de casas térreas para alojamento, e quando “for possível [ilegível] húa [ilegível], e as mais comodidades necessárias para escrever, dormir, e
finalmente acomdicionar o que for precizo [...]”.
116
Com esse registro instalado nesse prolongamento de estrada, que ia de Vila Boa até as
minas de Cuiabá, estabeleceu-se o último trecho viário que ligaria e articularia definitivamente a
região de Mato Grosso e Goiás às capitanias de São Paulo e Minas Gerais, e depois ao Rio de
Janeiro, por intermédio do Caminho Novo
48
. Esse novo trecho de estrada com uma outra exten-
são que partia de Vila Boa e chegava a Pontal, no norte da Capitania, completava a principal rota
de acesso e de abastecimento da região das minas goianas. Dentre outros caminhos que se dese-
nharam no solo de Goiás, esses dois foram aqueles que, além de contribuírem para a conexão de
diferentes regiões, de transcenderem os limites regionais, alcançando um significado territorial
mais amplo, ajudaram também a estabelecer as várias teias sobre as quais se instituiu o controle e
a organização do espaço goiano, transformando-se em suportes sobre os quais se formaram
pequenos povoados, marcos da urbanização do interior da colônia.
Mas não foram apenas as rotas terrestres as principais vias de penetração e de ajuda à urbani-
zação do território de Goiás. Os rios também tiveram uma importante participação nesse processo,
desde os primeiros momentos de sua conquista no final do século XVII, com expedições fluviais
que partiam principalmente de São Paulo, passavam pelo São Francisco e, por fim, alcançavam os
rios Araguaia e Tocantins, em busca das ambicionadas jazidas de ouro. No início do século XVIII,
os rios não serviam apenas como acesso à fortuna, mas, com os caminhos, formavam uma rede de
estruturação do espaço territorial, podendo ser incluídos como um dos grandes responsáveis pela
expansão da Capitania e como elemento de conexão entre os arraiais do norte e do sul de Goiás.
A já referida Derrota que se fez pelo Rio Tocantins para alcançar o Pará, em 1734, também
exemplifica essa questão. O chefe dessa viagem descreve os difíceis trajetos e os possíveis acessos
à região, bem como as poucas e pequenas fazendas do sertão das Terras Novas que se assentavam
às margens desse rio com “[...] caza de sobrado ainda por acabar, e hum rossado feito de pouco tempo, e nelle
hú curral principiado junto da caza [...]. Desse local, se poderia chegar “[...] à barra do Rio Pernatinga, e
que a sete legoas por elle asima vinha fazer barra hum rio chamado a Palma, e que na forquilha dos dous rios
[...]”
49
erguia-se a Igreja do Arraial de São Félix. Segundo a mesma fonte, dirigindo-se ainda mais
para o norte, se alcançava “[...] a campanha dos Tocantins onde se acharão o capitão Carlos Marinho[...]”,
ou seja, onde se fundaria futuramente o arraial que levaria seu nome. Logo depois, nas “[...]
Povoaçõens do Paranãn que ficão nas cabeeiras da Pernatinga [...]”
50
e nas proximidades do Araguaia,
onde havia “[...] húa Ilha com hua praia grande, e, antes de chegar á Ilha á parte esquerda, esta hum Arrayal
de cazas no mato, algúas bem feytas. Mais adiante, diz o documento que, antes de se avistar a Vila de
Cumatá, nas Terras do Gran Pará, [...] sempre costeando a terra pela parte direita, e entrando por hum braço
piqueno que tem seus saltos, e cachoeyras, em que passamos á mão descarregadas as canoas. Terá esta cachoeyra
grande de comprido duas legoas, a que chamão a Itaboca, e no fim do canal piqueno, á parte direita, em húa
ensiada avistamos hua Rancheria no mato, e junta della hua cruz, e de fronte em hua coroa e outra cruz [...]”
51
.
48
Os grandes deslocamentos para alcançar a região das minas levou o governador da Capitania do Rio de Janeiro (1697-1702) a organizar a
abertura desse novo caminho. Para tanto, contratou o sertanista Garcia Rodrigues, filho de Fernão Dias Paes (1608-1681), membro da bandeira
de 1674-1681 e proprietário de roças na região. SANTOS, Márcio. A rota do ouro e dos diamantes. In: Revista Nossa História. N. 30, abril de
2006, p. 52-57.
49
AHU. Goiás. Doc. 12, 1734. Cópea da derrota que fiz pello Rio dos Tocantins abauxo athe Bellem do Gram Pará. Goiânia: IPEHBC.
50
Idem
51
Idem
117
A importância dos rios para estruturar o território, interligando espaços, não se limitou somente
aos primórdios do século XVIII. Na segunda metade dessa centúria, além dessa função, os eixos fluviais
foram utilizados por alguns governadores para organizar e defender os limites da Capitania, bem como
desenvolver o potencial econômico e comercial da região. São os casos de José de Almeida, o Barão de
Mossâmedes, e de Luís da Cunha Menezes. O primeiro, logo no início de sua gestão, estimulou a forma-
ção de incursões que visavam explorar os vastos sertões ainda incultos e desconhecidos do vale do
Araguaia, na região da Ilha do Bananal, e, com isso, estabelecer condições para levantar rancharias e
prever fundações de povoados que pudessem se beneficiar do comércio feito pelo trânsito no Rio Tocantins.
Há tempos, antes mesmo de José de Almeida, a navegabilidade desse Rio transcendia o interesse de
Goiás alcançando também o Pará, como se lê numa carta de 28 de março de 1773, quando o governador
dessa Capitania, João Pereira Caldas, escreve ao Marquês de Pombal dizendo sobre a importância da
navegação desse rio para a prosperidade de ambas as capitanias:
O zelo com que desejo cumprir a minha obrigação no Real serviço de S. M., me anima a representar a V. Exa
a vantagem, e utilidade que considero em permitir-se a liberdade da navegação e do comércio desta cidade com
as minas de São Félix, e Natividade, do governo de Goiás, pelo Rio Tocantins, que ao presente se acha
proibida, por força das duas provisões da inclusa cópia; pois que com a facilidade que se reconhece e na dita
navegação, ainda quando infestada de diversas nações de índios silvestres, se poderia, a meu ver, estabelecer um
proveitoso comércio entre grande parte dos povos daquelas minas com os deste Estado, fazendo-se entre uns e
outros recíprocos interesses, que igualmente veriam aumentar os rendimentos, e direitos reais, que tanto convém
promover por todos os modos possíveis, para se sustentar esta importantíssima colônia.
A navegação do dito rio Tocantins, pelo que me informam se poderá vencer desta cidade até o arraial de Pontal (primeiro
que se encontra nas minas) em quarenta até cinqüenta dias, em canoas medianas, sem que algumas cachoeiras, que tem
o rio se dificultem na passagem, como para o Mato Grosso se experimenta na navegação do Rio Madeira, etc
52
.
Foram essas as expectativas relacionadas às potencialidades dos rios Tocantins e Araguaia
que, provavelmente, levaram José de Almeida a promover expedições de caráter exploratório à
região desses dois importantes eixos fluviais, que saíam dos arraiais de Pilar e de Traíras em direção
à margem ocidental do Tocantins, rumo ao povoado de Pontal e à Ilha do Bananal. Nesta, posteri-
ormente, se ergueu o Presídio de São Pedro do Sul, construído para o controle dos grandes fluxos
de mercadoria que por aí circulariam, se não fossem os problemas com as inúmeras tribos indígenas
do local e a demora de uma autorização vinda da metrópole.
A idéia da navegabilidade dos dois rios permaneceu com Cunha Menezes. O almejado co-
mércio com o Pará deveria se estabelecer a partir do Rio Crixás, se estendendo até os rios Araguaia
e Tocantins, com vantagens recíprocas para as duas capitanias. A vontade de consumar essa empre-
sa desencadeou mais uma vez as ações do governador do Pará, Jozé de Nápoles Teles de Menezes,
que em 9 de janeiro de 1782 escreve ao administrador de Goiás dizendo que encaminhara o pleni-
potenciário do projeto do capitão de auxiliares Paulo Fernandes Bello para “dezembaraçar a Navegação
do Rio Tocantins, pelo que respeita aos Domínios deste Estado, e receber as ordens de Vossa Excelencia, relativas aos
dessa Capitania”
53
. Na carta informa também que, à margem desse mesmo rio, mandara construir a
52
CALDAS, João Pereira. Carta escrita ao Marquês de Pombal, 28 de março de 1773. In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da
província de Goiás. Goiânia: SUDECO/ Governo de Goiás, 1979, p. 210-211.
53
AHU. Goiás. Doc. 2032, 1782. Carta do governador do Pará Jozé de Nápoles Teles de Menezes a Luís da Cunha Menezes.
118
Nova Fortaleza de Nossa Senhora de Nazareth (Fig. 25), onde os
comerciantes passariam por um registro já pronto e conveniente para
a segurança dos transportes (Fig. 8).
Em 1783, procurando dar andamento à viabilidade do projeto,
Cunha Menezes envia uma correspondência ao secretário de Marinha
e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, solicitando uma ordem para
liberar a navegação dos rios Tocantins e Araguaia, “porque desta livre
navegação, se hão de seguir alem das utilidades conhecidas, que se seguem de se fazer
o comercio; por agoa se seguirá taobem a da sivilização de muitas naçoens silvestres
que habitão pellas margens daquelle rio, e do mais que a ele vão dar e dão húa livre
navegação,
athe a maior parte dos arraiais desta capitania,
entrando
neste número a nação silvestre Chavante, [...]”
54
.
Fig. 25 – Fortaleza N. Senhora de
Narareth.
Fonte: REIS FILHO, Nestor Goulart.
Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial.
São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2000.
119
Nessa carta, o governador conta ainda sobre as grandes dificulda-
des para administrar um território de tamanha extensão e lembra o com-
promisso feito à Coroa de patrocinar o seu desenvolvimento. Ciente da
idéia de uma hinterlândia brasileira, Cunha Menezes pensou num progra-
ma regional de povoamento e controle do território, a partir da criação de
pólos urbanos que se somariam à já formada rede da Capitania, integrada
pela capital, seus arraiais e aldeamentos. Entrelaçados por caminhos fluvi-
ais e terrestres, a nova estrutura articularia as distantes regiões norte e sul
da Capitania, tornando-as, inclusive, economicamente eficientes. Não ti-
vesse Portugal proibido, desde o início do século, a circulação pelo Tocantins,
a aspiração desses governadores goianos talvez se realizasse com a forma-
ção de vários povoados controlados por novos registros e a construção de
presídios interligados a uma grande trama urbana.
Fig. 26 – Mapa dos Resgistros.
Fonte: ROCHA, Leandro Mendes
(org.). Atlas histórico: Goiás pré-colonial.
Goiânia: CECAB, 2001, p. 52
120
3.2 A partilha de terras: as sesmarias e as datas minerais
No urbanismo colonial português, a noção de apropriação de território está diretamente liga-
da a um conceito de espaço que se define tanto pelos seus contornos quanto por suas interligações,
que constituem uma rede de caminhos terrestres e fluviais. Foi essa estrutura a base da organização
do território e do poder e controle que incidiria sobre ele
55
. No entanto, a ocupação desses espaços
só pode ser mais bem entendida quando se estuda as formas de divisão ou partilhas do solo, que
denunciam claramente os mecanismos e as relações de controle do Estado.
A forma legal empregada pela Coroa portuguesa para a divisão das terras coloniais foi o sistema de
sesmarias ou de sesmos, doados a particulares. Em Goiás, esse sistema visou estimular a fixação da
população, garantindo a ocupação e a expansão do território luso. A decisão de povoar essas terras foi
tomada pelo governador da Capitania logo após o estabelecimento do principal caminho, o do Anhangüera,
ao longo do qual foram concedidos os primeiros chãos. O sistema de sesmarias, cujas experiências iniciais
foram realizadas no território português, foi transplantado integralmente para a colônia, mas ocorreram
diversas dificuldades para a sua realização, em virtude das inúmeras adversidades locais. As fartas terras a
desbravar, com suas vastas dimensões, e a escassez de colonos para explorá-las tornaram as áreas cedidas
muito grandes, impossibilitando o sesmeiro de cultivá-las em toda sua extensão e que, por isso, trabalha-
vam em suas testadas. Ainda assim, cabe ressaltar que, mesmo considerando os abusos ocorridos por
parte de alguns, deve-se reconhecer o mérito daqueles que despenderam grandes esforços para a explo-
ração de terras tão inóspitas, muitas vezes carentes de vias de acessos e de núcleos urbanos.
A distribuição dessas sesmarias era feita pelos representantes do poder público, mediante a
solicitação de pedidos das pessoas interessadas. Para o deferimento, exigia-se que o solicitante fosse
cristão e não havendo nenhuma restrição de caráter social, pagava-se apenas o Dízimo da Ordem de
Cristo. Mas se, por negligência dos solicitante a terra não fosse explorada dentro do prazo estabelecido
em documentação, ela retornava ao Estado e poderia ser doada novamente a outros interessados, que
deveriam cumprir o previsto em lei. “O concessionário não constituía, assim, exatamente um proprietário, como
entendemos hoje, [...], porém um beneficiário das terras da Coroa, sob condições”
56
.
As normas que regulamentavam a concessão de sesmarias pressupunham três condições bá-
sicas: a medição, a confirmação e o cultivo. No entanto, essas exigências raramente foram cumpri-
das, gerando muita desordem e, muito comumente, novas concessões se sobrepunham às antigas.
Em relação à extensão, as glebas do sertão se diferenciaram daquelas do litoral. Enquanto neste
último, elas foram mais modestas e comedidas, no sertão goiano geralmente eram enormes, da
ordem de 324 quilômetros quadrados cada uma, sendo “requeridas em seqüência e em bloco pelos mesmos
sesmeiros e seus herdeiros, como foi o caso [...] da primeira proprietária de 340 léguas de sertão”
57
.
54
Ofício de Luís da Cunha Menezes a Martinho de Melo e Castro em que propõe algumas medidas no sentido de melhorar a exploração do ouro
na capitania para evitar decadência, Vila Boa, 02/1783. In: APARÍCIO, João Paulo da Silva. Governador no Brasil Colonial: a administração de Luis
da Cunha Meneses nas capitanias de Goiás (1778-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação de mestrado. Lisboa: Universidade de
Lisboa, Faculdade de Letras, 1998, p. 358-361. [Grifos nossos]
55
ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e método. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2000, p. 48
56
MARX, Murillo. Cidade no Brasil: Terra de quem? São Paulo: Edusp/ Nobel, 1991, p. 35.
57
BERTRAN Paulo. História da terra e do homem no planalto central: Eco-História do Planalto Central: do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p. 87.
121
A multiplicação desses latifúndios já era motivo de preocupação da metrópole desde o fim do
século XVII, levando-a a esboçar uma legislação restritiva que se desenvolveu e prolongou até o XVIII,
visando a regulamentação dos problemas iminentes da colonização de Minas Gerais, Mato Grosso e
Goiás. No entanto, nesta última Capitania, mesmo com o reduzido número inicial de concessões de terra
essa orientação não foi seguida, implantando-se as sesmarias de forma bastante atabalhoada. Para um
melhor controle da situação, em 13 de maio de 1733 D. João V escreve ao governador, “ordenando-lhe que
passasse ao Governador das minas a cópia da ordem que diz que os eclesiásticos que tem sesmarias concertem as testadas dos
caminhos que compreendem as suas terras e que esta mesma ordem seja cumprida em todo o governo e não só nas minas,
quando não haja razão em contrário”
58
. Num documento anterior, de 15 de março de 1731, o monarca já
havia determinado ao governador de São Paulo que promovesse a divisão das terras goianas, onde as
sesmarias para mineração deveriam ter meia légua e os caminhos e demais sertões, três léguas. Às mar-
gens dos rios atravessados por barca, somente deveriam ser concedidas terras numa das suas margens
59
.
Apesar desses cuidados, a desordem parece ter se mantido ainda na década seguinte, quando
ocorre a formação de grandes latifúndios, mesmo diante da enfática Ordem Régia de 21 de março
de 1744, “[...] na qual dispõe Sua Majestade como se devem dar terras de sesmarias” e determina que “sejam
ouvidas as câmaras dos sítios a que pertencem as ditas terras”
60
.
Uma outra tentativa para atender a determinação prevista nessa lei ocorreu somente após
1749, quando o primeiro governador goiano, D. Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos, por
intermédio do ouvidor Luiz de Moura dá um parecer ordenando que:
dali em diante se não conceda por sesmaria mais do que meia légua de terra [...] de testada pelo caminho, com
duas léguas de fundo [...]. Além da dita provisão, há uma carta Real, de 1° de abril de 1745, na qual se
recomenda com parcimônia com que se deve haver na concessão de sesmarias, e que se reservem sempre terras
bastante juntas às vilas para S. Magestade conceder algumas delas que sejam bens dos Conselhos e ficarem
outras para Reguengos (terras reais )[...] referindo-se também na Carta Real às terras que forem longe e
abundantes, porque pode suceder que se mantêm fábricas por conta da Real Fazenda [...]
61
.
Num outro documento encaminhado por intermédio desse mesmo ouvidor, o governador es-
clarece “que quando se pedem terras de mato para cultivar e plantar roças, se costuma conceder só meia légua de terra
[...], porém quando são pedidas para fazendas de gado, se concede até três léguas de comprido por uma de largo[...]”
62
.
Mesmo com essas preocupações, poucos foram os casos ilustrativos de respeito a essas con-
dições, pois a realidade da colônia e, conseqüentemente, a de Goiás, extrapolou as legislações para
as práticas consuetudinárias. Em 1779, o governador Luís da Cunha Menezes ainda reclamava des-
sas irregularidades na Capitania, pois, “[...] havendo-se concedido por meus predecessores mais de mil sesmarias,
58
SILVA, Edma José. Sesmarias: Capitania de Goiás (1726/1770). Dissertação de mestrado. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1996, p. 230,231.
59
SILVA, Edma José. Op.Cit., p. 224.
60
Costa Porto. O sistema sesmarial no Brasil. apud: BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no planalto central: Eco-História do Planalto
Central: do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p. 87.
61
COSTA, Porto. O sistema sesmarial. apud: BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 87.
62
COSTA Porto. O sistema sesmarial. apud: BERTRAN, Paulo. Idem.
122
apenas se achavam confirmadas por S. Majestade uma dúzia delas ou ainda menos, usando os mesmos sesmeiros
nisso tanta omissão, que nem as mesmas fazem medir, demarcar e empossarem-se judicialmente delas, na forma das
Reais Ordens, que determinam a mesma medição e posse no prazo de um ano [...]”
63
. Na mesma carta, o
governador dizia que para resolver tais questões prorrogaria o prazo para a regularização das terras
por mais um ano, justificando que, dessa forma, não prejudicaria aqueles que por algum motivo
ainda não tinham tomado as devidas providências. Enfatizava, porém, a importância de fiscalizá-las,
para “evitar as muitas demandas, que da dita falta se originam, por se quererem uns intrometerem nas terras que já
se acham concedidas a outros e não medidas, e estes ampliarem ou estenderem a mesma concessão [...]”
64
.
Por essas razões, pode-se dizer que em Goiás a maior parte das doações de terras se resumiu
praticamente à aquisição de uma Carta de Sesmaria, correspondendo apenas a uma autorização de
posse da área. A regularização ficou, dessa forma, obstada de se efetivar pelas distâncias e pelos
trâmites burocráticos legais
65
.
As primeiras sesmarias doadas na Capitania de Goiás são de 1726 e foram autorizadas para os
descobridores das minas dos “Goyazes”, o capitão Bartolomeu Bueno da Silva e seu companheiro João
Leite da Silva Ortiz. As terras abrangiam as passagens dos “rios Iguatibya, Jaguary, Rio Pardo, Rio Grande, Rio
das Velhas, Rio Parnayba, Rio Meia Ponte e o Rio dos
Pasmados”, e do caminho de São Paulo até as áreas de
mineração, com “seis legoas de terras de testada e outro tanto de fundo, ficando as passagens no meio, com as confrontações
e rumo que os suplicantes declaram, as quaes lhe concedo para que as logrem e possuam como cousa própria tanto elles como
todos os seus herdeiros”
66
. Tamanha extensão de terras, correspondente a 1.300 quilômetros quadrados em
cada passagem
67
, era justificada pelo então governador de São Paulo, Rodrigo Cezar de Menezes, pela
necessidade de “estabelecerem as ditas passagens com gente, plantas, criações e o mais para a existência em um sertão”
68
.
Após a confirmação das sesmarias de Bartolomeu Bueno da Silva e João Leite Ortiz, as demais
foram cedidas pelos descobridores até 1733, posteriormente retornando às mãos dos governadores.
Seguindo uma clara política de ocupação do território, as primeiras doações localizaram-se ao longo do
caminho das minas dos Goyazes, em região devassada, que permitiu aos sesmeiros melhor acesso às
minas da região e a consolidação de mais uma via, ligando o novo espaço à rede de caminhos que cobria
outros pontos da colônia. Com esse esquema, iniciou-se nesse momento a base da estruturação do
território goiano, assistido pelo poder econômico e político que Portugal passou a exercer sobre ele.
A fixação de colonos, marcada pelas atrocidades cometidas contra os indígenas, não foi, portanto,
tão tranqüila e rápida como supunham os governadores goianos, pois os Kaiapó que habitavam a verten-
te esquerda da Serra da Canastra, resistiram à ocupação de suas terras. Para combatê-los, os governos de
63
Doc. Publicado pela Revista do Instituto Histórico Brasileiro. apud: BERTRAN, Paulo. Idem, p. 87-88.
64
Doc. Publicado pela Revista do Instituto Histórico Brasileiro. apud: BERTRAN, Paulo. Idem, Ibidem.
65
BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 88.
66
AHSP. Documentos Interessantes. Capitania de Goiás. Vol. 32, p. 53-66.
67
AHSP. Documentos Interessantes. Capitania de Goiás. Vol. 32, p. 53-66.As léguas portuguesas eram de 6.600 m e, portanto, cada sesmaria
representava 64.800 alqueires de terra e nove sesmarias abrangeriam 583.200 alqueires; isto com a concessão do direito das passagens em nove
rios por três vidas ou cem anos.”
68
AHSP. Documentos Interessantes. Capitania de Goiás. Idem. Apesar da legitimidade desse documento, a concessão não se prolongou por muito tempo,
durando apenas o período referente à gestão do governador de São Paulo Rodrigo Cezar de Menezes, ou seja, até 1727, quando ele foi substituído por
Antônio da Silva Caldeira Pimentel, que em 29 de outubro de 1733 cassou definitivamente o direito de posse de terras dos dois bandeirantes.
123
São Paulo, Minas Gerais e Goiás enviaram ao Caminho do Anhangüera duas expedições em 1741 e 1748,
respectivamente, ambas chefiadas pelo coronel Antônio Pires de Campos. O resultado dessas iniciativas,
que também visavam a segurança dos viajantes, foi, segundo Saint-Hilaire
69
, a criação das aldeias do Rio
das Pedras (1741), de Pissarrão, do Rio das Velhas (1750), de Boa Vista e Estiva, nas proximidades do
caminho, em faixa de terra doada a Pires,
70
dos dois lados da estrada, de 1 légua e meia de largura, que se estende
desde o Paranaíba até o Rio Grande”
71
. A estas, Silva e Souza acrescenta a aldeia de Lanhoso.
72
Para além desses aldeamentos, a maior parte das concessões que se localizavam ao longo da
via do Anhangüera foi doada para sertanistas originários de São Paulo, que se propuseram a traba-
lhar com o plantio e a criação de animais para abate (gado vacum e cavalar) e meio de transporte
(cavalos e mulas). Por estarem estabelecidos em local estratégico, provavelmente, se anteciparam na
criação de uma retaguarda fornecedora de víveres e de proteção aos mineiros que se transferiram às
minas dos Goyazes
73
.
A partir de 1739, foi o governador D. Luís de Mascarenhas, o Conde D’Alva, quem doou a
maior parte das sesmarias. Grande incentivador do combate aos índios, recompensava os
organizadores de expedições internas ao território goiano com grandes áreas de terras, que se ex-
pandiram para novas regiões. “Concedeu aos espantadores de índios da região de Natividade-TO, o privilégio de
sucessivas sesmarias no baixo e médio vale do Paranã, como nos casos dos bandeirantes Dionísio Martins Soares e
Luiz Cerqueira Brandão [...]”
74
. Concessões dessa ordem devem ter gerado, posteriormente, grandes
confusões, pois algumas delas procederam certamente de antigas fazendas que haviam sido forma-
das mais no início do século. Para ilustrar, Paulo Bertran
75
aponta que não só no Norte da colônia
houve expressivo número de concessões de terras, mas também a região do Planalto Central contou
com a presença de vinte sesmarias fundadoras, conformando um quadro de indefinições de limites
e incertezas quanto ao real uso da terra, assemelhando-se às irregularidades corriqueiras de outros
lugares da colônia
76
.
As sesmarias eram pedidas para diferentes pontos do território, como nos arredores dos arrai-
ais de Meia Ponte, São Félix, Santa Luzia e em Trras, no Caminhos dos Goyazes; em Vila Boa,
onde uma delas ficou como seu patrimônio; S. José do Tocantins, Santa Cruz e Crixás. A Capitania
se expandia mesmo com as incompatibilidades entre as lavras de ouro e a agropecuária, inerentes às
suas especificidades. Apesar de serem “termos atraentes e disjuntos de uma mesma problemática, resolveu-se
pelo surgimento de importantes fazendas com expressivas produções agrárias nos engenhos e pecuária nas fazendas de
gado, a sustentarem a escravaria das minas e a população dos arraiais”
77
.
69
SAINT-HILAIRE. August de. Viagem à província de Goiás. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, e São Paulo: EDUSP, 1975, p. 128-135.
70
VALE, Marília Brasileiro Teixeira. Arquitetura religiosa do século XIX, no antigo Sertão da Farinha Podre. Tese de doutoramento. São Paulo: FAU-USP, 1994, p.
11.
71
Saint-Hilaire ainda faz referência à aldeia de Santana (do Rio das Velhas) que teria sido construída antes dessa época pelos jesuítas, para os
índios do litoral. SAINT-HILAIRE. August de. Op. Cit., p. 130.
72
TELES, José Mendonça. Vida e obra de Silva e Souza. Goiânia: UFG, 1998, p. 125
73
SILVA, Edma José. Sesmarias: Capitania de Goiás. Dissertação de mestrado. Goiânia: UFG, 1996, p. 221-222.
74
BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 90.
75
BERTRAN, Paulo. Idem, Ibidem.
76
MARX, Murillo. Cidade no Brasil: Terra de quem? São Paulo: EDUSP/ Nobel, 1991, p. 34.
77
BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no planalto central: Eco-História do Planalto Central: do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000, p. 91.
124
A partir dessa década, bem como ao longo de quase todo o século
78
, várias outras concessões
e confirmações de terras são efetivadas, refletindo ainda mais a dispersão dos homens, não só pelos
diferentes caminhos de Goiás, como também ao redor dos núcleos populacionais do Sul e do Nor-
te, como aqueles da região do Paraná, onde existiram fazendas de largas extensões, cujos donos as
tinham adquirido de antigos sesmeiros.
Não só para entender a formação de fazendas e grandes latifúndios o estudo da forma de
partição da terra é fundamental. Segundo Murillo Marx
79
, esse processo pode também ser a chave para
o conhecimento das formações urbanas brasileiras, como as dos diversos arraiais goianos que se
espalharam pelas áreas mineratórias da Capitania, originando quatro núcleos importantes: Vila Boa
e Traíras, os principais, secundados por Meia Ponte e Crixás
80
. Nesses locais próximos aos rios, a
terra foi concedida em pequenas áreas denominadas datas auríferas, com regime jurídico análogo ao
das sesmarias, ou seja, os concessionários que as obtinham correriam o risco de perdê-las, caso não
atendessem às exigências de, em determinado prazo, ocupar e beneficiar as terras.
De acordo com Salles
81
, três foram os Regimentos da colônia que visaram disciplinar as ativi-
dades de mineração: o de 15 de agosto de 1603; o de 8 de agosto de 1618, que mantém a essência do
anterior ampliando-o em alguns aspectos; e o de 1702, no qual aparecem algumas questões não
disciplinadas pela Carta Régia de 1603. No geral, esses documentos se estruturam de igual confor-
midade, com alterações que ora ampliam o regimento pelo detalhamento de alguns dos seus antigos
artigos, ora acrescentavam inovações. Uma dessas inovações encontra-se na Carta de 1702, com a
obrigatoriedade do exercício da atividade agrícola paralelamente ao da mineração, e a indicação para
a distribuição de datas de maiores áreas aos mineiros que possuíam doze escravos: teriam eles duas
braças e meia por cativo (4,84 m²).
De acordo com o documento, a distribuição seria efetivada após a retirada das duas primeiras
datas inteiras (medindo 30 braças em quadra) do descobridor da jazida e de mais outras duas que se
destinavam à Coroa e ao guarda-mor. Em Goiás, as Ordens Régias relativas às minas são provavel-
78
Os dados arrolados a seguir foram obtidos a partir da pesquisa de: SILVA, Edma José. Sesmarias: Capitania de Goiás. Dissertação de mestrado.
Goiânia: UFG, 1996. De 1743 a 1750, foram registradas as seguintes sesmarias para as regiões de Vila Boa (1743), Santa Luzia (1743), paragem
chamada Morrinhos, Arraias (1744), Natividade, Vila Boa, Palma (1745), S. José de Tocantins, Santa Luzia e Vila Boa (1745). Em 1747, três
léguas de terras são passadas ao filho de Bartolomeu Bueno da Silva. “Nestas concessões, o filho do Anhanguera declara que as terras serviam
para cultivo e que os concessionários se comprometiam a construir caminhos públicos e particulares, ponte, fontes, pastos, pedreiras (...)”. Em
1748, as concessões, em sua maioria, foram no Caminho dos Goyazes e as demais, no distrito de Santa Cruz. Em 1750, trinta e nove documen-
tos de posse da terra foram pesquisados por Silva
79
. Neles encontram-se pedidos de sesmarias para Vila Boa, Meia Ponte, S. José do Tocantins,
Crixás, Pilar, S. Félix, Flores, Natividade, Caminho de Goiás e termo de Papoam (Pilar). No ano de 1751 ocorreram concessões e requerimen-
tos em Meia Ponte, Vila Boa, Pilar, Crixás, Arraias e Natividade. Os anos de 1752 e 1753, contaram com requerimentos e concessões para os
seguintes locais: Vila Boa, Pilar, São Félix, Natividade, Palma, São José do Tocantins, Meia Ponte, Santo Antônio dos Morrinhos e Amaro Leite.
Em 1754 e 1755, os requerimentos e concessões são para Vila Boa, Natividade, São Félix, Pilar, Meia Ponte, São José do Tocantins e Traíras. Em
1736, a pesquisa aponta apenas uma concessão em Meia Ponte e mostra ainda que de 1726 até 1754 não houve sesmarias confirmadas. Nos
anos de 1756 a 1759, foram feitos requerimentos para concessões de terras em Santa Cruz, Arraias, São Félix, Pilar, Meia Ponte, Santa Luzia,
Vila Boa, Natividade, Palma, São José do Tocantins, no distrito de Terras Novas e Pilar. Entre 1760/ 1770 houve requerimentos e concessões
para as seguintes localidades: São Félix, distrito de Vila Boa, Meia Ponte, Santa Luzia, Pilar, Terras Novas, Santa Cruz, Arraias, São Felix, Palma,
Vila Boa, Pilar, São José do Tocantins, Traíras e Natividade, distrito de Tabatinga, Santa Luzia, São José do Tocantins, Crixás, distrito dos
arraiais do Couros e Santa Cruz.
79
MARX, Murillo. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: EDUSP/ Nobel, 1991, p. 31-41.
80
SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1992, p. 69.
81
SALLES, Gilka V. Ferreira. Op. Cit., p. 129-138.
125
mente originárias do Regimento que levou o Cappitan Bartolomeu Bueno da Sylva, cabo da tropa que veio ao
sertão descobrir minas de ouro e pedras preciosas
82
, providenciado em São Paulo, em 30 de junho de 1722.
Sobre o chão destinado à Coroa, esse documento diz que “em todos os descobrimentos, que se fizera deve
o Guarda-Mor, ou qualquer pessoa q. ‘repartir as terras, escolher a data de El Rey Meu Senhor na melhor parte, q.’
houver, e por lhe hua Cruz por diviza, e dar-me parte para mandar lavrar, ou por em praça para se arrematar a
quem ella der, na forma q.’ o d.° Sr. tem ordenado
83
. De acordo com Martins
84
, as datas da Coroa não eram
exploradas, sendo imediatamente leiloadas aos interessados. Outras, de particulares, também podi-
am ser negociadas, o que permitia, frequentemente, a formação de grandes extensões de terrenos
auríferos, com tamanhos variados de unidades produtivas, porém inferiores aos das sesmarias.
Com a Relação do primeiro descobrimento das minas de Goiás
85
, escrito por José Ribeiro da Fonseca
em 1783, é possível descrever, por ordem cronológica, as regiões percorridas pelos mineradores e,
portanto, os locais onde se formaram as primeiras datas minerais e as terras fundacionais de alguns
dos arraiais goianos. Segundo essa relação, “depois de seis meses de jornada, chegaram [Bartolomeu Bueno
e sua expedição] à chapada em que agora se acha o Arraial de Ouro Fino”. Após alguns dias, alcança
também o local Antônio Ferraz de Araújo, para examinar, a pedido de Bueno, o Rio Vermelho. Por
lá encontrou “[...] umas capoeiras em que seu pai plantara roça havia 40 anos. Estas achou no fim de sete dias na
paragem em que se fundou esta Vila”
86
. Os exploradores dos primeiros descobertos partiram então do
afluente do Araguaia, o Rio Vermelho, do local onde seria o Arraial de Santana, junto à Serra
Dourada, e percorrendo rio acima chegaram às proximidades do Arraial do Ferreira, prosseguindo
até Ouro Fino e Batatal, continuando posteriormente até alcançar o Ribeirão dos Bugres, “fundando
o segundo Arraial a que chamam Barra”. Em toda essa área, ao longo dos diversos ribeirões que formam
o Rio Vermelho, de seu afluente, o Rio Bagagem, de chapadas e inúmeros morros, as lavras estavam
presentes com rancharias construídas com mais esmero em suas proximidades.
Um outro lugar de destaque e próximo ao Arraial de Santana, onde os exploradores também
encontraram ricas jazidas de ouro, foi aquele que ladeia os morros de São José e Calhamares. Próxi-
mo ao primeiro, onde corre o Rio Capoeirinha, o acúmulo do precioso metal era grande. “Lá se
encontrava ouro desde suas nascentes até onde faz barra o Ribeirão Calhamares, numa área de uma légua. O ribeiro
Calhamares, que nasce na mesma serra, possui ouro suficiente para oito ou dez datas”. Nessas adjacências,
“distante meia légua do rio do Peixe Pequeno”
87
, nasceu o Arraial de Santa Rita, em “terreno aurífero e
plano
88
”, e em cujas minas trabalharam, em 1729, Manoel Calhamares e seus sócios. Eles não se
furtaram a explorar também as minas rumo ao norte e ao poente, no Córrego Vieira, nas proximi-
dades da Serra do Cabasso, em cuja extensão havia a promessa do minério.
82
AHSP. Regimento dado a Bartolomeu Bueno da Silva. In: Documentos Interessantes. Capitania de Goiás, V. 32, p. 53-66.
83
AHSP. Idem.
84
MARTINS, Roberto. História da mineração no Brasil. São Paulo: Empresa das Artes, 1989, p. 119.
85
FONSECA, José Ribeiro da. Relação do primeiro descobrimento das minas de Goiás, por Bartolomeu Bueno da Silva. In: BERTRAN, Paulo.
Notícia Geral da capitania de Goiás. Goiânia/Brasília: UCG/UFG/Solo Editores, 1997. V. 1, p. 45.
86
FONSECA, José Ribeiro da. Relação do primeiro descobrimento das minas de Goiás, por Bartolomeu Bueno da Silva. In: BERTRAN, Paulo.
Op. Cit., p.45.
87
MATTOS, Raymundo José da Cunha. Chorographia Histórica da Província de Goiás. Goiânia: Gráfica e Editora Líder, 1979, p. 31.
88
MATTOS, Raymundo José da Cunha. Op. Cit., p.31.
126
Logo depois, a vinte e seis léguas de Santana, os bandeirantes alcançaram a Serra dos Pirineus,
ao norte de Meia Ponte, onde “como franco regato que se desprende de rochedo em rochedo, nasce o Rio das
Almas”
89
, que banha, pelo norte, o importante Arraial da Meia Ponte, edificado ao lado de sua
margem esquerda. Lá, a paisagem era similar à da Serra Dourada, e nas encostas dos morros havia
formações auríferas, para todas as direções, até alcançar o Rio Maranhão ou Tocantins.
Calhamares e seus sócios seguiram também, em aproximadamente 1729, rumo à região do
futuro Arraial de Santa Cruz, onde se depararam com o morro do Clemente, entre outros. As jazidas
encontradas na região foram repartidas pelo guarda-mor Manoel Dias da Silva e, logo depois da
partilha, as ricas datas do cobiçado minério começaram a ser vasculhadas. Percorreram, posterior-
mente, também em todas as direções e rumos, outros ribeiros das cercanias do povoado, e mais
adiante, a 18 quilômetros de Santa Cruz, pesquisaram as margens do Rio do Peixe. Nesse lugar, a
riqueza foi tanta, “que os empresários somente com a feitoria da valla ficarão ricos e abandonaram o seu projecto”
90
.
No Rio Maranhão, os aventureiros encontraram jazidas produtivas em suas duas margens,
como também em alguns riachos que deságuam nele. Na cachoeira do Machadinho, próxima do
aglomerado de São Sebastião, à esquerda do Maranhão, chegaram até a desviar o leito do Rio por
conta dos achados. Mas um arrombamento do dique levou o metal acumulado e as ferramentas,
forçando-os a se transferir para as margens dos riachos de Água Quente, Ouro Fino e morros
próximos ao arraial de mesmo nome deste último.
Passada a euforia dos primeiros anos, na década de 1730, mineradores embrenharam-se pelo
Centro-Norte e Nordeste da Capitania, abrangendo a Chapada dos Veadeiros até as proximidades
do Rio Tocantins, e encontraram ouro de aluvião. Lá fundaram os arraiais do Maranhão; Água
Quente, “assentado sobre o córrego do mesmo nome, fica méis légua ao norte do Maranhão”; Crixás, “que está
edificado junto ao morro de São Gonçalo e serra da Pedra Furada, sobre o Rio Vermelho”; Natividade, construído
em terreno montanhoso, meia légua a oeste da alta montanha dos Olhos d’Água, banhado pelo córrego da Praia ou
Santo Antônio”; Traíras, “erguido em terreno baixo e contíguo ao Rio de Traíras, que se mete no Maranhão daqui
a dez léguas a rumo do noroeste”; São José do Tocantins, “assentado junto à serra do Custódio em terreno baixo
na margem esquerda do rio Bacalhau”; Cachoeira,que fica a duas léguas ao sul do Arraial de Santa Rita, entre
este e o de São José sobre o córrego da Cachoeira”; Porto Real, às margens do Rio Tocantins; e Pontal,
localizado nas adjacências do “Córrego Lavapés, três e méis léguas a oeste de Porto Real e da margem esquerda
do Tocantins”
91
. Só na área de Crixás, em 1762, trezentos escravos trabalharam em suas ricas terras.
Para as jazidas mais ao norte da região, fluíram também aventureiros da Capitania do Maranhão, que
reivindicavam suas jurisdições sobre essa área, o que foi contrariado pela Carta Régia de 31 de março de
1736, quando a Coroa intercede e decide a favor de Goiás. Em todas as minas do local, a produção aurífera
foi positiva por trinta e cinco anos, mas, após esse período, o decréscimo foi significativo.
89
JAIME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: Imprensa da Universidade Federal de Goiás, 1971, p. 75-76.
90
GENETTES, Henrique Raimundo. Estudos geológicos sobre a província de Goyaz. apud: SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão na
capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1992, p. 75.
91
MATTOS, Raymundo José da Cunha. Chorographia Histórica da Província de Goiás. Goiânia: Gráfica e Editora Líder, 1979, p. 110-132.
92
MATTOS, Raymundo José da Cunha. Op. Cit., p. 110-132.
127
Em 1734, as jazidas do Rio São Félix e de muitos outros próximos a ele foram alcançadas
pelos mineiros. Nessa região, o ouro se espalhava por toda parte, a ponto de a Coroa decidir-se que
lá mesmo seria a Casa de Fundição da Comarca do Norte, coincidente com o Arraial de São Félix,
localizado à margem direita do Rio Maranhão. Mais ou menos nessa época, os rios Traíras e Baga-
gem também seriam lavrados por pessoas atraídas de diferentes lugares e que ajudaram a povoar as
regiões circunvizinhas, como Traíras; Moquém; Cachoeira; Santa Rita e São José do Tocantins.
Alguns anos após o entusiasmo de se enriquecer na região do meio-norte goiano, os explora-
dores votaram-se novamente para a região de Meia Ponte, onde encontraram o Ribeirão Jaraguá, que
corria nas sesmarias de Urbano e Couto. Em 1737, ergue-se o Arraial do Córrego do Jaraguá, junto
ao Ribeirão de Jaraguá ou Água Suja, em terreno acidentado.
Depois desses achados, seguem-se os da década de 1740, coordenado por Dom Luís de
Mascarenhas. A Coroa, preocupada com o declínio do ouro goiano, leva esse governador paulista a
Santana para intensificar as pesquisas exploratórias, tão importantes à economia portuguesa. Du-
rante essa época, formaram-se os povoados de Arraias, localizado “no meio de ásperas montanhas, em
uma cova junto ao córrego Rico”; Conceição, “que fica junto a uns pequenos montes a que se dão nome de Bocaina”;
Cavalcante e Santa Luzia, este “grande arraial que está situado em terreno desigual, [...], sobre o córrego do
Fumal, e é cortado por outro córrego pequeno que tem boa ponte de madeira”; e Cocal, “que está sobre o córrego
do Feijoal em terreno fundo, e com grandes montes auríferos pouco distantes”
92
. Todos eles contaram com um
grande afluxo de homens originados de diferentes lugares, que fizeram algumas jazidas renderem
até 60 oitavas por batea. “O núcleo denso da população iniciou-se em 1740, com a viagem de D. Luís de
Mascarenhas àquela área. Um ano antes, Domingos Pires descobria as lavras do Morro Bom Sucesso. A mina
encontrava-se incrustada em rochedo de mármore, tendo sido trabalhada durante dez anos”
93
. Nas redondezas de
Cavalcante, em 1783, “mais de doze sociedades exploradoras”
94
percorreram riachos e encostas de serras,
numa área de quase quarenta quilômetros quadrados. Em 1799, novas explorações foram iniciadas
nessa região, quase simultaneamente à do Ribeirão da Porteira, também com nascente no morro
Bom Sucesso.
Na região do Ribeirão do Pilar, outras empresas também foram formadas para a exploração
do minério. Às descobertas, seguiu-se a fundação do importante do Arraial de Pilar (1741), localiza-
do a dezesseis léguas de Vila Boa, entre as jazidas de Meia Ponte, Traíras e Amaro Leite, “que fica entre
o rio Maranhão e Araguaia”. Nessa mesma década, descobriram-se ainda, a três léguas de Meia Ponte,
as modestas terras de ouro do Rio Corumbá, onde se ergueu o Arraial de mesmo nome. Ao contrá-
rio da pequena produção mineira desse Rio, encontravam-se as minas de Santa Luzia, que atrram
vários associados ao redor do morro Palmital, “cujas lavras, em talho aberto, foram trabalhadas por águas
canalizadas em dois aquedutos que percorriam a distância de seis léguas”
95
.
A partir da década de 1750, outras minas vão surgir de forma dispersa, em lugares distantes
uns dos outros, a exemplo do Arraial de Tesouras, que se ergueu na região entre os rios Tesouras e
Bonfim, ao lado do Rio Vermelho, uma das últimas regiões auríferas do Setecentos. O ouro só irá
93
MATTOS, Raymundo José da Cunha. Idem, Ibidem.
94
SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão na capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1992, p. 80.
95
SALLES, Gilka V. Ferreira. Op. Cit., p. 81.
128
aparecer depois, em 1809, com os descobertos do Arraial de Anicuns, a sudoeste de Vila Boa,
próximo ao Ribeirão dos Bois.
Foi, portanto, na região dos achados do ouro, próxima às grandes sesmarias das fazendas e
junto às datas minerais, que se ergueram os diversos arraiais goianos, espalhados às margens dos
diversos rios e caminhos que os atravessavam. Esses caminhos de Goiás, tais como os da Capitania
de Minas Gerais, além de permitirem o controle e a ocupação da região, bem como o estabeleci-
mento de roças e estalagens que serviam de pouso para os viajantes, eram ainda vias essenciais para
os povoados, pois delas dependia o abastecimento de víveres de populações que se localizavam em
lugares ermos e distante dos portos litorâneos.
3.3 A vila e o território
O Brasil do final do século XVII até a primeira metade do XVIII assistiu ao gradual desloca-
mento de sua base econômica, que passou da agricultura para o ouro, com as recém-descobertas
minas das regiões mais internas do território, dando origem ao denominado ciclo aurífero da história
colonial. Em razão dessa mudança, diferentes bispados e prelazias se formaram, configurando, inicial-
mente, o esboço de uma nova divisão territorial na colônia, assinalada pela fundação de inúmeras vilas
e cidades, algumas delas, inclusive, destinadas a ser capitais, como nos casos de Vila Boa de Goiás e de
Cuiabá do Mato Grosso. Com essas fundações, Portugal apontava sua intenção de consolidar um
outro desenho do território colonial brasileiro, reafirmado, posteriormente, pela criação de novas capi-
tanias. Com estas surge um outro cenário administrativo, que visou, prioritariamente, garantir à metró-
pole a vigilância, os direitos e a extensão de autoridade sobre as terras minerais, notadamente aquelas
que se localizavam além Tordesilhas.
Essa nova reorganização territorial pode ser observada inicialmente no remoto ano de 1748,
a partir da determinação da Coroa para que o antigo e extenso território da Capitania de São Paulo
fosse desmembrado para dar origem às capitanias de Goiás e Mato Grosso. A decisão sobre uma
divisão dessa ordem se justificava tanto pela urgência de se definir as fronteiras a oeste da colônia –
e nesse caso, encontrava-se Mato Grosso o “[...] antemural [de] todo o interior do Brasil”
96
quanto pela
necessidade, dadas as circunstâncias, de um controle mais direto
[...] das muitas povoaçõez [mineiras] que já existem cotendidas por mais de trezentas legoas como vão deste a
passagem do Rio grande athé com fins do Governo do Maranhão sendo a mayor parte deste espaço de terras
mineraes de ouro, e também em razão de haverem no mesmo destricto dous, ou tres Rios em que se achão
diamantes
onde será presizo todo o cuidado de hum bom Governador para que se observe a prohibição de
extrailos, a respeito da qual há noticia de muitas transgressões sem se lhe poder athe agora achar remedio eficaz.
Acresce a isto estar aquele destricto rodeado de gentis dos mais bárbaros que athe aqui se encontrarão no Brasil,
e ser presiza para rebater os seus insultos prompta providencia de hum Governador
97
.
96
AHU. Goiás. Doc. 249, 1748. Consulta do Conselho sobre os novos governos em Goiás e Mato Grosso. Goiânia: IPEHBC.
97
AHU. Goiás. Doc. 249, 1748. Idem.
129
Nota-se, portanto, quão importante foram as primeiras providências para o efetivo controle
dessa região e os esforços para a fundação de um novo município que permitiria a legitimação do
poder administrativo sobre um território caracterizado por limites imprecisos e incertos. A inaugu-
ração de uma capital representaria também a sua organização, autonomia, instauração de um gover-
no próprio e uma política que, semelhante à de Cuiabá (1740), além de ultrapassar “[...] as circunstâncias de
defesa de uma área localizada, para vir a significar a defesa de toda a conquista”
98
, visava, sobretudo, ampliar
a segurança da exploração do ouro encontrado, fortalecer as práticas do expansionismo português
e dar início a uma nova reorganização da colônia, com a criação de capitanias.
Esses foram o contexto e os motivos fundamentais do surgimento de Vila Boa de Goiás.
As primeiras ações em direção a tão importante decisão podem ser vistas a partir de 1736, quando
o governador de São Paulo recebeu ordens reais para a sua fundação. No entanto, apesar da urgên-
cia dessa tarefa, ela só seria cumprida em 1739, pois o primeiro homem destinado a executá-la, D.
Antônio Luiz de Távora, o Conde de Sarzedas, faleceu em 1737, no Arraial de Traíras, antes mesmo
de cumpri-la. Diante de tais circunstâncias, em 1738, o Superintendente Geral das Minas de Goiás,
Agostinho Pacheco Telles, afirmava não só a intenção de “[...] V. Magestade servia [servir] mandar crear
vilas nas povoações que chamão Arrayaes [...]”
99
como também informava ao Conselho sobre a “[...]
necessidade que padescião os povos daquelas Minas de administração [...]”, pois era grande a distancia em que
ficão [vam] humas povoações das outras [...]”
100
. Em 1739, finalmente, o sucessor do governador de São
Paulo, Luís de Mascarenhas
101
, demarcou as quatro léguas de terra para o termo de Vila Boa, ao
lado do Arraial de Santana, em um sítio que deveria estar provido de água saudável e quantidade
suficiente de lenha para o abastecimento do novo lugar.
Apesar de serem importantes providências, haveria de se pensar ainda na gerência da Vila. Para tanto,
diversas ações burocráticas deveriam ser iniciadas por vereadores, o que levou D. Luís de Mascarenhas
102
à
constituição da Câmara com “[...] dous vereadores e procurador do conselho, os quaes foram eleitos e tomaram juramen-
to, fazendo a sua primeira vereança no primeiro de agosto de 1739”
103
. Além do controle da própria Vila, esses
homens bons se responsabilizariam também pela administração e organização dos Arrayaes desta Ouvidoria
104
.
Para essa tarefa, contariam com o auxílio de “[...] dous Juizes ordinários em cada hum delles e hum
Tabelião do publico judicial, e notas, e hum Meirinho para servirem com os ditos Juizes”
105
. Assim, vereadores
98
ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e método. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa, 2000, p. 102.
99
AHU. Goiás. Doc. 60, 1739. Estabelecimento da Vila. Goiânia: IPEHBC
100
AHU. Goiás. Doc. 60, 1739. Idem.
101
AHG. Goiás. Doc. 60, 1739. Estabelecimento da Vila. Goiânia: IPEHBC.
102
Segundo as Ordenações Filipinas, caberiam aos vereadores o “[...] encargo de todo o regimento da terra a das Obras do Conselho e de tudo
que puderem saber entender, porque a terra e os moradores d’ella possam bem viver[...]”. De acordo com Freitas, “os juizes ordinários
presidiam o conselho e superintendiam a polícia e o procurador do povo deveria manter a câmara informada das necessidades e dos reclames
do povo”. FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira de. Correição em Villa Boa de Goyaz. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
N. 18, dez. 2004, p. 87-105.
103
SILVA E SOUZA, Luiz Antônio de. Memória sobre o descobrimento, governo, população e coisas mais notáveis da Capitania de Goiás. Goiânia: Ed. Oriente 1978. p. 85.
104
A primitiva intendência das minas dos Goyazes se dividia em duas: Santana e Tocantins, que, por sua vez se subdividiam operacionalmente em
comissárias: Santana, Meia Ponte, Crixás, São Luís (depois Natividade), São Félix, Arraias, e, mais tarde, Santa Luzia e Santa Cruz. PALACIN,
Luís. Goiás: 1722/1822. Goiânia: Oriente 1976, p. 49.
105
AHU. Goiás. Doc. 60, 1739. Estabelecimento da Vila. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
130
Fig. 25 – Vila Boa de Goiás e tudo que pertence ao seu termo.
Fonte: Catálogo de verbetes dos documentos de manuscritos avulsos da Capitania de Goiás existentes no AHU. TELES, José Mendonça (org.). Brasília:
Ministério da Cultura; Goiânia IPEHBC, 2001, p 23.
131
e juízes, articulados, deram início aos primeiros traços da rede jurídico-administrativa de Goiás,
liderada por uma única vila
106
.
Por outro lado, não foram apenas as decisões de âmbito administrativo que caracterizaram
a implantação desse mais novo centro irradiador de controle. Para instaurá-lo, intervenções no
espaço físico também foram realizadas e coordenadas pelos mesmos vereadores, que iam desde a
definição do seu termo – território do município –, dos tênues acordos que se estabeleceram
entre os limites territoriais dos povoados vizinhos, com a demarcação do pelourinho, da Casa de
Câmara e Cadeia e da matriz, até a acentuada preocupação com a regularidade das casas. Todos
esses cuidados revelavam uma clara atenção com a organização e regularização do traçado da
nova capital Vila Boa.
Mas, além dessas preocupações o que se coloca aqui em relevo é a formação de um município
que se responsabilizaria pela importante região central da colônia. Ou seja, o território, agora
constituído como uma unidade administrativa coordenada por Vila Boa, passou a ser gerido ao
longo de todo o século XVIII, a partir de uma comarca e vários julgados
107
, que frequentemente se
alternavam no atendimento das necessidades locais. É o que se vê na proposta de subdivisão feita
pelo então governador José de Almeida e Vasconcelos, resultando na execução da Carta ou plano
Geografhico da Capitania de Goyaz
108
, ou simplesmente Mapa dos Julgados, de 1778, elaborado pelo
sargento-mor Thomaz de Souza, no qual se encontram os limites de Vila Boa, Crixás, Pilar, Traíras,
S. Félix, Conceição, Natividade, Arraias, Cavalcante, Santa Luzia, Meia Ponte, Santa Cruz e Rio das
Velhas, porém com a advertência de que “[...] huns cumpriendem pequeno terreno por serem mais povoados,
e outros muito grandes por terem muita terra inteiramente despovoada como he Villa Boa e Natividade”
109
. Nesse
momento, já distante da época em que se dava o início de mais uma nova unidade administrativa da
colônia, o extenso território de Goiás se apresentava com esses julgados, vários arraiais e apenas um
único município, responsável por toda a sua gestão.
Vila Boa foi, portanto, a representante física e legal das instituições de Portugal e a única
articuladora dos diferentes arraiais existentes. Por essa razão, ela não foi apenas um simples povoa-
do de mineração, mas, principalmente, um importante centro fiscal e político-administrativo da
metrópole, responsável pela hierarquização, defesa e eficácia dos caminhos e comunicações, além
de ordenadora de todo o território da Capitania. Mais que isso, ela representava, sobretudo, a certe-
za do controle das minas de ouro do Brasil Central e a incorporação aos domínios de Portugal de
parte de um território que não lhe pertencia.
106
Tal situação de soberania gerou, entretanto, por diversas vezes, várias reclamações dos governadores sobre a grande extensão da Capitania,
sobre suas conseqüentes dificuldades para administrá-la, ou até mesmo pelas solicitações que alguns arraiais do distrito do Tocantins fizeram
à Coroa para se elevarem à categoria de vila, bem como a da importante Meia Ponte, que ainda no final do século (1779) reclamava já ter
passado da condição de julgado.
107
Grosso modo, esses tipos de divisões se assemelhavam bastante, pois se destinavam ao controle fiscal e judiciário, diferindo apenas em relação ao
tamanho dos territórios e dos tipos de juízes. As comarcas, de maior área são da competência dos juízes de direito e os julgados, dos juízes
municipais. Em Breve Notícia da Comarca de Goiás, observa-se que em Goiás, nos setecentos, houve apenas uma única comarca na Capitania
com “vinte Juízes Ordinários, havendo uns que têm jurisdição mais de duzentas léguas de note a sul, ou de um rumo a outro”. A segunda foi
criada apenas no início do século XIX, pelo alvará de 18 de março de 1809, denominada de S. João das Duas Barras.
108
Vila Boa, 20 de abril de 1778 – José de Almeida Vasconcelos e Carvalho. Mapa dos julgados. In: BERTRAN, Paulo. Notícia Geral da Capitania
de Goiás. V.1, 1996, p.102.
109
BERTRAN, Paulo. Op. Cit., 1996, p. 102
132
110
No artigo Conquista e formação de territórios/territorialidade no processo de constituição das
fronteiras da Capitania de Minas Gerais, Fernanda Borges de Moraes verifica situação semelhante.
MORAES, Fernanda Borges de. Conquista e formação de territórios/territorialidade no processo de consti-
tuição das fronteiras da Capitania de Minas Gerais. Londrina: ANPUH, julho de 2005.
1111
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1994, p. 77-78.
Fig. 28 – Vista deVila Boa de Goiás no
séc. XIX.
Fonte: Biblioteca Mário de Andrade. S. Paulo.
3.4 As atividades agropastoris
Nos últimos séculos do período colonial, as atividades
agropecuárias fizeram parte de um conjunto de fatores fundamentais
para os processos de fixação de população em territórios desejados por
Portugal. Em casos iguais a Goiás, essas atividades chegaram um pouco
antes das explorações auríferas, formando os primeiros assentamentos
rurais do território. Constituíam-se, portanto, em consideráveis elemen-
tos de expansão da Capitania goiana, além de ser os importantes indica-
dores das ações econômicas que aí se desenvolviam
110
.
Não só nessa Capitania, mas em toda a extensão da colônia ao
longo dos séculos XVI ao XVIII, agricultura e pecuária se desenvolveram
simultaneamente à conquista do território, ajudando a garantir terras para
a metrópole. Uma primeira e clara evidência da importância da agropecuária
na extensão e ocupação das terras coloniais pode ser notada, mais precisa-
mente, com a conquista da Paraíba (1584 -1587) e do Rio Grande do
Norte. No século XVI, os colonos dessas capitanias, marcadas pela defesa
de territórios e de interesses políticos, como a expulsão dos franceses, ma-
nifestaram um forte interesse em adquirir sesmarias para a formação de
lavoura canavieira e criação de gado, mostrando a existência de um avanço
paralelo aos primeiros movimentos de interiorização da colônia e às moti-
vações para a efetiva fixação da população
111
.
133
112
De acordo com Wehling, as fazendas de gado eram mais vantajosas que as de plantio de açúcar, porque estas últimas requeriam maior
quantidade de mão-de-obra e maiores investimentos. Além disso, a conjuntura internacional favorável à obtenção de bons preços de venda de
gado. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de. Op. Cit., p. 118.
113
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. de. Idem, Ibidem.
114
BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Brasil Central. Eco-História do Planalto Central: do indígena ao colonizador. Brasília: Verano,
200, p. 60.
115
BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p.60.
116
BERTRAN, Paulo. Idem, Ibidem.
117
BERTRAN, Paulo. Idem, Ibidem.
Um outro exemplo pode ser observado no período de expansão da Paraíba e do Rio Grande
do Norte, quando se conquistou Sergipe e onde se desenvolveram também atividades agropastoris
semelhantes às ocorridas nas demais capitanias. Mas, com Sergipe, fechou-se o quadro das modes-
tas expansões do Seiscentos.
Após esse primeiro momento, a colônia passou então para uma outra expansão territorial que se
estendeu do Rio Grande do Norte até São Vicente. Nessa nova região, estabeleceu-se uma população
que se dedicou à extração do pau-brasil e à agricultura de subsistência, o plantio de milho, mandioca,
trigo, arroz e hortaliças. Para a exportação, o açúcar e a pecuária. Esta última desempenhou, mais uma
vez, importante papel na penetração territorial de outras regiões, com o estabelecimento de fazendas
de gado na região do Recôncavo Baiano, no Rio Paraguaçu e, novamente, em Sergipe.
No século XVII, as fazendas de gado
112
representaram, portanto, os primeiros fatores de interiorização
e ocupação territorial da colônia, constituindo-se no maior atrativo econômico para a fixação de populações.
O açúcar, o pau-brasil, o tabaco e a agricultura de subsistência limitaram-se mais às regiões litorâneas.
De acordo com Wehling
113
, os principais núcleos de criação e, sobretudo, de difusão de
gado para outras regiões foram Pernambuco e Bahia. Em Pernambuco, as fazendas de gado se
expandiram para Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, territórios denominados “sertões de fora”. No
sudoeste da Bahia, cuja expansão ficou conhecida por alcançar o “sertão de dentro”, formaram-se
várias fazendas de gado que atingiram o norte de Minas Gerais, toda a extensão do Rio São
Francisco até a altura do Gurguéia e do Canindé, afluentes do Rio Parnaíba. Destacavam-se
nessas áreas os latifundiários Guedes de Brito e Garcia D’Avila Pereira, sendo que este último
tentou, no ano de 1705 e com uma expedição de 400 homens armados, a conquista do sertão
goiano, região de onde foram expulsos pelos índios Akr
114
.
O avanço da pecuária rumo a Goiás, a partir da Bahia, pode ser observado também por um
requerimento, de 1627, feito pelos moradores do sertão das Terras Novas (minas do norte de Goiás,
situadas entre os rios Palma e Paranatinga e povoadas por Manuel da Costa) ao governador D. Luís
de Mascarenhas. Segundo essa fonte, as primeiras entradas de gado nessa região se deu quando os
“os moradores do sertão do Rio Grande [afluente da margem esquerda do São Francisco] intentaram conquistar os
gentios mencionado [acoroassu], mas não conseguiu expulsá-los nem levá-los à paz e só puderam povoar uma fazenda
de nome Sobrado [...]”
115
. Os fazendeiros foram obrigados a abandonar as Terras Novas em 1708, mas
deixaram seu gado “nesse sertão que conquistaram. [...]
116
, recomeçando “o seu comércio com as Minas de
Tocantins e Goiás, os sertões do Rio S. Francisco, Paranaguá e Piauí e as cidades da Bahia, Pernambuco e
Maranhão”
117
.
134
Afirma ainda esse requerimento que os fazendeiros retornaram à região de Goiás em 1730, con-
quistando os Akroá-Açu a partir do Arraial de Palma. Daí, onde enfrentaram vários conflitos com os
índios, partiram pelo Rio das Palmas para um sítio denominado Salgado, onde montaram um acampa-
mento. Em 1734, exploraram os sertões até o Rio Paranatinga, no baixo curso do Paranã, e lá permane-
ceram por algum tempo, povoando o lugar. Em 1735, os fazendeiros prosseguiram com sua conquista
para o sul do Tocantins, onde descobriram as minas de São Félix. Continuando o percurso em direção ao
norte da região, eles alcançaram o Arraial de São Luís, povoando-o com fazendas de gado, e assim
ultrapassaram a Serra Geral, numa investida sobre o Rio da Palma, em pleno Vale do Tocantins.
Além das boiadas que chegavam das regiões do São Francisco, outras alcançaram Goiás vin-
das das capitanias de Pernambuco e do Piauí. De lá seguiam para as Terras Novas, de onde se
espalhavam para o seu vizinho, o descoberto de Arraias, e para outras campanhas, pois o gado era,
[...] o sustento comum de brancos e negros, pela carestia da farinha e milho, pois este vale a cinco e seis oitavas,
e aquela a dez, doze, e agora a quatorze e quinze, e só com a novidade presente se espera abate de preço, mas
nunca pode ser causa de consideração porque a gente é muita e os frutos poucos e esses se vão de muito longe com
grande trabalho, despesa e risco e perda de cavalos em que se conduzem, por cujo motivo me parece muito preciso
conservar os ditos moradores das Terras Novas com suas fazendas de gados, que são um grande socorro para o
dito descoberto [...]
118
.
Socorro não só para um determinado descoberto, mas para todos os demais que também
dependiam diretamente da pecuária para as suas sobrevivências.
Complementando esse quadro da exploração do território goiano por meio da pecuária, têm-
se os currais que saíam de São Paulo e Minas Gerais pelo caminho de Jundiaí, seguindo a rota dos
rios Atibaia, Jaguari-Açu, Mogi, Sapucaí, Pardo, Granai, das Velhas, Paranaíba, Veríssimo e Aruribá
até o Arraial de Meia Ponte.
Com efeito, cabe destacar que em Goiás, antes da cata do ouro, expandiram-se fazendas
que começaram a ocupar terras de pastagens naturais, boas para a criação de gado, tanto pelos
sertões do Tocantins quanto pelos do Rio São Francisco, com movimentos que convergiram
sobre as chapadas do Planalto Central. Eram paulistas e mineiros na parte sul do território e
maranhenses, piauienses e baianos no norte e no leste. Já a agricultura, apesar de ter-se iniciado
com essa expansão, terá seu maior impulso a partir da mineração. Por volta de 1756, havia “uma
média de 500 rosseiros no território”
119
, plantados ao redor dos arraiais, funcionando como núcleos
complementares de abastecimento e ajudando, com a pecuária e os caminhos, a garantir a ocupa-
ção das inóspitas terras da Capitania de Goiás.
118
Carta do governador de São Paulo, D. Luiz de Mascarenhas ao Rei D. João V, de 1741. In: PALACIN, Luís; GARCIA, Leônidas Franco;
AMADO, Janaína. História de Goiás em documentos. Goiânia: UFG, 1995, p. 37-38.
119
SALLES, Gilka V. Ferreira. Economia e escravidão na capitania de Goiás. Coleção Documentos Goianos, n. 24. Goiânia: Editora da UFG, 1992, p. 64.
CAPÍTULO IV
TERRITÓRIO ECLESIÁSTICO:
FORMAÇÃO DE FRONTEIRAS E URBANIZAÇÃO
DA CAPITANIA DE GOIÁS
137
formação territorial da Capitania de Goiás esteve também diretamente relacionada à vigência do
padroado no Brasil, iniciado nos primórdios da colônia e vigindo até a proclamação da República.
4.1 A prelazia e o território
A
Caracterizado por um complexo e imbricado vínculo entre a Igreja e o Estado, esta foi a conjuntura do
Setecentos à época das conquistas do interior do Brasil, quando se decidiu pela criação de mais cir-
cunscrições eclesiásticas: os bispados, com igrejas elevadas à condição de catedral; e as prelazias, dife-
rentemente da primeira, com a mudança de capelas para matrizes. Estas seriam regidas por um bispo
in partibus, que, embora tivessem poderes de jurisdição sobre as prelazias, tanto interna como externa-
mente, não poderiam administrar os sacramentos de ordem.
Independentemente da distinção entre elas, as circunscrições eclesiásticas não só contribuí-
ram para a expansão da fé e o atendimento de imperativos geopolíticos, ou, mais precisamente, para
a ocupação lusa das terras a oeste de Tordesilhas, como ajudaram ainda na organização das barreiras
territoriais de algumas capitanias da colônia, de seus povoados, vilas e aldeamentos. Mas o entendi-
mento dessa lógica organizacional implica na observação histórica da ação conjunta entre essas
duas instituições, que têm suas raízes na Idade Média, no remoto período de criação da Ordem de
Cristo, sucessora do rico patrimônio da Ordem dos Templários. Foi no século XV, mais precisamen-
te no ano de 1481, que a Ordem de Cristo passou a ter, por determinação da Santa Sé, a jurisdição
eclesiástica de todas as terras conquistadas que não tivessem dioceses.
Setenta e dois anos depois, em 1553, com o fortalecimento da Ordem, o papa Adriano con-
fere ao monarca português D. João III o título de Grão-mestre da Ordem, também extensível a
todos os seus sucessores. Conforme essa nova deferência da Santa Sé, os monarcas portugueses
exerceriam simultaneamente a administração política e religiosa dos seus domínios, particularmente
os das terras coloniais. O padroado, uma vez estabelecido juridicamente, mediante inúmeras trocas
de benefícios e favores, legou ao Estado uma série de atribuições que antes eram da competência da
Igreja, o que, com o tempo, invariavelmente o fortaleceu. Prova disso foi a criação de um órgão de
assessoramento da Coroa, a Mesa de Consciência e Ordens (1521-1557), formada por um presiden-
te e cinco teólogos canonistas que se responsabilizariam pelas questões espirituais; pela criação de
dioceses, paróquias, capelas, conventos e seminários; pelo estabelecimento do número de religiosos
138
que trabalhariam na colônia; pela aceitação ou não de documentos pontifícios etc. Entre 1557 e 1578, um
outro fato evidencia ainda mais esse fortalecimento: a publicação da bula Dum fidei constantiam, facultando
ao monarca D. Sebastião o direito de indicar à Sé Apostólica os nomes dos eclesiásticos que ocupariam a
direção de bispados, arcebispados ou até mesmo outros cargos eclesiásticos mais simples. Nas palavras
de Moraes, nessa perspectiva, o “[...] monarca era uma espécie de protetor da Igreja Romana em seus domínios,
auxiliando-a em seu ministério religioso para as terras descobertas, ajudando-a a manter a disciplina eclesiástica, até mesmo
a ponto de punir os clérigos delinqüentes com castigos temporais (cadeia, exílio, pena capital)”
1
. Por outro lado, caberia
ao Estado, mesmo que teoricamente, prover as necessidades de igrejas e capelas, remunerar o clero e,
principalmente, se preocupar com a expansão do catolicismo.
Apesar desses amplos poderes conferidos aos monarcas, o padroado não pode ser entendido
apenas como uma apropriação indevida das atribuições da Igreja, mas também como uma forma
típica de compromissos entre a Igreja de Roma e os Estados Modernos, imprescindíveis às duas
instituições, como explica Hoonaerte, ao se referir ao Padroado da Espanha: “Roma não dispõe [dispu-
nha] das finanças necessárias para enviar missionários e prover a infra-estrutura da missão, enquanto Castilha
carece[ia] de fundamentos para firmar-se nas terras americanas”
2
. Novaes, por seu turno, afirma que se “de
um lado, o Estado absolutista envolvia a nacionalização das Igrejas, ou uma certa autonomia em relação ao papado;
em sentido oposto, o poder absoluto de direito divino não podia prescindir da legitimação religiosa: o Estado absolu-
tista precisa controlar a Igreja, e ao mesmo tempo, dependia de sua legitimação”
3
.
O autor informa também como o Estado português utilizou da Igreja para justificar a partilha
de terras americanas com a Espanha e legitimar sua expansão muito além do que havia sido estabe-
lecido pelo meridiano de Tordesilhas:
[...] a religião (por meio da catequese do gentio) aparece desde o início como o discurso legitimador da expansão,
que era vista, assim, como «conquista espiritual»; é junto ao papado que os reinos ibéricos, pioneiros da
colonização e expansão, buscam autoridade para dirimir as disputas pela partilha dos mundos a descobrir; e,
a partir daí, a legitimação da conquista para a catequese. Na própria gênese do processo, já deparamos,
portanto, com o discurso legitimador da catequese cristã; ele acompanha toda a colonização moderna, variando
evidentemente de intensidade de um momento para outro, de uma região para outra [...]
4
.
Encerrando sua reflexão, Novaes expõe:
[...] o contraste e o conflito da colonização se estabelece entre o impulso salvítico (os móveis religiosos, a catequese)
e os mecanismos de produção mercantil (exploração) do Novo Mundo; sendo que a primeira dimensão (a
catequese do gentio) dominava o universo ideológico, configurando o projeto; e a segunda (dominação política,
exploração econômica) definia as necessidades de riqueza e poder. [...] As duas vertentes coexistem e
inexplicavelmente se articulavam de forma conflituosa, pois, o conflito é também uma forma de articulação.
1
MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: Irmandades e Confrarias na Capitania de Goiás, 1736/1808. Dissertação de doutoramento
em História e Teoria das Idéias. Cap. 2, Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2006, p. 4.
2
HOONAERTE, Eduardo (org.). História da igreja no Brasil. Tomo II/1. Petrópolis: Editora Vozes/ Edições Paulinas, 1994, p. 295.
3
NOVAES, Fernando A. . Condições da privacidade na colônia. In: NOVAES, Fernando A. ; SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida
privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 33-34.
4
NOVAES, Fernando A. .Condições da privacidade na colônia. In: Op.Cit., p 33.
139
De um lado (ideológico), pensava-se a exploração para a cristianização, isto é, exploração como uma necessida-
de para chegar à evangelização, que era o objetivo; doutro lado, nas práticas sociais, o que transparece é o
inverso, isto é, a exploração instrumentalizando a missionação para garantir o domínio
5
.
Foi a partir desse jogo de conflitos presentes no Brasil do século XVIII, e com base nos privilégios do
padroado, das atuações da Mesa de Consciência e Ordem e de outras instituições ordinárias do poder
colonial, que Portugal pôde colocar em prática suas ações expansionistas e colonizadoras, e as intenções
exploratórias nas regiões mais centrais do território, por intermédio da criação de novos bispados e prelazias.
Diferentemente da colônia espanhola, onde as dioceses se multiplicavam invariavelmente, no
Brasil, os territórios eclesiásticos foram mais esporádicos, refletindo certo desinteresse da Coroa pela
divulgação do catolicismo e da vida religiosa na região
6
. Primeiramente, as recém-descobertas terras
brasileiras, no longínquo 1500, ficaram sob a jurisdição do bispado de Funchal, da Ilha da Madeira. Só
em 1551 criou-se a primeira diocese
7
, em Salvador, sufragânea da Arquidiocese de Lisboa. Em 1576,
ou seja, vinte e cinco anos mais tarde, este vastíssimo território foi dividido, formando a prelazia do
Rio de Janeiro, que abarcava também uma grande área ao sul e a oeste. Em 1614, foi instituída a
prelazia de Pernambuco, por decreto do Papa Paulo V. De vida efêmera, sua instalação foi revogada
em 1624 pelo Papa Urbano III, passando novamente para a jurisdição da Bahia. Os bispados seguintes
se constituiriam mais ou menos um século depois, com a elevação da prelazia do Rio de Janeiro (1676)
e a sua criação em Pernambuco (1676) e Maranhão (1677). Durante a primeira metade do século
XVIII, se estabeleceram mais quatro dioceses: a do Pará (1719), que compreendia toda a região ama-
zônica; a de Mariana (1745), em Minas Gerais, que se estendia do centro até o oeste; a do Rio de
Janeiro, que cobria todo o sul do país; e a de São Paulo (1745). (Fig. 27)
As movimentações iniciais para o soerguimento dos bispados de São Paulo e Mariana podem ser
observadas a partir das primeiras ações da Coroa lusa para subdividir o do Rio de Janeiro. Desde março
de 1719, na mesma época da criação da circunscrição eclesiástica do Pará, já havia sido ventilada a
hipótese dessa alteração, quando a metrópole se dirigiu aos governos de São Paulo e Minas pedindo-lhes
informações sobre a conveniência de se criar novos territórios para a administração da Igreja naquela
região de vastas extensões, que iam “[...] desde a boca do Rio da Prata ate os confins do Pará, e Maranhão
comprehende em linha reta [?] mais de trinta graos, e desde a costa do mar athé a extremidade dos descobrimentos do [?] mais
de oittocentas legoas pelos rodeios dos caminhos [...]”
8
. Abrangiam toda a região do Rio de Janeiro e da costa
marítima brasileira do Jequitinhonha até o Rio da Prata, sendo quatro vezes maior do que as dioceses de
Pernambuco, Bahia, Maranhão e Pará. Num momento de preocupações geopolíticas, de avanços
expansionistas e de uma “certa” inquietação para dar assistência espiritual àquele território, seria oportu-
no para Portugal o soerguimento de novas catedrais em espaços de mineração e de soberania ainda não
definida, por serem consideradas elementos de afirmação de suas posses e colonizações.
5
NOVAES, Fernando A. .Condições da privacidade na colônia. In: Idem. p. 34-39.
6
VALE, Marília Maria Brasileiro Teixeira. Arquitetura religiosa do século XIX no antigo Sertão da Farinha Podre. Tese de doutoramento. São Paulo:
FAU-USP, 1995, p. 30.
7
Diocese é uma unidade administrativa básica da Igreja, com circunscrição territorial autônoma e de direito próprio, presidida por um bispo.
A prelazia é uma diocese em embrião, mas independente de uma diocese e não tem bispo.
8
Documento da Biblioteca da Ajuda. In: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: Irmandades e Confrarias na Capitania de
Goiás, 1736/1808. Dissertação de doutoramento em História e Teoria das Idéias. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univer-
sidade Nova de Lisboa, 2006, p.17.
140
Fig. 29 – Arcebispados e bispados da
colônia no século XVIII.
Fonte: ROCHA, Leandro Mendes. Atlas
histórico de Goiás pré-colonial e colonial.
Goiânia: CECAB Editora, 2001, p. 64.
Sendo assim, os propósitos portugueses se firmaram e, em ju-
nho de 1743, Alexandre de Gusmão recomendava:
A hum ministro que ia para as Minas [...] que nas suas viagens por terra, e por
água [...] por qualquer parte que Vm. tranzitar, queira ter o trabalho de escrever e
riscar tudo quanto vir , e ainda escrever e riscar o mais q. souber por pessoas fidedig-
nas, de Terrenos, Lagos, Rios, e Fontes, fructos, e Povos, com seus governos, trajes,
costumes, e Religião [...] exceptuando-se deste trabalho, todo o Paíz, que decorre do
Rio de Janeiro até a Cidade de Mariana q. isto tenho eu já circunstanciado
9
.
Ficava claro, diante desse pedido, que cada vez mais D. João V bus-
cava se informar melhor a respeito dos aspectos geográficos da colônia
portuguesa para a expansão dos seus limites. Simultaneamente a essa von-
tade de demarcação dos limites dos novos Bispados de São Paulo e da
cidade de Mariana, em Minas Gerais, pleiteava-se a criação das prelazias de
Goiás e Mato Grosso, justificando que, além dos propósitos da fé, elas
atenderiam o “numeroso povo, que se acha disperso em vários e entre si mui remotos
arraiais [...]”
10
, ajudariam a inibir o contrabando do ouro nessa “vasta região
aberta às comunicações naturais com o Pará, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio de
Janeiro e São Paulo
11
, e assegurariam a futura posse e a hegemonia de parte
das terras espanholas, endossada pelo beneplácito da Santa Sé.
141
Em abril de 1745, o Conselho Ultramarino respondeu à última indagação do Rei sobre a referi-
da proposta de divisão do extenso bispado do Rio de Janeiro. Em carta a D. João V, Alexandre de
Gusmão afirma que tal medida seria bastante acertada tendo em vista que os limites dessa jurisdição
“[...] se achão [achavam] muy irregularmente estabelecidos, porque conforme a Dioceze de que forão os descobridores ou
povoadores, que entraram para o Certão, della ficarão dependendo no espiritual as povoações que se formarão; donde nasce
acharem-se as dioceses metidas huas pellas outras, sem atenção alguma a linhas, ou rumos ou a balizas naturais de
montes ou rios [...]”
12
. O secretário real confirmava, portanto, o necessário e imediato estabelecimento de
limites e divisões de jurisdição, que compreenderiam parte do território da Capitania de Goiás, a
totalidade da Capitania de Mato Grosso e a indicação de suas respectivas fronteiras.
Para a realização de tais ações, Gusmão propunha ainda que,
Vossa Magestade suplique a Sé Apostólica que nas bulas de todos os bispados que ao diante se expedirem para o
Brasil e Maranhão, se ponha em cláusula expressa e que a todo o tempo se poderão regular os confins da diocese,
conforme a Vossa Magestade parecer mais conveniente e cômodo para o melhor governo espiritual dos povos, sem que
os Bispos possam alegar em contrário a sua posse ou prejuízo [...]. E que desde agora faça Vossa Magestade escrever
a todos os Bispos, Governadores e Ouvidores dos Estados do Brasil e Maranhão que, tomando informações oportu-
nas, apontem o que lhes parecer conveniente para a melhor divisão das dioceses dos seus distritos, explicando com toda
a individuação e clareza os fundamentos do seu parecer; e que o mesmo se escreva ao Padre Diogo Soares a respeito da
divisão da Diocese do Rio de Janeiro e das mais que dela se desmembrarem; e ao Padre Estevão Loreto, a respeito das
dioceses de Pernambuco, Bahia e Maranhão, para que vendo e confrontando-se todas estas informações possa com
maior acerto determinar-se nesta matéria dos confins das dioceses o que for mais conveniente
13
.
O encaminhamento de tais informações aos padres Diogo Soares e Estevão do Loreto no
entanto, não foi simples coincidência; ao contrário, no documento estava implícito um conjunto de
ações previstas por Alexandre de Gusmão, que visavam um melhor conhecimento do território da
colônia e o estabelecimento das bases de um plano de limites fronteiriços, que só seria acordado
com a Espanha em 1750, com o Tratado de Madri. Por serem peritos em matemática e cartografia,
esses dois padres foram escolhidos para desenvolver essas ações. O primeiro, que se encontrava na
colônia desde 1729 e, inclusive, já havia estado em Vila Boa de Goiás, é o autor da citada Nova e
primeira Carta da terra firme, e costa do Brasil, ao Meridiano do Rio de Janeiro, desde o Rio da Prata athé Cabo
Frio, com o novo caminho do certão do Rio Grande athé a cidade de São Paulo (1738/1740). O segundo,
9
GUSMÃO, Alexandre de. Obras várias. apud: BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986, p. 89.
10
Documento sobre criação de Prelazia de Goiás e Cuiabá. apud: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: Irmandades e
Confrarias na Capitania de Goiás, 1736/1808. Dissertação de doutoramento em História e Teoria das Idéias. Lisboa: Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Cap. 2, 2006, p. 15.
11
Documento sobre a criação da Prelazia de Goiás e Cuiabá. apud: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., p. 15.
12
AHU. Goiás. Doc. 264, 1745. O conselho aponte por onde pode dividir o distrito do Cuiabá e dos Goyaz. Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
Goiânia: IPEHBC.
13
AHU. Goiás. Doc. 264, 1745. O conselho aponte por onde pode dividir o distrito do Cuiabá e dos Goyaz. Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
Goiânia: IPEHBC.
142
arquiteto e engenheiro natural de Saint Chamond, da Diocese de Lyon, na França
14
, estava a serviço
de Dom João V desde 1740 e era um profundo conhecedor do norte do Brasil e do Maranhão,
experiência que lhe granjeou a mais profunda estima e consideração do Conde de Galveias e tam-
bém do Conselho Ultramarino.
Após a escolha desses hábeis profissionais, do preciso parecer do Conselho Ultramarino e das
ações diplomáticas do governo português com a Sé Apostólica, iniciadas em janeiro de 1745 com a
mediação do embaixador “Pe. Marco Antonio de Azevedo Coutinho e, da correspondência trocada entre o Padre
João Batista Carbone e o Cardeal com o codinome Add”
15
, D. João V encaminhou ao Papa, em 22 de agosto
de 1745, um pedido:
[...] a V. Santidade [para] a erecção das duas novas cathedrays q ao concelho parece e de duas Prelazias
izentas para os destrictos de Goyaz e Cuiabá com as congruas e limites apontados nesta consulta. Mando pedir
a V. Santidade a erecção das duas novas cathedrays q ao concelho parece e de duas Prelazias izentas para os
destrictos de Goyaz e Cuiabá com as congruas e limites apontados nesta consulta e na outra q juntamente
baixa e em cada huma das dittas cathedrais tenho determinado juntar quatorze Prebendas; quatro p.ª Digni-
dades, a saber: Arcediago em lugar de Deam, Arcipreste, chamtre e thezoureiro, e doze capitanias com os mays
Ministros da Seé e Curia Episcopal q todos haverá as congruas apontadas nesta consulta e tanto estas como as
da Fabrica e sachristya sejão pagas pelas Provedorias dos respectivos disctritos. Será o preparo dos parocos e dos
Pontificiais e outros que adverte o Concelho darei aprovidencia conveniente e omesmo concelho mande vir
promptamente huma relação da prata e ornamentos que a oprezente tem as duas Igrejas que propoem para
cathedrais. Sou servido crear cidade a Villa do Ribeirão do Carmo q ficará chamandose Mariana, deque se
passarão os despachos na mesma forma que se praticou na creação da de São Paulo. E para se ajuntarem as
noticias necessarias para melhor determinação dos limites das Juridiçõens Ecclesiásticas da América o Conse-
lho expera as ordens que aponta
16
.
Para Moraes
17
, dois obstáculos dificultavam a decisão do Papa a favor desse pedido: os pro-
blemas que se sucederiam com o governo espanhol, caso este não aceitasse a concessão de novas
jurisdições da Igreja portuguesa em terras que ainda não haviam sido delimitadas geograficamente;
e a nítida posição da Cúria Romana de não permitir a emissão de uma única bula sobre tal matéria
em territórios americanos e asiáticos, pois se tratava
[...] de hu indulto geral para todos os Bispados erectos, e a erigirse tanto na America, como na Azia, não he
possivel que se inserisse numa Bulla duas erecções pares. [...] não se faz possivel hu indulto tão amplo, e tão
illimitado, [...] não se pode premitir alienação, ou desmembração do Patrimonio da propria Igreja por um Rey
18
.
14
CORTESÃO, Jaime Zuzarte. O tratado de Madri. V.2, p. 175.
15
MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: Irmandades e Confrarias na Capitania de Goiás, 1736/1808. Dissertação de
doutoramento em História e Teoria das Idéias. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Cap.2,
2006, p. 16.
16
AHU. Goiás. Doc. 264, 1745. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC.
17
MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., p. 18-19.
18
Documento da Biblioteca da Ajuda, Lisboa. In: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., p. 19.
143
Na tentativa de viabilizar a negociação, que, diga-se de passagem, transcorreu por quase todo
o ano de 1745, inúmeras cartas sobre o tema foram trocadas entre a Corte portuguesa e a Santa Sé,
acompanhadas de longas tentativas de diálogo e exposições de motivos entre o representante portu-
guês Padre Marco Antônio de Azevedo Coutinho e o Cardeal Add, de Castela. Alegava o primeiro
que a sua oponente espanhola não detinha efetivamente os territórios a oeste da Linha de Tordesilhas,
embora concordasse que, com base no direito canônico para o soerguimento de qualquer bispado,
havia de se determinar os seus limites e confins
19
. Para reforçar seu argumento, alegava que algumas
dioceses em Roma haviam sido criadas sem o estabelecimento prévio de seus limites, como havia
também ocorrido com as de Macau (1575), durante o papado de Gregório XIII; do Japão (1588),
com Sisto V; de Meliapor (1606), com Paulo V; de Pekim e Nankim (1690), com Alexandre VIII.
Diante dos aparentes empecilhos que obstaram o alcance de seus objetivos – já que, efetiva-
mente, a força do padroado português superaria estas barreiras –, Portugal encaminhou outro docu-
mento à Cúria Romana propondo novamente a divisão do bispado do Rio de Janeiro, agora acrescido
de indicações de suas possíveis fronteiras. Conforme reivindicação dos portugueses, o bispado teria
como baliza, ao sul, o Rio Paraíba, passando a limitar-se com o futuro bispado de São Paulo, cuja
jurisdição se estenderia até ao extremo sul do território; ao norte, com o arcebispado da Bahia; a
oeste, com o novo bispado de Mariana, que compreendia todo o território da Capitania de Minas; e,
por fim, com a futura prelazia de Goiás, cujos limites eram os:
Bispados das Minas Geraes e de S. Paulo pellos limites que ficão ditos pode ter a resppeito dos Bispados de
Pernambuco, Maranhão e Pará a mesma divizão em que ao prezente seacha a Diocese do R. de Janeiro ficando
no territorio da mesma Prelazia as Minas e dependencias do Cuyabá por se ter aberto caminho que dizem sera
de vinte dias da Villa Boa dos Goyaz a do Bom Jesus do Cuyabá com o q se evitar o recurso ecclesiastico dos
moradores do mesmo Cuyabá para S. Paulo q he so de anno a anno em monções de canoas com grandes
incomodos e com quatro eas vezes seis mezes de navegação
20
.
Numa coleção de escritos de Alexandre de Gusmão
21
, existente na Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, encontram-se maiores e mais detalhadas informações sobre os limites territoriais da
prelazia goiana. Segundo esse documento, ela deveria ser
Repartida, segundo dispõem a Consulta, a Prelazia dos Goyazes do Bispado de São Paulo pelo Rio Grande
parece que resta explicar a divisão da dita Prelazia do Bispado de Marianna, ou Minas Geraes. Esta divisão,
segundo me figura, já não será pelo Rio Grande, maiormente n’aquella parte aonde vem dar caminho a poucos
anos aberto dos Goyazes às Minas Geraes, porque considero que este caminho vem finalizar no terreno que
corre para dentro do Rio Grande vizinho às Minas do Rio das Mortes, digo, Rio Grande, da parte das Minas,
visto que nasce o dito Rio Grande vizinho às villas do Rio das Mortes, e dalhi vem girando para parte de oeste
19
MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Idem, p. 19.
20
AHU. Goiás. Doc. 264, 1745. O conselho aponte por onde pode dividir o distrito do Cuiabá e dos Goyazes. Projeto Resgate Barão do Rio
Branco. Goiânia: IPEHBC.
21
BNRJ. Goiás. Prelazia. Coleção de escritos de Alexandre de Gusmão. Título 4º, p. 60, Códice: 03, 1, 023. Sobre a repartição da Prelazia de
Goyazes com os dous Bispados de São Paulo e de Marianna, e da Prelazia de Cuyabá com o Bispado de São Paulo.
144
e sul: donde intiro [?] que o confim do caminho dos Goyazes com as Minas Geraes ou seja com os do Rio das
Mortes, he já desviado do giro que faz o dito Rio Grande. Suspendo o discurso nesta matéria porque não tenho
notícias practicas e intuitivas do dito caminho que vem dos Goyazes às Minas Geraes [...]
22
.
Alexandre de Gusmão ressalta que suas opiniões sobre a divisa do antigo bispado do Rio de
Janeiro poderiam estar equivocadas, pela sua pouca experiência naquela região, que havia percorri-
do uma única vez por terra e uma outra por navegação. Quanto às Cartas Geográficas, dizia que as
informações ainda eram imprecisas, dando só uma,
[...] Idéia da Costa do mar, mas ainda essa, por ser muito diminutyssima quanto aos precisos lugares da Costa
por nome de Villas e Sítios de pouca monta, os quaes não costumão por se nas Cartas, ainda de Costas mais
batidas e apolegadas, mas são essenciais quando se trata de semelhante divisão de distritos e das circunstancias
que devem considerar-se ao fazer llas , para as quaes não pode a única visita da Carta produzir o conceito
necessario a quem se não ajudar das espécies memorativas de que tiver visto e pizado [...]
23
.
Por conseguinte, lembrava que inúmeras pessoas experientes já haviam andado por aquela região,
[...] uns por partes segundo os distritos que lhes tocarão, outros tudo, ou quase tudo o que há de essencial ao
propósito nas Capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas, assim como do Cuyabá e Goyazes. Tal he o
Senhor Rafhael Pires Sardinho, que estava no Conselho, bem que não fosse a Cuyabá e Goyazes. Com elle foi
o Sr. Dr. Braz da Silveira que sabe de todo o caminho de São Paulo para as minas, porque em São Paulo que
ainda então era governo unido, tomou posse, com o Sr. D. Lourenço de Almeida, com o Sr. Ayres de Saldanha
, com o Sr. Antônio da Silva Caldeira Pimentel, não nomeio o Sr. Marques de Castello – Novo, por estar
auzente; mas o Capitão Manoel da Costa Fragozo que o acompanhou terá lembrança daquelles caminhos
palmo por palmo, e com os Desembargadores Manoel Da Costa Mimozo, Francisco da Cunha Lobo, João
Soares Tavares, Gregáorio Dias da Silva, Manoel Dias Torres, João Campelo e outros que foram ouvidores de
Villa Rica e Rio das Mortes[...]”
24
.
Só com os pareceres de todas essas pessoas, que haviam sido governadores e ministros da
região, seria possível, segundo Gusmão, fazer um congresso para se elaborar, posteriormente, um
plano preciso com a indicação dos limites dos novos bispados e prelazias, exigidos para se expedi-
rem as “[...] Bullas com alguma clareza e melhor idéia, do que parece poder dar o dizer-se em confuzo, que os
Bispados se repartão pela repartiçã dos governos seculares [...]”
25
.
22
BNRJ. Goiás. Prelazia. Coleção de escritos de Alexandre de Gusmão. Título 4º, p. 60, Códice: 03, 1, 023. Sobre a repartição da Prelazia de
Goyazes com os dous Bispados de São Paulo e de Marianna, e da Prelazia de Cuyabá com o Bispado de São Paulo.
23
BNRJ. Goiás. Prelazia. Idem.
24
BNRJ. Goiás. Prelazia. Idem.
25
BNRJ. Goiás. Prelazia. Idem.
26
MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: Irmandades e Confrarias na Capitania de Goiás, 1736/1808. Dissertação de doutoramento
em História e Teoria das Idéias. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Cap. 2, 2006, p. 20.
145
Diante de providências mais concretas, semelhantes às já citadas, é que se pode entender a carta
do matemático e cartógrafo Padre João Baptista Carbone ao Cardeal Add
26
, propondo a finalização
das negociações, porque o monarca português, graças ao regime de padroado, era o chefe efetivo da
Igreja em formação; ao Papa convinha apenas as confirmações das decisões do Rei, e este já havia
criado os bispados e as referidas prelazias. Suplicava-lhe, apenas, que intercedesse para que o Papa
Bento XIV expedisse uma bula apropriada confirmando aquele ato régio. Argumentava Padre Carbone,
que em 1744, antes mesmo da instituição da prelazia, a Mesa de Consciência e Ordens já havia expe-
dido “[...] determinações régias, primeiro, aos bispos do Rio de Janeiro e, depois, aos prelados da capitania, ordenando-
lhes colar as igrejas de algumas freguesias, o que deve ser por muitos principios convenyentes ao bem das almas, com muito
credito e zello e honra do serviço de V. Mag.
27
. Mais precisamente, a Coroa poderia assegurar, com a
formação de paróquias, a soberania de territórios ainda não legalizados.
Com efeito, em 8 de dezembro de 1745, as prelazias foram instituídas pela promulgação da
bula Candor Lucis Aetene que as retirava da jurisdição do Rio de Janeiro. Para Goiás, no entanto, a
competência jurídica da nova prelazia deveria compreender somente a região centro e sul do terri-
tório, pois as Terras Novas, ao norte da região, pertenciam ao bispado do Grão-Pará. Conforme a
Descrição cosmográfica por espaços geométricos do continente mediterrâneo das Terras Novas do Bispado do Grão
Pará [...], de 1744 (Fig. 30), ela se limitava pela parte austral com o Maranhão; pela meridional, com
Pernambuco e pela setentrional, com o Rio de Janeiro.
Contudo, apesar da tramitação do processo de formação das prelazias de Goiás e Cuiabá pela
Santa Sé, e da demarcação de seus limites, fica claro que o maior objetivo da metrópole foi a afirma-
ção das posses dos territórios minerais e a expansão da colônia. Isso pode ser comprovado quando
se leva em conta que a jurisdição eclesiástica da prelazia de Goiás se manteve sob a confiança do Rio
de Janeiro ao longo de todo o século XVIII, e que a constituição administrativa da Capitania só se
faria quatro anos depois, em 1749. Pode-se também observar, com relação a essa mesma questão,
que no curso do período colonial houve realmente pouco interesse pela criação de prelazias, porque
os encargos oneravam os cofres da Coroa. Eram, segundo Vale, também consideradas pela adminis-
tração metropolitana, no que diz respeito às questões da fé, apenas como pesos mortos. Isso ocorria
porque “o padroado esvaziava de tal forma a função episcopal que este não chegava a constituir um centro de
unidade religiosa e sua influência não era significativa”
28
. Para Goiás e Mato Grosso, até mesmo as questões
referentes à formação de sacerdotes e à assistência religiosa sofreram uma direta interferência do
governo, como se vê no documento de Alexandre de Gusmão:
[...] Obter me ocorre dizer, que não percebo qual seja o inconviniente de que as duas Prelazias de Cuyabá e dos
Goyazes se conceda a faculdade de dar ordens Menores, para que possão ternas Suas Igrejas, e para o serviço
dos Pontificaes aquelles Ministros interiores, que para a Custódia, e decoro da Igreja, são indispensáveis, e para as
funcçoes Pontificaes podem em falta de Sacerdote, fazer número quando desta condecoração de se verem iniciados na
hierarquia da Igreja, resultará aos ditos Ministros interiores o viverem mais contentes, e mais commedidos, e aos
Pais que quizerem alhi por seus filhos, um maior zelo e fervor de assistirem ao culto Divino e o promoverem.
Parece-me que já hoje se achão em qualquer d’aquellas Minas, ao menos nas Villas principaes de Bom Jesus de
27
Documento transcrito por MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., p. 39.
28
VALE, Marília Maria Brasileiro Teixeira. Op. Cit., p. 31.
146
Cuyabá e de S. Anna nos Goyazes estabelecidas muitas famílias honestas;
e ficará a discriçã e consciência dos ditos Prelados o escolher destas, e não das
infectas, os que hajão de Ordenar in Minoribus para o serviço e esplendor da
Igreja. E muito que aquellas mesmas famílias honestas não se considerem
alhi persistentes pela variedade que as minas dão de si, parece que não há
inconviniente algum em que aquella mocidade, que em qualquer das ditas
Prelazias for Ordenada de Menores, a todo o temp que vier para São Paulo,
Minas Geraes ou Rio de Janeiro, tragão a sua fé da Matrícula, e Ordem
recebidas em virtude della sejam promovidas as Ordens Maiores [...]
29
.
Por outro lado, se no âmbito do exercício do cristianismo e da
pregação da fé, a estrutura era falha, o afastamento dos prelados de
suas atividades pastorais, a despeito de algumas exceções
30
, os levou
à completa submissão e dependência da política colonialista. Mas foi
dessa forma que alguns deles, ao atuarem como funcionários públi-
cos, defensores ativos e porta-vozes do Reino, contribuíram para a
consolidação territorial de Goiás.
Fig. 30 – Mapa do Bispado do Gram-Pará.
Fonte: MATOSO, Caetano da Costa.
Códice Costa Matoso. “Coleção das
notícias dos descobrimentos das minas
na América que fez o doutor Caetano
da Costa Matoso sendo ouvidor-geral
das do Ouro Preto, de que tomou
posse em fevereiro de 1749, & e vários
papéis”. Belo Horizonte: Fundação
João Pinheiro, Centro de Estudos
Históricos e Culturais, 1999.
147
4.2 A organização das paróquias e a urbanização
No mundo colonial, as relações estabelecidas entre a Igreja e o Estado, foram representadas por
um conjunto de direitos e obrigações mútuas que se sobepunham no âmbito da administração do
território, materializando concretamente os desequilíbrios e as contradições entre os dois poderes.
Unidos intimamente pelo regime do padroado, aos monarcas era permitido estabelecer diretrizes para
a estruturação da colônia conforme suas conveniências e desejos, competindo-lhes exercer as funções
administrativas das capitanias, fiscalizar impostos, fundar cidades e construir edifícios religiosos. Sob a
responsabilidade da Igreja ficaram as normas referentes a essas construções e a propagação dos dogmas
cristãos. Administrativamente, a Igreja se organizava, como se viu, segundo dioceses ou prelazias que
eram subdivididas em paróquias
31
, entendidas como delimitações territoriais eclesiásticas de referência
do povo, associadas a um edifício religioso e atuando como uma espécie de distrito.
No Brasil, o status de paróquia ou freguesia dado aos arraiais não se originava da simples
divisão de terras ermas, desconhecidas, como poderia ocorrer com as formações das dioceses e
prelazias, mas sim com o reconhecimento, a institucionalização por parte do Estado e da Igreja, dos
povoados existentes, e, portanto, de regiões habitadas. O procedimento se realizava a partir da
elevação de pequenas capelas à condição de matrizes de arraiais “[...] aonde Se acha o mayor comcursso
dos moradores por cauza da comviniencia das minas, e lavras donde Trabalhão”
32
, ou seja, a preferência era
para lugares mais populosos e que potencialmente eram tidos como lucrativos.
Uma vez concedido esse privilégio, os povoados ganhavam uma nova condição religiosa, que
poderia se estender além de seus limites e alcançar outras regiões, conforme consta desta Provisão
de Goiás, que solicitava assistência a todos
[...] os moradores do Arrayal de Santa Cruz, e os mais da estrada e do caminho de povoado principiando do
sitio chamado das Antas incluzive, ate o Rio
chamado Rio Grande, Freguezes estes obrigados a matris de
Santa Anna dos goyazes, e aquelles também Freguezes estes obrigados a matris de Nossa Senhora
do Rozario
da Meya ponte que huns, e outros se achão distantes da suas Freguezias a saber os Freguezes da Meyaponte
secenta legoas, eos Freguezes de Santa Anna muito
mais de cem Legoas
33
.
Duas eram as formas de reconhecimento ou institucionalização de um lugar: colando as capelas
34
,
confirmando a nomeação de um padre sustentado pelo Estado português, e garantindo recursos para a
manutenção das igrejas e administração continuada “[...] com Sacramentos
mais promptos”, podendo, enfim, o
29
BNRJ. Goiás. Prelazia. Coleção de escritos de Alexandre de Gusmão. Título 4º, p. 60, Códice: 03,1,023. Sobre a repartição da Prelazia de
Goyazes com os dous Bispados de São Paulo e de Marianna, e da Prelazia de Cuyabá com o Bispado de São Paulo.
30
“Não faltaram evidentemente alguns bispos que protestaram ou simplesmente não se conformavam com as imposições da metrópole, ou tiveram
dissensões com os governantes no Brasil. Alguns bispos foram até chamados a Portugal para prestarem contas de suas atuações ou simplesmente
afastados da sede episcopal e exilados”. HOONAERTE, Eduardo. História da igreja do Brasil. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 180.
31
Em sentido estrito, a paróquia era uma entidade diocesana limitada, cuja população possuía área determinada e ministros que lhe prestava
assistência espiritual. Mas, numa significação prática, embora menos freqüentemente definida, a paróquia assumia o sentido de um território.
32
IPEHBC. Cópia da Primeira e última visita do Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das Minas de Goyaz, (1734-1824).
33
IPEHBC. Idem.
34
AHU. Goiás. Doc. 943 a 947, 1767. Sobre as capelas coladas da Capitania de Goiás. Goiânia: IPEHBC.
148
povo viver “[...] como christaos, ao que o zello de Vossa Excelência
há de atender para
ficarem com grande consolação
Espiritual”
35
; ou encomendando-as, ou seja, capelas de natureza eclesiástica, com párocos nomeados ad
tempus por ordem dos bispos, sempre havendo a possibilidade de serem removidos a qualquer momento,
deixando a comunidade sem o socorro dos “[...] Sacramentos
Senão muito
apenas no tempo da dezobriga quando
os seus Reverendos Parochos lhes envião sacerdotes para satisfazerem os preceytos quadragessimaes, ficando vivendo o mais
tempo a Ley da natureza, Sem o pasto Espiritual de que necessitão para
bem e consolação de suas Almas[...]”
36
. Em
ambos os casos, as capelas solucionavam gastos da Coroa e atendiam às imediatas solicitações comunitá-
rias mediante acordos com os núcleos populacionais que deveriam assumir as despesas adicionais, com a
arrecadação de tributos conhecidos como conhecenças, pés-de-altar e esmolas da bacia
37
. Para Fernando Torres-
Londoño
38
, no quadro geral da política de colonização portuguesa, as capelas encomendadas se multipli-
cavam inegavelmente mais que as coladas
39
, apesar dos inúmeros pedidos para colações, que era a condição
mais segura de se obter recursos para a construção de matrizes e determinação de côngruas
40
para seus
párocos. Nas capelas encomendadas, diferentemente das coladas, os sacerdotes não eram “[...] selecionados
por concursos e nem examinados acerca da doutrina, exigia-se apenas idoneidade moral”
41
.
Às novas sedes paroquiais reservava-se o cumprimento de funções básicas, que iam desde a admi-
nistração dos sacramentos, da cura das almas ou pastoral, do cuidado com o espaço de oração, com seu
decoro e bom comportamento dos fiéis, até a atenção dos párocos para a não consagração de qualquer
ermida ou capela sem a autorização do bispo. A paróquia era o espaço por excelência das festas religiosas,
eventos que sempre se associavam a uma devoção ou a um momento especial da liturgia católica, como
a quaresma ou o advento, organizados segundo um calendário religioso. Mesmo nas pouquíssimas opor-
tunidades em que se comemoravam datas cívicas, as festas tinham como ponto alto o ritual religioso.
Não apenas com as atividades relacionadas ao culto e às festas religiosas se preocupavam as paróqui-
as. No Brasil, coube também a esses distritos eclesiásticos a execução de inúmeras outras funções em nome
do Estado. Em regiões de grandes extensões territoriais que haviam sido desbravadas por entradas e bandei-
ras, a freguesia substituía a falta de autoridades e jurisdições civis, transformando-se paulatinamente em
espaços burocráticos e mais voltados para as atividades do poder civil. Por intermédio do cumprimento de
obrigações religiosas, como o dízimo, o governo português se fazia presente e, no âmbito judiciário, com as
corriqueiras devassas. Eram as paróquias, portanto, que se encarregavam da ordem religiosa, civil e legal,
como ocorria com a paróquia de Meia Ponte, que se ocupava das capelas filiais próximas à sua matriz e
daquelas localizadas em povoados mais distantes que estavam sob sua jurisdição, como Jaraguá e Corumbá
(Figs. 31 a 36), os pequenos arraiais de Couros e Guarinos, que, certamente, também almejavam um dia
terem o estatuto de paróquia ou freguesia.
35
IPEHBC. 1734-1824. Cópia da Primeira e última visita do Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das Minas de Goyaz.
36
IPEHBC. 1734-1824. Idem.
37
Consistiam as conhecenças numa espécie de dízimos pessoais, cobrados pela obrigação da confissão anual e comunhão pascal e os pé-de-altar, em
ofertas voluntárias por sacramentos administrados. HOONAERT, Eduardo. História da igreja do Brasil. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 284-
286. Já esmola da bacia era “recolhida durante o sacrifício da missa, por ocasião de festas. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., 1999.
38
TORRES-LONDOÑO, Fernando. Paróquia e comunidade no Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. 59.
39
Contrariando essa posição, que também é a de Hoonaerte, Cristina Moraes diz que em Goiás houve freqüentes preocupações com as colações
de suas paróquias, pois desde “1744, e com freqüência, a Mesa de Consciência e Ordens expediu determinações régias, primeiro, aos bispos do Rio de Janeiro
[...]”. Mas, neste caso, ficamos com as afirmações dos autores Torres-Londoño e Hoonaerte, por considerar ser esta uma estratégia da Coroa
para garantir sua expansão territorial, como vimos no primeiro item deste capítulo. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit. , Cap. 2, p. 39.
40
Côngruas eram o sustento financeiro pago pelo padroado por meio da folha eclesiástica.
41
TORRES-LONDOÑO, Fernando. Op. Cit., p. 59.
149
Fig. 31 – Imagem da Igreja do antigo
Arraial de Jaraguá.
Fotos de Lorena e Carolina
Boaventura.
Fig. 32 – Imagem da Igreja do antigo
Arraial de Jaraguá.
Fotos de Lorena e Carolina
Boaventura.
Fig. 33 – Imagem da Igreja do antigo
Arraial de Jaraguá.
Fotos de Lorena e Carolina
Boaventura.
150
Fig. 34 – Imagem da Igreja do antigo
Arraial de Corumbá.
Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig. 36 – Imagem do casario do antigo
Arraial de Corumbá.
Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
Fig. 35 – Imagem da Igreja do antigo
Arraial de Corumbá.
Fotos de Lorena e Carolina Boaventura.
151
Apesar de certa resistência da Igreja de criar paróquias sob quaisquer circunstâncias, em Goiás
não se verifica os prolongados trâmites burocráticos semelhantes aos que ocorreram para a institui-
ção da prelazia. Ao contrário, em relação às paróquias que se ergueram nos séculos anteriores em
outros locais da colônia, em Goiás, elas se multiplicaram, paralelamente à formação ou crescimento
dos arraiais e aldeamentos, por todo o curso do século XVIII. A primeira paróquia foi criada na
circunscrição do sul, quando se elevou à categoria de matriz a capelinha do Arraial de Santana,
futura capital Vila Boa. Nesse período, ficaram sob sua jurisdição as filiais de Nossa Senhora do
Pilar, de Ouro Fino; Nossa Senhora do Rosário, na Barra e a de São João, no arraial do Ferreiro.
Em 1780, a freguesia de Santana foi dividida em duas, ficando a outra no aldeamento de São
José de Mossâmedes, conforme o antigo edital a seguir:
Edital pelo qual o Ex.
mo
R.
mo
S
r
Bispo deste Bispado do R
o
de Janr
o
ha porbem de criar e erigir huma nova
Freguezia Com o titullo einvocação de S. Joze de Mosamedes, desmembrando a e dividindo-a da Antiga
freguezia de S.Anna de Goyaz, tu do Como nelle Se contem e declara.
Dom Jozé Joaquim Justiniano Mascarenhas Castello Branco por Mizericordia Divina Bispo do Rio de Janeiro
etr.
a
aos que oprezente Nosso Edital virem, Saude e bem ção. Como nos consta que no Lugar e Aldea de São
Joze de Mosamedes pertencente a freguezia de S. Anna de V.
a
boa de Goyas deste nosso Bispado Setem
extabelecido huma avultada Povoação de moradores Indios que desprezando a Barbaridade de Sua vida
ecustumes Setem Segundo os principios da N.Santa Religião forão Baptizados e estão vivendo em Socied.
e
cristam e civil no mesmo Lugar,cuja Povoação inda mais Se podera augmentar aproproção que forem descendo
outros, e abrasarem a mesma Santa Religião e estado devida civil: e prezentemente nos fez certo o Ill.
mo
e Ex
mo
Senhor Gn.
al
damesma capitania de Goyas que em Conscequencia das Reaes Ordens, e Piissimas e Liberalissimas
Providencias da Raynha Fidelissíma N.Senhora já se acha Conscignada côngrua Certa de 35$ a favor da
fabrica eguizamentos da Igreja da mesma Aldea, duzentos mil r.
s
alem da Diaria Sustentação que hé na
refferida Aldeã, p.
a
que haja hum Parocho, que insetáa, demaneira, que não cheguem jamais a experimentar
falta ou detrimento algum no seu Pasto Spiritual como aleas experimentarião Selhes fosem necessario recorre-
rem Suas necesidades Espirituaes ao seu Antigo Parocho na capital e Sobredita Matriz de S. Anna de Villa
Boa ficandolhe esta distante mais de Sinco Legoas Attendendo Nos atodas estas circunstancias e Justas couzas
que ocorrem eao que nos tem propôsto omesmo R
do
Vigr
o
collado actual em N. Prezença convindo voluntaria-
mente na desmembração devizão e ereção da Nova Parochia, na referida Aldea e Povoação de S. Joze de
Mosamedes afavor detodos os Indios que nella Seachão moradores uzando da authoridade, edodireito que nos
compete, e em conscequencia das Reaes ordens. Havemos porbem de erigir e criar, como pelo prezente Nosso
Edital erigimos ecriamos nomesmo Lugar, ePovoação huma nova Freguezia com otitulo e invocação de S.Joze
de Mosamedes desmembrandoa edividindo-a da antiga Freguezia de S. Anna de V
a. 42
Nessa mesma circunscrição foram criadas outras paróquias ao longo do século XVIII: Senhor
do Bom Jesus, no Arraial de Anta, que incluía as de Santa Rita e de Santo Antônio de Amaro Leite,
onde viviam 2.600 almas e cuja extensão era de 85 léguas, a maior parte delas no sertão despovoado; de
São Miguel, no Arraial de Tezouras, abrangendo um território de 18 léguas e contando com 200 fiéis;
de Crixás, com 16 léguas e 2.900 almas; de Nossa Senhora do Pilar, no Arraial de Pilar, que ocupava
42
IPEHBC, 1732-1824. Cópia da primeira e última visita que fez do Doutor Alexandre Marques do Valle, visitador que foi das minas de Goiás, 1780.
152
uma área de 12 léguas e tinha uma filial em Guarinos, a três léguas, somando um total 4.600 fiéis; de
São José, no Arraial do Tocantins, com as capelas filiais em Santa Rita, Amaro Leite e Nossa Senhora
da Abadia do Moquém, cobrindo 11 léguas e onde viviam 4.000 almas; Nossa Senhora da Conceição,
no Arraial de Santa Cruz, com 80 léguas de sertão despovoado e onde viviam 1.200 fiéis; de Santa
Luzia, no Arraial do mesmo nome, com capelas filiais em Santo Antônio dos Montes Claros, a nove
léguas da matriz, e em Couros, distante 24 léguas. Ainda, a matriz Nossa Senhora do Rosário, em Meia
Ponte, e suas capelas filiais de Nossa Senhora da Penha, no Arraial de Jaraguá; Nossa Senhora do
Rosário do Rio do Peixe, Santo Antônio da Serra Negra e Nossa Senhora da Penha, no Arraial de
Corumbá, numa extensão de 32 léguas e com 5.000 fiéis; Nossa Senhora da Conceição, em Traíras,
com 5.000 almas e filiais em Água Quente, a oito léguas; em Cocal, a quatro léguas; e em Serra Negra,
a 15 léguas (esta pertencente a uma fazenda); freguesia do Descoberto, com a matriz Nossa Senhora
das Necessidades; do aldeamento do Rio das Velhas, com a matriz de Santana; Nossa Senhora do
Desterro do Desemboque e de São Domingos do Araxá
43
.
Destas, as três últimas se localizavam na região do antigo Sertão da Farinha Podre, local de
freqüentes conflitos fronteiriços com Minas Gerais no Setecentos. Espaço de grande concentração
de índios e de poucos brancos colonizadores, suas datas de fundação são de difícil precisão. Mas de
acordo com Sampaio
44
, a paróquia do Desemboque já contava com padres nomeados para o exercí-
cio de suas atividades desde 1768. Para a paróquia de Araxá, o Padre José Correia Leitão, Visitador
Ordinário e Vigário Geral da Capitania, redigiu um edital informando que, por sua determinação,
um vigário passaria, a partir de 1795, “[...] a celebrar o Santo ofício da Missa e fazer suas funções eclesiásticas
para fundar o direito de posseção e jurisdição”
45
.
A mais antiga matriz e de maior particularidade dessa região foi a paróquia da Aldeia de
Santana, criada em 1750, com recursos do governo, para assistir exclusivamente os índios aldeados
que se instalaram ao longo da Estrada do Anhangüera. Inicialmente, foi entregue aos cuidados dos
jesuítas, e, com a expulsão deles, essa aldeia e as demais passaram para a Vigária Perpétua, atendidas
por clérigos do hábito de São Pedro. A partir de 1776, outros povoados próximos, formados por
não índios, também passaram a ser atendidos pela paróquia dessa aldeia.
Do bispado do Pará fizeram parte, entre outras, as freguesias: matriz de São Félix, no arraial
de mesmo nome e com as filiais Nossa Senhora do Carmo, distante a três léguas, e Capela da
Chapada, a seis léguas; de Natividade, com a igreja de Nossa Senhora da Natividade, e, sob sua
jurisdição, a capela do Arraial das Almas, a 20 léguas; a do Carmo, com a matriz Nossa Senhora do
Monte do Carmo; da Conceição, com a matriz Nossa Senhora da Conceição da Barra da Palma; das
Almas, com a igreja Nossa Senhora dos Remédios e filiais em São Domingos e no Morro do Cha-
péu; e as freguesias do Cavalcante e de Flores
46
.
43
Mapa das freguesias da Capitania de Goiás e suas capelas filiais, as distâncias em que estas estão daquelas, a que bispado pertencem, tudo
averiguado no ano de 1783. In: BERTRAN, Paulo (org.) Notícia geral da Capitania de Goiás. V.1. Goiânia/ Brasília: UCG, UFG, Solo Editores,
1997, p. 93 e MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., p. 21.
44
SAMPAIO, Antônio Borges. apud: VALE, Marília Maria Brasileiro Teixeira. Op. Cit., p. 47
45
Livro de Provisões e outros atos das Freguesias da Capitania de Goiás, 1795-1816. apud: VALE, Marília Maria Brasileiro Teixeira, p. 51.
46
Livro de Provisões e outros atos das Freguesias da Capitania de Goiás, 1795-1816. Idem.
153
Quanto ao processo de colação dessas matrizes, ao que parece, ele acompanhou as mesmas
dinâmicas verificadas em outras regiões da colônia: lentas e tortuosas. Inicialmente, os pedidos eram
encaminhados pelos proponentes à Mesa de Consciência e Ordens e, posteriormente, enviados para
os bispos das dioceses, para que fizessem uma consulta por escrito ao pároco da freguesia interessada.
Esse parecer voltava então ao Bispo e deste, novamente para a Mesa de Consciência e Ordens.
É possível encontrar um quadro geral das condições das paróquias goianas em um documen-
to de janeiro de 1768, feito a pedido do governador João Manuel de Almeida e dirigido ao seu
Provedor, já que para se conhecer melhor esse território era necessário levantar “[...] as informaçoens
das Igrejas com a individuação que a ordem de Vossa Magestade insinuava [...]”
47
. Segundo o levantamento,
apresentado em uma lista, acreditava-se que tudo estava exato “[...] e que só se differe [diferia] pouco no
numero dos moradores de alguns Arrayais que nunca se pode aviriguar com total certeza em Parochias tão extenças
onde mais he a gente que habia pelo campo que a que está nos Povoados”
48
.
Na jurisdição do Rio de Janeiro, havia
[...] sinco coladas que são Santa Cruz, Anta, Pillar, chrixas, e São Joze, e as outras as aprezento o
Reverendo Bispo que vem a ser a desta Villa, Meya Ponte, Trahyras, e Santa Luzia, mas são as de mayor
rendimento de toda a Capitania principalmente a desta Villa, Trahyras, e Meya Ponte, as quaes merecem
ser coladas para a grandeza de Vossa Magestade ter com que fazer mercês a Ecleziásticos de distintas
Letras e meressimentos [...]
49
.
Nos parágrafos seguintes, o documento apresenta ainda recomendações para a não colação
da distante paróquia de São Miguel de Tesouras, por encontrar-se despovoada em função da presen-
ça de dos índios Caiapó e Xavante nas proximidades.
Na circunscrição pertencente ao bispado do Pará, a lista aponta o quanto a situação dessa
região se diferenciava da jurisdição anterior, pois não possuía sequer uma igreja colada e “[...] todas as
aprezenta o Reverendo Bispo mas com a differença que as duas principais que são a da Natividade, e São Felix he
por aprezentação sua, e as outras que são de tênue rendimento as aprezentão os vigários da vara por faculdade que
lhes concede o mesmo Reverendo Bispo ou o Governador do Bispado
50
. Mesmo diante de tais circunstâncias,
sugeria-se que essas duas maiores, em função de seus rendimentos, pudessem ser coladas, assim
como as de “[...] Nossa Senhora do Rozario das Flores e São Felix de Cantalicio da Barra da Palma por serem
no Sertão onde há fazendas de gado estabelecidas”
51
.
Pode-se observar ainda que, além da geografia eclesiástica da região norte da Capitania de Goiás,
identificada por um reduzido número de paróquias, suas grandes extensões territoriais estavam relaci-
onadas também aos mecanismos que orientavam a formação das paróquias goianas. As fundações
47
AHU. Goiás. Doc. 1534, 1768. Cópia de uma Carta de João Manuel de Almeida. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPHEBC
48
AHU. Goiás. Doc. 1534, 1768. Idem
49
AHU. Goiás. Doc. 1534, 1768. Idem.
50
AHU. Goiás. Doc. 1534, 1768. Idem.
51
AHU. Goiás. Doc. 1534, 1768. Idem.
154
desses territórios da fé se erguiam e se colavam, basicamente, quando os interesses da Igreja se articu-
lavam mais estreitamente com a política de colonização da Coroa portuguesa, particularmente na
época da consolidação do Tratado de Madri. A lista das paróquias elaborada pelo Cônego Trindade
corrobora essa conclusão, quando se vê a constituição de algumas paróquias goianas.
A Freguesia da Sé de Goiás foi criada pelo Bispo do Rio de Janeiro, D. Fr. Antonio de Guadelupe pelos
anos de 1726 a 1736.» [...] As Minas de Meia Ponte aparecem no cenário histórico já no ano de 1727,
mas só em março de 1732 é que vamos encontrar o Pe José Frias de Vasconcelos, seu primeiro capelão.
Santa Cruz data de 1729 e em 1737 já existia a capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição [...], em
1739 ela é curada, em 8 de novembro de 1741 ela é paróquia e em 1759 ela se torna de natureza colativa.
Jaraguá em 1740 é capela. Em 1743 tem o seu primeiro capelão, em 1748 aparece a invocação de São José
de Nossa Senhora da Penha, em 1757 passa a ser Nossa Senhora da Penha. Corumbá tem seu primeiro
sacerdote assistente em 1751.
O Alvará Régio de 10 de Janeiro de 1755 eleva as capelas de Santa Rita de Antas, Nossa Senhora de
Crixás, N. S. do Pilar, N. Senhora da Conceição de Traíras a categoria de freguesia colativa. Santa Cruz e
Santa Luzia só em 21 de outubro de 1759
52
.
Esses dados apresentados pelo Cônego elucidam os esforços feitos pela metrópole, na pri-
meira metade do século XVIII, para a criação de algumas paróquias em Goiás. Muitas das datas
dessas fundações, inclusive, correspondem exatamente ao período expansionista orientado por
Gusmão, e, portanto, antes mesmo do acordo e assinatura do Tratado de Madri pelos paises ibéri-
cos. São essas coincidências temporais, articuladas a um conjunto de ações políticas do padroado
português, que nos levam a crer que um dos maiores interesses de Portugal nesse momento foi o da
busca da consolidação do controle estatal sobre essas terras, que ajudaram, por fim, uma construção
territorial que só se concluiria plenamente na segunda metade dessa centúria.
4.3 As irmandades e a arquitetura religiosa.
As cidades coloniais brasileiras do século XVIII foram amplamente influenciadas pela arquitetura
religiosa, marcando significativamente suas concepções e organizações espaciais. Por certo, a arquitetura
religiosa, sozinha, não explica as complexidades e as particularidades que envolvem as formações dos
espaços urbanos, o que nos leva a considerar, no processo de construção das cidades de Goiás do século
XVIII, as ações de alguns de seus agentes sociais institucionalizados, como as irmandades que escolhe-
ram sítios para a implantação de igrejas e capelas nos diversos arraiais e vilas dessa Capitania, marcando-
os com a manifestação de valores sociais vigentes iguais as discriminações e desigualdades de uma sociedade
constituída a partir da legitimação da escravidão.
Dada a proibição de fixação de ordens religiosas e o estrito controle da região goiana e de seus
acessos, criam-se nos arraiais de Goiás, assim como nos de Minas Gerais, comunidades que manti-
52
FONSECA E SILVA, J. Trindade da. Lugares e pessoas: subsídios eclesiásticos para a história de Goiás. São Paulo: Escolas Profissionais
Salesianas, 1948, p. 71-77.
155
veram a continuidade da tradição religiosa de seus antepassados portugueses e paulistas, amalgama-
dos por aspectos de origem indígena e africana. Essas agremiações religiosas leigas surgiram logo
após a fixação dos primeiros habitantes às margens do Rio Vermelho e foram organizadas a partir
de grupos distintos formados por homens brancos livres, pardos, escravos e índios. Sem exceções,
juntaram-se em confrarias e irmandades
53
, ou mais precisamente, em associações voluntárias
54
, con-
sideradas peças importantes da estrutura social desses povoados. Vindas de uma herança da Baixa
Idade Média, tinham por objetivo não apenas promover o culto e a devoção ao santo de uma
determinada igreja, mas também o exercício da caridade cristã, cuja inspiração remete às Ordens de
Misericórdias.
Segundo uma doutrina teológica desenvolvida em Portugal, as irmandades, assim como os demais
membros da sociedade, se constituíam em um corpo invisível formado por todas as verdades unificadas.
É a doutrina do Corpo Místico de Cristo, consoante o ensinamento de São Paulo (1ª Cor., 15, 27; Ef. 1, 22-23)
segundo a qual todos os batizados no Senhor são seus membros, os quais, irmanados entre si, constituem um corpo
único e uno, cuja cabeça é Cristo. Todos eles são responsáveis uns pelos outros, tanto para a edificação, quer dizer,
conservação e expansão desse corpo, por meio da prática do bem, quanto por seu enfraquecimento e estagnação, ou
através da omissão ou da prática do mal. Noutras palavras, neste mundo, o Corpo Místico de Cristo é a Igreja
Católica militante, comunidade de todos os fiéis. No outro mundo, o sobrenatural e transcendente, fazendo parte
da Igreja Triunfante, estão todos aqueles que, nesta terra, creram na Promessa do Messias, desde Adão, e n’Ele
próprio e em seus ensinamentos e os praticaram. Concretamente, as associações são partes integrantes e parcelares
desse imenso corpo em que a fé e a caridade podem ser vivenciadas mais intensamente
55
.
No mundo do padroado, essa idéia também serviu para os juristas católicos explicarem o poder da
Coroa, a razão de Estado com sua política intervencionista. O Rei absolutista é a cabeça do corpo político
português e, por isso, não se considerava a existência de nenhum homem superior à sua pessoa, pois ele era
legibus solutus, legibus absolutus, e em seu ser mortal encontrava-se a pessoa pública do povo, que era imortal e
infalível
56
. As demais organizações sociais, partes constitutivas desse corpo, aceitariam as suas condições e
53
Em Goiás, elas se apresentaram antes mesmo da instituição da prelazia, em 1745, quando já havia as irmandades de São Miguel e Almas (1733), a de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1734), a do Santíssimo Sacramento (1742), a de Nossa Senhora da Boa Morte (1749), a de São José (1749), a de
Santa Efigênia, (anterior a 1752) e a do Senhor dos Passos (anterior a 1751). Igualmente, também já havia em Vila Boa as confrarias de Santo Antônio e
a dos Republicanos. Esta última, uma confraria de devoção que tinha por orago São Sebastião, foi criada em 1742 pelos membros da Câmara de Vila Boa,
que eram os responsáveis pelos culto, altar, festas e procissões em louvor do santo protetor, não em capela, mas no próprio espaço do senado. Entretanto,
a primeira confraria é de 1739, com provisão de 1743. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit. , Cap. 8.
54
Moraes afirma que o Código do Direito Canônico divide as associações em Ordens Terceiras, confrarias e pias uniões. As primeiras, sob a
inspiração e a orientação duma determinada Ordem ou Congregação religiosa, cuja Regra tem aprovação eclesiástica, têm como preocupação
fundamental a perfeição da vida cristã de seus associados, os quais são genericamente chamados de terceiros e, igualmente, vivenciam mais
intensamente as Obras de Misericórdia. “Quando os fiéis se associam para fazer alguma obra de piedade ou caridade, essa associação recebe o
nome de pia união. Se essa associação, por sua vez, tem ainda uma hierarquia, é designada por irmandade. Seus membros ou irmãos ou
confrades, segundo o Compromisso, também assumem o dever de se auxiliar reciprocamente, tendo, pois, sob esse aspecto, uma identificação
de ideais e interesses comuns entre os membros e os candidatos a ingressarem na mesma e uma seleção prévia e restrita dos mesmos, com vista
a agregá-los mais facilmente, bem como ainda a evitar fissuras em seu interior. Ambas as modalidades de associação, portanto, têm um perfil
assistencialista. Se as irmandades são eretas para incrementar o culto público de um santo, recebem o nome de confrarias”. MORAES, Cristina
de Cássia Pereira. Op. Cit., Cap. 3, p. 18-24.
55
MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., Cap. 3, p. 18-24.
56
HANSEN, Adolfo João. Artes seiscentistas e teologia política. In: Op. Cit., p. 186-187.
156
exerceriam suas funções completando assim um todo uno. Dessa forma, a Igreja não poderia se opor a uma
ordem que também considerava a importante participação dessas associações nos novos territórios, que se
estendiam desde a ajuda humanitária até a construção e manutenção de seus próprios templos.
Em Goiás, algumas irmandades se instituíram antes de possuir espaços religiosos e, outras, como as
de devoção
57
, antecederam até mesmo as instituições político-administrativas e eclesiásticas. Um exemplo é
a primeira irmandade que surgiu no Arraial de Santana, em 1733, e cuja invocação era o glorioso São Miguel
Arcanjo, protetor das milícias celestes. Segundo Moraes
58
, um sacerdote da época dizia que esse era “[...] o
único meio de civilizar as almas, encontrar meios para lutar contra a opressão do capitão-mor Bartolomeu Bueno da Silva e
evitarem os descaminhos do ouro [...]”, o que correspondia dizer que formar irmandade ajudaria muitas pessoas a
se protegerem das arbitrariedades daqueles que adentravam o território em busca das minas.
No entanto, elas não se formavam apenas para a constituição de laços fraternos e espirituais, mas
também para cobrirem as necessidades materiais da população, e, entre elas, a importância de se adquirir
capelas, pois através delas se assegurava a própria sobrevivência dos fiéis. Edifícios de grande importância
social, as capelas revelavam-se como pontos ou núcleos vitais das cidades e, ainda, como os únicos
elementos estáveis da sociedade mineira
59
.
As intenções de construí-las ficam evidentes já no princípio da conquista de um território, logo
após a descoberta de minas. Às margens de rios “[...] com boa formação de ouro, [...] a primeira providência era [...]
largar fogo ao campo, e logo na parte mais conveniente levantey [levantar] húa cruz em louvor da Senhora Santa Anna”
60
.
Este era o procedimento habitual dos colonos católicos diante do inóspito e desconhecido sertão: aben-
çoar a nova terra com o soerguimento de símbolos cristãos em locais adequados, próximos aos possíveis
caminhos, antes mesmo de se dar início aos trabalhos que efetivamente só começariam a partir da parti-
lha das datas minerais. Naquele mesmo local da cruz, provavelmente, se ergueria a primeira capela, a qual
levaria o nome do santo do dia da fundação ou do orago da preferência do grupo, confirmando a posse
e demarcação da terra e a constituição de uma população que iria cercá-la. Prosperando os incipientes
arraiais e, obviamente, aumentando o número de seus habitantes, outros agrupamentos sociais se forma-
riam, solicitando novas igrejas para abrigar as mais diferentes associações leigas, suas devoções, reuniões
dos irmãos, festas, sepulturas
61
, além de obter o respeito e o devido reconhecimento social.
57
“Houve na Capitania de Goiás, irmandades leigas sujeitas à jurisdição real e irmandades leigas sujeitas à jurisdição eclesiástica. Estas foram
fundadas e instituídas mediante aprovação eclesiástica, após a criação da capitania. As irmandades de devoção, ao contrário, precederam à organi-
zação administrativa e eclesiástica da capitania. Em alguns casos, até meados do século XVIII, encontramos agremiações chamadas de irmandades
por possuírem capelas ou templos próprios e associações chamadas de confrarias, que não tinham Termo, mas possuíam altares laterais em certas
igrejas, em honra de seu orago, destinados ao culto do mesmo pelos irmãos”. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., Cap. 3, p. 23.
58
MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., Cap. 3, p. 22.
59
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986, p. 21-23.
60
AHU. Goiás. Doc. 12, 1734. Derrota do Rio Tocantins. Copea da derrota que fiz pello Rio dos Tocantins abayxo athe Bellem do Gram Pará.
Projeto Resgate Barão do Rio Branco. IPEHBC.
61
AFSD. Cidade de Goiás. Doc. Avulsos. Termo de Compromisso de Nossa Senhora do Rosário de Vila Boa: “Capítulo 15 – [...] juiz, juíza, Rei e
Rainha na capela maior para dentro do Arco com 12 missas a cada hum com esmola costumada. Escrivão, Thezoureiro e Provedor: das grades
do Cruzeiro até o Arco com 8 missas. Os irmãos e irmãs de meza de corpo de Igreja com 6 missas. Irmãos rasos nos corredores e 4 missas.
Capellão no tempo em que estiver servindo no melhor lugar da capella com 12 missas [...]. [Grifo nosso].”Capítulo 16 – [...] sepultura e
acompanhamento, capela maior esmola 16 oitavas, cruzeiro 8 oitavas, corpo da igreja 4, nos corredores 2, querendo acompanhamento, dará
mais 4 oitavas para qualquer das partes, assim como pagará os que convidarem a Irmandade para outra parte”. [Grifo nosso]. Capítulo 17 –
[...] Sepultura dos que não são irmãos – Falecendo alguma mulher, casada com Irmãos desta Irmandade ou filhos de seu matrimônio ou sendo
viúva delle sem ter passado a outras núpcias e os filhos ou filhas até a idade de doze annos, se lhe dará sepultura com acompanhamento da
Irmandade que levará suas insignes. Os indigentes sepultados por esmola, no corpo da Igreja ou nos corredores.” [Grifos nossos].
157
Na Capitania de Goiás, as capelas foram se levantando parale-
lamente à formação dos aglomerados urbanos decorrentes de desco-
brimentos auríferos, caracterizando uma estreita relação com o
crescimento econômico e populacional da região. Ferreiro, Ouro
Fino e Barra foram os arraiais iniciais dos “guayazes ”, formados pra-
ticamente a partir do soerguimento de suas capelas. Posteriormente,
com o aparecimento de novos povoados, outras capelas também fo-
ram construídas e dedicadas a diversos santos de devoção: Nossa
Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora
da Penha, Nossa Senhora do Pilar, Santana, São João Batista etc. Em
1727, às margens do Rio Vermelho, construiu-se a Capela de Santana,
no arraial do mesmo nome e que, anos mais tarde, se transformou na
capital Vila Boa de Goiás.
Nesse povoado, à medida que a população se fixava e se orga-
nizava em associações leigas
62
, iguais às irmandades de São Miguel e
Almas (1733), Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1734),
Santíssimo Sacramento (1742), Nossa Senhora da Boa Morte (1749),
São José (1749), Santa Efigênia (anterior a 1752), Senhor dos Passos
(anterior a 1751) e as confrarias de Santo Antônio (1739) e dos Re-
publicanos de Vila Boa, crescia também a demanda de solicitações
para a criação de espaços religiosos que comportassem atividades
necessárias à sobrevivência dessas comunidades
63
, ou, até mesmo,
aumentar o prestígio de ricos mineiros que as mandavam erguer.
Para além dos interesses de ocupação territorial, a construção
da matriz de Santana (Fig.37), iniciada logo após uma petição dos
irmãos de São Miguel e Almas feita à Câmara de Vila Boa, procurava
atender tais necessidades. Com o argumento de que eram os funda-
dores do arraial
64
e que as despesas seriam cobertas pelas doações
dos fiéis, justificavam tal solicitação. Posteriormente, tudo foi regis-
trado em ata das sessões da Câmara:
Que estabelecida assim a dita Irmandade se entrou a aumentar pella
occorrencia dos Fieis e se entrarão acongregar àquella Irmandade sendo
este o motivo de inda hoje se necesitar edificar nova igreja. Com aquelle
adorno e aseio necessario não so no Altar do Gloriozo Santo como nos
preparos percisos para ser matris e para a dita Irmandade
65
.
Fig.37 – Vista do Largo da Matriz (à
direita) de Vila Boa de Goiás.
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do
primeiro reinado visto pelo botânico William
John Burchel, 1825, 1829. Rio de Janeiro:
Fundação João Moreira Salles;
Fundação Pró-Memória, 1981.
158
As contribuições dos membros da irmandade em questão, ao que parece, não foram suficientes
para construir a matriz de Santana, pois em 21 de março de 1742 os oficiais do Senado da Câmara de
Vila Boa enviaram ao Conselho Ultramarino um pedido de ajuda: “[...] Suplicamos [suplicando] à grandeza,
e a incomparável piedade de V. Mag. De, a mercê de huma esmolla, para se aperfeiçoar, e ornar a Capella Mor; pela
qual serão memorável a este povo eternamente de tão pio benefício, e a Santa Anna, protetora desta Villa [...]”
66
.
Assim, mediante provisão régia de 2 de abril de 1743, o monarca D. João V determina,
[...] concorrer com esmolas para o augmento e reedificação do dito templo e q a capella mor se acha arruinada
e he pequena para o culto divino pelo que carece de se reedificar e accrescentar por cuja causa me pedião fosse
servido mandar asestir de minha fazenda com o que fosse preciso para sefazer a capela mor e juntamente
mandarlhe o paramento para ella Me pareceu ordenarvos informeis com vosso parecer e mandei fazer planta e
metela a pregão com separacam do que custara o corpo da igreja e o que a capella mor aque a minha real
fazenda heso obrigada e por hora se cuide na conservacam da Igreja que existe
67
.
Em 4 de abril de 1743, decide-se que o tesoureiro da irmandade de São Miguel e Almas ficaria
responsável pela gerência dos custos da obra
68
. Entretanto, apesar de tais providências, esse documen-
to real só chegou a Vila Boa em 22 de abril de 1744, o que antecipou em oito meses o início do
soerguimento da capela-mor, a partir de um projeto vindo de São Paulo
69
. Posteriormente, foram
contratados mais quatro mestres carpinteiros e pedreiros que diziam precisar de mais recursos para o
término da “[...] Magnificencia da dita obra e que em nenhuma mina se acha tão grandioso templo ainda nas mayores
povoações de Beyramar não haverá outro mais vantajoso”
70
. Posto isso, outros recursos foram viabilizados a
partir da ajuda do povo de Vila Boa e de arraiais vizinhos, caracterizando uma conjugação de esforços,
coordenados pela referida irmandade. Mas não só na matriz observa-se essa soma de ajuda mútua
62
Moraes levantou nessa região um total de 34 irmandades que surgiram e se organizaram em boa parte do território. A mais difundida na região
foi a do Santíssimo Sacramento. Formada apenas por brancos, encontrava-se na matriz de Vila Boa, em Meia Ponte, Pilar, Cavalcante, Traíras,
Jaraguá e Santa Luzia. A dos pretos, denominada Nossa Senhora do Rosário, também se espalhou por vários lugares tais como: Vila Boa, Meia
Ponte, Traíras, Bonfim, Crixás, Pilar e São José do Tocantins; a dos pardos, em Boa Morte e São José do Tocantins. Naquelas em que havia
predominância de escravos, mas que não excluíam outras categorias, foram: as de Santo de Antônio, erigidas em Vila Boa, Meia Ponte, Traíras
e Crixás; a de Nossa Senhora das Mercês, em São Joaquim do Cocal; de Santa Efigênia, em São José do Tocantins, e a do Patriarca São José, em
Vila Boa. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., Cap. 3, p. 22.
63
Em 1783, Luís da Cunha Menezes apresentou à Coroa 21 freguesias e 16 capelanias. Após essa data, a Capitania passou a contar com um total
de 27 freguesias, com suas respectivas matrizes, e 44 capelas filiais. AFSD. Cidade de Goiás. Documentos avulsos.
64
Em documento pesquisado por Moraes, encontram-se os nomes de alguns desses fundadores: Agostinho Pacheco Teles, Bartolomeu Bueno
da Silva, João Leite da Silva Ortiz, Antônio Dias da Silva, Antônio Brito Ferreira, Tomé Gomes de Aragão, Antônio Xavier Garrido, João Lopes
Zédes, Antônio Brito Rabêlo, Miguel Carlos, Manoel R. Tomas, Padre Manoel Dias da Silva e outros.
65
AFSD. Cidade de Goiás. Documentos avulsos: Ata da Câmara, 22 de agosto de 1739, fl. 104 v.
66
AHU. Goiás. Doc. 215, 1743. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia: IPEHBC. Sobre a construção da capela-mor da Matriz de
Santana.
67
AHU. Goiás Doc. 215, 1743. Sobre a construção da capela-mor da Matriz de Santana. Idem.
68
AHU. Goiás Doc. 215, 1743. Sobre a construção da capela-mor da Matriz de Santana. Idem.
69
Sobre o plano da Matriz de Santana, ver BOAVENTURA, Deusa Maria Rodrigues. Arquitetura religiosa em Vila Boa de Goiás no século XVIII.
Dissertação de mestrado. São Paulo: EESC/USP, 2001, p. 85.
70
Manuscrito sobre a construção da Matriz de Santana. apud: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Op. Cit., Cap. 4. p.7
159
entre os irmãos. Ao que parece, esse pode ter sido um procedimento
comum em Goiás, pois o próprio erector da igreja do Rosário dos
Pretos foi Antônio Pereira Bahia, importante homem e provedor da
Irmandade do Santíssimo Sacramento
71
. A construção de capelas como
a dos devotos de Santa Bárbara
72
, a dos homens pardos de Nossa Se-
nhora da Boa Morte e, provavelmente, a de Nossa Senhora da Abadia,
que teve à frente da empreitada o Padre Salvador dos Santos Batista,
auxiliado pelo povo que veneravam a Santa, são outros exemplos da
participação das irmandades em Vila Boa (Fig.38).
71
BOAVENTURA, Deusa Maria Rodrigues. Op. Cit., p. 66.
72
AFSD. Cidade de Goiás. Documento avulso de 1775. Auto de demarcação da Igreja de Santa Bárbara.
Fig. 38 – Nossa Senhora da Abadia, da
antiga Vila Boa de Goiás.
Foto: Deusa Boaventura, arquivo da
autora.
160
A capela de Santa Ifigênia de São José do Tocantins também foi
fruto dos trabalhos da Irmandade de Santa Ifigênia de São José do
Tocantins dos crioulos (Fig. 39). Numa solicitação para o surgimento e
provisão da irmandade em questão, pode-se deduzir os esforços e insa-
tisfações com a condição da capela na época, pois, segundo seus partici-
pantes, “[...] a imagem da Santa estava em altar lateral na Capela do Rosário dos
Homens Pretos sem se fazer festa a dita Santa [...]”. No Capítulo 7º de seu
Compromisso, a evidência de contribuições de irmãos para a constru-
ção de uma capela é mais clara quando se observa a indicação do Padre
Pedro da Costa Lima,pelas largas e liberaes esmollas em que tem concorrido para
o augmento da Irmandade de Santa Efigenia, e de sua capella, o que lhe dava o
direito, após seu falecimento, de gozar de todos os sufrágios da Irman-
dade ad eternum, sem ter necessidade de contribuir para isso.
De acordo com o historiador Jarbas Jayme, a Irmandade Nossa
Senhora da Lapa dos Pretos Livres foi responsável pela construção de
uma igreja em Meia Ponte erguida a partir de 1760, pois, os irmãos de cor
entenderam que deveriam “[...] possuir um santuário que ombreasse, em tamanho,
com a Matriz de N. Senhora do Rosário, onde mandavam os brancos e onde os pretos
eram cristãos de baixa categoria [...]”
73
. A construção da igreja foi iniciada com
grande entusiasmo e sua utilização para os cultos ocorreu antes mesmo de
sua conclusão. Para tanto, foram adquiridos paramentos, sinos, alfaias de
prata e as imagens de Nossa Senhora da Lapa, Nossa Senhora da Boa
Morte e a de Santo Antônio, todas vindas de Portugal. Nesse mesmo
arraial foi erguida a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, por
irmãos devotos da Santa, e que contou com imagens e altares suntuosos
74
.
Igrejas de grandes proporções, como às de Nossa Senhora da Natividade,
Fig. 39 – Capela de Santa Ifigênia do
antigo Arraial do São José do
Tocantins.
Fonte: BORGES, Ana Maria;
PALACIN, Luís. Patrimônio histórico de
Goiás. Brasília: SPHAN/Pró-
Memória, 1987.
161
que abrigava três altares e um campanário; Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos, nesse mesmo arraial; e a espaçosa Matriz de Traíras, com sete alta-
res, também podem estar nessa lista de esforços das irmandades, tendo em
vista os altos custos de edifícios com tais portes. (Figs. 40 e 43)
Fig. 40 – Antiga Igreja dos Pretos do Ar-
raial de Meia Ponte.
Fonte: VAZ, Adriana Mara. Um estudo da
Casa Meia-pontense: Uma ponte para o
mundo goiano do século XIX. Goiânia:
Agência Goiana de Cultura Pedro
Ludovico Teixeira, 2001. p. 148.
Fig. 41 – Igreja de Nossa Senhora da
Natividade.
Fonte: BORGES, Ana Maria;
PALACIN, Luís. Patrimônio histórico de
Goiás. Brasília: SPAHAN / Pró -
Memória, 1987.
Fig. 42 – Ruínas da Igreja de N. S. do
Rosário do antigo Arraial de Traíras.
Fonte: BORGES, Ana Maria;
PALACIN, Luís. Patrimônio histórico de
Goiás. Brasília: SPAHAN / Pró-
Memória, 1987.
162
Fig. 43 – Desenhos da antiga Matriz de
Traíras.
Fonte: (Original Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa).
163
Mas não só os grupos fraternos, como dito anteriormente, se preocupavam com a construção
de igrejas na região goiana. A história reza ainda que um número significativo de capelas foram
construídas a partir de desejos de particulares ou religiosos, que, certamente, deram o status mereci-
do aos primeiros e aos segundos, a garantia de um espaço após as suas mortes. Esse era um antigo
costume, que remetia a tempos muito remotos, como se observa no testamento do bandeirante
Domingos Fernandes, fundador de Itu, que faleceu em 1652.
Minha última e derradeira vontade é que a dita capela se perpetue neste Utuguassu [Itu] e seu distrito [...] na
qual pretendo enterrar-me para ali estarem os meus ossos, esperando a universal ressurreição no dia do Juízo.
[...] assim, por nenhum modo quero nem consinto que a dita capela e meus ossos sejam trasladados fora do
lugar, salvo se por meus pecados Deus ordenar que isto se torne a despovoar, e então a poderão trasladar em tal
caso, sendo todavia os derradeiros que daqui despreguem
75
.
Na capitania de Goiás, os exemplos de capelas erguidas por homens desejosos de possuírem
seus cemitérios são os de Nossa Senhora do Carmo, iniciada pelo secretário da Câmara Diogo Luiz
Peleja e depois cedida, ainda incompleta, para a irmandade de São Benedito dos Crioulos; São
Francisco de Paula, levantada pelo militar Antônio Thomaz da Costa; Nossa Senhora da Lapa, que
acolhia a irmandade do Santíssimo Sacramento e foi erguida por Vicente Vaz Rocho; e a Capela da
Senhora das Barracas, do cirurgião-mor Antônio da Neiva, todas em Vila Boa (Fig. 44). Em Meia
Ponte, as ações individuais também foram expressivas, sendo responsáveis pela construção das
igrejas de: Nossa Senhora do Carmo, edificada pelo mineiro Luciano Nunes Teixeira; Nosso Senhor
do Bonfim, pelo português José de Campos; e Capela de Santa Bárbara, erigida por Jerônimo Bar-
bosa dos Santos de Braga.
Por outro lado, a realização desse anseio dependia da disponibilidade de recursos financeiros
dos erectores para a constituição do patrimônio, o que incorria no pagamento dos vários encargos
tributários, tais como taxas para liberação de documentos e licenças oficiais para provisão de equi-
pamentos indispensáveis ao exercício do culto, compras ou cessões de terrenos, riscos, contrato
de execução e, finalmente, a colocação da obra em praça pública para concorrência no regime de
arrematações. Esses eram apenas alguns dos fatores que dificultavam a concretização desses empre-
endimentos, implicando em constantes esforços dos adquirentes para a obtenção das concessões de
licenças e de recursos para a aquisição de tal patrimônio
76
.
Além dessas providências iniciais, a implantação das igrejas paroquiais, capelas e ermidas
tinha de obedecer às normas eclesiásticas que constam no Livro 4 das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, de 1707. Segundo um dos artigos desse documento, os edifícios deveriam se
73
JAIME, Jarbas; JAYME, José Sisenando. Pirenópolis: Casas de Deus, Casas de Mortos. Vol.1. Goiânia: IPEHBC/UCG, 2002, p.62.
74
JAIME, Jarbas; JAYME, José Sisenando. Op. Cit. , p. 46.
75
MACHADO, Alcântara. Vida e morte do Bandeirante. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972, p. 208-209.
76
“Os patrimônios religiosos eram administrados por uma entidade que devia merecer a autorização da Igreja e obedecer também aos preceitos
das Ordenações do Reino, controlados pelas autoridades judiciárias. A terra, alguma outra dotação em bens móveis, víveres ou dinheiro
representavam o dote inicial. Propiciavam, assim, as condições para a construção do templo, para sua manutenção e reparo. Em troca, os
fundadores do patrimônio, os que tornavam possível a existência da capela, obtinham atenções especiais para si e para os seus em termos
espirituais, como missa após a morte”. MARX, Murillo. Cidade no Brasil terra de quem? São Paulo: Nobel Editora/ USP, 1991, p. 39.
164
Fig. 41– Imagem do mapa de Goiás com as capelas e igrejas de Vila Boa. Fonte: arquivo pessoal da autora
Igreja da Boa Morte
Igreja Matriz de Santana
Igreja de São Francisco de Paula
Igreja de Nossa Senhora do Carmo
Igreja de Nossa Senhora da Abadia
Igreja de Santa Bárbara
Igreja Nossa Senhora do Rosário
Rua Nova do Barroso
Rua Nova do Teatro
Rua Nova
Rua da Cambaúba
Rua Direita
Rua Nova Luziana
165
Fig. 45 – Imagem da igreja inacabada
de Nossa Senhora do Rosário de
Natividade.
Fonte: BORGES, Ana Maria;
PALACIN; Luís. Patrimônio histórico de
Goiás. Brasília: SPAHAN / Pró-
Memória, 1987.
localizar em “[...] sítios altos, e decentes, livre da humidade, e desviando, quan-
do for possível, de lugares immundos e sórdidos, e de casas particulares, e de
outras paredes, em distância que possam andar as Procissões ao redor dellas, e
que se faça em tal proporção, que não somente seja capaz dos fregueses todos, mas
ainda de mais gente de fora, quando ocorrer às festas, e se edifique em lugar
povoado, onde estiver o maior número dos fregueses”
77
. Outros parágrafos,
além de se referirem à correta posição da capela-mor, para que “[...]
o Sacerdote no Altar fique com o rosto no Oriente, e não podendo ser, fique para
o meio dia, mas nunca para o Norte, nem para o Occidente [...]”
78
,alertam
sobre a importância da existência de sinos, sacristia, adros demarca-
dos pelo provisor ou vigário geral e cemitérios. Só assim, passando
por essas várias etapas, é que o início de tais obras era liberado.
Tal burocracia e os encargos de uma futura solicitação para a
colação podem explicar a “[...] a queixa dos moradores dos certões desta
América, tanto he geral, como hé justa pelo que toca as distancias em que vivem
das Igrejas Matrizes e falta de sacramento que experimentão a que nem elles
decorrem em tempo, nem aos Parrocos occupados com os mais vizinhos se podem
reproduzir para assistirem aos mais distantes”
79
. Mesmo com liberações
de provisão anteriores à essa queixa, as providências eram bastante
morosas.
77
COSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ACERBISPSDO DA BAHIA. Livro 4, Título XVII: Da
edificação, e reparação das igrejas parochiaes. São Paulo: Typographia de Antônio Louzada Antunes,
1853, p. 252.
78
Em Goiás essas normas em relação à orientação dos templos foram freqüentemente descumpridas.
Idem, p. 253.
79
AHU. Goiás. Doc. 1998. Carta posterior a 1771. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Goiânia:
IPEHBC.
166
[...] S. Mag. Attendeo a este clamor na Provizão de 12 de junho de 1771 annos que incerta na certidão junto da qual
também consta providências tomadas por effeito della pello Exmo Bispo Diocezano, a quem foi expedida. Ali se axa
decidida toda esta duvida, pois os parrochos não podem erigir capellas felliaes, sem os Exmos Diocezanos ordenalas
sem q. há requeirão. Os povos em numero compettente devem propor ao Prellado: este vendo que o posto he suficiente
deve permitir a ereção da Capela, elevar a capella curada asalariando o Parroco respectivo, Capellao ou Coadjutor q.
a sirva, e assim não se podem queixar dos fins quando elles ditos moradores não exercitão as primeiras, ou princípios,
nem observao que está já declarado e decidido na ditas provizão
80
.
Um outro importante texto sobre o direito de construir está indicado no livro Subsídios para o estudo da
influência da legislação na ordenação e na arquitetura das cidades brasileiras, que traz indicações sobre o mais completo
tratado relativo a essas questões: o de Manoel Alvares Ferreira (1706) ou Emmanuel Alvares Ferreyra.
Distribuído em seis volumes, é no primeiro deles que aparecem as normas legais e eclesiásticas para o
soerguimento de igrejas patriarcais e paroquiais, capelas, oratórios públicos e particulares etc.
Na Capitania goiana, indicações sobre alguns dos procedimentos que envolvem a construção de uma
capela para um pequeno grupo de devotos encontram-se num documento de 3 de setembro de 1775, de
Vila Boa. Desejosos de possuírem sua capela, esses devotos se dirigiram ao:
[...] morro de Santa Barbara, em a entrada que vai para o Carreiro, Barra e Anta e onde eu, escrivão adiante nomeado,
fui vindo e sendo achi com o muito Revdo Ministro Dr. Francisco das Chagas Vidal de Mendonça Ávila Corte Real,
Vigário da Vara nesta Villa e sua Comarca, para o efeito de assingnar o lugar em que se há de erigir a capela da gloriosa
Santa Bárbara, a requerimento dos devotos da mesma Santa, em presença do mais povo que servirão de testemunhas e vão
assignadas abaixo,
a que tudo se procedeu a medição e demarcação no respectivo lugar e plano
em que se há de fundar a dita capela com seu adro o qual consta de 15 braças de comprimen-
to 10 de largo; para que se puseram os marcos e se assentou uma cruz no lugar onde havia de
ficar o altar da mesma Santa,
e para constar fiz este termo que assignarão o Revmo. Dr. Vigário da Vara, e eu,
Manoel Teixeira Paiva, escrivão do auditório ecclesiastico [...]
81
.
Se o processo para a construção de uma pequena e simples capela demandava difíceis trâmi-
tes para a obtenção das licenças, pode-se considerar que a aprovação dos sítios e, quando possível,
a marcação de adros poderiam ser as preocupações mais recorrentes da Câmara para a implantação
das igrejas nos arraiais goianos
82
.
No entanto, além dos adros, e segundo imagens de William John Burchell, de mapas antigos e estru-
turas remanescentes de algumas dessas cidades, o elemento que comumente se encontra nos arraiais
setecentistas de Goiás são os amplos largos fundacionais, para os quais confluíram os importantes acessos,
particularmente os caminhos que os conectavam entre si. Igualmente ao espaço do antigo Arraial de Santana
de Vila Boa, em Bonfim, Meia Ponte, Jaraguá, Natividade e Luziânia não se verifica nenhum tipo de barreira
80
Idem.
81
AFSD. Cidade de Goiás. Documento avulso, 1775. Auto de Demarcação da Igreja de Santa Bárbara. [Grifos nossos].
82
Alguns desses exemplos são: São Francisco de Paula e antiga Nossa Senhora do Rosário, na atual cidade de Goiás; Nossa Senhora do Rosário,
em Jaraguá; Nossa Senhora do Rosário, em Pirenópolis, antiga Meia Ponte; Nossa Senhora da Penha e França em Corumbá; Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos, em Luziânia, antiga Santa Luzia; Nossa Senhora do Rosário de Natividade; Nosso Senhor Bom Jesus do Bonfim, em
Bonfim, atual Silvânia, e tantas outras mais.
167
física entre os largos e as igrejas; ao contrário, eles se caracterizaram por
atender os vários interesses ritualísticos, sacros ou profanos da comunida-
de, como os desfiles, o cortejo fúnebre, a folia
83
, as procissões e outras
comemorações intrinsecamente relacionadas às diversas confrarias e ir-
mandades. (Figs.de 46 a 49).
Fig. 47 – Antigo Arraial de Bonfim,
atual Silvânia.
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do
primeiro reinado visto pelo botânico Willhiam
John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro:
Fundação João Moreira Salles,
Fundação Pró-Memória, 1981.
Fig. 48 – Antigo Arraial de Meia Ponte,
atual Pirenópolis.
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do
primeiro reinado visto pelo botânico Willhiam
John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro:
Fundação João Moreira Salles,
Fundação Pró-Memória, 1981.
Fig. 48 – Vista do Largo da Matriz de
Vila Boa de Goiás.
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do
primeiro reinado visto pelo botânico Willhiam
John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro:
Fundação João Moreira Salles.
Fundação Pró-Memória, 1981.
Fig. 46 – Vista do arraial de Natividade.
Fonte: FERREZ, Gilberto. O Brasil do
primeiro reinado visto pelo botânico Willhiam
John Burchel. 1825, 1829. Rio de Janeiro:
Fundação João Moreira Salles.
Fundação Pró-Memória, 1981.
168
Do ponto de vista simbólico, o tipo de organização espacial desses
largos fundacionais - geralmente formados por um retângulo circundado
por habitações de pessoas importantes e onde se ergue uma igreja – esta-
belece nítidas distinções e hierarquias entre os lugares, condicionando, dessa
forma, a orientação da população num espaço que se identifica funda-
mentalmente pela superposição das diversas funções que abriga, tais como
as religiosas, políticas, comemorativas e punitivas.
Por fim, semelhantes considerações também podem ser feitas aos
demais largos que surgiram em decorrência dos processos de expansão
desses arraiais. Menores e menos expressivos em suas dimensões, apresen-
tavam-se com modestas capelas, geralmente destinadas aos irmãos pretos,
forros e pardos, vindo a definir, nos tecidos urbanos dos pequenos povo-
ados goianos e junto ao espaço fundacional, os marcos de identificação de
uma ordem social igualmente regida pelas hierarquias do visível.
Figs. 50 e 51 – Antiga matriz do
Rosário de Meia Ponte.
Fonte: BUENO, Alexei; TELLES,
Augusto da Silva; CAVALCANTI,
Lauro (org.). O Patrimônio Construído:
As 100 mais belas edificações do Brasil.
São Paulo: Editora Capivara, 2002,
p. 262- 263.
169
Figs. 52, 53, 54 – Igreja Nosso Senhor
do Bonfim, do Arraial de Bonfim
(atual Silvânia ).
Fotos: Carolina Boaventura
170
Fugs. 55, 56 – Igreja do Rosário do
Arraial de Santa Luzia (atual Luziânia).
Fotos: Carolina Boaventura
83
Sobre esse assunto, ver As Irmandades e as festas. In: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do
corpo místico de Cristo: Irmandades e Confrarias na Capitania de Goiás, 1736/1808. Cap. 4. Disser-
tação doutoramento em História e Teoria das Idéias. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2006. p. 7
CAPÍTULO V
ENTRE A BUSCA DOS ÍNDIOS E A IMPLANTAÇÃO
DOS PRIMEIROS ALDEAMENTOS GOIANOS
173
uas eram as saídas de origens para se alcançar as terras de Goiás, a partir do século XVII: São
Paulo, de onde partiam os bandeirantes em busca da mítica região do ouro e de índios para
D
serem escravizados, e Grão-Pará, na região Norte, onde se arregimentavam homens ora em direção
ao Amazonas, ora ao Tocantins. As expedições eram acompanhadas por jesuítas, que buscavam
cristianizar os silvícolas e, caso não conseguissem, cuidavam para que sua escravização e seu aprisi-
onamento fossem feitos segundo a concepção religiosa cristã. Compreender essa questão requer
que se retomem alguns aspectos da política de colonização definida para o Maranhão e o Pará e sua
respectiva legislação indigenista, na qual se encontram as razões para a formação de tais expedições.
No início da colonização do Pará e do Maranhão, a mão-de-obra indígena foi a grande res-
ponsável pela implementação do plantation, atividade econômica adotada pela metrópole portugue-
sa, visando a exploração dessas duas regiões. Mas tal experiência não vingou, sendo substituída, a
partir da segunda década do século XVII, pelo extrativismo, ou exploração das “drogas do sertão”,
como essa atividade era também conhecida. Ainda assim, o extrativismo, que estava diretamente
relacionado às incertezas e às adversidades locais, caracterizando-se por sua natureza irregular e
instável, só atenderia os investidores se os custos fossem reduzidos e uma melhor margem de lu-
cros, garantida. Os altos preços dos escravos negros induziram os colonos a permanecer com a
mão-de-obra indígena, disponível e facilmente encontrada em toda a região, como atesta Farage:
O fluxo de escravos para a região foi exíguo no século XVII. E o extrativismo só foi gradativamente sendo
possível (1650-1750, com a mão-de-obra indígena. Nesta colônia era pelo número de índios que se media a
riqueza de um morador. Tema fundamental, portanto, para a implementação da sociedade colonial, a disputa por
acesso e controle da mão-de-obra indígena é o fio que tece a história política do Maranhão e Grão-Pará
1
.
Para o trato da imprescindível mão-de-obra indígena, foi estabelecida uma legislação que, ao
longo desse século e na metade do XVIII, sofreu sucessivas alterações, conforme as necessidades e
interesses da Coroa. É nesse contexto que se verifica também a participação das ordens religiosas,
como a dos jesuítas, que, embora se opusessem à escravidão e exploração dos aldeados, à maneira
1
FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra e ANPOCS, 1991, p. 26.
174
dos colonos do Maranhão e do Grão-Pará, atuavam expressivamente para a consolidação da política
colonialista portuguesa. Quanto à evangelização, acreditavam cegamente na importância da conver-
são dos índios ao cristianismo, convictos de que eram suas naturezas selvagens que os inclinavam
para o mal, prona ad malum, ou seja, o que distorcia suas personalidades eram os seus costumes que,
felizmente, poderiam ser corrigidos pela catequese já que, em essência, eram puros. A missão religi-
osa almejava fornecer a “memória do Bem Católico ao índio, que está destinado ao Inferno se a doutrina
defendida pela monarquia não lhe for revelada e imposta”
2
.
A despeito dos diferentes propósitos de colonos e missionários, o que nos interessa discutir
aqui são as formas de captura dessa mão-de-obra, a política estabelecida para essa prática e o enten-
dimento dos avanços dos missionários nas terras sertanejas de Goiás, num momento em que ainda
não se conheciam os limites desse território e nem sequer os de outras áreas em expansão na colô-
nia. Aliás, a visão do território era marcada pelo paradigma inicial do controle das bacias fluviais,
buscando salvaguardar e defender as entradas e os pontos frágeis dos seus maiores afluentes. No
entanto, apesar de a Coroa estar ciente desses pontos fulcrais, significativos para a defesa da colônia,
o conhecimento maior do território se sustentava, sobretudo, nas ações de sertanistas e missionários
desbravadores em busca de índios, quer fossem para mão-de-obra ou mesmo para a cristianização e
formação de aldeamentos na região do Amazonas e Pará
3
.
No livro As muralhas dos sertões, Nádia Farage
4
informa que o trabalho indígena desse período
estava organizado em duas grandes categorias: a dos escravizados e a dos livres. A primeira se
subdividia nas modalidades dos escravos legítimos ou aprisionados em guerra justa
5
, cuja origem
remonta à Idade Média, no período das Cruzadas, e aqueles obtidos pelo resgate
6
. Entretanto, essas
duas formas básicas de aprisionamento foram freqüentemente repensadas e alteradas ao longo dos
tempos. Na época da Expansão Ultramarina, por exemplo, a questão de quando e como estabelecer
os momentos “institucionalizados” de conflitos gerou amplas discussões entre teólogos e juristas,
abrindo brechas para sucessivos desacordos, objeções e alterações da legislação relacionada à guerra
justa, tanto ofensiva quanto defensiva, embora em torno desta última houvesse maiores consensos.
No entanto, não só com as reiteradas discussões sobre a aplicação da guerra justa se chegava às
alterações das leis, pois as mudanças podiam ocorrer também em decorrência das circunstâncias
2
HANSEN, João Adolfo (org.). Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003, p.66.
3
O texto A Engenharia militar do século XVIII e a ocupação da Amazônia diz que, até a primeira metade do século XVIII, a ocupação da Amazônia
sintetizava-se nos seguintes números: uma cidade, Belém; quatro vilas, Souza do Caeté (1634), Viçosa de Santa Cruz de Cametá (1637), Gurupá
(1637) e Nossa Senhora de Nazaré da Vigia (1639); nove fortificações, três em Belém, Forte do Presépio ou de Santo Cristo (1616), Fortim de
S. Pedro Nolasco (1665), Fortaleza de Nossa Senhora das Neves da Barra (1685); e seis fora da cidade, Forte do Gurupá (1623), Forte de
Desterro (1638), Forte de Araguari (1660), Fortaleza de São José do Rio Negro (1669), Fortaleza de Santo Antônio de Macapá (1688) e Forte
dos Pauxis (1698); e cerca de 60 estabelecimentos missionários entre aldeamentos de índios e fazendas. MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata
Malcher de. A Engenharia militar do século XVIII e a ocupação da Amazônia In: MAGALHÃES, Joaquim Romero (comissário geral) e outros.
Amazônia Felsínia. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 188.
4
FARAGE, Nádia. Op. Cit., p. 26-32.
5
A guerra justa era legítima quando “os índios impedissem a pregação evangélica, deixassem de defender as vidas e as propriedades dos colonos;
estabelecessem alianças com os inimigos da Coroa”. Guerra justa defensiva podia ser “deflagrada quando os portugueses fossem atacados por
qualquer comunidade”. FARAGE, Nádia. Idem. p. 27.
6
Resgate- “compra, pelos portugueses, de prisioneiros de guerra entre as nações indígenas, entre os quais se incluíam os índios presos a corda, em
referência à corda que os Tupi atavam ao pescoço de seus prisioneiros destinados à devoração”. FARAGE, Nádia. Idem. p. 28.
175
político-conjunturais. Esse foi o caso da legislação que passou a vigir a partir de 1653, quando a
metrópole retoma o método apenas para os casos de impedimento da propagação da doutrina
católica, de falta de defesa contra os índios nas propriedades dos colonos; de estabelecimento de
alianças entre silvícolas e espanhóis e, por fim, para o impedimento das atividades comerciais e do
livre trânsito dos colonos. Em 1655, a aplicação da guerra justa ofensiva foi reduzida, legitimando-se
apenas nas situações de impedimento da propagação da fé cristã ou quando houvesse ataque aos
portugueses. A legislação de 1688 é particularmente similar à anterior.
A forma de capturar pelo resgate tem sua origem com as experiências comerciais de Portugal na
África, no século XVI, realizadas simultaneamente à exploração do litoral do Brasil. Esse método foi
instituído a partir de 1650, sob a influência do Padre Antônio Vieira, mediante a formação de expedi-
ções que ficaram conhecidas como “tropas de resgate”. Em 1655, entrou em vigência a lei que,
[...] regulamentava a ocorrência dessas expedições, designando missionários para acompanhá-las e declarando
que os cabos de tais tropas deveriam ser escolhidos pelos governadores e demais autoridades civis e eclesiásticas
da colônia. Aos missionários cabia julgar a legitimidade dos cativeiros, certificando-os por escrito, nos assim
chamados registros. O passo decisivo na instituição das tropas de resgate veio a ser dado mais tarde, com a lei
de 28.04. 1688, onde o próprio Estado tornava-se empresário dos resgates, que seriam feitos pela fazenda real;
duas tropas – uma para o Pará e outra para o Maranhão – deviam ser anualmente enviadas ao sertão
7
.
As informações mais antigas sobre o período das primeiras incursões em direção ao território
de Goiás, são de 1654 e encontram-se nas cartas que o Padre Antônio Vieira
8
enviou ao Pará, ao
Provincial Padre Francisco Gonçalves, relatando que o capitão-mor Inácio do Rego Barreto o havia
convidado para uma “[...] missão no Rio Tocantins, aonde ele e já outros antes dele tinham mandado alguns
índios principais de nossas aldeias a persuadir outros do sertão a praticá-los, como cá dizem, para que quisessem
descer e viver entre nós”
9
. O padre afirmava que havia aceitado de bom grado “[...] o oferecimento, pela
grande fama que em todo este Estado há do Rio Tocantins, assim na multidão da gente quase toda língua geral, como
em outras muitas comodidades para uma gloriosa missão”
10
. O teor dessa correspondência permite o conhe-
cimento de alguns dos procedimentos da política de catequização lusa, que visava, além de tantas
outras intenções, penetrar no sertão, levar a religião aos índios e contribuir para a exploração e o
reconhecimento de uma região inóspita, como desejava a Coroa portuguesa.
A chefia de tal empreendimento coube ao referido capitão Inácio do Rego Barreto. Ele e
Vieira, acompanhados pelos companheiros Padre Francisco Veloso, Manoel de Souza e Antônio
Ribeiro, partiram no dia de Nossa Senhora de Expectação, a 18 de dezembro
11
, com uma frota de
“dezesesseis canoas, [...] oito oficiais reformados, portugueses, duzentos índios de remo e arco, quarenta cavaleiros, e de
7
FARAGE, Nádia. Op. Cit., p. 29.
8
Vieira comenta sobre essa mesma jornada em outra carta ao Rei D. João IV, em 4 de abril de 1654. VIEIRA, Antônio. In: HANSEN, João
Adolfo. (org.) Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003, p. 445.
9
VIEIRA, Antônio. In: HANSEN, João Adolfo. (org.) Op. Cit., p. 445.
10
VIEIRA, Antônio. Op. Cit., p. 151.
11
VIEIRA, Antônio. apud: FONSECA E SILVA, J. Trindade de. Lugares e pessoas: subsídios eclesiásticos para a história de Goiás. São Paulo:
Escolas Profissionais Salesianas, 1948, p. 45.
176
gente de serviço até sessenta, que fazem por todos mais de trezentas pessoas”
12
. Buscavam recrutar índios para a
formação de aldeamentos, por meio do sistema do descimento
13
, e com o recurso da persuasão,
podendo ser feito com a presença do próprio missionário ou de seus representantes legais, brancos
ou índios mansos, já aldeados. O objetivo de tamanha jornada era justamente não perder “[...] a posse
deste rio, que tínhamos por uma grande importância para nossos santos intentos”
14
.
Entretanto, apesar da grande importância dessa expedição, ela não chegou a pisar aquele que
seria o futuro território de Goiás, pois seu limite máximo de alcance, em face das dificuldades
enfrentadas, não ultrapassou determinada região do Pará, local onde o padre decidiu,
[...] fazer alto neste dia mais cedo que nos outros, para gastar toda tarde em endereçar uma capella de palma,
em que celebrar com mais decência os misterios desta sagrada noite, mas não tivemos lugar para mais que se
engenhar huma pequena choupana, mal coberta com as toldas das canoas, aonde armamos o nosso altar. Parece
quis o benigno Senhor renovar aqui os seus desamparos, porque tudo era o mesmo que representava. Não nos
achamos aqui juntos mais do que os Pe Francisco Veloso, Manoel de Souza e eu [...]
15
.
Só em 1659, com uma segunda entrada feita pelo Tocantins – “[...] que é na grandeza o segundo de todo
o Estado e povoação de muitas nações, de que ainda se não sabe o nascimento
16
–, chefiada pelo capitão de infantaria
Paulo Martins e contando com 450 índios de arcos e 45 soldados, se avançou um pouco mais ao centro
do território colonial. De acordo com uma outra correspondência encaminhada ao Rei Afonso VI, de 28
de novembro de 1659, alguns irmãos da Companhia de Jesus alcançaram as terras goianas, sem a presen-
ça de Vieira, e tendo como um dos seus principais integrantes o “[...] Pe Manoel Nunes, lente de prima de
Teologia em Portugal e no Brasil superior da casa e missões do Pará, mui prático e eloquente na língua geral da terra. Levou
quatrocentos e cinqüenta índios de arco e remo, e quarenta e cinco soldados portugueses de escolta com um capitão de
infantaria”
17
, cujo objetivo era o resgate de índios para aldeá-los na região missioneira.
Logo no início dessa jornada, conta Vieira que foi necessário castigar índios da nação Inheiguara,
porque estes, além de impacientes de sujeição e perigosos, impediram outros índios vizinhos a
descerem para a Igreja e a vassalagem. Mas apesar de se retirarem para locais ocultos, esses índios
arredios foram domados, rendidos e escravizados por não aceitarem a pregação evangélica.
Afora esses empecilhos, a expedição seguiu mais tranqüilamente em seu trabalho de conver-
são dos Poquiguara e, na seqüência, continuou rio acima, encontrando os Tupinambá e outros
grupos indígenas que se encontravam em diferentes pontos dos dois braços do Tocantins, “[...] um
dos quais, por ser na força do verão, se não podia navegar [...]
18
”. Por essa razão, os expedicionários deixaram
12
VIEIRA, Antônio. In: HANSEN, João Adolfo (org.). Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003, p. 158.
13
Descimento e o “sistema em que o missionário em pessoa ou seus representantes, brancos em viagem ou índios mansos, isto é, já aldeados,
persuadiam os índios, por vezes aldeias inteiras, a se deslocarem de seu território original e a se estabelecerem nos aldeamentos missionários”.
João Daniel. apud: FARAGE, Nádia. Op. Cit., p. 31.
14
VIEIRA, Antônio. Op. Cit., p. 152.
15
VIEIRA, Antônio. Idem, p. 164.
16
VIEIRA, Antônio. apud: FONSECA E SILVA, J. Trindade de. Op. Cit., p. 45.
17
VIEIRA, Antônio. Op. Cit., p. 474.
18
VIEIRA, Antônio. In: HANSEN, João Adolfo (org.). Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003, p. 475.
177
acertado o descimento do inverno com as nações indígenas que lá estavam. Além disso, registraram as
alturas do rio, o que até então não havia sido feito, “e acharam pelo Sol que tinham chegado a mais de seis
graus da banda do sul, que é pouco mais ou menos que a altura da Paraíba”
19
.
Numa carta de 12 de fevereiro de 1661, Vieira novamente faz referência às entradas e à
importância do Tocantins, informando à Câmara do Pará a descoberta do Rio Guassú: “[...] o qual
descobrimento se há de fazer pelo rio Tocantins; e quando V. cês no mesmo rio quizerem entrar pelo braço do
Araguaya, aonde estão várias nações que se diz, tem muitos escravos, e a dos Pirapés”
20
. As incursões ao Tocantins
foram de grande relevância tanto para o projeto colonial português, que buscava maiores informa-
ções sobre os sertões, quanto para a Companhia de Jesus, com o descimento de muitos índios para
suas regiões. Em seu sermão da Epifania, realizado na capela Real de Lisboa em 1662, Vieira diz:
Vede agora, quando vae daquella estrella às nossas estrellas, e da sua missão às nossas. Deixadas as mais antigas,
fizeram-se ultimamente duas, uma pelo Rio dos Tocantins, outra pello Amazonas: e com que efeito? A primeira
reduziu a nação dos Tupinambás e a dos Pachiguirás [...] e tudo em espaço de seis meses”
21
.
Para Goiás, o que ficou foi a formação de uma rota originada no norte, e que anos depois foi,
segundo o Cônego Trindade, trilhada por aquele que seria chamado apóstolo do Araguaia, Padre
Jerônimo da Gama. Com ele, ao que se sabe, encerra-se o ciclo seiscentista de incursões a essa
região e inicia-se um outro no século XVIII, a partir de novas orientações da metrópole, que
objetivavam a exploração e ocupação de todo o território de Goiás. Para tanto, a história reservaria
os grandes massacres dos bravos gentios de Goiás que ocupavam as áreas de mineração.
5.1 O desbravamento do território goiano e a formação dos seus primeiros aldeamentos
As primeiras incursões dirigidas ao território de Goiás no Setecentos, formadas para a procura de
jazidas auríferas, foram as que de fato alavancaram a sua efetiva ocupação. São elas também as grandes
responsáveis pelo início da transformação dos nativos em cristãos, bem como pela dizimação dos resis-
tentes e selvagens índios, considerados, à época, um dos agentes impeditivos do projeto de colonização e
exploração dos portugueses. Em resposta ao pedido de licença dos bandeirantes Bartolomeu Bueno da
Silva e João Leite da Silva Ortiz para explorarem as minas do sertão dos Goyazes, D. João afirmava:
Governador e Capitão General da Capitaniade São Paulo, etc. Eu, El-Rei vos envio muito saudar. Por parte dos
capitães Bartolomeu Bueno da Silva, João Leite da Silva Ortiz, Domingos de Prado, moradores na Vila de Santana
de Parnaíba, comarca dessa cidade, se me representou que, pelas notícias que tinham adquirido com as entradas que
haviam feito pelos sertões dessa América, se lhes fazia certo haver neles minas de ouro e prata, e pedras preciosas, cujo
descobrimento se não havia intentado pela distância em que ficaram as tais terras, asperezas dos caminhos,
e povo-
ações de índios bárbaros que nelas se achavam aldeados; os quais primeiro se haviam
conquistar para se descobrirem os haveres; e porque deste descobrimento de minas podi-
19
VIEIRA, Antônio. In: HANSEN, João Adolfo (org.). Op. Cit., p. 475.
20
VIEIRA, Antônio. apud: FONSECA E SILVA, J. Trindade. Op. Cit., p. 48.
21
VIEIRA, Antônio. apud: Idem, p. 47-48.
178
am resultar grandes interesses à minha fazenda, se ofereciam a me irem fazer este serviço
tão particular, à sua custa, não só conquistando com guerra aos gentios bárbaros que lhes
opuserem mas também procurando descobrir os haveres nas ditas terras
[...]
22
.
Essa correspondência, de 1721, ou seja, de quase um ano antes do início da expedição de
Bartolomeu, mostra que as regras para o tratamento dos índios do sertão já haviam sido definidas
pela Coroa, a despeito de todas as leis anteriormente citadas. A legitimação dessa política fica ainda
mais evidente quando se examinam as instruções de D. João V ao bandeirante, para os casos em que
houvesse qualquer impedimento, por parte dos naturais da terra, para a exploração do território.
Aos índios só restava aceitar a paz oferecida e a fé católica, cuja tarefa cabia aos padres que acompa-
nhavam a diligência, caso contrário, a guerra.
Contrariamente às ordens de extermínio expressas nas instruções de D. João V, nelas apareci-
am também as indicações de que tudo deveria ser feito para que os índios fossem domados em paz,
transformados em amigos e incorporados à jornada, pois somente com eles alcançar-se-iam “[...] as
noticias necessárias dos haveres que há nas suas terras [...]”
23
, como também outras aldeias
[...] que se achão exaustas de índios, e todos os que se metterem de pás, e se aceitarem vir para as Aldeãs, não
poderão ser constrangidos a servirem ninguém contra sua vontade, e menos ser captivos, e toda a pessoa de
qualquer calidade, que encontra o disposto neste regimento digo neste, encorrerã nas penas que são impostas aos
que fazem semelhantes cativeiros, nas formas de luzes e ordens de S. Magestade
24
.
Apesar desse discurso, em outros lugares da colônia, como em Goiás, verifica-se também a
repetição dessa perversa prática ao longo da colonização e reorganização de todas as novas terras,
ou seja, a escravização dos povos mais pacíficos e os intermitentes e conflituosos choques com os
mais belicosos.
Essa posição contraditória do governo colonial, claramente vista na expressão domados em paz,
abre perspectivas de entendimento do território, que considera diferentes concepções de espaços
que, evidentemente, se sobrepunham. Não se deve apostar apenas nas noções prioritariamente
impostas pelos colonos, mas também na complexa questão indígena. Esses povos, por diferentes
razões de ordem cultural, não entendiam a ocupação dessas terras como os portugueses a entendi-
am. Suas noções de fronteiras e limites, se é que as possuíam, eram radicalmente diferentes dos
colonizadores. Para os índios, a terra era o suporte da vida, e não um bem negociável. Lutavam pela
sua soberania sobre o território, mas não por fronteiras, delimitações jurídicas ou eclesiásticas. Ambos,
conquistadores e índios, formaram as duas maiores forças de resistência do processo de ocupação
do território de Goiás. Na prática, a Capitania funcionava segundo uma sobreposição e interpenetração
22
Resposta do Rei D. João V ao pedido de licença dos bandeirantes, 1721. In: PALACIN, Luís; GARCIA, Leônidas Franco; AMADO, Janaína.
História de Goiás em Documentos: I Colônia. Goiânia, UFG, p. 22. [Grifos nossos].
23
AHSP. Regimento a Bartolomeu Bueno da Silva, dado na cidade de S. Paulo aos 30 dias de junho de 1722, pelo secretário Gervasio Leyte
Rebello, do governador Rodrigo César Menezes. In: Documentos Interessantes. Livro V.
24
AHSP. Regimento a Bartolomeu Bueno da Silva, dado na cidade de S. Paulo aos 30 dias de junho de 1722, pelo secretário Gervasio Leyte
Rebello, do governador Rodrigo César Menezes. Idem.
179
de domínio entre os seus oponentes, gerando várias situações que dificultaram o estabelecimento
de linhas precisas entre os diversos espaços formados. Não houve, para nenhum desses espaços, um
verdadeiro limite para o exercício do poder, uma única barreira física, pois eles se encontravam
submetidos a uma lógica de dominação que se alternava frequentemente entre os seus agentes
opositores. O desenho do território de Goiás configura-se, portanto, como o resultado desse pro-
cesso de confrontos de poderes institucionais e de resistências que se interpunham entre o coloni-
zador e os nativos que também disputavam o território.
E eram inúmeras as tribos que aqui habitaram: Kaiapó, Carajapitanguá, Araxá, Quirixá, Goiás,
Bareri e Carajaúna
25
, dentre tantas outras. Muitas delas se opuseram fortemente ao processo de coloni-
zação, por exemplo, os Kaiapó, que se encontravam no sul, desde a região do Paranaíba, ocupando a
estrada que vinha de São Paulo até o Araguaia, no caminho do Mato Grosso
26
, e os Akroá-Assú,
Xavante e Xacriabá, no norte, sendo os primeiros deste grupo considerados o terror dos viajantes e a
grande causa de conflitos que pareciam sem solução. De ambas as direções, os encontros dessas
nações indígenas com os brancos foram de máxima brutalidade, não correspondendo ao previsto pela
legislação, que, diga-se de passagem, expressava-se com grandes ambigüidades, como dito anterior-
mente. Se, por um lado, se pregava a civilização pacífica dos índios, por outro lado, se houvesse impe-
dimento do avanço às terras minerais indicava-se seu extermínio.
Assim, desde o início do Setecentos a ocupação de Goiás se caracterizou pela freqüente
presença de graves e sanguinários conflitos entre as expedições colonizadoras e os “brabos” natu-
rais, com perdas de numerosas vidas. Do lado dos colonizadores, em 1736, antes mesmo da funda-
ção de Vila Boa, forças de guarnição militar vindas de Santos e Minas Gerais
27
– esta última comandada
pelo capitão José de Moraes Cabral – contribuíram para “desembaraçar” os caminhos das minas.
Posteriormente, seguidas ações dos governadores foram dirigidas para o extermínio dos indígenas,
a exemplo de D. Luís de Mascarenhas, que, entre os anos de 1740/1741, procurou o sagaz e cruel
sertanista Antônio Pires de Campos, prometendo-lhe vantajosas mercês se aceitasse a tarefa de
aquietar os ferozes Akroá, que frequentemente atacavam os arraiais de Natividade, Arraias, Ribeira
do Paranã e Terras Novas, levando seus senhores, escravos e gados, além de queimarem as roças.
Constava ainda da tarefa do sertanista aldeá-los junto aos seus domados Bororo “[...] para lhe servirem
de defesa perpétua e daí sair a bandeira para outras partes do que forem necessárias ou pelo modo que a alta
compreensão de Vossa Magestade achar mais própria e conveniente aos vassalos, cuja lealdade e risco em que vivem
são merecedores da real atenção de Vossa Mercê”
28
.
Ações extremas, como os ataques “ofensivos” dos colonizadores, dependiam, obviamente, da
autorização da Coroa. Mas, nesse caso, Portugal inicialmente se apresentou lento em relação ao pedido
de combate aos Akroá feito pelo governador Mascarenhas, justificado frequentemente pela ferocidade
incontrolável dos indômitos silvícolas. Somente em 23 de maio de 1744, ele conseguiu uma provisão
25
BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no planalto central: Eco-história do Distrito Federal, do Indígena ao Colonizador. Brasília: Verano, 2000, p. 65.
26
PALACIN, Luís. Goiás: 1722-1822. Goiânia: Oriente, 1976.
27
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da província de Goiás. Goiânia: Convênio Sudeco/ Governo de Goiás, 1970, p. 59.
28
AHU. Goiás. Doc. 252, 1744. Provisão (anexo) de D. João V. Lisboa. In: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas
fronteiras do sertão: políticas indígenas e indigenista no norte da capitania de Goiás, atual Estado do Tocantins, século XVIII. Goiânia: Editora
Kelps, 2006, p. 95.
180
que aprovava a guerra ofensiva contra os Caiapós e Akroá, que teve início em abril desse mesmo ano.
Nesse documento, o monarca D. João V aponta claramente a necessidade do extermínio:
[...] é preciso reduzi-lo à paz acariciando e dando-lhe a perceber por meios suaves que posta a antiga ferocidade e se
acomodarem a viver doméstica e mansamente se lhe guardará justa e será tratado com humanidade e sem ofensa de suas
pessoas e liberdades [...] se prosseguir esses gentios nos seus insultos inquietando os moradores e impossibilitando-lhes a sua
subsistência e conservação nas minas, nesse caso, vos apliquem e procurares a dita paz, fazendo-lhe guerra
29
.
Em situações como essas, Apolinário
30
diz que os índios eram vistos como seres estranhos,
por não conhecerem e, notadamente, não vivenciarem as leis, regras e normas dos colonizadores.
Vistos como animais, deveriam ter as suas ferocidades domesticadas e amansadas em benefício do
projeto português de expansão territorial, econômica e da fé católica.
Política indigenista semelhante à mencionada vê-se nas instruções de D. Marcos de Noronha
(1749-1753), o primeiro governador da recém-formada Capitania de Goiás (1749). Ao contrário de
Mascarenhas, ele acreditava, em princípio, que para o alcance da civilidade e da cristianização dos
índios, estes deveriam ser aldeados mediante o convencimento e a prática da paz, procurando-se,
sobretudo, evitar a violência. Para a realização de seu plano, deveria pedir,
[...] ao Provincial da Companhia de Jesus do Brasil missionários para os doutrinarem e aldearem nas mesmas terras em que
forem achados, sem permitir que sejam mudados para outras, salvo no caso que por serem poucos queiram voluntariamente
unir-se a outras aldeias da mesma língua. E vos encomendo muito tenhais a maior atenção para que aos ditos índios senão
façam insultos, violências, ou desprezos, antes sejam em tudo tratados humanamente como pede a caridade cristã
31
.
A presença de missionários inacianos em Goiás, entretanto, diferentemente dos séculos anteriores,
encontrava-se submetida a uma política de ocupação cujo controle dos índios era prerrogativa do Estado,
antes mesmo do pleno vigor da perseguição de Pombal à Companhia de Jesus. Na orientação de D.
Marcos de Noronha aos padres, suas limitadas atribuições ficam claramente expostas. Caberia aos religi-
osos apenas a responsabilidade com “[...] a paz, [a] união e a boa harmonia que devia haver entre os Missionários,
e o Thenente Coronel, ao qual deu hum regimento que devia observar os Soldados do Prezídio [...]”
32
. Em hipótese
alguma, eles poderiam se ocupar do “[...] domínio do temporal dos índios [...]”
33
. Para tanto, as instruções
definiam suas côngruas em mil reis por ano para cada um dos missionários, determinando ainda que:
[...] cada semana se dessem três Bois, a saber, hum para os Missionários, outro para os Soldados, e outro para
os Índios: isto hé, soldados, e Índios pertencentes a Aldeya do Duro do Gentio Chacriabá. Determinou mais,
29
AHU. Goiás. Doc. 252, 1744. Provisão (anexo) de D. João V. Lisboa. In: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Op. Cit. , p. 95.
30
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Idem, p. 95.
31
Carta da rainha D. Maria I a D. Marcos de Noronha. In: PALACIN, Luís; GARCIA, Leônidas Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em
documentos. I. Colônia. Goiânia: UFG, 1995, p. 69-70.
32
Carta da rainha D. Maria I a D. Marcos de Noronha. In: PALACIN, Luís; GARCIA, Leônidas Franco; AMADO, Janaína. Idem.
33
AHU. Goiás Doc. 771, 1755. Sobre as Missões de Natividade. Projeto Resgate Barão do Rio Branco, IPEHBC.
181
que se fizesse na mesma Aldeya hum monjolo para beneficiar as farinhas. Ordenou tãobem que se estabelecese
húa Fazenda de Gado vacuum, para servir para o futuro de sustentação para os Missionários, e mais Índios;
levantando-se então a pensão dos Bois. Para esta fundação determinou o numero de quatrocentas vacas. Man-
dou tãobem, que os Soldados do Prezidio fossem pagos de três em três mezes, porquanto se dizia, que não sendo
assim decertarião todos; pois desde o seu principio athé aquelle tempo não tinhão sido pela Fazenda Real. Toda
despeza foi entregue a Francisco Rodriguez de Mattos, o qual no destrito da Natividade tem a seu cargo o
Contrato dos Dízimos, e se achava prezente em S. Felix. Só não determinou quanto se devia dar para o
guizamento da Igreja. Ao Thenente Coronel ordenou comprasse alguas pessas de algodão para fardar os Índios;
alguns surrões de sal, e rolos de fumo para se distribuir com os mesmo Índios [...]
34
.
Imitando, dessa forma, a participação dos jesuítas na política de ocupação colonial, D. Marcos
de Noronha procurou dar início concreto às determinações que a ele foram delegadas: civilizar
índios, mantendo-os em seus respectivos territórios para poderem ser utilizados como “barreiras”
35
do sertão, evitando, assim, a entrada na região aurífera. A completa viabilização de suas ações exigiu
que o governador atuasse em duas frentes principais: uma no sul e outra no norte. Para a primeira
região, em 1750, designou o Padre José de Castilho para criar a Aldeia de Santana do Rio das Velhas
(1750), em Indianópolis, atual Triângulo Mineiro. Contou para a execução dessa tarefa com a ajuda
do experiente sertanista Antônio Pires de Campos, que não só havia erguido a Aldeia do Rio das
Pedras, em 1742, para abrigar os Bororos, como também participado de combates contra os Kayapó,
visando liberar a estrada de São Paulo que dava acesso às minas do sertão goiano.
Concomitantemente às ações do sul, desenvolveram-se as do norte, em especial na região de
Natividade, Paranã e Terras Novas, lugares de grande densidade populacional de bravos indígenas e,
portanto, palco de inúmeros conflitos e ataques aos arraiais de Natividade, Carmo, Chapada, Taboca
e Alma
36
. Esses freqüentes combates, sem o almejado sucesso dos colonizadores, levaram D. Marcos
de Noronha a duvidar da eficácia do método de persuasão e convencimento dos índios para o alcance
da “paz” e a conseqüente conquista, notadamente em relação aos Akroá e Kayapó. Seguidas negoci-
ações sem o êxito esperado deixaram o governador desanimado com a hostilidade dos resistentes
nativos da Capitania goiana e, inclusive, sem expectativas para a rápida e necessária formação de
aldeamentos e a disponibilidade de cativos para auxiliá-lo na conquista de outras nações. A falta de tais
condições o levou a solicitar à Coroa portuguesa que enviasse ordens aos governadores de Cuiabá e
São Paulo para conseguirem indígenas já aldeados para ajudarem a “desembaraçar os caminhos e
desinfetar as povoações”. Não obtendo retorno, D. Marcos convidou o capitão-mor do Piauí, o portu-
guês Antônio Gomes Leite, para chefiar uma expedição contra os Akroá. No entendimento de D.
Marcos, só as ricas experiências desse homem poderiam ajudá-lo na difícil empreitada que objetivava
a redução desses índios. Apostando na perícia de Gomes Leite, o governador chegou até mesmo a
34
AHU. Goiás. Doc. 771, 1755. Idem.
35
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas fronteiras do sertão: políticas indígenas e indigenista no norte da capitania de
Goiás, atual Estado do Tocantins, século XVIII. Goiânia: Editora Kelps, 2006, p.105.
36
Segundo Apolinário, embora o regimento de D. Marcos de Noronha assinalasse que haveria de se praticar uma política de paz com os índios da
Capitania, evitando o uso da violência, na região do norte abriu-se precedente para iniciar uma guerra contra os Akroá. APOLINÁRIO, Juciene
Ricarte. Op. Cit., p.101.
182
pedir aos principais moradores dos povoados do norte de Goiás para contribuírem com o projeto de
formação de aldeamentos, liberando os índios “administrados”
37
que possuíam em suas residências.
Apesar de todas essas providências, os ataques aos arraiais e às resistências dos Akroá continu-
aram, e mesmo quando se tentava negociar pacificamente, os índios se recusavam veementemente a se
estabelecer em aldeamentos. Esse fato levou D. Marcos a comunicar à Coroa portuguesa a impossibi-
lidade de reduzir esses índios sem o uso da força, tampouco fazê-los conviver harmoniosamente com
outros povos. O governador acreditava também que apenas construindo aldeamentos distantes dos
territórios dos índios, particularmente no interior do sertão, poder-se-ia alcançar êxito, embora essa
solução contrariasse as determinações legais de Portugal, que assinalava a importância de os silvícolas
se manterem em seus habitats para formarem as barreiras de acesso às áreas de mineração.
Diante de tais argumentos, o governador, em novembro de 1749, convocou uma junta para resol-
ver a questão dos procedimentos que deveriam ser tomados para atacar as aldeias. Mas nesse ínterim, vem
a óbito Antônio Gomes Leite e para substituí-lo foi contratado o tenente-coronel Wenceslau Gomes da
Silva, que, antes mesmo de oficializar os termos do trabalho com D. Marcos, foi convencido a dar início
à guerra e à conseqüente matança dos índios, contradizendo o “relativo” cumprimento dos governadores
da provisão de 10 de julho de 1727, que afirmava a liberdade dos índios, por direito natural.
A reação de D. Marcos ao uso da guerra para o combate aos índios encerra uma grande
contradição de seu discurso, quando se coloca contra as iniciativas emergenciais do novo sertanista,
considerando-as radicalmente ilegais, embora em momentos anteriores houvesse defendido a eficá-
cia de tal prática. Em carta ao Padre Dionízio Dias da Costa, de 20 de agosto de 1751, dizia: “[...] e
o que mais me admira é que esse homem tomasse a bárbara resolução de julgar por presa todos os índios que tinham
apanhado na mesma guerra, e que com os tais os quintou, e mandou vender absurdo e o mais detestável que se pode
imaginar, porque assim os compradores como os vendedores”
38
.
Com o intuito de cercear a autonomia do sertanista, o governador entregou-lhe um regimento
para que fosse fielmente cumprido
39
e o ajudasse no soerguimento e administração dos aldeamentos de
São José do Duro, nomeado popularmente de Formiga, para abrigar os Akroá, e São Francisco Xavier do
Duro, ou Duro, para os Xacriabá, ambos em 1751. Em 1753, cria-se a Missão de São Francisco Xavier
(atual Dianópolis), formada pelos dois aldeamentos e dirigida espiritualmente pelo Padre José Matos.
Dela se obtinha acesso às capitanias do Piauí, Maranhão, Rio São Francisco e Pernambuco
40
(Fig. 57).
37
Eram, portanto, os índios, de uma prática que havia sido legalizada à época de Rodrigo de César de Menezes, com a publicação de um bando de 22 de
janeiro de 1732. Nesse documento, encontravam-se os seguintes dizeres: “[...] em nome dos moradores desta capitania, em que lhe pedia a adminis-
tração do dito gentio e na atenção da observância dela, ordeno e mando que todo gentio que novamente se conquistou e conquistar daqui em diante
em sertões desta capitania não possam de nenhuma sorte ser vendidos, por serem de natureza livres, com declaração que quanto aos moradores lhes
sejam necessário para fazerem alguns descobrimentos, ou para outros empregos que possam ser úteis ao real serviço, ou para algum trabalho que seja
conveniente aos ditos moradores [...]”. Bando do Capitão-General da Capitania de São Paulo, Rodrigo de César de Menezes, sobre se não se venderem
nesta Capitania, os que vierem do sertão.” In: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Idem. p.104.
38
“Bando do Capitão-General da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de Menezes, sobre se não se venderem nesta Capitania, os que vierem
do sertão.” In: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Idem, p.104.
39
Apolinário resume os principais itens desse regimento e, a partir de sua síntese, destacamos os principais aspectos que nos interessam:
– Atenção à fé católica e aos valores cristãos de um vassalo que deveria cumprir as normas do Estado, particularmente no que se refere à prática de conversão
indígena por intermédio da guerra defensiva, o que significava que antes do combate deveriam se confessar para que, em graça, obtivessem sucesso.
– Obrigação de se procurar um religioso para que, durante toda a campanha, “o possa ter pronto para administrar os sacramentos a todas as pessoas da
sua bandeira”, com a intenção de convencer os índios de que as ações missionárias poderiam convertê-los e torná-los dóceis às ordens do Rei.
– Os índios deveriam ser convencidos a aceitar a paz e abraçar a fé católica. APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Op. Cit., p. 108.
40
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Idem, p. 115.
183
Fig. 59 – Mapa da Capitania de Goiás
(detalhe).
Fonte: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte.
Os Akroá e outros povos indígenas nas
fronteiras do sertão. Goiânia: Kelps, 2000,
p. 228.
Fig. 58 – Mapa da Capitania de Goiás.
Fonte: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte.
Os Akroá e outros povos indígenas nas
fronteiras do sertão. Goiânia: Kelps, 2000,
p. 227.
Fig. 57 – Mapa da Missão de São
Francisco Xavier.
Fonte: ADONIAS, Isa. Cartografia da
Região Amazônica. Catálogo descritivo
(1500- 1961). Rio de Janeiro: Instituto
Nacional de Pesquisas da Amazônia,
1963, p. 640.
184
A despeito de todos os esforços para a sua implantação, essa missão
41
não obteve o sucesso alme-
jado, por conta de inúmeros fatores, que iam desde aqueles relacionados às dificuldades para a adminis-
tração dos aldeamentos, até os desentendimentos que existiram entre os padres e o sertanista Wenceslau
Gomes. O aldeamento de Formiga, desde a sua formação inicial, já apresentava sinais de graves proble-
mas, tais como a insalubridade do lugar e os surtos epidêmicos, vitimando os índios e deixando-os “[...]
feitos cadáveres vivos, outros pálidos e macilentos, outros inchados, e todos finalmente cubertos de húa lepra, ou sarna tão
tyrana que julguey era aquelle lugar algum Lazareto [...]”
42
. Visando solucionar a difícil situação, o governador
autorizou o Padre José Matos, inclusive, a mudar os poucos residentes para um lugar onde houvesse “[...]
matos, e lugar cômodo para a situação.” Mas, “[...] em toda esta distancia não [se achou] achamos matos sufficientes para
estabelecer Aldeya. Só no lugar chamado Oliveira, para outra parte do Certão, tem alguns matos, e lugar cômodo para
situação, porem a este obstavão os moradores da Natividade, por serem terras minerais”
43
.
Uma segunda possibilidade para mudança de local também havia sido cogitada, mas, segundo
o sacerdote, algumas ponderações sobre ela deveriam ser feitas, pois eram “[...] terras mistas com
fazendas de gados dos mesmos moradores, onde a cada passo podem nascer quiexas e deserções entre os índios e os
moradores [...]”
44
. Como resposta ao impasse, decidiu-se levar a população dos Akroá para ser assen-
tada nas proximidades do Aldeamento do Duro
45
, onde se encontravam os Xacriabá, a dois quilô-
metros do anterior, erguendo-se num aprazível terreno,
[...] com bons ares, onde liberalmente se podem estender os olhos por dilatados campos com bons pastos, e sercanias ao
longe que formão alegres perspectivas: muitos mattos com boas terras para lavrar. Só a dispozição da caza da vivenda
dos Missionários, a Capella, e moradia dos Índios não estão em boa dispozição, ficando huas e outras em bastante
distancia, e de algua sorte impossibilitados os Missionários a dizer Missa nos dias de chuva. Estranhando nos os
cômodos da caza, respondeu o Thenente Coronel que as tinha feito para si, e hum Capellão, ao mesmo tempo que o
Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Conde affirmava que as tinha mandado fazer para os Missionários. Não
achamos nelas bancos [sic], nem mezas para a nossa serventia: e fazendo-se algum requerimento sobre esta matéria,
respondeu que não havia obrigação de semelhante preparo. Os quartos dos soltados estavão ainda cubertos de palha,
e se cubrirão de telhas depois que lá chegamos. Os Índios, assistião nas suas Arapucas, porquanto as suas cazas
estavão somente principiadas; e só hum pequeno Lanso estava acabado, para onde se mudou o Thenente Coronel
porem no tempo que lá estive se acabarão todas. A Capella não tinha mais ornato que o das paredes, sem haver hua
única taboa; de tal sorte, que foi necessário uzarmos do Altar portátil para se celebrar a Festa, e continuar por alguns
dias para se dizer Missa. Necessitando eu do Altar para hir ao Prezidio da Formiga, foi precizo ao Padre Superior
formar de buritis hum altar para a Igreja, e na Sachristia húa meza do mesmo para por os ornamentos
46
.
41
Segundo uma iconografia do catálogo de Isa Adonias, essa nova missão localizava-se ao norte da Capitania de Goiás e à leste do Rio Tocantins.
Representa também o Rio Tocantins, Rio Manuel Alves Grande, Rio do Sono, Rio Manuel Alves. No primeiro plano, aparecem a casa e a capela
dos padres e, em planos posteriores, o aldeamento dos Xacriabá, formado por 396 casas, e o dos Akroá com 286. ADONIAS, Isa. Cartografia
da Região Amazônica. Catálogo descritivo (1500-1961). Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1963, p. 640.
42
AHU. Goiás. Doc. 771, 1755. Sobre as Missões de Natividade. Projeto Resgate Barão do Rio Branco, IPEHBC.
43
AHU. Goiás. Doc. 771, 1755. Idem.
44
AHU. Goiás. Doc. 771, 1755. Idem.
45
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Op. Cit. , p. 115.
46
AHU. Goiás. Doc. 771, 1755. Sobre as Missões de Natividade. Projeto Resgate Barão do Rio Branco, IPEHBC.
185
Como se vê, entre 1755 e 1757, a precariedade física desses aldeamentos, as evidentes
dificuldades cotidianas e os poucos recursos de que dispunham os missionários contribuíram
para o fracasso da missão, que não alcançou os objetivos previstos nas instruções do então suces-
sor de D. Marcos de Noronha, São Miguel (1755/1759). Segundo essa instrução, as principais
obrigações dos religiosos seriam “a converção dos Índios a sua Redução à vida civil, e augmento das Missoens,
o estabelecimento das Aldeas”. As primeiras ficariam
[...] encarregadas aos Religiosos da Companhia de Jesus; à elles incumbireis as Aldeas que de novo se
erigirem: declarando lhes logo, que só nellas lhes pertence o governo Espiritual, e ainda aquelle econômico
necessário para a criação dos Índios; mas por nenhum modo o Temporal, sobre o que darei a providencia que
for servido; e ordenareis que nas ditas Aldeas se ensine a língua Portugueza a todos os que forem capazes de
a apprender, e sem falta alguma a todos os meninos
47
.
Por fim, haveriam de estar atentos para que “[...] Índios reduzidos por qualquer forma se cumprão
inviolavelmente os pactos e ajustes que com elles se fizerem; e sejão tratados com tal humanidade e brandura, que
os faça mudar o conceito, e perder a bem fundada idea em que os deve ter posto a barbaridade, com que tantas vezes
tem sido tratados”
48
.
Os conflitos entre índios e colonizadores também ajudaram a dar cabo às missões em
Goiás. A natureza belicosa e valente dos Akroá e a sua aproximação e convívio com os Xacriabá
os fortaleceram e possibilitaram a formação de um primeiro e violento levante na redução, segui-
dos, posteriormente, por rebeliões, contra-ataques e “guerras” que levaram à dispersão e dizimação
de muitos índios aldeados
49
. Sendo assim, o intento das missões de Natividade não foi
alcançado, pois o que havia sido pensado para ser a fixação de uma população de naturais conver-
tidos ao cristianismo e um rigoroso e estratégico bloqueio de proteção contra o fácil acesso às
terras minerais, para evitar o desvio do ouro sem a devida retirada do imposto da Coroa nas casas
de fundição da Capitania de Goiás, transformou-se num grande espaço de violência e conflitos,
inviabilizando seu pleno desenvolvimento.
No lado sul, até meados do século XVIII, o quadro também não se mostrou diferente. O fato
de se ter conseguido conter de forma efetiva a redução dos Kaiapó – em virtude das ambivalentes
posições de D.Marcos, que se mostrava ora contra, ora a favor das ações ofensivas – pode ser
considerado uma das importantes conseqüências do insucesso e estagnação dos aldeamentos em
Goiás. A instabilidade do governador e a falta de firmes e rígidas orientações em relação às questões
indígenas permitiram a continuidade dos freqüentes e hostis ataques dos gentios aos aldeamentos já
formados e às suas populações, como as estabelecidas às margens dos rios Claro e Pilões,
desestruturando-as e dificultando suas sobrevivências.
47
AHU. Goiás Doc. 662, 1754. Instruções dadas a São Miguel. Projeto Resgate Barão do Rio Branco, IPEHBC.
48
AHU. Goiás Doc. 662, 1754. Idem.
49
Sobre esse conflito, ler APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Op. Cit. , p. 130-149.
186
A incapacidade desses primeiros governadores de promoverem a “paz” e a prosperidade,
bem como os propósitos não alcançados pelo sertanista Antônio Pires de Campos e de seu
sucessor Manuel de Campos Bicudo, também revelam, segundo Chaim
50
, as frustrantes tentati-
vas de otimização da política indigenista dessa época. Tudo isso materializado na infeliz tenta-
tiva de se reunir os Araxá com os Kaiapó no aldeamento do Rio das Velhas, resultando na
dizimação dos primeiros pelos segundos, que invadiram seus acampamentos para escravizá-
los; na impossibilidade de reduzir os Tapirapé, os Mangariruba e os Cururu por meio do con-
vencimento, e, por fim, na interrupção dos trabalhos de Manuel de Campos, por causa de sua
repentina morte no Arraial de Paracatu. Mesmo diante desse caótico panorama, outras ações,
orientadas pela nova política de Pombal, foram estabelecidas e implementadas, sobretudo, na
segunda metade do século XVIII, com a gestão de José de Almeida de Vasconcelos Soveral e
Carvalho, o quarto capitão-general de Goiás.
5.2 A política de urbanização de Goiás no período pombalino
A partir da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, e até o Tratado de Santo Idelfonso, em
1777, uma série de novas medidas foram tomadas pela Coroa portuguesa em relação ao Brasil, particu-
larmente no que se refere à nova configuração e defesa de parte deste território. Esse foi o momento
do reinado de D. José e da atuação do seu polêmico ministro e secretário de Estado dos Negócios do
Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo – elevado depois à dignidade de Marquês de Pombal (1750/
1777) – que assumiu a importância e o prestígio que anteriormente eram de Alexandre de Gusmão, o
sagaz secretário de D. João V. Foi na qualidade de auxiliar do monarca que esse austero ministro,
posteriormente agraciado com o título de Conde de Oeiras, estruturou um completo programa para a
colônia, visando sua “reorganização econômica, social, administrativa, judicial, religiosa e, sobretudo, política”
51
.
Esse conjunto de iniciativas visava o controle geopolítico do Brasil, notadamente dos territórios esta-
belecidos pelo meridiano de Madri, lançando-se mão de intervenções diretas de funcionários a serviço
do Estado que, além de atenderem os interesses imediatos de Pombal, buscavam impulsionar também
o povoamento e a urbanização das áreas incultas da colônia.
Como defendeu Silva, não foram apenas as preocupações de demarcação e ocupação territorial
que fizeram parte desse amplo programa pombalino. Embora de natureza mais secundária, dimen-
sões “filosóficas” e menos “militares” também se incorporaram a ele, “[...] com naturalistas, arquitetos,
engenheiros, desenhadores, percorrendo um espaço novo com olhar observador de quem tudo quer registrar para
transmitir o maior número possível de informações a uma máquina estatal que tudo queria conhecer e contolar [...]
52
.
Não se pode pensar nas delimitações das linhas de fronteiras sem o rico resultado cartográfico,
geográfico, botânico, zoológico e mesmo etnológico, que permitiu ganhos ao pragmatismo científi-
50
CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás – 1749/1811. São Paulo: Nobel, 1983, p. 81.
51
FLEXOR, Maria Helena Ochi. A rede urbana setecentista: A afirmação da vila regular. mimeo, 2003.
52
SILVA. Maria Beatriz Nizza da. apud: FERREIRA, Mário Clemente. O Tratado de Madri e o Brasil Meridional: os trabalhos demarcadores das
partidas do sul e a sua produção cartográfica (1749/1761). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugue-
ses, 2001, p. 221.
187
co da época, mediante a descoberta das possibilidades econômicas das regiões. No Amazonas, por
exemplo, o conhecimento e a valorização dos recursos da flora e das drogas do sertão despertaram
interesses, na maioria das vezes, relacionados à medicina e às atividades econômicas
53
.
Para a viabilização desse programa, Flexor
54
elenca inúmeras e importantes providências,
como os levantamentos cartográficos feitos em várias partes da colônia; as demarcações dos novos
limites territoriais, executadas por experientes comissões; a criação de capitanias ligadas ao Grão-
Pará e ao Maranhão; o soerguimento de fortes estrategicamente implantados; o estímulo ao
extrativismo na região do Amazonas; a importação de mão-de-obra escrava negra para o Norte;
o incentivo à vinda de açorianos, madeirenses e minhotos para habitarem o Sul, Nordeste e Norte;
o desenvolvimento do comércio a partir da criação da Companhia-Geral do Pará e Maranhão e da
Companhia-Geral de Pernambuco e Paraíba; a abertura de estradas para o desenvolvimento
das atividades comerciais entre as capitanias do Pará, Goiás e Mato Grosso, etc. Entre outras medi-
das incluídas no plano de Pombal, a autora destaca o processo de laicização das aldeias, a reabertura
das Aulas de Engenharia do Pará, a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro (1763),
a incorporação de capitanias à Coroa, a união de capitanias entre si e a realização de recenseamen-
tos, procurando identificar o número de habitantes capacitados para o Serviço Real. Consta tam-
bém da lista, a criação de comarcas, ouvidorias e julgados
55
.
O desenvolvimento da urbanização colonial se concretizaria com a formação de vilas e a
elevação de antigos núcleos populacionais e aldeamentos a essa mesma categoria. Para a execução
dessa inigualável tarefa foram encaminhados às regiões da colônia, em datas distintas, Cartas Régias
e instruções aos governadores ordenando-lhes que tomassem as devidas providências. Em São
Paulo, por exemplo, a Carta Régia chegou em 23 de janeiro de 1765, acrescida de uma outra, em que
aparece a ordem para que os colonos se dirijam para as povoações capacitadas de oferecer sacra-
mentos e preparo para “todas as ocasiões do seu Real Serviço”. Flexor
56
trata da mesma questão quando
menciona um parecer de Pombal, de 17 de setembro de 1765, enviado ao governador paulista
Morgado de Mateus, pedindo que bandeirantes fossem fundando povoados nas proximidades da
Serra da Apucarana. Concomitantemente, deveriam ainda civilizar todos os índios que encontras-
sem, com a construção de aldeamentos similares aos de Francisco de Mendonça Furtado, no sertão
do Pará. Nesse mesmo ano, uma Carta Régia de 3 de março mandava soerguer povoações e vilas nas
aldeias de Porto Seguro. Em 22 de julho de 1766, uma outra dessas correspondências Régias tam-
bém chegava ao governador da Bahia. Ordens com o mesmo conteúdo alcançaram o Ceará, resul-
tando na elevação da real vila de Montemor-o-Novo; e o Piauí, para a transformação de oito povoados
em vilas e da Vila da Mocha em cidade, com o nome de Oeiras (Carta Régia de 1761).
Aproximadamente desde 1751, antigas iniciativas já demonstravam o crescente interesse da
metrópole com a ocupação das terras brasileiras. É o caso do início dos povoamentos de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul e da fundação da Capitania de São José do Rio Negro, no Norte do
53
FERREIRA, Mário Clemente. Op. Cit., 2001.
54
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Op. Cit., 2003.
55
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Idem.
56
FLEXOR, Maria Helena Ochi. As vilas pombalinas do século XVIII: estratégia de povoamento. In: V Seminário de História da cidade e do
urbanismo. Campinas: PUC– CAMP, 14,15,16 de out. 1998.
188
Brasil, em 3 de março de 1755. No Amazonas, essa política de controle e povoação se concretizaria
com as ações demarcatórias do Norte, chefiadas por Francisco Xavier Mendonça Furtado,
[...] com a elevação de cerca de setenta vilas e lugares efetuados num período de aproximadamente cinco anos
(1754/ 1759). Estas foram, na sua maioria, as antigas aldeias das missões que o governador e seus sucessores
“rebatizaram” com nomes portugueses elevando-as à categoria de vilas. Tal procedimento implicou, em parte,
uma reconversão simbólica. Com a elevação das aldeias indígenas a vilas, pretendia-se transformá-las em
povoações civis utilizando esta expressão no duplo sentido de retirar o cunho religioso que o aldeamento missi-
onário mantinha e de ser, alegoricamente, uma mudança que as traria para o seio da “civilização”
57
.
Para a conversão dos índios em seres civilizados, alguns procedimentos foram adotados visando
a aplicação dessa nova política. Alguns deles encontram-se expressos no Alvará de 4 de abril de 1755
e na Lei de 6 de junho desse mesmo ano. O primeiro documento refere-se à importância dos casamen-
tos mistos, ou seja, de vassalos com nativos. O segundo trata da anulação do Regimento das Missões
do Estado do Maranhão e Grão-Pará, assinado pelo Rei em 21 de dezembro de 1686, que destinava a
coordenação da catequese dos aldeamentos à Companhia de Jesus. Em 8 de maio de 1758, a ordem de
anulação chega ao bispado do Rio de Janeiro, com a seguinte determinação da Coroa:
[...] como governador e perpétuo administrador, que sou, do mestrado e da cavalaria das militares, a que hei
por bem que em cada uma das aldeias de índios, que novamente mando erigir em villas e lugares, e nas mais em
que de novo se forem aldeiando os referidos índios, em lugar de cada uma das paróquias que até agora adminis-
travam os religiosos da Companhia de Jesus, com a denominação de missões, constituías uma paróquia com o
título de vigária, que fareis de servir interinamente até me dares conta como se pratica nas igrejas novamente
eretas; assinando aos párocos delas as côngruas que se acham estabelecidas pela minha ordem, com aquela
igualdade ou diminuição que forem competentes às diferenças dos maiores ou menores lugares [...]
58
.
Acabar com o poder dos inacianos era uma das principais metas a ser alcançada por Pombal.
Diferentemente da primeira metade do século XVIII, quando muitos dos aldeamentos eram orga-
nizados pelo sistema de missões, marcas inconfundíveis dos irmãos da Companhia de Jesus – cujas
práticas privilegiavam a ação pastoral entre os “infiéis”, “hereges” e católicos –, o que se institui
agora é a formação de vigárias subjugadas ao Estado, assistidas por párocos com côngruas. Os jesuítas
foram sumariamente afastados da catequização indígena e, posteriormente, expulsos da colônia
com ordens para se recolherem imediatamente aos seus claustros.
Dentre outros exemplos, as novas regras para os aldeamentos e a expulsão dos jesuítas fize-
ram parte do amplo conjunto de ações inovadoras que se processavam simultaneamente no Brasil.
Em Goiás, essas inovações são dadas ao conhecimento em 17 de outubro de 1758. De forma
similar às demais regiões da colônia, com os alvarás, as leis e as sigilosas instruções do futuro gover-
nador João Manoel de Melo (1759-1770) estavam as normas do Diretório que se deve observar nas
57
MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Araújo Malcher. A engenharia militar do século XVIII e a ocupação da Amazônia. In: Op. Cit., p. 190-191.
58
Carta do Rei ao Bispo do Rio de Janeiro, 8 de maio de 1758. ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op. Cit., p. 139.
189
Povoações dos índios do Pará e Maranhão, publicado em 3 de maio de 1757 e confirmado em 17 de agosto
de 1758
59
. Nesse regimento, composto por 95 parágrafos, encontravam-se as orientações para a
civilização dos índios, os procedimentos a serem seguidos pelos diretores ou tutores, que eram as
autoridades responsáveis pela administração dos aldeamentos. Além disso, alguns dos importantes
parágrafos desse documento tratam também da direção temporal e espiritual do aldeamento,
da política agrícola, do cultivo da terra, da fiscalização e do comércio dos produtos obtidos, e da
organização das aldeias, que incluía desde as suas localizações até as disposições espaciais de índios
à maneira dos brancos.
De acordo com essa nova orientação do Estado, era incumbência do novo gestor da Capita-
nia goiana implantar “[...] os sólidos princípios da Religião, e dilatação da Santa Fé Católica, que faz o meu
primeiro objecto; da civilização dos muitos racionais silvestres, com que a Divina Omnipotencia enriqueceo o Sertão
do Estado do Brasil em hum numero consistente para o fazer feliz e opulento, a Agricultura, que com hum tão
consideravel numero de homens, [ilegível] haveria feito hum importantíssimo progresso, se por opportunos meyos os
houvessem reduzido a serem sociáveis [...]”
60
, e, mais diretamente ligada à urbanização do território, a
criação de povoações decorosas e com boas disposições para o desenvolvimento do comércio. Para tal
fim, deveriam ser distribuídas novas sesmarias,
[...] nos distritos das vilas e lugares que de novo erigireis nas aldeias que hoje têm, e no futuro tiverem os
referidos índios, as quais denominareis com os nomes dos lugares, e vilas deste reino, que bem vos parecer,
sem atenção nos nomes bárbaros que têm atualmente; dando a todas as ditas aldeias a forma de governo
civil, que devem ter, segundo a capacidade de cada um deles, na mesma conformidade que se acha praticado
no Estado do Maranhão, com grande aproveitamento do meu Real serviço, e do bem comum dos meus
vassalos:
nomeando logo e pondo em exercício naquelas povoações as serventias dos
ofícios das câmaras , da justiça e da fazenda, elegendo para elas as pessoas que vos
parecerem mais idôneas
[...]
61
.
Somando-se a essas incumbências, caberia ainda ao governador João Manuel ajudar a “[...]
defender toda a Fronteira dos Domínios do Brasil, e em especial destes, de que vos encarrego, do ambiciossissimo,
e vastíssimo projecto, que os Religiosos Jesuítas havião formado [...]”
62
, pois eles visavam ampliar num
tempo de dez anos seus domínios pelo sertão, alcançando toda a América Meridional, tornando-
os inacessíveis e superiores às maiores potências da Europa. A solução para a inviabilidade desse
temido projeto de expansão dos inacianos se faria, segundo as secretas instruções de João Manu-
el, com a união das forças dos governadores do Grão-Pará, de Cuiabá e dele próprio, que não só
deveriam se preocupar com suas respectivas fronteiras como também se auxiliarem mutuamente.
Quando se tratasse dos limites com o território espanhol, ou mais precisamente, das fronteiras do
59
“Regimento composto de 95 parágrafos que especificam a maneira como se deverão ser orientados os índios pelos Diretores, autoridade esta
que possuía função específica nos aldeamentos independentes”. CHAIM, Marivone Matos. Op. Cit., p. 87.
60
AHU. Goiás. Doc. 916, 1758. Instruções dadas a João Manoel de Melo. Goiânia: Projeto Resgate Barão do Rio Branco, IPEHBC.
61
Carta da Rainha para João Manoel de Melo, 1758. In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da província de Goiás. Goiânia: Convênio
Sudeco / Governo de Goiás, 1970, p. 132. [grifos nossos]
62
AHU. Goiás. Doc. 916, 1758. Instrução dada a João Manoel de Melo. Goiânia: Projeto Resgate Barão do Rio Branco, IPEHBC.
190
Mato Grosso, os esforços desses administradores seriam todos canalizados para o resguardo des-
sas divisas, incluindo até mesmo mudanças de populações inteiras, como foi sugerido que se
fizesse com o “[...] Arrayal da Meya Ponte, e outros semelhantes, [...] que lhes sirvão de embaraço”
63
. Que
eles “[...] possão transmigrar para aquella Fronteira, onde se fazem tão indispensavelmente necessários [...]”
64
.
Coordenadas iguais a essas mostram, portanto, como era disciplinar esse novo método que
buscava um total controle sobre as populações dos aldeamentos da colônia, transformando a sua
natureza inicial de cunho religioso em outra “civilizatória”, passando sua administração para um
civil. Afastava-se, assim, radicalmente os irmãos da Companhia, temidos pelos expressivos poderes
que tinham sobre os índios e pelo acúmulo de suas riquezas.
Não obstante essas recomendações, é fato que, tanto na gestão desse governador quanto na
de seus antecessores, a política indigenista na região de Goiás não foi bem sucedida, apresentando
inúmeros conflitos entre os poderes espiritual e temporal, entre índios e colonizadores, além de
levantes iguais àqueles feitos pelos Akroá e Xacriabá. Só a partir de José de Almeida Vasconcelos
de Soveral e Carvalho (1772/1778)
65
, Barão de Mossâmedes, Visconde da Lapa, ex-comendador de
Santa Maria de Alcofra na Ordem de Cristo, donatário dos reguengos de Mossâmedes, de Alegoa, e
de Albergaria de S. Pedro de Crê, senhor da Vila da Lapa e do Couto Vieiro
66
e amigo do Marquês
de Pombal, é que se verifica, na prática, a eficácia de uma política voltada para o desenvolvimento
econômico e comercial, e, particularmente, à urbanização a partir dos naturais que se achavam em
todo o vasto sertão goiano
67
. Eles eram, portanto, os mais adequados para ocupar os lugares, as vilas
e as cidades que se fossem formando. Não sendo assim, diz a carta de instruções de José de Almeida,
não se poderia “[...] esperar utilidade alguma da Capitania de Goiás [...]”
68
.
Foram essas as idéias, sumariadas numa carta de instrução, que nortearam o referido governa-
dor a dar início ao plano de urbanização de Pombal no território mais central do Brasil. A ordem
para a implementação desse plano foi a mesma para os governadores das demais capitanias, mas
para regiões de fronteiras, como a do Amazonas, tal tarefa foi compartilhada, ficando a base ideoló-
gica e econômica do plano, relativa à urbanização, ao encargo dos governadores locais e a cultural e
tecnológica, ao dos componentes técnicos das expedições demarcatórias
69
. Já nos Goyazes, identifi-
ca-se praticamente em quase todas essas dimensões as intervenções diretas de seus gestores, auxili-
ados por reduzido número de engenheiros militares. Coube aos técnicos e governadores exercerem
as múltiplas tarefas existentes na Capitania, desde aquelas relacionadas à administração, à economia
e à organização do território até a formação de excursões que visavam a pacificação indígena. Exem-
plos dessas jornadas são aquelas quatro organizadas por José de Almeida (1772): duas saíram de Vila
63
AHU. Goiás. Doc. 916, 1758. Idem.
64
AHU. Goiás. Doc. 916, 1758. Idem.
65
Esse governador “era fidalgo, mas não pertencia à nobreza, no sentido de titulação. Mais tarde, porém, Pombal o cumulou com os títulos de
Barão de Mossâmedes e Visconde da Lapa”. PINHEIRO, Antônio César Caldas. In: PINHEIRO, Antônio César Caldas; COELHO, Gustavo
Neiva. (org.) Diário de viagem do Barão de Mossâmedes: 1771/1773. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006.
66
Instruções dadas a José de Almeida em 1771. In: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op. Cit., p. 173
67
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op. Cit., p. 182.
68
Carta de Instruções dada a José de Almeida, Nossa Senhora da Ajuda, em 1º de outubro de 1771. In: ALENCASTRE. José Martins Pereira de. Idem, p. 182.
69
MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Malcher. Op. Cit., p. 191.
191
Boa e Meia Ponte em direção à campanha do sul, uma outra partiu da margem ocidental do Tocantins
até alcançar o Pontal e a última se instalou na Ilha do Bananal, embora a sua pretensão fosse encon-
trar as míticas terras dos Martírios.
No sul da Capitania descobriu-se ouro e fundou-se o Arraial de Bonfim, em 1774, mas de
todas as expedições o melhor resultado foi a que chegou à Ilha do Bananal. Com ela, foram
contactados os índios Javaé e Karajá, e levantadas cruz e rancharia como sinal de posse e marca de
um futuro núcleo urbano, que, com outros, movimentaria a navegação do Araguaia. O ânimo com
esse sertão levou José de Almeida a organizar uma segunda viagem, que garantiria a conquista e a
transformação simbólica do local por meio dos batismos e das alterações dos nomes da Ilha do
Bananal para Santana e das aldeias Karajá e Javaé para São Pedro do Sul e Ponte Lima, respectiva-
mente. A consolidação do programa do governador José de Almeida, feita mediante intervenções
que buscavam viabilizar a auto-sustentação do lugar, veio no final de 1775 e início de 1776, com a
construção do aldeamento de Nova Beira, “[...] onde as Naçõez Carajáz, e Javaéz, nos tem aprovado a sua
fedelidade, facelitando-nos a descoberta de novos Aliados, e habitantes do Continente do Araguaya [...]”
70
, com o
presídio de São Pedro do Sul e com a promessa da navegabilidade do Tocantins, para o desenvolvi-
mento do comércio com o Pará e a prosperidade de ambas as capitanias
71
. A possibilidade de nave-
gação por um rio que corta toda a Capitania permitiria a ligação dos diversos arraiais até o novo
presídio que, localizado no extremo-norte de Goiás, visava controlar a circulação de mercadorias e,
provavelmente, impulsionar a urbanização do território segundo os moldes do ideário pombalino,
que previa uma articulação entre os diferentes pontos da colônia
72
.
Entretanto, o sonho de José de Almeida não pôde ser realizado, dadas as fragilidades econô-
micas de Portugal e a não liberação da navegabilidade do Tocantins, postergada para o século se-
guinte. Todavia, isso não desmerece a tentativa do governador de colocar em prática os ambiciosos
objetivos do plano transformador de Pombal para Goiás, que também, segundo Davidson, tinha
sido previsto para o sistema comercial do Rio Madeira, onde se “pretendiam pôr em prática uma espécie de
projeto de desenvolvimento regional à maneira do século XVIII [...] que implicava em graus mais detalhados de
planejamento estatal para uma utilização racional de recursos escassos”
73
.
Mas as grandes ambições empreendedoras não abarcavam apenas essas duas regiões; esten-
diam-se à toda a colônia, como revela a carta encaminhada pelo então Conde de Oeiras, em 26 de
janeiro de 1765, para todas as capitanias, e cujo conteúdo se refere às suas instruções e à finalida-
de da política urbanizadora lusa. “Por ela, a fundação de vilas, a liberdade dos índios e o desenvolvimento
do comércio entre eles, seria o melhor meio de resistir aos jesuítas, cuja maior força e riqueza na América tinha sido
70
AHU. Goiás. Doc. 1838, 1776. Sobre a criação de aldeias indígenas. IPEHBC.
71
Em 28 de março de 1773, o governador do Pará, João Pereira Caldas, escreve ao Marquês de Pombal dizendo da importância da navegação do
Tocantins para aquela Capitania. “A navegação do dito rio Tocantins, pelo que me informam se poderá vencer desta cidade até o arraial de
Pontal (primeiro que se encontra nas minas) em quarenta até cinqüenta dias, em canoas medianas, sem que algumas cachoeiras, que tem o rio
se dificultem na passagem, como para o Mato Grosso se experimenta na navegação do Rio Madeira, etc.”. In: ALENCASTRE, José
Martins Pereira de. Op. Cit., p. 211. [Grifos nossos]
72
Como registra Moreira, a urbanização aqui é “entendida no sentido de criação de uma rede efetiva de pólos da cariz urbano vinculada à estrutura administrativa
colonial. MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Malcher de. A engenharia militar do século XVIII e a ocupação da Amazônia. Op. Cit., p. 190.
73
DAVIDSON, David M; Rivers and Empire. The Madeira route and the Incorporation of the brazilian Far West, 1737/1808. apud: DELSON,
Roberta. Op. Cit., p. 77.
192
o domínio completo da civilização dos mesmos índios”
74
. Flexor
75
acrescenta que em relação às áreas do
Amazonas outrora ocupadas pelos jesuítas, o que realmente a Coroa intencionava era a garantia
da posse de um território que estava ameaçado pelos espanhóis, e, para assegurá-lo, a melhor
providência seria a fixação de povoações.
No panorama goiano, tal intenção metropolitana é revelada particularmente pela construção
de presídios, sobretudo na Ilha do Bananal. Esta, de lugar paradisíaco ambicionado pelos jesuítas
desde o século XVII, transformava-se agora em território com a dupla função de controle e entreposto
comercial, com a possibilidade “[...] da constituição de uma rede urbana viabilizada pela fundação de novas
vilas e cidades, que se multiplicavam exponencialmente no século XVIII”
76
, conforme Moreira aponta igual-
mente para outras regiões.
Não obstante o evidente entusiasmo com a Ilha, as ações do governador não ficaram restritas
à construção de Nova Beira. Na região mais ao sul da Capitania, as mudanças de povoações de uma
aldeia para outra também fizeram parte de seu projeto, que transferiu alguns homens da nação
Xacriabá para a Aldeia de Santa Ana do Rio das Velhas. Acreditava o governador que, aumentando
a população, o novo grupo, chefiado pelo soldado dragão Miguel de Arruda, criaria uma maior
barreira de proteção no lugar, protegendo as tropas de comércio e povoações instaladas ao longo da
Estrada de São Paulo que alcançava as minas. Para completar a missão, a maior façanha do governa-
dor foi a construção do importante Aldeamento de São José de Mossâmedes (1775)
77
– atual cidade
de Mossâmedes –, erguido a oito léguas de Vila Boa
78
, na “roça de José Vaz, aonde tinha determinado e
demarcado a nova aldeia e [...] mandando satisfazer ao sobredito a importância da dita compra pela repartição a
semelhantes despesas aplicadas”
79
.
Afirmava José de Almeida que foram as condições das vastas terras da Capitania, cobertas de
índios, que o levaram a “[...] fazer a primeira nação dos Acoroás, um estabelecimento regular e permanente, que
se fizesse inveja de todos os índios silvestres, que de visita saíssem no povoado, servindo como de universidade aos que
se quisessem aldeiar”
80
. Em relação à política da época, essa seria mais uma possibilidade de transfor-
74
FLEXOR, Maria Helena Ochi. As vilas pombalinas do século XVIII: estratégias de planejamento. Op. Cit., p. 2.
75
FLEXOR, Maria Helena Ochi. As vilas pombalinas do século XVIII: estratégias de planejamento. Idem, p. 2-3.
76
MOREIRA, Rafael; ARAÚJO, Renata Malcher de. A engenharia militar do século XVIII e a ocupação da Amazônia. Op. Cit., p. 182.
77
Sant-Hilaire descreve- a: “Essa povoação, situada no cume de uma colina, e dominada pela Serra Dourada, é rodeada por morros que não são
mais altos do que a própria colina; os edifícios, que a constituem, estão dispostos ao redor de um vasto território de 145 passos de comprimen-
to por 112 de largura e apresentam um conjunto de regularidade perfeita. A igreja, edifício singelo e de bom gosto, ocupa o meio de um dos
pequenos lados desse quadrilátero alongado. Em cada ângulo do polígono está um pavilhão de dois pavimentos: as outras construções cons-
tam apenas do rêz-do chão. Estas últimas servem em parte, de morada aos soldados encarregados da guarda dos Caiapós; o general tem aí um
alojamento muito agradável, e por trás deste há um jardim bastante grande, regado por um córrego que foi desviado para o serviço da aldeia;
outra porção, em fim, é utilizada como seleiro, e nele se deposita a colheitas das plantações comunais. O resto das construções, originariamente
reservado para os índios, está hoje em dia (1819) em parte vago, e em parte ocupado por 50 agregados.” SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem
a Província de Goiás. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975, p. 64.
78
Em seu livro, Monteiro cita a seguinte descrição de Mossâmedes feita por Norberto de Souza: “Elevava-se a aldeia sobre uma colina denomi-
nada Serra Dourada, uma légua ao norte do Ribeirão da Fartura, braço direito do Ribeirão do Claro. Em frente à igreja, de elegante frontispício,
com as torres, ao sul da espaçosa praça, levantava-se a habitação dos governadores, com seu pórtico coroado das armas reais. Quatro torreões
erguiam-se nos cantos da praça e os mais edifícios, que a circundavam em térreos, de construção regular. Por de traz da habitação dos
governadores via-se um jardim de alguma extensão, regado por um ribeiro cujas águas foram em parte desviadas para o serviço do engenho de
fiar.” MONTEIRO, Ofélia Sócrates do Nascimento. História de São José de Mossâmedes. Goiânia: Impresso pelo Estado de Goiás. 1951, p. 6.
79
ALENCASTRE, José Maria Pereira de. Op. Cit., p. 214.
80
ALENCASTRE, José Maria Pereira de. Idem, p. 214.
193
mação dos índios em luso-brasileiros úteis aos interesses econômicos e civilizadores da Coroa por-
tuguesa. Para alcançar os objetivos desse projeto, o governador relata, em uma carta encaminhada
ao Marquês de Pombal, que buscou convencer os “naturais” manifestando suas boas intenções com
um considerável socorro de munições, a doação de uma grande variedade de miçangas e o envio de
alguns casais para mostrar-lhes como eram as suas mulheres.
Apolinário
81
afirma que o discurso de José de Almeida traduzia uma típica preocupação da
metrópole: constituir um lugar de relações interétnicas, próprio para a prática da miscigenação
prevista numa lei que ordenava o casamento de vassalos com as índias. “Para o interior daquele projeto
colonial foram levadas mulheres não indígenas e indígenas de outras etnias. Promover a convivência de casais era uma
forma de buscar o crescimento demográfico do povoamento e, ao mesmo tempo, a sua estabilidade”
82
. Além do
aumento populacional, um local adequado para a civilização dos Akroá permitiria também a sua
utilização contra os bravos Kaiapó, resolvendo um dos grandes fatores impeditivos da conquista do
território goiano.
Com essas medidas, o governador buscou concretizar a política indigenista de Pombal
em Goiás, buscando, sobretudo, a regeneração dessas terras, que já se mostravam economica-
mente frágeis diante do esgotamento aurífero, e a ocupação das extensas áreas ainda incultas.
Seu método se assentava nas experiências colonizadoras dos franceses e ingleses, como se vê
nas instruções:
Estes [franceses e ingleses] senhores são as fontes que despertaram a minha diligência, que me fizeram vir
munido de livros, por onde estudasse na História da América setentrional os meios de que usaram os franceses
e ingleses e que nós devamos ter adotado e corrigido pela prática, inflamados no desejo de aumentar o cristianis-
mo, na religiosa observância das reais ordens e nos estímulos da própria humanidade que tanto nos convence da
justiça dessa causa
83
.
Assim, ele decidiu pela criação de São José de Mossâmedes, onde finalmente se estabeleceri-
am as regras da Lei do Diretório que se deve observar nas povoações dos Indígenas do Pará e Maranhão enquanto
sua Magestade não mandava o contrário”
84
. Implantado numa “[...] paragem agradável de campo, boas águas e
muitos matos, delineei [onde delineou] um edifício regular, cuja planta pretendo [pretendia-se] ter a honra de fazer
presente a S. M. Fidelíssima
85
”, contou com um investimento da Fazenda Real de 1.311 oitavas de
ouro, que, por serem insuficientes, somaram-se ao auxílio das populações dos arraiais de Pilar,
Traíras, Meia Ponte e Vila Boa.
Na Lei do Diretório, além dos artigos relacionados à administração, encontravam-se também as
diretrizes para a construção das casas, que deveriam ser “[...] de boa madeira, falquejadas e arrumadas
81
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Op. Cit., 2006, p.150-151.
82
AHU. Goiás, Doc. 1655, 1776. Ofício do governador e capitão-general da Capitania de Goiás, José de Almeida Vasconcelos de Soveral e
Carvalho, ao marquês de Pombal. IPEHBC.
83
AHU. Goiás. Doc. 1959, 1777. Instruções (anexo) que por ordem de Sua Magestade Fidelíssima dá ao governo e capitão-general, José de
Almeida de Vasconcelos Soveral e Carvalho, ao governo interino. In: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte, Op. Cit, p. 185.
84
CHAIM, Marivone Matos. Op. Cit., p.118-120.
85
AHG. Manuscritos do Livro de Editais e Bandos. Doc. n. 6, 1789. Bando de 6 de abril de 1780.
194
para assim possibilitar o estabelecimento mais tarde de uma agradável povoação”
86
. As habitações próximas aos
alojamentos para os soldados e o governador se concentrariam em torno de uma ampla praça
retangular de 145 passos de comprimento por 112 de largura
87
, com quatro torreões de dois pavi-
mentos em cada um dos cantos e uma igreja em um dos seus lados. Com essa disposição espacial, o
Aldeamento de São José foi concebido de acordo com as instruções relativas à nova ordem de
planos ordenadores para vilas, porque “[...] naquela época, o uso de um traçado urbano regular tinha se
tornado tão comum que um administrador [...] escreveu em 1757 informando que havia utilizado ‘o modelo de
costume’, a fim de que o local que ele estava demarcando tivesse ‘ as características de uma vila bem fundada’”
88
.
Para a mentalidade da época, a regularidade do espaço estava intimamente ligada ao trabalho
de transformação dos índios em seres “europeizados”. Nesse caso, esse aldeamento representaria a
possibilidade de mudanças dos povos indígenas, obviamente atreladas ao seu controle e subjugo.
Seria, segundo o discurso, uma “universidade”
89
para os que quisessem aldeiar, havendo a possibi-
lidade de uma aprendizagem humanística, com mestres e mestras responsáveis por essa formação e
pelo ensino de variados ofícios. A despeito dessas preocupações, o que se observa, na realidade, é a
prevalência da desigualdade e submissão dos índios, evidenciadas na própria organização espacial,
onde se materializa a representação simbólica dos poderes constituídos nas relações socioculturais.
Sobre essa questão, Apolinário acrescenta que “aos não-indígenas foram disponibilizadas as melhores cons-
truções e os maiores espaços, enquanto aos indígenas restavam as moradias em forma de choupanas dispersas, onde
residiam de preferência, os casados. Os solteiros distribuíam-se pelos quartéis, e ou casas dos oficiais”
90
.
Diferentemente do que ocorria na prática, o discurso oficial era carregado de otimismo e de
valorização do local, enfatizando suas potencialidades para a agricultura, já que ali se poderia culti-
var grandes quantidades de diferentes plantas e frutos da roça, produtos que ajudariam a multiplicar
a quantidade de alimentos, suprindo os habitantes e permitindo o desenvolvimento do comércio,
particularmente numa época em que a exploração do ouro estava em decadência. Porém, o objetivo
só seria alcançado plenamente com o trabalho dos superintendentes laicos na administração da
comunidade. Estes eram instruídos rigorosamente para supervisioná-la e, ao mesmo tempo, deveri-
am corresponder às expectativas da metrópole em relação ao plano de colonização e controle do
território colonial, afastando definitivamente a influência dos jesuítas.
A auto-sustentação da aldeia de São José de Mossâmedes ocorreria, portanto, com a produ-
ção pecuária e agrícola, mediante o estabelecimento de “[...] grandes roças, uma boa fazenda de gado
vacum, e as manufaturas que o número dos habitantes podia animar, e que se faziam compatíveis com a abundância
dos gêneros comestíveis”
91
. Por esse motivo, no aldeamento foram estabelecidas extensas áreas para o
86
AHG. Manuscritos do Livro de Editais e Bandos. Doc. n. 6, 1789. Bando de 6 de abril de 1780.
87
Esse dado foi encontrado em uma descrição da aldeia feita por Saint Hilaire. A considerá-lo como o plano de São José de Mossâmedes situa-
se entre aquelas menores medidas de praças estabelecidas no Tratado de Serrão Pimentel (1680). ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da
Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: FAUUP Publicações, 1998, p. 50.
88
DELSON, Roberta. Op. Cit., p. 53
89
ALMEIDA, José. Relatório sobre o estado atual, político, militar e financeiro desta capitania de Goiás. In: ALENCASTRE, José Martins
Pereira de. Op. Cit., p. 222-231.
90
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Op. Cit., p. 152.
91
VASCONCELOS, José de Almeida. Relatório do governo 1773-1778. In: ALENCASTRE, José Martins Pereira. Op. Cit., p. 228.
195
cultivo de grãos, tubérculos, frutas, hortaliças e a criação de gado, com mão-de-obra indígena e
negra. Estes, nos finais de semana, dedicavam-se às roças familiares, aproveitando para caçar e
pescar em rios e córregos adjacentes. Nos demais dias, supervisionados por soldados, cultivavam os
produtos para serem divididos entre a população. Havendo excedentes, estes eram vendidos às
populações vizinhas, e parte do lucro destinava-se à compra de sal, tabaco, ferramentas e tecidos de
algodão, “[...] necessário a cobrir a desnudes dos referidos índios, para que o mandara fazer para os homens,
camisas e bombachas e para as mulheres, camisas e saias, para no dia 20 do corrente,
que determino vinham
todos a minha presença e apareçam com aquela decência e honestidade que devemos prin-
cipiar a inspirar-lhes
92
. Como se depreende dessas palavras de José de Almeida, vestir os índios
representava mais uma das práticas disciplinares e de conversão cristã. A nudez era um pecado que
transgredia os princípios religiosos e civilizatórios.
Simultaneamente à imposição de novos hábitos para se chegar à “civilização” que, grosso
modo, correspondia ao controle dos naturais e às conseqüentes possibilidades de exploração, ocupa-
ção e urbanização do território – muitas barbaridades foram perpetradas. Mas todas eram aceitas,
inclusive, pela mentalidade européia da época, pois, no Setecentos, “[...] a ética da dominação legitimava
os maus tratos àqueles que supostamente viviam uma condição de anima”
93
. Seguindo princípio semelhante,
José de Almeida justificou sua política indigenista: a rebeldia dos índios é que o teria “obrigado” a
usar a força e a punição para controlá-los, para que não explodissem nem se tornassem agressivos,
ainda que essas ações contrariassem os reiterados discursos do Estado sobre a liberdade e o trato
pacífico em relação a eles. Sua gestão se identificou pela coersão e ausência de acordos entre colo-
nos e colonizados. Uma relativa paz nesses aldeamentos só foi possível mais ao final do século, em
decorrência do reduzido número de índios que ali permaneceram. Os que se recusavam a viver
segundo as regras do aldeamento eram forçados a aceitá-las por tropas permanentes organizadas
pelos arraiais, levando-os, por fim, a fugirem para o sul do Piauí
94
.
Com o término do governo de José de Almeida e já no reinado de D. Maria I, o desenvolvi-
mento do plano de ocupação e urbanização de Goiás, a partir das povoações nativas, passou para as
mãos de Luís da Cunha Menezes. Diferentemente do seu antecessor, uma das táticas do seu método
foi o uso da persuasão, embora utilizasse armas e força, “[...] no caso de necessidade [...]”
95
. Mas “bran-
dura” e “humanidade” para com os índios eram, de acordo com ele, as armas mais eficazes para se
convencer as “[...] criaturas naturais e aptas para receberem toda a casta de benefícios”
96
.
Para tanto, necessitava soerguer um novo aldeamento para abrigar os ferozes Kaiapó ou
Bilreiro. Utilizando perspicácia, ordenou que os contactos com os nativos fossem feitos por sertanistas
auxiliados por intérpretes, providência que os convenceu a visitar o governador, que os recebeu
92
AHU. Goiás. Doc. 1795, 1774. Carta em anexo do governador e capitão-general da capitania de Goiás, José de Almeida Vasconcelos Soveral e
Carvalho, ao provedor da Fazenda Real da capitania de Goiás e Diretor-Geral dos índios, José Freire de Andrade. In: APOLINÁRIO, Juciene
Ricarte. Op. Cit. p. 155. [Grifos nossos]
93
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 53.
94
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Op. Cit., p. 158.
95
“[...] o menor número cede ao maior, e que este é das ditas nações silvestres, das quais devia se livrar o mais que é possível estes povos das suas
hostilidades, não só entrei na idéia de formar companhias [ militares], aumentando por este modo as forças destas guarnições, para no caso de
necessidade se lhe poder fazer face”. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Seção de manuscritos, Cód. 13-4-10, n. 75.
96
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Seção de manuscritos, Cód. 13-4-10, n. 75.
196
com festa. Tamanha recepção conquistou os indígenas, de tal forma que decidiram não mais retornar
às matas. Em 1781, novos Kaiapó chegaram a Vila Boa e também foram acolhidos festivamente.
Finalmente, deixaram de ser os perigosos empecilhos dos viajantes que transitavam o Caminho do
Anhangüera e passaram a ser os habitantes da nova aldeia, denominada Maria I, erguida em 1780 e
que prosperou até 1813. Concebida a partir do “[...] Risco de idéia sua [do governador]
97
, localizava-se
às margens do Rio Fartura e a doze léguas ao sudoeste de Vila Boa, próxima a uma rede hidrográfica
que permitia fácil acesso a outros núcleos urbanos. Cabe aqui ressaltar a visão de conjunto de
território que Cunha Menezes possuía e cuja garantia estava nas ligações desses pontos.
Além da escolha do local da Aldeia Maria I estar plenamente justificada pelo futuro estabele-
cimento de uma rede, ele era “[...] o mais alegre que se pode encontrar neste Sertão, [num] um Campo muito
extenso, sem altos nem baixos, enxuto e lavado dos ventos junto ao grande rio da Fartura [...]”
98
. Destacava o
administrador que havia a possibilidade de ocupar a Capitania
[...] mais para aquela parte, em novos e úteis estabelecimentos de lavras, e rossas aproveitandose de húmas
campanhas, por muito abundantes, e fadigas, e que esta nação impossibilitava a sua cultura, de ficar não só
aproveitandose para a sua subsistência da fazenda de gado, que naquellas vizinhanças, se estabeleceu para
a Aldeia de São José de Mossâmedes; mas tãobém em húa distancia proporcionada, para eu com bastante
facelidade; poder hir mais vezes, cuidar no seu adiantamento, o que seria mais dificultozo, ficando em maior
distancia [...]
99
.
Cunha Menezes acreditava ainda que a posição estratégica desse mais novo aldeamento con-
tribuiria também para um melhor controle dos indomáveis índios da América Meridional e para o
estímulo – como resposta ao declínio aurífero – à exploração das salinas da região, à formação de
fazendas de gado e à exportação de carne, couro e toucinho.
A Aldeia Maria I seria, portanto, um desses pólos modernos que submeteriam os índios aos
costumes europeus até então desconhecidos por eles. E essa perspectiva do governador sobre a
concepção dessa aldeia coadunava com a atuação do conhecido soldado Jozé Luís Pereira, que
possuía uma larga experiência em expedições que buscavam a redução indígena e que, em 1780, irá
auxiliá-lo. Para Cunha Menezes, a sua experiência e a desse soldado, somadas às circunstâncias da
época, o ajudariam a planejar uma aldeia modelo de “hum novo padrão; que eternizará transmitindo a
posteridade da época de que é o glorioszo, e filis reinado de Vossa Magestade [...]”
100
.
Nela, os índios viveriam separados e em boas casas, junto aos seus familiares. Todos andariam
vestidos, como andavam os Akroá e Xacriabá que estavam em São José, e reconhecendo-se como
vassalos da Rainha
101
. O sucesso do empreendimento estaria também relacionado à regularidade de
seu plano arquitetônico, não diferindo dos princípios básicos de outras concepções de aldeias e
97
BERTRAN, Paulo (org.). Op. Cit., V. 1, p. 63.
98
AHU. Goiás. Doc. 2079,1783. Carta de Luis da Cunha Menezes à Rainha D. Maria I. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. IPEHBC.
99
AHU. Goiás. Doc. 2079, 1783. Idem.
100
AHU. Goiás. Doc. 2079, 1783. Idem.
101
AHU. Goiás. Doc. 2079, 1783. Idem.
197
povoados que se espalharam pela colônia, como a sua congênere Aldeia Santana (Goiás, 1741) e as
povoações de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Lapa e Nossa Senhora das Necessi-
dades, em Santa Catarina (1751); a Aldeia de São Miguel, no Mato Grosso (1765), ou a povoação de
São José das Marabitenas, no Rio Negro (1767)
102
.
Organizada com edifícios dispostos numa grande praça de 410 palmos
103
, a Aldeia Maria I
caracterizava-se por uma absoluta racionalidade geométrica, definida por três zonas distintas: uma
agrícola, destinada à produção de frutas variadas, como banana e uva; outra para armazenamento de
víveres e sal, e a última para as habitações, com seis edifícios para casais de índios, quartel e duas
casas, respectivamente, para o regente e o vigário. Para marcar o espaço, não faltariam a Igreja
N. Senhora da Glória e o cemitério.
Cunha Menezes considerava essa disposição urbana, ordenada e alinhada, um eficaz instru-
mento de manutenção do controle sobre os seus governados, podendo ainda proteger o Arraial de
Crixás e permitir a expansão e ocupação para aquelas bandas do sertão. Abrigando os Kaiapó em
um espaço regular, acreditava que eles aprenderiam e desenvolveriam atividades manufatureiras e
de subsistência, contribuindo para a debilitada economia de Goiás. Com apenas esse único empre-
endimento, o governador esperava alcançar as principais metas estabelecidas para a plena ocupação
da colônia: civilização, catequização e incentivo à produção e ao comércio. Tudo a ser conquistado
mediante o uso da persuasão, como se nota quando Cunha Menezes escreve ao funcionário de Rei,
Martinho de Melo e Castro:
[...] não são constrangidos a couza alguma, que os escandalize; pelo modo com que os faço tratar; vão trabalhar
na roça se querem, quando querem, e o tempo que lhes parece, e igualmente em ajudarem aos trabalhos, da
construção da sua aldeya, e montariar sempre, que lhes parece o que não deixa de ser um golpe econômico, e que
contribui muito para ajuda da sua sustentação; por serem insignes caçadores, e hum exercício, com que foram
criados, e que lhes he o mais agradável
104
.
A implantação de tamanho aldeamento, entretanto, foi beneficiada pelas experiências ad-
quiridas nas arrojadas intervenções em São José de Mossâmedes. Lá, o governador visava aumen-
tar o “[...] numero de ábitantes, alem de 157. Da Nasção Acroá e de outras mais Nasçoens: mandei buscar a
Ilha de S.
a
Anna denominada Nova beira, 718 Índios”
105
. Para o abrigo de uma população de tal
monta, determinou o aumento do número de alguns equipamentos, como as rodas de fiar, e a
construção de engenhos para a produção de farinha de milho e mandioca, permitindo aos novos
habitantes trabalhar e, consequentemente, melhorar a produção de manufaturados. Para isso,
contou com a participação de
102
ARAÚJO, Renata Malcher. Op. Cit., p. 50.
103
1 palmo = 8 polegadas
104
AHU. Goiás. Ofício de Luís da Cunha Menezes a Martinho de Melo e Castro. In: APARÍCIO, João Paulo da Silva. Governador no Brasil colonial:
a administração de Luis da Cunha Meneses nas capitanias de Goiás (7178-1783) e de Minas Gerais (1783-1788). Dissertação de Mestrado.
Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 1998.
105
AHU. Goiás. Ofício de Luís da Cunha Menezes a Martinho de Melo e Castro. In: APARÍCIO, João Paulo da Silva. Op. Cit., 1998.
198
[...] 86 rapazes de idades competentes para o dito fim, e outro igual numero de raparigas na mestra de ler, e
costura no que já dão a sua utilidade nas suas roupas, que cozem: na roda de fiar algodão 192 mulheres,
numero este igual aos fuzos, que trabalham movidos pela motriz forsa, ou pezo de agoa, que lhe fiz instruir de
um pequeno rio: em todos os demais officios, de que lhe fiz depende aquele estabelecimento, como tecelam para
fazer pano de algodão, carpinteiro, pedreiro, ferreiro [...]
106
.
Além disso, existia ainda um número suficiente de mestres para ensinar-lhes o ofício e de
pessoas de todas as idades destinadas às atividades da agricultura. Mas não foram apenas dos
aldeamentos que Cunha Menezes se ocupou. As reformas urbanas de Vila Boa, a criação de um
código de posturas e a tentativa de reordenar o espaço eclesiástico a partir da criação de mais
paróquias
107
foram alguns dos seus importantes empenhos, que demonstram claramente seu
envolvimento com uma política que pressupunha ser o desenho do espaço um dos elementos do
controle e domínio da Capitania. Esse empenho do governador o coloca como um fiel seguidor de
D. João V, considerado o primeiro monarca a compreender que um programa de fundação de vilas
e organização do território encerrava uma potencialidade de ampliação da autoridade
108
.
O último aldeamento setecentista de Goiás foi o de Carretão, edificado no governo de Tristão
da Cunha, primo de Cunha Menezes, para a pacificação dos Xavante. Assim como os dois governa-
dores que o antecederam, Tristão da Cunha recebeu a importante tarefa de “converter á fé [das] immensas
almas, aumentar o número de habitantes, e consequentemente as forças das Colônias; animar a indústria, promover
os interesses da agricultura, e do commercio, e extender os Domínios, e as possessoens; são todas as vistas que podem
interessar a huma Nação Christan, e Civilizada
109
”. O cumprimento dessas ordens daria ao governador
a segurança de estar trabalhando em um projeto de civilização que se articulava com o do povoa-
mento da colônia, em especial, as novas conquistas desse século.
As experiências do Duro, Formiga, São Pedro da Nova Beira (Santana), São José de Mossâmedes
e Maria I animaram Tristão da Cunha a colocar em prática o seu projeto político, em relação aos
bravos Xavante Quá, que causavam grandes prejuízos à população local. Esses indíos, apesar de
suas características belicosas, eram como outros naturais de Goiás que cobriam o sertão, poderiam
“[...] povoar qualquer parte da América Portugueza, [...]”
110
devendo estabelecer-se em,
[...] Lugares, Villas e Cidades já formadas e que de novo se poderem formar, animando-os, e instruindo-os na
cultura, e no comercio, mas para que isto se consiga hé de toda a necessidade que primeiro se tracte da domesticação,
e civilização dos mesmos Índios, sem as quais circunstanciasnada se pode conseguir. E como esta impreza seja
106
AHU. Goiás. Doc. 2025, 1781. Ofício de Luis da Cunha Menezes, a Martinho de Melo e Castro, sobre as medidas administrativas para animar
a extração de ouro em Goiás e promover a civilização dos índios, impulsionando as obras de São José de Mossâmedes, e acerca do Aldeamento
dos índios Caiapós na aldeia denominada D. Maria I. IPEHBC.
107
AHU, Goiás. 1783. Ofício de Luís da Cunha Menezes a Martinho de Melo e Castro. In: APARÍCIO, João Paulo da Silva. Op. Cit., p. 351-352.
108
DELSON, Roberta. Op. Cit., p. 64
109
AHU. Goiás. Doc. 2291, 1788. Ofício da Contadoria Geral do Território da Relação do Rio de Janeiro, África Oriental e Ásia Português, ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro], sobre os índios Xavantes, Acroás, Xacriabás e suas aldeias; e a
necessidade de se povoar a América Portuguesa com os nativos da terra [...]. IPEHBC.
110
AHU. Goiás. Doc. 2291, 1788. Idem.
199
a da maior deficuldade, nela deve haver todo o esforço para se acertar no methodo de a praticar com suavidade,
e pouca despeza da Fazenda Real
111
.
Para conquistá-los, no entanto, o método indicado pela Coroa não poderia ser o mesmo
utilizado pelos castelhanos na descoberta da América espanhola, pois este contrariava todas as Leys
Divinas da humanidade e todos os princípios da boa política. A ordem era adotar os modelos francês e
inglês, utilizados respectivamente na conquista do Canadá e da América Setentrional, ou seja, os
mesmos escolhidos pelo governador José de Almeida, quando fez ,
[...] várias tentativas tanto da Aldea da Formiga da Nação Acroá, como de Santo Antonio dos Montes
Claros para o Certão do Urucuya, dos Indios Xacriabáz, e outros mais destrictos da mesma Capitania, se
conseguio ainda que com trabalho, e com despezas grandes, a attracção amigável dos Índios Acroás, pela boa
fé com que os Xacriabáz receberão as propostas que se lhe fizerão, vindo aprezentar-se ao dito Governador
no Arrayal da Meya Ponte, em Agosto de 1775, rendendo lhe a seus pés Arcos, Flexas, e Lanças, pedindo
perdão dos seus freqüentes insultos: e a immitação destes, os outros Índios Carajás, Javaiz, e mais alguns do
mesmo Continente, fazendo todos sollemnes juramentos de fidelidade, e renovando as promessas de aliança
que os primeiros tinhão jurado, protestarão a devida sugeição a V. Magestade sendo mais de oito mil
Vassalos os conquistados, que abrindo ao Certão entrada franca, facilitavão a attracção das [sic] innumeraveis
Naçoens que o habitão
112
.
Para Tristão da Cunha, no Canadá e na América Setentrional a eficácia desse procedimento
fora comprovada, apesar de os índios terem sido mais “[...] indômitos e ferozes que os de todo o Brazil
[...]”, onde eram mais respectivos à educação. Na prática, o método se revelava pela persuasão da
confiança, agindo com brandura e docilidade. Além disso, recomendava-se recusar toda e qualquer
influência da “mal entendida, e nunca bem socedida empreza [jesuítica] de quererem instruir nos Mistérios da Fé,
e reduzir ao grêmio da Igreja humens Silvestres, antes de terem adquirido alguma luz da Razam, e de receberem
huma idea dos costumes, e sociedade civil, sendo só então que as Santas Doutrinas do Evangelho podem produzir
copiozos fructos [...]”
113
.
Note-se que, além das questões da conversão indígena, existiam também as dificuldades eco-
nômicas e assistenciais da Capitania, atingindo diretamente a maioria dos aldeamentos goianos no
encerramento do século e demonstrando os insucessos da implantação dessa política em Goiás.
Tentando reverter esse quadro, a partir de 1785, Tristão da Cunha, cheio de entusiasmo, dá conti-
nuidade ao sistema por considerá-lo o mais indicado para os sertões de Goiás, não só no que diz
respeito à civilidade dos índios, mas também para “[...] animar a indústria, promover os interesses da
agricultura, e do commercio, e o extender os Domínios, e as possessoens; são todas as vistas que podem interessar a
huma Nação Christan, e Civilizada [...]”
114
.
111
AHU. Goiás. Doc. 2291, 1788. Idem.
112
AHU. Goiás. Doc. 2291, 1788. Idem.
113
AHU. Goiás. Doc. 2291, 1788. Idem.
114
AHU. Goiás. Doc. 2291, 1788. Idem.
200
Foi com esse entendimento que partiu para a escolha de um local para a fundação de um
novo aldeamento, denominado Pedro III, ou Carretão, para a redução dos Xavante e Javaé. Sua
opção recaiu no sertão de Amaro Leite, às margens do Rio São Patrício, distante vinte léguas de Vila
Boa. Nesse lugar, “[...] construíram uma espaçosa casa com um rico engenho de açúcar, paióis, moinhos, casa para
o diretor e pároco, oficinas, barracas para índios [...] e uma casa de oração”
115
. Depois de pronto, no dia 13 de
janeiro de 1788, chegaram lá mais de três mil índios que ajudariam a sustentar a monarquia portu-
guesa. No entanto, o espaço parece ter sido insuficiente para acolher tamanha população, o que
levou, nesse mesmo ano, o governador a fundar uma outra aldeia que recebeu o nome de Salinas,
pela abundância de sal da região, e que contava com engenho de açúcar, uma fazenda para gado,
quartel para tropa de linha e uma igreja
116
.
Para o crescimento e desenvolvimento comercial, o plano de Tristão da Cunha, à maneira de
Cunha Menezes, também contava com a navegação de importantes rios da Capitania. Interessava-
se, sobretudo, pelo Tocantins, por reconhecer que todo o trajeto estaria em território goiano e
próximo aos seus arraiais, podendo-se, dessa forma, conectá-lo mais facilmente à sua rede urbana.
Saindo do Rio Uruhú, pensava-se alcançar o norte de Goiás e, conseqüentemente, o Pará. A expe-
riência de uma expedição organizada para socorrer essa Capitania vizinha veio provar que esse
trajeto, próximo à Água Quente, era rico em cachoeiras e, portanto, de difícil travessia, levando os
homens a percorrer boa parte da viagem por terra. As expectativas de Tristão da Cunha logo se
esvaneceram.
Malgrado esses impedimentos, seria imprescindível a ajuda de D. Francisco de Souza Coutinho,
governador do Pará, que não se interessava pela navegação do Tocantins, e sim pela do Araguaia,
como se observa em uma de suas cartas dirigidas ao secretário de Estado Martinho de Melo e
Castro. Dizia ele ser esse percurso “[...] de grande interesse pelo notável acréscimo que deve produzir na cultura
e no comércio de uma e outra capitania [...]
” 117
. Numa outra correspondência ao administrador goiano, de
1º de setembro de 1797, D. Francisco preconizava ser essa a melhor solução para ambos, pois, de
acordo com ele, apenas com a participação de Goiás seria possível viabilizar o empreendimento.
Caso contrário, duvidava-se que se pudesse “[...] leve [levar] ao ponto de freqüência e de facilidade que a
conveniência de ambos exige [...]”
118
. Reforçava sua idéia exaltando as vantagens que a empresa lhes
traria, uma vez que “[...] além do açúcar e de outros gêneros da cultura e produção dessa capitania, o artigo das
carnes só por si pode ser muito importante [...]”
119
.
Fica claro que o interesse de D. Francisco pela navegação do Araguaia e, especialmente, pela
Ilha do Bananal, fazia parte de um plano maior e mais ambicioso, que o ajudaria a solucionar os
problemas do Pará relacionados à comercialização bovina. De certa forma, seu programa era similar
ao que José de Almeida iniciara anteriormente. Contar com animais da região goiana seria dar como
certo o desenvolvimento comercial, pois o gado proveniente da Bahia tinha de atravessar os vastos
115
MATTOS, Raymundo José da Cunha. Chorografhia histórica da província de Goyaz. Goiânia: Editora Líder, s/d, p. 43.
116
Dados obtidos a partir de MATTOS, Raymundo José da Cunha. Chorografhia histórica da província de Goyaz. Goiânia: Editora Líder, s/d, p. 43.
117
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op. Cit., p. 254/255
118
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Idem, Ibidem.
119
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Idem, Ibidem.
201
Fig. 60 – Mapa da Capitania de Goiás
com a localização dos Aldeamentos.
Fonte: ROCHA, Leandro Mendes
(org). Atlas Histórico de Goiás Pré-colonial
e Colonial. Goiânia. CECAB editora,
2001. p. 33.
sertões do Piauí para chegar ao seu destino, enquanto aqueles vindos
de Cuiabá caminhavam cem ou mais léguas de estrada para alcançar
o Mato Grosso. O trajeto por Goiás seria a grande solução, pois “[...]
não é provaval que se precise de tanto incômodo e despesa [...]”
120
, particular-
mente depois da instalação do registro em Nova Beira e do
soerguimento de povoações que serviriam como “[...] escalas, tanto ou
mais imediatas, como as que temos no Amazonas, no Solimões e Rio Negro, que
facilitam o sistema de navegação interior [...]”
121
.
No entanto, a navegação do Araguaia não se concretizou, im-
pedindo, de certa forma, o desenvolvimento populacional e econô-
mico, em especial da região norte da Capitania. Seja por questões de
120
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Idem, Ibidem.
121
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Idem, Ibidem.
202
segurança das extensas terras do interior do continente ou ainda pelo declínio do ouro, tal plano
ficou postergado para o século seguinte, fato que não obscurece os esforços dos governadores.
Todos eles estavam convencidos da necessidade e importância de formar o território goiano, bus-
cando articulá-lo internamente às demais regiões da colônia. Trabalhando em uma zona geografica-
mente distante do litoral, tentaram estimular o comércio com a modernização de sua rede urbana e
a criação de aldeamentos, inserindo Goiás no cenário da política de ocupação portuguesa. Tal polí-
tica tinha como um dos seus principais objetivos a “civilização dos índios” e a formação de comu-
nidades “urbanas ordenadas e regulares”, capazes de assegurar o controle absoluto da Coroa.
CAPÍTULO VI
OS MODELOS DE CIDADES PORTUGUESAS
E A URBANIZAÇÃO DA CAPITANIA DE GOIÁS
205
o conjunto dos arraiais setecentistas de Goiás, alguns deles organizaram-se espacialmente a
partir de sínteses urbanas extremamente complexas, resultantes de inúmeras experiências
N
portuguesas de fazer e entender cidades, ao longo de cinco séculos, em lugares e latitudes tão
diversas como Ásia, Japão e África, mostrando, segundo Moreira, “[...] a modernidade do processo
expansionista lusitano como uma dinâmica de experiências em continuidade do séc. XV ao iluminismo pombalino,
pelo menos”
1
.
Para o entendimento dessas complexas e variadas criações urbanas, esse autor, no texto A arte
da ruação e a cidade luso-brasileira, destaca importantes fases da história do urbanismo português, pro-
curando remontar à gênese desses modos de fazer cidades. Um deles tem sua origem na Baixa Idade
Média, compreende o momento da colonização das Ilhas Atlânticas e do Norte da África e, cujo
princípio foi, posteriormete adotado em algumas regiões do Brasil, como Goiás. Sem grandes ino-
vações, essa fase representou apenas a transferência da organização espacial utilizada em certas vilas
medievais portuguesas, com estruturas básicas que se formavam a partir de um sistema bipolar, com
dois rossios ou terreiros unidos por um eixo, cortado por transversais. Por adquirir semelhança
de uma cruz, esse modo de fazer cidades foi simbolicamente denominado urbanismo da Ordem de
Cristo. Mas, além dessa forte marca bipolar uma outra característica dessa prática foi a adaptabilida-
de das ruas à topografia dos diferentes locais, buscando, sempre que possível, mantê-las paralelas e
perpendiculares entre si, mostrando suas linearidades e uma tendência à regularidade. Suas sistemá-
ticas repetições deram origem a quarteirões e lotes que se desenvolveram adjacentes a portos marí-
timos e fluviais, e, ainda, aos principais caminhos. Foi, portanto, esse tipo de configuração que
permitiu uma certa propensão à formação de malhas mais bem definidas, mas que só foram surgir
efetivamente em momentos posteriores.
1
MOREIRA, Rafael. A arte da ruação e a cidade luso-brasileira (sécs. XVI-XVIII). São Paulo: Revista de Estudos sobre o urbanismo, arquitetura e
preservação da USP. Jan-Jun 03, p.10.
206
Os traçados dos pequenos núcleos urbanos que surgiram segundo essa concepção eram fei-
tos por mestres-pedreiros, por meio da cordeação, sistema caracterizado por uma clara praticidade
e do resultado das ações diretas de profissionais sobre o terreno, onde adotavam recursos básicos,
como postes ou marcos, como elementos referenciais das medições ou dos alinhamentos.
Sobre essa lógica de estruturação física das cidades, que se baseava na linearidade, Bittencourt
comenta:
Deve-se pensar, também, na rua ou no arruamento, onde o encadeamento lógico da organização espacial nasce
do particular, não sendo a mesma visão da cidade completa, encontrada nos tratados da chamada cidade ideal
do Renascimento, onde até os limites estão definidos geometricamente pelo traçado de muralhas, mas também
não é igual às soluções medievais, onde a rua surge como resultado da agregação entre edifícios sobrepostos lado
a lado. Quando se tem um desenho preliminar (projeto) da cidade como um todo, a forma das quadras é o
princípio espacial basilar na estruturação dos espaços. Assim, as ruas aparecem com claro vínculo formal,
derivado do formato de quadras. A cidade portuguesa do século XVII tem tradicionalmente a rua como
elemento estrutural de sua ordenação, ficando impossível sua compreensão, tomando-se como referência modelos
originados de uma concepção espacial que se encaminha do geral para o específico
2
.
Considerando tais aspectos é que se pode aproximar essa lógica de organização às de algumas
cidades coloniais brasileiras, particularmente daquelas regiões onde o ouro foi uma das grandes
motivações para a sua ocupação. Tal concepção pragmática, ligada às soluções locais, diferentemen-
te das que adotavam esquemas ou desenhos pré-concebidos, norteou a configuração física adotada
em vários arraiais goianos, que se identificavam também por apresentarem paisagens urbanas marcadas
por edifícios religiosos, nas suas diferentes categorias, como ermidas, capelas e matrizes. Assenta-
dos nas extremidades desse sistema bipolar, esses edifícios foram os elementos de fundação e orde-
nação dessas aglomerações populacionais de Goiás.
Duas importantes referências desse tipo de formação urbana bipolar são os arraiais de Santana
e Meia Ponte, ambos claros exemplos de ocupação territorial feita por colonos em decorrência da
exploração do ouro. O primeiro foi fundado pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, às mar-
gens do Rio Vermelho, no ano de 1726. Sua concepção privilegiou aspectos topográficos da região,
desenvolvimento linear às margens da estrada que vinha de São Paulo
3
e a construção de uma
primitiva capela em um lugar distante do rio, marco de fixação e primeiro espaço fundacional
da cidade, logo ligado ao segundo largo, o do Rosário, e que, juntos, desenhavam o tradicional
sistema descrito por Moreira.
Do ponto de vista espacial, sua lógica ou sistema de ruação foi ainda associado à forma de
implantação de edifícios religiosos, permitindo uma configuração na qual a Matriz de Santana e a
Igreja Nossa Senhora do Rosário, Igreja dos Pretos, apareciam sempre soltas, separadas do casario
e com relativa independência da estrita funcionalidade do traçado das ruas, auxiliando ainda a de-
marcação da extremidade ou limite do arraial. Esses dois edifícios, ao complementarem o sistema
axial, funcionavam como importantes elementos de orientação para o crescimento do núcleo
2
BITTENCOURT, Luiz Cláudio. Regularidades do visível. Tese de doutoramento. São Paulo: FAU-USP, 1999. p, 106.
3
Em momento posterior, esse trecho se ligou à estrada que alcançaria Cuiabá.
207
populacional (Fig. 61). Coube a eles, assim, dar origem aos dois
principais largos, tidos como pólos de atração e densificação do
tecido urbano. Reforçando essa importância, destacavam-se tam-
bém pelo significativo contraste volumétrico que assumiam em re-
lação à reduzida escala do casario, identificado por uma unidade
compacta e predominantemente horizontal. Dessa forma, o arraial
se apresentava com uma paisagem marcada por suas expressivas
monumentalidades arquitetônicas e claras distinções entre os edifí-
cios profanos e religiosos, confirmando seus papéis simbólicos na
estrutura geral do povoado.
Fig. 61 – Esquema do traçado urbano
inicial do Arraial de Santana.
Desenho: Gustavo Amaral
De forma bastante semelhante ao tradicional método da ruação, tam-
bém se organizou Meia Ponte (1727/1731). Segundo consta da
historiografia local, esse arraial teve seu início logo após a descoberta de
ouro na região, às margens do Rio das Almas, e a distribuição das primeiras
datas minerais, que, dispostas linearmente a oeste, dariam origem à Rua
das Bestas, posteriormente denominada Rua Direita, cujo prolongamento
alcançava a estrada que daria acesso aos demais arraiais e, particularmente,
à futura capital Vila Boa de Goiás, implantada ao lado do Arraial de Santana.
Paralelamente à Rua das Bestas, segundo Oliveira
4
, em 1732 surgiu a Rua
Nova, a partir de uma repetição de quarteirões que a desenharam. Com ela
foram se formando becos que a uniam transversalmente à primeira, con-
forme também esse antigo modo de fazer cidades. Dando continuidade à
expansão do arraial, no sentido leste, a Rua das Bestas unia-se ao local
Arraial de Santána (Vila Boa)
208
fundacional de Meia Ponte, ou seja, à grande área retangular denominada
Largo da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário (Fig. 62).
Fig. 62 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Meia Ponte.
Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 63 – Mapa da cidade de Pirenópolis,
antigo Arraial de Meia Ponte.
Fonte: JAIME, Jarbas ; JAYME, José
Sisenando. Pirenópolis: Casas de Deus,
Casas de Mortos. Goiânia: IPEHBC/
UCG, 2001.
Arraial de Meia Ponte
209
Fig.64 – Vista aérea da atual cidade de
Pirenópolis, antigo Arraial de Meia
Ponte, mostrando a Matriz Nossa
Senhora do Rosário e o eixo que a liga
à Igreja dos Pretos.
Fonte: Google Earth
Esse foi o importante espaço dinamizador das atividades soci-
ais, local que permitiria, pela suas grandes dimensões e regularidade,
a instalação de edifícios civis como a cadeia
5
, construída em 1733,
conformando uma ordem espacial muito próxima à de uma vila, onde
os poderes eclesiásticos e estatais se contrapunham um ao outro,
apesar de os edifícios religiosos já não mais se erguerem solitaria-
mente. Com relação ao processo da cordeação, em Meia Ponte, dife-
rentemente do ocorrido no Arraial de Santana, não foi a Rua Direita
o eixo de união dos principais largos, mas sim a Rua do Rosário, que,
ao margear o Rio das Almas, atravessou o Córrego da Prata e só
depois ligou o terreiro da Matriz à Igreja do Rosário, local onde se
instalaram os pretos. Assim, o sistema bipolar foi se formando a par-
tir do respeito às características topográficas, como a sua privilegiada
localização, que lhe garantia uma significativa confluência de cami-
nhos, importantes não só para Meia Ponte como também para as
4
OLIVEIRA, Adriana Mara Vaz. Uma ponte para o mundo goiano no século XIX: um estudo da casa
meia-pontense. Goiânia: Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, 2001, p. 139.
5
No livro Um estudo da casa meia-pontense, Oliveira, orientando-se provavelmente pelas publicações do
SPHAN/ Pró-Memória, afirma a existência de uma Casa de Câmara e Cadeia nesse arraial, mesmo
antes de sua elevação à vila, que somente se efetivou no século XIX. Entretanto, não encontramos
nenhuma documentação setecentista que corroborasse tal afirmação. Diante da construção de um
edifício civil nessa época, o que nos parece mais lógico é essa construção ser uma cadeia de propor-
ções similares às de uma Casa de Câmara, para que pudesse abrigar, futuramente, tal função admi-
nistrativa destinada apenas às vilas, pois é fato concreto que no início da colonização de Goiás a
população de Meia Ponte acreditava ser este o melhor arraial para se erguer a capital. Mas, contrari-
amente a esse desejo, a escolha recaiu sobre Santana. OLIVEIRA, Adriana Mara Vaz. Op. Cit. p. 138.
Nossa proposição pode ser atestada a partir de um documento publicado por Jarbas Jayme, onde se
lê: “Pello que toca a obra da cadeia que Vmece. [conde de Sarzedas] poz em praça para se arrematar,
me parece acertado, como também a aplicação que lhe fez para seu pagamento”. In: JAYME, Jarbas.
Esboço Histórico de Pirenópolis. Pirenópolis, V. 1, 1971, p. 131. [Grifos nossos]
210
grandes conexões do litoral do território brasileiro com as regiões do
Mato Grosso e Pará.
Bem próximo a Meia Ponte, temos um outro exemplo dessa antiga
forma de organização de espaços urbanos: o Arraial do Córrego de Jaraguá,
fundado em 1737, na base de uma serra de mesmo nome e em terreno
relativamente desigual. De acordo com Cunha Mattos
6
, nele se encontra-
vam 200 casas dispostas em largas, retas e formosas ruas, porém, não
calçadas. No centro do local, abria-se um largo onde ficava a Igreja Nossa
Senhora da Penha e caminhando para o oeste, no extremo oposto, soerguia-
se a Igreja Nossa Senhora do Rosário. Por conta da grande descaracterização
do atual traçado e com base apenas nessa descrição, não se pode presumir
a existência de um certo paralelismo entre as ruas, mas o sistema bipolar
fica claramente implícito nas palavras dos viajantes.
6
CUNHA MATTOS, Raymundo José da. Chorographia histórica da Província de Goyaz. Goiânia: Edito-
ra Líder, 1979, p. 34.
Fig. 65 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Jaraguá.
Desenho: Gustavo Amaral.
Um outro arraial que também apresenta a tendência à
linearidade como forma de organização espacial é o de Santa Cruz.
Fundado próximo à estrada que ligava Goiás a São Paulo, é um dos
mais antigos povoados da Capitania e, por muito tempo, foi passa-
gem de tropeiros que por ali deixavam dinheiro, vitalizando e movi-
mentando a vida do lugar. Mas essa freqüente circulação de viajantes
foi logo reduzida com a criação do Arraial de Bonfim, por onde o
caminho até Vila Boa ficava menor. O desvio da estrada passando
pelo novo arraial e o declínio da mineração contribuíram para a es-
tagnação local e, particularmente, limitou sua expansão urbana, até
o século XIX, basicamente a três ruas, implantadas sob uma plata-
Arraial de Jaraguá
1
211
forma alongada e de cotas mais altas que as do Córrego Vermelho.
Dispostas transversalmente a esse curso d’água e, conseqüentemen-
te, paralelas ao caminho de Vila Boa, essas ruas foram ladeadas por
quarteirões que definiam becos perpendiculares entre si, apresentan-
do uma malha bastante regular, se comparadas aos demais arraiais
goianos. Na rua central, encontravam-se dois largos, onde se situa-
vam a Matriz de Nossa Senhora da Conceição e a Capela Nossa Se-
nhora do Rosário, conformando uma estrutura similar à do sistema
bipolar que também se verifica no Arraial de Santa Luzia, descober-
to em 1746 pelo bandeirante Antônio Bueno de Azevedo, paulistano
de Atibaia
7
. Com topografia praticamente plana, à exceção de alguns
pontos mais elevados, “[...] estende-se paralelamente à margem direita do Córrego
Santa Luzia, sendo ainda recortado em duas partes desiguais, no sentido de sua
largura, por um outro córrego menos volumoso que vai desaguar no primeiro”
8
.
Fig. 62 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Santa Cruz.
Desenho: Gustavo Amaral
Mediante observações locais e de mapas digitais da parte
fundacional desse antigo povoado, pode-se inferir que sua formação
inicial desenvolveu-se a partir de um longo eixo, paralelo ao Rio Ver-
melho, hoje denominado de Canal, que conectava a antiga Matriz de
Santa Luzia à Capela Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, implan-
tada numa cota superior à da primeira. Também paralelamente a esse
eixo, a Rua São Benedito se desenharia possibilitando a formação de
quadras e becos que os ligariam, demonstrando, assim, a recorrência
do tradicional método de formação urbana bipolar.
7
ALVARES, Joseph de Melo. História de Santa Luzia. Luziânia: Gráfica e Editora Independência,
1997, p. 75.
8
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Província de Goiás. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EDUSP, 1975, p. 25.
Arraial de Santa Cruz
212
Seu aspecto linear pode ser constatado também nas palavras de
Saint-Hilaire:
Embora extremamente estreito, o arraial alarga-se um pouco no meio, e é nesse
ponto que está localizada uma praça quase quadrangular, onde se ergue a igreja
paroquial, que é bastante grande e isolada, como são geralmente as igrejas dessa
região e de Minas. Além da igreja paroquial, existem outras duas, uma em cada
extremidade do arraial. Uma delas é Nossa Senhora do Rosário [...]
9
.
O naturalista francês completa sua descrição ressaltando quão
aprazível era o lugar, que se destacava por suas ruas largas e retas.
No conjunto desses núcleos urbanos da região sul da Capitania
encontra-se também o Arraial de Pilar (1741), antigo Papuã, iniciado por
João de Godoy Ponte da Silveira. Situado a 33 léguas de Vila Boa, segundo
Cunha Mattos o arraial “[...] possuía 246 casas, três ruas muito bem calçadas com
quatro travessas e um abundante chafariz de excelente água que nasce mui perto da
igreja principal”
10
. Duas dessas ruas podem ser notadas a partir de levanta-
mentos do IPHAN, que, ao tombar o núcleo de formação inicial, permi-
tiu a identificação da Rua Direita, principal elemento de ligação entre o
largo da Matriz do Pilar e a Capela Nossa Senhora do Rosário. Ao lado
desse eixo, se desenvolveria a Rua dos Paulistas e, transversalmente a ele, as
quatro travessas ou becos citados por Cunha Mattos
11
.
Fig. 67 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Pilar.
Desenho: Gustavo Amaral.
Arraial de Pilar de Goiás
213
Ao norte da Capitania goiana, a tendência a uma certa regularidade
em traçados urbanos pode ser encontrada nos arraiais de Conceição e
Cavalcante. No primeiro caso, essa informação é oferecida pela descrição
do naturalista George Gardner
12
, que esteve de passagem pela região no
século XIX. Dizia estar esse povoado assentado em uma baixada entre
duas colinas, numa região plana, onde as casas erguiam-se, principalmente,
em duas ruas compridas. Nelas se encontravam as igrejas Nossa Senhora
da Abadia e Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Já em Cavalcante, essa condição é bastante nítida ao se fazer a leitu-
ra de um levantamento cadastral de um mapa do SPHAN. Segundo esse
documento, o arraial, fundado em 1740, localiza-se no sopé da alta Serra
de Santana, em um terreno plano banhado pelo Córrego Lava-pés. A oes-
te da região, existe um grande largo ou praça, de onde partem em direção
leste três ruas paralelas entre si, sendo uma delas a da Direita. Becos orga-
nizados transversalmente as unem, formando grandes quarteirões que são
divididos em lotes compridos e retangulares.
Fig. 68 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Conceição.
Desenho: Gustavo Amaral.
Arraial de Conceição
214
Fig. 69 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Santa Luzia.
Desenho: Gustavo Amaral.
Fig. 70 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Bonfim.
Desenho: Gustavo Amaral
Arraial de Santa Luzia
Arraial de Bonfim
215
Fig. 72 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de Cavalcante.
Desenho: Gustavo Amaral
Fig. 71 – Esquema bipolar do traçado
urbano inicial do Arraial de São José do
Tocantins (atual Niquelândia).
Desenho: Gustavo Amaral
Arraial de São José de Tocantins
Arraial de Cavalcante
216
Mas não só os mapas e relatos permitem constatar que a preocupação com a arruação esteve
presente no Goiás setecentista. Documentos manuscritos revelam tal cuidado ao longo de todo o
século XVIII, a iniciar pela década de trinta, com a criação da capital e do pequeno povoado de
Arraias, arruado pelo próprio governador Luiz de Mascarenhas, que o organizou segundo sua pró-
pria idéia
13
. Certamente essa foi a razão de Gardner afirmar que nesse lugar “[...] todas as casas eram
alinhadas em frente de larga praça na face leste da qual se acha a única igreja”
14
.
O antigo método português não se prestava apenas à fundação de cidades. Em Goiás, ele
resistiu até o final da centúria como uma prática possível de organização do crescimento de seus
arraiais. É o que atesta o seguinte documento de 18 de março de 1795:
[...] o Juiz ordinário actual e Prezidente da mesma [câmara de Vila Boa] o Alferes Francisco Antonio da
Fonseca; os vereadores o Tenente Luiz de Souza Pereira, e Agostinho Luís Pereira, e o Procurador actual o
Cirurgião mor Joaquim da Sylva Freitas commigo Escrivão ao diante nomeado para effeito de se proceder a
vereação [...]; mandam passar
e assignar hua provizão de Arruador para o Arraial do Bonfim,
que se está mudando, ou pretende mudar para outra parte, de onde esteve situado por tempo de hum anno a Bento
Pereira Machado, Mestre Pedreiro , o qual pediu a serventia do dito emprego por tempo de um anno; e se deleberou
outro Provimento
para a boa regularidade do referido Arraial,
em termos hábeis com Licença dos
donos das terras e ordens do Juiz Ordinário
para o dito Arruador fazer arruamento das proprieda-
des que se construírem
[...]
15
Conforme essa provisão, o alinhamento de ruas e casas visava a regularidade conveniente aos
arraiais de um extenso território onde havia apenas uma única vila, responsável, dentre inúmeras
outras, por tais atribuições de arruação, e que contava, provavelmente, com pouquíssimos profissi-
onais para o exercício dessa tarefa em toda a Capitania. Isso pode explicar por que muitas confor-
mações urbanas de Goiás, depois de implantados seus sistemas bipolares, cresceram mais
organicamente. Mas tal fato não permite assegurar que muitas delas nasceram espontaneamente,
como faz crer a tradicional historiografia regional. Deve-se também considerar o conhecimento de
uma prática exercida no local, sem desenhos pré-elaborados e que fez parte de um conjunto de
sínteses de experiências urbanas que se encontrava no bojo da Expansão Ultramarina.
9
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit., p. 25.
10
MATTOS, José da Cunha. Op. Cit., p. 39.
11
MATTOS, José da Cunha. Op. Cit., p. 39.
12
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975, p. 162.
13
“Descrição da Capitania de Goiás e tudo que nela é notável ao ano de 1783”. In: BERTRAN, Paulo (org.). Notícia Geral da capitania de Goiás.
V. 1. Goiânia: UCG/ UFG, Brasília: Solo Editores: 1997, p. 79.
14
GARDNER, George. Op. Cit., p. 168.
15
IPEHBC. 1795. Cópia da Ata da Câmara de Vila Boa.
217
6.1 Uma vila no interior do sertão
A aspiração de racionalidade, expressa nos valores da regularidade, foi uma forte marca do
espírito moderno, notadamente nos diferentes modos de fazer cidades que se desenvolveram a
partir do avanço de diversas experiências realizadas nos territórios do império ultramarino. À essa
aspiração somaram-se as crescentes necessidades do comércio, que levaram os colonizadores a criar
espaços urbanos mais adequados ao desenvolvimento do setor. Como resultado final dessa deman-
da, impôs-se um modelo urbano simplificado, cujo princípio básico era a implantação de cidades
em regiões próximas às orlas marítimas – em estuários estratégicos e defendidos por fortificações,
com a praticidade das construções e, sobretudo, a sua fácil capacidade reprodutível. Essas são as
características básicas do que se conhece por “urbanismo manuelino” que, para além dessas breves
considerações, buscou a padronização regular dos seus tipos, a partir de legislações e posturas mu-
nicipais, normas de higiene pública, limpeza de ruas, retificação de ruas e praças irregulares, alinha-
mento e uniformização de novas edificações, considerados, à época, os principais critérios estéticos.
Alguns exemplos em Lisboa ilustram essa nova atitude moderna, quando foram providenciados os
arruamentos e calçamentos de ruas, a construção de bairros com desenhos de suas malhas em
tabuleiro de xadrez, a regularização de praças etc.
Mas na colônia, não se trata ainda do estabelecimento de um urbanismo à maneira italiana,
embora o próprio modelo manuelino tivesse sido aquele a abrir espaço às posteriores e gradativas
assimilações das inovações do Renascimento, como as praças retificadas, arcarias, loggias e até campanile
(torre de relógio), alcançando sínteses criativas de cidades fortificadas que podem ser vistas no
Brasil, na Índia e no Japão. O que nos interessa reter neste momento são as qualidades da regulari-
dade, do exercício da Ruação que começou a se firmar a partir de 1480 e 1530, permitindo a abertura
de “vias diretas e planas e construções bem proporcionadas à maneira das do Reino”, o que corresponde dizer,
como alerta Moreira, que essa prática só significava“alinhar, traçar a direito”, não implicando em
ortogonalidade do traçado, mas numa tendência cada vez mais acentuada do regular, sem chegar à
esquadria perfeita. Nesse sistema, o que de fato importava era a topografia, fator influente na deter-
minação das ruas, particularmente da Rua Direita, com suas travessas ou becos, da importância da
igreja, dos adros, largos e praças, da instalação das casas de Câmara e Cadeia, dos palácios e
pelourinhos. É quando,
[...] procura-se um alinhamento retilíneo com quadras proporcionadas, o que nem sempre é possível pela natureza
do terreno ou edifícios pré-existentes; mas a intenção de regularidade é tão indiscutível quanto o recurso a desenhos
prévios no papel, uma atitude de projeto e medida obedecendo a princípios e a hábitos ou normas mais do que a
modelos fixos e a regras legais, concretizadas com grande estilo de pragmatismo pelos velhos métodos de cordeação
pelo uso da bússola, compasso, marcos e cordas enceradas em vez da régua e do esquadro
16
.
Concomitantemente a essa supremacia da cordeação, as contínuas experiências de fazer cidades,
associadas aos novos avanços científicos, levaram Portugal à formação de uma progressista escola,
organizada de maneira mais eficiente e programada. Nela se formaram importantes engenheiros mili-
16
MOREIRA, Rafael. Op. Cit., p. 14-22.
218
tares, altamente capacitados para o soerguimento de cidades regulares e fortificadas, e onde se encon-
tram as raízes do modelo de planificação do século XVIII, quando a idéia de cidade foi claramente
posta a partir de apurados tratamentos formais, de rigorosas proporções e com a presença, no ato das
construções, de profissionais gabaritados, se não o engenheiro, pelo menos o arruador.
Esse foi o modelo inovador adotado para a reorganização de antigos núcleos urbanos coloni-
ais e para a criação de outros novos, configurando uma evidente coincidência com a concentração
de interesses da metrópole no território brasileiro, e a conseqüente diminuição da importância antes
dada ao oriente. Foi, portanto, o momento em que se desenvolveu a intensa e ampla política
urbanizadora
17
do Brasil Colônia, com objetivos que iam desde a definitiva ocupação de terras
conquistadas a oeste de Tordesilhas até a busca das delimitações de fronteiras luso-brasileiras com a
sua oponente espanhola.
Por volta da segunda metade do século XVIII, um frenético panorama permitiu a transfor-
mação de núcleos urbanos pré-estabelecidos em unidades administrativas, com mudanças de no-
mes, reordenamento de traçados e construção de edifícios institucionais de caráter civil e religioso.
Para a fundação de novos espaços, preceitos da velha escola portuguesa foram incorporados às
Cartas Régias, apontando como deveriam ser a fundação de vilas e arraiais. Determinavam uma
lógica de organização que buscava a regularidade a partir da marcação de uma praça, considerada o
elemento central da malha urbana, a abertura de ruas em linha reta e a uniformização das fachadas,
as quais deveriam obedecer às construções de uma rua, de uma praça ou mesmo de uma cidade. Em
síntese, essas foram as observações normativas do modelo. Uma metodologia flexível, na verdade.
Bastante simplificada, espelhava o seu pragmatismo, visando alcançar a execução de espaços urba-
nos em diferentes topografias a partir de princípios elementares, porém, fundamentais.
Seguindo essa fórmula, a concretização formal das cidades coloniais brasileiras conheceram
uma variedade de disposições que, sem se desvincularem do método têm aparências bastante diversas. Encon-
traremos vilas com planos ortogonais, algumas com uma praça central, outras com mais de uma. Os quarteirões via de
regra mais alongados e retangulares que quadrados [...]”
18
. Dentre essas e outras disposições, inclusive a de
um largo triangular assentado em pleno sertão da colônia, em região ligeiramente a oeste do meridiano
de Tordesilhas: Vila Boa de Goiás, em cuja carta de fundação lê-se o seguinte texto:
Dom João por graça de Deos Rey de Portugal e dos Algarves da quem e da lem mar em Africa Senhor
de Guiné [...]. Faço saber a vos Conde de Sarzedas governador e Cappitão general da Cappitania de
São Paulo que Eu sou servido por resolução de 7 deste presente mês e anno em consulta do meu Conselho
Ultramarino passeis às minas dos Goyazes e nellas
determinei citio mais a proposito para
huma Villa e procureis que seja o que parecer mais saudavel e com provimento de
boa agoa e lenha
perto de algum Arrayal que se ache já estabelecida para que os moradores delle
17
“Este projeto urbanizador era um componente fundamental da estratégia de efectiva ocupação do território. Por um lado, através da constru-
ção de fortificações em pontos estratégicos procurava-se controlar os principais pontos de acesso à região. Por outro lado, através da fundação
de novas vilas e cidades ou da mais simples e pragmática refundação de aldeamentos missionários, e de sua integração numa rede urbana global,
procurava-se a efetiva ocupação territorial do Brasil”. TEIXEIRA, Manuel; VALLA, Margarida. O urbanismo português. Séculos XIII /XVIII,
Portugal, Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 254.
18
ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: FAUP Publicações, 1992, p. 36
219
possam com mais comodidade mudar a sua habitação para a Villa, logo
que determine y nella o
lugar da praça no meyo da qual se levante o Pelourinho, e se assignale a area para
edificio da Igreja capaz de receber competente numero de fregueses ainda que a
povoação se aumente, e que façaes delinear por linhas rectas a area para as cazas
com seus quintaes, se designe lugar para se edificarem a Caza da Camara e das
audiencias e Cadeia, e mais officinas publicas que todas devem ficar na area de-
terminada que as cazas dos moradores, as quaes pello exterior sejam todas no
mesmo perfil ainda que o interior as fará cada hum dos moradores à sua feição de
sorte que em todo o tempo se conserve a mesma formosura da terra, e a mesma
largura das ruas e junto da Villa fique bastante terreno para logradouro publico, e
que nelle se poderem edificar novas cazas, que serão feitas com a mesma ordem e
concerto com que se mandam fazer as primeiras, e deste ou se não poderá em
nenhum tempo dar de sesmaria, ou aforamento, parte alguma sem ordem minha
que
(sic) esta; e os governadores poderão repartir em sesmaria todas as mais terras com
as clauzulas,
e condiçoens com que se dão as mais no Brazil
excepto na extenção de terra que se costuma
dar a cada morador porque nos contornos da ditta Villa dentro em seis legoas de distancia della se não
poderá dar a cada morador mais do que meya legua de terra em quadro; porem à mesma V. se dara
huma datta de quatro legoas administrarão os officiais da Camara para do seu rendimento se fazerem as
obras e despezas do Conselho desta terra poderão aforar para o mesmo effeito aquellas partes que lhes
parecer, observando o que despoem a ordenação que estes aforamentos fora das dittas seis legoas, se daram
as terras por sesmarias na forma que se [...] nas mais terras do Brazil [...] El Rey Nosso Senhor o
mandou pellos. D. Joze de Carvalho Abreu e João de Souza, (Conselheiros do Conselho Ultramarino, se
passou por duas vias. Antonio de Souza Pereira a fez em Lisboa Occidental a 11 de fevereiro de 1736.
– Documento para marcação de Vila Boa de Goiás
19
.
A leitura desse termo de assentamento permite identificar claramente os conceitos de
estruturação de Vila Boa de Goiás. Frutos de inúmeras experiências e sínteses de séculos anteri-
ores, eles afirmam serem as praças, situadas estrategicamente nas regiões centrais dos sítios urba-
nos, os elementos de orientação e crescimento das cidades. Mas a alusão a essa matriz reguladora
e à presença dos cordeadores não foram os únicos condicionantes relativos aos cuidados e
ordenamento previstos para a vila. A escolha do local também faz parte de remotas práticas de
fundação de cidades, podendo ser observado no tratado de Antônio Rodrigues
20
, do século XVI.
Uma vila deveria contar também com normas de higiene pública, limpeza de ruas, de testadas
de lotes “[...] como dos quintaes, e terão os caminhos concertados com estivas e Pontes feitas para servidão do povo
19
AFSD. Cidade de Goiás. Doc. Avulsos, fls. 106,107. [Grifos nossos]
20
No “Capitolo da emleissam do sytio”, o autor justifica em nove ítens a importância de se considerar adequadamente as características de um
determinado sítio, havendo este de ter: “Terras para pasto; matos para lhena (sic), que fosse visto de lomge; que se nam abitasse amtra montes
[...]” Uma boa escolha asseguraria ainda que “[...] veueriam hos omes sem sospeita do quemte nem do frio”. Seus bons ares “[...] não teriam
tamtas emfermydades” e “tendo boas hagoas seriam hos omes galhardos e bem despostos e não teriam emfermydades de olhos nem de
pernas.” Além destes aspectos o tratado diz que boas terras também eram aquelas agricultáveis, pois só assim a população teria como produzir
seus mantimentos. RODRIGUES, Antônio. O tratado. apud: MOREIRA, Rafael. Um tratado português de arquitectura do século XVI. Dissertação
de mestrado em História da Arte. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1982, fl 6-7.
220
e viandantes; e não trarão porcos pellas ruas de baixo das referidas pennas [...]”
21
. A esse conjunto de indica-
ções somar-se-iam princípios estéticos revelados pela expressão “formosura da terra”. Tal expressão
reivindica procedimentos que envolvam maior planejamento, e não apenas normas gerais para a
construção dos edifícios. Essa idéia trazia implicitamente ainda “um conceito do fenômeno urbano que vê
na cidade não apenas o lugar do poder e da ordem, mas também da beleza, que está profundamente vinculada ao
caráter ´ordenado´ do conjunto”
22
.
Essa foi a concepção urbana que procurou fixar em território goiano a regularidade física de
sua capital. Diferentemente da estrutura bipolar do Arraial de Santana, formado por um eixo, em
cujas extremidades se fixaram os edifícios religiosos, essa nova forma de fazer cidades não mais se
organizaria a partir de um sistema bipolar, e sim segundo a escolha de um “[...] patrimônio de quatro
léguas de terra que sua Magestade lhe concedeu pela ordem, que consta da certidão n. 1, datada em 11 de fevereiro de
1736, na qual se determina que no terreno junto a Vila fique bastante extensão para Logradouro público [...]”
23
e
de uma área central, marcada pelo então governador D. Luiz de Mascarenhas que “[...] não se dedignou
de pegar na ponta da corda e servir de peão [...]”
24
, e logo depois indicou local para se levantar
[...] o Pelourinho, e se assignale [assinalar] a área para edifício da Igreja capaz de receber competente numero de
fregueses ainda que a povoação se aumente, e que façaes delinear por linhas rectas a área para as cazas com seus
quintaes, se designe lugar para se edificarem a Caza da Camara e das audiencias e Cadeia, e mais officinas publicas
que todas devem ficar na área determinada que as cazas dos moradores, as quaes pello exterior
sejam todas no
mesmo perfil ainda que o interior as fará cada hum dos moradores à sua feição de sorte
que em todo o tempo se conserve a mesma formosura da terra,
e a mesma largura das ruas[...]
25
.
Essa formosura também deveria se estender às construções da Matriz de Santana e da Casa de
Câmara e Cadeia, buscando garantir suas respectivas regularidades com planos arquitetônicos pré-
estabelecidos.
Na história da fundação de Vila Boa de Goiás, a região do Largo do Chafariz deveria ser a
representação dessa grande inovação espacial, planejada para assumir o papel gerador de sua malha
urbana. Com ela, pretendia-se organizar os espaços da Vila e fixar os edifícios de representação eclesi-
21
AFSD. Cidade de Goiás. Documentos avulsos: Atas da Câmara de Villa Boa de Goiaz. Livro de Registro, Fragmento, 1743. “Fação o de quatro
vinteins com treze lanços de pezo, e o de maior, ou menor preço a esse respeito. E aos moradores desta villa, e seu termo, que mandem a
limpar as suas testadas, assim da parte das ruas como dos quintaes, e terão os caminhos concertados com estivas e Pontes feitas para
servidão do povo e viandantes; e não trarão porcos pellas ruas de baixo das referidas pennas; e a não deixar que fizerem o pão de
minuto terão de mais o tomarce-lhe por perdido para os prezos da Cadea; e para que venha a noticia de todos e não possão allegar
ingnorancia mandei Lavrar o prezente Edital, o qual sera Registrado no Livro do Registro Geral da Câmera, e depois de publicado fixado
no Lugar cuztumado. Dado e passado nesta Villa Boa de Goyáz em o primeiro de Setembro de mil setecentos quarenta e três. [Grifos nossos]
Manoel dos Sanctos Caturro ezcrivão da Almotassavia o escreveo // Pereyra // E não se continha mais em o dito Edital que eu escrivão bem e
fielmente aqui Registre(y) do próprio a que me Reporto; em fé do que me assigno nesta Villa Boa de Goyaz em dito dia e era... supra”.
22
ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e método. Tese de doutoramento. Lisboa: Universidade
Nova d Lisboa, 2000, p. 105.
23
Apud: BERTRAN, Paulo.Op. Cit., p. 60.
24
O arruador podia ser um engenheiro, um funcionário administrativo, um governador, etc. Arruar era o ato de desenhar no território aquilo que
se estabelecia com umas regras simples ditadas pela tradição, pela convenção de uma Carta Régia ou pelo projeto, mas com as potencialidades
de reflexão e adaptação à realidade que o desenho permite.
25
Apud: BERTRAN, Paulo. Op. Cit., p. 60. [Grifos nossos]
221
Fig. 73 – Prospecto de Villa Boa
tomada da parte do Esnoroeste para
Les Sueste no anno de 1751.
Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens
de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São
Paulo: EDUSP, 2000; p. 239.
ástica e estatal. A realidade construída mostrou, entretanto, distorções
na implantação da capital, acabando por diferir das prescrições enun-
ciadas na sua Carta Régia, por causa de alterações motivadas, provavel-
mente, por particularidades do sítio e outras pela resistência do povo
em manter-se em Santana, reforçada pelo pouco incentivo de D. Luiz
de Mascarenhas à transferência da população para o novo núcleo. Essa
falta de entusiasmo do governador é revelada em uma de suas cartas
dirigidas ao monarca D. João V, quando afirma que “[...] os moradores
não podiam ser constrangidos a mudar suas cazas para o mesmo lugar por lhe ser de
prejuízo o de fabricá-la em outra parte e perderem o terreno aonde existem [...]”
26
.
26
AFSD. Cidade de Goiás. Carta de D. Luiz de Mascarenhas ao Rei de Portugal, redigida em Santos,
em 15 de junho de 1743. Documentos avulsos
27
AFSD. Cidade de Goiás. Idem.
Mas os mais significativos e marcantes testemunhos dessas
distorções foram a permanência da Matriz no Largo de Santana e
as modificações na praça demarcada por D. Luiz de Mascarenhas
e, conseqüentemente, dos lugares definidos para a Casa de Câmara
e Cadeia e o pelourinho. Tamanhos desvios ocorreram desde a im-
plantação da Vila, podendo ser observados a partir de uma justifi-
cativa do governador para a permanência da Matriz na antiga Capela
do Arraial de Santana, pois, segundo ele, até aquela data o antigo
edifício havia sediado muito bem a Paróquia e sua localização fica-
va exatamente “[...] no meyo da povoação mais acomodada para os morado-
res satisfazerem com igualdade as obrigações de catholicos [...]”
27
.
222
Sendo assim, em 1743, para o melhor exercício das funções eclesiásticas, ergueu-se um edifício de
maiores proporções no lugar da velha capelinha de Santana. As despesas para tal construção
foram custeadas, em parte, pela Câmara de Vila Boa e com o auxílio de Portugal, que forneceu
apenas um pequeno recurso para a construção da capela-mor e enviou um plano executado em
Lisboa, tendo em vista que o primeiro, vindo de São Paulo, havia sido desconsiderado, tamanha
sua “imperfeição”. Apesar de todo esse empenho, dezesseis anos depois da obra pronta, em
1759, o teto da Matriz desabou, deixando, até o fim desse século, novos ônus para a população e
uma história cheia de gastos e intervenções.
Quanto ao edifício dedicado à Câmara, ele se ergueu modestamente, ao lado da antiga
capela de Nossa Senhora da Boa Morte, em uma determinada área do termo da Vila, conforme
atestam os prospectos de 1751. Entretanto, logo depois, sua transferência, bem como a do
pelourinho, foi solicitada, originando-se a idéia da construção da atual Casa de Câmara de Goiás.
A justificativa para tal mudança encontra-se em uma carta dos vereadores de Vila Boa, de março
de 1746, encaminhada a D. João V. Os proponentes das alterações afirmavam que o local onde ela
havia se estabelecido era muito distante do núcleo dinâmico da vila, estando “[...] a ditta cadea em
dezerto, exposta a muitos arrombamentos, já sucedidos e a cadeia encontrava-se deserta [...]”
28
. Um anexo a
esse documento explica ainda que para a justa mudança reuniram-se,
[...] no fim da rua chamada de Pallacio, aonde o Douttor ouvidor Geral Manoel Antunes da Fonceca, foi como
juiz ordinário Josê de Godoy Roa, e o vereador o Bascharel formado João Ferreyra de Barros e o Procurador da
Câmara Manoel de Lima Soutto e junto com elle o arruador Manoel Fernanades Lima, e [ilegível] Manoel de
Souza Bargunte;
para effeito dese excaminar, emedir, a distancia que sem cazas media,
do fim da ditta Rua até a cadea, e casa da Câmara, e assentamento do Pellourinho, e
Praça
; assignaldo tudo pelo Ilm
o
. E Ex
mo
. General desta capitania Dom Luiz de Mascarenhas no acto da
creação, e Ereção desta Villa [...]
29
.
O exame e as medições dos espaços da Vila feitos pelos profissionais visavam mostrar ao
monarca a importância e a necessidade do assentamento de uma nova praça e a mudança do
pelourinho. “Como também novaz cazas da Câmara e Cadea, para um lado da praça principal do corpo desta
villa [...]”
30
, pois a atual se achava isolada de vizinhança, dificultando o exercício de sua função.
Para finalizar, havia ainda poucas esperanças para se povoaràs áreas, próximas a esse edifício, que
era térreo, pequeno e sem segurança alguma. Assim sendo, a construção da nova Casa de Câmera
e Cadeia foi providenciada rapidamente pelo ouvidor Antônio Jozé, o mesmo que afirmou que
ela seria a “[...] mais forte que se acha em Minas, e muito espaçoza com todas as comodidades precizas, e no
quarto alto fica a Caza da Camara, audiencia, e salas livres, cuja planta he a que remeto a V. Mg.
de
e se acha
quazi completa”
31
.
28
AHU. Goiás. Doc. 300, 1746. Carta de oficiais da Câmara de Vila Boa ao Rei D. João V, solicitando licença para a construção de uma nova cadeia
e pelourinho em Vila Boa.
29
AHU. Goiás. Doc. 300, 1746. Idem. [Grifos nossos]
30
AHU. Goiás. Doc. 300, 1746.
31
AHU. Goiás. Doc. 1228, 1764. Sobre a construção de quartel, hospital e outros. Projeto Resgate Barão do Rio Branco, Goiânia IPEHBC.
223
Fig.75 – Prospecto de Villa Boa tomada
da parte do Sul para o Norte no
anno de 1751.
Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de
Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São
Paulo: EDUSP; 2000, p. 235.
Fig. 74 – Prospecto de Villa Boa tomada
da parte de Norte para o Sul no anno de
1751. REIS, Nestor Goulart.
Fonte: Imagens de Vilas e Cidades do Brasil
Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 239.
Para além dos desvios de implantação e em face da penúria eco-
nômica da região, até mesmo a residência dos governadores e a casa de
fundição foram adaptações feitas às casas térreas existentes no antigo
arraial. Utilizando o procedimento habitual, em 1751, D. Marcos de
Noronha encaminhou ao Rei uma correspondência pedindo licença para
construir uma residência, alegando não haver em Vila Boa casas adequa-
das para abrigá-lo, e que aquela em que estava instalado o espaço mostra-
va-se bastante precário. À época, a Vila era bastante pequena e com
poucas alternativas para moradia, já que era formada apenas por um
reduzido número de casas térreas, e não mais que três sobrados, todos
feitos de taipa. As dificuldades de obtenção de material e os altos custos
de mão-de-obra deixaram D. Marcos diante de duas alternativas para
fundar a residência dos governadores. Com a primeira, ele ficaria à mer-
cê da ajuda financeira da Coroa e do envio do projeto; e com a outra,
teria de aceitar as cinco casas contíguas que se localizavam na Rua Vallença,
224
mais especificamente uma “[...] que faz frente para o Largo da Matriz, e as
outras mais antigas [viradas] para a ditta rua [...]”
32
. Em função dos parcos
recursos da Capitania e do indeferimento de um auxílio da Corte, o que
restou ao governador, foi, obviamente, a realização da reforma dos imó-
veis, nascendo, assim, a Casa de Fundição de Vila Boa e aquela que hoje
conhecemos como Palácio Conde dos Arcos.
Em 1764, quando João Manoel de Melo era o capitão-gene-
ral da Capitania, a Câmara se interessou também por reformas,
notadamente as de velhas casas da praça que, desde 1747, foram
destinadas aos quartéis (Fig. 76). Com essas adaptações, os novos
espaços militares deveriam ficar bem “deliniados para que os soldados
Larga e decentemente se acomodasem, mandando eregir hum mui aseado hos-
pital com todas as officinas proprias de hum regular edeficio”
33
, além de
“[...] hum calabouço siguro para
os soldados, e outra caza para armas, que
tudo era precizamente necessário [...]”
34
. Medidas tornaram a capital de
Goiás, anteriormente uma humilde povoação, numa vila que se ia
“[...] ornando de bons edeficios, enchendose de cazas nobres e augmentandose
em povo [... ]”
35
.
Fig. 76 – Imagem do quartel de Vila
Boa de Goiás.
Fonte: BORGES, Ana Maria;
PALACIN, Luís. Patrimônio Histórico de
Goiás. Brasília: SPHAN/Pró-Memória,
1987, p. 22.
32
AFSD. Cidade de Goiás. Volume n. 413, fls. 84. Documentos avulsos da Junta Real da Fazenda.
33
AHU. Goiás. Doc. 1228, 1764. Sobre a construção de quartel, hospital e outros. Projeto Resgate
Barão do Rio Branco, Goiânia IPEHBC.
34
AHU. Goiás. Doc. 1249, 1774. Construção de quartel. Projeto Resgate Barão do Rio Branco,
Goiânia IPEHBC.
35
AHU, Goiás, Doc. 1228, 1764. Sobre a construção de quartel, hospital e outros. Projeto Resgate
Barão do Rio Branco, Goiânia IPEHBC.
225
Fig. 79 – Imagem do Palácio conde dos
Arcos em Vila Boa de Goiáz.
Foto: Deusa Boaventura.
Fig. 77. Casa de Câmara e Cadeia de Vila
Boa de Goiás.
Foto: Deusa Boaventura.
Fig. 78 – Projeto original da Casa de
Câmara e Cadeia de Vila Boa de Goiás.
Fonte: Arquivo do SPHAN.
226
Não bastassem todas as alterações contrárias ao plano definido pelo termo de assentamento,
existiam ainda aquelas relacionadas ao seu logradouro público ou aos chãos que fizeram parte das
quatro léguas de terra marcadas à época da sua fundação, destinados ao alargamento de ruas e à
construção de novos edifícios. Conselhos de câmaras anteriores concederam irregularmente áreas
nessa região, permitindo posteriores demandas e obstáculos às ações de futuros gestores
36
.
Associado a esse quadro de distorções, permaneceu ainda o tradicional recurso de implantação
da Matriz de Santana e da Igreja do Rosário, com o surgimento das capelas de São Francisco de Paula
(1761), Nossa Senhora da Boa Morte (1762), Nossa Senhora do Carmo (meados do século XVIII) e
Nossa Senhora da Lapa (1749). Erguendo-se com volumetrias soltas e independência em relação ao
casario e ao traçado das ruas, essas igrejas não apresentavam nenhuma inovação substancial quanto às
suas implantações, contrariando os princípios do esquema regulado a partir de uma praça, com ruas
que partem desse espaço e organizam-se hierarquicamente, formando o conjunto do tecido urbano.
Seguindo o tradicional esquema de fazer cidades, esses edifícios religiosos ajudaram a formar
os espaços de Vila Boa, conformando uma estrutura mista que reunia características de velhas e
novas concepções urbanas. Com elas, apareceram também os adros de São Francisco de Paula e de
Santa Bárbara. Tidos como importantes elementos urbanísticos da Vila, foram os lugares que, orga-
nizados segundo normas eclesiásticas
37
, se destinaram ao atendimento dos vários interesses ritualísticos
da capital goiana, incluindo, sobretudo, as dimensões laicas de caráter sacro e profano.
Mas cabe lembrar que, até a metade da década de setenta do século XVIII, existiu em Vila
Boa apenas o pequeno adro da Capela de São Francisco. O segundo só apareceu com a construção
da pequena Capela de Santa Bárbara, mas a sua integração à malha urbana somente ocorreu com as
futuras propostas de reforma urbana de 1782, feitas pelo governador Luís da Cunha Menezes,
quando este planejou a abertura de uma longa e larga rua que daria acesso direto à igreja.
Já as igrejas de Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora da Boa Morte não possuíam adros
e por se relacionarem diretamente com os largos e as ruas não estabeleceram nítidas barreiras físicas
entre as dimensões do sagrado e do profano.
Portanto, pelos citados desvios do plano e pela permanência de formas tradicionais de fazer
cidades, Vila Boa adquiriu uma configuração físico-espacial incomum. O antigo Largo da Matriz
fixou-se definitivamente como o ponto mais central e dinâmico da cidade, e o Largo do Chafariz, ou
o lugar da nova Câmara, submeteu-se hierarquicamente a ele. Na verdade, a jovem capital firmou-se
mais administrativa do que fisicamente, com parte de suas funções permanecendo no arraial e
outras, no novo espaço, como a Casa de Câmara e o pelourinho. Ainda assim, mesmo sem a plena
organização de estruturas urbanas regulares, a fundação e a construção de edifícios institucionais
inauguraram um espaço predominantemente diversificado, laico, de maior complexidade funcional
e que se destacou principalmente pela clara tensão existente entre esses dois importantes largos que
se rivalizavam entre si quanto às suas capacidades de abrigar atividades complementares, como as
religiosas, as político-comemorativas e as comerciais e punitivas que, anteriormente, conviviam no
mesmo cenário.
36
Apud: BERTRAN, Paulo. Op. Cit., V. 2, p. 60-61.
37
Sobre essa questão, ler nossa dissertação de mestrado. BOAVENTURA, Deusa Maria Rodrigues. Arquitetura religiosa de Vila Boa de Goiás no
século XVIII. São Paulo: EESC-USP, 2001.
227
6.2 As reformas urbanas em Vila Boa de Goiás
As irregularidades da implantação da capital setecentista de
Goiás tornaram-se os elementos propulsores para as significativas
reformas em suas estruturas urbanas, realizadas pelos governadores
José de Almeida e Cunha Menezes. Orientando-se pelos princípios
da regularidade e do desenho, eles buscaram responder às velhas re-
clamações feitas pelo ouvidor-geral da Capitania e corregedor espe-
cial da Câmara de Vila Boa em 1749, para que se “edificassem casas para
a parte da Vila e do Pelourinho e casa da Câmara della, e que os mais se
impediriam e que sendo preciso demandarião demolir a quem intentasse nova
edificação para a parte do Rosário com já havia proibido”
38
.
Foram as iniciativas desses dois governadores que permitiram
melhorias urbanas e profundas transformações espaciais no traçado
da Vila. Os planos de realinhamento não foram os preferidos do
hábil José de Almeida. Sua maior contribuição encontra-se no âmbi-
to da execução de obras de infra-estrutura, que iam desde o calça-
mento de ruas e a criação do chafariz de cauda ou da Boa Morte
(1778) – para dividir o abastecimento de água com o antigo Chafariz
da Carioca, localizado próximo ao Largo do Rosário –, até a recons-
trução de pontes sobre o Rio Vermelho para substituir aquelas que
haviam sido destruídas pelas enchentes ocorridas em 1776. Para um
território cujo clima se caracterizava ora por longos períodos de seca,
ora por intermitentes períodos de enchentes, ações como as desse
nobre governador representaram significativos avanços.
38
BERTRAN, Paulo. Op.Cit. , V. 2.p. 50.
Fig. 80 – Imagem do Largo do Chafariz
de Vila Boa de Goiás.
Foto: Deusa Boaventura.
228
Fig. 81 – O Plano de Cunha Menezes
para Vila Boa.
Fonte:REIS, Nestor Goulart. Imagens de
Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São
Paulo:. EDUSP. 2000, p. 240.
O maior reformador urbano da capital goiana, no entanto, foi
Luís da Cunha Menezes. Suas propostas compreenderam desde a
reedificação de três pontes e a construção de uma loteria, um açougue,
alamedas e passeios públicos até a elaboração de posturas para a orien-
tação dos trabalhos da Câmara, que, através das Correições, procura-
vam regular a vila, a exemplo daquela de 1780, quando foi determinado
[...] que detraz da Matriz, se
fizesse hum quadrado proporciona-
do para formozear, quanto fosse possível aquelle terreno,
no qual já se tinha feito vestoria, e se estavão cortando os fundos dos quintaes
até onde parecesse conveniente, como também no beco que vai das cazas de
Manoel da Costa Santos para o Largo da Boa Morte se cortasse hum
pedaço de muro para indireitar, e alargar o dito beco [...]
39
.
Mas seu maior legado foi ter solicitado ao soldado dragão do
Regimento de Cavalaria, Manoel Ribeiro Guimarães, a elaboração de
um plano de realinhamento e expansão para a Vila, no ano de 1782
(Fig. 81). O desenho, no qual se encontram detalhadamente os prin-
cipais logradouros da época, além de prever uma maior regularidade
das ruas existentes e dos largos da Matriz e do Rosário, principais
pólos de adensamento da vila, mostra a delimitação de novas qua-
dras para posteriores construções, definindo ainda, com precisão,
limites de chácaras já formadas, buscando coibir a expansão
desordenada.
229
O plano de Luís da Cunha Menezes privilegiava o crescimento da Vila para o sudeste, ou,
mais especificamente, para a região rumo à nova Casa de Câmara e Cadeia. Mas de forma alguma
desconsiderou as áreas ermas ao lado do largo do Rosário, onde foram definidos os limites de
algumas chácaras e as ocupações existentes nas ruas da Cambaúba, Nova, Nova do Teatro e dos
Mercadores.
Para a concretização da expansão a sudeste, o desenho aponta as retificações necessárias para
a evolução urbana. A Rua do Pintor e a Rua do Médico constituíam, grosso modo, os limites da
ocupação da Vila. Já a Rua Última, perpendicular à Travessa Áurea e às ruas Entre Muros e Amena,
representa o crescimento proposto. Completando a proposta de extensão a sudoeste, havia também
a indicação para a abertura, mais a oeste, da Rua Nova, em direção a Luziânia. Acima desta, o local
para o horto e a marcação da chácara de Joaquim Apolinário. Do lado oeste, onde ficavam os largos
do Chafariz e do Rosário, a malha urbana seria retificada e reforçada como eixo de conexão entre a
Rua Cambaúba e a Rua Nova. Paralela a essa primeira, encontra-se uma outra rua que alcança a de
Santa Bárbara, e que, juntas, se responsabilizariam pelos acessos à Igreja de mesma denominação.
Por fim, o plano apresenta também a ampla Rua do Barroso, a extensão da Rua Nova do Teatro e a
delimitação de grandes áreas para chácaras.
Além do direcionamento da expansão da Vila, o plano buscava também enquadrar a Praça do
Chafariz, colocando-a mais centralizada dentro do tecido urbano e não mais na condição de um dos
vértices, como se apresentava anteriormente. Valorizando a nova situação do lugar foram criados
elementos expressivos da modernidade, como “uma alameda e passeio público, [...], e para isto se plantaram
por ordem as árvores, que depois foram cortadas”
40
. Dessa forma, o governador intentava transformar esse
espaço no mais importante local público da Vila.
Para garantir que o plano fosse executado rigorosamente, o governador Luís da Cunha Menezes
redigiu um Código de Posturas que estabelecia várias normas, distribuídas em doze parágrafos. No
início, ele reforça a obediência às ordens que precederam a fundação da Vila, informando ainda que
as terras destinadas ao logradouro público não poderiam ser utilizadas sem a prévia concessão da
Câmara. Mas mesmo se fossem concedidas, somente seriam aceitas solicitações que passassem pe-
los trâmites legais, tendo em vista as irregularidades encontradas nos processos de aquisição de
chãos e a inadequada ocupação das áreas externas ao termo da Vila. Com essa determinação, o
governador procurou não só incentivar, mas também forçar a ocupação da área destinada à capital.
Um crescimento como esse, ocorrido à revelia do povo, apresentava muitos lotes com qua-
dras vazias. Alguns deles estavam, inclusive, cercados por muros irregulares. O Código definia,
portanto, que os lotes deveriam ser ocupados por “casas ou edifícios”. Na impossibilidade de atender
a exigência, os proprietários perderiam a posse dos terrenos, que seriam transformados em áreas
devolutas e liberadas para qualquer outro que pudesse construir o mais breve possível. Tudo deveria
respeitar os princípios da ruação, seguindo “[...]
a
mesma regularidade das melhores que se
acham na dita rua edificada,
para que desta forma se aumente a população da terra debaixo de um agradável
prospecto e civilização. Isto é pelo que pertence à frente da Rua, ficando o interior à eleição de seu dono”
41
.
39
AFSD. Cidade de Goiás. Doc.avulsos, 1780. Termo de Correição Geral. [Grifos nossos]
40
TELES, José Mendonça. Op. cit., p 98- 99.
41
Posturas urbanas de Luís da Cunha Menezes. In: BERTRAN, Paulo. Op. Cit. , V.2. p.58. Grifos nossos].
230
Para o correto procedimento, o Código de Posturas do governador indicava como a referida
regulação poderia ser alcançada:
No lado da praça principal que faz rente à Casa da minha residência, serão reguladas as Casas pela frontaria
das do Tabelião Manoel José Leite, quando as ruínas das mesmas pedirem nova edificação.
No outro lado em que mora o Tenente Coronel João Pinto Barbosa Pimentel, seguirá a mesma formalidade, até
o canto do Licenciado João Antônio Freitas, servindo também as do Reverendo Vigário de modelo para as que
imediatamente delas segue até o canto que faz frente as casas que servem de Tribunal da Contadoria.
Na direita se regularão de uma e outra parte pela frente das (casas) do Capitão-Mor Miguel Álvares da Ora,
seguindo a rua de cima.
Na praça dos Quartéis, se observará a mesma formalidade das casas do Tenente Francisco Pereira Marinho
até o canto que desce para o beco, e do mesmo beco seguindo para cima imitarão todas a mesma fronteira das que
ficam no mesmo canto.
Na rua chamada Médico serão todas a imitação das que se acham imediatas aos Quartéis da parte de cima.
Em todas as mais ruas se procurará sempre imitar-se as de melhor frontaria, e no caso de serem todas antigas e não
haver coisa que se agrade a vista, se lhe dará novo prospecto proporcionado ao país e às posses dos donos dos chãos.
Na Praça principal enquanto não se põe em prática o determinado acima sobre reedificação, mandarão os
donos das casas pintarem as janelas e portas todas de uma cor, para assim suprir a irregularidade do prospecto
com que foram construídas
42
.
Importantes inovações, como a elaboração do plano de expansão urbana, seguido pelas
posturas, repercutiram na Capitania de Goiás até o final do século XVIII, abrindo possibilidades,
inclusive, para a formação do futuro Jardim Botânico, em 1799
43
, e para a continuidade do uso do
desenho, visando, sobretudo, o reordenamento de cidades.
É o que se confirma com a planta anônima de 1790
44
, que repropõe um segundo alinhamento
das estruturas físicas da Vila. Mais detalhada que o Plano de Cunha Menezes, é nela que se vê pela
primeira vez uma clara definição de quadras formadas por compridos lotes retangulares, caracterís-
ticos dos modelos portugueses. Testemunhos da influência dessa planta podem ser vistos no termo
de vereança de 1795:
[...] o muro dos fundos das Cazas de Manoel de Siqueira; o qual se devia levantar,
fosse arruado na
forma do Mappa, e prospecto
que se ha determinado
para a boa regularidade das Ruas,
dimolindose as propriedades, que se achão ao correr ate sahir a rua que vai para o jogo da bola,
cordeando
42
Posturas urbanas de Luís da Cunha Menezes. In: BERTRAN, Paulo. Op. Cit. V. 2. p. 58.
43
Arquivo da Biblioteca Nacional. Guia de Comunicações, I, 28, 33. Rio de Janeiro.
“Sobre o Jardim Botânico: Palácio da Guarda 31 de julho de 1799 Off. De D. Rodrigo de Souza Coutinho a D. Francisco de Sousa acusando as
informações sobre as árvores em cuja casca se attribuem as virtudes da Quina e da outra [...] cura a hydropesia; sobre a abundancia de salitre
na [...] sobre o estabelecimento do terreiro público, sobre a vacina, sobre a criação de correios para Goyaz, sobre o estado das melícias exigindo
mappa da população, e que dê incremento ao Jardim Botânico, cultivando, aumentando a cultura da árvore de pão, caneleira, pimenteira, cravos
da Índia, café, etc [...]. Palácio de Queluz em 31 de julho de 1799”.
44
Seguimos a datação desse plano conforme o livro Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial de Nestor Goulart Reis. Entretanto, cabe destacar que
Roberta Delson, em Novas Vilas para o Brasil Colonial, página 33, diz ser o referido plano anterior a 1782. REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas
e cidades do Brasil colonial. São Paulo: EDUSP/ FAPESP, 2000, p. 240.
231
todas com o canto das cazaz
onde mora Antonio Moreira de
Oliveira, cuja despeza se pagaria a seus donos pelos rendimentos desta
Camara conforme a avaliação que dellas fizesse
45
.
Paralelamente às posturas, esses desenhos garantiram, pelo menos
até o final do Setecentos, as orientações para a retificação e o crescimento
da capital goiana, demonstrando, dessa forma, a presença dos novos valo-
res da cultura Iluminista, que não visavam a outro significado senão a
“ordem da razão”, contrapondo-se claramente a toda carga simbólica de
cunho cosmológico-religioso das concepções urbanas anteriores. Essa foi,
portanto, a maior e a mais importante inovação que o governador Cunha
Menezes introduziu na organização espacial urbana de Vila Boa, ainda que
modesta se comparada às grandes novidades teóricas do urbanismo por-
tuguês, com a presença da ciência da Ruação, na segunda metade do sécu-
lo XVIII, que propunha efetivamente o estudo rigoroso das formas urbanas,
o desenho e a expansão das cidades.
45
IPEHBC. Doc. Avulsos, 1795. Termo de Vereança. [Grifos nossos]
Fig.82 – Proposta de realinhamento do
tecido urbano de Vila Boa, 1782.
Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de
Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São
Paulo. EDUSP. 2000. p. 240.
6.3 Urbanismo pombalino: simbolismo e método
O urbanismo pombalino, ou, mais precisamente, aquele que
se desenvolveu na segunda metade do século XVIII, é devedor dire-
to das experiências e dos conhecimentos teóricos dos engenheiros
militares portugueses, das assimilações e trocas culturais ocorridas
na época da união das coroas de Portugal e Espanha e da participa-
232
ção de técnicos estrangeiros nas expedições da Amazônia. Coube a esse tipo de urbanismo, apenas
o reforço das práticas herdadas desse passado e a introdução de “novos conceitos” aos espaços
urbanos que permitiu uma leitura mais pertinente e clara de suas funções e significados: vale dizer,
da articulação do conjunto ou da praça como um todo, e não mais da valorização simbólica e isolada
de cada um dos elementos constitutivos, tais como os edifícios ou os objetos urbanos.
Mas mesmo essa idéia não é inovadora. Pode-se observá-la na época de D. João V, quando
vilas e cidades foram fundadas segundo Cartas Régias que determinavam ser a praça o elemento
gerador da estrutura urbana e, em termos simbólicos, representativa dos poderes estatal e eclesiás-
tico. A diferença básica, adverte Araújo,
[...] é que o urbanismo pombalino inaugura a ênfase dada ao discurso ideológico da cidade. O conjunto urbano vale
tanto quanto os seus elementos e exprime um discurso objetivado em si mesmo e por si mesmo constituindo um
valor. A ordenação urbana continua racional e pragmática como antes, mas sobre ela interpõe-se o poder de
maneira mais evidente e assumida, e não apenas enquanto referência alegórica. E o espaço urbano privilegiado é o
espaço público, utilizado como afirmação do poder sobre o espaço
46
.
Como se constata, essas cidades foram concebidas segundo conceitos urbanos bem defini-
dos, materializados em projetos geometricamente detalhados, considerando todos os seus elemen-
tos constitutivos. Do desenho à obra, tudo deveria estar submetido a um rigoroso controle, de
maneira a permitir a máxima perfeição formal, necessária a uma verdadeira “civitas”, capaz de civilizar
os povos. Para o colonizador setecentista, nada melhor do que urbes semelhantes a essas, notadamente
em territórios do Brasil, cobertos de selvagens, “necessitados” de conversões não apenas à fé cató-
lica, mas a todo um sistema cultural diferente, e onde já se encontravam formas urbanas herdeiras
das variadas experiências de fazer cidades ao longo de três séculos. Essas formas valorizadas nos
traçados de suas ruas e na padronização de suas fachadas, segundo os princípios racionais e geomé-
tricos, constituíam o canal do discurso persuasivo do conquistador. O urbanismo pombalino aposta
efetivamente no símbolo, com o propósito de marcar claramente o significado e a hierarquia dos
espaços da cidade e da arquitetura. Por isso, o início de seu processo de elaboração formal a partir
da praça é de fundamental importância, pois ela, além de ser o elemento gerador do desenho, é vista
como berço da civilização. Delimitando-a estarão os edifícios representativos das instituições, con-
firmando a sua força simbólica. Com essa configuração, o conjunto de formas urbanas e arquitetônicas
nasce diretamente vinculado à própria origem da sociedade civil e laica.
Para a compreensão desse tipo de espaço urbano, Araújo considera dois importantes con-
ceitos convergentes: “[...] o conceito de espaço matéria, dos geômetras e engenheiros, mensurável e moldável e a
compreensão do espaço documento cultural moldável ideologicamente”
47
. Dessa conjunção conceitual é que
surge o entendimento histórico de que o espaço edificado é detentor de um discurso autônomo
e que não se caracteriza como elemento meramente dependente das dinâmicas sociais, mas como
um elemento atuante de todo o conjunto. São, portanto, as investigações formais que buscam
estruturas urbanas que demonstrem essa nova lógica espacial. E o instrumento de pesquisa para
46
ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: FAUP Publicações, 1992, p. 64.
47
ARAÚJO, Renata Malcher de. Op. Cit., p. 64-65.
233
o alcance de tal objetivo é o desenho, que passa a assumir uma importância crucial em todo
processo de criação e formação de cidades e edifícios, pois é na instância do projeto que se
encontram conceitualmente a idéia, a forma, como representação do espaço real, e o momento
da execução da obra propriamente dita.
No entanto, cabe lembrar que essas idéias não surgiram no contexto da Ilustração. Suas ori-
gens remontam ao mundo renascentista português, nas importantes leituras comentadas de Euclides,
de Vitrúvio e nos livros de Sebastião Serlio. Nestes últimos, encontram-se os problemas teóricos da
geometria e da perspectiva levados ao alcance das questões empíricas. E, por fim, consoante a esse
processo, firma-se a procura constante de correspondências formais, responsáveis pela geração da
simbologia geométrica. Serlio adverte sobre a necessidade de se saber aumentar e diminuir as figu-
ras, sempre almejando as suas proporcionalidades e adequadas relações formais, pois as figuras
podem se transformar em outras formas, “mantendo as mesmas partes”, ou melhor, as suas corres-
pondências em termos de áreas. A obtenção de formas correspondentes umas às outras se proces-
sava com o desenho, partindo, obviamente, de uma delas até a geração de outras. No caso específico
de figuras proporcionais criadas a partir do quadrado, Serlio, em seu livro dedicado à geometria,
aponta os exemplos mais recorrentes, nomeando-os: sexquiquarta, sexquitertia, sexquialtera,
superbicientertias, dupla e diagonea
48
.
Assim como no tratado de Serlio, existe uma grande variedade de transformações formais
diretamente proporcionais – a exemplo de triângulos que se originavam de retângulos ou de círculos
em quadrados – no manuscrito de um de seus discípulos, o português e arquiteto-mor da Escola de
Moços Fidalgos do Paço da Ribeira, Antônio Rodrigues. Seus exercícios, baseados em uma teoria
global das proporções, seguiam uma orientação essencialmente teórico-prática, o que pode ser visto
em seu tratado, nos “capitolo em que declara que couza he giometria” e “capitolo de trigonometria”
49
. O primei-
ro dedica-se às quinze definições básicas da disciplina, como as de ponto, linha reta, linhas
eqüidistantes, linhas que não são paralelas, ângulos, figuras, superfície, triângulo, círculo perfeito etc.
Já o segundo trata especificamente das transformações proporcionais das figuras. Formado por 48
proposições de cunho didático procura, com elas, apresentar uma grande diversidade de soluções.
Entretanto, apesar da praticidade do método, Araújo diz que os processos ensinados
[...] remetem para um acervo mental muito mais complexo, onde a idéia da correspondência das figuras tem
lugar no campo conceitual ligado às formas. A expressão da ‘quadratura do círculo’ resume em parte essa
referência, associando as duas formas geométricas numa simbologia comum de perfeição. Assim as reduções das
figuras ao quadrado ou ao círculo que lhe corresponda em área assumem um caráter representativo da coerência
da linguagem formal e estabelece um código sistemático e preciso para a metodologia do desenho
50
.
As proposições 11 e 16 do manuscrito de Antônio Rodrigues ilustram a complexidade do seu
método e as possibilidades de transformações formais:
48
ARAÚJO, Renata Malcher de. Idem, p. 48.
49
RODRIGUES, Antônio. O tratado. apud: MOREIRA, Rafael. Um tratado português de arquitectura do século XVI. Dissertação de mestrado em
História da Arte. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1982, fol. 25- 66
50
ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: FAUP Publicações, 1992, p. 45.
234
Por esta proposição [11] se declara como se doplicara qualquer fegura, como se eu pólo quadrado AMON que he
a metade menos do quadrado ANRD, he o quadrado ANRD he menos há metade do quadrado RNXQ, he o
quadrado RNXQ he menos a metade do quadrado RXEP, he o quadrado RNXQ he menos a metade do
quadrado RXEP, como se eu claramente pólo quadrado RXEP que he partido hem quatro partes higuaes por as
duas linhas diagonais EX Rp (com) as duas partes RQ XP se formou o quadrado RNXQ, como por hele se eu,
he asim se formarão todas as mais feguras que quizerem doplicar [...]. He asy póla mesma regra se doplicara ho
circolo P que he menos a metade do syrcolo N, he o circolo M he menos a metade do sircolo D; he assim poderão
correr hem ynfenito, como se vê pela prezente fegura. Para a prova disto tomarão os diâmetros co hu compaço.
Querendo saber há circumferencia do sirculo R quam cõprida he, partase ho seu diametro hem sete partes yguais,
como parece pplos pomtos 1 2 3 4 5 6, he darão à circunferência do dito syrcolo 22 partes. He querendo reduzir
este sircolo numa fegura quadrangular e retangular farão hua fegura que tenha honze partes yguais do tamanho de
hua das sete do diâmetro, he que tenha de largura três e meã, como parese póla fegura F. He querendo quadrar esta
fegura num quadrado perfeito corrão com a linha BA as três partes e mea ate o pomto M, façase o simesyrcolo
MBX, tiresse a linha NA ate a circumferensya do simesyrcolo, ho qual chegouao pomto N, he do pomto N ao
pomto A he o lado do quadrado ANOY, o qual he ygual a fegura F. He partindo a linha diagonal Ao hem 10
partes yguais, fazendo hu syrcolo que o seu diâmetro seyão 8 vira a ser ygual ao dito quadrado e ao syrcolo R
51
.
Araújo
52
ao analisar esta última proposição, diz ser ela absolutamente perfeita, em termos
algébricos, denotando um seguro conhecimento de relações matemáticas das formas e uma
metodologia de medição bem sofisticada. Parte-se de um círculo que se transforma em retângulo de
onde se chega a um quadrado perfeito. Finalizada essa etapa, toma-se novamente o quadrado, que é
transformado em seu círculo correspondente em área. Estas duas últimas figuras são as que Vitrúvio
cita com bastante freqüência em seu Livro III, capítulo I
53
, visando estabelecer uma relação com as
proporções do corpo humano e, portanto, carregadas de analogias simbólicas, particularmente as
relacionadas ao centro. No Renascimento, essa idéia foi sistematicamente assumida. A perfeição do
quadrado e do círculo é correlata à perfeição cósmica, pois são vislumbrados como imagens con-
cêntricas, nas quais “equivalência e hierarquia entre as partes se dá em comparação com um ponto unitário e
convergente, o centro. Toda uma ideologia gerativa nutre este conceito, onde o centro assume o papel irradiador e é
associado a uma imagética antropomórfica ou cósmica
54
”.
São essas figuras matematicamente perfeitas, com pontos centrípetos e carregadas de simbo-
lismo, que serão apropriadas pelo desenho urbano renascentista. Exploradas em todas as suas
51
RODRIGUES, Antônio. O tratado. apud: MOREIRA, Rafael. Um tratado português de arquitectura do século XVI. Dissertação de mestrado em
História da Arte. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1982, fol. 25-66.
52
ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazao. Porto: FAUP Publicações, 1992, p. 46.
53
Relação do círculo e do quadrado com o corpo humano. “De modo semelhante, sem dúvida, os membros dos edifícios sagrados devem ter em
cada uma das partes uma correspondência de medida muito conformemente, na globalidade, ao conjunto da magnitude total. Acontece que o
umbigo é, naturalmente, o centro do corpo; com efeito, se um homem se puser deitado de costas com as mãos e os pés estendidos e
colocarmos um centro de compasso no seu umbigo, descrevendo uma circunferência, serão tocados pela linha curva dos dedos de qualquer
uma das mãos ou dos pés. Igualmente, assim como o esquema da circunferência se executa no corpo, assim nele se encontra a figura do
quadrado; de fato, se medirmos da base dos pés ao cucuruto da cabeça e transferirmos esta medida para os braços abertos, encontrar-se-á uma
largura igual à altura, como nas áreas definidas em retângulo com o auxílio do esquadro”. VITRÚVIO. Tratado de Arquitectura. Tradução M.
Justino Maciel. Lisboa: Press, 2006, p. 109-110.
54
ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: FAUP Publicações, 1992, p. 46.
235
potencialidades, estabelecem, de certa forma, uma referência canônica, exaltada pelos teóricos por-
tugueses, a exemplo do que se observa no Methodo Lusitanico de desenhar fortificações das Praças regulares
e irregulares, de Luís Serrão Pimentel: “Primeiro no centro da Fortaleza, ou povoação se deve deixar hu terreiro,
ou praça grande que deve ser a principal das armas [...]. A dita Praça de armas principal no centro da Fortaleza deve
ser com os lados paralelos às cortinas da fortificação regular”
55
.
No contexto do urbanismo colonial português, as praças de fortificações propostas por esse
tratadista apresentam uma clara predileção pelas formas quadradas e retangulares. No território
brasileiro, o modelo do quadrado perfeito se difundirá mais amplamente no século XVIII.
Mas não apenas a construção da forma perfeita, na qual intrinsecamente encontravam-se os
valores simbólicos, fazia parte do método. O estudo da proporcionalidade do quadrado foi um
outro elemento da atenção de geômetras como Luís Serrão Pimentel, que diz que, além da praça,
[...] deve também haver outras ruas que atravessem ordenadamente as que saem do centro, e em correspondência entre si,
para serem melhores as serventias assim para o civil, como para o militar, e mayor fermosura da povoação.
Estas ruas
transversais que serão convenientes conforme a grandeza da Villa, Cidade ou Fortaleza
se
permitem menos largas, e assim se facão de 20 até 24 pés de largo,
e todas as medidas sobredittas de mais ou
menos se entendem também, conforme a capacidade da povoação
, sobre que o Engenheiro deve
proceder com juízo, e boa consideração, tomando as medidas, e tirando a Planta,
para que no papel veja primeiro
como em hum espelho a representação de toda a obra
[...]
56
.
No século XVIII, o estudo da proporcionalidade também é observado em um dos capítulos
de Artefactos Symetricos e Geométricos (1733), de Ignácio da Piedade Vasconcelos. De acordo com esse
documento, as proporções têm cinco gêneros que são definidos como: multiplex, superparticularis,
superpartiens, multiplex superparticularis, e multiplex superpartiens.
“Multiplex he, quando uma quantidade contem em si outra da mesma grandeza”, ou seja, a proporção
dupla é a formação de um quadrado a partir da união de dois outros da mesma grandeza; se forem
três será tripla.
[...] Superparticularis he quando a huma quantidade diversa em partes menores, se lhe acrescenta uma parte
das menores [...]. Quando a hum quadrado diviso em dous meyos se lhe acrescenta mais meyo, se chamará
proporção sexquialtera, e se lhe acrescentar mais um terço, será sexquitertia [...]
57
.
[...] Superpartiens he quando a huma quantidade divisa em partes menores se lhe acrescentam duas, ou mais
partes menores, que he quando a hum quadrado em três partes diviso se lhe acrecentam mais duas terças partes,
então será superbipartiens tertias, e se lhe acrecentarem três partes será supertripartiens quartas [...]
58
.
Com esse sistema de proporções, os profissionais setecentistas desse “modo de fazer cidades”
tinham uma enorme gama de possibilidades compositivas. A praça central era a figura retangular
55
BNRJ. Códice: 094, 03,08. PIMENTEL, Luís Serrão. Methodo Lusitanico de desenhar fortificações das Praças Regulares e Irregulares. Lisboa, 1680.
56
BNRJ. Códice: 094, 03,08. PIMENTEL, Luís Serrão. Idem. [Grifos nossos]
57
VASCONCELOS, Ignácio da Piedade. Artefactos Symetricos e Geométricos. In: ARAÚJO, Renata Malcher de. Op. Cit., p. 48.
58
VASCONCELOS, Ignácio da Piedade. Op. Cit., p. 48.
236
geradora dos demais componentes do espaço urbano e, dando continuidade ao método, por meio do
processo das seguidas decomposições obtinham-se suas medidas. Acrescente-se ainda a existência de
medidas básicas para praças centrais, ruas principais e secundárias e lotes, herdadas do tradicional
tratado de Luís Serrão
59
, adaptadas para os diferentes usos e necessidades do século XVIII. O que vale
dizer, inclusive, as variações de tamanho desses itens, cujas dimensões correspondiam à “[...] importân-
cia e à grandeza dos núcleos urbanos”
60
, e a conversão do sistema de medidas habitual do século XVI, com
o palmo, o pé, a vara e a braça, para aquele que esteve em vigência nos séculos XVII e XVIII. Suas
correspondências são: 1 palmo = 8 polegadas; 1 pé = 1,5 palmos; 1 vara = 5 palmos e 1 braça = 10
palmos. Mas essas conversões de medidas ainda apresentaram problemas, como os constantes resulta-
dos fracionados, que dificultavam a exatidão do método e que levaram Manuel de Azevedo Fortes a
elaborar tabelas de conversão das polegadas para os múltiplos decimais, considerados mais eficazes e
de melhor raciocínio, o que fez com que fossem mais utilizados que os demais.
A partir desse conjunto de sugestões de dimensões, calculadas segundo a importância e gran-
deza das cidades e das respectivas conversões de seus sistemas de medidas, o urbanismo do século
XVIII contou com um variado grupo de referências básicas, preconizadas para o dimensionamento
de espaços urbanos que iam de “250 palmos para os núcleos menores; de 500 palmos para os núcleos médios e
a extraordinária de 1000 palmos para os grandes centros”
61
. Na prática, entretanto, Araújo aponta que
houve variações em relação a essas recomendações, não sendo observados a continuada freqüência
e o rigor dessas medidas-padrão, o que de maneira alguma invalida a importância, o raciocínio e a
sistematização de todo o método, que ia desde a decomposição de formas até a apropriação de
medidas previamente estabelecidas em tratados.
No levantamento realizado no território brasileiro, essa autora afirma que, em relação à medi-
da de 250 palmos, encontram-se as praças dos pequenos aldeamentos indígenas, distribuídos em
diferentes regiões, cujas formações se orientaram mediante planos reguladores. São os casos da
Aldeia de Santana de Goiás (1741), das povoações de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora
da Lapa e Nossa Senhora das Necessidades, em Santa Catarina (1751); da Aldeia de São Miguel, no
Mato Grosso (1765); ou da povoação de São José de Marabitenas, no Rio Negro (1767). Um exem-
plar que foge a esse padrão é a Aldeia Maria I, de Goiás (1782), com praça de 410 palmos.
No grupo de praças com dimensões médias ou de 500 palmos, é considerável o número de
vilas erguidas na segunda metade do século XVIII. São elas: São João do Parnaíba, no Piauí (1761);
Guaratuba, localizada na orla do Paraná; Desterro e Laguna, em Santa Catarina, e São Pedro e Porto
Alegre, no Rio Grande do Sul.
59
As medidas indicadas por Luís Serrão eram: praças centrais (lado) 120 a 200 ou 250 palmos (26,40 a 55 m), estradas à volta das cortinas com
20 a 30 ou 36 palmos, ruas principais com 30 a 35 palmos (6,60 a 7,70 m), ruas secundárias com 25 a 30 palmos (5,5 a 6,60 m), lado de praças
localizadas diante de baluartes com 150 a 200 palmos, lado de praças menores com 80 a 100 palmos (17,60 a 22 m), frente de lotes para
casas com 24 a 36 ou 40 palmos (5,28 a 8.8 m), fundo de lotes para casas 68 a 70 ou 40 palmos (14,96 a 17, 6 m), casa do governador
80x40x25 palmos (17,6x 8,8 x 5,5 m). As medidas em metros foram calculadas por Siqueira Bueno a partir de uma referência de Afonso
Ávila de que 1 palmo = 22 cm e 1 braça = 2,20 m.. SIQUEIRA BUENO, Beatriz Piccolotto. Desenho e Desígnio: O Brasil dos engenheiros
mulitares (1500/1822). Tese de doutoramento. São Paulo: FAU-USP, 2001, p. 639.
60
FERNANDES, Manoel José. apud: ARAÚJO, Renata Malcher. Op. Cit., p. 50.
61
ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: FAUP Publicações, 1992, p. 50.
237
Como variante do terceiro grupo, aparecem as vilas com dimensões que são a média entre os
500 e 1000 palmos. São os casos das Vilas de Macapá (1761) e Mazagão (1770), com 750 palmos.
Conforme indica o método, as ruas são dimensionadas considerando uma relativa
proporcionalidade às medidas de suas praças centrais, com tamanhos que podem variar de 35 a 40
palmos para os pequenos núcleos e de 40 a 60 palmos para os médios. Já para os lotes urbanos, poucas
são as mudanças em relação às indicações do tratado de Luís Serrão, com 24, 36 ou 40 palmos para
as frentes e 68 a 70 ou 80 palmos para os fundos.
Análises geométricas dos planos desses exemplares permitiram a Araújo entender a lógica do
sistema gerativo de formas e a sua evidente relação de proporcionalidade, segundo uma interessante
e racional metodologia, bastante indicada nos diversos manuais da época, como o “Tratado do modo
mais fácil, e o mais exato de fazer cartas geográficas, assim da terra, como do mar, e tirar as plantas das Praças,
Cidades, e edifícios com instrumentos [...]” de Manuel de Azevedo Fortes. O desenho do plano urbano
iniciava-se por uma base conhecida, normalmente uma malha quadrangular que, além de ser a
orientadora das relações formais, funcionava também como um tipo de escala.
De posse de tal método foi que ouvidores de comarcas e governadores, quando não dispu-
nham de engenheiros militares, que eram em número insuficiente para cobrir as necessidades de
todo o território colonial, se responsabilizaram pela criação de diversos aldeamentos e núcleos
urbanos iguais à Vila do Itapicuru, localizada no interior do Maranhão e erguida com,
[...] quadras bastante para a praça publica, com caza da câmara, cadeya e mais officinas e a porta principal
da igreja podendo ser determinando e demarcando o termo necessario para este edifício que em nenhum
tempo se poderão occupar com outros differentes com attenção a que se pode augmentar com o tempo esta
povoação e convem qua a igreja tenha comodidade para receber todos os moradores e para formação das ruas
se lancem linhas rectas que devem sahir dos lados da praça com a advertência que as ruas sejão ao menos de
quarenta palmos de largura ficando para traz das cazas terrenos para os quintais dellas, desenhando (sic)
disposto que todas as cazas na face da rua conservem uniformidade na rectidão das paredes com o mesmo
perfil e as beyras dos telhados no mesmo nível de sorte que em todo o tempo se conserva a mesma formosura
do aspecto e decoro da terra [...]
62
.
Segundo o desenho desse plano, elaborado por um ouvidor, a Vila se apresenta com 12
quadras retangulares – compostas por seis lotes com quintais –, organizadas simetricamente em
relação ao eixo de uma praça retangular, onde se encontram, marcando ainda mais essa simetria,
os principais edifícios da vila: uma igreja implantada exatamente sobre o ponto central da praça,
a Casa de Câmara e Cadeia, localizada ao sul, e o Curral do Conselho, ao norte. As ruas, de acordo
com esse documento, deveriam ter 40 palmos de largura ou 8,8 m, com casas alinhadas nas
testadas dos lotes.
Acompanhando uma lógica projetual semelhante, embora concebida com maior grau de eru-
dição e dados geométricos mais precisos, têm-se a Aldeia de São Miguel, no Mato Grosso (1765),
com projeto do engenheiro José Mathias de Oliveira Rego, e a pequena povoação de São José das
62
AHU. Provisão de 1753. In: SIQUEIRA BUENO, Beatriz Piccolotto. Desenho e Desígnio: O Brasil dos engenheiros militares (1500/1822). Tese
de doutoramento. São Paulo: FAU-USP, 2001, p. 639.
238
Marabitenas (1767), do engenheiro Filippe Sturm. A aldeia que se levanta às margens do Rio Guaporé,
foi construída a partir de uma malha de 10 braças, responsável pela geração de uma praça quadrangular
de 20 x 20 braças, ruas de 35 palmos, lotes de 30 x 30 palmos, igreja de 40 x 100 palmos, apresentan-
do uma forma urbis retangular em proporção dupla superbipartiens tertias (30 x 80). Já o traçado do
povoado organiza-se de acordo com uma malha formada por quadrados-base de 70 palmos (7 x 7
braças), gerando lotes para habitações de 70 x 140 palmos; ruas com 35 palmos, ou seja, metade do
módulo de referência, e a igreja também com lotes de 70 x 140 palmos proporcionais à medida base,
completando, assim, a forma urbis retangular de 49 x 98 braças.
Observando essas práticas de projetos urbanos em diferentes pontos da colônia, pode-se
conjecturar quão abrangente, pragmática e de aplicação diversa foi essa metodologia que se conso-
lidou ao longo dos séculos. É o que permite Araújo afirmar, por um lado, a sua direta ligação com
o modo de fazer cidades, cuja concepção se fundamenta na eleição do desenho de uma praça,
elemento gerador da malha urbana, e materializada pela intermediação das intervenções dos
arruadores; e, por outro lado, com o conjunto de princípios ordenadores que incluem relações de
proporcionalidade e medidas, geração e escolha de figuras geométricas, que, articuladas, representa-
vam simbolicamente o espaço da ordem e da civilidade. Esse foi um dos modelos difundidos pela
escola de urbanismo português para diferentes territórios do império luso na segunda metade do
século XVIII e, portanto, da modernidade, marcando o Brasil com a construção de cidades regula-
res semelhantes às de Mazagão e Macapá, na Amazônia; povoados e aldeamentos indígenas, entre
os quais as aldeias de Santana e São José de Mossâmedes, com plano do governador José de Almeida,
e Maria I de Cunha Menezes, todos na mais central das capitanias, a de Goiás.
A base da fundamentação teórica desse urbanismo encontra-se, segundo Teixeira e Valla
63
,
nas cidades de colonização romana da península, na tratadística vitruviana, nas cidades planejadas
do século XIII, nos traçados regulares dos aldeamentos jesuíticos e, notadamente, no contexto
renascentista. Neste, o momento era envolto de especulações de diversas naturezas, abarcando
desde a retomada dos princípios idealistas da Antigüidade Clássica até a noção de pólis como repre-
sentação de uma cultura.
No panorama da cultura humanista, a ordem social reflete-se nas formas das cidades, estruturadas
a partir de praças perspécticas, de onde partem retículas geometricamente bem formadas por interseções
de linhas ortogonais. A cidade é o “[...] produto de uma decisão, de uma teoria. A praça não era mais o coração da vida
comunitária, mas quase uma extensão do palácio, um pátio de honra, um lugar destinado a cerimônias e paradas. Tem,
portanto, uma forma regular e uma ordem arquitetônica unitária”
64
. Essas condições, em seu conjunto, são as que
identificam, portanto, o novo espaço das cidades renascentistas e das inéditas propostas que se implanta-
ram em territórios descobertos a partir da expansão ultramarina. Mas, nesse caso, deve-se considerar que
mesmo sendo herdeiras da cultura humanista, essas propostas, nos cursos dos século XVII e XVIII,
sofreram significativas alterações em suas feições simbólicas. De uma expressão da natureza religiosa, as
cidades coloniais portuguesas gradativamente passam a representar uma racionalidade de cunho pragmá-
tico e laico, responsável pelos maiores interesses nos tratados e nos procedimentos de concepção/ orde-
nação da forma arquitetônica urbana.
63
TEIXEIRA, Manuel C. e VALLA, Margarida. O urbanismo português: séculos XIII-XVIII. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 257.
64
ARGAN, Giulio C. História da arte italiana. De Giotto a Leonardo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 131.
239
65
TEIXEIRA, Manoel e VALLA, Margarida. Op. Cit. , p. 257.
66
AHU. Goiás, Doc. 2025, 1781. Sobre as obras da aldeia de São José de Mossâmedes. Projeto
Resgate Barão do Rio Branco, Goiânia: IPEHBC.
67
AHU. Goiás. Doc. 1838, 1776. Sobre a criação de aldeias indígenas. Goiânia: IPEHBC.
Fig. 83 – Prespectiva de Vila Boa de
Goyaz.
Fonte: Arquivo da Biblioteca Mário de
Andrade.
6.4 O urbanismo regulador nos aldeamentos da Capitania de Goiás
A considerar o urbanismo que se desenvolveu na segunda
metade do século XVIII como devedor de conhecimentos prático-
teóricos dos séculos anteriores, pode-se pensar numa proximidade
formal dos aldeamentos goianos com os antigos planos jesuíticos
que vinham se desenvolvendo desde o fim do século XVI. Essa se-
melhança relaciona-se apenas aos princípios fundamentais da orga-
nização físico-espacial de aldeias que foram concebidas a partir de
praças centrais, retangulares ou quadradas, inscritas em malhas pre-
vistas, fonte originária de todos os componentes do espaço pombalino.
Evidentemente, os princípios simbólico-religiosos dos traçados já não
se coadunam. “As funções específicas dos edifícios alteram-se, mas a lógica da
organização urbana mantém-se: o pelourinho substitui o cruzeiro no centro
da praça, armazéns e outros edifícios civis substituem os edifícios do colégio, as
oficinas e a residência dos padres”
65
.
Na Capitania goiana, um primeiro exemplo que ilustra essa
condição é o plano da aldeia da “Ilha de Santa Anna denominada Nova
beira”
66
, (1775/1776), construída por ordem do então governador
José de Almeida (Fig. 84). Este, nessa mesma década, alcançou a
região da atual Ilha do Bananal, objetivando conhecer novas tribos
indígenas e lugares incultos para a ampliação do programa de viabi-
lidade econômica da Capitania. Por essa razão, mudou o nome dessa
ilha para Santana e ordenou o soerguimento de uma aldeia para abri-
gar as nações Carajá e Jav
67
, formando um conjunto de ações que
lhe garantiram a conquista da região.
240
Em relação ao processo compositivo, o plano do aldeamento de Santana ou Nova Beira se
mostra com uma estrutura espacial bastante simplificada, muito próxima à dos aldeamentos jesuíticos.
Resume-se apenas a uma grande praça quadrada, fechada em três de seus lados por quatro grandes
barracões para habitações, dispostos em duas de suas laterais, e um quinto de maiores proporções,
destinado aos alojamentos dos soldados. No centro desse bloco, um sobrado”
68
se erguia, destacan-
do-se no conjunto. Do lado oposto a esse edifício, ergue-se sozinha, dominando todo o espaço, uma
igreja em posição simétrica à do eixo da praça. No centro desta, encontra-se um poço d’água que é
servido por um rego que deriva do Rio Paranã, afluente do Tocantins.
A aldeia de São José de Mossâmedes, localizada a cinco léguas a sudoeste de Vila Boa, foi iniciada
na administração de José de Almeida, em novembro de 1744, quando foi eleita e marcada a sua área de
implantação (Figs. 85, 86, 87). A construção de suas principais estruturas observou configurações bas-
tante semelhantes às das povoações de Albuquerque, no Mato Grosso (1778). O propósito de seu
soerguimento era a redução dos ferozes Akroá, oriundos do norte da Capitania.
A base da composição do plano de José de Almeida é uma grande praça rigorosamente
quadrangular, com as dimensões de 55 x 44 braças, com quartéis de 40 palmos de largura dispostos
continuamente em duas de suas laterais, intercalados por uma pequena abertura, destinados aos
alojamentos de índios. Diferentemente da citada povoação do Mato Grosso, os vértices da praça de
São José são marcados por quatro sobrados, destinados à moradia do vigário, do inspetor das obras,
do cirurgião e o respectivo hospital, e à casa de teares.
Em frente à praça encontra-se um comprido bloco, que assinala o eixo de simetria da aldeia com um
triunfal arco de entrada. Uma perspectiva da igreja e dos quartéis existente na Biblioteca Mário de Andrade,
em São Paulo, mostra, por cima desse eixo, um sobrado que servia de acomodação ao governador. Comple-
tando a composição, cujas formas do conjunto se assemelham às organizações militares, no lado oposto do
referido acesso estão a igreja e mais acomodações para quartéis, totalizando 41 unidades. Com esses edifíci-
os, fechava-se quase todo o espaço da aldeia, em oposição à configuração de Nova Beira, que busca a praça
aberta para o Rio Tocantins, como igualmente ocorre na Vila Maria, do Mato Grosso.
Em 1788, algumas alterações físicas foram feitas no aldeamento de São José de Mossâmedes pelo
novo administrador de Goiás, Cunha Menezes, que mandou realizar a reforma da “[...] Igreja, primeiro objecto
daquelles estabelecimentos; por ter achado esta somente com os seus primeiros fundamentos, construídos de taipa meramente, sem
ainda estar cuberta [...]”, e acréscimos na,
[...] caza da Roda de fiar algodam, augmentando-a ao numero de 192 fuzos; por q’ esta alem de ter sido só de 40. pela
sua má construcção, caio uma grande parte dela, pelo movimento da mesma roda. Hum engenho de fazer farinha de
milho, e mandioca, com 18 maos; por que o que tinha feito era não só de 6, mas por ter sido obra feita interinamente,
não tinha toda a solides, que óra preciza para a sua duração. O rego da agoa, para o serviço da mesma Aldeya, e de
todas estas Fabricas, de uma Legoa de comprido, pelo qual lhe fiz meter de dois Ribeiroens, agoa, que super abunda
para todos os ditos serviços, ainda na mais rigoroza seca, na altura de 30. palmos; porque o que se tinha feito era por
um terreno de tão má qualidade, que não só não levava agoa, a maior altura, q’de dez, mas ainda em pouca
quantidade, apezar de se fazer uma continuada despeza, com os concertos de que sempre estava precizando
69
.
68
REIS, Nestor Goulart. Goiás. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2000.
69
AHU. Goiás, Doc. 2025, 1788. Goiânia: IPEHBC.
241
Fig. 84 – Planta da Aldeia de Santana.
Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de
Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São
Paulo: EDUSP, 2000, p. 241.
Diante de tal documento, pode-se observar que as principais
preocupações desse governador foram a melhoria do abastecimen-
to de água, o aumento de equipamentos e a formação de “[...] hum
novo Curral, para o gado do serviço da mesma Aldeya”
70
, tudo visando
melhorar a capacidade produtiva do local. Além dessas providênci-
as, construiu mais “[...] Trinta e dois quartéis por serem poucos os com que
foi estabelecida, para acomodação dos mesmos Índios [...]”
71
. Esses quartéis
foram construídos atrás da igreja e podem ser vistos nas planta e
perspectiva feitas em 1801 por Joaquim Cardoso Xavier Sarmento,
do Regimento de Infantaria da Milícia de Vila Boa, a mando do
governador da época João Manoel Menezes. Nesses desenhos são
indicados
70
AHU. Goiás, Doc. 2025, 1788. Idem.
71
AHU. Goiás, Doc. 2025, 1788. Idem.
242
Fig. 86 – Prespectiva da Aldeya de São
Joze de Mossamedes.
Fonte: Arquivo da Biblioteca Mário de
Andrade.
Fig. 85 – Prespectiva da Aldeya de São
Joze de Mossamedes, 1801.
Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de
Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São
Paulo: EDUSP, 2000, p. 241
Fig. 87 – Prespectiva da Aldeya de São
Joze de Mossamedes.
Fonte: Arquivo da Biblioteca Mário de
Andrade.
243
Figs. 89, 90 – Igreja de São José de
Mossâmedes.
Fotos: Carolina Boaventura
Figs. 88 – Vista aérea de São José de
Mossâmedes (atual cidade de
Mossâmaedes).
Fonte: Google Earth.
244
Figs. 91 – Igreja de São José de
Mossâmedes.
Fotos: Carolina Boaventura
[...] a caza de sobrado com figura de torrião, [...] cazas de sobrado na frente da
povoação q he rezidencia do Snr General, [...] caza de jantar de Sua Exa, [...]
caza do regente, [...] moinho, [...] engenho de fabricar farinhas, [...] ferraria,
[...] orta da aldeia, [...] grande bananal com mais de 2000 soqueiras planta-
das na forma que se vê, [...] casa da infermeira, mestre e mestre dos meninos”,
[...] a caza de fiar de 40 fuzos e a [...] caza de teares
72
.
Entretanto, a casa que se erguia em cima do arco de acesso
principal, destinada ao capitão general, já não é vista, passando a ser
localizada, segundo Saint-Hilaire, “[...] num local muito aprazível, com
um pomar bastante grande nos fundos, banhando por um riacho que foi desviado
do seu curso para servir a aldeia [...]”
73
.
A reforma do aldeamento de São José não foi o principal em-
preendimento de Luís da Cunha Menezes, mas sim a criação do im-
portante aldeamento chamado Aldeia Maria I, cujo nome se reporta a
uma homenagem feita à então soberana de Portugal (Fig. 92). Conce-
bida segundo a lógica da derivação de formas geométricas proporcio-
nais, sua composição estrutura-se em torno de uma grande praça central
ladeada por arvoredos. Um eixo longitudinal a ela permite um melhor
entendimento das funções dos diferentes edifícios e de demais espa-
ços que completam um programa urbano, organizado a partir de uma
72
AHU. Goiás, Doc. 2025, 1788. Idem.
73
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo:
EDUSP, 1975, p. 64.
245
Figura 92 – Plano Projectivo de um novo estabelecimento de Índios.
Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 242
246
clara separação entre os edifícios institucionais e os coletivos
74
. Os primeiros, como indica o plano,
localizam-se na face A da praça e são compostos pela Igreja Nossa Senhora da Glória e sua sacristia.
À sua direita, em um grande e comprido bloco, semelhante a barracões, ficam a casa do regente, a
fábrica e o paiol para mantimentos. Atrás do referido bloco, encontram-se um pequeno edifício para o
armazenamento de sal e áreas destinadas ao terreiro do paiol, ao bananal, à horta e ao pomar. À
esquerda da igreja, levanta-se um outro paiol para o sal e os quartéis para as tropas. Na parte posterior,
instalam-se a casa do vigário, com quintal, e depois o cemitério. Em oposição a esse conjunto, erguem-
se os edifícios coletivos, formados por oito blocos dedicados aos “[...] quartéis ou cazas com acomodações de
índios”
75
. Curiosamente, quartéis para índios é uma expressão recorrente na documentação de outros
assentamentos, como o de Vila Maria do Paraguai, de 1778, erguida nas adjacências do Rio Paraguai
76
.
Araújo
77
aponta ser essa expressão a possível origem da tipologia do “barracão”, mesmo sendo ela a
provável influência do modelo das missões. Conclui, então, haver a possibilidade de se pensar numa
adaptação de quartéis às habitações indígenas.
De qualquer modo, o que cabe identificar neste momento é a presença implícita nesse plano
das noções de regularidade, simetria, harmonia, proporcionalidade e alinhamento. Juntos, esses con-
ceitos confirmavam a intenção de civilidade, da ordem em oposição à barbárie. Por outro lado, do
ponto de vista projetual, eles são verificáveis segundo um método prático que se fundamentava em
princípios geométricos de geração de formas.
Seguindo o estudo da desconstrução geométrica proposto por Araújo
78
e visando buscar a
lógica formal do urbanismo pombalino, o plano de Maria I iniciou-se pela escolha do número primo
11, responsável pela modulação da malha base, permitindo a criação da forma urbis retangular em
proporção dupla sesquiquinta, ou seja, a um quadrado de 55 x 55 braças somou-se outro igual mais
a sua quinta parte (11 x 55 braças). Simetricamente, o desenho é quase perfeito, rompido apenas
pelo acréscimo de um barracão do lado direito, mas de modulação que também segue a
proporcionalidade da malha, igualmente às áreas posteriores, destinadas à plantação e ao jardim.
74
Na legenda do plano, o governador informa também sobre os procedimentos construtivos dos edifícios e o uso de alguns matérias, como se
observa a seguir:As cazas devem deser feitas de pao apique, de 20 palmos cada um em quadra, e com sua varanda de 15 palmos, de largura,
e vinte decomprimento conforma as mesmas cazas, e se mova pelos números q’ vão marcandos nos seus perfies ab,e cd. Tudo o que vay
demarcado é a demarcação daprimeira obra, q’ vai fazer da construção desta Aldeya, porserem o payol para os armazenamentos cortados q’
guarnecem a sua peça principal, como se vê da mesma demarcação; que inclui seis quartéis em cada um dos membros das faces culaterais com
as suas respectivas varandas, ficando quatro de cada um dos membros com as portas para as suas respectivas ruas, e dos que fazem a conta dos
seis com as suas pernas para a dita peça principal como se vê na fachada B, edos outros dous lados principal da Igreja, enumerada com o
numero de quartéis q’ [ ] pelas suas respectivas portas das ditas fachadas A e C. A madeira da sua construção deve ser de arueira e de palmo em
quadra, as faces dos esteios, ou no cazo de mays facilidade de usar qualquer madeira q’ tenha a mesma duração. O enquadramento das ditas
madeiras como os baldrames, frexaes, caibros e Pão-apique devem de ser ajustados e pregados com os seus competentes pregos [...] “. “Plano
projectivo de um novo estabelecimento de Índios.” In: REIS, Nestor Goulart. Goiás. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo:
EDUSP, FAPESP, 2000, p. 242. [Grifos nossos]
75
“Plano projectivo de um novo estabelecimento de Índios.” In: REIS, Nestor Goulart. Goiás. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo:
EDUSP, FAPESP, 2000, p. 242.
76
AHU. Mato Grosso. Doc. 27. apud: ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: Discurso e método. Tese de
doutoramento Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2000, p. 374
77
ARAÚJO, Renata Malcher de. Op. Cit., p. 314.
78
ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: Universidade do Porto, 1998, p. 56.
247
Entretanto, a fachada da igreja foge a essa racionalização compositiva, justificada pelo autor como
uma acomodação “[...] às sircunstancias do sistema deste projecto”
79
.
Dessa forma, cabe dar ênfase ao fato de que Maria I, organizada segundo essa racionalidade
geométrica, filia sua identidade formal numa estruturação urbana que não se compõe segundo
quarteirões quadrados ou retangulares, como era a prática habitual nas vilas e cidades construídas ao
longo do século XVIII. Em vez disso, esse aldeamento foi estruturado por filas ou blocos de casas
alongadas, como era tradicional nos aldeamentos missionários.
Embora não se possa esquecer das especificidades apresentadas em cada um dos aldeamentos
goianos, convém lembrar que o elemento comum que se destaca entre eles é a grande praça retan-
gular – o que não chega a ser incomum nesse tipo de organização espacial –, estabelecida por
religiosos ou civis. Essa foi uma característica recorrente no urbanismo português que se desenvol-
veu no Brasil colonial. No texto Planejamento, História e Memoria, Flexor
80
cita inúmeros exemplos
com tais características, de onde destacamos: Nova Almeida, anteriormente denominada Aldeia dos
Reis Magos, localizada na Comarca do Espírito Santo; Santarém (1758), criada na Aldeia de Santo
André do Rio Serinhaem, freguesia de Caramuru, na Bahia; Nova Abrantes (1758), próxima a Salva-
dor e que foi uma das primeiras aldeias jesuíticas fundadas na colônia; Olivença (1758), anterior-
mente denominada Aldeia de Nossa Senhora da Escada, na Capitania de Ilhéus; e São Miguel Arcanjo
(1756), no Rio Grande do Sul. Em todas essas referências é clara a importância da praça retangular,
marcando a centralidade desses núcleos urbanos.
Para além da praça central retangular, nos três exemplos estudados na Capitania de Goiás um
outro aspecto que se evidencia é a adoção, por parte dos governadores José de Almeida e Cunha
Menezes, de estruturas espaciais semelhantes às de outras regiões da colônia. Embora não fossem
engenheiros militares, ambos, calcados apenas em suas experiências práticas, elaboraram um tipo de
desenho que remete a um método de trabalho padrão, de base de conhecimento comum e que foi se
consolidando ao longo de três séculos. O método foi o principal fundamento para a concepção desses
aldeamentos, o elemento que garantiu a conjugação de figuras retangulares e proporcionais, a regula-
ridade e a medida para os dimensionamentos da arquitetura, de ruas, quando havia, e até mesmo das
áreas destinadas à plantação, como ocorre em Maria I. Ele foi o fio condutor que aproximava os novos
aldeamentos aos de formações jesuíticas, às vezes, privilegiando espaços abertos voltados para rios e
edifícios religiosos que se implantam soltos e isolados, a exemplo de Nova Beira, ou a uma tipologia
aquartelada com casas dispostas ao longo da praça, como se observa em Albuquerque, no Mato Gros-
so. O método foi a continuidade de uma tradição de desenho urbano de forte cunho geométrico e
matemático que alcançou o sertão goiano: inóspito e distante do litoral.
79
Plano projectivo de um novo estabelecimento de Índios. apud: REIS, Nestor Goulart. Goiás. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo:
EDUSP, FAPESP, 2000, p. 242.
80
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Planejamento, história e memória. 4
O
Seminário Nacional de Infra-estrutura, Organização territorial e Desenvolvi-
mento local: Território e Desenvolvimento CEPEX/ UCSal. 27 e 28 de junho, 2005.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
251
entendimento da urbanização de Goiás no século XVIII implica a consideração de vários
condicionantes intrinsecamente relacionados à centralizadora política de colonização portu-
O
guesa, voltada particularmente para a expansão, ocupação e exploração econômica do território
colonial. Mas não foram essas ações mais pragmáticas as únicas responsáveis por esse processo, pois
deve-se acrescentar também a persistência de antigos mitos sobre a existência de ouro e pedras
preciosas nessa região, que, ao alcançar essa centúria, motivaram bravos expedicionários a penetrar
e desbravar o mais central de todos os sertões do Brasil. Só assim, enfrentando o desconhecido,
esses homens conseguiram converter o vazio da ignorância sobre esse espaço em território
identificável, mensurável e com outras potencialidades, daquelas almejadas pelo imaginário. Ou seja, à
medida que o penetravam, renovavam continuamente suas visões míticas sobre ele, descobrindo
suas jazidas auríferas, seus atributos detratores e a natural resistência dos seus habitantes, aperfeiço-
ando a sua forma de representação, segundo uma cartografia mais exata e elaborada, que buscava,
sobretudo, garantir o controle e a posse das terras goianas, particularmente as que se situavam a
oeste do meridiano de Tordesilhas.
Tais objetivos não se efetivaram apenas a partir de uma cartografia mais precisa; contaram
com outros instrumentos adotados pela Coroa portuguesa para a efetiva posse de Goiás. A abertura
de caminhos, as instalações de registros, a adoção de um sistema de partilha de terras - tanto para
fazendas como para as minas –, a fundação de uma vila e a formação de prelazias e paróquias
também foram cruciais para o desenvolvimento de tal processo. Esses mecanismos, apesar de pos-
suírem suas especificidades, só funcionavam segundo um sistema que claramente os articulava, cons-
tituindo um método de construção e urbanização de territórios, que, de acordo com Araújo, foi
comum a todo o Império luso.
O domínio do território goiano só se fez pelo controle desses mecanismos, fossem eles vias
de escoamento de mercadorias ou de acessos de pessoas às terras minerais, meios de produção, ou
ainda, a forma de organização político-religiosa de organizações definidoras de espaços eclesiásti-
cos, cuja maior contribuição foi oferecer um primeiro esboço dos limites físicos de Goiás, garantin-
do-os mediante a criação da prelazia e da fixação de inúmeras paróquias. Foi colocando em prática,
quase que simultaneamente, todos esses recursos que Portugal conquistou o poder político que se
pretendia nessa Capitania, para além do poder econômico que daí advinha.
252
O conhecimento dos percursos dos rios e os caminhos terrestres não foram apenas meios que
permitiram o desbravamento das regiões incultas. As aberturas dos caminhos demonstram uma estra-
tégia maior de ligação do litoral aos territórios mais centrais, na qual se revela uma presente e constante
visão de unidade espacial da colônia americana, originária do tempo no qual o mito se fazia mais forte.
A idéia de unidade foi a força motriz que garantiu a assumida intenção da metrópole de expandir suas
conquistas à esquerda da linha de Tordesilhas, onde se encontravam parte das terras goianas. E estas
serviram de suporte para o ponto de confluência e conexão de caminhos que ligariam o leste ao oeste
e o norte e ao sul da colônia, constituindo-se assim uma grande malha de controle. No âmbito da
Capitania, os caminhos foram também os elementos estruturantes e de ligação dos diversos arraiais
existentes, configurando uma “rede” cujo centro do controle era a capital Vila Boa, onde quase sem-
pre eram idealizados ou fixados os sucessivos avanços territoriais e comerciais.
Diferentemente de outras regiões, particularmente as de fronteira, o resultado da urbanização
de Goiás foi extremamente pobre e escasso em relação ao número de vilas: apenas uma! Por isso
seus arraiais e aldeamentos foram tão proeminentes nesse processo. Apesar de suas simplicidades,
característica de todos os modestos núcleos de mineração e de civilização indígena, foram esses
arraiais e aldeamentos que representaram, com Vila Boa, a garantia da posse de tão vasto espaço,
além de estabelecerem ainda os necessários vínculos entre si, entre os importantes rios Araguaia e
Tocantins e, sobretudo, com as demais partes da colônia. Em razão da sua centralidade territorial, a
Capitania assumiu posição estratégica tanto para as comunicações como para a expansão rumo às
regiões de soberania ainda não definida, como reconheceu, inclusive, o próprio Alexandre de Gusmão.
Vila Boa, os arraiais e os aldeamentos foram, portanto, os núcleos da organização territorial
de Goiás, além de pólos de toda a sua sustentação econômica, pois a eles se vinculavam não apenas
a exploração mineratória, e da mão-de-obra indígena, mas também a agrícola, destinada, particular-
mente, aos seus abastecimentos. Articulados às organizações das paróquias e dos julgados, foram os
grandes elementos da construção e consolidação da Capitania. A capacidade de se instalarem como
os únicos pólos de referência permitiu-lhes estabelecer relações de poder sobre o espaço territorial
de Goiás – evidentemente, subjugados à capital - assim como, guardadas as devidas proporções, às
demais regiões da colônia, onde havia uma maior quantidade de vilas que também asseguravam a
expansão territorial de Portugal, povoando-a, mesmo que para o alcance desse objetivo fosse neces-
sário subjugar os indígenas a viverem em aldeamentos, para serem “civilizados” e “evangelizados”
ou até mesmo afastá-los para outros territórios, caso impedissem as ocupações dos colonos. No
caso específico da Capitania de Goiás, no curso de todo o Setecentos, o processo de ocupação
caracterizou-se ainda por fortes resistências indígenas, que geraram inúmeros conflitos e massacres
sanguinários, que dizimaram várias nações.
Não obstante o interesse de Portugal em querer assegurar suas conquistas desde o início do século
XVIII, a política de povoamento no Brasil só ganhou maior impulso no período pombalino. Para tanto,
houve um incentivo para a transformação de vários núcleos urbanos em vilas ou mesmo a fundação de
outras, concebidas segundo uma lógica de organização que procurava a regularidade a partir da marcação
de uma praça, da abertura de ruas em linha reta e da uniformização das fachadas, tal como foi previsto
para Vila Boa em seu termo de assentamento. Foram essas as normas para um modelo que, diferente-
mente dos arraiais que se formavam a partir de tradicionais eixos bipolares, marcados por edifícios religi-
osos, se caracterizava também por assumir uma metodologia flexível, simplificada e que espelhava um
pragmatismo atento à execução de espaços urbanos em diferentes topografias e lugares.
253
Em Vila Boa, apesar de todas essas orientações de regularidade, o plano original sofreu pro-
fundas distorções que levaram Luís da Cunha Menezes, na segunda metade do século XVIII, a
propor significativos realinhamentos de ruas e a expansão de sua malha urbana, ações garantidas
por um código de posturas. No quadro do urbanismo português, essas iniciativas do governador
demonstram claramente a presença dos valores da cultura Iluminista, revelados nos discursos do
regular e da criação de novos espaços, previamente submetidos a um desenho, e que passam a
representar a “ordem da razão”. Contrapõem-se, portanto, ao simbolismo de caráter religioso das
concepções anteriores, a exemplo do que se encontrava na tradicional forma de organização dos
arraiais goianos, nos quais edifícios religiosos implantados em amplos largos se destacavam por suas
escalas que revelavam essa característica.
Além da vila e dos arraiais, deve-se evidenciar os aldeamentos, cujos planos foram os mais
eruditos que se apresentaram em Goiás. Elaborados segundo uma antiga tradição de desenho, fun-
damentavam-se rigorosamente em princípios matemáticos e geométricos. Como em toda a experi-
ência portuguesa de fazer cidades, as características pragmáticas de um método que previa desde a
adaptabilidade topográfica até normas gerais de implantação - como a escolha de bons sítios com
água e lenha etc., – também estiveram presentes. Foi esse método o elemento que assegurou a
regularidade, a proporcionalidade das ruas e da arquitetura desses núcleos indígenas, aproximando-
os das demais tipologias construídas em diferentes regiões da colônia, como a do Amazonas, do
Pará e do Mato Grosso, o que nos leva a confirmar a contemporaneidade de conhecimentos inova-
dores que chegaram ao território goiano e a refutar argumentos recorrentes da historiografia local
que balizam a idéia do isolamento do Goiás setecentista.
Posto isso, ressalta-se que com as discussões apresentadas e as novas documentações e refle-
xões levantadas sobre o tema, a presente tese não pretendeu ultimar as investigações e dúvidas
sobre a urbanização da Capitania de Goiás no século XVIII, mas trazer uma nova interpretação que
visa, sobretudo, inserir e contextualizar essa região no cenário da política portuguesa de ocupação
colonial, caracterizada por um claro perfil centralizador, que se garantia mediante o considerável
conhecimento cartográfico da época e as atuações de importantes profissionais do urbanismo, como
os governadores Marcos de Noronha, José de Almeida, Cunha Menezes e os engenheiros militares
Tosi Colombina e Thomas de Souza.
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BIBLIOTECAS
264
BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO
BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE DE SÃO PAULO
BIBLIOTECA DA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA USP
BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB)
BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS (UFG)
BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS. (UCG)
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE PESQUISAS HISTÓRICAS DO BRASIL CENTRAL
ANEXOS
267
Quadro 1: Arraiais que se formaram em Goiás.
268
Quadro 2: Linha Histórica
269
270
271
272
273
274
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278
Quadro 3: Formação das Capelas com suas Irmandades.
279
Livros Grátis
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